Você está na página 1de 69

Reflexões sociológicas,

d e va n e i o s e i m p r e s s õ e s

g
David Vega

Reflexões sociológicas,
d e va n e i o s e i m p r e s s õ e s

São Paulo - 2016


Copyright © 2016 por David Vega g
Reflexões sociológicas, devaneios e impressões
David Vega

a
1 Edição
S umário
a
1 tiragem – mês e ano – 1.000
Editor Responsável
J. R. Ribeiro Jr. Introdução........................................................................................... 7
Revisão: 1 - O Estado pai.................................................................................. 9
Caminho as Letras Revisões
Diagramação: 2 - O Direito Comum e o Iberismo................................................11
XXXXXXXXX 3 - Lanternas Vermelhas................................................................. 13
Capa:
Fontenele Publicações 4 - Sobre a Verdade: correlações..................................................... 15
5 - 1º de maio.....................................................................................17
6 - 1932............................................................................................... 19
ISBN – 978-85-92790-XX-X 7 - A fundição, o povo amálgama...................................................21
8 - Integralismo................................................................................ 22
CIP – (Cataloguing-in-Publication) – Brasil – Catalogação na Publicação
9 - O Homem Cordial...................................................................... 26
Ficha Catalográfica feita na editora
___________________________________________________ 10 - 8 de março................................................................................. 28
Vega, David Vega
11 - Apontamentos Humanos.........................................................31
Reflexões sociológicas, devaneios e impressões / David Vega . 1 ed. São 12 - Nova Roupagem, Velhos Inimigos......................................... 33
Paulo Fontenele Publicações , 2016.
13 - Altruísmo................................................................................... 37
136 p. ; 21 cm (broch.) ;

ISBN 978-85-92790-XX-X
14 - A Indução e a Dedução............................................................ 38
CDD B869.35 15 - Constantinopla Ameaçada...................................................... 40
CDU 82-31
___________________________________________________ 16 - Ensaios sobre a Intolerância.................................................... 42
Índice para catálogo sistemático 17 - A Banalidade do Mal............................................................... 49
1. Literatura. 2. Literatura Brasileira. I. Título
18 - Etapismo, prepotência e a derrubada do Humanismo.........51
19 - Estado de Natureza.................................................................. 54
20 - A Neurose é a mentira esquecida
em que ainda se acredita........................................................ 57
21 - Desmistificando o islamismo e
o conflito no Oriente Médio.................................................. 63
Fontenele Publicações
22 - Interseccionalidade.................................................................. 65
Av. Prestes Maia, 241, conj. 1.115, Centro, São Paulo-SP, CEP 01031-001 23 - Macunaíma, sou!...................................................................... 66
WhatsApp: 11 9-8635-8887
São Paulo: 11 4113-1346
24 - O Desencantamento do Mundo............................................. 67
contato@fontenelepublicacoes.com.br 25 - Patrimônio Histórico............................................................... 69

David Vega 5
26 - Desabafo 1................................................................................. 71 g
27 - A Revolução Gloriosa................................................................74
28 - Desabafo 2................................................................................. 77
29 - Liberalismo naturalista X Socialismo materialista.............. 78
30 - Por um naturalismo humanista............................................. 80 I n t ro dução
31 - Sobre a Identidade Cultural.................................................... 83
32 - Sobre o FGTS............................................................................ 88
O presente documento é a resultante de expressões verbais e
33 - Sobre a Utopia........................................................................... 90
escritas, pronunciadas ao longo de entrevistas, transcritas e com-
34 - O Distanciamento da Natureza.............................................. 92 piladas em forma de crônicas, realizadas no período de 2013-2016.
35 - Motiva Ação............................................................................ 100
Acompanhando as novas tendências da linguagem, voltada
36 - Natureza Humana...................................................................101 às redes sociais, reuni comentários e postagens minhas em blogs
37 - Presidencialismo de Coalizão............................................... 102 referentes ao cenário político-filosófico desta primeira metade
38 - Solidariedade Mecânica......................................................... 103 da segunda década dos anos 2000. São temas inflamados que ora
39 - Cores......................................................................................... 104 explicitam meu posicionamento, ora avaliam, pela metodologia
40 - O Comunal e o Societal no Ingaí......................................... 106 sociológica, algum acontecimento de destaque ao redor do globo.
41 - Os 80 anos da Guerra Civil Espanhola.................................112 Assim como na Grécia pré-Socrática, a escrita pós-moderna
42 - Embate entre a Civis e a Barbárie e recupera a importância do fragmento, dos curtos parágrafos que
sua projeção na disputa abstrata..........................................115 sintetizam o espírito de uma época, tricotados feito uma colcha de
43 - 14 de juillet.............................................................................. 121 retalhos, fundidos com a investigação jornalística de um colunista
44 - O Movimento de 1930 e que vez ou outra contribui para diversos canais da imprensa (con-
a Centralização da República.............................................. 123 vencional ou independente).
45 - Clãs Mairuns........................................................................... 126 Obcecado pela questão dos diferentes tipos de totalitarismo, o
46 - Costume X Leis....................................................................... 130 viés humanista e liberal adquirido ao longo de minha formação não
47 - Monofonia e Polifonia do Mal...............................................131 deixa dúvidas quanto à visão empirista que questiona as ideologias
e formas de se fazer ciência, dogmáticas, presentes na academia,
48 - Horizontalidade Comunal.................................................... 133
embora o campo abstrato pese muito no imaginário de quem vos
49 - Sobre a Venezuela................................................................... 134
escreve, com “um pé dentro” e outro “fora”, traço a linha tênue do
50 - Heterônimos........................................................................... 135 quixotismo e a tão prometida ilha de Sancho Pança, alternando
entre utopia e pragmatismo.
A janela da alma que transparece sob o véu da “coerência”,
a busca da uniformidade, faz destes escritos a decepção gritante
da controvérsia. A questão ensaística de nossos tempos pode ser
relacionada aos famosos “textões” e desabafos nas redes sociais,
espaço este, destinado aos novos formadores de opinião. A realidade
virtual paralela dinamiza o processo, feito um vai e vem - ao mesmo
tempo que somos alterados pelas postagens, também alteramos o

David Vega 7
cenário político, desaguando nas grandes manifestações, como as 1
Jornadas de Junho de 2013 ou nas diversas Primaveras mundo à fora.
Manter-se informado passou a ser uma instância horizontal,
os receptores ampliam sua base conceitual em salas de chats, fóruns O E stado pai
ou com memes satíricos, não dependendo mais da via transcendental
da relação “professor-aluno” em uma faculdade ou do comentarista
do jornal da noite televisivo. O sebastianismo, movimento ou ideologia que excedeu os
A decisão de publicar meus devaneios sociológicos em livro limites do necessário no Estado moderno português, foi herdado
impresso foi pensada cautelosamente, metaforizando entre “tradi- por nós brasileiros, aqui translado sem precedentes. Dom Sebastião
ção” e “modernidade” – o calhamaço de papel que amarela com o desapareceu no norte da África quando combatia os mouros, e desde
passar do tempo, desbotando aquilo que se pensou ser o correto de então, nossos irmãos de além-mar acreditavam que ele retornaria
uma época, jamais se sobrepondo ao conteúdo, que escancara uma e assumiria com mãos de ferro a nação, livrando-a de seus inimi-
nova era da comunicação social. gos externos e internos, em um estado de justiça e igualdade. Essa
mítica é presente na Espanha com El Cid, na França com Carlos
Martel e em várias nações que atribuem aos mártires sua renovação
ou ascensão.
Tendemos acreditar sempre na ação do governo, dele tudo
esperar. É como se o homem brasileiro tivesse uma estagnada falta
de espírito fundada em uma fé incontestável na autoridade, porém
E não necessariamente disciplinado para o cumprimento das normas e
leis, como o alemão ou japonês, mas sim na representação do poder
que exerce àqueles que o torna súdito. Sempre que possivelmente
vem a crise, nos avolumamos na esperança da vinda do salvador:
foi assim com Getúlio Vargas, é assim com o neopopulismo. Os
direitos nos são concedidos, jamais adquiridos, em uma sociedade
carente de participação civil em qualquer esfera (e mesmo quando
assim tenta-se fazer, logo é cooptada pelo estatismo e torna-se ver-
ticalizada, perdendo sua essência). Esse homem que viria de um
horizonte, capaz de sanar todos os problemas nossos tanto na esfera
micro, como a macro, possuidor de uma varinha mágica fundida
no imaginário paternalista de cada família, por vezes é forjado
como uma política de Estado, forçando na construção do tipo
ideal que precisa se encaixar nesse molde. Foi assim, por exemplo,
com Lula, em ressaltar a ascensão do operário e a personificação
do homem que se funde com o partido e o Estado, é como Cristo e
sua tríade do “Pai, filho e espírito santo” em um só, confundindo
o público e o privado. E esse é o desespero atual no país, pois por

8 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 9


onde tentamos buscar, na direita ou na esquerda, não encontramos 2
mais esse Messias. A meu ver isso pode ser bom, pois assim força-
se um amadurecimento no país que precisa aprender a viver com
a impessoalidade. O “familismo” e o “mandonismo” não seriam O Direito C omum e o I berismo
mais as sementes que brotariam em um coronelismo seja em nível
municipal ou federal.
A ideia psicanalítica do “pai” serve como uma luva à expectativa O Direito Comum, aos olhos de uma boa parcela política e
do homem-médio brasileiro (daí acho que temos muito em comum social, tanto no que compõe os aparatos necessários de Estado dos
com os eslavos, na figura de um czar ou mesmo com a adoração de constitucionalistas, quanto no conjunto de dogmas ideológicos (re-
um Lênin ou Stalin, reproduzindo a mesma hierarquia anterior, só formistas ou revolucionários), parece sempre ser algo desnecessário
mudando os atores e trocando a palavra “pai” pela “camarada”). ou tipicamente restrito às realidades anglo-saxãs, tribais, até mesmo
Ainda cremos muito no poder central. Talvez isso seja herança de monásticas de nações em que a religião e o Direito caminham de
quase um século de império, de um sistema escravista... Mas fato é mãos dadas, seja na Sharia ou castas e suas reencarnações hindus.
que ainda perdura nos rincões da América Latina. Tenho me perguntado como seria possível uma common law, seguida
Embora cultivemos um discurso de negação do governo, de talvez (de uma forma mais pretenciosa), uma commonwealth nos
críticas constantes aos governantes, é justamente a fé na sua ação nossos parâmetros latinos. É bem verdade que os filhos da rainha
que cria um otimismo nas ações de um futuro que nem sempre conseguiram tal façanha com a Pax Britânica que hoje engloba
pode sancionar. Essa contradição está presente desde nossa pri- suas ex-colônias, dando um aspecto multicultural ao conceito,
meira Constituição, de 1824, uma das mais liberais e frente a seu um exemplo que nós ibéricos deveríamos adotar, nosso caldeirão
tempo, vinda de uma monarquia que cultivava o poder moderador de povos precisa de uma referência, que, já adianto, jamais deveria
dando total soberania ao imperador. Arcaico e moderno serão as ser a padronização, muito pelo contrário, mas uma federação que
duas faces da moeda que permeariam a nossa sociedade até os dias ultrapassasse fronteiras e o Atlântico, em que ao mesmo tempo que
atuais. Somos uma nação em que o fenômeno “esquerda” na prática nos reconhecemos como iguais, mantemos nossas peculiaridades.
faz o jogo reacionário, clamando por mais governo, mais Estado, O hispanismo é fundamentado na mistura, e nele estão
tornando-o um ente gigantesco, infrajurídico em que nos perdemos presentes povos oriundos dos quatro cantos do globo, nos rostos
na burocracia infinita. amorenados da América, nos orixás dos bantos ou iorubás e no
Enquanto o privado foi superado em muitas nações mundo canto melancólico da mouraria, nos pueblos castelhanos ou nos cais
a fora, principalmente com o advento da urbanização, ainda somos da costa lusitana do Atlântico, que impulsionou, mesmo que com
reféns daqueles que pretendem ser os “pais dos pobres”, de um povo suas ressalvas e toda uma opressão sem tamanho, um novo mundo
que confunde direitos com caridade e é grato ao seu senhor, assim que incessantemente busca por uma identidade, e esta, construída
como ao feitor que não chicoteava na época da escravidão. na vertical por séculos, hoje, mais do que nunca, precisa seguir as
Só acho que precisamos amadurecer, nem que isso venha a correntes que correm em diferentes sentidos da via horizontal desta
dura penas, em uma nação que clama por líderes e parece cada vez gente nova. É preciso mais municipalismo que equilibre a centralidade
mais difícil encontrar o seu Messias. (ainda necessária, claro) mas que com base nos diferentes costumes
destes povos forme uma totalidade. Uma sociedade organizada de
baixo para cima, que resolva seus problemas em nível local com
E suas associações bairristas, que irão decidir se as instâncias serão

10 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 11


enviadas ao poder soberano maior, conciliando a Economia com os 3
espíritos regionais. E aos que insistem em atribuir tais feitos apenas
aos povos não latinos, ouso discordar, pois tal conceito, conhecido
como “subsidiariedade”, foi um pensamento social católico romano, L anternas Vermelhas
defendido inclusive pelo Papa Pio XI.
O Direito não deveria ser uma abstração, e as leis, não tão
distantes de nosso dia a dia, quando há uma imbricação da norma Em um velho livro de economia, no tocante sobre o livre
com a vivência, onde qualquer um possa perceber a norma como mercado, encontrei uma crônica sobre o gigante vermelho do
derivada da necessidade de regulamentação do mundo real, é muito oriente. A China, além de fascinante em muitos aspectos, é um
mais plausível de se compreender sua funcionalidade do que repro- enigma. Uma camarilha poética que naturaliza o contraditório, o
duzir verbalmente cláusulas de uma carta constitucional que não socialismo de mercado. Deng Xiauping venceu a disputa com os
correspondem à realidade de muitos que estão anos luz do Estado herdeiros de Mao e salvou o PCC (Partido Comunista Chinês) de
de Direito centralizador. uma possível revolta interna, pois o socialismo, sem um mínimo
de concessões, privatizações e uma política, mesmo que de Estado
para o mercado, entra em colapso. Ele não sobrevive sem um capi-
talismo, mesmo que seja mínimo. É como o sapato da gueixa que
impede o pé de crescer, a artificialidade desse sistema não vence a
natureza e, quando a modifica, gera convulsões em outros setores
(a água transborda para outras áreas).
Um trabalhador numa madeireira de Chicago, em 1850,
ganhava três vezes o salário de um operário chinês, em 2008, na
mesma função. Só que o chinês contemporâneo trabalha em fábricas
modernas e é mais instruído. Ou seja, a produtividade é imbatível.
E Lembro-me de um texto do Marshal Sahlins que lemos na facul-
dade: Cosmologias do Capitalismo, que vai até as dinastias para
explicar uma estrutura da sociedade chinesa que tem o “comunal”
ou a “comuna” que permitiu a camponeses formarem cooperativas
para cultivar terras “emprestadas” fora das fazendas estatais. Mas
ainda é proibida a produção nas terras das famílias. Aliás, somente
nos últimos cinco anos introduziram na Constituição o direito de
propriedade, uma obsessão de copiar o que deu certo nos EUA (eles
têm até uma Route 66 que corta o país), é a tentativa de ser livre,
mesmo quando as botas esmagadoras dos “lanternas vermelhas”
ainda controlam esse processo de abertura.
Cerca de 80% dos enfeites festivos, como os de Natal do
mundo, são produzidos na China, 75% da tecnologia é montada lá, e
em um breve futuro esses números chegarão beirando à totalidade.

12 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 13


Mas jamais devemos nos esquecer da miséria e o derramamento 4
de sangue que a ditadura cultural maoísta proporcionou, ceifando
70 milhões de vidas. Lembro-me de um colega na época do cole-
gial, de família chinesa, que nutria ódio aos comunistas, segundo S obre a Verdade : correlações
ele, teria ascendência da família real, seus avós foram mortos e os
pais fugiram para o Brasil pouco depois da revolução. Ora, como
o maoísmo pôde influenciar as vertentes agrárias do PC do B, o Um dos maiores problemas quanto às correlações que tenho
movimento estudantil de Paris em 1968... Sendo tão horrível em feito é que embora estas sejam verdadeiras, são captadas e percebidas
sua essência e produzindo ao mundo uma legião de famélicos que por meio de estímulos sensoriais, gestos, expressões e linguagens
somente pôde saciar a escassez após uma aliança com o capitalismo? corporais que dizem mais do que discursos ornamentados. Enquan-
Um dos maiores parceiros do Brasil é a China, principalmente to muitos afirmam ver apenas um significado nas coisas, consigo
na compra de soja e minério de ferro, mas, mesmo se a política for captar muitas vezes um significado dentro de outro. Ora, nunca
a “arte do esquecimento”, em nome de seus exilados e perseguidos vi problema em relativizar o lógos, o cógito, mas sei também que
devemos sempre manter um pé atrás. Culturalmente, o bloco ocidental existem axiomas com suas premissas maiores e menores; verdades
liderado pelos EUA contrasta com a China e um orientalismo que é indubitáveis, muitas dedutivas, feito o silogismo (Todo homem é
visto como modelo por muitos intelectuais brasileiros, no tocante mortal, Sócrates é homem, logo Sócrates é mortal), por isso a re-
à eliminação do individualismo. Pois bem, eu ainda prefiro ter lativização muitas vezes não se aplica quando há algo de concreto,
como modelo cultural e econômico a land of freedom and the free mesmo quando não consigo provar, seja com imagens por A + B,
dos irmãos do norte, do que um reino comandado por comissários pois muitas destas são configuradas e arranjadas para que eu sinta,
políticos à bala, mas que modestamente se livra das correntes e veja e não consiga demonstrar, essa é a configuração maior de tor-
possivelmente um dia acabará com a hegemonia de um partido no tura por esses agentes da barbárie que organizam essa insanidade.
poder desde os anos 1960. São problemas, antes de tudo, entre a linguagem e o mundo,
este último que exige comprovação dos fatos mediante áudio, es-
crita ou imagem, e rejeita as outras formas de comunicação, como
a corporal. Quando relato a muitas pessoas (que se fazem de de-
sentendidas para que o show continue) elas insistem na questão da
comprovação, sabendo que não tem legitimidade minhas impressões
baseadas em observação e feeling. Como você descreve o amor ou
E o ódio? Por acaso tem como? Você sabe que eles são verdadeiros
porque os sente! Portanto é o mesmo nesse caso! Minhas correlações
fazem sentido! E existem, pois, além de sentir, se concretizam nas
ações da realidade mundana do cotidiano.
A sociedade é permeada pela fragilidade da coerência. Este
conceito é também deturpado, visto como algo linear e progressivo,
como se as contradições e antagonismos não fossem coerentes a seu
modo. Estou lendo um ensaio de um filósofo americano, que bebe
da epistemologia lógica aristotélica, chamado Donald Davidson, e

14 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 15


seus conceitos têm ajudado cada vez mais eu compreender e ela- 5
borar argumentos para a veracidade dessas correlações. Segundo
o autor: o que se faz contra o coerentismo é dizer que conhecemos
vários conjuntos harmoniosos de crenças bem-estruturadas, mas 1º de maio
que não estaríamos dispostos a gastar uma gota de saliva em favor
deles em uma discussão. São coerentes, mas não temos a coragem
de chamá-los de verdadeiros, porque em nada eles nos convencem O 1º de maio, considerado Dia do Trabalho em boa parte do
de estar falando de alguma realidade. Ou seja, é o que se passa co- globo (deveria ser dia do trabalhador), surgiu após diversas greves e
migo quando relato meus íntimos, eu sei que as pessoas sabem, e lutas na industrializada cidade de Chicago, em 1886. Mas o curioso
faz sentido tudo, mas insistem em não reconhecer. É diferente de é que nos EUA o Labor Day é celebrado na primeira segunda-feira
uma verdade que não necessariamente tem lastro com o concreto, de setembro por conta da vitória e consolidação de muitos direitos
mas é considerada como tal por conta da aceitação social, como a trabalhistas na América do Norte, em 1894, servindo de modelo
religião. Minhas correlações possuem lastro com o real! Mas não para o restante dos países que possuíam movimentos proletários.
fazem sentido na hora em que as descrevo!
Bem, o pau comendo no Brasil inteiro por questões trabalhis-
Acho que estaria falando da mesma coisa se entender “cor- tas como as demissões, desemprego, inflação e consequentemente
relação” como “analogia”, independentemente da minha vontade, o arrocho salarial, a tentativa do congresso de desmantelar as leis
meu raciocínio é analógico, fiquei meio confuso quando um amigo trabalhistas e de propagar a terceirização, a falta de reajustes sala-
percebeu isso num papo de mesa de bar, porque naquele momento riais e condições dignas de trabalho a setores públicos e privados
pareceu significar que eu era caótico e ficou por isso mesmo... Mas o como o professorado etc., e tem sindicatos e prefeituras vendendo
fato é que o raciocínio analógico busca comparações e “correlações” o dia 1º de maio como se fosse um dia de festa, um dia para shows,
a fim de interpretar uma realidade, a fim de encontrar “o fio da sorteios e comemorações (verdadeiros “showmícios” ao invés de
regularidade” das coisas e assim poder vê-las como são realmente comícios, com todo seus arranjos cerimoniais imponentes, balões,
e não como uma suposição, como essência e não como aparência, fogos de artifício, aos moldes das Reuniões de Nuremberg nazistas
ver as coisas além da superficialidade, que é enganosa, é a foto que para frente de trabalho do partido, ou os desfiles da URSS stalinista,
precisa de um fato como ele é. A correlação é mecânica, em forma em que é mais importante a personificação do líder e das siglas em
de pensamento, um modus operandi de juntar elementos para extrair questão do que a verdadeira liberdade do trabalhador).
deles um entendimento.
A grande mídia convencional fazendo essa propaganda de
Permeando pelo mundo da ciência, o ceticismo é um crime “viva o trabalhador” –mas somente o trabalhador pelego, capacho e
para a filosofia, que cria as suas verdades, porém ela também lança subordinado, pois ao trabalhador que luta, além da opressão resta a
seus conceitos enrijecidos e legitimados, que todos tomam como omissão dos formadores de opinião – é mais que esperado, mas ver
verdade. A verdade pode ser socialmente aceita e o paradigma pre- os sindicatos (pelegos) comemorando como se estivesse tudo às mil
cisa de provas. E essas correlações terríveis arbitradas e arquitetadas maravilhas e arengando aos motivos de greve mais incontestáveis,
para que eu as faça, não categorizo como sendo nem uma coisa nem é lamentável! Lastimável! Execrável! Estamos cansados desse ethos
outra, pois não consigo provar e, ao relatar de uma forma canalha, do trabalho deturpado com a questão estatal e da produtividade
as pessoas fingem não tomar como verdade, não são meras coinci- com intervencionismos.
dências. O que faz delas então tão obscuras e terríveis que nenhuma
tortura psicológica já vista foi capaz de realizar. Que se danem as bandeiras, todas elas operam pela mesma
lógica, são usadas por meio do Estado (que deveria ser público) para

16 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 17


o interesse de bancos de investimento mundial. Nunca os bancos 6
lucraram tanto como nessas últimas décadas. Não sejamos mais
comprados por discursos, pelas cores que um partido ou outro
representa, vamos olhar a prática fazendo uma análise fria, sem 1932
deixar a questão ideológica ou de fidelidade partidária contami-
nar nosso julgamento. Os partidos, sejam eles de esquerda, direita
ou centro, apesar de mostrarem programas no qual um ponto ou Não sou muito de tomar partido, analisar um fragmento
outro divergem, quando chegam ao poder são obrigados a fazer o apenas e transpor este a uma totalidade. Mas todo 9 de julho é a
jogo desse Estado imperial, mão de ferro, disfarçado de República. mesma coisa, portanto, mesmo sendo impossível uma imparciali-
Só trocamos de roupagem, mas a essência, o conteúdo, sempre é dade, vou comentar. Eu me pergunto quais os motivos concretos
o mesmo desde que a família real aportou nas terras tupiniquins daqueles que insistem em atribuir um separatismo inexistente (ou
em 1808. ao menos esta ideia compactuada com a ideologia do levante, sendo
Nesse 1º de maio nada temos para festejar. E sendo verdade apenas de indivíduos e não da revolução) quando na verdade foi
a máxima de Tolstói de que Os senhores farão de tudo pelos súditos, um choque de oligarquias, confesso, entre os velhos barões do café
menos descer de suas costas, que os derrubemos na marra, mas para que ainda pensavam em um Brasil voltado à exportação e a agen-
isso temos de nos movimentar, pois, se boi manso não derruba o da centralizadora do movimento de 1930, encabeçado por outro
vaqueiro, sigamos o exemplo do touro! oligarca, Getúlio, do charque do Rio Grande do Sul, que precisou
mais tarde da aliança com a velha elite e das commodities do café
para começar o parque industrial.
Ainda assim, acho limitadas apenas estas duas grandes vi-
sões para descrever o conflito. São Paulo liderou um movimento
liberal e queria a implantação de uma Constituição muito à frente
de seu tempo, com o sufrágio universal, o voto às mulheres, uma
E carta baseada na República de Weimar, que mesmo com a derrota
do levante, foi implantada em 1934, mas logo pisoteada pela di-
tadura do Estado Novo em 1937, com uma Constituição baseada
no modelo polonês, abertamente fascista. O PCB apoiou de certa
forma o Getúlio (mesmo com a extinção dos partidos com o golpe)
porque eram etapistas e acreditavam que industrializando o Brasil,
fazendo uma Revolução Burguesa, seria uma etapa necessária para
alcançar a delirante revolução que apoiavam. Por isso que uma boa
parte da esquerda tem muito preconceito em relação a 1932. Ora,
por que então a veia separatista da Confederação do Equador, de
Frei Caneca e todo o movimento pernambucano, bem como os
Maragatos no Rio Grande do Sul é romantizada e aos constitucio-
nalistas atribuídas as piores denominações? Até mesmo na revolta
dos Malês havia escravos mulçumanos com viés separatistas, por

18 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 19


isso vamos considerar essas intentonas segregacionistas? É claro 7
que não! O lema de São Paulo era Pro Brasilia Fiant Exim (Pelo
Brasil façam-se grandes coisas), e nosso mapa brasileiro, com o
formato de um grande coração, sempre esteve na bandeira das A fundição , o povo amálgama .
treze listras. O estopim foi a morte dos jovens Martins, Miragaia,
Dráusio e Camargo, estudantes da faculdade de Direito do Largo
São Francisco, em 23 de maio, assassinados pela polícia governista Enquanto a gente não se atentar aos assuntos primordiais
varguista (o Deops foi criado em 1922 e sabe-se que eram treinados que travam o convívio ou a própria noção de democracia, tais como
inclusive pela Gestapo). gênero, classes sociais, raça (não gosto muito deste termo, mas é
Recomendo a leitura de Hélio Silva, um grande historiador preciso usar para expor mesmo suas implicações étnicas como o
que retratou com honestidade o conflito, com paixões deixadas de racismo), a gente não vai conseguir avançar nem meio passo. Eu
lado, tanto dos que condenam quanto dos favoráveis que acusam rejeitei minha condição brasileira de mestiço por um bom tempo de
Minas Gerais de traição. Em memória de Pedro de Toledo, Bertoldo minha vida e precisei ir ao inferno para ter esta tomada de consciên-
Klinger, Júlio Prestes, Washington Luiz, os Mesquitas e tantos outros cia. Se continuarmos com o racismo de marca (aquele que vê apenas
que sonharam com um Brasil mais liberal e igualitário, frente às o fenótipo do sujeito), não vamos conseguir diminuir ou eliminar
hordas de um poder centralizador. (este último, mais pretensioso) as diversas formas de pré-conceito
na sociedade brasileira. Enquanto visões como as de Oliveira Viana
ainda estiverem enraizadas em solo nacional, os tabus que travam o
debate não irão permitir o diálogo tão necessário, que se faz urgente.
A História do Brasil é um estupro, todos sabemos, mas temos
a resultante deste duro processo histórico na feição de nosso povo,
que sempre foi ensinado a rejeitar essa condição, que a meu ver, é
E uma riqueza! Claro que com isso não deveríamos “adocicar” e abafar
o conflito necessário de movimentos étnicos, mas dar uma identi-
dade ao brasileiro para este não mais precisar se ocultar, forçar-se a
cirurgias ou tratamentos estéticos para parecer algo que ele não é.
Gosto muito do bonifacianismo e os ideais de Darcy Ribeiro, mas
longe de qualquer romantização destas questões, somente por meio
de diálogos sérios podemos ver a riqueza do Brasil. Conseguimos
orbitar em qualquer lado, em qualquer cultura como um camaleão,
é como um jogador que chuta com as duas pernas, e isso jamais
deveria ser uma vergonha! Vivemos em um mundo multipolar e
as questões de identidade estão ligadas ao reconhecimento de cada
um e como ele se vê, seja em uma cultura ou qualquer outro tipo de
orientação. Digo por experiência própria, sendo filho de dois mundos,
que custaram aceitar a miscigenação. Basta de racismos e convicções
que só segregam, em qualquer campo, sexual, étnico ou religioso.

