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Walter Altmann (Org.

Nossa fé e suas razões

O Credo Apostólico
- história, mensagem, atualidade

» B Escola
1 W S u pe rior de
Teologia /5 /h o c fe /

2004
© 2003 Editora Sinodal
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E-mail: editora@editorasinodal.com.br
www.editorasinodal.com.br Apresentação..................................................................................... 9

P a rte 1 ............................................................................................... 11
CREDO = EU CREIO
Capa: Editora Sinodal Walter A ltm a n n ............................................................................ 13
1.0 que significa “Credo”? ........................................................ 13
Copidesque: Erica L. Ziegler
2. Confissão de f é ........................................................................ 15
Revisão: Geraldo Komdörfer a. Que significa confessar?........................................................ 15
b. O que faz uma confissão de f é ? ........................................... 15
Coordenação editorial: Luís M. Sander c. Qual é, então, a base confessional das igrejas? ........... 18
d. Quais as dimensões da confissão?....................................... 20
e. Onde confessamos nossa f é ? ................................................ 21

Publicado sob a coordenação do Fundo de Publicações Teológi­ P a rte I I .............................................................................................. 23


cas/Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Teologia (IEPG) HISTÓRIA E SIGNIFICADO DO CREDO
da Escola Superior de Teologia (EST) da Igreja Evangélica de Martin N. D reher.......................................................................... 25
Confissão Luterana no Brasil (IECLB). 1. Surgimento e desenvolvimento do C redo................................ 25
2. A teologia do Credo Apostólico.............................................. 28
a. O primeiro artigo................................................................... 28
Cip - Brasil Catalogação na Publicação b. O segundo artigo................................................................... 30
Bibliotecária responsável: Cristina Troller CRB10/1430 c. O terceiro artigo..................................................................... 33
Bibliografia..................................................................................... 36
A468e ALTMANN, Walter
P a rte I I I ............................................................................................. 37
Nossa fé e suas razões / Walter Altmann. - São
Leopoldo, RS: Sinodal, 2003. Prim eiro a rtig o ................................................................................. 39
184 p. CREIO EM DEUS PAI, TODO-PODEROSO
ISBN 85-233-0726-5 Gottfried Brakem eier................................................................... 39
1. As dificuldades.......................................................................... 39
1.Credo Apostólico. 2. Teologia Sistemática. I. Título.
2. A auto-revelação de D eus......................................................... 41
C D D -238 3. Deus Pai em Jesus Cristo, todo-poderoso........................... 43
CD U -2 3 8 a. O amor de D eus..................................................................... 43
b. O poder de D e u s.................................................................. 46
índice para catálogo sistemático
Bibliografia..................................................................................... 47
1. Credo Apostólico - Teologia Sistemática
CRIADOR DO CÉU E DA TERRA c. O Senhor Servo constitui um povo que serve por gratidão
Wanda D eifelt................................................................................ 48 e em am or............................................................................... 75
1. Fundamentação bíblica.............................................................. 49 O serviço da comunidade é co rp ó reo................................. 76
2 .0 contexto histórico.................................................................. 50 Como a comunidade está sendo lembrada do seu serviço.. 77
3. Considerações teológicas....................................................... 52 Bibliografia..................................................................................... 79
Bibliografia..................................................................................... 54
FOI CONCEBIDO PELO ESPÍRITO SANTO, NASCEU
DA VIRGEM MARIA
Segundo a r tig o ................................................................................. 55
Ricardo W illyR ieth....................................................................... 80
CREIO EM JESUS CRISTO, SEU FILHO UNIGÉNITO I. Introdução.................................................................................. 80
Ricardo Willy R ie th ....................................................................... 55 2 .0 testemunho b íblico................................................................ 80
1 .0 Segundo Artigo do C redo.................................................... 55 3 . 0 contexto em que as comunidades confessam...................... 81
2. Falar de Jesus C risto................................................................. 56 4 .0 sentido da confissão.............................................................. 82
3. Jesus Cristo: realmente presente.............................................. 57 5. Foi concebido pelo Espírito Santo........................................... 83
4. Jesus Cristo: promessa e cumprimento..................................... 57 6 . Nasceu da Virgem M a ria .......................................................... 83
5. Nomes e funções de J e s u s ....................................................... 58 7. A intenção da confissão............................................................ 84
6 . Jesus (= Deus ajuda) Cristo (= U ngido).................................. 59 8 . Virgindade, sociedade patriarcal e vida cristã.......................... 85
7. Filho unigénito de D e u s............................................................. 59 9. Reforma luterana, liberdade e sexualidade.............................. 86
8 . 0 Deus oculto e o Deus revelado............................................ 60 10. Jesus, sua mãe e suas irm ãs.................................................... 86
9. Jesus Cristo: a criação e a histó ria........................................... 61 II. Veneração a M aria.................................................................. 87
10. Jesus Cristo: última palavra sobre D e u s ................................ 61 12. A Mãe não abandona suas filhos e seus filh o s...................... 86
11. Para que Jesus Cristo seja Jesus C risto................................. 61 13. Nossa confissão e a Virgem M a ria ........................................ 86
Bibliografia..................................................................................... 62 Bibliografia..................................................................................... 89
CREIO EM JESUS CRISTO, NOSSO SENHOR OU: “ELE PADECEU SOB PÔNCIO PILATOS
SERVE PRA SÊ SINHÔ” (P. DO ASSARÉ) Enio R. M u e lle r............................................................................ 90
Albérico Baeske............................................................................ 63 1. Pôncio Pilatos............................................................................ 90
1.0 que significa ser senhor e senhora?...................................... 63 a. Pilatos: referencial histórico do evento de Deus em Cristo.. 90
2. Jesus Cristo - supersenhor?..................................................... 64 b. Pilatos e Maria: duas posturas humanas diante da revelação
3. “Jesus Cristo, o Senhor”, no Novo Testam ento.................... 64 de D e u s .................................................................................. 91
a. “Jesus Cristo, o Senhor”: a confissão.................................. 64 c. Pilatos e Jesus: as duas humanidades dentro do C red o 92
b. “O Senhor Jesus Cristo”: a continuação da história de Deus 65 d. Pilatos e Jesus dentro de cada um/a de nós: sim ul 93
c. “O Senhor da glória” no presente e no fu tu ro ..................... 66 2. S o b ............................................................................................. 95
4. A vivência do “Senhorio de Jesus Cristo” ............................... 67 a. A vida de Jesus como submissão ao senhorio de D e u s 95
a. Jesus Cristo, r e i...................................................................... 68 b. A encarnação como inversão profunda (o Senhor assume
b. Jesus Cristo, rei no culto....................................................... 70 forma de servo)................................................................... 96
5 .0 Senhorio de Jesus C risto...................................................... 70 c. Jesus se submete e assim conquista...................................... 97
a. O Senhor Jesus Cristo não d esiste....................................... 72 d. Discipulado cristão como submissão ao senhorio de D eu s. 98
b. O Senhorio de Jesus Cristo é serv ir..................................... 73
3. P ad eceu ..................................................................................... 100 DE ONDE VIRÁ PARA JULGAR OS VIVOS E OS MORTOS
a. O sofrimento de Jesus: sofrimento de D e u s ........................ 100 Kjell N ordstokke.......................................................................... 134
b. O que significa dizer que Deus sofreu.................................. 100 1. As dificuldades da linguagem apocalíptica............................... 134
c . Não há paixão sem paixão.................................................... 101 2 .0 testemunho b íblico................................................................ 135
d. O sofrimento de Jesus e o nosso sofrimento....................... 102 3 .0 ju íz o ....................................................................................... 137
CRUCIFICADO, MORTO E SEPULTADO 4. A esperança c ris tã .................................................................... 139
Gottfried Brakemeier................................................................... 104 5. Atualização para o nosso contexto.......................................... 139
1. Introdução............................................................................... 104 Bibliografia..................................................................................... 140
2 .0 testemunho bíblico................................................................ 105
3. Reinterpretações na história da teologia.................................. 106 Terceiro a r tig o ................................................................................ 141
4. Vida pela morte de Jesus........................................................... 109 CREIO NO ESPÍRITO SANTO
Bibliografia..................................................................................... 111 Wanda D eifelt............................................................................... 141
DESCEU AO MUNDO DOS MORTOS 1.0 testemunho b íblico................................................................ 142
Joachim F ischer........................................................................... 112 2. As disputas em tomo da compreensão do Espírito S an to 144
1. Onde estão os nossos m ortos?.............................................. 112 3. Considerações teológicas......................................................... 145
2 .0 mundo dos mortos na B íblia................................................. 113 NA SANTA IGREJA CRISTÃ, A COMUNHÃO DOS SANTOS
3. A imagem do infemo na Idade M édia...................................... 115 Gottfried Brakem eier.................................................................. 147
4. “Infemo” na linguagem atu al..................................................... 116 1. Introdução.................................................................................. 147
5. A descida de Jesus Cristo ao mundo dos m o rto s................... 116 2. Como surge a igreja?................................................................ 148
6 . A interpretação de Martinho L u tero ........................................ 118 3. Como se manifesta a Igrej a ? .................................................... 149
7. “Desceu ao mundo dos mortos” : qual a m ensagem?.............. 118 4. E as imagens da igreja na Bíblia - que dizem ?........................ 150
Bibliografia..................................................................................... 119 5. Qual é a tarefa da igrej a ? ......................................................... 151
RESSUSCITOU NO TERCEIRO DIA 6 . Como se organiza a igrej a ? ...................................................... 153
Kjell N ordstokke.......................................................................... 120 7. E o futuro da igrej a ? .................................................................. 155
1. A ressurreição-um evento histórico?.................................... 120 Bibliografia..................................................................................... 155
2. A interpretação da ressurreição............................................... 122 NA REMISSÃO DOS PECADOS
3. Atualização para o nosso contexto.......................................... 125 Osmar L. W itt............................................................................... 156
Bibliografia..................................................................................... 126 1. Pecado: 0 que é is s o ? ............................................................... 157
SUBIU AO CÉU, E ESTÁ SENTADO À DIREITA DE 2. Ser remido: o que é isso ? ......................................................... 158
DEUS PAI, TODO-PODEROSO 3. Quem é o Redentor?................................................................. 159
Kjell N ordstokke.......................................................................... 127 NA RESSURREIÇÃO DO CORPO E NA VIDA ETERNA
1.0 testemunho bíblico................................................................ 127 Osmar L. W itt............................................................................... 160
2. A entronização de Jesus à direita de Deus P a i...................... 129 1. Introdução.................................................................................. 160
3 .0 Rei dos reis e Senhor dos senhores.................................... 130 2. A morte como o fim da existência físico-espiritual do ser
4. Presente entre n ó s..................................................................... 131 humano....................................................................................... 161
5. Atualização para o nosso contexto.......................................... 133 3. E depois da m orte?................................................................... 161
Bibliografia..................................................................................... 133
4. Morrer é descansar em D e u s ................................................... 162
5. Ressurreição não é reencam ação............................................ 164

Parte I V ............................................................................................. 165 Apresentação


A CONTEMPORANEIDADE DO CREDO, EM ONZE
VERSÕES ATUALIZADAS A comunidade cristã está permanentemente chamada a confessar
Walter A ltm ann ............................................................................ 167
sua fé. Em verdade, já foi assim entre o povo de Israel, de cujo seio
1. Um credo de L u te ro ................................................................. 168 nasceu a comunidade cristã. No Primeiro Testamento, mais conhecido no
2. Confissão de B arm en................................................................ 169 mundo cristão por “Antigo Testamento”, encontramos numerosas formu­
3. Um Novo Credo (Igreja Unida do C an ad á)........................... 171 lações que atestam os grandes feitos de Deus em favor de seu povo.
4. Um credo da África do Sul (Allan Boesak)............................. 173 Clássica é, por exemplo, a confissão de fé contida em Deuteronômio 26.5-
5. Credo pela nova humanidade (Dom Pedro Casaldáliga) 174 11, em especial o v. 9: “O Senhor nos tirou da terra do Egito com pode­
6 . Credo da solidariedade (Luiz Carlos Ram os)......................... 175
rosa mão [...].” No Novo Testamento encontramos que, com a pergunta
7. Credo da mulher (Rachel C. W ahlberg).................................. 176 “mas vós [...] quem dizeis que eu sou?”, o próprio Jesus suscita em seus
8 . Credo de Seul: Creio nas promessas divinas........................... 177 discípulos, a começar por Pedro, a confissão lapidar: “Tu és o Cristo, o
9. Um credo pela terra (Dorothee Sõlle)...................................... 179
filho do Deus vivo.” (Mateus 16.15-16)
10. Confissão cristã num contexto inter-religioso: Crer num
De ambos os exemplos depreendemos que a confissão de fé é muito
Deus vivente............................................................................ 180
mais do que a recitação de uma doutrina. Ela é a afirmação pessoal e
11. Confissão do povo de Deus de Abya Yala: Um credo
comunitária de uma convicção que dá base, sentido e sustentação à pró­
macroecumênico...................................................................... 182
pria vida. A partir dela se vive, por ela pode-se inclusive dar a própria
12. Palavra final............................................................................. 184
vida, do que a História registra muitos exemplos.
Embora a confissão de fé seja sempre algo muito pessoal, ela tam­
bém é essencialmente uma elaboração comunitária, produto de uma co­
munhão de fé e esperança. A Igreja, sempre de novo, confessa a fé que
lhe dá sustentação, sem a qual ela se esvazia da razão de ser. A confissão
de fé mais conhecida, pelo menos na cristandade ocidental, é o assim
chamado Credo Apostólico. Confessado sempre de novo nos cultos de
muitas igrejas, “com toda a cristandade na terra”, ele resume o todo da fé
cristã. Ainda assim, deve ser interpretado pela teologia, em todos os tem­
pos. Em momentos decisivos da história foi também atualizado, traduzido
e reafirmado pela própria comunidade cristã para dentro de novos con­
textos e novos tempos.
É disso que trata o presente livro. Trata da história, do significado,
do conteúdo e da relevância do Credo Apostólico. Interpreta cada uma
de suas partes e traz exemplos de formulações contemporâneas de “no­
vos” credos. Assim, fortalece o conhecimento acerca da fé cristã e anima
a viver a partir dela.

9
Esta obra é fruto de um trabalho coletivo. Origina-se na idéia e na
iniciativa do Prof. Albérico Baeske, e foi assumido como projeto pelo
Departamento Histórico-Sistemático da Escola Superior de Teologia
(EST), de São Leopoldo/RS. Alguns percalços fizeram com que o esfor­
ço se estendesse por uma década. O processo demorado não lhe tira a
validade; ao contrário, realça sua relevância. Não é destinado exclusiva­
mente a um público teologicamente especializado. Tem embasamento te­
ológico científico, mas pretende dirigir-se a todas as pessoas interessadas
em aprofundar, com rigor e dedicação, o conhecimento da doutrina cris­
tã. A bibliografia, quando indicada, foi restringida a alguns títulos selecio­
nados.
Ainda que tenha havido diálogos intradepartamentais acerca do
projeto, cada autora ou autor tem responsabilidade própria em sua pró­
pria contribuição. Cada qual tem também seu próprio estilo. A autora e
Parte I
os autores são ou foram nesse período professores dessa instituição de
ensino e pesquisa teológicas, na tradição da Reforma de confissão luterana.
Todos efetuaram seu esforço, contudo - ou precisamente por isso - , em
compromisso e espírito ecumênicos. Pois o Credo Apostólico não é
patrimônio de uma determinada denominação ou “confissão religiosa”,
mas confissão de fé comum a toda a cristandade. Juntamente com o
organizador, entendem constituir este livro uma forma de “dar razão da
esperança que há em nós” (1 Pedro 3.15).

Walter Altmann
São Leopoldo, Dia da Reforma, 2003

10
Credo = eu creio

Walter Altmann

1. O que significa “Credo” ?


Diversas igrejas cristãs têm como um de seus elementos litúrgicos
proferir um credo durante o culto. O mais conhecido desses credos, na
cristandade ocidental (Igrejas Católica, Anglicana e da Reforma), é o cha­
mado Credo Apostólico.(0 pastor ou a pastora pode introduzir essa par­
te do culto com palavras como estas: “Junto com toda a cristandade na
terra, confessemos nossa fé com as palavras do Credo Apostólico.” O
costume mais freqüente é, então, que a comunidade inteira profira em alta
voz o Credo Apostólico.
Ao mesmo tempo, inúmeras outras comunidades da mesma igreja
ou de muitas outras igrejas, ao redor do mundo, estão proferindo a mes­
ma oração. Essa prática expressa uma profunda unidade na fé em Deus
Pai, Filho e Espírito Santo, que é muito mais importante do que as nossas
muitas divisões em diferentes igrejas organizadas. Ou seja: esta é uma
oração de altíssimo significado comunitário e ecumênico. E uma oração
comum da cristandade, independente de denominações. E aceita por igrejas
ortodoxas, católicas e protestantes.
Mas o que significa credo? Podemos observar que há popularmen­
te diferentes usos da palavra “credo” . Por exemplo, um censo poderá
incluir a pergunta quanto ao “credo” de uma pessoa entrevistada. Em
verdade quer-se saber a qual igreja essa pessoa está filiada. Aí, portanto,
a palavra “credo” tomou-se sinônima de “igreja” ou “denominação”. Po­
demos observar um outro exemplo, de sentido ainda mais amplo, numa
frase semelhante a esta: “Aquele partido professa um credo muito rigoro­
so.” Neste caso, quer-se dizer que o partido mencionado tem normas e
regras programáticas ou de conduta muito rigorosas. Um terceiro exem­
plo podemos observar na freqüente exclamação popular: “Credo!” Ou

13
até mesmo: “Cruz-credo!” Essa expressão mostra, no mínimo, espanto 2. Confissão de fé
ou temor diante de alguma narrativa, fato ou acontecimento. Mas pode
também ser expressão mais profunda de uma tentativa “mágica” de pre­ Dissemos acima que a palavra “credo”, que originalmente significa
venir um mal que poderia ameaçar a pessoa que faz a exclamação. Pode­ “creio”, passou a ser o nome para o tipo de oração que começa com essa
ríamos classificar essa prática de “supersticiosa”. palavra. Assim, toda oração passou a chamar-se “credo”. Podemos ago­
ra usar uma outra expressão: trata-se de uma “confissão de fé”. Existem
Todos esses significados surgiram com o decorrer do tempo, atra­
outros tipos de oração. Por exemplo:
vés do uso. Eles devem ser levados bem em conta, porque, quando fala­
mos em “credo” na teologia ou na igreja, certamente estamos pensando • a oração de louvor, em que expressamos nossa admiração pela
em outra coisa, mas as pessoas que nos lêem ou ouvem podem estar pen­ grandeza do amor e das obras de Deus;
sando num desses significados e não naquele que nós temos em mente. • a confissão de pecados, em que reconhecemos diante de Deus
Na origem, porém, a palavra “credo” tem outro significado. A pa­ nossas faltas e nossa culpa;
lavra vem do latim e aí significava “eu creio” ou, mais simples ainda, “creio”. • a intercessão, em que fazemos pedidos a Deus em favor de ou­
Quer dizer: “credo” é, em primeiro lugar, simplesmente a primeira palavra tras pessoas, por causa das necessidades que têm.
dessa oração que é pronunciada no culto. Se nós falássemos latim, e não No caso de um credo, temos uma confissão de fé em que pronun­
português, começaríamos a oração dizendo “credo”, ou seja, “creio”. Tudo ciamos aquilo que cremos. Ou seja: “confessamos” nossa fé. Por isso
o que segue na oração é o conteúdo do que se crê. perguntamos agora:
Num segundo momento, essa primeira palavra da oração, “credo”
= “creio”, transformou-se no nome desse tipo de oração. Ou seja: uma a. Que significa confessar?
oração com essas características passa a ser chamada de “credo”, por­ “Confessar” significa “afirmar a fé em conjunto”. Assim nos decla­
que ela começa com uma pessoa ou comunidade que crê e que, nessa ramos inseridos numa comunidade que compartilha a mesma fé/)
oração, quer dizer o que crê. E aí seguem-se as afirmações de conteúdo
do que se crê. Mais adiante neste livro, na Parte III, serão explicadas as b. O que faz uma confissão de fé?
diferentes partes do chamado “credo apostólico”, isto é, o conteúdo do
que se crê. Aqui lembramos que há um sujeito que afirma crer esse con­ Uma confissão de fé tenta dizer de uma forma abreviada o que a
teúdo que seguirá. Esse sujeito que crê, repito, é uma pessoa ou uma comunidade cristã crê. Poderíamos dizer que a comunidade cristã crê nos
comunidade. Na expressão litúrgica do culto, é uma pessoa e uma comu­ conteúdos que se encontram contidos na Bíblia. Mas esta é extensa, e
nidade que estão inseridas no todo da cristandade universal: “Junto com sabemos que há interpretações divergentes da Bíblia. Então, buscaram-
toda a cristandade na terra...” se, já na Igreja Antiga, formas abreviadas para expressar o que consta na
Bíblia e confessá-lo de forma unânime. No entanto, podemos também
Resumindo: “credo” significa originalmente “eu creio”. A partir daí
pensar no inverso: a Bíblia é uma extensão, um detalhamento de confis­
transformou-se em designação desse tipo de oração em que a pessoa ou
sões de fé muito breves que a comunidade costumava proferir. Ainda que
a comunidade que ora expressa o conteúdo do que crê, o conteúdo de
também um credo possa ter diferentes interpretações, não deixa de ser
sua fé. A rigor, são esses dois sentidos da palavra que queremos destacar
altamente significativo que uma comunidade ou, neste caso, “toda a cris­
e utilizar aqui, neste livro. Os outros sentidos que mencionamos como de
tandade” possa se unir em uma formulação comum da fé.
uso popular freqüente são construções posteriores do uso da língua por­
tuguesa. Refletem uma história, uma experiência e uma cultura de nosso Em Mc 8.29, encontramos esta brevíssima confissão, em referên­
povo. Assim devem ser levados em conta. Aqui, porém, queremos resga­ cia a Jesus: “Tu és o Cristo.”
tar e usar os dois sentidos originais da palavra “credo”. Em 1 Co 12.3, encontramos outra confissão, igualmente breve: “Je­
sus é Senhor” .

14 15
Essas confissões resumem toda a Escritura. Mesmo assim, elas tam­ gimento de novas confissões. Estas às vezes são não mais extensões do
bém refletem os respectivos contextos nos quais foram proferidas. A de­ Credo Apostólico, mas novas formulações da fé numa situação determi­
signação “Cristo”, que significava “Messias”, para Jesus, só pode ser en­ nada. É o caso, por exemplo, da conhecida Confissão de Augsburgo,
tendida sobre o pano de fundo do mundo religioso judaico, pois aí havia a confissão básica do luteranismo desde 1530/Ela foi redigida pelo íntimo
expectativa da vinda do Messias. A confissão, portanto, expressa que colaborador de Lutero, Filipe Melanchthon, e apresentada ao Imperador
esse Messias veio na pessoa de Jesus. E isso é central e decisivo para a pelos príncipes que haviam aderido à Reforma, já como “sua” confissão
nova fé cristã. Portanto, a confissão resume tudo quanto é crido. Já a de fé. íam bém o Catecismo Menor de Lutero, escrito em 1529, é consi­
confissão de que Jesus é Senhor deve ser entendida no contexto do mun­ derado uma confissão de fé e, portanto, um credo, em igrejas luteranas.)
do greco-romano, em que o título “Senhor” era aplicado a diversas divin­ Um outro exemplo mais recente é a Confissão de Barmen, redigida em
dades ou mesmo ao imperador. A confissão de que Jesus era Senhor não 1934, por cristãos evangélicos reunidos, na Alemanha, na então chamada
pretende, porém, adicionar um senhor a mais entre muitos outros senho­ Igreja Confessante, que proclamou a fé em Cristo como único Senhor,
res, mas, ao contrário, afirmar que há um único senhor, e este é Jesus. diante da ideologia e das práticas nazistas que postulavam a introdução
“Ninguém pode servir a dois senhores...” (Mt 6.24) do princípio nacional-socialista do “Führer” dentro da Igreja2.
Observamos, pois, que essas confissões, ainda que sumamente bre­ Esses credos foram aceitos ou pela cristandade praticamente em
ves, resumem a essência da fé cristã. Contudo, também podemos obser­ seu conjunto, ou por uma igreja, ou, ainda, por uma parcela significativa
var o inverso: toda a Escritura é uma extensão dessas confissões tão bre­ de igrejas, numa determinada situação específica que representa um de­
ves. Ou seja: a comunidade cristã, em seu desejo e necessidade de dar safio para a fé. Existe também a possibilidade de formulações próprias de
testemunho de sua fé, daquilo que ela crê, vai ampliando essas confissões indivíduos ou de grupos que sentem a necessidade e a vontade de formu­
básicas, e assim surgem, aos poucos, credos mais amplos. Foi o que larem de maneira atualizada a fé cristã. Essas formulações não têm a ade­
aconteceu com o Credo Apostólico, o que está explicado com mais deta­ são expressa de igrejas e, portanto, não podem reivindicar o mesmo grau
lhes na Parte II deste livro. de validade das confissões oficialmente adotadas. Mas elas são expres­
Em todo caso, já podemos observar, por exemplo, no coração do sões vivas de uma fé atualizada para as mais diferentes situações em que
próprio Credo Apostólico, aquela confissão original e resumida de que as pessoas cristãs e as comunidades cristãs vivem. A isso voltaremos na
Jesus é “nosso Senhor”. Dito de outra forma: bem no centro do Credo, Parte IV de nosso livro.
está essa afirmação de que Jesus é Senhor, só que agora envolta numa Podemos ilustrar o dito acima no seguinte esquema:
afirmação mais ampla de quem é Deus, da trajetória de Jesus Cristo e dos Bíblia
frutos do Espírito Santo. Semelhantemente, depois do Credo Apostólico,
surgiram outros credos que ampliaram ainda mais a formulação do con­
teúdo da fé. E o caso dos chamados Credos Niceno e Atanasiano, tam­
bém reconhecidos por quase todas as igrejas cristãs, embora sejam muito
Jesus é Senhor
menos usados em culto do que o Credo Apostólico1.
Assim, é importante observar que novas situações provocam o sur­ Credos (Apostólico,

1 Já foi dito acima que, a rigor, o Credo Apostólico é usado liturgicamente pelas igrejas do
Ocidente. As igrejas ortodoxas, do Oriente, usam liturgicamente o chamado Credo Niceno,
melhor designado como Niceno-Constantinopolitano, também reconhecido pelas igrejas do
Ocidente (Católica, Anglicana e da Reforma), embora não usado com tanta freqüência. Em
\ Niceno e Atanasiano)

Catecismo Menor
Confissão de Augsburgo
todo caso, este seria o credo mais universal, e não o Credo Apostólico, o qual, contudo, é
mais usado e conhecido pelas comunidades ocidentais. 2 Confira capítulo final deste livro, intitulado A contemporaneidade do Credo.

16 17
Quer dizer: em primeiro lugar, o credo tenta resumir toda a fé con­ Esse texto da Constituição da IECLB também preserva a dimen­
tida na Bíblia. Ele também atualiza a confissão de fé para dentro de uma são ecumênica. Isso está expresso na vinculação com todas as “igrejas no
situação ou uma época bem específica. Nesse sentido, o conteúdo global mundo que confessam Jesus Cristo como único Senhor e Salvador”. Esta
da Bíblia é “estreitado” na confissão de fé. Mas, em verdade, não se trata é uma tradicional formulação básica do movimento ecumênico. A confis­
de “estreiteza”, e sim de uma atualização muito precisa do todo da men­ são do senhorio de Cristo e da salvação em Cristo une as igrejas do
sagem bíblica. Tudo está, de alguma forma, contido na formulação abre­ mundo. Já a base confessional da outra igreja luterana no território brasi­
viada. Posteriormente, porém, pode surgir a necessidade de ampliar a leiro, a Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB) é mais ampla, abran­
formulação abreviada, para afirmar explicitamente dimensões da fé que gendo o chamado Livro de Concórdia (1580), que inclui outros textos
ficaram apenas contidas implicitamente na confissão abreviada. Aí a con­ confessionais da Reforma Luterana, além dos mencionados acima, quais
fissão de fé se “alarga” de novo. Mas não são novos conteúdos que ve­ sejam, a Apologia da Confissão de Augsburgo (Melanchthon, 1531), os
nham a ser acrescentados à fé; são apenas explicitações para dentro de Artigos de Esmalcalde (Lutero, 1537), o Tratado sobre o Poder e o Pri­
novas situações. Quando nós formulamos nossos credos, não apenas re­ mado do Papa (Melanchthon, 1537), o Catecismo Maior (Lutero, 1529)
petimos o credo já conhecido, mas também o atualizamos para dentro de e aFórm ula de Concórdia (1577).
nossa realidade. Outras Igrejas não têm uma base confessional tão claramente defi­
nida. A própria Igreja Católica aceita os credos da Igreja Antiga e tem
c. Qual é, então, a base confessional das igrejas? inúmeras formulações doutrinais estabelecidas por concílios posteriores
Há igrejas que, por razões de seu próprio desenvolvimento históri­ aos da Igreja Antiga ou em documentos papais. Estas formulações e do­
co, estabeleceram claramente uma base confessional. É o caso das igrejas cumentos, quando expressões de definição dogmática, têm uma dimen­
luteranas, embora essa base não tenha a mesma amplitude em diferentes são confessional evidente. Contudo, a Igreja Católica não possui um rol
igrejas luteranas. No caso da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no de escritos chamados confessionais5. Também a Igreja Anglicana não tem
Brasil (IECLB), essa base se constitui, fundamentalmente, na própria Bí­ propriamente um corpo confessional delimitado, tal como as igrejas lute­
blia3, mas também nos Credos da Igreja Antiga, no Catecismo Menor de ranas. Seu livro básico, o Livro de Oração Comum (Book ofCommon
Lutero e na Confissão de Augsburgo. Citamos da Constituição da IECLB: Prayer), pode ser tomado como base confessional da Igreja Anglicana.
Entretanto, ele é antes de tudo, como o título o indica, um manual litúrgico
Art. 5o - A IECLB tem como fundamento o Evangelho de Jesus
e devocional, contendo, porém, num anexo, 39 artigos considerados re­
Cristo, pelo qual, na forma das Sagradas Escrituras do Antigo e do
gras de fé. Na tradição reformada (que remonta aos reformadores Calvi-
Novo Testamentos, confessa sua fé no Senhor da una, santa, univer­
sal e apostólica Igreja. no e Zwínglio), surgiram já no século XVI uma série de confissões, a mais
famosa das quais talvez seja o Catecismo de Heidelberg (1563)6, mas
§ Io- Os credos da Igreja Antiga, a Confissão de Augsburgo [...]
elas nunca chegaram a ocupar um lugar de tanta importância quanto o
inalterada e o Catecismo Menor de Martim Lutero constituem ex­
pressão da fé confessada pela IECLB. ocupado pelos escritos confessionais luteranos. Há na tradição reforma­
da, embora todo o empenho por confissões atualizadas, um certo receio
§ 2o - A natureza ecumênica da IECLB se expressa pelo vínculo de
fé com as igrejas no mundo que confessam Jesus Cristo como único
Senhor e Salvador.4

3 A Bíblia é entendida como única norma de fé e conduta, a norma que normatiza as confis­ 5 De grande autoridade goza, embora não seja uma coleção oficial, o “manual de símbolos (=
sões eclesiais (norma normans), enquanto estas são classificadas como dependentes da credos), definições e declarações da Igreja em matéria de fé e costumes” editado por H.
Escritura e por ela normatizadas (normae normatae). Denzinger e A. Schõnmetzer, sob o título latino Enchiridion Symbolorum definitionum et
4 Constituição da IECLB, artigo 5o, in: IGREJA EVANGÉLICA DE CONFISSÃO LUTERA­ declaratiomim de rebus fidei et morum.
NA NO BRASIL, Boletim Informativo do Conselho Diretor, n. 155, 31 de março de 1997. 6 Digna de menção também é, entre muitas outras, a Confissão Escocesa, de 1560.

18 19
de que as confissões possam ocupar o espaço exclusivo da própria Escri­ perador romano, pois naquele tempo só ele podia legalmente deter o títu­
tura como fundamento único da fé7. lo de Senhor. Proclamar que Jesus é o Senhor era, portanto, expressão
Também o movimento ecumênico se deu uma base confessional. A de coragem pessoal e comunitária e podia mesmo ser entendido como
formulação constitucional de 1948 - quando foi criado em Amsterdam, subversão contra o imperador.
Holanda, o Conselho Mundial de Igrejas (CMI) - foi emendada na ter­ Em Mt 10.32-33 mostra-se uma situação de confissão diante de
ceira assembléia geral, de 1961, em Nova Delhi, quando do ingresso das um tribunal. Quer dizer, a confissão podia levar a punições pelas autorida­
igrejas ortodoxas no CMI, com uma referência doxológica que realça a des ou, mesmo, à morte, como ocorreu com os mártires da Igreja Antiga.
dimensão trinitária da fé cristã, rezando, desde então, assim: Romanos 10.9-10 fala da confissão do coração e da boca. Hebreus 4.14
O Conselho Mundial de Igrejas é uma comunhão de igrejas que con­ nos lembra de manter a confissão, mesmo em tempos difíceis.
fessam o Senhor Jesus como Deus e Salvador, segundo as Escrituras (Ou seja: a confissão abrange fé, vida e ação.
e por isso buscam cumprir em conjunto a sua vocação comum para a
glória do único Deus, Pai, Filho e Espírito Santo8. e. Onde confessamos nossa fé?
Em primeiro lugar, observa-se que confessamos nossa fé no culto,
d. Quais as dimensões da confissão?
em forma de louvor e oração de unidade na fév;Mas culto também repre­
Em primeiro lugar, há em cada confissão uma dimensão de com­ senta serviço a outras pessoas e ao mundo, Ássim, a confissão também é
prometimento. Quem confessa essa fé tem um compromisso com ela. E testemunho público, como já foi exposto acima.;
algo que envolve e afeta a vida inteira da pessoa que confessa sua fé. E o Em segundo lugar, observa-se também que a formulação da confis­
que lhe é mais fundamental e decisivo. Em segundo lugar, há uma dimen­ são de fé surge, com freqüência, em situações de conflito. Nessas situa­
são comunitária. É uma comunidade ou uma igreja que confessa a sua fé ções, a comunidade cristã quer rejeitar doutrinas falsas e afirmar a fé ver­
em conjunto. Embora a confissão de fé tenha o comprometimento pesso­ dadeira. Trata-se de um elemento de extrema importância para a identi­
al de cada qual, quem confessa fé não o faz num sentido individualista. Ao dade, fidelidade e continuidade da Igreja. Um exemplo recente foi o apar-
contrário, sabe-se integrante de uma comunhão de fé. Esta é sempre com­ theid na África do Sul, um sistema e uma ideologia racistas que separa­
partilhada com irmãos e irmãs. O Credo Apostólico, como confissão de vam as raças e afirmava a superioridade da raça branca sobre as demais,
fé comum às mais diferentes igrejas da cristandade ocidental, de certa em especial sobre a negra. Em 1977, as Igrejas-membro da Federação
forma une toda a Igreja cristã, apesar de suas divisões. Finalmente, há Luterana Mundial (FLM), reunidas em Assembléia Geral em Dar-es-Sa-
uma dimensão pública. A Igreja cristã não tem uma finalidade última em laam, na Tanzânia, rejeitaram essa ideologia como heresia (doutrina falsa)
si mesma, mas se sabe a caminho (Igreja peregrina) e a serviço (Igreja e reafirmaram a igualdade de todas as pessoas diante de Deus, o que
profética, diaconal e missionária). A própria confissão é testemunho da deveria levar a uma comunhão de brancos e negros na comunidade cristã,
comunidade cristã diante do mundo. Ela proclama ao mundo a razão últi­ em particular na celebração da Ceia do Senhor, e a uma luta pela igualda­
ma de existência da Igreja como povo de Deus na terra. de racial na sociedade.
Assim, por exemplo, a confissão “Jesus é Senhor” desafiava o im­ Ou seja: cada credo é uma afirmação da fé, mas como tal é tam­
bém a negação de doutrinas que são reconhecidas como não-evangéli-
cas. Nos exemplos que usamos em nosso estudo:
7 Quanto ao Brasil, é interessante observar que a “invasão francesa”, em 1555, no Rio de
Janeiro, sob Villegaignon, trouxe ao atual território brasileiro um contingente de fiéis calvi- • “Jesus é o Cristo” foi uma afirmação audaciosa, a qual negava
nistas, que redigiram aqui a chamada Confissão Fluminense.
que ainda se devesse esperar pela vinda do Messias, entendendo que o
8 In: Henry BETTENSON, Documentos da Igreja Cristã, São Paulo: ASTE, 1967, p. 358.
Cf. também a constituição do CMI, in: WORLD COUNCIL OF CHURCHES, Yearbook evento salvífico definitivo já havia ocorrido em Jesus, sua vida, morte e
1999, Geneva: WCC, 1999, p. 67. ressurreição.

