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1996
EXPERIMENTO
Sal)taella, Lúcia
Cultura das mídias / Lúcia Santaella Sumário
- São Paulo : Experimento, 1996.
292 p.; 21 cm
Bibliografia.
ISBN 85-85597-18-6
l. Meios de comunicação de massa. 2.
Televisão. 3. Poesia visual. I. Título.
eE·u E CORPO ·························· ....... ··· ···· · ····· ··················· ······· 255 foi publicada recentemente (Cortez., 1996), venho defendendo a
tese da inoperância das separações rígidas entre cultura erudita,
CÉU E MENTE ............................. ·· ..····· · ·.·· · ·
················· · · ··· ·· · · ···· 259 popular e cultura de massas. Essa mesma idéia veio se desenvolver
Por anda a luz? ................................................ . •. • •······· • • • ····· 267 em 1982, no livro Arte & cultura. Equívocos do elitismo (Cortez.,
Salto mutante da criação ........................................... • • •... • • • •·· • 268 3ª ed., 1995) e, mais tarde, em 1986, no livro Convergências. Po
esia concreta e tropicalismo (Nobel, 1986) Esses três livros, sem
269
Semblante sensível do inteligível ....... . ........ ................ ... • • • •
···.... ···· ·· ·· ········· ········ 27 l
dúvida, são bastante diversos, mas, na base dos argumentos neles
INFORMAÇÕES SOBRE OS ARTIGOS ................... ·.
desenvolvidos, há uma concepção comum, a de que a cultura de
.............................. 275 massas não deveria ser considerada simplesmente como uma ter
ceira forma de cultura a ser somada às formas mais tradicionais e
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...........................
Entre esses fat o res, destacavam-se: ( l ) o s trânsit o s, de dados em computadores remotos. Após alguns minutos ou horas
complementaridades e intercâmbios incess_antes de um meio d_e �o de exame de um documento pelas vias da WWW (World Wide Web
municação para outro e outros, e que chamei de redes entre as m1d1as, = Rede com a extensão do mundo) -- um sistema de ligações entre
(2) a crescente onipresença da informatiza�ã?_ invadindo todos os arquivos digitais de textos, som e gráficos, acessados sem esforço
setores da vida social e privada, (3) as poss1b1hdades abertas pelas a partir de um computador em qualquer parte do globo - essa
formas de comunicação interativas, (4) as novas modalidades de pessoa pode entrar em contato, através do correio eletrônico (e
criação artística presentes na exploração dos potenciais de uma mail), com o autor do documento examinado e dar início a um
estética das mídias e entre as mídias. Enfim, sintetizando esses fa diálogo que pode durar dias, meses ou até mesmo anos.
tores havia a previsão de que o advento da comunicação e cultura Há dois tipos de diálogo mediado por computador: não
infor:natizadas e interativas - que escolhi chamar pelo nome de sincrônico e sincrônico . No primeiro caso, através do correio ele
cultura das mídias para diferenciar da cultura de massas - iria trônico particular, uma pessoa escreve sua mensagem num momento
provocar tanto ou mais efeitos de transforma_ção sobr� a cultura de diferente daquele em que o receptor a receberá e lerá. A diferença
massas quanto esta havia provocado na antiga p olandade entre a de tempo entre a emissão e recepção, entretanto, é mínima, poden
cultura erudita e p opular. do levar alguns minutos ou apenas segundos. A comunicação em
II grupo, baseada no mesmo princípio do correio eletrônico, inclui
milhares de grupos cujos tópicos de discussão distribuem-se entre
Não apenas a previsão está se cump rindo como parece estar (l) o profissional, acadêmico e científico, (2) o recreativo, (3) os
se cumprindo de uma maneira muitc;, mais veloz e acentuada �o que tópicos que exigem ajuda grupal (por exemplo, entre pessoas soli
se poderia esperar. Quem iria imaginar, há menos de �ma d�ca?a, tárias, recém-divorciadas, pessoas em dieta alimentar etc.). Em to
que existiria hoje, nos Estados Unidos, p or exemplo, cmco m1lhoes dos esses casos, as mensagens são postadas para um endereço cen
de metros quadrados de redes de telefonia interligadas na formação tral e automaticamente distribuídas pelos endereços pessoais de todos
de um ciberespaço (cyberspace) dominado pela Internet, um vas_to os subscritores. Em alguns grupos, um moderador edita e distribui
labirinto comunicacional de redes educacionais, governamentais, as mensagens em conjuntos. Em outros casos, os indivíduos lêem
militares e comerciais conectadas tanto dentro do perímetro da mensagens armazenadas em um computador central ou num com
América do Norte quanto com o restante do mundo? Quem poderia putador pessoal, em vez de recebê-las no seu endereço particular.
prever que, nessa imensa rede planetária, mais de três mil� õ� s de Os modos sincrônicos de comunicação via computador per
computadores e de pessoas com as mais dive��as cara�tenst1cas, mitem que pessoas se liguem simultaneamente numa conversa,
em mais de três dezenas de países (números, ahas, que so tendem a digitando mensagens uma para a outra em tempo real. Quando a
crescer), estariam hoje interligados ? função "fala" é ativada, no sistema operacional unix, dois indiví
. �
Trata-se daquilo que vem sendo cham�do de cor:riumc�çao duos podem ler as mensagens que um está mandando para o outro
mediada p or computador e que tran�pira num c1ber:spaço m�orporeo no momento mesmo em que as mensagens estão sendo digitadas,
e abstrato consistindo apenas de impulsos eletromcos e mforma como se estivessem conversando no telefone. Há várias formas
ção. Para ter acesso a um tal universo, em que as coorde�adas grupais de comunicação sincronizada, dentre as quais a mais popu
usuais de tempo e espaço físico estão suspen�as, basta po_ ssmr um lar é a IRC, sigla para Internet Relay Chat (ver Danet 1995:9).
terminal de computador, um modem, uma lmha telefónica e ur:ri Com tudo isso, dá-se o aparecimento de um feixe dinâmico
endereço .eletrônico. Seus processos incluem não apenas a comum inaudito: novos registros lingüísticos, um novo tipo de escrita fala
cação, através do computador, de pessoa a pessoa ou pessoa e gru da, um modo de escrever o ralizado, novas maneiras de se expres
po, mas também contatos pessoais com o computador, quando uma sa r, de se relacionar com o outro e de perceber o mundo na sua
pessoa pode acessar arquivos ou interagir com programas e bancos globalidade. Geram-se aí modalidades inéditas de diálogo, ou
12 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS MÍDIAS 13
melhor, de multiálogo, e de socialização estimuladas e intensifica pequena máquina inesperada, o computador pessoal, que de peque
das pelo surgimento de fonnas radicalmente nãohierarquizadas, na, tanto quanto o telefone, só tem a aparência. Do mesmo modo
global e imediatamente disponíveis, remarcavelmente não censura que o telefone s� �stenderia nas novas tecnologias de transmissão,
das de acesso às info1mações dos mais diversos tipos, num univer o computador d1g1tal trazia no seu bojo a capacidade de transfor
so em que espaço real e distância estão se tornando cada vez mais mar todas as infonnações textuais, videográficas e sonoras em im
irrelevantes, substituídos que são pelas dimensões imprevistas de pulsos eletrônicos, absorvendo-as nos seus processamentos inter
espaço e tempo intersticiais, entre o real e o virtual. nos. Além disso, quando o telefone incorporou tecnicamente O ele
Ciro Marcondes Filho (1994:4) observa com muita proprie- mento gráfico, tornou-se possível não apenas falar, mas também
dade que esc �ever pelo telefone �e -mail), imprimir pelo telefone (fax), pro
d�z1r e gravar sons e v1deos (secretária eletrônica, TV slow-scan,
o uso da técnica, neste final de século, realiza sem o suporte ide v1deofone) (cf. Kac 1992:55). Está aí exposta toda a infra-estrutu
ológico do iluminismo, a intenção de tornar transparentes as ações, ra de suporte para� �rande mutação comunicacional de que somos
as intenções, as fonnas de agir. As redes mediáticas, os sistemas
testemunhas e part1c1pantes e que, na previsão de Mario Costa sob
informáticos de todo o planeta constituem uma rede em que to
dos entram e saem e cujo volume de trocas torna impensável o º, tí !ulo de Sublime tecnológico ( 1995), atinge dimensões antr�po
controle. No emaranhado de possibilidades que se multiplicam a log1cas.
cada dia, as pessoas podem encontrar múltiplas novas formas de Roy Ascott (1995), por seu lado, diz que a transform ação
tornar mais efetiva sua relação com a sociedade, a política, a pela qual passamos é, acima de tudo, uma transformação da cons
�
cultura circundante. c1encia. A Revol�ção Eletrônica, que ligou as telecomunicações ao
computador, está agora acontecendo no cérebro humano e esten
Processos de comunicação interativos multidirecionais são dendo nossa noção de mente, uma mente do tamanho do mundo em
assim instaurados num hiperespaço disseminado de infonnação em corp�s '!_Ue dese�volv�m a capacidade de "cibercepção", isto é, a
fluxo que, opondo-se à rigidez topológica de qualquer modelo line ampl1a _ 5ao e ennquec1mento tecnológico dos nossos poderes de
ar, compartilha as propriedades dos sistemas não lineares, tais como �ogmç�o e percepção. As neotecnologias da inteligência nas mídias
aqueles que se encontram na hipennídia e na auto-similaridade es 1�tcrativ�s plan�tárias impulsionam o pensamento associativo,
tatística das fractais (ver Kac 1992:48). Enfim, são processos de h1perm ed1ad�, htperconectado de um cérebro global que Ascott
comunicação tão diferenciais e inovadores ao ponto de estarem cri chama de h1percortex. Através das redes da bioeletrônica e
ando um tipo muito especial e proliferante de cultura que está rece nanotecnologia,
_ .o �er humano está se movendo na direção de uma
bendo o nome de cultura do computador. radical rematenahzação, de uma reconfiguração das estruturas
A bem da verdade, o grande pivô desse lugar sem lugar das moleculares do nosso mundo.
redes telemáticas não é apenas o computador, mas é também nada
mais nada menos do que o telefone, esse primeiro e grande meio
III
interativo, aquele mesmo que, junto com o automóvel, o aeroplano Se, no início da década, a expressão cultura das mídias soava
e o rádio, funcionou, na primeira metade deste século, como um um po�c� vaga _ até mesmo para mim, de lá para cá, no contexto das
símbolo da vida moderna. emerge?c1as acima delineadas, a expressão foi se incorporando com
O que não se podia antever naquela época, entretanto, é o n�t��a!tdade crescente ao vocabulário comum e cotidi ano. Cultura
quanto o poder do telefone estaria fadado a se estender com o ad m1d1a!1ca ou mediática (como querem alguns) tornou-se voz cor
vento dos canais de telecomunicação, os satélites e, então, as fibras rente Juntamentecom uma série de outras expressões pertencentes
óticas. Menos ainda se poderia antever que o telefone, com esses _
ao m�smo paradigma semântico, tais como redes midiáticas tec
poderes tão globalmente amplificados, iria se ligar a uma outra nologias midiáticas, globalização dos sistemas de comunic�ção,
14 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS MÍDIAS 15
cultu ra virtual, cultura do cib eresp aço, cultu ra telemática, cultu r_a telepresença nasce do acoplamento da robótica com a tel emática.
das telecomunicações , mídias interativas , mídias das telecomuru Enquanto os cientistas pesqui sam a telepresença como um meio
cações , era das mídias , cu ltu ra mundial, e assim por diante . pragmático e operaci onal de equaci onamento da robótica com a
Há menos de cinco anos , eram ainda poucos os que col�a experiência humana, para os artistas , por out ro lado, segundo Eduar
vam ênfase nas misturas entre as mídi as , fenômeno que chame i de do K�c ( l 993 :52) nos informa , a tel e p resença s ignifica "u m
redes entre as mídias e que, também em 1 992, num artigo sob o questionamento das estruturas unidirecionai s de comunicação que
ardo Kac,
título de "Aspectos da estética das telecomunicações", Edu marcam �to as belas artes (pintura, escu ltu ra), de um lado , quan
nu ma p ros pecção hoj e intei ramente cump rida, d en om inava de to os me10s de massa (televisão, rádi o), de outro" . K ac vê a
hipe rmídia para se referir à união, em um só apa rato , do telefone , telep resença como "um meio de expressar, em nível estético as
televi s ão sec retária eletrônica, videodi sco, gravad or , c om putador, mudanças cultu rai s advindas do controle remoto visão rem�ta
fax/e-m;il, videofone, processador de texto, e muit o ma i s , dizia telekinés ica e troca de informação audiovis ual em t;mpo real" n�
ele . Atu al mente, a hib ridização das mídi as salta aos
o lh os , confor contexto em que '.'os participantes são convidados a experi;nci ar
me foi lucidamente apontada por Ricardo Anderáos
( 1 995 :5), na m undos remotos , mventados a parti r de pers pectivas e escalas dife
s a sob r � ova
e
su a p articip ação como convidado ao grupo de pesqui rentes das humanas". Como uma nov a experiênci a comunicativa
teoria da comunicação, sob coo rdenação de Ci ro M ar
condes Filho, a te lep res enç a dá conta "da natu reza mu lti modal do s ev ento�
na ECNU SP, participação esta registrada em um dos cadernos col ab?rativos, inte rativos das redes telecomu nicaci onai s que ca
Atrator Estranho : racte nzam as trocas s im bólicas no final do s écul o XX". P a r a
Ascott ( 1 995), numa cultu ra que está progressivamente envolvida
Acredito que os paradigmas de comunicação que temos em men ?ª ��mplex�dade �as relações e na sutileza dos sistemas, ligada ao
te não se adequam muito bem à descrição de um processo que mv1 s 1ve l e 1matenal, ao evolutivo e o evanes cente em s íntese à
está acontecendo em todo o mundo - atingindo a televisão, os �e�g�cia e à aparição, as redes telemáticas converre'm-se nos meios
jornais, revi stas, estúdios de cinema de Hollyw�, �s empre�s � nvil eg1ados para a arte, pois os princípios da indeterminação e
de informática, fenômeno que já se tornou cornque1ro denomi mce rteza, d? final em ª?e�o , interatividade e trans ição só podem
narmos de "convergência" . Há um grande processo - que ainda ser verdadeuamente sat1s fe1tos nas redes da interatividade.
não está muito claro para nós - através do qual todas a mídias, Interpreta�o s imilar é a de M ario Costa ( l 995 :37, 42), quan
todos os meios de comunicação vão se misturando uns aos ou do afirma que, com as novas tecnologias eletroeletrônicas da co
tros se encavalando para gerar uma nova realidade de comuni municaçã�, _no� situamos diante �e uma transformação radical no
cação, uma nova realidade de pesquisa e entretenimento para o ,
campo estettco , acrescentando amda que essas tecnol ogias
século 2 1 .
É ce rto que , j á na década passada, era com�m se enco�trar a não podem ser consideradas, de modo nenhum, na sua essência,
refe rênci a multim ídia, especialmente para os artistas que ti ravam
como uma nova forma de linguagem, cujo destino é ainda e sem
partido de uma mistu ra de me ios de comunica� e� su as ob r� . pre aq�el e_ de encarregar-se das intencionalidades expressivas e
No entanto tratava-se a inda basicamente da utthzaçao dos meios comumcauvas do homem: as novas tecnologias não são uma lin
de comunic�ção de massa . Embora eminentemente c rítica e p rom� �agem, são um ser que excede toda paisagem interior ao sujeito
e mstaura uma nova situação material.
tora de s ínteses s urp reendentes e originais, não era nada compara
vel a uma arte concebida especia lmente para as mídias de teleco A arte que, a parti r de um certo momento, "deixou de desem
municações, ou àquil o que, ma is recentemente e dentro do espaço penhar uma função vital, dis solvendo-se no consumo de luxo no
eletrônico virtual da telemática, vem sendo chamado de telepresença. valor econômico, na decoração, no entretenimento etc.", diant� do
Dentro do contexto ma ior da arte e letrônica interativa, a desafio das neotecnologias, volta novamente a assumir "um sentido
16 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS M ÍDIAS 17
forte" ao colocar em cena "a situação do nosso sistema nervoso" e prescindia da alfabelização, a cultura midiática, eminentemente
tomar manifestas "as forças reais que plasmam o nosso ambiente e interativa, exige-a sob pena de uma barreira comunicativa irreme
nos educam sobre os tempos vindouros". diável. Este problema se toma ainda mais sério. entretanto. quando
"A nova ordem tecnológica", no dizer de Ciro Marcondes Fi se considera que a própria cultura de massas está passando por
lho (1994: 9), repercute não só na cultura e artes, mas também nos modificações profundas com tendência a se transformar cada vez
elementos sociológicos, econômicos e políticos propriamente ditos. mais, modificações, de resto, para as quais já chamei atenção quando
De fato, sem a tdemática, não seria possível aquilo que vem sendo da publicação da primeira edição deste volume. justamente ao final
chamado de pós-capitalismo (Marcondes Filho 1 994) ou de capita do artigo "Cultura das mídias", que também dá título ao livro.
lismo mundial do megamercado, da hiperconcorrência dos conglo
merados (P. E. A. Resende 1 994). Sem a telemática, não seria pos
IV
sível a internacionalização da economia, a globalização como um Mais recentemente, essa mesma questão das transformações
momento novo dentro da expansão capitalista, fenômenos cujas que se operam no universo da cultura popular de massas sob im
contradições para as sociedades mais à margem, tais como as lati pacto da globalização foi analisada num lúcido ensaio sobre ''O
no-americanas, vem sendo estudada em nosso meio principalmente global e o local: mídia, identidades e usos da cultura", por M. C
por Octavio Ianni (1992), Milton Santos et ai. (1993) e Renato Mira ( 1994: 1 3 1 - 1 49). A autora dá início à sua análise pela discus
Ortiz ( 1 994). De todo modo, são as redes mundiais de comunica são da indissociabilidade entre o avanço da globalização e a
ção que permitem e descentramento das atividades capitalistas e a redefinição das culturas ou identidades locais, evidenciando que tal
formação de conglomerados muitas vezes mais poderosos do que processo toma inoperantes os conceitos analíticos de imperialismo
os Estados nacionais, visto que, mesmo estando espalhadas pelo e dependência cultural, que dominavam nas análises sociais da cul
mundo, "as empresas estão ligadas por uma rede de informação tura até há alguns anos, pois "é no próprio interior da globalização
capaz de aproximá-las imediatamente quando necessário" (M. C. da mídia que se desenham suas contratendências" (ibid.: 1 38).
Mira 1994: 1 32-133). A bem da verdade, a cultura global não teve início estritamen
Enfim, parece óbvio que, "com a globalização, não podemos te com a união da informática e dos canais de telecomunicação.
ficar parados, estamos condenados a avançar" (lwasa 1995:5). Desde a invenção da fotografia, seguida pelo cinema e fonografia,
Mesmo no Brasil, com a infra-estrutura sucateada de suas redes de já brotavam as sementes de uma tendência à desfronteirização dos
telecomunicações, bem ou mal - mais mal, aliás, do que bem - produtos culturais que teve à frente os Estados Unidos, produzindo
estamos na internet. "As tecnologias estão aí", observa Marcondes o fenômeno de americanização cultural do mundo que só se acen
Filho ( 1 995:4), cada vez menores, mais leves, mais próximas do tuou com o advento da televisão e que perdura até hoje de uma
nosso corpo, de nossa convivência. Inundam o planeta, maneira mais relativizada em função das recentes "novas identifi
cações globais e locais" dos processos culturais (Stuart Hall, cita
do por Mira 1994: 1 45).
invadem nosso- c ot idiano c omvelocidade esp antosa e o q ue nos
Não se pode esquecer que, já na década de 60, embora com
resta a fazer é mudar n ossas formas arcaicas e obs ti nadas de pen
uma postura eminentemente apolítica, Marshall McLuhan, tendo
s ar, ab andonarvelhas teorias e rel ac ionarmo-nos c om esses no
diante de si, naquela época, apenas os dois maiores representantes
vos "seres", buscando enc ontrar uma boa fom1a de c onvivência e
da indústria cultural de massas. o rádio e a TV, no seu tão discutido
atuaç ão crí tic a nesta nova soc iedade.
É em razão disso que, nunca tanto quanto agora, a persistên prognóstico de que o mundo estaria se transformando em uma gi
cia do analfabetismo, a existência dos excluídos da educação tor gantesca aldeia global, antecipou muitos dos aspectos da atual
naram-se um dos absurdos mais inaceitáveis. Se, a cultura de mas mundialização dos sistemas de comunicação. O que parece mais
sas - especialmente o rádio, a televisão e mesmo o cinema - interessante de ser observado agora, sob o ponto de vista que a
18 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS MÍDIAS 19
segu nda metade dos anos 90 nos dá, é que, naquilo em que deve ria vários fatores que apontam muito mais pa ra a especia�i�ação,.; di
ter acertado, McLuhan, de fato, errou . Mas acertou na mosca, acer ve r sid a de e m u ltiplicida de do q u e p a ra a ma ss1f1c a ç a ? e
tou inteiramente naquilo que não poderia ter antecipado. Com ece hom ogeneidade como a globalização poderi� levar a preve r_._ Cita r
m os pelo e rro.
apenas algu ns desses fato res já parece su fi� 1entem?n�e eloqu e�t:.
Sim , inegavelmente, o mundo pa rece esta r adquirindo as ca O fato de qu e as programações locais de radio e telev1sao
racte rísticas de uma aldeia global, mas não são os gig antes
dos tenham começado a at rair muito mais público do qu e as programa
meios de massa, rádio e t�levisão, os protagonistas responsáveis
ções importadas levou à p roliferação de est ações de rá�io e ao f�r
por essas ca racterísticas. E certo que, do ponto de vista da o rgani
talecimento de sistem as nacionais de televisão. Tendo isso em vis
zação econômica, emp resarial, a globalização das mídias "levou à
ta, mesmo quando os modelos são importados, eles passam p or
formação de grandes conglomerados, que se espalham pelos conti
adaptações de acordo com o gosto local _ q�e transfigu ram, 121mIB:s
nentes, combinam o controle de rádio e teledifusão, im p rensa, edi
vezes de maneira su rp reendentemente cnativa, a p rogr amaçao on-
ção, indústria fonográfica e edição de filmes, além de domina rem o ginal.
setor de distribuição, com satélites e redes de cabo" (Mira 1994: 136). . . _ .
Out ro fator que me rece ênfase é o da mult1phcaçao dos canais
Ent r eta n t o, dife r ente m ente dos lúg u b r es p r ognóst icos de TV, gerando a especialização e especificidade crescente da p ro
concernentes à indústria cultural p reconizados pela Escola de Frank
gramação para cada canal e, por vezes, dentro de u� 1:1esmo �anal,
furt e mais conforme à recente observação de Kevin Robins (citado o que, por sua vez, permite ao espectado r o exerc1c10 da smta:-e
por Mira 1994:138),
idiossincrática do zapping, conforme foi estu dado, em nosso meio,
a crescente mobilidade das corporações está associada com a pos por A rlindo Machado (1993) ., Embo�a n? Br�sil tal fator não s:j a
sibilidade de fracionamento e subdivisão de operações e de situá ainda com pletamente perceptlvel, a mclm�ç�o d�s prog ram�çoes
las em diferentes luga res, e, neste processo, tirar vantagem de para a segmentação dos repertórios e 1:1uit1phcaçao, , v1 �ando a va
pequenas va riações da na tureza das diferentes localidades. A riedade e atendimento às diferenças de rnteresse do publico, tende a
matriz espacial do capitalismo no período pós-fordista é a de que, se tomar regra, tal como já é regra no rádio. Um aspe�to qu� :ªm �
de fato, combina e articula tendências em direção tanto à globa bém é dominante no rádio, e que vem se incorporando a telev1sao, e
lização quanto à localização. o da interatividade. Exemplo disso, no Brasil, é o Você Decid� qu e
tanto interesse despertou na p rogramação televisiva em nível mter
As conseqüências desse processo para as produções cultu n acional. I m portante ainda para a consideração da c r escente
rais, sob o título de localismo, regionalismo, presença das minori pluralidade de opções e especial_iz�ç�o é o sistem � de TV a ca�o,
as, gosto pela alteridade etc. estão entre os tópicos que vêm sendo
por assinatura, fenômeno ainda mc1p1ente no Brasil, m as_ que ati�
sobejamente discutidos nos chamados cultural studies e nos textos ge números inacreditáveis num país como os Estados Umdos, anti-
relativos ao pós- m oderno e pós-modernidad e.
go berço da cultu ra de m assas. . , .
Se, sob o aspecto m ais infra-estrutural, o das t ransações eco A tudo isso ainda se soma o advento de meios tecmcos cada
nômicas, os sistemas de comunicação, de fato, internacionaliza vez mais baratos, que permitem o aparecimento de estações de _gr a
ram-se, sua m undialização sendo evidente, é necessário, contu do,
vação de pequeno porte, assim como o de filmadoras �omést1cas,
distingui r, com o o faz Mi r a, cit ando S rebe rny-Moh amm adi além dos videocassetes, videodiscos que, cada vez mais, povoam
( I 994:135), dois fenômenos que não se identificam, qu ais sejam: a os domicílios receptores dos meios de massa o utrora hegemônicos .
globalização das emp resas, de u m lado, e o modo como as mensa O barateamento desse tipo de tecnologia tem produzido efeitos qu e
gens são nelas p roduzidas, além do fluxo das comunicações que estão longe de serem desprezíveis. Considere-se, por exem plo, a
elas p ropiciam, de outro. Sob o ponto de vista da p rogramação das proliferação de pequ enas em p resas de vídeo independentes que p res
mídias de massa, o rádio e, mais especialm ente, a televisão, há
tam serviços ou vendem seus p rodutos para as gr andes emp resas
20 LÚCIA SANTAELLA C\!ITURA DAS MÍDIAS 21
de televisão. Considere-se ainda o fato de que o videocassete tem este livro é necessária e literalmente um livro cm progresso, cm
realizado a proeza de levar o cinema para dentro de casa, um fenô contínuo crescimento. Nesta sua segunda edição, foram adiciona
meno cujo crescimento pode ser medido pelo número de dos novos artigos que atualizam os temas e reconfiguram as idéias
videolocadoras que se espalham pelas grandes e pequenas cidades dos artigos anteriores. O tópico da pós-modernidade alonga-se ag�ra
de quase todo o mundo. com a incorporação de dois novos ensaios, o crescimento dos sig
Enfim, o que todos os fatores acima parecem evidenciar é que nos e das mídias é discutido em paralelo com a relação do homem e
a idéia McLuniana de uma aldeia global, a partir dos meios de das máquinas, além da inserção de um longo ensaio sobre o com
comunicação de massa, encontra-se hoje seriamente comprometida putador, esta personagem que não poderia deixar de se fazer pre
pela multiplicação do diferencial, pelo crescimento da especializa sente no cenário movediço de uma cultura das mídias.
ção, do específico no seio mesmo da globalização. "Diante de um
número tão grande, de um circuito de trocas culturais tão amplo, Lúcia Santaella
cria-se o contexto que propicia a construção de identidades plurais março - 1996
e transitórias." (Mira 1994: 145)
Contudo, embora não esteja, de fato, nos meios de cultura de
massa, conforme previsto, a aldeia global, como uma realidade in
contestável do mundo atual, encontra-se num outro circuito bem
mais recente que McLuhan não teve qualquer condição de prever.
Uma aldeia global, efetivamente interativa e planetária, impõe-se
quando se pensa
na estruturação da comunicação segundo redes complexas, se
gundo sistemas interligados que, de uma forma ou de outra, abar
cam todo o mundo e criam uma espécie de teia que vincula (do
ponto de vista tecnológico, mas principalmente, no ponto de vis
ta abstrato, o que não é exatamente material) os indivíduos (Mar
condes Filho J 994: 5).
A aceleração tecnológica, entretanto, está sendo tão impressi
onante que não nos permite afirmações conclusivas. Quando se sabe
da iminência da TV interativa, que permitirá a união da TV com o
computador, não apenas o sonho macLuniano estará perto de sua
realização mais plena quanto a cartografia do mundo, nas suas
trocas complementares entre o global e o local, terá, de fato, adqui
rido, como queriam Deleu ze e Guattari (ver P. E. A. Resende
1994.27-38), a dimensão do rizoma, cuja configuração em treliça
dá margem a derivações infinitas, com conexões transversais inelu
tavelmentc descentradas.
V
No desafio de se defrontar com temas tão candentes e febris,
Apresentação da primeira edição
I
Nos primeiros meses do ano de 1987, a convite do DAAD,
permaneci em Berlim para um estágio de pesquisa sobre "Cultura e
Meios de Comunicação" junto ao Centro de Semiótica e Comuni
cação da Universidade Livre, sob a direção de Marlene Posner
Landsch. O artigo "Cultura das Mídias", que abre esta coletânea,
foi escrito ao final do estágio e traz, sem dúvida, as marcas não
apenas da pesquisa realizada nos livros das bibliotecas tanto da
Universidade Livre quanto da Universidade Técnica, mas também
da experiência de viver numa cidade eminentemente antiprovinciana,
que buscava sublimar e compensar a torpeza política do Muro na
pujança de processos culturais borbulhantes e heterogêneos. A ge
ografia de Berlim ocidental era trivial. Em contraste, entender os
mananciais e meandros de escoamento da cultura era um jogo de
acasos e surpresas cotidianamente renovados. Pós-moderna avant
la lettre, a cidade era avessa a qualquer forma de pureza. A mistu
ra de estilos estéticos em convivência pacífica com a ironia do mau
gosto explícito, a sobreposição, justaposição e os cruzamentos de
estratos culturais distintos e até antagônicos, a eletricidade das bor
das alternativas de cultura, o sentimento onip resente de
provisoriedade numa população que, pela ausência de promessa de ·
futuro, se sabia de passagem, tudo isso dava a Berlim um perfil
trêmulo e oscilante similar às marcas que as ondas do mar vão
deixando na areia. Lá, de uma certa forma, qualquer estrangeiro se
sentia um irmão entre estrangeiros.
Impressões à parte, o que verdadeiramente deixou marcas no
artigo em questão foi a percepção e a experiência da coexistência e
complementaridade entre diversos estratos e formas de cultura: o
erudito e o alternativo, o acadêmico e o popular, os pequenos círcu
los e os meios de massa, o formal e o informal, o central e o perifé
rico, o antigo e o novo, todos tinham seu espaço de existência sem
24 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS MÍ DIAS 25
as opressões de hierarquias rígidas. Disso resultou a idéia da --rede cada vez mais, a tomar a cultura de massas uma entre outras . Aba
entre mídias". Ou melhor: o fato de não haver hipertrofias, no valor los similares aos que a cultura de massas produziu nas formas eru
ou função de uma camada e uma forma de cultura sobre outras ditas e populares de cultura deverão ser produzidos pelas mídias
deixava entrever com maior nitidez os trânsitos e intercâmbios d� interativas sobre a cultura de massas. além de que essas mídias,
umas e de outras. Veio daí também a opção pela palavra ''mídias" elas mesmas, também transformam os modos de produção e fruição
no plural. das formas tradicionais de cultura. Enfim, na cultura das mídias. a
regra é a comutação e a mutabilidade.
II
III
A aclimatação do termo mídia no Brasil não tem se dado sem
ambigüidades. A origem do termo é latina. medium (singular) e Depois da permanência em Berlim, em todas as oportunida
media (plural) querem dizer meio e meios. Em inglês. os termos des que surgiram para que me manifestasse sobre algum aspecto da
são us �dos p ara design�r um meio (medium) e os meios (media) de cultura. o foco de minha atenção se voltou sempre para as muta
comumcaçao, pronunc1ando-s� midium e midia. Durante algum ções que as mídias têm provocado nas formas tradicionais de cultu
� en:ipo _, � o B ra s ! I , as grafias media e mídia aparece ram ra. Observando o conjunto de textos selecionados para compor o
1 �d1scnmmadamente, assim como aparecia o plural mídias antece volume, salta aos olhos a preocupação especialmente voltada para
dido, também indistintamente, do artigo masculino (os mídias) ou a poesia e a arte. Justamente as mais nobres dentre as formas de
feminino (a mídia). Recentemente, a palavra mídia, sem s. antece cultura, tidas como superiores, funcionam como um privilegiado
dida do artigo feminino (a mídia), fixou-se mais dominantemente e balão de ensaio para a verificação da hipótese das mutações que as
é empr�gada, quer no sentido estrito de jornalismo impresso, quer mídias estão aptas a produzir.
n? sentido de meios noticiosos e informativos em geral, incluindo o A bem da verdade, o estágio em Berlim não significou, de
rad10 e a televisão modo algum, uma virada radical, um giro copemicano cm relação
A opção pela palavra mídias no plural, empregada neste li ao que já vinha pensando e produzindo no campo da interpretação
vro, não foi casual, mas deliberada. O que se pretende pôr em rele das formas culturais. Significou, isto sim, uma confirmação que
�� são ju_st_amente os traços diferenciais e sui g eneris, quase trouxe maior segurança quanto às posições que defendi em Con
1d1oss111crat1cos, de cada midia individual, para caracterizar a cul vergências - Poesia concreta e tropicalismo (Nobel, 1986) e,
tura que nasce nos trânsitos, intercâmbios, fricções e misturas en antes disso, cm Arte & cultura - equ ívocos de elitismo ( 1982,
tre os diferentes meios de comunicação, produzindo como conse Cortez. 3ª ed., 1995). Há mais de dez anos, venho buscando argu
qüência um movimento constante de transfonnação nas formas tra mentar que as dicotomias rígidas entre cultura de massas vs. erudi
dicionais de produção de cultura. eruditas e populares, assim como ta, popular vs. elite, kitsch vs. vanguarda, automação vs. reprodu
nos processos de produção e recepção da cultura de massas. ção, reprodução vs. artesanato, não são mais operativas nem
A expressão "cultura dos meios de comunicação" não foi uti unívocas, mas profundamente mediadas, combinadas e mesmo mis
liz�da porque o sentido de meios de comunicação já e stá turadas, misturas estas que só tendem a aumentar com o advento
md1ssoc1avclmente ligado à comunicação de massas. A expressão dos meios informatizados.
··cultura pós-massa" poderia ter sido empregada, caso ela não cri Prova de que a pesquisa em Berlim foi sentida como uma feliz
asse a falsa impressão de que os gigantescos impérios dos meios de confirmação de idéias, que já estavam sendo trabalhadas há algum
comunicação de massas não são mais operativos. Continuam sen tempo, está no conjunto de ensaios escritos antes de 1987, e que
do, mas não mais com a mesma exclusividade, digamos, de dez foram incluídos neste volume cm perceptível sintonia com os de
anos atrás. A interatividade das mídias e a transformação possível mais . Aliás, a preocupação com os intercâmbios e complementaridades
da tela de TV em tela informática, entre outros fatores, tendem, entre os meios já é tão antiga cm meu pensamento que coincide com o
26 LÚCIA SANTAELLA
Lúcia Santael/a.
agosto - 1992
de apontar para as finalidades sociais, eminentemente coesivas da cultura. estimula a formação de um número cada vez mais cres
cultura, trata de interpretá-la, antes de tudo, como produção de cente de novos códigos para compensar peias inadequações dos
signos e de sentido: códigos existentes. Esse fator proliferante é o ímpeto do dina
A cultura é a totalidade dos sistemas de significação através dos mismo das culturas.
quais o ser humano, ou um grupo humano particular. mantém a Em síntese: aquilo que pode melhor caracterizar as concep
sua ,mesão (seus valores e identidade e sua interação com o mun ções semióticas da cultura é a ênfase que se coloca na relação entre
do). Esses sistemas de significação, usualmente referidos como cultura e comunicação, até o ponto de se chegar, inclusive, a iden
sendo sistemas modeladores secundários (ou a linguagem da cul
tificar a função de ambos os termos uma vez que os fenômenos
tura). englobam não apenas todas as artes (literatura. cinema,
culturais só funcionam culturalmente porque são também fenôme
pintura. música, etc.), as várias atividades sociais e padrões de
comportamento, mas também os métodos estabelecidos pelos quais nos comunicativos, conforme foi formulado por Umberto Eco
a comunidade preserva sua memória e seu sentido de identidade (1974: 1 O): "Na cultura, toda entidade pode tomar-se um fenômeno
(mitos. história, sistema de leis, crença religiosa, etc.). Cada tra semiótica. As leis da comunicação são as leis da cultura. A cultura
balho particular de atividade cultural é visto como um texto ge pode ser estudada completamente sob o perfil semiótica".
rado por um ou mais sistemas. (A Shukman 1986: 166) CULTURA E COMUNICAÇÃO
Essa definição, à primeira vista, não parece apresentar ne Sob esse enfoque, a mais importante questão, que se encerra
nhuma novidade em relação às definições de cultura que a antropo na relação entre cultura e comunicação, está no fato de que, por
logia costuma nos fornecer. No entanto, o termo texto já funciona considerar o funcionamento da cultura como inseparável da comu
aí como indicador da ênfase que a semiótica coloca na concepção nicação, a semiótica está apta a desempenhar um papel fundamen
da atividade cultural como linguagem (texto) que visa a um efeito tal no estudo dos meios de comunicação ou aquilo que preferimos
comunicativo. Para a semiótica, a função comunicativa é essencial aqui chamar de mídias. Isto porque a semiótica percebe os proces
e prioritária para que a cultura possa se atualizar como tal, confor sos comunicativos das mídias também como atividade e processos
me A. Shukman (ibid.: 167) argumenta na continuidade de seu arti culturais que criam seus próprios sistemas modelares secundários,
go: gerando códigos específicos e signos de estatutos semióticos pecu
É um postulado do enfoque semiótico da cultura que esta é um liares, além de produzirem efeitos de percepção, processos de re
mecanismo para processar e comunicar informação. Sistemas cepção e comportamentos sociais que também lhes são próprios .
modelares secundários operam com convenções ou códigos que O tenno cultura é tão geral e abrangente que a ele s e pode
são compartilhados pelos membros de um grupo social. Diferen associar qualquer tipo de atributo. Há, entre outros, a cultura uni
temente da linguagem natural onde, grosseiramente falando, uma versal, a cultura muito desenvolvida ou pouco desenvolvida, a cul
identidade de código pode ser assumida entre os falantes de uma tura nacional, as culturas greco-romanas, a cultura agrícola, a cul
comunidade lingüística. os códigos dos sistemas modelares se tura política, a cultura dos séculos, e agora, a cultura das mídias.
cundários são variáveis adquiridas em graus variados (ou mesmo Se cultura já é inseparável de comunicação, no caso das mídias isto
não adquiridos) pelo indivíduo no curso de sua maturação e edu se toma ainda mais indissociável, uma vez que mídias são, antes de
cação (... ). Toda troca cultural envolve, portanto, algu m ato de tudo, veículos de comunicação, do que decorre que essa cultura só
"tradução", na medida cm que um receptor interpreta a mensa pode ser estudada levando-se �m conta as inextricáveis relações
gem de um emissor através de seu(s) código(s) apenas parcial �ntre cultura e comunicação. Não é senão em razão disso que a
mente compartilhado(s). O fato da comunicação ser parcial e até semiótica, por não separar cultura de comunicação, parece se apre
mesmo. em alguns casos. ser não-comunicação, dentro de uma sentar como uma área de investigação equipada para colocar sob
--
30 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS MÍDIAS 31
sua mira as novas formas de produção de cultura instauradas pelas sós, a abalar as divisões estratificadas entre cultura erudita, popu
mídias. lar e de massas como campos perfeitamente separados e excludentes.
São muitos aqueles que, dissociando cultura de comunicação, _Ao c_on_t�ário, quanto mais as mídias se multiplicam mais aumenta
se recusam a conceber as mídias como produtoras de cultura, de a movimentação e interação ininterrupta das mais diversas formas
modo que a expressão cultura das mídias seria, para eles, uma de cultura, dinamizando as relações entre diferenciadas espécies de
contradição de termos, um contra-senso. Isso ocorre porque as con produção cultural. A multiplicação das mídias tende a acelerar a
cepções tradicionais de cultura são extraídas de uma visão bastante dinâmica dos intercâmbios entre formas eruditas e populares, eru
parcial, que concebe cultura exclusivamente como patrimônio, he ditas e de massa, populares e de massa, tradicionais e modernas,
rança ou acervo do passado a ser preservado. Como conseqüência, etc.
entende-se que o termo deve recobrir apenas as atividades tidas
como nobres (literatura, arte, teatro, cinema de arte etc.), produzi
COMUNICAÇÃO E INFORMAÇÃO
das pelas elites culturais, sob incentivo das classes política e eco De um modo geral, pode-se dizer que, onde quer que uma
nomicamente dominantes. Ou então, no outro extremo, privilegi informação seja transmitida de um emissor para um receptor, tem
am-se as culturas populares, como ocorre no Brasil e América La se aí um ato de comunicação. Não há, portanto, comunicação sem
tina, por exemplo, ou as culturas alternativas, como é o caso típico informação. Mas não há também transmissão de informação sem
de Alemanha, nos seus antagonismos com as culturas eruditas e um canal ou veículo através do qual essa informação transite, as
oficiais, evidenciando que, na própria produção cultural, já estão sim como não há comunicação ou ligação entre um emissor e um
desenhadas as clivagens entre classes dominantes e dominadas, entre receptor se estes não compartilharem, pelo menos parcialmente, do
l produtores oficias e marginais. Num terceiro setor, separado des- código através do qual a informação se organiza na forma de men
ses dois extremos, é de hábito se colocar a cultura de massas, vista sagem. Não é necessário desenvolver aqui a descrição dos elemen
como um lixo, reino da vulgaridade, império da redundância, mas tos que tomam parte no processo comunicativo. Esse assunto já foi
sa homogênea de mensagens pasteurizadas. largamente discutido, entre outros, por Umberto Eco (1971: 1-51).
Modalizando essas radicalizações, o que postulo neste ensaio Mas é necessário esclarecer que uma das características primordi
é que a cultura das mídias, entendida diferentemente de cultura de ais da cultura das mídias é a ênfase que se coloca na informação
massas, como tentarei esclarecer mais a frente, não se constitui como elemento substancial de todo processo comunicativo. Desde
numa pasta homogênea e disforme de mensagens, mas apresenta o advento da imprensa escrita, que deu início à civilização das mídias
uma enorme e sempre crescente diversidade de veículos de comuni e que logo adquiriu sua feição de veículo para a transmissão de
cação, tendo cada um deles uma função específica e diferencial, notícias diárias, o fator dominante nesse processo comunicativo é a
função esta que se engendra através da interação de uma multipli acumulação diária de informações para compor o mosaico
cidade de códigos e processos sígnicos que atuam dentro de cada jornalístico. Esse acúmulo de informações tem precedência sobre
mídia, produzindo no receptor efeitos perceptivos e comunicativos a variação de pontos de vista acerca de uma mesma informação,
também diferenciais e específicos. A cultura dás mídias tende a se assim como tem precedência sobre o detalhamento, os comentários
indiscriminadamente tachada de vulgar e concebida como e sobre o contexto mais amplo em que se insere a informação, como
homogeneidade indistinta porque ela é sempre vista através das lentes veremos mais adiante. Antes disso, merece ser enfatizada a dife
de uma concepção erudita de cultura, tal como esta é produzida e rença que se deve estabelecer entre informação e comunicação. De
difundida nas formas e nos meios mais tradicionais de produção de acordo com B. Stanosz ( l 986: 138-139),
cultura.
A hipótese que formulo é a de que o advento e o crescimento o ponto crucial do pro blema é a correta del im itação dos fenô
constante e cada vez mais absorvente das mídias tendem, por si menos que devem ser a braçados pelo co nce ito de um ato de
32 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS MÍ DIAS
comu nicação. A delimitação deve ser tão aguda quanto possível parti r di sso, que os processo s de comu nicação
e deve resultar na distinção de uma cla sse de fenômenos que têm através das mídias
ten. dem a acentu ar e aumentar a margem de
todos os seus traços essenciais em comum, sendo diversos ape . , .
· da mtencionalida info rm ação que e· trans
m 1tt da a re ve1 1a
na s em suas propriedades remanescentes. No caso sob di scussão, de dos atos comunicativos .
A? raham Moles ( 1986:483-484) diz
o melhor critério para determinar propriedades essenciais parece que '·comu nicação de
ma ssa e a �u�le tipo de comunicação que oco
ser o critério funcional. Se doi s tipos de comportamento h umano rre entre um emi s so r e
uma n:1uittph c 1d�de de receptores es palha
preenchem a mesma função na vida social e um deles é tomado dos através de um campo
g�?grafico e social, isto é, receptores sem
como um comportamento comu nicativo, o outro também deve qualquer conexão entre
s 1 . E acres centa:
ser recoberto por esse termo, não importando as diferença s tisi
ca s, biológica s e psicológicas entre eles. Comunicação de massa está em contras
te
cação pesso� a pessoa na qual o emissor direto com a comuni
es
A função dos atos de comunicação depende da transmi ssão i n receptor aceita seu emissor. Comunicação colhe seu receptor e 0
de massa é' desse modO,
tencional de informação. Assim, o comportamento de um certo um proce sso no qual uma
_ . pessoa fala para muitas, e é assim
tipo é comunicativo se ele serve como um meio de se transmitir compelida a igno rar os traços di stint
ivos
informação intencionalmente. Para desempenhar este papel, o margem ampla, a comunicação de mas desta s última s: numa
sa é anônima. Ela leva
comportamento deve ser controlável. Se, por exemplo, alguém se�s recept �res em conside
ração apena s como um público-meta
desmaia, seus companheiros recebem a informação de que esse C�Ja s prop neda �es recepto ras, espec
ialmente seu repertório de
alguém está bem, ma s isso não é ato comunicativo, pois o des signos , sao considerada
s como mais o u me no s hom
modo que ape nas seus traços gerais ogênea s, de
maio não pode ser intencional, uma vez que ele não é controlá são levados em considera
vel. Além disso, a intencionalidade depende de um conjunto de ção.
regra s de acordo com as quai s o comportamento será interpreta
do: o comportamento de urna pessoa resulta de um ato de comu
. S-�, de; µ� lado, de fato, a comunicação de massa t
SJ!fe�ar o pub ende a con
nicação apena s se ele for intencionado para se r interpretado po r lico re�ep tor como uma massa hom
as d1fe�en as num um
ogê nea , nive lando
alguma ou tra pessoa de acordo com um certo conju nto de regra s, _ � co traçado ger al, por outro lado,
t ransmissao desse p roc so de o modo de
mai s ou menos convencionalmente adotado numa comunidade à . �� comunicação tende a aumentar a
margem de 1 mpon de
qual ambas as pessoa s pertencem, e se essa outra pessoa real rab1hdade da informação que é t
que esca pa ao controle da in ten rans mit ida e
mente interpreta o comportamento de aco rdo com esse conju nto cionalidade do ato comunicativo
de regras. Iss? ocorre porque na comunic
ação pe s s oa a pe ss oa
face a face �
� 1 s,s o� e receptor P?�em i r ajustando, pa sso a pas so', as diferenç�s
A difere nça - aí estabelecida entre informação e comunicação,
m
tende a au menta r a i m
o
. ·1 que foi mais inovador do que o livro impresso - a invenção de uma
r sob re �qm
e de c ontrole do emi sso
dim inu ir a possibilidad nova forma literária, soci al e cultural - mesmo que não tenha
o
ª çao n a n
os receptores pode rao
-porventu ra c aptar como mfor ma ú do mas sido assim considerado quando apareceu. Sua distintividade, com
me
bém a esse assunto mais adiante . Embora o livro imp resso tenha sido o primeiro veículo de
A REDE ENT RE AS MÍD IAS massa, foi o jornal que deu início às c aracterísticas da cultura das
. - p ri meira m ídia mídias que, embora não esteja separada das outras formas de cul
um c açao d e massas, a
Qu ando se fala em com . · o �, n o entanto segu n do nos tura que coexistem nas sociedades m odernas, ap resenta caracterí s
1 A n�
que vem à nossa mente é o JOma . meios de ticas singu l ares e uma especificidade que lhe é p rópria . Dentre es
in forma. D. Mc quail (1983: 19), a
histo na d�s mod _ e�os ses caracte res, cumpre pôr em evidência o fator de provisoriedade
q e, no
eçou com o hvro impresso u u
���umc�ção de massas com ra a _ p rod que parece ser a mola-mestra da c u ltu ra das mídias em oposição à
es rec urso téc nic o pa
mi c10 n ao passav� de um simpl ., tens iv amente du rabilidade e permanência que ca racterizam as formas mais tradi
re
ha • · d
nic cionais de cultura. Um jornal, por exempl o, é feito para ser lido
:ó�:a:Ua1;�:t� q::: ?ºv� téc �
�!�o �;:::t����t;/;:f
d
num dia e jogado fora no dia seguinte. Um filme, que é visto hoje ,
o, ap a rec��do os p
levo� a uma mudança de conteúd . :��ç�a;;o será su bstituí do por outro, no mesmo cinema, daqui a pou cos di as
n
ail c ontmua.
u m
iços postais rudi men a sos em que a nostalgia pode passar a ser imposta e forçosamente
notícias circulando através de serv
ocupadas em t ransmit ir notíci s e ev entos relevantes par� os ne sentida, quando um estilo nas artes é tomado como objeto do cir
ensão, de�t o
gócios e comércio. Foi assim uma ext ��, tm�a�:i�; :t��
a
cuito das mídias. Neste caso, no entanto, já se trata de u ma muta
r
o que a
m a
po de duraçao de uma m
m a m
t p o�e duração d
es sa mesma informaçao nu de vista básicos tiverem uma chance de apresenta r notícias e en
t iv c.
m
i
p o, é dife r � , ·
de um J omal tel evis
t
. , . que sera ta mbcm dtfierente tretenimento que lhes são próprios, envolvendo uma mesma quan
n e do e e
,
e
.
o
mação, para o J o
a
an s � t ta �
is so que,.qu ��� J omal impr esso
, e mais .ainda ?º do, u ma vez que a competição entre as mídias é, antes de tudo,
c
ra
v , .
do
tel evisivo, o � � I sto ocorre porque aquilo e outras mais pobres. Mesmo que disponham de au tonomia de pon
t1vo �esapa�;:m;�� �
rea a e me o
das até seu grad� m po v ai passand o, tos de vista, as mais pobres não disporão de uma tecnologia de
onf rme o te
que in teress� �o J ornal e ª � o�ativo que pode ou não ser recu p� ponta. E quanto à força artística, o melhor dela, com raríssimas e
do ?ado t �}
a notíci a v ai vt ran maté ria interpre
tativa e op1- quixotescas exceções, vai para onde se paga melhor. Por outro lado,
rado no conte xt.o . is ampl o de uma . sem . a tendência do mercado competitivo é que as empresas poderosas,
, ou de u ma revis
ta . ana
nativa d o p rop no J 0m al b 1· t·1-
ma
das m í dias é a mo cedo ou tarde, acabam por engolir as mais frágeis. Esses pontos
l
n:i tal d cu t
Enfim , o traç .
forma ão de uma m ídia a ou
tra, foram levantados porque fazem falta na discussão da usual fragili
en a l ura
A d a
e de tr an �
o fun
dade, a cap acidad � � d:ç;es na ;parência. Ess d s dade das mídias alternativas, de um lado, e, de ou t1o lado, p ara se
l e ves mo t tc -
de
nh
ado
p ant compreender o costumeiro fracasso das mídias nã o com erciais,
es
c co no t-empo' mas, e q
nd em a durar pou .
de
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ada du
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ic suportadas pelo Estado.
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m-se em dive�:::/f �r���:: de proliferação das
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ram , mu ltiplica
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Quanto à proliferação das mídias, esta não se dá apenas ent re
mu
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é ção ao televisivo, este cm relação ao boletim radiofõnico etc. tal
da ou e a
tas e 1ses em que o mercado
� entar nos
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Isso t ankfurt e seus píg fato não se dá. As m ídias tendem a criar redes intercomplementares.
l r�scol ª de F r
críticas à .indústna cultu �a m e nt e os f at o r e s n e g ativ os . d a
end e a au e o o
Cada mídia, devido à sua natureza, apresenta potenciais e limite s
1 en t e
j á e n f a tiz a r a m s uf1c _o e da cultu ra promovida pelas m1' dias.· que lhe são próprios. Esses não são nunca idên ticos de uma mídia à
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· · - _da tnformaç a
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), u m dos princípios da
diferenciais.