20 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 21


8 liberal no início da década de 1930, tendo os diferentes tipos de
fascismos e o comunismo como alternativas nas emergentes so-
ciedades urbano-industriais de massa. O Brasil acompanhou esse
I ntegralismo movimento, com os remanescentes do tenentismo e da Revolução
de 1930 e por toda Era Vargas. Salgado foi uma alternativa à direita
da época, incorporando elementos do fascismo italiano à realidade
local, tendo o apoio direto da Igreja Católica e dos setores militares
Desde a segunda metade do século XIX, um movimento de
(sobretudo a Marinha), criou a Sociedade de Estudos Políticos (SEP)
interpretação da sociedade brasileira, com um viés nacionalista,
que incorporou outras organizações filosóficas da época, como o
influenciado pelo romantismo e uma construção de Estado que
grupo do CAJU (Centro Acadêmico Juvenil), do qual inclusive o
procurou forjar uma identidade nacional, ainda no Brasil imperial,
jovem Vinícius de Morais fazia parte, sendo um dos primeiros
produziu uma gama literária que no início do século seguinte,
camisas-verdes em um período breve de sua formação intelectual.
sobretudo com a Semana de Arte Moderna de 1922, foi contestada
pelo modernismo que visava descontruir uma ideia praticamente Então, após a Revolução de 1932, em outubro deste mesmo
catequizadora de um Brasil eurocêntrico (embora tivesse havido ano, Plínio Salgado junto com outros intelectuais conservadores
uma supervalorização do índio nessa construção de identidade), fundam a chamada Ação Integralista Brasileira (AIB), um movimen-
agora, com novos atores: o início de um movimento negro, as linhas to cívico-político-cultural que logo ganhou dimensões nacionais,
antropofágicas que desaguaram no Movimento da Anta, a questão com seções espalhadas em todas as capitais de província do país.
Os precursores, além de Salgado, foram Miguel Reale, que propôs o
do operário e a grande influência da chamada Geração Perdida, do
sigma como símbolo do movimento (significando a soma de todos
pós Primeira Grande Guerra, que contribuíram com novas óticas e
os valores) e o chefe de milícias Gustavo Barroso, membro da Aca-
movimentos artísticos em todos os campos mundo à fora.
demia Brasileira de Letras e autor dos muitos livros doutrinários do
Duas vertentes se destacaram durante o modernismo dos integralismo. A AIB chegou a ter mais de meio milhão de adeptos,
anos 1920 no Brasil, além do Movimento da Anta, havia o chamado sendo o maior movimento de massas que o Brasil já teve.
verde-amarelismo, um manifesto pertencente ao chamado “Pau
A base ideológica do integralismo tinha como inspiração a
Brasil”, que procurava resgatar aquelas interpretações românticas
Doutrina Social da Igreja, seu lema era “Deus, Pátria e Família”,
do Brasil imperial, tendo como base o nacionalismo, confrontando
o mesmo que Antônio de Oliveira Salazar em Portugal havia
com as visões anárquicas e futuristas do dadaísmo presente no mo-
escolhido para o Estado Novo. Opunham-se principalmente ao
vimento da Anta. Os “verde-amarelistas” tinham como intelectual
liberalismo e ao comunismo, considerando ambos os dois braços
principal um jovem jornalista nascido em São Bento do Sapucaí/ do materialismo. Defendiam a chamada “Democracia Orgânica”,
SP, cuja origem remonta às origens do Brasil, apesar de ter sido um um Estado corporativista centralizador. Embora tivessem relações
homem humilde, autodidata (jamais cursou uma faculdade), esta amistosas com o fascismo italiano e o nacional socialismo alemão,
figura era Plínio Salgado. a AIB não era racista, foi um dos primeiros movimentos nacionais
Plínio Salgado, quando vem para a capital paulista, começa a se preocupar com a questão do negro e do índio, tendo o apoio de
a trabalhar na seção política de um jornal conservador conhecido diversos setores da sociedade, da elite e da classe operária, incluindo
como A Razão, ali ganha destaque com suas abordagens que mistu- a adesão de diversos imigrantes, sobretudo italianos e alemães que
ravam um nacionalismo cristão católico com as questões operárias viam semelhanças com os movimentos de seus países de origem.
de um sindicalismo vertical que se opunha ao materialismo dialético Organizavam-se em centúrias paramilitares, uniformizados
e à sociedade de mercado, pensamento típico da crise do mundo (com camisas verdes) e tinham a saudação de braço estendido anauê

22 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 23


(eis-me aqui em Tupi) imitando a simbologia fascista adaptada à que se demitiu da carreira após o golpe militar de 1964; ou ainda
realidade local. A Frente Negra Brasileira (FNB) teve como fundador Dom Hélder Câmara, Ernani da Silva Bruno, Antônio Galloti e
e primeiro presidente o Dr. Arlindo Veiga dos Santos, que foi um dos Mazzei Guimarães.
mais expressivos líderes da Ação Imperial Patrianovista Brasileira, Inicialmente os integralistas foram apoiados pelo próprio
denominação que recebeu a partir de 1935 “Pátria Nova”, assim como Vargas, mas com a proibição dos partidos na instalação do Estado
amigo de Plínio Salgado, participando de sua Sociedade de Estudos Novo, em 1937, os integralistas ficaram na ilegalidade. Em maio de
Políticos (SEP), núcleo de grande relevo dedicado à meditação sobre 1938 um grupo mais radical da AIB tentou dar um golpe de Estado
a problemática política e social brasileira, fundado oficialmente a no palácio do Catete, fazendo o próprio Vargas de refém. A ação
12 de março de 1932 no Salão de Armas do Clube Português, em foi abortada pelo general Eurico Gaspar Dutra, muitos integralistas
São Paulo. A FNB mantinha um periódico informativo intitulado foram presos e outros fuzilados. Plínio Salgado e sua esposa foram ao
A Voz da Raça. Seus membros tiveram uma relação de amizade e exílio em Portugal e só voltariam ao Brasil com a Anistia em 1945.
colaboração muito intensa com o integralismo. Dentre os integralistas
Durante o Período Democrático Populista (1946-1964),
negros, incluem-se o ex-senador, teatrólogo, ator, escritor, artista
Plínio Salgado tentou reviver a AIB, mas com a rejeição dos movi-
plástico e professor Abdias do Nascimento, o “Almirante Negro”
mentos nazifascistas após a Segunda Guerra Mundial, ele precisou
João Cândido, líder da Revolta da Chibata, o sociólogo do ISEB:
remover a questão da simbologia, da militarização, os uniformes,
Guerreiro Ramos, o ativista negro e escritor Sebastião Rodrigues
as saudações... Criou então o Partido da Representação Popular
Alves e o jornalista, escritor, advogado, professor e militante negro
(PRP), de caráter nacionalista e populista antivarguista. Disputou
Ironides Rodrigues, que assinou durante anos uma coluna sobre
as eleições ao longo da década, dando apoio inclusive à candidatura
cinema no jornal integralista A Marcha.
do General Teixeira Lott contra Jânio Quadros. O PRP e demais
João Cândido Felisberto aderiu ao Integralismo no ano de partidos foram extintos e proibidos com o Golpe de 1964, tendo
1933, tornando-se amigo de Plínio Salgado. Em 1968, no longo de- então o Regime Militar Brasileiro o apoio de alguns integralistas e
poimento que concedeu ao Museu da Imagem e do Som, declarou a a rejeição também, neste período, decepcionados com a proibição
amizade para com o fundador da AIB e o reconhecimento de haver de seus partidos, muitos antigos camisas-verdes deixaram o mo-
feito parte daquele movimento cívico-político. vimento, tendo uma boa parte debandado para o lado comunista,
No livro Memórias do Exílio, de autoria coletiva, Abdias do contribuindo com a luta armada inclusive de Francisco Julião no
Nascimento declara que os temas que o “atraíram para as fileiras norte do país (a migração entre integralistas e comunistas sempre
integralistas” foram “as lutas nacionalistas e anti-imperialistas” – fato foi muito grande, desde os anos 1930, ambos os movimentos tinham
observado por Rubem Nogueira em sua obra O Homem e o Muro. integrantes que mudavam de lado). Plínio Salgado faleceu em 1975.
O movimento que sempre se opôs a todo tipo de imperialismo, Durante os anos 1980, a filha de Plínio Salgado, Maria Amélia Salgado
seja o internacionalismo do capitalismo liberal ou o comunismo Loureiro, tentou reorganizar o movimento, mas não obteve muito
expansionista. Abdias do Nascimento, anos mais tarde, foi cobrado sucesso, ficando o integralismo à margem da democracia brasileira
e precisou se redimir diante dos marxistas por ter sido camisa-verde. atual e na tentativa incessante de seus simpatizantes em conseguir
Outras personalidades de importância no cenário político as assinaturas necessárias para fundar um partido no TSE.
brasileiro também passaram pelas fileiras dos camisas-verdes,
entre eles: San Thiago Dantas, Gerardo Mello Mourão ou Roland
Corbisier; assim como um Rômulo de Almeida, Lauro Escorel,
Jaime de Azevedo Rodrigues, embaixador brasileiro na Europa
E

24 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 25


9 ruivos e morenos dentre eles, essas uniões de povos que deu origem
ao português e ao espanhol favoreceu muito no aspecto da misci-
genação na América (até porque já haviam tido grandes fundições
O Homem C ordial . culturais e étnicas com os mouros), muito diferente da anglo-saxã.
Mas a questão é que o racismo ou etnocentrismo não deixa de existir,
ele apenas é velado por essa cordialidade que cultuamos para poder
No tocante sobre o Homem Cordial, de Sérgio Buarque de viver em “harmonia” em uma sociedade tão plural.
Holanda, que adotou um estilo weberiano para escrever sua obra
Raízes do Brasil, como um ensaísta que acompanhou com a questão
da identidade nacional (influenciado pelo modernismo) nos anos
1930, sua relação se dá por uma cordialidade ou simpatia, pratica-
mente imposta na cotidianidade brasileira, podemos fazer um elo
com a questão da busca pela distinção.
As pessoas sempre tentam se encontrar no outro, nada é mais
assustador para o brasileiro do que a individualidade. Chamamos
sempre para si as coisas, eliminando uma impessoalidade ou barreiras
de distância que configuram estruturas hierárquicas e pronomes de
tratamento. O sufixo “inho”, falando sempre no diminutivo, é um
recurso de aproximar e tornar habitual aquilo com que nos depa-
ramos, uma ânsia de diminuir a distância, o lócus da sociabilidade. E
Ex: No Brasil, Santa Tereza é conhecida como “Santa Terezinha”,
nossos primeiros professores, que deveriam ser os precursores de
uma autoridade e hierarquia com quem deveríamos aprender a lidar
ao longo da vida, chamamos de “tios” e “tias”, o menino Jesus está
presente em várias cantigas, como se o mesmo descesse do altar
para sambar com o povo etc.
O que haveria de errado na cordialidade brasileira, nesse
sentido de afetuosidade típica de um povo? Não haveria nada con-
denável se a expressão desse ambiente privado, em relações entre
familiares e amigos, se estendesse na esfera pública. Isso porque o tipo
cordial – uma herança portuguesa reforçada por traços das culturas
negra e indígena – é individualista, avesso à hierarquia, arredio à
disciplina, desobediente a regras sociais e afeito ao paternalismo e
ao compadrio, ou seja, não se trata de um perfil adequado para a
vida civilizada numa sociedade democrática.
Fomos colonizados por ibéricos, que têm um traço da bicon-
tinentalidade, é possível encontrar escandinavos e semitas, loiros,

26 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 27


10 Consequentemente, essa estrutura grega influenciou a romana,
que acabou por dominar todo o velho continente e alterar muitas
sociedades matrilineares, os resquícios desse passado ainda se dão
8 de março por exemplo, em países como a Espanha, onde o último sobrenome
da pessoa é o da mãe, ele não se perde como em outras culturas
onde só fica o do pai.
Aqui vai meu parecer sobre esta data muito importante, que A meu ver, o cristianismo também contribuiu para deixar a
simboliza não apenas um dia reservado àquelas que são a outra mulher em uma posição de fragilidade, por exemplo, basta anali-
metade essencial para o equilíbrio mundano, mas infelizmente não sarmos o próprio mito da religião. Deus (homem, figura masculina)
há essa equidade nas questões práticas. A vitória em muitos direitos, escolheu uma virgem para dar à luz seu filho, atribuindo a José
estes, que ainda precisam ser conseguidos em um mundo desigual a importante missão de cuidar e acompanhar fielmente Maria
na questão de gênero (não apenas nesses quesitos lamentavelmente) nesse processo. Portanto somos frutos de um criador masculino,
e que tende a um despertar de consciência, na juventude feminista, incorporamos a ideia de que a mulher deve ser casta, pura, virgem
seja ela vinda de qualquer vertente política, seja ela composta por e pertencer a um homem apenas, este que irá cuidá-la; a mulher
mulheres, homens e outras categorias de gênero que devem ser para nós é o que é por gerar a vida, trazendo em seu útero a imagem
reconhecidas, em uma pós-modernidade na qual não podemos e semelhança do criador, deve ser protegida, daí vem essa ideia de
afirmar discursos, essências, aparências, preferências e composições fragilidade, que acaba por contribuir com a desigualdade, em que
corporais uniformes. Eu insisto freneticamente nessa questão de ficam restritas às mulheres algumas funções na sociedade (e vice-
multipolaridade, de estimular uma visão que não seja baseada em versa, há funções que não são consideradas “masculinas” também),
binômios, em antagonismos que se resumem sempre em dois polos e mesmo quando estas desempenham algumas delas, ainda não são
ou categorias, e neste caso não poderia ser diferente! tratadas com igualdade em questão não apenas de salários, mas
O feminismo não é um movimento apenas de mulheres a meu da relevância do discurso (vide o mundo empresarial ou político,
ver, é claro que para sua legitimação e igualdade, as lideranças e os muitas líderes não são levadas a sério pelos seus subordinados em
cargos que a ele são destinados devem ser ocupados por mulheres, virtude de sua condição feminina).
mas digo que ele é amplo, pois muitos de nós libertários que se Também já ouvi aquelas teorias que falam que se no mundo
enquadram em outras categorias de gênero nos identificamos com tivesse predominado a figura da mulher como sendo a detentora
muitas de suas pautas. da legitimidade (veja, na História dizemos “o homem” e não o
Ora, na antropologia mesmo, a gente aprendeu que as pri- contrário), os monumentos poderiam, ao invés de crescer para
meiras sociedades do mundo eram matrilineares, poucas eram as cima, como as torres, que são objetos fálicos, ser submersos, muitos
patriarcais entre os considerados “bárbaros”, até mesmo antes de debaixo da terra, ocultos... São teorias que se limitam a questão do
serem tragadas pela civilização forçada. Os celtas, por exemplo, órgão sexual, não dá para levar a sério.
tinham uma sociedade onde não havia uma distinção entre homens Enfim, a questão do sufrágio universal ainda engatinha em
e mulheres, ambos tinham os mesmos direitos e podiam realizar as nossa história, em muitos países até os anos 1950 tanto mulheres
mesmas tarefas, havia clãs liderados por mulheres, elas podiam ser quanto negros e estrangeiros não votavam, direitos estes que não
agricultoras, guerreiras ou druidas, isso na mesma época em que a possuem mais de 60 anos. Elas são a maioria do eleitorado brasi-
civilizada Grécia, berço de nossa democracia, possuía escravos e não leiro, maioria na população do nosso país, mas ainda assim muito
incluía mulheres nos ativos votantes ou oradores da vida pública. temos de melhorar no quesito igualdade. Uma figura ícone na luta

28 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 29


das sufragistas, que eu me lembro de ter lido no romance Tempos 11
de Inocência, ainda quando tinha uns 13 anos, foi a inglesa Sylvia
Pankhurst. Nesse livro há uma passagem que retrata o horror das
prisioneiras quando faziam greve de fome e os guardas colocavam à A pontamentos Humanos
força um cano em suas bocas para introduzir o alimento, afogando
muitas delas... Também tantas outras libertárias que lutaram em
diversas revoluções, como nas milícias da Guerra Civil Espanhola. Estou lendo os ensaios sobre a Natureza Humana de David
Mas ao longo da História temos diversas líderes e chefes de Estado Hume. Eu conhecia um pouco do empirismo e um naturalismo
também, como Cleópatra, Joana d’Arc, Isabel de Castilla, a Rainha em Bacon e Locke, mas confesso que da escola escocesa, esse cara
Vitória e tantas outras que tiveram contribuições singulares para a é o mais completo. Quem me conhece, sabe que sempre defendi a
humanidade. experiência e a questão sensorial como predecessora da razão. Veja
Não há vitória gloriosa ou derrota humilhante sem o teste- bem, sei que é possível, a priori, pela imaginação (razão) conhecer-
munho de uma mulher! mos o mundo (mas em casos raríssimos), penso que 90% é expe-
riência, sendo somente a posteriori a possibilidade de entendermos
a realidade, e uns 10%, em alguns casos específicos apenas, sermos
racionalistas antes de vivenciarmos algo. Só é possível imaginar
aquilo que conhecemos.
As noções de a priori e de a posteriori exprimem modalidades
epistêmicas. Isto quer dizer simplesmente que o a priori e o a poste-
riori são modos de conhecimento. Em si, as crenças não são a priori
ou a posteriori. Aceitar que podemos conhecer coisas a priori é, em
geral, aceitar que podemos saber coisas acerca do mundo sem olhar
E para ele, independentemente da experiência. Contudo, não é fácil
explicar como isso é possível, e alguns filósofos rejeitam que isso seja
possível. Exemplo disso é uma passagem de um depoimento de um
maia, na época da chegada dos espanhóis no litoral da Guatemala.
Quando as caravelas se aproximavam, um dos indígenas apontava
para seu colega e chamava a atenção de que uma coisa estranha
que flutuava estava chegando, e este maia não conseguia enxergar,
pois nunca havia visto uma caravela antes. Só foi possível avistar
e reconhecer o que seu colega dizia depois de um tempo olhando
para o objeto, ou seja, foi a experiência que lhe deu o entendimento
de algo até então desconhecido. Um nanook (esquimó) é capaz de
reconhecer vários tons de branco que nós, sem uma vivência na
imensidão branca, não conseguimos, assim como reconhecemos
mais tons de verde em virtude do meio e as experiências que este
nos proporciona. Portanto, um sujeito com vivências pode ser mais

30 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 31


sábio que um acadêmico que não sai dos livros... O empirismo nos 12
proporciona este ceticismo que ando bebendo ultimamente, mas
isso não quer dizer que devemos rejeitar nossa condição animal e
sensorial, é somente por meio dela que podemos conhecer o mundo. Nova Roupagem ,
Velhos I nimigos .

Este artigo surgiu com a necessidade de pontuar as ações


de dois grandes blocos, majoritariamente opostos em suas bases
ideológicas, que ainda disputam terreno no campo político, talvez
não com as cores e os discursos inflamados dos tempos de outrora,
mas em uma psique que apenas nas entrelinhas entre os membros
e defensores de um lado e de outro podemos identificar.
Partindo do pressuposto marxista, dividindo a sociedade em
duas classes majoritárias e antagônicas, a dos burgueses (donos dos
E meios de produção) e os proletários (que vendem sua força de traba-
lho), teria toda uma ideologia, uma cosmovisão, duas mentalidades,
duas atitudes sociais, dois gêneros de vida, que seriam decisivos para
entendermos as estruturas dessas duas linhas de pensamento antagô-
nicas. Mesmo com curvas ocasionais à sua natureza provisória, estes
dois grandes blocos abrangem diversas vertentes e subcategorias,
vários tipos de organizações políticas, podendo chamar de “parti-
do” aquilo que inclui os monopólios que regem nações totalitárias
(às vezes o princípio é o mesmo, mas apenas se trocam os nomes,
como por exemplo no regime franquista, na qual as organizações
que existiam eram conhecidas como “famílias”, mas na prática
seriam partidos, e os “conselhos do povo” das nações socialistas).
Hoje os regimes fascistas e o modelo comunista fracassaram, mas
ainda podemos compreender melhor alguns “partidos” de regimes
autoritários do mundo como instrumentos diretos de grupos es-
pecíficos que são abertamente antidemocráticos, uma espécie de
organização daqueles que devem concorrer para o cargo em eleições
livres, mas na essência pretendem eliminar qualquer oposição, seja
no campo administrativo ou ideológico, para poder emergir como
partido único, e esse perigo, afirmo, não aparece com significativa
força do lado dos fascistas, mas nos corporativistas e burocratas

32 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 33


que usam a máquina estatal para fins que beneficiam a esquerda. esquerda). Enquanto os liberais se preocupam apenas com números
O embate entre liberais e comunistas volta a ter um protagonismo. e dados econômicos, o debate ideológico e político é controlado
Desde que o Muro de Berlim veio abaixo, muitos afirmam pela esquerda radical.
que os conceitos “direita” e “esquerda” não fariam tanto sentido Apesar de vermos uma ascensão considerável do liberalismo
e se fundiram, é bem verdade que programas defendidos por um no Brasil atual, muito disso por um descontentamento com o governo
lado ou por outro são encontrados nas pautas de ambos, porém federal, ainda o debate, ou melhor dizendo, a própria concepção
algumas características em termos de ações governamentais e es- liberal é muito difusa e confusa entre seus membros, não existem
tratégias políticas ainda mantêm uma certa divisão nestes termos, linhas claras (ou um norte bem definido) por seus adeptos. É o início
trazendo estes dois grandes blocos com novos rótulos e termos, de uma movimentação, eu sei disso, e já apresentamos uma grande
mas a mesma essência. evolução se comparado há uns dez anos, mas ainda estamos longe
As organizações comunistas, trabalhistas e agrárias, pratica- de sermos tão bem organizados como a esquerda clássica. Trago
mente por unanimidade, têm marxistas ortodoxos sempre alicerça- para essa questão, então, um passado que se faz presente (de certa
dos numa crença “progressista” nas suas bases de apoio, os liberais forma) entre as disputas dentro da própria esquerda, em épocas
parecem não se preocupar como deveriam em relação a esses ditos em que não havia uma união e uma representatividade entre seus
movimentos. Os partidos operários têm uma base de sindicatos e militantes, assim como ocorre entre os liberais hoje.
cooperativas (dentro do Estado), quando na verdade o sindicato Estou certo de que sempre foi mais presente a dicórdia entre
deveria ser uma associação horizontal para proteger o trabalhador as vertentes de esquerda do que o contrário. Em diversos momentos
do assédio estatal, uma livre iniciativa, um espírito liberal, mas da História, a direita se apresentava com duas ou três forças, que
poucos são os que permanecem como tal, logo são cooptados pelo divergiam em um ponto ou outro apenas, enquanto a esquerda tinha
governo, favorecendo os principios corporativos dos socialistas e uma imensidão de siglas e doutrinas que não convergiam, gerando
mais uma vez pisoteando em um possível liberalismo. o expurgo e uma “guerra civil” dentro de seu próprio bando.
Os partidos socialistas, principalmente os comunistas, sem- Quando os stalinistas estiveram no poder, mesmo até em
pre tiveram outro diferencial, crucial para a disseminação de suas revoluções de outros países, como na Espanha, todos os conside-
metas e recrutamento de militantes, que é o tocante à seção e ao rados trotskistas foram difamados e perseguidos. O anarquismo foi
comitê, sendo a primeira uma base menos descentralizada do que o muitas vezes considerado um braço do fascismo pelos comunistas
associativismo do comitê. Por isso talvez, nos dias atuais, para além que traíram a revolução e pretendiam fazer acordos com o ocidente,
da opinião pública, os partidos de esquerda contam com adeptos impedindo o apoio logístico às milícias. Foi assim com o POUM
mais “profissionais”, se a dita direita ou os moderados liberais de e a CNT na Catalunha, com as frentes inspiradas em Bakunin na
centro configuram posições onde a espontaneidade de seus mani- Rússia de 1917, e inclusive em algumas organizações juvenis pela
festantes é mais característica, os vermelhos superam com todo um liberdade, na Hungria de 1956 (que levou à revolução, destituindo
aparato (de Estado inclusive) organizativo (esses papéis podem ser assim o poder soviético). As próprias internacionais, mais especi-
considerados invertidos na época atual pós-moderna, pois histori- ficamente aquela que seria a expressão do radicalismo marxista, a
camente, a esquerda sempre foi a oposição, e esse profissionalismo Terceira Internacional, nunca reconheceu a aliança social democrata
e oficialismo sempre foi de direita, o “legalismo” muitas vezes tinha dos fabianistas da Segunda Internacional, ou o internacionalismo da
o Estado ao lado dos conservadores, e a esquerda sempre viveu na Quarta. Anos depois, o movimento conhecido como “Eurocomunis-
ilegalidade e no improviso, hoje são os liberais e conservadores as mo” voltaria a se opor à URSS. Durante a década de 1970, na Europa
forças que precisam se organizar frente o poder estabelecido da Ocidental, quando os partidos, sobretudo os marxistas-leninistas,

34 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 35


reformularam suas posturas e não deixaram mais o PC soviético no 13
centro das atenções e decisões, principalmente na Itália, França e
na Espanha em plena transição democrática, fizeram alianças com
a chamada burguesia e apresentaram seus programas adaptados à A ltruísmo
democracia (embora saibamos a relação totalitária de tais partidos,
mesmo com a roupagem de “democratas”).
A direita também teve sua fragmentação, muito embora não É incompreensível aos olhos dos selfish qualquer ato de cama-
desaguasse em violência e justiçamentos internos como no exemplo radagem que não visa ao interesse pessoal, mas o ideal de amizade,
contrário, mas podemos identificar os verdadeiramente liberais, os um código de nobreza (no real sentido da palavra) que ultrapassa
conservadores, os liberais-conservadores e os extremistas nacio- a mesquinharia dos falsos altruístas que se preocupam com o ma-
nalistas, se por um período eles estiveram unidos contra a ameaça cro, mas jamais são capazes de fazer algo pelo seu vizinho. E, aos
socialista, hoje disputam a cena igual a frente republicana da Guerra olhos de muitos, a distorção da verdadeira amizade caminha para
Civil Espanhola. Os papéis se inverteram e a união esquerdista é outras formas de afeto, sempre buscando justificar o injustificável,
muito mais fundida, tornando-os muito mais fortes e organizados o sentimento de camaradagem, que não precisa ser restrito aos que
do que a modesta direita (que no caso brasileiro, muitos alegam apenas conhecemos ou que configuram uma origem ou gênero co-
nem existir). mum. Isso é o básico do senso de comunidade. Então pare de ficar
Resta saber se com essas novas couraças os dois bandos irão sofrendo com as vítimas de uma guerra do outro lado do globo e
se unir, principalmente nestes tempos de incertezas e grande disputa ser cego com quem está do seu lado.
na política brasileira, ou voltarão a se fragmentar. Por um tempo se
encontram aliadas, configurando dois bandos muito claros, repre-
sentados por cores verde-amarelas, azuis ou vermelhas, separadas
por um novo muro simbólico em Brasília, com manifestantes fer-
vorosos de ambos os lados, mas que com alguma certeza voltarão
a se misturar em suas metas, configurando a pós-modernidade, na
qual “direita” e “esquerda” seriam apenas posições em uma mesa E
de decisão.