20 21
• “Jesus é o Senhor” foi uma confissão que negou o senhorio do
imperador romano, atribuindo-o exclusivamente a Jesus;
• o Credo Apostólico negou, entre outras, doutrinas que não afir­
mavam a divindade de Jesus Cristo e do Espírito Santo, formulando a fé
cristã numa forma trinitária;
• a Confissão de Augsburgo incluiu em sua formulação a negação
explícita de uma série de doutrinas consideradas contrárias à renovada
descoberta do evangelho;
• a Confissão de Barmen negou a pretensão de autoridade do
Führer,
• a Assembléia Geral da Federação Luterana Mundial de 1977 negou
a ideologia do apartheid, reafirmando a igualdade de todos os seres hu­
manos como criaturas de Deus. Parte II
Em tudo, porém, podemos nos guiar pelo preceito apostólico que
encontramos em 1 Pe 3.15: “Santificai a Cristo, como Senhor, em vossos
corações, estando sempre preparados para responder a todo aquele que
vos pedir razão da esperança que há em vós.” Nessa esperança vivemos;
dela damos testemunho.

22
História e significado do Credo

Martin N. Dreher

1. Surgimento e desenvolvimento do Credo


No segundo século, a fé cristã teve de fazer uma série de confis­
sões de fé, decorrentes de uma profunda crise, fruto de sua passagem do
mundo judaico para o mundo greco-romano. A primeira grande confis­
são foi a formulação do cânone bíblico, constante de Antigo e Novo Tes­
tamento. Com ele, o jovem cristianismo confessava que o Deus do Antigo
Testamento era o Pai de Jesus Cristo, do qual falam os escritos do Novo
Testamento, e que ninguém pode se colocar em seu ensino acima do câ­
none. Doravante, tudo o que se ensinasse na comunidade cristã deveria
ter o cânone por norma/Assim, a Bíblia é o primeiro dogma cristão)
O segundo grande dogma a surgir na caminhada da fé cristã foi,
sem dúvida, o Credo. Talvez se possa, neste dogma, compreender real­
mente qual o significado da palavra “dogma”, qual seja, “confissão”, pois
credo nada mais é que confissão. Credos, fórmulas de confissão, existem
desde os tempos mais remotos na Igreja cristã, mas nenhuma dessas fór­
mulas de confissão chega a ser formulação oficial de toda a Igreja, pelo
menos no século I. No século II, a situação já é diferente. Em meados do
século II, a comunidade de Roma tem, segundo Hans Lietzmann, o se­
guinte Credo:
Eu creio em Deus, o Pai, o todo-poderoso;
e em Cristo Jesus, seu Filho unigénito, nosso Senhor;
e no Espírito Santo, a santa Igreja, a ressurreição da came.
Já em fins do século II, esse credo está bastante ampliado e é a
base do credo que nós, hoje, denominamos de Credo Apostólico. Nele,
salta aos olhos a inclusão de uma confissão especial a Cristo e a inclusão
do perdão dos pecados no terceiro artigo:

25
Eu creio em Deus, o Pai, o todo-poderoso; Eu creio em um Deus, o Pai, o todo-poderoso,
e em Cristo Jesus, seu unigénito Filho, nosso Senhor, o criador de tudo (o que é) visível e invisível;
o qual nasceu do Espírito Santo e da Virgem Maria, e em um Senhor Jesus Cristo, o unigénito Filho de Deus,
o qual foi crucificado sob Pôncio Pilatos e sepultado, que nasceu do Pai antes de todos os éones,
no terceiro dia ressurgiu dos mortos, através do qual tudo se fez,
subiu aos céus, que se tomou homem, sofreu e ressuscitou ao terceiro dia,
está sentado à direita do Pai, subiu aos céus,
donde há de vir para julgar os vivos e os mortos; e virá em glória
E no Espírito Santo, a santa Igreja, o perdão dos pecados, a ressurrei­ para julgar os vivos e os mortos;
ção da came. (Lietzmann II, p. 106s.). e no Espírito Santo.
O esquema que encontramos no Credo da comunidade de Roma Também nesse credo, podemos notar que houve acréscimos cris-
destaca especialmente o acréscimo cristológico. Além disso, há duas afir­ tológicos. Qual a base desse credo? Ao que tudo indica, é a formulação
mações básicas a respeito de Cristo que iniciam com a formulação “o de Paulo que encontramos em 1 Co 8 .6 :
qual”. A primeira dessas formulações cita o nascimento a partir do Espí­
um só Deus, o Pai, de quem são todas as coisas
rito Santo e da Virgem, querendo, ao que tudo indica, partindo de Lc
e para quem existimos,
1.35, explicar por que Jesus é denominado, na primeira linha do segundo
e um Senhor Jesus Cristo,
artigo, de “unigénito Filho de Deus”. A segunda formulação abrange afir­ pelo qual são todas as coisas e nós por ele.
mações que vão desde a paixão até a exaltação e a futura vinda de Cristo
para juízo. Sua formulação aponta nitidamente para Fp 2.5-11, de onde Dessa formulação paulina deve ter surgido um credo trinitário, cuja
também deve ter sido tirada. Tudo isso nos mostra que o acréscimo cris­ formulação era, talvez:
tológico quer ser fundamentação bíblico-teológica da antiga afirmação Eu creio em um Deus, o Pai, o todo-poderoso,
que dizia: “E em Cristo Jesus, seu unigénito Filho, nosso Senhor”. do qual são (provêm) todas as coisas,
Esta nossa constatação, contudo, não explica os motivos que leva­ e em um Senhor, Jesus Cristo, o Filho unigénito de Deus,
ram a esta ampliação do segundo artigo. Por que ela teria surgido? Possi­ pelo qual são todas as coisas,
velmente, essa formulação ampliada se deve à necessidade de confessar e no Espírito Santo.
Jesus Cristo contra dois tipos de doutrinas que para os cristãos do século Qual a diferença básica entre o Credo do Ocidente e o Credo do
II eram inaceitáveis: trata-se do docetismo e do monarquianismo ado- Oriente? Creio que podemos assumir a observação de Bemhard Lohse:
cianista. O docetismo (no grego, “dokein” = parecer) negava a verda­ É característico dos credos orientais o fato de eles não interpretarem
deira humanidade de Jesus e, com isso, a encarnação. O monarquianismo a filiação divina de Jesus Cristo simplesmente a partir do nascimento
adocianista, querendo preservar o monoteísmo e a unidade de Deus, ne­ virginal, como o faz R. Os orientais entendiam a filiação a partir da
gava a divindade de Jesus, afirmando que Jesus fora adotado por Deus geração preexistente efetuada por Deus-Pai. Desse modo, eles pre­
por ocasião do batismo. tendiam ressaltar a diferença entre o Filho de Deus e tudo o que foi
Esse Credo da comunidade de Roma veio a ser, mais tarde, o cre­ criado sujeito ao tempo. (Lohse, p. 40).
do dominante nas comunidades cristãs do Ocidente. Também nesse credo oriental vamos encontrar traços nitidamente
No Oriente, ao contrário do que aconteceu no Ocidente, houve antidocéticos e antimonarquianistas.
uma multiplicidade de credos. No entanto, Lietzmann nos mostrou que, Qual o significado do Credo no contexto da confissão de fé? Qual
se compararmos os credos orientais do século IV, vamos encontrar uma o lugar do credo na vida da Igreja? Há unanimidade na pesquisa de que o
formulação básica que é, mais ou menos, a seguinte: lugar vivencial do Credo é o batismo. Quando de seu batismo, o batizan­

26 27
do era perguntado: Crês em Deus? Crês em Jesus Cristo? Crês no Espí­ mos textos surgidos nos séculos posteriores, quase todos os autores vão
rito Santo? A essas perguntas seguia-se a resposta do batizando. Isso se dizer que a palavra “Pai” visa falar da relação da primeira pessoa da Trin­
evidencia nas catequeses de Cirilo de Jerusalém e na Tradição Apostólica dade com a segunda pessoa da Trindade. O Pai seria o Pai do etemo
de Hipólito de Roma. Essas duas fontes revelam, porém, ainda algo mais. Filho. Essa é a interpretação de Cirilo de Jerusalém e de Cipriano de
Para que o batizando pudesse dar essas respostas, necessário se fazia Cartago. No entanto, se olharmos textos contemporâneos ao surgimento
que antes ele houvesse se submetido a um ensino catequético. Creio que do Credo, veremos que, certamente, é outra a interpretação das palavras
é nesse ensino catequético que vamos encontrar o local do surgimento do “Pai” e “Todo-poderoso”. É claro que não podemos deixar de lado a
Credo. O batizando somente podia responder “creio”, no dia do seu ba­ possibilidade da interpretação que vamos encontrar nos séculos posterio­
tismo, caso tivesse sido antes ensinado. Assim, é no ensino catequético, res. Clemente de Roma vai escrever aos Coríntios que “se aproximem de
no catecumenato, que vamos encontrar o lugar de surgimento da fórmula Deus em santidade de alma, amando o nosso Pai bondoso e misericordi­
de fé. Para poder servir de base para o ensino catequético, essa fórmula oso, o qual nos admitiu como herdeiros” (cap. 29). O mesmo pode ser
de fé tinha de ser, necessariamente, um resumo da fé cristã. Com isso, o encontrado nas cartas de Inácio de Antioquia e na II Carta de Clemente.
Credo assume duas funções: ele é ponto de referência para a fé e, ao Mesmo assim, é forçoso reconhecer que, no século II, quando se usou o
mesmo tempo, a base para-a instrução catequética. conceito “Pai”, pensou-se, em primeiro lugar, em Deus como o Pai, em
sua qualidade de Pai e Criador do Universo. Clemente fala de Deus
Na luta contra as heresias, o Credo pode servir de critério para
como de “pai e criador de todo o mundo”(cap. 19), de “Criador e Pai
discernir entre a verdade e a negação do evangelho.
dos séculos” (cap. 35). Outros exemplos poderiam ser mencionados.
Assim, para o cristão do século II, esse significado, o de Deus como Pai
v 2. A teologia do Credo Apostólico e Criador do Universo, é o significado primário para a palavra “Pai”,
mesmo que não tenha sido a única interpretação. Essa interpretação da
Os credos que surgiram na Igreja foram manifestos teológicos, re­
palavra “Pai” encontramos em 3 Macabeus 2.21,5.7 e em Filão de Ale­
pletos de significado dogmático e, muitas vezes, também marcados pela
xandria.
controvérsia. Isso também podemos notar no Credo da comunidade de
Roma. Nele podemos encontramos a norma, a orientação para a teologia Na palavra “Todo-poderoso”, temos a tradução do vocábulo lati­
popular, a fé e a esperança da Igreja Primitiva. no omnipotens. A palavra grega original, no entanto, tem um significado
mais amplo: pantokrátor= “aquele que tudo governa”, “aquele que tudo
a. O primeiro artigo domina”. Em uma de suas catequeses batismais, nas quais explica o signi­
ficado da palavrapantokrátor, Cirilo de Jerusalém afirma:
Como vimos, em sua formulação original, o primeiro artigo do Cre­
do tinha as seguintes palavras: “Creio em Deus o Pai, o Todo-podero- Todo-poderoso é quem possui poder sobre todas as coisas, quem do­
mina tudo. Quem afirma que um é senhor da alma e outro senhor do
s o ”. Por trás dessas palavras, temos a formulação de M t 28.19: “Em
corpo, exprime com isso que nenhum deles é perfeito, faltando a ambos
nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”. Como devemos entender as
alguma coisa. Aquele que tem poder sobre a alma, mas não sobre o
palavras “o Pai, o Todo-poderoso”? Qual a relação dessas palavras com corpo, como seria todo-poderoso? E quem domina os corpos e não as
a palavra “Deus”? Há interpretações que vêem nas palavras “Pai” e ‘Todo- almas, como seria todo-poderoso? [...] A Escritura divina e a doutri­
poderoso” dois conceitos explicativos para Deus: Deus seria Pai e Todo- na da verdade conhecem um só Deus que domina com poder sobre
poderoso. Outros dizem que o “Pai, o Todo-poderoso” deve ser visto todas as coisas. (8.3s.).
como um único título. Essa segunda possibilidade deve ser descartada,
A pergunta à qual respondia o batizando no Ioartigo era relativa à
pois não a encontramos na tradição bíblica. Talvez seja mais fácil pergun­
paternidade criadora de Deus, sua majestade e sua soberania transcen­
tar pelo sentido dos dois conceitos “Pai” e “Todo-poderoso”. Se olhar-
dente. Pode parecer que essa confissão de fé não fosse algo particular-

28 29
mente cristão, pois os pensadores judaicos e os pensadores pagãos da de “monogenés” : unicus = único. Encontramos essa palavra em Lucas,
época, principalmente o estóico Epiteto, concordariam plenamente com João e na Epístola aos Hebreus. Seu sentido podemos depreender de Hb
esse pensamento. No entanto, quando um candidato ao batismo proferia 11.17: “Pela fé Abraão, quando posto à prova, ofereceu Isaque; estava
estas palavras, ele sabia de algo que nem o judeu e nem o pagão sabiam: mesmo para sacrificar o seu unigénito, aquele que acolheu alegremente
o eterno Pai do mundo também é o Pai de Jesus Cristo e se propõe as promessas.” Ou também de Lc 7.12: “Eis que saía o enterro do filho
também a ser Pai de quem vai ser batizado, por graça. Ele sabia, ainda, único de uma viúva...” No entanto, é nos escritos joaninos que vamos
que o pleno poder e domínio de Deus se manifestara na ressurreição de encontrar o termo como designativo para o relacionamento de Jesus com
seu Filho e na redenção de seu povo eleito. Aqui, no primeiro artigo, Deus. Em João, a palavra “unigénito” designa a peculiaridade de Jesus no
temos a repetição da confissão que a comunidade faz frente a Marcião, tocante à sua filiação e no seu relacionamento cheio de confiança no Pai e,
ao professar a unidade do Antigo e do Novo Testamento. Marcião nega­ ainda, seu conhecimento do Pai. Examinando a restante literatura cristã,
va, no século 2, que o Deus do Antigo Testamento fosse o Pai de Jesus vamos encontrar monogenés apenas aqui no Credo e, depois, nos escri­
Cristo e declarava que o mundo fora criado por um Deus inferior, o Deus tos de Irineu (bispo em Lyon, por volta de 178). Isso significa que seu uso
dos judeus. não é comum. Por isso, é importante que nos perguntemos por que vai ser
usado no Credo. Deve haver um motivo especial. J. N. D. Kelly nos dá
b. O segundo artigo conta de que os gnósticos valentinianos usavam o conceito joanino para
O segundo artigo do Credo Romano era bastante breve: “E em diferenciar entre monogenés e o Jesus histórico, valendo-se, inclusive, da
Cristo Jesus, seu Filho, nosso Senhor". Talvez tenha sido, originalmen­ formulação de Jo 1.14: “vimos a sua glória, glória como do unigénito do
te, mais breve ainda, pois também as palavras “único” (unigénito) e “Se­ Pai.” Se a comunidade de Roma usa a palavra monogenés, devemos ver
nhor” podem ter sido acréscimos. Nessa formulação, a seqüência “Cristo nesse fato uma confissão antignóstica. O Messias Jesus é o monogenés
Jesus” nos faz pensar, pois na maioria das formulações da Igreja Antiga do Pai! Com isso, fica claro que o conceito “unigénito” passa a fazer parte
encontramos a seqüência “Jesus Cristo”. A seqüência “Cristo Jesus” mostra do linguajar ortodoxo por motivos de ordem confessional, por polêmica
quão antiga é a formulação básica do 2o artigo do Credo. Ao ser formu­ antignóstica.
lado, “Cristo” não era apenas um nome próprio a mais, mas era tradução Se o que vimos é verdade, é necessário que caia por terra uma tese
do termo “Messias”. O apóstolo Paulo sabia do significado dessa pala­ que afirma que o Credo da comunidade de Roma não tem interesse na
vra, pois usava preferencialmente a seqüência “Cristo Jesus” : Jesus é o vida de Cristo, anterior à sua existência terrena. Monogenés acentua, no
Messias. É, no entanto, nas narrativas acerca da pregação apostólica que campo cristológico, a preexistência daquele que se encarna na bem-aven­
encontramos a maior quantidade de paralelos (cf. Atos 2.3,6; 5.42; 18.28). turada Virgem.
Vemos, pois, que a formulação básica do Credo é tomada do cerne da O título “seu Filho” reproduz o testemunho dos evangelhos a res­
pregação cristã primitiva. A pregação cristã primitiva, por seu tumo, va­ peito da filiação divina de Jesus (Mc 13.32;Lc 10.21ss.;Mt 11.25ss.).É
leu-se da autoridade do Antigo Testamento. “O Cristo” é tradução de o título que Jesus dá a si mesmo. A Igreja assumiu essa designação de
“Messias”. O próprio Jesus valeu-se da categoria messiânica, e a comu­ Jesus, e ela passou a gozar da predileção dos autores cristãos. A confis­
nidade primitiva, cujas origens estavam no judaísmo, não teve dificulda­ são de que Jesus é o Filho de Deus é uma das mais antigas confissões
des em usar o termo Messias para sublinhar a importância de Jesus. Para cristãs. Infelizmente, não nos é mais possível dizer qual o significado teo­
as gerações posteriores, convertidas no mundo grego e não mais acostu­ lógico da expressão “seu Filho” no Credo romano.
madas às categorias judaicas, tiveram de valer outros títulos, pois a pala­ A aclamação de Jesus como “Senhor” também é uma das mais
vra Messias não era naturalmente compreensível. antigas confissões cristãs. Em 1 Co 12.3, Paulo apresenta a confissão
A essa confissão, “Cristo Jesus”, foram ligadas duas outras desig­ “Senhor Jesus” como expressão típica da fé do crente que se encontra
nações, “seu Filho unigénito” e “nosso Senhor.” “Unigénito” é tradução sob a inspiração do Espírito Santo. “Senhor (é) Jesus” é também uma das

30 31
mais antigas confissões batismais (At 8.16; 19.5; 1 Co 6.11). A antigüi­ ria é descrita nas seguintes palavras: “Donde há de vir para julgar os vivos
dade dessa confissão evidencia-se nas palavras aramaicas maranatha (= e os mortos”.
Vem, Senhor nosso). Para o povo, essa confissão era muito significativa, Resumindo, no acréscimo cristológico encontramos os sentimentos
pois Senhor, kyrios, era a tradução do hebraico adonai, Javé. da Igreja Antiga: ela exulta por causa do triunfo de Cristo sobre a morte e
Em anos posteriores, o credo da comunidade de Roma foi acresci­ sobre os poderes que contra ele quiseram lutar; ela rejubila também por
do por uma longa complementação cristológica. Nela, são acentuados o causa da ação do Pai em relação ao Filho; ela se alegra e, ao mesmo
nascimento de Jesus do Espírito Santo e da bem-aventurada Virgem, bem tempo, está preocupada frente à segunda vinda de Jesus que julgará a
como seu sofrimento, sua glorificação e sua segunda vinda. Por via de todas as pessoas, como representante do Pai.
regra, tem-se acentuado que a interpolação cristológica se deveu à polê­
mica com o docetismo. Essa verdade confere apenas parcialmente, pois c. O terceiro artigo
o que temos na interpolação é querigma contido na mais antiga pregação Examinemos a confissão relacionada com o Espírito Santo. O ter­
sobre Cristo (cf. 1 Co 15.3ss.). Além disso, os feitos de Cristo sempre ceiro artigo do Credo Romano é bastante singular, pois é formado por
foram narrados no ensino catequético. A partir daí, é lógico que aquilo uma seqüência de conteúdos bastante distintos uns dos outros. Em época
que era ensinado também fosse incluído no Credo batismal. posterior, quando a doutrina da Trindade já estava completamente desen­
Vejamos, agora, as diversas partes da interpretação cristológica. A volvida, houve preocupação quanto ao fato de uma série de afirmações
primeira afirmação é uma acentuação do nascimento do Salvador do Es­ menos significativas estarem ao lado do Espírito Santo. Rufino, por exem­
pírito Santo e da Virgem Maria. Já procuramos situar essa formulação, plo, acentuava que a partícula “no” (“creio n o ...), no terceiro artigo só se
partindo de Lc 1.3 5. referia ao Espírito Santo (Comm in symb. apost. 34; 37 [C. C. L. 20,
Qual seria o significado das palavras “sob Pôncio Pilatos”? Essas 169s; 171s]). As demais partes do terceiro artigo são confessadas, mas
palavras querem acentuar que o evento salvífico se situa na história. Tra- não são objeto de fé. Fausto de Riez diz que “no” se refere à divindade do
ta-se de uma datação que visa comprovar que os acontecimentos nome­ Espírito Santo e que não se poderia dizer nada da divindade da Igreja (De
ados não aconteceram simplesmente alguma vez, em algum lugar no pas­ Spir. sanct. 1,2 [C. S. E. L. 2 1 ,103s]). Diz ele: “Confessamos que estas
sado, e que o Evangelho não é produto de idéias humanas. coisas foram por Deus ordenadas e que mantêm sua existência por seu
intermédio.”
A formulação “foi sepultado” já é citada por Paulo como parte
integrante da catequese, da qual ele próprio participou (1 Co 15.4; Rm Na Tradição de Hipólito de Roma, a pergunta relativa ao terceiro
6.4). A fórmula pode ter sido usada na luta antignóstica, mas não deve­ artigo teria a seguinte versão: “Crês também no Espírito Santo na Santa
mos esquecer que ela ocupa boa parte dos relatos evangélicos! O sepul- Igreja...?” (cap. 48.5).
tamento de Jesus deve ter ocupado muito os cristãos antigos, pois era o Quando nos perguntamos sobre como interpretar a seqüência de
prelúdio para a sua ressurreição. Esse motivo deve ter pesado mais do conteúdos do artigo, devemos ter em conta que, para a comunidade de
que a polêmica antignóstica, quando da inclusão da fórmula. Roma, o esquema trinitário deve ter sido mais importante do que a dou­
“Ressuscitou dos mortos ao terceiro dia” faz parte do cerne da trina trinitária, que viria a ser desenvolvida em época posterior. Recor­
pregação cristã desde que se inicia a missão (cf. as pregações missionári­ damos que o Credo surgiu das perguntas formuladas no ato do batismo.
as em Atos dos Apóstolos). Ligadas a essas palavras, estão outras: “Su­ O que se imaginava o batizando, quando dizia crer no Espírito San­
biu ao céu e está sentado à direita de Deus Pai.” A formulação é bíblica (1 to? Não é mais possível dizer quais eram suas convicções teológicas. No
Pe 3.22; Rm 8.34 etc.) Nessas palavras, o cristão do século I confessava entanto, podemos expressar algumas idéias e concepções que derivam
que os poderes que queriam destruir Cristo e, conseqüentemente, sua do próprio ensino catequético. No ato do batismo e ao confessar a fé, o
Igreja haviam sido por ele destruídos. A conseqüência natural dessa vitó­ batizando deve ter lembrado que o Espírito Santo era aquele que santifi-

32 33
cava a fé da comunidade e que a iluminava com o conhecimento da ver­ siva de Deus.” “Santo” não é usado em sentido moral. A Igreja é designa­
dade. Na catequese, também se ensinava que o Espírito agira nos profe­ da de “santa” por ter sido eleita por Deus, por ser herdeira de Deus e por
tas e que por seu intermédio predissera a vida e a vinda do Salvador. Deus nela habitar através de seu Espírito Santo.
Certamente, o batizando deve ter tido também a convicção de que era do No século II, a luta contra as heresias começou a se fazer presente
Espírito que vivia a Igreja, que era Ele quem lhe assegurava a imortalidade na realidade eclesiástica. Os hereges atacavam a Igreja ou, no mínimo,
e a vida eterna, concedia vigor e eficácia aos sacramentos. O próprio significavam perigo para ela. Sua inclusão no Credo pode ter sido conse­
Espírito lhe seria concedido ao ser batizado. qüência da consciência da Igreja católica, ortodoxa, de ser a garantia da
Quanto à obra do Espírito, observamos o seguinte: quando olha­ verdade contra a heresia.
mos as três cláusulas que seguem à menção do Espírito Santo, depara- Passemos à cláusula “o perdão dos pecados”. Uma das grandes
mo-nos com a pergunta: como explicar sua inclusão no Credo? E fácil de convicções da Igreja Antiga é a de que, no batismo, todos os pecados
compreender que pareceu lógico deixar essas cláusulas seguirem à men­ anteriores do cristão eram lavados de uma vez por todas (At 2.38; 1 Co
ção do Espírito Santo, pois as realidades que elas expressavam podiam 6.11): “Vós fostes lavados, fostes santificados, fostes justificados, em o
ser vistas como frutos da ação do Espírito Santo. A Igreja é obra do nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito de nosso Deus.” No século n ,
Espírito Santo; o perdão dos pecados é conseqüência da dádiva do Espí­ o autor da carta de Bamabé diz: “Descemos à água cheios de pecado e
rito Santo no batismo; a ressurreição da carne é a coroação escatológica de impureza, mas subimos e temos o fruto em nosso coração” (Bamabé
das dádivas do Espírito Santo. 11.1). Através do batismo, eram perdoados os pecados antigos e aberta
Os motivos lógicos que levam ao relacionamento da Igreja, da co­ uma nova vida. Na catequese, dava-se especial ênfase à situação de pe­
munhão dos santos e do perdão dos pecados com o Espírito Santo são cado em que se encontrava o catecúmeno; ele ansiava pelo batismo como
fáceis de aceitar. Contudo, qual o motivo para que sejam mencionados no a possibilidade de ser libertado dos pecados e de fazer parte da comuni­
terceiro artigo? A problemática contida nessa pergunta fica mais evidente dade cristã. Isso talvez explique a inclusão da cláusula no Credo (cf. Tra­
quando constatamos que essas doutrinas desde o início fizeram parte do dição de Hipólito 42-51).
ensinamento da Igreja, mas nenhuma delas fazia parte das primeiras con­ A cláusula final, relativa à “ressurreição do corpo e na vida eterna”,
fissões. Não as encontramos nas confissões dos pais apostólicos. Talvez deriva-se de 1 Co 15. O fundamento de nossa fé é a ressurreição de
um estudo dessas doutrinas possibilite uma resposta. Vejamos: Cristo, “o primogênito entre aqueles que dormem”. A esperança da res­
A primeira cláusula anuncia a existência da santa Igreja. O conceito surreição é central para toda a Igreja Antiga. Por volta de 150, no entan­
“Igreja”, ekklesía, vem da Septuaginta, onde é tradução de kahal, desig­ to, houve grupos que negavam a ressurreição do corpo e falavam apenas
nação dada ao povo de Israel quando este se reunia na presença de Deus. da vida da alma.
Quando os cristãos passaram a usar essa designação, quiseram expressar Concluindo, podemos dizer que a história do surgimento do Credo
a convicção de que eram o novo Israel, o herdeiro das bênçãos prometi­ e de suas principais formulações são testemunho de fé viva, de confissão
das por Deus. Desde a metade do século n , o termo “santa” passou a ser ao Deus triúno, proferidas em meio a situações de crise e de muita vida.
designativo para a Igreja. Já Paulo o usava (Ef 5.27), e vamos encontrá-
lo também nas cartas de Inácio de Antioquia. O termo também é prove­
niente do Antigo Testamento. Designa o que pertence a Deus ou está com
ele relacionado. Santo era o povo de Deus (cf. Êx 19.6). No Levítico,
Deus faz diversas vezes a exigência de santidade (11.44; 19.2, 21.6).
Essa visão reaparece no Novo Testamento, em 1 Pe 2.9: “Vós, porém,
sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclu­

34
Bibliografia
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WENGST, Klaus. Schriften des Urchristentums: Zweiter Teil: Didache
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36
PRIMEIRO ARTIGO

Creio em Deus Pai, todo-poderoso

Gotífried Brakemeier

1. As dificuldades
“Ninguém jam ais viu a D eus” (Jo 1.18). Nestes termos o evan­
gelista João resume o que para muitos constitui o principal obstáculo à fé,
a saber, a falta de provas. Quando Iuri Gagarin, o primeiro cosmonauta,
entrou em órbita em tomo da terra, constatou ironicamente não ter en­
contrado nenhum deus habitando o céu. E, com efeito, o resultado da
pesquisa científica é sempre negativo. Ela penetra com seus instrumentos
nos confins do universo, apodera-se dos mais complexos mecanismos da
natureza, vai conquistando um espaço após o outro, mas Deus não apa­
rece em lugar nenhum. Como crer em Deus sem nenhuma evidência de
que ele existe?
A flagrante ausência de Deus é sentida também de outras m a­
neiras, talvez ainda bem mais dolorosas. Menciono a desconcertante mul­
tiplicidade das imagens de Deus. O Deus do Candomblé e dos indígenas,
dos muçulmanos e dos cristãos, dos ricos e dos pobres, porventura será
ele sempre idêntico? A variedade levanta a suspeita de que o ser humano
cria Deus conforme a sua imagem e seus interesses. Sobretudo, porém,
aflige a pergunta: se Deus existe, como pode permitir tanto crime no mun­
do? Por que não intervém, com ferro e fogo, para acabar de vez com o
sofrimento dos inocentes e para coibir a prepotência dos violentos? E
difícil conciliar a idéia de um Deus bondoso com tanta injustiça e brutali­
dade nesta terra.
A novidade que se observa nos tempos modernos é a tentativa

39
de transformar a perplexidade numa vantagem. Deus seria um estor­ que diz: “Não há Deus.” (SI 14.1). O ateísmo não é uma invenção moder­
vo, cuja eliminação acarretaria somente benefícios. Afirma-se que a fé em na. Convém lembrar, ainda, que a jovem Igreja cristã se espalhou num
Deus bloqueia a autonomia do ser humano, sua liberdade e integral huma­ mundo religioso altamente confuso. Atesta-o, entre outras, o altar devo­
nização. Há personagens muito ilustres fazendo coro com tal tese. Eles tado “Ao deus desconhecido”, com o qual o apóstolo Paulo se depara
entendem ser a negação de Deus a premissa da humanização do mundo, em Atenas (At 17.16s.). O mundo não é tão novo assim. Seja ontem, seja
a coroação da emancipação humana, o derradeiro degrau a ser escalado hoje ou amanhã, a confissão da fé em Deus Pai significa uma provocação,
em direção ao reino da plena e absoluta liberdade. aliás extremamente salutar e necessária. O que está em jogo?
É fácil mostrar que o ateísmo não consegue cumprir sua pro­
messa libertadora. Paradoxalmente, a divinização do ser humano pro­ 2. A auto-revelação de Deus
duz sua desumanização. Sem Deus, o ser humano está ameaçado de per­
der sua dignidade. ídolos, então, invadem o espaço desocupado por Deus. Deus é invisível, sim. É esse um aspecto de sua santidade. Deus é
Eles se caracterizam pela irrestrita identificação com interesses individuais intocável. Sua majestade não perm ite a aproximação irreverente.
ou corporativistas, conduzindo assim a perigosos conflitos sociais. O ser Moisés deve tirar as sandálias e permanecer à distância ao querer inves­
humano, quando se assenta no trono de Deus, fracassa. Não é capaz de tigar o enigma da sarça ardente (Êx 3.5). Deus se esquiva à pesquisa
desempenhar um papel divino. Sua apoteose o transforma antes em fera, humana, não se deixa prender pela ciência, não pode ser identificado em
muito à semelhança da besta de que fala o livro de Apocalipse (cap. 13). laboratório. Usando uma figura, poderíamos dizer: não temos anzol ade­
quado para capturar tal peixe. Todas as metodologias fracassam quando
E, no entanto, a fé em Deus não é nenhuma evidência. A pós-mo-
o assunto é Deus. Essa verdade se aplica também à razão humana. Houve
dem idade o atesta. Ela desvalorizou a fé, ou melhor, ela a privatizou.
épocas em que se queria demonstrar a existência de Deus por via espe­
Cada qual deve ter o direito de crer no deus de sua escolha. Deus j á não
culativa, com malabarismos filosóficos e metafísicos. Os resultados não
é mais uma questão de vida ou morte. É algo opcional, sobre cuja rele­
vância, no fundo, decide o mercado. Deus é para quem dele ainda neces­ têm sido inequívocos. Não há como provar a existência de Deus, assim
sita. Outros já o podem dispensar. Um radical pluralismo relativiza a ver­ como também não é possível demonstrar o contrário, ou seja, sua não-
dade. Por isso, o ateísmo de nossos dias não se apresenta mais como existência. Diante dele a ciência obrigatoriamente deve capitular.
ideologia combativa. Ele é tolerante. Secularismo e religiosidade podem Ainda assim, as pessoas não ficam sem noção de Deus. Pois Deus
conviver tranqüilamente, pois a religião se reduziu a uma questão de gosto e se revela. Há vestígios seus em nosso mundo, sinais de sua presença e
de preferência subjetiva. É um produto sujeito à lei da oferta e da procura. atuação. Deus se comunica, e ele o faz “tocando” nas pessoas, fazendo-
São fortes os reflexos deste espírito na sociedade latino-ameri­ as passar por determinadas experiências e dirigindo-lhes assim mensa­
cana. Certamente há peculiaridades a apontar. O secularismo ainda não gens. A quem devo minha existência? A meus pais, a um puro acaso, a
atingiu proporções como na Europa ou nos Estados Unidos. É a exclusão uma vontade transcendente? Eu descubro maravilhas na natureza que de
social que tem a prioridade na agenda teológica do continente. Preocu­ modo algum perdem o fascínio com a explicação científica. Pode-se com­
pam, ainda, o sincretismo e a mobilidade religiosa, cujas causas, em boa parar essa fantástica obra da criação a uma casa, cuja instalação e mobília
medida, devem ser procuradas na realidade social. Mas é óbvio, tam­ dão testemunho de seu proprietário. Diz o Salmo 19.1: “Os céus procla­
bém, o efeito da globalização. Ela não exclui o fenômeno religioso, mas mam a glória de Deus e o firmamento anuncia as obras das suas mãos.”
exige dele a competitividade. Terá relevância a fé no Deus Pai, todo- Há eventos significativos que alteram o rumo de vida das pessoas. Israel,
poderoso? por exemplo, viu na libertação do Egito uma intervenção histórica de Deus
em seu favor. Ou então, eu me conscientizo de minha pequenez e finitude
Essa fé também em outras épocas não tem sido uma questão
e do quanto dependo de graça. Há experiências básicas, comuns a todos
de consenso pacífico. Já o Antigo Testamento sabe de gente insensata
os seres humanos que, sem o recurso a Deus, permanecem mudas e obs­

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curas. Elas incluem os fenômenos místicos, mas não se limitam a eles. Ser 55.8; Rm 11.33s.). Há uma “assimetria” entre Ele e o ser humano, impos­
confrontado com os mistérios da vida, com o nascer e o morrer, com a sível de ser eliminada.
liberdade e a responsabilidade, com o sentido e o porquê das coisas é E então? O ser humano tem um conhecimento de Deus? A res­
topar com as pegadas de Deus no cotidiano. posta deve ser um sim e um não. Ela deve ser “sim”, porque o mundo
Na verdade, o problema do ser humano não é a falta de conhe­ está cheio de sinais que apontam para a realidade a que chamamos Deus.
cimento de Deus. Ele reside, isto sim, na resistência a tirar dele as É perfeitamente possível ouvir a palavra que Deus dirige ao mundo e que
devidas conseqüências. Diz o apóstolo Paulo (Rm 1.20): “... tendo co­ diz: “Eu sou o Senhor, teu Deus.” No entanto, a pergunta acima deve ser
nhecimento de Deus nem lhe deram graças, antes se tomaram nulos em respondida também negativamente, pois há coisas que obscurecem os
seus próprios raciocínios...”, e "... eles mudaram a verdade de Deus em sinais de Deus no mundo, atrofiando ou pervertendo a fé. A descrença
mentira, adorando e servindo a criatura em lugar do Criador...” (1.25). O que insiste em ignorar os apelos de Deus parece ter trunfos demais na
ser humano confunde a criatura e o criador, fica em dívida com Deus, mão. Ainda assim, a negação de Deus ou sua substituição por outras
usurpa-lhe a autoridade, quer ser igual a Deus (Gn 3.5). Assim sendo, o divindades é a maior tolice de que o ser humano é capaz. Fé é sabedoria.
conhecimento natural de Deus está prejudicado. Ele se corrompeu e se E o seu maior mestre é Jesus Cristo.
converteu em idolatria. Diz o evangelista João (1.4): “... e a luz brilha nas
trevas, mas as trevas não a apreenderam.” É por que todo o mundo pre­ 3. Deus Pai em Jesus Cristo, todo-poderoso
cisa do perdão de seus pecados.
a. O amor de Deus
Devemos ir ainda um passo além. Não é somente o orgulho do
ser humano e sua obstinação que barram o verdadeiro conhecimento “Ninguém jamais viu a Deus: o Deus unigénito que está no seio do
de Deus. Há também outros motivos: Pai, é quem o revelou” (Jo 1.28). “... Deus estava em Cristo, reconcilian­
do consigo o mundo...” (2 Co 5.19). Portanto, quem Deus é, como age e
1 .0 que nós experimentamos na vida nem sempre é o mistério de
quais os seus propósitos, isto se aprende com Jesus de Nazaré. A cris­
Deus. Pode ser também o efeito de criminalidade humana. Não é lícito
tandade o confessa como sendo o Verbo feito carne, como o Filho Unigé­
atribuir a Deus o que brotou do ódio ou da irresponsabilidade das pesso­
nito de Deus, enviado para a salvação do mundo. Por ele, Deus se deu a
as, respectivamente de nossa própria culpa. Na história se misturam a
conhecer em definitivo. E ele o fez identificando-se como “Pai Nosso.”
providência de Deus e o pecado humano, sendo às vezes difícil fazer a
devida distinção. Nem sempre as experiências de vida nos colocam nos É nesses termos que Jesus ensinou seus discípulos a orar. Deu-lhes
rastos de Deus. Elas podem fortalecer a fé, mas podem também arrasá- o próprio exemplo. E notável em Jesus a familiaridade com que se dirige
la. O mundo e a história têm aspectos ambíguos. a Deus. Costumava chamá-lo “meu pai” (Mt 10.32; Lc 2.39; etc.) e até
invocá-lo com o apelativo “aba” (papai), considerado atrevido na época
2. O ser humano tem preconceitos com relação a Deus. Diz o por denotar excessiva intimidade. Mas é esta a novidade do Evangelho:
apóstolo Paulo que os judeus pedem de Deus sinais, e os gregos, sabe­ Deus é como pai que ama seus filhos, perdoa-lhes os pecados, oferece
doria (1 Co 1.22). Portanto, o ser humano costuma sujeitar Deus a crité­ amparo e lhes abre futuro. A parábola do filho pródigo é apenas um dos
rios preestabelecidos. Deus deve ser sábio, poderoso, justo, sempre de impressionantes exemplos desta boa nova. Por Jesus Cristo somos feitos
acordo com os padrões humanos. E se Deus não corresponder aos nos­ filhos e filhas de Deus que têm a liberdade e o direito de clamar “aba”, pai
sos conceitos? Há muita coisa na natureza e na história que nos é incom­ (Rm 8.15). Por ele Deus se definiu como “Pai” que acolhe seus filhos, que
preensível, escandalosa, contrária à idéia de um Deus bondoso. Mais uma os justifica por graça e os reveste de inigualável dignidade. Todo o evan­
vez seja apontado para o exemplo de Jó. Ele foi uma pessoa irritada com gelho se resume nestas duas palavras: Deus Pai! Elas estabelecem uma
Deus em razão das arbitrariedades, das injustiças e dos golpes de que se nova relação com Deus, baseada na confiança e no amor, como bem o
tomara vítima. Nem sempre Deus é compreensível em seus atos (cf. Is disse M. Lutero, em sua explicação do “Pai-Nosso” no Catecismo Menor.