A audição de uma notícia no boletim radiofõníco, por exem
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liberda
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levando-o a buscar o noticiário da TV em busca de maiores detalhes e,
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CULTURA DAS MÍDIAS 39
38 LÚC IA SANTAELLA
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gu inte n a quando se j ulgam as men sagens das mídias, deveria ser repe nsado'.
al impresso do _ dia se
\ eva o espectador a bu scar o jorn i talh amento uma vez que, se, de fato, tudo p arece se repetir, a repetição se dá
cimentos e m
expectativa de encontrar nele esclare rta a aten dentro de uma diversidade funcional do caráter comunicativo dife
de
p
a or
u nto realmente
analítico e interp retativo . E se o ass � p orque
rencial de �ad_ a mídia. Além dis so, há todo u m j ogo de intercâmbios
e r
m
des
rá u ma revista
ção e· interesse do leitor, este bu sca icias (...) de uma midi a a outra, gerando ve rdadeiras famílias de mídias as
l
not
an
o das reportagens
se
passa a desej ar "uma interpretaçã quais apresentam um aspecto bastante curioso: o da con dens ação
o _ eventos,
s
e
do nos antecedente
que lh e dê u m insight mais profun o J ul gamen- ou brevidade.
s d
um esclarecimento a
cerca des ses eventos e, sobretudo, Se tornarmos as mí dias noticiosas como exemplo, o gradativo
Haacke 1982:69) _
to confiável de u m expert". (W. rv , a p
. .
art�r d i s s?,. sao
aument? ?º _fator de conden saç�o toma-se visível na passagem de
O que pode ser imediatam nt bs uma m1�i a a ou tra. A p rofundidade e extens ão interp retativa de
um só recepto r v ai ad
qu mndo
e e o e ado
as várias facetas de informação que t a e s pec �ma revista semanal fica sen sivelmente condensada no j ornal diá
dia a ou tra : de ou vin
na medida em que passa de uma mí f ?º• mas se_ compararm�s ao noticiário de TV, este estará para o
e
da
fisica e intelectual de gran de part dia, de
vidade, mais el3: será �hada de superficial. Não se pode saber até
em acesso a u ma s ó mí
Brasil, o receptor, quando mu ito, t
e
q�e ponto esse tipo de Julgame nto não passa de um vício, e nquanto
imensionalidade fica embotado
modo que o pote ncial para a multid i:1'1º se le
_ var em conta o fato de que, em primeiro lugar, a condensação
n uma única dimensão. e um tipo de organização de linguagem que visa reter de uma me n
bs e r v ad o, a p a rtir d a
O u tro asp e ct o q u � po de s e r o sagem apenas seu s :'"aços essenciais e fundamentais, o que, aliás,
, é que o interesse despertado
inte rcomplementaridade das mídias ar o
ap�esenta uma funçao altame nte mnemônica e de retenção rápida
rede �as mídi� pode lev
pelas informações col hidas dentro da rm ço num o tro da informação. Em segu ndo lugar, esse aspecto de conden sação de
ssas mfo
l eitor a buscar u m aprofundamento de se urna men sagem não é nunca auto-suficiente em relação àquela men
u
o. O q
es
mpl
a
l ivro, p x
veículo tido como mais erudito, o -s sagem, uma vez que as mídias de caráter breve convivem com as
ue
mí i não
e e
i �
or
sito de míd �
p reten de demonstrar aí é que o trân outras de c��ter oposto : Ora, a me nsagem não se compõe em cada
e
s m1di , m s
a a
a da cu ltu r
interrompe dentro da esfera exclusiv urna _ das midias em particular, mas através da funcionalidade dife
as a
as n
da
fo
a
dentro das !
pode fazer avançar o flanco para devi do a u m
re?�i al de cada mídia na s ua inter-relação com a totalidade das
rm e dita s de
s nã t ma am _
cu ltu ra. Quantos livr m�d1as. �xemphficand ?: _ se o boletim radiofünico tem por função
bes t-se ller s
artes
ela de TV? E, quando p
r
m estimulada p l
vão ao concerto ou balé porque fora o Jo�� I aprofundara os det.:..,n es , fornece ndo, inciu sive, da dos
q j_ vi
á o
e a
po
s
o pela TV
contrário, quantos não vêem um concert didos em quantida des ,
avahativos sobre aquele mesmo evento, e assim por diante .
r ue
são ven
ram ao vivo? Quantos discos ou ?fitas . E� síntese, as mídias tendem a se e ngendrar como redes q ue
depois de u m conce rto ou
show , . � mterhgam, e, nessas red,es, cada mídia particular tem uma fun
m g r q e c lt das m1d1 as tende a
Enfim, é a cultu ra çao que lhe é específica. E por isso que o aparecimento de cada
celerar o trâns ito e ntre as
u u ra
nova mídia, por si só, tende a redimensionar a fun ção das outras.
Quando uma nova mídia surge, geralmente provoca atritos, fric Para exem pl ificar a diversidade .
funcional
· e a pluralid ade de
ções, até que gradativamente as mídias anterior es v ão, com o pas dimensões internas a cada mídia
n dª �el or o que a te
vi sto que esta se constitu i em u�a spe : . ! � _ levi são,
sar do tempo, redefinindo as prioridades de suas funções. c1� e nud1a al�ente ab
sQrv�n�e que pode trazer para d
_Com o último aspecto da rede intermídias, es sa rede parece entro
que r outra -forma de cultura · do . de SI q�al quer m1d1a e qual
estar caminhando ultimamente para a geração de mídias que são ci�em ao J0?1al , do teatr
espetáculos musicais do des� � o aos
elas próprias formadas e resultantes da inte ração de diferentes
de mú sica erudita à� mesas-re �1ma o ª.º circo, dos concertos
nh º
mídias. Até que ponto, por exemplo, a produção do jornal impresso don as de discussão pol
não é hoje senão uma enorme mistura de mídias eletrônicas, isto é,
entrevistas às novelas. Quand
o se c.
iaz referência . . ítica, das
se ela fosse um veículo hom A a, te1ev1são como
o que seria hoj e do jornal sem o arsenal de equipamentos de regis , uando se fazem críticas 1
efeitos neg�tivos que ela prov� aos
tro, transmissão e impressão eletrônicos? =�:� r�ceptores, sem lev
essa sua, diversidade constitu1 · - ar em conta
. iva, nao se pode saber ate. qu
essas cn t1cas são inteiramente e ponto
Egbon ( 1 98 2 · I 87) nos •"eve vaT1 das' uma vez que aquil o que M
A REDE DENTRO DAS MÍDIAS
A mesma diversidade funcional que ocorre entre as mídias · Ia acerca das m1'd'ias em
acentuadamente verdadeiro quando se trat ge ral parece
volta a se apresentar, sob um outro ângulo, dentro de cada mídia. a de TV:
Basta lembrar novamente a pluralidade de dimensões também do A TV pode co ntribuir para .
mo
jornal impresso, na multiplicidade de matérias de que ele se consti sarnentos e atitudes das pesso dificar em mmt os aspectos o. -s pen-
..
cogmtiv as em tennos de suas expen .
tui. Das sim plés notícias até as matérias inte rpretativas, destas aos as, suas crenças e . enc1as
opiniões, assim
editoriais e matérias argumentativas etc. Além disso, o diagrama mentos. O que é dific1·1 d1· . , como seus c mpo rta-
visa
nas relações compl exas entr r e a mass - a d, e v�na · , ve1s.
que entra
o
não se trata de importâncias eternas, mas históricas e que suas hi - da pesqms a em
tem sido im ant� nao
erarquias, elas mesmas, funcionam como indicadores das ideologi aden do aos estu dos já :: a�enas como um
exist ,
as que dominam em nossa historicidade. edade, controle e trabal h . entes efettos poht1co s, p ropri
m as também dev ido ao m terno nas o rganizaçõe s das míd i as 1
repensam ento de rel a tos
o
existentes �
►
CULTURA DAS MÍDIAS 43
LÚCIA SANTAELLA
42
mí dias qu e s ão pelas pesqui sas dos meios de comunicação é o fator semiótico das
reconheci damente i nsati sfató ri os do pod er das mensagens produzidas pelas mídias . São mensagens que se organi
freqü entemente feitos. zam no entrecruzam ento e na inter-relação bastante densa de dife
imanentes das rentes códigos e de process os s ígn ico s diversos , compondo estru tu
Se , de um lado, a cons ideração dos caracteres
P r out lado, mesmo
o ras de natureza altamente híbrida. A rigor, todas as mídias, des de o
mensagens de uma mídia são importantes, ? eraça� o, normalmen jornal até as mídias mais recentes , são formas híbridas de lingua
d
quando esses caracteres são levados e� co�si e sere uperados . gem, i sto é, nascem na conjugação simultânea de diversas lingua
ví io qu ão difíc eis d ��
te ocorrem aí certos c s e s
um a mid ia de acor gens : Suas mensagens são compostas na mi stura de códigos e p ro
julg m n ag n d
Trata-se da tendênci a a ar as e s e s e
uados a uma outra cessos s ígni cos com estatutos semi óticos difere nciai s . D aí se poder
do com critérios de julgamento que são adeq
ão lugare�-com,�s as afirm ar qu e todas as mídia s , de sde o jornal , são po r n atu re za
mídia ou a uma outra forma de cultura. Já s
criti cas que são feitas à supe
rfic�lidade das �ensag�� � ornah�ticas • intermídias e multimídias. Ou seja, a natureza mes ma de qualquer
r e cntenos de Jul ga mídia, aquilo que a caracteriza como tal, é o fato de ser inter e
Comumente tais criticas s ão feitas a parti � o tos sob e o J_ r multimídia .
imp �
mento que vêm da cultura livresca e que são vt_ s�i o que e�, entao, Além di sso, enqu anto as formas tradicionais de cultura exigi
ri i o jorna l t l �
nal. O mesmo se repete na
c t cas a e e
o parametros de ava- am a presença fís ica dos doi s pólos da cadeia comuni cativa, emis
cons iderado superficial porque julgado segund
sor e rece pto r, no caso das mídias , essas relações podem variar,
liação que s ão próprios do jornal �presso. .
arde10 cntico
,.
M as é a televi são a grande vitima de um bom� de pr ra desde as formas cunhadas de comun icação de massas , nas quai s o
qualquer �i�o ?� lugar do emissor é ocupado por poucos e o lugar do receptor por
que se dirige indiscriminadamente a todo e nu di das nud ias ,
cteri za omo uma uma massa indiferenciada, até as formas mai s recentes de cultu ra.
ma que ela oferece. ArY se cara c a
so e e devor toda �s s qu e aqui estamos chamando de mídias, em que o receptor é único,
i sto é, tem um caráter antropof'agico. Ela ab r:--is arte ana�is , �olclo
ma interagindo com uma máquina com .alternativas variadas de opções
outras mídias e formas de cultura, desde as do cm
�
ema, Jornal,
erud itas : a parti r de uma fonte potenc ialmente infinita de informações .
ricas e prosaicas até as formas mai s ,
u
tário té o irco , te ro e tc . Ora, em geral, � bale ou � A rigor, no entanto, as linhas divisórias entre onde as formas
documen a c at
ir m ne s_a?
do tele� iona d � s, adqu � mai s antigas de cultura acabam e onde começa a cultu ra das mídias
concerto, por exemplo, quan
s e ce
feiç õe qu ão próp n as daqmlo que a TV po s sibi�ita não podem ser rigidamente demarcadas . S e o teatro tem em comum
amente nov as s e s
óbvio, a p_resença viva com as mídi as o fato de se r multilingu agens , o livro vai ter em
ou limita. Perde-se, nesses casos , como é e ouvido �o recep
o olho comum o fato de ter um ún i co emi sso r, tendo uma massa anônima
dos emíssores e receptores, além de qu e
dad
_
os �os hnutes de
da ran mi ão d TV, fi cam mol como pólo receptor. , .�iás , de acordo com a hipótes e cent ral que
tor, quando _ c mo veiculo._ te�a pe
t s ss e
o está sendo defendida neste ensaio. as demarcações não são rígidas
enquadramento e cortes típicos da �elevisa _ � perda de acu stica
ao, e inflexíveis porque o próprio advento da cultura das mídias, por si
quena, imagens panorâmicas de baixa definiç de seu e c to como
es perdem mui to �� s ó, modificou sens ivelmente todo o território da cultu ra, transfor
etc . A ss im, também, os film
dife nças qu litat iv entr e uma nudia e outra . mando-o num território movente, sem contornos definidos , em qu e
1 filmes, dadas re a as
erdas e ganhos , em que
as
No entanto, trata-se sempre de um jogo de p formas de p rodução e recepção de mens agens se mtercambiam, se
e ab sorver �u alquer ou!ra c ruzam, constantemente .
' 0 mai s relevante é O fato de que a TV pod ão, ntmo e aparen-
mídia, impondo a el as qualidades de organizaç É em razão di sso que as tentativas de caracterização me ra
cia que lhe são p róprios . mente hi stóri ca da cultu ra das mídias como sendo aque la que apa
receu a partir da Revolução Industrial, com seus meios mecànicos
AS LIN GUA GEN S DAS MÍD IAS de produção, acentuando-se na Revolução Eletrônica, também fa
s negligenc iados lham. Toda a parte cenográfica e sonográfi ca de uma peça de teatro
Um dos fatores mai s complexos e talvez mai
-
44 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS MÍDIAS 45
ou mus ical hoje, por exemplo, faz uso de recursos altame? te sofis d e s crição, anális e e avaliação dos processo s de comuni cação
ticados mecânicos e eletrônicos das mai s variadas espécies, reve multimídias , devem levar em cons ideração "o estatuto s emiótico
lando um intercâmbio com as mídias , mais do que uma s eparação. específi co dos s i s temas de s ignos envolvidos . J ss o tornaria po ss ível
O que dizer, então, dos meios de produçã� da a �e, tidos _t�adi fazer mai s claramente a diferença entre canai s físicos e s entidos
c ionalmente como prototípicos das formas mai s eruditas e eliti stas fisiológicos de trans mi s são, de um lado, e entre modos de estrutura
de cultura, quando a arte avança seu flanco para todos os meios , s emióti ca e códigos de organização s i stêmica de signos , de outro
des de os mecânicos aos eletrônicos (cinema, vídeo) até todas as lado". _Desse modo, o autor si stematiza os componentes de ação
espéc ie s mais avançadas de produção da imagem (holografia, ima- comumcativa multimídia como s i stemas problemati camente com
gens sintéticas etc .). . plexos de canais fis icos, sentidos psicofisiológicos , modos s emióticos
Enfim s e as linhas divisórias das fronte ira s entre a cultura e códigos s i stêmicos que se caracterizam do s eguinte modo:
das mídias ; as outras formas de cultura não podem ser nitidamente
traçadas, pode-se, no entanto, afinnar que o advent� das mídias Canais (por ondas de luz, por ondas sonoras, bioquímicos,
coinc idiu com a complexidade semióti ca cada ve z mais acentuada
termodinâmicos, eletromagnéticos e por transmissão); sentidos
das mídias, caracterizando-as como multimídias por natureza.. De (acústicos, olfativos, gustativos. hápticos e óticos); modos
acordo com E. W. Hess -Lüttich (1982:7), processos de comumca semióticos (ícones, índices, símbolos. sintomas e impulsos) e
códigos sistémicos (verbais, para-verbais, não-verbais, sócio
ção multimídia s ão processos que env_olve� complexas r e� aç�s
perceptivos, psicofisicos).
internas entre códigos semióticos, cana is fis1cos e modos fis 1olo_g1-
cos de percepção sens ória. Num trabalho posterior, I-_Ies s-Lütt1ch Isso evidencia a pluralidade semiótica de aspectos que as men
(1986;573) apontou para a dificuldade em se caractenzar s agens multimídias envolvem e que têm de ser levadas em cons ide
ração quando s e tem em mira a descrição, análi se e julgamento
a estrutura de uma mensagem produzida por sistemas de signos,
de�sas mensagens. Em s íntese: são men sagens intersemióticas para
sinais ou códigos de canais múltiplos e poli-sensórios, cada um
cuJa produção concorre muitas vezes mais de uma mídia, o que
deles governado por suas próprias regras seletivas e combinatórias.
Não se trata claramente de uma série homogênea e de um único envolve , na sua feitura e leitura, uma pluralidade de códigos e de
nível de signos ou sinais que emergem, mas trata-se, isto sim, de p �ocessos s ígnicos (ou modos semiótico s, no dizer de Lüttich), exi
uma rede de modos de expressão radicalmente diferenciados (... ). gmdo _ a concorrência de divers os sentidos r eceptores para sua
Uma mera hierarquia de níveis semióticos, no entanto, cortada decochficação e fruirão, o que produz efeitos psicofísicos e cognitivos
em fatias de igual duração, não leva em conta as diferenças de também variados no receptor.
estatuto semiótico e função comunicativa dos signos de cada ní Cons iderando-se código como "um conjunto de s ignos e re
vel, e uma mera segregação binária de semiose multimídia em gras para sua combinação, que são usados no envio e recepção de
sinais de duração permanentemente ou não-permanentemente (...) mensagens",.?e modo que "código é sinônimo de si stema de s igno"
não resolve o problema da fratura temporal diferenciada dos ca (�an. M. M e1Jer 1_98!:230), o amálgama de códigos e processos
nais envolvidos no processo. s1gmcos que c?n�t1�1 a complexidade semiótica das mensagens sig
_
mfica a coex1stenc1a e combmação de dois ou mais códigos em
Lüttich está evidenciando aí a complexidade semiótica dos uma só mensagem. Es sa s imultaneidade e o entrelaçamento d e có
processos comunicativo s multimídias, a diver sidade de_n!ve i s e_ fim digos não são frutos da soma de cada um dos códigos , mas confi
ções desse tipo de proces so, as s im como o caráter mult1d1men s 1onal guram uma gestalt que varia de mensagem a mensagem ou d e ntro
das linguagens que interagem na produção das men sagens e dos de uma mesma mensagem. Por exemplo: numa determinada mídia
canai s s en s ório s que interatuam na recepção des s a s men s agen s . pode dominar uma detenninada hierarquia de códigos , como no
A partir di s s o, Lüttich propõe que a s pe squis as que visam à cas o de muitos jornai s impres sos em que o verbal escrito domina
-
46 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS MÍ DIAS 47
sobre O cód igo i magét ico. Mas há casos de _mídias em �u e a hierar modelo i deogrâmi co. Em s íntese : o cinema é uma linguagem-sínte
qui a entre os cód igos é semp re móvel. osc 1l ant_e, d om ma��o, n um se: pintu ra, fotografia, teatro, além do som, músi ca e linguagem
_
mome nto , o código verbal o ral, e, lo go a seguir, o 1 maget1co, q� e ve rbal oral e gestual. Tod os esses códigos se amalgamam num rit
cede l ugar à interação eqüitati va do i magét_i co e sonoro , e ass i m mo plást i co e interagem em movimentos de tran s fonn açã o constan
_
por diante, como é o caso da TV. Enfim, os mve1_ s e graus de i m por te d� hi era rqui a entre eles, de modo que a cada instante um códig o
tân cia de cada c ódigo e os movimentos das hierarquias entre os dom ma sobre o utros, para ser, l ogo a segu ir, do minado po r outros,
códigos v ão compon do mensagens sem i ot i cament� d� vers1 � c�das e ass i m s uce ss i vamente.
-
nas quai s i mpera não a redundância, mas a coope raçao mtercodig�s, O elenco dos exemplos ficari a certamente insufic i ente se nã o
interlinguagens tanto na formação da men sagem qu anto no efeito se menci onas s e a TV, a mais híb ri da de todas as mí di as , q ue absor
de comp reen s ão a ser p roduzi do no receptor. ve e deglu te todas as outras . Nessa medida, por mais que a men sa
Quando afirmamos que todas as m ídi a� já tê� _ um caráter gem tran� mitida pela TV seja banal, su perficial e es quemáti ca, sua
intennídi a que i mpl ica no acoplamento de vanos códi gos o� lm complexidade semióti ca é semp re grande. Tudo se dá ao mesm o
guagen s , basta pensarmos no jornal . para '!,ue e� sa afi�açao s e tempo : som, verbo , i magens que podem ad qu iri r feições as m ais
to me patente. O jornal compõe - se da mteraçao e s1multan_., 1 dade da d� vers�s e m � ltifacetadas , além do ri tmo dos co rtes , junções, ap ro
. l inguagem verbal escr ita, da linguagem fotografic ,
a e � lmgu a�em xunaçoes e d1 stanc1amentos que provalvemente se constituem n um
-
gráfica, evi dente esta na variação do tamanho e pos1 çao dos t ipos dos aspectos mai s característicos dessa mídia.
gráficos no espaço da página como aspect<: substantivo da men sa A maior part e dos estud os dos mei os de comunicação sã o
gem. Cu ri oso observar como a sofist1caçao cres�ente do u so da conte udistas, isto é, buscam nas mensagens apenas seus conteúdos
linguagem dos t ipos no jornal con se�e, sob esse angu lo trnnsfor verbais o� verbalizáveis. Es ses estudos se es quecem das peculi ari
:
mar o caráte r ve rbal da palavra escnta q ue passa a ª?q u m r car�c
1
terí sticas de lin guagem p l ást ica, nas verd�de i ra� ar�mtetu ras grafi
�os.efeitos diferencir fos na perce pção do rece ptor que essas pe cu
co-imagéticas que a men sagem jornalísti ca vai c �1ando, - � as esse handades estão aptas a p rod uzi r. E m síntese : fica negligenc i ado 0
,
aspecto plás tico na configuração. da mensagem J om�h st1ca e, na fato de que o modo como essas mensagens se articulam é tão i m
realidade , gerado por uma outra lmgu ag em qu e tambe� atua den portante para a recepção quanto aqu il o que elas dizem. Além di s s o
tro dessa m í di a : a linguagem diagramática, i st o é, o s diagrama� de n ão é levada em conta a riq ueza d e se nti dos pe rcepti vos q ue pode�
distribu ição da in fonnação no esp_aço da página s�o �u a�e tão i m P.otenci almen.te i nteragi r no ato de recepção dessas mensagens, as
portantes para a geração do sentido _quanto a prop na lmguagem s1m como a diversidade de efeitos p si cofísi cos e cognitivos que e las
ve rbal im p res s a que p reenche esses diag ramas. podem produzi r.
Ou tro exemp lo bastante palpável de inter-�el ação de �od , .1 os
� Conclusão : tal como ocorre em toda mensagem, de acordo
e lingu agens está no c inema. Ei sen ste_in, �liás, foi u � dos y n_m� i ros co,� o conh�c1do esquema de Charles Morris, as mensagens das
a perceber e levar e sse fator da mídi a cmemato grafica as � ltimas m 1d1as tambem s e estruturam em trê s nívei s : sintáti co, semântico e
conseqüênc ias . Que o c i ne ma é feito de imagens em mov 1mento, pr�81?ático. Se o ní vel sin táti co é a relação entre os s ignos, o se
_
i sto todos sabemos . O que Eisenstein percebeu e enfati camente de m ant1co, a rdação do sign o com o que ele sign ifica e o pragmáti co ,
monstrou é q ue o cin ema (foto grafi a � m _mov i m�nto! p�� ab sorver a relação do signo com o usuári o , no cas o das mensagens das mídias
_
para dentro de s i diferentes códigos p1ctoncos, i sto e, códigos ge�a esses �í�e i s se to mam ma is complexos . Uma vez que as m ensag en�
dos dent ro da pintu ra, lição , aliás, que Peter G reenaway tambem d�s m1.d 1�s . se e�gendram na coexistênci a de vári as linguagens , o
_
esplendidamente ass imi lou . Mas Ei senstcin demonstrou amda q�e rnv�l s mtàtlco nao se reduz á relação de si gno a s i gno de um mesmo
0 cinema pode recriar as regras do teatro (no caso, o teatro Kab_uk1), ,
cód1�0, . mas de �1st�mas de �ignos dive rsos em interações semp re
-
as si m como engendrar seu s p rocesso s de montagem a partir do m utáveis e de d1 ficil s 1tematização. Isso explica a dificuldade de
48 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS MÍDIA<.; 49
descrição do nível semântico, uma vez que as relações de significa em 1982, as mídias que vão do jornal à televisão como mídias tra
do, quando vários códigos e processos sígnicos estão envolvidos, dicionais em oposição às tecnologias mais recentes de dissemina
são redes complexamente urdidas que afetam uma série de canais ção da informação, tais como terminais domésticos de publicação,
receptores ao mesmo tempo, o que toma o nível pragmático tam videotexto, televisão por assinatura, correios eletrônicos, videocas
bém intrincado, visto que os efeitos cognitivos, quando vários ca sete etc. que são altamente interativos e bidirecionais, implicando
nais perceptivos estão envolvidos, são mais dificeis de serem aferi na escolha de informação pelo usuário.
dos, medidos ou julgados. É por isso que foi afirmado, no início Com isso, o que essas novas mídias estão indicando, em pri
deste trabalho, que as mensagens das mídias têm uma margem de meiro lugar, é que elas proliferam através do reaproveitamento das
imponderabilidade quase impossível de ser controlada. mídias já existentes, provocando um desvio produtivo no uso das
tradicionais mídias de massa. Em segundo lugar, elas também pa
recem estar demonstrando que deverão provocar na cultura de mas
MÍDIAS E INTERATIVIDADE
A opção que foi feita neste artigo de adotar o termo mídias ao sas tanto ou mais efeitos de transformação do que esta produziu
invés de meios de comunicação de massa foi proposital, embora à nas formas eruditas e populares de cultura.
primeira vista pouco política. A escolha do termo comunicação de
massa é, por si, evidenciadora da contradição específica desses
meios, isto é, do fato de que eles são meios de produção que estão
sob o poder político de uma minoria economicamente privilegiada,
sendo suas mensagens produzidas por poucos para serem recebi
das por uma massa de consumidores que não participa da escolha
das mensagens que lhe são dirigidas.
O ponto de vista que foi aqui adotado, no entanto, e que, para
bem demarcar sua diferença, adotou a expressão "cultura das
mídias", pretendeu colocar em evidência a questão de que a já tra
dicional cultura de massas está hoje convivendo com outros tipos
de mídias que não podem mais ser chamados de massa. Neste con
texto, as mídias de massa, embora em convivência e simultaneida
de com novas formas de comunicação mais interativas e
bidirecionais, que as novas mídias possibilitam, estão cada vez mais
crescentemente tendendo a se constituir meramente numa primeira
e rudimentar etapa rumo à provável consolidação de uma cultura
das mídias.
Trocando em miúdos: os meios mecânicos de impressão grá
fica, que deram origem ao jornal, a invenção do telégrafo, da foto
grafia e do cinema foram imediatamente seguidos pela Revolução
Eletrônica com o aparecimento do rádio e da televisão. Foram es
sas duas últimas mídias, aliás, que levaram a cultura de massas ao
clímax. No entanto, as novas tecnologias de computação e comuni
cação digital, com seus fluxos transbordantes de dados, nos fazem
atualmente considerar, conforme já nos indicava J. O. Boyd-Barrett
-----
A criação no j ornal e na literatura
sensacionalisticamente as manchetes, apelando para um público consciências que podemos ter do mundo: pela denúncia do verismo
incauto que consome ficção espalhafatosa como se fosse notícia . como duplicação de aparências falsas (porque meramente aparen
Outro lado do problema: o advento dos meios eletrônicos veio, tes); pela exploração de novas estruturas de linguagem que trans
sem dúvida, se não roubar, pelo menos transformar alguma das tornam hábitos adquiridos, desmascarando o que o discurso esta
funções que o jornal detinha quase hegemonicamente. Tendo nos belecido cala ou camufla; pela busca de uma readaptação
dotado do poder da multilocação, a televisão nos permite participar (homeostática) de nossa linguagem no mundo etc.
dos acontecimentos, até para além da esfera terrestre, no momento
mesmo em que são vivenciados. Isto parece funcionar como uma PARA FECHAR ESSE PARÊNTESES
faca de dois gumes para o jornal. Se, por um lado, a notícia da Neste acelerado século em que cada vez mais deixa de existir
televisão funciona como um aperitivo que pode conduzir a curiosi o tempo para passar o tempo, ou em que a TV preenche quase
dade do receptor a uma busca de complementação da informação hegemonicamente esse tempo, pereceu o romance como desfastio
por parte do jornal, por outro lado, cria a exigência de que a infor ficcional ou como imitação da realidade. E a literatura na sua emer
mação jornalística não fique meramente no nível de vitrine dos fa gência de perdas (não apenas para o jornal, mas também para o
tos. cinema, rádio, televisão) morreu como linguagem institucionalizada
Um pequeno paralelo retrospectivo talvez nos leve a enxergar (voltaremos a isto).
com maior lucidez a problemática atual do jornal. O jornal, por seu lado, após um primeiro momento (suas fases
ainda artesanais) de importação de beletrismo literário, foi gradati
vamente desenvolvendo seu próprio know-how (pós-industrializa
VOLTEMOS UM SÉCULO NO TEMPO
Ao se crer reprodutora do real, com as ferramentas de uma ção) buscando para si uma imagem de objetividade, economia e
observação crua do presente em estado bruto, a literatura viu seu imparcialidade que o mosaico jornalístico parecia realizar, satisfa
desejo de transparência realista denunciado como ilusão de ótica zendo a necessidade de condensação infomiativa e fornecendo ao
nos falseamentos em que caiu o naturalismo. Por outro lado, obri leitor doses cotidianas para sua reserva de acontecimento - (fic
gada a ir cedendo ao jornal uma tarefa que este, por sua própria ção).
natureza, poderia mais eficazmente realizar (no seu registro dos
acontecimentos na dinâmica mutável e autocorretora do dia-a-dia),
CHEGAMOS AO PONTO DE REATAR AS PONTAS COM O PRESENTE
a literatura descobriu nas raízes de seu autoquestionamento a cons Quando os meios eletrônicos tiram do jornal impresso o pri
ciência de seu ser-linguagem: o realismo do discurso. Tanto é as meiro lugar na fila dos acontecimentos, a necessidade de veicular
sim, que as melhores obras que chamamos realistas nos colocam informações que cheguem além de um mero mostruário de fatos
face a face com o realismo da linguagem: obriga o jornal a penetrar a crosta aparente dos fenômenos - e
- cf. os ritmos da dicção flaubertiana numa mudança de agora é sua vez de questionar sua própria ilusão de imparcialidade
movimentos sem aviso prévio, numa suspensão do fio narrativo (de objetiva, repensando suas funções e seu ser de linguagem. Já se
enredo) que tensiona os registros de linguagem desromancizando o toma possível delinearmos algumas reações que o jornal tem reve
romance; lado diante de seu próprio impacto. Está se tomando voz quase
- cf. os silêncios reticentes de Machado que abalam profun corrente que muitas das realizações da linguagem jornalística pou
da e surdamente a função narrativa, fazendo evadir o sentido para co ou nada têm a dever a uma criação literária.
zonas que se mantêm aquém ou além de cenas meramente episódicas.
Enfim, levada a contar de um modo que o jornal não podia e MAS ••• EXAMINEMOS A QUESTÃO MAIS CUIDADOSAMENTE
nem tinha por função contar, a literatura entrou num corpo a corpo Em primeiro lugar, essa voz quase corrente vem confirmar a
primordial com a linguagem desvelando simultaneamente novas
54 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS MÍDIAS 55
colocação de McLuhan de que o advento de um meio tende a fazer caracteíizam (hoje, mais do que nunca, e no Brasil) a função do
ver o meio anterior como arte. Não resta dúvida que a instantaneidade jornal. Isto porque o processo criativo no jornalismo é tanto mais
de produção da linguagem televisiva, nos seus processos de criativo quanto mais despertar para uma vinculação crítica com o
impromptu, desloca por contraste as produções jornalísticas para imediatismo dos acontecimentos, pois o jornal trabalha dentro de
um estatuto quase artesanal. Daí a aproximação imediata do jornal uma função-compromisso social explícito: gerar no seu mosaico
com a literatura, pois esta, assim como a arte em geral, tal como do mundo-de-cada-dia a visão crítica da atualidade.
foram concebidas, antes da reprodutividade técnica, se afiguram E o jornalista, deste modo, não é apenas aquele que escreve,
como embriões legítimos do artesanato. Assim é que, pelo fato de ou que configura mensagens, mas aquele que, para tal, deve ser não
se tratarem ambos - literatura e jornal - de linguagens impres um espectador impessoal, mas um decodificador de fatos, isto é, o
sas, nada mais natural que se tome a literatura como referente das leitor da trama (linguagem) do real. Seria exigir muito? Não, se nos
realizações criativas no jornal, do mesmo modo que é comum se afir lembrarmos que os fatos e o papel que os registra compõem o coti
mar diante de uma fotografia bem realizada: "Parece uma pintura". diano dos jornalistas, o que deveria permitir a entrada diária no
No entanto, cumpriria perguntannos: qual literatura? qual pin jornal e entre os jornais de uma função corretora de seus auto
tura? Porque o simples fato de que as comparações ocorrem tão enganos diante dos acontecimentos. Só isto libertaria o jornal de
naturalmente deixa entrever que, para muitos, se trata de uma pin seu mito de verismo, substituindo uma visão apaziguadora ou
tura e de uma literatura institucionais, já diluídas, degustadas, sem pseudocrítica do real pela consciência de que o jornal propõe uma
o mistério, o enigma e desafio que caracterizam atos criadores de organização mutável de dados provisórios do dia-a-dia, na busca
linha de frente, antenas vivas do organismo social. Por outro lado, de uma verdade que recua porque seu encontro é a busca.
o imediatismo daquelas comparações parece ignorar o fato de que
nosso século nos coloca dentro do confronto não apenas de duas "E TODO O RESTO É LITERATURA?"
linguagens, literatura e jornal, mas da coexistência não passiva de Os saltos e golpes dos caminhos por que tem passado a litera
uma série de linguagens que se interpenetram, gerando processos tura contemporânea têm desnorteado qualquer tentativa de explica
de migração de recursos, de produção de linguagens intermediári ção acabada e definida de seu ser. Correm vozes, tais como: "a
as, híbridas (entre a literatura e o jornal, entre a literatura e o cine literatura está morta", "não tem mais função", "o elitismo da lite
ma, entre o cinema e o jornal etc.). ratura moderna é alienante", "o escritor deve atuar no seu momen
Mas, por outro lado ainda, é exatamente esse confronto de to histórico", "não há público para essa linguagem esotérica", "a
linguagens que leva cada meio a explorar radicalmente recursos literatura cria seu próprio mundo" etc etc. E essa teia contraditória
que são só seus, que o diferenciam dos demais, garantindo sua so e muitas vezes enraivecida de linhas vai compondo uma visão
brevivência e funcionalidade. E assim que o jornalismo se lança à anuviadora, um� espécie de ruptura na nossa retina mental, ao
exploração de seu caráter de montagem gráfico-visual-imagética, mesmo tempo que, talvez, nessa tensão confusa se torna possível
configurando processos simultaneístas, contrapontísticos que pro "divisar algumas luzinhas divididas" (para falar como Riobaldo).
curam tirar um máximo de efeitos significativos de seu espaço O entrechoq ue dessas vozes parece sintomático de que muitos
mosaiqmco. não interiorizaram ainda a função primordial do jornal (nem mes
Cumpre, no entanto, salientar que tais realizações só se tor mo num momento em que a TV veio radicalizar essa função): ensi
nam realmente efetivas no jornal (como jornal) na medida em que nar a ler (apalpar) mosaiquicamente o mundo. O grande intercâm
não visem simplesmente um "decor" chamativo, mistificador, mas bio do jornal com a literatura parece deste modo estar sendo igno
saibam tirar partido desse campo de relações entre a palavra, a rado : só uma leitura simultaneísta e compressiva de mosaico per
imagem, a arquitetura gráfica, fazendo germinar nos interstícios mite entreluzver a constelação de rupturas que tem configurado a
do dito e do entredito as raízes críticas que fundamentalmente literatura de nosso século.
...
56 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS MÍ DIAS 57
A progressão crescente de novos meios e novas linguagens que poderíamos denominar enclaves de invenção que rompem
que produz uma dinâmica de reajustamentos constantes nos meios as barreiras entre as artes e entre os signos, subvertendo estereóti
já existentes, não poderia deixar intocável a aura literária. Ao con pos estruturais e o conseqüente entorpecimento de nosso estar no
trário, o poder dos outros meios (e aqui poder também no sentido mundo. Soa elitista? Ou o tachar de elitismo não é em si mesmo
de complexo econômico) demonstra, por oposição, a patética fragi profundamente indiciador de uma letargia que impede nossos senti
lidade. da literatura. Porém, paradoxo: só a autoconsciência dessa dos de se entregarem ao desafio de questionar um mundo comprado
fragilidade pode desentranhar forças vivas. pronto que prescinde de nossa intervenção sensória, motora, lúdica,
A literatura não foi devorada pelos outros meios, seu proces corpo a corpo?
so de autodevoração esteve sempre à frente, compondo flagrantes São enclaves qu• resistem a rótulos e engavetamentos, impos
de seu poder de pré-sentimento do mundo. Não se trata de morte, sibilitando diluições imediatas:
mas de suicídio. Autofagia que se traduz em negação a qualquer - cf. poemas que se transformam em arquiteturas gráficas
tipo de apropriação institucional - mesmo que seja (e antes de ou em móbiles táteis;
mais nada) a da própria literatura: resistência bruta à - cf. prosas que se recusam prosear;
compartimentação e sedimentação, esforço por se manter "à mar - cf. ficções que se negam referenciar fatos e reverenciam
gem da margem" de sistemas estabelecidos (principalmente os ar em sínteses vertiginosas a memória ESCRITA da humanidade;
tísticos). - cf. contos que fendem a barreira entre ilusão e realidade
Mas a autofagia não se faz sem choques, e internos, pois a par desvelando um outro real nas dimensões intersticiais da palavra e
dessas criações que se alimentam no interdito, aparecem produções da vida.
que visam (muitas vezes ingenuamente) realimentar o estabelecido Não seriam essas as centrais elétricas (Maiakovski) que dis
- linguagens institucionalizadas para o usufruto de ideologias: tribuem energia inventiva, injetam consciências estruturais em ou
pedagógicas, morais, religiosas, políticas... Daí, minha pergunta tras linguagens? Outras linguagens que continuamos a chamar de
anterior: mas qual literatura? quando se fala em penetração da lite literatura, mas que se trata hoje, na realidade, de produções híbri
ratura no jornal. das: entre o jornal e a criação, entre a crítica e a criação etc. para
11 não nos alongarmos. Mas, para reatar especificamente o novelo
TODAVIA, 11 M INHA PRÓPRIA QUESTÃO DEVE SER EXAMINADA
que nos toca, acredito que o que se tem chamado hoje de retorno a
COM LENTES APROXIMATIVAS
uma literatura mimética, neo-realista, engajada no momento histó
Não podemos negar um evidente intercâmbio de recursos e rico, não é outra coisa senão uma produção híbrida entre o jornal e
migração de linguagens que extrapola a mera esfera da relação a criação, cuja qualidade depende de um grau de aproximação maior
jornal e literatura. Um intercâmbio, aliás, que deve ser buscado, em relação à criação e menor em relação ao estereótipo. Não há
pois é na fenda entre dois sistemas de signos e nas brechas do siste aqui qualquer tom pejorativo referente a essas linguagens híbridas,
ma instituído que podem germinar novas estruturas de linguagem se lembrarmos a importância do jornal na sua função primordial
(o estereótipo do novo nasce sempre no interior de um mesmo siste mente crítica das circunstâncias.
ma). E é aqui que precisamos um pouco de crítica poundiana nas Mas há que perceber que o que chamei enclave inventivo pa
vetas. rece hoje caminhar pari passu com a ciência. Se as invenções desta
propõem modelos cognitivos do mundo, pragmatizados pela técni
"HÁ QUE DIFERENCIAR AS ÁRVORES DA FLORESTA" ca, as invenções da arte propõem modelos sensitivos que os veícu
los de comunicação podem evitar (de maneira crítica e não decora
Acredito que realmente morta está a literatura e a própria arte
tiva), configurando novos modos de sentir o mundo (não no sentido
como sedimentação de preceitos e como receituário para se enxergar o
sentimentalóide, mas no sentido de fusão dos nossos sentidos).
mundo "por trás de olhos cegos". Há vida ainda, no entanto, no
..
O signo à luz do espelho
(uma releitura d o mito d e Narciso)
imagens e gráficos que, desde as grutas de Lascaux, vêm cinema, televisão, até a holografia, que se tomam capazes de
crescentemente povoando a face do mundo. Enfim, seja em som, ilustrar exemplarmente essa que' tão. Mal podemos hoje avaliar o
massas físicas, linhas, cores, luzes, volumes, movimentos, o signo enorme impacto sobre o ser humano provocado pela invenção da
é sempre uma realidade material, concreta. fotografia. Por se tratar de uma fixação fotoquímica dos sinais de
Contudo, um signo só é signo porque esse corpo material que luz emitidos pelos próprios objetos do mundo, à maneira de um
o constitui está para alguma coisa que não é ele mesmo. Ele só espelho, a fotografia estabelece uma conexão tisica, dinâmica,
funcióna e age como signo porque substitui, representa, está no factual e existencial com os objetos reais que ela registra. Não foi e
lugar de alguma coisa que não é ele. Nessa medida, o signo é tão não continua sendo casual a euforia dos ingênuos e incautos diante
material quanto tudo aquilo que chamamos de realidade, ao mesmo da fotografia: através de um processo fisico-químico de correspon
tempo que carrega o poder de representar para alguém isso mesmo dência ponto a ponto, finalmente é a própria realidade que o ho
que é chamado de realidade. Seu caráter, portanto, é o caráter de mem se tomou capaz de flagrar. Parece, enfim, transposta a brecha
um duplo. Sem deixar de ser ele mesmo, ele simultaneamente re da diferença entre o signo e o objeto por ele representado.
presenta, substitui, aponta para, ocupa o lugar de um outro que Não é também casual o processo de aperfeiçoamento das ima
está fora dele. gens técnicas. É a realidade "tal qual é" que precisa ser agarrada,
capturada. Se o mundo é para nós colorido, a fotografia imediata
mente virou cor. Se o mundo é dinâmico, o cinema tratou de pro
A I MAGE M DO ESPELHO
Por volta de fins dos anos 20, um pensador marxista russo cessar as imagens num movimento fiel ao movimento das coisas tal
(ligado ao Círculo de Bakhtin), V. N. Volochinov, forneceu-nos do como ocorre nas cenas da nossa percepção real. No entanto, falta
signo uma definição imagética capaz de esclarecer com precisão a va ainda vencer o descompasso do tempo. Veio, então, a televisão:
duplicidade paradoxal do signo como algo que é, a um só tempo, o mundo flagrado no instante mesmo �o seu ir existindo. Vivemos,
ele mesmo e um outro. A definição fornecida por Volochinov apro contudo, num universo tridimensional. Cumpria vencer a barreira
xima-se daquela que nos é dada pelo funcionamento do espelho. bidimensional da imagem. Inventou-se a holografia e nela a im
Todo signo é, em maior ou menor medida, uma espécie de imagem pressão, por fim, de que o mundo foi capturado na sua condição
especular: o signo não é apenas um corpo fisico que habita a reali volumétrica real. A fascinação e hipnotismo que a holografia hoje
dade, mas também é capaz de refletir essa realidade de que ele é nos produz deve provavelmente apresentar semelhanças com o efeito
parte e que está fora dele. provocado pela fotografia em nossos antepassados.
Ao refletir, no entanto, o signo, necessariamente e sem esca
patória possível, também retrata essa realidade, isto é, ao refletir o
A CENA DA REPRESENTAÇÃO
signo transforma, transfigura e, até um certo ponto e numa certa Entretanto, por entre esses antepassados, alguns menos ingê
medida, deforma aquilo que ele reflete. Esse processo é inevitável nuos, na maior parte artistas e pensadores, introjetaram critica
pelo simples fato de que por mais aproximadamente fiel que o sig mente a invenção da imagem técnica, convertendo-a e traduzindo-a
no possa ser em relação àquilo que ele reflete ou representa, ele não instantaneamente em termos de consciência de linguagem. Enquan
pode ser, em si mesmo, esse outro. Sendo sua função a de represen to os ingênuos se compraziam na festa ilusionista da realidade, es
tar, o signo só pode expressar, substituir ou, quando muito, apontar tes tiraram proveito da ilusão para virá-la do avesso, descamando
para esse outro. Entre o signo e aquilo que ele representa abre-se a a cena da representação. Mas que cena é essa? Não parece ser
brecha, o hiato, a fissura da diferença. outra senão aquela que habita o coração do mito de Narciso e que,
como todo mito, cifra no seu bojo a sabedoria de um ensinamento.
É assim que, enquanto os hipnotizados acreditavam ter, na
I MAGE M TÉCNICA E REALIDADE
Mas são as imagens técnicas, essas que vão da fotografia, fotografia e congêneres, a própria realidade diante dos olhos, os
62 LÚCIA SANTAELLA CULllJRA DAS MÍ DIAS 63
artistas, por seu lado - estes que, por fatalidade congênita, estão aberta entre signo e realidade, colocando-nos cara a cara com a
vetoriados exatamente para o pulsar da brecha entre signo e reali fugacidade do vivido e dilatando a nossa consciência da morte. Se
dade --, foram, sem muito alarde, povoando o mundo com novas o registro técnico é capaz de congelar o instante num flagrante eter
versões, releituras do mito de Narciso. (Parece estar certo Borges no, esta eternização inevitavelmente aponta para seu avesso: a
ao dizer que as grandes metáforas, leituras do mundo, são poucas, irrepetibilidade e morte irremediável do flagrante capturado. A vida
muito poucas, e quase todas se perfizeram no mundo grego. O resto aparece para morrer a cada instante. O que a imagem captura é o
são reapresentações dessas metáforas sob uma nova entonação.) rapto da vida. Esta que é habitada pelo tempo e que se consuma
Não é por acaso que é contemporânea à invenção da fotogra como morte em cada átimo de tempo. Não é preciso mencionar
fia a invasão dos duplos na literatura de que a obra de Edgar Poe é aqui o quanto estamos perto daquela superstição primitiva de que a
exemplo exemplar. São esses duplos justamente que, quando lidos imagem rouba um pedaço da vida. Não é preciso enfatizar que é
à luz do signo, ou melhor, à luz do espelho sígnico, escancaram por este caminho que encontramos uma das portas de entrada para
para nós a fratura da linguagem. Senão vejamos. o coração de Narciso. Aliás, sob este aspecto da dialética morte e
Por mais tisica e quimicamente perfeito que possa ser o regis vida inclusa no signo, foi através de um novela de A. B. Casares, A
tro de um objeto, situação ou aquilo que chamamos de realidade, invenção de Morei, por nós considerada uma das mais perscrutantes
este registro não é "a realidade". Um simples passeio pelos interio versões contemporâneas do mito de Narciso, que essa porta de en
res da representação nas imagens técnicas é, por si só, capaz de trada nos foi aberta.
tornar evidente essa questão. As imagens são produzidas por apa NARCISO REENCENADO
relhos que, por sua própria natureza, têm potencialidades e limites
e, como tal, só podem registrar o "real" numa certa medida e dentro Trata-se, na novela, da invenção de uma máquina fantástica,
de uma certa capacidade. Esses aparelhos são máquinas que neces muito mais fantástica do que sonharia qualquer holografia. En
sariamente introjetaram sistemas codificados de representação que, quanto na representação holográfica tem-se o registro em luz
longe de nos fazer ver o "real" tal qual, ao contrário, representam impalpável e flutuante da tridimensionalidade dos objetos, a inven
no de acordo com a mediação de uma determinada codificação da ção de Morei, por sua vez, vai muito além. Essa máquina é capaz
visualidade. Isso, se não enfatizarmos o fato de que esses registros de registrar cada coisa e cada ser existente não apenas no seu volu
dependem do ponto de vista do observador, da visão de mundo que me e proporção tridimensionais reais, mas em toda a sua completude
sua condição de classe social lhe dá, do enquadramento e angulação de ser, até o limite da sutileza do cheiro e da transpiração. Cada
escolhidos, enfim, revelam alguns traços do "real", ocultando ou situação e instante vivido, ao ser colhido pelo registro dessa máqui
tros, conforme já o demonstrou lucidamente Arlindo Machado nb na, pode se repetir ao infinito. Premiada parece, enfim, a vida pela
seu ensaio sobre A ilusão especular na fotografia (Brasiliense). eternidade. No entanto, algo estranho começa a acontecer. Cada
Esses registros são, portanto, duplos. E, diante desses duplos, a palmo de terra, a vegetação, as plantas, flores e seres humanos que
realidade é aquilo que continuamente escapa, recua, escorrega. foram capturados e, portanto, duplicados por esse registro infinita
Por outro lado, enquanto esses duplos podem ser reproduzi mente perfeito e repetível, começam a passar por um lento proces
dos e reencenados indefinidamente (esse o caráter primordial da so de extinção até o desaparecimento na morte. Nos seres huma
imagem técnica), o objeto do registro, o objeto da representação, nos, a deterioração inicia-se pela extremidade dos dedos: a morte
ou seja, a chamada realidade, por ser aquilo que foi capturado e de fora para dentro.
congelado no flagrante do registro, é justo aquilo que não pode ser Conforme se pode ver, na mais fantástica metáfora ficcional,
repetido, que ficou para trás e, como tal, já morreu . o que se tem aí denunciada é a impossibilidade de se subverter o
Como se pode ver, quando mais estreitado aparece o vínculo caráter do signo como duplo, visto que se este, o signo, fosse capaz
tisico entre o registro e o objeto registrado, mais se alarga a fenda de atingir a mais absoluta identidade e completude em relação ao
__.....__
66 LÚCIA SANTAELLA
CULTURA DAS MÍDIAS 67
uma imagem integral de si, que fatalmente nos aparece sob forma
de miragem e eclipse, relâmpago e escuridão. Trata-se do enigma da consciência (lá onde falam as pulsões), sobre as quais não pode
de se conhecer a si mesmo que inevitavelmente nos aparece como mos exe �cer autocontrole e em relação às quais o eu é uma espécie
um mosaico, colcha de fragmentos cujas formas, a cada instante de de barqmnho navegando em águas tempestuosas.
cada hora, incessantemente para reconstituir, reconstruímos. O jogo p arece infernal. Não por acaso o "conhece-te a ti mes
. Conhecer o próprio eu é traduzi-lo em pensamento. O eu re mo" persegue a vida de cada se r e a vida da humanidade inteira
presentado no pensamento não é o mesmo eu que pensa. Ambos desde tempos imemoriais. Não é senão sob a insígnia da alteridade
parecem se cruzar, m as só parecem. Tangenciam-se, apenas, pois �ediação �o outro do e u p�ra o eu, que Lacan estruturou seu mag�
entre o eu que pensa e o eu objetivado no pensamento, introduz-se �tfic� ensa,� so�re o Estagw_ do espelho, no qual a constituição da
o im perceptível descompasso da temporalidade: o jogo do tempo. 1dent1dade d1alet1camente se mstaura na fratura da alteridade. Não
O eu, enquanto pensa, é presente vetoriado para o futuro e, portan n?s dete remos em comentários sobre �sse ensaio, visto que os espe
_ A mmto melhor do que nós. Segui
to, está sempre além do eu objetivado no pensamento que está sem c1ahs� em Lacan podem faze-lo
pre aquém (já é passado). Esse eu que pensa caminha incondicio mo�, pois, para uma outra breve consideração que, então, nos colo
nalmente no fluxo do tempo. Para observar o eu como objeto do cara frente a frente com o mito de Narciso.
pensamento, uma ação reflexiva tem de ser executada. Nessa ação
reflexiva o eu irremediavelmente se duplica. Há um eu que segue
AMOR COMO ESPELHO CRUZADO
avante na corrente da vida, ao mesmo tempo que se volta para o Queremos nos referir à fascinação que o sentim ento de amor
próprio pensamento a fim de observar a imagem do eu que aí se exe rce sobre nós. Trata-se aí talvez (digo talvez porque nesses te r
proj eta. Nessa image m, o eu necessariamente aparece como outro, _
� � mov �1�?S n ada afirmo, só formulo hipóteses) de uma das
diferente daquele eu que, enquanto pensa, avança no fluxo da vida.
e os
urucas poss1b1hdades ( outra seria a da criação) de estreitamento da
E porque avança pensando, só pode conhecer a im agem do eu que fen<!3- do eu que, como alteridade, atravessa a identidade. "A reali
se objetiva no pensamento, traduzindo-a num pensamento subse zaçao �o �or", nos diz L�can, "não é fruto da natureza, mas da
qüente. Não apenas o pensamento é diálogo, o próprio eu é dialógico. graça, tsto e, de um acordo mtersubjetivo impondo sua harmonia à
Pensar o eu é inevitavelmente apreendê-lo como um outro do eu. _
natureza dtlace rada que a suporta."