36 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 37


14 apenas para confirmar a ideia pré-concebida em nome da “legitima-
ção” de um argumento para uma ideologia, jamais podemos levar
a sério! (Veja bem, quando na premissa e ao longo da investigação
A I ndução e a Dedução você tem indícios, é muito diferente de quando antes de ir a campo,
se é que vai, você já tem o resultado).
Uma educação libertadora é aquela em que o professor entende
A indução e a dedução não precisam se anular. É somente isso e preza pela autonomia de pensamento do aluno. A Pedadogia do
com base na experiência que podemos concluir algo, da parte ao Oprimido não pode ser interpretada apenas quando o sujeito segue
todo (em poucos casos) ou quando evidências da premissa e toda uma cartilha que na visão do “educador” é a expressão máxima do
investigação te levam ao resultado que não pode estar enganado. Nós, que ele considera justo ou libertador. Estes conceitos são maleáveis
homens da natureza, politeístas, que jamais desprezam a questão e devem ser respeitados na forma de interpretação de cada aluno.
sensorial, sabemos que nossa consciência é derivada de nossos im-
pulsos internos, e as atitudes a materialização destes. O pensamento
não é pura e simplesmente uma abstração. É por isso que pensamos
diferente, pois a resultante desta movimentação sensorial interna,
feito um vai e vem de células (centralizador e descentralizador) não
atinge resultados semelhantes em cada raciocínio ou razão humana.
Quando por meio da coerção, muitas pessoas sabem disso, mas
pensam que podem moldar essa complexidade forçando o sujeito a
ter a visão que interessa. Pior, não apenas a “opinião”, mas pensando
que pode fazer o indivíduo raciocinar como eles querem, é como se E
o outro pudesse ser você. Estão fazendo então uma engenharia social
e ela é a antítese do humanismo. É fundamental que tenhamos um
sistema de check and balances (pesos e contrapesos) e instituições
que assegurem de fato isso, principalmente no meio educacional,
onde mais se tem “arquitetos de gente” hoje em dia.
Se a indução transmite a uma totalidade resultante de um
fragmento, basta sempre termos dentro de nós o desconfiômetro, o
exercício dedutivo do silogismo aristotélico também é uma boa. Eu
curto muito a linguagem ensaística, mas aí é uma questão de estética
do texto, você pode usar esses mecanismos tanto para fazer algo
mais literário ou descritivo. Fato é, que saiu disso, a meu ver, muito
mais uma “História Social” do que uma investigação propriamente
dita. Trazer a investigação e aprimorar com metáforas e exemplos
históricos faz desse tipo de abordagem (ensaística) aquilo que mais
tem me interessado. Quando a pessoa faz uma “ciência” na qual o
resultado final já está pronto em sua cabeça e a investigação serve

38 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 39


15 O atual presidente da Turquia, Recep Taiyyp Erdogan, é um
fundamentalista, um radical que persegue a minoria curda, tenta
dissolver o parlamento e pretende transformar as leis do país nas de
C onstantinopla A meaçada Maomé, se autoproclamando o Califa, rasgando a constituição. O
presidente turco articulou uma coalizão de partidos de orientação
conservadora islâmica, que permitiu que ele fundasse o Partido
Sabe aquela expressão: Pular da panela para cair no fogo? Justiça e Desenvolvimento, AKP, em 2001, e chegasse ao poder em
Pois bem, é assim que vejo a situação da Turquia com esse governo 2002. Mas de uns anos para cá tem se mostrado um homem não
autoritário e um possível frustrado levante, que pode voltar para fazer moderado, perseguindo a oposição e destruindo um Estado moderno
valer a Constituição e o Estado Laico. Em muitos países periféricos, que foi aclamado por ele quando fazia sua campanha, até o voto às
o Estado de Direito foi uma imposição, os direitos são concedidos e mulheres e outros direitos, como o do divórcio, estão ameaçados.
a democracia é a consequência de um processo de construção vinda Jamais apoio o golpe deste ano de 2016 como medida para
de uma verticalidade. Foi assim com a centralidade de nosso Estado reparar um erro, não adianta substituir um despotismo por outro,
brasileiro com a Revolução de 1930 e o Estado Novo de Vargas em mas esses militares são a prole de Mustafa Kemal, que deixou um
1937, foi assim com um congresso e uma separação dos três poderes legado cultuado entre os quartéis, que tem a ideia de que precisam
resultantes de revoluções e golpes de Estado na América Latina, foi deixar a Turquia em um constante progresso, com medidas euro-
assim com um peronismo que forjou um sindicalismo, foi assim peístas. Erdogan pretende implantar outra vez a pena de morte para
inclusive com uma França de Charles de Gaulle, que precisou de eliminar opositores golpistas. E nessa briga de sujos e mal lavados
medidas ditatoriais para integrar a antiga Vichy agrária no projeto o povo sai perdendo em um teatro que os obriga escolher e se
de democratização e modernização (fugindo à regra de que tais posicionar entre dois atores, o obscurantismo do Estado teológico
medidas verticais são exclusivas do mundo subdesenvolvido). Não fundamentalista ou uma vontade de modernização fanática que
foi diferente com a Turquia. Para entendermos um pouco os lados desfigura o próprio princípio de uma nação plural que persegue
conflitantes nesta última tentativa de golpe desses dias atrás, é preciso minorias em nome deste multiculturalismo.
irmos até o final do Império Otomano e a derrota dos turcos, então Paz e vontade para o povo turco. Situação e oposição que
aliados à Alemanha, após a Primeira Guerra Mundial. saiam do palco e que a horizontalidade traga esta nação que faz uma
A Turquia tornou-se uma República e passou a se democratizar ponte entre ocidente e oriente, com duas capitais, mais perto da luz.
forçadamente nas mãos de um ditador (eu sei, isso é contraditório,
mas a História, bem como a vida, não é linear e coerente). Mustafa
Kemal Atatürk, o herói de Galípoli, lançou medidas para tornar o
Estado cada vez mais laico e separar a Sharia da Constituição, sendo
um dos poucos países islâmicos mais ocidentalizados desde aquelas E
medidas europeizantes do líder militar: as mulheres ganharam o
sufrágio (isso para um país mulçumano no início do século passado!)
e o ensino não foi necessariamente imbricado com o Alcorão, um
exemplo para os países teístas que não fizeram esta separação ao
longo do processo de formação de seus Estados modernos.

40 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 41


16 pina. A intolerância pode ser inconsciente, ou quando consciente e
promovida é ainda pior e não pode ser entendida livre de um crime.
Outro fator de relevância é quando você não vê o seu adver-
Ensaios sobre a I ntolerância sário como um indivíduo ou um semelhante, tirando a condição
humana, até por conta da vertente política que ele está inserido,
sua condição corporal, orientação sexual, classe social, etnia etc.
A meu ver, é somente por meio da experiência e na repetição Seriam aquelas pessoas marginalizadas que têm uma “cidadania
de eventos que empiricamente podemos, por meio do sensorial, parcial”, vivemos em uma sociedade em que uns são mais cidadãos
raciocinar sobre algo (nos moldes humeanos). Se tivermos isso como que outros (em termos de direitos e deveres), uns possuem mais
um hábito, muitos pré-conceitos e verdades indubitáveis cairão acesso ao que compõe a gama de garantias individuais que outros.
por terra, dando voz à racionalidade e uma questão humana livre No caso político, eu gostaria de chamar a atenção para a questão
de superstições. O ceticismo (e quando digo isso não me refiro a da “alienação”. Essa palavra deriva do termo alien, aquilo que vem
um materialismo ou à ausência de qualquer fé e religião, mas sim de fora, ou seja, assim como estrangeiros ou seres extraterrestres
à conduta) não nos proporciona condições e descrições absolutas, são vistos como algo distinto, muitas vezes não reconhecendo a
sendo então a verdade relativa. Portanto, é por meio desse caminho humanidade neles, muitas correntes políticas pensam o mesmo, se
que muito do aparato ideológico a priori da intolerância pode ser o sujeito é apenas um ser social ou pertence a ideologias distintas
combatido, pois sempre superstições e verdades enraizadas leva- das que se consideram “não alienadas”.
ram a um absolutismo que não permite qualquer questionamento. Uma parcela de movimentos políticos radicais parte do pres-
Precisamos de investigações honestas constantes sobre os valores, suposto que toda oposição é alienada, portanto já iniciam o debate
a religião, a Constituição e a própria ciência que organiza nossa no alto de um pedestal, é uma relação desigual, transcendental, pois
sociedade. Uma proteção das veleidades de uma suposta visão supostamente “um lado é abençoado pela verdade” que o outro, ainda
predeterminada das coisas. Porém esse empirismo jamais poderá no “obscurantismo”, não é. Qualquer argumento do desfavorecido
criar verdades universais, pois cada caso é um caso, e cada reali- nessa ocasião jamais será suficiente, pois assim como não se aceita a
dade deve ser investigada por meio da experiência e subjetividade condição humana do adversário em outros casos, não se reconhece
de cada olhar que a descreve. Não é possível ter um “modelo”, um a intelectualidade dele apenas por não orbitar na corrente ideológica
“molde” que sirva para o mundo inteiro, e isso as ideologias utópicas da situação ou legalista. O velho dilema dos radicais: se eu não ganho
de destino manifesto, que sonham com um Estado único para o para mim, todos então devem perder. Tudo o que é político ou que
planeta ou a remoção dele, uma raça única ou a perfeição por meio não é é tomado politicamente como se fosse. O campo das ideias
de um igualitarismo pleno inexistente, precisam aprender antes de sempre foi movido pelas paixões, mas isso não quer dizer que não
proporcionar novos horrores e cenas terríveis a que hoje assistimos existem paixões altruístas, que facilitam elevar-nos ao bem público
impassíveis diante de um televisor. pela troca sensorial entre indivíduos, aproximando-se ao verdadeiro
A razão não influencia diretamente nossas ações, a moral e “sentimento de humanidade”.
as paixões sim! Uma pessoa pode agir de uma forma racional, po- Outro ponto que destaco são algumas denominações que
rém imoral. Como exemplo, a tragédia de Sófocles, em que Édipo passam a ser usadas erroneamente, categorizando tudo aquilo que
desconhecia seu parentesco com Laio, nesse caso, é mais digno de possivelmente pode se aproximar de um ismo. Os sociais democratas
pena do que o que ocorreu com o imperador Nero, que ordenou são tratados de “comunistas” pela extrema direita que considera
conscientemente a guarda pretoriana assassinar a própria mãe, Agre- qualquer política estatal socialista e o contrário de “fascistas”, ambos

42 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 43


os termos que se tornaram pejorativos são reproduzidos por muitos no direito de subjugar e conquistar outros por ser o escolhido por
que não sabem o real significado. Deus, como no caso dos hebreus e a noção de “bárbaros” que os
O conservadorismo não é necessariamente “fascista”, muito romanos tinham, permitindo assim um messianismo em submeter
menos o liberalismo. Esse regime de massas era ligado ao futu- os demais povos a uma conversão à civilidade, prática que os cristãos
rismo (vide Marinetti), o fascio (ou fasces) era um feixe de varas herdariam anos mais tarde.
existente desde o período etrusco, um conjunto de gravetos que Estas “milícias celestiais” se sustentavam no controle e vi-
junto formam algo muito mais forte que um só (coletivismo). Em gilância constante, uma manutenção do status quo por meio do
nada tem a ver com o individualismo! Os lictores, encarregados culto ao sobrenatural eleito por determinada sociedade durante
da execução da justiça na Roma antiga, carregavam um feixe com o início do catolicismo apostólico romano, aqueles cristãos que
um machado e, diz a lenda, se a pena fosse branda ao condenado, se proclamavam arianos (um cristianismo com modelos pagãos)
ele apanhava com uma das varas, e se ela fosse a máxima o sujeito eram logo depostos. É a inquisição espanhola que visa limpar
tinha a cabeça cortada pelo machado, mas é apenas boato, certo é o germe mouro, semita e druida, o iluminismo em excesso que
que cerimonialmente precedia a passagem de figuras da suprema degolou milhares de cabeças na guilhotina, são os atentados ateus
magistratura e era carregado abrindo caminho em meio ao povo. do século XIX ou o racionalismo dos materialistas históricos que
O símbolo do feixe e o machado até hoje está presente no brasão incendiavam conventos e executavam sacerdotes nas revoluções
da República Francesa de diversos poderes judiciários em vários proletárias. Tanto as religiões quanto a ausência destas produziram
países no escudo do governo dos EUA... É anterior e não exclusivo a barbárie. Enfim, seja na via política ou religiosa, os intolerantes
dos camisas negras de Mussolini. Quando se banaliza um termo não aceitam a diversidade, nem mesmo alianças estratégicas com as
como xingamento, as pessoas que pronunciam sem pensar jamais linhas antagônicas que são vistas sempre como “ameaça” e precisam
se preocupam em entender essas questões históricas, ou alguns, ser combatidas ou controladas. “Não é mais contrário à religião do
de má fé, distorcem seu significado histórico para instâncias que, que a coerção” – (dizia São Justino, o mártir).
embora apresentem uma ou duas semelhanças, em nada coabitam A ausência de pensamento, totalizante e sistêmico, produz
com a essência da terminologia original, ele passa a ser “tudo aquilo o sectarismo e uma segregação sem precedentes. A tolerância e
com que você não concorda”. intolerância são termos antônimos. Assim, a fim de compreender o
Essa dificuldade em reconhecer o outro como semelhante que significa intolerância, devemos olhar para um duplo significado:
remonta a História do homem, não concordo com Rousseau em um é o político e outro médico. No entanto, a raiz dos significados
afirmar que nascemos bons e somos corrompidos pela civilização, é a mesma. A tolerância não significa que você tem de seguir as
o bom selvagem. Um dos filósofos precursores a estudar o tema da crenças ou opiniões dos outros; significa que o outro tem direito de
intolerância foi Voltaire, a propósito da morte de Jean Calas, escritos ter suas próprias opiniões ou crenças. Você não tem de concordar
do século XVIII sobre a condenação de um protestante acusado com eles, mas simplesmente aceitar que eles têm o direito de fazer
de matar o próprio filho, que segundo a versão dos condenadores, o que querem, mesmo que seja diferente do que o que você quer.
teria escolhido o catolicismo. Foi provado tempos depois que seu Eu sei que ela não é fácil, é um constante exercício, uma paciência
filho havia se suicidado, a campanha de Voltaire, tomando o caso concentrada.
do acusado como injustiça, foi uma das campanhas de opinião Friedrich Hayek, seguido de Hanna Arendt, lançou o termo
pública mais bem-sucedidas de todos os tempos, conseguindo a “A Banalidade do Mal”, se referindo aos totalitarismos nazista e
revisão do julgamento. O autor vai até o antigo testamento e traz stalinista e sua insaciável sede de poder. A maldade se torna uma
muito essa questão acerca da religião, quando um povo se achava prática habitual, faz parte de nossa rotina e se naturaliza o horror.

44 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 45


Era perfeitamente corriqueiro ofender um professor liberal ou uma condição totalizante de algumas vertentes apenas. Pense só em
monarquista, deportá-lo, expurgá-lo no caso dos países ocupados tentar defender ideais liberais em um curso de Ciências Humanas
pela URSS, bem como quebrar a vidraça de um comerciante judeu tomado pelo discurso socialista ou fazer o exercício contrário em um
era uma prática assegurada por lei e compactuada pela sociedade. curso de Direito composto por uma maioria de direita. Sim! Ainda
O Estado e as leis serviam à barbárie, e a Constituição, que deveria temos de avançar muito no debate e não estamos preparados para
assegurar liberdades individuais, é substituída pelo movimento a democracia, o exercício da alteridade e a empatia. Digo isso por
político. O partido se torna a maior instância da nação e o líder é experiência própria. O constante exercício de relações binomiais (ou
personificado fundindo Estado e ditador em uma coisa só. de mais vertentes), antagônicas, enriquece o debate e proporciona
Durante o julgamento de Adolf Eichmann, após ser capturado argumentos críticos tanto para um lado quanto o outro, mas parece
na Argentina e levado para Jerusalém, o mundo se chocou com o fato que ainda estamos distantes de compreender isso. Os corpos do-
de ele não ser uma pessoa que se enquadrava no rótulo de bárbaro, centes de muitas instituições priorizam as militâncias partidárias,
violento e intolerante. Era um burocrata pai de família, que assinava pisoteando aqueles que querem fazer Ciência ou ousam questionar
documentos de envios de judeus aos campos de concentração como o discurso imperante, faz tempo que não temos imparcialidade
um funcionário administrativo de uma empresa. A banalidade do (se é que tivemos um dia). Se no passado o militarismo tinha um
mal naturaliza ações que ocupam todos os espaços da sociedade, discurso intolerante, hoje muitos daqueles que foram perseguidos
tendo os brutamontes truculentos das tropas de assalto à frente, mas agem da mesma forma (o que me faz questionar se as guerrilhas
uma legião de pessoas comuns, que frequentam a missa no domingo realmente lutavam por democracia, e não pela substituição de uma
e cuidam de jardins, por detrás, que suportam e apoiam as ações ditadura por outra).
bárbaras sem um exame de consciência ou qualquer questionamento, A relação entre a dominação e o saber, entre o intelectual e a
aí a ausência de pensamento ocorre. Eu apenas cumpria as leis e fiz universidade, como Maurício Tragtenberg sabiamente notou, ainda
o meu trabalho. – afirmou o nazista. nos anos 1970, traz o meio acadêmico para o centro de uma máqui-
A Intolerância no meio Acadêmico: na de reprodução das elites dominantes, não apenas econômicas,
mas detentoras da ideologia que conduz a sociedade. Quando não
O filósofo Mário Ferreira dos Santos, brasileiro criador da
se aceita o saber vindo da vivência e apenas se legitima aqueles que
chamada “Filosofia Concreta”, ostracizado no meio acadêmico
possuem diplomas, a universidade está em decadência e a erudição
brasileiro, tendo sofrido uma espécie de boicote nas universidades
e o saber foram institucionalizados e verticalizados.
brasileiras nas quais a vertente dominante era o materialismo dialé-
tico, aponta que no meio acadêmico decadente atual há a incom- Faz tempo que se perdeu a pluralidade de perspectivas, a
preensão entre ética e moral, a separação entre Religião, Filosofia e diversidade de óticas ou vertentes. As “paixões sociais” decorrem
Ciência, para que estas estejam sempre em conflito, o proletário e da relação de um sujeito com o outro; a exemplo do orgulho, da
a exploração ideológica, a juventude transviada e o uso dela como ambição, humildade, generosidade ou malevolência, é justamente
massa de manobra para fins políticos supostamente revolucionários. do conjunto destas que surge a intolerância ou a tolerância. O meio
acadêmico, como muitos outros, reflete uma sociedade polarizada
Toda instituição tem um discurso predominante, seja ela uma
em que em ambos os grupos se prezam por partidos únicos ou
escola papal na qual o catolicismo impera ou um liceu de artes e de
coligações que não respeitam a oposição. A democracia é um regi-
filosofia iluminista. Não há problema nisso, mas quero chamar a
me de pesos e contrapesos! Lembro-me da frase de José Mariano
atenção para o fato de algumas, que levantam bandeiras da diversi-
Beltrame, secretário de segurança do Rio de Janeiro, do Partido dos
dade, “Escolas Livres”, que na prática não são, e impedem o debate
Trabalhadores, reconhecendo o radicalismo dos filiados e camaradas
plural. É como se democracia e o próprio humanismo fossem apenas

46 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 47


de seu partido, bem como essa carapuça serve para o radicalismo 17
da oposição também, que dizia: Há dois anos que não se governa
neste país. Só se ofende e se defende.
Penso que quando vestimos uma camisa, por obrigação já A Banalidade do M al
estamos indo contra a camisa do outro, porém existe a possibilidade
de gostar do “amarelo” e compreender o “vermelho”, sem precisar
ceifar ou aniquilar tudo aquilo que compõe sua essência, e que os Hanna Arendt lançou o termo “a banalidade do mal” ao pre-
extremos, na prática, são todos iguais. Bem-aventurados são aqueles senciar o julgamento de Adolf Eichmann, um dos líderes do partido
que se imaginam no lugar do próximo, os que exercitam a prudência nazista e perceber que ele não era um monstro com um cérebro
e a virtú, espécimes cada vez mais raras. deformado, nem demonstrava um ódio pessoal e profundo pelos
judeus, nem tampouco se dilacerava em questões de bem e de mal.
Como afirma em seu livro, Eichmann em Jerusalém: “Eichmann
era um homem decepcionantemente comezinho que acreditava
apenas ter seguido as regras do Estado e obedecido à lei vigente
ao desempenhar seu papel no assassinato de milhões de seres hu-
manos. Eichmann seria só mais um burocrata cumprindo ordens
que não lhe ocorreu questionar. A banalidade do mal se instala na
ausência do pensamento”. Ou seja, muitas vezes quando defende-
mos cegamente a pauta de um programa, seja este legalista ou da
oposição, desconsideramos a questão da análise, é igual um sujeito
que se orgulha de ser bom funcionário de uma empresa que destrói
E o meio ambiente, ou o policial que incorpora o poder do Estado e
atua como sendo o salvador da pátria em nome da sociedade.
A ânsia de fazer o “bem comum” nos faz cometer a barbárie
sem necessariamente enxergarmos isso. Milhares de judeus eram
enviados ao extermínio por burocratas que eram apenas pais de
família e iam à missa aos domingos, apenas por cumprirem ordens
sem pensar em seus ofícios, portanto a imagem do nazista com o
capacete típico munido de um rifle que tortura judeus se aplica aos
executores desse plano monstruoso, a superestrutura, a inteligência
dos planos de extermínio, foram arquitetadas por homens de bem
que eram ótimos empregados e não questionavam seus superiores
e suas tarefas.
Pois bem, deixo esse parecer lembrando a famosa análise de
Arendt para exprimir um sentimento que tenho nesses tempos atuais,
que não atribuo apenas aos “vermelhos” ou “verde-amarelos”, é de
se esperar que um defensor que beira o fanatismo cego não queira

48 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 49


largar o osso, reproduzindo a banalidade do mal aos que pensam 18
diferente dele, não são esses que me interessam. Pretendo falar dos
que contribuem para um plano opressor, um “programa” terrível que
supre a liberdade de um indivíduo querendo mostrar seus passos, Etapismo, prepotência e
a forma como limpa o rabo ou se masturba, a um público limitado
que com isso é doutrinado para o que “deve” fazer ou não, sendo a derrubada do Humanismo.
eu o protagonista dessa insanidade.
Quebra-se então algo fundamental da convivência, Nelson
Rodrigues já alertava em uma de suas frases mais agudas: “Se cada A prepotência de uma boa parte dos intelectuais de meu
um soubesse o que o outro faz dentro de quatro paredes, ninguém se tempo em dizer que as massas são escravas de suas paixões, não
cumprimentava”. O que se passou foi que descobrimos não apenas o dando voz à razão, a suposta “emancipação” teria ocorrido então em
que cada um faz entre quatro paredes, mas também o que acontece um processo que mais tinha de coerção do que autonomia, advento
entre as duas orelhas de cada um. É na intimidade que deixamos da Revolução Industrial, rompeu com uma alienação que atrelava
transparecer uma opinião sobre alguém de nosso convívio, e se a base da pirâmide em um processo que os socialistas ortodoxos
a pessoa escuta logo cria uma inimizade. A sociedade nos cobra gostam de afirmar: Umas passam da classe em si, para si, porém o
máscaras, e mesmo sendo autêntico como sempre fui, é óbvio que novo ritmo que a indústria ou o urbano industrial trouxe, acabou
dentro das quatro paredes deixamos transparecer, em um momento por criar outros tipos de alienação, fazendo a grande massa se per-
ou outro, algo de sombrio aos olhos de muitos, principalmente se der dentro dos processos e a burocratização de Estado, em muitos
estes estão imersos em uma moralidade superficial e são hipócritas, países, como no caso do Brasil, não houve uma revolução burguesa
pois reproduzem preconceitos dentro de seus lares também, mas capaz de trazer essa “consciência” de classe.
apontam o dedo para os que têm a vida escancarada. É fácil julgar Além da realidade urbano-industrial ter sido tardia, é possível
quando você faz o mesmo, mas tem sua intimidade preservada. notar que ainda a grande massa parece estar amorfa, salvo um ou
outro movimento vindo da sociedade civil. Tentei relutar contra
essa afirmação, realmente não achava que uma pessoa que morava
a três horas do serviço dormia pouco mais de quatro horas por
noite, tendo que limpar um banheiro de um escritório qualquer, não
tinha a consciência de que era explorada. Sobretudo uma parcela da
esquerda sempre vinha com esse discurso, não deixando o que eles
E consideravam como “massa” ter uma autonomia de pensamento,
pressupondo seus mais íntimos anseios.
Muitos consideram essa passagem como sendo o processo
civilizador, acabando com a coabitação, principalmente presente
no mundo agrário, um salto do “comunal” para o “societal”. É
bem verdade que os socialistas do presente negam esse cenário
quando defendem uma revolução acima de qualquer terreno que
se apresente, invocando a contradição que a revolução causou em
uma Rússia agrária que ainda tinha uma agricultura com arado de

50 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 51


madeira, já outros, mais etapistas (principalmente os adeptos ao (paulatina) por transformações mais concretas. O nacionalismo,
PCB) reivindicam um quadro que apresente essa mudança ao que muitas vezes imbuído de um socialismo que não é internacionalis-
Weber chamaria de “racional legal”, suposta sociedade alcançada ta, o que se aproxima das correntes da terceira posição, tem a base
após uma burguesia mercantil emancipada, que seria o primeiro teórica de um nacional-revolucionarismo, não difere em muito dos
passo para se atingir a revolução. bolchevistas de carteirinha.
O etapismo foi reconhecido e defendido por diversos inte- Com a idade adulta chegando, eu assumi minhas posições
lectuais nacionais, desde Florestan Fernandes a Fernando Henri- liberais e me reconhecia dentro de uma social democracia, porém
que, desenvolvimentistas ou não, todos carregavam um pouco do visava reduzir o Estado, me encantava mais um kantianismo, porém
embrião da CEPAL e o pensamento latino-americano que coloca sem abandonar um toque de realismo em Hobbes, ou em termos
a nossa realidade subdesenvolvida como um estágio diferente de político-econômicos um Tocqueville fazia muito mais sentido: Ao
desenvolvimento se comparado aos países centrais do capitalismo cair uma árvore, a própria população deveria se mobilizar para
(ainda não tínhamos a condição e nem o nome, um tanto politica- removê-la, e não esperar essa atitude do Estado.
mente correto, de “emergentes”). Que neste ano o juízo se aflore nos corações e mentes de
Outro fator importante, ora desprezado por muitos, é que muitos e possamos deixar qualquer forma de radicalismo de lado
não teríamos assimilado a racionalidade e a ética do trabalho, o e a prepotência nos porões dos sonhos ousados dos que desprezam
contrato seria visto como um retrocesso à escravidão de outrora, a realidade.
não favorecemos a lógica contratual da prestação de serviços. O
Brasil então não se configurava em uma sociedade de classes e com
a consciência dela. Vi muitos intelectuais, quase que por unanimi-
dade, defenderem o etapismo, até os adeptos de Caio Prado Jr, que
faziam uma crítica ao “partidão”, na última hora reivindicavam a
revolução burguesa e o capitalismo como um meio de se alcançar
a tão sonhada revolução de que falavam. E
Eu via um descompasso entre discurso e atitudes por parte
de muitos, detestavam qualquer tipo de mercado, pediam por mais
Estado, o que minaria este processo capitalista necessário a seus
objetivos, era como se a racionalização do trabalho e da vida fosse
o fim, mas os meios para se atingirem seriam uma volta à comuni-
dade, desprezando qualquer característica de uma sociedade mais
complexa ou a impessoalidade.
É bem verdade que eu também havia bebido dessa fonte,
as ideologias de massas sempre parecem ser uma alternativa aos
sonhadores, principalmente entre os jovens. Mas me perguntava
como seria possível ter cabeças que as invocavam, que deveriam ter
uma suposta maturidade e vivência, como as de muitos mestres, que
se utilizavam da empolgação juvenil para alcançar seus ímpetos.
Era preciso combinar a luta por pequenos ganhos com a luta maior