42 43
A aplicação do título “p a i” a Deus distingue e simultanea­ diretamente acessível à experiência humana. Jesus traz o amor de Deus
mente conecta Jesus com outras tradições religiosas. No primeiro sé­ para perto das pessoas. Inaugura um novo relacionamento com Deus -
culo, tal uso não era incomum nem mesmo em religiões pagãs. Sobretudo, bem como das pessoas entre si - baseado no princípio do amor. Por
porém, encontramos paralelos no Antigo Testamento (Dt 5.32; SI 89,27; Jesus, de fato, podemos dizer “Pai Nosso”, sendo nós todos seus filhos e
etc.) e no judaísmo, isto é, no mundo em que Jesus se criou. Jesus não suas filhas.
pretendia trazer um novo Deus. Muito pelo contrário, ele se sabe com­ “Pai ” é uma categoria humana. Por isso, no fundo, não se pres­
prometido com aquele Deus que é sempre o mesmo, o Deus de Israel, do ta a caracterizar Deus. Deus não é homem. E Espírito, como diz o evan­
êxodo e da aliança. E o Deus que elegeu Abraão e tem uma promessa gelista João (4.24). Pai, em aplicação a Deus, é uma metáfora. Trata-se
para todos os povos desta terra (Gn 12.3). A ele compete amar de todo de uma linguagem analógica. Ela quer explicar o “invisível” através do
o coração, de toda a alma e todo o entendimento (Dt 6.4,5; Mc 12.28s.). visível, o estranho através do familiar. Não há outra maneira de falar de
Jesus não proclamou outro Deus, desconhecido até então. Ele se distin­ Deus. O ser humano é muito limitado para descrever a realidade de Deus,
gue não por inovação, e sim por coerência; pois, em si, Jesus nada mais a não ser por parábolas, símiles e comparações. O imanente serve para
fa z do que desdobrar as implicações da designação “Deus P a i”. Ele ilustrar o transcendente. Nesse sentido, a Bíblia é muito corajosa. Fala do
tira as conseqüências para o discurso e a prática. E essas são inéditas, braço, da mão, da boca de Deus, atribui-lhe emoções humanas, apregoa
provocantes, transformadoras. Muda a interpretação da vontade de Deus. um Deus que fala a seu povo. A Bíblia está cheia de imagens humanas,
Como Pai, Deus tem o direito à integral obediência de seus filhos. Jesus é usadas para expressar fenômenos divinos. Ela não pode satisfazer-se com
radical. Basta verificar o sermão da montanha. Não só o assassinato é um discurso teológico abstrato. Sente-se na obrigação de fazê-lo concre­
proibido. Já o ódio é condenável (Mt 5.21s.). Somente o amor é capaz to, pois não há nada mais concreto, relevante e existencial do que o Deus
de cumprir o mandamento divino. D a mesma forma, Jesus é radical no invisível que se toma próximo do ser humano.
que concerne à compreensão da graça de Deus. O Deus Pai é misericor­ Simultaneamente, porém, a Bíblia sabe que Deus não cabe em
dioso. Compadece-se de sua criatura. Perdoa pecados e vem socorrer nenhuma gaveta humana. Ela proíbe que se faça imagem dele (Êx 20.4),
os necessitados. Tem olhos principalmente para as pessoas pobres, cul­ pois qualquer tentativa de captar Deus numa idéia, figura ou aparência
padas, doentes, ou seja, para gente que sofre. “Deus é amor”. Essa é a não vai produzir outra coisa senão ídolos, feitos em oficina de artesanato
conclusão do autor da primeira carta de João (1 Jo 4.16). Ela tem seu humano. Metáforas de Deus são imprescindíveis. Mas elas são legítimas
fundamento em Jesus de Nazaré. apenas se usadas com a consciência de que, no fundo, são inadequadas.
O amor de Deus não anula seu juízo. Deus exige prestação de Isto vale também para a metáfora “pai”. Ela exprime dimensões funda­
contas, não recua diante do crime, não tolera a impunidade. É o que está mentais do discurso cristão sobre Deus, tais como o afeto, a autoridade,
em evidência em muitas das parábolas de Jesus. De Deus não se zomba a proteção. O modelo não é o pai falho, e sim o verdadeiro, que age
(G16.7). Como Pai, ele não deixa de ser autoridade. No entanto, o que conforme lhe compete. Mesmo assim, importa reconhecer também nesse
Deus quer de fato é a vida de seus filhos e de suas filhas. Seu amor ante­ caso a insuficiência da linguagem.
cede seu juízo, que deve ser temido apenas por quem despreza a graça Isto significa que não se deve explorar essa metáfora em ter­
oferecida (cf. Mt 18.23s.). mos de gênero. Seria ridículo atribuir sexo, ou seja, masculinidade a Deus.
Jesus não foi o primeiro a falar em Deus Pai. Mas como ninguém E o que, infelizmente, tem acontecido com freqüência no passado, em
outro ele exauriu o conteúdo dessa designação. Documenta-o sua manei­ flagrante prejuízo dos direitos da mulher. Por essa razão é justo o esforço
ra de ser. Viveu como filho de seu Pai celeste, sabendo-se unido a ele por redescobrir o “rosto feminino” de Deus. Se é legítimo falar em “Deus
por laços muito íntimos. Simultaneamente entendeu ser sua missão a de Pai”, é legítimo também falar em “Deus Mãe”. A própria Bíblia anima
proclamar e demonstrar o amor de Deus Pai neste mundo. Em Jesus o para tanto. Conforme Is 66.13, Deus diz: “Como alguém a quem sua mãe
amor de Deus se tom ou carne, entrou na história, se tomou palpável, consola, assim eu vos consolarei.” Este é apenas um exemplo. Evidente-

44 45
mente, Deus também não é mulher, e nós não temos motivo nenhum para nosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós...” (Rm 5.8). Entretanto,
corrigir o linguajar da Bíblia. No entanto, nada justifica que se fale de exatamente em sua fraqueza reside também a força do amor. Não há
Deus apenas em termos masculinos, sob desconsideração do que se tem nada mais poderoso do que o amor. Enquanto a força bruta sabe apenas
chamado o lado feminino de Deus. subjugar e coagir, o amor tem força de persuasão. Cria comunhão, esta­
belece a paz, cura feridas. Deus é todo-poderoso na fraqueza de seu
b. O poder de Deus amor. Esta é a “loucura de Deus” que, não obstante, é mais sábia do que
os homens (1 Co 1.25).
Estranhamente, o amor de Deus provoca escândalo. A compa­
nhia que Jesus dava a publicanos e pecadores (Lc 15.Is.; etc.) o acusa. Em segundo lugar, Deus é todo-poderoso por ressuscitar os mor­
Conforme opinião comum, o ser humano deve merecer o que ganha e tos. Ressuscitou o Jesus crucificado “e também nos ressuscitará a nós
pagar pelo que recebe. O Deus de Jesus não se submete a esta lei. Escan­ pelo seu poder” (1 Co 6.14). Onipotente é quem tem a última palavra na
daliza pela sua misericórdia, bem assim como o fez aquele dono da vinha história. Sob esta perspectiva, poderíamos dizer que a morte é onipoten­
que provocou indignação ao pagar o salário integral também a quem não te. Dela ninguém escapa. Ela é sempre vitoriosa. Aliás, não o é, pois no
tinha cumprido a jornada de trabalho (Mt 20.16s.). Graça, assim se des­ final da história está Deus, implantando o seu Reino, assim como ele está
confia, subverte a ordem pública e favorece a preguiça. É um mal-enten­ também no início. “Eu sou o Alfa e o Ômega, diz o Senhor Deus, aquele
dido. Ela questiona privilégios indevidos, isto sim. Dá chance aos consi­ que é, que era e que há de vir, o Todo-poderoso” (Ap 1.8). Portanto, a
derados indignos. É em razão de sua misericórdia que Jesus acabou na onipotência de Deus não é a de um mágico, e sim a de um artista (José
cruz. O amor prefere o perdão à cobrança, a reconciliação à vingança, a Míguez Bonino), que dá existência às coisas. A ressurreição é nova cria­
distribuição dos recursos ao acúmulo. Sofre perseguição por esta causa. ção do Deus todo-poderoso.
Ecmcificado. A fé cristã é fé neste Deus, cujo amor é mais forte do que o pecado
E o poder de Deus, onde está? Pelo que parece, existe total in­ humano, e cujo poder aniquila a morte. Onde está este Deus? Ora, o
compatibilidade entre o Deus todo-poderoso e a cruz de Jesus Cristo. autor do Salmo 139 antecipou a resposta ao dizer: “Se subo aos céus, lá
Já dizia aquela gente, testemunha da crucificação: “Salvou os outros, a si estás, se faço minha cama no mais profundo abismo, lá estás também; se
mesmo não pode salvar-se; desça da cruz o Cristo, o rei de Israel, para tomo as asas da alvorada e me detenho nos confins dos mares: ainda lá me
que vejamos e creiamos” (Mc 15.32s.). As pessoas queriam uma de­ haverá de guiar a tua mão e a tua destra me susterá” (v. 8 - 10).
monstração de força. Desse modo, porém, elas se tomam vítimas de uma
falsa compreensão de onipotência. Imaginam Deus à maneira de um má­ Bibliografia
gico, dotado de energias milagrosas, como uma espécie de super-ho-
mem. Tal concepção pode ser facilmente ridicularizada, como acontece ALTMANN, Walter et al. Falar de Deus hoje. Cademo especial da Revista
no seguinte raciocínio: “Deus pode criar uma pedra tão grande que nem Simpósio, n° 2, São Paulo (ASTE), 1979.
BETTO, Frei et al. Experimentar Deus hoje. Petrópolis: Vozes, 1974.
mesmo ele consiga levantá-la...”? Trata-se de um sofisma absurdo, fruto
BRAKEMEIER, Gottfried. Sobre a realidade de Deus: uma discussão com
de pura ginástica mental. Mesmo assim, permanece a pergunta: como
o ateísmo. In: id. Testemunho da fé em tempos difíceis. São Leopoldo:
conciliar a cruz de Jesus com o poder de Deus? Para compreendê-lo, Sinodal, 1989. p. 7-25.
duas observações são fundamentais: RUETHER, Rosemary R. Sexismo e religião. São Leopoldo: Sinodal/IEPG,
Primeiramente, Deus é todo-poderoso justamente em seu amor, 1993. p. 46-66.
uma verdade aparentemente paradoxal, pois, à primeira vista, não há nada STRECK, Gisela W. Como falar sobre Deus com adolescentes. São Leo­
mais vulnerável e indefeso do que o amor. Ele não pode lançar mão de poldo: Instituto Ecumênico de Pós-Graduação, 1996. (Série Ensaios e Mo­
meios violentos. Prefere sofrer a agredir. Deus “prova seu amor para co- nografias, 13).

46 47
1. Fundamentação bíblica
O Antigo Testamento nos legou uma forte tradição de Deus como
Criador do céu e da terra criador do céu, da terra e tudo que neles existe. O relato bíblico mais
antigo é Gn 2.4b-25 (escrito por volta do século X a.C.) e compila diver­
sas tradições presentes entre os israelitas: o primeiro ser humano, o jar­
dim do Éden, a árvore da vida, a árvore do conhecimento do bem e do
Wanda Deifelt mal, o surgimento dos rios. Este relato mostra que o primeiro ser humano
{Adam) foi criado por Deus, moldando-o a partir do barro e instilando
nele o sopro de vida. Depois Deus plantou um jardim, criou plantas e
A pergunta pela origem da vida é quase tão antiga quanto a própria animais e, por fim, vendo que não havia para Adam uma companhia idô­
humanidade. Em diferentes partes do mundo e em diferentes épocas, ten- nea, criou a mulher. O homem (ish) só existe quando há a mulher (ishá),
tou-se explicar como terra, água, plantas, animais e seres humanos surgi­ antes disto há um ser humano genérico {Adam). Gênesis 2.4b-25 mostra
ram. Estes relatos são parte da tradição cultural de muitos povos, tentan­ o amor de Deus para com sua criatura, o que inclui a imposição de limites
do responder às perguntas “de onde viemos” e “para onde vamos”. Na (não poder comer da árvore do conhecimento do bem e do mal).
tradição judaica, há dois relatos de criação, que formam os dois primeiros Gênesis 1.1 -2.4a mostra que Deus chamou o mundo à existência
capítulos de Gênesis. Em Gn 2, Deus forma Adam a partir do barro e lhe através de sua palavra. Fê-lo a partir do nada, ordenando o caos primor­
dá vida, depois cria um jardim como seu habitat. Em Gn 1, Deus cria o dial. Este relato é diferente de outros encontrados no Antigo Oriente,
mundo em seis dias e descansa no sétimo. Em comum os dois relatos onde o mundo e os seres humanos são formados a partir do combate
afirmam o poder criador de Deus. Para nenhum povo, tampouco no con­ entre divindades e onde impera a violência. No relato babilónico, por
texto bíblico, as perguntas pela origem e pelo destino da humanidade são exemplo, o mundo é criado a partir do embate entre o deus Marduque e
mera curiosidade. Tentava-se explicar a origem para entender melhor o a deusa-mãe Tiamate. Tendo aniquilado a deusa-mãe, Marduque utiliza o
propósito da humanidade no presente, tendo em vista o seu futuro. seu corpo para compor o céu e a terra. Já em Gn 1, a criação é descrita
Em nossos dias, a teoria da evolução das espécies elaborada por como um processo de ordenamento do caos. Gn 1 é escrito em tomo do
Charles Darwin (em 1859) é amplamente utilizada para explicar a origem século VI a.C., no Exílio, precisamente contra as potestades da Babilô­
do mundo. Às vezes é motivo de disputas entre a ciência e a religião se o nia, cujas divindades eram identificadas como astros-rei. No relato de Gn
mundo foi criado em seis dias, ou se a natureza (incluindo a humanidade) 1.1 -2.4a, Deus aparece como o criador do céu e da terra, como aquele
evoluiu a partir de outras espécies. Estas disputas desviam a atenção da que cria o sol, a lua e as estrelas (aquilo que outros povos adoram como
urgência, em nosso contexto, em tratar da crise ecológica, as mudanças deuses). Esta noção de Deus como criador se mantém na tradição bíblica:
climáticas no planeta, os perigos da tecnologia nuclear, a cultura consu- Deus é a fonte contínua de vida, que criou no princípio e que continua se
mista e a crise energética. A teoria de Darwin não é de todo incompatível manifestando através de sua criação (SI 104.2-4; Jó 38.4,8-11; Cl 1.15s.).
com a fé. A criação divina não exclui a existência de leis naturais, voltadas Dentro da qualificação de Deus como criador, está a noção de que
para a preservação da vida, e afirma que, em sua providência, Deus pre­ Deus se dá a conhecer através de sua criação, em especial das suas cria­
serva e mantém a sua criação1. A fé diz “Deus cria”, e cabe a cada gera­ turas, ou seja, os seres humanos. Em Gn 1.26-27, é dito que Deus criou
ção interpretar como o poder criador de Deus se manifesta. Talvez a o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus criou o homem e a mulher.
pergunta devesse ser como a ciência e a fé podem trabalhar juntas para Deu-lhes a tarefa de zelar e administrar a criação. Os seres humanos são
responder, responsavelmente, aos desafios atuais. criados a partir da graça de Deus, que os faz à sua imagem, de modo que
em parceria possam cuidar da criação. Se todas as coisas provêm de
1 Douglas John HALL, Professing the faith, Minneapolis: Fortress, 1993, p. 83.

48 49
Deus, também o ser humano, como criatura de Deus, se coloca em sua incluiu doze modificações no Credo Romano Antigo, entre elas o acrésci­
dependência (SI 8 ; Is 40.25s.). A criação reflete a bondade e a majestade mo da expressão “criador do céu e da terra”. Naturalmente não foi Primi­
de Deus, e por isso se espera que o ser humano confie, obedeça, agrade­ nius o inventor desta fórmula, pois o poder criador de Deus sempre foi
ça e seja fiel a Deus (SI 95; Is 40.27-31). parte da fé judaica e também cristã.
Deus é o único que cria a partir do nada (ex nihilo) e o faz através de Chama a atenção que o Credo Romano Antigo não tenha incluído,
sua palavra criadora (Gn 1; Jo 1.1-3; Hb 11.3). Através desta palavra- explicitamente, o caráter criador de Deus, mesmo que esta doutrina tenha
ação de Deus, o universo inteiro veio a existir. A criação mostra a sabedoria sido parte dos ensinamentos. Novaciano de Roma, bispo desta cidade,
e o poder de Deus (SI 104.24; Pv 3.19s.). Apesar de suas ambigüidades, em meados do século III escrevia que se deve crer “em Deus pai, todo-
ela dá testemunho do amor de Deus e de seu cuidado constante para com a poderoso, que é o perfeitíssimo criador de todas as coisas, que suspen­
criação e suas criaturas (SI 136.4-9). A criação não se restringe a um mo­ deu o céu acima e estabeleceu a terra sólida abaixo”2. 0 próprio Tyran-
mento único no passado, mas é o lugar da intervenção contínua de Deus. nius Rufinus, responsável pela nomenclatura do Credo como “Apostóli­
Deus criou no princípio, cria agora e continuará a criar no futuro (Mc 13.19; co”, escreveu no final do século IV e início do século V que “Deus mesmo
Ef 2.10; Ap 1.8). A fé no poder criador de Deus traz a esperança de que, não tem autor, mas é autor de todas as coisas”3. Formulações neste sen­
no fim, “Deus será tudo em todos” (1 Co 15.28). A criação existe para tido também vêm do norte da África, com Agostinho, que cita a expres­
testemunhar a beleza, a justiça, a bondade e a graça de Deus. são “criador de todas as coisas” (universorum creatorem).
Mas o mundo nem sempre se reflete assim; tampouco os seres Assim, o caráter criador de Deus não era um elemento estranho à
humanos se portam como criaturas feitas à imagem de Deus. Há uma confissão de fé, mesmo que, originalmente, não tenha sido parte do cre­
incongruência entre uma criação perfeita e um mundo caído. No entanto, do. Este aspecto de Deus era explicado e elaborado na catequese dentro
não foi Deus que criou o mundo de modo imperfeito. São os poderes da da tradição do Credo Romano Antigo, no primeiro artigo, quando se
destruição e do mal, do pecado, que resultam em egoísmo, ganância, falava de Deus como pai. No entanto, quando esta característica de Deus
indiferença e falta de responsabilidade pela criação (Rm 8.20). O ser passou a ser interpretada primordialmente como paternidade em relação
humano, tentando usurpar o lugar de Deus e não reconhecendo sua res­ a Jesus Cristo (na explicação do segundo artigo), foi necessário resgatar a
ponsabilidade diante do erro, leva ao sofrimento e à morte de toda cria­ tradição bíblica. Sem a noção de Deus como criador, havia um vácuo teo­
ção, incluindo naturalmente os próprios seres humanos (Ef 6 .12). Somen­ lógico e doutrinário que dava margem a muitas especulações e heresias. Era
te Deus pode impedir esta catástrofe, e o faz através da encarnação, de fundamental afirmar explicitamente o poder criador de Deus como aquele
modo que seu filho, Jesus Cristo, possa vencer as forças do mal que agem que é a origem de tudo, que sustenta a todos e continua agindo sempre.
no mundo (1 Co 15.26s.). A partir da encarnação se diz que Deus cria, O principal motivo para a inclusão da expressão “criador do céu e
sustenta, redime e aperfeiçoa a criação mediante Cristo (Cl 1.15-17; Ef da terra” dentro do Credo Apostólico foram as divergências com grupos
1.9s.; Hb 1.2s.). Através de Cristo toma-se possível “um novo céu e uma gnósticos que idealizavam o mundo espiritual e negavam as coisas mun­
nova terra” (2 Pe 3.13; Ap 21.1), onde todas as criaturas e a natureza danas. Negavam que as coisas materiais pudessem ter sido criadas por
serão transformadas (Rm 8.19-23). Deus. Com isto veio a ênfase de que Deus é criador não só das coisas
celestiais (o céu), mas também das coisas terrenas (a terra e tudo que nela
2. O contexto histórico há). No Concílio de Braga, em 563, havia uma grande disputa se as coi­
sas carnais, o corpo e a matéria, haviam sido criadas por Deus. Alguns
A expressão “criador do céu e da terra” só foi definitivamente in­
cluída no Credo Apostólico a partir do século VHI. Responsável por esta
mudança foi Priminius, um abade beneditino que, ao citar o credo em seu 2 J. N. D. KELLY, Early Christian creeds, 3. ed., Essex: Longman, 1983, p. 372-373.
livro De singulis libris canonicis scarapsus (escrito entre 710 e 724), 3 Ibid., p. 373.

50 51
preferiam atribuir este tipo de criação a anjos caídos ou a uma divindade intervenção divina em favor dos seres humanos. Isto se dá através de sua
inferior, chamada Demiurgo. Neste contexto de conflitos, o concílio afirmou graça, sem qualquer mérito da nossa parte. O ser humano é criado bom,
Deus como criador tanto do espírito quanto da matéria, do céu e da terra. mas cai em tentação em função de sua própria liberdade. Por perceber
sua criatura em pecado, miséria, morte e dor, Deus toma a iniciativa da
3. Considerações teológicas reconciliação. O resultado desta reconciliação é a restauração da liberda­
de, a libertação. Uma vez liberto de culpa e medo, o ser humano é livre
O fato de o ser humano ser criado à imagem de Deus não o toma para o outro, para o testemunho, para a vivência de fé.
divino. A condição de finitude em que se encontram todas as coisas e É o mesmo Deus, portanto, que cria e liberta, que sustenta e redi­
todas as criaturas se aplica também aos seres humanos. Junto com a afir­ me, que preserva e salva. Não há qualquer dualismo entre o Deus criador
mação da bondade da criação também está a pergunta pela origem do mal, e o Deus salvador. O fato de haver pecado e morte no mundo não implica
do pecado, da morte. Ser criado do nada significa ter de retomar ao nada, que a criação ou as criaturas sejam más, como defendiam os gnósticos. A
demonstra a finitude e a limitação humana. O estigma de ter sido criado do saída para a situação de miséria, doença, aflição não é através da nega­
nada está impresso em tudo o que é criado, mas somente o ser humano tem ção da criação, das coisas terrenas. A vontade de Deus é de vida plena e
a capacidade para o pecado. O não reconhecimento desta finitude, da de­ abundante, como afirma Lutero na explicação ao primeiro artigo do cre­
pendência humana em Deus, e a tentativa de usurpar o lugar de Deus levam do Apostólico. Deus não só nos dá corpo, alma, inteligência e todos os
à transgressão. Também dentro desta situação de pecado, e especialmente sentidos, mas também os conserva. Dá-nos comida, bebida, vestimenta,
dentro dela, toma-se necessária a intervenção contínua de Deus. família e trabalho. Ninguém tem vida por si só ou pode conservá-la por seu
A tentativa humana de se aproximar da divindade, assumindo o próprio mérito. Recebemos a vida como presente de Deus, que continua
poder criador de Deus, se dá através da supervalorização das criações mostrando seu poder diariamente cuidando e protegendo suas criaturas.
humanas e de sua capacidade. No mundo bíblico, as pessoas criavam Faz isto por amor e bondade, não por qualquer mérito de nossa parte.
ídolos e fetiches pensando que estes teriam poder divino, ou acreditavam A criação é testemunho do amor de Deus. O fato de Deus criar a
que através de seus próprios méritos pudessem chegar a Deus (através partir do nada expressa justamente a experiência de fé, onde o impossível
do cumprimento à lei, por exemplo). Na nossa sociedade, sob a influência se toma possível pelo amor, fidelidade e compromisso com a vida. Onde
da mentalidade moderna, destruímos a criação, exploramos a natureza havia nada, Deus cria o universo e os seres (criação); onde havia pecado,
indiscriminadamente e desfrutamos dos recursos naturais sem pensar nas Deus perdoa e oferece um novo começo (justificação); onde havia morte,
próximas gerações. Também acreditamos que o mundo seja de tal forma Deus traz esperança de vida (ressurreição)4. Conscientes disto, recebe­
autônomo e auto-sustentável que não necessita reconhecer sua depen­ mos o convite de sermos verdadeiramente criaturas de Deus e afirmar­
dência em um poder criador, sustentador e mantenedor divino. No entan­ mos nossa dependência no bem-estar de toda a criação.
to, a criação é creatio continuata, ou seja, é o poder constante de Deus
Deus coloca tudo a nosso dispor, mas exige de nós responsabilida­
que mantém e renova a criação. Desde o princípio até a eternidade o
de e compromisso. O reconhecimento de Deus como criador implica uma
mundo depende de Deus para sua existência.
atitude de agradecimento e humildade. Implica apreciar a beleza da cria­
Deus dá ao ser humano a capacidade e o potencial para a liberda­ ção e de suas criaturas, a valorização do próximo, das demais pessoas,
de, que pode ser usada para o bem ou para o mal, para a aproximação ou como criaturas que espelham a imagem de Deus, a capacidade humana
para o distanciamento de Deus. No entanto, mesmo que Deus tenha dado de zelar responsavelmente pela natureza como expressão da grandeza de
ao ser humano a capacidade de criar e atualizar potencialidades, o ser Deus. A bondade e a integridade da criação são constantemente ameaça-
humano está preso às suas finitudes e limitações. O ser humano é criado à
imagem e semelhança de Deus, mas não é igual a Deus. Por isso, por sua
própria razão ou força não pode chegar a Deus. Toma-se necessária a 4 Douglas J. HALL, op. cit., p. 75-76.

52 53
das pela morte e pelo sofrimento, a tal ponto que “a criação inteira geme
e sofre as dores de parto” (Rm 8.22).
A humanidade é responsável, em grande parte, pela deterioração
da criação por causa de sua sede de riqueza e de acúmulo. Somos res­
SEGUNDO ARTIGO
ponsáveis pela exploração desenfreada da natureza, pela destruição do
meio ambiente, pela utilização da ciência e da tecnologia para a destrui­
ção da vida (incluindo a espécie humana). Este tipo de atitude requer
arrependimento e mudança. Como criaturas feitas à imagem e semelhan­
Creio em Jesus Cristo, seu Filho unigénito
ça de Deus temos a responsabilidade de administrar e zelar pela criação.
O reconhecimento de Deus como criador implica a valorização da cria­
ção como sinal da presença de Deus no mundo. Exige de nós uma mu­
Ricardo Willy Rieth
dança de valores e comportamento de modo a abandonar vantagens ile­
gítimas, fazer um uso mais cuidadoso da ciência e da tecnologia, evitar a
destruição da natureza, assumir nossa responsabilidade para com o pró­
1. O segundo artigo do Credo
ximo, diminuir o sofrimento humano e testemunhar o amor de Deus. Faze­
mos isto confessando que Deus é criador do céu e da terra. As pessoas que falavam grego e pertenciam às primeiras comuni­
dades cristãs não precisavam de muitas palavras para confessar sua fé.
Bibliografia Só precisavam dizer uma palavra ou então desenhar seu significado. Bas­
tava que falassem “peixe” ou rabiscassem um desenho desse animal. As
A CONFISSÃO DA FÉ APOSTÓLICA. Documento de Estudo da Co­ cinco letras de ichtys, a palavra grega para peixe, são as mesmas iniciais
missão de Fé e Ordem do Conselho Mundial de Igrejas. Tradução de Jaci das palavras que formam a frase: “Jesus Cristo, Filho de Deus, [é nosso]
C. Maraschin. São Paulo: Bartira, 1993. Salvador”.
HARNED, David Baily. Creed, and personal identity: The meaning of the
Essa confissão de fé foi se ampliando gradativãmente, até chegar a
Apostles’ Creed. Philadelphia: Fortress, 1981.
KELLY, J. N. D. Early Christian creeds. 3. ed. Essex: Longman, 1983. formas mais complexas. Uma delas, sem dúvida a mais conhecida no cris­
LUTERO, Martinho. Obras selecionadas. São Leopoldo/Porto Alegre: tianismo ocidental, é o Credo Apostólico. A partir de agora passamos a
Sinodal/Concórdia, 1989. v. 2. estudar a segunda parte do Credo Apostólico, aquela que trata do Filho e
. Catecismo Maior. In: Livro de Concórdia: As confissões da Igreja que principia justamente com o “peixe” daqueles pessoas que formavam
Evangélica Luterana. 2. ed. São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/Con­ as primeiras comunidades. O 2o Artigo liga a breve confissão acerca de
córdia, 1981. Cristo a um detalhamento da trajetória libertadora de Jesus. Essa combi­
MOLTMANN, Jürgen. Creating a just future: The politics of peace and nação já pode ser encontrada no Novo Testamento. De um lado, a con­
the ethics of creation in a threatened world. London/Philadelphia: SCM/ fissão se concentra nos nomes, títulos, atributos e funções dados ao Filho.
Trinity, 1989. De outro, procura articular diferentes tentativas de explicar a mensagem a
PETERS, Albrecht. Kommentar zu Luthers Katechismen. Gottingen: Van- respeito do Cristo.
denhoeck & Ruprecht, 1991. v. 2.
TILLICH, Paul. História do pensamento cristão. Tradução de Jaci C. O centro da confissão, que trata da cruz e da ressurreição, já está
Maraschin. 2. ed. São Paulo: ASTE, 2000. presente na tradição paulina (1 Co 15.3-8). Com auxílio de esquemas
que contrapõem “segundo a carne” e “segundo o espírito”, “humilhação”
e “elevação”, esse centro é compreendido com grande riqueza pelos hi-

54 55
nos dedicados a Cristo na liturgia da Eucaristia (Rm 1.3s.;Fp 2.6-11; 1 3. Jesus Cristo: realmente presente
Tm 3.16) e fundamentado a partir do Antigo Testamento em pregações
relacionadas à atuação dos apóstolos (At 2.14-41 ; 3.12-26; 4.8-12; 5.29- Diante de Jesus Cristo fica claro para nós que tipo de Deus e Pai
33; 10.34-47). Do mesmo modo, fórmulas de exorcismo, usadas nas temos. Temos o Deus que se faz conhecido em Jesus Cristo, que por
ordens de batismo, juntamente com os relatos sobre a infância de Jesus, meio dele nos visitou. Isso só faz sentido se Jesus Cristo tiver sido uma
acrescentam a noção do nascimento virginal. Com base em 1 Co 8 .6 , figura histórica. Quem duvida disso não o faz tanto por suspeitar das fon­
também é afirmado o senhorio de Jesus Cristo sobre o mundo. Dessa tes históricas a respeito de Jesus, mas principalmente por observar como
forma, o 2oArtigo chega à sua forma definitiva, com a dupla ênfase nos as pessoas que crêem em Cristo querem tê-lo cada vez mais presente,
títulos majestáticos e na descrição da mensagem a respeito de Cristo. assumindo seus pensamentos como se estivessem sendo ditos hoje direta­
mente para elas. A partir daí, pode surgir a opinião de que Jesus seja uma
idéia. Não resta dúvida que, naquilo que se ensina na Igreja a respeito de
2. Falar de Jesus Cristo Jesus Cristo, podem ser identificados aspectos semelhantes aos dos mitos
Como vemos, “Creio em Jesus Cristo” e o que segue no 2o Artigo da Antigüidade. Por isso foi levantada por vezes a suspeita de que a his­
são resultado da reflexão de fé de muitas gerações, desde as primeiras tória de Jesus seria um mito. Nossa fé, porém, pressupõe a presença real
comunidades cristãs. Quando a comunidade confessa sua fé em Jesus de Jesus Cristo. Mais que isso: ele não tem estado presente aqui por acaso.
Cristo, acontece algo significativo: ele, o pregador, passa a ser aquele a
respeito de quem se prega. Na pregação, a comunidade busca entender e 4. Jesus Cristo: promessa e cumprimento
explicar Jesus Cristo na perspectiva da fé: quem é, de onde vem, como é,
onde e de que modo está presente, o que faz, etc. A compreensão a Muitos textos da Bíblia são marcados pela perspectiva da história
respeito de Jesus Cristo parte de três fontes fundamentais: do que ele diz da salvação, isto é, pela correspondência feita entre a promessa de salva­
e demonstra a respeito de si mesmo; do acontecimento representado por ção e o seu cumprimento da parte de Deus. Até se pode dizer que essa
sua morte e ressurreição; da fé da comunidade em sua ressurreição. forma de pensar encaixa com a existência de toda e qualquer pessoa. Por
meio dela, contudo, quer-se dizer que a manifestação de Jesus não foi
No centro da pregação de Jesus, estava o anúncio do reino de
apenas o cumprimento de expectativas humanas, mas muito mais o cum­
Deus, o anúncio de que Deus vem, toma o poder e estabelece o domínio
primento de um plano divino. Jesus Cristo não está por acaso na história.
sobre todas as coisas. O reino de Deus se manifesta no ministério de
Ele também não é o resultado da história humana, mas nasceu a partir do
Jesus por uma série de sinais, que testemunham uma grande inversão nas
conselho etemo de Deus. O pensamento judeu e o grego não traziam os
coisas. Conforme Lc 6.20-22, os pobres serão bem-aventurados, os fa­
pressupostos para compreender a existência de Jesus Cristo ou para re­
mintos serão fartos, os que choram rirão. Jesus não só se apresenta como
conhecê-lo do modo como se manifestou, seja como Messias prometi­
proclamador, mas também como portador do reino de Deus no momento
do, seja como Deus salvador. Daí a contradição: o mesmo apóstolo, de
da sua manifestação. É o que diz o Evangelho: que a identidade de Jesus
um lado, demonstra ininterruptamente a seu povo como em Jesus Cristo
se revela e que o reino de Deus se realiza na história de sua morte e
todas as profecias e toda a lei são cumpridas, e, de outro, diz que ele e
ressurreição. A partir daí, a comunidade transfere toda uma série de títu­
sua cruz são escândalo parajudeuse loucura para os gregos (1 Co 1.23).
los e funções para Jesus, utilizando-se deles para narrar a história de seu
nascimento, vida, morte e ressurreição. O conselho etemo de Deus é o pressuposto para que ele venha.
Por isso também se pode dizer que, em Jesus Cristo, o próprio Deus
entra na história. Constantemente se quis que Jesus justificasse sua pre­
sença: “Es tu aquele que estava para vir ou havemos de esperar outro?”
(Mt 11.3); “Eu te conjuro pelo Deus vivo que nos digas se tu és o Cristo,

56 57
o Filho de Deus” (Mt 26.63). Essas perguntas, no entanto, baseiam-se num 6. Jesus (= Deus ajuda) Cristo (= Ungido)
equívoco. Não é Jesus que deve apresentar justificativas, mas são seu povo,
sua época e toda a história que, diante dele, são chamados a prestar contas. “Jesus” e “Cristo”: os dois nomes se relacionam à história da salva­
ção. Jesus significa “Deus ajuda”. Cristo quer dizer “Ungido” e corres­
ponde à palavra hebraica “Messias”. Com isso se aponta à esperança da
5. Nomes e funções de Jesus antiga aliança. Por meio dos dois nomes de Jesus Cristo, o Antigo Testa­
Jesus foi chamado por muitos nomes ou títulos: Profeta (Jo 4.19, mento é transportado para dentro do Evangelho. Não é possível confes­
7.20), Mestre (Mc 5.35), Sumo Sacerdote (Hb 3.1), Supremo Pastor (1 sar Jesus Cristo e simultaneamente negar o lugar histórico, o povo no qual
Pe 5.4), grande Pastor das ovelhas (Hb 13.20), Apóstolo (Hb 3.1), Rei ele está inserido. É impossível compreender Jesus Cristo sem ter diante
(Jo 18.37), Paracleto (1 Jo 2.1), Príncipe (At 5.31), Salvador (Fp 3.20). dos olhos o que no Antigo Testamento é pressuposto para sua manifesta­
A ele foram atribuídas várias funções: Juiz (2 Co 5.10), Redentor (Rm ção: o cumprimento da promessa; o Rei ungido, o cumpridor da lei, que
3.24), Pacificador (Rm 5.1). Foi chamado de “nossa vida” (Cl 3.4), “po­ por ela é condenado à morte; o Sumo Sacerdote, que a si mesmo se faz
der e sabedoria de Deus” (1 Co 1.24), “as primícias dos que dormem” (1 sacrifício, pondo fim a todo sacerdócio e serviço sacrificiais; o Profeta da
nova aliança, que a funda e cumpre. A partir do Jesus Messias confessa­
Co 15.20).
do no Credo, não há um cristianismo separado do Antigo e relacionado
A expressão “Jesus é o Cristo” está presente na confissão de Pe­
apenas ao Novo Testamento, mas sim um único cristianismo do Antigo e
dro em Cesaréia de Filipe (Mc 8.29) e se liga a sua prédica no dia de do Novo Testamento.
Pentecostes (At 2.36). Jesus é identificado com o Messias prometido a
Israel. Na liturgia batismal da comunidade de Roma, a seqüência era “Cristo
Jesus”, dando a entender que era usada para apelar a Jesus. Jesus Cristo 7. Filho unigénito de Deus
é ungido pelo Pai com o Espírito Santo e reúne desse modo os ofícios de
O nome “Jesus Cristo” é seguido de uma afirmação importante: ele
rei e sumo sacerdote, existentes no Antigo Testamento. Essa interpreta­
é o Filho unigénito, único, de Deus. Esse termo é usado na Bíblia em
ção foi enfatizada por Cirilo de Jerusalém (m. 386) e posteriormente in­
relação a algumas crianças, tais como o jovem de Naim (Lc 7.12), a
corporada à tradição cristã ocidental por Rufino (m. 410). Mais ou me­
filhinha de Jairo (Lc 8.42), ou o filho de um homem do povo (Lc 9.38).
nos na mesma época, agregou-se às funções de rei e sumo sacerdote a de
No evangelho e na primeira carta de João, no entanto, ele é empregado
profeta, passando-se a falar no triplo ministério de Jesus Cristo, uma sín­
para mostrar quão especial é a relação de Jesus com Deus (Jo 1.14,18;
tese de todos os títulos e funções atribuídos a ele no Novo Testamento.
3.16,18; 1 Jo 4.9). Por meio de “unigénito” quer-se exprimir que Jesus
Houve uma simplificação, a fim de facilitar a compreensão a respeito da
Cristo é Deus. Ele não é um ser humano comum. Ele não é importante
obra de Cristo. Em contrapartida, sob Rei, Sumo Sacerdote e Profeta foi
como profeta ou como semideus, mas ele vem de Deus. Aqui, em verda­
escondida a rica variedade de funções e títulos atribuídos a Jesus.
de, não reside o milagre. Aqui está, isso sim, a condição prévia para o
A compreensão do triplo ministério procura entender Jesus Cristo milagre: a humanação de Deus.
a partir do Antigo Testamento. Pensando em termos de promessa e cum­
A afirmação de Jesus Cristo como Filho unigénito de Deus evita
primento, é automático que a atenção se volte para a expectativa gerada
uma conclusão a que eventualmente poderíamos chegar, depois de ter­
pela promessa. O que não se pode esquecer, no entanto, é que, como
mos dito “Creio em Deus Pai todo-poderoso, Criador dos céus e da
Profeta, Jesus não era equivalente aos antigos, que tão-somente procla­
Terra”: a de que ele seja criatura. Não, Jesus Cristo não é criatura. A
mavam a Palavra, senão que ele próprio, em pessoa, era a Palavra. Como
Igreja cristã, na parte oriental do Império Romano, viveu intensas discus­
Sumo Sacerdote, não sacrificou vidas alheias, mas sua própria vida. Como
sões a respeito. O resultado mais presente que temos disso é o que se diz
Rei, não reinava, mas servia. Ou seja, o triplo ministério de Jesus Cristo sobre Jesus Cristo no Credo Niceno, principal confissão de fé do cristia­
só é bem compreendido na perspectiva do cumprimento da promessa.