Este outro funciona como uma espécie de signo, isto é, como uma
. Para co�preendermos essa harmonia, basta lem brar ou ima-
representação do eu para si mesmo. A auto-identidade está, portan gmar a marca mconfundível do amor na face dos olhos do outro ao
to, fraturada pela diferença e alteridade. E essa alteridade �ão se �e endereçar para o eu. O que essa marca projeta não é senão a
reduz à atividade do pensamento, mas penetra também pelos mean im age� do eu imprimida na te la do olhar do outro. Mas Lacan fala
dros desse grande mito que chamamos de sentimento. Sentir é aqui �a re�hzação do amor, o que pressupõe a reciprocidade. Temos de
lo que consubstancia e dá corpo ao eu que avança no fluxo da vida. unagmar, portanto, dois olhares que se cruzam e sintonizam na
Ao mesmo tem po que o sentir não pode ser separado do pensamen troe�. �o ponto e:'ato desse cruzamento (algo semelhante às bodas
to porque o eu avança pensando, o sentir se constitui numa espécie alqmm1cas de do �s corpos que se abraçam), é que se instaura a
de contraponto melódico do pensamento e, com o tal, é justamente c��ce de h�1:11om�, sobrepondo-se ao dilaceramento de nossa con
aquilo que não dá para ser pensado. Pensar o sentimento é transfor _
dtça? s1mbohca: a imagem do outro que seu olhar projeta se cruza
mar sentimento em pensamento e, portanto, perder exatamente aquilo nas imagem do seu eu projetada pelo olhar do outro.
que faz dele sentimento. Isso, se não mencionarmos que cada pen Não é dificil pe�ceber que Narciso se esvai pela carência des
samento se faz indissoluvelmente acom panhar por uma tonalidade se cruzam �nto. Narciso se esquece de si porque confunde sua im a
de sentimento que lhe é própria. Isso, se não mencionarmos que o �em, um signo d? eu, com o próprio eu. Aliena-se no signo, toma a
sentir congrega todas as camadas mais profundas e mais indefinidas imagem por reah�de e desvanece como objeto, isto é, como reali
dade que, fora da imagem, determina a imagem . Perde-se de si por
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L
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críticos literários, tais como L. Fiedler e I. Hassan que tinham idéi política da teoria: posições ideológicas no debate pós-modernista"
as bem divergentes do que uma literatura pós-moderna seria. Inte parece profundamente iluminador, na medida em que consegue ar
ressante notar que, já em 1965, a publicação de um artigo de L. mar um diagrama de relações entre as diferentes posições assumi
Fiedler, denominado "Os novos mutantes", com o uso exacerbado das nos discursos sobre o pós-moderno, revelando, pelo confronto,
do pós (pós-branco, pós-macho, pós-humanista, pós-puritano etc.), não apenas as divergências, mas também as implícitas inclinações
num-tom celebratório e salvacionista, alimentado pela iconoclastia políticas que aí se digladiam.
pop e pelas esperanças da contracultura, produzia profunda reper Segundo Jameson, há fundamentalmente quatro posições ge
cussão. rais, e cada uma delas é suscetível de uma expressão politicamente
Mas foi nos inícios dos anos 70 que o termo adquiriu força, crítica ou reacionária, o que nos dá a possibilidade de oito varia
primeiro na arquitetura, então na dança, teatro, pintura, cinema e ções. Há, assim, os defensores do pós-moderno a partir de um pon
música. Em fins dessa mesma década, o pós-moderno já havia en to de vista antimodernista. Sua expressão até um certo ponto críti
contrado suas vias de penetração na Europa e, a partir de Paris e ca, principalmente na arquitetura, R. Venturi ( 1972), C. Jencks
Frankfurt (com Lyotard e Habermas, principalmente), o termo pas ( I 977), P. P. Portoghese ( 1981), por exemplo, manifesta-se na au
sou a intensificar sua feiyão de debates controversos e sência de qualquer celebração utópica do pós-moderno, aliada a
posicionamentos divergentes. E assim que, nesta primeira metade um novo sentido do universo urbano oposto à ortodoxia do moder
da década de 80, a constelação modernismo/pós-modernismo, nas nismo que, na proliferação desmesurada de arrogantes e monumen
diferentes artes, e modernidade/pós-modernidade, na teoria social, tais caixas de vidro, transformou as cidades em gigantescos em
tomou-se um dos terrenos mais debatidos na vida intelectual de blemas dos poderosos. Esta posição, no entanto, pode ser posta a
vários países. E, segundo Huyssens, os debates se expandem preci serviço de uma política cultural reacionária, quando a oposição
samente porque aquilo que está em jogo é muito mais do que ape crítica (cm T. Wolfe, por exemplo) se faz acompanhar por um ódio
nas a existência ou não-existência de um novo estilo nas artes, muito apaixonado contra os modernos, o que aliás só reaviva os mesmos
mais do que a simples escolha de uma linha teórica que seja erigida horrores arcaicos que o modernismo, quando apenas emergia, pro
como mestra e a mais correta. vocava na burguesia e nos espectadores classe média.
A segunda posição caracteriza-se por um pró-modernismo/
anti-pós-modernista. Na sua inclinação conservadora (da revista
DIAGRAMA DAS CONTROVÉRSIAS
Tendo em comum apenas a visão de que o projeto da New Criterion, de H. Kramcr e da exposição Beckmann, Berlim-
modernidade agora aparece como profundamente problemático, no 84, por exemplo), esta posição tem por finalidade denunciar a ir
contexto mais recente, é tal a diversidade de formas e produtos responsabilidade e superficialidade do pós-moderno em geral, atra
artísticos e culturais que plausivelmcnte poderiam ser caraterizados vés da reafirmação de um modernismo domesticado, desprovido de
como pós-modernos e é tal a variedade de perspectivas, que os dis sua ponta cortante, cuja tradição deve ser impecavelmente preser
cursos teórico-críticos apresentam sobre a questão, que o conceito vada. No seu lado progressista, essa posição vai encontrar seu maior
mesmo de pós-moderno está se tomando cada vez mais antagônico representante na figura de Habermas ( 198 1).
a se transformar em nova fonte de totalização, em se erigir como Concordando-se ou não com os argumentos de Habcrmas, sua
prática e/ou discurso monolítico que assuma o domínio do campo entrada no debate teve, pelo menos, o mérito de tomá-lo menos
cultural e social. De fato, percorrer o caminho dos diferentes ensai simplista. Até então, o pós-moderno estava reduzido, especialmen
os e livros sobre o assunto, é se dar conta da relativização e desafio te nos Estados Unidos, a um jogo de mero descarte: ou o pós-mo
que um pensamento impõe sobre outro, gerando uma polifonia de derno era, de saída, tirado de campo como uma fraude e o moder
vozes que repele a veleidade dos exclusivismos unívocos. nismo erigido como verdade universal, ou o modernismo era con
Sobre esse aspecto, o artigo de Frcdric Jamcson ( 1984) "A denado como elitista e o pós-moderno aplaudido como populista,
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pós-moderna como um novo ciclo de características e finalidades explorando, cm contraponto, as facetas possíveis e prováveis do pós
diferentes de todos os movimentos que a precederam. modemo.
Quase duas décadas depois, segundo nos informa Antonio Então, em março de 84, na revista Ar te em São Paulo
Bivar no seu artigo "O raio laser é mais bonito do que a Vênus de Annateresa Fabris publicou o artigo "Notas sobre o pós-moderno":
Milo'?"(F'olhetim - 443, julho de 85), em agosto de 82, por suges no qual o título parece muito modesto para a pesquisa das mais
tão sµa o pós-moderno foi tema da festa de aniversário da revista sérias que fundamenta o panorama indispensável que a autora nos
Around. Ainda em dezembro de 82, Sérgio Prado lançou no Masp fornece das diferentes correntes e vertentes das práticas e teorias do
o Manifesto pós-modernismo lá � faturo interior aqui. Então, em pós-moderno em várias partes do mundo.
maio de 83, a revista Around realizou um número especial de cará Em outubro de 84, Haroldo de Campo publicou, em dois nú
ter pós-moderno. meros subseqüentes do Folhetim, o ensaio "Poesia e modernidade"
A partir disso, de que tenho notícia, a primeira obra que apa que, tendo também como título ' 'O Poema pós-utópico", insere a
receu no Brasil, trazendo contribuições para a questão da pós poética contemporânea na constelação de uma modernidade pós
modemidade, foi o livro Pós-história, de Vilem Flusser, publicado utópica. Em função de uma concepção sincrônica do termo
no primeiro semestre de 83. Pós-história é um mosaico que vaza as modernidade, H. de Campos toma o Lance de dados de Mallarmé
clausuras do conhecimento dito acadêmico: do chão que pisamos como poema que teria conseguido enfrentar "a crise ou a impossi
ao céu, do nosso saber ao nosso receio, do nosso trabalho à nossa bilidade da epopéia no mundo dividido, cindido da modernidade e
embriaguez, de nossa morada, roupa e encolhimento, até nossas resolver o impasse cm favor da poesia..." a partir do que configura
imagens, nossa escola e nossa espera... tudo isso é visto por uma uma espécie de arqueologia das relações entre poesia e modernidade,
lente que descama as ilusões de um otimismo ingênuo e nos faz avaliando as respostas que poetas de várias línguas e nacionalida
circular no tecido das contradições e brechas a serem abertas nesta des encontram para o poema-desafio de Mallarmé. Concebendo o
era da informática e automação. poema mallarmaico como inscrito dentro de uma revolução inclu
Em agosto de 83, Arte em Revista - 7 lançou um número sive epistemológica, que já prenuncia a condição pós-moderna, H.
monográfico sobre o pós-moderno. Com o enorme mérito de ter de Campos recusa a acepção do termo pós-moderno como sinôni
acionado o debate no Brasil, a revista efetivamente comete o que mo de antimoderno, considerando a transformação com que o pre
está cônscia de estar cometendo, isto é, ''o pecado por injustiça em sente nos desafia como inauguradora de uma instância pós-utópi
relação à variedade da produção artística e à complexidade do tema". ca. Exauridas as forças de qualquer projeto totalizador acalentado
Isto talvez se deva ao fato da seleção de obras e textos ter ficado pelas vanguardas e de qualquer promessa (política, cultural ou es
dominantemente presa às origens, ou seja, ao marco de passagem tética) que acelera a corrida do presente em busca de redenção no
estabelecido por M. Pedrosa, o que leva à falsa impressão de que o futuro, a poética da ''agoridade" é uma poética da "história plu
pós-moderno no Brasil se limita ao nascimento (morte das van ral". Esta, em vez de ensejar os caminhos da abdicação e dos
guardas) e prolongamentos da contraparte brasileira da pop-arte. ecletismos fáceis, incita, isto sim, "à apropriação crítica de uma
De qualquer modo, ficou lançado o desafio para se entender a natu pluralidade 1e passados, sem uma prévia determinação exclusivista
reza complexa da continuidade e transformações do pós-moderno do futuro" E assim que H. de Campos encontra na operação tradu
desde os anos 7 O. tora um dispositivo auxiliar essencial para a poesia pós-utópica do
O desafio não tardou a ser respondido. Em outubro de 83, presente.
Ronaldo Brito publicou no Folhetim o artigo "Pós-moderno: pós, Vale notar que essa concepção de modernidade, vista sob o
pré, quase ou anti?" _ Como o título já indica, evitando os prisma de uma constelação, evita o engodo cm que caíram e ainda
dogmatismos das respostas prontas, de dentro de uma profunda caem muitos dos debates, principalmente entre os norte-americanos,
intimidade crítica com a história da arte moderna, R. Brito foi ao tentarem localizar o pós-moderno dentro de uma linha histórica
l
76 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS MÍ DIAS 77
periódica. Não resta dúvida qu�, por trás dessa li�a, não está �e e desdém, crítica e humor) - a emergência de uma mudança de
_
não uma concepção euro-amencana centrada da h1stona que ve a sensibilidade que no termo pós-moderno, e mais ironicamente em
cultura da modernidade, com seu lado cortante, movendo-se no es Póstudo, parece se imantar.
paço e no tempo de Paris, no fim do século XIX e inícios do XX, Não é preciso colocar ênfase no pomo da discórdia que o po
para Moscou e Berlim, nos anos 20, e para Nova York nos anos 40. ema despertou e que, através da discórdia, fez passar o termo "Pós"
Esta visão, ligada a uma teleologia da arte moderna e que tem s_eu para o domínio público. Em meio às publicações em tomo do poe
subtexto não dito na ideologia da modernização, só podena re1vm ma e muitas vezes do poeta, aponto para uma matéria publicada na
dicar para a cultura americana dos anos 60, na sua insurreição Folha Ilustrada, em 21 de abril de 85 ("Dropes da nova cultura"),
pop-hippie e na sua escatologia tecnocibemética, o nascimento do assinada por Matinas Suzuki Jr. No lance breve e contundente de
pós-moderno. . . apenas dois parágrafos, referentes ao "Póstudo", lindamente se
A visão sincrônica, assumida por H. de Campos, e que 1hum- configura o que está, por-fim e com-tudo, implicado nesse giro
na toda a obra de Octavio Paz, ao contrário, permite entrever que o paradigmático que, pelo menos por enquanto, o termo pós-moder
modernismo está pontilhado de projetos não programáticos que já no deveria estar servindo para expressar. Com olhos que apaipam e
traziam de nascença a marca da pós-modernidade, na medida em ouvidos que auscultam, M. Suzuki perscruta a realidade dessa con
que nasciam em estado de crise, carregando dentro de si a antevi�ã_o dição histórica, traduzindo-a numa lúcida síntese de informação
de sua própria morte. Projetos que, entre o tudo e o nada, se eqmh sensível.
bravam no quase. Antes desse fervilhamento em tomo de "Póstudo", no entanto,
Ainda no final de 84, foi aqui publicado o livro Da vanguarda em princípios de março de 85, Julio Praza defendeu uma tese Sobre
ao pós-moderno, de Eduardo Subirats. Partindo do pressupos�o de tradução intersemiótica que pela maneira original com que cir
que o fracasso da modernidade é um fato sobre o qual não p�tram cunscreve a teoria e prática da tradução intermídia como forma de
dúvidas, Subirats delineia os caminhos que levaram a essa cnse ao arte no contexto da pós-modernidade, merece ser mencionada. Par
pôr em evidência as forças ambivalentes que coexistiram no seio tindo de uma apropriação analógica da concepção p olítica
das vanguardas: de um lado, seu caráter utópico, civilizatório, benjaminiana da história para o terreno estético, J. Plaza concebe
transgressor, crítico e emancipador, de outro, sua inevitável trans "o projeto tradutor como projeto constelativo entre diferentes pre
formação subseqüente em meras atrofias manipuladoras _e sentes e, como tal, desviante e descentralizador, na medida em que,
legitimatórias. Diante do vazio das redenções frustras e do senti ao se instaurar, necessariamente produz reconfigurações
mento de niilismo que o acompanha, Subirats propõe "um monadológicas da história". Traduzir implica uma escolha do pas
redelineamento polêmico da história da arte moderna em busca de sado como modo de interferir na iminência do presente, o que, além
uma nova energia crítica como princípio de resistência e impulso de definir um projeto estético, define também um projeto político,
para o futuro, contra as interpretações acadêmicas vigentes do visto que não é qualquer coisa que se escolhe, mas aquilo que pode
moderno e contra as falsificações praticadas pelos apologistas do incidir criticamente na arte do presente.
pós-moderno". Opondo-se à onda da estilização pós-moderna que se mani
Em fins de janeiro de 85, Augusto de Campos publicou no festa na bricolagem do pastiche e no historicismo eclético das cita
Folhetim seu poema "Póstudo". Se está certo P. N . Medvedev ções, Plaza concebe e pratica a tradução como "modo mais atento
( 1978), ao dizer que artista é aquele que flagra e dá forma à sensi de ler a história" e de recontextualização cultural das formas artís
bilidade ainda em geração, ao processo vivo daquilo que apenas ticas. Por se tratar de tradução intersemiótica (entre diferentes
germina no horizonte da criação, penso que este poema de A . de mídias, códigos e linguagens) fica aí implicado também o pensa
Campos condensadamente encapsula -- no instantâneo de um mento crítico sobre a historicidade dos meios de produção de lin
jogo cruzado de vozes discordantes (fracasso e riso, esperança guagem, na medida em que estabelece o confronto lúcido e lúdico
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CULTURA DAS MÍDIAS 79
novo, enfim, na dita "magia primária", nos surfistas travestidos de sua força motriz. Isso, pelo muito ou pelo pouco, para que chegue
selvagens e nas grandiloqüentes pinceladas com ilusões de grandeza mos ao fim do século ainda bípedes e não de quatro.
senão o abandono leviano de uma consciência crítica, a perda da Se a concepção mesma de tempo e de história, como progres
ironia, reflexividade e autodúvida, além da mise-en-scene ("Gran são linear, teleológica, que norteou o modo capitalista de produção,
de tela") que, na exacerbação quantitativa do mesmo, busca no desde o Renascimento (é por acaso que os primeiros escritos de
muito o álibi para o novo? história começaram lá?), chegou a um ponto de exaustão e conse
· É por coincidência que a presença de um só artista, pós-mo qüente inflexão (afinal, o que os dominantes de todos os tempos
1
derno - J. Cage - avant la lettre (compositor, designer, performer, deixaram registrado da história inteira da humanidade inteira, cabe
pensador, poeta, tudo isso e mais que isso ao mesmo tempo), foi hoje nos armazéns da memória de um computador), como enfrentar
capaz de, sem nada dizer, tomar visível a plástica restauração de o desmoronamento de um futuro projetado de antemão? �
um modernismo domesticado que, de tão exclusivista, não conse Virar as costas às tensões e dilaceramentos de presente, citan
guiu se aproximar nem mesmo da versão mais simplória do pós do esquizofrenicamente os signos do passado (pastiche) ou através
moderno (exemplo: Documenta-7, de Kassel) que é aquela do de frenéticas pinceladas sobre telas amnésicas, batizadas de "neo
ecletismo fácil? qualquer coisa", são apenas fáceis modos de escape que, acobertados
É claro que há um setor reservado para "os caminhos do futu pela mistificação dos museus e grandes mostras, produzem - como
ro" ("Entre a ciência e a ficção"), pois, no que concerne à arte, único efeito seguro - idílicos enlaces com o mercado (cf. F.Jameson
quanto mais a questão dos meios tecnológicos for mantida à parte e 1983). Que os partidos desse idílio sejam tirados sem perda de tem
empurrada para o futuro, mais espaço fica preservado no presente po, pois, nesta era da mercadoria, inclusive simbólica, como
para a proliferação crescente das galerias que, ao fim e ao cabo, obsolescência programada, ele provavelmente pouco durará.
para engordar os bolsos dos marchands1 não precisam de outra Não basta, porém, destramar as encenações que posam de
coisa senão apenas e principalmente da mais-valia ideológica em grande arte, assim como não passa de alarde de araque saudar as
prestada pela aura secular daquela que, entre todas, é a mais aurática sementes de uma nova utopia tecnológica, quando sua verdadeira
- a pintura. Por trás das embaçadas nuvens dessa aura, no entan face é tecnocrática. Não basta ainda, no outro extremo, evidenciar,
to, o que se esconde aí não é nem mesmo uma questão política, mas como o faz H. Poster (1983), que, por trás do pluralismo ingênuo
- no rés do chão - monetária do pastiche, está a noção quixotesca de que todas as posições na
cultura e na política estão agora abertas e igualitárias, ou evidenci
ar, como o faz G. Raulet (1984), que o interesse pós-moderno, nas
PINGANDO OS IS
É por isso que, embora concordando com Nicolau Sevcenko apropriações do provinciano, de vernáculos locais e de tradições
de que o pós-moderno é "um enigma que não merece a violência de regionais (travestidas de populistas), corresponde exatamente à
ser decifrado", considero, pelo menos, que a heterogeneidade de desterritoriali.zação produzida pelo capitalismo.
indagações com que o presente nos desafia, sob o rótulo de pós É certo que não podemos concordar com Habermas na identi
moderno ou não (pouco importa o nome que se dê), tem de ser ficação sine qua non do pós-moderno com o neoconservadorismo,
enfrentada num estado interrogante. Interrogação que se refaz a visto que, cada vez mais, para a intranqüilidade dos críticos e his
cada amanhecer. O sentido crescente de que não estamos fadados a toriadores da arte e cultura, o pós-moderno está ficando longe de
completar o projeto da modernidade, nem por isso significa que ser mera questão de um novo estilo nas artes, um outro ou último
temos necessariamente de cair na abdicação resignada, na passo na revolta sem fim do moderno contra si mesmo, para apare
irracionalidade ou no frenesi apocalíptico (teleologia negativa) que cer (segundo Jameson 1984b) como uma modificação geral da pro
não são senão o lado do avesso das euforias visionárias que tinham dução cultural ela mesma, e das próprias condições da arte, dentro
o mítico homem moderno como seu herói e a arte moderna como de uma reestruturação social do capitalismo pós-industrial como
ClJlTlJRA DAS M I DIAS 83
82 LÚCIA SANTAELLA
dos anos 60-70 do nosso século) e (3) idade pós-moderna (que é ser humano, enquanto indivíduo, e as instituições, enquanto socie
também chamada de pós-industrial, pós-histórica, era da comuni dade, criam contra cada nova técnica. E quanto maior o impacto de
cação, informática, telemática, abrindo as portas para uma nova transformação social que essa técnica estiver fadada a produzir
idade pós-mídia-intermídia). tanto maior será a resistência.
A divisão acima só tem por intenção funcionar como um mapa Assim se deu com a implantação do código alfabético no mundo
de orientação, pontos de referências gerais, pontilhados de exce grego. No Fedro de Platão, o advento do alfabeto fonético é visto
ções particulares. Não se pretende impingir uma visão do tempo como enfraquecimento e perda inexorável da memória dos indiví
como seqüencialidade linear. Ao contrário, o tempo dos fatos e fei duos e do contato inter-humano. De fato, tal perda se dá em nível
tos humanos deve obedecer a algo assim como os dois pólos desco individual. Mas se dá simultaneamente uma transformação em ní
bertos pela psicanálise, o pólo pulsional e o pólo do desejo. En vel da espécie: o armazenamento do acervo humano não depende
quanto o primeiro é reversível, o segundo é irreversível. Para o mais de um ou mais cérebros que desaparecerão com a morte dos
pólo pulsional, portanto, só há compulsão para a repetição, não há indivíduos. Armazena-se fora do cérebro para transcender a morte.
tempo. Assim sendo, nem tudo que se repete na história da humani Assim também se deu com a invenção da tipografia, a cujo
dade, necessariamente se repete como farsa. Há algo também de impacto as elites sociais reagiram conforme a citação de C. Bühler
reversível nessa história . Ou seja: aquilo que não muda na mudan nos informa, ou seja, numa opção inadvertida pela regressão. Os
ça para emudecer a mudança. mesmos miasmas morais, que hoje cercam a televisão (superficiali
Pelo menos para a história das linguagens e do advento de dade, fonte de imbecilização etc.), cercaram o cinema no início do
seus meios de produção, isso parece funcionar. É por causa disso século (ver Sklar, 1978). E quase as mesmas objeções que, no Fedro
que abri este artigo - não sem um viés de ironia - com a citação platônico, se opunham à tecnologização da palavra, hoje se opõem
sobre o aparecimento da tipografia. Não é difícil perceber aí um ao computador: enfraquecimento da memória humana, preguiça para
certo paradigma que parece estar hoje se repetindo: os patronos o trabalho etc.
ricos, de lá, correspondem aos empresários da arte, de cá etc. etc ... Enfim, fico nesses exemplos, que já são suficientes para ex
Não é à toa que Herbert Simon, guardando as devidas proporções, por a_impressão de que a humanidade (pelo menos a humanidade
compara a revolução da informação hoje processada pelos compu ocidental) assim reage porque somos vítimas de uma esperança
tadores, à revolução processada no passado pela impressão dos nostálgica de retorno à plenitude de um corpo uno-primordial
tipos móveis. Não é por acaso que a invenção tipográfica, junto a Linguagens não são simples instrumentos para ligar os ho
outras invenções nos primórdios do capitalismo, inaugurou a idade mens entre si. Somos constituídos pelas linguagens (todos os com
moderna, assim como a telemática inaugura hoje esta idade pós ponentes semióticos) que produzimos. Estamos nelas e somos pres
moderna. Entre as duas, no interregno, fica a Revolução Industrial critos por elas. As linguagens são molduras que configuram, con
que pôs em crise a era moderna. ferem uma imagem ao mundo e a nós mesmos.
Mas é melhor ir devagar com o andor porque este santo é de Com o aparecimento de cada nova técnica ou ineio de produ
barro. O rei está nu e as palavras precisam ser modalizadas para ção de linguagem, desde o alfabeto fonético, no mundo grego, até
não ferir as ditas suscetibilidades humanas. os mecanismos informáticos hoje, é alguma habilidade ou poder
humano em nível individual que se desloca e se expande, sendo
transposto para o nível coletivo da espécie. Nesse deslocamento, o
NOSTALGIAS DO CORPO UNO
Olhando-se retrospectivamente para o advento de cada novo homem transitoriamente perde uma parte de si, a imagem que tem
meio de produção, circulação e armazenamento de linguagens, há de si e do mundo. Nessa imagem estão consubstanciados os "valo
sempre uma coisa que se repete no tempo inapelavelmente, repi res humanos", que são tão relativos quanto a própria imagem. Se a
sando no mesmo ponto: as resistências e barreiras psíquicas que o imagem se fragmenta, os valores escorregam entre as fendas. O
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CULTURA DAS MÍDIAS 89
É no corpo humano (o próprio corpo como suporte) que a ção gráfica cujas imagens "brincam com o impossível", no mo
evolução biológica instalou o primeiro aparelhamento complexo de mento mesmo em que os bancos de dados tendem a se expandir em
produção de linguagem: o cérebro e seus meios de transmissão, redes multiformes e que as mídias tendem a interagir criando casa
aparelho fonador, gestualidade, sutilezas do rosto, do ouvido e do mentos inesperados, não é por tentativa de suspensão das perdas
olhar... Cada nova técnica de produção, troca e armazenamento de que valores demolidos voltam a posar como se estivessem impávi
linguagem, que desloca essa produção do corpo e a estende para dos e intactos?
um suporte externo, é sempre recebida como uma ameaça à integri Desconfio que as formas e aparatos tradicionais da arte conti
dade do corpo, da sua imagem e da imagem do mundo. Daí a resis nuam a receber as bênçãos exclusivas da nomeação de arte não
tência. apenas porque elas rendem monetariamente. Ao contrário, elas ren
No século passado, C. S. Peirce curiosamente dizia: "O uni dem no mercado porque estão sustentadas por valores perdidos que,
verso está em expansão. Onde mais poderia ele crescer senão na justo porque perdidos, valem mais. Mas vamos devagar com o andor.
cabeça dos homens?". De fato, isso parece estar acontecendo. O
cérebro e os sentidos humanos estão crescendo, mas crescem para
DEMOLIÇÃO DE VALORES
fora da cabeça e do corpo na multiplicidade de seus prolongamen Se a compulsão repetitiva da resistência à tecnologização das
tos. E hoje, as inteligências artificiais, os sintetizadores de som e a linguagens se constitui em regra, a fotografia curiosamente funcio
profusão multiforme das imagens técnicas que digam se isso é ver nou quase como exceção a essa regra. Casual?
dade ou não. Mas nisso, são as faculdades humanas nos seus mo Nada foi mais e tão esperado qúanto a fotografia. Desde a
dos de ver, sentir, querer, agir, compreender, deseja;, sonhar e en implantação da perspectiva monocular no Renascimento, a pintura
louquecer, que passam por transfomações num ritmo tão veloz que ocidental sonhava ser fotografia. E foi justamente a imposição
não deixa atrás de si senão cacos de nossa auto-imagem, sobre o racionalista de um modo de ver hierarquizado em tomo de um cen
pano de fundo de um modelo de mundo, da prévia idade moderna, tro que foge para o infinito, por trás do qual se oculta o poder, que
que se estilhaçou. os mecanismos da câmera fotográfica introjetaram. Essa imagem
Em proporção correspondente àquilo que sente como perda, o monocular dita realista entrava em perfeita correspondência com
homem reage e resiste no apego a valores em processo de os sistemas fortemente hierarquizados da linguagem escrita e do
dissolvência. E, entre outros, agarra-se agora justamente àqueles tonalismo na música, assim como correspondia aos critérios de
que são mais capazes de produzir mais-valia ideológica: os valores verdade como registro e documentação de uma realidade visível.
em_blemáticos e divinizados da Grande Arte. É por acaso que, de Contudo, se o registro tido como fidedigno do real era o espe
pois de tudo que o Modernismo fez para dinamitar e demolir as rado na fotografia, o inesperado foi sua possibilidade infinita de
"moedas de prestígio" que sustentavam as encenações burguesas reprodução. O tiro saiu pela culatra. Se a pintura sonhava ser foto
que posavam como Grande Arte, estejamos agora, dos Estados grafia, mal podia sonhar que seria a própria fotografia que aciona
Unidos da América à Itália, da Itália à França, da França à Alema ria a crise dos valores de autenticidade e unicidade sobre os quais
nha, da Alemanha ao Brasil... engolfados nesta onda absurdamente se erigia o "belo" clássico.
Se as contradições não aparecem pela porta da frente, elas
90 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS MÍDIAS 91
penetram sorrateiramente pela porta dos fundos. Não foi pela porta horizonte crepuscular do Modernismo coincidiu C?m o surgimento
da frente da fotografia que as contradições C?meçaram a gritar, de novas tecnologias em crescimento desmedido. E justamente nes
mas pela porta dos fundos da própria arte. E por acaso que as se cruzamento (por volta dos anos 60) que diferentes teóricos hoje
resistências das elites sociais à mudança não se deram em relação à localizam os primórdios do pós-moderno. E, nesses primórdios, a
fotografia, mas em relação à corrosão implacável a que as artes do arte partia na busca de outros caminhos de intervenção: pop-arte,
Modernismo iam submetendo os valores do passado? arte-projeto, happenings, ambientes, instalações...
Enquanto se discutia se a fotografia era ou não arte, desde o Mas não é por essa trilha que pretendo seguir, a de tentar
século passado as artes não iam fazendo outra coisa senão a . rotular e engavetar manifestações que nasciam sob a insígnia da
gradativa e implacável implosão de seus sistemas de codificação heterogeneidade e do provisório. Pretendendo, isto sim, pôr ênfase
herdados do Renascimento, dos suportes e materiais e dos modos na gradual e cada vez mais avolumada consciência, dos anos 70
de fazer arte, em todas as áreas e campos. Desconstruíram a partir para cá, de que estamos diante de um universo diferencial que se
de dentro, utilizando, muitas vezes, os mesmos suportes e aparatos tomou ilegível tanto para as categorias de pensamento próprias da
que pretendiam negar. Caso contrário não haveria implosão, mas idade moderna quanto para as esperanças e utopias que sustentam
um mero saltar fora. os projetos modernistas. Daí a vigência do termo pós (pós-moder
Assistiu-se, assim, a um processo gradativo, mas veloz, de no, pós-histórico, pós-industrial etc).
demolição do passado. Passar a limpo o passadó, processo muito É por isso que, tanto quanto posso ver, o pós-moderno, apesar
diferente de um imaturo e prematuro desprezo pelo passado. Uma de incluir o fenômeno ora corrente da obsolescência programada
espécie de "revirginização" de um território. O que se estava acos das ondas e da moda, não se confunde com um simples modismo,
tumado a chamar de arte, pouco ou nada tinha a ver com esse novo nem se confunde com um novo estilo nas artes, assim como não se
horizonte virgem (ver esta frase de Duchamp: "Não concordo em confunde com uma derradeira crispação de um Modernismo agoni
absoluto com esse negócio de me transformarem em um clássico da zante.
pintura francesa, primeiro por causa da minha resistência em ser Apesar de incluir as interpretações que os novos filósofos pós
um artista como os artistas são concebidos hoje, e a palavra artista modernos fazem dele, o pós-moderno não se reduz a essas interpre
também é uma concepção da qual tentei fugir antes de mais nada"). tações. A homogeneidade e força centralizadora dos discu�sos (ci
Mas simultaneamente aos processos de desconstrução, assis entíficos, estéticos, políticos, ideológicos ...) da idade moderna pro
tiu-se também a processos de reconstrução (a partir de um grau piciavam que esses discursos soassem como vozes da verdade. A
zero) de procedimentos gerados ainda em suportes tradicionais (ver, heterogeneidade e descentramento dos discursos pós-modernos são
por exemplo, Mondrian na pintura, Varese na música, ruptura do dedos apontando para a relatividade e incompletude que carateriza
verso na poesia e do enredo na prosa etc.). Essas criações levaram cada um deles. Hoje sabemos que toda e qualquer interpretação
seus suportes e materiais ao limiar da exigência de aparecimento de depende dos referenciais que sustentam o pensamento de quem in
outros meios para a produção de suas linguagens, ao mesmo tempo terpreta. Daí as indisfarçáveis diferenças entre as interpretações
que geravam novos processos perceptivos e novas formas de sensi francesas, as alemãs, as italianas e as norte-americanas, entre ou
bilidade. tras, do pós-moderno, para não mencionarmos o "jeito bem brasi
De fato, o ponto de chegada desses artistas-antenas coincidiu leiro" com que as discussões sobre o pós-moderno foram se im
com o ponto de entrada de um grande número de novas tecnologias plantando em nosso meio.
que cresceu e continua a crescer em ritmo exponencial. Em síntese: tal como posso ver (e sem esconder a relatividade
da minha visão), o pós-moderno corresponde ao limiar de uma ou
tra era cuja configuração estamos longe de poder delinear. E isso
LIMIAR ANTROPOLÓGICO
Embora complexas, as pedras do jogo parecem se encaixar. O deve assim se dar porque uma das características desta era está
92 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS MÍDIAS 93
provavelmente na impossibilidade.de se representar o mundo como homem busca asilo no passado. Daí os revivais, as retrospectivas,
totalidade unificada por categorias rígidas que gravitam em tomo as nostalgias...
de um centro. É por isso que, sem nenhuma intenção totalizadora, Contudo, tentando agarrar o passado, paradoxalmente é a pró
limito-me a rascunhar aqui alguns dos aspectos sobre os quais pa pria circulação de signos que se ativa. E as florestas de signos em
rece se fundar o caráter radicalmente diferencial do pós-moderno trânsito geram florestas de tempo (presentificação de todos os pas
que, aliás, prefiro chamar de pós-modernidade. sados). Tempo que rola numa rapidez inimaginável. Só que não
rola mais para a frente (como queria a concepção de história vigen
te até o Modernismo), rola para dentro das memórias informatizadas.
FLORESTAS DO TEMPO
Toda linguagem representa o mundo, serve como mapa de• E, nessas memórias, os documentos da (pré) história (pós) vão vi
orientação para o mundo, mas simultaneamente encobre o mundo. rando dados computadorizados, programados, arborizados, conec
Essa é a contradição que encarna e, ao mesmo tempo, descama o tados em redes. Dados programados são dados eternamente
animal humano. Quando as linguagens começaram a crescer e se repetíveis, substituíveis, voláteis. O que chamávamos de realidade
multiplicar (fenômeno que está se tomando cada vez mais evidente ou vida vira rede-teia de conexões. Decifrar a realidade é decifrar
da Revolução Industrial para cá) a função de representação foi suas teias. Ler estruturas e conexões. Apreender interstícios.
cedendo passo à emergência (também cada vez mais evidente) de Se, conforme nos dizia Benjamin, a fotografia e o cinema, por
um quarto reino (reino dos signos) na biosfera. Quanto mais as si mesmos, já levantaram problemas para a estética tradicional, o
linguagens crescem, mais a biosfera vai se povoando de signos e se que dizer agora? Há algumas décadas atrás, antes da implosão ele
transmutando em "noosfera". O exemplo mais recente disso são as trônica, Brecht também dizia:
imagens sintéticas da computação gráfica. Imagens "realistas" de
coisas que não existem no real porque são criadas por sínteses Desde que a obra de arte se toma mercadoria, essa noção ( de
obra de arte) já não se lhe pode mais ser aplicada; assim sendo,
sígnicas. O real é apenas uma das atualizações do possível. Como
devemos com prudência e precaução - mas sem receio - re
ficam, nessa, os valores epistemológicos daquilo que costumáva nunciar à noção de obra de arte, caso desejemos preservar sua
mos chamar de realidade? função dentro da própria coisa como tal designada. Trata-se de
i'
Ora, esse universo noosférico é ainda demasiadamente novo uma fase necessária de ser atravessada sem dissimulações; essa
para que nele nos sintamos em casa. O homem se sente e�tranho no virada não é gratuita, ela conduz a uma transformação funda
próprio ninho que criou, além de que as linguagens parecem estar mental do objeto e que apaga seu passado, a tal ponto que, caso a
crescendo muito mais velozmente do que a capacidade humana de nova noção deva reencontrar seu uso - e por que não? - não
adaptação a esse crescimento na readequação de seus valores éti evocará mais qualquer das lembranças vinculadas à sua antiga
cos e estéticos. Daí a face absurda e apocalíptica com que o mundo significação.
se nos apresenta e nossa revolta contra o fato de que tal crescimen
to coexista ainda com a miséria, a fome, violência, a salvageria e os E por que não? É o caso de repetir com Brecht. Embora os
mais danosos irracionalismos. promotores de festas/espetáculos e os mercadores continuem suas
Por outro lado, enquanto a biosfera se constitui em território transações apoiados nos valores e aparatos remanescentes das an
de habitação, o reino dos signos é território em trânsito. Não pode tigas significações da arte, por meandros insuspeitos brotam �eres
mos ocupá-lo. São os signos que transitam e nos atravessam humanos sensíveis e sintonizados nesta nova era, "artistas" que
ininterruptamente por instantes evanescentes. E, nisso, é a noção sabem farejar, sem pânico, alarido e sem desvario, o grande núme
do tempo como duração e da história como progressão linear que ro de tarefas para a sensibilidade que os trânsitos e as florestas de
são levadas de roldão. O futuro é improvável demais e o presente tempo hoje colocam diante de si.
complexo demais para nos darem acolhida. Exilado de si mesmo, o Agonizam os antigos valores, transformam-se os suportes e
94 LÚCIA SANTAELLA
fi_sgou meu interesse de maneira obstinada. Ao final do estágio, tive Introduzir o pós-moderno através do jogo dessas variações de
ª!nda a oportunidade de p��icipar de um simpósio sobre essa ques posição, é já uma maneira de evidenciar, de saída, que se trata de
tão que contou com a part1c1pação de professores de várias univer um debate controverso e ardiloso justamente porque o fenômeno
sidades americanas. Nas artes, nas humanidades, nas ciências soci sob discussão deve estar entre os mais heteróclitos e desafiadores
ais, pelos quatro cantos dos Estados Unidos, não se falava em ou que já surgiram nos últimos tempos. Não obstante a heterogeneida
tra coisa. Voltei desse estágio com a certeza de que não se tratava de, que é sua marca registrada, há alguns traços comuns que ajuda
de u� simples modismo, mas de um problema que havia chegado ram a delineiar seu perfil. Todos vieram a concordar, por exemplo,
para ficar. De lá para cá, em nenhum momento o curso da história com a inevitabilidade da evidência de que o projeto da modernidade
deixou de confirmar essa suspeita. começou a aparecer como profundamente problemático. Tornou-se
Passei os meses imediatamente seguintes no B rasil, tenninan muito difícil continuar acreditando nas suas "supremas ficções".
do d� ler a extensa bibliografia que havia trazido comigo e iniciei a Seus estilos de batalha, tidos como subversivos, chocantes, toma
escntu ra de um artigo, sintomaticamente denominado Pós ram-se canônicos; sua vocação heróica, salvacionista, perdeu o vi
m �dern(dade: algun� pingos nos is (inserido neste volume). En gor; suas crenças messiânicas, asfixiadas pela ingenuidade, esgo
sa10 polem1co, na ansiedade de tentar resgatar o assunto da levian taram-se no vazio.
dade com que estava sendo, de modo geral e com raras exceções Deixando marcas, em primeiro lugar, nas artes, literatura e
tratado no Brasil, acabei dando a ele um tom paradoxalmente mo� arquitetura, o mal-estar, e até mesmo revolta para com os estilos e
?e;?o, comb�ti_vo. Falt?u-me a ironia necessária para colocar as ideologias da modernidade, foi se espalhando por todas as esferas
ideias no espmto do pos-moderno. Não obstante seu teor crítico da cultura, das políticas e até mesmo das ciências. As grandes li
quase conjuntural, seu conteúdo não envelheceu . Com uma mudan� nhas de demarcação, que separavam a cultura superior da cultura
ça sutil ?º to� , es�ecialmente na veemência, que certamente de massas, o erudito do popular, o crítico do criativo, o estético do
abrandana, assmo, amda hoje, embaixo das mesmas idéias que Já político, foram perdendo a nitidez, exigindo formas de atuação ade
defendi . quadas a um quadro de valores em crise. O discurso do conheci
A CRISE DA MODERNIDADE mento não foi menos afetado. Em meio a disciplinas acadêmicas,
ainda sobreviventes dos propósitos iluministas, projetos extraordi
As referênci <l:s bio�bibliográficas acima justificam-se porque nariamente novos emergiram. Onde localizar o trabalho de M.
_ Foucault, por exemplo, na filosofia, história, teoria social ou ciên
n �o pretendo re�et1r aqm o que já está discutido lá. Apenas retoma
r�1, de modo mmto breve, o que chamei de diagrama das controvér cia política? E o que dizer da crítica literária de um Fredric J ameson
sias, �orque ele funciona com bastante propriedade para mapear a ou de um Edward Said, para ficarmos em poucos exemplos?
questão, marcand_o de �aneira ilustrativa as diferentes posições que Embora sua explicitação mais socialmente visível só tenha se
podem ser assumidas diante do debate. Essas posições se resumem dado nos anos 70, a emergência do pós-moderno já havia começa
l
numa espécie de jogo de verso-reverso que assim se expressa: ( 1 ) do a se fazer sentir desde fins dos anos 50 e inícios dos 60. Segundo
aq�eles que assumem uma posição progressista pró-pós-moderna, 1 Huyssens, no seu antológico ensaio Mapping the postmodern
�ti-moderna; (2 � os que assumem uma posição reacionária pró ( 1 984: 1 6), o pop, no sentido vasto, foi o contexto no qual a noção
pos-moderna: �ti-moderna; (3) então, a posição progressista pró de pós-moderno primeiramente tomou forma. Mas foi na arquitetu
l
moderna, anti-pos-moderna; (4) essa mesma posição na sua versão ra que as presunções proto-políticas e as emoções do profundo e do
conservadora; (5) então, as posições daqueles que não aceitam nem monumental, que marcaram o alto modernismo, desabaram frente
mesmo o tenno "pós" como digno de qualquer atenção: (5 . 1 ) os aos jogos de imaginação e aos cometimentos em relação ao super
q;ie têm �ma_ inclinação progressista, de um lado, e (5 .2) os que ficial (em todos os sentidos dessa palavra) que o pós-moderno pôs
tem uma mclmação reacionária, de outro lado (ver J ameson 1 984.). em curso (Jameson l 984b :XVIII). De mero estilo na arquitetura e
�
l_
98 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS MÍDIAS 99
nas artes, seu espectro de reverberações foi se dilatando até chegar tradição iluminista, e animado pela crença na eficácia e saneamen
perto do consenso de que se trata de um novo ponto de partida na to da ação comunicativa, percebeu que, na Alemanha, as ondas
cultura, de um giro paradigmático, de realinhamentos político-so pós-modernistas, sob o disfarce de uma nova ruptura, estavam, na
ciais, de uma mudança de sensibilidade como parte de uma trans realidade, aliadas a forças regressivas e conservadoras. A pertinência
formação cultural de grande magnitude. da crítica, por ele desferida contra o pós-moderno, só pode ser bem
A um olhar retrospectivo, fica notável que a margem de influ compreendida à luz do projeto inteiro de sua teoria social crítica,
ência do pós-moderno amplificou-se, de fato, quando vozes discor embasada na defesa da modernidade iluminista, modernidade esta
dantes de intelectuais renomados se fizeram ouvir. Tomou-se fa que não se identifica com o modernismo estético dos críticos literá 1
mosa a querela, nem sempre direta, mas sempre reverberante, entre rios e historiadores da arte. Esquematizando, suas questões foram 1
Habermas e os franceses. Não obstante o caráter sui-generis e alta as seguintes: como o pós-modernismo se relaciona com o moder
1
mente polêmico da defesa habermasiana do projeto emancipatório nismo? Até que ponto as formações sociais e culturais dos anos 70 �
da modernidade, fiel aos ideais iluministas, sua intervenção injetou podem ser caracterizadas como pós-modernas? Até que ponto o
!
densidade política no debate, discutindo com procedência as possí pós-modernismo é uma revolta contra a razão e o iluminismo, e em
veis alianças do pós-moderno com o neoconservadorismo. Foi um que ponto tais revoltas se tornam reacionárias?
passe de mágica. Cientistas políticos, sempre tão sisudos e solenes, A base da controvérsia que Habermas gerou com os franceses
avessos aos descometimentos que devem ser deixados aos artistas, repousa, antes de tudo, na concepção radicalmente distinta de
aderiram à questão, entrando com certa discrição na polêmica. modernidade professada por cada um dos lados dos debatedores.
Vale a pena, para se ter uma idéia do campo de tensões, sinte Segundo Huyssens (ibid.: 33) muito bem nos apresenta, a visão
tizar, em pinceladas breves, as posições de alguns dentre aqueles francesa da modernidade começa com Nietzsche e Mallarmé e cor
que esse debate contribuiu para tornar famosos ou mais famosos, responde ao que a crítica literária e artística veio chamar de moder
em certos casos. Andreas Huyssens, editor da New German Criti nismo, uma questão prioritariamente estética ligada às energias li
que , que publicou alguns números monográficos sobre moderno e beradas por uma destruição deliberada das forças entorpecedoras
pós-moderno, na década de 80, postulou (1984:48-50), por exem das linguagens cristalizadas. Para Habermas, a modernidade recua
plo, que até a melhor tradição do Iluminismo que ele trata de resgatar e
reinscrever dentro do discurso filosófico atual numa nova forma.
o pós-modernismo não pode ser simplesmente percebido como Enquanto os franceses têm uma visão estereotipada do
uma seqüela ao modernismo, como último passo na revolta sem iluminismo, reduzindo-o, ao fim e ao cabo, à história do terror e
fim do modernismo contra si mesmo. A sensibilidade do pós encarceramento que vai dos jacobinos, via os meta-discursos de
moderno do nosso tempo é diferente tanto do modernismo quan Hegel e Marx, até o Gulag soviético, Habermas, por seu lado, con
to do vanguardismo precisamente porque coloca a questão da cebe a visão francesa da modernidade como sendo, na realidade,
tradição e conservação cultural, do modo mais fundamental, como anti-moderna ou pós-moderna, especialmente devido à relativização
uma postulação estética e política. (...) O pós-modernismo está em que ela coloca os poderes da razão. Seria de se estranhar que
longe de tornar o modernismo obsoleto. A crise do modernismo
pudesse haver acordo entre esses dois lados do debate.
vai além da crise de suas correntes internas que o ligam à ideolo
Vistos ambos através de um olhar mais isento, numa generali
gia da modernização. Na era do capitalismo tardio, é também
uma nova crise da relação da arte com a sociedade. (...) Uma zação um pouco grosseira e até mesmo abusiva, pode-se dizer que,
cultura pós-moderna, emergindo dessas constelações políticas, para os franceses, a linguagem é a fonte de todos os aprisionamen
sociais e culturais, terá de ser um pós-moderno de resistência. tos, de um lado, e das possíveis rupturas e subversões, de outro. É
sobre ela que devem se voltar todas as lutas, pois é dela que advêm
A posição de Habermas é bem mais complexa. Afiliado à todos os efeitos, tanto psíquicos quanto culturais e políticos. Que
.,.
.1
J
-
1 00 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS M Í DIAS 101
se chame isso de moderno ou pós-moderno, a eles pouco importa. esferas do social quanto nas relações entre as culturas do primeiro
Para Habermas, por seu lado, modernidade significa crítica e eman e outros mundos.
cipação humana. Sua posição, aliás, difere dos frankfurtianos an
teriores, particularmente Adorno e Horkheirner, pois estes desen
Mt:DANÇAS PAR.\DIGMÁTICAS
volveram, na sua Dialética do esclarecimento ( I 985), uma visão Marcante, e provavelmente a posição que tem se provado cada
da modernidade que está muito mais próxima da sensibilidade fran vez mais atual, é a de Fredric Jameson nos Estados Unidos que,
cesa do que de Habermas. De qualquer modo, concordando-se com desde 1983 , tem dado ao termo uma compreensão ampla e profun
Habermas ou não, na sua convicção de que o projeto moderno ain damente enraizada nas transformações dos modos de produção no
da está por ser completado, ele sempre esteve certo na percepção de capitalismo tardio. Dizia ele (1983: 113-117):
que o pós-moderno está longe de ser uma simples controvérsia so
bre estilos artísticos, ampliando-se para uma questão de política e Pós-moderno não é apenas uma outra palavra para a descrição de
cultura no geral. um estilo particular. É também um conceito periódico cuja fim
Conforme já mencionei com bastante ênfase, no artigo escrito ção é relacionar a emergência de novos caracteres formais na
em 1985, cada país tem dado ao pós-moderno uma versão que lhe é cultura com a emergência de um novo tipo de vida social e uma
própria, principalmente porque a compreensão do que seja o pós nova ordem econômica - ou seja, aqui lo que é sempre
moderno depende do perfil que o modernismo adquiriu e das carac eufemisticamente chamado de modernização, sociedade pós-in
terísticas ideológicas e políticas com que se revestiu, em cada país dustrial ou de consumo, sociedade das mídias ou do espetáculo,
em que se desenvolveu. A concepção do pós-moderno é fortemente ou capitalismo multinacional. ( . . . ) Tanto não-marxistas quanto
marxistas chegaram ao sentimento geral de que, em algum pon
dependente desses fatores. A maneira como o pós-moderno veio
to, após a segunda guerra mundial, uma nova espécie de socieda
sendo tratado no Brasil, por exemplo, uma maneira de um modo de começou a emergir.
geral, digamos, com raríssimas exceções, leviana e até irresponsá
vel, é, de um lado, sem dúvida, fruto de seqüelas deixadas por
discordâncias não resolvidas relativas ao modernismo brasileiro, Cada vez mais intensamente, de fato, tem-se firmado a c�rte
de outro lado, deve ser devida a uma tendência à leviandade pró za de um cenário social em mutação, devido prioritariamente a fa
pria da cultura brasileira, mesclada agora ao estado de transe da tores de ordem econômica. Um sistema financeiro altamente instá
nossa conjuntura política, desde a morte de Tancredo Neves, que vel e integrado combina-se com desequilíbrios internos e globais,
tem tirado dos intelectuais e pesquisadores não apenas os meios no quadro da nova ordem internacional, "balizado pelo declínio da
mais elementares de subsistência da própria pesquisa, mas tam hegemonia norte-amerícana, pela emergência de blocos regionais
bém, e o que consegue ser até pior, as condições de ânimo para e, recentemente, pelo fim da Guerra Fria", conforme Julio Cesar
pensar questões que, pretensamente, seriam de exclusiva responsa Castro descreveu, no seu projeto de pesquisa sobre as transforma
bilidade do primeiro mundo. Afinal, sempre temos a desculpa de ções do capitalismo na pós-modernidade, que está sendo desenvol
que sequer entramos na modernidade, o que toma supérfluo pensar vido na Universidade de North Carolina, USA.
tudo o que possa porventura vir depois, em mais um exemplo dessa É impressionante notar como o ritmo das mudanças tem-se
confusão e identificação simplificada, e sempre infeliz, entre feito numa aceleração inaudita e é quase assustador se dar conta da
modernidade econômica, política, cultural e estética, como se todas rapidez com que análises econômicas e sociais têm envelhecido e se
fossem misturas de um mesmo saco. Irônica e paradoxalmente, uma tomado obsoletas. Só um exemplo já será aqui suficiente para de
das questões a serem revistas no contexto da pós-modernidade é monstrar isso, pois eles existem em abundância. Em abril de 1990,
i
1
justamente a da função e espaço da cultura ela mesma, do seu papel Abraham Lowenthal, um dos mais conhecidos estudiosos de temas
�
histórico e dialeticamente único, tanto na relação com as demais latino-americanos nos Estados Unidos, publicou, na Folha de S.