52 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 53


19 irmãos, eu vi o mesmo despotismo institucional na mão de vocês
também, isso não é exclusivo de um lado apenas. Sempre terei mi-
nhas preferências políticas, e seria hipocrisia defender as mesmas
E stado de Natureza atitudes da bandeira contrária só por um capricho ou ressentimento
meu. Tenho e sempre terei a alma tenentista e positivista, seja dos
centralizadores ou dos constitucionalistas de São Paulo, que eram
Uma das maiores tristezas é quando a gente entende que opostos mas tinham a mesma essência. A alma guerreira nunca será
viver no estado de natureza pleno é uma farsa. Olha que vocês extirpada, mas, a virtú e a prudência, que nunca deixaram de existir,
estão lendo isso de um homem que cresceu na utopia, que viria a mesmo com essa tortura sombria, asseguro, só se intensificaram!
se materializar na adesão a movimentos políticos que seguem essa O verdadeiro despertar de consciência, de que tantos falam, é
linha, seja sempre atribuindo a opressão à autoridade, ao iguali- justamente o movimento contrário! Não é sob a pretensão de fazer
tarismo, às questões raciais, enfim, aqueles que já viram o mundo o homem resgatar seus instintos mais primitivos acreditando ao
aos termos do nascido livre e, acreditem, não assim fazemos por- mesmo tempo na possibilidade de um igualitarismo pleno! Não,
que queremos, mas existe algo intrínseco naqueles que cresceram amigos. Somos selfish, egoístas por natureza, mesmo dotados de
com a “desmedida”, ultrapassando os limites, fugindo de casa e um altruísmo necessário para a vida em sociedade. Essa luz, esse
adentrando nas matas que me sugavam feito um buraco negro no despertar, é justamente o reconhecimento de uma impossibilidade
espaço, acreditem amigos, isso é real. A tese do nascido livre é tão e um perigo de todos vivendo nesse estado de natureza, que poderia
real quanto ao aprisionado e institucionalizado desde sempre, a levar a guerra de todos contra todos. Precisamos de instituições,
moral dos “senhores” e a dos “escravos” como apontou Nietzsche, sim! Jamais iremos eliminar por completo a hierarquia. Essa é a dor
sabemos que os que não precisaram se preocupar com o pão desde e a tristeza dos homens quando reconhecem isso. Mas asseguro,
cedo desenvolvem propriedades mais expansivas do que os muti- sinto um alívio, uma paz interior e um coração brando, que pulsa
lados, os cerceados desde sempre pela imposição abrupta das botas saudoso à liberdade que vivi e jamais sairá das sensações que por
esmagadoras de seus senhores. ora se manifestam. Creio eu que o rato do experimento já pode
O mundo hoje possui um imenso armamento nuclear, se a sair do laboratório. Quando o próprio pivô chega à conclusão por
moral dos guerreiros, dos senhores, for estimulada, essa linha do ele mesmo, não tem mais sentido a averiguação de um suposto
erotismo tão recriminada pelos racionalistas, um déspota conquista- resultado. Cabe aos ressentidos, seja de um lado ou de outro, que
dor pode acabar com o mundo. Depois da Segunda Guerra Mundial não aceitam essa realidade de que as utopias e uma horizontalidade
tendemos sempre a perseguir estes seres da natureza. A questão que plena não pode durar, promoverem a prudência aos seus alunos, e
trago é, vindo de um ser da natureza, posso falar com propriedade. não cutucá-los e instigá-los ao combate. A luta tem de ser racional!
Todos sabem que a coisa que mais odiei ao longo destes últimos Ela tem de evitar a intolerância e o totalitarismo.
anos foi esse plano maléfico em querer torturar psicologicamente Afinal, qual é a verdadeira “natureza humana”? Pode ser
os perceptíveis (no caso eu) taxando-os de esquizofrênicos ou deno- tanto uma ou outra, somos livres, e também não somos, e cabe a
minações que o próprio Foucault, influenciado pelo movimento dos nós parar de lutar pelo total domínio de uma concepção apenas e
anos 1960 cunhou ao longo do final do século XX. Devo reconhecer amadurecermos para uma sociedade prudente. A busca da perfeição
que muitos de vocês me chamaram de cego por atacar as bandeiras helênica ou o paraíso terrestre só levou aos maiores desastres da
vermelhas, que supostamente estariam do lado dessa liberdade que humanidade. É possível ser livre e reconhecer a hierarquia, a dis-
fez (e faz) parte de mim por muito tempo. Mas asseguro, nobres ciplina traz uma libertação também entre aquele que por meio da

54 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 55


verdadeira autoridade reconhece uma reciprocidade entre senhor 20
e vassalo.
Manifesto assinado por um homem que viveu no estado de
natureza e foi apresentado a civis (mesmo às duras penas), e que A Neurose é a mentira esquecida
hoje tem ambas dentro de si, procurando viver sem priorizar apenas
uma, mas no eterno equilíbrio. em que ainda se acredita .

Venho de uma forma resumida mostrar neste texto as se-


melhanças históricas e de práticas que as ideologias totalitárias,
mesmo que “antagônicas” (o que podemos discutir) possuem.
Antes de resumir qualquer definição de uma ou de outra, trago
para o debate a questão da Sociedade de Cristal, livro do célebre
Fiódor Dostoiévski , no futuro as instituições seriam cristalizadas
e transparentes. Tudo seria visível aos olhos dos demais: um Esta-
do infrajurídico que detém o controle de tudo se beneficiando de
uma burocracia tão gigantesca que os recursos (além da corrupção)
se perdem no caminho, muito parecido com o que aconteceu na
E experiência soviética e nas ditaduras militares de qualquer ordem
ao redor do globo.
Vivemos em uma época de falsos altruístas que não enxer-
gam a humanidade no outro. Eles detêm o monopólio da condição
humana. A troca da retórica, utilizando-se da mudança de fatos,
fazer a verdade parecer mentira: tática e prática muito comum entre
as organizações criminosas disfarçadas de “partidos” em que para
atingirem seus fins tudo é valido. A começar pela difamação de
qualquer oposição e a deslegitimação do discurso contrário, não
reconhecendo apenas a condição humana dele, mas a racionalidade
e intelectualidade. Um processo de coerção psicológica. A cosmo-
visão absolutista sempre vê os outros como isentos de qualquer
verdade, inaptos se deflagrados meramente em plena discordância
de ideias. A democracia só sobrevive quando você tem a medida
de pesos e contrapesos!
Pois bem, eu realmente não sei se é insciência (não saber al-
guma coisa) ou ignorância (não saber algo que você deveria saber).
Muitas vezes é má fé mesmo. O cemitério da política é o berço do
totalitarismo, como pode então partidos claramente ditatoriais que

56 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 57


precisam da destruição do Estado de Direito, o aniquilamento da seria a posteriori, um estágio que é sempre um constante devir que
rotatividade, da alternância, que clamam pela manutenção de um deixaria os homens em plena justiça. A idoneidade e a honestidade
partido único ou uma coligação que permita apenas vertentes que seriam unilaterais, eles jamais devem ser contestados, usurpando a
compactuam com seus ímpetos participar do regime que suposta- voz dos outros. Expressam a sua perspectividade a dar impressão
mente deveria garantir liberdades e direitos iguais, quando as ações de “obviedade” do que dizem, que não pode ser discutido. Ora, por
de alguns projetos criminosos de poder são justamente a anulação que o estelionato financeiro é punido e o político não é? Na URSS
dela, o eterno acachapante grau de cinismo. muitos poetas e artistas eram perseguidos, mortos e enviados a
Você elimina a real oposição, tendo na situação e uma suposta clínicas psiquiátricas ou campos de trabalhos forçados por estes
“oposição” fajuta todos partidos de uma mesma base conceitual, escreverem sobre sentimentos individuais, seriam aspirações “bur-
que diferem em um ou outro ponto apenas, ficando apenas as dis- guesas”, como o sentimento do amor, a paixão, segundo eles, uma
cussões administrativas, definindo muitas como cláusulas pétreas, construção social do período romantista e clássico, precisavam abolir
axiomáticas e inexoráveis. a metáfora, que não era interessante ao triunfo da racionalização
em excesso disfarçada de uma ciência que visava apenas comprovar
No Brasil vemos um novo “queremismo”, semelhante ao que
as premissas pré-estabelecidas pela ideologia do partido.
vigorou no período democrático (1945-1964) em que as massas
pediam a presença do caudilho Vargas no poder, o populismo que A engenharia comportamental pelo politicamente correto
se serve do clientelismo só é possível com o suporte de uma massa trata como “patologia” qualquer discurso que não se adapta a seus
imperativa que se reconhece na personificação do líder. Dissociou tentáculos. A hegemonia não visa conquistar corações e mentes, esse
a expectativa teológica da “graça” pela política (ou o que eles cha- processo ocorre de uma forma honesta e legítima, ela, na verdade,
mam de política, pois são a negação dela), muito parecido com ocupa todos os espaços e inviabiliza o debate, fazendo reinar um
um platonismo que predominou no discurso religioso da Idade discurso único. É a imposição e não a conquista de fato. A estratégia
Média. Começaram se apropriando do “humanismo” deturpan- de Antonio Gramsci é a sistematização da mentalidade, o partido
do-o e relacionando-o com apenas as vertentes ideológicas que os tem de se transformar em um poder onipresente e invisível. As
suportam, fazendo um totalitarismo “do bem”. Toda ditadura tem pessoas passam a reproduzir discursos e defender suas ações de
uma retórica de que a oposição é “do mal”, é a segregação moral uma forma inconsciente. Falam em nome do “povo” para que este
(e física), a total apropriação da bondade, da caridade e da justiça. não tenha a autonomia de falar por si. São eternos intermediários.
Após ter bebido dessa fonte utópica e radical em um momento de Leon Trótski já defendia “A moral nossa e a deles”, dividindo não
minha vida, procuro tentar seguir pelo realismo, reconhecendo as apenas o conjunto de valores entre “os nossos e os deles”, mas toda
diferenças, não prometendo um paraíso terreno e a abolição total a sociedade entre “nós e eles”.
do sofrimento, erroneamente muitos consideram que seria para Mesmo os mais brandos, adeptos do Socialismo Fabiano, que
manter o status quo, o que discordo: ser reformista, estar por uma inclusive inspirou o fascismo; Mussolini era socialista e se utilizou do
mudança gradual e prudente, não optando pelo rompimento, a cisão fabianismo para fundar o Partido Nacional Fascista, Oswald Mosley
abrupta da “revolução” considero o mais sensato. no Reino Unido saiu das fileiras fabianas e criou a British Union of
Muito disso se intensificou desde as ideias de Rousseau para Fascist. Todos, em comum, detestavam o liberalismo. A diferença
cá, desprezar nossa condição humana e atribuir a uma corrupção entre os Estados corporativistas nazifascistas e stalinistas apenas
que a sociedade exerce sobre o indivíduo, que nasce ingênuo e trocavam de roupagem. Foi justamente por causa dos truques do
bom, o maior exemplo de utopia existente. Em Rousseau, o estágio “polilogismo” que o estatismo conseguiu ganhar força no pensamento
de bondade do homem está no nascimento e infância, em Marx, moderno. O polilogismo se baseia na ideia de que diferentes grupos

58 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 59


raciocinam de forma fundamentalmente diferente. Ora, é claro que proletariado difere da lógica da burguesia, ou no que a lógica ariana
somos um produto do meio, mas a nossa condição não é inerente difere da lógica dos judeus ou dos ingleses.
e fixa, algo imutável. Esse tipo de idealista afirma que existem os Não é por acaso que o socialismo se casou muito bem com o
“intelectuais não engajados”, que possuem o dom de apreender a discurso nacionalista latino-americano, tendo um populismo que
verdade sem serem vítimas de erros ideológicos. Claro, os grandes mistura o marxismo com o peronismo, um pseudo-varguismo,
detentores da verdade estão convencidos de que eles mesmos são os o resgate de mitos e heróis como Simon Bolívar, o que é muito
maiores dos “intelectuais não engajados”. Você simplesmente não contraditório, pois na visão etapista de Marx, a revolução iria
pode refutá-lo. Se você discorda deles, estará apenas provando que ocorrer no seio de uma sociedade capitalista urbano-industrial,
não pertence à elite dos “intelectuais não engajados”, e que seus como a Inglaterra, o que a História provou nunca ter acontecido
pensamentos são meras tolices ideológicas. (as revoluções aconteceram na Rússia agrária, na Coreia do Norte
Os nacional-socialistas alemães tiveram de enfrentar o mesmo com uma estrutura monárquica, reproduzida pelo regime, em
problema dos marxistas. Eles também não foram capazes nem de países independentistas Africanos que optaram pelo socialismo
demonstrar a veracidade de suas próprias declarações nem de refu- ao deixarem de ser colônias, em uma Cuba nacionalista, na qual a
tar as teorias da economia. Consequentemente, eles foram buscar família Castro detém o poder com aspectos monárquicos passando
abrigo no polilogismo, já preparado para eles pelos marxistas. Sim, o poder entre membros da mesma família sem eleições diretas). Por
eles criaram sua própria marca de polilogismo. A estrutura lógica aqui tivemos a união do marxismo despontado com o caudilhismo.
da mente, diziam eles, é diferente para cada nação e para cada raça Marx nunca falou em reforma agrária, ele só se preocupava com
(assim como os bolchevistas diziam que seriam propícias de “cada a questão urbana, o capitalismo estava na indústria. A questão
classe”). Cada raça ou nação possui sua própria lógica e, portanto, agrária começou com o Partido Socialista Revolucionário em 1917
sua própria economia, matemática, física etc. Claro que isso se faz e não do Partido Bolchevique. O PCB nunca se preocupou com
verdade, mas o processo cognitivo é o mesmo, sendo assim, a única o campo, foi a influência do maoísmo que fez o partido ter uma
lógica e ciência verdadeiras, corretas e perenes são as arianas no quebra em 1962, criando o PC do B. A segunda internacional foi
caso nazista, e para as comunistas as “não burguesas”. mais reformista, berço da social democracia europeia, o Brasil e
Embora diferentes camadas sociais e nações tenham suas boa parte da esquerda latino-americana são herdeiros da terceira
especificidades, o processo de ordenação conceitual da realidade é e quarta internacional, as mais radicais.
o mesmo, não sendo “superior”, verdadeiro e legítimo apenas para Defendem as vertentes ideológicas que procuram revolu-
uma raça em específico ou classe social. Aos olhos dos marxistas, cionar o mundo imaginando serem os condutores do processo.
Ricardo, Freud, Bergson e Einstein estão errados porque são bur- É fácil você defender o feudalismo querendo ser o senhor e não o
gueses; aos olhos dos nazistas, estão errados porque são judeus. servo, sendo o mais humilde destes, vendo-se no mínimo como
Um dos maiores objetivos dos nazistas é libertar a alma ariana da um “comissário político”.
poluição das filosofias ocidentais liberais e judaico-cristãs. Eles As contradições do discurso desaguam no fato das concessões
estão em busca da ciência alemã, ou seja, da ciência adequada às (privatizações) que tanto criticam. O capitalismo estatal, mesmo na
características raciais dos alemães, assim como a ciência comunista antiga URSS, privatizou uma parte da economia (cerca de 50%), é
preza por uma que seja livre da visão burguesa. Nem os marxistas impossível estatizar toda uma economia minando a lei da oferta e
nem o nazistas conseguiram ir além de declarar que a estrutura da demanda. Falam tanto da concentração de renda no capitalismo,
lógica da mente é diferente entre as várias classes ou raças. Eles mas todos os países socialistas têm uma elite política que vive no
nunca se atreveram a demonstrar precisamente no que a lógica do seio do Estado e têm acesso a todos os recursos, incluindo o lucro

60 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 61


dessas concessões. É uma nova aristocracia que impede a real eman- 21
cipação daqueles que são nivelados por baixo na base da pirâmide, a
corrupção desses burocratas fez ruir a trágica experiência soviética.
Os processos dessa economia que mina a livre iniciativa e Desmistificando o islamismo e
aparelha o Estado, determinando o que tem de se produzir, como,
onde e tabulando os preços e lucros, destroem as organizações o conflito no O riente M édio.
“espontâneas” da sociedade civil para justamente se protegerem
do poder central, como Alexis de Tocqueville defendia: associações
de bairros, comunidades religiosas etc. Aqui, o sindicalismo surgiu O termo “Oriente Médio” é exógeno, uma designação feita
no seio do Estado, não visa acabar com o imposto sindical, um pe- a partir da perspectiva europeia ocidental, ou seja, quer dizer que
leguismo que impede a construção de formas de organização fora existia o Oriente Próximo (normalmente o que seria hoje a Turquia)
do Estado. As ONGs são cooptadas e passam a ser governamentais. e o Extremo Oriente. Apenas 30% dos mulçumanos estão no Orien-
Ultimamente tenho bebido da fonte que seria uma união entre o te Médio, os demais 70% em outros países, tais quais; Indonésia,
positivismo e o liberalismo, por mais que um tenha procurado Paquistão, Norte da África... incluindo alguns países da Europa,
anular o outro historicamente, considero válido sendo o primeiro como a Bósnia.
para a ciência e o método, e o último no que diz respeito à liberdade O profeta Maomé (Muhammad) era um coraixita, tribo per-
econômica, individual e autonomia de pensamento. tencente à elite comerciante que viria ser a Península Árabe, aos 40
A liberdade acima da coletividade forçada! anos de idade tornou-se o profeta de uma religião revolucionária
que em menos de 200 anos dominaria metade do mundo. A histó-
ria diz que Maomé teve um encontro com o anjo Gabriel por volta
do ano 610 d.c, e recebeu versos que mais tarde, em tradição oral,
pois Maomé era analfabeto, seriam a base da religião islâmica. O
alcorão (que significa a recitação) foi escrito 100 anos depois disso.
A fuga de Maomé para outras regiões para fazer a pregação ficou
E conhecida como Hégira, estabeleceu-se principalmente nas cidades
Meca e Medina, que hoje é a Arábia Saudita, locais considerados
sagrados pelos mulçumanos.
Maomé falece em 632 d.c, sua filha Fátima era casada com
Ali, que era primo de seu pai. Após a morte do marido assume a
liderança da pregação, os filhos de Ali foram conhecidos como Xiitas
(um nome derivado do árabe Shiat Ali, “o partido de Ali”), que se
dizem descendentes diretos da linhagem do profeta, por outro lado,
surge uma vertente rival, conhecida como Suna (o termo deriva de
uma palavra que significa “um caminho moderado”, referindo-se
à ideia de que o sunismo toma uma posição mais neutra), de uma
racha da aristocracia mulçumana (sobretudo na região de Damasco).

62 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 63


Então, Sunitas e Xiitas, desde aqueles tempos, são rivais. Os 22
sunitas representam 85% dos mulçumanos, e os outros 15%, a ine-
gável minoria, têm como representação os xiitas, estes, relacionados
ao radicalismo, o que não necessariamente poderíamos considerar I nterseccionalidade
como fato (apesar de existirem grupos como o Hezbollah, que sig-
nifica: Partido de Alá, predominantemente xiita), ora, os grupos Al
Qaeda (que significa: A Base), Hamas e Estado Islâmico são sunitas, É importantíssimo que tenhamos representatividade em cargos
embora seja verdade que muitos deles são mais ocidentalizados do e posições de lideranças de diversas categorias. A interseccionalidade
que os xiitas, como no caso do sunita Saddam Hussein. era defendida já no século XIX pelo próprio Bonifácio. Não apenas
na política, mas nas artes, por exemplo, se o personagem de uma
novela é transexual, por que não contratar um ator que seja, ao invés
de uma mulher interpretar? Aquela categoria se sente representada
quando pessoas de seu grupo ocupam posições de destaque, e é
possível meritocramente fazer isso elegendo pelas habilidades que
se destacam entre os indivíduos de cada categoria, isso pode ser em
relação a grupos étnicos, mulheres, homens ou qualquer tipo de
identidade. Porém volto a ponderar que todo radicalismo é maléfico,
não se pode elevar ao expoente máximo e por conta de moralismos
que travam a pesquisa a averiguação histórica, distorcem o resultado
E quando este diz o contrário do que as ideias propõem.
É preciso analisar friamente as coisas, como dizia Weber.
Vamos destruir os tabus que impedem análises mais empíricas,
não se pode deixar as paixões intervirem nesse processo, seja de
qual lado político for. Hoje, ao falar de um tema, não se leva em
consideração a pesquisa em si, e sim quem a fala! É como se algo só
tivesse legitimidade se a condição da pessoa que reproduz o conceito
esteja imbricado com o objeto. Vamos ter calma! Representativi-
dade política é básico, e visões do sujeito inserido em determinada
realidade é ainda mais autêntico, mas não é por isso que só uma
categoria então possa falar sobre algum tema! Chega de colocar
palavras nas bocas dos que abordam um tema, sempre querendo
achar a “intencionalidade” que o sujeito quer dizer, quando às
vezes não há.

E
64 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 65
23 24

M acunaíma , sou ! O Desencantamento do Mundo

Ao mesmo tempo que São Paulo é a devoradora de caipiras, Após a Segunda Guerra Mundial, houve um movimento
como aponta Antônio Cândido, marginalizando-os, ela é modernizada encabeçado pelos frankfurtianos em tentar identificar ao longo da
e depende da sabedoria deles. Não há nada mais encantador para os História, principalmente no estágio em que alcançamos agora, do
seres da natureza do que a tecnologia e a modernidade. Lembrem- domínio da técnica e de uma racionalização intensa, tentando apontar
se de Macunaíma! A mente acelerada dos homens da natureza, como que o triunfo da razão desaguou na chamada modernidade
ao mesmo tempo que depende dessa conexão para sobreviver, é ou contemporaneidade, na qual se faz valer a burocracia. Para tanto,
a própria que altera o lócus natural violentamente, sem controle. eles trazem essa questão nos clássicos de Max Weber, aquilo que
Essa é a dor e a delícia que a racionalidade imbricada com nossos iria compor o domínio em uma sociedade racional legal, típico de
impulsos internos faz. Precisamos de controle pelas leis, mas nada lócus urbano-industriais, que teriam superado as características
que se exceda e procure extirpar essas mentes inquietas. Não se de sociedades sem Estado ou mesmo as pré-capitalistas. Adorno e
escolhe ser assim. Podemos ter consciência disso e sempre buscar o Max Horkheimer apontam, e em particular, modestamente, ouso
autocontrole, mas jamais sermos segregados e vistos como bárbaros! discordar em partes, que existiria uma separação entre Natureza
e Cultura, como se a primeira fosse imutável e estivesse única e
exclusivamente sofrendo influência pela última, que permearia
por meio de mutações, quando sabemos que é um movimento de
“vai e vem”, uma reciprocidade, o homem altera o seu meio, e este
o altera, principalmente na pós-modernidade, não faz mais sentido
aquela ideia cartesiana em separar “corpo” e “mente”.
E Então, para eles, da mesma forma que o iluminismo teria
universalizado os saberes, ele traria um desencantamento do mundo
por meio de uma espécie de amadurecimento no estágio de pro-
gressão humana ou das sociedades. Este movimento teria surgido
com a intenção de acabar com o mito e seria herdeiro das tentativas
de diversos filósofos na antiguidade que tinham a mesma missão,
Platão e sua linha que “verticalizou” a Filosofia, que influenciou a
Idade Média, teria trazido uma noção de superioridade do tempo
e o chamado “ideal”, minando a pluralidade dos pré-socráticos. O
mito então jamais seria imparcial, por meio dele é possível identi-
ficar as estruturas e a funcionalidade das pessoas e suas categorias
dentro de uma sociedade. Essa nova lógica de desencanto por meio
das luzes fez com que o homem se tornasse um ser descritivo, per-

66 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 67


deu-se muito a metáfora e os dizeres que ficavam nas entrelinhas, 25
deixando a nossa condição não humana, um monstro feito Pietro
Pietra de Macunaíma (que simbolizava a industrialização), escravo
da técnica e uma ditadura desta razão, imbricado com o mercado Patrimônio H istórico
e com o aval da indústria cultural que transforma a manifestação
artística em uma linha de produção, ditada pela lei da oferta e da
demanda. Ora, não posso concordar com a própria visão de erudito Infelizmente em toda América Latina o patrimônio histórico
que lançam, marginalizando o Jazz (música popular da época) que não é respeitado, quem manda é o capital, e se este quer construir
hoje passou à categoria de música de “bom gosto”. O que hoje é seus templos de consumo ferindo a alma de um povo, tem sinal
subalterno pode ser o protagonista de amanhã. verde sem nenhuma resistência. Eu venho insistindo que um país
Não é de todo mal a razão, eu vejo entre uma luta eterna do sem memória tende a perecer, e é isso que implicitamente ou expli-
obscurantismo com as luzes que controlam as paixões que provocam citamente querem, a universalização de valores, um Estado único
a barbárie, sim, o mercado não é apenas a resultante da técnica, para todo o globo (ou a ausência total) que não preserva suas par-
mas é nele que as aspirações e negações humanas se transformam e ticularidades culturais, e sem haver as diferenças, os antagonismos,
mercadorias que saciam nossas necessidades infinitas. A indústria, a comparação não será mais possível, esta que não deve ser feita
seja a cultural ou qualquer outra, possibilita um leque de opções e com intuito de supervalorizar uma em relação à outra como nos
alternativas que constantemente é aumentado com novas tendências colonialismos, mas fazer ascender um sentimento de preservação
e valores, lutar contra isso é desprezar nossa condição humana. A e identidade que é a única coisa que perdura entre os séculos. Nós
passagem destes estágios entre mito e o desencantamento com a nos reconhecemos nas coisas. Ao ver um traje, ouvir uma canção
razão é como deixar de ser criança e adolescente, e adentrar a ida- e nos monumentos, eles dizem quem somos! Um shopping center
de adulta não é fácil, mas talvez aí exista a verdadeira autonomia é igual na China, no Brasil, na França e no Egito, um condomínio
e liberdade, aquela que só é possível com a vinda de obrigações. duplex também, jamais irão exprimir o legado ou a estirpe de um
Estar vivo jamais foi fácil, mas precisamos encarar com ma- povo, a peculiaridade entre vestígios de impérios e eras atemporais
turidade para não provocarmos os verdadeiros monstros e horrores não podem ser varridas pela padronização de construções que le-
em nome de modelos pretensiosos que visam transformar tudo, vam luzes de neon. Isso me faz lembrar de um episódio da Segunda
mesmo que com as melhores das intenções. Guerra Mundial, quando Paris e Roma não foram bombardeadas
porque Hitler gostava de arte (que sorte!), mas se você quer atingir
o coração de uma nação, comece a destruir sua memória, como
vêm fazendo os bárbaros do Estado Islâmico. O capital também
é terrorista e afronta o povo quando se expande, pela especulação
E imobiliária que destrói o antigo em nome da modernização.
Aqui no Brasil, ao longo da segunda metade do século XX,
o fanatismo pelo moderno extirpou quase todas as construções
imperiais, deixaram pouco das colônias (sobretudo em Minas
Gerais e no Nordeste), e locais como Petrópolis ou alguns edifícios
ainda resistentes no centro de São Paulo, que remontam o poderio
inglês; nosso patrimônio imperial foi varrido, acompanhando o