58 59
nismo oriental e que, para as comunidades de tradição evangélica lutera­ 9. Jesus Cristo: a criação e a história
na, é tão importante quanto o Credo Apostólico. Ali confessamos que ele
Como divindade, Jesus Cristo não é parte da criação, mas está à
é “Filho unigénito de Deus e nascido do Pai antes de todos os séculos,
frente dela. Como Filho de Deus, é verdade, ele permanece diante de
Deus de Deus, Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado,
Deus, de modos que em sua existência terrena ele ora ao Pai, é por ele
não feito, consubstanciai ao Pai, por quem foram feitas todas as coisas”.
abandonado na cruz e novamente por ele reanimado na sepultura. Sim­
plesmente não é possível procurar e identificar todos os atributos de Deus
8. O Deus oculto e o Deus revelado em Jesus Cristo. Por isso, é compreensível que às vezes nos perguntemos
Por outro lado, se com o pensamento da filiação de Jesus Cristo se se Jesus Cristo apenas ocultou esses atributos divinos em sua existência
afasta a idéia de que ele seja criatura, verdade é que algo mais precisa ser terrena ou se deles se esvaziou ao se humanar (cf. Fp 2.5-11).
dito: Jesus não é o Pai. Isso quer dizer que, em Jesus Cristo, a essência de
Deus não se revela completamente a nós, mas parte dela permanece oculta. 10. Jesus Cristo: última palavra sobre Deus
A revelação de Deus em Jesus Cristo não elimina os mistérios do Deus
O fato de Jesus Cristo ser Filho de Deus também revela algo a
escondido, oculto para nós. Isso significa que conhecer Jesus Cristo e crer
respeito de sua autoridade. No conjunto das coisas que nos são ditas a
nele não implica conhecer Deus plenamente. Assim, quem lê a frase “Deus
respeito de Deus, a palavra a respeito de Jesus Cristo é que importa e
é amor” (1 Jo 4.7-21), relacionada à manifestação de Jesus, está conhe­
decide. Certamente, o que ouvimos acerca de Jesus não é o único que
cendo muito a respeito de Deus, mas de modo algum pode esquecer-se do
sabemos acerca de Deus. Muito do que foi anunciado às pessoas a res­
Deus que castiga e se ira. O sentido de obterem Jesus Cristo a justiça, que
peito de Deus, fora e antes da manifestação histórica de Jesus Cristo,
nós pelas próprias forças não podemos realizar, está justamente em poder
pode ser total ou parcialmente correto, mas o que por meio de Jesus
sobreviver diante desse Deus implacável e que não pode ser esquecido.
Cristo nos é informado representa a última palavra. “Havendo Deus, ou-
Mesmo não podendo ser esquecido, paradoxalmente, a partir da trora, falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas,
salvação revelada em Jesus Cristo, o Deus oculto deve ser ignorado, como nestes últimos dias nos falou pelo Filho a quem constituiu herdeiro de
dizLutero: todas as coisas, pelo qual também fez o universo” (Hb 1.1 s.). A partir
[...] a respeito do Deus - ou da vontade de Deus - que nos é prega­ dessa última palavra, segundo a Carta aos Hebreus, deverá ser decidido,
do, revelado, oferecido e cultuado deve-se debater de outra maneira mesmo no caso mais específico, como hão de ser consideradas as infor­
do que a respeito do Deus não-pregado, não-revelado, não-oferecido, mações restantes a respeito de Deus.
não-cultuado. Portanto, na medida em que Deus se oculta e quer ser
ignorado por nós, ele absolutamente não nos importa. [...] Que [a
11. Para que Jesus Cristo seja Jesus Cristo
temeridade humana] se ocupe, ao contrário, com o Deus encarnado
ou (como diz Paulo) com Jesus crucificado, no qual estão todos os Confessar “Creio em Jesus Cristo, Filho unigénito de Deus” é pres­
tesouros da sabedoria e do conhecimento, porém abscônditos [Cl 2.3]; suposto de nossa existência cristã. Na fé, ligamo-nos a Jesus Cristo como
pois por meio deste ela possui abundantemente o que deve saber e o noivo e noiva se unem em matrimônio:
que não deve saber. Portanto, o Deus encarnado fala aqui: “Eu quis e
tu não quiseste”. Digo que o Deus encarnado foi enviado para que­ [...] tudo se lhes toma comum, tanto as coisas boas quanto as más, de
rer, falar, fazer, sofrer, oferecer a todos tudo que é necessário para a modo que a alma fiel pode apropriar e gloriar-se de tudo que Cristo
salvação, ainda que ofenda muitíssimos que, conforme aquela vonta­ possui como sendo seu, e de tudo que tem a alma Cristo se apropria
de secreta da majestade, ou foram deixados de lado ou endurecidos, como se fosse seu. [...] Cristo é cheio de graça, vida e salvação; a
e não recebem aquele que quer, fala, faz e oferece, assim como diz alma está cheia de pecados, morte e condenação. Intervenha agora a
João: “A luz resplandece nas trevas e as trevas não a compreendem” fé, e acontecerá que os pecados, a morte e o infemo se tomam de
[Jo 1.5]. (OSel 4, 101.105s.). Cristo, e a graça, vida e salvação são da alma. (OSel 2, 442).

60 61
Na fé, somos feitos “cristos” com Cristo. Na fé, ele se toma “Peca­
dor” conosco pecadores. É uma troca jubilosa.
Confessar “Creio em Jesus Cristo, Filho unigénito de Deus” signifi­
ca compartilhar os nomes, títulos, atributos e funções de Jesus Cristo. Creio em Jesus Cristo, nosso Senhor
Assim Cristo no-lo conseguiu, se nele cremos, para que, como co­
irmãos, co-herdeiros e co-reis, também sejamos seus co-sacerdotes,
ou:
ousando aparecer perante Deus em confiança e pelo espírito da fé, e “Ele serve pra sê Sinhô” (P. do Assaré)
clamar “Aba, Pai”, orar um pelo outro e fazer tudo o que vemos o
ofício visível e corporal dos sacerdotes fazer e figurar. (OSel 2,445).
Em conseqüência, o Credo não se limita a uma fórmula para ser
meramente recitada semanalmente durante os cultos, mas aponta para Albérico Baeske
uma realidade a ser concretizada em cada momento de nossa existência.
Pela fé em Jesus Cristo, também nós nos tomamos proclamadores e por­
tadores do reino. 1. O que significa ser senhor e senhora?
Confessar “Creio em Jesus Cristo, Filho unigénito de Deus” quer Muitos entre nós foram educados para chamarem seus pais de “se­
dizer agir, sentir e falar no sentido de que Cristo realmente seja Cristo: nhor” e “senhora”. Ao encontrar uma pessoa conhecida, perguntamos:
“[...] é necessário pregar com o objetivo de que sejapromovida a fé nele, ‘Tudo bem com o senhor, a senhora?” Volta e meia escutamos: “Não me
para que ele não seja apenas o Cristo, mas seja o Cristo para ti e para trates por tu, para ti eu sou o senhor Fulano, a senhora Beltrana!” Numa
mim, e opere em nós o que dele se diz e como ele é denominado” assembléia de excluídos, pode-se ouvir: “Aqui todo mundo é senhor e
(OSel 2,446). senhora, viu, seu!” Relativo à multiformidade e abrangência do conceito
“senhor” no Brasil escreveram, por exemplo, Gilberto Freyre em Casa
Bibliografia Grande e Senzala ou Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil.
O senhor e a senhora são figuras invejáveis. São donos e donas de
A CONFISSÃO DA FÉ APOSTÓLICA. Documento de Estudo da Co­
si, gente de peso que espera respeito e exige obediência, à qual se atribui
missão de Fé e Ordem do Conselho Mundial de Igrejas. Trad. de Jaci
Maraschin. São Paulo: Bartira, 1993. ascendência e direito de mando sobre outrem. Senhor e senhora viram
BOFF, Leonardo. Jesus Cristo libertador: ensaio de cristologia crítica para logo patrão e patroa. Decidem e querem ser servidos. Chegam até a obri­
o nosso tempo. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 1988. gar a tanto. Dificilmente toleram a seu lado outro senhor, outra senhora.
BRAATEN, Cari E. A pessoa de Jesus Cristo. In: id., JENSON, R. W. Como forma de retribuição, dignam-se a prestar auxílios às pessoas que
Dogmática cristã. São Leopoldo: Sinodal, 1990. v. 1, p. 459-551. se mantêm à sua disposição, que, embora convivendo com o senhor e a
LUTERO, Martinho. Catecismo Maior: 2a Parte: Do Credo (2o artigo). In: senhora, observam a devida distância. O grau de tal retribuição depende
Livro de Concórdia: as Confissões da Igreja Evangélica Luterana. 4. da boa vontade do senhor e da senhora. Tem-se, pois, um patrão bom,
ed. São Leopoldo: Sinodal /Porto Alegre: Concórdia, 1993. p. 450s. uma patroa compreensiva ou um senhor exigente, uma senhora petulante.
. Tratado [...] sobre a liberdade cristã. In: id. Obras selecionadas.
No fundo, ninguém gosta de estar abaixo de uma senhoria. Sempre
São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1989. v. 2, p. (435) 436-
existe a sensação de que, quando há pessoas que são senhores ou senho­
460.
ras e outras não, ocorre algo errado, uma violência. É um estado de coi­
sas que urge abolir.
Curiosamente, todo o mundo anseia ser senhor ou senhora, com os

62 63
atributos tão almejados que se notam neles. Eis o motivo último por que 5.9,23; 1 Co 1.7-9,31; 2.16; 5.4; 8 .6 ; 9.1; 11.23; 12.3; 15.57; 2 Co
chamamos alguém de senhor e senhora. Pretendemos inverter os papéis. 1.3,14; 4.5,14; 8.9; 10.17; 11.31; G16.14; Fp 2.11; 3.8,20; Fm 5; Rm
Manifestamos admiração pela influência e pelo poder que vemos certa 1.4; 4.24; 5.1,11,21; 7.25; 10.9; 13.14; 14.11; 15.6,30; 16.18 - h á ain­
pessoa exercer - os mesmos que um dia esperamos ter, tomara que em da mais alusões a “Senhor” no sentido absoluto, sem o nome de Jesus
grau maior ainda. Demonstramos humildade, educação e reverência en­ Cristo). Essa confissão já estava em voga antes de Paulo. Ela visa ao
quanto não há outro jeito. Mostramos a nossa sujeição a eles, todavia Ressurreto. Dificilmente Jesus de Nazaré, o Jesus histórico, é tratado desse
contra a vontade, uma vez que, de momento, nos parece ser a melhor jeito, também não na tradição original palestinense, que fundamenta os
solução. Titulamos pessoas de senhor ou de senhora para que nos favore­ primeiros evangelhos. Em Lucas, parece ser diferente (cf. 1.43; 2.11; 5.8;
çam. Acontece, inclusive, de recorrermos a elas para ameaçar os nossos 7.13,19; 10.1,39,41; 11.39; 12.42; 13.15; 16.8; 17.5s.; 19.8,31,34;
semelhantes. Nós nos impomos a estes, usando o nome dos senhores e 22.61; 24.3,34). Contudo, é possível mostrar que esse evangelista teste­
das senhoras de nossas relações. E os mesmos consentem, a fim de nos munha Jesus em especial a partir da Páscoa, querendo dar assim autori­
prender tanto mais a si próprios. dade incontestável às palavras dele antes da crucificação.

2. Jesus Cristo - supersenhor? b. “O Senhor Jesus Cristo”: a continuação da história de Deus


2) Quando o Novo Testamento se refere a Jesus Cristo, “o Se­
Nosso conceito de “senhor” facilita ou dificulta a compreensão da
nhor ”, as pessoas aí mencionadas desejam-se mutuamente a sua “graça”
assertiva Jesus Cristo, “nosso Senhor”? O Credo Apostólico confessa
e “paz” (cf. fórmulas tradicionais, citadas por Paulo no início e no fim de
um tipo de supersenhor? Muitas vezes Jesus Cristo é entendido assim. E
suas cartas), são batizadas “em nome do Senhor” (At 2.38; 8.16; 10.48;
uma idéia arraigada, que serve para justificar mil e uma arbitrariedades,
19.5; cf. 1 Co 1.13,15; G13.27; Rm 6.3), participam “da sua mesa” (1
usurpações e opressões na família, na igrej a e na sociedade. A história da
Co 10.21), invocam a sua presença (1 Co 16.22), sua intercessão junto a
América Latina o ilustra de tal maneira que se sente até aversão contra a
Deus e sua vinda em glória, esperada para breve (1 Co 11.26; Ap 22.20).
mencionada assertiva.
Asseveram que o Crucificado Ressurreto recebeu o poder de Deus para
Gostaríamos de substituí-la por “filho do homem”, um dos nomes concluir a sua missão de vencer as forças da destruição - pecado, morte
dados a Jesus Cristo nos primeiros três evangelhos. Considera-se “filho e todo o mal (1 Co 15.24ss.).
do homem” menos autoritário e mais democrático, humano e convidativo.
A base produtora do desdobramento da asserção Jesus Cristo, “o
O “filho do homem” deixa o poder celestial e se tom a pessoa como a
Senhor”, é a frase confessional aramaica da primeira comunidade pós-
gente. Procura-se nele, cá embaixo, junto à gente, o irmão, aquele com
pascal, marana tha, central na “Ceia do Senhor” e que se traduz por
quem logo afinamos e que conseguimos imitar. Aí, sim, Jesus Cristo atrai.
“Nosso Senhor vem” - modo indicativo, ou “Nosso Senhor, vem” -
Entretanto, sendo chamado de “nosso Senhor” ele repele.
modo imperativo. Aliás, os cristãos e as cristãs são os “que invocam o
nome do Senhor” (At 9.14,21; 22.16; 2 Tm 2.22; 1 Co 1.2; Rm 10.13).
3. “Jesus Cristo, o Senhor” no Novo Testamento E possível que encontremos aqui a mais original autodenominação dos
cristãos. “Invocar o nome do Senhor” significa glorificá-lo / confessá-lo
A esta altura, precisamos ter claro o seguinte:
(cf. Ap 5.9s., 12; 2 Tm 4.18) e pedir a sua intervenção demonstrativa (cf.
A tl.2 4 ;3 .1 6 ; 4.7,10; 16.18; 1 Co 5.3ss.). A formulação vem da tradu­
a. “Jesus Cristo, o Senhor”: a confissão
ção grega da Sagrada Escritura de Israel, a “Septuaginta” (cf. J12.32 > At
1) O Novo Testamento confessa que Jesus Cristo é “Senhor”. Jus­ 2.21). Após a Páscoa, a cristandade palestinense transferiu o enunciado
tamente em seus testemunhos escritos mais antigos, nas epístolas do após­ de Javé para Jesus Cristo. O último se tom ou tão real e patente para
tolo Paulo, tal confissão é essencial (cf. 1 Ts 1.3; 2.15,19; 3.11,13; 4.2; aquela comunidade que até a sua Escritura Sagrada tem de refletir o fato,

64 65
razão pela qual, em versões cristãs da “Septuaginta”, consta sempre “Se­ que “o nosso Senhor Jesus Cristo” se evidencia “o Senhor de todos” e
nhor' onde, em versões judaicas, se lê “Javé”, respectivamente “Ado- de tudo (cf. Rm 10.12; 1 Co 15.20ss.), “o Senhor” do cosmo (cf. Fp
nai”. 2.10s.;Rm 14.11;cf. 1 Tm 3.16; Cl 1.15ss.;2.14s.;Ef3.3ss.;Rm 16.25s.;
E a fé descobre cada vez mais novas relações entre “Javé” / “Ado- 1 Pe 3.22), enfim, “o Senhor da Glória” (1 Co 2.8; cf. Hb 13.8; Ap
nai” e Jesus Cristo, “o S e n h o r Tudo no intuito de engrandecer e anunci­ 1.5s.,17s.; 11.15; 12.10; 22.13,20).
ar Jesus Cristo - o Crucificado Ressurreto, que encontrou e juntou o seu Assim as comunidades helenistas testificam sua confiança na ubi­
povo desesperado e disperso devido à sua morte (cf. Êx 34.34 > 2 Co qüidade e na oniferosidade do “Senhor”, cuja presença é “o Espírito”.
3.16; Is 40.13 > 1 Co 2.16; Is 45.23 > F p 2.10s.), o reergueu, preparou Ocorre o paralelismo entre “o Senhor” e “o Espírito”. Paulo identifica a
e enviou. De repente, a Sagrada Escritura, lida no templo e nas sinagogas, confissão “Senhor é Jesus” como ação do próprio Espírito (1 Co 12.3).
fala em toda a parte do “nosso Senhor” (cf. a fórmula estereotipada de Assegura que o Espírito Santo testemunha às pessoas que confessam Je­
Mt: p.ex., 1.22). Sim, os cristãos e as cristãs continuam a escrever a sus Cristo que são filhos adotivos de Deus e co-herdeiros de Cristo (Rm
Sagrada Escritura, pois Deus prossegue na sua história (cf. 2 Co 5.19) - 8.15ss.; cf. Jo 15.9ss.). Ora-se “em nome do Senhor”, e o apóstolo
e emerge “o Novo Testamento”. esclarece: os crentes não sabem “o que pedir como convém; mas o pró­
prio Espírito intercede” por eles (Rm 8.26). Para Paulo, “o Senhor”, aliás
c. “ O S enhor da glória” no p resente e no fu tu ro “o Espírito”, fica palpável no seu “corpo”, a comunidade (1 Co 12; Rm
3) À medida que a fé no Ressurreto Crucificado sai do seu nasce­ 12.3ss.), criado na “Ceia do Senhor" (1 Co 11.20,23,26; 10.21; cf. vv.
douro aramaico-palestinense e se articula no âmbito preponderantemente 16ss.), e fica visível no exercício da “liberdade” (2 Co 3.17; cf. G15), na
helenista, ela recebe novos acentos, o que é verificável, entre outros, no vivência corporal das pessoas unidas “ao Senhor” (1 Ts 5.23; 1 Co 6 .12ss.;
uso e na compreensão do termo “Senhor". Agora se entende o mesmo a 9.26s.; 2C o4.10ss.; 10.10; G16.17; Fp 1.20; R m ó.lss.; 8.10s.; 12.1s.)
partir da expressão grega ho kúrios, “o Senhor". O ambiente helenista e na irrepreensibilidade “no Dia de nosso Senhor Jesus Cristo" (1 Co
conferia tal título tanto a reis quanto a divindades, acrescentando o res­ 1.8; 1 Ts 3.13; 5.23; Fp 1.10; Rm 14.7ss.; cf. 2 Co 5.5ss.).
pectivo nome próprio destes - e a ambos prestava culto, pois as pessoas
que os cultuavam viam-se existencialmente relacionadas com eles. 4. A vivência do “Senhorio de Jesus Cristo”
Enquanto o povo aramaico que confessava Jesus Cristo vivia na
É pacífica, portanto, a origem da confissão “Jesus Cristo é nosso
ansiosa expectativa da iminente chegada gloriosa do “nosso Senhor” e o
Senhor". Ela reflete a experiência existencial inextinguível dos primeiros
cham ava calorosamente, o povo helenista que confessava Jesus Cristo
cristãos e das primeiras cristãs. Eles experimentavam a presença consola-
aclam ava e proclam ava com entusiasmo “o nosso Senhor Jesus Cristo”
dora e libertadora do Crucificado Ressurreto no seu meio - no culto. Na
(cf. Rm 10.9), presente no seu meio. Eis o escopo da mensagem dos hele-
pregação, eram conquistados por ele e o abraçavam. No Batismo, ele os
nistas que confessavam a Jesus Cristo (cf. 2 Co 4.5). Aqui se contrapõe
assumia, providenciando proteção e antecipando vida plena, e os criava
“um só Senhor Jesus Cristo” a “muitos senhores” (1 Co 8.5s.). O povo
irmãos e irmãs. Na sua Ceia, dava-lhes parte corporal nele e restabelecia,
helenista crente pode “estar em comunhão com ele” apenas com ele (cf. 1
constantemente, a comunhão participativa e compartilhada entre eles.
Co 10.19ss.; Rm 13.14) e exclusivamente ser seu “servo” (cf. Fp 1.1).
As comunidades viviam no cotidiano o que experimentavam em
“O Senhor Jesus Cristo”, que está no meio dos seus, avança atra­
cada culto. Percebiam que corresponde ao “Senhorio de Jesus Cristo"
vés deles, de modo irresistível (2 Co 2.12ss.; 10.13ss.;Rm 1.3ss.; 15.18
vivenciá-lo, não transcrevê-lo. Elas o vivenciavam de duas maneiras in­
> C 1 1.23; 2.15), rumo ao seu objetivo derradeiro: “arevelação [diretae
terligadas.
definitiva] dos filhos de Deus”; em cuja “liberdade da glória” entrará tam­
bém “a criação liberta da escravidão da corrupção” (Rm 8.18ss.), com o Uma vez, no compromisso de vida com “o Senhor dos senhores"
(1 Tm 6 .15s.), que consola, protege e liberta sobretudo da morte e que

66 67
fazia as comunidades questionarem e rejeitarem qualquer outro senhorio, tos de lidar com a situação surgida. Aquele jeito que se impunha, em
dentro ou fora das suas hostes. Sabiam que Jesus Cristo chama os seus especial depois de o Império Romano tomar-se cristão em termos oficiais
de “amigos” e não de “servos” (cf. Jo 15.9ss.); são eles os seus irmãos e exclusivos, partia do seguinte raciocínio: Jesus Cristo, enquanto não
(cf. Jo 20.17) e os benditos de seu Pai (cf. M t 25.34). Sua amizade e seu chegasse em pessoa, teria encarregado a Igreja do seu Senhorio, selan­
parentesco criam ambiente sem dominação e tirania de benfeitores (cf. Lc do o triunfo dela sobre o paganismo. E lhe teria concedido o imperador,
22.24ss.), motivo pelo qual muita gente confessante trocava, com natura­ agora cristão, como assistente no exercício da nova função, e a quem a
lidade, a sua vida na amizade do “Senhor” / no seu parentesco, pela vida Igreja obviamente teria de legitimar no seu poder e animar na sua tarefa
ao lado dele, “na sua glória” (cf. Fp 1.21; 2.14ss.; 3). Queriam vê-lo “tal de ajudar a impor o Senhorio de Jesus Cristo ao mundo.
como ele é “ (1 Jo 3.2) e apressar aquele dia no qual nada lhe perguntarão Doravante, o imperador e a sua corte integravam a visão e a estra­
(Jo 16.23; cf. 2 Pe 3.11 ss.). Nas comunidades se considerava terrível tificação cristãs do mundo. Muitas vezes eles eram entendidos até como
tão-só “renegar ao Senhor” (cf. M t 10.26ss. par.). Todo o resto desa­ imagem do “Senhor da glória”. Em qualquer situação, estavam cobertos
parecia diante disto. pela sombra divina. O imperador terrestre representava o celeste. Lutava
A outra maneira de as comunidades vivenciarem o “Senhorio de com os seus recursos pelo senhorio deste. Conseqüência: tomava o pró­
Jesus Cristo” sucedeu no seu convívio em irmandade, igualdade e liber­ prio senhorio inquestionável, e insuperável na terra sua dignidade imperial.
dade. Talvez essas não fossem tão inusitadas no contexto religioso de Daí não é de admirar que “o nosso Senhor Jesus Cristo” adquiris­
então. Ainda assim eram levadas a cabo com coragem e vigor, disciplina se, em doutrina e fé eclesiásticas, feições de déspota. Os povos, cristãos
fraternal interna e pesados sacrifícios pessoais. Contava-se com o risco ou não, experimentavam os seus governantes como senhores absolutos e
de ser preso e morto pelo povo de “outros senhores”. Numerosos mem­ arbitrários que, em decorrência do seu querer e prazer, oprimiam e mas­
bros das comunidades que confessavam Jesus Cristo não temiam as gar­ sacravam. Eram tiranos, com coroas obtidas à custa de montes de cadá­
ras das bestas-feras, nem a raiva das massas humanas ávidas de sangue, veres e tronos erguidos sobre a miséria dos súditos. Naturalmente, nem
nem a espada e nem a chama; sem tardar, eles próprios se tomavam todos os imperadores da era cristã se portavam desse modo. Mas, inclu­
chama de Deus e Palavra de Deus, “espada de dois gumes” (cf. Hb 4.12) sive na melhor das hipóteses, se enraizou a convicção: Jesus Cristo é igual
(seg. H. Heine). Nestas vicissitudes, as comunidades sabiam, se consola­ ao nosso rei, distante e incompreensível. Precisamos temê-lo, o dono e o
vam mutuamente e professavam no seu ambiente: os senhores deste mun­ juiz de tudo e de todos. Lida-se com ele por intermédio de pistolões,
do passam, mas “o nosso Senhor” está por chegar e com ele o mundo eclesiásticos ou reginóis. Através dos seus representantes consagrados,
novo, de paz com justiça. Ele será “o Senhor'’ de todos e de tudo. O ele arrasa toda eventual resistência. Os seus batalhões sempre são os
mundo inteiro esteja preparado! As comunidades viviam serenas, confi­ mais fortes. Por isso é bom se sujeitar de pronto e obedecer; quem sabe,
antes e alegres. Embora sem ambições políticas, o testemunho integral bajular os seus procuradores clericais, civis e militares. Então vai-se bem
das comunidades tinha relevância e conseqüências políticas. Sua mera na presente vida e na futura.
existência se constituía em subversão com fôlego dentro do status quo
Eis, de forma simplificada, o ideário com que os conquistadores
em que estavam inseridas. Evidenciava-se: “quantos mais foram assassi­ ibéricos aportaram nas Américas e que procuraram incutir nas gentes destas
nados, tantos mais se tomaram cristãos. Quando um morreu, vieram vinte terras. Isto ficou patente no histórico encontro entre caciques e sacerdo­
novos. E, no fim, Roma se encheu de cristãos e o império [romano] foi tes sobreviventes dos astecas, de um lado, e os doze franciscanos espa­
destruído” (M. Lutero). nhóis, de outro, em 1524, na cidade do México, destruída por Hemán
Cortés três anos antes. Em seguida ele ganhou a sua expressão cristalina
a. Jesus C risto, rei no sistema de Juan Gínes de Sepúlveda.
Porém “o Senhor” demorava a vir do modo esperado. A duras No mesmo espírito e com resultados não menos aterrorizadores
penas os cristãos e as cristãs aprendiam isso. Desenvolviam diversos jei­

68 69
agiram os protestantes. O seu ideário da ligação entre trono e altar, bem comprova quando ela nos alcança, envolve e transforma, aqui e hoje.
como as diversas formas da teologia do senhorio régio de Cristo, ficaram Nós não conseguimos fazer que com isso aconteça. Sucede quando e
igualmente devendo o testemunho original do “nosso Senhor Jesus Cris­ onde apraz ao Espírito Santo. Ele “abre o ouvido e o coração” (K. Rom-
to”. Cá e lá vale que poder eclesiástico nada tem a ver com o Senhorio mel; cf., p. ex., 1 Co 12.3; At 16.14; M t 16.17; Jo 6.44,65; 1 Jo4.2s.).
de Jesus Cristo. Melhor: o contradiz por princípio. Daí o nosso grito por sua intervenção. Só o Espírito Santo recria a confis­
são básica e mestra: “Jesus é Senhor” e uma vida em conformidade com
b. Jesus C risto, rei no culto ela (cf. HPD 82). Confissão - como vimos - usada a torto e a direito,
degradada e esburacada, que se tomou obsessiva, cega e cegante (cf. E.
Se fossem superadas todas as formas diretas e alusões indiretas a
Morin).
Jesus Cristo como rei no sentido esboçado, ainda assim estaríamos sendo
influenciados e influenciadas sutilmente na direção errada. Nesse ponto Em que consiste o Senhorio de Jesus Cristo? É simples e, ao mes­
necessitam ser mencionados certos aspectos do culto dominical. Nós os mo tempo, inconcebível, por ser permanentemente subversivo. Implode
temos interiorizados de tal modo que não nos damos conta do seu alcan­ qualquer moral e religião, inclusive as cristãs. Moral e religião suscitam e
ce. De momento não há espaço para aprofundar isso, no entanto sejam sustentam sistemas socioeconômicos e políticos subjugadores, concen­
lembrados alguns aspectos. Os exemplos pretendem animar a descobrir, tradores e excludentes (p. ex., o neoliberalismo globalizado) e ideários
denunciar - e abolir outros resquícios da concepção aterradora do “Se­ egocêntricos, filosóficos e especulativos (p. ex., a auto-realização via Nova
Era). Por este motivo, constantemente, também cristãos e igrejas repri­
nhor Jesus Cristo”.
mem e reinterpretam o Senhorio de Jesus Cristo até que se invirta.
Ora, já o desenrolar de muitos cultos reflete a distância entre rei e
Jesus Cristo põe às claras que “nós falamos do amor, mas adora­
súdito, juiz e acusado. Paira no ar aquela sensação de desconforto das
mos o poder” (A. Lowen). Jesus Cristo enfrenta a lei da vida humana
pessoas que assistem a eles. Veja o tratamento que se dá a Deus e Jesus
Cristo nas invocações e formulações das orações ou os hinos “Deus está desde Caim e Abel: “A tua morte é a minha vida”. Ele a substitui por esta:
presente” e “Jesus Cristo é Rei e Senhor” . Veja-se o comportamento “A minha morte é a tua vida”. Deveras, a vida que Deus previu e guardou
durante o culto: o povo se reúne em recintos por via de regra construídos para as suas criaturas. A vida de fato alternativa. Ela é mais do que sobre­
em forma de auditório de Palácio da Justiça; as pessoas se levantam e vivência. Ela liberta da autodefesa, do auto-enredamento e da fetichiza-
sentam quando mandadas, falam, de cabeças inclinadas, o que é prescrito ção de coisas e pessoas. Ela espera contra todo o desespero. Ela vence
ou foi redigido - e isso normalmente não por elas próprias; os oficiantes “a morte, as opressões e a tirania” e viverá “no Reino” de comunhão e “de
andam com vestes especiais e ocupam lugares reservados. A prédica se alegria” de Deus (J. C. Maraschin).
refere bastante à justiça - a qual? Caso ela detalhe uma vez que Deus é Jesus Cristo não o realiza no discurso, mas na existência. Em deci­
justo porque nos liberta, a começar de nós mesmos - como isso combina são livre, lança mão da sua vida para que a vida prevista e guardada por
com as demais partes do culto? Resumindo: nós vamos ao culto por gosto Deus vire realidade (cf. G14.1ss.). Jesus Cristo, “o Autor da vida” (At
ou por obrigação? 3.15; cf. 5.31; Hb 2.10), conduz a esta vida. Incorpora-a e cativa as
pessoas para ela (cf. Rm 5.6ss.; 6.15ss.; Cl 3.1ss.; Tt 3.1ss.; Jo 1.4;
3.14ss.,36; 5.24ss.; lO .llss.; 11.17ss.; 17.1ss.; 1 Jo l.ls s.; 3.14ss.;
5. O Senhorio de Jesus Cristo
5.1 lss.). Empenha e emprega aí tão-somente a sua palavra e o seu “exem­
“Jesus Cristo é nosso Senhor”. Com razão se afirma: a pessoa plo bom” (Rommel). Jesus Cristo encarna: “não pelo poder, não pela
que vacila aí deixa de ser crente em Jesus Cristo e alguém que o professa. força, mas sim por meu espírito - disse Javé dos Exércitos” (Zq 4.6).
Univocidade é preciso na “agonística de” nosso “tempo plural” (I. Keil). Jesus Cristo vem para levantar, não para arrasar. Sine vi sed verbo', nun­
A univocidade desta assertiva da Igreja de todos os tempos e lugares se ca coage ninguém, antes ergue e atrai, enche de alegria e convence para o
discipulado por gosto e paixão. Seu senhorio consiste em “ajudar, curar,

70 71
perdoare servir, não em obrigar, julgar, mandar e reinar” (W.Elert). “Como até que as pessoas gostem de ouvi-lo e segui-lo. Em amor, ele se expõe
servo, ele garante por nós.” Ser rei “não consola tanto, pois aí as pessoas às suas dúvidas e carrega a sua negação. “ ‘Compassivo e muito miseri­
pensam sempre que ele seria um juiz” (Lutero). Jesus Cristo, o “amigo cordioso’ (SI 103.8), espera pela meia-volta e penitência dos vagarosos”
dos pecadores” (Mt 11.19), explicita seu senhorio pelo lava-pés (Jo (Lutero). De outro modo não surgirá nas pessoas amor por ele e confian­
13.4ss.) e pelo compromisso de estar sempre com os que o confessam, ça nele. Quando elas matam a ele e às suas testemunhas, é sinal que já
aliviando suas cargas (cf. Mt 11.25ss. par. e 28.16ss. par.). Vale-se de começam a se entregar a ele (las Casas repetiu isso inúmeras vezes) e que
um único instrumento, a saber, a viva comunicação, pessoal e pacífica, de “serão os convertidos por excelência” (Lutero) - como Paulo o foi (G1
seu amor paciente, persistente e comprovado em tantas pessoas de tantas 1.15s.; 1 Co 9.1; 15.8ss.; 2 Co 4.6; cf. At 9.1ss. par.). Jesus Cristo
regiões e épocas diferentes. vislumbra que o amarão e confiarão nele sobre todas as coisas, institui­
ções e pessoas. Ele jam ais se retira dos seres humanos na hora em que
a. O S enhor Jesus C risto não desiste trilham caminhos estranhos, perigosos e dolorosos. Quando eles se fe­
rem, ele os sara, quando se eliminam, ele os restaura. Nada e ninguém lhe
Os seres humanos não conseguem decepcionar nem desencorajar
consegue opor obstáculos nisso. Eis sua arte eficaz de levar as pessoas a
Jesus Cristo. Quanto mais as pessoas se fecham, tanto mais ele insiste
descobrir que lhes será impossível deixar de falar dele (cf. At 4.20; 1 Co
pedindo que o sigam para “vida e salvação” (Lutero) delas. Seu coração,
9.16ss.; 2 Co 4.13) e de lhe corresponder, alegres e livres, em fé e vida -
ardendo em amor, acompanha as pessoas em toda parte, esperando, cada
já agora e para sempre. Ele suscita nelas as disposições particulares dele
vez mais esperando pelo seu amor voluntário. Assim, ele acaba na cruz.
Por amor, não desce dela. Persiste na “humildade da sua cruz” (Lutero). (cf. Fp 2.5), querendo e almejando, buscando e amando o que ele quer.
No silêncio da morte, continua chamando e comprovando: “amar aos
b. O S enhorio de Jesus C risto é serv ir
seres humanos é a sua vontade, e ser amado por eles, em liberdade e
espontaneidade, é seu anseio” (M. Hausmann). Pois a vida que Deus O Senhorio de Jesus Cristo assenta-se, pois, no seu amor para
concede “possui a estrutura de pro-posição; é um aceno de um convite e conosco. Este encontra a sua expressão no servir (cf. Fp 2.7; 2 Co 8.9)
não o mando de uma ordem” (L. Boff). Daí, “Deus não gosta de nenhum sob circunstâncias tão miseráveis que dele “todos escondem o rosto” (cf.
serviço por constrangimento, e ninguém lhe pertencerá se não o quiser Is 53.2s.; Jo 13.1ss.), no doar-se até e com a morte para “paz e cura” (Is
com prazer e amor” (Lutero; é, aliás, surpreendente e alvissareira a ho­ 53.5), para “vida e salvação” dos seres humanos (cf. 53.2ss.; 1 Co 11.23ss.
mogeneidade nesta percepção teológica e conseqüente prática comunitá­ par.; 2 Co 5.17ss.; Rm 3.21ss.; Jo 6.52ss.). O seu jeito horroriza sobre­
ria pastoral entre os contemporâneos B. de las Casas e o pregador de maneira pessoas que se consideram íntimas dele (cf. Mc 8.31 ss. par.; Lc
Wittenberg). 9.51ss.; Jo 18.2ss.). Para espanto de uns: “os Joões grandões” (Lutero)
Jesus Cristo demonstra que coerção vem do desprezo ao ser hu­ de fato ou os que o anseiam ser na igreja e na sociedade, e para júbilo de
mano, induz à hipocrisia e termina em ódio, e o que gera tem pouca dura­ outros: os que a minoria dominante na igreja e na sociedade qualifica de
ção. Jesus Cristo se aproxima desprotegido e suplicante. Seu senhorio lastro ou, na melhor das hipóteses, de cobaias para os seus experimentos.
está oculto sob pobreza, impotência e insignificância. Seu jeito é a mais O jeito do Senhor Jesus Cristo é mais forte do que a mais dura resistên­
pura forma de dedicação que procura o outro, pois, pedindo, Jesus Cris­ cia: ele abre a mente e conquista o coração de todo ser humano que ele
to valoriza, dignifica e emancipa as pessoas a quem está pedindo (cf. E. queira cativar - embora a seu tempo e à sua maneira. Ele liberta “os Joões
Jüngel). Em absoluto faz morrer alguém; pelo contrário, ele mesmo se grandões” de sua terrível presunção para seguirem o jeito dele, de solida­
deixa matar pelas pessoas (cf. Mc 10.45; Jo 18.8). “Seu cetro é miseri­ riedade e de despojamento; liberta os ditos desqualificados da paralisante
córdia” (G. Weissel), a sua coroa, a coroa de espinhos e cheia de seu desinformação, da pavorosa interiorização de sua situação e da confor­
próprio sangue, e o seu trono, a cruz. “O rei da cruz é glorioso, sim, midade sem perspectivas com a mesma para abraçarem o jeito inconfor-
contudo a sua glória está escondida na cruz” (Lutero). Destarte continua mista dele, cheio de esperança e confiança.