1·
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102 LÚCIA SANTAELLA
CULTURA DAS MÍDIAS 103
danças co_ ntínuas da ordem econômica que parecem estar hoje dan caos determinista, na matemática, as pesquisas dos sistemas auto
do razão a Jameson na sua insistência, desde fins dos anos 70, na organizativos, estruturas dissipativas, investigações da ordem a
impossibilidade de se separar os fatores estéticos e culturais dos partir do caos, no mundo físico, rebatem no avanço das ciências
movimentos econômicos, pela força que estes têm para trazer con cognitivas, que estão ganhando um novo estoque de idéias a respei
seqüências de todas as ardens, inclusive psíquicas. to de representações e processos, assim como estão aparecendo novas
Olhando-se para trás, é possível chegar a caracterizar o perfil metodologias para o teste de hipóteses através do uso da simulação
com que o pós-moderno se apresentou em cada uma das duas últi computacional, tudo isso aliado a mudanças profundas nos modos
mas décadas, assim como o perfil que já começa a se delineiar de viver, pensar, produzir e reproduzir conhecimento graças às con
nestes anos 90. Em 70, as artes e a arquitetura tomaram a dianteira tinuamente renovadas tecnologias de apoio que não cessam de se
na cena. Essa década correspondeu à visão que se tornou, por al aprimorar. Trata-se decididamente de uma nova paisagem de mun
gum tempo, dominante de que o pós-moderno era mais um estilo ou do que tem exigido modificações profundas no nosso intelecto e
crispação na seqüência de rupturas que caracterizou a tradição do sensibilidade.
modernismo. Apenas uma tendência a mais para entrar na cadeia Mas como está ou fica a semiótica nessa paisagem, o leitor já
da obsolescência programada das modas estéticas. As característi deve, Qá algum tempo, estar se perguntando. Para ensaiar respos
cas aparentes dessa tendência estavam no pastiehe ou esquizofrenia tas, tenho de apresentar, de modo breve, que posição tenho assumi
das citações, conforme Jameson viria batizar, mais tarde. do diante desse debate e que tipo de interpretação tenho feito da
Então, os anos 80 viram nascer o que se pode chamar de pós questão. Disso depende a maneira como vejo o papel que a semiótica
moderno de resistência, uma reação crítica a o cinismo e tem desempenhado e pode ou não desempenhar nessa paisagem em
mutação.
f
1 04 LÚCIA SANTAELLA
CULTURA DAS MÍDIAS 105
Num ensaio escrito em 1986, denominado "A Outr(a)idade túrbio narcísico que ela tende a gerar e que assim se expressa: "se
do mundo", publicado originalmente no Folhetim (inserido neste os antigos valores ruiram e a realidade não se estabiliza num perfil
volume), retomei a discussão do pós-moderno iniciada no artigo definido, que cada um se encapsule na esfera de seu mundo pró
so�re "os pingos nos is", amadurecendo e explicitando de modo prio, embevecido diante de um espelho intocável pelas máculas do
mais claro meu entendimento do problema. Justifico, mais uma vez real". É impressionante o número de intelectuais e artistas que tem
essa autocitação porque, de lá para cá, esse entendimento não so� se acomodado no regozijo que esta projeção imaginária lhes dá.
freu -�udanças _substanciais. Radicalizei tanto a questão naquela Mas, do outro lado do espelho, no qual se movimentam os homens
ocas�ao, que hoJe, passado o tempo, ela soa mais compreensível e e mulheres de ação, a situação não é nada melhor. Ao contrário.
convmcente do que soava então. O que era, há seis anos' mero Basta ver a degradação e crise, muitas vezes escandalosa (esse não
pressentimento e ousadia para expressá-lo, hoje aparece como é um privilégio brasileiro), dos políticos no mundo.
confirmável, uma vez que as interpretações dos fatos vindas das Enfim, trata-se de uma passagem (a idéia de limiar implica a
mais variadas fontes, parecem estar correndo, com certa constân de passagem) dificil, exigindo poderes inéditos para a reinvenção
cia, na direção do que lá enunciei. Poderia ter se dado o contrário da ética à luz não da moral, pois esta é sempre conservadora, mas
mas, tanto quanto posso ver, não é esse o caso. da estética, tal como foi concebida por C. S. Peirce (ver, sobre isso,
O que lá foi afirmado, dentro do subtítulo de "Limiar antro Santaella 1994b), na qual reina o que é pura e simplesmente admi
pológico", punha ênfase na gradativa e cada vez mais avolumada rável, o que causa admiração para o bem ou para o mal, e, por isso,
consciência dos anos 70 para cá, de que estamos diante de um uni produz atração ou repulsão. (Certo deve estar o MIT ao colocar
verso diferencial que se tornou ilegível tanto para as categorias de cientistas junto com artistas, ligados pela simples justaposição, sem
pens�ento próprias da idade moderna quanto para as esperanças nenhum vínculo predeterminado, provavelmente para que o cientis
e utopias que sustentaram os projetos modernistas. ta possa estar exposto à convivência com mentes e sensibilidades
Nestes últimos anos, desde que a conclusão acima foi afirma que não se deixam guiar senão pelos comprometimentos diante do
da, tenho _ colecio�ado re�erências de pensadores, críticos, cientis admirável).
tas ou artistas, cuJa maneira de ver e até mesmo de conceber o pós De fato, o pós-moderno, como o próprio prefixo configura,
moderno apresenta similaridades com a minha. É certo que essa pressupõe, evidentemente, um moderno que lhe tenha sido anterior.
visão é bastante vaga, metafórica, mas não há condições de preci Que moderno é esse? Corresponde ao que foi chamado de moder
sar seu caráter visto que ainda vago, indefinido, em processo, sem nismo na literatura, artes e arquitetura, ou não? Além disso, há
nada ?e �efiniti\o é o próp�o fe?ômeno que está sendo apreciado, muitos termos envolvidos : moderno, pós-moderno, modernismo,
e, mais amda, nos estamos 1mphcados como partes integrantes do modernidade, pós-modernidade. Que relação há entre eles?
processo. São mutações pelas quais nós mesmos estamos passan A interpretação, agora em termos de periodização, que fui
do. Não há como "separar o dançarino da dança". desenvolvendo para essas questões difere ligeiramente do que têm
Por ?utro lado, a visão é também polêmica. Como postular a sido as interpretações correntes do pós-moderno. Para começar,
A prefiro a denominação de pós-modernidade em lugar de pós--mo
emergenc1a de uma nova era, quando é o problema da história e do
te�po que está justamente sob questão? A palavra "era", de fato, derno . Penso, aliás, que o nome que se escolhe não é casual, nem é
esta sobrecarregada de signifi cados que não se quer transmitir aqui. sem conseqüências. A expressão pós-moderno está quase sempre
De todo modo, no entanto, não vejo como renunciar à idéia de um aliada a uma concepção do fenômeno dentro de uma temporalidade
novo limiar. Que características esse limiar tem ou terá é difi histórica que se insere na cadeia seqüencial das vanguardas históri
cil delinear. É certo também que um grande problema iode ser cas do modernismo, o prefixo "pós" indicando uma reação opositiva,
mas ainda remetendo à sua inserção dentro da lógica daquilo que
.{
1 06 LÚCIA SANTAELLA
CULTURA DAS MÍDIAS ! 07
mfo �a�1c_a, telemática, pós-cultura de massas, era pós-industrial, derrisão de todo um universo de formas e valores que haviam exer
_ cido sua hegemonia sobre a cultura durante séculos.
pos-h1stonca etc.
Pos?-'l�r periodi zações é sempre esquemático, quase ingênuo. Na ciência, com a teoria da relatividade, irrupções similares
!oda yenod1zação e�v�lve o esquecimento das exceções que são, também surgiram para abalar os pilares que sustentavam o edificio
mvanavelmente, m�1s ncas do que_ as regras. A divisão acima pro newtoniano e, na filosofia, nada menos do que Nietzsche e, então,
posta, no en�to, so pretende funcionar como uma hipótese de tra Freud funcionaram como verdadeiras minas subterrâneas dinami
balho, um d1�grama sugestivo para nos ajudar a pensar muitos dos tando as certezas autoconfíantes da razão exclusivista.
problemas diante dos quais o pós-moderno ou pós-modernidade Em suma, nos mais variados campos, o modernismo se carac
tem nos colocado. Senão vejamos. terizou como um grande movimento crítico, desconstrntor dos prin
Numa síntese grosseira, a modernidade teve início quando cípios, certezas e valores que deram sustento a toda uma era, a
com_eçar� a �er semea�os os pri�eiros germens do modo de pro moderna. Funcionou como urna espécie de "revirginização" de ter
duçao cap1tahsta, ou seJa, na cnse do feudalismo. Esse período ritório, limpeza e preparação do terreno para o que estava por vir,
algo que até hoje não está ainda claramente definido, mas que não
I
CULTURA DAS MÍDIAS !09
108 LÚCIA SANTAELLA
tores e obras como modernistas ou pós-modernos. Há uma Em algum as de suas primei ras verten tes, de extr � ção
leVJana,
sobreposição de forças, nem sempre visíveis, ligando o modernis linguística, especialmente � saus�uriai:ia, a soviétic�; � hjelms
mo à pós-modernidade. A única grande diferença entre ambos está das teonas gre1ma s1anas, a s m1ot1ca nasceu com
e a primeira fase � �
apenas e muito mais na perda das ilusões heróicas, dos ideais de No campo das c1enc1a s da lmgua gem, estrutu
0 estruturalismo.
?
grandeza e da agressividade combativa, ainda infantis e mesmo similar es àquele s que o modern ismo p �o
ralismo produziu efeitos
adolescentes, dos modernistas, perda esta que caracteriza uma duziu nas artes e literatura. Tanto isso é verdade que, na �t1ga
mudança substancial sob o nome de pós-modernidade. União Soviéti ca, o Círculo Lingüístico de Praga, o Formalismo
Se não há uma linha divisória muito rígida separando o mo russo e as revoluções que se processaram na poesia, teatro, artes
dernismo da pós-modernidade, há, no entanto, a possibilidade de gráficas, pintura etc. foram to�o� si'!1ultâne�s. Não é difícil _afir
demarcação do momento em que ruiram as ilusões salvacionistas mar que há alguma relação de s1milandade unmdo o estruturalismo
do modernismo. Essa demarcação foi dada pelo movimento pop e nas ciências humanas ao modernismo nas artes. A vocação mode
pela insurreição pós-moderna na arquitetura. Nessa medida, pode lar do estruturalismo ecoa na vocação programática do modernis-
se dizer que aquilo que recebeu o nome de pós-moderno é um fenô mo, por exemplo. _ . _ ,
meno passageiro e provisório, de fato, um novo estilo, até mesmo Também não fica dificil concluir, a partir disso, que o pos-
uma moda. Não se confunde com a pós-modernidade concebida estrnturalismo está para o pós-moderno, assim como o estrutura
como uma era, mas corresponde, provavelmente, à primeira toma lismo está para o moderno. As denominações não são c�suais. E �as
da de consciência de que estamos numa outra idade da cultura e carregam significados. Não é à toa que pós-estrnturahsmo_ e pos
possivelmente do homem. modemo, não obstante suas distintas paternidades e os d1stmtos
Funcionando ainda corno marca explícita dessa nova era, apa campos a que se aplicam, apresentam o _ mesmo prefixo. De res!o,
recem os sinais das mutações provocadas pela Revolução Eletrôni há ainda uma coincidência temporal umndo ambos. Tanto o pos
ca, com suas máquinas inteligentes, trazendo conseqüências para modemo quanto o pós-estruturalismo tomaram-se evidentes nos
as relações do homem com o trabalho, o lazer, a produção do co anos 70.
nhecimento, das linguagens e mensagens, assim como para as rela A expressão pós-estruturalismo refere-se, como se sabe, a uma
ções e para a comunicação dos homens entre si (essas mutações, série de autores diferenciados, situados na França, que, retomando
aliás, têm sido tão profundas que não tem faltado retórica às inter a herança saussuriana, aplicaram-na, transformando-a de modo
pretações apocalípticas de seus possíveis efeitos sobre nossas vi crítico e quase crísico, a uma série de campos diversos . Pod�-se
das e nossos sonhos). Enquanto a Revolução Industrial marcou o dizer, desse modo, que J. Derrida é um filósofo pós-estruturahsta,
advento do modernismo, pode-se dizer que a pós-modernidade está que L. Althusser é um teórico social pós-estruturalista, que M.
sendo marcada pela Revolução Eletrônica, além ou paralelamente Foucault é um filósofo-historiador pós-estruturalista, assim como
às marcas das mudanças surpreendentes por que têm passado os se pode dizer, last but nol least, que J. Lacan, pelo menos _ na sua
modos de produção capitalistas ou não, assim como os sistemas fase do registro simbólico, é um psicanalista pós-estruturalista, o�
políticos. Se não é pecar por excesso de otimismo, pode-se dizer melhor, um leitor freudiano do estruturalismo, mais do que um lei
que, na pós-modernidade, os sistemas políticos autoritários toma tor estruturalista de Freud.
ram-se objetos de abominação. Nesse caldeirão de pensamentos rigorosamente férteis e
Tendo esse panorama esquemático como pano de fundo, vigorosamente críticos, germinou o que também se poderia chamar
I
1 10 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS MÍDIAS 11 1
de uma semiótica pós-estruturalista, especialmente nos trabalhos na sua obsessão com a écriture e a escrita, alegoria e retórica, e, no
de J. Kristeva e R. Barthes. Mas a mais formidável repercussão do seu deslocamento da revolução e da política para o estético, está
pós-estruturalismo francês viria a ser aquela que seria produzida enraizado na tradição modernista ela mesma. Huyssens continua:
sobre a cultura das humanidades, especialmente literária, nos Esta Penso que devemos entreter a noção de que, ao invés de ofere
dos Unidos. Sendo despertada inicialmente nas elites de Yale, o cer uma teoria do pós-moderno e desenvolver uma análise da cultu
fenômeno rapidamente se espalhou como uma verdadeira epidemia ra contemporânea, a teoria francesa nos fornece uma arqueologia
(com sentido não pejorativo, mas também pejorativo, não raras da modernidade, urna teoria da modernidade no estágio de sua exaus
vezes) por todos os departamentos de literaturas e literatura com tão. É como se os poderes criativos do modernismo tivessem emi
parada dos Estados Unidos. Aclimatado e acondicionado ao con grado para a teoria e chegado à sua completa autoconsciência nos
texto norte-americano, o fenômeno recebeu a denominação de textos pós-estruturalistas . A despeito de seus laços com a tradição
deconstruction ("desconstrução"). da estética modernista, o pós-estruturalismo oferece uma leitura do
Ora, a onda desconstrucionista, na América, coincidiu com a modernismo que difere substancialmente daquela oferecida pelo New
efervescência dos debates sobre pós-moderno. Era essa composi Criticism, Adorno ou Greenberg. Não é mais o modernismo da "era
ção que borbulhava por todos os seus pontos cardeais em meados da ansiedade", o modernismo torturado e ascético de um Kafka,
dos anos 80. A conclusão óbvia, que se pode extrair disso, é que um modernismo de negação e alienação, ambigüidade e abstração,
desconstrução ou pós-estruturalismo e pós-moderno são uma só e o modernismo da obra de arte fechada e acabada. É sim um moder
mesma coisa, ou, no mínimo, de que se trata de fenômenos muito nismo de transgressão lúdica, de um desenrolar ilimitado da
similares. De fato, desde os anos 70, emergiu um consenso de que, textualidade, um modernismo confiante na sua rejeição da repre
se o pós-moderno representava uma vanguarda contemporânea nas sentação e realidade, na sua negação do sujeito, da história e do
artes, o pós-estruturalismo deveria ser seu equivalente na teoria sujeito da história; um modernismo bem dogmático na sua rejeição
critica. Tal paralelismo foi favorecido peias teorias e práticas da da presença e no seu elogio sem fim das faltas e ausências, traços
textualidade e intertextualidade que borraram as fronteiras entre o que produzem, não ansiedade, mas fruição.
texto literário e o texto critico. Não era de se estranhar que os no Mais adiante no mesmo texto, no entanto, Huyssens modaliza
mes dos pós-estruturalistas franceses ocorressem com gritante re sua posição, inserindo, enfim, o pós-estruturalismo no pós-moder
gularidade nos discursos do pós-moderno. no. Se o pós-estruturalismo for visto como um fantasma do moder
Estranhamente, pelo menos à primeira vista, no seu artigo nismo na vestimentá da teoria, ele argumenta, então isso seria pre
sobre pós-modernidade, Huyssens (1984:3 8-40) discorda dessa iden cisamente o que faz o pós-moderno. Um pós-moderno que se .extrai
tificação, quase óbvia, do pós-moderno com o pós-estruturalismo. agora não de urna rejeição ao modernismo, mas antes, se apresenta
Segundo ele, o pós-estruturalismo está muito mais próximo do como uma leitura retrospectiva que, em alguns casos, está intelfa
modernismo do que é usualmente assumido pelos advogados do mente alerta quanto às limitações do modernismo e das ambições
pós-moderno. Postula, então, que o pós-estruturalismo é um dis políticas que falharam. O dilema do modernismo foi sua inabilida
curso de e sobre o modernismo e que, se formos localizar o pós de, a despeito das boas intenções, para construir uma critica efetiva
moderno no pós-estruturalismo, isso deve ser encontrado apenas da modernidade burguesa e modernização. Huyssens conclui, en
nos modos como as várias formas do pós-estruturalismo abriram tão, que o gesto pós-estruturalista, na medida em que abandona
novas problemáticas no modernismo, reinscrevendo-o nas forma toda pretensão de critica, que vá além dos jogos de linguagem, da
ções discursivas do nosso próprio tempo. Todavia, se é verdade epistemologia e do estético, parece, pelo menos, plausível e lógico.
que o pós-moderno é uma condição histórica que o torna suficien Visto sob essa luz, o pós-estruturalismo parece selar o destino do
temente único e diferente da modernidade, então é remarcável per projeto modernista o qual, mesmo quando se limitou à esfera artís
ceber o quão profundamente o discurso critico pós-estruturalista, tica, sempre carregou a visão de uma redenção da vida moderna
1 12 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS MÍDIAS 1 13
através da cultura. Que tais visões não são mais possíveis de serem nenhuma, como campo de saber, para não dizer ciência, porque
sustentadas, pode estar no coração da condição pós-moderna, com esta denominação me abrigaria a uma longa discussão, a semiótica
pleta ele. não se situa mais no paradigma do moderno. Sua condição
Embora a discussão de Huyssens soe muito engenhosa, penso interdisciplinar, sua indisposição para a compartimentalização, sua
que diante dos impasses, que ele aí apresenta, tão comuns nessa dificuldade para encontrar espaço nas estruturas curriculares das
tentativa de se demarcar precisamente as linhas divisórias entre universidades tipicamente modernas, coloca-a com nitidez dentro
modernismo e pós-moderno, é que se mostra mais frutífera e flexí do paradigma que E. Morin chamou de paradigma da complexida
vel uma periodização como aquela que apresentei anteriormente, de, e que aqui estamos chamando de pós-modernidade.
em que não há uma separação completamente rígica entre o moder E por essas razões que não parece fazer sentido uma tendên
nismo nas artes e literatura e a pós-modernidade. Ou melhor, o cia que está surgindo na Europa atual de se tentar pensar que ca
modernismo corresponderia muito mais a um período extremamen racterísticas teria uma semiótica pós-moderna, concluindo-se, en
te rico e conturbado de desconstrução da modernidade e, portanto, tão, que tal semiótica seria aquela que estaria buscando retomar as
de transição entre a era moderna e a pós-moderna do que a um raízes filosóficas das linguagens, raízes que, como se sabe, o estru
período contra o qual o pós-moderno se insurge. Afinal, se assim turalismo, com maior ou menor intensidade, dependendo do caso,
fosse, quantos pós-modernos não existiriam dentro do próprio mo abandonou .
dernismo? O primeiro problema, evidente na tendência acima, é o de que
Quando digo "desconstrução da modernidade", evidentemen ela parece ignorar que tal retorno às raízes filosóficas da lingua
te a palavra "desconstrução" remete à denominação que o pós-es gem já foi feito pelo pós-estruturalismo. Que semiótica pode ter
truturalismo recebeu nos Estados Unidos. Isso poderia levar à in ignorado a grande repercussão que o pós-estruturalismo provocou,
terpretação de que estou tomando o pós-estruturalismo como sinô em primeiro lugar, na própria semiótica? Em segundo lugar, essa
nimo de modernismo, uma vez que é ao período de transição do colocação do adjunto pós-moderno à semiótica, já é, por si mesma,
modernismo que vim atribuindo a função da desconstrução dos indicativa de que se trata de uma concepção do pós-moderno como
valores modernos. Pode até ser que assim seja, mas não estritamen uma moda da qual a semiótica não poderia estar fora. Ou seja, uma
te, visto que, repito mais uma vez, tentar delimitar com justeza até espécie de revigorante para manter a sua juventude.
onde vai o modernismo e onde começa o pós-moderno, assim como Enfim, se a questão é, de fato, a do enraizamento da semiótica
rotular com precisão que obras são modernistas e, conseqüente na filosofia, na semiótica de C.S .Peirce, filosofia é o que não falta.
mente, antigas e quais já podem receber o passaporte de pós-mo E já que chegamos a C. S . Peirce, cumpre dizer que, embora ele
dernas, não passa de discussão bizantina. tenha sido um pensador que, por fatalidade biográfica (1839- 1 9 1 4),
Se tomarmos a semiótica como referência, por exemplo, onde só pode ter sido um homem do século XIX, seu pensamento, no
se localiza sua, versão pós-estruturalista? No modernismo ou no entanto, o levou além de si mesmo e do seu tempo. Não há mina
pós-moderno? E em situações como essa que a noção de modernidade mais rica de sugestões para se pensar as hipercomplexas problemá
como uma era tem muito mais valor operativo do que a noção de ticas da pós-modernidade do que a filosofia da linguagem e filoso
pós-moderno, que, de resto, não consegue escapar de sua sina de fia da ciência de Peirce. Trabalhando com conceitos, tais como o de
mera moda intelectual. Na era da pós-modernidade, pouca diferen falibilismo, indeterminação, vagueza, incerteza, sem perder o ri
ça faz localizar-se a semiótica na fase de transição para a pós gor, ele nos deixou um verdadeiro manancial para enfrentarmos os
modernidade ou inteiramente dentro dela. Aliás, quando se trata desafios da pós-modernidade, sem prejuízos para a ética e sob o
das ciências, que, de modo geral, estão menos afeitas às modas, domínio da estética. Mas isso já seria uma outra e longa história
uma periodi7..ação muito rígida é sempre pouco funcional. que deixo para uma outra ocasião.
O que, de todo modo, pode ser afirmado, é que, sem dúvida
O debate pós-moderno
foram parar modas como o althusserianismo, o foucaultismo, o incredulidade e o abandono das narrativas centralizadoras, a
bloco histórico e outras. É claro que especialistas sérios continu ciência passou a ser paradoxalmente regida pelas figuras do
am trabalhando com os conceitos relevantes de cada uma das dissenso e da invenção.
ondas que varrem o cenário cultural de tempos em tempos, mas
para o público mais amplo tais palavras se esfumam na lembrança. A ciência pós-moderna [diz Lyotard (1979:60)] -ao preocupar
se com coisas indecidíveis, os limites do controle preciso, confli
De fato, se o grande público só tem presente à mente os flashs tos caracterizados por informações incompletas, fracta, catástro
descontínuos daquilo que aparece na mídia, há, no entanto, um fes e paradoxos pragmáticos - está teorizando a sua própria
número razoável de intelectuais brasileiros que tem tratado a pós evolução como descontínua, catastrófica, não retificável e para
modernídade não apenas como urna onda evanescente, mas como doxal. Ela está modificando o sentido da palavra conhecimento,
um conceito com história, espessura temporal e continuidade críti ao mesmo tempo que exprime como essa mudança pode ocorrer.
ca. Há hoje autores nacionais, especialistas no assunto e com idéias Está produzindo não o conhecimento, mas o desconhecido.
próprias (ver, especialmente Rouanet 1 987, 1 993; Paulo e Otília Em lugar dos princípios universais e generalizáveis, típicos
Arantes 1 992, assim como Teixeira Coelho 1 986 e J. Ferreira dos dos discursos legitimadores da ciência tradicional, tem-se a pulve
Santos 1 987, além de algumas coletâneas de artigos), e o tema tan rização dos discursos na relatividade das redes flexíveis dos jogos
to faz parte integrante dos programas de um grande número de de linguagem que encontram sua forma otimizada de produção e
disciplinas acadêmicas ao nível de graduação quanto é objeto de difusão nas novas tecnologias de comunicação.
investigação ao nível de pós-graduação numa variedade de áreas. Não apenas a ciência, mas todo o tecido social pós-moderno é
A PULVERIZAÇÃO DAS TOTALIDADES uma malha multiforme de jogos de linguagem em cuja dissemina
ção o próprio sujeito se dissolve, "disperso em nuvens de elementos
Quando Lyotard escreveu seu livro, não podia, nem por so narrativos". Nessa rede proliferante e incontrolável de interações
nho, supor que ele funcionaria, de um lado, como uma força linguajeiras, sobra como opção para uma cultura pós-moderna
aglutinadora em relação a manifestações intelectuais e artísticas "reativar uma arte do sublime, o que comprova a impossibilidade
que vinham dispersamente pipocando, à espera de um ponto de ou impotência da arte, ou da representação em geral, diante de cer
fervura que lhes desse coesão, e, de outro, como um estopim daqui tos tipos de extremismo ou vastidão, na natureza ou além dela"
lo que viria a se constituir num dos assuntos mais candentes a ocu (Connor 1992: 1 72). Enquanto a arte modernista ainda permitia o
par o espírito das humanídades neste final de século. Disso só se prazer na apreensão do sublime em forma artística, a arte pós-mo
pode concluir que as idéias expressas no livro deviam corresponder derna vai além, na direção do sublime, ao destruir a própria forma.
a insatisfações, ansiedades e angústias humanas, até então ainda Não por acaso, para Lyotard ( 1 989:42), "a pós-modernidade não é
vagas e difusas, que estavam à espreita de um corpo que lhes desse uma era nova. É a reescrita de alguns traços reivindicados pela
forma. modernidade . . . ".
A discussão do livro gira em tomo da função da narrativa Embora bastante exacerbadas, porque levadas a extremos de
como forma de legitimação dos discursos e procedimentos científi dispersão, as idéias de Lyotard nitidamente soam como reverbera
cos. As duas principais narrativas, ou melhor metanarrativas, que ções de Derrida e, mais particularmente, de Foucault. Veio d�ste a
cumpri� essa função, desde a Revolução Francesa, eram a políti descrença de que possa haver uma metateoria mediante a qual to
ca e a filosófica. A partir da 21 Guerra Mundial, contudo, começou das as coisas venham a ser ligadas ou representadas. Foi ele que
a se operar urna gradual e crescente perda de legitimidade dessas nos instruiu para "desenvolver a ação, o pensamento e os desejos
metanarrativas que acarretou no "declínío do poder regulatório geral através da proliferação, da justaposição e da disjunção", e para
dos próprios paradigmas da ciência" (Connor 1 992: 32). Com a preferir a multiplicidade à unidade, a diferença à identidade,
1 20 LÚCIA SANTAELLA CUITURA DAS MÍ DIAS 121
entrando no mo \imento dos fluxos e dos arranj os móveis em aparências, o poder só está lá para ocultar o fato de que já não
de�n � ento dos � 1stemas. Não são poucos, em razão disso, os existe.
pro-pos-modermstas que reivindicam a paternidade de Foucault. Similar à de Baudrillard, embora menos apocalíptica, é a tese
defendida, do outro lado do Atlântico, por F. Jameson. O que define o
OS PAROXISMOS DA H IPER-REALIDADE
perfil das socie�ades pós-moderna�, . para ele_, é a expansão do po
Diagnósticos muito mais exacerbados do que os de Lyotard der do capital, mvadmdo os domm1os do signo, da cultura e da
ao ponto de se afastarem quase diametralmente de Foucault vê� representação. Daí a impossibilidade de se conter, no interior da
do ��in�ipal ensaísta do regime do simulacro, Jean Baudrilla�d. A cultura, "os ritmos inexoráveis de apropriação e de alienação do
sequencia de suas obras publicadas (especialmente 1974 1976 capitalismo de consumo" (Connor 1992:45). O pós-modernismo,
1977, 198 1, 1983) _re\ela uma capacidade camaleônica es;antos� eis a tese, não é senão a lógica cultural do capitalismo avançado
para a mudan ç� de 1de1as. Tomando como referência apenas a últi (Jarneson 1984), produzindo como efeito tanto a des�iferenciação
ma fase, � _do simulacro e do conceito coetâneo de hiper-realidade, das tradicionais fronteiras entre cultura popular, erudita e de mas
sob sua ot1ca sombna, a realidade está sendo cada vez mais con sas, quanto a substituição da figuração psíquica do sujeito aliena
vertid� em signos vazios, reduzindo-se dramaticamente a nossa do, típica do capitalismo emergente, pela figuração esquizofrênica
c�pac1dade de resistência a esse esvaziamento. Todos os rincões da dominante na cena pós-moderna. Se a idéia de alienação estava
fundada na pressuposição de um ego coerente e íntegro, de uma
�ida_ contemporânea _ estão !nvadidos por objetos e experiências ar
t1fic1almente p �oduz1dos (signos) que não têm mais relação nenhu identidade centrada da qual se alienar, agora a fragmentação, a
ma com a re�hdad�. Eles são seus próprios simulacros puros, ten instabilidade das linguagens e discursos gera a esquizofrenia do
t�ndo ser �ais reais que a realidade (hiper-reais). Sob o regime da sujeito fracionado (Jameson 1983). O mesmo sintoma encontra for
h1per-reahda�e,_ entram em colapso todos os antagonismos, até mas de inscrição na arte. Em lugar das obras monumentais do alto
modernismo, tem-se a apropriação, canibalização e sucateamento
�esmo os m�1s mvete�ados (ativo e passivo, engajamento e aliena de fragmentos de textos e imagens anteriores, uma arte que se
çao, _ subversao e autôndade, socialismo e capitalismo). Os opostos
se d1ssolv�m un� nos outros, e todos os atos acabam por beneficiar compraz de restos. Enfim, não há nada que possa resistir à insensi
ª. todos, d1s�emmando-se em todas as direções. Nesse sistema de bilidade do capitalismo tardio, nem os desafios políticos, nem a
simulacros mtercambiáveis, é tão completa a identificação entre aura dos textos culturais sagrados, muito menos as sofisticações de
poder e representações do poder que o poder pode ser considerado mentalidades sutis.
efet1vame�t� �omo desaparecido (Connor 1992: 178).
_ A RESSURREIÇÃO ILUMINISTA
A est1hsi1ca pos-moderna do sublime, tão prezada por Lyotard,
. Ao fim e ao cabo, embora haja discordâncias nos detalhes, há
e le�ada a um tal nível de paroxismo, na hipertrofia baudrillardiana
d� smmlação, que evapora no ar sem deixar traços. Se em Lyotard, uma inegável complementaridade nas posições defendidas por cada
_ um dos autores acima. A única voz, eminentemente dissonante, a
ha, e certo, uma pulverização das metanarrativas em
micronarrativas, resta ainda, na trama política e social a concor destoar do coro, foi, indubitavelmente, a de Habennas. Por isso
rência . diferencial � inde_cidível dos jogos de Iinguage:n. Já para mesmo, não há dúvida também que Haberrnas tem funcionado, no
Baudnllard, tudo, mclus1ve o poder, se difunde com tamanha uni debate, como uma espécie de antitérmico, infalível para abaixar a
!ºr_m 1dade que está fadado a terminar numa neutralidade febre das visões sideradas (pró ou contra) que encontram pouso
m?1fere_nciada. "Esquecer Foucault" significou, assim, evidenciar especialmente nos epígonos da pós-modernidade. O pomo da dis
a mut11I_dade de se tentar detectar o funcionamento do poder nas córdia, disparado por Habermas, encontra-se no espírito de
rede_s dispersas, mas ainda localizadas, de micropoder. Na era antimodernidade que está implícito no termo ''pós". Não há nada mais
do simulacro, porque também partilha do sagrado horizonte das complicado do que se chegar a um consenso quanto à delimitação
►
122 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS MÍDIAS 1 23
? século XVIII. Esse proj eto eq uivearnid ade entrou em foco du rant�
lia a um extraor dinário esforço
As questões envolvidas na polêmica evidenciam que o dile1!1a
u�telectual dos pensadores ilumini pós-moderno nem de longe se restringe a meras mudan�as de es_t 1lo
stas para, através do
z�q, revelar as_ qualidades universais, uso da ra na arquitetura e nas artes, como podem pens�r os mais_ desavisa
eternas e imu táveis da
m?ade, com v1s�s a emanci á-! huma dos. "Há mais coisas envolvidas do que a última moda intelectual
mitos , super st1ç_ p � do jugo irracional das religiões , imp ortada de Paris ou do que a mais nova reviravolta do mer cado
oes e das arb1traneda
des do p oder ilegítimo
sofi a m dern a, desde . A filo de arte de Nova York" (Harvey 1993: 18). As mu danças estilí sti cas
_ � Kant, tan to quanto a economia p
soc1o! og 1a, desd Marx olítica e a funcionaram como sinais de alarme, na década de 70, para as trans
� e depois Weber, ass u
m iram a tarefa pri
mordial de refl tir sob
: r m odernidad e, medindo
formações antes de tudo de sensibilidade com que o espírit� dito
suas promessas e pós-moderno estava se expressand? · Hoje: te�do já "a�ref�c1do o
sua� fa lhas . Nao obs
tante seus flagrantes fracassos e
e a
P:c1alme?te em Hiroshima, Nagasaki, videntes es frenesi apocalíptico e a esquizofrema das c1taçoes , que s mahzaram
nos camp os 'de concentra a e ntr ada da arte numa er a mai s pr opriamente pós -mode m � "
çao, e gntantes nas ameaças nuc
leares, nos esq uadrões da morte
enfim , em tod s s " (Santaella 1992.: 134), isso pode gerar_ em �lguns (aqueles que vi
? � monstros que o sonho da razão produz", nã�
obs tante a D1aletrca
do esclarecimento (Ado rno e H vem apenas da observação dos efeitos 11ned1atos que os fe?oA �enos
orkheim er da moda produzem na superficie da paisa�em cultural) � ilusao de
�, 985), Habermas continua a ap ostar no proj eto
da modernidade . que o pós-moderno já morreu. C_omo estilo, d: fato? Jª dev� t�r
S� bem �u� com forte dose de cet
icismo qu anto às suas metas,
m wta angus tia quant morrido. Mas como questão a ser interrogada, sao mwtos os sma1 s
? � �elação entre meios e fi
mo n t cante a
, ns e certo p essimi s de que os dilemas continuam vivos , basta ver o núm�ro cres cente
.? ? ��ss 1 b 1hdade de realizar tal proj eto nas condições A adend ao deba .
e�onom 1 a e poht1ca
� � s contemporâneas ", p
de publicações , no mundo todo, daqueles que tem ? �
ara ele, a mode rnidad
ainda e stá inacabada
(Harvey 1993:24). e Cada vez mais parece haver um consenso qu anto a complexi
. . �mbor a tenha dado o n ome de condição pós -moderna p ara dade dos problemas que estão sendo postos em discu_ssão. Pouco
v�c1ss1tud�s do contemporâneo, importa o nome que se escolha dar a essa nova comple�1d�de. A�n
tanto quanto Habermas, Lyotar
as
nao �credita em qualquer ruptur tece que, por enquanto, o termo pós-moderno ou, mai s am�, pos
a radi cal sep arando a
o rni
d
do pos-modemo. De onde vem, m odemidade, parece estar tendo o poder de congregar a v anedade
_ então, a di ssenção e
m
ntre ambos ?
de dad e
Antes de t_udo, das difer enças na tradição mo
de diagnós ticos em tom o de um denominador comum . H a�ey
dern a a que cada um
deles se fiha. Enquant
o, para Habermas , a modernidade (1993), abrindo seu livro com a tes� de que "uma m��ança ab :ss�I
de nascença do il um inis traz a marca vem ocorrendo nas práticas culturais , bem como poht1co-e�ono�1-
_ mo, para o s francese
s , desde F oucault, p as
sando por De nda, até
Lyotard e outros como Deleuze e G cas , desde m ais ou menos 1972", e conc luindo-o com a d1sc� ssao
� uattari 0
ponto de partida está em Nietzsc sobre ser o pós-modernismo algo pat�lógico ou o "�res�ág10 de
he, Freud, Heidegger, quer diz�r
suas fontes de referê
nc ia estão j ustamente naqueles q uma revolu ção dos eventos humanos mais profunda e ate mru s ampla
ram os sonhos da razão. A grand ue dinamita� do que as já ocorridas na geografi� his tór �c� d o capitali smo"
e di scórdia en tre Habe
Lyota�d n asce con seqüentement rmas e (ibid. :294), apresenta-nos uma bela s intese (1b 1d.: 19) d�s marcas
e da aver são haberm
par oxismo a que Lyotard condu i p elo do pensamento pós-moderno : o privilégio da heterogene1dad: e da
z a descrença na p ossibilidade d
as ana
co�senso entre os h
omens . Enquanto Habe
e difer e nç a como forç as li b e rt ado r as , a fr a g 121 e ntaç ao , a
salidade dos valores
rmas ins is te na univer indeterminação e a intensa desconfi ança em r elaçao a tod�s os
e nas qualid d s
hum ana, Lyotard exacer ba o re � � dialógicas da comunicação discursos univer sais ou totalizantes ; a redescoberta do pragmatismo
lat1 v1smo derrotista, implícito n
os na filosofi a , a mudança de idéi a sob r e a filosofi a da c iênc ia,
124 LÚCIA SANTAF.LLA CULTURA UAS M Í DIAS 125
promov ida po r K uhn ( 1975) e Feyera ben d ( 1985): a ênfase mod erni dadc'' ent re asp as, explica-
foulcaultiana na descontinuidade e na d ife rença na história e a pri Seu u so de ··modcrni dade/pós- · , m10· de�e ser sa
se' assim , como sinalização de qu
e o b mo _ � , do c-'rom
m azia dada por ele a "correlações polimorfas 1m m o e f;am 1 ia-
cm vez da causalida com
de simples ou complexa": novos descobrimentos na matemática - extrema p recau ção. "Qu alque r,,pes'soa, " - e !�ªr de notar,
m
e
um
1 o
acentu an do a in determi�ação (a teoria da catást ridade com os deb ates recentes , d1z e e, n P , (p. l l ). Dai
d d
b1g ?s
º
Há muitos que parecem estar de acordo com Harvey qu anto mas qu e, na~ o obstante, exerce �ma . infl. uência .
odero a o
ao caráter revolucionário daquilo que está sendo s inalizado sob o como pensamos , agimos e expenenciamos as co1 s�� -
nome de pós-m odernidade. Numa entrevi sta dada a Bernardo Car Também evitando radicalismos e bastante cnt1co em re1 aça_ o
ouanet (1987 )
valho, cm Nova York, Petc r Eisenman ( l 99 l ), chamado pela mídi a à propensão irracionali sta do pós-m_odemo, S. P. R
de
de o '·D avi d Lynch da a rquitetura", ao rece
assume uma posição no debate cuJ_as nu a� ças o ap roximam
t e en
d itava na existência do pó s -modernismo,
ber a pergunta se acre H abermas. Pela engenhos idade da d1s_ct:sssao qu_e Rouan
com
d s
_ No seu julg�mento, Eisenman consegue ir mais além da posi po rque alude, de algum modo, às defo rmações da modenudade.
çao bastante radical que defendi (Santaell a l 994 ) sobre a pó
m oderni dade como um limiar antropológic
s A seguir, Rouanet expõe sua pos ição ativa diante do dile ma,
o de cuj"a trave ssi a não dizendo:
temos ainda cond ições de medi r as conseqüênci as.
M ais _ponderado e cauteloso é o ponto de vista defendi do p
or A modernidade não está extinta (...). Não podemos fugir d�la.
R. Be rnstem ( l 99 l ). Ao explicar a escolha do títu lo de seu livr
oA Temos de completá-Ia e corrigi-l a. Foi a modernidade que cnou
st ente
neva constelação. Os horizo ntes ético-políticos da modernida
de/ o s padrões normativ os que nos permit e m co mparar o e xi
pós-modernidade , o autor deixa claramente explicitado seu m com O desejável. Ser mode rno é critica a m e�m d _ r al com
odo anunci da pelo
e e
foi
da
a qu
od
de ver o plu ralismo de vozes que está soando na contemporaneid a -
r
ade.
os crité rios da modernidade id
d uma
a
- mancipa ção
e
sa aut
e l
Extramdo a me�f�ra constel�ção dos escritos de Adorno e B Ilumini smo , com sua pro me
enja
s de o e e
para a música. Wagner foi aquele que colocou o sistema tonal em A partir dos anos 60. contudo, algo diferencial começou a
sofrimento, fazendo ruir as peças hierárquicas que sustentavam seu emergir de um feixe de fatores dominados pela explosão da cultura
edificio. Depois de Wagner, a música ocidental não seria mais a de massas e sob o impacto da Revolução Eletrônica, no seio do
mesma , do mesmo modo que, depois de Nietszche, não haveria mais capitalismo de consumo. Este provocaria a mais prodigiosa expan
maneiras de esquecer tudo aquilo que a razão hegemônica nos faz são do capital do qual nada, absolutamente nada, ficana a salvo,
perder. nem mesmo os bens do espírito mais etéreo. Há quase uma unani
. Cézanne, com sua maçã, faria para os códigos da pintura, midade por parte dos teóricos e comentadores em colocar nesse
herdados do Renascimento, o mesmo que Wagner, especialmente momento o marco de nascimento do pós-moderno, que viria encon
no prelúdio de Tristão e Isolda, fez para a dissolvência do tonalismo. trar na arquitetura sua forma mais exuberante e visível de manifes
Contribuindo para essa irrupção crísica, longe de ter sido o arauto tação.
da modernidade, Baudelaire foi, de fato, o primeiro a dar forma Num primeiro momento, o pós-moderno, que aparecia nitida-
poética à sensibilidade em estado de crise e perigo dos valores mo mente como um novo estilo nas artes, foi compreendido como uma
dernos em agonia. As Flores do mal foram o canto de cisne da era mera subversão dos preceitos do alto modernismo. Embora prece
moderna que se iniciara no Renascimento, e puseram o território da dido do prefixo pós, que denota antagonismo e superação, tinha
arte em prontidão para os abalos sísmicos e turbulências estéticas tudo para ser confundido com um passo a mais na tradição de rup
que iriam surgir com aquilo que foi chamado de Modernismo nas turas instaurada pelo modernismo. Gradativamente, no entanto, a
artes, literatura e música. Enquanto isso, Freud já desfechava gol realidade foi enviando sinais cada vez mais potentes de que não se
pes mortíferos no que restava de autoconfiança e arrogância ao tratava apenas de um estilo artístico, mas de um feixe espesso de
sujeito da razão. questões que começavam na ciência, atravessavam as artes e cultu
ra, economia e política, avançando até os mais recônditos rincões
do cotidiano humano. Não é por acaso que o debate sobre o tema
A DESCONSTRUÇÃO VANGUARDISTA
os desafios do confronto com a alteridade. Com raras exceções, o Videotexto: hábitat eletrônico da escrita
pesquisador brasileiro não tem sequer urna pálida idéia das possi
bilidades que a telemática hoje abre para a pesquisa, aprendizagem
e intercâmbio de conhecimentos, nem se dá conta "de que o custo
total de um equipamento de primeira linha, com enorme capacidade de
estocagern de dados, impressora a laser, modem para conexão com
telefone, scanner para transporte direto de textos ou imagens do
papel para a forma magnética, é inferior ao preço de um telefone" . Qualquer nova tecnologia de comunicação ou não, mas prin-
(Dowbor 1 993 :6). cipalmente a de comunicação, tende inevitavelmente a criar seu
É certo, nos diz mais uma vez Dowbor (ibid. : l ), "que as no respectivo meio ambiente humano e social. Ambientes tecnológicos
vas tecnologias surgem normalmente através dos países ricos e, em n�o são recipientes puramente passivos de pessoas, mas processos
seguida, através dos segmentos ricos de nossa sociedade". Daí ter ativos que remodelam não só pessoas, mas também outras tecnolo
mos "urna tendência natural para indentificá-las com interesses de gias (M. McLuhan 1 972: 1 5). De fato, a história não tem cessado
grupos econômicos dominantes. No entanto, uma atitude defensiva de nos mostrar que qualquer novo meio de produção de linguagem
frente às novas tecnologias pode terminar por acuar-nos a posições e de processos comunicativos também produz novas formas de con
em que os segmentos mais retrógrados da sociedade se apresentam teúdos de linguagem, produzindo simultaneamente novas estrutu
corno arautos da modernidade". Não se trata, portanto, de fomen ras de pensamento, outras modalidades de apreensão e intelecção
tar a aceitação científica e cultural dos ditos efeitos alienantes da do mundo, ao mesmo tempo que tende a provocar fundas modifica
sociedade de informação, mas de lutar por diminuir o descompasso ções �os modos de ver e viver e nas interações sociais.
entre a atualização tecnológica que é hoje já parte integrante das E claro que essas modificações não se fazem sentir num passe
empresas de comunicação, mesmo em um país na periferia da nova de mágica. Num primeiro momento, quando uma nova tecnologia
ordem internacional como o Brasil, e o atraso no aparato técnico de comunicação surge no horizonte social, ela necessariamente pro
que caracteriza a vida universitária neste país. As tecnologias de duz -�m c_hoque in�cial e conflitos em relação aos sistemas e proces
estocagern e difusão de informação provocam mudanças no modo sos Ja existentes, isto porque um novo meio de comunicação inevi
mesmo de se produzir e, especialmente, recuperar o conhecimento. tav�lmente tende a levar os meios anteriores já estabelecidos a um
Se há um lugar, portanto, onde elas não podem faltar, este lugar é a reaJustamento de suas funções e finalidades. Isso não ocorre de
universidade. Nessa medida, urna parte fundamental dos estudos e modo imediato. O choque inicial, via de regra, se faz acompanhar
debates sobre a pós-modernidade, que se desenvolvem dentro das de co�fusões, entraves e equívocos que só vão se dissipando de
universidades, deveriam estar voltados para a reivindicação de que maneira gradual. na medida em que o novo meio vai, pouco a pou
nossas universidades acertem o passo com o presente, inserindo-se co, penetrando e se definindo na vida social, gerando novos hábitos
nos circuitos informacionais contemporâneos. de percepção e de interação comunicativa, nas áreas do trabalho,
lazer, entretenimento e associação. Só então os germens de trans
for:mação social e pessoal, que toda nova tecnologia traz no seu
boJo, realmente se efetivam e se tornam visíveis.
PERSPECTIVA HISTÓRICA
cruzados, pelos efeitos que uma nova tecnologia virá, no futur� , Da pedra, madeira ou metal como suportes da escrita na An
determinar. Ao contrário, nosso papel tem de ser aquele de part1c1- tiguidade, passou-se para um meio mais flexível, os rolos de papiro
pantes atentos e ativos, na busca de identificação e reconhecimento e, então para as peles que permitiam o aparecimento dos códices
das modificações que parecem mais iminentes, de modo a ler, com- (formas rudimentares do livro). Em Roma, por volta de 200 a.C.,
preender e mteragir nos processos enquanto eles ocorrem. já existiam verdadeiras indústrias para o processamento de peles.
. Para se delinear o perfil do videotcxto, pelo menos sob o an- Mas a grande revolução só chegaria ao Oriente por volta do século
gulo que pretendemos enfocar (o da linguagem escrita), parece-nos XII, quando os árabes levaram o papel até a Espanha e Itália.
imprescindível colocá-lo numa perspectiva _ histórica _que _ n�s per No século XIV, o papel já era, em todo o continente europeu,
mita : ( 1) detectar suas raízes na históna; (2) d1scnmmar a material dominante e hegemônico, espécie de patamar básico e im
especificidade potencial de suas funções em meio aos outros e múl prescindível para o advento, em 1450, de uma outra invenção: a da
tiplos meios de comunicação que hoje lhe são contemporâneo� ; (3) tipografia manual que viria trazer o apogeu do livro e fazer dele,
visualizar para onde se orienta seu campo de forças como meio de por 4 ou 5 séculos o meio privilegiado para o registro, transmissão
produção e difusão de mensagens. . . e memória-acervo do conhecimento culturalmente acumulado, trans
A retrospectiva histórica que aqm efetuaremos pode, a, pn formando a linguagem em bem portátil de consumo.
meira vista, parecer chocante, visto que nosso fio condutor fomos Contudo, inesperadas reviravoltas no mundo da linguagem
buscá-lo há três e meio milênios. Lá se deu a primeira grande in iriam ocorrer com a Revolução Industrial pelo aparecimento de
venção: a da escrita fonética ou código alfabético, sem o qual os máquinas reprodutoras que viriam abalar nas bases a hegemonia
rumos da filosofia, assim como os da ciência, no Ocidente, não secular do livro e o privilégio da linguagem escrita como meio de
teriam sido o que foram. Não se trata aí de tecermos julgamentos produ9ão de linguagem e de veiculação de mensagens.
de valor, se esse sistema de escrita é o melhor ou o pior, se os frutos E certo que a impressão mecânica acarretou no aumento quan
que dele germinaram foram bons ou maus. Trata-se, isto sim, de titativo e na produção em massa de livros, mas ela também trouxe
enfatizarmos o fato de que esse sistema está sobrevivendo há 35 consigo a explosão do jornal, a ponto de Hegel ter dito que a oração
séculos com modificações relativamente pequenas, a despeito de matutina dos homens era o jornal. Com a impressão mecânica e a
todas as mudanças históricas que se processam nos meios pelos sofisticação dos tipos gráficos, com o telégrafo e, principalmente, a
quais a escrita alfabética é produzida e nos suportes e canais atra fotografia foi a própria natureza livresca da linguagem escrita que
vés dos quais ela é veiculada. Usando apenas 22, 24 ou 26 letras ou começou a passar por fundas transformações no jornal (Santaella
sinais, pode-se dar conta de uma língua inteira, passar-se de uma 1981:5).
língua para outra sem grandes dificuldades, transferir-se de um A constelação de notícias e informações jornalísticas, o jogo
suporte para outro, seja ele pedra, madeira, metal, osso, tecido, diagramático, isto é, o lugar de ocupação de cada informação na
pele ou papel. página, veio provocar a necessidade de se criar mensagens escritas
De fato, não é senão a alta taxa de simplicidade, economia, mais esquemáticas, breves e condensadas, próprias para uma leitu
adaptabilidade e conveniência do sistema alfabético, que lhe garan ra rápida, muito diferente do debruçamento e recolhimento solitá
tiu a sobrevivência por milênios. Se olharmos, aliás, com certa aten rio exigido pela leitura de um livro.