68 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 69


movimento positivista da República que visava negar todo o pas- 26
sado monárquico (até mesmo os feriados religiosos por um tempo
foram abolidos, inclusive o Natal). Os deuses das “curvas”, Oscar
Niemeyer e Lúcio Costa, tiveram êxito nesta tarefa, o Brasil é um Desabafo 1
país seduzido pelo futurismo, uma modernização do atraso, que
preserva uma alma agrária parada no tempo. Tudo o que foi feito,
desde a mudança da capital até as torres metálicas de hoje, é um Outra coisa da qual me lembrei agora e esqueci de mencio-
desespero em reconhecer nossa própria essência. nar no texto anterior: em uma aula o professor criticou o modo de
As construções padronizadas, sem ornamentos, se voltam cultivo da agricultura do homem branco (nivelando e reduzindo
ao constante devir da modernidade. As vielas, becos, as igrejas de todas as etnias indoeuropeias a uma só categoria) pelo fato de terem
esquina, sinagogas ou mesquitas, todas resistem aos blocos e o metal excedentes de produção, muitos clãs indígenas brasileiros teriam
retorcido da anti-habitação, uma noção deturpada do conforto, em uma outra mentalidade, cultivavam apenas o necessário para um
que é mais importante um travesseiro de penas de ganso e edredons sustento imediato, sendo esse um dos muitos motivos pelos quais
King Size do que uma comunidade pautada nas suas referências não se adaptaram ao estilo de trabalho do colonizador. Não há
identitárias. O futurismo dos fascistas e comunistas jamais acabou, nada de errado nessa afirmação, a questão que pretendo levantar
ainda está presente nas aulas de arquitetura e artes modernas que é que muitos acadêmicos que seguem em uma linha racionalista e
subjugam o Renascimento cultural e o barroco, quando demos um materialista histórica, ou até mesmo estruturalista na forma de fazer
salto intelectual para desaguar na pós-modernidade e morrermos história e antropologia, desprezam e condenam aqueles que por vezes
na praia. Theodore Adorno estava errado em ver apenas o fetiche, invocam a biologia como uma possível fonte de explicação de alguns
o espírito de um tempo, o que antes era marginalizado, torna-se da fenômenos, lembro-me de ter argumentado com um professor anos
instância do erudito no amanhã. A especulação leva a isso, ganha-se atrás, que o ambiente em que estamos submetidos influencia no
muito dinheiro com a demolição dos bairros antigos e a constru- modo de nos relacionar, portanto ele também é um determinante
ção de torres, condomínios standard onde vivemos amontoados (não o único) da variação cultural que existe no mundo, e o mestre
em caixas de cimento ou espelhados com furos, janelas estas que se exaltou, indignado, acusando-me de determinista, que eu assim
só servem para mirarmos mais caixas, tampando a linha do hori- falava para justificar as diferenças existentes entre os homens.
zonte, trazendo a depressão profunda nestas ilhas de calor, onde Pois bem, voltando ao caso inicial, eu levanto a seguinte ques-
queremos parecer o que não somos e por entre o concreto soberbo tão: se o ambiente não influencia nosso modo de ser, como então
ainda repousa uma alma de taipa. que os sistemas são assimilados de formas distintas em diferentes
sociedades do globo? Ainda mais, os fenômenos naturais são sim
muito relevantes nessas construções, no caso do europeu, ele produz
em larga escala, visando ao excedente por conta de que em sua terra
natal, com a maior parte do ano no inverno, se ele não estocar co-
E mida, se ele não tiver uma cultura de acumulação, ele não sobrevive
a temperaturas baixíssimas. Não é como os povos daqui, principal-
mente do sudeste brasileiro, em que a terra fértil proporciona uma
fartura e a mata fornece tudo o que o indivíduo precisa, se ele come
uma manga e joga o caroço no chão, sem cultivar, de uma forma

70 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 71


natural, cresce outro pé de manga, é fácil viver com o mínimo em atua diretamente na outra. Ou seja, são exemplos que ilustram que
um ambiente com essas características. Ora, até mesmo fisicamente só é possível pensar dessa forma “politicamente correta”, digamos
o clima e o ambiente modificaram nossos corpos, as pálpebras dos assim, quando você está em um local artificial e em uma posição
asiáticos são mais fechadas em virtude do vento polar da Sibéria bem favorecida em relação aos demais na base da pirâmide!
e da Mongólia, fazendo o corpo adaptar-se àquelas condições. Os Enfim, poderíamos ficar aqui horas falando de como o am-
povos da costa brasileira, principalmente os Tupinambás e os Tupis, biente influencia na nossa construção pessoal e como determina,
eram voltados à guerra, sociedades de guerreiros e caçadores, pos- sim, muitos aspectos de nossa cultura. Agora vêm esses limitados
suíam um estilo mais individualista e autônomo, a fartura da Mata e colocam tudo em um conceito de que “somos todos iguais” em
Atlântica costeira contribuía para isso, compare com os Incas, por número, gênero e grau e ficam desprezando esses tipos de observa-
exemplo, ou outras etnias andinas, como os Quechua e Aymara. O ções sociais interligadas com a natureza que fazemos.
terreno deles era pouco fértil, forçando-os a serem mais integrados
Ah! Mas o que nos motiva é que com esse tipo de discurso, por
e coletivos, a questão da autonomia individual é mais fraca nesses
conta de ideologias e um politicamente correto opressor, imperam
povos, porque era mais difícil o sujeito sobreviver sozinho, ele era
em todos os locais, nós podemos justamente tentar ir além e criar
forçado a viver no coletivo e para o coletivo se quisesse não perecer.
mecanismos de argumentação que desconstruam muitos aspectos
Uma menina vegana me recriminou por eu assumidamente dessa idealização do homem como sendo um ser uniforme e me-
gostar de churrasco (e mal passado inclusive!) dizendo que isso ramente cultural, como se a manifestação desta não tivesse relação
não era “natural”, que viemos ao mundo só para comer vegetais... com a natureza à qual foi submetida no processo de sua formação.
Eu retruquei que isso só era possível em locais que favoreciam Cada vez menos temos espaço no ambiente acadêmico e intelectual,
essa conduta, ou até mesmo isso seria uma tendência do homem mas se nos entregarmos, essas linhas de pensamento serão as únicas
contemporâneo por viver em grandes centros urbanos (locais e quem bebe da fonte do naturalismo cada vez mais será esquecido.
artificiais) que tornavam viável o sujeito ser vegetariano. Fato é
que sempre o homem preferiu carne, nós somos o topo da cadeia
alimentar, e além do mais, vá você aguentar o tranco do trabalho
no campo sem se sustentar com proteína animal, vá você se abrigar
do frio, em locais glaciais, sem a pele ou o couro deles, até mesmo
uma alimentação pesada baseada em carne. Você padece! É fácil
ser vegano comprando os alimentos no supermercado e tomando
suplementos industrializados, que garantem sustância.
E
O conforto alterou inclusive nosso biológico, o dente do siso
tinha a função de triturar melhor os alimentos quando não neces-
sariamente eram cozidos, o apêndice, que hoje não serve para nada
(só para ter apendicite) ajudava na digestão etc... E os milhares de
anos que vivemos na Era Glacial? Tínhamos de comer animais, pois
era praticamente impossível desenvolver a agricultura. Tudo isso
fica quase como um registro nosso internamente, não concordo em
dizer que tudo é biológico, mas também não concordo em radicalizar
que tudo seja construção social, há um equilíbrio em ambas, uma

72 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 73


27 sistemática nas guilhotinas (que se superaram às mortes da In-
quisição) que anos mais tarde iríamos assistir em escalas maiores
com as armas modernas, principalmente com seus filhos russos na
A R evolução Gloriosa Revolução de 1917.
Entendam que existem vários tipos de Iluminismo! Com essa
onda liberal que ganha mais espaço no Brasil, muitos educadores
No ensino de História comumente se atribui uma quebra da estão tentando priorizar o movimento francês ao invés do inglês,
esteira de acontecimentos, vista de uma forma linear ou progressiva, pois sabem que o liberalismo clássico escocês tem relações profun-
em que uma suposta estagnação de séculos foi rompida pela cisão das com o conservadorismo (não é por acaso que ainda existem os
abrupta da Revolução Francesa, em que, claro, sempre os jacobinos Liberal-Conservatives), o modernizar conservando é o equilíbrio, é
são elevados à enésima potência e pouco se fala da Gironda, ou até o centro, um balanço entre dois interesses que não precisam tentar
mesmo da visão monárquica, seja dos moderados ou dos radicais se anular. Bem, em tempos que precisamos discutir uma reforma
absolutistas. Nada é mencionado ou apenas citado sem uma aborda- política, trazendo a pauta parlamentarista para o debate, lembre-se
gem mais relevante, a Revolução Gloriosa inglesa, que mais de um do poder moderado dividido entre a casa da tradição e da ação, em
século antes da ocorrida além do Canal da Mancha, foi a primeira duas instâncias separadas que não concentram o poder praticamente
que tirou a totalidade do poder do soberano. Quando eu estudava absoluto nas mãos do executivo, do qual sabemos que por muito
no Ensino Médio nem tinha um parágrafo sequer mencionando o tempo se sobrepôs aos demais poderes e ainda nomeia seus agentes
evento na apostila, e um capítulo inteiro dedicado ao louvor jaco- nas demais casas (herança de um poder moderador imperial, reco-
bino. Nos cursos de Filosofia pouco se fala da escola escocesa, fui nheço, tomemos como exemplo os parlamentos ingleses, espanhóis,
saber um pouco na faculdade, bem superficialmente e sempre se belgas, holandeses etc. Você acha que um déspota como Nicolás
atentando aos clichês. Fala-se de John Locke, quase nada de Thomas Maduro da vida ainda estaria no poder se na Venezuela tivesse um
Hobbes e dá-se muito mais destaque à Rousseau e seus discípulos parlamento forte?). Mesmo nos EUA, os precursores do federalismo
tais como Maximilien de Robespierre. David Hume nem pensar! nos moldes da república romana, o congresso tem uma independência
Francis Bacon apenas pronunciam o nome. Embora a primeira maior, que se reflete até no sistema eleitoral, no qual uma minoria
revolução federalista tenha sido bem antes da Revolução Francesa, elege o presidente com o sistema de delegados (invocar Eleição
com os pais fundadores dos Estados Unidos (influenciados pela Direta como modelo de democracia plena é relativo). Assistimos
escola escocesa), muitos professores colocam a Queda da Bastilha ao congresso brasileiro agir como um parlamento algumas vezes
como o primeiro grande feito contra a Idade Moderna. (sempre quando a situação está insustentável), quando o próprio
Sabemos que o mundo contemporâneo começa a ser con- congresso presidido por Ulysses Guimarães cassou João Goulart
tado a partir deste evento, mas por que pouco se fala da disputa levando ao triste episódio de nossa História mais recente (um regime
dos Stuart e os Tudor na Bretanha? A importância do parlamento? militar), no impeachment do Collor e agora com a destituição da
Onde tradição e modernidade se coabitam em um modelo de so- Dilma, temos uma veia parlamentarista e relutamos em reconhecer.
ciedade que historicamente mostrou ser o mais prudente? Vejam O plebiscito de 1993 deveria ter uma reedição! Enfim, penso
a tirania de Oliver Cromwell, muito pior do que seus antecessores que não se deve radicalizar nem totalmente ao progresso desmedi-
monarcas! (E olha que vocês estão ouvindo isso de um hispanista do com uma forte rejeição ao passado, nem ficar atado à tradição
que historicamente sempre foi rival da Inglaterra!) A fase do terror combatendo qualquer tipo de mudança. Se na economia muitos
na França mostrou ao mundo um novo tipo de horror, a matança conseguem materializar e entender isso (mesmo com essa moderni-

74 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 75


dade do constante devir avassaladora), por que então não enxergar 28
isso nas instituições políticas também? Todos sabem que eu gosto
do positivismo, principalmente no que diz respeito à contribuição
de uma forma de ciência, mas o republicanismo presidencialista Desabafo 2
que rejeita uma alma identitária jamais poderá ser a total luz que
tanto os iluminados defendem. Tenhamos a cabeça na República e
o coração no Império. Desabafo enquanto acompanhava a votação no senado pelo
impeachment da presidente Dilma Roussef, 11 de maio, 2016.
O Brasil é o único país presidencialista do mundo onde o
executivo elege seus funcionários dentro do legislativo, são agentes
orgânicos nos moldes de um corporativismo e um estatismo forte.
Desde a Constituição de 1891, essa concentração de poder ao pre-
sidente, herança do poder moderador (que tornava o imperador
inquestionável e soberano) vigora. Eu entendo que não devemos
suplantar o reino das leis, e a democracia é o cumprimento delas.
Nestes tempos em que o senado se torna uma corte, penso que
necessitamos urgente de uma revolta política. Originalmente a
E Constituição de 1988 foi elaborada para um regime parlamentarista,
o plebiscito de 1993 deveria ter uma reedição. Voto distrital misto,
parlamentarismo e fim da reeleição, estas são minhas apostas. Basta
de mecanismos que favorecem a personificação e a utilização do
congresso para palanque partidário.

76 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 77


29 colonizador, tinham lá suas relações de dominação e competição,
em menor ou maior grau, dependendo de quem vê.
“Esse é o seu ambiente ‘natural’: o da comunicação, o do
L iberalismo naturalista X divertimento, o da burguesia como classe universal. Ela não pre-
cisa construir um pensamento, só precisa seguir com eficácia a
S ocialismo materialista estratégia da sedução, de aproveitar a onda de distorção da política
que as correntes utópicas decidiram surfar. Em suma, tal como a
soberania era, para Hobbes, a alma do Leviatã, este “liberalismo”
Não sei se seria pretensioso afirmar que o mundo é naturalmente é mais do que realista, é hiper-realista; é mais do que naturalista, é
constituído de uma competição que favorece ou dá embasamento a um combate constante a qualquer pensamento que queira impedir
teorias liberais, sejam estas político-filosóficas ou de mercado (o que o naturalismo”. – GUERREIRO, Antônio
erroneamente um senso comum coloca na mesma categoria da reação A questão pertinente é perceber que muitos dos intelectuais
e do conservadorismo), a meu ver, a essência do liberalismo estaria que se apresentam como sendo de vertentes socialistas ou marxis-
mais próxima da autogestão anárquica do que a elevação do Estado, tas e falam em nome delas se converteram a essa cultura difusa do
mesmo sendo este o “operário”, das correntes socialistas. Embora o liberalismo e aceitaram preencher as brechas vazias de muitas de
anarco-sindicalismo se intitule como socialista, suas reivindicações suas limitações, aceitando um papel de “representação” apenas,
se aproximam mais daqueles que pedem uma ausência de Estado, ora, essas correntes também glorificam esse novo realismo! Por conta de
o libertarianismo é um primo próximo do liberalismo. Por isso, esta, percepções como essas, que ouso dizer que a categorização “direita”
para existir, só precisa preservar uma posição “naturalista”, enquanto e “esquerda” não faz tanto sentido se tratando de partidos que pos-
a corrente socialista é um artifício, uma construção abstrata. As es- suem simbologias, discursos e bandeiras que parecem representar
peranças que ela anuncia representariam então um resultado contra um lado ou outro, mas que bebem de um realismo e reafirmam o
natureza, por isso têm de ser objeto de uma cuidadosa construção “naturalismo” na prática.
política e teórica, projetando-se num horizonte utópico.
Para mim, se o sujeito não for um marxista ortodoxo ou um
Por isso é que faz um tempo que não surgem grandes ela- capitalista aos moldes de um Taylor ou Ford, estar na polarização
borações teóricas e a sua afirmação, não apenas pela praticamente radical destas duas formas de pensar, as categorias direita e esquerda
extinção na Academia das correntes de pensamento que compõem não necessariamente seriam adequadas para representar esse sujeito
o embasamento para as suas observações e metodologias, princi- que se encontra no meio termo, ele seria híbrido, o que eu acho bom!
palmente nas Humanas, é que como ela é a vigente, que impera Pois talvez esse seja o caminho da pós-modernidade, a união de
na maior parte do globo (e tais relações existem também no seio um naturalismo realista com aspirações mais abstratas idealistas.
de países considerados socialistas, proporcionando um questio- Não mais nos deveria ser cobrada a uniformidade, de um lado ou
namento se tais relações não seriam uma espécie de extensão de do outro, somos a resultante destas, e também outras, desde que o
nossos impulsos, algo característico de como a vida se manifesta), muro veio abaixo os dois mundos opostos ao dialogarem fundiram
não necessita de uma literatura que tenha a intenção de “provar” suas essências, e na minha opinião o indivíduo pós-moderno é o
ou “viabilizar” esse sistema, pois ele sempre foi o que predominou, filho “mestiço” dessas duas grandes formas de pensar o mundo.
claro, com suas características peculiares de cada local do globo
e da forma com que foi assimilado por diferentes culturas, estas,
muitas, mesmo antes de serem alteradas e submetidas ao olhar do E
78 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 79
30 as linhas estruturais antigas praticavam. Existe sim, amigos, uma
forte rejeição à via sensorial, aquela mesma apontada em Tratados
de Natureza Humana do Hume, aponta aí que nossa racionalidade
Por um naturalismo humanista . seria a extensão dos impulsos internos e experiências sentidas ou
vividas. Penso que quando temos isso em mente, tendemos a nos
tornar mais tolerantes, pois compreendemos que a moral, a cosmo-
Há uma linha de pensamento, ou melhor, uma prática do pensar visão e a própria forma de racionalizar de cada um é distinta, pois
que leva ao conjunto de vertentes ideológicas que historicamente nunca existirá um padrão entre as pessoas. Se compreendermos isso,
sempre resultaram nas autarquias. No passado, muitas sociedades é a base da verdadeira democracia. Aquela em que a lei assegura de
eram comandadas pelos guerreiros, que nada mais eram do que os fato as diferentes formas de assimilação da realidade.
seres da natureza que materializavam seus impulsos internos por meio Não se pode radicalizar nem para as vias de abstração geral,
da via racional, extensão destes, e lideravam legiões ou impérios. Se que não levam à condição corporal, nem o contrário. Penso que
a Grécia foi um exemplo de sociedade racional, Esparta seria o lócus aqueles que tendem a transformar as pessoas em máquinas, pensando
onde a via “naturalista”, aquela de seleção natural mesmo, teve seu que podem programá-las e detestam qualquer forma de entendi-
expoente máximo (composta por homens e mulheres voltados para mento naturalista, não gostam verdadeiramente da nossa questão
a atividade bélica). Vira e mexe, oscilamos entre estas duas formas humana. Gostar da humanidade é entender que existem diferenças,
de sociedade, vejam, quando a razão da civis se concilia com essa processos de assimilação distintos, tempos de aprendizado distintos,
linha do erotismo, passa-se a ter as grandes extensões, Alexandre multiplicidade de habilidades e competências etc. Não somos uma
expandiu a Magna Grécia após uma certa imbricação dos filósofos folha em branco em que se escreve todo o conteúdo, claro que de
de Atenas com os hoplitas e legionários espartanos. certa forma sim, mas existem algumas coisas que são inerentes de
Há, inegavelmente, um movimento forte de rejeição a uma nossa condição. Ir contra isso é justamente pisotear nossa condi-
forma de erotismo, que seria aquela identificada com o resgate de ção humana. O berço do humanismo é quando entendemos estas
nossa condição comunal e de certa forma, primitiva frente o império questões e aceitamos as diferenças, as questões de identidade, de
da luz. Bem, escrevo esta nota justamente para ponderar os radica- como o sujeito se categoriza, seu gênero em termos de personalidade
lismos tanto dos que tendem a execrar tudo aquilo que representa etc. E assim criamos formas mais justas de inclusão e diversidade.
uma espécie de “natureza humana” que se aproxima da via anima- Não podemos ter um preconceito total às linhas do erotismo,
lesca, quanto os que invocam esta e beiram o despotismo. Por que, por mais que historicamente, se de uma forma desmedida, elas resul-
aos seres desta linha erotista, é incentivado o esporte, a atividade taram em autarquias e governos verticalizados que priorizavam os
militar e qualquer outra forma de culto ao corpo, mas quando ela “mais fortes” em relação aos demais, e deles, infelizmente, surgiram
também se une com a racionalidade, a filosofia ou certas formas escravidão, colonialismo, guerras etc. É preciso balancear entre as
de análise da sociologia todos ficam em alerta tremendo na base? demais, as questões de mérito são relativas, claro, concordo que
Claro que existem pessoas que utilizam essa forma de pen- não se pode comparar realidades e oportunidades distintas. Porém
samento para determinismos e visões eugênicas terríveis, o que o não podem ser axiomáticas e pretenderem abolir por completo os
próprio ensino e averiguação do naturalismo já desconstruiu ao que se destacam, os que por via de treino, estudo ou até mesmo a
longo do tempo. Não estamos mais no século XIX! Porém também fortuna do destino, conseguem ascender.
não se pode mais separar por completo o corpo da mente, como Um país precisa evitar que os grandes conquistadores do
Descartes apontou, vermos sempre as coisas por binômios, como passado, cheguem ao poder e governem de uma forma desmedida

80 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 81


(como no caso dos caudilhos latino-americanos, populistas de direita 31
ou esquerda, não importa, se devemos, e concordo com isso, evitar
os militaristas da direita, não nos empolguemos com os déspotas
“comandantes” da esquerda também). A racionalidade e a impes- S obre a I dentidade C ultural
soalidade devem governar, mas de um modo que não elimine por
completo nossa condição humana, procurando afastar-nos daquilo
que nos faz gente. Quando falo da metáfora entre modernidade Dentre as transformações sociais ao final do século XIX, te-
e tradição, em que é preciso ter a cabeça em uma e o coração na mos uma construção da identidade nacional, influenciada por ideias
outra, seria algo entre estas duas, um equilíbrio que não priorize a liberais, valores burgueses e europeus, fundamentado no discurso
totalidade de uma apenas. científico, o que traria uma legitimidade. Ocorre a supervalorização
do índio, como na obra O Guarani de José de Alencar, mas um in-
dígena retratado nos moldes europeus. Peri é católico e convertido
aos modos de vida ibéricos, uma característica que foi desconstruída
com o movimento antropofágico da Anta e do Pau-Brasil durante
a Semana de Arte Moderna de São Paulo, em 1922. Uma outra
característica marcante de nossa identidade cultural é que no seu
processo de criação, ou melhor, elaboração ou construção (que se
deu por um movimento racional, não espontâneo, uma identida-
de que foi forjada com a formação de um Estado Nacional) é que
sempre soubemos aquilo que não somos, ficando difícil descrever
E ou exemplificar uma “cultura nacional” ou algo que se relacione
com a questão do Folk genuinamente brasileiro, sabíamos que não
éramos 100% portugueses, indígenas e africanos, portanto nossa
identidade foi pautada na negação. Até hoje podemos descrever
facilmente aquilo que não nos pertence, mas fica um arcabouço,
um abismo ao tentar afirmar aquilo que realmente somos (apesar
de que no século XIX, que foi um divisor de águas, e nos anos 1930,
com influência do modernismo, nossa cultura nacional ter sido
elaborada com um projeto de nação).
Somos todos “emprestadores” – mesmo quando fazemos
parte de culturas “financiadoras”, como a francesa, a italiana,
norte-americana ou algumas orientais milenares. A ideia de uma
cultura “pura”, não contaminada por influências externas, é um
mito. Para qualquer Civilização, Viver é ser capaz de dar, de receber,
de Emprestar (Burke, 1997 : 3).
A rigor, nada pertence a um único lugar, pois tudo é passível
de adaptação aos interesses de grupos e às circunstancias cam-

82 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 83


biantes. Uma questão que fica é: em que medida as transformações abolicionistas, a questão do negro ficou de fora, sendo incluída apenas
ocorridas nos anos 1920 e 1930 incidem sobre a imagem que temos nos movimentos modernistas e com a Frente Negra Brasileira e o
de nós mesmos? – Trata-se de representações simbólicas construídas Patrianovismo, nos anos 1930, que tinham figuras como a de João
sobre uma brasilidade e seu legado intelectual. Cândido, da Revolta da Chibata e o próprio Zumbi, dos Palmares,
A nação é uma novidade histórica, pode-se dizer que o Estado como símbolos).
é um feito da Antiguidade (não apenas greco-romana, também chi- A ideia de cultura encontra-se também vinculada às transfor-
nesa ou da Eurásia) mas o Estado-nação é uma instituição recente mações ocorridas ao longo do século XIX. O termo se autonomiza,
na história dos homens. A nação remete-nos à consolidação e à ex- isto é, separa-se de sua conotação anterior, para constituir uma
pansão da modernidade industrial, ela se caracterizava como tal na esfera específica da vida social. A cultura reveste-se, porém, de
transição do comunal para o societal, a passagem da solidariedade outro significado ao associar-se à problemática do nacional, adquire
mecânica para a orgânica, em termos Durkheimeanos. É comum agora uma dimensão agregadora. Se os membros de uma população
encontrarmos nos escritos dos pensadores, tanto da segunda metade territorial se encontram separados pela distância geográfica, pela
do século XIX quanto os modernistas do século seguinte, a ideia de origem de classe, pelo fato de serem citadinos ou camponeses, um
que existem poucas nações no mundo (e estas só viriam aparecer mesmo conjunto deve envolvê-los para que façam parte de uma
com a unificação dos Estados), somente alguns países poderiam ser unidade comum. A cultura é a consciência coletiva que vincula os
classificados desta forma (as sociedades asiáticas em sua maioria, as indivíduos uns aos outros.
africanas, boa parte do leste europeu, o Brasil, estariam excluídos). A questão da identidade nacional esteve por muito tempo
O conceito nomeia uma realidade emergente. relacionada à raça. A tríade intelectual que pensava o Brasil durante
Podemos afirmar que a nação precede o Estado, e um povo o século XIX: médicos, engenheiros e advogados, estavam ligados
(nação) sempre procura o estabelecimento de um Estado para suas em suma maioria com os ideais racialistas, darwinistas e da euge-
representações e autonomia, porém no caso brasileiro a nação foi nia propícios da segunda metade daquele século (quando surgem
criada pelo Estado. Como boa parte das façanhas que tivemos, inclusive a Sociologia e a Antropologia). O mestiço é o produto do
precisamos criar elementos que em outras partes do globo ocorre- cruzamento das raças e possui os defeitos da herança biológica.
ram de forma espontânea e “natural”. Portanto, aqui os bancos não Logo, os defeitos e a degeneração seriam naturais do brasileiro. Essa
foram resultados de uma atividade comercial, mas prescindiram o característica esteve atrelada ao positivismo e o Evolucionismo Social,
comércio e o organizaram, e no caso da identidade cultural, com a os anos da primeira República (1889 – 1930) com um processo de
vinda da família real em 1808, o Estado deslocou-se de Portugal para embranquecimento da população, promovido por uma política de
o Brasil, porém jamais a nação, e foram os resquícios desse Estado, Estado que incentivava a imigração europeia e asiática. O estudo
encabeçado pela monarquia luso-brasileira após a independência de populações meridionais no Brasil levava influências eugênicas,
em 1822, que teve fundamental importância na elaboração de um como na ótica de Oliveira Viana, que realizou uma hierarquia das
“projeto de nação” (que se constituiu na verticalidade). raças, até mesmo entre os mestiços, colocando-os mais próximos
Essa criação de uma identidade contempla diferentes níveis: ao europeu como superiores aos demais caboclos. Para ele e muitos
geográfico, econômico, social e político. A esfera política é essencial, pensadores desse período, o problema do Brasil era a mestiçagem,
o Estado-nação configura um tipo de organização no interior do o Estado seria um reflexo do povo e da cultura, traços psicológicos
qual se exprime uma comunidade de cidadãos, a ideia de cidadania construídos em uma cotidianidade. Como se o brasileiro tivesse uma
é um dos elementos-chave na sua definição (e nesse processo, ao psicologia social atrelada ao campo, arcaica, da base da pirâmide
longo do século XIX, embora houvesse um esforço dos movimentos até as elites, Oliveira Viana encabeçou o projeto de modernização