72 73
O serviço de Jesus Cristo não remenda: recria a pessoa a partir de aos seres humanos o que Jesus Cristo faz? (cf. Ph. Spitta). Certíssimo: ele
seu âmago, no qual “inocula a fé” (Lutero). Alcança e transforma a pes­ é o único “que serve pra sê sinhô” (P. do Assaré). Advém daí a insistência
soa como ser integral, que não apenas tem corpo, mas que é corpo, já de Lutero de chamar o Deus dos cristãos e das cristãs de “Deus corpó­
que “a corporeidade é o fim dos caminhos de Deus” para com o mundo e reo” e a sua rejeição da figura de Jesus Cristo sentado no trono celestial,
todos os seus seres (F. Chr. Oetinger; cf. “creio... na ressurreição do cercado de miríades de anjos. Para Lutero, Jesus Cristo “está cá embai­
corpo”; “confesso... a vida do século/mundo vindouro”, Credo Niceno- xo”, servindo-nos com os seus meios de vida total: pregação, batismo,
Constantinopolitano). E, então, a pessoa atingida desdobra a asserção do Ceia do Senhor e confissão e absolvição dos pecados em comunidade e
Credo Apostólico '''‘Jesus Cristo é nosso Senhor ” da seguinte maneira: particularmente.
Jesus Cristo... é meu Senhor.
Pois me remiu a mim, pessoa perdida e condenada, c. O S enhor Servo constitui u m povo que serve
me resgatou e salvou p o r gratidão e em am o r
de todos os pecados, da morte e do poder do diabo; As pessoas a quem Jesus Cristo serve - tão concreta, real e corpo­
não com ouro e prata, mas com seu santo e precioso sangue
ralmente - lhe pertencem. Ele as resgata para si. Ele as tom a os seus,
e sua inocente paixão e morte. (Lutero).
“não mediante um ato de violência, mas, sim, mediante um ato de clemên­
Ou ainda: cia” (Elert). Ele as merece, pois dá a sua vida pela vida deles. Jesus Cristo
Jesus é servo, eu sou senhor; / que troca singular! as adquire para si pelo preço mais alto possível (cf. 1 Co 6.20; 7.23 e 1
Não há no mundo amor maior / que seu amor sem par. (N. Her­ Pe 1.19): seu auto-esvaziamento manifesto em seu assumir a condição de
mann). escravo e sua auto-humilhação manifesta em seu espontâneo concordar
com Deus (cf. Fp 2.6ss.; HPD 155.5s.; 43.2s.) de o “fazer pecado por
O serviço de Jesus Cristo impele a pessoa a comunicar a sua expe­ causa de nós, a fim de que, por ele, nos tomemos justiça de Deus” (2 Co
riência (cf. Rm 10.8s.):
5.21). Não somos mais de nós mesmos ou de outrem, mas exclusivamen­
É Cristo, Deus, nosso Senhor, / liberta-vos de toda a dor; te dele (cf. G1 2.20; Rm 14.17ss.; E f 1.14; Cl 1.12s.; Jo 15.16; 1 Pe
vem mesmo para vos salvar / e do pecado vos livrar. 2.9s.), com a finalidade de querer o que ele quer, a saber: de vivermos
Felicidade singular / o Pai vos soube preparar: “em seu reino em eterna inocência e bem-aventurança” (Lutero).
Jesus vos traz a salvação / de sua celestial mansão. (Lutero).
Por isso, a alegria toma conta das pessoas, e nada lhes resta a não
Tal experiência ocorre na comunidade. Bem aí “o nosso Senhor ser ficarem gratas “a Deus por seu dom inefável” (2 Co 9.15) - e simples­
Jesus Cristo”, ele mesmo, a serve com a sua palavra que consola, liberta mente aceitá-lo. A cada uma delas e a todas elas juntas não resta outra
e emprega. Aí, mediante o batismo, assume, segura e transforma, pesso­ opção senão confessar que seu
almente, cada indivíduo e o integra no povo dos seus amigos, irmãos, co-
[...] único conforto na vida e na morte é que eu pertenço - corpo e
herdeiros e benditos de seu Pai. Aí conforta, ergue e faz recomeçar os alma, na vida e na morte - não a mim mesmo, mas a meu fiel Salva­
oprimidos e deprimidos por si próprios e por outros através de perdão e dor, Jesus Cristo, o qual [...] pagou plenamente todos os meus peca­
absolvição dos pecados, em forma comunitária e particular. Aí é “cozi­ dos e me libertou do domínio do Diabo; que ele me protege tão bem,
nheiro, garçom, comida e bebida” (Lutero) na sua mesa de comunhão, que sem a vontade de meu Pai no céu nenhum cabelo pode cair da
ligando os comensais a si e, em conseqüência, entre eles. O serviço de “o minha cabeça; na verdade, que tudo deve adaptar-se ao seu propósi­
nosso Senhor Jesus Cristo” galga o ápice quando, no Dia do Senhor, to para a minha salvação. Portanto, pelo seu Santo Espírito, ele tam­
“ele se cingirá e assentará à mesa os [resgatados vigilantes] e, passando bém me garante a vida etema e me faz querer estar pronto, de todo o
de um a outro, os servirá” (Lc 12.37). Onde se acha tal Senhor, que faz coração, a viver para ele daqui por diante.
Daí “devo gratidão a Deus por essa redenção”. Tal gratidão se es-

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miuça no fato de que em “nosso reverente procedimento ganhemos corpo na Ceia do Senhor (cf. 1 Co 11.24 par.), e “transfigurará o nosso
os nossos semelhantes para Cristo” (Catecismo de Heidelberg). corpo humilhado, conformando-o ao seu corpo glorioso”, no Dia do Se­
O reino de Jesus Cristo é caracterizado por inclusão e perdão (cf. nhor (Fp 3.21; cf. 1 Co 15.43,49,53).
Mc 5.25ss.; Lc 15; 1 Co 1.26ss.; Rm 5.12ss.; 1 Pe 2.9s. > G16.1ss.; 1 Por seu turno, então, a comunidade se envolve, de modo natural,
Jo4.7ss.), por resgate e comunhão (cf. Lc 19.1 ss.; G13.28; E f 2.11 ss.; em atividades que evitam que as pessoas joguem as suas vidas como
Jo 10.16; 11.52 > F p 2 .3 s.;R m 12.15ss.), por serviço, despojamento, semente em qualquer chão, as desperdicem ou até as larguem. Apóia
igualdade e partilha (cf. Mc 10.17ss.,35ss.; 2 Co 8.9 > 13ss.; At 2.44s.; iniciativas que conservam a vida e previnem o corpo contra o que o pre­
Rm 6.13; 12.1). judica. Denuncia e combate tudo e todos que manipulam o corpo, o tor­
O serviço do Senhor Servo gera e molda a existência das pessoas nam dependente e o subjugam. Confessa que, por causa de Jesus Cristo,
que o experimentam. O seu serviço cria e mantém o ambiente sem domi­ há perdão, esperança e novo começo.
nação, exercita e aprimora o serviço destas sem uso de força ou cons­ A comunidade trabalha para que um corpo deixe de humilhar o
trangimento. Vale em tudo e para sempre: “Não existe discípulo superior outro na relação íntima entre duas pessoas. Ajuda para que percebam
ao mestre” (Mt 10.24; cf. Lc 6.40; Jo 13.16; 15.20). Tal gestação e que os corpos embelezam e dignificam o seu convívio. Indica como se
moldagem distinguem e comprometem - e põem na balança, de vez, to­ esfacela a totalidade da convivência quando os corpos se prestam a ca­
dos os que dizem: “Jesus Cristo é nosso S e n h o r A primeira a ser lem­ prichos e experiências egoístas. Mostra que os seres humanos vivem para
brada e desafiada é - lógico! - a comunidade reunida no culto, que “con­ se complementar e que a junção corporal chega à plenitude no compro­
fessa” sua “fé com as palavras do Credo Apostólico”. misso duradouro. Confessa que Jesus Cristo, ao perdoar, inaugura a prá­
tica de que “os que se amam vivem do perdão” (Hausmann).
O serviço da comunidade é corpóreo A comunidade entra em campo onde os corpos ficam doentes e
O serviço da comunidade, gerada e moldada pelo serviço de seu analfabetos, sem comida e lar, sem trabalho e co-gestão, sem defesa e
Senhor, é concreto, cotidiano e corpóreo (cf. 1 Co 6.20). Insiste na valo­ segurança, sem voz e decisão. Levanta-se onde pessoas estão sendo re­
rização do corpo. Coopera com a transformação de todas as relações duzidas a força de trabalho, a massa consumidora e a boiada eleitora.
que são mediadas pelo corpo, sempre ciente de que desprezo do corpo e Engaja-se pela cidadania que impossibilita que os corpos vegetem e que
das suas funções é desprezo do Senhor. seres humanos virem elementos supérfluos e descartáveis. Coopera com
Em suas andanças pela Palestina, ele jamais atua de modo incorpó­ a organização e a resistência dos excluídos e com a sua tomada do poder
reo. Anuncia o Evangelho e liberta de todo tipo de moléstia (cf. Lc 4.18s.; público. Confessa que Jesus Cristo encoraja as pessoas que pecam por
responsabilidade cívica, assegurando-lhes o seu perdão e a sua compa­
Mt 4.23 par.). A graça que ele é e representa “em absoluto significa ape­
nhia.
nas perdão, porém, onde quer que enxergue dor, lágrimas, fome, tremor,
desnorteamento e miséria, ‘tem compaixão’ [Mt9.36; 14.14; 20.34; Lc Sempre, em tudo e sobretudo vale: “onde há perdão dos pecados,
7.13]” (Elert), ou seja, “o íntimo de seu coração se move” (J. Schni- há também vida e salvação” (Lutero).
ewind). Ele se identifica com os que sofrem, fica doente por causa de suas
doenças, está sendo ofendido em conseqüência de seus sofrimentos; para Como a comunidade está sendo lembrada do seu serviço
vencer a morte ele vira mortal, igual a todas as outras pessoas (seg. D. A comunidade moldada por “nosso Senhor Jesus Cristo” discur­
Sõlle). sa pouco sobre isso, ao contrário, pratica-o já nas próprias fileiras. Está
E muito mais ainda: o Senhor “levou os nossos pecados em seu ciente de que Jesus Cristo estabelece, no meio e através dela, a esfera
próprio corpo” (1 Pe 2.24), “ajuda e dá a vida, tanto na alma quanto no sem dominação e exercício de poder, o âmbito dos seus amigos, irmãos,
corpo” (Lutero), renovando “carne e ossos” (W. Lõhe) através de seu co-herdeiros e benditos de seu Pai. A comunidade segue pedindo, única

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e exclusivamente pedindo, àquele que optou por pedir que as pessoas o Literatura para aprofundar e discernir
sigam (cf. 2 Co 5.20). Grata, ela aceita cada nova animação para a sua
prática. Humilde e contrita percebe o que arraiga, funda e vitaliza a sua AULÉN, Gustaf. A fé cristã. São Paulo: ASTE, 1965. 382 p. p. 194-215.
prática. BARTH, Karl. Bosquejo de dogmática. Buenos Aires: “La Aurora” /
Mexico: Casa Unida, 1954. 251 p. p. 137-47.
A comunidade aprende com C. Chavez, o líder dos bóias-frias me­ BOFF, Leonardo. Jesus Cristo Libertador. 13. ed. Petrópolis: Vozes, 1991.
xicanos nos EUA: 251 p. p. 102-66.
Se formos honestos, precisamos convir que a nossa vida é o único que COMBLIN, José. Vocação para a liberdade. 2. ed. São Paulo: Paulus,
nos pertence de fato. Que tipo de pessoas somos se decide naquilo 1998. 319 p. p. 96-8. 65-9.
em que a empenhamos. É minha firme convicção que achamos a GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. São Leopoldo: Si-
nossa vida apenas quando a damos. Ser humano significa sofrer por nodal / Petrópolis: Vozes, 1976. v. 1. 299 p. p. 273-82.
outras pessoas. Que Deus nos ajude a nos tomarmos seres humanos. ______. Teologia do Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal / Petrópo­
lis: Vozes, 1988. v. 2. 270 p. p. 353-60.
Cada culto dá a fundamentação cristológica desta prática: KÜMMEL, Werner G. Síntese teológica do Novo Testamento. 3. ed. São
Seja o vosso amor tão forte, / tão intensa a comunhão, Leopoldo: Sinodal, 1983.379 p. p. 126-30,180-3.
que enfrenteis a própria morte, / por amor de algum irmão. LUTERO, Martinho. Obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal / Porto
Cristo assim nos tem amado / que seu sangue deu por nós; Alegre: Concórdia, 1987. v. 1. 469 p. p. 428-40.
como ficará magoado, / se há egoísmo entre vós! (N. L. von Zinzen- . São Leopoldo: Sinodal / Porto Alegre: Concórdia, 2000. v. 7. 593
dorf). p. p. 393.1 - 400.30 (= Livro de concórdia. 4. ed. São Leopoldo: Sinodal
/ Porto Alegre: Concórdia, 1993. 801 p. p. 451.34 - 457.70).
Em cada Ceia do Senhor, tal prática da comunidade tem efeito MOLTMANN, Jürgen. El Dios crucificado. Salamanca: Sígueme, 1975.
lógico: 479 p. p. 275-400.
Este sacramento é um sacramento do amor [...] como tu recebes ______. O caminho de Jesus Cristo: (cristologia em dimensões messiâ­
amor [...] deves, por tua vez, demonstrar amor [...] a Cristo na pes­ nicas). Petrópolis: Vozes, 1993.485 p. p. 338-65.
soa de seus [grifo meu] necessitados. Pois deve magoar-te toda de­ SOBRINO, Jon. Jesus, o Libertador: I. A história de Jesus de Nazaré.
sonra infligida a Cristo [grifo meu] [...], toda miséria da cristandade, São Paulo: Vozes, 1994. 392 p. p. 320-65.
toda injustiça sofrida pelos inocentes; todas estas coisas existem em
abundância em todas as partes do mundo. Em relação a elas, preci­
sas opor resistência, agir, interceder [...] O fruto deste sacramento é
comunhão [...] em dois sentidos: por um lado, desfrutamos de Cristo
[...] por outro, deixamos que todos os cristãos também desfmtem de
nós [...] Assim, o amor de si mesmo que busca seu próprio proveito,
tendo sido extirpado por este sacramento, permite a entrada do amor
que busca o proveito da comunidade e está voltado para todas as
pessoas. Desta forma, constitui-se, através da transformação do amor,
um único pão, uma só bebida, um só corpo, uma comunidade. (Lute-
ro).
Assim começa o “viver no reino do nosso Senhor Jesus Cristo em
etema inocência e bem-aventurança” (Lutero).

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mente Marcos e João, não fazem referência aos relatos da infância de
Jesus. É bem provável que Marcos não os tenha conhecido. João talvez
não os tenha considerado importantes. Ele chama Jesus de filho de José
(1.45; 6.42). Há mesmo quem afirme que João tenha conhecido e pole­
Foi concebido pelo Espírito Santo, mizado contra a idéia de um nascimento virginal, quando, justo antes de
nasceu da Virgem Maria falar sobre a encarnação do Verbo, diz que os filhos de Deus “não nasce­
ram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem,
mas de Deus” (Jo 1.12-14). Paulo diz que o Filho de Deus nasceu “de
mulher” (G14.4), mas não reflete acerca do nascimento virginal. Significa­
Ricardo Willy Rieth tivo é que o apóstolo certamente conhecia a perspectiva de um nascimen­
to milagroso, pois fala de Sara e do nascimento de Isaque, mas o relacio­
na alegoricamente às pessoas cristãs como herdeiras da promessa (G1
1. Introdução 4.23ss) e não a Jesus. Ao que tudo indica, no Novo Testamento tinha-se
uma situação semelhante à atual. Hoje temos gente que considera neces­
Relato histórico? Lenda? Verdade cientificamente comprovável?
sário e gente que considera desnecessário insistir no nascimento virginal
Conto da carochinha? Mistério? Realidade? Mito? Exaltação da virgin­
de Jesus. Alguns o rejeitam porque foge completamente ao conhecimento
dade? Desprezo à vida sexual? Estímulo à submissão das mulheres? Mo­
científico e racional. Outros o afirmam, tentando, por vezes, compreen-
tivo para venerar Maria? Argumento contra a mariolatria?
dê-lo biologicamente. No Novo Testamento, havia quem passasse adian­
Qual o sentido de confessar Creio em Jesus Cristo, que fo i con­ te tal afirmação conferindo-lhe um caráter de preciosa tradição, e havia
cebido pelo Espírito Santo e nasceu da Virgem Maria ? Quais as con­ quem parecia ignorá-la.
seqüências dessa confissão para a vida cristã? Quais os seus usos e abu­
sos na teologia, na Igreja e na sociedade?
3 . 0 contexto em que as comunidades confessam
A melhor época para se pensar no assunto é a do Natal. Em geral,
porém, não se consegue fazê-lo, uma vez que o compromisso de comprar Nas afirmações “concebido pelo Espírito Santo” e “nasceu da Vir­
bugigangas, comer, beber e assistir aos especiais de fim de ano na televi­ gem Maria”, resume-se a mensagem da encarnação de Jesus em dois
são acaba tomando boa parte do tempo disponível. Por isso mesmo, é pontos principais. Os relatos da infância de Jesus, por sua vez (Mt 1-2;
bem oportuno refletir a respeito quando nos ocupamos com o Credo Lc 1-2), querem contar como isso se deu. Seus narradores conhecem
Apostólico. toda a história de Jesus e pensam a respeito de seu sentido partindo do
que aconteceu na Páscoa. São narrativas em que o evento e a explicação,
o relato e a confissão estão inseparavelmente ligados. Elas têm constante­
2. O testemunho bíblico
mente seu apoio na realidade histórica, citando Augusto e Herodes, os
As principais fontes dessa parte do Credo são os evangelhos de poderosos e os genocidas, bem como as pobres vítimas que tiveram de
Mateus (1.18-25) e Lucas (1.26-38). Em Mateus (1.23) faz-se referên­ migrar. Também citam homens e mulheres como Zacarias, Simão, Isabel
cia ao livro do profeta Isaías (7.14): “Eis que a virgem conceberá e dará à e Maria. No entanto, que o anjo Gabriel entra e sai do Templo e da casa
luz um filho, e ele será chamado pelo nome de Emanuel (que quer dizer: de M aria com naturalidade, que o céu se abre e os anjos cantam, que
Deus conosco).” Aqui, o evangelista usou uma antiga tradução grega do Deus mostra saídas milagrosas por meio de sonhos, tudo isso escapa às
Antigo Testamento. O termo para “virgem” no texto hebraico original sig­ tentativas de explicação histórico-científica. Isso não significa que tais nar­
nifica simplesmente “mulherjovem”. rativas deixem de ter por base acontecimentos concretos. No mínimo,
O primeiro e o último dos evangelhos a serem escritos, respectiva­ elas pressupõem uma tremenda experiência com Deus e com Jesus.

80 81
O mesmo vale para tradição a respeito da concepção milagrosa. O sempre sua divindade. E vice-versa. Somente assim ele permanece o Je­
Novo Testamento traz pouca clareza nesse ponto. Fora dos relatos acer­ sus Cristo do Credo Apostólico.
ca da infância de Jesus em Mateus e Lucas, Jesus aparece em Marcos A ênfase no nascimento virginal não pode ser distorcida no sentido
(6.3) como “filho de M aria”. Segundo o modo de falar daquela época, de uma desvalorização do exercício ativo da sexualidade. A afirmação
isso poderia indicar que o pai de Jesus fosse desconhecido. Em outras acerca da concepção de Jesus refere-se ao princípio da ação de Deus
passagens Jesus é chamado de “filho de José” (Mt 13.55; Lc 4.22; Jo para conosco, seres humanos. Deus se relaciona com a pessoa antes de
1.45; 6.42). Vale dizer que, pela lei judaica, tanto os filhos carnais quanto ela poder fazer algo, e o faz não só através do pensamento, do sentimen­
os adotivos levavam o nome do pai. O nascimento de Jesus é repleto de to, da vontade, do espírito ou da alma dela; Deus se relaciona com a
mistério. pessoa como um todo, em seu corpo e no que a faz integrar a natureza.

4. O sentido da confissão 5. Foi concebido pelo Espírito Santo


Jesus é verdadeiramente humano. Ele vem de baixo. Maria, sua Essa afirmação não significa que o Espírito Santo seja, por assim
mãe, é mulher do povo. A genealogia de Jesus (Mt 1.1-17) inclui mulhe­ dizer, o pai de Jesus Cristo. Em verdade, o que ela quer dizer é que Jesus
res cujo testemunho no Antigo Testamento não pode ser computado en­ Cristo não tem pai. Ele não foi gerado da mesma maneira que uma exis­
tre os mais favoráveis: Tamar, Raabe, Rute, Batseba, a mulher de Urias. tência humana, mas a existência humana de Jesus tem seu começo na
Por outro lado, às histórias sobre a infância de Jesus misturam-se impres­ liberdade do próprio Deus. Nessa liberdade, o Pai e o Filho são um só
sões e anseios de toda a humanidade. A Bíblia relata acerca da ação em amor, juntamente com o Espírito Santo. Se nos ocupamos com o
milagrosa de Deus quando do nascimento de Isaque (Gn 18), Sansão (Jz princípio da existência de Jesus, temos de ter em mente que Pai, Filho e
13), Samuel (1 Sm ls.) e João Batista (Lc 1). Quando mulheres dão à luz, Espírito Santo, sendo um só, agem na liberdade a eles inerente para que
apesar de terem muita idade ou serem estéreis, fica claro que a criança Jesus seja concebido e nasça. Somente assim é possível que aquele que
pela qual Deus auxiliará seu povo não é fruto de projeto humano, mas é vem anunciar a palavra de Deus se tome, ele próprio, Palavra de Deus.
dádiva por ele concedida de modo especial. As descrições de chamados Há diversas religiões que afirmam a geração de seres humanos por deu­
de profetas também deixam isso claro: “O Senhor me chamou desde o ses. No caso de Jesus é diferente: o próprio Deus atua como criador, é
meu nascimento, desde o ventre de minha mãe fez menção do meu nome...” verdade, mas não como procriador, como parceiro de Maria num ato
(Is 49.1; cf. também Jrl.5 s s.e G l 1.15). Jesus segue essa trajetória. Nele sexual. Artistas cristãos há séculos tentaram ilustrar essa singularidade
repousam os anseios da humanidade, suas esperanças por um Libertador que marca o princípio da existência de Jesus, que é gerado quando Ma­
e Auxiliador. Só que o nascimento virginal de Jesus vai mais além do que ria, com seu ouvido, escuta a palavra de Deus.
no caso dos profetas. Por meio de seu Espírito, na mesma medida com
que criou o mundo (veja Gn 1), Deus promove em Cristo um recomeço
de sua relação com a humanidade. Em Jesus ele se liga com o ser huma­ 6. Nasceu da Virgem Maria
no. Assim como dizem que é verdadeiramente humano, confessando O que confessamos e o que não confessamos dizendo Jesus Cris­
nasceu da Virgem Maria, da mesma forma as pessoas cristãs confessam to nasceu da Virgem M arial
ser Jesus verdadeiro Deus, quando dizem o qualfo i concebido pelo Espí­
A confissão do nascimento virginal quer afirmar o mistério do nas­
rito Santo. Jesus não vem de baixo apenas. Ele também vem de cima.
cimento de Jesus Cristo, o Filho de Deus. Não se prova que Jesus Cristo
A confissão de fé o qual fo i concebido pelo Espírito Santo, nas­ é Filho de Deus, mas se crê nisso. O objetivo do Credo não é o de
ceu da Virgem Maria lembra tudo isso. Por isso é correta e insubstituível. comprovar a quem não crê a origem divina de Jesus Cristo, mas simples­
Não se pode reduzir tudo em Jesus ao humano, mas é necessário lembrar mente o de confessar o que se crê.

82 83
As pessoas cristãs das primeiras comunidades e da Igreja Antiga, justamente sua ressurreição. A ressurreição de Jesus cmcificado o confir­
afirmando o nascimento virginal, queriam deixar claro que a humanidade ma em sua unidade com Deus. Em sua missão e em sua pessoa, Jesus está
não consegue gerar Jesus Cristo com suas próprias forças e vitalidade. A indissociavelmente unido à eternidade de Deus, mesmo antes de seu nas­
existência de Jesus Cristo não é marcada pelo pecado original. O nasci­ cimento de Maria. O sentido da ressurreição é o de confirmar a missão de
mento virginal é um indicativo, mas não uma condição para isso. O peca­ Jesus anterior à Páscoa. Esta missão, no entanto, não pode separar-se da
do original é o que está na origem de todo o mal e injustiça praticados, é pessoa de Jesus. Pelo contrário, ela fundamenta seu poder divino.
a falta de confiança em Deus. Por causa da falta de confiança em Deus,
agimos contra ele e contra as pessoas à nossa volta. Jesus, ao contrário 8. Virgindade, sociedade patriarcal e vida cristã
de nós, confia plenamente em Deus, enfrentando nessa confiança as per­
seguições, o sofrimento e a morte, que foram derrotados por completo Com o tempo, a confissão relativa ao nascimento virginal de Jesus
com sua ressurreição. Nós buscamos em Jesus a mesma confiança por Cristo acabou sendo associada a outros significados. Estes, por vezes,
ele expressa. É a fé criada em nós graciosamente pelo Espírito Santo. Na chegam a encobrir a intenção teológica básica da confissão: afirmar que
fé, cada vez que experimentamos o arrependimento, superamos o peca­ Jesus se encarnou, que ele é verdadeiramente humano e verdadeiramente
do original, assim como Jesus o superou. Deus. A virgindade de Maria foi transformada em atributo divino e numa
Ao nascer, Jesus não é ungido Messias. Ele sempre o foi. Jesus espécie de pressuposto para a salvação das pessoas. Isso teve fortes
Cristo não é o auge da história da humanidade, mas faz parte da nova conseqüências para a vida cristã em geral e para a existência das mulheres
criação. Ele é o novo Adão encarnado. Igualmente, ele é a nova Eva em particular.
encarnada. A fé no milagre da encarnação do Filho de Deus honra a Com a afirmação da virgindade como ideal, a relação mulher-ho-
liberdade que Deus tem para fazê-lo. Por isso, o nascimento virginal, a mem passou a ser desvalorizada em sua dimensão sexual. O matrimônio
exclusão do relacionamento sexual, não pode ser compreendido como de Maria e José foi interpretado por muita gente influente na Igreja Antiga
pressuposto ou condição para a encarnação. Para encamar-se, Deus não como uma relação espiritualizada entre homem e mulher, sendo um mo­
depende do que as pessoas façam ou deixem de fazer. A castidade de delo para a vida conjugal das pessoas. A sexualidade foi associada ao
Maria, portanto, não pode ser vista como cooperação humana. A encar­ pecado, sendo considerada uma espécie de reverso da virgindade. Esta,
nação é manifestação da graça de Deus, que o faz em liberdade absoluta. por seu turno, virou exemplo máximo de santidade. Eva, que em sua de­
É dádiva divina. sobediência teria sucumbido ao prazer sexual, conduzira sua descendên­
cia ao pecado e à mortalidade. A Virgem Maria, em contrapartida, com
sua obediência, teria resgatado a humanidade para a imortalidade, ao ter
7. A intenção da confissão
gerado o Salvador. Em meio a essa compreensão, o relacionamento se­
A intenção de afirmar o nascimento virginal de Jesus é explicar o xual apenas seria justificado, então, para fins de procriação. Caberiam à
título Filho de Deus a ele concedido. As primeiras pessoas cristãs a fala­ mulher as alternativas da vida monástica, como monja que faz voto de
rem em nascimento virginal queriam oferecer uma interpretação da filia­ castidade, e da vida matrimonial, na qual ela deveria direcionar o exercí­
ção divina de Jesus. Queriam situar a filiação divina na preexistência de cio de sua sexualidade exclusivamente para a reprodução. No contexto
Jesus. Ele não se toma Filho de Deus quando é batizado por João Batista, da sociedade patriarcal, portanto, sua “liberdade” estaria limitada entre a
ou quando da ressurreição, mas Jesus é Filho de Deus desde o começo. virgindade e a maternidade.
Mesmo quem considera o relato do nascimento virginal de Jesus uma
lenda, é obrigado/a a valorizar a verdade por trás da intenção teológica
dessa confissão.
O que permite dizer que Jesus é Filho de Deus desde o princípio é

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9. Reforma luterana, liberdade e sexualidade tados, preconceitos generalizados e estruturas socioculturais opressoras
que são uma ameaça à vida e justamente por isso um desafio à vida cristã.
Essa compreensão, que passou a se manifestar já nos primeiros Jesus não exige de sua mãe ou de suas discípulas que anulem a si e a seus
tempos da Igreja cristã e se tomou predominante na Idade Média, come­ corpos, ou que se submetam servilmente aos homens que as rodeiam. Ao
çou a ser criticada com a Reforma. Por certo, o resgate do Evangelho na
contrário, ele as trata como irmãs, em igualdade fraterna, escancarando a
Igreja e na teologia promovido pela Reforma não a eliminou, especial­ incompatibilidade existente entre a sociedade patriarcal e o reino de Deus.
mente no que diz respeito ao preconceito e à opressão das mulheres, mas
sem dúvida trouxe à luz o fundamento para que possa ser superada. Na
perspectiva da fé, criada pelo Espírito Santo como manifestação da graça 11. Veneração a Maria
divina, não há vocações melhores ou piores, recomendáveis ou não-re- Se tivermos em mente tudo o que se confessa no Credo Apostólico
comendáveis para o exercício da vida cristã. Ao explicar o 6 omandamen­ a respeito de Jesus Cristo e de sua obra redentora e, ao mesmo tempo,
to - Não adulterarás - no Catecismo, Lutero diz que o estado matrimo­ olharmos para as manifestações de espiritualidade da maioria das pesso­
nial é uma instituição criada por Deus, mais importante do que a Igreja e o as no Brasil e na América Latina, vamos perceber uma grande contradi­
Estado, não podendo de modo algum ser menosprezada. Quem a des­ ção. Em meio ao sofrimento e à angústia, muitas pessoas dirigem seu
preza em favor do celibato ou afirma que, com a virgindade, se agrada pensamento e sua voz não para Jesus Cristo, mas para sua mãe, a Virgem
mais a Deus, na verdade está pecando contra o 6 o mandamento. Maria. Temos dezenas de santuários marianos, como Aparecida, Guada­
Ao expor 1 Co 7.25s., Lutero afirma que lupe, Copacabana, Socavón, Ucupina, Cotoca e Luján. Cristãos protes­
tantes, desde seu estabelecimento neste continente majoritariamente ca­
a virgindade é algo precioso e nobre e de alta estima na terra. Mas o
tólico romano, chocaram-se com a veneração a Maria e passaram a com­
Espírito Santo disse essas coisas por meio de S. Paulo para que, por
causa da nobreza e grandeza desse estado, ninguém se julgue melhor batê-la como culto idolátrico. Chegaram a desenvolver uma espécie de
ou superior diante de Deus do que um cristão comum, mas permane­ ojeriza ou asco em relação a Maria. Expressando de forma radical esse
ça na singeleza da fé, que a todos nós toma iguais diante de Deus. sentimento, há alguns anos um bispo de uma igreja neopentecostal se apre­
Pois a natureza venenosa sempre tenta ser algo perante Deus por sentou na TV chutando e ridicularizando uma imagem de Nossa Senhora
meio de obras, e quanto mais elevada a obra, mais quer ser. Por isso Aparecida, padroeira do Brasil. Fiéis católicos romanos saíram às ruas
está tão obcecada pelo suave brilho da virgindade, porque não há em protesto, apedrejaram, invadiram templos protestantes bem como
obra maior ou mais bela na terra, de modo que não conhece estado promoveram procissões e cerimônias de desagravo à santa.
mais elevado perante Deus do que a virgindade e acha que, assim A veneração a Maria é muito antiga. É tão antiga quanto a afirma­
como na terra uma virgem vale muito mais do que uma mulher casa­
ção do nascimento virginal de Jesus. No Concílio Ecumênico de Efeso,
da, assim haveria que ser também no céu. (OSel 5, 222, 20-30).
em 431, aceitou-se oficialmente o título de “Mãe de Deus” para Maria.
Construíram-se templos e dedicaram-se festas especiais a Maria. Cria-
10. Jesus, sua mãe e suas irmãs ram-se orações de intercessão a ela, como a “Ave Maria”, por exemplo.
Acolheu-se a convicção de que Maria teria permanecido perpetuamente
Se dizemos crer em Jesus Cristo, concebido pelo Espírito Santo e
virgem (também em escritos confessionais luteranos). Principalmente nas
nascido da Virgem Maria, apontamos para a encarnação do Filho de Deus,
igrejas ortodoxas e no catolicismo romano avançou-se na veneração e
aquele que desde sempre existiu. Com seu nascimento, vida, morte e res­
nas doutrinas relativas a Maria. Em 1854, o papa Pio IX proclamou como
surreição, Jesus Cristo radicalizou por completo as possibilidades da exis­
dogma a Imaculada Conceição (desde sua concepção, Maria esteve isenta
tência humana. É como diz Leonardo Boff: “Humano assim só pode ser
de pecado original por ter sido eleita para ser mãe do Filho de Deus), e
Deus mesmo!” O Evangelho, a boa notícia de libertação, se dirige especi­
Pio XH, em 1950, a Assunção da Virgem (a elevação do corpo de Maria
almente aos que sofrem sob o cativeiro de leis humanas, preceitos inven-
ao céu sem passar pela morte).