ção para os 35 séculos de sua história veremos que, de lá par� cá, Contudo, se o jornal viria provocar mudanças na natureza da
.
as transformações que se processaram foram todas elas relativas linguagem escrita, o advento de outros meios de produção de
lin
aos suportes para o registro, veiculação e armazenamento da escri guagem - os visuais - viria transformar suas funções
e utiliza
ta, num processo de difusão cada vez mais abrangente que, da Re ções sociai s .
volução Industrial para cá, vem crescendo em progressão geomé Até o século passado, a escrita era o único meio de entreteni
trica. mento e uma das formas dominantes de realização
do lazer. Essa
ux J(ICIA SANTAF LLA
CULTIJRA DAS MÍDIAS 139
sua função foi sendo gradativamente engolida por outros veículos nada precisamos dizer. Ele fala por si. Tanto isso é verdade que,
d..: comunicação A fotografia e seu desenvolvimento na película desde seu nascimento até hoje, poucos abalos a televi.,ão sofreu,
cinematográfica vieram golpear a exclusividade do livro como meio apesar de todas as críticas de cunho intelectualista que, contra ela,
de entretenimento. Mas golpe mais fundo seria desferido pela Re foram desferidas. Mas, recolocando, em outras bases, o processo
volução Eletrônica no nosso século. de transmissão da televisão em si, é no telefone que o videotexto foi
O rádio como meio de transmissão da linguagem sonora (mu encontrar seu meio de transmissão. Ora, na imensa floresta dos
sical e oral) e a televisão como meio altamente híbrido (som e ima meios de cot?-unicação atuais, o único de caráter interpessoal, isto é
gem). capaz de deglutir canibalisticamcntc todos os outros meios. (e isso enfatizamos), o único meio que só existe enquanto diálogo é
só deixava de fora a escritura. I sso compunha um panorama que o telefone. Diálogo entendido aqui como conexão imediata entre
relegava a linguagem escrita, cada vez mais. para um pano de fi.111- um e?1issor_ e um receptor. A isso se acresce ainda o fato de que o
do. Em síntese. a linguagem escrita parecia. no nosso século. a terceiro meio que compõe o sistema videotexto é o computador,
grande deserdada. como se os outros veículos de comunicação esti essa fantástica máquima-memória que aí funciona como meio de
vessem realizando uma espécie de sublevação ou vingança contra armazenamento dos dados e centro de irradiação das informações.
sua ocupação no cenário da comunicação e cultura Falar em videotexto, nessa medida, é falar num sistema com
E certo que a indústria gráfica-editorial. por seu turno. não plexo que funde, num único e particularíssimo nó, esses três meios
ficou à margem das grandes revoluções tecnológicas do nosso tem que até agor� tinham e continuam tendo suas funções especificas,
po. abastecendo-se incessantemente de meios relacionados com a mas que _no s1s_tema videotexto se unem e formam um só corpo. No
i nformática e a telemática: o teletexto. o tckx. a vidcofoto. rádio e entanto, isso amda não é tudo. Os fornecedores de infom:ação para
telefoto. a elaboração instantânea de textos cm monitores de TV e a central de dados são os mais diversos e diferenciados cobrindo
sistemas de fotocomposição incluindo o raio laser ( Plaza 1 986) É potencialmente uma imensa gama de funções, utilizaç�s e finali
certo ainda que os sistemas de microfilmes e microfichas significa dades.
ram um outro ponto de sustentação ou porto de ancoragem para a Revela-se, a partir disso, a gigantesca dialética das forças
_
linguagem escrita como meio de am1azcnamcnto do acervo cultu centn9etas e centrífugas que atuam no sistema videotexto: as mais
ral. No entanto. quando se pensa na tremenda massa de informa diversificadas fontes de informações convergem para uma central
ções contida e armazenada hoje em fitas magnéticas. cm videotcipes de dados onde essas informações são alocadas e armazenadas para
e cm películas cinematográficas. pode-se perceber que. nessa fun serem distribuídas para os mais diversificados destinos, assim que
ção. a linguagem escrita também deixou de ser exclusiva c�amadas. Desse modo, qualquer receptor, ao acionar o teclado do
VIdeotexto, tem por parceiro do seu diálogo a memória de um com
\'IDEOTEXTO C0\10 \tl U I \ I Í D L\ p_utador com a qüal o receptor interage e conversa a partir de um
sistema d� escolhas, potencialmente imenso, que lhe dá margem
Nesse cenário. aparentemente irreversível. de gradativas per
das de sua hegemonia. eis, porém, que ressurge a linguagem escrita para selecionar o que quer e dispensar o que não quer.
num novo hábitat: o videotcxto. O poder revolucionário dos cfoitos Difícil não pressentir, em função dessa brecha dialógica, o
p oder revolucionário que o videotexto traz no seu bojo, como meio
sociais desse novo hábitat só podemos pressentir. visto que seu _
d� ace�so a, informação, quando uma central de dados se coloca à
aparecimento é ainda recente na paisagem do mundo. mas os ger
mes desses efeitos já podem ser vislumbrados. Basta. para tal. olhar d1spos1ção e chega ao ambiente doméstico do receptor com um sim
ples apertar de botões.
mos com alguma atenção para os meios que se acoplam e se
interpenetram para formar o sistema vidcotcxto. Para co�preendermos esse poder revolucionário, no entanto,
temos de no� hvrar de, pelo menos, dois preconceitos básicos: primei
No televisor. o vidcotcxto tem seu meio de produção ou edi
ro, o de que informação significa única e exclusivamente irfonnação
ção e de recepção Sobre o poder de penetração social desse veículo
140 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS MÍDIAS 141
livresca, ou de que a única infonnação verdadeira e profunda é sistema, o Brasil, por problemas econômicos, deixou de incentivar
aquela que o livro ou o jornal veiculam. A linguagem escrita, sem e desenvolver o projeto. Na França, país em que· o videotexto foi
dúvida, emigrou agora para o videotexto, assim como há um século mais bem-sucedido, existem hoje sete milhões de terminais e dezes
atrás ela emigrara do livro para o jornal. Essa mudança de suporte seis mil bases de dados. O sistema, no Brasil, foi praticamente pa
acarreta necessariamente numa mudança de natureza da linguagem ralisado há quatro anos. Ultimamente está se reativando em fun
ou no desenvolvimento de uma sobrenatureza que o suporte anteri ção, de um lado, de bases de dados de grande interesse, tais como _a
or não lhe pennitia desenvolver. Aquilo que o jornal significou em _
do Tribunal de Justiça, para advogados e a do Detran, para pohc1-
termos de condensação e abreviação do espaço de ocupação da ais e despachantes. De outro lado, a indústria brasileira tem colo
linguagem escrita, em tennos de revelação de qualidades e potenci cado, no mercado, micro-modems que transfonnam os PCs cm ter
alidades visuais da linguagem e em tennos de desenvolvimento de minais para acesso às bases de dados do videotexto.
funções específicas que o livro, por si mesmo, não tem o poder de
desenvolver porque sua especificidade é outra, assim também o
videotexto deverá significar no sentido de recriação da linguagem
escrita em fonnas abreviadíssimas adaptáveis ao espaço da tela de
TV, isto é, dizer o máximo num mínimo de espaço-tempo, através
dessas novas propriedades de uma escrita-desenho em movimentos
de luz-cor.
Segundo preconceito: o de que o nascimento de um novo meio
deve levar à morte o meio que lhe está mais próximo na mesma
família de meios. Ao contrário, a história nos tem demonstrado que
a tendência dos meios não é a de desintegração (e o videtexto é o
exemplo mais flagrante disso}, mas a de criar sistemas integrais,
interdependentes de modo que um meio se alimenta do outro ao
mesmo tempo que o retroalimenta.
Aliás, essa tendência à integração já existe também no pró
prio processo de formação da linguagem no videotexto. Trata-se
de uma linguagem que é, a um só tempo, escrita, desenho,
diagramação, página, quadro, animação e seqüência. Para entendê
la como tal, cumpre, no entanto, olhá-la de frente, apalpando suas
especificidades, pois que ela não é o livro, não é o jornal, não é a
pintura, não é a fotografia, não é a televisão e nem está aí para
competir com esses meios. Trata-se de uma outra coisa que, só no
encontro de sua qualidade diferencial, encontrará seu destino.
tratada. Esse é um lado da história. Vejamos o outro lado. legibilidade da escrita. Em outras palavras: substituições de suportes
Toda poesia escrita é visual, mas nem toda poesia escrita tem sempre se fizeram acompanhar por uma estetização da escrita, ou
apelo visual. Esquecer que poesia escrita, seja ela de que tipo for, é melhor, pela consciência da natureza também plástica e sensível do
poesia visual, é desconhecer a natureza do código, canal e suporte código escrito.
que possibilitam a materialização desse tipo de poesia. Cumpre Foi preciso esperar a chegada do século XX e da explosão do
indagar, no entanto, por que não costumamos considerar qualquer jornal, no entanto, para que a linguage� escrita passasse por u�a
poesia escrita como sendo poesia visual. Para isso, precisamos re transformação tão intensa que acarretana na mudança de sua pro
correr a um divisor de águas que distingue, de um lado, a poesia pria natureza.
escrita sem apelo visual, e, de outro, a poesia escrita com apelo visual.
Para considerar a poesia escrita, que não apresenta a consci
A ESCRITA E A PÁGINA
ência do seu caráter visual, é preciso tocar a questão nos seus co Com a variação dos tipos gráficos, letras que gesticulam na
meços. Toda fala, em qualquer língua, nasce da combinatória regrada página, com a distribuição diversificada da linguagem impressa na
de um número finito e altamente reduzido de sons. O alfabeto oci diagramação jornalística, com o aumento da extensão do espaço da
dental, escrita fonética, é a tradução visual desses sons. O som página, um novo campo de possibilidades se abriu para a escrita. A
transposto para a imagem do som. Ora, esse alfabeto não é, de palavra começou a adquirir uma corporeidade inesperada e o espa
modo algum, tão simples quanto se pode, à primeira vista, pensar. ço que acolhe esses corpos uma dinamicidade promissora.
Ao contrário, a escrita fonética é fruto da descoberta da engenhosa Como não poderia deixar de ser, a poesia foi a primeira a
maquinaria, funcionalmente econômica, que preside a fala. Não é levar até as últimas conseqüências a mutação que esses novos fato
por acaso que esse sistema está sobrevivendo há 35 séculos com res poderiam acarretar. O "Lance de dados" transpôs o limiar da
modificações relativamente pequenas, a despeito de todas as mu escrita ocidental como mero desenho do som para uma indagação
danças de suporte, no registro visual do alfabeto, que ocorreram no aberta no seio do possível e impossível i;la escritura. É por isso que,
decorrer de todos esses séculos. a meu ver, o aspecto visual do poema mallarmaico é apenas uma
É provável, contudo, que, justo por ser profundamente maleável conseqüência superficial de uma revolução mais subterrânea e mais
e transferível de um suporte a outro, devido ao alto grau de arbitra visceral do que aquilo que os olhos podem pressentir. Revolução a
riedade que o alfabeto ocidental herdou do sistema fonético, essa que o olhar apenas não tem acesso. Por ser inacessível aos olhos, a
escrita tem a peculiaridade de se fazer passar despercebida aos sen questão mallarmaica diz respeito a um outro tipo de visualidade
tidos. Ou seja, não tem pregnância. Não exerce sobre o olhar o que, na falta de um nome melhor, chamaria de visualidade estrutu
poder de cativá-lo e fixá-lo. ral ou diagramática. Toda grande poesia, mesmo oral, e principal
A origem oral da poesia ocidental, que resultou nas formas mente a música, é portadora dessa visualidade que só pode ser sen
poéticas fixas, baseadas em critérios sonoros, e a baixa tida na sincronicidade dos sentidos. Trata-se de diagramas inter
sensorialidade do alfabeto são fatores capazes de justificar a im nos, fluxo e refluxo do demônio das analogias, força de atração e
portância secundária, ou até mesmo nula, que o aspecto visual, repulsão das semelhanças e diferenças, energia do tempo configura
durante séculos, desempenhou na poesia. do nas malhas da linguagem. Isto tem pouco a ver com o visual ótico.
Por ser sintomático, é curioso observar que, no decorrer de 35 Tanto quanto posso perceber, nessa vertente, grande parte da
séculos, quando houve mudança de suporte ou meios de registro, produção da Poesia Concreta do grupo Noigrandres no Brasil nas
circulação e veiculação da escrita (da pedra, madeira, osso, metal ceu da tarefa inaugural de desentranhar, extrojetar na superficie da
ao couro, do couro ao papiro, do papiro ao papel), esses momentos página o cerne diagramático do poema. Tomar visível seus diagra
de mudança foram acompanhados por considerações, e mesmo re mas multiplamente direcionados, formas que desenham sentidos. O
alizações estéticas relativas à forma, espaço, procedimento e resultado desse processo, embora visível, traz à baila processos
•
1 46 LÚCIA SANTAEI I A CULTURA DAS MÍ DIAS 1 47
que estão mais próximos do visual ideogrâmico do que do visual seres, replicantes, duplos. As imagens fotográficas e cinematográ
ótico Por isso mesmo, é dentro desse contexto que a visualidade da ficas foram povoando o universo dos vivos e com eles criando no
Poesia Concreta paulista deve ser pensada, contexto esse que im vos espaços de convivência que teriam deixado os habitantes de!
plica necessariamente a conjunção da problemática do olho e do caverna platônica cm estado de mais absoluta perplexidade. As
ouvido do visível na correlação com as formas da música, invisí fotografias, juntamente com as técnicas emergentes de gravura,
veis aos olhos. Embora tenha sido o primeiro movimento a discutir deram à imagem uma prevalência e uma potencial reprodutor no
a visualidade na poesia e a produzir com conseqüência poemas século passado.
visualmente pregnantcs, penso que a problemática colocada pela Nesse novo contexto, a linguagem escrita, já segura de sua
Poesia Concreta inclui_ mas transborda as fronteiras da poesia es dimensão plástica, e também premiada por novas técnicas de im
tritamente visual. Para discutir essas questões, todavia, teríamos pressão e reprodução, longe de se intimidar diante da presença pre
de levar este trabalho para rotas que não tenho aqui espaço para valecente da imagem, começou, ao contrário, a flertar com as ima
seguir. Retorno, pois_ à trilha da escrita. gens, atraindo-as para sua companhia, em jogos de cumplicidade e
reuniões "tête-à-tête". As técnicas de colagem de letras e imagens,
AS LETRAS SE PI '.SERA!\I DE P É palavras e coisas surgem intempestivamente desses namoros. Mas
Com a sofisticação crescente dos meios de impressão, as le a tranqüilidade desses acasalamentos estava para ser ferida. O ad
tras começaram a se erguer. Saindo de sua posição rastejante, fo vento absorvente da televisão iria mandar para o segundo plano os
ram abandonando a condição de pequenos insetos imóveis sobre os namoros da escrita e da imagem.
quais os olhos se debruçam. As palavras cresceram em tamanho, Durante alguns anos e mais de uma década, a tela eletrônica
verticalizaram-se, invadiram as ruas, compondo a nova paisagem parecia ter relegado a linguagem escrita ao reduto do mundo do
de uma outra natureza : urbana, artificial, veloi. agitada. A poesia papel. Já no cinema e no rádio, a recuperação da l inguagem oral,
futurista, com seus substantivos desamarrados, brilhando nus na em detrimento da escrita, havia posto em crise a hegemonia do
autonomia, é emblemática dessa paisagem. livro como modo de entretenimento e meio de circulação de l ingua
Assim, a linguagem escrita, no Ocidente, descobriu também gem e cultura. Então, com a presença da televisão (esse pequeno
uma segunda natureza, a de sua pregnância visual, que se sobrepôs aparelho, aparentemente inofensivo, que invade nossas casas como
ao seu originário estado servil de simples reprodutor visível do au quem não quer nada e só gradativamente vai mostrando seus tentá
dível. De um mero epifenômeno da fala, a escrita passou a assumir culos de gigante), a linguagem escrita parecia ter ficado decidida
o risco e o desafio de sua fisicalidade plástica . Desse desafio, bro mente órfã das telas eletrônicas, passando para um plano minoritário
tou a consciência de laços comuns, até então despercebidos, que e secundário.
unem as escritas fonéticas a todas as outras formas de escrita não Uma nova revolução, contudo, estava por acontecer. Certo
alfabéticas. Não por acaso começamos a assistir nesse século, a estava Borges ao retomar Shakespeare, lembrando que "as pala
uma verdadeira confederação das escritas que rompendo suas li vras são mais eternas do que os mármores e os metais". Uma nova
nhas de isolamento, despudoradamente se puseram a namorar e, era para a linguagem escrita parece estar agora germinando.
copulando, especialmente em muitos dos trabalhos da arte gestual_
geraram novos rebentos cm formas de escrita imprevistas.
REVIGORA-SE A ESCRITA
Paralelamente a isso, no entanto, outras transforn1ações se Com as acoplagens de meios que resultam no videotexto, com
faziam sentir no mundo das linguagens. os novos programas e processadores de textos, com a computação
gráfica, que pode também incorporar a escrita ao justapor e fundir
A li\'VASAO DOS Dl;PLOS
a imagem da escrita à escrita da imagem, é todo um novo horizonte
O mundo industrial ocidental começou a ser invadido por novos que se descortina e cujos efeitos e repercussões não temos ainda
148 LÚCIA SANTAELLA
condições de aferir. O que se pode adiantar é que as conseqüências O museu na era da informação
serão provavelmente tanto ou mais revolucionárias do que foram
as do papel e da prensa tipográfica na era de Guttemberg. No que
diz respeito à poesia, neste caso inevitável e inexoravelmente visu
al, abrem-se perspectivas que estamos apenas começando a apalpar.
Tanto quanto me é possível perceber, penso que a explosão
indiscriminada, desde os anos 60, de manifestações variadas de
poesia visual, que pipocam pelo mundo sob os nomes mais diver
Em 1985, durante estágio de pós-doutoramento na Universi
sos (poesia experimental, poesia alternativa, desdobramentos da dade de Indiana, USA, graças a uma bolsa de estudos concedida
poesia concreta, arte postal, arte gestual, poesia visiva, grafismo,
pela Fapesp, tive oportunidade, entre outras pesquisas, de assistir a
letrismo etc.), aliada à dissolvência das tradicionais fronteiras, que
um �ur�o sobre Arte e Pós-Modernismo, ministrado por Donald
separavam artes plásticas e poesia, são efeitos de questões que pro
Prez1os1, então chefe do Departamento de Arte e História da Arte
curei focalizar neste trabalho: a confederação das escritas, as con
na State University - Nova York. Da bibliografia desse curso
junções e fricções do verbo e da imagem, o aparecimento de novos
constava, entre outros, "O Museu de Arte Moderna como ritual d�
meios de impressão e reprodução da escrita, assim como da ima
capitalismo tardio" (Allan Wallach 1978) e "Sobre as ruínas do
gem e, principalmente, o advento do suporte eletrônico que abre
Museu" (Douglas Crimp 1983). Só esses títulos são, por si, mes
para a escritura caminhos para novas aventuras provavelmente hoje
mos, capazes de colocar em evidência o teor e a direcionalidade do
quase insuspeitas.
programa desse curso.
O resultado mais importante disso tudo é a dilatação da noção
os Estados Unidos, estava-se, naquele ano, no ápice da in
de escritura a que estamos assistindo, noção esta que está passando � 1:l
fluencia, sobre as humanidades, do movimento intelectual chama
a atrair para o seu reino desde as descobertas do universo biológico
do de deconstruction, aliado e temperado por debate cerrado sobre
com as escrituras do código genético (a ADN não é senão uma
espécie de escrita), passando por todas as formas de escritura im � pós-modernidade. Tratava-se de uma demolição generalizada e
1mplacável de todos o princípios e valores da ordem estabelecida
pressas na e pela própria natureza, até a multiplicidade de escritas
criadas pelo homem, que incluem as diversas modalidades de nota da �st�turação i�ediatamente legível de informações sempre dis�
ções musicais e invadem hoje o universo da luz e da cor que, nos pomve1s, dos arqmvos saturados de organização e despidos de sur
meios eletrônicos, se comportam como dígitos de uma espécie rica, presa, das mostras, exposições e acervos de arte perfeitamente
múltipla e variegada de alfabeto qualitativo cujas conseqüências, gerenciados e direcionados.
em termos de realizações, nossos sentidos estão ainda infelizmente Enfim, tratava-se de desconstruir a boa ordem logocêntrica
muito toscos para pressentir. das formas de armazenamento e circulação dos processos da arte,
do saber e da cultura, para evidenciar as tendenciosidades as
distorções e imposições que se ocultam por trás de um geren�ia
mento sem falhas.
No que diz respeito aos Museus, colocava-se sob mira da cri
tica os ri�ais e cerimoniais oferecidos ao público como experiênci
as de saciedade em que nada falta e tudo já vem pronto.
A crítica demolidora da boa ordem e da saturação de informa
_
çoes, a bus�a de ?rechas e lapsos e de novas estratégias da desor
dem, o desejo da imprevisibilidade das descobertas e da alteridade
eram recebidas como prenúncios de uma temporalidade histórica
1 50 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS MÍDIAS 15 1
emergente e forma de sensibilidade correspondente, denominadas presente e às imprevisibilidades do futuro. Sem isto, em poucas
pós-modernas. décadas, estaremos reduzidos à situação de hordas primitivas em
Ao final do curso, durante os debates, tive oportunidade de relação aos países mais adiantados. O ritmo das invenções técni
emitir (para receber como resposta os olhares surpresos e incrédu cas, do crescimento da informação e da transformação de valores
los dos que me ouviam) a seguinte conclusão: "Se isso é pós não p�rdoa qualquer uma das formas de disfarce da xenofobia .
. modernidade, por fatalidade congênita e tendência incorrigível, nós,
E no contexto dessas indagações e postulações que passo a
brasileiros, sempre fomos pós-modernos". delinear alguns dos pontos a que, segundo meu ponto de vista, de
O NACIONAL E O INTERNACIONAL vemos estar alertas para pensar o Museu hoje.
-
clusivos do saber, e nos impede de pensar, por exemplo, que nao ha
nada mais interdisciplinar do que a televisão).
Museu e produção de cultura
c?ntribuições que a semiótica traz para o entendimento da comple ideologia não pode ser divorciada da realidade material das lingua
XIdade cultural, prefiro resgatar três autores e respectivas obras gens nas quais a ideologia toma corpo. Nessa medida, na
q�e, d��tro do paradigma que poderíamos chamar de paradigma da materialidade mesma das linguagens e de seus meios de produção,
histonc1dade, nos permitem pensar o museu de hoje, ou seja, os os autores resgatam o aspecto material e histórico de qualquer fe
desafios com que as contradições do presente fustigam nossa com nômeno cultural e ideológico concreto.
preensão da cultura e do museu na cultura. Propõem como tarefas básicas a serem cumpridas por um es
tudo da cultura: primeiro, a preocupação com a individualidade
TEORIAS DA CULTURA
qualitativa, os traços distintos do material, formas e propósitos de
Os três autores são díspares no tempo e no espaço. Não exer cada área da criação ideológica. A especificidade da arte, literatu
ceram quaisquer influências uns sobre os outros. Partiram de fun ra, ciência, técnica, ética, religião, meios de comunicação não pode
�entos distintos, assim como localizam-se em áreas e posições ser ignorada sob pena de uma pasteurização geral que ignora que
diferentes dentro das humanidades. Não obstante tantas diferenças, cada área tem sua própria linguagem, suas próprias formas, meios,
suas ?br� acabam chegando a resultados similares que, no que diz recursos para aquela linguagem, assim como suas próprias leis es
resp�1t� a cultura'. as tomam complementares e conseqüentemente pecíficas para a refração ideológica de uma realidade comum. Nes
pass1ve1s de uma Junção. Duas dessas obras, de um lado, a do rus sa medida, embora a especificidade de cada uma dessas áreas natu
so P. N. Medvedev, cujo subtítulo propõe Uma introdução crítica ralmente não deva obscurecer sua unidade ideológica comum, tam
a uma poética sociológica ( 1 928), e, de outro lado, a do brasileiro bém não deve ser absolutamente o caminho dos estudos da cultura
Robert Srou �, Modos de produção: elementos da problemática nivelar essas linguagens, ocultando sua pluralidade essencial.
( 1 978), e mais recentemente seu livro Clas ses regimes, ideologias Segunda tarefa: a preocupação com as características e for
( 1 987), a meu ver, não têm recebido a atenção que merecem. Há mas de intercurso social através das quais o sentido dessas lingua
quase dez anos venho citando esses dois teóricos em meus traba gens se realiza. Terceira tarefa: o estudo dos modos pelos quais se
lhos? pois e�co�tro neles meios eficazes para a tarefa de pensar e dá a reflexão e a refração da realidade nos produtos ideológicos,
deslmdar a mtnncada malha da cultura nas sociedades complexas isto é, a que interesses no jogo das lutas entre agentes coletivos, ou
mod�mas. O terceira deles, hoje bem conhecido e divu lgado no melhor, na luta de classes, esses produtos se prestam (Santaella
B!asil, � Walte� �enjamin. V�jamos, portanto, na seqüência, que 1985.:50).
n�o sera cronolog1ca, as contnbuições que, segundo meu ponto de Como se pode ver, a proposta integrativa aí evidenciada, ao
vista, esses autores podem trazer para o desafio que é a compreen mesmo tempo que dá à produção processos e produtos culturais a
são dos processos culturais neste final de século. autonomia relativa que eles merecem, reintegra-os na unidade com
Começ�do com a obra de Medvedev, escrita provavelmente plexa e interativa das dimensões do político e do econômico. Vem
em c?-autona col!' M . . B�tin, uma síntese de suas propostas é daí, de um lado, a impossibilidade de separação e isolamento do
suficiente para ev1denc1ar a importância de que se revestem. cultural em relação aos outros domínios. Diz Medvedev: "o medo
Sem tr�ir as bases do materialismo histórico, mas partindo de do ecletismo se explica pela ingênua noção de que a especificidade
uma redefiru�ão altamente operacional do conceito de ideologia, os e individualidade de um domínio dado, só podem ser preservados
autores enfatizam a necessidade de um esforço para se repensar o através de seu absoluto isolamento, ignorando tudo que está fora
estudo da cultura através do que chamam de uma ciência das ideo dele. No entanto, todo domínio ideológico adquire sua real indivi
logias. Ampliando a visão da ideologia para além do limite estrito dualidade e especificidade na intervenção viva com outros domíni
de falsa consciência, consideram como ideológica qualquer criação os" (ibid.:28). De outro lado, as propostas de Medveved também
ou pr�ução �e _cultura e reivíndicam que o estudo das ideologias preservam a unidade no respeito à diversidade dentro do próprio
domínio do cultural. Isto é, cada área de produção da cultura (que
tem meios obJet1vos para se processar, quando se considera que a
L •
1 58 LÚCIA SANTAELLA
f CULllJRA DAS MÍ DIAS
1 59
de existência social
idealistas que negam as condições materiais
ele denomina de criação ideológica) tem potenciais, limites, recur 5-36)
ao político e cultural (Santaella 1 982: 3
sos e meios que lhe são próprios, as sim como leis peculiares de
inter-relações dos
refração ideo lógica, mas qu e só se defin em no confronto, conflito e Para que fiquem mais compreensíveis as
e cultural� e das quatro e_s �eras
complemen taridade com outras áreas. três territórios (econômico, político
ada temtono e_ ,dos te_:nt?no�
Es s e mesmo caráter in tegrativo da teoria é também o caráter que se intersecciona_m dentro de c alt as , estao ! mda
ui nomear ess as esf eras, que,
domin ante na ob ra de Srour. Sem ter conhecido as propostas de entre si, cumpre aq te-
or de Srour ( 1 987). Assim
Medveved , a t eoria de Srour incrivelmente s e ass emelha a um siste mente explicitadas no livro p osteri
matização rigoros a e consistente das idéias que, lá na Rússia, cinco mos: ação e dist�buiçã_? .
décadas antes, Medvedev havia, assistematic amente, l ançado, s em l . No econômico: produção, tr� conserv
ustiça, � de hberaçao.
n unca ter c hegado a conhecer s eus res u ltados. Essas sincronias tão 2. No político : segurança, administração, j
simbohco) ideo l o-
ca�as a · L. Borges, parecem evidenc iar que a real id ade, ela p ró
! 3. N o cultural: (que agora Srour chama de
p na, vai criando exigências para o pensamento. As teorias vêm gia, ciência, arte e técnica.
dess as es feras s ao
s emp re no encalço de problemas que o real histórico des afiadora Levando-se em conta que todas e cada u ma
instrum�ntos de trabalho
mente , ap res enta ao pensamento . também es feras p rodutivas, mediadas por
t s coletivos da s mais di
E as sim que, s em saber que estava dialogando com as idéias particulares, em que s e confrontam agen �
a de Srour nov as b as e s
de Medvedev, Srour des envolve-as dentro de um s iste ma altamente versas modalidades, iss o forneceu à teon
s basicamente simp les,
coerente e il u minador que aqui também p asso a sintetiza r. para a construção de u ma teoria de clas se
de t odas as fraç õ e s e
mas capaz de abranger a complexidade
Sem abandonar a tripartição das formações sociais nas instânci nte mas às cl_asses de
s ubfracções , camadas e categorias sociais �
as ou dimensões do econômico, político e cultural, Srour edades classistas que
que não es capa nenhum s er viv ente nas soci
sinonimizou o conceito de modo de produção com o de estrutura . _
recob rem o gl ob o. .
social, entendendo esta como princípio de articulação das rela l m p p
Além disso, o primado da p rática rnat � , � ,
o n a ao
ções estruturais, e considerando estas como as relações que con imb
o a
l ? hc�
co
u tu
ena
às relações econômicas, estendendo-as, com inegável coerência, para o qual as linguagens, s ejam elas qua � � ou
existências dessa mesma produção e resgatando a especificidade Srou r à l uz de Benjamin, ou vice-versa, cada
t i s e histonc�s
c
e autonomia das produções política e cultural. Com isso articu na p rodução simbólica trabalha com objetos � � de p rod�ç�o
na
m
a
lam-se não apenas quatro esferas que compõem cada uma das espec íficos, com instrumentos de
trabalho e tec
, den�:º � � rop na
cas
três dimensões (econômica, política, cultural), como também que são também materiais e históricos. Portanto
arte, cienc1a, ideolo
!ntersecciona-se dinâmica e dialeticamente o jogo de suas inter produção cultural, seja na esfera específi�a da
que seus p rodutos
mtra e sobre determinações. A reafirmação do postulado materi gia, técnica e s uas inter-relações, na medida e�
para �les a esfera
alista do primado da prática, como apropri ação do mundo, isto é, são materialmente p rodu zidos, teremos também
ou difusão . � na
processo de transformação de um dado objeto, tornou-se mais da produção, troca, cons ervação e �strib_ui�ã? _ do p oht1- co,
mJunç oes
complexa ao abraçar também a instância política e cultural, res medida em que também estão submetidos as
guardan do, certamente, as devidas especificidades e retirando do esses p rodutos também devem ser
lidos sob o enfoque das e sfer as
caminho os entulhos e entraves das concepções ainda fortemente
►
1 60 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS MÍDIAS 161
da segurança, administração, justiça e deliberação. redistribuições e refuncionalizações que os novos meios e processos
de produção, troca, conservação e distribuição cultural impõem
aos meios e instituições mais tradicionais, de outro, a possibilidade
U MA QU ESTÃO PRI M E IRA
Sem me prolongar nos aspectos mais estritamente indicativos de incorporação e apropriação desses novos meios dentro dos mei
das teorias que aqui foram trazidas à baila, quero pôr ênfase no os e instituições tradicionais, transformando-os.
enriquecimento que elas podem nos proporcionar para a leitura dos Termino citando uma frase de Benjamin (1975:19-20) da qual
.fenômenos e processos culturais do homem contemporâneo. As extraio um fragmento de paráfrase:
sociedades e o campo de forças entre elas se tomaram complexos
demais para um olhar e espírito desavisados. O mundo ficou dema Gastaram-se vãs sutilezas a fim de se decidir se a fotografia era
ou não arte, porém não se indagou antes se essa própria invenção
siadamente complicado. Nele não há mais lugar para a inocência
não transformaria o caráter geral da arte; os teóricos do cinema
ou ingenuidade, nem mesmo quando guiadas pelas mãos santas das sucumbiriam no mesmo erro. Contudo os problemas que a foto
boas intenções. De pronto, no fogo cruzado da complexidade, a grafia colocara para a estética tradicional não eram mais que
ingenuidade vira tolice ou imbecilidade. As teorias, quando ade brincadeiras infantis em comparação com aquelas que o filme
quadamente rigorosas, nos auxiliam a enxergar, pensar e lutar por iria levantar.
transformar.
Daí a seleção das teorias, aqui apresentadas, como instrumen Que não nos esqueçamos, assim, de levantar aqui a questão
tais que me parecem suficientemente condizentes com a complexi primeira da qual muitas outras decorrerão: em que medida os no
dade do real e promissoras para a análise de problema não apenas vos meios de armazenamento da informação cultural não são capa
do museu, mas de quaisquer outras instituições de produção, troca, zes de transformar substancialmente a concepção mesma de mu
conservação e/ou distribuição (difusão) de produtos culturais, seja seu?
na esfera da ideologia ou divulgação, na ciência, arte e técnica.
Os desafios das sociedades modernas são incomensuráveis.
Parece não haver dúvida de que a Revolução Eletrônica e o adven
to das sociedades pós-históricas, pós-industriais, e provavelmente
pós-massa, estão nos colocando no limiar de uma reviravolta com
repercussões antropológicas inauditas. O fato de estarmos neste
país (Brasil) desgraçadamente defasado e miseravelmente corrom
pido não nos livra do dever ético de auscultar intelectualmente para
onde estão soprando os ventos do planeta. Onde quer que esteja
mos, no museu, na universidade, numa editora ou num jornal, te
mos de abrir a face dos olhos para as aceleradas transformações
que estão se operando em níveis de produção, troca, conservação e
difusão dos produtos culturais.
Há um ano, também num encontro para pensar o museu, pro
pus pensá-lo dentro da era na qual ele hoje se insere: a era da infor
mática (Santaella 1988). Não vou repetir o que já disse lá. De qual
quer modo, parece-me tarefa urgente que, para pensá-lo, estejamos
munidos de boas teorias - pois "não há nada mais prático do que
uma boa teoria" - que nos auxiliem a perceber, de um lado, as
Semiótica e arte: feixes de
inteligibilidade
dúvida, uma questão semiótica. Um tipo especial e peculi�r _ de foram conseqüências; (4) o surgimento de novas tecnologias, me
semiose. É nesse sentido que se pode falar de uma ou vanas mórias artificiais e sociedades informatizadas de que termo pós
semióticas da arte ou das artes, com a preocupação de se levar em moderno é uma das evidências
conta que a imensa abrangência de campos a que � semiótica se Não podemos, porém, entrar em comentários sobre os itens
aplica é inversamente proporcional aos limites daqwlo que ela tem elencados acima, sem que seja antes dissolvido um equívoco que
o poder de desvendar. Isto é: a semiótica es� ªP?1 � revelar, ?,º � costuma ser freq üente. Não se deve confundir o surgimento gradativo
· fenômenos, tão-só e apenas seus modos de açao s1gmca, o que Jª e da semiótica como ciência, que é fenômeno historicamente bem re
uma formidável empresa, quando se entende signo no sentido mais cente (tem pouco mais de um século), com a condição antropologi
amplo possível como recobrindo desde as formas mais rudimenta camente semiótica do ser humano, que é simultânea e inseparável
res de informação até os sistemas hipercomplexos. de sua homini ou humanidade, e que vem se acentuando no proces
so civilizatório, com todas as contradições nele implicadas. Isso,
no entanto, tem de ser visto em mais detalhes.
FOCOS DE ILUMINAÇÃO
artes. Acredito que um primeiro patamar para compreender a rela O homem é um ser de linguagem. A afirmação é óbvia. Sua
ção da semiótica com a arte tem de ser percorrido no interior do compreensão nem tanto. A evolução biológica da espécie humana
labirinto de intersecções que ambas sempre travaram e que se tor incidiu, antes de tudo, sobre o desenvolvimento progressivo da cai
nou mais denso a partir do início do século XIX. Para isso, existem xa craniana, isto é, do cérebro. Entre a evolução privilegiada do
focos de iluminação que se acendem nos pontos de junção entre o sistema nervoso central do homem e a performance quer lhe é espe
surgimento da semiótica como ciência, a intensificação da cífica, a linguagem simbólica, deve ter havido um ajustamento es
intersemiose das linguagens e os intrincados caminhos da arte, no treito de modo a tomar a linguagem não tão só o produto, mas uma
decorrer deste último século e meio. das condições iniciais dessa evolução (cf. Monod 1972: 148). A
Minha hipótese, portanto, é a de que há fatores históricos, caça como ação combinada de um grupo, a produção de artefatos,
funcionando como feixes de inteligibilidade, que nos capacitam a regida por normas reconhecíveis, o processo de trabalho como ati
explicar porque a crescente emergência da semiótica como ciência, vidade projetiva e disciplinada são desempenhos exclusivos do ho
de um lado, entra em correspondência, de outro lado, com a tam mem que pressupõe a capacidade simbólica, sem a qual nenhuma
bém crescente intermiose das linguagens que é, por sua vez, previsão seria possível.
coextensiva à dissipação dos rígidos sistemas de codificação (entre Há, sem dúvida, aquilo que poderíamos chamar de linguagem
as artes e no interior de cada arte) herdados do Renascimento. ou de processos de comunicação nos animais. O animal registra,
São os seguintes os fatores que iluminam tanto a trajetória da associa e até transforma informações adaptadas a programas de
semiótica quanto a desconstrução dos sistemas artísticos (é eviden ação, assim como tem meios de aferir o mundo exterior em repre
te que há outros fatores não só na diacronia, mas _ também na sentações ajustadas a esses programas. Contudo, não há nada no
sincronia; os escolhidos são, contudo, a meu ver, suficientes para o animal que se assemelhe à maquinaria combinatória dos fonemas
que pretendo demonstrar): ( 1) o advento dos meios industriais d� que rege a complexidade de organização das línguas humanas, nem
reprodução, de que, no mundo da linguagem, a fotografia fo i há, em qualquer animal, 1 capacidade projetiva e simuladora do
paradigmática; (2) a ascensão dos objetos utilitários à condição de cérebro apta para estabelecer novas combinações e associações
signos de que, no universo da arte, o objet trouvé de Marcel criadoras que, aliadas às sutilezas da mão e do corpo, permitem ao
Duchamp era sintomático; (3) a explosão dos meios e produtos da homem produzir linguagens para fora do corpo e do cérebro, isto é,
cultura de massa de que a pop ar t e a contracultura, por exemplo, povoar o mundo de signos.
h
1 66 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS M Í DI AS 1 67
Foi a ordem simbólica, inaugurada no homem, como aconte estanques, a codificação dos sistemas artísticos em setores separa
cimento único na biosfera, que abriu caminho para a criação de um dos (arquitetura, escultura, desenho, pintura, gravura, música, dança,
novo reino . noológico, reino dos signos e da cultura. A capacidade teatro, literatura) e a exclusividade da linguagem escrita como meio
simbólica é, por sua própria natureza, proliferante. A linguagem privilegiado para a produção e transmissão da cultura, desde o
não se responsabiliza apenas por produções que respondem à ne Renascimento até o século XIX, serviram para sufocar, por alguns
_ cessidade de sobrevivência física (objetos, vestimentas, arquitetu séculos , a emergência de uma teoria dos signos que desse conta de
ras etc.), mas também a necessidades impostas pela sobrevivência uma visão interativa e intercomunicante de todas as linguagens que
psíquica. Os rituais, deuses e mitos, o canto, a música, os jogos, as o homem é capaz de ler, criar, reproduzir e transformar.
primeiras inscrições devem ter a mesma antiguidade do homem. Porém, o advento de um número crescente de meios para a
Embora a produção e comunicação semióticas sejam produção de sistemas de signos não verbais ou híbridos (jornal,
grandemente devidas à estrutura ordenada e ordenadora da língua, fotografia, cinema, quadrinhos. publicidade, out-doors, televisão,
elas não se restringem a ela. Extravasam-se. Esse extravasamento vídeo, holografia, imagens digitais ... ) veio provocar e continua pro
se acentuou no momento em que o homem buscou transferir para vocando profundos abalos e mutações no panorama das lingua
suportes externos, fora do corpo, sua capacidade para produzir lin gens, subvertendo a hegemonia secular do código verbal. Ao mes
guagens. Iniciou-se aí a longa aventura do olhar e da escuta huma mo tempo, no espaço da página jornalística e na publicidade, a
nas que começou nas inscrições nas grutas, passando por todas as linguagem escrita foi se descobrindo como um código visual com
formas de escrituras, códigos imagéticos e notações, que se dilatou potencialidade imagéticas, o que foi, imediatamente, apropriado e
na invenção de instrumentos, suportes e materiais para a produção radicalizado pela poesia até a revelação inquestionável da natureza
da imagem e do som, e que cresceu desmedidamente· a partir da intersemiótica e não apenas lingüística do código escrito.
Revolução Industrial com suas máquinas capazes de pro-reprodu Ainda está para ser avaliado o caráter revolucionário da re
zir linguagens, explodindo nas máquinas providas de inteligência cente entrada da escrita nos suportes eletrônicos. Com o videotexto,
da Revolução Eletrônica. os �rocessadores de textos e a digitalização da tela eletrônica, que
Os seres noológicos proliferaram a tal ponto que, no mundo abnga e multiplica as possibilidades imagéticas da escritura, abri
contemporâneo, estamos convivendo, esbarrando, buscando, dese ran:i-se as portas de uma nova era para a linguagem verbal cujos
j ando e nos comunicando com signos em cada canto do nosso coti efeitos serão tão ou mais reverberantes do que os da civilização do
diano e em cada milésimo de instante de nossa vida, muito mais do papel impresso.
que convivemos e dialogamos com seres carnais. Em sí�tese: o mundo, de um século e meio para cá, foi se
t<:m�ndo gntantemente semiótico. Não há como ignorar essa evi
NASCIMENTO DAS TEORIAS SEM IÓTICAS ?enc1a. � s - teorias s_emióticas são con�emporâneas às explosões
Desde sempre a humanidade esteve apta a uma natureza mtersem1oticas na paisagem do mundo. E por acaso que a semiótica,
semiótica e não exclusivamente lingüística. Já no mundo grego, era como ciência, começou a nascer imediatamente após a invenção da
aguda a consciência da diversidade de signos que pululavam no �?tografia, quando as primeiras imagens congeladas de um instante
Ja passado (souvenir da vida transcorrida) começaram a invadir
homem e em tomo do homem. Por isso mesmo, embriões de uma recantos do nosso cotidiano?
teoria dos signos podem ser encontrados nos textos dos filósofos
gregos e prosseguidos pelos escolásticos. Como explicar o fato des ARTE: Rl 1 PTl:RA E IRRUPÇÕES
ses primórdios de uma teoria semiótica terem sido subitamente si
lenciados no Ocidente, para só voltarem a emergir com urgência no Evidentemente, a arte não poderia estar incólume ou imune às
século XX? explosões i� tersemióticas que abalaram e continuam abalando quais
Provavelmente a divisão dos processos de signos em campos quer fronteiras rígidas entre as linguagens. Ao contrário, a arte tem
►
p:.
1 68 LÚCIA SANTAELLA
CULTURA DAS MÍDIAS 1 69
É por isso que assistimos hoje a uma espécie de divórcio entre arte O primeiro pensador a se dar conta do imenso poder transfor
e criação. mador da fotografia foi Walter Benj amin, no seu antológico ensaio
Explicando: embora a criação possa coincidir com o que ain sobre A obra de arte na era da reprodutividade técnica ( 1975).
da é designado como sendo arte, tal coincidência nem sempre ocor Embora nem sempre absorvidos na sua radicalidade, os efeitos da
re. Há produtos que, sob o peso da tradição, são considerados ar invenção da fotografia no mundo da arte, especialmente da pintura,
tísticos sem que por eles perpasse nenhuma pulsação criadora. Há já foram evidenciados em inumeráveis versões interpretativas do
outros, de outro lado, que, por não estarem pousados ou circulando ensaio benjaminiano. Embutido nas subversões provocadas no uni
nos circuitos ditos artísticos, podem estar cintilando como "pontos verso artístico, existe um ângulo de visão epistemológico ou mais
luminosos" bem na frente dos nossos narizes, sem que se alerte propriamente semiótica que a fotografia traz consigo que, a meu
para sua força criativa. ver, não tem sido suficientemente apreendido.
Felizmente os caminhos da criação não transitam obrigatoria Conforme já procurei demonstrar cm outros trabalhos
mente pelos corredores das instituições artísticas ou pelos salões de (Santaella 1984, 198\: 162- 166), é possível extrair da leitura da
vemissage, nem dependem exclusivamente do aval ou julgamento fotografia como signo uma teoria ilustrada das características fun
dos corretores da arte. Por isso mesmo, um século e meio de abalos damentais de todo e qualquer signo. Os artistas foram os primeiros
subterrâneos e de rupturas no interior de cada fonna de arte e nas a perceber que, por trás de sua aparência inofensiva, a fotografia
relações entre as artes parece ter estado preparando o terreno de estava preparada para exercer subliminarmente muito mais influ
sinestesia dos sentidos humanos para as irrupções da ê�cia �obre nossa leitura do mundo do que se poderiam, à primeira
hipercomplcxidade e intersemiose que, provavelmente, tenderão a vista, 1magmar.
�aracterizar os ofícios da criação daqui para a frente. Acerca disso, Foi a fotografia que tomou pela primcir� vez evidente, colo
fomos premiados recentemente no Brasil com um artigo de Lívio c�ndo na face dos nossos olhos, 'a irremediável separação entre
Tragtenberg ( 1988), brilhante, atento e perturbadoramente lúcido s1�no e objeto. Fez ruir a ilusão da representação, dissolvendo a
no seu enfrentamento dos desafios intersemióticos (por ele chama m1 �agcm de uma relação idílica entre o signo que representa e o
do de interdisciplinares) que "o desenvolvimento de novos meios e objeto representado. Depois da fotografia, nossa consciência de lin
materiais aplicados à atividade artística impõe ao criador". g�ag_em se tomou maliciosa. Não há ingenuidade que resista à evi
É nesse ponto do presente que temos de nos reencontrar com dencia da subtração e diferença que a fotografia põe a nu. Em toda
os nós de conjunção ou feixes de inteligibilidade propostos mais no relação, algo é subtraído. O vão da diferença: inominável. Sob as
início deste artigo e que, segundo anunciei, são capazes de lançar vestes do signo, algo cai. Este algo é tudo aquilo que o objeto é, e
que se subtrai porque o signo não pode recobrir. Não é que não haja
>
170 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS MÍDIAS 171
sempre, em maior o menor grau, uma revelação do objeto pelo pelo arrepio imperceptível de um certo mal-estar.
signo. Ocorre que aquilo que o signo não revela é justo o mais �� universo da cultura e das artes, Duchamp, com suas
importante: o segredo indevassável, mistério intransponível das ante�1soes do futuro, é uma espécie de rito de passagem: ponto
c01sas. termmal do apogeu da �ra mecânica-industrial ao mesmo tempo
A fotografia é paradigmática porque, mais cedo ou mais tar- �ue re�resenta
_ a� pnme1ras sementes do universo eletrônico pós
-de, todas as formas de arte sofreram os efeitos de um espírito des mdustnal. E por isso que a arte pop, na sua reação ao desmesurado
confiado e malicioso que começou a visitá-las e desconfortá-las. A crescimento dos meios e produtos da cultura de massas não foi
desconfiança para com as ilusões da representação. senão a explicitação de uma atividade estética inseparável da críti
ca que já estava implícita em Duchamp.
DUCHAMP: O LEONARDO DA DESCONSTRUÇÃO
Não é preciso nos demorarmos na descrição ou mesmo na
Outro nó de conjunção ou feixe de inteligibilidade se apresen me�ção de to�as as _ m?dalidades críticas das formas de engajemento
ta quando os objetos industriais, produzidos em série, começaram ou mtervençao art1st1cas, assim como nos inumeráveis caminhos
a povoar o mundo, evidenciando que o reino das coisas é também alternati � os que buscaram fazer frente à pasteurização e
um reino de signos. Depois da linha de montagem industrial, as homogeneidade da comunicação de massas. Passo imediatamente
coisas nunca mais foram as mesmas. Perderam a sagrada inocên para o presente, no qual parecem estar germinando no interior dos
cia de objetos únicos e passaram a funcionar como signos, isto é, próprios meios de comunicação e entre eles, sob � influxo trans
réplicas de um protótipo. bordante da teleinformática, as contradições que deverão funcionar
O primeiro a se dar conta das repercussões que os objetos como antí_dotos co?tra a uniformização e massificação dos meios
�
como signos trariam para a arte foi Marcel Duchamp. Nas suas de comumcaçao e mformação.
enigmáticas contravenções, Duchamp estava ironicamente eviden �s tecn?l?gias n:iais recentes de disseminação da informação,
ciando que, assim como qualquer imagem tem seu caráter de signo, o ca�ater mais mterattvo e bidirecional de terminais domésticos de
um objeto, qualquer objeto, também tem sua natureza sígnica que pu�hcação e de videotexto, por exemplo, os novos meios computa
lhe é própria. Do mesmo modo que uma palavra muda de sentido, donzados para a produção de imagem, o novo alfabeto de luzes da
quando se desloca de um contexto para outro, também os objetos c?mputação gráfica que redimensiona, em bases radicalmente iné
encontram nos usos, inevitavelmente contextuais, a consumação de ditas a n?ssa noção de es_critura, são inaugurais de uma era pós
seus significados. massa, h1percomplexa e mtensamente intersemiótica, cujo limiar
Se a fotografia inaugurou, no mundo da linguagem, a era da e�tamos começando a atravessar. Os efeitos que esses fatores pode
reprodução mecânica, provocando a crise da representação, levada rao provocar nos processos de produção da arte são imprevisíveis.
a efeito pelas artes, Duchamp, antecipatoriamente, pôs termo a essa Na � onta _do iceberg, aparecem os cacoetes do pastiche ,
era, antevendo o esgotamento do dilema entre figurativo vs. não �sqmzofre? 1a d�s �i?çõe � , batizados de pós-moderno. O que está
figurativo, no terreno da arte e para além desse terreno, assim como tmerso e amda mv1s1vel so podemos adivinhar: provavelmente um
levou o questionamento dos suportes das artes até o limite da outro salto de transformação com repercussões muito mais inten
dissolvência. Duchamp não foi apenas um artista, mas também um sas do q�e foram aquelas da era industrial. O presente só nos deixa
pensador não verbal da mais alta estatura. Na era da desconstrução, pressentir. Ao futuro cabe nos confirmar ou desmentir.
desempenhou papel similar, embora em posição exatamente inver
sa, àquela que o polivalente Leonardo desempenhou para as cons
truções renascentistas. Sua figura é, nesse sentido, emblemática
porque, depois dele, não há instituições, espetáculos, promoções
ou eventos artísticos que não sejam subcutaneamente atravessados
>
-
Especulações holográficas
-
são. Ora, um holograma agora é capaz de se comportar como uma
ANTI-M I M ETISMO
correm, mais ou menos céleres, pesquisas que visam às possíveis contrafluxo de atrito crítico em relação à vocação ilusionista da
aplicações e usos da holografia nos mais diversos campos, da ar númese. Isso talvez se chamasse consciência da linguagem. E pou
quitetura à geografia, da química à medicina, da micrologia à co importam as vias, os materiais ou os meios de que o artista pode
astrofísica e astronomia... Sabe-se que investimentos mais ou me fazer uso para subverter essa vocação: panos, papéis, parede, chão,
nos gigantescos subsidiam pesquisas sigilosas para as futuras ex telas, madeira... ou os próprios meios técnicos que dão suporte às
plorações comerciais de uma holovisão (cinema e TV holográficos). ilusões da mímese.
Trata-se de estudos que investem material humano-técnico-cientí À crescente sofisticação do aparato técnico à disposição da
fico em atividades que visam à finalidades e aplicações práticas, humanidade, o artista responde fazendo incidir a dominância do
atividades movidas pela intencionalidade lógica dos horizontes prag nervo criador sobre a peculiaridade e a singularidade das marcas
máticos. de sua invenção no processo e produto da criação. Desloca-se a
Quando um novo veículo de produção de linguagem surge, ele dominante dos meios ou das técnicas pela sobredeterminação das
necessariamente produz um remanejamento funcional dos meios já marcas criadoras do artista. Cada criação gera seu lugar de nasci
existentes. Mais que isso, porém, e o que mais nos interessa aqui: o mento e se gera dele.
surgimento de um novo meio traz consigo novos materiais e modos Não são poucas as implicações críticas que isso acarreta para
de operar e receber linguagem de que o artista pode dispor para os um tecnicismo ingênuo que crê que a "corrida de ouro" da criação
fins da criação. Por dominância, o que parece caracterizar, portan esteja estritamente na mera apropriação do dernier-cri tecnológico
to, a atividade criadora de um artista não apenas com hologramas, pelo artista. Não são miúdos os atritos que isso também produz no
mas com qualquer meio que lhe esteja disponível - desde os mais outro lado da moeda, a mística da criação restrita ao mundo artesa
artesanais até os mais tecnologicamente sofisticados - é sua utili nal. Mas, além disso, · e o que parece ser mais conturbador: a
zação desse meio nesse espaço não finalista e, por isso mesmo, contracorrente crítica da criação abala nas bases e abalroa, antes
perturbador da criação, isto é, sem quaisquer outras finalidades de tudo, a concepção do tempo linear e da história como progresso
senão aquelas que regem a própria criação. Atividade impulsiona da teleonomia ocidental. Não é simples a urdidura dos porquês e
da por essa mesma espécie de exuberância sem finalidade que move das implicações que essas questões encerram. Ninguém mais do
o prazer e intercepta o poder. que o artista está apto a auscultar, com os sensores da intuição, os
É nos arcanos da alma lúdica ( entre o rigor e o jogo, o brin caminhos da sensibilidade a serem abertos através do potencial com
quedo e a pesquisa, nos tênues interstícios da liberdade e da disci que as novas tecnologias o desafiam.
plina, da lucidez e da inocência, na aventura e no risco) que o artis
ta extrai a obstinação da criação. Depois de W. Benjamin, não é
mais novidade se falar da crise nas artes no Ocidente sob o impacto
dos meios de reprodução, notadamente a partir da invenção da fo
tografia. De lá para cá, contudo, já se pode discernir que, enquanto
os meios de reprodução (fotografia-cinema-TV-holografia) evolu
em no aperfeiçoamento técnico dessa espécie de poder mimético
(registro que busca uma fidelidade ilusionista e servil ao "real"), o
que temos chamado de crise da arte não é senão essa outra espécie
de contracorrente crítica em relação à vocação mimética dos meios
de reprodução.