84 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 85


do Estado Novo de Vargas e foi criticado inclusive por figuras como em seu projeto centralizador, não foi por acaso que Gilberto Freyre
Gilberto Freyre, inspirado pelo culturalismo de Franz Boas, que chegou a ser condecorado com as mais altas honras naqueles anos.
revolucionou de certo modo a questão racial, criando um mito da O Brasil, embora tenha passado pela elaboração de uma iden-
“Democracia Racial” em sua obra Casa Grande e Senzala. tidade nacional, construída e promovida pelo Estado nacionalista,
Viana acreditava no autoritarismo instrumental e aparelhado tende também a um universalismo, copia os moldes de ideologias
de Estado para unificar a nação frente o coronelismo. O que era do centro do mundo, o que o torna dependente, uma autonomia
muito contraditório, pois esse mesmo autoritarismo servia aos in- que não ocorre, não apenas em questões econômicas, mas na nossa
teresses oligárquicos. Sua defesa era em torno do corporativismo e forma de pensar e ordenar conceitualmente a realidade. Manuel
inclusive foi uma política de Estado, que havia sido incrementada Bonfim afirma que copiamos ou aprendemos do colonizador esses
na Era Vargas, influenciada também por movimentos modernistas, aspectos, gerando um certo conformismo que nos impede de ob-
que contribuíram para a elaboração propriamente dita de nossa servações mais acuradas (segundo o autor).
nacionalidade tal qual conhecemos até os dias atuais. É reeditada a temática racial transformando a negatividade do
Dessa forma que a política cultural e medidas de Estados se mestiço em positividade, um traço que todos teríamos em comum,
fundem, a tentativa de construção de nossa identidade por meio de independentemente de classe social, e essa mescla seria tanto em
um governo populista que não apenas organizou a modernização termos de fenótipo quanto em apropriações culturais e costumes
do Brasil, mas essas questões identitárias também. Porém sabemos do cotidiano.
que o nosso país sempre foi uma sociedade que “trocava de pele”, Essa construção de uma identidade incentivada pelo Estado é
mas não de alma. típica desse período dos anos 1930, que foi influenciado pelos movi-
A construção da identidade nacional está ligada à construção mentos vanguardistas da década anterior, como o futurismo, a questão
de um Estado Nacional, uma ideia do Brasil que transcende a nação. da cultura sendo colocada em discussão, bem como o surrealismo,
O que se permeou por um bom tempo (até os dias atuais) é a questão o dadaísmo etc. Movimentos estes que em muito influenciaram o
de o que nos unia era a mestiçagem, seríamos a resultante do mundo anarquismo, o comunismo, o fascismo e o nacional socialismo, que
nativo indígena, com o ibérico e o africano. A noção de “fusão” foi vinham com propostas de um resgate da questão de identidade e
mais decisiva do que simplesmente “mistura”, pois nesta última comunal, resgatando a mítica, o nacionalismo fundamentado no
ainda ficam resquícios que não se diluem, a fusão é a incorporação. Folk, a necessidade de identificar o que é genuinamente “nacional”
Assim, a história brasileira é apreendida em termos determi- ou não, e que seriam as características de um povo.
nistas. Quanto ao meio, predomina uma visão pessimista, na qual a
natureza é que suplanta. O dilema dos intelectuais foi compreender
aquilo que ficava entre a teoria e a realidade. O que seria nosso
caráter nacional, nossa peculiaridade. Para tanto, o pensamento
brasileiro vai encontrar duas noções particulares: o meio e raça (e E
a justificativa e idealização de muitos modernistas inclusive, em-
bebidos de certo bonifacianismo, era de que o meio era propício a
fazer as raças se fundirem). Porém há uma problemática nesse mito
da “Democracia Racial”, a questão de que ela minimiza o conflito e
mascara o racismo, tornando-o velado. Para Vargas, esse movimento
caiu como uma luva, nada melhor do que isso para integrar a nação,

86 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 87


32 Desenvolvimento Econômico e Social, o chamado Conselhão. Eu
não quero ser descontado para sustentar essa máquina complexa
que se tornou a aberração do Estado brasileiro! Se o empregador
S obre o FGTS não tivesse de pagar tanto imposto, a gente talvez pudesse ganhar
o dobro, o triplo.
Um empregado que ganha R$ 1.000,00 custa em torno de
Da série: Aquelas violações estatais na sua vida – meditando R$3.000,00. Por que o empregado não pode ganhar quase R$3.000,00
sobre aquilo que posso ou não fazer com o dinheiro que conquistei e o Estado que busque outra forma de se sustentar, começando
por meio do meu suor, reflito sobre a questão do FGTS. Poucos com os impostos básicos de grandes fortunas ou pessoas que não
são os países considerados desenvolvidos que adotam semelhante declaram? Ah! Grandes fortunas, leia-se milhões, não se o sujeito
estratégia em criar um “fundo” para que o Estado possa ter reser- tem uma casa própria e um carro conquistado com seu trabalho
vas (não basta a gente trabalhar até o 5º mês do ano só para pagar honesto e aos olhos do “Estado pai” ele é um filho que deve ser
impostos e sermos atrelados ao sindicato da categoria por obriga- extirpado e explorado.
ção, e quando o sujeito quer sair, tem todo um assédio moral em A utilização dos recursos do FGTS no pacotão do governo
escrever uma carta e implorar no órgão responsável para que não é polêmica. O ministro da Fazenda argumenta que um dos objeti-
descontem do seu ganho diário, típico de um país paternalista em vos da medida é aumentar a eficiência do uso dos recursos que já
que a atividade sindical surgiu no seio do Estado, e não como uma existem, dando mais direitos aos trabalhadores para lançar mão
organização para proteger o trabalhador dele). Muito deve ser revisto, dos recursos do FGTS. No entanto, no país, os recursos são presos
também a CLT, criada em um governo fascista, em 1943, no auge à caixa Econômica Federal com baixa remuneração.
do varguismo, ainda com resquícios do Estado Novo, inspirada na Menos Estado em nossas vidas! Por favor!
Carta di Lavoro italiana.
O FGTS é condição obrigatória para que o empregador possa
relacionar-se com os órgãos da Administração Pública. Foi implan-
tado durante a Ditadura Brasileira para que o Estado tivesse uma
reserva (aquele princípio socialista de que o Estado deve ser rico,
e não a população), podendo ser movimentado apenas em caso de
doença, compra de imóveis ou demissão. Ora, é o grande Estado E
paternalista interferindo na sua vida econômica, ele determina o
que se deve produzir ou consumir, e ele determina onde, quando e
como você usará seu dinheiro. Por que somos obrigados a ter essa
reserva na Caixa Econômica Federal? E se eu quiser usar um outro
banco, privado, para depositar esse “fundo”? Não temos a liberdade
de escolha. Faz 40 anos que essa medida do aparado estatal gigan-
tesco interfere em nossas vidas. Para tentar desacelerar a recessão
e fazer girar a economia, o governo decidiu recorrer ao dinheiro do
trabalhador. Dos R$ 83 bilhões anunciados pela equipe econômica
no pacote de oferta de crédito, durante a reunião do Conselho de

88 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 89


33 deve existir, desconsiderando toda a realidade prévia existente, com
discursos infames carregados de certezas e imagens concretas do
que é o “certo” e o “errado”, produzem a mais devastadora barbárie.
S obre a Utopia

Muito se fala em “utopia”, a famosa linha do horizonte que


serve para continuarmos caminhando, procurando alcançá-la,
mesmo cientes de que esta vai se afastando à medida que damos os
passos. Thomas Morus, teórico deste conceito, foi um grande crítico
da sociedade feudal de sua época, típico da Renascença e imbuído
de um espiritualismo (que não fica restrito apenas ao sentido reli-
gioso do termo), reformulou o materialismo de Demócrito e criou
o embrião que viria a ser a base do “destino manifesto”, o etapismo
e a filosofia da História.
Não apenas os diferentes socialismos foram influenciados E
por esta espécie de messianismo; as correntes que defendiam os
Estados corporativistas, encantadas pelo fascismo e o stalinismo,
se utilizaram desta técnica e moldaram parte do globo de acordo
com seus audazes sonhos mirabolantes (perseguindo outros utó-
picos que se opunham ao regime). A resultante dessa esteira de
acontecimentos foi o ressurgimento da extrema direita e extrema
esquerda (que coabitam muitas vezes) após a queda do muro e a
falência das grandes utopias.
Quando há uma intersecção da virtude e o prazer, essas
ideologias que habitam o campo do imaginário de seus militantes
e prometem paraísos terrestres, se fortalecem e voltam a ganhar
adeptos. Gosto de uma frase que representa o pensamento mode-
rado que prefiro seguir na atualidade, após ter permeado entre os
radicalismos por um tempo:
Se descreveres o mundo tal como é, haverá em tuas palavras
senão muitas mentiras, e nenhuma verdade – Leon Tolstoi.
Que a virtú repouse sobre nossa juventude nesses tempos
instáveis e faça produzir o estoicismo, o equilíbrio necessário para
a moderação das paixões, como nos alerta Epicuro e Sêneca, estas,
quando desmedidas, nos tornando escravos da ideia de mundo que

90 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 91


34 afinal foi por meio dessas novas classes intermediárias que surgiu
a burguesia mercantil, que mais tarde iria influenciar os ideais de
liberdade e fraternidade, que quando não deturpados por uma elite
O Distanciamento da Natureza intelectual materialista, cética , travestida de libertadora enquanto
querem aniquilar as camadas do meio da pirâmide deixando apenas
a verticalidade daqueles que são membros dos partidos políticos
Cada vez mais nos distanciamos da natureza, vivendo no legalizados e a imensa horizontalidade nivelada na miséria, que
urbano, no eterno lócus artificial resultante de uma racionalidade apenas enxerga as cores e siglas que profanam uma falsa igualdade,
imperante e devastadora, que confina seres livres em rebanhos indo quando na verdade são monárquicos na essência, fazendo ascender
ao abate, um formigueiro humano em que todos estamos aglome- déspotas que são idolatrados e vistos pela maioria como santos,
rados fisicamente, amontoados em pequenos metros quadrados, uma figura paterna, um paternalismo que reduz todo o poder nas
porém distantes espiritualmente. A eterna Babilônia! Como erram mãos destes megalomaníacos que flertam com o poder e tem uma
os romanos embebidos pela civis se expandirem e submeterem po- ereção com isso, incorporando a ideia de serem provedores, feito
voados que se encontravam na “barbárie” neste triunfo das “pedras os pastores da antiguidade.
sobre pedras”. Somos como prisioneiros que residem em cubículos Meus caros, aqui direi minhas impressões: como se enganam
onde dividem a mesma latrina! Não tem por onde liberarmos nos- estes supostos progressistas ao afirmar que a autonomia é típica da
sa testosterona, a composição hormonal é irrelevante neste local, metrópole! Por mais que haja uma polarização no campo (que por
tanto homens como mulheres têm a docilização de seus corpos e muito tempo foi alterada, ou simplesmente possui características
mentes, moldados a estarem estáticos confinados nos escritórios, peculiares da região em questão, por exemplo, o sudeste e o sul do
redigindo relatórios e mais relatórios que ninguém lê. No campo Brasil é de minifúndios, e embora haja figuras arcaicas do muni-
podemos ter uma casa a cada 200 metros, ou até mesmo separadas cipalismo, em muito se diferem dos clássicos coronéis das demais
por quilômetros, mas a unidade é mantida de uma forma em que regiões do país), a liberdade do sujeito é mais honesta quando este
a liberdade individual e coletiva muitas vezes não se confundem, está associado ao campo, onde há uma moralidade eleita sim! Claro!
o individualismo que produz o urbano é diferente de autonomia, Cobra a reprodução de um discurso aos padrões eleitos, mas seu
para muitos, falar em direitos individuais se tornou algo pejorativo, interior, sua atuação neste habitat, pode ter uma discrepância com
por causa de uma noção de coletividade insana, que obriga o sujeito as palavras cultuadas. Diferentemente da cidade, onde eu vejo que
a interagir o tempo inteiro e ter uma uniformidade de discurso, as pessoas não têm chance de tentar pensar por elas mesmas, por
pensamento e até essência, não basta sermos vigiados por câmeras conta de não poderem comparar com a natureza, elas não tomam de
em todos os quarteirões, a própria população, parcialmente poli- exemplo um comportamento animal ou as diferentes formas que a
tizada ou não, atua como milícias paramilitares que servem para vida se manifesta, elas são criadas pela imagem, e isso faz com que
monitorar os cidadãos. limitem tudo a categorias inquestionáveis, mesmo havendo uma
Na academia, mais precisamente nas aulas de Sociologia suposta diversidade, ela é falsa, bem como a liberdade neste local.
Urbana, o palestrante descreve o conceito de urbano estando ligado Tudo se resume a binômios: branco – preto, dia – noite, bom – mal,
à superestrutura e justamente uma suposta autonomia, que teria rico – pobre... Sempre um sendo antagônico ao outro. É como se
surgido com os burgos da Idade Média, ou como chamava Weber, o mundo bipolar ainda existisse, o dinamismo da sociedade pós-
os Oikos, havendo então o rompimento de um elo que ligava a moderna ocorre na prática, mas o discurso é de uma linearidade
nobreza com o vassalo. Pois bem, não descarto essa percepção, histórica, a incessante vontade de identificar estruturas, muitas

92 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 93


vezes imutáveis para estes seres, como se na vida não houvesse meio cidas ou que vive no campo pode ser muito mais autônomo e livre
termo, contradições e tudo fosse uniforme. de pensamento do que este que aprendeu por osmose praticamente.
Os criados pela imagem, imposta muitas vezes pois na arti- É aquele tal negócio, minha avó a vida inteira disse que chá de hor-
ficialidade da cidade não têm a chance de ver outros exemplos que telã é bom para a digestão, mas somente depois que uma indústria
compõem alguma categoria, por estarem distantes da natureza, se farmacêutica extrai a essência da planta e desenvolve pílulas suas
convertem em bestas! Gosto muito de um exemplo que li uma vez, propriedades são reconhecidas. Quantos sábios são esquecidos por
de um professor que foi fazer um experimento na capital paulista não serem legitimados por um discurso estabelecido?
e depois a mesma atividade em um município agrário do interior Daí vemos na questão política pessoas que se dizem liber-
do Estado. Ele lançou o seguinte desafio na sala de aula do primá- tárias, que não condizem na prática mediante suas atitudes com o
rio da escola urbana: descreva uma vaca. – Praticamente 99% das que pregam. A intolerância surge por conta desse vício em traçar
crianças desenharam aquela vaquinha Mimosa, com o sininho uma linearidade das coisas, então tudo se resume a binômios, PT
pendurado no pescoço, rajada, preta e branca, igual as que tem no ou PSDB, Socialismo ou Liberalismo etc. Como se estes não dia-
gibi do Chico Bento. Ao lançar o mesmo desafio na escola rural, o logassem entre si em muitos aspectos, é erguido um novo muro
professor se surpreendeu! As crianças descreviam vacas de diversas para a segregação de formas de pensar, que não estão (ou nunca
cores e tamanhos, uma delas desenhou uma mulher e disse que foram) exatamente dois pontos opostos em uma linha reta, a direita
para ele, vaca seria a sua vizinha, pois assim era chamada por sua e a esquerda são termos que cada vez mais não fazem sentido em
mãe, outra disse que vaca era o bife que se encontrava no prato de um mundo multipolar e contraditório, a meu ver é um crime esse
suas refeições... reducionismo, e ele só é possível por causa dessa artificialidade que
Ou seja, a diversidade de interpretações foi muito mais além, exclui mais formas de interpretação, justamente por não favorecer
não havia um padrão na representatividade daquele animal por mais linhas ou possibilidades de pensamento e argumentação. É
conta de serem crianças que cresciam em contato com diversas como se não existisse um sincretismo, não apenas religioso, mas
possibilidades de “vaca”, por terem a chance de comparar e assimi- dessas vertentes políticas também, então o cidadão vê um governo
lar as diferentes formas daquele objeto, pois tinham contato com que se apresenta como algo, mas nada mais é do que aquilo que ele
essa variedade na natureza. Não eram crianças que desde sempre, justamente condena, travestido com outras roupagens.
para elas, o leite vinha em embalagens adquiridas na padaria, não Enfim, concluo que cada vez mais essa racionalidade que
eram jovens que nunca viram um animal sendo abatido, e por isso transforma a natureza de uma forma indiscriminada avança aos
a carne sempre foi desossada e bem passada, sem aquele cheiro interiores das nações, o rural cada vez mais se torna extinto, e com
doce de sangue no ar. isso perderemos todo esse terreno fértil que poderia nos proporcio-
A limitação pela imagem, seja esta da TV ou qualquer outra, nar uma liberdade do ser, assim indiretamente uma liberdade na
acaba por produzir seres que podem até adquirir um conhecimento forma de pensar e ver o mundo. Seremos um planeta iminentemente
acumulativo ao longo do tempo, por terem a chance de ter contato urbano, no qual as relações de dominação continuarão existindo,
com o saber institucionalizado, mas jamais serão os verdadeiros sá- mais potencializadas do que nunca, em um futuro caótico estilo
bios da vivência. Esses indivíduos são reconhecidos e seus discursos Blade Runner ou Mad Max, com as pessoas ainda descrevendo as
legitimados por conta da nomeação atribuída pelas instituições que coisas por bipolaridades, sem nenhuma chance de observação de
frequentam, muitos repetem e possuem um raciocínio que sempre como a vida se manifesta e a diversidade que ela produz.
remete para fora de si, citando autores e teorias, mas não pensam por Toda essa introdução eu fiz para situar aqueles que tiverem
eles mesmos. Um jovem semianalfabeto das classes mais desfavore- paciência em ler este “manifesto” em relação a uma conversa que tive

94 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 95


com uma amiga pelo WhatsApp. O assunto começou com a questão des, uma construção não seria mais adornada, seria padronizada e
do sexo sem compromisso, e ela, sendo uma fiel representante da erguida pela simples função de abrigar pessoas, não iria além disso,
moralidade cristã e dos bons costumes, disse-me ser contra porque uma casa não teria mais enfeites, as roupas seriam estilizadas para
a relação física entre dois corpos serviria única e exclusivamente a função de vestir apenas, ouço isso direto, para eles a questão da
para a procriação, se não tivesse uma lógica, não deveria ser pra- memória é balela, viveríamos no 1984, de George Orwell, seria
ticado. Irritado, não apenas por conta da opinião dela, mas ciente proibido ter sentimentos pelas coisas ou pelas pessoas. Tenho medo
de que seria difícil conseguir convencê-la a se entregar totalmente dessa suposta “ditadura da razão”.
no primeiro encontro (risos), começamos os dois a argumentar sob Menina – Não, eu acho que essa liberdade em atribuir sig-
pontos de vista distintos e, quando percebi, estávamos filosofando nificado nos leva à ruina.
sobre o conceito da vida.
Eu – A destruição da significação acabaria com a Arte, com a
Deixo aqui a conversa, que acredito que seja de um conteúdo poesia, com a música, se você for parar pra pensar, pra que servem
bacana para quem gosta de Humanas em geral: essas coisas, qual a utilidade concreta... Nós não vemos as coisas
Menina – Mas é perigoso deixar o instinto solto assim, porque só pela utilidade concreta, e isso é bom, porque nos alimentamos
ainda bem que nossa consciência nos ensinou a reprimir as partes de coisas abstratas também. A Arte dá significação para nós, ela é
mais primitivas dele. capaz de nos fazer refletir sobre a vida, capazes de dizer quem nós
Eu – Mas a razão em excesso, como disse Goya, produz somos, são o registro de culturas, e pensamentos de uma época,
monstros, e essa mesma razão que compõe sua consciência, que nós nos vemos nas coisas, desde o homem primitivo, que criou uma
transforma a natureza, e olha o que ela faz! Cria ambientes artificiais, machadinha para cortar lenha, ele a enfeitou, fez desenhos em seu
e nós humanos desprezamos nossa condição animal, reprimindo cabo, a utilidade daquele instrumento era cortar lenha, mas ele fez
cada vez mais os impulsos ao ponto de praticamente os extinguir. disso algo a mais! Tem sua identidade naquele objeto. Nós somos
Isso é horrível! assim, lutar contra isso é opressor, é como o sapatinho da chinesa,
da gueixa, que força o pé a ficar igual. O mundo é desigual e eu sei
Menina – Sexo se trata de reprodução, não de prazer!
que isso é triste, mas a natureza é assim também, isso é uma coisa
Eu – Não acho, o prazer está nele, assim como no alimento, mundana, podemos e devemos lutar para reduzir a desigualdade
no sono, são necessidades básicas, que fazemos não apenas para desenfreada, mas é inocência achar que ela irá se extinguir por
saciar nossa vida, aí está a razão de uma forma positiva, se fosse completo. Veja só, na floresta, uma árvore que tem o tronco mais
assim, bastaria comer arroz e feijão todo dia e pronto, mas não é grosso absorve mais luz e se fortalece mais do que a que tem o
assim, comemos com os olhos, estimulamos o paladar a sabores e tronco mais fino, obrigando a de tronco mais fino a trepar nela
combinações distintas etc. Tudo isso está ligado ao prazer, com o para receber a luz por meio dela. Um homem que nasce baixo e
sexo não seria diferente... fraco, no ambiente natural não consegue viver igual um homem
Menina – Sim! Mas tudo na sua função, não vejo por que que é alto e forte, mas se ele tem alguma habilidade por meio da
temos de fazer essas coisas além da real utilidade delas. razão pode transformar a natureza de uma forma que garanta sua
Eu – Mas esse tipo de pensamento, é reducionista... Ele des- sobrevivência, uma vez que na natureza ele tende a perecer. Isso são
trói a questão do significado, nós nos diferenciamos dos demais coisas da vida e como ela se manifesta! Eu sei que muitas coisas são
animais porque atribuímos significação às coisas, eu gosto disso! injustas e tristes! Mas infelizmente é assim. O mundo não é boniti-
Tem vários materialistas históricos que querem acabar com todos nho como na Alice, e os homens, bem como os demais seres vivos,
os significados, para eles as coisas só existiriam devido praticida- não são bonzinhos! É um mito esse negócio do Bom Selvagem, os

96 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 97


ameríndios se escravizavam entre eles, os africanos também seja por Menina – Pode ser... Mas o que isso tem a ver com a questão
questões antropofágicas, bem como econômicas, principalmente os do sexo?
que viviam em civilizações, os Maias e Aztecas faziam isso com os Eu – É que há um desprezo do erotismo, desde o Ilumi-
Mexicas, os Incas vinham até o Brasil capturar os Tupis e levarem nismo pra cá, nós elevamos a razão como sendo a única coisa do
eles para construir suas cidades... Muitas destas tribos subjugadas homem, desprezamos a questão corporal, somos cartesianos, como
pelas dominantes se aliavam aos europeus para derrotar quem os se pudéssemos separar corpo e mente. Por isso eu gosto muito da
escravizavam, as pessoas só enxergam a dominação do branco para figura mítica do Centauro, cabeça de homem e corpo de cavalo, ele
com o nativo, mas não veem que isso ocorria entre os próprios na- representa o que deveríamos ser, um equilíbrio entre o homem e o
tivos e entre os próprios brancos também, por anos várias etnias animal, não apenas a elevação de um e exclusão do outro...
da Europa foram escravas dos romanos... Por isso não gosto de ver
Menina – Faz sentido, nossa! Vamos conversar pessoalmente...
as coisas por binômios! Reduzir a duas ou meia dúzia de categorias
apenas! Esse “coitadismo” e vitimização é muito limitador porque Eu – Beleza, gostei do papo, vamos marcar.
se confunde com militância, não vê o real muitas vezes. O mundo OBS: Esse texto eu fiz com a intenção de mostrar minha
é cruel! Por isso existe a metáfora da bíblia, de Adão e Eva, Deus opinião referente a questão da Biologia nas Ciências Humanas.
tirou o paraíso dos homens, portanto ele não existe e nem nunca Não existe mais essa matéria no curriculum das faculdades, nem
irá existir, e tentar erguer um paraíso baseado na sua percepção de mesmo Antropologia Física e mal falam de Ecologia Humana. A
“bem”, como fazem os utópicos de ideologias praticamente ortodo- academia é prepotente e categoriza esses primeiros pensadores,
xas, isso sim é ser opressor! É ir contra a natureza! como ensaístas, como se o que fizessem fosse mera literatura ou
Menina – O homem é cruel, mas os animais não são cruéis uma tentativa de ciência não legitimada pelo fato de muitos serem
por opção, vaidade ou orgulho, só por necessidade! de outras áreas. Há um desprezo pela nossa condição biológica até
mesmo na hora de escolher os autores a serem estudados, e eu sei que
Eu – Como não? Já viu um gato matar um rato? Ele não
no passado, o discurso médico distorcia o sociológico, produzindo
mata só para comer, ele tortura, brinca com o rato e depois deixa
o determinismo biológico e até visões racialistas e de eugenia, mas,
ele lá jogado. Minha cadela lá no sítio adorava me trazer lebres
cabe a nós estudar esse hibridismo de uma forma mais democrática,
do brejo, sem nenhum motivo, ela não fazia isso pra comer, e sim
justamente para desmitificar tabus e reduzir as diferenças uma vez
para me agradar! Olha só o prazer e orgulho na matança, que foge
entendendo as diversidades de corpos e mentes, pois tratar todos
à mera necessidade de se alimentar! E há outros exemplos: O João
como uma coisa única, uma unificação do ser, além de ser algo
de Barro, se a esposa dele o trai com outro pássaro, ele a fecha na
distante do real, só possível nesse ambiente artificial, não reduz
casinha deixando-a morrer de fome e sede, ora, isso não é vaidade?
o conflito, ele o mascara, e este continua existindo de uma forma
A viúva negra, após a relação sexual, mata o marido, um grupo
brutal e desumana, travestido de igualitarismo, e as pessoas agem
de chimpanzés pisoteia até a morte outro chimpanzé da mesma
de forma primitiva, pensando serem civilizadas.
espécie, um semelhante a ele, se este invadir seu território sem per-
missão, os cavalos selvagens, que andam em bando, isolam aquele
que desobedece ao líder, passam a ignorá-lo e ele fica relinchando
pra ser integrado de novo como sinal de submissão ou desculpas,
as formigas possuem hierarquia, divisão de tarefas, possuem uma
E
“realeza”, a rainha etc. Essas coisas não são apenas dos homens.