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12. A Mãe não abandona suas filhas e seus filhos não deve contemplá-la de forma isolada, mas deve vê-la diante de
Deus e muito abaixo de Deus, despojando-a de tudo e (como ela diz)
Olhando para a veneração a Maria na América Latina na perspec­
contemplando sua nulidade [cf. Lc 1.48]. Então, sim, ficarás maravi­
tiva da Escritura Sagrada, por certo temos dificuldade de compreendê-la lhado com a exuberante graça de Deus que contempla, recebe e
como forma de espiritualidade aceitável. Contudo, se levarmos em conta abençoa ricamente e com tão grande misericórdia uma pessoa tão
a história desse povo, o quadro se modifica totalmente. Desde a conquis­ insignificante e nula. A contemplação de tudo isso há de comover-te
ta e a colonização deste continente, as crianças aprenderam que pratica­ a amar e honrar a Deus por causa de tamanha graça, e deves sentir-
mente não se pode contar com uma figura masculina como referência te estimulado a esperar tudo desse Deus que contempla com tama­
afetiva. Os pais, em grande medida, negligenciaram ou foram levados a nha misericórdia pessoas insignificantes, desprezadas, nulas, e não as
negligenciar seus filhos e filhas. São figuras ausentes. São as mães aquelas despreza, para que, desse modo, teu coração seja fortalecido em Deus
que têm assumido o sustento e a educação das crianças. No Brasil, certas na fé, no amor e na esperança. Em tua opinião, haveria algo mais
cédulas de documentos só trazem espaço para preencher com o nome da bonito para ela do que se tu, por meio dela, encontrasses a Deus e
mãe. Chefes de família são, em sua maioria, as mulheres. Toma-se evidente, aprendesses nela a confiar e esperar em Deus - embora sejas des­
portanto, por que as pessoas se identificam muito mais com Maria do que prezado e reduzido a nada, onde quer que seja, na vida ou na morte?
(OSel 6,45,4-23).
com Jesus Cristo. Ainda mais, se levarmos em conta que aqueles que se
serviram da religião cristã para oprimir índios, negros, mestiços, escravos e
pobres nesse continente não anunciaram um Cristo que se faz Libertador na Literatura para aprofundar e discernir
cruz e na ressurreição, mas sim um Cristo morto, que fica pendurado na
BOFF, Leonardo. Jesus Cristo libertador: ensaio de cristologia crítica para
cruz, assim como deve ficar o povo pendurado na cruz da miséria e da
o nosso tempo. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 1988. p. 116-130.
opressão. Foi a partir das mães, portanto, que gerações e gerações apren­ BRAATEN, Cari E. A pessoa de Jesus Cristo. In: id.; JENSON, R. W.
deram o que é amor, graça, compaixão, misericórdia, enfim, foram sensibi­ Dogmática cristã. São Leopoldo: Sinodal, 1990. v. 1, p. 459-551.
lizadas para o Evangelho. Justamente por isso, Maria significa muito mais. CONFISSÃO DA FÉ APOSTÓLICA, A. Documento de Estudo da Co­
missão de Fé e Ordem do Conselho Mundial de Igrejas. Trad. de Jaci
13. Nossa confissão e a Virgem Maria Maraschin. São Paulo: Bartira, 1993.
LUTERO, Martinho. O Magnificat, traduzido e explicado. In: id. Obras
Quando confessamos que cremos em Jesus Cristo, concebido pelo selecionadas. São Leopoldo: Sinodal, Porto Alegre: Concórdia, 1996. v.
Espírito Santo e nascido da Virgem Maria, precisamos, é verdade, levar 6 , p. (20) 20-78.
em conta a Escritura Sagrada e o lugar central que compete a Cristo, RUETHER, Rosemary Radford. Sexismo e religião: rumo a uma teologia
derivando a partir daí a posição de Maria. No entanto, não podemos feminista. São Leopoldo: Sinodal, EST/IEPG, 1993. p. 119-133.
ignorar ou até mesmo rechaçar o contexto no qual anunciamos o Evange­
lho, a exemplo do que têm feito sistematicamente igrejas protestantes por
aqui. É preciso agir de forma equilibrada. Nesse sentido, Lutero pode nos
ajudar, ele que sempre manifestou profundo respeito por Maria, mas tam­
bém teve clareza quanto ao centro do Evangelho. Comentando o Cântico
de Maria (Lc 1.46-55), ele escreveu:
[...] todos aqueles que, com insistência, atribuem a Maria tanto lou­
vor e honra, e lhe impõem tudo isso não estão longe de transformá-la
em ídolo, como se ela desejasse ser honrada e que se devesse espe­
rar todo o bem dela. [...] Portanto, quem quiser honrá-la devidamente

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conforme nossa divisão do tempo em antes e depois de Cristo. Tempo e
espaço normativos, porque assumidos por Deus em sua encarnação.
Por um lado, é de fato muito importante que destaquemos esta
Padeceu sob Pôncio Pilatos localização histórica de Deus. Especialmente depois que, nos dois primei­
ros séculos, o cristianismo criou raízes dentro de um mundo greco-roma-
no que pensava de um jeito diferente sobre o ser de Deus em relação à
história e ao mundo, é vital que redescubramos constantemente esta his­
Enio R. Mueller tória localizada de Deus. A teologia latino-americana dos últimos tempos
tem acentuado a importância do “Jesus histórico” e de que pensemos
Deus concretamente a partir dele. O que é também, sem dúvida, a afirma­
Uma pequena frase do Credo, pronunciada sem maior destaque ção de um ponto central da Reforma do século XVI.
entre outras frases relativamente “mais importantes” ! Mas quando a gente Por outro lado, esta circunscrição histórica de Deus não significa
começa a pensar sobre ela, percebe que ela está cheia de potencialidades rejeição ou desprezo de outros espaços e outros tempos. Pelo contrário.
para uma reflexão sobre a fé cristã. Talvez o melhor seja fazê-lo exami­ Assumindo um lugar tão concreto e um tempo tão definido, Deus nos
nando a frase de trás para diante. mostra o padrão de sua presença e atuação futuras no mundo. A Palesti­
na, como lugar concreto, se toma o paradigma de todos os lugares con­
1. Pôncio Pilatos cretos. Os primeiros anos do século I, irrepetíveis, se tomam o paradigma
de todos os tempos concretos. Novamente a teologia latino-americana vê
a. Pilatos: referencial histórico do evento aí um ponto importante. É exatamente este caráter paradigmático da en­
de Deus em C risto carnação que toma a América Latina do final do século XX também lugar
e tempo privilegiado da atuação de Deus. Isto significa: Deus quer viver
Quando Deus cria o céu e a terra, cria com eles também o espaço
entre nós hoje como um latino-americano de nossos dias.
e o tempo onde sua criação se realiza. Estando ele próprio para além do
espaço e do tempo, vai depois inserir-se nos mesmos para realizar a sal­ Para uma compreensão correta da encarnação de Deus, então,
vação da sua criação. Em Jesus Cristo, Deus assume as nossas coorde­ ambos os pontos devem ser levados a sério. Por um lado, temos de partir
nadas vitais e aí se identifica conosco. constantemente do Jesus judeu que viveu na Palestina quando Pôncio
Pilatos era governador da Judéia. E será exatamente esta concentração
No Credo, a referência a Pôncio Pilatos sinaliza esta sua inserção
do olhar que fará com que, no momento seguinte, voltemos os olhos ao
em nosso mundo. Deus assume concretamente um espaço e um tempo
nosso tempo e lugar bem definidos de hoje, igualmente assumidos por
bem definidos. O Evangelho de Lucas o descreve da seguinte maneira:
Deus em toda a sua concretude. Concentrar-nos em nosso tempo e lugar
“No décimo quinto ano do reinado de Tibério César, sendo Pôncio Pila­
como tarefas específicas será sempre uma boa maneira de não esquecer
tos governador da Judéia, [...] veio a palavra de Deus...” (Lc 3.1-2).
o Deus encarnado, o Jesus histórico e sua importância fundamental para a
Quando nos pomos a refletir sobre o sentido destas referências, só compreensão do cristianismo.
podemos ficar admirados. Como pensar Deus tão localizadamente? E
quando Deus se circunscreve desta forma, qual o significado disso para b. Pilatos e M aria: d u as p o stu ras h u m an as
todos os outros espaços e tempos? Estaríamos aqui diante de um lugar d ian te d a revelação de Deus
especial e uma época especial? Assim, de fato, as coisas têm sido com­
preendidas. A Palestina se toma, para os cristãos, a Terra Santa. O reló­ O Credo não hesita em “dar nome aos bois”. Aliás, no fundo ele é
gio do tempo é parado e posto a funcionar novamente a partir do zero, uma longa descrição do nome de Deus, apresentando-o como o Deus

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Triúno que se deu a conhecer na história. Para os judeus, Deus era inomi­ dade em sua posição de suposta autonomia em relação a Deus. Como
nável; seu nome não podia ser pronunciado. Assim, quando aparece no tipo humano, pelas informações que temos dele nos evangelhos e através
texto bíblico o tetragrama YHWH (em português, normalmente, Javé), de outras fontes históricas, ele seria mais ou menos padrão. Nem herói
eles pronunciam em seu lugar alguma outra palavra que indiretamente iden­ nem bandido. Normal. Sua recusa a se decidir diante do Deus encarnado
tifique Deus. Uma delas é “o Nome”. O Novo Testamento, por sua vez, só é maior do que a rotineira de todos os seres humanos em suas implica­
apresenta Jesus como o “nome que está sobre todo nome”, cuja celebra­ ções históricas bem específicas. No mais, é a recusa nossa de cada dia.
ção é uma das partes mais importantes do ministério do Espírito Santo. Sua pergunta pela verdade (Jo 18.38) é pouco mais do que a expressão
Mas não só Deus é nomeado no Credo. Ele também nos dá o do mesmo jogo de empurra-empurra de Adão e Eva (Gn 3.8-13).
nome de duas pessoas: Maria, a mãe de Jesus, e Pôncio Pilatos, governa­ Em Jesus, temos o “segundo Adão”. Sua completa humanidade foi
dor da Judéia que autorizou a sua crucificação. Uma comparação entre destacada, mais tarde, nos principais credos do cristianismo primitivo. Ou
estas duas pessoas é muito elucidativa no que diz respeito ao que o Credo seja, ele e Pilatos partem em posição de igualdade. Jesus, no entanto,
tem a dizer sobre o ser humano. nunca cedendo à tentação (Mt 4.1-11), pode ser declarado retroativa­
Em primeiro lugar, fica claro que o mais importante acerca do ser mente como sem pecado (Hb 4.15). Tão poderoso quanto o próprio
humano é a sua postura com relação à revelação de Deus tal como esta se Pilatos, na verdade imensamente mais, ele abre mão do poder. Em vez de
deu na história, em Jesus Cristo. O Credo se concentra no essencial. E, condenar o ser humano que tem à sua frente, morre em seu lugar para
para o ser humano, esta criatura tão complexa que somos, este essencial dar-lhe perdão e vida (esta trajetória do Jesus humano está bem descrita
é: como ele se posiciona diante do Deus revelado em Jesus. Não simples­ em F p 2.5-8).
mente de Deus, deve-se frisar. A colocação da humanidade no segundo Jesus sabia que aqueles pelos quais morreu não eram de forma
artigo do Credo especifica: o essencial para o ser humano é como se alguma justos (Rm 3.10-18). Pilatos, segundo Mt 27.24, condena à mor­
posiciona diante de Jesus Cristo, por mais chocante que isso pareça numa te alguém que ele sabe ser justo. Pilatos desobedece à advertência divina
época de pluralismos e diálogos inter-religiosos às vezes mal compreen­ - como provavelmente ele e sua mulher teriam interpretado o sonho dela
didos. (Mt 27.19) - , não quer pôr seus interesses em jogo e ainda consegue
Duas posturas humanas com relação a Jesus nos são mostradas. A lavar as mãos autodeclarando-se inocente. Jesus, obediente a Deus até o
primeira é a de Maria, que, no humilde reconhecimento da revelação tão fim (Fp 2.8), abre mão de seus “interesses” (Mc 14.36), assume a culpa
paradoxal de Deus, se abre para ela e se tom a agraciada e geradora de e permite que o sangue jorre de suas mãos para que os verdadeiros cul­
vida. Através dela, Jesus pode viver para este mundo, com tudo que isto pados possam ser inocentados (Rm 3.23-26).
implica. A segunda postura é a de Pilatos. Pilatos, mesmo advertido do
caráter excepcional da pessoa que tem diante de si, não o reconhece em d. Pilatos e Jesus dentro de cada um/a de nós: simul
sua divindade ocultada. Não o acolhe. Mata-o. Toma-se, assim, gerador Como representantes típicos de duas humanidades, Pilatos e Jesus
de morte num mundo de morte. são, cada qual do seu modo, a imagem de todos os cristãos. Por nasci­
mento, somos à imagem de Pilatos, o “primeiro Adão”, o que o apóstolo
c. Pilatos e Jesus: as duas humanidades dentro do Credo Paulo chama neste caso de “homem velho”, o ser humano conforme a
Se Maria e Pilatos representam duas posturas humanas diante da natureza pecaminosa. Pela morte de Jesus por nós na cruz, sinalizada (no
revelação de Deus, poderíamos dizer, por outro lado, que, em Pilatos e sentido forte de “sinal”) no batismo, somos feitos imagem de Jesus. A
em Jesus, temos os tipos paradigmáticos de duas humanidades. imagem de Deus, segundo a qual Deus nos criou (Gn 1.27), é refeita em
nós. O pecado, com o conseqüente afastamento da presença de Deus
Nesse sentido, Pilatos representa no Credo o que o apóstolo Paulo
chama de “primeiro Adão” (veja Rm 5.12-21). Ele representa a humani­ (Gn 3), faz com que o espelho de Deus, que éramos para ser, agora não

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reflita mais a imagem de Deus, pelo simples fato de não estarmos mais Jesus, simultaneamente pecadores e justos, culpados e inocentes, ímpios e
diante dele. santos. A fé, nesse sentido, é aprender a nos ver com os olhos de Deus.
Em Jesus, Deus se põe novamente diante de nós, e assim voltamos Fé é aprender que a realidade real é as coisas como são aos olhos de
a refletir a sua imagem. Quando isso acontece, porém, há um duplo efeito. Deus, levando a sério a nossa empiria, o jeito como as coisas parecem
Primeiro, em Jesus podemos enxergar com toda a clareza a extensão do aos nossos olhos no dia-a-dia, mas nunca lhe dando caráter final. Diante
nosso pecado e da nossa distância de Deus. Todas as nossas ilusões, e de Deus, as coisas sempre podem ser bastante diferentes do que pare­
não por último as de caráter religioso, ficam expostas. Nesse sentido, a cem aos nossos olhos.
vinda de Jesus é juízo para a humanidade. Os primeiros capítulos do Evan­
gelho de João descrevem isto muito bem. Jesus é a luz do mundo (1.1-9), 2. Sob
mas, quando esta luz brilha sobre nós, nossa primeira reação é esconder­
mo-nos dela, porque “as nossas obras são más” (3.19-20). Somos ex­ a. A vida de Jesus como submissão ao senhorio de Deus
postos na escura ambigüidade do nosso ser.
Como já foi dito acima, a vida de Jesus foi vida de obediência a
Esta exposição à luz de Deus, no entanto, não quer, em última aná­ Deus, levada ao ponto máximo de ir contra o “interesse” mais fundamen­
lise, nos deixar envergonhados, e sim mostrar-nos a verdade, a nossa tal, ou seja, a própria vida (Mc 14.36). É isso o que Fp 2.8 quer dizer
verdade em Deus. O anúncio da morte de Cristo pelo nosso pecado na com “obediente até a morte”. Para compreender esta afirmação bíblica
escuridão do Getsêmane (Mc 15.33) é luz que brilha na nossa escuridão, na sua radicalidade, precisamos voltar um pouco no tempo.
trazendo-nos de volta ao relacionamento perdido com Deus. E agora
A Bíblia caracteriza a existência humana como tendo limites últi­
novamente somos seu espelho, refletindo sua imagem.
mos. Nos primeiros capítulos da Bíblia, este limite é definido como a pa­
Pilatos ou Jesus: será que é assim que a questão deve ser coloca­ lavra de Deus (Gn 2.17). Comer ou não comer, pode ser a questão vista
da? Em certo sentido, sim. No sentido de um chamado sempre renovado desde o lado de Adão e Eva. Desde o lado de Deus, a questão é: aceita­
à decisão por Jesus e pelo discipulado ativo no mundo. Não, porém, no ção ou não dos limites do ser criatura e não Criador, aceitação ou não do
sentido da realidade do nosso ser. Não se trata aqui de ter sido um e direito de soberania próprio do Criador e Senhor de tudo.
agora ser outro, nem de uma passagem gradual de um para outro, medi­
A postura de Adão e Eva no relato bíblico é típica da postura de
ada pela disciplina religiosa, por uma espiritualidade ou por boas obras.
todos os humanos. A tentação é mais forte, e o limite é transgredido. Este
Nossa realidade diante do evangelho é: somos simultaneamente afã de autodeterminação leva à existência no espaço do mundo, no qual
Pilatos e Jesus. Na verdade, é só o evangelho que tem o poder de nos Deus entrega a humanidade à autodeterminação, não sem colocar sobre
abrir os olhos para a radicalidade do nosso “ser Pilatos”. Quanto mais na ela o seu signo protetor (Gn 4.14-16).
presença da luz, mais claro fica também o nosso lado escuro. É como a
Com isto, porém, perdemos o sinal mais característico da humani­
lua. Quando uma face dela está completamente clara para nós, na lua
dade como pensada por Deus: a relação permanente com Deus, que,
cheia, a outra face está completamente escura. E é a mesma lua. Vistos
como toda relação, é obviamente limitante. Contudo, a liberdade para a
por um lado, somos treva pura, somos Pilatos, primeiro Adão, “homem
qual fomos criados só é real e efetiva quando vivida no horizonte consci­
velho” no sentido radical do termo, e que à distância de Deus até que
ente destes limites. Assim, a transgressão dos limites, ao contrário de as­
conseguimos disfarçar um pouco. Vistos por outro lado, somos lua cheia,
segurar uma liberdade ainda mais ampla, na verdade nos faz prisioneiros
luz brilhante, nova natureza. E é assim, por este ângulo, que Deus nos vê
da nossa autodeterminação, condenados à nossa liberdade, como disse
agora, em Cristo. Sua luz nos cobre como um manto, e é assim, cobertos
um conhecido filósofo.
de luz, que Deus nos vê.
Jesus, como ser humano no sentido mais pleno do termo, vive dian­
No tempo presente, no evangelho somos simultaneamente Pilatos e
te dos nossos olhos um “ser humano” diferente. Viveu cônscio dos limites

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e na liberdade da aceitação dos mesmos. As narrativas da tentação de olhares, Deus na verdade se esconde quando se revela lá onde menos
Jesus (Mt 4.1-11, por exemplo) nos dão uma idéia do constante assalto esperaríamos sua revelação. O rei do universo fica escondido atrás do
a esta sua determinação pela liberdade. A sua não-transgressão dos limi­ bebê pobre na estrebaria. O todo-poderoso se oculta atrás daquele que,
tes colocados por Deus o colocou, por sua vez, em condições de, nessa impotente, morre na cruz. O Deus da vida se esconde atrás da morte.
liberdade, doar os benefícios da mesma a todos nós.
Uma vida sob o senhorio de Deus, contudo, é intragável aos huma­ c. Jesus se submete e assim conquista
nos, cuja própria transgressão não se fez ficar sem um sentimento existen­ Poderíamos arriscar uma explicação do paradoxo ou, pelo menos,
cial de culpa. A morte de Jesus, nesse sentido, é conseqüência direta da de por que a revelação de Deus em Cristo tem que parecer paradoxal a
sua opção pela obediência, nem ainda aí transgredida. nós. Como já vimos acima, Jesus vem ao mundo como o “novo Adão”
que fica fiel até o fim à sua vocação humana. O Gênesis interpreta o peca­
b. A encarnação como inversão profunda do de Adão e Eva como querer ser como Deus (Gn 3.5). O resultado
(o Senhor assume forma de servo) desta transgressão dos limites é que nem são agora como Deus, mesmo
A encarnação de Deus é profundamente enigmática, desde o nosso que algumas pessoas possam pretender isto, e nem mais são eles própri­
ponto de vista. O belo hino de Fp 2.5-11 a descreve como um movimen­ os. Querendo ser o que Deus é, roubam deste o seu ser, mesmo não
to descendente, da glória do mais alto céu à extrema humilhação da morte podendo sê-lo. Querendo ser mais do que são, roubam o ser de si pró­
por execução numa cruz. Nesse movimento, Jesus passa da “forma de prios. O hino de Fp 2, já várias vezes citado, diz de Jesus: “Ele, subsistin­
Deus” (2.6) para a “forma de servo” (2.7). Por que foi assim? Era neces­ do em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus.”
sário? Só podemos cogitar a respeito. Isto é, sua igualdade com Deus não foi usurpada, conquistada ilicitamen­
Certo é que devemos ver a vida, a morte e a ressurreição de Jesus te. Pelo contrário, sendo o que Adão e Eva queriam ser, ele abre mão
como um conjunto, sem separar uma parte da outra. Nesse sentido, a disso tomando-se o que Adão e Eva eram. Fazendo isso, mostra-nos a
cruz é o ponto final de um processo que começa já no seu nascimento. A humanidade como ela é aos olhos de Deus.
reflexão sobre ele tem sido um pouco ofuscada pela excessiva concentra­ Como já vimos, a encarnação de Jesus é designada como um ato
ção na questão do nascimento virginal. Mas outros aspectos igualmente de obediência (Fp 2.8). Jesus se submete a Deus naquilo a que o primeiro
importantes devem ser considerados. Maria é mulher pobre, inexperien­ Adão não se submeteu. E é importante ressaltar o que o Credo ressalta: a
te, tendo seu primeiro filho numa manjedoura, num estábulo do século I. submissão de Jesus a Deus se traduz concretamente em submissão à au­
Além disso, ela ainda não é casada. O nascimento de Jesus, portanto, é toridade “instituída por Deus” (Rm 13.1). Sob Deus significou, no caso
extremamente ocultador de sua real pessoa. Se Deus queria se disfarçar de Jesus, sob Pôncio Pilatos.
quando veio ao mundo, disfarce melhor seria difícil. Lutero, em seu belo hino “Cristãos, alegres jubilai” (HPD 155),
Quase certamente Jesus foi um pobre identificado com os pobres descreve o evento da encarnação como submissão de Jesus ao Pai imagi­
do seu tempo. De qualquer maneira, pela religião organizada ele não seria nando um diálogo no céu entre os dois:
considerado elegível para aspirações messiânicas. Jesus morreu cedo, Ao Filho disse o Pai no céu:
morreu como bandido. Morreu o tipo mais vil de morte conhecido em seu o tempo está chegado;
contexto. à terra desce, ó Filho meu,
Considerando esta trajetória em seu conjunto, vemos nela um pa­ e salva o condenado!
drão que poderíamos chamar de inversão. Deus vem ao mundo de um [...]
jeito que é exatamente o contrário das nossas expectativas. Assim, sua Obedeceu de coração
revelação é, para o mundo, uma forma de ocultamento. Para os nossos o Filho ao Pai amado.

96 97
Tomou-se em tudo meu irmão, bre o olhar e não sobre a fé, a depender do que vêem os olhos e não do
e, pobre e desprezado, que vê o olho da fé. E esta tentação pode chegar a profundidades insus-
ele ocultou o seu poder peitadas. O próprio Deus, diz Lutero, poderá estar escondido atrás dela.
e um simples homem veio a ser [...]. Quando, por exemplo, as palavras do mandamento e do juízo nos impe­
Abrindo mão de um uso ilícito de poder, Jesus acaba superando e dem de ouvir o evangelho da graça. Ambas as palavras são de Deus. Aí a
assim conquistando o próprio poder. Submetendo-se em tudo ao Pai, é o luta poderá chegar ao ponto de termos de “crer em Deus contra o próprio
Livre, liberto de qualquer tipo de determinação que não seja a de livre­ Deus”.
mente respeitar os limites colocados por Deus à existência humana. Sub- O discipulado, então, seria este “crescimento” no exercício da fé.
metendo-se, abrindo mão de qualquer poder, Jesus conquista. Conquista Não deveria ser confundido com crescimento em virtudes morais ou em
por um poder maior que o poder. Transformando o amor ao poder no qualquer coisa atestável e auditorável externamente. Este viver na fé é,
poder do amor, Jesus supera desde dentro as próprias forças que man­ por excelência, vida de submissão a Deus, pois o que vale aí é a Palavra
têm o ser humano escravizado a si próprio, prisioneiro de sua própria de Deus em Jesus Cristo. E o que dizer da submissão aos limites, carac­
liberdade. terística da vida de Adão e Eva no paraíso?
Já vimos que o limite para Adão e Eva é exatamente a Palavra de
d. Discipulado cristão como submissão ao senhorio de Deus Deus. Fundamentalmente, submeter-se a ela significa “deixar Deus ser
Em Jesus nos é mostrado o ser humano como pensado por Deus. Deus” e assim “ser os seres humanos que Deus quer que sejamos”. No
Jesus é aquele que vive em submissão completa à vontade de Deus e entanto, hoje temos um elemento complicador. No caso de Adão e Eva,
assim reverte o processo de alienação, de ruptura, que se instala com havia uma só palavra de Deus. Hoje, somos os herdeiros da Bíblia, que
Adão e Eva. Podemos perguntar: mas Adão e Eva não somos de fato contém muitas palavras de Deus. Onde estaria, então, a observância do
todos nós? E a vida de Jesus, seria repetível? Estas perguntas nos colo­ limite? No cumprimento integral de todas as palavras de Deus? Se for
cam problemas com relação ao discipulado cristão. Dá para simplesmen­ assim, estamos todos/as perdidos/as. Nossa única possibilidade é a “tro­
te imaginar que poderíamos viver integralmente a imitatio Christi, a imi­ ca” com Jesus Cristo realizada por ele mesmo e anunciada pelo evange­
tação de Cristo? lho.
O discipulado cristão, certamente, terá que começar com a experi­ Isto bem entendido, no entanto, podemos propriamente falar de
ência de juízo e graça no confronto com a Palavra de Deus em Jesus uma submissão ao limite da palavra de Deus no sentido “positivo”. Ela se
Cristo. Nosso “ser Adão/Eva” ficará aí exposto em toda a sua radicalida- daria pela compreensão do sentido profundo das palavras de Deus na
de. E pela graça ouvimos que Deus agora nos trata em Jesus Cristo e Bíblia, algo como a “síntese” da lei e dos profetas feita por Jesus (ver Mt
como Jesus Cristo. 22.34-40): o amor a Deus sobre tudo e ao próximo como a si mesmo
seria o cumprimento positivo da palavra de Deus; e sua observância seria
E a continuação do processo ao longo da vida? Em certo sentido,
a observância do limite colocado por Deus à sua criatura, a submissão ao
não há “processo”. O discipulado seria se deixar levar sempre de novo ao
qual representaria a verdadeira liberdade e realização do desígnio huma­
confronto radical com a Palavra de Deus em lei e evangelho, que mata e
no.
ressuscita lembrando-nos da graça de Deus mostrada a nós na cruz e no
batismo. E o que dizer do “sob Pôncio Pilatos”? Uma reflexão sobre este
ponto desembocará no que tem sido um dos problemas mais sérios para
Em outro sentido, porém, a vida é um processo. Um processo de
o cristianismo. Estaria implicada aí uma submissão constante e irrestrita às
aprender a viver pela fé que crê que o real é o que Deus diz e não o que
autoridades? Onde estaria o limite desta submissão? A questão se toma
eu vejo. Esta fé estará sempre ameaçada. Aqui entra a tentação. A tenta­
mais problemática quando “sob Pôncio Pilatos” rivaliza de tal forma com
ção fundamental consiste em constantemente ser levado/a a construir so­

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“sob Deus” que ambos já não podem ser descritos como representando assume na sua auto-reflexão categorias do pensamento helenístico, assu­
o mesmo movimento. Atos 5.29 apresenta os primeiros cristãos em Jeru­ me também certos limites no pensar Deus. Para os gregos, a questão
salém tomando uma decisão em um caso como este: “antes importa obe­ fundamental era a do ser, a do ser eterno, originário e constituinte de
decer a Deus do que às pessoas” . Saber onde está o limite exige a sabe­ todas as coisas. Em séculos de reflexão filosófica, havia-se chegado a
doria e o discernimento que são as marcas do discipulado cristão. Tam­ certos postulados a respeito desta questão. Um deles era de que este ser
bém neste sentido a submissão irrestrita de Jesus está sob o efápax, “de não podia ser afetado por qualquer forma de movimento. Movimento
uma vez por todas” (Hb 9.28). A partir dela, captar corretamente o espí­ implicava a passagem do ser ao vir-a-ser, que, na medida em que é isto,
rito desta submissão pode representar, às vezes, exatamente uma atitude também é “não-ser”.
de insubmissão diante da exploração do sofrimento humano. Quando o Deus cristão passou a ser pensado nas categorias pró­
prias desta filosofia, passou a assumir algumas das características deste
3. Padeceu ser fundante e originário, “ser” no sentido próprio do termo. Até hoje, em
muitos círculos cristãos, continua-se pensando em Deus mais ou menos
a. O sofrimento de Jesus: sofrimento de Deus dentro destes postulados. Por isso, fala-se dele designando-lhe atributos,
muitos dos quais refletem esta característica fundamental do ser imovível,
O Credo, no seu conjunto, é uma apresentação concisa da revela­
eterno, constante, impassivo.
ção de Deus no mundo. Ao fazê-lo, destaca a trindade divina: Deus Pai,
Para este pensamento, Deus não pode ter - ou pelo menos não
Filho e Espírito Santo. Este é um ponto fundamental da fé cristã. Seu
correto entendimento, contudo, estará sempre sujeito ao risco de desta­ pode expressar - afetos, pois isso significa movimento, transformação.
Deus, obviamente, não pode sofrer, o que seria uma transformação do
car tanto as “pessoas” individuais da Trindade que se perde um pouco de
vista sua unidade essencial. Pode-se perder de vista que, quando e onde seu estado de tranqüilidade, serenidade e paz absolutas. No entanto, não
age uma, todas as três estão juntas e envolvidas. Nada acontece ao Filho é assim que o pensamento mais semítico da Bíblia fala de Deus. Na Bíblia,
que não aconteça, ao mesmo tempo, ao Pai e ao Espírito Santo. Deus é um Deus profundamente apaixonado, que sofre e se alegra com
seu povo. Esta participação de Deus na vida do seu povo chega à sua
Esta perspectiva é muito importante para entendermos bem o que
expressão maior na encarnação. Em Jesus Cristo, Deus se faz diretamen­
se passou na paixão e morte de Jesus. Não poucas vezes temos ouvido
te humano e assim participa, desde as entranhas mais profundas do seu
acerca do caráter “cruel” de um Pai que deixa morrer seu Filho daquela
ser, das vicissitudes e alegrias da vida humana. Em Jesus Cristo, Deus
forma, quando não se diz que o entrega ativamente para morrer daquele
sofre como os humanos e morre como eles.
jeito. Qual o pai ou a mãe que faria isto? Qual o pai ou a mãe que não
morreria ele/a próprio/a em lugar do filho ou da filha?
c. Não há paixão sem paixão
Aqui, mais que em qualquer outro lugar, importa não separar o que
Deus une. Isto significa concretamente: a paixão e morte de Jesus são “Deus é amor” (1 Jo 4.8). Por trás desta afirmação, esconde-se
paixão e morte de Deus. Deus não fica ao longe assistindo cruelmente ou bem mais do que normalmente conseguimos enxergar. Temos aí uma de­
impotentemente à morte do seu Filho. Ele e o Filho são tão “um” que finição do ser, da essência de Deus. E isto significa desde logo: um ser
quando o Filho sofre é Deus mesmo que sofre; quando o Filho morre, é aberto para o outro. Outro que, no ser amado, sem perder sua alteridade,
Deus mesmo que morre. toma-se parte do próprio amante (ver Cl 3.14: o amor, o vínculo perfei­
to). Quando dizemos que Deus é amor, dizemos que Deus é Deus em sua
b. O que significa dizer que Deus sofreu relação e acolhida do outro em si, tão perfeita que une indissoluvelmente
em um mesmo ser. Esta é provavelmente a forma mais inteligível em que
Evidentemente, a afirmação de que Deus sofreu e morreu tem lon­ poderíamos explicar a Trindade divina, como Deus pode ser três e, ao
go alcance. Quando o cristianismo, nos primeiros séculos de sua história,

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mesmo tempo, um. O amor, sendo respeito completo à alteridade, ao ser de hoje, tal como em vários períodos da história do cristianismo, ele tem
outro do outro, é, ao mesmo tempo, um vínculo tão forte e profundo que se expressado em sua forma mais radical e concreta: o martírio. Por sua
une essencialmente os amantes/amados. identificação com e defesa dos oprimidos e explorados, muitas/os cristã/
Foi este amor de Deus a força criadora do mundo e do ser huma­ os têm dado sua vida. Mas também na América Latina de hoje tem sido
no. O distanciamento tomado pelo ser humano em nada diminui a intensi­ real: o sangue dos mártires é a semente do cristianismo. Muita paixão-
dade deste amor, que “tudo sofre, tudo suporta e jam ais acaba” (1 Co amor por Deus e pelos humanos feitos à sua imagem tem brotado do
13.7-8). A história bíblica é a história do amor de Deus pela humanidade. testemunho desta paixão-sofrimento de seus/suas discípulos/as.
Um amor sofrido, pois raramente desfruta da resposta de amor do/a ama­ “Padeceu sob Pôncio Pilatos”. Padeceu no sentido forte do termo:
do/a. Em Jesus, este amor de Deus atinge sua maior concretude e intensi­ paixão que levou à paixão. Que, ao repetirmos com nossas comunidades
dade, desde o nosso ponto de vista. E é também em Jesus que ele sofre esta afirmação do Credo, possamos ser iluminados pelo sentido deste
no grau máximo. sofrimento de Deus. Graças a Deus por sua paixão!
Por ser Deus do jeito que é, e a humanidade do jeito que é, parece
que à paixão sempre corresponde a paixão. Dito de outro jeito, não há
paixão sem paixão.
Isto significa, por um lado: a paixão-amor de Deus pela humanida­
de e pelo mundo que criou repercute nele como paixão-sofrimento. Sofri­
mento que alcançou seu cume no evento da paixão de Jesus. Por outro
lado, só poderemos entender a paixão-sofrimento de Jesus à luz desta
paixão-amor de Deus por nós. Nunca poderemos entender um sem o
outro.

d. O sofrimento de Jesus e o nosso sofrimento


Discipulado de Jesus, no contexto desta reflexão, significa paixão
por Deus em resposta ao seu amor apaixonado por todos/as nós. Crer
neste amor de Deus e na história/anúncio da sua revelação significará aber­
tura para o Espírito-amor de Deus que “derrama amor em nossos cora­
ções” (Rm 5.4). Este amor por Deus há de se traduzir, ato contínuo, em
uma nova relação com os/as outros/as amados/as de Deus.
No entanto, dada a continuidade do pecado em nosso mundo e em
nossa vida, esta paixão por Deus, na medida em que realmente o é, há de
ser acompanhada pela paixão própria do discipulado cristão quando se
toma concreto no mundo. Também neste ponto os/as discípulos/as segui­
rão seu mestre. O sofrimento tem sido desde sempre uma das marcas
características do discipulado cristão. A luz das reflexões acima, poderí­
amos dizer que ele será inevitavelmente parte constitutiva do mesmo.
Esta paixão-sofrimento das/os discípulas/os de Jesus se expressa
no mundo e na vida das pessoas de diferentes formas. Na América Latina