Se alguma coisa pode caracterizar uma atividade diferencial e
dominantemente criadora, de cem anos para cá, é sua inserção nesse
Ilha eletrônica
uma consciência de dois lados: o lado ingênuo-celebra'tório e o lado brecha, fenda, hiato entre o mundo e sua imagem. Desabamento do
problemático-angustiante. sonho idílico da unidade. Quanto mais um aparelho ou máquina se
De fato, para um olhar ingênuo, a fotografia é a réplica per aperfeiçoa no registro mimético de mundo, mais evidente se torna
feita de um fragmento do mundo. Documento inquestionável do sua impossibilidade de ser igual àquilo que registra. Há um
vivido. Captura do instante para a eternidade. descompasso, defasagem entre o ritmo do mundo, matéria vertente
Desde suas primeiras imagens nas grutas, a humanidade tem do vivido, e a capacidade do registro. A febre da vida não cabe em
· sonhado com a reprodução do mundo visível. Registrar num supor imagens. Sob as vestes da imagem, algo cai . Esse algo é o real que
te duradouro a evanescência do instante. Sob esse aspecto, o ad resiste na sua irredutibilidade.
vento da fotografia foi uma festejada conquista. Afinal, lá está. . . A consciência do duplo instaura o dilaceramento do roubo da
um pedaço do mundo, tal qual, mimeticamente duplicado num ne vida pela morte. O instante capturado na eternidade do registro é o
gativo, matriz infinita de cópias, antídoto contra a fugacidade. flash congelado de um vivido que se esvaiu. A eternidade é a prova
Mas o sonho da mímese não podia parar aí. Faltava o movi irrefutável da transitoriedade da vida provisória. Cada instante,
mento. Inventou-se então o cinema, movimento pouco a pouco ajus porque irremediavelmente passageiro, incuba sua própria morte_. O
tado até a imitação real. registro, na ânsia de documentar a vida, documenta o passageiro,
Como se a potencialidade mimética de cinema não bastasse, fugaz, para sempre perdido.
com a Revolução Eletrônica a humanidade ainda inventaria um A consciência do duplo é uma consciência fragmentada. A
poderosíssimo meio de registro e transmissão, em tempo real, de moldura do registro é fruto de um corte abrupto e arbitrário que
sons e imagens que iriam chegar a nós, dentro de nossa própria divide e separa o mundo - vasto mundo - de sua imagem. Toda
casa, como chegam a água e a luz. imagem é uma sinédoque. Contudo, surpresa maior. O advento da
É certo que a imagem televisiva, p roduzida por u m imagem técnica, à maneira de um apres-coup, veio evidenciar que
bombardeamento de elétrons, não é tão nítida e precisa e nem tão o olhar, qualquer olhar, mesmo na mais l�mpida nudez de sua
pregoante quanto a fotográfica. Mas com a televisão estava supe pretensa inocência, é sempre fragmentado. E por isso que a foto
rada, enfim, a limitação do tempo gasto na revelação, hiato entre o grafia é uma espécie de hipérbole do olhar. Tanto quanto a fotogra
mundo e sua cópia. E por tudo isso que os ingênuos se comprazem fia, o olhar é um constructo, limitado pelo ângulo, nível de aproxi
na celebração das conquistas realistas da imagem. Mas é justamen mação ou di stanciamento, ponto de vi sta e adversidade
te essa celebração que os novos recursos eletrônicos, das mais intransponível entre aquele que vê e aquilo que é visto. A fragmen
modernas ilhas de edição, vêm ferir mortalmente. tação fotográfica funciona, assim, como denúncia de uma limita
A profusão das misturas entre real e irreal, registro e manipu ção congênita do olhar humano. O cubismo foi tão desconcertante
lação, imagens referenciais, imagens sintéticas, intercambiadas ou porque, entre outras coisas, é uma evidência dessa limitação. Por
sobrepostas, autonomia rítmica, que se desloca e desprende do tempo isso mesmo o cubismo preparou nossa sensibilidade ótica, perceptiva
do referente, até a invenção de um universo próprio, são as caracte e mental para o advento do cinema: colagem de fragmentos.
rísticas que afastam cada vez mais o vídeo de sua pretensa genealogia Chegado o cinema, contudo, acentua-se ainda mais a dupla
e vocação realista. É esse afastamento, de resto, que nos permite face do duplo. A costura de fragmentos em movimento real cria a
rever e recuperar a vertente problemática e angustiante do duplo, ilusão da continuidade. Assim sendo, ao mesmo tempo que gera
cuja semente já estava na fotografia, mas que a euforia mimético munição para os adeptos do realismo, o cinema começa paradoxal
realista ingenuamente vinha colocando na sombra. e crescentemente a ir de encontro à sua mais profunda vocação: a
O MUNDO E SUA I MAGEM narrativa ficcional. Mesmo quando se prende a regras estritas da
documentação e do registro histórico, nada pode refrear o intenso
A consciência do duplo abre e intensifica a consciência da poder do cinema para excitar o imaginário.
- 0]
1 82 LÚCIA SANTAELLA
para gerar e consumir mensagens, algo que é comumente atribuído de _ que, sem deixar de ser parte da biosfera (reino mineral, vegetal e
só aos humanos, está presente nas formas vivas mais humildes, animal), graças ao crescimento do neo córtex e de sua capacidade
sejam elas bactérias, plantas, animais ou fungos, além de aparece s �bólica, emergência única na biosfera, o homem foi capaz de
rem nas suas partes componentes tais como as unidades subcelulares ena � � n:1 quarto remo, o da noosfera, também chamado pelo
(por exemplo, as mitocôndrias) as células, organelas, órgãos e as sem1�tlc1sta russo, I. Lotman, de semiosfera, reino dos sign os ou
sim por diante". Do mesmo modo, das lmguagens, estas feitas de sinais, gestos, movimentos, sons,
traços, formas, luzes, volumes, imagens, notações, palavras, ci
o código genético global também pode ser (como fertilmente tem fras, álgebras, símbolos etc.
sido) analisado em termos comunicacionais: a mensagem se ori
gina na molécula, no programa mestre chamado DNA, seu fim
OS SIGNOS ESTÃO CRESCENDO
sendo marcado por uma proteína. O jogo intrincado de ácidos A hipótese com a qual venho trabalhando há algum tempo,
nucleicos e proteínas, a essência da vida no universo, fornece o para com�reender o crescimento contínuo dos sign os e das lingua
modelo prototípico para todas as formas de comunicação (Sebeok gens, da circulação de mensagens e o conseqüente crescimento do
199 1 .: 23). própri_o cérebro humano, é a de que esse quarto reino, o noológico,
Só há comunicação quando algo é transportado de um lugar a sem_ 1osfera, está em expansão ininterrupta. Para essa expansão,
para outro. Esse transporte visa a exercer alguma influência ou aquilo que chamamos de canais ou meios para a comunicação de
produzir alguma transformação no lugar de destino. Só pode haver mensagens tem desempenhado, desde tempos imemoriais, um pa
transformação quando aquilo que é transportado contém alguma p�l fundamental. As novas tecnologias - cuja emergência e cres
espécie de informação. Toda informação precisa se corporificar em cimento em progressão aparentemente geométrica vêm ocupando a
algo. Esse algo se constitui naquilo que é chamado de mensagem, atenção e mesmo assustando o intelecto dos analistas do social -
que, por sua vez, só existe quando materializada em signos, os devem estar muito provavelmente inseridas na linha de continuida
quais, para serem capazes de informar, devem estar de alguma for d� da e�pan��o semiosférica. Longe de ser apenas urna conseqüên
ma codificados. Ora, para ser transportada de um lugar para outro, cia d� msac1a�el produ�ã� capitalista, creio que o advento e pro
a informação, materializada numa mensagem, necessita de um ca gr�ssao dos me10s tecnolog1cos são partes de um programa evolutivo
nal. Conclusões: ( 1 ) não há comunicação sem transmissão de in �UJO desenrolar podemos retrospectivamente traçar, mas cujo des
formação; (2) não há informação que não esteja encarnada numa tmo, oculto, não podemos senão desconhecer.
mensagem: (3) não há mensagens sem signos; (4) não pode haver �s signos, ou _elementos componentes das mensagens, são,
transmissão de mensagens sem um canal que a transporte. Mas por s1 mesmos, realidades materiais, concretas. Todas as mensa
isso tudo já é sobejamente conhecido. O que não é tão conhecido é gens, por mais evanescentes ou imateriais que pareçam, estão· sem
o fato de que, quando são perscrutadas em seus elementos constitu pre e�camadas rio corpo dos sign os. No entanto, conforme já foi
intes - os signos - percebe-se que "as mensagens permeiam toda mencionado, para serem transportadas, transmitidas, para que 0
a biosfera, o sistema de fluxo dirigido e responsivo da matéria e processo de comunicação se efetive, as mensagens necessitam de
energia que constitui a totalidade da vida na Terra" (Sebeok 1 99 l ª: um canal. �ste pode �eceber outros tipos de denominação, tais como
22). suporte, veiculo, me10 etc., mas a função é sempre a mesma: a de
As mensagens humanas, são, assim, apenas aquelas mais vi que _as mensagens, nas quais os processos sígnicos (ou processos
síveis aos próprios humanos, mas estão longe de ser as únicas que de lmguagem) se configuram, sejam transmitidas de uma fonte a
se cruzam e se interpenetram na biosfera. Dentro dessa rede um destino. Portanto, quando se trata de analisar o fenômeno da
intrincada, de que a humanidade, ela mesma, deve ser uma conse comunicação, esse componente do processo - o canal -desempe
qüência, a especificidade do ser humano está provavelmente no fato nha o papel mais substancial.
1 86 LÚCIA SANTAELLA
CULTURA DAS MÍDIAS 187
nada que esteja fora do próprio corpo; só precisando do ar para ser As primeiras formas de desenho, nas pedras e nas grutas, e
todas as formas de escritura, pictográficas, ideográficas e alfabéticas
1 88 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS M ÍDIAS 1 89
deram início ao processo de cxtra-somatização do meio de Assim, a mão, ligada a certas habilidades motoras do corpo, passa
armazenamento dos signos, quer dizer, dentre os quatro meios que a desempenhar o papel de mediadora entre as faculdades imaginativas
operam nos processo de comunicação e que estavam todos encar e cognitivas do cérebro e um dado suporte, no qual os signos ficarão
nados no próprio corpo, um deles, o meio de armazenamento, co armazenados. Mas para realizar tal função, a mão precisa de uma
meçou a ter, fora do corpo, prolongamentos para a capacidade de extensão, isto é, instrumentos capazes de realizar as inscrições no
memória que é própria do cérebro. Senão vejamos. suporte. Esses instrumentos podem ser os mais variados, mas serão
Enquanto as fonnas pictográficas e ideográficas são mais sen sempre prolongamentos da mão. Desse modo, mão e instrumentos
síveis e motivadas porque mantêm uma analogia visual, e mesmo passam a funcionar como meios de produção, extensores do cére
ideogrâmica, com aquilo que querem representar, o código alfabé bro, deixando, no mundo externo, marcas da capacidade simbólica
tico, embora aparentemente mais arbitrário, realiza, no entanto, a do homem. O canal ou meio de transmissão, que, na fala, estava no
proeza de conseguir traduzir e transferir, para um suporte visual, a corpo, desloca-se agora para o suporte externo, enquanto o olho,
faculdade articulatória da fala. É, por isso mesmo, a tradução mais como órgão codificador e decodificador, e o olhar, como definidor
econômica, no sentido de que, do mesmo modo que a fala é toda da intencionalidade e finalidade da visão (Aumont 1993 :59), pas
ela, em todas as línguas, produzida com um número mínimo de sam a exercer a função de meios de recepção.
sons engenhosamente articulados, assim também, com um número Crescendo no mundo exterior, os signos, tais como escultu
mínimo de representantes visuais desses sons, as escritas alfabéti ras, desenhos, pintura, linguagem escrita, armazenados em supor
cas transpõem, para a visualidade, o caráter articulatório da fala. tes específicos, isto é, em livros e quadros, desde suas formas mais
Não foram poucas nem triviais as conseqüências do apareci primitivas e rudimentares, começaram a exigir o aparecimento �e
mento dos primeiros meios extra-somáticos de preservação da me meios de conservação. Armazenagem e conservação têm de carm
mória humana. A primeira delas foi a de dar início a um processo nhar necessariamente juntas. Surgiram, assim, os templos, as bibli
remarcavelmente crescente de alargamento da funcionalidade e es otecas e museus. Não foi causal o impacto provocado pelo apareci
pecialização da visão humana. No princípio timidamente, hoje ili mento da tinta a óleo na Renascença. "Com o gradual acréscimo de
mitadamente, o ser humano começou a povoar o planeta de ima material oleoso na têmpera sobre madeira, surgiu a tinta a óleo,
gens bi e tridimensionais e de escritas que também não são outra com maiores possibilidades de manuseio e maior flexibilidade, cri
coisa senão um certo tipo de imagem. Ora, ao sair do cérebro, as ando a possibilidade de utilização do tecido como suporte, quase
imagens, como figuras ou como escrita, precisam de suportes ex sempre o linho" (Sogabe 1990: 11). Como material menos sujeito à
ternos nos quais possam se encarnar para durar. No caso das ima degradação, o óleo em tecido permitiu aliar a natureza leve, móvel
gens bidimensionais - em pedra, osso, metal, parede, placa de e portátil do quadro à necessidade de sua conservação.
argila, madeira, couro, papiro, tecido e papel - a progressão, que Índice maior da tendência à proliferação crescente a que os
vai da pedra ao tecido e papel, indica a passagem crescente do signos estão fadados, entretanto, seria aquele da invenção da pren
suporte fixo, preso ao solo, para o suporte transportável. Se o aces sa tipográfica, inaugural daquilo que McLuhan (1972) veio tornar
so aos suportes fixos pressupunha o deslocamento do receptor ao conhecido como a Galáxia de Gutemberg. O meio de produção
local, os suportes portáteis viriam permitir o deslocamento dos pró passa aí a ser, em si mesmo, um meio de reprodução, permitindo
prios suportes no espaço, evidenciando a necessidade de concilia que, a partir de uma única matriz, uma infinidade de cópias sejam
ção da durabilidade com a mobilidade necessária à circulação da produzidas. Têm início aí, no livro impresso, os primórdios ?ºs
informação (Sogabe 1990:9). processos de comunicação de massa que, vindo estender a poss1b1-
Quando estendem a memória para fora do corpo, as imagens lidade da recepção das mensagnes para um público cada vez maior,
externas também produzem necessariamente modificações nos meios ainda não tiraria das elites econômica ou politicamente privilegia
de produção, de transmissão e de recepção de suas mensagens. das a detenção dos meios de produção de linguagem e de cultura.
--
--,.,--
i
O mesmo princípio da prensa tipográfica está na base da gra intensificar a circulação dos signos e das mensagens. Se antes os
vura na qual o suporte funciona como uma matriz reprodutora, receptores tinham que se locomover até onde os signos estavam,
com a reprodução, os signos e as mensagens passaram a ir ao en
permitindo a sua multiplicação em outros suportes. Processos rudi
contro de seus receptores. Mantendo algo em comum com esses
mentares de reprodução já existiam desde os gregos: a fundição e a
meios reprodutores, a fotografia viria introduzir algumas novida
cunhagem. Mas seria só com a reprodução em madeira que se con
des revolucionárias em relação ao passado. Entre as novidades,
seguiria "a reprodução do desenho, muito tempo antes de a impren
sa permitir a multiplicação da escrita". A Idade Média viria acres talvez a mais inédita seja a de ter dado início ao aparecimento cres
centar o cobre e a água-forte à madeira. Mesmo assim, as técnicas cente de máquinas dotadas de alguma inteligência. Um dos grandes
de reprodução teriam de esperar pelo início do século XIX para unpactos das novas tecnologias deve estar justamente nesse fato
encontrar seu progresso decisivo com a litografia que, "ao subme inaudito, de que, ao estenderem a capacidade simbólica do cérebr�
ter o desenho à pedra calcária, em vez que entalhá-lo na madeira ou para o mundo exterior, estão permitindo o crescimento cerebral para
fora da caixa craniana. Embora haja uma tendência a se considerar
gravá-lo no metal - permitiu pela primeira vez às artes gráficas
não apenas se entregar ao comércio das reproduções em série, mas que os computadores foram as primeiras máquinas que incorpora
produzir, diariamente obras novas". Ao ilustrar a atualidade coti ram alguma forma de inteligência, as raízes dessa questão, a meu
diana, o desenho tomou-se íntimo colaborador da imprensa (Ben ver, remontam à fotografia .
jamin 1 975 : 1 2). AS MÁQUINAS INTELIGENTES
Conforme já enunciei em outra ocasião (Santaella 1 994 : 1 59),
é necessário aqui lembrar que análise similar, à que foi acim1 esbo Já é amplamente conhecido o fato de que a câmera fotográfi-
çada acerca da imagem, caberia também à música. Se é totalmente ca, conforme nos afirma Arlindo Machado (1 984:30-32),
produzida no corpo, no caso do canto, ela foi gradativamente se já estava inventada desde o Renascimento, quando proliferou sob
separando do corpo com o aparecimento dos instrumentos musi a forma de aparelhos construídos sob o princípio da camera obs
c�is, ficando _só a mão e a boca como elos de ligação entre o corpo cura. ( . . . ) Do ponto de vista óptico, já estava resolvido no
cerebro e os mstrumentos extra-somáticos. Também, na música, o Renascimento o problema da fotografia; o que a descoberta das
advento das formas de notação, da música escrita, tiraria da memó propriedades fotoquímícas dos sais de prata significou foi sim
ria cerebral um excesso de sobrecarga como meio de armazenamento, plesmente a substituição da mediação humana (o pincel do artis
além de que a música iria, de modo similar à imagem, ao encontro ta que fixa a imagem da câmera escura) pela mediação química
de meios de reprodução do som, de maneira que a evanescência do do daguerreótipo e da película gelatinosa.
material sonoro pudesse ficar gravada em suportes duráveis.
O grande salto de transformação viria, no entanto, com a pas Com o código de representação da perspectiva artificia/is que
sagem do mundo artesanal, em que o corpo e a mão ainda reinavam completou e corrigiu a camera obscura, "faltava apenas descobrir
soberanos, para o mundo industrial-mecânico, quando apareceram um meio de fixar o 'reflexo luminoso' projetado na parede interna
as primeiras máquinas rudimentarmente inteligentes, capazes, elas da camera obscura. A descoberta da sensibilidade à luz de alguns
n:iesmas, de produzir linguagem, até então tarefa e privilégio exclu compostos de prata, no começo do século XIX, veio solucionar
sivo do cérebro. A primeira dessas máquinas, inaugural daquilo esse problema e representou o segundo grande passo decisivo na
que viria receber mais propriamente a denominação de meios invenção da fotografia".
tecnológicos, foi a câmera fotográfica. Como se pode ver, o que a câmera fotográfica fez foi introjetar,
O que se tem na escrita e na gravura é apenas a automatização verdadeiramente materializar, numa máquina, uma certa inteligên
reprodutiva. Nelas, o meio de armazenamento extensivo da memó cia visual acerca do funcionamento do olho e da fixação do reflexo
ria cerebral, tem uma natureza reprodutora qu� cumpre a função de da luz, além de uma certa inteligência representativa e imitativa da
CULTIJRA DAS MÍDIAS 193
LÚCIA SANTAELLA
192
ext
dos sentidos e da inteligência humana foi �
atiz a� essa h ab 1- cesso de recepção. Com o advento da televisão, es ses atos e proces
i c paz d � ut
quin a q1.,1e, daí para a frente , _ e se hrru�r a u m sos se t omaram s imu ltâneos , inaugu rando o fenômeno da s incronia
o fotografico esta longe d
ser a a a om
o fot?g
da m áquina e a inteligência sen sível d ço ocupado por esses meios quanto no aspecto de s ua durabilidade .
portante nisso tudo, de onde advé .º � : rte im pacto p roduzido pela
1ad a grande aven_tura - Mas não demoraria para que a quantidade de informação imagética ,
fotografia, é q ue nela se deu por m1c �
m
cos mo s . . _
g afi c inci d ! u c om � auto_mat1zaçao tal como ocorreu no mundo mecânico, mas da exten s ão de ce �
O ap arecime nt d fot
1?1 r s s o, ah da ao te capacidades cerebrais , além de que p ropicia, pela primeira vez, o
da impressão. A rep rodu ção acelerada da p � � � nci�a mai_ s a
o a o r a o
homem moderno. Inau gu «:nnmal, ou micro computador pes soal, pode estar atado, senão
como obrigatória "oração matutina" do fia, acompa gigante scos cérebros , competências e saberes , fora da corpo huma
e mas sas , jornal e fotogra
rais do advento da cu lt ura d no, qu e e�tã? aí disponíveis para serem seletivamente apropriados
possibil itou surgi� ento
o
nhados da m ultiplicação dos l ivros , qu e por �ada md1víduo e por coletividades inteiras? As trans formações
cinema, como meio de
do rom ance-folhet im, depois segu idos do q ue i s so e stá produzindo na comunicação e cultura hu manas s ão
entret enimento de mas s as,
tu do i s so p rovocaria fortes abalos na
rias à cultu tão_ vastas ao ponto de desafiar noss a capacidade reflexiva. A pri
elite s. As contradições próp
exclu s ividade cultural das mei� conseqüência mais visível dessas t ransformações está na cri
el a que se
a da era elet romecânica, aqu
ra mas s ificada, cultu ra típic se evidente que os meios informatizados estão p rodu zindo nas no
est endeu da fotog rafia e
jornal até ao cinema, for� la�gament ções t radi cionais de cul tura erudita e popular e nos fenômenos de
e
tirar a relevanc1a_ d
debatidas pelos c ríti cos do social . Sem comunícação d� massas. Quanto às outras transformações, elas e stão
s
ocar em relevo e o � p
esse
infindáveis debates , o que aqui importa col em p rocesso diante dos nossos olhos , sensíveis aos nossos ouvidos
fera que , nos meios eletro
r
cesso contínuo de c rescimento da semios e ocorrendo dentro do nosso p róprio pen samento. Para percebê-las
.
nicos viria encontrar um aliado estupendo há q ue estar alerta.
p ci ente a fotografia e o
Embora os meios mecânicos,
para uma máquina
alm
►
O homem e as máquinas
A transmissão ou modificação na aplicação do p oder, for� a "O século XIX foi marcado pelo signo da Revolução Industrial
ou movimento, características do funcionamento das maqumas, , ve�o cujo emblema era a máquina a vapor, capaz de converter a energia
ganhar um novo impulso com o aparecimento dos mo!ores. I:Ia :'ª química do carbono em energia cinética e finalmente em trabalho
rios tipos de motores, a vapor, de combustão, pneumatico, hidrau mecânico. Qualquer motor tem como input alguma energia não me
lico elétrico. Todos eles têm cm comum a capac1da?e de tran�for cânica e como output algum trabalho mecânico' ' (Marcus 1995).
ma; uma energia dada em energia cinética, mecâmc_a. Dep?1s. da As máquinas, que a Revolução Industrial introduziu, maravi
invenção dos motores, a palavra máquina, num �en�1do mais lite lharam nossos antepassados porque eram capazes de substituir a
ral, passou a se restringir a equipamentos que d1spoem d� algum força fisica do homem. Primeiramente pela utilização do vapor, e,
tipo de motor. Foram o� motores _ que trouxeram � m � ovo impulso mais tarde, pela utilização da eletricidade, a energia da máquina foi
para o ideal de autonomia no funcionamento �as maqumas, de m_odo posta a serviço dos músculos humanos, livrando-os do desgaste
que, elas passaram a ser basicamente entendidas como um conJun (Schaff 199 1:22). A Revolução Industrial foi uma revolução ele
to de partes ou corpos sólidos, de um lado, e d� um gerador de tromecânica, característica esta inscrita na natureza de suas má
energia cinética, mecânica, de outro, que trans1?1te força e mov� quinas cuja potência não poderia ir além da imitação dos gestos
mento entre essas partes de um modo predetermmado e com finali- humanos mais grosseiros e repetitivos, enfim, dos movimentos
dades predeterminadas. . mecânicos. Trata-se de máquinas servis, tarefeiras, que trabalh am
O pensamento sobre as relações, e �esmo s�br� a analogia, para o homem, ou melhor, substituem o trabalho humano naquilo
homem-máquina não é recente. Já aparecia em Anstoteles, esteve que este tem de puramente tisico e mecânico. Além disso, tal subs
na base da concepção dualista do ser humano em De�cartes; tendo tituição não se dá em igualdade de condições, pois a máquina é
ocupado de uma forma ou de outra a_ mente de multas filo� ofos. capaz de acelerar os movimentos, intensificando a realização das
Embora o estudo histórico e comparativo das reflexoes filosofic s tarefas.
�
sobre as máquinas seja de grande interesse, não _será_ esse o cami Toda máquina começa pela imitação de uma capacidade hu
nho que minhas considerações_ to?1a�ão . a segmr, v1s!o que m:u mana que a máquina se torna, então, capaz de amplificar. É nesse
objetivo é mapear os três princ1pa1s mve1s que dete�te1 na re� a�ao sentido que já existiam máquinas bem antes da Revolução Industri
homem-máquina: ( 1 ) o nível muscular-motor, (2) o mvel sensono e al. Uma alavanca, por exemplo, é uma máquina na medida em que
(3) o nível cerebral. . seu ponto de apoio, ao se aproximar do objeto a ser movimentado,
Esses três níveis são históricos, quer dizer, o muscular prece converte-se em um amplificador de força. Além dessas máquinas
de O sensório que, por sua vez, precede o cerebral. Isso não quer dedicadas a ampliar a força, existiram também engenhos voltados
dizer, entretanto, que o aparecimento �e um n�vo m, �el leve ao de para a mecanização da l ocomoção. "O movimento de grandes pe
saparecimento do anterior. Ao contráno, um �1vel nao �ula o ou sos arrastados sobre troncos gigantes foi um precursor do veículo
tro, mas permite a convivência, e, por vezes, 11:1staura ate mesmo o de rodas, que traduziu o poder próprio ao homem de l ocomover-se
intercâmbio ou colaboração com o nível antenor. - um poder ampliado no seu devido tempo mediante a incorpora
ção de motores de toda espécie" (Beer · 1974:25).
As duas características acima, já presentes nos rudimentos de
AS MÁQUINAS MUSCU LARES
Se antes da Revolução Industrial, as relações entre homem e qualquer máquina, seriam aquelas que definiriam o perfil das pri
máquin� eram ainda incipientes, limitando-se a truculentos artefa meiras máquinas industriais: a substituição amplificada da força
tos, do tipo de uma catapulta, ou a instrumentos, tais como os _ de tisica humana e a mecanização da locomoção. É justamente esse
tortura, o relógio e alguns instrumentos de me?1?� e de pesqmsa tipo de funcionamento que esteve na base das primeiras noções de
como o telescópio, a partir do século XVIII e lillc10 do ?'IX, �sse robô, máquina à imagem e semelhança dos músculos humanos,
cenário começou a passar por profundas e crescentes mod1ficaçoes. pronta para trabalhar para o homem ou em seu lugar.
►
T
Embora tenha sido um invento da Revolu ção Indu strial, �s promove r o advento de uma máqu ina totalmente nova, tão nova e
máquinas mu sculares sob revivem até hoj e sob ":1úl�
iplas aparên�1- complexa a ponto de ir se afastando cada vez mais da idéia de uma
as, não estando, nem de longe, confinadas nas fabn�as,_ nas, indu s máqu ina, co nform e será disc u tido mais adiante. Trata-se do com
trias . In felizmente, a similaridade entre homem e maqu ma e tom� pu tador, dispositivo com habilidades que apresentam algu ma simi
da mu ito ao pé da letra, o que impede o reconhecimento das_ �ulti laridade com as habilidades do cérebro.
dões de robôs muscu lares que tomam conta do nosso cot1d1ano, Ao serem acoplados à produ ção ind u strial, os computadores
sem que tenham necessariamente � f��a humana, ,sen:1 que tenham nos deram o primeiro exe mplo verdade iro de dispositivos capazes
a nossa aparência. Dentro dessa 1de 1a de �ma maqu ina cap_az de de controlar máqu inas, transformando o cenário da produção na
aumentar ou mesmo substituir funções fis1co-mu scu lares, s�o ro medida em que permitiram o aparecimento de fábricas inteiramente
bôs máqu inas tais como o eleva�or, o auto1!1óvel, uma batedei ra d,e automatizadas, nas qu ais os operários são substituídos por robôs
bolo, um liqu idifi cador, um asptrador de po, e outros tantos utens1- que eliminam com êxito crescente o trabalho h umano na produ ção
lios qu e facilitam a vida doméstica. e nos serviços (Schaff 1 99 1 :22). De fato, as fábricas m ode rnas
Exigências muito mais compl exas do que as _ dos pequenc�s contam com ilhas de máqu inas computadorizadas que fabricam
robôs domésticos, contudo, são aque las que a nece
ss1d�e de p r_ec! ou tras máqu in as. Demac ( 1 990: 2 1 1 ) nos diz que, mu ito brevemen
são na mecanização 4as ferramentas apresenta para a �ndu s�nah te, essas ilhas estarão conectadas num arqu ipélago de agentes pro
zação da produ ção. E po r isso que, j unto com
a �phficaçao da dutores intercomunicantes. Antes do advento do com putador, as
fo rça e mecani za ção do mo � im en to, u �� ou t ra capaci dade humana máq u inas não passavam de robôs acéfalos, p u ramente mu sc u lares.
que p recisou ser imitada foi a da p rec1 sao. Pa r� s u sten tar uma fer O comp utador veio lhes trazer um pouco de cérebro para seu s mús
_
ramenta, u ma p ren sa inicia um a cadeia ev � lut1va _ _ finalm�nte,
qu e, cu los embrutecidos. Essa passagem, entretanto, do n ível mu scu lar
to ecânic o q , al d 1m1ta r, amp hfica ao cere bral não se deu diretamente . Foi mediada pe lo advento de
engendra u m instrumen m ue em e
a capacidade de p recisão (idid.:2 5). A • um outro tipo de máqu i na, op erativa no níve l mais propriamente
. _
Os problemas apresentados pela prec1sao mecamc�-�as !erra sensório, que iria introdu zir uma outra ordem de questõe s.
mentas são os seguintes: "como se pode controlar a sequencia �
atividades p recisas; como se pode acoplar u ma peç� de t rab�lho a
AS MÁQUINAS SENSÓRIAS
peça seguinte e como se pode intervir nessa seqüênc_1a? Esse tipo d� Ainda no contexto da Revolu ção Industrial, distinta das má
flexibilidade no elaborado p rocesso de fabricar obj etos pertence a qu inas su bstitutivas do esforço muscu lar humano, uma ou tra espé
capacidade humana=', pois implica uma atividade de controle da cie de máqu inas começou a aparecer. Trata-se das máqu inas que
mais alta ordem cuja execução requer "não apenas as ferramentas fu ncionam como extensões dos sentidos humanos especializados,
altamente enervadas dos dedos e cu idadosamente controladas �os quer dizer, extensões do olho e do ou vido de que a câme ra fotográ
arcos reflexos do sistema nervoso autônomo, mas requer tambem fi ca foi i naugural . O fu ncionamento de tais máq u in as está ligado de
nos países de
um céreb ro". É em razão disso que as indústrias, mane ira tão visce ral à especialização dos sentidos ou aparelhamen
há algu m te?1po, o
economia e tecnologia avançada, exigiam, até tos da visão e da escuta humanas que a denominação de aparelhos
trabalho integrado das máqu inas e dos homen s. � _ e cerebros
Co os lhes cabe muito mais aj u stadamente do que a de máqu inas .
hu manos adaptáveis à mecanização acelerada das maqu mas de que Enquanto as máqu inas mu scu lares são engenhosas, os apare
Charl es Chaplin nos deu uma esplêndida caricatura em Tempos lhos ou máqu inas sensórias são máqu inas construídas com o au xí
modernos . lio de pe squ isas e teorias científicas sobre o fun cionamento dos
Não foi, entretanto, preciso esperar muito para que o Jogo da sentidos humanos, mu ito especialmente o olho. São, por isso mes
civilização transformasse os Te"':pos m�de�nos nu� d�cu��nto mo, máqu inas dotadas de uma inteligência sensíve l, na medida em
históri co. As con quistas n otáve is da c1 enc1a e da tecmca mam que corporifi cam um ce rto nível de conhecimento teórico sob re o
b
200 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS M Í DIAS
20 1
funcionamento do órgão que elas prolongam. São também máquinas vi s uai s e auditi vos são signos roubados ao mundo, q11er dizer,
cogniti"as tanto quanto são cognitivos os órgãos sensórios Se os capturados da realidade para dentro de uma câmera ou gravado r e
s entido s humanos funcionam como janelas para o mundo, canais d�volv1dos ao mundo c�mo duplos, imagens e ecos daquilo que
de pa s sagem, meios de conexão entre o mundo exterior e o interior, existe. O s aparelho s sao, por isso, máquina s pa radoxalmente
s e algumas funçõe s ce reb rai s já começam a ser executadas nos ní us urpadoras e doadoras. De um lado. rou bam pedaços da realida
veis do olho e do ouvido, todos es ses papéis tamb ém se incorporam de, de outro, mandam esses pedaço s de volta, cuspindo-os para
aos aparelhos. fora na torma d� signos. Ent retanto, além de duplicadores, os apa
Enquanto as máquinas muscula res fo ram feitas para traba rel hos s ao tam bem reproduto'.es, g ravado res ad infinitum dos frag
lhar, os aparelhos foram feitos para simular o funcionamento de me,nto s que registram. Alem de repl icantes s ão, s o b retudo
um órgão sensório. São, de fato, conforme os caracterizou McLuhan p roliferantes, dotados de um alto .pode r pa ra a proliferação de sig�
( 1972), p rolongamentos ou extensões dos órgãos dos sentidos, si nos Os aparelhos func!onam, ass im, corno ve rdadeiras us ina s para
mulando seu funcionamento. Mas, ao simular esse funcionamento, :
a p1o?uçao de signos. E por ess�s razõ�s que, não o bstante as gran
os aparelhos extensores se torna ram capazes de p roduzir e repro d�s diferenças nos modos de registro, difu são, distri buição e recep
duzir entidades inauditas que viriam p rovocar modificações pro çao que separam a fotografia do cinema e que separam mai s ainda
fundas na própria paisagem do mundo. a�bos _da videografia .e esta da holografia, todos e s s�s aparelho�
Enquanto as máquinas tarefeiras imitam e amplificam os po sao regidos por denomma�o res comuns, entre eles, p rincipalmente:
deres da musculatura humana, acelerando o ritmo do trabalho, os ( 1) o fato de serem ve rdadeiras usmas sígnicas e (2) o caráter vicário
aparelhos são máquinas de registro, que não apenas fixam, num dos. s 1gnos que produzem, o cordão umb ilical que liga esses s ignos
suporte rep rodutor, aquilo que os olhos vêem e os ouvidos escutam, _
md1ssoluvcl e serv1lrnente à realidade.
mas também amplificam a capacidade humana de ouvir e ver, ins De fa �o, é tal a dependência que os signos p roduzidos pelos
taurando novos prismas e perspectivas que, sem os aparelhos, o aparelhos tem do real que toda a reflexão teó rica e crítica sob re os
mundo não teria. Enfim, enquanto as máquinas musculares produ aparelho s, com exceção daquela levada a efeito por McLuhan, des
zem objetos, os aparelhos produzem e reproduzem signos: imagens locou-se quase por completo da relação dos apa relhos com O ser
e sons. humano para urna fixação nas relações que os signos produzidos
Se, depois do advento das máquinas musculares, o mundo por esses ap.arelhos estabelecem com a realidade, centralizando- se
começou a ser crescentemente povoado de objetos industrializados, em temas tais como fidelidade, infidelidade, imitação, cópia, s imu
depois do advento dos aparelhos, ele começou a ser crescentemente lacro, falseame�to,. verossimilhança etc. Não é por acaso que o s
povoado, hiperpovoado de signos. Ao funcionarem como prolon aparelhos ou maquinas sensórias não suscita ram e continuam não
gamentos da visão e audição, os aparelhos extensores dos sentidos suscitando discus sões sobre a robotização das faculdades huma
amplificam a capacidade humana de produzir signos, isto porque nas. Tal discussão a nível teórico e execução a nível prático teria de
os aparelhos não são apenas extensões do processamento sensório,
_ �ra r pelo advento do computado r que, inicialmente, de modo
esp
eles são também máquinas de registro e reprodução ou gravação tlmido, mas agora de maneira cada vez mais frontal tem nos des a
daquilo que os sentidos captam. Uma fotografia, por exemplo, é fiado com revoluções inéditas que não pa ram de cres cer cm pro
uma imagem, uma visão do real, registrada num suporte, o negati porções e complexidade.
vo, que, além de duradouro, funciona como uma matriz de infinitas
cópias. Nesse sentido, os outputs ou produtos sígnicos dos apare AS Mc\Ql' I\TAS CEREBRAIS
lhos são também formas de memória extra-somática da visão e da Se a Rev�lução lndu � trial tomou dominante, por todo o sécu
audição. 1� ?'IX, a rnetafora da rnaquma a vapo r. a Revolução Eletrônica
Não há dúvida de que os registros fixados pelos aparelhos vma coloca r cm primeiro plano, na segunda metade do século XX,
•
202 LÚCIA SANTAELLA
CULTURA DAS MÍDIAS 203
com ele. A grande revolução, entretanto, só viria com o advento �o industrialização, as musculares, foram máquinas puramente
computador pessoal, uma inovação imprevisí_vel_que trans�orm�na imitativas e grosseiramente fisicas, as segundas máquinas, as sen
a informática num meio de massa para a cnaçao, comumcaçao e
sórias, por serem menos rudes e mais sutis, já começaram a perder
simulação. Hoje, um computador concreto, a _ pr�ço rel�tiv,amente a natureza de máquinas para se converterem em aparelhos produ
acessível e que qualquer pessoa pode poss� 1r? e const1tmdo por tores de signos, extensores dos órgãos dos sentidos. Já no terceiro
uma infinidade tal de dispositivos matena1s, cada vez mais nível da relação entre homem e máquina, que chamo de nível cere
miniaturizados, e de camadas justapostas de programas que se tor bral, é a própria noção de máquina que está sendo definitivamente
nou impossível estabelecer quaisquer fronteiras sobre onde começa substituída por um agenciamento instável e complicado de circui
e onde acaba um computador. , . . , . tos, órgãos, aparelhos diversos, camadas de programas, interfaces,
Cada vez mais a comunicação com a maquma, a pnnc1p10
cada parte podendo, por sua vez, decompor-se em redes de interfaces.
abstrata e desprovida de sentido para o usuário, foi substituída por De fato, dentro deste novo universo, a palavra máquina deixou de
processos de interação intuitivos, metafóricos _e sensóri_o-motores
ser a palavra de ordem, para ser substituída pelas conexões mais
em agenciamentos informáticos amáveis, imbncados e mtegr,ad�s
fluidas das interfaces, através das quais os computadores vão
aos sistemas de sensibilidade e cognição humana. Enfim, o propno
crescentemente se potencializando para novas interações
computador, no seu processo evolutivo, foi gradativamente
humanizando-se, perdendo suas feições de máquina, ganhando no com seu m ei o am bi ente tisico e humano em sistem as i nt eli gen
vas camadas técnicas para as interfaces fluidas e complementar�s t es de gerenci am ent o de bancos de dados, módulos de compr een
com os sentidos e o cérebro humano até o ponto de podermos hoJe são da linguagem natural, dispositivos de reconhecimento de for
falar num processo de coevolução entre o homem e os ag�n �iament�s m as ou sist emas esp eci alistas de autodi agnóstic o e i nt erfaces de
informáticos, capazes de criar um novo tipo de coletiv1�ade nao i nt erfaces : t elas, ícones, botões, m enus, dispositiv os aptos a
mais estritamente humana, mas híbrida, p�s-humana, cups fron conectar em-se cada v ez m elhor aos módulos cognitivos e sens o
teiras estão em permanente redefmição. E justamente esse novo ri ais hum anos. (Lévy 1 993 : l 07)
ecossistema sensório-cognitivo, que está lançando novas bases para
se repensar a robótica não mais como máquinas 9ue trabalhan:1 para Tudo isso, no entanto, só se tomou possível graças ao grande
sintetizador que é o modelo digital, capaz de conectar, num mesmo
0 homem mas como a emergência de um novo tipo de humanidade.
tecido eletrônico, a imagem, o som e a escritura, e, com isso, capaz
Na :nedida em que sistemas cibernéticos vão se integrando a
de conectar, dentro de sua rede, o cinema, a radiotelevisão, o jorna
sistemas psíquicos, na medida em que redes n�urais arti��iai� vão
se ligando a redes neurais biológicas, é um conJunto cogn1hvo mau lismo, a edição, as telecomunicações e, certamente, a informática.
Por ser, em si mesma, um princípio de interface, a codificação digi
dito que se configura, é a dimensão do cérebro e mente que se move
tal, com seus bits de imagens, textos, sons, imbrica, nas suas tra
na direção de uma cultura bioeletrônica. Segundo Roy Ascott
mas, nosso pensamento e nossos sentidos. É o grande processador
(1995 :5), no início do século XXI, o ser humano já terá se movid?
leve, móvel, maleável e inquebrantável.
para além de uma sociedade informacional, para alé":1 das frontei
Se as máquinas musculares amplificam a força e o movimen
ras de um espaço eletrônico. O homem se reencontrara com a natu
to físico humano e as máquinas sensórias dilatam o poder dos sen
reza mas uma natureza radicalmente revista pela geração de um
tidos, as máquinas cerebrais amplificam habilidades mentais,
ambiente holístico de mente e matéria, de sistemas auto-organizativos
notadamente as processadoras e as da memória. Bancos de dados
e maieriais inteligentes, ambiente tão espiritual quanto material
são hipermemórias e o universo de circuitos e interfaces da síntese
constitutivo de uma condição humana pós-biológica numa cultura
digital é um universo, antes de tudo, transductor e processador de
de complexidade criativa.
signos. Graças à capacidade do computador para transformar em
Enquanto as primeiras máquinas, engendradas no cerne da
impulsos eletrônicos toda informação de dados, voz e vídeo, nesse
206 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS MÍDIAS 207
universo, não há signo que não possa ser absorvido, traduzido, milhões de computadores em mais de três dezenas de países,
manipulado e transformado. conectando pessoas das mais diversas proveniências, das universi
Ampliando a capacidade dos sentidos humanos, .º� aparelh�s dades, negócios, artes etc. Permeado pela telemática, o fluxo da
ou máquinas sensórias registram, copiam o mundo v1s1vel e aud1• informação se toma o tecido mesmo da realidade (Kac 1 992:47),
vel, sendo basicamente produtores e, sobretudo, reprodutores de gerando formas de sociabilidade inéditas e a emergência de um
signos Em razão disso, promoveram e continuam promovendo m�a mundo mental sem fronteiras que Ascott (1 995) chama de
proliferação desmedida de signos. Não há qualquer canto ou nncao hipercórtex.
do mundo que não esteja hiperpovoado de signos . Dotados de A natureza híbrida, biocibemética, do ciberespaço e realidade
interfaces transdutoras, os computadores funcionam como verda· virtual acentua-se e amplia-se para um nível planetário nos eventos
deiros aspiradores desses signos, manipulando•os das mais varia telecomunicativos chamados de telepresença, nascida da união da
das formas. · Os signos cresceram de maneira tão desmedida que robótica com a telemática. Kac (1993 :5 1) nos diz que "a telepresença
precisam de hipercérebros para processá-los. Amplificando o p� está sendo explorada pelos cientistas como uma mídia pragmática
der de processamento cerebral, os computadores parecem estar hoJe e operacional que busca equacionar a experiência humana e a
desempenhando esse papel de hipercérebros manipuladore� da robótica. O objetivo é alcançar um ponto em que os traços
avalanche de signos que são produzidos pelos aparelhos. Com isso, antropomórficos do robô se combinem às nuanças dos gestos hu
são os sentidos e o cérebro que crescem para fora do corpo huma manos". Bastante explorada também na arte, a telepresença "cria
no estendendo seus tentáculos em novas conexões cujas fronteiras um contexto único em que os participantes são convidados a expe
estamos longe de poder delimitar. rimentar mundos remotos inventados a partir de perspectivas e es
Entre as novas conexões encontram-se as interfaces do ser calas diferentes da humana" em eventos telecomunicativos de natu
humano e computador em paisagens híbridas nas quais espaços e reza multimodal colaborativa e interativa" (ibid. :52).
ambientes biológicos se misturam com imagens, espaços e ambien Chamando de híbridos da internet os processos de co-existên
tes sintetizados em processos conhecidos sob o nome de ciberespaço cia de espaços reais e virtuais, de sincronicidade de ações, controle
e realidade virtual. De acordo com Kac ( 1 993 :50), ciberespaço é remoto em tempo real, operações de robôs e colaboração através de
um espaço sintético no qual "um ser humano equipado com hardware redes, Kac ( 1 995: 1 73-1 78) observa que novas fo rmas de interface
apropriado pode atuar tendo por base umfeedback visual, acústico entre humanos, plantas, animais e robôs se desenvolverão como
e mesmo tátil obtido de um software". Mais genérica do que um resultado da expansão das tecnologias de comunicação e
ciberespaço é a realidade virtual que "descreve um novo campo de telepresença.
atividade devotada a promover o desempenho humano em ambien Em suma, num ecossistema com tais caracterí�ticas, o que se
tes de imagens sintetizadas" que representam dados do computador. delineia é o perfil de um limiar inaudito que a humanidade está
Ainda mais impressionante, entretanto, revela-se o poder de atravessando cujas conseqüências e implicações serão provavel
interface e manipulação sígnica do computador, quando se pensa mente mais profundas em termos antropológicos do que foram aque
na sua aliança com os novos canais de telecomunicação, com as las que a Revolução Neolítica provocou. Esse limiar está produzin
novas tecnologias de transmissão por satélite e fibra ótica, forman do formidáveis mutações nas dimensões do nosso corpo, sentidos e
do redes computadorizadas de extensão planetária. Com isso, a �érebro, fazendo-os alcançar uma dimensão planetária e cósmica
informação pode atravessar oceanos e continentes tão facilmente maugural de uma nova antropomorfia cujas rotas de sensibilidade
quanto se podem atravessar as salas de um edifício. Assiste-se as e inteligibilidade não podemos deixar de explorar.
sim à criação de uma cultura telemática multidirecional, de
conectividade global de pessoas e lugares cuja forma mais conheci
da se encontra na Internet, uma imensa rede mundial que liga
O computador como mídia semiótica
especializadas e, para esses propósitos sofisticados, sua caracteri Entretanto, não apenas o corpo externo do compu�d�r, -�
zação como um dispositivo é claramente adequada. Igualmente, ou também suas partes internas e complicadas junções de niv:is mdi
ainda mais pertinente, é sua descrição como um instrumento. Há cam sua natureza composta, o que pesa contra sua concepçao co�o
pelo menos dois sentidos da palavra instrumento que a tomam apli uma simples máquina. Há, de fato, muitos suplemen�os que �ª-º
cável ao computador. Num sentido, um instrumento é uma ferra inseparáveis do computador. Há, antes �e tudo, as unidade�,!���
menta especial usada num tipo de trabalho em que movimentos cas, o teclado, o monitor e os cabos para Juntar essas partes. �
finos e treinados são requeridos. Num segundo sentido, um instru , ·
desses bas1cos, · do a uma grande vane-
o computador pode ser 11ga
mento é um dispositivo especial - do tipo usado para gravar, re dade de outros recursos tais como impressora, scanner, mesa de
gular, controlar - que funciona sobre dados obtidos pelo próprio desenhos, mouse, drive;, câmeras, videotape e v1deodisc_o_. Quar
dispositivo. Nesse nível de especialização, o computador preenche tudo que depende de eletricidade pode ser recebido ou emitido pe 0
uma espécie de função similar à de um gravador, de uma câmera computador" (Paulsell 1990: 199). Vale a a pena notar quJ.:dos
fotográfica, ou de um mecanismo para medir calor etc. Nesses ca esses componentes aumentam em número e tamanho na me I em
sos, a palavra instrumento sugere uma certa prontidão de aplicação que se sai de um computador pessoal para uma estação de trabalh0
ao problema considerado muito mais do que uma simples utilidade. ou mainframe.
De acordo com Flusser (1985:25-29), dispositivos e instru Internamente' a subdivisão do computador em partes c?mpo-
mentos são, sobretudo, produtos técnicos. Isso explica porque eles nentes ou aquilo que costuma ser chamado de seus mecani�m,
se tornaram crescentemente refinados desde a Revolução Industri não é �enos diversa do que suas partes externas. Brown 0 989: I 05-
al. Dispositivos são extensões dos órgãos humanos dos sentidos e, l 06) afirma que, embora "não haj a nada semelhante a um compu
como tal, eles são capazes de simular e ampliar as funções desses tador típico, visto que há vários modelos de computadore�, que
, • . . .
órgãos. Depois da Revolução Industrial, quando o projeto desses servem a propos1to s d1stmtos e mcorporam difierentes padroes de
dispositivos começou a ser auxiliado pela pesquisa científica, eles construção", é ainda possível indentificar "certos componentes fim
passaram a ser chamados de máquinas. damentais que qualquer computador irá possuir de uma forma ou
A idéia de uma máquina, contudo, não é tão recente quanto a de outra". Esses componentes, j unt o com aqueles qu e fazer_n ª
Revolução Industrial. No seu sentido antigo, a palavra máquina interface com as partes externas, são pelo menos cinco: (1) umda
ª
referia-se a uma estrutura ou construção, material ou imaterial. de de processamento central; (2) a memória; (3) os re�urs�s de
Essa duplicidade semântica também aparece no seu sentido mais input; (4) os recursos de output; (5) as vias de comumcaçao ou
moderno, quando máquinas designam corpos materiais ou fluidos, buses .
assim como eletricidade. Desde a Revolução Industrial, uma má A unidade de processamento central é a parte mais �portante
quina passou a ser entendida como um conj unto de partes ou cor do computador. Ela está contida num único chip, quer dizer, uma
pos sólidos, assim como corpos fluidos ou eletricidade nos condu pequena peça de silício com um circuito integrado gravado em su_a
tores que transmitem força, movimento e energia de um modo pre superfície. Essa central se divide em subcomponentes : �LI) ª un�
determinado e para certas finalidades. Mas o sentido mais relevan dade de lógica aritmética que desempenha operações basicas, tais
te que se associa à idéia de uma máquina é o de um dispositivo . - - mu1t1p. . - . dores
como ad1çao, subtraçao, 11caçao etc., (1.2) os ac um. ula .
complexo para realizar um trabalho, capaz de ir além das nossas que mantêm os números que estão s endo usados pela um dade ant
limitações físicas ou mentais, e, na maior parte das vezes, de ma mética; ( l . 3) o relógio que sincroniza as atividades d?.c omputado r
neira mais rápida e precisa do que a mão e mente humanas. Nesse que precisam ser desenvolvidas j unto com_ outras, er_n�t •� do um pul
sentido que ampiia nossos poderes fisicos e mentais de modo so regular e (1.4) os registros. Estes são ameia subdivididos em set�
conectado, o computador pode ser considerado como a mais pode subcomponentes: ( l.4.1) um registr o de memória de eodere_ ços,
rosa de todas as máquinas, como, de fato, costuma ser considerado. ( l .4. 2) um registro de memória de dados; ( l .4.3) algu ns registros
212 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS MÍDIAS 213
de status; ( l .4.4) alguns registros dos propósitos gerais; (1 . 4 . 5 ) um atingir um fim. Desde o final dos anos 60, um significado mais
calculador de programa; ( l .4.6) um registro de instrução e ( l . 4.7) específico, largamente utilizado no contexto da comunicação de
um indicador de arquivos. massas, veio se incorporar ao sentido corrente da palavra meio
De acordo com a descrição que nos é dada por Aho e Ullman (medium, em inglês). No domínio da teoria da comunicação, o ter
(1992: 144), o computador junto com suas funções de programação mo foi muito discutido em função dos escritos de Marshall McLuhan.