98 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 99


35 36

Motiva Ação Natureza Humana

Somos movidos pelas nossas paixões, embora os federalistas O conceito de Natureza Humana é a base do Humanismo.
afirmaram que os interesses pessoais poderiam ser danosos aos Somos social e culturalmente diferentes, mas existe uma condição
comunitários, é bem verdade que a Constituição que foi resultante que não se altera. Quando em nome de um construtivismo social,
de suas aspirações, assegurava a liberdade individual acima de uma engenharia social que visa moldar essa condição para criar
qualquer coletivismo imperante que aniquilasse a subjetividade “o novo homem”, um ser pautado em questões políticas apenas,
da personalidade única que temos. O julgamento coletivo não pisoteamos uma condição humana e somos levados à barbárie. Os
difere do linchamento, quando a vigilância saiu da verticalidade e defensores da Natureza Humana acreditam que prejudicar outro
passou a ser horizontal, realizada por qualquer membro, mesmo semelhante não é um mal apenas para o que sofre com alguma
sem poder para isso para manter uma ordem ou status quo, como moléstia, ao que é assassinado ou escravizado, mas para aquele que
afirma Foucault, algo de muito terrível disfarçado de cumprimento pratica também. Em nome de projetos políticos que desprezaram
da norma ou das leis ocorre. esse conceito, vimos as maiores barbáries ocorridas na História. Por
O princípio básico de liberdade é a propriedade, não esta muito tempo ataca-se esse conceito no meio acadêmico, pois isso
sendo apenas um imóvel ou a posse da terra, é muito limitante ver seria um empecilho aos projetos ideológicos que compõem a maior
apenas por essa ótica, mas o direito à individualidade e o prota- parte das linhas de pensamento nos ambientes intelectuais. Não se
gonismo de sua vida! Um coletivo não pode ficar decidindo sobre esqueçam de que o próprio Marx disse algo em relação à Natureza
a privacidade de seja quem for, uma vida não pode ser assistida e Humana, em que o trabalhador alienado com funções repetitivas
aberta para estas observações participantes do coletivo. Quem faz na fábrica se distanciava de sua condição. Hegel propôs a dialética
isso, seja o Estado ou as instituições (ou pessoas), compactuam (o homem é aquilo que ele é, mas também aquilo que ele não é).
com a pior das ditaduras. A liberdade de pensamento é condição A Natureza Humana não é um conceito engessado e pura-
sine qua non para a subjetividade do ser, a progressão e a vida em mente aristotélico, não é metafísico apenas, os que o veem atrelado
sociedade, um coletivo composto por várias liberdades individuais única e exclusivamente a isso tem uma ideia superficial. Hannah
e não devorador das mesmas. Arendt cunhou o termo “Condição Humana”, que a meu ver é um
Qualquer unanimidade é burra, é cômodo se perder na massa, complemento à Natureza Humana, não precisamos ser forçados a
reproduzir discursos sem antes fazer um julgamento, sempre foi escolher entre um ou outro, ao mesmo tempo que somos diferentes,
mais fácil marchar em compasso sem pensar, a rítmica hipnotizante também existe algo que nos une.
dos tambores e das botas a priori pode ser o mais cômodo, mas Chega de difamação dos que adoram reproduzir o termo “de-
para cada cem pisoteadores sincronizados, há um indivíduo livre terminismo”, atribuindo caricaturas pejorativas ao que consideram
que, não importa o que aconteça, sempre estará acima do rebanho. esse conceito, a artificialidade pode imperar por um tempo, mas não
podemos deixar de lado as questões que envolvem a natureza. Por
que não temos matérias de Sociobiologia nos cursos de Humanas?
E
100 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 101
37 38

P residencialismo de C oalizão S olidariedade M ecânica

Estava dando uma lida sobre o sistema presidencialista, Existe um tipo de solidariedade típica do comunal, aquela
somado uma entrevista com o ex-presidente FHC (falando como presente entre os que exercitam uma verdadeira conexão com seu
sociólogo) e me vieram algumas questões em mente, que desde já companheiro, que eu reconheço que tendem sempre a existir apenas
afirmo serem apartidárias, somado ao fato de que entraremos nesse nos que se reconhecem semelhantes... É uma pena. O imperativo
assunto nas aulas de política. categórico de Kant talvez seja idealizado nessa universalidade
Passamos de um presidencialismo de coalizão, ou seja, quando cooperativa. É possível exercitar isso! A verticalização pode não
os partidos se juntam em função de uma agenda para um presiden- necessariamente eliminar o apoio mútuo presente nas sociedades
cialismo de cooptação, com os partidos se juntando para manter o pré-civilizacionais. Como professor eu tenho exercitado muito essa
poder. Nesse sistema você é forçado a fazer isso, o presidente é eleito empatia, que consiste em não segregar o que é diferente de você,
com 50% mais um, mas o seu partido não, no máximo consegue como muitos falsos igualitários fazem. A questão é: como manter
20% do congresso, isso força necessariamente um acordo. Enquanto a solidariedade comunal e preservar a impessoalidade também?
esse tal acordo pode se organizar em torno de um programa, até Muitas culturas conseguem fazer isso, vamos aprender em vez de
que tudo bem, mas quando ele é única e exclusivamente “manter continuar com “aos meus camaradas tudo, aos demais o inferno”.
o governo”, o poder pelo poder, fortalece o clientelismo e se troca É preferível a indiferença à avalanche de opressão da engenharia
um projeto de nação por um de poder. O sistema está viciado e humana.
insustentável.
A França passou por uma situação parecida, estava ingovernável
(com rachas de regiões como Vichy durante a Segunda Guerra e a
beira da fragmentação), veio Charles de Gaulle e colocou ordem na
casa, mas são outros tempos, apostar em um general ou qualquer via
autoritária não é o caminho. Fica a pergunta: como vamos colocar
em ordem o congresso e as próprias instituições que o compõem E
fazendo o jogo democrático sem perder as importantes conquistas?
A meu ver só com uma via horizontal que não (ou ao menos não
tão fácil e dócil) seja cooptada e atrelada ao Estado. Seria a vez do
parlamentarismo? Enfim, continuamos a ver o teatro melodramático
que é esse cenário, de pedalas em pedalas, operações e CPIs que
compõem esse espetáculo assustador.

E
102 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 103
39 liberalismo levam estas cores em seus pendões nacionais, tanto os
EUA quanto a França, acrescido do branco, modestamente resistente
entre essas duas cores vivas, dando uma conotação de paz.
C ores Que o azul e o vermelho se entendam e resolvam questões
nacionais que deveriam estar acima de seus simbolismos.

É engraçado como o simbolismo das cores exprime ver-


tentes e correntes de pensamentos que permanecem por séculos,
trocando de roupagem, mas com suas essências preservadas. Os
clássicos hegelianos poderiam muito bem ser representados pela cor
azul, já os jacobinos com seus gorros vermelhos influenciaram os
socialistas do século XIX em adotar essa cor (e a foice e o martelo
também, eles copiaram de um batalhão da Revolução Francesa, no
qual o martelo representava os trabalhadores da indústria e a foice
os do campo). Eu sempre gostei da combinação preta e vermelha,
do anarco-sindicalismo e também do falangismo (ambos primos
próximos, embora tenham se posicionado em barricadas opostas
pela deturpação dos marxistas em levar o primeiro às suas fileiras,
E
e dos monarquistas se apropriarem deste último). Os EUA sempre
tiveram suas cores inimigas: o perigo “negro” nos anos 30 e 40, que
seria o fascismo (devido às camisas negras), o perigo “vermelho”
na Guerra Fria e nos dias atuais, o perigo “verde”, que representa o
islã, por ser uma cor comum em suas bandeiras.
Enfim, passados os radicalismos, cada vez mais tenho me
identificado com ideais liberais, que aos olhos de muitos podem
ser vistos como os “azuis”, mas afirmo que só isso não basta, há de
ter uma união com muitos aspectos do “vermelho” também. Vejo
nas ruas um mar de gente vestindo azul ou vermelho nesses tempos
incertos atuais, quando o encanto pelas cores que representam suas
barricadas volta à tona. Os tucanos da cor do céu, os da esquerda
com a coloração viva do sangue, os mais retrógados de verde como
as matas ou dourado. Pois bem, eu prefiro vestir cores neutras, pois
não quero privilegiar um mais do que outro, mas para representar
a união que tanto desejo fiz uma bandeira anarquista, que substitui
o negro pelo azul, assim simbolizando a vontade de menos Estado,
com uma união do pensamento hegeliano com o marxista, como
defendia ferozmente um velho professor. Ora, os países-símbolo do

104 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 105


40 é mais tão original como o avô e assim por diante). Estas formam o
que poderíamos chamar de “comunidade”, na qual a solidariedade
mecânica (Durkheim, 1974, p.52) impera, se sustentando por laços
O Comunal e o Societal no Ingaí de sangue e afinidades.
No Ingaí, tais relações baseadas no “espírito” vinham com
um agravante: a questão do apadrinhamento e os “agregados” que,
No Ingaí, bairro pertencente ao município de Santana de com a queda do Império, descentralizaram o poder das famílias
Parnaíba, onde cresci, existem relações mistas, de orientação ver- dominantes e produziram uma comunidade de células dissipadas,
tical e horizontal, são os vínculos da vida mental, que compõem o agricultores que viviam da subsistência sem necessariamente esta-
que poderíamos chamar de Ecologia Humana, uma comunidade rem cooptados ou atrelados por famílias dominantes (os chamados
de bens e males, um plano de desenvolvimento cadenciado. “homens livres”) como na época do reinol e todo o século XIX.
Na passagem do modo de vida rural para o urbano, há uma Nestas famílias, o patriarca provinha do movimento das
ruptura dos laços que organizam essa sociabilidade. Também há bandeiras, sendo quase que sempre o ibérico, português ou paulista
as atenções que transcendem as fronteiras da comunidade para branco que em suma maioria possuía esposas nativas, seus filhos
uma universalização, processo cada vez mais protagonizado pela mamelucos seriam os primeiros habitantes originários da terra, um
transição do “natural” para o arbitrário, gerando uma certa “crise embricamento entre estes dois mundos que produziu a característica
de identidade” entre os membros da comunidade que não mais se do habitante parnaibano. A primeira elite do local era mestiça, e lá
reconhecem no outro, seja pela distinção ou semelhança. se falava a língua geral até a proibição do dialeto nos locais públicos
O bairro do Ingaí parece emergir sob este paradigma, con- pelo Marquês de Pombal e a substituição pelo português.
trapondo-se e coabitando entre os dois extremos de uma oposição Nos últimos 50 anos, as relações societárias introduzidas pela
binária: comunidade x sociedade, e essa alternância que existe modernização do município seriam caracterizadas pela questão da
simultaneamente na vida cotidiana modifica os homens, seus sociabilidade intermediada por um domínio público. O Estado de
temperamentos e cosmovisão, produzindo seres que confundem a Direito como ente moderador destas, que começaram a ter seus
vontade “natural” (do comunal) e “arbitrária” (do societal) como primórdios no local durante a construção da Usina de Parnahyba
nos termos do próprio autor alemão estudado. (atual Barragem Edgard de Souza), primeira usina hidrelétrica da
Estas vontades, ao sofrerem alterações, conservam algumas empresa canadense Light and Power no Brasil, destinada à geração de
e criam novas, são unidades biológicas dirigidas pelo instinto, energia às margens do Tietê, inaugurada em 23 de setembro de 1901.
destinadas à autopreservação e proteção do clã, como observado O Estado administrador e ordenador do “racional legal buro-
em qualquer outro ser vivo. A soma destas vontades produziria um crático”, já presente na capital paulista, passou a anexar as regiões
espectro daquilo que seria natural ou artificial ao homem, e a soma que viriam ser o que conhecemos como “Grande São Paulo”, fator
destas ambíguas que se complementam e norteiam a população do relacionado com a questão da modernização e industrialização do
local produz um apoio mútuo e uma hierarquização das necessidades estado, como a construção da linha férrea e a estrada Sorocabana,
representadas e embutidas por personagens do bairro, que cumprem com a ajuda de mão de obra imigrante, fez da região de Osasco,
estes papéis, partilhando o material tanto psíquico quanto físico Carapicuíba e Quitaúna grandes produtoras de tijolos de barro (as
dos membros da comunidade (embora tenham uma origem mul- primeiras fábricas de blocos foram neste local), acelerando essa urba-
tiétnica). As diferenças culturais se complementam formando um nização que viria a se intensificar com a vinda massiva de retirantes
corpo único e vão desaparecendo por entre as gerações (o neto não e migrantes de outras regiões do Brasil durante a década de 1960.

106 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 107


No caso de Santana de Parnaíba, vizinha às demais regiões páginas e mais páginas moldadas a darem sentido, fazendo o autor
citadas (que no início do século XX era uma região única), a ascensão se pautar para que tenha uma harmonia de um começo, meio e fim.
não se deu por meio da industrialização, o município foi na esteira A fé no paradigma só começa a ser abalada quando o nú-
dos acontecimentos e indiretamente acompanhou uma explosão mero de contradições e anomalias cresce acima da média (pois o
demográfica, sendo habitada pelos operários que trabalhavam nas dogmatismo não consegue resumir todo o “real”) ficando cada vez
cidades próximas, que com o término da linha férrea e da indústria, mais manifesta a incapacidade de lidar com elas. O que fazemos ao
tornar-se-iam trabalhadores rurais de subsistência. escrever, é limitar a realidade, produzindo afirmações, mesmo estas
A modernização mais considerável da região ocorreu na em forma de “dúvidas”, a hipótese científica vem carregada com o
transição dos anos 1970 para os 1980, com a construção de condo- olhar do autor, e não há ciência que se livre disso, quando se coloca
mínios como Alphaville e Aldeia da Serra, por iniciativa privada algo na lente do microscópio, as conclusões surgem para justificar
de Takaoka, e, como consequência, o bairro Chácaras Boa Vista, a ideia que querem provar. Porém, estar consciente disso já é um
conhecido como Ingaí, passou a ser loteado, atraindo pessoas da tremendo passo para não produzirmos uma literatura enviesada
capital paulista que tinham pequenas propriedades para passar o sempre com o intuito de esclarecer algo e recrutar adeptos, feito
fim de semana. A partir dessa transição é que temos os primeiros um partido ou congregação. Fazer Sociologia não é apenas olhar as
passos de uma alteração do comunal para o societal, porém uma relações de produção, é também isso, claro, mas temos de também
modernização que preserva resquícios da tradição; o “modernizar tentar fazer uma genealogia da psique que permeia os indivíduos
conservando”, que traz consigo um holismo, a dualidade de se (como uma genealogia da moral em Nietzsche). A ciência materialista
encarar os fenômenos naturais, transpostos à condição complexa não consegue penetrar nas abstrações que só a filosofia consegue.
quando se chega à estrutura. O inconsciente é um saber que temos, mas não conseguimos
Um dos intuitos também de produzir esta tese é refutar al- ter a consciência de que o temos, o grande desafio para o pesquisador
gumas afirmações e convicções reproduzidas por muitas pessoas é procurar identificar o que é intencional por meio da simbologia
na academia, que ouso humildemente relativizar. A primeira seria que compõe as atitudes e os discursos nas entrelinhas que podem
a ideia de que o sujeito, vindo de uma solidariedade mecânica, não ser de uma forma proposital ou não. O materialismo tende sempre a
desenvolveria uma visão complexa, um raciocínio que iria além desprezar a condição biológica e o lócus que influencia diretamente
do simplista, por este não ser de uma sociedade em que haveria em nossa condição psíquica e física, eles alegam que as correntes
a presença da estrutura racional legal (o urbano industrial para vindas de uma suposta biologia são deterministas, mas ao assim
ser mais específico). A natureza também é uma fonte (primária) fazer, martelam de vez o prego e enraízam concepções predeter-
de assimilação conceitual que faz com que sejamos ainda mais minadas da mesma forma. Não consideram a máxima O homem é
profundos em diversos aspectos. seu meio, como se houvesse uma padronização de territorialidade
Outra consumação inquestionável e inexorável seria de que a no globo, e um sujeito da Antártida fosse exatamente igual ao das
Sociologia é única e exclusivamente materialista, no melhor estilo florestas tropicais ou o do Saara, nunca levando em conta a questão
de Demócrito, pisoteando o filosofar pré-socrático e os filósofos da individual e suas peculiaridades.
natureza que não pensavam por meio de uma institucionalização do Na chamada “barbárie” (termo usado por Lewis Morgan
conhecimento, eram fragmentados, deixando pequenos parágrafos e ao descrever um evolucionismo positivista e darwinista, em que
conceitos que poderiam ser definidos metaforicamente com situações a condição agrária estaria na idade da infância, a barbárie, e um
cotidianas, e não um romance ou descrição racional iluminista de dia chegaria a civis ou “civilidade”) faz com que seus indivíduos
sejam guiados por outros elementos, lá não há o tempo estrutural,

108 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 109


e ele não é fatiado e demonstrado por meio de números. O fato justificavam a industrialização, isso muito se deve ao etapismo,
de se conduzir pelas estrelas, por exemplo, faz com que o sujeito mecanismo essencial para se fazer a “revolução” nas sociedades
pense acerca do universo, tendo a oportunidade de contemplar um urbano- industriais, pois é o lócus do capital. O funcionalismo é uma
céu estrelado, isso produz neste indivíduo questões existenciais vertente que faz muito sentido e contrapõe o desenvolvimentismo e
que passam despercebidas ao homem do lócus artificial, que mal o fazer sociológico voltado às questões exclusivamente econômicas.
consegue avistar a lua cheia em um dia sem nuvens. Observar a Não é à toa que muitas sociedades faziam pactos de sangue, pois
organização hierárquica das formigas e abelhas, relacionando com isso criava anticorpos e preservava seus membros, a necessidade
nossa função, saber identificar pelas sensações do vento a mudança de se enterrar os mortos ou queimá-los para a putrefação não
de clima. A própria noção de profundidade, um sujeito do litoral contaminar e gerar doenças... O homem faz das necessidades de
por exemplo, consegue avistar a linha do horizonte e os barcos sua autopreservação um rito, cria mitologia, festividade, como os
desaparecendo, ele visualiza na prática a forma oval ou em esfera pactos, funerais e tantos outros. Mas tudo tem uma função, feito o
que é nosso planeta, nas montanhas verdejantes, a pessoa naquele todo integrado de uma montanha verdejante.
meio consegue diferenciar e enumerar diferentes tons de verde, que
aos olhos do forasteiro parecem uma coisa uniforme, reconhece os
sons dos pássaros e sabe nomeá-los, categorizando e descrevendo
sua funcionalidade ao meio ambiente, como um todo integrado,
no qual cada ser vivo complementa o outro, mantendo sempre um
equilíbrio, uma relação de interdependência, como uma orquestra
conduzida pelo macrocosmo que atua diretamente no homem e
seu microcosmo.
Claro que é possível desenvolver percepções semelhantes
com os elementos do urbano dadas as devidas proporções (o apito
do trem, as badaladas do sino da igreja matriz...), mas o societal E
sofre uma mutação abruta pela racionalização intensa do fator
humano, alterando o lócus, toda a complexidade da natureza passa
a ser reduzida a limitações que precisam da legitimidade do saber
institucionalizado. Na vivência é o empírico e a observação da
vida se manifestando que lhe produz teoria. No societal urbano,
ao invés do homem conseguir ver a linha do horizonte, o pouso
de uma garça ou urubus planando e rodeando uma cordilheira,
se deparam com uma parede a cada 100 metros (ou até menos) e
vivem confinados nelas, influenciando na sua noção de espaço e
profundidade, que reflete na sua forma de interpretar e descrever
o real. No comunal existem relações mistas (bem como no urbano)
de orientação vertical e horizontal.
Os demais trabalhos a que tive acesso, sobre a questão co-
munal, em suma maioria vinham carregados de ideologias que

110 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 111


41 falangistas de Franco eram democratas, bem como os milicianos
do PCE.
Uma vez vi uma polêmica sobre uma questão de uma prova
O s 80 anos da do MEC, na qual perguntavam para o aluno quais países haviam
sido totalitários no século XX. Uma garota respondeu: URSS e Es-
Guerra C ivil E spanhola panha. O professor considerou meio certo, afirmando que apenas a
Espanha havia sido e a União Soviética era uma “social democracia”.
Mesmo Hannah Arendt, em As Origens do Totalitarismo, afirma que
Não podia passar esse 18 de julho, data em que a Guerra a experiência antidemocrática na Espanha (franquista) podia ser
Civil Espanhola completa 80 anos, sem deixar meu parecer sobre autoritária, mas não era totalitária como na Alemanha ou na URSS,
esse conflito em que meu abuelo participou. Das diferentes inter- era uma ditadura sim, mas não se configurava no totalitarismo (até
pretações sobre a origem do conflito, ouso discordar daquela que porque não havia um partido único, continuaram a separação dos
afirma que seu início foi devido um golpe dos generais Franco e três poderes e, mesmo que reduzido, tinha espaço para a atuação de
Mola contra um governo eleito democraticamente, a república, em uma oposição, incluindo dos socialistas do PSOE) e uma separação
1936. O verdadeiro golpe ocorreu por parte de comunistas contra dos três poderes, como apontou Montesquieu, sem um personalismo
a própria República, em 1934, com a revolta de Astúrias. A curta concentrado na mão de um partido apenas.
experiência republicana liberal da Espanha foi contaminada pelo Fuzilamentos ocorreram de ambos os lados, e a barbárie
sovietismo de Largo Caballero que traiu o espírito democrático e, jamais é exclusiva de um grupo político apenas, mas precisamos
já em 1933, perseguia opositores políticos, incendiavam conventos e reconhecer os erros de qualquer vertente, mesmo que isso vá con-
coletivizavam terras, inclusive de pequenos proprietários com suas tra nossas paixões e preferências. Basta de panfletagem no ensino!
“fincas” (minifúndios) e não apenas os que possuíam as haciendas Ou se define o que é democracia, ou a gente ainda vai continuar
(latifúndios), sobretudo no sul. na cilada de que alguns movimentos totalitários eram libertários.
O resultado das eleições de 1936 nunca foi divulgado na His- No ano passado eu escrevi um livro com as memórias do meu
tória, o que dá margem a serem questionadas, uma eleição que não avô: Blas Vega – Las Memorias de una Guerra Civil (em espanhol).
é divulgada o resultado é questionável, além de terem assassinado Lá conto sua experiência nas frentes de Aragón, em Zaragoza e nos
o líder da oposição, o nacionalista Calvo Sotelo (a tiros em frente picos nevados de Teruel, onde ficavam com neve até os joelhos nas
de sua casa). Antes mesmo dos legionários se rebelarem no Mar- trincheiras, chegando a congelar a perna e ter gangrena. Também
rocos e serem transportados à Espanha, os vermelhos assaltavam foi ferido com metralha. As histórias de meus tios-avós também
quartéis e executavam qualquer resistência. A intenção de procurar são retratadas em partes, de familiares que estiveram tanto do
mostrar um outro lado das origens do conflito é contrapor os livros lado nacionalista quanto nas milícias campesinas, mas ambos,
do MEC e a ideia que apresenta o conflito sendo entre fascismo e obrigados a servir, eram soldados rasos, não eram idealistas, eram
democracia. Não, meus amigos! Quem saiu perdendo nesta guerra jovens plantadores de remolacha (beterraba) de Castilla y Leon que
foi a democracia. Não podemos afirmar que a frente popular era se viram obrigados a servir nos bandos que os recrutavam à força.
democrática, ela estava a serviço de Moscou, e inclusive seus agentes
stalinistas perseguiram e executaram seus próprios companheiros As atrocidades cometidas por um bando ou pelo outro não
anarquistas e trotskistas em 1937 (Basta ler o Lutando na Espanha podem ser tidas como “verdade” ou “mentira” unicamente com base
do George Orwell e seu depoimento). Não podemos afirmar que os na predileção política dos membros. A verdade sobre os crimes de

112 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 113


guerra ou dos regimes viram propaganda, com um lado acusando 42
o outro e abafando o terror cometido entre suas barricadas aliadas.
Que possamos esquecer as feridas e amadurecer o debate,
explorando ambas as visões para atingirmos um estágio de maior Embate entre a Civis e a Barbárie e
honestidade dos fatos e uma contribuição honesta para a historiografia.
sua projeção na disputa abstrata

Uma vez vi na National Geographic um documentário sobre


uma população de chipanzés em algum lugar da África equatorial.
A voz do narrador descrevia uma situação de migração entre um
grupo pequeno de chimpanzés que havia emigrado para novas
terras, no caso, as extensões territoriais dessa população.
O que mais me chocou foi o rito de passagem para serem
aceitos nessa nova sociedade. Deveriam se submeter às ordens
E (vamos dizer assim) daqueles que ali estavam há mais tempo, até
mesmo serem agredidos sem poder revidar. Os machos guerreiros
que não se submetiam começavam a dar risada (atitude de guerra,
enfrentamento e rejeição à submissão), mas claro, como óbvio,
estavam em menor número e foram pisoteados, expulsos e alguns
até padeceram em combate. Mas o pior é que as suas fêmeas e os
filhotes (muitas companheiras de antes, que emigraram junto com
seus machos representantes) preferiram dar as costas aos antigos
machos e se anexarem ao novo grupo. Claro, a punição maior era
com os machos antigos, não havia problema a integração de fêmeas
e filhotes, futuras reprodutoras e “novos” integrantes baixo às novas
regras de sociedade, pois seria mais fácil moldá-los para a nova
concepção dominante daquele grupo.
Bem, esse documentário antigo nunca me saiu da cabeça,
em parte, todos aqueles que procuram questionar ou ir contra o
convencional vivem algo semelhante, me mudei para a cidade na
pré-adolescência, quando a razão é mais elevada do que “nossa con-
dição animal” (que no fim dá no mesmo, apenas são racionalizados
os instintos depois de vivenciados no caso do campo, no urbano,
tinham o conceito na ponta da língua, mas muitos não haviam
visualizado na prática). Esse choque cultural provocou a mesma
expressão sombria nos olhares que me fitavam, daqueles erguidos

114 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 115


à base da razão, aquele ar frio, era como se me pisoteassem com Essa linguagem tem serventia sim, pois induz a pessoa a pensar, a
aquilo, não muito diferente da relação entre macacos estabelecidos interpretar, não entrega o peixe de mãos dadas, já impondo “o que é
e outsiders do documentário. aquilo”, as pessoas então pensam por elas mesmas. Tem espertalhões
Tanto macacos quanto homens não suportam quando veem que se utilizam dessa técnica na política, ou em outros segmentos
integrantes fugindo à norma. Mesmo inconscientemente, se não para benefícios exclusivamente individualistas, mas por isso então
cabemos naquela imagem cultuada cobrada, mas o pior, é ver in- vamos todos erradicar qualquer significado e viver feitos vegetais?
tegrantes que nitidamente também não se adaptam, mas que por Enxergar a cultura por meio da natureza é um dos exercícios
meio do discurso conseguem mascarar, daí podemos traçar uma mais prazerosos e obscuros que um indivíduo pode ter, temos de
distinção entre discurso e essência. A sociedade cobra uma coerência unir sim com a razão, por meio dela surge a virtude, mas jamais
entre esses dois, mas conseguimos identificar facilmente quando há desprezar por completo nossa outra condição, não somos seres arti-
essa discrepância. Por que então aqueles que optam por realmente ficiais. Podemos controlar os impulsos corporais, não é interessante
não ter essa diferença, quando escolhem ser quem são, devem ser perder a todos, e procuro evitar sua total exclusão, mas a gente
pisoteados? Não é muito mais honesto se apresentarem tanto no pode apertar e afrouxar o nó quanto a isso, racionalizar a partir
discurso quanto na essência da mesma forma? das sensações, após vividas ou observadas no meio natural, ajuda
Pode-se dizer que é uma falsa solidariedade, nos moldes muito no desenvolvimento da Arte, aliás, a Arte é o que alimenta
assistencialistas, as comunidades milenares que fogem às leis do o pensar e a criatividade para construir um raciocínio acadêmico,
Estado, quando não são compostas por estruturas lineares baseadas a natureza é Arte, o Xamã produz ciência por meio de elementos
no terror como instrumento de controle, funcionam muito bem, artísticos, a religião, a hierarquia da razão, unida com a moral eleita
uma espécie de cooperativismo entre as famílias, que ocorre além de tal sociedade, apenas recriações.
das meras questões trabalhistas ou classes. A razão sempre esteve por detrás dos impérios. As linhas
“A Ditadura da razão” foi minha obsessão e continua sendo, sofistas do pensamento, de onde vem a ideologia, fizeram emergir
não abandonam o radicalismo iluminista. Já ouvi gente dizendo, nações expansionistas, sejam os impérios da classe dominante ou
tremendo na base, que quem não racionaliza é perigoso. Jamais do proletariado.
deveríamos temer outro homem, este se apresentando sob a más- O antropólogo Lewis Morgan traçou uma progressão lógica
cara que for, ele é tão homem quanto nós, tem suas fraquezas, seus evolutiva sobre os estágios do homem. Quanta presunção! Catego-
surtos, medos e vontades, apenas substituem-se os elementos, mas a rizou e separou essa linha em selvageria, barbárie e civilização. E
essência é igual. Pois bem, não podemos desprezar o conhecimento ainda fica no ar esse pensamento, nas entrelinhas, o homem da civis
que sentimos, as ideias não necessariamente são para serem repro- vê o homem do campo ainda como mais atrasado. Os celtas, iberos,
duzidas em discursos carregados de termos e citações, sem produzir gauleses etc sempre foram povos místicos e guerreiros ao mesmo
nenhuma sensação interna. Se continuarem assim o mundo irá se tempo, não é à toa que os romanos (da civis), com todo aquele pensa-
tornar aquele do 1984, do Orwell, onde era proibido ter sentimentos. mento fundamentado na razão civilizatória, pegavam tutores celtas,
Uma grande massa de alienados que só executam sem pensar. Falar druidas, para a educação de seus filhos. Tinham um conhecimento
ou escrever em retórica, por mais que muitos radicais digam é a que ia além dos fundamentalismos romanos. A combinação da ci-
linguagem da burguesia, não é para a compreensão geral, considero vis com essas sociedades agrárias, produziu indivíduos capazes de
que os papéis se inverteram, a linguagem eleita de hoje é aquela que saltar entre as duas correntes de pensamento. Bem como no nosso
contrapõe à metáfora, tudo tem de ser descrito. Por que é consi- Brasil, a mesma relação, Civis e Campo (sobretudo nas regiões de
derado sábio o acadêmico formado e o graduado na vivência não?