102 103
2. O testemunho bíblico
É claro que a morte de Jesus deve ser interpretada no contexto
global do testemunho da Bíblia. O Credo Apostólico pressupõe este pano
Crucificado, morto e sepultado de fundo. O Novo Testamento mostra, antes de mais nada, a perplexida­
de dos discípulos. A morte violenta de Jesus os deixou confusos, frustra­
dos, abalados (cf. Lc 24.21; Jo 20.19; etc.). Não obstante, eles superam
a crise e, a seguir, lançam-se intrépidos à divulgação da causa de seu
Gottfried Brakemeier mestre, e disso nascem as primeiras comunidades cristãs. Para tanto, fo­
ram decisivos os seguintes fatores:
1. Introdução a. O retrospecto à pregação e atuação do próprio Jesus. Em am­
bas, encontram-se inequívocos prenúncios do martírio que ele iria sofrer.
Não só Jesus foi crucificado. Milhares foram as cruzes que os ro­ Os discípulos e as discípulas chegam a compreender a morte na cruz
manos ergueram em brutal repressão das ameaças a seu império. Este como parte integrante da missão de Jesus, conhecimento este a que antes
suplício, extremamente cruel e humilhante, não podia ser aplicado a cida­ tinham resistido (cf. Mc 8.31s.).
dãos romanos livres. Estava reservado a escravos e rebeldes políticos.
Particularmente em caso de revoltas de escravos como aquela do ano de b. O recurso ao Antigo Testamento. Passagens como Is 53, além
71 a.C., liderada por Espártaco, aconteciam crucificações em massa. O de muitas outras, fizeram ver a sorte de Jesus à luz das antigas profecias.
próprio Jesus foi crucificado entre dois “malfeitores”. Ainda assim, a fé Os discípulos descobrem na cruz um desígnio divino (cf. 1 Co 15.3; Lc
cristã atribui um significado singular à morte de exatamente esta vítima. O 24.26; At 3.18; etc.).
que distingue Jesus dos demais crucificados, ontem e hoje? c. A experiência da Páscoa. Jesus, crucificado, morto e sepultado,
Também no século XX é longa a lista das pessoas que sofreram apareceu às mulheres, aos discípulos e a muitas outras pessoas (cf. Mt
morte violenta. São conhecidos os nomes de mártires como do pastor 28.9,17; Jo 20.Is.; 1 Co 15.6; etc.). Ele mostra que está vivo. Ressusci­
Martin Luther King, dos Estados Unidos, do bispo Oscar Romero, de El tou dos mortos. Sem a Páscoa, a cruz de Jesus, até mesmo toda a sua
Salvador, e do padre Josimo, do Brasil. Foram assassinados em razão de biografia, por mais notável que fosse, não passaria de episódio insignifi­
sua luta pela boa causa. Mas não sejam esquecidas as vítimas das chaci­ cante. Seria apenas mais outro exemplo de atrofiamento e fracasso de
nas, das filas de espera do SUS, da fome produzida pela injustiça. A cruz uma boa causa, do que estão repletas as páginas da história humana. A
de Jesus quase que submerge na “normalidade” da violência que caracte­ Páscoa transformou o desespero dos discípulos em fé.
riza a história humana desde Caim e Abel. Voltamos a perguntar: o que há Os três fatores possuem peso desigual, mas não permitem ser se­
de especial na cruz de Cristo? parados. Eles confluem para desafiar o mundo. Afirmam que a cruz e
É digno de registro, ainda, que o Credo Apostólico silencia com morte de Jesus não foram um evento absurdo, vergonhoso, nem mais um
respeito às palavras e aos gestos de Jesus. Realça sua cruz. Também nos desfecho catastrófico de uma vida humana, e sim que nesta morte se en­
evangelhos e demais escritos do Novo Testamento, a paixão e a morte de cerra a salvação da humanidade. Um dos mais antigos credos diz: “Cristo
Jesus ocupam um espaço central. Escreve o apóstolo Paulo aos coríntios: morreu pelos nossos pecados” (1 Co 15.3s.). Ele sofreu a morte “por
“Porque decidi nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo, e este crucifi­ nós” (lT s 5.10; etc.).
cado” (1 Co 2.2). A comunidade cristã crê em alguém condenado e exe­ A partir daí, a reflexão da primeira cristandade desenvolveu diver­
cutado à maneira de um criminoso. Isto é estranho. Exige explicação. sos paradigmas de interpretação. O discurso do Novo Testamento é mul­
tiforme e rico em expressões:

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a. A cruz podia ser vista como típico martírio de profeta a que a. Concepção extremamente influente foi a de Anselmo de Cantu-
Jesus, ele mesmo, já havia aludido (cf. M t 23.37; Lc 13.33; etc.). Mas ária no século XI. O pecado humano, assim entende ele, fere a honra de
Jesus é mais do que um profeta, e as dimensões de sua morte se revelam Deus. É ofensa que exige reparo. Visto que ninguém é capaz de indenizar
como sendo bem mais profundas. o estrago, o Filho de Deus entra na brecha. Sua morte é “satisfação”
oferecida a Deus em nosso lugar. Por ela, pois, temos a remissão dos
b. “Eis o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!” Este é o
pecados.
testemunho de João Batista, conforme o quarto evangelho (Jo 1.29). Je­
sus trouxe o perdão, a expiação para os pecados (cf. Rm 3.25; 1 Jo 2.2; O raciocínio de Anselmo é brilhante. Mas ele inverte a perspectiva.
etc.). Ele assumiu a culpa pelos injustos e, em seu lugar, sofreu o castigo. Jesus realmente morreu para aplacar a ira de Deus? Com boas razões,
Para dizê-lo em termos do apóstolo Paulo: através de Jesus, Deus recon­ estranha-se um Deus que exigiria o sangue de seu Filho para poder ser
ciliou o mundo consigo mesmo (2 Co 5.18). “Aquele que não conheceu misericordioso. Não é este o pensamento bíblico. Jesus não veio para
pecado, ele o fez pecado por nós, para que nele fôssemos feitos justiça reconciliar Deus, e sim o mundo (cf. 2 Co 5.18s.). Já no Antigo Testa­
de Deus” (2 Co 5.21). mento o povo era o beneficiário da expiação. Deus não tem necessidade
dela. Neste tocante, Anselmo precisa ser corrigido. A cruz de Cristo não
c. Outra concepção é aquela que entende a morte de Jesus em analo­ quer provocar uma mudança de atitude em Deus. Muito pelo contrário,
gia ao resgate de escravos (1 Co6.19s.; 1 Pe 1.18s.; etc.). Ela é o preço por por ela Deus quer provocar mudança de atitude no ser humano.
nossa libertação dos cativeiros em que nos lançaram os poderes do mal.
b. É esta uma das ênfases de Martinho Lutero. O reformador se
d. As dimensões da cruz de Cristo se revelam inesgotáveis. Na distancia do misticismo medieval que pregava o aprofundamento contem­
tradição da Santa Ceia, o próprio Jesus diz que a nova aliança é firmada plativo na paixão de Cristo com o objetivo de alcançar conformidade
por seu sangue (Mc 14.24; 1 Co 11.25). Coerentemente, o autor da com o crucificado. No assumir do sofrimento o ser humano estaria tri­
Carta aos Hebreus enxerga na cruz o auto-sacrifício do sumo sacerdote lhando o caminho de Deus. Para Lutero, a cruz é, antes de tudo, sinônimo
Jesus, inaugurando um novo culto a Deus (cf. Hb 9.11; etc.). Na luta de graça, não imperativo para a pessoa cooperar em sua salvação. O
contra o incipiente gnosticismo, é importante a menção de cruz, morte e “por nós” recebe forte destaque. Cristo “[...] me libertou de todos os
sepultamento de Cristo por selar a encarnação do Verbo e refutar a nega­ pecados, da morte e do poder do diabo. Fez isto não com dinheiro, mas
ção da verdadeira humanidade de Jesus.
com seu santo e preciosa sangue e sua inocente paixão e morte” (Cate­
Pela cruz desta pessoa histórica, pois, fomos salvos, justificados e cismo Menor). Ele se identifica com o pecador, toma-se maldição em seu
requisitados para o serviço a Deus (cf. Rm6.12s.; 1 Co 7.22; etc.). Este lugar (cf. G13.13). Na cruz acontece a estranha troca: “Aquele que deve­
é o testemunho pluriforme e, todavia, unânime do Novo Testamento. A ria ter a paz sofre o castigo, e, por outro, quem deveria sofrer o castigo
palavra da cruz, embora tolice aos olhos do mundo, é sabedoria de Deus, tem a paz” (preleção sobre Isaías, 1527-29). Pela cruz de Jesus Cristo,
mais sábia do que toda sabedoria humana (cf. 1 Co 1.18s.). acontece a justificação pela graça. Essa visão tem importantes implicações:
b .l. Se é o nosso pecado que matou Jesus, a história da paixão
3. Reinterpretações na história da teologia quer conduzir ao autoconhecimento do ser humano. Conforme Lutero,
ela é qual espelho que lhe revela a verdade sobre si mesmo. O sofrimento
O testemunho da primeira comunidade permanece básico. É nor­
de Jesus é o produto de nosso pecado. Sua contemplação, pois, põe a
mativo. Mas também ele traz as marcas de seu contexto histórico. A idéia
descoberto o pecado do mundo e tem em vista o arrependimento, o as­
da expiação, por exemplo, era familiar na época. Hoje já não mais o é. O
sustar-se sobre si mesmo, como diz Lutero. A história da paixão é juízo.
testemunho acerca da natureza soteriológica da cruz precisa ser reafirma­
E somente se nos submetermos a este juízo, ela se nos transforma em
do sob novas circunstâncias no percurso da história. Apresentamos três
consolo e salvação.
exemplos:

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b.2. Mas Deus esteve realmente atuando na cruz de Jesus? Lutero É claro que a distinção de Boff entre sofredores e produtores de
admite que ela exibe, antes, fraqueza e derrota. Deus está oculto nela. cruz, embora pertinente, pode ser apenas relativa. Ninguém pertence defini­
Todavia, é assim que Deus se revela, a saber, na fraqueza do amor que, tivamente a uma só das categorias. No entanto, Boff lembra com muita
não obstante, acaba vencendo inferno, pecado e morte. Quem quiser propriedade que o “por nós” da cruz implica a solidariedade com quem
conhecer Deus deve abandonar (crucificar) suas idéias preconcebidas e sofre. Inteipretando, poderíamos dizer: Jesus assumiu o pecado. Mas não
buscá-lo na humildade de Jesus. Ainda não conheceu Deus quem passa só. Assumiu também a marginalidade, para liquidá-la e para reintegrar na
ao largo da cruz. comunhão os excluídos.
b.3. Jesus sofreu a cruz “ [...] para que eu lhe pertença [...] e lhe
sirva em eterna justiça [...]” (Catecismo Menor). Com a justificação inicia 4. Vida pela morte de Jesus
uma “militância”, ou seja, uma vida sob o senhorio do crucificado. Agora,
Compete ao testemunho cristão em todos os tempos dar articula­
sim, o assumir da cruz é exigido da pessoa cristã, contudo não como meio
de alcançar a nova vida, e sim como expressão da mesma. Da cruz de ção ao significado salvífico da morte de Jesus. A forma vai variar, depen­
Cristo brotam imperativos éticos. Somos chamados a seguir combatendo dendo da condição das pessoas e do contexto em que vivem. Entretanto,
os poderes que Cristo já venceu e que, todavia, continuam a nos ator­ para todas elas o crucificado tem um recado. O “por nós”, que é a base
mentar até a vinda do perfeito (1 Co 13.10). da Igreja, tem muitas concretizações. Há, porém, algumas que são essen­
ciais:
Para Lutero, a cruz, sempre em conexão com a ressurreição, cons­
titui o principal referencial hermenêutico. Sua teologia é “teologia da cruz”. a. A morte de Jesus liberta de culpa e pecado. As palavras “por
Ou, para dizê-lo em suas próprias palavras: “Portanto, no Cristo crucifi­ nós” não invalidam a pergunta pela culpa histórica no assassinato de Je­
cado é que estão a verdadeira teologia e o verdadeiro conhecimento de sus. Mas ela é relativizada. Já não mais é possível culpar deste crime
Deus” (Debate de Heidelberg, Tese 20,1518). somente “os judeus”, “os romanos”, “a classe dominante” ou qualquer
outro grupo da época. Eles têm sua culpa, sim. Alguns bem mais do que
c. Na América Latina, a realidade social remete com força à cruz
outros. Não se permite a nivelação das responsabilidades. Mas o “por
de Jesus Cristo. Conforme Leonardo Boff, impõe-se a pergunta: “Como
nós” acaba com o jogo de empurrar a culpa. Quer que descubramos a
pregar a cruz hoje numa sociedade de crucificados?” (Revista Eclesiás­
cumplicidade de nós mesmos com Judas, Pedro, Caifás ou Pilatos.
tica Brasileira, 44/173, p. 58s., 1984). Toma-se particularmente impor­
tante, neste contexto, a solidariedade de Jesus com as vítimas da injustiça Foi a oposição a Deus, foram maciços interesses humanos, foram o
e de um sistema iníquo. Jesus morreu como mártir do Reino de Deus. A egoísmo, a covardia, a omissão, o cinismo que pregaram Jesus à cruz. Foi
cmz é assumida por Jesus em fidelidade a seu “projeto histórico de amor” o pecado humano que, na história da paixão, fez aparecer sua cara medo­
nha e multifacetada. Jogou-se sobre Jesus que o sofreu - e não revidou.
(Paixão de Cristo, p. 142), por causa da justiça e em solidariedade com
os deserdados deste mundo. Nenhuma palavra de vingança saiu de sua boca. Pelo contrário, perdoou
a seus inimigos (cf. Rm 5.10), dizendo que não sabiam o que estavam
De nenhuma maneira Boff nivela a cruz de Jesus à de outros. Em
fazendo (Lc 23.34). Por Jesus, temos também nós a remissão de nossos
Jesus, Deus mesmo sofre com as vítimas do crime humano. Vem para
pecados.
estender-lhes a mão e, simultaneamente, para engajar no combate ao so­
frimento. O seguidor de Jesus deve, também ele, assumir a cruz na luta pela b. Jesus, por sua cruz, liberta da morte. O crucificado experimen­
libertação, pois: “Há valores para os quais deve-se sacrificar a vida” (Pai­ tou a morte em todo o seu horror. Passou pelo abandono em que ela
xão de Cristo, p. 151). Apesar de colocar-se ao lado dos sofredores de lança, gritando: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (Mc
cruz, Jesus morreu também pelos produtores de cruz, oferecendo-lhes o 15.34). Jesus se toma solidário não só com os crucificados, mas com
perdão e a chance da conversão. O Reino de Deus tem natureza inclusiva. todos os moribundos. Também a morte “natural” é pesada. E ninguém

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pode nos substituir aí. O crucificado é o companheiro nesta dor. Está Literatura para aprofundar e discernir
conosco na agonia aquele que possui as chaves da morte e do infemo e é
CONFISSÃO DA FÉ APOSTÓLICA, A. Documento de Estudo da Co­
promessa de ressurreição (cf. Ap 1.17s.). Desde que Cristo morreu na
missão de Fé e Ordem do Conselho Mundial de Igrejas. São Paulo: Bar-
cruz, ninguém mais precisa morrer sozinho e sem esperança.
tira, 1993.
c. A morte de Jesus liberta de escravidão. O amor do crucificado BOFF, Leonardo. Paixão de Cristo - paixão do mundo. Petrópolis: Vo­
quer conquistar-nos. O apóstolo Paulo fala de um morrer e de um ser zes, 1977.
sepultado com Cristo, “para que andemos em novidade de vida” (Rm LOEWENICH, Walther von. A teologia da cruz de Lutero. São Leopoldo:
6.4). Liberdade é o fruto da cruz de Jesus a manifestar-se no serviço à Sinodal, 1987.
justiça, no culto a Deus, na vivência da nova dignidade de filhos e filhas de LUTERO, Martinho. O debate de Heidelberg. In: id. Obras selecionadas.
Deus. Essa liberdade vai opor-se às múltiplas formas de assassinato e São Leopoldo / Porto Alegre: Sinodal / Concórdia, 1987. v. 1, p. 35-55.
. Um sermão sobre a contemplação do santo sofrimento de Cristo.
pecado no mundo. “Assim também vós, considerai-vos mortos para o
In: id. Obras selecionadas. São Leopoldo / Porto Alegre: Sinodal / Con­
pecado, mas vivos para Deus em Cristo Jesus” (Rm 6.11). No Gólgota, córdia, 1987. v. 1, p. 249-257.
Deus afirma o seu Reino.
d. A cruz de Jesus liberta de excomunhão. Ele, Jesus, excomunga­
do, marginalizado, expulso da sociedade humana, toma-se irmão de to­
das as pessoas que sofrem destino semelhante. Portanto, quem estiver à
margem, para quem a sociedade já não reserva espaço, quem é reduzido
a lixo neste mundo, levante a cabeça. O crucificado transforma a periferia
em centro e devolve aos excomungados o direito à comunhão das criatu­
ras de Deus. Ele derruba muros de separação, reconcilia diferenças, cria
comunidade.
Dificilmente há aspectos do sofrimento humano que não tenham
reflexos na história da paixão de Cristo. Somente total apatia frente à
miséria em nosso mundo não saberá detectar a profundidade da palavra
da cruz. De qualquer maneira, há muita culpa a perdoar neste mundo,
muita morte a vencer, muita escravidão a superar e muita comunhão a
construir. Sem a misericórdia do Jesus crucificado e, não obstante, vivo,
não há perspectivas de erupção dos cativeiros humanos.

110
medicina e, sobretudo, da psicologia. Como a pessoa reage quando fica
sabendo que vai morrer? Nega-se a tomar conhecimento de sua situa­
ção? Revolta-se contra “o destino”? Ou contra Deus? Entrega-se à resig­
Desceu ao mundo dos mortos nação? Cai em depressão? Aceita sua morte com tranqüilidade, na fé, e
morre em paz? A médica e tanatóloga suíça Elisabeth Kübler-Ross abor­
da tais questões em seu famoso livro Sobre a morte e o morrer.
E depois da morte? Alguns pesquisadores tentam espiar através da
Joachim Fischer porta da morte para o outro lado. Entrevistam pessoas que se encontra­
vam no limiar da morte ou até estavam clinicamente mortas por alguns
momentos, mas foram reanimadas - voltaram “daquele lado”. O médico
1. Onde estão os nossos mortos? e filósofo norte-americano Raymond A. Moody Jr. relata em seu livro
O que acontece quando uma pessoa morre? Há vida após a mor­ Vida depois da vida sobre suas investigações a respeito da “sobrevivên­
te? Onde estão os mortos? Consciente ou inconscientemente, todos e cia à morte física”. Outro livro dele é anunciado assim: “Este livro leva-
todas nós levantamos essas perguntas. Elas são fundamentais para nossa nos um passo mais perto do grande mistério da existência humana: nossa
existência. Fazem parte da pergunta pelo sentido da nossa vida. Pela por­ alma continua existindo até além da morte física?”
ta do nascimento entramos neste mundo. De onde viemos? Pela porta da As questões da morte e do que vem depois da morte são assuntos
morte saímos deste mundo. Para onde vamos? próprios das religiões. O que diz a Bíblia sobre os mortos?
Há idéias e crenças variadas a esse respeito. Alguns acreditam que
com a morte acaba tudo: ponto final. Outros crêem que os mortos des­ 2 . 0 mundo dos mortos na Bíblia
cansam até sua ressurreição. Na cultura brasileira, a grande maioria com­
Desde a Antigüidade até os primórdios da Idade Moderna, imagi-
partilha da crença de que, na morte, a alma ou o espírito se desprendem
nava-se o universo estruturado em três regiões: o mundo superior (o céu),
do corpo e continuam existindo em algum lugar. Não poucas pessoas
o mundo humano (a terra) e o mundo inferior, subterrâneo (o mundo dos
acreditam na reencamação em outra vida terrena. Familiares até se diri­
mortos). A palavra “inferno” é, originalmente, simples tradução das pala­
gem diretamente à pessoa falecida em anúncios nos jornais. Eis alguns
vras hebraica e grega que designam o mundo dos mortos. Significa, pri­
exemplos: “Partiste, que os Anjos do Senhor te acolham de braços aber­
meiramente, segundo o dicionário, “lugar subterrâneo, onde estão as al­
tos.” - “As lágrimas são secadas pela fé em Deus e pela certeza de que
mas dos mortos”. O Antigo Oriente produziu mitos detalhados do mundo
estás no esplendor da luz divina.” - “Mãe, o teu exemplo, tua força e tua
ou reino dos mortos. No Antigo Testamento, há apenas alusões a tais
luz ficarão sempre dentro dos nossos corações.” Alguém resumiu sua fé
imagens.
nas seguintes palavras: “As pessoas a quem amamos não morrem, conti­
nuam conosco, e nosso coração percebe isso. Viram estrelas e delas de Quem morre, desce, pois o mundo dos mortos encontra-se “nas
alguma forma nos vêm a força e claridade.” Até as telenovelas exploram águas debaixo da terra” (Jó 26.5) ou “no abismo, bem no fundo do mar”
essa temática. (Jn 2.3). É chamado também de “Terra da Morte” (Jó 30.23a) ou “terra
do esquecimento” (SI 88.12b). E o “mundo de escuridão sem fim” (Jó
Não são apenas as crenças que tentam dar sentido à morte. Tam­
38.17b). Lá, os mortos têm casa, conforme Jó 17.13a. Dos “heróis dos
bém as ciências querem explicar o que acontece quando uma pessoa está
tempos antigos” até se diz que “desceram [...] com as suas armas. As
morrendo. Surgiu um novo ramo das ciências, a tanatologia, ou seja, a
suas espadas foram colocadas debaixo das cabeças e os escudos em
pesquisa em tomo do morrer. O termo foi derivado da palavra grega
cima dos corpos” (Ez 32.27). Isaías vê os mortos como “sombras”. Esse
thánatos = morte. A tanatologia combina em seu método elementos da
“reino” não possui nenhum poder ou dignidade próprios. Caracteriza-se

112 113
por fraqueza total. É regido por vermes e bichos (Is 14.9-11). Para Jó, os Em outros textos, o mundo dos mortos é visto como “lugar de so­
mortos tremem de medo (26.5). Para o Eclesiastes, o mundo dos mortos frimento” (Lc 16.28) e castigo. Essa compreensão aproxima-se daquilo
é “nosso último descanso” (12.5b). De lá ninguém volta: “Como a nuvem que geralmente entendemos por “inferno”. Na escuridão, os mortos, tor­
que passa e some, assim aquele que desce ao mundo dos mortos nunca turados por fogo (Mt 5.22; 18.9) e vermes (Mc 9.48), choram e rangem
mais volta” (Jó 7.9). O aspecto mais sombrio desse mundo é a ausência os dentes (Mt 8.12; 22.13).
de Deus. Não há mais lugar para o louvor a Deus: “No mundo dos mortos O inferno, também chamado de “abismo” (Lc 8.31; Ap 9. ls.,1 1;
ninguém te agradece, ninguém louva o teu nome” (Is 38.18). “No mundo 11.7; 17.8; 20.1,3), possui poder contrário a Deus. Dele saem poderes
dos mortos não és lembrado, e lá ninguém pode te louvar” (SI 6.6). O destruidores (“monstros”) para ferir e torturar as pessoas infiéis (Ap 9.1 ss.),
morto não vê mais o Deus Eterno (Is 38.10s.). Sente-se “jogado [...] no devastar a terra “por meio de guerras, fome, doenças e animais selva­
abismo mais profundo” (Is 14.15), fora da presença de Deus (Jn 2.4). gens” (Ap 6.8), pôr “toda a nossa vida em chamas” (Tg 3.5), matar (Ap
Por outro lado, porém, “Deus conhece o mundo dos mortos” (Jó 11 .8 ).
11.8b). Ninguém escapa do domínio de Deus, nem no mundo dos mortos: No “Dia do Juízo” (Mt 11.22; Lc 10.14) ou “Dia do Julgamento”
“Se eu descer ao mundo dos mortos, [tu, Deus] lá estás também” (SI 139.8b). (2 Pe 3.7), os bons serão separados dos maus: “No fim dos tempos [...]
O poder de Deus abrange também o mundo dos mortos: Deus “manda a os anjos vão sair e separar as pessoas más das boas” (Mt 13.49). Os
pessoa para o mundo dos mortos e a faz voltar de lá” (1 Sm 2.6b). maus, ou seja, os que “não haviam se arrependido dos seus pecados”,
Em alguns textos do Antigo Testamento, distingue-se, respectiva­ são jogados “no mundo dos mortos” (Mt 11.23;Lc 10.15),no “inferno
mente, entre o destino dos bons, ou sábios, e o dos maus. O mundo dos onde o fogo nunca se apaga” (Mc 9.43), no “fogo etemo preparado para
mortos passa a ser um instrumento do juízo de Deus. Nem todas as pes­ o Diabo e os seus anjos” (Mt 25.41). São atormentados para sempre “no
soas vão para o mundo dos mortos, mas somente “os maus e todos os lago de fogo que queima com enxofre” (Ap 19.20), sem “alívio, dia e
que rejeitam a Deus” (SI 19.17). Os rebeldes são engolidos pela terra e noite” (Ap 14.11). Ou sofrem “o castigo da destruição eterna” (2 Ts 1.9;
descem “vivos para o mundo dos mortos” (Nm 16.30). De grande im­ cf. também Hb 10.27; 2 Pe 3.7).
pacto é a palavra de Isaías: “O mundo dos mortos, como se fosse uma Podemos constatar que imagens do mundo dos mortos como infer­
fera faminta, abrirá a sua boca enorme e engolirá o povo e as autoridades, no aparecem de preferência em textos apocalípticos. Eles querem dizer:
toda essa gente que vive nas farras e nas orgias” (5.14). Posteriormente, o existe a possibilidade de a pessoa ficar separada “da presença do Senhor
mundo dos mortos é visto como lugar do “castigo eterno” e da “desgraça e do seu glorioso poder” (2 Ts 1.9). O assunto nunca é abordado isolada­
eterna” (Dn 12.2), ou seja, o “inferno” no sentido tradicional da palavra. mente, mas sempre dentro de determinado contexto, por via de regra de
O que nós chamamos de Antigo Testamento era a Sagrada Escritu­ caráter pastoral, pedagógico ou parenético. Os autores do Novo Testa­
ra dos autores do Novo Testamento. Logo, eles compartilham a visão mento destacam a vitória de Jesus Cristo sobre todos os poderes do mal
do mundo dos mortos no Antigo Testamento. Em seus textos às vezes (o “inferno”) ou querem chamar os cristãos e as cristãs para uma vida de
transparece também a religiosidade de seu tempo. Mas não estão interes­ fé consciente e responsável.
sados nesse mundo como tal. No centro de sua mensagem está Jesus
Cristo, sua pessoa e obra a nosso favor: seu nascimento, vida, paixão, 3. A imagem do inferno na Idade Média
morte na cruz, sepultamento e ressurreição.
Na compreensão do Novo Testamento, os mortos encontram-se Sobretudo no cristianismo da Idade Média, a imagem do mundo
provisoriamente, até sua ressurreição, no mundo dos mortos (Ap 20.13), dos mortos como inferno ocupou a fantasia das pessoas e as amedrontou.
no “mundo lá debaixo” da terra (“abismo”, no texto original grego de Rm Foi elaborada com muitos detalhes. Cristãos e cristãs que tinham tido
10.7) ou da água subterrânea. Lá “descansarão dos seus trabalhos” aqueles visões do paraíso, do purgatório e do inferno difundiram o que haviam
que “morrem no serviço do Senhor” (Ap 14.13). visto. Pintores, como o holandês Jerônimo Bosch (±1450-1516), mos­

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traram em quadros impressionantes como imaginavam o mundo do além. giu dos mortos” . Os credos da parte oriental (grega) da Igreja Antiga
Partiram das poucas referências bíblicas, assimilaram elementos da mito­ confessam a morte, o sepultamento e a ressurreição de Cristo. O Credo
logia antiga e certamente se aproveitaram também das crenças populares. conhecido como Niceno, do século 4 - o único verdadeiramente ecumê­
Realimentaram, por sua vez, essas mesmas crenças. nico, pois está em uso tanto nas Igrejas Ortodoxas orientais como na
De forma magistral, o poeta, teólogo e político italiano Dante Ali- Igreja Católica Romana e nas Igrejas Protestantes, inclusive as Luteranas
ghieri (1265-1321) descreveu, em seu monumental poema A divina co­ - afirma que Cristo “foi também crucificado em nosso favor sob Pôncio
média, uma das maiores obras da literatura universal, o que diz ter visto Pilatos; padeceu e foi sepultado; e ao terceiro dia ressuscitou”.
ao percorrer o inferno, o purgatório e o paraíso. Percebe o inferno como A partir do testemunho bíblico podemos concluir que Cristo estava
o “reino da iniqüidade”, um “insondável e tenebroso abismo”. Dele so­ morto entre sua morte na cruz e sua ressurreição: estava no mundo dos
bem “brados e infindos ais”, pois os mortos sofrem “horrível processo de mortos. O próprio Jesus havia anunciado: “o Filho do homem ficará três
castigo que as melhores palavras não conseguem descrever”. dias e três noites no fundo da terra” (Mt 12.40). No primeiro Pentecos­
tes, Pedro, citando o Antigo Testamento, disse: “Ele [Cristo] não foi aban­
donado no mundo dos mortos” (At 2.31). Paulo pressupõe a estada de
4. “Inferno” na linguagem atual
Cristo no “mundo lá debaixo”, no “meio dos mortos” (Rm 10.7).
A imagem medieval aterradora do infemo influencia nossa lingua­ Outros trechos bíblicos deixam transparecer o que se acreditava
gem, nossa imaginação e nosso subconsciente até hoje. No entanto, por que Cristo teria feito no mundo dos mortos. Para o autor da Ia Carta de
via de regra usamos a palavra “infemo” em sentido figurado, como ex­ Pedro, “o evangelho foi anunciado também aos mortos” (4.6). Por quem?
pressão simbólica ou metáfora. “Infemo” não significa mais um lugar sub­ Só pode ter sido por Cristo. Com essa pregação, ele proporcionou a
terrâneo nem um lugar além desta vida terrena. Designa situações nesta possibilidade de alcançar a salvação às pessoas falecidas antes da vinda
vida difíceis de serem suportadas, que ameaçam ou aniquilam a vida hu­ dele. Um dos relatos sobre a morte de Jesus dá a entender que, na sua
mana. Podem ser situações que surgem na natureza (o “Infemo Verde” do entrada no mundo dos mortos, ele libertou “muitos do povo de Deus que
Amazonas, p. ex.), ou catástrofes (o “infemo” de um grande incêndio, p. haviam morrido” (Mt 27.52, sem paralelos nos outros evangelhos!). As­
ex.), ou situações propositadamente preparadas por seres humanos para sim, Cristo se evidencia como o Senhor que tem “autoridade sobre a
humilhar, torturar ou matar outros seres humanos (o “infemo” dos campos morte e sobre o mundo dos mortos” (Ap 1.18).
de concentração e de extermínio nazistas ou dos campos de trabalhos Com base nesses poucos comprovantes bíblicos, a descida de Cristo
forçados stalinistas, p. ex.). Para tal, o dicionário registra o significado ao mundo dos mortos foi incluída em alguns credos no século 4 e depois
“tormento, martírio” - o que não faz plenamente jus aos horrores de tais também no Credo Apostólico. O sentido original dessa parte, tanto na
“infernos”. versão grega como na latina, é este: “desceu ao mundo dos mortos”. No
Brasil, a Igreja Católica Romana confessa que Cristo “desceu à mansão
5. A descida de Jesus Cristo ao mundo dos mortos dos mortos”, a Igreja Presbiteriana, que “desceu ao Hades” - palavra
grega que significa “mundo dos mortos”. Em outras Igrejas, esta parte do
Os evangelhos relatam a paixão, a morte, o sepultamento e a res­ Credo foi traduzida por “desceu ao infemo” . Isso possibilitou a associa­
surreição de Jesus. Silenciam sobre o espaço de tempo entre a morte e a ção das tradicionais imagens e fantasias a respeito do “infemo”. Mas não
ressurreição. Um antigo credo (“ensinamento”), relatado por Paulo, reza: corresponde ao sentido original do Credo. Por isso, a Igreja Evangélica
“Cristo morreu pelos nossos pecados [...]; ele foi sepultado e ressuscitou de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) adota hoje a versão que diz
no terceiro dia” (1 Co 15.3s.). O antigo Credo Romano, formulado por que Cristo “desceu ao mundo dos mortos”.
volta do ano 200 e do qual se desenvolveu o Credo Apostólico, diz: “sob
Pôncio Pilatos [Cristo] foi crucificado e sepultado, no terceiro dia ressur­

116 117
6. A interpretação de Martinho Lutero sença salvíficas. Cristo, a vida em pessoa (Jo 14.6), leva vida para dentro
do mundo dos mortos, pois ele é “a ressurreição e a vida” (Jo 11.25).
Tudo o que Cristo fez, e que confessamos no 2o artigo do Credo Essa certeza livra-nos de angústia e preocupação em relação aos nossos
Apostólico, ele o fez por nós, em nosso benefício. Para Lutero, é de mortos, também da procura desesperada por algum tipo de comunicação
fundamental importância que compreendamos isso. A versão do Credo com eles. Podemos ficar tranqüilos: nossos mortos estão em boas mãos.
usada por ele diz que Cristo “desceu ao inferno”. Lutero sabia como seus
Igualmente podemos ficar tranqüilos em relação à nossa própria
contemporâneos imaginavam o “inferno”. Conhecia as respectivas pintu­
morte. Entrar no mundo dos mortos perde seu caráter angustiante. En­
ras e ilustrações. Eram, para ele, imagens que transmitem uma verdade da
contraremos Jesus Cristo como companheiro também nessa situação li­
fé. “Não se pode entender as verdades da fé se não forem expressas em
mítrofe. “Ainda que eu ande por um vale escuro como a morte, não terei
imagens.” Admitiu, porém, não saber como aconteceu aquela descida de
medo de nada. Pois tu, ó Deus Etemo, estás comigo; tu me proteges e me
Cristo. Não teve receio de dizer que suas idéias sobre isso podiam estar
diriges” (SI 23.4). Ao morrer, podemos dizer, como Jesus na cruz: “Pai,
erradas; porém isso não seria heresia, doutrina falsa, mas apenas um erro
nas tuas mãos entrego o meu espírito!” (Lc 24.46, citando o Salmo 31.5).
num assunto sobre o qual nada nos foi revelado.
Nem a morte consegue-nos tirar das mãos acolhedoras de Cristo.
A teologia de Lutero gira em tomo de cruz e ressurreição (“teologia
da cruz”). É o aspecto principal da fé cristã. Lutero é da opinião de que a Eu tenho a certeza de que nada pode nos separar do amor de Deus
[em Cristo]: nem a morte, nem a vida; nem os anjos, nem outras
descida de Cristo ao inferno, a rigor, não precisaria constar no Credo.
autoridades ou poderes celestiais; nem o presente, nem o futuro; nem
Teria sido suficiente colocar a morte e o sepultamento de Cristo. Conse­
o mundo lá de cima, nem o mundo lá debaixo. Em todo o universo não
qüentemente, ele não aborda este aspecto nem numa grande confissão de há nada que possa nos separar do amor de Deus, que é nosso por
fé de 1528 nem nos dois catecismos (1529). Jesus Cristo “padeceu, mor­ meio de Cristo Jesus, o nosso Senhor. (Rm 8.38s.).
reu e foi sepultado [...]. Depois ressurgiu” (Catecismo Maior). Mas, como
a descida ao infemo constava na versão do Credo que ele conhecia, des­ A última palavra, a vitória final, pertence a Cristo: “A morte está
tacou o significado salvífico também desta parte da obra de Cristo. Quer destruída. A vitória é total! Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está,
nos dizer que Cristo é o Senhor, meu e teu Senhor, em todos os lugares, ó morte, o teu poder de ferir?” (1 Co 15.54s.). É por isso que Cristo
na vida e na morte: “Cristo é o Senhor lá em cima, aqui e embaixo para desceu ao mundo dos mortos.
que saibamos que ele é o nosso Senhor onde quer que estejamos, quer
vivamos, quer morramos.” Podemos ter certeza de que “onde eu estou, Literatura para aprofundar e discernir
Cristo também está”. Isso nos dá confiança e paz de espírito na vida e na
BRAATEN, Cari E. A pessoa de Jesus Cristo. In: id., JENSON, Robert W.
morte. Quando morremos, nosso corpo será sepultado e decompor-se- (Eds.). Dogmática cristã. Trad. de Gerrit Delfstra, Luis H. Dreher, Geral­
á. Mas confiantes deixamos aos cuidados de Deus o que disso resultará, do Komdõrfer, Luís M. Sander. São Leopoldo: Sinodal, 1990. v. 1, p. 531-2
pois: “Onde eu estou, tenho o meu querido Senhor que me protege.” [A humilhação e exaltação de Jesus Cristo: O descenso ao infemo].
KÜBLER-ROSS, Elisabeth. Sobre a morte e o morrer. Trad. de Paulo
7. “Desceu ao mundo dos mortos” : qual a mensagem? Menezes. São Paulo: Martins Fontes, 1981.
MOODY Jr., Raymond A. Vida depois da vida, a investigação de um
Perguntamos, no início: onde estão os nossos mortos? Agora po­ fenômeno: a sobrevivência à morte física. Trad. de Rodolfo Azzi. São
demos responder: estão na companhia de Cristo. Em benefício deles ele Paulo: Círculo do Livro, s. d.
desceu ao mundo dos mortos. Acolhidos por ele, descansam de sua vida TDBBE, Trudi e Johann. Vida no limiar da morte. Trad. de Jenny Koch.
terrena até sua ressurreição. Cristo deixa-os compartilhar da salvação São Leopoldo: Sinodal, 1980.
WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. Trad. de
que ele traz e personifica. Os mortos estão incluídos na sua obra e pre­
Antônio Steffen. São Paulo: Loyola, 1975. p. 137-60 [A vida e a morte].