é uma hierarquia de abstrações chamada de máquinas virtuais ou Nesse contexto, meio começou a ser usado em conexão próxima
níveis. Cada nível, com exceção do nível mais baixo, é implementado com os termos veículo e canal. Veículo indica um meio de transmis
através da tradução e interpretação das instruções daquele nível são ou comunicação, sendo mais específico e tangível do que meio,
através das instruções ou dispositivos dos níveis mais baixos. Há enquanto canal sugere muito mais do que meio a idéia de um cami
um crescimento graduado de abstração, como se segue: (1) circuito nho físico de transmissão ou comunicação.
eletrônico ou lógica digital; (2) microprograma; (3) linguagem da Nas três últimas décadas, com o enorme desenvolvimento dos
máquina; (4) núcleo do sistema operacional; (5) linguagem modernos sistemas de comunicação, informação e entretenimento,
as sembly; (6) linguagem da programação; (7) programa de aplica- a palavra meio começou a ser substituída por sua forma plural
ção. mídia (media, em inglês), especialmente na expressão mass media,
Todas as partes internas e externas, componentes e traduzida, então, para o português como meios de massa. Hoje, a
subcomponentes, indicadas até aqui, justificam a descrição do com palavra mídia em português, adaptação do inglês media, é usada
putador não meramente como uma máquina, mas como um equipa para se referir tanto aos sistemas de comunicação, tais como revis
mento tendo em vista os recursos fisicos, implementas e maquina tas, jornais, rádio, televisão etc., quanto a uma peça de propaganda
ria que entram em ação assim que alguém coloca o computador que pode estar no rádio, num programa de TY, nos jornais etc.
para fu ncionar. Entretanto, mais adequada do que equipamento é a Embora o sentido amplo de meio como algo que é empregado
descrição do computador como um aparato, um termo muito geral como via para se atingir um fim seja perfeitamente aplicável ao
que engloba instrumentos, ferramentas, máquinas e aplicações, in computador, é no seu sentido mais específico de fornecimento e
cluindo a idéia de um sistema ou processo, todos eles usados para comunicação de informações ao público que a designação de mídia
propósitos técnicos ou científicos. tem sido utilizada para o computador.
Embora o termo aparato seja suficientemente genérico para Não se pode dizer que já existe um consenso quanto ao enten
sugerir uma coleção ou conjunto de materiais, ou seja, o complexo dimento docomputador como uma mídia (ver Hoppé e Nake 1995).
de instrumentalidades e processos envolvidos em qualquer sistema Mas, de outro lado, também não se pode negar que o processamen
de computação, o termo aparato enfatiza apenas a materialidade do to e comunicação de dados realizados pelo computador são formas
sistema, deixando de trazer à baila os aspectos mais abstratos do de comunicação. K. Paulsell (1990: 195), por exemplo, observa que
funcionamento do computador. Mais apropriada em relação a es "mesmo que nenhum ser humano esteja especificamente originan
ses aspectos é a descrição do computador como mídia. do ou recebendo a informação, e mesmo se o computador automa
ticamente processe os dados, sem uma instrução específica para
fazer isso, em quaisquer desses casos, a comunicação estará, assim
O COMPUTADOR COMO MÍDIA
A design ação para o computador, que tem sido recentemente mesmo, ocorrendo através do computador como mídia".
empregada com mais freqüência, é a de mídia (ver Andersen 1986, Além do nível da dinâmica comunicativa que ocorre dentro do
Bolz et al. 1992, Andersen et al. 1993, Nake 1994 e Hoppé e Nake computador, há mais obviamente os processos de comunicação entre
1995 ). o computador e seus usuários, assim como a comunicação entre
-
No seu sentido mais geral, mídia é sinônimo de meio, este usuários mediada por computador (cf. Danet 1995:9). Além disso,
concebível como aplicável a qualquer coisa que é empregada para há também comunicação entre computadores através de recursos
2 14 LÚCIA SANTAELLA CULTIJRA DAS MÍDIAS 215
que permitem que o computador envie dados, por meio de um canal uma mídia semiótica (Andersen e Mathiassen 1986; Andersen 1986,
de comunicação; e isso pode ser feito por qualquer micro computa 1990., 1990b, 1991, 1992, 1993, 1995; Andersen e Holmqvist 1990;
dor. Através de um modem, qualquer computador pode ser conectado Meunier 1989).
e transmitir sinais, via telefone, a qualquer outro computador. Na
verdade, "a comunicação entre computadores pode viajar de diver
O COMPUTADOR COMO MiDIA SEMIÓTICA
sas maneiras. De um sala a outra, de um prédio a outro, entre cida Há dois tipos de investigações que caracterizam o computa
des, entre continentes, via linhas telefônicas, via circuitos dor como mídia semiótica: aquelas que são implicitamente semióticas
computacionais ou através de redes computacionais especiais" e as que são explicitamente semióticas.
(Paulsell 1990:200). Uma semiótica implícita do computador
As novas tecnologias de transmissão, os novos canais de tele Em 1972, Newell e Simon desenvolveram a noção de siste
comunicação (satélites, fibras óticas etc.) ao serem conectados aos mas simbólicos físicos para compreender como as pessoas resol
computadores, estão criando redes computadorizadas gigantescas vem problemas, uma vez que elas próprias são sistemas que mani
que ligam imediatamente qualquer parte do mundo com qualquer pulam símbolos. Mais tarde, em 1980, Newell reafirmou os funda
outra (cf. Demac 1990). Tendo em vista a proporção planetária mentos dos sistemas simbólicos físicos de modo mais sistemático.
desse cenário comunicativo, fica difícil negar que o computador Esse conceito, que emergiu da experiência e análise que Newell
pode, realmente, funcionar como uma mídia. De fato, já existem tinha do computador e de como programá-lo para desempenhar
aplicativos de comunicação por computador bem conhecidos, como tarefas intelectuais e perceptivas, foi definido como se segue: um
as transações financeiras via computador, o correio eletrônico, sistema simbólico físico é "uma classe muito grande de sistemas
teleconferência, serviços de dados on-line, nos quais computadores capazes de produzir e manipular símbolos, sendo realizáveis den
equipados com discos rígidos de alta capacidade estocam uma vas tro do nosso universo físico". A hipótese é a de que esses símbolos,
ta quantidade de dados que podem ser acessados em poucos minu que são internos ao conceito de sistema, "são, de fato, os mesmos
tos (Paulsell 1990:200). Não apenas os tipos de informação arma símbolos que nós, seres humanos, produzimos e usamos todos os
zenados nos computadores e acessíveis por telecomunicação conti dias em nossas vidas", o que significa que "os humanos são exem
nuam a crescer, como os recursos comunicativos se tomam cada plos de sistemas simbólicos físicos, e, em virtude disso, a mente se
vez mais sofisticados. insere no universo físico" (Newell 1980: 136). Depois de descrever
As outras espécies de recursos, que recentemente contribuí o funcionamento de um sistema simbólico físico paradigmático e
ram para criar a idéia do computador como uma mídia, agora no depois de definir sua natureza essencial, Newell (1980 : 172-173)
reino dos programas (software) que podem correr em qualquer com considera o computador digital como um exemplo-chave para a
putador pessoal, são os vários programas de computação gráfica, realização de um sistema simbólico no nosso universo físico. A
multimídia, hipertexto e hipermídia. Esses programas permitem a originalidade da tese de Newell, conforme foi apontada por Meunier
produção de tipos sofisticados de mensagens ver-bais, visuais e so (1989:46), está no fato de que "ela contrasta com uma concepção
noras que também podem ser transmitidas por correio eletrônico, puramente materialista (senão reducionista) da inteligência artifi
criando uma idéia inteiramente nova de publicação eletrônica on cial", uma vez que
line. Em síntese, a capacidade do computador de transformar em
impulsos eletrônicos quaisquer dados e informações em vídeo ou aquilo que caracteri za as o perações de um com putado r m anifes
som é uma evidência de que o computador não é apenas uma mídia, t an do um com portamento inteli gente não são as o pe rações nu
mas está caminhando para se tomar a mídia de todas as mídias. mé ricas, não im po rt a quão com plexas el as possam ser, nem mes
Além de ser uma mídia, ou talvez justamente porque o é, a caracte mo, num grau m ais alto, o perações que reali zam m ani pul ações
rização mais abrangente do computador é aquela que o define como mecânicas e mesmo eletrônicas sofisticadas. Ao cont rário, um
2 16 LÚCIA SANTAELLA CULTIJRA DAS MÍDIAS 217
computador inteligente é aquele que processa um tipo especial o comportamento do computador pode ser analisado em quaisquer
de signo - quer dizer, signos simbólicos. Assim, uma inteligên dos níveis segu intes:
cia artificial é uma máquina cujo comportamento racional con ( l ) A máquina tisica, em que o computador é uma rede com
siste em manipular símbolos fisicos.
plexa de componentes que operam de acordo com as leis da tisica,
Meunier enfatiza a radicalidade da tese de Newell uma vez gerando atividade elétrica e magnética.
que- ela não situa mais a inteligência artificial (IA) "dentro de uma (2) A máquina lógica em cujo nível os componentes são abs
teoria relacionada apenas com a materialidade da tecnologia e en trações lógicas representadas por atividades nos componentes fisi
genharia. Ao contrário, ele tira a IA dessa teoria inserindo-a, goste cos.
se disso ou não, dentro de uma teoria semiótica (ibid. :46). Com (3) A máquina abstrata que, na maioria dos computadores
essa compreensão dos sistemas computacionais como aqueles que modernos, é um único processador seqüencial abstrato que cami
manipulam símbolos interpretáveis, já no começo dos anos 70, nha através de uma série de instruções. Cada instrução é uma ope
mesmo sem ter feito uso do termo semiótica, Newell estava, de ração simples de busca ou armazenagem de um símbolo ou de de
modo implícito, dando nascimento a uma concepção do computa sempenho de uma . operação lógica ou aritmética, tal como uma
dor como mídia semiótica. comparação, ou uma adição, ou uma multiplicação. Este é usual
Também implicitamente semióticos são os estudos de IA que mente o nível mais baixo no qual o programador tem controle sobre
enfatizam o problema da representação (ver, por exemplo, Bobrow os detalhes das atividades.
e Collins 1 975; Palmer 1 978; Winston 1 98 1 ; Rich 1 983; Anderson (4) Uma linguagem de alto nível, que executa operações ele
1 983; Pylyshyn 1 984; Winograd e Flores 1 986; Joma 1 990). De mentares num nível mais adequado para representar domínios per
fato, tudo que diz respeito à representação entra inteiramente no tencentes ao mundo real. Fórmulas desse nível de lingu agem são
escopo de uma investigação semiótica. O livro de Winograd e Flo convertidas por um compilador numa seqüência de operações para
res On understanding computer and cognition ( 1986) é um bom a máquina abstrata.
exemplo no campo da IA que enfatiza o papel relevante desempe (5) Um esquema de representação para os fatos se refere às
nhado pela representação na programação. Em um dos capítulos convenções ou organização uniforme da estrutura simbólica da lin
do livro, dedicado ao tópico dos computadores e representação, ao guagem de alto nível que representa os fatos sobre o mundo (ibid. : 87-
discutirem o quanto a programação depende da representação, os 89).
autores afirmam que "quando alguém escreve um programa, esse O que deve ser retido com respeito à torre de níveis acima é
programa é sempre sobre alguma coisa ( . . . ) há um assunto para o que cada nível inferior desempenha a função de representar as ati
qual o programador endereça seu programa" (ibid.: 84). Os siste vidades prescritas pelo nível superior. Entretanto, não há transpa
mas formais lógicos utilizados pelos programadores "estabelecem rência ou correspondência item por item nesses processos de repre
correspondências entre as fórmulas desses sistemas e as coisas re sentação. Um simples passo da linguagem de alto nível, por exem
p res en tadas de um modo tal que as operações atingem a plo, "pode compilar codificadamente, usando instruções diferentes
veridicalidade desejada" (ibid. :85). da máquina. Além disso, a determinação daquilo que ela compila
O modo mais importante de caracterizar o computador como �e�enderá de propriedades globais de um código de nível superior"
uma máquina complexa, com níveis inter-relacionados de repre (1b1d.:90). Em síntese: embora não haja dúvidas de que o computa
sentação, aparece na definição de Winograd e Flores considerando dor é uma máquina semiótica, suas operações semióticas são muito
a possibilidade única do computador digital de construir "sistemas intrincadas e interdependentes, constituindo uma verdadeira rede
que cascateiam níveis de representação um sobre o outro em gran semiótica com níveis de referencialidade muito complicados.
-
de profundidade" (ibid. : 87). Ao operar um programa típico de IA, Uma semiótica explícita do computador
Desde meados dos anos 80, tanto a proposta de uma semiótica
218 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS MÍDIAS 219
da informática em geral quanto a do computador como mídia como mídia semiótica operada por meio de signos a serem interpre
semiótica em particular foram explicitamente desenvolvidas nos tados pelos usuários, mas a própria ação dos usuários é também
estudos de P. B. Andersen ( 1 986, 1990•' 19906, 1 99 1 , 1 992, 1 993, parte da produção de signos numa semiose de intercâmbios.
1 995), alguns outros trabalhos tendo sido publicados junto com L. Andersen ( 1995:24-25) acrescenta que
Mathiassen ( 1 986) e B. Holmqvist ( 1 990). No seu primeiro artigo
sob-re "Semiótica e informática: o computador como mídia'' sob as interfaces, nos intestinos do sistema, também encontra
( 1 986:64-70), Andersen descrevia os sistemas de computador como mos signos. O sistema ele mesmo é especificado por um texto de
mídias ainda num sentido metafórico. Em analogia com os jornais, programa (que é um signo, visto que ele representa um conjunto
livros, fitas, filmes, vídeos e televisão, o computador era visto como de execuções possíveis de programa para o programador). A exe
cução em si envolve um compilador ou intérprete que controla o
um canal através do qual os seres humanos se comunicam, particu
computador por meio de um texto de programa, e uma vez que o
lannente de acordo com dois tipos de transmissão entre o usuário e compilador é um texto que representa um conjunto de textos de
o componente do computador, como se segue: ( 1 ) inputs são fluxos programas permitidos, o compilador também é um signo - de
de dados do componente humano ao componente computacional; fato, ele é um meta-signo que, em algumas versões, assemelha-se
(2) outputs são fluxos de dados na direção oposta. A originalidade muito a uma gramática comum.
do artigo não está tanto nessa proposta, mas está na teoria geral da
semiótica que o autor usa como uma moldura de referência para a De fato, qualquer sistema de computação é "uma rede com
descrição do computador como mídia, especialmente através da plexa de signos". Em cada um de seus vários níveis há textos e
análise de comunidades semióticas baseadas no computador. "na medida em que mudamos de níveis, os conceito� significado�
Uma perspectiva ampla da semiótica do computador, incluin pelo texto se modificam. Nos níveis inferiores, o significado dos
do as fundações teóricas desse novo campo e de suas aplicações, signos está relacionado com as partes físicas da máquina, como
pode ser encontrada no livro de Andersen sobre A theory ofcomputer registros e células de annazenamento". Nos níveis superiores, os
semiotics ( 1990.). Escolhendo a glossemática de Hjelmslev como textos têm de ser interpretados diferentemente, de acordo com no
base semiótica na defesa da tese de que o computador é operado vos conceitos de software (ibid.:24).
por meio de signos cujos significados devem ser interpretados pe Numa visão retrospectiva, vale a pena notar quão perto a des
los usuários e de que o trabalho baseado no computador é um uso crição dada por Newell ( 1 980: 1 73- 1 75) dos sistemas simbólicos
de signos, o autor cria um mapa geral para a semiótica do compu fisicos, com suas séries de níveis de tecnologia, estava da "rede
tador. A segunda parte do livro é inteiramente dedicada ao estudo complexa de signos", mencionada por Andersen. Newell não só foi
do computador, sob um ponto de vista semiótico, e a terceira parte, capaz de reconhecer a realidade simbólica dos sistemas de compu
à linguagem, trabalho e design. tação, mas ele também previu a imensa variedade de maneiras físi
Vários aspectos de uma semiótica do computador foram obje cas de realizar qualquer sistema fixo de símbolos.
tos de estudo de Andersen, incluindo a estética do hipertexto ( 1 9906). A semiótica do computador também recebeu alguma atenção
No seu trabalho mais recentemente publicado sobre sistemas dentro do contexto mais amplo da ciência cognitiva (ver Ouellet,
interativos ( 1 995:5), ele apresenta o computador como uma "mídia ed. 1 989 e Nõth 1 994). De acordo com Meunier ( 1989:55), por
elástica", quer dizer, uma mídia cuja principal característica con exemplo, "os projetos de IA parecem estar tão ligados à tecnologia
siste na atividade física do usuário sobre ela, quando "os movimen computacional que tendemos a nos esquecer que sua verdadeira
tos da mão do usuário de um sistema interativo devem ser uma originalidade está no sistema semiótico complexo que eles põem
parte integral do significado desse sistema". A compreensão em funcionamento. A IA é, de fato, uma semiótica aplicada. Ela
semiótica do computador fica grandemente alargada por esse últi estuda o funcionamento de um tipo de signo chamado de símbolo
mo ponto de vista. Os sistemas de computação não são vistos apenas num sistema construído ou artificial interpretável em tennos
b
220 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS MÍ DIAS 221
cognitivos". sua memória central, quer dizer, eles lidam com informações em
Para Ouellet ( l 989:2), se entendermos a inteligência e o co uma variedade de níveis de abstração, cada um deles tendo seu
nhecimento como sistemas e processos simbólicos, a semiótica tem próprio modelo de dados, a partir do qual o nível superior é
duas tarefas relacionadas com esse entendimento: implementado. Uma lista breve de algumas das capacidades do
computador é uma outra evidência de sua habilidade para funcio
O primeiro é o de estabelecer que espécie de sintaxe, semântica e nar como símbolo arbitrário. Abstrações de problemas do mundo
pragmática está implicada na linguagem natural e artificial do real podem ser representadas e manipuladas dentro do computador.
pensamento tal como se manifesta numa máquina ou no cérebro, "Eles podem ser programados para simular qualquer sistema fisi
o que significa que temos de investigar a natureza e o funciona co" (P. H. Winston 1 9 8 1 :4), e suas atividades são claramente
mento dos tipos de signos envolvidos nos sistemas de representa cognitivas: eles buscam instruções na memória central, decodificam
ção simbólica, analisando os modos como esses signos ( 1) estão nas e as executam (Aho e Ullman 1992: 148). Em síntese: os com
relacionados uns aos outros, (2) podem fazer sentido ao se referi putadores podem resolver problemas difíceis, podem ajudar espe
cialistas nas atividades de análise e design, podem entender um
rem ao mundo 'externo' ou a representações 'internas', tais como
intenções, crenças, conhecimento etc., e (3) são usados por um
agente (humano ou mecânico) como meio para alcançar algum inglês simples, podem auxiliar na manufatura de produtos, podem
alvo específico ou realizar alguma tarefa especial. Essa é a fun aprender a partir de exemplos e precedentes, e podem também mo
ção teórica de uma teoria dos signos no contexto dos estudos delar o processamento de informações (P. H. Winston 198 1 :6- 1 9).
cognitivos e da IA. Embora as afirmações acima claramente indiquem a natureza
semiótica do computador, infelizmente os conceitos de símbolo nas
A segunda tarefa da semiótica, que Ouellet caracteriza como ciências cognitivas e da computação são, em geral, muito vagos e
prática ou empírica, para ajudar os cognitivistas na sua exploração até mesmo simplistas. Qualquer definição do símbolo requer uma
da mente humana e da mente mecânica, é a de fornecer modelos fundação semiótica, que sempre falta no discurso sobre os símbo
formais específicos de comportamento serniótico, tais como produ los nas ciências da computação. Os semioticistas, por seu lado,
ção e compreensão discursivas, reconhecimento de histórias, pro desenvolveram teorias do símbolo altamente complexas, mas, infe
cessos de categorização, raciocínio lógico ou prático, compreensão lizmente, com poucas exceções (cf., por exemplo, Nõth 1 996), quase
de signos visuais etc., todos eles sendo tipos de signos ou processa nenhuma pesquisa tem sido feita sobre os diferentes tipos e mistu
mento de informação para os quais diferentes campos de estudos ras de signos que ocorrem nos vários níveis inter-relacionados dos
semióticos desenvolveram representações meta-semióticas, mode sistemas computacionais, desde o nível de recurso fisico até o nível
los ou gramáticas." mais evidentemente simbólico da comunicação entre programado
É verdade que, entre cientistas da computação e cognitivistas, res e computadores e entre computadores e usuários.
há um consenso sobre a natureza simbólica do computador, que O que estou tentando sugerir é que muitos recursos descriti
contém símbolos formais manipuláveis por regras. Mais de uma vos e conceituais para a análise dos sistemas de computação ainda
década atrás, Pylyshyn ( 1 98 1 :68) mencionava "a crescente com estão disponíveis na semiótica de C. S. Peirce. Suas definições e
preensão dos processos computadocionais e dos computadores di classificações de signos, em todos os seus níveis de degeneração,
gitais como símbolos gerais". Polyshyn ( 1 984) menciona que a são muito pertinentes, especialmente os diferentes graus de
consideração do computador como urna ferramenta intelectual já iconicidade (ver Santaella 1 995: 1 4 1 - 1 55), a tipologia dos índices e
data dos anos 50 (cf. Turing 1 950 e Shannon 1 950). também a complexa noção de legi-signo e simbolicidade. Esta últi
De fato, qualquer descrição do computador é urna evidência ma, aliás, não significa necessariamente apenas uma representação
de seu caráter simbólico e cognitivo. Os computadores lidam com arbitrária do mundo, nem exige qualquer espécie de correspondên
dados, programas, linguagens e instruções que são arquivados na cia com estados atuais do mundo. Este assunto, entretanto, é muito
►
222 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS MÍDIAS 223
complexo para ser discutido aqui, uma vez que o objetivo que te de um signo. Aqui, a palavra signo está sendo certamente emprega
nho em mente é argumentar sobre a noção peirceana do signo, num da no seu sentido extensivo, refermdo-se à relação sígnica comple
nível mais abstrato do que o da aplicação dos tipos de signos para �, tomada como o processo triádico irredutível do signo, objeto e
descrever processos atualizados ou redes de signos como eles ocor mterpretante. Nesse sentido, o signo é um terceiro, funcionando
rem dentro e entre os diferentes níveis do sistema computacional. como um sinônimo geral para terceiridade ou mediação, enquanto
De acordo com a definição peirceana do signo, os traços es a qualidade é um sinônimo de primeiridade e reação é de secundidade
senciais das relações sígnicas dão origem a várias camadas de sen (cf. CP 4.3). Em 1867, Peirce também usou representação como
tido. Minha hipótese é a de que essas camadas podem nos ajudar a um sinônimo de terceiridade, signo ou mediação. Em 1 898, entre
entender porque o computador é uma espécie muito complexa de tanto, ele declarou que, naquela época (1867), ainda não conhecia
máquina semiótica que funciona, ao mesmo tempo, como um obje línguas o suficiente para se dar conta de que tentar fazer a palavra
to físico, uma ferramenta, um canal, uma mídia, e, sobretudo, como representação expressar uma idéia tão mais geral do que lhe seria
um signo ou mediação. possível, era injurioso. A palavra mediação era muito melhor do
que repres�ntação (CP 4.3). Foi assim que a representação passou
O SIGNO COMO M EDIAÇÃO a ser considerada por ele como uma espécie dentro do gênero da
mediação, como será discutido mais adiante.
Quando falamos do signo, no contexto da semiótica peirceana,
No s�u segundo sentido mais específico, a palavra signo se
de acordo com a forma lógica da semiose por ele descrita, há dois
refere e�tntamente ao termo mediador na relação triádica, um ter
sentidos para a palavra signo, um sentido extensivo e um sentido
mo '!1ed1�dor que ocupa a posição lógica de um primeiro, enquanto
específico. A fundação do sentido extensivo está na sua categoria
o obJeto e um segundo e o mterpretante um terceiro (ver, sobre isso,
fenomenológica da terceiridade. A fenomenologia de Peirce diz que
Santaella 1995, especialmente o capítulo denominado "Do signo").
há, em qualquer coisa, qualquer que seja, na natureza ou no pensa
Numa carta a Jourdain, no ano de 1908, Peirce escreveu:
mento, três categorias onipresentes, universais, que ele veio a cha
"M�a defmição de signo foi tão generalizada que, por fim, deses
mar pelos nomes muito gerais de primeiridade, secundidade e
perei-me de fazer qualquer pessoa compreendê-la. Com o propósi
terceiridade.
As características mais básicas da primeiridade, que é a cate
!º -�e '!le _fazer ent�nder,_ eu agor� a limitei" (cf. Fisch 1986:342). A
1de1a hm1tada do signo a qual Peirce se refere é mais simplificada e
goria monádica, são: originalidade, acaso, espontaneidade, possi
menos abstrata, de�do o signo como alguma coisa que repre
bilidade, incerteza, imediaticidade, presentidade, qualidade e senti
senta uma outra c01sa para alguém. A inserção da palavra "al
mento. Na secundidade, que é a categoria diádica, encontramos
guém': �o lugar _ da sua noção mais complexa de interpretânte é,
idéias relacionadas com polaridade, tais como força bruta, ação e
sem duvida, aquilo que toma a definição mais fácil de ser entendi
reação, esforço e resistência, dependência, conflito, surpresa.
da, mas, ao me�mo tempo, a toma menos interessante para ser apli
Terceiridade, ou a categoria triádica, está ligada às idéias de gene
cada a processos de cognição e comunicação que não dependem da
ralidade, continuidade, crescimento, evolução, representação e
consciência humana, tais como aqueles que ocorrem, por exemplo,
mediação. Mediação foi, finalmente, considerada por Peirce como
na natureza e nos fenômenos biológicos e de inteligência artificial.
a característica mais geral da terceiridade. "A mediação entre
secundidade e primeiridade" (CP 5.121) foi a definição que ele deu . Para se reter o potencial mais completo da definição peirceana
de signo, temos que fazer a rota oposta àquela que Peirce se sentiu
de terceiridade. "Um terceiro", Peirce afirmou, numa outra passa
obrigado a fazer, isto é, temos de considerar a definição de signo no
gem (CP 8.332), "é algo que traz um Primeiro em relação com um seu nível mais abstrato e genérico. O que essa defmição mais gene
Segundo ... Um Signo é uma espécie de Terceiro". ra�izada traz à baila é a função mediadora do signo entre o objeto e
Em muitas outras passagens, Peirce reafirmou que urna das o mterpretante, e as relações de determinação do signo pelo objeto
espécies mais simpks de generalidade ou terceiridade está na forma
224 LÚCIA SANTAELLA T CULTURA DAS MÍ DIAS 225
e do interpretante pelo signo. Uma vez que os três elementos, signo. signo produz ou modifica Isto significa que a ação do signo só
objeto e interpretante. neles mesmos, ou melhor_ na sua realidade pode se completar quando ele determina um interpretante que será.
existencial, podem pertencer a várias ordens de realidade, como por �ua vez. detemunado pelo mesmo obJeto que detemüna o sig
objetos singulares, classes gerais, ficções, representações mentais, no. E por isso que Peirce afirmou (cf Parmentier 1 985 28) que a
impulsos físicos, ações humanas, ou leis naturais, aquilo que cons ação do objeto sobre o interpretante é "determinação mediada" e
titui a relação sígnica, na sua forma lógica, é o modo particular que o interpretante, ele mesmo, uma ··representação mediada" do
pelo qual essa tríade está conectada (cf. Pannentier 1985:26). objeto, ocupa, portanto. a posição lógica de um terceiro na relação
Comecemos pela discussão da função mediadora através de triádica.
uma das definições abstratas de signo: Em síntese: o signo determina o interpretante, mas o determi
Na sua forma genuína, Terceiridade é a relação tríádica existente na como uma deteminação do objeto. O interpretante como tal é
entre um signo, seu objeto e o pensamento interpretante, ele mes determinado pelo objeto na medida em que é determinado pelo sig
mo um signo, considerado como constituindo o modo de ser de no. Além disso, essa tríade implica numa constante expansão do
um signo. Um signo faz a mediação entre o signo interpretante e processo de semiose uma vez que o interpretante, por sua vez, de
seu objeto. (CP 8.332) termina um signo posterior, tomando-se assim. ele mesmo, um sig
no desse interpretante futuro. A semiose é, desse modo, um proces
A ação do signo ou semiose é a de funcionar como um medi so infinito ou uma séne infinita num processo que opera em duas
ador entre o objeto e o efeito que o signo produz numa mente atual direções, "regredindo na direção do objeto e progredindo na dire
ou potencial. Esse efeito ou interpretante é indiretamente devido ao ção do interpretante·· (cf MS 599:32).
objeto através do signo. A mediação do signo em relação ao objeto Parmentier enfatiza que a relação do signo é constituída pela
implica na produção do interpretante que será sempre devido à ação conexão de um vetor de representação, apontando do signo e
lógica do objeto, quer dizer, sua ação mediada pelo signo. A esse interpretante para o objeto, e um vetor de determinação. do objeto
respeito, a referência do signo ao objeto não depende de uma inter apontando na direção do signo e do interpretante. A posição do
pretação pessoal. Ela é uma propriedade objetiva do signo, uma signo é mediada entre o objeto e o interpretante, tanto no vetor da
propriedade que dá ao signo o poder de produzir um inte,rpretante, representação quanto no da detemünação. O signo em si mesmo
quer esse interpretante seja, de fato, produzido ou não. E por essa faceia simultaneamente em duas direções faccia o objeto numa
razão que não podemos aceitar a expressão "um efeito produzido relação passiva de ser determinado e faceia o interpretante numa
na mente" como sendo explanatória do interpretante. No entanto, relação ativa de determinação.
para melhor se entender o termo mediação é necessário considerar Como se pode ver. enquanto a função mediadora do signo é
o problema da determinação, no sentido lógico que Peirce deu ao geral, a função representativa corresponde apenas a um dos vetores
verbo "determinar". da função mediadora do signo. É por isso que a representação é
A afirmação peirceana de que o signo é determinado pelo ob apenas uma espécie dentro do gênero multifacetado da mediação.
jeto nos leva a pensar que o objeto tem primazia real sobre o signo. Esse termo. mediação, refere-se tanto à relação triádica do signo
No entanto, na forma lógica do processo triádico, o objeto é um em geral quanto ao termo médio dessa relação em particular. Ao
segundo em relação ao signo que é um primeiro. A primazia real do mesmo tempo, esse termo médio, que por vezes Peirce também cha
objeto não pode, desse modo, ser confundida com primazia lógica. mou de representamen, ocupa a posição mediadora no vetor da
Embora o signo seja determinado pelo objeto, este último só é aces determinação e também no vetor da representação. O signo ou
sível pela mediação do signo. O objeto é algo distinto do signo e represen tamen é, assim. um elemento de síntese, e para sua posi
isso explica porque o signo não pode substituir o objeto, mas ape ção mediadora todas as relações semióticas convergem. O signo é
nas representá-lo e indicá-lo para a idéia ou interpretante que o determinado pelo objeto. mas ele, simultaneamente, representa o
227
226
CULTURA DAS MÍDIAS
Ii'lCIA SANTAFU J\
· Nos dois sentidos do termo medi ação, acima discutidos. o sen obJe�o, sigmfi�ando que a relação condicional que consti tui a for
t ido ext ens iv o que s e refer
e à rel ação triádica do s igno e o sentido ma , e verdadeira tal como a forma está no Objeto. No Signo ela
o ou termo méd i o da
especific o referindo-se ao signo em s i mes m pass a
esta encarnada apenas no senüdo representativo, significando �ue,
s i nônimo de med iação. Numa em virtud� de alguma modificação real do Signo, ou qualquer
trí ade, a pal avra mei o é um
, ele pedia ao lei outra, o Signo se toma portador do poder de comunicá-la a um
gem em que P eirce desc revia su as t rês categorias t e rcei Interpretante. (MS 793:2-4)
o (mea ns), ou medium, é um
to r para "ob s erv ar que um mei
07)
4 3 . Numa
ro", que é também "uma l i gação ou Med iação" (NEM _ Co?fonne foi apo�tad? por Johansen (1993:60), essa defini
nte o termo med ium
carta a L ady Welby (SS :32) , ele usou novame �ªº �o sign o como um Meio para a comunicação de uma Forma"
s e refer ir ao s igno
com o um sinôn imo de mediação, mas agora p ar a ��p�ica n� nat:ire za dinâmica e ativa do signo. A semiose é u ma
médi o d rel ção triádica, como
ele m esm o, es pecificamente o term a a
açao ou mfluenc! a que é, ou envolve a cooperação de três e lemen-
_
um medi um ligando o objeto e o i nterpretante.
o
ua dout rina de tos, tais como o signo, �eu o�Jet_o e seu interpretante" (CP 5.494).
Nos seu s últ imos es cri tos , Peirce general izou s
n çã de comunica ��h�s�n observa que isso significa que um signo é uma relação
medi ação e medi um ainda mai s , focalizand
(cf. P armenti e r . rnam1c a e m e d iad o ra p e l o menos entr e três p o siçõ e s
o
e
a o
emi
o
ção com o um traç o ess encial de toda mterdepend,entes: ª�tra_vés da qu al ele produz significado.
de um mei o de
os
a idé
s
obj eto e uma idéi a , ou melh , e t e um bjet algu�a outra c01sa, N, por seu lado, age sobre algo, I, de uma tal
está clarament e
i nterp retante que o signo produz ou modifica. Isso
r o
mane1,ra que �nvolve sua determinação por N, de modo que I
or n
>
228 LÚCIA SANTAELLA
CU LTU RA DAS MÍ DIAS
229
senão aquele de determiná-la como se o objeto ele mesmo tivesse ( I 98 I l 983.), L· s antae lla ( 1992 ell O 977 , 1981, 1983) T Short
' 1994 ) H. pape ( 1993), _ alé
agido sobre ela. de alg_umas passagens em Joh ~ m
an�en ( 199 ;), nao tem recebido a
merec i da atenção O pa el d
enh
O conce ito p eirceano de meio de comunicação é o conceito do de causação final e s u a �ontr:�:: ado �elo conceito peircean o
sign o, n o sentido de u ma mediação abstrata, e quanto mai s abstrato ' causaçao efi ci ente, p ara a c
preensão de processos s ígnicos om-
for o me i o, mai s ele desempenhará o papel de um mediador, algo .
Para Peirce, há doi s tipos d
e for
, ças ou aç°: s em todo o un
que mediatamente determina ou influencia o interpretante, funcio ve. r, so : (1) ação diádica, que , i-
n ando p ar a tran s p ortar a emanação do objet o sobr e a mente . e mecamca ou dm
, . amic_a, e (2) açao -
tn adica, que é inteligente ou s
interpretadora (cf. MS 634:24). Deve ser notado, no entanto, qu e a ígn, ica. A ação diadic� ti01 equa .
com , .a c ausação eficiente , tambem cham ci onada
função abs trata do signo como um me i o de comunicação não ex tn· ad1ca com a cau sação final _ ad.a de açao bru ta, e a aça~ o
clu i seu funcionamento também como u m veículo. Ao contrário, A ç o pe1rceana ?e ca� sa
ciente é a de uma ação efetiva ção e fi
ela o inclu i e pressupõe . A fim de agir como u ma mediação ou me io �en�� :ru ta, ce�a, nao raci on
tencente ao hic et nunc s ingul al, per
ar n _s ua oca� iao.
de comunicação, o s igno tem de estar corporificado, tem de estar por outro lado, é O tip� de A _ causação final,
materializado n u m veículo sensível ou forma express iva. Na ver opos ição a for as. É ca saçao ~ cau , .s/çao que e exercida por le i_ s em
dade, Peirce sempre "insi stiu na necessidade de estudar formas ex log1ca, caus�ção da mente (
Ransdell (197\. l 63) a�mna CP 1 .250 ).
press ivas ou r epresentações externas ao invés de ficar tentanto exa q.ue a cau-s açao final é a fionn , .
a gen en-
ca de um processo' a tende'nci
minar o p en s am ento ele mesmo atravé s de alguma forma de . a p ara um estado fi
ma1, e "os traços
gerai s dessa tendênci a em q .
ua 1que r mei? que O
introsp ecção não mediada" (CP 1.55 l , cf. Pannentier l 985:43). A realizar. (... ) A idéia de que process o possa se
pr ce
importânci a da corporificação do s igno p ara sua ação como u m forma é amp Iamente reconh � ssos vivos e. xemplificam uma tal
. ec ida
mei o de comunicação p ode ser claramente observada n a segu inte mai s acei tos tai s como ' c1· b ' · h,oje em di a sob ,,,ou tros. ro, tu los
' ernet ica e ' homeo sta
citação: �emente, al�uns novos rótu s � : M ai s
los como 'teleonomi a , ut �e c��-
auto-orgamzação ' , . a op o1es 1 s ,
Por um signo quero dizer qualquer coi sa, real ou fictícia, que é etc. , tambem podena
_
O aspecto de maior ongmalid . m se ane xar à li s ta.
~
capaz de estar numa forma sensível, é aplicável a algo diferente ade na concepça .
causa final, enti:etanto, es _ o p e 1rce ana de
_
dele, que já é conhecido, e que é capaz de ser interpretado em
efi ciente Amb ~ ~ tá no fat , o .de q ue ela nao exclm cau s ação
outro signo, que chamo de seu Interpretante, de modo a comuni com at1ve1s que � caus
ação final de qual
quer pr�esso :� �::;
car algo sobre o objeto que pode não ter sido previamente conhe r a�izada atraves �a cau saçã
o q ue s ign ific o e fic i ente ,
cido (MS 654:7). a que se di�:g i: p a
proces so � ossa es tar se ra u m fim nao quer dizer q ue
_ parado de um aspecto meram
Signi fi ca, Is t� s im, ente fisi co.
ess e
A idéia que Peirce queria transmitir, quando estabeleceu a qu e a cau sa final depende da for .
difere nça entre o veículo e o mei o é a de que a função abstrata ou Para sua realizaçã_ . . ça bru ta e fi1s 1c
o E mbora seJ�m tip
representativ a de u m meio é mai s complexa do que a de um veícu diádica , - cega · os di s ti� tos de ação
, u ma é
a
b
210 LÚCIA SANTAELLA CULTU RA DAS MÍ DIA S
2, 1
ação s ão contrári os polariz.ados " (CP 1.2 13, cf. Santaclla l 994 d :40 6- gravação . reg istro de tran smi ssão do som
_ _ e da
407) . dor tambe m e uma maquma semiótica Dife imagem . 0 computa
E sses doi s modos inseparávei s de ação são aquele s que carac rentemente daquela s_
entretanto. a se111 1ose do computador é
terizam a sem i ose: a forma sens ível, material do s igno, s ua expres a únic a que. nela mes ma
1ndependemente dos processos de interaçã
, o e int e rpretação d os usu
s ão e xterna , aquil o que lhe poss ibilita agir em um processo de co ª:1os , pode atm glf o nível mais complexo de �
m unicação, corres ponde à s ua ação efici ente, enquanto s eu papel s1m bol o. Como um res ul
t odos os s ign os . 0 do
tado de s ua com plexid
comple men tar, me di ador e lógico, co rre s ponde ao as p e cto_ de ade s e m iótica. 0
compu_tador pode desempenhar o papel
causação final . I sso s ignifica que, para exercer seu poder l o, g1 co, quer dizer o pape l do signo e m sua
de mediação ou terceirid ade
: inteireza. preenchendo lite ral�
medi ad or, o s igno preci sa estar fí s icamente corporificado . O s co� mente e na o apenas me tafo
ricamente a função epistemológica
pos materi ai s dos s ignos são responsáve i s pel os processos comum mode l ar o mund o. S enão de
vej amos .
cativos , por tran smitir informação de uma certa fonte a um certo Prob�emas reais d� ?1undo são abs
, traídos pe los ci enti stas da
destino. Eles funcionam como os mei os fi s icos, como os ve1culos comp�taçao com o aux1h o de teorias
, e, então, essas abstrações,
através dos quais a informação vi aj a . M as , ao mesmo tempo, atr a que sao tam be, m chamadas de conh
ecim ent o, s ão sim bol ic
vés desse mei o ativo, o s i gno é uma representação, desempenhando r ep re s en ta das e manip ul adas den ame n te
tr o do com pu tad o r. Br own
o papel de uma medi ação abstrata trans mitindo significad o de um ( ! 989: 1 1- 1 1?) observa que o conhecimento nec
objeto a um interpretante . · essário a qualquer
_ _ _ �1 stema mtehgente pode ser ampl amente dividid
o em du as partes :
A s di s cussões acima dos doi s sentidos de si gno ou med1 açao itens de conhecimento e estruturas d
· . - e conhecime nto . --o s I ,
como terce iridade e como o t ermo m édio ou m ei o na ca dei a as c0t s�s m · dIVJd
· ua1s que se press ·ten s sao
, upõe que o si stema conheça". tais
semiótica, ass i m como a discussão dos dois aspectos inter-rel acio c�mo Obj etos, propne?ades de o
bj etos, rel ações ent re objetos
nad os do conceito de me i o como um corpo fi sico e como uma re num e:os, figuras geometncas , e .
assim por diante. ( . .
presentação, podem agora nos auxiliar a compreender porque _ o tam_bem queremos saber como co . ) Mas nós
l ocar esse conhe cimento jun to. e é
computador é simultaneamente um signo, uma mediação, um meio aqm que as estruturas de co ecime
� nto entram ··. A s principai s for
e também um veículo. mas �e estruturas de conh ecimen
to s ão: ( I ) es paço de esta
a�anJ o de_ fatos que permite ao si s do um
tema sabe r para onde el e p ode ou
nao p ode ir, imediatamente a partir
AS FACETAS DO COMPUTADOR
do e stado que ele está conside
Não pode haver dúvidas de que o computador é _ �m signo rando ?º mom ento; (2) representa
ção de procedimento, que permi
genuíno no sentido peirceano, quer dizer, é uma tercemd�de o� te �o sistema en�ontrar seu cam
mho através de um arranj o hierár
medi ação. E ntre todos os tipos dife rentes de in strumentos, d1spos 1 - q� i_co de proced mentos ; (3) sistem
! as de produção. que u
sam uma
tivos e m áquinas que foram inventados pel a hum anidade, o compu ser�e de produçoe . q�c são reg
� ras dizendo que, se esse é o caso
tador é o primeiro que pode ser sernioticamente caracterizado como então tal e tal sera feito ; ( 4) form ,
uma terceiridade genuína ou signo. Embora outros tipos de máqui parec.i dos com p equenos es ca atos , que s ão, mctafori
camente
ninhos (ibid. : 112 ).
nas técnicas, tais como as câmeras fotográficas e cinematográfi , Temos de considerar, no entant o, que
e co�ec 1mc t� sobre algum qualqu er conhecimento
cas, rádio e televis ão, recursos de gravação sonora etc. tenham tam � a coi sa . Assim , qua lque
nhecimento e ) ª uma represe r teoria ou co
bém a natureza de s ignos, eles são tipos degenerados de signos . A ntação, uma es pécie de mode lagem
comp aração s emiótica des ses tipos diferentes de máquinas nos le mund�. Os sis temas notac1 do
ona1 s e lógicos . que s
t uz1r �s fatos e teorias ão usados para
varia muito l onge dos objetivos deste artigo, pois o que cumpre �
responder é porque o computador é capaz de ati ngir o nível mais g:, que e aceita pel o com bre o mundo numa e spécie de lingua
putador, são representações de s
so
complexo do s igno, enquanto as out ras máquinas não podem . º.1 el, a saber representaçõe egundo
s de represen tações . É
À seme lhança de todos os outros tipos de máquinas para a si;erar que ha: represent importante con-
ações do p onto de vista d
os processo s nel as
b
23 2 LÚCIA SANTAELLA
CUUURA DAS MÍ DIAS
23J
(cf. Pylyshyn 1 984:23-32) têm sido muito e�fat 1zados na IA._ As (cf. Newell and Simon 1 98 8:37).
modal idades da representação são vánas. Ha, po r exempl o, tipos Ferramentas e _ máquinas são projetadas para propósitos parti
de representação ou códigos como os que foram propost os _ po r cu lares , para atmgir certos fi ns, mas enquanto al guns deles são
exten sõ �s da nossa força física e outros extensões de nossos órgãos
Anderson ( 1 983:45-85), a saber: ( 1 ) um fio temporal que codifica
a ordem de um con junto de i tens; (2) uma imagem espacial, que dos senti dos, os computadores são extensões do nosso cérebro. Com
codifica a configuração espacial ; (3) proposição abstrata, que co �u � habilidade de armazenar e manipular s ímbol os, o computador
difica o sent ido. Há, a lém disso, os dois ramos bem conhec1d_os da 1m1ta a mente na s ua capacidade de funcionar como um meio de
p rogramação, também chamados de r�pres_en!a0es do conh�c1men computação e um meio de rep resentação (cf. foma 1 990: 1 95).
to: o declarativo e o procedural , cuJas d1 stmçoe s s e base1�m �m , �lém de se r um mei o ou mediação no sentido peirceano mais
doi s t ipos de conhecimento (Winograd 1 975: 1 85-2 1 0). O p nme1ro genenco, � computa�or também funciona como um signo no se
gundo sen�1do que Peirce conferiu a essa palavra, isto é, como um
deles o conhecimento decl arat ivo, refere-se a fatos que conhece
te �o méd10 na rel ação t riádica do signo, objeto e interpretan te. A
mo s , 'e o segundo, o p rocedural , refere-se a -�-abilidades que sabe
s �m 10 �e mais bás ica na qual o computador ocupa a posição do
mbs como desempenhar (Anderson 1 983:vm). Do m_esmo modo
s ign o e aquela dos processos e operações que se desen v ol vem est ri
que, em al gumas l inguagens, temos sent�nças declarativas e 1m�c
rati vas ass im também há dois tipos de linguagens de computaçao. �ente dentro �o con:iputador. Aqui, o computador não pode ser
v1st � c�mo um signo s impl es, mas muito comp lexo, dados os vári
'·Uma �spécie usa dec l arativas , dizend� ao co_mputador que isto ou
os, niye1s de determinação e representação de sua semios e i n terna.
aqui lo é o caso, e a outra u sa imperativas dizen do- lhe para fazer
Há amda duas outras semioses básicas de acordo com as quais o
al gi.lma coisa" (Brown 1 989: 1 1 2). . c?mputador funciona como o i nterpretante ou como o objeto do
Não se pode negar que representação é um c_once1to chave
para os teóricos da IA e da ciência _ cogn it iva. Infebzme�te, esses signo res pectivamente. Estas são semioses computacionais vistas
dos pontos de vista do program ador, de um lado, e do Usuário, do
teó ricos tomam como ponto de partida apenas uma noçao vaga e
ou tro.
amp l a de '·represen tação do conhecime�to". I s so oblitera_ tanto o
Winograd e Fl ores ( 1 986: 84-92) nos deram uma descrição de
metanívcl dup l o da representação dos sist emas formais qu�nt� a alguns dos �spect os representati vos envo l vidos na programação.
natureza real do computador como um signo genuíno ou med1açao,
Essa descnçao pode nos aJudar a mapear a semiose do compu tador
cujos objetos semióticos já são signos genuínos, pertencentes �o
do p�nto , de vista do programador, quan do o program a ocupa a
universo da terceiridade. Entretanto, como resultado de uma espe
P�siç �o log1ca do termo médio ou signo na rel ação triádica. Aqui, o
cie de i ntuição sobre a cadeia complexa de mediações na qual o
p nme1ro aspecto a ser anal isado diz respei to ao caráter referencial
computador se i n sere, os cientist as da computação são capazes de dos programas de computação, que são sempre programas sobre
•
234 LÚCIA SJ\NTJ\ELLA
CUITURA DAS MÍ DIAS
235
alguma coisa. programas sobre algum assunto ao qual o p �ograma há uma tal rede de signos operando den
: tro de computador, que so
d;r dirige um certo programa. O assunto é o obj eto sen11ot1co q� e mos levados a ver sua semiose inte
determina o signo que. no caso. é o programa. O signo, por sua wz, rna como um caso de semiose
composta. Winograd e Flores ( 1986:86
representa esse objeto, o assunto, até um certo ponto e sob certas -89) apresentam uma clara
descrição geral das cascadas de níve
capacidades. is de representação, um sobre
o out ro, que con stit uem as ope raç
A expressão '·até um certo ponto"· refere-se ao fato que, o pro_ ões
computacional. Uma vez que esses níve inte rna s do sist ema
grama não representa o assunto em tod�s os seus as�e��os. ma� is já foram mencionado s
mais atrás . a síntese dada por New
apenas naqueles que estão sob cons1deraçao. A expressao sob cer ell e Simon ( 198 1: 35-66) dos
sistemas simbólicos fisicos será tom
tas capacidades" refere-se às habilidades do s1gn� para rep �esentar ada aqui como uma moldura
_ geral de referência para um resumo da
seu objeto. Na programação, essas habilidades sao d�pendentes da semiose composta que ocor
re dentro do computador. De acordo
lógica do sistema que está sendo usado e da extensao em que as com essa visão (ibid.:6 4):
fórmulas do sistema estabelecem correspondências c_om o estado Sistemas simbólicos são coleções de pad
de coisas sendo representado. A representação e _ o conjunt� de ope rões e processos, estes
últi mos sendo capazes de produzir, dest
_ ruir e modifica r os pri
rações projetados no programa têm de ser vend�cos. Supoe-se que mei ros. As propriedades mais importa
ntes
produzam resultados que são corretos e':1 �elaçao ao assunto. poderem designar objetos, processos ou dos padrões são as de
outros padrões, e . quan
o programa como um signo opern t1p1camente sob a forma de do designam processos, eles podem ser
interpretados. Intepretação
causação final. Sua aplicação se dmge p ara um estado final, um significa levar à frente o processo desi
gnado. As duas classes
objetivo. O computador tem de realizar certas tarefas de �cardo mais significantes de sistemas simbóli
cos com os quais esta mos
com um projeto geral. Os programas ta�bém têm de ser efic1en1:_es. fam iliarizados são os seres humanos
e os computadores.
E O são na dependência de quão efic1entei:nent � as operaçoes
A característica mais relevan te dessa
computacionais são desenvolvidas. Ao operacionalizar o design do definição está na ênfase
sobre o caráter simbólico da semiose
programa. 0 computador age como seu interpretante. Mesmo quando interna do computador. A
hierarquia de abstrações, também cha
0 computador acaba operando de maneira bem-sucedida dentro de mada de "máquinas virtuais"
(cf. Aho e Ullman 1992 : 143 ), que
um domínio inteiramente fora das intenções dos programadores que com eça com os circuitos
s ubjacentes e progride
construíram seu programa, ele ainda ag� com? um interpretante através da linguagem da
tema operacional, a linguagem da pro máquina até o sis
desse programa - um interpretante criativo, altas -, assim co1120 gramação e, eventualmente.
os p acotes aplicativos que correm
opera sob a forma de causalidade fin�I, A fom:ia da caus� fi �al nao na máquina são. todos eles, na
realidade, padrões sim
pressupõe que seu fim seja predeterminado. Ha uma tendenc1a p �ra bólicos e processos inter- relacionado
meio da referencialidade interna, e s por
um fim. Entretanto, como o processo não pode escapar da �nfluen interp retados em termos de re
gras operacionais. Mesmo no nível
cia do acaso objetivo e pura possibilidade, o fim nunca esta fecha fisico mais elementa r. o compu
tador já lida com símbolos. Qualqu
do. Quanto mais complexos são os assuntos a serem representados er p adrão de impulsos ou esta
dos elétricos já é uma representaçã
e os sistemas formais que os representam, menos de�ermin1sta e o de números. Em sínt ese : qual
que r atividade que é processada
mais aberto à interferência do acaso o estado final sera. pelo computador é uma atividade
sim bóli ca.