116 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 117


matas), onde o contato com a flora por parte dos “civilizados” era na vertical. Nem mesmo a lógica da espiritualidade (de qualquer
mais intenso. religião), nem mesmo a materialista (marxista) poderá traduzir
Os bárbaros vieram depois, na decadência de Roma, deles toda a “verdade”.
vêm as monarquias da Idade Média. Os romanos tinham a visão Exemplo: para um motorista que passa o dia inteiro condu-
da cosmópolis grega, eram aqueles espartanos e gregos da Magna zindo um veículo qualquer, chega uma hora que aquela máquina
Grécia (Nápoles) mesclados com os sabinos, mas permaneceu o se torna uma extensão dele, ele confunde sua personalidade com
pensamento civilizatório grego, o mesmo fundamentalismo que a máquina e acaba reproduzindo o mesmo ritmo biologicamente,
os EUA edificaram sua nação, com base na expansão e um tom uma reação automática, bem como o homem que vive na natureza,
prepotente de serem “superiores” pois estariam do lado da “razão assim faz, com a fauna e a flora, reproduzindo os mesmos sons,
civilizatória”. O mesmo fundamentalismo da Igreja Cristã, da própria maneira de enxergar as coisas e se perdendo na complexidade de
URSS, Alemanha Nazista, o getulismo centralizando todo o poder vida existente ali.
dando origem ao nosso “federalismo” e tantas outras quando pas- É terrível quando vemos uma mãe podando toda a criati-
sam a anexar terras com essa justificativa. É importante essa linha vidade e pensamento livre de uma criança, impondo as verdades,
ocidental, mas não podemos desprezar por completo as correntes condutas… O amadurecimento é visto na nossa sociedade quando
de pensamento orientais de que somos uma mistura, com certeza! o sujeito passa a aniquilar todos seus instintos e significados, até se
Mas biologicamente falando, pois hoje a linha racional é imperativa tornar um bloco de concreto.
e não sobra margem para as correntes filosóficas que procuram
O mundo precisa ser reinventado, e isso começa por cada
ir além do átomo. A civis já chega com “verdades”, o xamanismo
um que consiga fazer esse julgamento. Hobbes, Locke e Rousseau
não. O mais legal é confundir, e não esclarecer. A linha naturalista
continuam vivos, temos um contrato social, não dá para fugir muito
mesclada com conceitos libertários, o dadaísmo, o niilismo (não
disso, mas não podemos nos perder por completo nelas também.
individualista) e a cosmovisão talvez seja aquela mais ampla para se
Nenhum dos extremos é bom, saltar entre as duas e mais é o negócio.
fazer um estudo qualquer, sobre o tema que for, procurar analisar
desprezando seus conceitos prédeterminados. A cultura folk é de grande densidade anímica, de espírito.
Há de unir a eleita com a popular, mas jamais radicalizar pela
Creio que deveríamos tentar unir essas duas grandes corren-
plenitude de apenas um extremo. Ainda hoje o homem do campo
tes. Quando uma criança começa a perguntar “por que” naquele
é visto como um bárbaro, por que não tentar aprender com ele?
período típico disso, os pais a podam, dando verdades, imagens…
Muitos se predispõem a aprender, com sinceridade, mas não há essa
O pensamento e o erotismo são corrompidos pela criação familiar,
reciprocidade, isso sempre foi uma característica dos imperialistas.
pela religião, pela ciência etc… Temos de procurar ir além disso,
mas claro, sempre conscientes de que estamos em um coletivo, e Deixo aqui, um último parágrafo para ilustrar essa construção:
nem todos têm a paciência de querer exercitar isso. Na modernização do Japão, quando os samurais já não
Somos seres adaptáveis, e justamente por essa condição tinham mais função na sociedade, como mostram no filme holly-
podemos exercitar a empatia, procurar ver por meio das lentes do woodiano O Último Samurai, o capitão americano interpretado por
outro, não apenas do seu ponto de vista. A razão está para trans- Tom Cruise, chega com a espada do samurai que a tantos anos serviu
pormos essas sensações construindo um raciocínio em cima de o imperador, e naqueles tempos fora impedido de entrar no palácio
nossas ações ligadas ao ambiente, claro, mas não para criar uma trajando roupas típicas, os demais japoneses de terno, monóculos,
lógica abstrata que vai além. Quanto mais a cultura se distancia do charutos, ocidentalizados, riam dele vestido de samurai. Tocado
meio natural, nós modificamos o ambiente, daí cidades crescem com a atitude do capitão americano, o imperador Meiji diz: meus

118 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 119


antepassados têm governado o Japão por dois mil anos. E durante 43
todo o tempo temos dormido. Durante o sono sonhei. Sonhei com
um Japão unificado. De um país forte e independente e moderno…
E agora estamos acordados. Nós temos ferrovias e canhão, roupas 14 de juillet
ocidentais. Mas não podemos esquecer quem somos, ou de onde
viemos.
Texto escrito em comemoração do 14 de juillet de 2014, no
dia da Queda da Bastilha. Historicamente podemos apontar uma
progressão dos acontecimentos, que estão totalmente relacionados
com a mentalidade da França e seus novos ideais, por consequência,
do povo em geral.
Mesmo que se possa afirmar que a participação do exército
francês na Guerra de Independência dos EUA tenha de certa forma
contribuído para a inquietação do povo e das milícias na França,
com um absolutismo decadente, a princípio eles não tiveram um
planejamento durante a emancipação do povo na revolução, seguido
E de entendimentos e desavenças entre Jacobinos e Girondinos e a
Fase do Terror, após a queda da Bastilha e as milhares de cabeças
rolantes na guilhotina.
A falta de planejamento ou uma concepção mais moderna
(contemporânea) de República fez ascender uma figura ditatorial
(carismática, endeusada, até hoje) de Napoleão Bonaparte, mas que
foi decisiva para levar os novos ideais às demais nações europeias e
a provocar reformas nas monarquias de caráter absoluto.
Talvez não seja precipitado e faz muito sentido (a meu ver)
uma leitura de que diferentemente dos EUA, a Revolução Francesa
implicou um evento interno, o sentimento independentista não era
contra um império estrangeiro (apesar da monarquia ter tido ligações
com a casa dos Habsburgos da Áustria e os Bourbóns), como EUA X
Inglaterra, mas sim foi do povo para com seus representantes (Isso
pode explicar mais a centralização do caráter francês e a própria
decisão de manter a monarquia, mesmo após o aniquilamento de
Luis XVI e Maria Antonieta), quando Napoleão se autocoroa é um
símbolo de união entre os dois polos extremos.
Ora, a liberdade que durou pouco tempo, fazendo emergir
um líder de caráter ditatorial (a Anarquia leva à Ditadura), uma
República que só foi se consolidar (com a França desfragmentada)

120 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 121


durante e após a Segunda Guerra Mundial (vide a República de 44
Vichy, que ainda carregava a característica agrária aristocrata) pelos
esforços do grande General de Gaulle.
Portanto, considero importante a divisão em etapas desse O Movimento de 1930 e
evento, pois nada é uno dentro de uma análise, antes e durante a
revolução o lema foi: “Liberdade, Igualdade e Revolução”, somente a C entralização da R epública
no século XIX a palavra “Fraternidade” foi incorporada.
A visão do momento exato da revolução é idealizada, seus
feitos mais “justos”, “coletivos” pela fortificação e manutenção dos Dentro do republicanismo, os reformistas de outrora propu-
direitos civis só viria ter essa configuração que entendemos do final nham um fim à República Oligárquica e um governo centralizado,
da Segunda Guerra para cá. contrastando com os regionalismos e municipalismos da República
Velha. Diferentemente de outros países, nossa proclamação da
A Revolução Francesa influenciou diversos movimentos in-
república foi um fenômeno “de cima para baixo”, vinda do alto
dependentistas pelo mundo, incluindo a República Rio Grandense
escalão do exército (por meio de um golpe em 15 de novembro de
e a Catarinense aqui no Brasil, que leva um gorro vermelho (dos
jacobinos) em seu brasão e bandeira. 1889), e não havia proposto uma mudança significativa no cenário
nacional em termos sociais, resquícios de um poder moderador que
O pessoal da Gironda seria aquela burguesia de um nível fora incorporado ao executivo, com base no positivismo, a República
médio entre as duas camadas externas, estaria em uma posição me- brasileira teve sua constituição em 1891 e figuras ilustres como Rui
diana na pirâmide que representava a sociedade. Era composta por
Barbosa. Em virtude de muitos fatores, desde o século XIX, como
empreendedores, donos de comércios e produções de exportação ou
a revolução federalista no sul do Brasil (autoritária, principalmente
uma aristocracia rebelde, que nitidamente estaria descontente com
durante os anos de Floriano Peixoto), figuras como Prudente de
a monarquia absolutista vigente, seria uma espécie de “moderado”,
Morais e a Guerra de Canudos, começasse a acompanhar uma esteira
como os “mencheviques” na Revolução Russa de 1917. Sentava-se à
de acontecimentos, que coincidiram com eventos mundiais, como
direita do monarca no congresso/parlamento.
os movimentos operários e o anarquismo por parte de imigrantes
Os jacobinos eram a ala mais radical, revolucionária, composta italianos e espanhóis (principalmente em São Paulo), as greves,
por camponeses, artesãos e soldados, sentavam-se à esquerda do incluindo um episódio único de nossa História como “A Revolta da
monarca, o que resultou nas clássicas nomenclaturas que usamos até Chibata” e da própria marinha, na mesma data da Revolução Russa
os dias atuais. À direita (girondinos) estaria algo que se aproxima (1917), marcaram a Primeira República com uma divisão ideológica
à reação; e à esquerda, revolução. na sociedade brasileira, aqueles que continuariam defendendo uma
Hoje fica difícil atribuir categoricamente, em uma generalida- descentralização e o movimento que nos anos 1920 seria conhecido
de, os termos “esquerda” e “direita”, com a configuração dinâmica como tenentismo, por parte de militares que sonhavam com uma
e complexa da pós-modernidade, elas ainda se fazem com certo centralização, acabando com o poder das oligarquias regionais (mo-
sentido, mas diria que com o passar do tempo deixarão de existir ou vimento esse de onde veio o próprio Getúlio Vargas, que também
simplesmente serão pronunciadas no popular, mas sem a oficialização era oligarca, do Rio Grande do Sul, e o próprio Luís Carlos Prestes,
para definir grupos opostos, partidos, indivíduos ou instituições. antes de sua filiação ao Partido Comunista).
Outro fator importante foi a influência da imigração, que
E além do anarquismo, inspirou o fascismo nacional (integralismo),

122 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 123


a criação do Partido Comunista (fundado por anarquistas italianos Na minha opinião, o modelo do movimento de 30 saiu
e espanhóis em São Paulo) e toda essa movimentação na arte de vitorioso e acabou por se fortalecer com o Estado Novo e após
vanguarda (tendo a ilustre Semana de Arte Moderna de São Paulo o período democrático (1945-1964), o Brasil voltaria a ter uma
em 1922). centralização bruta com o Regime Militar, somente nos anos 1980
Fica a impressão de que o movimento de 1930, liderado por voltaríamos a ter uma certa descentralização, que durou pouco,
Getúlio Vargas, sonhava com um destino nos moldes utópicos para seguido dos governos FHC e Lula que voltariam a centralizar. Esta
o Brasil, mas na prática, considero o movimento de 1930 como um centralização da República, que começou com Vargas, foi uma das
“reboque” à República do Brasil, com a intenção de torna-la com primeiras manifestações do que viria a ser a “República Federativa
características de uma centralização “descendente”, diferente dos do Brasil”, e não mais “Os Estados Unidos do Brazil”, como na
Estados Unidos, o federalismo brasileiro não teve um movimento República Velha, mas de “federalistas” tinham apenas o nome,
ascendente, ou seja, células da base, de baixo para cima, que com- ainda hoje as regiões são submetidas a um poder centralizador nos
põem uma centralidade, talvez, por termos sido império após a moldes imperiais. Precisamos de mais autonomia aos estados, o
independência, o movimento se deu do centro para as periferias, fortalecimento do municipalismo, o voto distrital e lideranças que
e este corpo central seria outra vez fortalecido com o varguismo estejam pelo fortalecimento de suas regiões, e não apenas cooptados
fazendo algumas características (se é que se pode considerar como pelo poder central.
tal) “confederalistas” se perderem.
A Aliança Liberal, com Getúlio aliado de Minas Gerais (que
deixou de alternar o poder com São Paulo no chamado “Café com
Leite”), perdeu as eleições para o paulista Júlio Prestes, que acabou
por ser deposto com um golpe. Ocorreu então uma “reforma” na
república, e não uma “revolução” (palavra empregada muitas vezes
erroneamente na História), saindo da periferia (que mantinha ainda
uma estrutura similar das capitanias hereditárias) para um governo
centralizado. Isso iria desaguar na Revolução Constitucionalista
de 1932, a resistência dos pró-oligarquia e apenas sete anos depois,
com a criação do Estado Novo e a queima das bandeiras estaduais; E
a proibição do municipalismo, tivemos uma centralização forçada,
por meio de uma ditadura. O conceito de “unidade na diversidade”
do federalismo acabou por ser subjugado por uma construção de
Estado, uma “revolução pelo alto” obcecada pela “questão nacional”,
seja em termos de unidade ou identidade (esta última que teve um
esforço para ser forjada, com a ajuda de modernistas, transferin-
do elementos únicos de norte a sul, como se tivesse uma cultura
comum nacional, deixando os regionalismos de lado: o samba, o
carnaval, o mito das três raças e da mestiçagem e o futebol, por
meio de campanhas intensas pela rádio, foram impostos nos quatro
cantos do Brasil).

124 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 125


45 dos clãs indígenas sociedades na via horizontal, de uma harmonia
que chega a causar espanto e admiração a nós ocidentalizados.
A questão da crença multifacetada, ou “politeísta”, apesar de
C lãs M airuns que diferente da Grécia antiga, onde por um período a civilização
ocidental não adotava um teocentrismo, mesmo com uma pluralidade
de deuses eles poderiam ser considerados mais institucionalizados
Os motivos que me levaram a escolher os temas acerca da como tal, do que na visão indígena.
espiritualidade e a religião como pano de fundo da elaboração desse A cosmologia dos submetidos aos clãs, em especial os Quatis
trabalho talvez sejam os mesmos que têm martelado minha mente e as Antas, era de uma abrangência tal, que os permitia encontrar
por um longo período. A diferença entre dois mundos, basicamente energias espirituais em uma casca de árvore ou folha, partindo de
o agrário e o urbano, ou a “barbárie” e a “civis”, nestes, mesmo que uma companheira ou até mesmo no próprio indivíduo.
alterados e imersos dentro da cultura ocidental, ainda é possível Uma técnica sábia do índio era fazer a leitura de si próprio,
identificar discrepâncias quanto à maneira de enxergar a realidade, interpretando baseado em mitos (quando a “explicação racional”
o divino e o sobrenatural em geral. deles não dava conta de trazer uma compreensão convincente). Está
O homem na natureza por meio do transe provocado por relacionada com os aspectos da vida social, mesmo que intrínsecos,
rituais organizados, ou simplesmente no seu cotidiano, em menor para a organização tribal do clã.
grau de intensidade, estabelece relações entre o mundo visível e Essa característica de visão de mundo acaba por encontrar
o invisível. Essa função instiga uma alteridade no indivíduo que uma “resistência” quando um indivíduo que teve parte de sua criação
não seria apenas de ordem espiritual, mas a capacidade de ver os dentro dessa ótica é levado à civilização e moldado à hierarquia da
fenômenos ou situações não como o agente, mas sim o espectador, religião, de uma instituição da fé, que afetará na sua compreensão
causando uma propensão maior à compreensão daquele objeto ou fato. sobre o real. Como no caso da passagem do livro Maíra, em que
As questões que envolvem o mundo indígena, mesmo que Isaías é enviado a Roma para sua educação. Ao regressar era um
retratadas em forma de romance, conseguem transmitir uma rea- estranho, uma pessoa à margem. Eu seria tão forasteiro em seu
lidade paralela, feito a multiplicidade do ser que eles conseguem local de origem, bem como tinha sido na Itália, sem pertencer a
desenvolver. Para nós, imersos dentro de uma religião hierarquizada, nenhum lugar, este “cidadão do mundo” tinha uma dificuldade de
dogmática e de designação de tarefas aos seres do imaginário pode se integrar em ambos os extremos, um exemplo disso evidente é
parecer um campo muito complexo, mas é justamente esse leque quando ele demonstra uma incapacidade na atividade de agricultura
plural de divindades que faz as sociedades nativas alcançarem promovida pela tribo, que não se baseava em aparatos técnicos e de
nosso imaginário, como sendo adoradoras de seres míticos exóti- monocultura como na Europa, e ali, embora ele tenha o fenótipo
cos, viajantes que podiam transitar entre duas ou mais realidades, indígena, estava mais fora de órbita do que os próprios antropólogos
homens que absorveriam a essência obscura e das matas, mas, em brancos que haviam incorporado o estilo indígena nessa questão.
contrapartida, nós, pós-modernos, temos a capacidade de com- Ora, porque temos uma distinção abrupta entre “humanos” e
preender que esse estilo fundamentado na metamorfose totêmica “animais”, a mania de superioridade do homem por conta da racio-
do ser é que faz de muitos homens conscientes serem resistentes à nalização produz a cCivis, que é uma realidade artificial e mesmo
razão, à ausência de pensamento, atribuindo personas aos animais nesse universo artificial, não conseguem por completo se livrar da
e objetos, uma compreensão de mundo mais democrática que faz natureza, embora se afirme que a cultura altera a natureza, mesmo

126 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 127


na civis são ainda os resquícios dela que redigem a cultura nesse Hoje com os valores modernos e a urbanização, os índios
movimento de “vai e vem” . civilizados passam a ser unilaterais e reproduzem imagens com-
Por essas discrepâncias, que muito confundiam o personagem pradas artificiais, mas ainda ficam resquícios da alma selvagem, da
Isaías. Em compensação faziam com que ele pudesse desenvolver real liberdade, a individual ligada ao arbítrio.
um “olhar de fora” sobre seus dois “eus” mais fortes, atribuídos Quando desprezam a alteridade, que ocorre tanto no abs-
em virtude de sua vivência nesses dois mundos, o que o deixava a trato, quanto no próprio físico do sujeito que tem a natureza como
par de ser o protagonista de muitos eventos. Quando se incorpora fonte, erradicam uma condição humana e tornam-se pragmáticos,
elementos iluministas deixamos de ter aquela “essência pura”. possuidores de um “eu” eleito de caso pensado ou por motivos de
Pude identificar a questão machista de dominação por parte cobrança, imposição não por livre e espontânea vontade. Se existe
dos católicos, O pai tem mais um orgulho próprio, pessoal, do a liberdade, talvez seja esta a capacidade de tomar formas por livre
que dos filhos, ele se realiza por meio do feito dos filhos. Quando arbítrio a hora que bem entender.
Isaías se choca com uma espécie de igualitarismo, embora fossem
muito bem divididas as tarefas na aldeia entre homens e mulheres,
no que diz respeito à sexualidade também. No mundo ocidental
paternalista o representante da família fica por “dividir” a respon-
sabilidade de culpa ou transferir para a parte mais fraca, que tem
menos voz, sua própria esposa ou no caso de deuses, para a parte
supostamente inexistente.
Os Mairuns possuem a cosmovisão do meio natural, uma onça,
por exemplo, seria um “humano” como qualquer outro, porém preso
dentro daquela carcaça, que agia de tal forma, violenta e imponente
no caso, porque seria sua única alternativa de sobrevivência, não
há um distanciamento ou hierarquização entre homem e animal, E
por isso grande parte dos adornos são inspirados ou compostos
por partes de animais.
Hoje a situação do índio é bem diferente, como pude inter-
pretar por meio da passagem do próprio Darcy Ribeiro no Maíra”:
Todos os homens nascem em Jerusalém. Eu também! Padre
serei, ministro de Deus da Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas
gente, eu sou? Não, não sou ninguém. Melhor que seja padre, assim
poderei viver quieto e talvez até ajudar o próximo. Isto é, se o pró-
ximo deixar que um índio qualquer o abençoe, o confesse, o perdoe.
Do lado oposto, no nascente, está o mundo devassado de onde
nos vêm a invasão, a doença, a brancura. É o lado onde estou agora,
é o lado de onde vou indo para lá, e voltando, ir e vir, sem totalizar
a um extremo.

128 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 129


46 47

C ostume X L eis Monofonia e Polifonia do M al

A questão é: como harmonizar, ter algo no centro, entre o A melodia desprovida de qualquer acompanhamento, sendo
Direito Romano e o do costume? Precisamos de um equilíbrio entre ela de canto ou instrumental, tem a variante possível para a mono-
ambos, que sim, continuem na questão do privatismo sem precisar fonia, quando a mesma melodia é entoada em oitavas diferentes ou
de um movimento vindo da centralidade. A abstração da lei não quando é entoada em uníssono. Esse movimento também é possível
deve jamais passar o costume, mas para atender à complexidade com a junção de mais sons e ritmos, provocando uma polifonia es-
pós-moderna, aí está o Império da lei. Uma constituição mista pecífica que atinge diretamente nossos corpos por meio da vibração.
seria o caminho? Seja como for, eu fecho com Justiciano: primeiro Não apenas a literatura ou a propaganda cinematográfica era
os interesses civis, antes de qualquer outro! utilizada pelos Estados totalitários, mas a questão musical também
foi uma sacada de mestre entre os arquitetos sociais. Ela era capaz
de produzir nas massas um contagiante sentimento rítmico que
provocava um estado de transe capaz de mobilizar multidões.
A própria vibração das notas nos estágios mais elevados da
música clássica, comprovado cientificamente, é capaz de alterar
a água. Em tom mais agudo e sustenido, a água vibra, treme, sai
de uma constante harmoniosa para a caótica revolta, ora, nosso
corpo é composto por 70% de água, provocando o mesmo efeito
em nosso interior.
A frequência de 432 Hz — também conhecida como Lá de
E Verdi — seria uma afinação alternativa que, matematicamente,
é consistente com o tom puro da natureza. Por outro lado, a fre-
quência de 440 Hz seria um padrão antinatural de afinação, que
não pertence à simetria das vibrações e harmonias sagradas, tendo
o efeito maléfico sobre o subconsciente. O propagandista nazista
Dr. Goebbels teria descoberto que a frequência de 440 Hz tinha o
poder de fazer com que a população se sentisse e pensasse de uma
forma determinada, tornando-a cativa desta vibração. A mesma
estratégia foi utilizada nos cantos em coro, pronunciando a famosa
“Internacional Socialista” na extinta URSS
A 9ª Sinfonia de Beethoven, conhecida como Ode à Alegria,
sempre foi muito usada por regimes ditatoriais. Ela foi tocada nas

130 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 131


Olimpíadas diversas vezes, celebrando a união das duas Alema- 48
nhas, quando as músicas ocidentais foram proibidas durante a
Revolução Cultural Chinesa, ela foi a única que não fora banida,
sendo utilizada como a expressão máxima do ideal maoísta. Não Horizontalidade C omunal
é à toa que o próprio Stanley Kubrick atribuiu as músicas clássicas
como preferência de seu personagem Alex DeLarge no filme Laranja
Mecânica, que, combinadas com o líquido Ultra Violence deixavam Eu vejo mais anarquismo e comunismo (na acepção exata da
o protagonista e seus drugos na completa barbárie. palavra) entre os Quakers, Dunkers ou até nos Amish e no mutirão
Não é por acaso que a música tem um efeito determinante dos caipiras paulistas do que em um racionalista burocrata que
em nós. Lembro-me de minha adolescência, em que entrava em aposta na industrialização ou urbanização para o surgimento de uma
um estado de transe com as músicas Oi! Streetpunk, em que tanto sociedade de classes. Os capítulos de um livro podem ter autonomia
Anarcopunks quanto os Carecas do Subúrbio, com os três acordes e propriedade singular cada um, mas existe o conjunto da obra que
e bumbo surdo, chegam ao delírio, capazes das mais audaciosas a faz aquilo que a categoriza. Por exemplo, Don Quixote pode ter
atrocidades (em alguns casos). Mesmo, a resultante de uma batida milhares de versões, todas elas serão Don Quixote, mas o conteúdo
de funk, a sensualidade aflorada e a batida rítmica que se materializa pode variar, em edições mais ou menos completas, compiladas,
na forma de dançar, aflorando a sexualidade. expandidas ou comentadas arbitrariamente. Assim somos nós,
Não é apenas nas letras e na questão audiovisual que podemos assim é a matéria contra o espírito. Na mitologia grega, Prometeus
ser afetados. Fica a dica! é uma ameaça aos metafísicos, sua ânsia pelas coisas mundanas e o
roubo de uma divindade (o fogo) o fez ser punido por toda a eter-
nidade. Esse conflito entre razão e metafísica me acompanhou, no
inconsciente, desde sempre. É impossível uma perfeição mundana,
ao abrir a caixa de Pandora as desgraças naturais e imperfeições
dos homens foram instauradas, ao comer o fruto do pecado fomos
expulsos do paraíso.
E Desconfie de quem se crê como condutor de um processo
baseado na “perfeição” terrestre. Tanto o nazismo quanto o co-
munismo tinham essa pretensão de criar o “novo homem”, não
aceitavam a natureza humana como ela é. Estar em guerra com a
natureza é a raiz do totalitarismo. O racialismo era baseado em uma
falsa biologia, e o marxismo em uma falsa sociologia, promovendo
engenharias sociais.
O centro da alma humana é a angústia, portanto parem de
tiranizar os homens com as ditaduras da “felicidade plena”.
Quer fazer parte do “comunal”, fuja para as montanhas e
esqueça qualquer movimento vindo do seio do urbano-industrial.

132 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 133


49 50

S obre a Venezuela H eterônimos

Quando o Estado de Direito é substituído pelo Estado poli- O maior problema em escrever na primeira pessoa, prin-
cial e a verticalidade se rui, encontrando uma horizontalidade em cipalmente em um tom romanceado, com uma progressão de
desordem, o fim das instituições que promovam o sistema de Check personagens, é que as pessoas obrigatoriamente relacionam estes
and Balances, inicia-se o caos. com o autor. Mesmo que sejam emprestadas certas coisas de nossa
Para uma sociedade funcionar é preciso da legalidade, as história, alguns aspectos de nossa identidade e o leitor que conhece
leis que assegurem o direito de diferentes óticas e orientações se o criador, o reconheça na façanha, saibam que não é uma “auto-
manifestarem. Quando o executivo controla os demais poderes, biografia”, podendo o personagem ser a fundição de várias pessoas
colocando principalmente no legislativo camaradas de partidos que fazem parte de nosso convívio ou até mesmo personalidades
aliados e as leis visam à legitimação de suas ações políticas, as forças inventadas para incrementar a obra. Lembrem-se dos heterônimos
de segurança atuando junto com pistoleiros e milícias que visam de Fernando Pessoa, da alteridade necessária na composição de um
à derrubada da ordem, na qual as organizações militares são leais personagem, exercício comum aos atores e dramaturgos, mas que não
ao partido no poder e não à constituição, controle da imprensa e poderia ser diferente no ensaio ficcional. O problema de vivermos
perseguição à oposição, não existe democracia! E se isso chamam em uma sociedade que não lê é que os poucos que ingressam nesta
de bolivarianismo, não importa, sempre será o velho populismo e prática, quase que como uma totalidade fazem estas correlações
a personificação do dirigente. equivocadas e com isso jamais deveríamos ficar acuados em fazer
uma arte depressiva ou até escatológica para agradar um público
politicamente correto. As obras na pós-modernidade dialogam
diretamente com o autor, o leitor não é capaz de fazer uma cisão e
perceber que existe um vão entre sua individualidade e o real. Daí
quando o tema é polêmico! Ah! Fica insuportável! Aprendam a
separar o joio do trigo!
E

134 Reflexões sociológicas, devaneios e impressões David Vega 135


www.fontenelepublicacoes.com.br
Apoiando novos autores.

Você também pode gostar