No segundo tipo de semiose, em que o comp_utador, ou me
Newell e Simon ( 198 1 :40) contribuíra
Jhor. suas operações internas func10nam como um signo ou o term � m com duas noções ct:n
médio da relação triádica, os programas projetados pelos progra �rais para a definição de sistemas simbólicos
interpretação. ' 'Uma expressão . a saber. designa ção e
madores são o objeto semiótica do computador, enquanto os o �tputs designa um objeto se. dada uma
exp ressão, o sistema pode ou afet
gerados nas execuções do prog ram a pelo computador sao os ar o objeto ele mesmo. ou se com
_ P�rtar de modos dependentes do obje
interpretantes. Desse ponto de vista. há tantos níveis de representaçao. signação está no acesso ao to". Assim, a essência da de
objeto via expressão. A interpretação
•
�
significa que --o sistema pode interpretar uma ex� ressão se a tipos de signos sem os quais o símbolo não poderia funcionar, a
expressão designa um processo e se. dada a expressao. o sistema saber, o� íco�es e os índices. Nenhum símbolo pode funcionar como
pode levar o processo à frente". tal sem mclulf níveis indexicais de rcferencialidade e níveis icônicos
De fato, designação, a relação do símbol� com o obJeto ao de sig?ifi_cação..: Como pode a robótica ser estudada, por exemplo,
qual o símbolo se aplica, e interpretação, o efe1t? produ �1do pelo se os md1ces nao forem levados em consideração? E como podem
símbolo numa quase-mente, são as duas caractenstlcas bas1cas da os processos de modelagem e simulação ser analisados sem o auxí
definição peirceana de símbolo. Também básica é a natureza arbi lio da _ noç�o semiót ! ca do ícone? O estudo dos ícones e índices, que
trária do símbolo. Assim, quando Winograd e Flores ( 1 986:86) tambem sao operativos semioticamente nos sistemas internos es
observam que não há nada no design da máquina ou nas operações t�turas e pa �rões dos processos computacionais, é um capítul� em
de seus p rogramas que dependa, de qualquer modo, do fato de que s1 mesmo, CUJO desenvolvimento ainda espera pelos semioticistas
as estruturas simbólicas sejam vistas como representando qualquer embora Nõt� ( 1 �96) já tenha dado a isso um primeiro impulso.
coisa, eles estão precisamente confirmando o caráter ª�bitrário do O terceiro tipo de semiose parte do ponto de vista dos usuári
.
símbolo. Que a representação esteja na mente do_ us � ano, co�o os os dos programas dos computadores e dos intérpretes de seus
autores (ibid. :86) observam, corresponde quase mteiramente � de ou �puts . N�sse processo, as operações dentro do computador são o
finição peirceana de símbolo como o tipo de signo no qual o signo obJeto do s1�no, seus outputs funcionam como signo e o comporta
e o obj eto representado estão relacionados apenas porque o
interpretante os representa como relacionados. �en�o dos mt�rpretes e usuários são os interpretantes da relação
� 1gn1ca. Este e o _h �º- de semiose que tem atraído mais atenção e
Entretanto. de acordo com Peirce, o interpretante não deve mteresse dos sem1ot1c1stas, muito provavelmente como um resulta
ficar restrito à �ente do usuário. A interpretação produzida por do � pre�s�posição_ de que só existem processos semióticos quan
uma única mente é meramente uma e nem mesmo o tipo mais im do há u �uar� os dos signos. Este é um outro assunto muito pertinen
portante de interpretante. O mais relevante deles c�nsiste nas re te que, mfehzmente, extrapola o escopo deste artigo.
gras gerais e lógicas de interpretação que a _mente mte� retadora Concluo meu argumento, portanto, focalizando a natureza do
atualiza no ato de interpretação. Sem a efetividade dos sistemas de ompu
regras que sustentam as operações do computador, não poderiam � �ador como um meio. Se consideramos o tenno signo no sen
tido p elfceano com? um sinônimo de meio (medium), o computa
existir processos de designação e interpretação entre as camadas de dor � - �e fato, um tipo mmto especial de meio, uma vez que todos
padrões e estruturas dentro do computador. ., . , os s1gn1ficados que Peirce deu à palavra signo são aplicáveis ao
Outro aspecto importante da defimç�o sem10tica do sim?olo comp�tador. Ele � u� � �ediação ou terc_eiro . É também um signo
que também foi apontada por Newe\l e Simon ( l 981:64) esta no o� me10 na relaçao tnad1ca do signo, obJeto e interpretante. Além
seu caráter evolutivo. "Um sistema simbólico físico", eles afirmam, disso, o computador pode agir como um interpretante num outro
''é uma máquina que produz, através do tempo, uma coleção processo de semiose, e finalmente também pode ser o objeto num
evolutiva de estruturas simbólicas. Tal sistema existe num mundo processo de semiose adicional.
de objeto·s que é mais amplo do que essas expressões � imbólicas".
Essa idéia de que os símbolos crescem. e que tal crescimento apre _ O fa!o de que o computador é um signo no sentido de meio
nao _exclui. de modo algum, seu funcionamento como um veículo
senta um certo nível de autonomia, foi enfatizado por Pelíce em do signo. Afinal de contas, de um certo ponto de vista, o computa
muitas ocasiões. dor pode simplesmente ser considerado como uma máquina física
Se é verdade que há quase um consenso entre cientistas da co� uma rede complexa de componentes, tais como cabos, circui
computação de que os computadores ma�ipula�- símbolos, _ tam tos mtegrados e discos magnéticos. Esses componentes, que ope
bém é verdade que a preocupação com a simbohc1dade dos signos ra� de acordo com as leis da fisica, podem ser descritos em termos
manipulados pelo computador. de certa forma. os cegou para outros de impulsos elétricos que viajam através de uma rede de elementos
+
LÚCIA SANTAELLA
238
s a1 s c?d1ficad� s que
re
Terra, processam sua tradução em m vertidos em imagens . humano, com seus órgãos sensores e mentai s , esten didos e dilata
tidos à Ter ra, são reprocessados dos, já alcança hoje uma es cala que começa a extrapolar o plane ta.
e con
E SON HA M
O CÉU E A TER RA DO QU
l�Á MA IS SIG NO S ENT RE ETERl\'A LUTA ENTRE TÂNATOS E EROS
NOSSOS OL HO S NU S
o é denso e fa s � m ant�
. Ha � T�rra dentro) vítima da vida i nteligente a que ela p róp ri a deu abrigo, é
da Terra o Céu nos envia? O jog
á, vis.tas do Ceu ? Ha o Ceu visto ameaçador demai s para ser ignorado pela sens ibilidade alerta e
vista da Terra. Qu antas Terr as h
do vistos n� C�' u ?. des assossegada d os arti stas planetári os. E nquanto, de um la do,
da Terra . Qu antos Céus há, quan es que podero so � i n i m ig os se ig ual am na corrida p ara a conq u i s t a
ast ronom1 co� � de nav
Atr avés da mediação de satélites m •d arm aze armamentista do es paço e na pul s ão da morte (pervers a vi ngança
vão sendo t an � � �
deixam o sei o da órb ita terrest re d cos do homem contra s i mesmo) que pode, no instantâneo de um flash
s e
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r s
mo s numa evidente
tendência expans i oni sta:
acttcos ... artistas mumdos de mdestrutível pul s ão in dôm ita da vida buscam
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- para os quais não há descans� p !e�a, p ro O es paço celeste, ou melhor, a interface Terra-Céu como su porte
e om
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feriado -, est rategi camente em tran a Terra e da Arte. Su porte cujo acesso i mplica, em maior ou menor grau , no
a
C
eu e
u e da Terr a . D
du zem inces santemente signos do Cé acompanhamento do dernier cri da ciência espacial de ponta e no
o eu
conseqüentemente, de vida além da Terra, sugeridas pela ambiência INPE. Aliou-se ao astrofísico Jorge Albuquerque Vieira (sem o qual
científica moderna, aliadas ao tremendo desenvolvimento tecnoló Sky and Ltfe não teria sido possível). Tudo isso, para quê? (Per
gico dos aparelhos de observação, criaram as condições para o sur gunta, aliás, que não se faz a um artista; para o artista não existe
gimento, nos Estados Unidos, do programa SETI - The Search for por quê, nem para quê; seu trabalho simplesmente existe.)
Extraterrestrial lntelligence (A Busca de Inteligência Extraterres Wagner não é ingênuo. Não freqüentou a ciência de ponta
tre) em tomo do qual se reúnem todos os cientistas solidários à para competir com os cientistas. Tinha inúmeros quase pensamen
demanda de evidências de que a vida na Terra não é solitária tos na cabeça (girando, mudando, borboleteando, sumindo, voltan
(Morrison et al.1979). Nessa busca, o que parece animar os cien do), mas uma única imaginação fixa, imperturbavelmente imutá
tistas e fascinar os leigos é o fato de que, na tentativa de uma res vel: queria inserir um corpo poeticamente estranho, ou estranhamente
posta para o enigma - há vida ou não? -, fica muito difícil poético, nos circuitos de recepção, processamentos e transmissão
discernir qual das duas alternativas - sim ou não - seria a mais de sinais da radioastronomia. Seu foco de miragem era a vida -
fantástica. No contexto atual, aliás, dado o grande número de su vida que te quero vida - para além do Globo. Na sua cabeça de
gestões favoráveis à vida além da Terra, a hipótese da nossa soli artista, impávida e colossalmente, fixa a idéia iluminada de que,
dão e da unicidade de nosso patrimônio biológico parece muito para indagar sobre a vida, nada mais vital do que a poética. Porém
mais espantosamente inacreditável do que seu contrário. não queria uma poética babacamente metafórica, ilustrativa, poéti
De qualquer modo, não há índices de que a dúvida possa ser ca do comentário, à margem e à distancia dos estremecimentos mais
proximamente sanada. Para uma indagação astronômica, o tempo recentes das descobertas nas ciências. Buscava uma poética da fric
também é contado astronomicamente. Enquanto isso, esforços são ção: cara a cara com os abalos e tremores de terra que o desenfre
despendidos na elaboração de estratégias para a busca (principal ado ritmo de crescimento científico e de seu suportes e subprodutos
tarefa do programa SETI) e na utilização otimizada dos instrumen tecnológicos estão fadados a provocar nas anacrônicas e cínicas ou
tos de observação de que o presente dispõe. ingênuas ideologias travestidas de humanismo, assim como nas
É no contexto das questões acima que o estudo Sky and Life formas de arte e cultura mercantis que lhes dão sustento.
de Wagner Garcia foi tomando forma. A incerteza e a dúvida são Resumindo: os percalços para realizar seu desejo foram mui
os mais fortes componentes da curiosidade. Cientistas e artistas, tos. Esqueçamo-los. Eles se perdem nas franjas cinzentas do cotidi
cujo estofo é verdadeiro, são seres imantados na incerteza. O tipo ano. Notas de rodapé inscritas no escuro. Cumpre registrar o que
de tratamento, todavia, que costumam dar a ela, os diferencia. En veio à luz.
quanto a ciência se debruça sobre o incerto como uma questão a ser O ponto de partida eram sinais captados de estrelas de tipo
sanada, ultrapassada ou, pelo menos, explicada, visando à satisfa G5 (estrelas com características similares ao Sol). Sinais que re
ção (descanso da irritação da dúvida), através de respostas pelo gistram as pulsações cósmicas de astros aptos ao oficio (tal como o
menos prováveis, a arte, ao contrário, busca dar forma sensível à Sol) de doação de vida.
dúvida, fazer a incerteza virar coisa, expô-la à superfície dos senti Em termos semióticos, os sinais recebidos são índices do com
dos. portamento da fonte que os emite. Por isso mesmo, esses sinais, ao
Wagner Garcia está há anos respirando na atmosfera das pes serem interpretados na Terra, fornecem uma série de informações
quisas espaciais. Tomou-se íntimo freqüentador de todo o arsenal sobre sua fonte. Em si mesmos, os sinais não têm inteligência. São
tecnológico do complexo que compõe o Instituto de Pesquisas Es meros indicadores, indiferentes ao fato de serem captados ou não.
peciais-SP. Coletou as informações que estavam disponíveis e saiu Continuam existindo, na sua missão, haja ou não uma antena de
à caça das que não estavam disponíveis. Observou o trabalho dos radioastronomia para coletá-los e cabeças pensantes para interpretá
técnicos, o funcionamento dos aparelhos, compartilhou algumas los.
das indagações e dos resultados de pesquisas dos investigadores do Nota-se que a antena, em si mesma, já é um sensor dotado de
246 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS MÍDIAS 247
inteligência, pois, se assim não fosse, não poderia receber os sinais É por tudo isso que, no instante em que Wagner Garcia, com
que recebe. A antena é inteligente. Os sinais não são. Se fossem, seu projeto Sky and Life, entrou no circuito em que transita a inter
seriam sinais de vida. Neste caso, então, sendo ainda sinais, índices rogação sobre a vida no cosmos, de saída, já estavam encapsulados,
de vida, são também símbolos, porque a vida, semiótica e biologi nesse projeto, os dois projetos subseqüentes: Sky and Body e Sky
camente, é símbolo: lei governando particulares, um código geral and Mínd. A vida é, por sua própria natureza, vida inteligente.
que cónforma as atualizações singulares à sua imagem e semelhan Nesse sentido, o entendimento da palavra mente se amplia para
ça. É por isso que toda forma de vida é uma forma de inteligência. recobrir todas e quaisquer formas vitais aquém ou além do homem,
Vida é aquilo que detém a informação para sua própria reprodu na Terra ou no Céu. Ao mesmo tempo, indagar sobre a vida cósmi
ção, de modo que vida e auto-reprodução são s�nônimos. Nesse ca é necessariamente pensar as características dos corpos celestes
sentido, a morte está subsumida ao ciclo da vida. E uma espécie de propícios a abrigá-la. Inicia-se, já no interior do primeiro estudo de
excremento da vida. Wagner Garcia, um jogo combinatório implícito dos elementos vida
A energia radiante, que é emitida por qualquer corpo (terres corpo-mente que se repetirá em novas redistribuições nos estudos
tre ou celeste) com temperatura superior a zero grau absoluto, é um subseqüentes. Em Sky and Life, interrogar sobre a vida inclui as
ingrediente fundamental da vida, pois é essa energia que toma pos interrogações acerca do corpo e mente da vida. Voltemos, pois, ao
sível os processos dinâmi�os. Sem a informação, no entanto, a ener percurso dessa interrogação, retomando o passo do projeto.
gia é destituída de vida. E a informação que se responsabiliza pelo Rememorando a questão central: como introduzir uma poéti
comando, controle, coordenação, reprodução e, até mesmo, pela ca, intrometer-se pelas vias do sensível, no circuito de inteligibilidade
modificação e adaptação do uso da energia. Toda espécie de vida, da ciência? Tendo passado por uma seleção, para a qual Wagner
vida auto-reprodutiva, baseia-se no código genético; este é um meio Garcia contou com a inestimável colaboração do astrônomo
extremadarnente engenhosCT de armazenar informação de como se Williams Villas Boas, os sinais das estrelas G5 estavam lá. Não se
reproduzir, multiplicar e armazenar esta mesma informação, inclu tratava de fazer deles uma leitura poética, mas em nível de produ
indo a informação de como construir um organismo mais compli ção. Como implementar esses sinais com sensibilidade sem des
cado. truir suas características elementares, ou melhor, como chegar,
Parece que a tendência da vida para o cérebro já estava inscri transmutado, ao ponto de saída do circuito, sem perder, pelo cami
ta na própria vida. Conforme foi crescendo em complexidade, a nho, os dados de entrada ?
vida foi tendo a necessidade de uma central de ligações e distribui Semioticamente, tratava-se de fazer emergir a proeminência
(
ções (o cérebro), capaz de transformar informações de entrada em icônica (reino do possível, paroxismo qualitativo do sensível e do
apropriadas ações de saída. Assim como a vida estava grávida de sentimento) a partir dos sinais de rádio, tomados como dados de
cérebro, o cérebro estava grávido (ou ávido) de linguagem. Neste entrada. Ora, esses sinais são despojados, carentes de apelo sensó
ponto, o da linguagem - emergência única na biosfera - foram rio. Inútil, portanto, tentar exacerbar o aspecto icônico minima
tocadas os gonzos da hipercomplexidade e de seu rebento expansi mente presente na materialidade em que o sinal se corporifica. Em
vo, a noosfera, reino dos signos, inteligência corporificada de arte casos como esse, é preciso fazer o índice avançar para o nível sim
fatos, objetos, moradia, instrumentos, meios de transporte e comu bólico e, então, saturar o simbólico na hipercomplexidade até
nicação, incluindo, no estágio atual, entre milhares de outros ape converté-lo em efeito de pura e nua qualidade, irrupção do ícone.
trechos e aparatos, as antenas de radioastronomia... Enfim, tudo ao As idéias iam tomando corpo na medida mesma em que eram
nosso redor, e agora em redor e para além da Terra, tudo que ainda discutidas principalmente com Jorge Alburquerque Vieira a quem
inadvertidamente chamamos de coisas, são signos, seres noológicos, coube a exímia execução de um tratamento dos sinais (índices) que,
que povoam a natureza e englobam a própria natureza, que tam através de um esforço de materialização, passaram por uma
bém já virou signo (o serviço meteorológico que o diga!). transcodificação em nível simbólico, reaparecendo, assim, numa
•
248 LÚCIA SANTAELLA CULTTJRA DAS MÍDIAS 249
gramática ex pressa através de u m es paço de estados ou de fases. É se encontra com det ermin ada temperatura, ou pr es são, ou volu
Jorge A. Vieira ( 1 988:2-4) quem nos informa sobre a complexa me etc. Ou sej a, um moment o, um estágio, u ma fa se de su a exis
trajetória desses sinais rumo a u m ti po de codificação capaz de tência. Um único pont o é t odo o sist ema num moment o hi stórico.
fazê-los rebater no plano s imbólico e simultaneamente estourar,
ressurgindo como í cones na e piderme dos sentidos para sedu zir a
Qu an do o sist ema mu da, suas caract erí sticas t erão mu dado e o
perce pção:
pont o desloc a-se no es paço, geran do u ma traj etóri a. Essa tr aj etó
Na ciência moderna, observamos in dícios de incertezas intrí nse ria não é o camin ho percorrido pelo corpo n o espaço n ormal,
cas à naturez a, que não ex pr essam só a ign orância do suj eit o. E como ocorreria num espaço de representaçõ es, mas é agor a u ma
já conhecemos dois processos básicos: 1) do caos, do incerto, do part e de su a história ou de sua evolução. Esse espaço qu e não
in det erminado, da pertur bação, da flutuação emerge a organiz a r epres enta o cor po e sim sua história é o espaço de est ados ou de
ção [ver a t eoria das estruturas dissipat ivas de Prigogine); 2) do fases. Os atrat ores, estran hos ou não, são entidades geométricas
det erminado, bem comportado, daquilo que é ex pre sso por u ma n esses espaços para os qu ais t en dem as traj etórias históricas de
r egra ou lei, do estável emerge o caos, e mais ain da, u m caos sistemas em evolução. Assim, se um sist ema não mu da ao lon go
ex pre sso por u ma regra simples e conhecida, logo, in dependente do t empo, um único pont o o represent a. Se o sistema é pertur ba
da ign orância humana. Trata-se aí das modern as t eorias do caos do, u ma pequena traj etória 'aban don a' o pont o, mas volt a a ele,
e atrat ores estranhos. D essa última escola teórica, s abemos que quan do o sistema 'acalma'. Esse ponto é um atr at or de est abili
atrat ores e str an hos ( entidades geométricas, num ín dice qu e si dade. Atr atores podem s er pontos, curvas fechadas ou ciclos ou
mula u m espaço, chamado espaço de fa ses ou estado, par a on de entidades tridimensionais como um t oro (um pn eu) etc. Atrat or es
convergem as ór bitas históricas do sist ema r epresentado) são estranhos, os qu e govern am a transição de um r egime estacioná
fr actai s, ou s ej a, estruturas de dimension alidade fracionária qu e rio para os caos, têm formas estran has e geralmente são curvas
geralmente se repet em ' internamente' (um pequen o pedaço de qu e se dobr am s obre si pró prias. Ou su perfícies etc. E s ão esses
fr actal conté m a estrutura fr act al, um pedaço do pedaço também atr at ores qu e são t ambé m fract ai s, sua estrutur a repetin do-se exa
etc.). (... ) A ssim, se um determin ado fenômen o é descrit o por t ament e devido a ess as dobras n o es paço de fas es. (... ) Exist em
u ma mens agem qu e possui um componente determinista at enu a sist emas cuj o comportamento n o t empo pode ser representado
do por u m caótico (a pr esença de "ruí do", na forma de regras de por um espaço de fases puramente t empor al. E quando o s eu com
sint ax e de curt o alcance int ersimbólico, como n os process os portamento possuir escalas temporais mais ou men os bem defi
ergó dicos) a lingu agem tí pica do mesmo, se colocada num espa nidas, o chamado espectro t emporal pode ser reflexo de u m es
ço de fa ses, pode evidenciar algum aspecto de u m atr ator estra pectro de freqüências.
nho. (.. . ) Elaborados esses pressu postos, Jorge A. Vieira iniciou o pro
cesso de transcodificação dos sinais, de modo a converter os índi
Tomemos u m sist ema qualqu er qu e mu de n o t empo, qu e ces originais em símbolos de u ma gramática. Assim ele nos ex plica
evolu a n o tempo. Ess e sistema, ao mu dar, t em mu dadas algumas seus procedimentos:
ou mu itas de su as caract erí sticas. P or ex emplo, forma, cor, t em
peratura, volume, densidade, pr essão int erna etc. É pos sível cons n os sinais por nós estu dados, codificamos os fenômen os n ão pela
truir u m espaço matemático on de cada eix o in dicavalores dessas sua int en sidade, ou sej a, pela amplitu de dos registros, mas sim
caract erí st icas mutáveis. M at emat icamente, podemoli tomar n pela duração em t empo das estruturas do sinal. Se essas dur açõ es
eix os ortogonais, mas se quisermos aproximar essa con strução s ão t omadas como sign os, eles formam um alfabeto e a man eira
de n ossa percepção, ficamos limit ados a três eixos somente. (... ) como u ma depen de da outra, como uma influencia ou implica n a
U m pont o n esse espaço in dica um est ado do sistema, quando ele ocorrência de outra, traduz a gramática do s inal, a fa ix a de influ
ência int ersimbó licas etc. Se colocamos num eix o todos osvalores
e
ÜJCIA SANTAELLA CULTURA DAS M Í DIAS 25 1
250
que essas durações possam ter (" tn) e colocarmos um outro eixo. de provocação que, fazendo cócegas e produzindo espasmos na
perpendicular ao primeiro mas tal que seja calibrado em " tn + 1. perc�pção, exige olhos táteis, ligeiros e voláteis para sua recepção.
teremos um espaço bidimensional. de fases. puramente tempo No mvel das 1mpheações subentendidas, as fractais adquirem, den
ral. onde cada ponto mostra como a temporalidade do sinal. num tro do proJeto Sky and L �fe , uma força e forma dinâmicas
determinado estágio. depende das anteriores ou posteriores. Isso emblemáticas da própria vida. Que os sinais de rádio encontras
vai delinear a influência intersimbólica a nível de pares de sig sem, por fim, sua tradução em fractais não foi sem conseqüências
nos. algo como as leis que regem a ocorrência de 'dígrafos· ou Senão vejamos.
•sílabas· . A computação gráfica em geral e as fractais em particular e
de modo mais intenso estão trazendo para o mundo questões
Tendo os sinais sido codificados segundo a gramática acima semióticas das mais originais. Sabe-se que por trás e por baixo das
enunciada, o passo seguinte foi a construção de dois reticulados imagens computadorizadas (necessariamente animadas e modula
iguais, ou seja, dois reticulados que podem ser superpostos. ''No das: música da luz), que aparecem na tela de um monitor, estão
primeiro", continua Jorge A. Vieira, fórmulas matemáticas quase sempre bastante complicadas. Não foi
são marcados os pontos pelas medidas dos tempos, por exemplo, senão o computador que tomou viável essa mediação formidavel
se uma flutuação do sinal dura 2 seg., seguida por uma de 6 seg. mente inédita entre a aridez dos cálculos numéricos das equações
e depois por uma de 4 seg., teríamos os pontos dados pelas coor matemáticas, de um lado, e, de outro, a exuberância visualizável
denadas (2, 6 ), ( 6 ,4). Cada par 'amarra' um signo (no caso. uma das imagens que aparecem na tela como uma luxúria para os senti
duração temporal) ao seu posterior. Graficamente, exprimimos dos. _Isto quer dizer: o computador tomou possível que a saturação
um vínculo entre os signos. No segundo reticulado, é desenhada da h1percomplexidade simbólica estourasse na irrupção do ícone.
a fractal escolhida pelo artista. Os pontos do primeiro são colo Tradução intersemiótica instantânea do inteligível (equações nu
cados em cima do segundo. Quando o sinal 'comandar' : seja a méricas) em sensível (dinâmica da forma multiluzcor na sua mais
transformação t2 a t 6. isso gera o ponto de coordenadas (2, 6 ) pura nudez qualitativa). Conexão imediata da abstração inteligente
que, colocado no espaço da fractal, 'cobre' um ponto do mesmo. com as turbulências sensórias da percepção.
Se o fenômeno prossegue, em sua história, pontos vão correr no No caso das fractais, aliás, seria impossível gerar suas ima
espaço de fases. logo. sobre a fractal. A mudança do sinal gera gens sem a ajuda de computadores porque, mesmo quando se parte
uma mudança sobre a fractal. Esse é o mapeamento. (Vieira de fórmulas razoavelmente simples, sua geração requer que elas
1 988:4-6) sejam calculadas inúmeras vezes e, a cada vez, usando o cálculo
anterior como início do próximo, e assim por diante (Canizza Filho
Mapeado o percurso, o facho da trajetória do projeto passou
et a �. 1988:3). Assim, quanto mais potente for o computador, mais
às mãos do engenheiro e pesquisador do INPE Guaraci José Erthal,
s e r a c a p a z de acolher a c omplexidade matemátic a d a s
responsável pela execução da programação e processamento das
multidimensões, que subjaz à imagem, e mais instantâneo será o
imagens fractais. Na tela do monitor, aqueles sinais das estrelas
tempo de resolução dos milhões de cálculos numéricos necessários
G5, após sucessivos tratamentos intersemióticos, ressurgiram
para resolver as equações fractais. Mas a mais inesperada revela
transmutados na forma de fractais em animação. O sonho da inje
ção que as formas fractais trazem consigo está na super nova con
ção de sensibilidade aplicada aos sinais, por tão longo tempo aca
cepção da natureza que elas inauguram e na similaridade de sua
lentado e perseguido por Wagner Garcia, não poderia ter encontra
dinâmica com os processos de crescimento prototípicos da vida .
do uma realização mais perfeita no seu modo de aparição e nas
Nas imagens fractais,
sutilezas que subentende.
No nível de ebulição dos sentidos, a animação das fractais, cada parte da figura, por minúscula que seja, repete a forma
com sua inquientante beleza, surge como urna espécie desconcertante
•
252 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS M Í DIAS 253
macroscópica predominante, como se fosse uma miniatura do inacreditavelmente minúsculo de um universo plástico infinito ou
quadro. Não fossem os limites impostos pelos pontos de resolu de vários universos infinitos que se atravessam de fo rma comple
ção do monitor ou da impressora, poderíamos continuar o exame .,
xa (Machado 1988: 15 3) e que a idéia da dimensão fractal é a de
ao infinito, 'ampliando' detalhes cada vez menores e fazendo vir ''um continuum de detalhes sempre crescentes, numa progressão
à tona novas reverberações do motivo plástico principal (Macha tal que chega a um número infinito de dimensões possíveis. cujos
do 1988: l 5 l ).
espaços intermediários estão além da capacidade de aferição do
Ora, essa auto-similaridade da figura, que não resulta de urna mstrumental em uso atualmente", sendo um número fractal aquele
arbitrariedade teórica, mas de uma propulsão determinada pela pró que posiciona a dimensão nos intervalos até então ignorados
pria lógica interna de geração das fractais, corresponde exatamente (Canizza Filho et. ai. 1988:4), não se pode deixar de perceber que
ao princípio de auto-similaridade que comanda a germinação da as imagens fractais entram nos circuitos de Sky and Life quase
vida. inacreditavelmente como o desénho mesmo das indiscerníveis suti
Do mesmo modo, tal como nas fractals, não há nada na natu lezas da vida e da infinitude insondável do cosmos.
reza. que seja perfeitamente uniforme. E quanto mais complexos e A indagação sobre a vida inteligente no espaço recebeu a pró
dinâmicos os fenômenos, quanto mais flutuantes, fluídos, mistura pria forma espessa da vida que transborda para o infinito. Coinci
dos, erráticos e turbulentos, mais eles resistem às assépticas geo dência? Arbitrariedade? Nem uma nem outra. Quando o artista leva
metrias dos números inteiros e das dimensões nitidamente o movimento do seu desejo e o cientista a atenção de sua retina
compartimentadas, para encontrar sua resolução nas dimensões mental até às últimas conseqüências, um mesmo limiar, na conti
fracionadas. "Nuvens não são esferas, montanhas não são cones, o nuidade do projeto humano do homem é atingido. Que, neste caso,
litoral não é um círculo nem os raios viajam em linha reta", eis uma as fractals tenham aparecido no caminho do desejo do artista e no
das famosas frases do matemático B. Mandelbrot (cf. 1983, 1986, percurso de resolução do cientista não é arbitrário, assim como não
1988) para apresentar esse novo lugar geométrico fracionai, no é arbitráno e nem fortuito que as fractais se apresentem como a
intervalo entre o ponto e a linha, a linha e a superficie, o plano e o mais recente representação de imagem da vida e do cosmos que o
sólido, o sólido e o tempo, lugar fugidio, capaz enfim de acolher a nível ge nossa compreensão do universo nos permite hoje atingir.
espessa franja de fenômenos naturais que escorregam por entre as E por isso que as fractais desempenham, neste proj eto de
fendas das rígidas tramas da ordem, da regularidade, da necessida Wagner Garcia, um papel emblemático, que fornece o testemunho
de. O mais perturbador e fascinante em tudo isso, no entanto, é o da fantástica fusão do sensível e inteligível que a computação grá
fato de que as fractals não são simplesmente o lado contrário, ape fica das multidimensões está hoje inaugurando, ao mesmo tempo
nas o avesso da ordem, mas sim a descoberta de uma outra ordem, que atualiza essa fusão no seu próprio processo de realização atra
isto é, aquela que abriga o caos, acaso, mutação, fusão, continui vés da indissociável conjunção do trabalho do artista e do cientista,
dade, em síntese, aquilo que, na vida, borbulha com vida. culminando nas fractais em si mesmas que dão forma à mais con
Quando se sabe que o novo sistema matemático, que está temporânea conquista da inteligência humana no seu caminho de
encapsulado nas fractais, parece ser tão poderoso e sensível a ina entendimento dos meandros enigmáticos da vida e do infinito. Se
cessíveis sutilezas a ponto de poder descrever intrincados sistemas, há uma face epistemológica para a imagem com que o mundo hoje
tais como a interconexão de neurônios ou a distribuição das galáxi nos aparece, essa imagem tem as feições de fractais em animação.
as, não se pode deixar de perceber a ressonância íntima com que as Não obstante tudo isso, o projeto Sky and Life não parou aí.
fractais se amalgamam no projeto Sky and Life. As fractais, com suas pulsações perceptíveis, ocupam, é certo, o
Quando se sabe que cada flagrante de imagem fractal - com centro cardíaco do projeto, mas o estudo pretende ir além delas.
seus ninhos em redemoinhos - não é senão um "fragmento Wagner Garcia ainda quer devolver os sinais ao Céu. Um novo e
complicadíssimo processamento recodificador, deverá reconverter
.,,
LÚCIA SANTAELLA
254
Caetano Veloso
►
256 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS MÍDIAS 257
o fundo infinito do cosmos, o corpo impressivo da Terra perfilado Dentro desse contexto, numa espécie de ritual celebratório do
no horizonte da Lua. ano 2000, o projeto Sky and Body de Wagner Garcia se configura
Hoje, as fotos da Terra, do ponto de vista do espaço, estão em como um hino visual de ternura pelo corpo da Terra.
toda parte, usadas e abusadas por quaisquer espécies de propagan Trata-se de uma viagem de um balão estratosférico, que foi
da. Em todas elas, no entanto, ainda se mantém intacto e vivo o lançado em Birigui-SP, transportando como carga útil um equipa
efeito �e ternura comovida que elas nos provocam. Afinal, que lin mento de slow-scan TV acoplado a urna câmera de vídeo CCD. O
do planeta azul é este nosso! Azul deve ser o corpo da vida. slow-scan convertia o sinal luminoso da câmera em sinal áudio
A Terra em que pisamos, habitamos, por onde andamos, atra enviando por telemetria esses sinais à Terra. Durante quatro horas'.
vessamos, viajamos, no contato (roçar) com sua superficie, produz o balão, em seu movimento de ascensão, desde a superficie do gra
uma poderosa sensação de abrigo, segurança, acolhida, tal qual a mado até a visão da curvatura do planeta, foi gravando e transmi
proteção de um imenso colo de mãe. Não é à toa que a Terra é mãe, tindo, em tempo real, as imagens do corpo da Terra, do plano micro
em oposição ao desconhecido, enigmático e contraditório Céu. Ora ao macro.
é luz, engravidando a Terra de vida, ora é escuro mistério do infini A slow-scan TV, como o próprio nome diz, é uma TV de var
to insondável. redura lenta. Enquanto a TV comercial transmite 30 imagens por
A vista aérea da Terra, por sua vez, ao nos arrancar do conta segundo a s low-scan leva, no mínimo, 8 segundos para. formar uma
to com a superficie é, simultaneamente, encantadora e inquientante. tela. A vagarosa e gradual varredura, preenchendo gradativamente
Na mudança de escala do olhar, a paisagem da Terra - borbulhante a tela, a imagem brandamente se formando diante dos nossos olhos,
nas formas e cores da natureza e acrescida pelas linhas, vincos, produz uma mudança de ritmo perceptivo, numa temporalidade ti
estrias e configurações variadas das marcas do fazer humano - picamente tátil. As imagens de baixa definição exigem participa
transforma-se em uma espécie de planta-baixa, chapada, mas ao ção mais ativa dos sentidos, um olhar mais curioso e háptico, ca
mesmo tempo tátil e multiforme. Deixando o abrigo dos volumes, racterístico de uma sensibilidade exploratória, que avança pouco a
1,,
ganha-se, na realização do imemorial sonho de voar e na excitação pouco, mas que se mantém, de começo a fim, como agente do pro
1
►
T
Céu e mente
A produção é prodigalização.
Tendo atingido o limite do crescimento,
o ser vivo transborda de energia,
canalizando-a para a produção de outros seres vivos:
1
André Marcolini
r
ro na sensação, depois na razão, depois na imaginação, então no
desejo, então na ação, teve de parar na razão. como ele tem feito
há 2.500 anos? Isso é inatural, e não pode durar. O homem deve
continuar, para usar todos esses poderes e energias que lhe foram
dadas, a fim de que ele possa imprimir a natureza com seu pró
prio intelecto, conversar com ela e não meramente ouvi-la
(SW: 1 3).
Alguns anos atrás Gunho-1988), deixando o Instituto de Pes
quisas Espaciais, em São José dos Campos-SP, ao anoitecer, de
pois de ter observado mais de uma centena de slides e ouvido
esclarecedoras explicações acerca de processos de sensoriamente
remoto, gentil e brilhantemente fornecidas pelo pesquisador Paulo
.,,
260 L(1c1A SANTAELLA
l CUUURA DAS MÍDIAS 26 1
Robe rto Martini, tomou-se imposs ível, des de então, deixar de pen - Pº: exemplo, templos e museus, desde suas formas mai s rudimentares
sar no caráter p remonitó rio da afirmação pcirceana , . �te a� mais sofisticadas ); então su rgem as máqui nas in ci pientemente
A aqu i s ição de imagens da superfic ie da Terra atrav es de sis- 1 �tcl 1gentes, cap azes, elas me_sma, de produzir linguagens, p rodu
temas senso res que , operando em n í vel aéreo ou orbital, estabe le zmdo-as a part1r de uma m atnz_ reprodutora (a câmera fotográfic a,
as inte rp retações por e�empl o, que tem, no negativo, s ua matriz reprodutora); então ,
cem conexões ime diatas entre o Céu e a Te r ra, e
dessas i magen s, realizadas por pesqui sadores de sensoriamento re n um !n� nvel salto �e co�p l �xidade e con densação, a Revolu ção
e , tal como p revm E letromc a tr� cons igo maquinas com inteligência capaz de produ
moto são evid ênci a s notáve is e inegáv eis de qu
Pcirc�, o homem já está equipado e dotado dos meios neces sários zu, rep�oduztr, armazena r lin gu agens, tu do isso ao mesmo tem po,
p ara conversar com a n atureza. . de que e exemplar o computador com seu séquito de s uplementos.
A crosta terrestre e o espaço aéreo , orbital e mes mo sideral Tendo povoa �o a su perficie terrestre com crias cada vez m ais
não s ão ou tra coi sa c omplexas do s eu intelecto, é na direção do Cé u qu e a s extens ões
estão sendo povoado s po r equipamentos que
senão sofistic ad pl xa xte sõ s d i telecto hum a no. D e da me nte humana agora põem sua mira. Os equipame�tos que
temente_, tem c re scentem ente estão se alocando no Céu, forma m famílias e ;edes
o n
i
n e
d vez
s e
,
e
p
com
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as
fato, o homem, de
. D de p nmei �e uma ,r arte, os s atélites de comunicação, ao trans mitir a voz �
crescen
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ms c n imagem ,, de um �onto qualqu er do globo para o outro em fração de
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, desde
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e
arq
co
ros rudimentos de arte fat s
s p segundo (J, Stemer 1988), permitem o estabelecimento de um fa
as nmetra
s b rta
a
d
e
p
os e ui
ço �ode mtera�u com superfic 1es ou objetos, sendo por estes re
a vez, nes se
r apidamente a vida cresce". E premonitória, mais um
o ação do si�n o. �etldo,_absorvido e mesmo reemitido. As variações que essas
sentido, a con cepção peirceana de semiose com mteraçoes _ produzem no f1 uxo considerado dependem fortemente
Semiose foi por ele considerada como sinônimo de P siquê , p nncí da s propriedades físico-químicas dos elementos irradiados e 0
pio de vida, que, por sua vez, é também um sinônimo de mente, flu_xo resultante constit�i uma valiosa fonte de informações a res
inteligência ou c rescimento contínuo, devir ou expansão de com pe_1to daquelas superfi
_ cies ou objetos. Essa idéia tem motivado a
_
plexidade. É por isso que a engenhosa defin ição de sign o_ de Pe1rce cnaçao de e�mpame ntos que, situados a grandes distâncias de
e ra cionaliza o
n ão é outra cois a senão um mod elo lógico que op alvos natur�1 �, podem detectar e registrar o fluxo de radiação
m ovimento de c r s i t tín o vida. �letromagnet1ca (REM) proveniente destes; as informações ob
Sendo a tendênci a da vida s e desdobrar, crescer em comp lex i -
ou
tida�, geralmente sob a forma de g ráfi cos ou imagehs, são então
e c men o con u
dade, a s sim como a v ida se expande n a mente, a mente se expande anahsadas p�r es pecialista s na busca de dados que os auxiliem
nos signos (lingu age ns) que ela extrojeta. Crescendo fo ra do corpo no desenv?lv1mento de proj etos de pesquisa e controle de recur
-
humano, os signos precisam de novos hábitats . Surgem, então, os sos naturais.
m eios de armazenamento das lin gu agens ( os livros , a
s bibliotecas,
LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS MÍ DIAS 263
262
Observemos, no entanto com mais vagar. cada uma das perso Há um peculiar teor de inteligência que é próprio da natureza em si
nagens e sistemas auxiliares ou mediadores que atuam no circuito mesma. �ão fosse isso, a conversação entre homem e natureza, que
de comunicação homem-natureza. Para tal comecemos pelo papel o sensonamento remoto permite, não teria sido possível.
desempenhado pela natureza. Porque se deu conta da inteligibilidade dois sinais emitidos
Há antes de mais nada. como foco gerador, fonte de todo o pela natu_reza, assim que o nível de desenvolvimento tecnológico
processo, o Sol, que prodigaliza energia. ' "A irradiação solar tem lhe perm1t1u: o homem cons!ruiu sofisticados olhos celestes que
como efeito a superabundância da energia na superficie do globo" podem ler, la de cima, a escntura da natureza. São esses olhos ou
(G. Bataille, apud A. Marcolini, 1988:3). Em outras palavras: a sensores - não é difícil c oncluir - que funcionam, n o
energia radiante ou energia eletromagnética, emitida pelo sol, pro sensonamento remoto, como mediadores, canais de conexão n o cir
paga-se pelo espaço vazio, viaja pela atmosfera e irradia a superfi cuito de comunicação, processamento de signos entre homem-na
cie da Terra, sendo por ela refletida. tureza. Senão, vejamos:
Quando um fluxo de REM irradia um objeto, três fenômenos A REM refletida ou emitida por um alvo, desde que conveniente
podem ocorrer: parte do fluxo é refletido; parte penetra no obje �ente registrada e analisada, contém uma grande quantidade de
to, sendo progressivamente absorvido; e parte consegue atravessá mformação. Assim, a REM refletida ou emitida por um alvo sob
lo, emergindo novamente para o espaço (C. A. Steffen et ai. certas circunstâncias, após incidir sobre o olho humano. pod� ser
1 98 1 : 1 1). transformada em impulso nervoso, que é interpretado pelo cére
bro, gerando a sensação da visão. Entretanto, o olho humano é
U ma vez que a superficie terrestre é dotada de vida e que a um sensor remoto capaz de responder a uma faixa
vida é uma miríade de sinais, serão bastante diferenciadas as pro extremadamente estreita do espectro eletromagnético (...). Com
priedades radiantes de diferentes partes dessa superficie. O com o desenvolvimento tecnológico, o homem conseguiu ampliar a
portamento espectral da água, por exemplo, é diferente do c ompor sua capacidade de 'sentir ' a REM, desde comprimentos de onda
tamento espectral do solo nu que será, por sua vez, diferente da extremadamente curtos (raios cósmicos) até comprimentos de
vegetação, e assim por diante. Esse comportamento espectral ou onda de centenas de metros, construindo dispositivos sensores
grau ou curva de reflectância é também chamado de assinatura que operam em grande parte do espectro eletromagnético. As
espectral. Isto quer dizer: a superficie da Terra, nas suas variadas sim, pode-se dizer que um sensor remoto é um dispositivo capaz
densidades de água, vegetação, nudez, vai apresentar variadas as de responder à REM de determinada faixa do espectro eletro
sinaturas de luz. magnéti�o, registrá-la e gerar um produto numa forma adequada
Conforme o próprio nome (assinatura) diz, algo se produz para ser mterpretada pelo usuário ( C. A. Steffen et ai. 198 1 :27).
como fruto da relação entre o Sol e a Terra. Ao ser fecundada pela São com_�lexas as modalidades de sensores: há os fotográfi
energia radiante do Sol, a Terra reage e responde com uma espécie
de escritura, assim como reage e responde com diferenciadas assi �os e os rad1ometros. Estes se dividem em radiômetros não
unage�ores (que simplesmente medem a radiância proveniente de
naturas luminosas ao ser ferida pela seca, pelas queimas, devasta
ção, ou quando é umidecida e fertilizada pela água. A crosta terres �m obJeto para o qual são apontados) e os imageadores (que geram
imagens de uma cena). Para os fins que aqui nos interessam, cum
tre é, desse modo, um imenso texto feito de luz, onde cada variação pre �olocar _atenção também nos radiômetros imagead ores
de energia radiante, refletida ou emitida, tem sua própria assinatu
rl
mult1espectra1s, capazes de observar a mesma cena em várias fai
i
ra. Literalmente, portanto, a superficie da Terra escreve com luz. x'.15 es!'ectrais, através de separadores de feixes (prismas, redes de
1
Antes de qualquer interferência do homem, e mesmo que a d1fraçao etc.) que operam no sistema Landsat.
1
humanidade não existisse, a natureza, ela própria, já se constituiria Os satélites da série Landsat, lançados em 197 1, 1975. 1978,
num sutil sistema de sinais, numa delicada rede, escritura de luz.
,. 1
264 LÚCIA SANTAELLA CULTURA DAS M Í DIAS 265
e
1982 e 1984 , deslo cam-s e em uma órbita quase polar _ Os olhos celestes, com que a Terra está hoje dotada, exercem,
heliossincrona, permitindo que os dados sobre uma mesm a reg1ao como se pode ver, uma função de autoproteção. Os olhos da Terra
da Terra sejam adquiridos regularmente em condições semelhantes funcionam como anteparos protetores do seu corpo e sinais de aler
de iluminação. A aquisição de dados é executada pelos sensores ta contra os carunchos humanos que o planeta pode estar abrigan
que os satélites abrigam. O funcionamento desses sensores, porta do. Por isso mesmo, para um leigo, não há nada mais fascinante do
dores de uma sutilíssima inteligência visual (Sistema Imageador que começar a compreender as imagens resultantes do sensoriamento
Multiespectral - e Sistema de Televisão RBV), tem uma c�mplex1- remoto. Essas imagens revelam a Terra como um corpo sensível
dade técnica que não vem ao caso aqui detal?ar. Basta_ �1zer que que pode ser ferido, sofre, se ressente, regenera, tem cicatrizes,
95% do globo são imageados de forma sinóptica e repet1t1va pelos revigora-se... Da perspectiva do Céu, o planeta é um ser sutil e
sensores que, do Céu, transmitem os dados coletados para a Ter_ra delicado porque vivo. É com suavidade que a vida palpita.
onde o sistema Landsat tem seus complementos: estações de rastreio, Infelizmente a hipertrofia do caráter letal das tecnologias muito
recepção e gravação das imagens geradas pelo MSS e �BV (no tem contribuído para sufocar e ocultar o fato de que há tecnologias
Brasil situada em Cuiabá que, por ser o coração geografico da com uma dimensão estética cuja brandura e beleza deve ser posta
Amér/ca do Sul, permite o recobrimento da maioria de seus paí em evidência, tal como cumpre ser enfatizado o aspecto meigo,
ses), laboratórios eletrônicos de processamento de imagens e de fecundo, sutil e vital da ciência e tecnologia espaciais. É por isso,
processamento fotográfico, e os bancos de dados para acesso aos sem dúvida, que Wagner Garcia esteve alerta e sensibilizado quan
1
usuários.
As imagens, que resultam de todo esse processo, são fontes assídua presença no INPE, exposto e inseminado pelo devir
valiosas de informações para a pesquisa, mas exigem, para s�a ª. dionisíaco da ciência espacial, Wagner Garcia foi inevitavelmente
interpr etação , o conhec imento das caract erístic as espac1 a1s, levado ao terceiro membro de sua trilogia: a indagação da vida e a
espectrais e temporais de seu conteúdo. Na �o�ta de cá do pro�es celebração do corpo só podiam se expandir para a mente do Céu
so, portanto, situam-se os intérpretes espec1ahzados, verda?e �r�s Embora endereçando-se para o Céu, tudo começou com a es
semioticistas argutos e diligentes, capazes de perceber cada mmuc1a colha e tratamento de um alvo na Terra. Ou melhor: o batismo do
ou detalhe imperceptível, capazes de ler todos os sinais e_ signos da processo se efetuou através de uma interferência no ciclo vital da
cifra de luz que são as imagens que resultam dos equipamentos natureza. Wagner aproveitou o plantio do solo para executar um
mediadores nessa complexa conversação entre a natureza e o ho- desenho ou inscrição de grande porte na superfície da Terra. O
mem. local escolhido foi uma fazenda na região de Barretos (SP) que
A partir desse diálogo, tomou-se possível utiliza a técnica de irrigação nas suas plantações. O instrumento
irrigador, localizado num dado ponto do território, gira 360º, de
monitorar a evolução dos parâmetros meteorológicos em escala modo que o diâmetro alcançado pela água desenha uma grande
planetária e, com isso, compreender e prever fenômenos com circunferência no solo ocupado pelo plantio.
precisão incomparavelmente melhor do que antes. Os satélites A interferência de Wagner Garcia foi das mais engenhosas
de sensoriamento remoto passaram a perscrutar cada ponto da enquanto idéia, ao mesmo tempo, das mais simples enquanto exe
superfície da Terra e dos mares, possibilitando um conheciment�
cução. O pivô de irrigação estava programado para receber uma
detalhado e, ao mesmo tempo, global dos recursos naturais e agn
colas. Também passou-se a monitorar e conhecer conseqüências plantação de milho na parte superior e arroz na inferior. Sem per
negativas da atividade humana: a poluição das águas, do ar e até turbar o ciclo normal da plantação de milho, ao contrário, aprovei
mesmo a recente descoberta do buraco de ozônio sobre a Antártida tando-se dele, Wagner inscreveu, na parte superior da circunferên
(J. Steiner 1 988). cia, o triagrama Ch 'ien, que no J Ching representa o Céu. Isto é,
quando o milho foi colhido, três grandes tiras simétricas e seqüenciais
266 LÚCIA SANTAELLA
ClJUlJRA DAS M ÍDIAS 267
amarras acadêmicas. Outras técnicas já apareceram recentemente ditas artísticas. De outro lado, enquanto alguns irrestritamente se
e podemos prever que, tal como a invenção de novos instrumen entre � am a uma obsessiva, mas nem sempre formal e
tos musicais muda toda a sensibilidade de uma era, o fenôme conce1tualm�te refletida e conseqüente "pesquisa de materiais" para
no da luz, devido ao seu presente progresso científico, possa, a arte concebida como artefato, outros se dedicam à produção de
entre outras coisas, vir a ser uma nova ferramenta para o novo engenhocas que parodiam os extremos da sociedade consumista
artista. denunciando o esquizóide mal-estar da civilização. Enquan to ai�
Algumas décadas antes, no clímax da produção cm série do gun� lutan:1 por encontr�r �m lugar ao sol no tê te-a-tê te com a pro
mundo industrial, Duchamp já havia levado o questionamento da duçao de 1mag�ns propiciada pela corrida das novas tecnologias,
arte como objeto único a uma reductio ad absurdum. Sabiamente ou �ros, menos m�en� os, se retraem no vazio agônico em que a
�
antevia, desde então, a inexorável dissipação das fronteiras que ompres�nça da_ c1encia e engenharia, com suas tecnologias cada
separavam as artes entre si, assim como provavelmente previa o �ez mais sofisticadas, está conduzindo a função tradicional do ar
desaparecimento das delimitações entre arte e não-arte. Foi justa tista. Em meio a isso, e ao mesmo tempo, começam a vir de muito
mente essa ausência de divisas que, ocasionando a dilatação dos longe, para além do espaço orbital, os ecos de uma inaudita dilata
referenciais, que regiam o fazer artístico até o limite da perda de ç�o da escala humana que reclama o advento de sensibilidade iné
quaisquer parâmetros, conduziria os artistas à mais arrebatada caça ditas, aptas à t_ arefa de ���ciar uma nova antropomorfia que co
ao tesouro do "novo". meça a emerg1r das poss1b1hdades abertas por alianças inaugurais
Na década de 60, testemunhando o célebre e volátil aproveita entre o homem (a máquina, a ciência, a técnica, a invenção) e 0
mento técnico-científico do fenômeno da luz e suas conseqüências mundo.
para a produção da imagem, Duchamp também já pressentia em A formidável mudança de dimensão do corpo, olhar, cérebro
que nível de monotonia, inocuidade e desgaste chegaria o confronto e men�e �umanos par� um . nível planetário e cósmico, o preço
artístico entre figuração vs. abstração. Hoje, as fractais, por si sós. apocahpt1co e perda de 1dent1dade, que a enormidade dessa mudan
tornaram obsoletas. desviando para um outro paradigma _ � provocan?o, tra� desafios imprevistos aos espíritos mais
ç� es
epistemológico, quaisquer tentativas de debates sobre as questões VISlonanos, que �ª.º. fustigados pelas exigências de sinalização das
da figuratividade, assim como a multiplicidade de meios para a rotas para a sens1b1hdade que podem, porventura e heuristicamente
aquisição e processamento de imagens só tem crescentemente atur conduzir ao continuum da vida na sua voragem expansionista.
dido as nostálgicas pretensões dos artistas na manutenção de seus
tradicionais papéis de inventores exclusivos da visualidade.
SEM BLANTE SENSÍVEL DO INTELIGÍVEL
Hoje, tendo cessado, há muito tempo, a turbulência artística c �a Extra!errestre) e a de 9�� o encontro da vida inteligente, num
dos intermitentes cometimentos heróicos do Modernismo, e tendo mvel ma1_s avançado de � IVlhzação, nos forneça a prova de que 0
também já arrefecido o frencsi apocalíptico e a esquizofrenia das desenvolvimento tecnológico não é necessariamente autodestrutivo.
citações, que sinalizaram a entrada da arte numa era mais propria A demanda da vida fora da Terra, desse modo, significa também
mente pós-moderna, o panorama da produção artística, embora bas esperança de sobrevivência e promessa de preservação ante as in
tante confuso e hcteróclito, ainda assim, permite a detecção de al cessantes ameaças de Tânatos.
gumas de suas mais evidentes tendências. Enquanto não nos chegam confirmações de que não é infun
Há, de um lado, uma espécie de resignação perversa em rela dada a esperança de continuidade da espécie, não obstante suas
ção ao paroxismo fetichista a que ficaram submetidas as mercadorias contradiç�s e_ dilaceramentos, quase imperceptivelmente, corre no
ar, nos trans1tos entre o Céu e a Terra, uma espécie de apelo a que
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270 LÚCIA SANTAELLA
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