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Como reagir diante das narrativas da ressurreição de Jesus? E pos­


sível aceitar este relato como um fato histórico? A razão moderna, forma­
da pelo pensar científico-crítico, resiste a esta idéia, principalmente a par­
Ressuscitou no terceiro dia tir do pressuposto de que só pode ser considerado plausível o que tem
analogia na história. Relatos antigos de experiências extraordinárias de­
vem ser descartados como lendas ou mitos piedosos, exatamente por não
terem paralelos na história, nem antes, nem depois.
Kjell Nordstokke Devemos lembrar que não somente a mente moderna apresenta
esta dificuldade em aceitar a ressurreição de Jesus como evento histórico.
Também na época do Novo Testamento a pregação da ressurreição foi
1. A ressurreição - um evento histórico? questionada. A maioria dos ouvintes de Paulo no Areópago em Atenas
Desde os primórdios da igreja cristã, Jesus foi pregado como o começaram a zombar quando ouviram a mensagem da ressurreição (At
Ressurreto. Tal foi a importância dada à mensagem da vitória de Jesus 17.32); o pensamento grego, com sua clara distinção entre matéria e es­
sobre a morte que Paulo afirma: “se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pírito, rejeitou imediatamente a idéia de o corpo morto ressuscitar. Isto
pregação e vã a vossa fé” (1 Co 15.14). contradiz não somente o conhecimento biológico, mas também o pensa­
mento filosófico.
No Novo Testamento, este evento é anunciado como um aconteci­
mento histórico. A ressurreição aconteceu num lugar determinado, num Vemos nos relatos do Novo Testamento que os próprios discípulos
cemitério nas proximidades de Jerusalém, e num momento igualmente de­ não mostraram muita disposição para o anúncio da ressurreição de Jesus.
terminado, “no terceiro dia”, como afirma o Credo Apostólico. A partir As primeiras testemunhas do túmulo vazio fugiram “possuídas de temor e
deste evento, o primeiro dia da semana é chamado “o dia do Senhor” de assombro” (Mc 16.8). Conforme Lucas, não conseguiram interpretar
(domingo), e é neste dia que a primeira comunidade cristã celebra de este fato; por isso, os discípulos no caminho de Emaús são reprovados
maneira especial a sua comunhão com o Senhor ressurreto (At 20.7). por Jesus como “néscios” e “tardos de coração” (Lc 24.24-25). Esta
realidade de confusão e incredulidade não confere probabilidade à tese
Um estudo mais próximo dos textos do Novo Testamento mostra
de que eles mesmo inventaram a notícia de que Jesus tinha ressuscitado.
que há duas tradições que relatam sobre a ressurreição de Jesus. As duas
podem ter existido separadamente uma da outra, mas também é possível O fato de que a ressurreição de Jesus não tem analogia na história
que tenham caminhado junto desde o início. A primeira tradição é a do não significa que não possa ter acontecido. A ciência hoje admite que
túmulo vazio. O sepulcro foi encontrado aberto; Marcos ainda conta toda pesquisa deve estar aberta para realidades e eventos novos, além
que a entrada tinha sido fechada por uma grande pedra que as mulheres, daquilo que experimentamos e conhecemos até agora. Mas a pesquisa
pelo menos, não conseguiriam remover (Mc 16.3-4). Nesta tradição, os também tem a obrigação de ser crítica e questionar a solidez daquilo que
anjos explicam o que havia acontecido anunciando a ressurreição (Mc é apresentado como fato, especialmente no mundo das religiões, onde há
16.5-7; Jo 20.1-10). A outra tradição relata sobre os encontros com o muitos produtos da imaginação. Neste sentido, pode ser útil ver o que a
Ressurreto', ele é visto e reconhecido pelos discípulos. Paulo apresenta pesquisa histórica pode constatar a respeito da questão da historicidade
uma lista destas aparições (1 Co 15.5-8). Nos evangelhos, estes encon­ da ressurreição. Há, pelo menos, três fatos:
tros acontecem onde os discípulos estão reunidos; renova-se a comunhão a. o relato da ressurreição faz parte da comunidade cristã desde o
de mesa (Lc 24.36-43; Jo 20.19-29; 21.10-14). Os discípulos também primeiro momento de sua existência;
são investidos como enviados em nome do Senhor (Mt 28.18-20; Jo
b. o sepulcro de Jesus foi encontrado vazio, e não foi achada uma
20 . 21).
explicação “racional” deste fato;

120 121
c. o estado sociopsicológico dos discípulos e o seu sistema de va­ de Jesus, tal como se manifestou na denúncia da hipocrisia e injustiça e no
lores éticos não tomam provável uma fraude, segundo a qual eles sim­ anúncio das boas novas do Reino, recebe no momento da ressurreição a
plesmente teriam inventado histórias de encontros com o Ressurreto. sanção de Deus.
Estas considerações não são suficientes para dizer que está prova­ Ligada a este pensamento vemos uma segunda colocação no dis­
do historicamente que Jesus ressuscitou, mas também fica claro que, pela curso de Pedro: na ressurreição são rompidos “os grilhões da morte; por­
pesquisa histórica, não se pode concluir que Jesus não tenha ressuscita­ que não era possível fosse ele retido por ela” (At 2.24). Aqui o Ressurre­
do. Há indicações fortes de que, neste terceiro dia depois da crucifica­ to é proclamado como o Vitorioso, aquele que vence o poder da morte
ção, aconteceu algo extraordinário. Em última instância, os pressupostos definitivamente. A ressurreição não é a volta à vida, como no caso de
filosóficos e religiosos do pesquisador vão determinar o que ele concluirá Lázaro e outros nos relatos dos evangelhos; ela é a conquista de algo
a partir destes fatos. novo, vitória para todo o sempre. Dentro deste pensamento, a morte é o
Assim, a fé entra na arena. A fé cristã nasce do encontro com o último inimigo, representante de todas as forças satânicas. De novo ve­
Jesus Cristo vivo; da mesma maneira que a comunidade primitiva experi­ mos que o evento da ressurreição não é um milagre isolado, mas anúncio
mentou esta realidade, os cristãos também hoje testemunham a sua pre­ de uma nova realidade; é um evento escatológico, com um valor que
sença viva. No final das contas, o próprio Ressurreto é a razão da fé na supera o espaço e o tempo do acontecimento.
ressurreição também hoje. É a partir desta interpretação que a mensagem da ressurreição é
A partir desta experiência, a fé interpreta e determina o sentido dos fundamental para a fé cristã. Na Primeira Carta aos Coríntios, o apóstolo
relatos históricos. Para a fé, os fatos históricos são de suma importância: Paulo fundamenta a esperança cristã nesta mensagem: “Mas de fato Cris­
Jesus nasceu ser humano igual a nós; nesta realidade, pregou e atuou, to ressuscitou dentre os mortos, sendo ele as primícias dos que dormem”
padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos, ressuscitou no terceiro dia. O (1 Co 15.20). Primícia quer dizer os primeiros frutos de uma colheita, um
seu sofrimento por nós é realidade e não produto de sonhos piedosos, da sinal seguro de como vai ser o futuro de tudo o que está na árvore.
mesma forma como sua vitória sobre a morte: ela é vitória real, e não algo Na sociedade judaica contemporânea, discutia-se intensamente se
limitado às nossas esperanças. há uma ressurreição dos mortos. Os fariseus defendiam esta idéia, en-
quando os saduceus a rejeitavam (Mt 22.23-33). Para a fé cristã, a espe­
rança da ressurreição não parte de especulações antropológicas ou de
2. A interpretação da ressurreição
convicções de que há algo de imortal no ser humano. Tampouco parte de
Nos textos do Novo Testamento, achamos algumas indicações im­ imagens cosmológicas com caminhos e espaços para os mortos. O fun­
portantes de como os primeiros cristões interpretaram a ressurreição de damento desta fé é unicamente a ressurreição de Cristo, é cristocêntrico.
Jesus. Desta maneira, a ressurreição de Cristo é o modelo de nossa res­
Segundo Atos, a pregação cristã começa no dia de Pentecostes surreição. Assim como ele vence a morte e é chamado à vida nova, tam­
com a descida do Espírito Santo. No seu discurso, Pedro afirma que foi bém acontece com todos aqueles que são dele. Assim como o Ressurreto
Deus que ressuscitou Jesus (At 2.24). Com isto é enfatizado o sentido tem corpo e é reconhecido pelos discípulos, também aqueles que ressus­
teológico da ressurreição, como intervenção divina para fazer justiça à citam com ele. Mas é uma corporeidade diferente, transformada para a
causa de Jesus. Aquele que é rejeitado pelo mundo, condenado como incorruptibilidade da vida eterna (1 Co 15.50-55). São os encontros com
blasfemo pelos líderes judeus e como subversivo pelas autoridades roma­ o Ressurreto que apontam para esta compreensão (Jo 20.27; Lc 24.36-
nas, é levantado dos mortos por Deus. Desta maneira, a ressurreição não 43). O Ressurreto não é um espírito ou um fantasma, ele carrega as mar­
é, em primeiro lugar, anunciada como algo sobrenatural e milagroso, mas cas de sua história com seu povo nas próprias mãos, é o Crucificado que
como aprovação divina de tudo que Jesus tinha feito e falado. A proposta senta à mesa com eles.

122 123
A partir dos encontros com o Ressurreto, a ressurreição expressa primeiro lugar da experiência da sua presença em nossa realidade aqui e
a continuidade do que era anteriormente e, ao mesmo tempo, a irrupção agora. Da mesma forma, a mensagem da ressurreição é mais do que uma
de algo totalmente novo. Esta observação é muito importante para a re­ interpretação simbólica da cruz e mais do que uma convicção de que
flexão sobre o sentido da ressurreição aqui e agora. Primeiro, a continui­ Jesus continua sendo vitorioso também depois de sua morte; por isso, os
dade expressa uma valorização profunda da criatura de Deus; é ela que é eventos históricos tampouco podem ser bagatelizados.
resgatada do poder da morte e do diabo. Desta maneira, a mensagem da Assim como as duas linhas nos relatos sobre a ressurreição no Novo
ressurreição convida para um compromisso solidário com todas as pes­ Testamento - uma sobre o sepulcro vazio, outra sobre os encontros com
soas vítimas dos mecanismos de morte neste mundo. Segundo, a novida­ os discípulos - caminham juntas, também a nossa interpretação deve guar­
de desta realidade já é experimentada aqui e agora, como poder que dar como ponto de partida que, nesse caso, estamos diante de algo ines­
salva, liberta e mobiliza para o serviço do amor (Fp 3.10). O Ressurreto perado, um acontecimento que desmonta todos os cálculos humanos. Os
é o ser humano novo, a realização de todos os nossos anseios e de tudo autores do Novo Testamento interpretam esta novidade como interven­
que Deus nos tem prometido em relação à vida. Não é conquista nossa, ção divina. Como tal, a ressurreição é muito mais do que as nossas inter­
mas dádiva livre de Deus e expressão do seu amor. pretações, é uma realidade anterior às nossas reflexões, com um sentido
Nesta visão, fundamentam-se a ética cristã e o seu conjunto de muito mais profundo do que nossos pensamentos podem captar.
atitudes e valores, e também a diaconia como serviço organizado da igre­
ja em favor dos necessitados. As opções da atuação têm como referência
3. Atualização para o nosso contexto
aquilo que esperamos e não somente o dia-a-dia com todas as suas limi­
tações. Desta forma, vivência cristã implica simultaneidade de continuida­ A partir destas considerações, podem ser feitas as seguintes obser­
de e novidade. Sem a primeira instância, a memória da ressurreição corre vações, relacionadas ao nosso contexto sociopolítico e cultural brasileiro:
o risco de ser um discurso espiritualista, fugindo da realidade deste mun­
a. A ressurreição acontece dentre dos mortos. O espaço inicial
do. Sem a segunda, pode ser restrita ao que é humanamente possível e,
da ressurreição é o sepulcro. E neste lugar de destruição eterna que brota
com isto, fica limitada a um discurso ideológico.
a nova vida. A ressurreição é dos mortos, das vítimas do poder do mal, e
Na história da teologia, vemos tendências diferentes na compreen­ não daqueles que escaparam das crueldades desta vida. Isto vale também
são da ressurreição de Jesus. Alguns estudiosos sublinham o lado históri­ para nossa realidade de hoje.
co e querem até provar cientificamente a facticidade da ressurreição. O
argumento para defender tal insistência na historicidade é que só tem sen­ b. A ressurreição anuncia a vitória da vida. A ressurreição que­
tido falar da cruz e da ressurreição como fatos na história se os próprios bra a lógica da morte que aceita exclusão, sofrimento e destruição. A vida
historiadores verificam a realidade destes fatos. em abundância que Jesus veio trazer (Jo 10.10) é garantida pela ressur­
reição. A esperança se alimenta desta promessa, assim como também a
Por outro lado, há outros teólogos que dizem que a historicidade
prática do amor para aliviar e transformar - a diaconia - antecipa aquilo
não tem importância alguma. O decisivo é o sentido desta mensagem aqui
que a fé anuncia e espera.
e agora, experimentado pela fé. Teólogos influenciados pelo existencialis­
mo optam por esta linha de interpretação. Na posição mais radical é dito c. A ressurreição não é elevação para esferas espirituais. A re­
que o sepulcro vazio só tem significado simbólico. Se se achasse hoje o ligiosidade popular é muitas vezes influenciada por um dualismo que se­
túmulo verdadeiro de Jesus com seus restos mortais, isto não mudaria para matéria e espírito e que implica uma cosmo visão onde há esferas
nada. Para a fé, Cristo continua sendo ressurreto. etéricas para onde a alma é atraída. A espiritualidade da ressurreição
Ambas as posições implicam problemas quando são apresentadas parte de uma visão diferente: ela é integral e vê um futuro novo para o ser
de uma maneira unilateral. O anúncio da ressurreição de Jesus é mais do humano em sua totalidade. Por isso, não despreza a realidade humana, tam­
que uma discussão sobre a eventualidade de fatos históricos; ele parte em pouco aposta na auto-salvação da alma por meio de viagens espirituais.

124 125
d. A ressurreição tem testemunhas. As primeiras testemunhas da
ressurreição foram mulheres, pessoas que, conforme a ideologia da épo­
ca, tinham pouca credibilidade. Foram para o sepulcro, entristecidas, sem
saber o que estava à sua espera. Assim continua sendo também hoje: de Subiu ao céu, e está sentado à direita
quem menos se espera vem o testemunho da ressurreição. Assim se ma­
nifesta o poder da ressurreição e da graça de Deus, que invertem valores de Deus Pai, todo-poderoso
humanos e deixam o último ser o primeiro. Descobrimos nisto também o
mistério da ressurreição, que, por um lado, é atuação poderosa de Deus,
mas que, por outro lado, também é algo escondido, que só a fé pode
abraçar com alegria. Kjell Nordstokke
e. A ressurreição chama à solidariedade com a vida ameaçada.
O Ressurreto é o mesmo que foi ao encontro de pecadores, pobres e
1. O testemunho bíblico
perdidos. O seu projeto de salvação e de construção de uma realidade
nova de justiça e paz é afirmado na ressurreição. Crer na ressurreição Onde está Jesus agora? Para onde ele foi depois da ressurreição?
implica identificação com esta causa de Jesus, implica solidariedade com O Novo Testamento é unânime em responder que Jesus foi exalta­
os excluídos e participação na vida comunitária para construir um futuro do e está sentado à direita de Deus Pai. Há uma íntima unidade entre
melhor. ressurreição e ascensão, pois a subida ao céu é vista como implicação
escatológica da vitória sobre o diabo e a morte: assim como Deus res­
Literatura para aprofundar e discernir suscitou Jesus, “com a sua destra, o exaltou a Príncipe e Salvador” (At
6.30-31).
BOFF, Leonardo. A ressurreição de Cristo: a nossa ressurreição na mor­
O como da ascensão, porém, é relatado de maneiras diferentes. O
te. Petrópolis: Vozes, 1972.
BRAATEN, Cari E., JENSON, Robert W. (Eds.). Dogmática cristã. São mais concreto é Lucas, que fala de um evento 40 dias depois da ressurrei­
Leopoldo: Sinodal, 1990. v. 1, p. 532-535. ção, quando Jesus é arrebatado ao céu diante dos olhos dos discípulos
SCHNACKENBURG, Rudolf. Cristologia do Novo Testamento. In: Mys- (Lc 24.50-51; At 1.9-11). Esta tradição do “arrebatamento” não é con­
terium Salutis. Petrópolis: Vozes, 1973. v. III/2, p. 8-23. firmada pelos demais autores neotestamentários, exceto em 1 Tm 3.16
(Almeida traduz: “recebido na glória”). Eles falam da ascensão como um
evento trans-histórico, um fato semelhante à ressurreição que ultrapassa
aquilo que nossos olhos podem ver e as palavras reportar. Na Carta aos
Hebreus, a ascensão faz parte da visão de Jesus como sumo sacerdote
em sua dimensão cósmica, “que penetrou os céus” (Hb 4.14; 6.19-20;
9.24). Em Ef 4.9-10, a ascensão é vista em contraposição à descida “às
regiões inferiores da terra” ; é este mesmo Jesus que “subiu acima de to­
dos os céus, para encher todas as coisas”.
Também para Lucas a interpretação escatológica é o principal, pois
o evento anuncia o fim das aparições do Ressuscitado e o início do tempo
da igreja. Assim Lucas supera o problema da expectativa da parúsia ime­
diata de Jesus que tanto preocupou a primeira geração de cristãos; a

126 127
própria ascensão é apresentada como uma forma de afirmar que só Deus 2. A entronização de Jesus à direita de Deus Pai
sabe o tempo da vinda do Reino (At 1.6). Da mesma forma, os discípulos
que assistem ao evento da ascensão são animados a não ficarem olhando Já a comunidade primitiva interpretou a ascensão como exaltação de
para as alturas (1.11). Por isso, voltam a Jerusalém e à missão para a qual Jesus e sua entronização à direita de Deus Pai, todo-poderoso. Aquele que
foram chamados. antes se humilhou, “assumindo a fornia de servo”, é, agora, “sobremaneira”
exaltado e dá-se-lhe “o nome que está acima de todo nome” (Fp 2.6-11).
Em conseqüência disto, a forma histórica determinada que Lucas
usa no seu relato não é o mais importante. É importante registrar isto pelo Nesta interpretação é feita uma leitura nova e ousada do Salmo
fato de que a nossa cosmovisão não permite um “arrebatamento”, en­ 110: “Disse o Senhor ao meu Senhor: assenta-te à minha direita, até que
quanto na Antigüidade existiam muitas narrativas deste tipo, normalmente eu ponha os teus inimigos debaixo dos teus pés”. Se este salmo original­
relacionadas a personagens importantes. Notamos que o próprio Lucas mente se referia à entronização do rei em Jerusalém, já na época de Jesus
não faz especulação alguma sobre o como da ascensão. Conta que “uma foi compreendido dentro da expectativa messiânica (Mt 22.41-46). As
nuvem o encobriu dos seus olhos” (At 1.9), indicando que nesta nuvem freqüentes referências ao SI 110 nos escritos do Novo Testamento (p.
não se acha mais nada, nem detalhes milagrosos, nem explicações cos- ex., At 2.34-36; 1 Co 15.25; Hb 1.13) revelam como a comunidade
mológicas. Não se trata de uma viagem físico-espacial, mas de evento chegou a confessar Jesus como Messias (Cristo, na língua grega).
escatológico: Jesus subiu “ao céu, assim virá do modo como o vistes su­ É Deus que faz de Jesus o Senhor e o Messias (At 2.36); ele o
bir” (1.11). entroniza como rei celestial. Na Antigüidade, quem governava tinha o di­
Com isto, não se pode negar o fato de que os autores do Novo reito de sentar no trono, e diante dele todos os outros deviam se ajoelhar.
Testamento se referem a uma compreensão cosmológica diferente da nossa. Dentro deste pensamento, vemos o significado da exaltação de Jesus. Na
A maneira de falar do “descer” e “subir” reflete uma relação vertical entre tradição judaica, o nome “Senhor” é reservado para Deus. Agora Jesus
o céu (“lá em cima”) e o mundo (“aqui embaixo”) e ainda com o submun­ recebe este nome. Ele expressa sua união com o Deus Pai e a investidura
do, onde se encontram os mortos. A especulação contemporânea procu­ do poder divino, assim como Jesus diz em Mt 28.18: ‘Toda a autoridade
rava revelar mais conhecimentos sobre a ordem do cosmos, e especial­ me foi dada no céu e na terra”.
mente os místicos afirmavam terem informações secretas sobre os sete “À direita” quer dizer à mão direita de Deus. Neste ponto, a versão
céus e os seus poderes. O Novo Testamento não entra neste ritmo de portuguesa do Credo Apostólico não é totalmente fiel ao original, que diz:
curiosidade pelas verdades ocultas. Paulo, por exemplo, que admite tam­ sedet ad dexteram Dei Patris, o que deveria ser traduzido “sentado à
bém ele saber de experiências místicas, pois foi “arrebatado até ao tercei­ destra de Deus Pai”. (Anotamos que a tradução de Almeida oscila entre
ro céu” (2 Co 12.2), deixa bem claro que o centro da fé cristã é Jesus “direita” e “destra”; veja, p. ex., At 2.34 e 7.56). Sem dúvida, “destra” é
Cristo e a sua graça (12.9). mais significativo, pois afirma algo mais do que a mera presença de Jesus
Isto não significa que a ascensão possa ser vista como um mito ao lado de Deus Pai. A metáfora “mão” expressa o poder de Deus e sua
irrelevante ou como uma mera construção teológica, dependente do de­ atuação no mundo para salvar seu povo. Foi por esta mão que Javé liber­
senvolvimento do dogma cristológico. De modo semelhante à mensagem tou da escravidão no Egito (Ex 15.6). “Nas tendas dos justos há voz de
da ressurreição, ela anuncia um momento novo cuja realidade não pode júbilo e salvação; a destra do Senhor faz proezas” (SI 118.15). Mas a
ser definitivamente aprovada nem rejeitada pelos argumentos da razão mão de Deus também é estendida para destruir o inimigo e para julgar (Dt
humana, mas exatamente assim quer ser um fato histórico. Neste sentido, 33.41). Na absoluta maioria dos casos em que a Bíblia usa esta metáfora,
“a nuvem” que impede uma busca de conhecimentos extraordinários tam­ porém, a mão de Deus expressa sua presença para proteger, abençoar e
bém não serve para ser um refúgio do pensamento racional. Não é ela, salvar. Aparentemente, este é sempre o caso quando se fala da destra de
mas Jesus Cristo, o Ressuscitado, o centro e o conteúdo da ascensão. Deus (SI 17.7; 63.8; 74.11; 89.13). Lutero costumava acentuar que a
relação com a mão sempre é expressa com a preposição “em”: na mão

128 129
de Deus há salvação e vida. É nesta tradição que os cristãos confessam São os “ídolos” do nosso tempo: o poder do dinheiro, a paixão pelo
que Jesus está sentado à destra de Deus Pai, pois nesta posição ele “in­ consumo irresponsável, o abuso sexual da outra pessoa.
tercede por nós” (Rm 8.34) e garante que nenhum poder alheio possa Baseado nas expressões do apóstolo Paulo (Rm 7.4; 10.4; G13.13;
“separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor” Cl 2.14), Lutero inclui a “lei” neste mesmo grupo de adversários, pois a lei
(8.39). nos aterroriza e condena. Hoje esta “lei” pode aparecer num moralismo
Entronização não significa que Jesus seja adotado como Filho de que desqualifica a outra pessoa por não ser suficientemente piedosa, ou
Deus somente a partir deste momento. Especialmente no quarto evange­ num sistema religioso onde só os “espiritualistas” alcançam salvação.
lho é afirmada claramente a confissão de que Jesus veio do Pai que o Mas esta “luta maravilhosa” (mirabile duellum) já está vencida,
enviara ao mundo (Jo 8.42; 13.3; 16.28; 17.8). A ascensão não implica “graças a Deus que nos dá a vitória por intermédio de nosso Senhor Jesus
algo novo na relação do Filho com o Pai; já no princípio ele estava com Cristo” (1 Co 15.57). Isto não significa que estes poderes já aceitem o
Deus (1.2) numa unidade perfeita (17.21). A novidade refere-se à rela­ senhorio de Jesus Cristo. Em sua resistência contra o Reino, continuam a
ção com o mundo, pois Jesus venceu “pecado, morte e diabo”, como diz causar tormento e dor. Só a fé vê o Reino já firmemente estabelecido e
a tradição cristã; por isso, é proclamado Senhor. Também é proclamado garantido pelo poder daquele que está à destra de Deus. Por isso, os
Messias, aquele que completou sua missão libertadora e salvífica no mun­ cristãos são admoestados a se revestirem do poder do Senhor (Ef 6.10-
do, sendo desta maneira para sempre verdadeiro homem. Continua car­ 12); neste poder “somos mais que vencedores, por meio daquele que nos
regando os sinais dos cravos da cruz nas mãos, e nelas todos os crucifica­ amou” (Rm 8.37).
dos em todos os tempos e todos os sentidos (1 Co 2.2; Ap 5.6-14). Por isso, quando Lutero explica o Segundo Artigo do Credo Apos­
tólico no Catecismo Maior, resume todo o seu conteúdo nas palavras: “Creio
3. O Rei dos reis e Senhor dos senhores que Jesus Cristo, verdadeiro Filho de Deus, se tomou meu Senhor!”. A
expressão “tomar-se Senhor” é explicada por ele da seguinte maneira: “Sig­
O poder do Jesus exaltado também se caracteriza em relação aos
nifica que me redimiu do pecado, do diabo, da morte e de toda desgraça.
poderes deste mundo, sejam eles visíveis ou invisíveis. Já na cruz garante-
Pois antes não tinha senhor nem rei, senão que estava cativo sob o poder do
se a vitória de Cristo, pois fracassa a tentativa dos “principados” e “po­
diabo, condenado à morte, enredado empeçado e cegueira”.
testades” de derrotar o enviado de Deus (Cl 2.15; Jo 12.23). Neste sen­
tido, a própria vinda de Cristo pode ser resumida assim: “para destruir as
obras do diabo” (1 Jo 3.8). 4. Presente entre nós
Faz parte da leitura do SI 110 que Deus sujeitou todas as coisas Uma das disputas mais ardentes entre os reformadores do século
“debaixo dos seus pés” (1 Co 15.25), da mesma maneira que um rei XVI foi acerca da compreensão da Santa Ceia e, principalmente, sobre a
vitorioso sujeita a seu poder os povos derrotados e todos os seus perten­ presença real de Cristo no pão e no vinho. Num dramático encontro entre
ces. Neste sentido, a ascensão é um ato triunfante que instala o Cristo o suíço Zwínglio e Lutero na cidade de Marburgo, em 1529, o primeiro
cósmico (Cl 1.16-17), o Rei dos reis e o Senhor dos senhores (1 Tm afirmou que esta presença só pode ser simbólica, pois a fé confessa que o
6.15). Senhor está no céu e não pode, ao mesmo tempo, estar na terra onde os
Os inimigos neste drama cosmológico não aparecem num palco cristãos se reúnem. Lutero não podia concordar com esta interpretação;
longe da realidade humana; sua ferocidade é experimentada no mundo e, segundo ele, as palavras “este é o meu corpo” prometem a presença real e
principalmente, na vida das pessoas. A Igreja Antiga costumava chamá- concreta de Cristo entre nós. Foi este conflito que causou a separação entre
los “pecado, morte e diabo”. Em nosso contexto latino-americano, estes os chamados “reformados” e os “luteranos”. Mais tarde, Calvino tentou
poderes se manifestam nas estruturas injustas, nos mecanismos de exclu­ conciliar as duas posições, ensinando que, no momento da celebração, a
são e na lógica da morte que justifica a miséria da maioria da população. comunidade é elevada ao céu e, desta maneira, à presença do Senhor.

130 131
Por que Lutero deu tanta importância à afirmação da presença real 5. Atualização para o nosso contexto
de Cristo na Santa Ceia? Em primeiro lugar, para não perder de vista a
Tem sentido a igreja cristã ainda hoje confessar que Jesus “subiu ao
mensagem da encarnação: é o mesmo Jesus Cristo que assumiu a forma
céu...”? Não exige nossa realidade outras formulações e preocupações?
de servo e entregou-se à morte para a nossa salvação que vem ao nosso
encontro sob a forma humilde de pão e vinho. Negar a presença de Cristo Resumindo o que foi tratado acima, podemos pelo menos identifi­
na Ceia é negar sua presença humilde neste mundo. Por outro lado, a car três pontos claramente relevantes para a realidade em que vivemos
presença real implica uma presença incondicionada; não é um resultado como cristãos hoje:
da nossa fé, como ensinaram os entusiastas, nem função do poder eclesi­ a. Jesus Cristo é Senhor sobre todos os ídolos e forças do mal.
ástico, como diz a tradição católica. Para Lutero, o fundamental é que a Nas situações em que violência, injustiça e apatia sociopolítica parecem
Ceia seja do Senhor; nós somos simplesmente convidados a comungar e reinar, a fé cristã anuncia o reino do Senhor. Este reino continua em vigor,
a acolher com fé aquilo que o sacramento opera. seu Senhor é vitorioso, mesmo se hoje sentimos mais o peso da cruz.
Como explicar que Cristo está ao mesmo tempo “no céu” e no b. Jesus Cristo é Senhor para libertar e salvar. A igreja anuncia o
mundo onde os cristãos se congregam? Lutero tentou elaborar um ensi­
senhorio dele como boa nova, o Senhor diferente dos senhores deste
namento sobre a “ubiqüidade” de Cristo, partindo da idéia de que o cor­ mundo, pois ele não vem para dominar e acumular, mas para convidar ao
po de Jesus é transformado depois da ressurreição. Como exaltado, ele convívio e à comunhão, para a grande festa da vida.
compartilha a onipresença de Deus. Mesmo assim, a “ubiqüidade” de
Cristo é a presença daquele que se encarnou e foi crucificado no mundo. c. Jesus Cristo é nosso Senhor. Já o conhecemos, assim como tam­
Não se trata de um outro Cristo, diferente daquele que o evangelho anun­ bém somos conhecidos por ele. Nele vivemos, nele somos capacitados
cia. para uma vida nova de fé, esperança e amor.
Todo este problema e a idéia da “ubiqüidade” partem de uma me­
tafísica medieval que distingue claramente entre o “céu” lá em cima e o Literatura para aprofundar e discernir
“mundo” aqui embaixo. É evidente que ainda hoje há pessoas e sistemas
AULÉN, Gustaf. A fé cristã. São Paulo: ASTE, 1965. p. 196-200.
religiosos que imaginam uma escala vertical, na qual Deus se encontra no
CONFISSÃO DA FÉ APOSTÓLICA, A. Documento de Estudo da Co­
degrau mais alto. A fé cristã questiona profundamente esta cosmovisão,
missão de Fé e Ordem do Conselho Mundial de Igrejas. São Paulo: IEPG,
por ter como ceme a convicção de que Deus atua em nosso meio, na CONIC, 1993. p. 83-92.
história e nos eventos diários e, principalmente, na periferia, onde estão DREHER, Martin N. O Segundo Artigo - Terceira parte. In: Proclamar
os excluídos e humildes. libertação: auxílios homiléticos: Suplemento 1: Catecismo Menor de
A fé confessa que esta presença de Deus no mundo é escondida. Martim Lutero. São Leopoldo: Sinodal, 1987. p. 107-114.
Só em Jesus Cristo ela se toma visível. Hoje a palavra e os sacramentos DUQUOC, Christian. Cristologia: ensaio dogmático: II: O Messias. São
testemunham sua presença e seu senhorio em nossa realidade, mas numa Paulo: Loyola, 1980. p. 205-215.
forma humilde, como solidariedade com pequenos e pobres, numa mis­ LOHFINK, Gerhard. A ascensão de Jesus: invenção ou experiências?
são de servir e testemunhar as promessas de sua salvação. Desta manei­ São Paulo: Paulinas, 1977.
ra, a presença dele não se limita ao espaço da igreja; ele se identifica com
quem tem fome ou sede, é forasteiro, está nu, enfermo ou preso (Mt
25.31-46). Mas faz isto sem ser reconhecido como Cristo e Senhor: quem
vê, só enxerga a cruz, a qual, porém, para a fé, é sinal de salvação, liber­
tação e vida nova.

132 133
to difícil, mais ainda numa época em que as grandes utopias parecem ter
sofrido derrotas derradeiras e em que um novo tipo de naturalismo limita
o ser humano ao imediato e às leis de mercado. Aqui, a realização de um
De onde virá para julgar futuro é determinada pelo consumo daquilo que o mercado oferece. Nes­
te contexto, não só é complicado falar do juízo final, mas até de justiça e
os vivos e os mortos julgamento. Igualmente, não só é excluída a possibilidade da vinda em
glória do Senhor Jesus, mas inclusive da afirmação do seu senhorio.
Estas últimas colocações deixam claro que o que está em jogo quan­
do se anuncia a vinda de Jesus para o juízo final não são, em primeiro
Kjell Nordstokke lugar, algumas asserções apocalípticas e a disposição do pensar cristão
de aceitar idéias antigas sobre o curso histórico do mundo. Muito mais
está em jogo a mensagem da fé cristã de que Jesus é o Cristo, que veio ao
1. As dificuldades da linguagem apocalíptica mundo como Salvador e Libertador e que foi exaltado pelo Pai e recebeu
Principalmente depois do iluminismo, ficou difícil falar em termos toda autoridade “no céu e na terra” (Mt 28.18).
apocalípticos sobre o futuro. A linguagem do Novo Testamento, que anun­ É bom lembrar que, diante desta afirmação fundamental, todas as
cia um fim da era presente através de tribulações cósmicas nas quais “as demais, inclusive as fórmulas simbólicas que usam uma linguagem apoca­
estrelas cairão do firmamento” (Mc 13.25), está longe do ser humano líptica, são secundárias e relativas. Isto não significa que elas simplesmen­
modemo. Igualmente é muito complicado se imaginar vendo “o Filho do te possam ser abolidas ou substituídas. Qual seria uma linguagem alterna­
homem vir nas nuvens com grande poder e glória” (Mc 13.26). Omesmo tiva que pudesse transmitir, com a mesma força, a esperança enigmática
vale para um julgamento “dos vivos e dos mortos”. Se já a idéia da res­ de que “Jesus Cristo ontem e hoje é o mesmo, e o será para sempre” (Hb
surreição é complicadíssima para a razão, quanto mais o cenário que da­ 13.8), e que em seu nome “se dobre todo joelho, nos céus, na terra e
ria espaço para as bilhões de pessoas que nasceram e morreram ao longo debaixo da terra” (Fp 1.10)?
da história do nosso planeta. E ainda: como imaginar um julgamento justo
para cada uma destas pessoas? 2. O testemunho bíblico
A primeira parte desta dificuldade já não é mais tão complicada em
nossos tempos. A bomba atômica e a crise ecológica já colocaram um fim O Novo Testamento é unânime em anunciar a vinda gloriosa de
brutal à inocência da modernidade e ao sonho da humanidade de estar Cristo no fim dos tempos. O próprio Jesus pregou um fim cheio de even­
num caminho cada vez mais desenvolvido e seguro. A tecnologia moder­ tos dramáticos que culmina com a vinda do Filho do homem. Também
na não precisa mais de um Deus para ver a possibilidade de uma catástro­ alertou os seus discípulos de que o fim está próximo: “Em verdade vos
fe global. A própria humanidade tem plenas condições para cometer um digo que não passará esta geração sem que tudo isto aconteça” (Mt 24.34).
suicídio coletivo e destruir, junto consigo, a maior parte da vida neste Não é possível, a partir dos textos neotestamentários, saber como
planeta. Jesus entendeu sua pessoa em relação à vinda do Filho do homem. Que
Os estudiosos do universo confirmam esta perspectiva pessimista. há uma relação é evidente: a preferência que Jesus deu a este título e o
A maioria deles afirma que a terra um dia vai explodir e desaparecer num autotestemunho perante o sumo sacerdote na hora de seu julgamento dão
nada, assim como milhões de anos atrás ela apareceu de repente por claras indicações acerca disso: “Eu sou (o Cristo), e vereis o Filho do
meio de um misterioso big bang. homem assentado à direita do Todo-Poderoso e vindo com as nuvens do
céu” (Mc 14.62).
A segunda parte da visão apocalíptica, porém, continua sendo mui­

134 135
Na comunidade primitiva, que foi obrigada a refletir sobre a distân­ 3 .0 juízo
cia entre o “já” e o “ainda não” da realização das promessas messiânicas,
Já no Antigo Testamento, a vinda do Senhor implica juízo. Por um
desenvolveu-se o pensamento de que o tempo atual é o tempo da igreja,
um tempo para anunciar o nome de Jesus a toda a humanidade, e só lado, isto se relaciona à compreensão de Deus, o Justo. Por outro lado,
refere-se à situação do ser humano, o qual Deus julga para fazer “justiça
quando esta missão for cumprida o Senhor voltará (Mt 24.14; At 1.8; 1
aos oprimidos” (SI 146.7). Sem juízo, Deus não é Deus, tampouco há
Co 11.26; Tt 2.11-14). Assim se pode explicar que é por causa da longa­
nimidade do Senhor que ele ainda não cumpriu sua promessa de vir, mas libertação da miséria humana e salvação da culpa perante Deus. Afirma-
se sempre que Deus julga “com eqüidade” (SI 96.13; Is 11.4), mesmo em
isto não abala a esperança de “novos céus e nova terra, nos quais habita
justiça” (2 Pe 3.1-13). sua soberania que lhe dá o direito de ser o juiz universal para “julgar os
povos” (SI 96.10). Mesmo nos momentos em que o julgamento pode
A palavra gregaparousia, que o Novo Testamento usa para desig­
parecer vingança e ter conseqüências fatais para quem é julgado, o texto
nar a “vinda” do Senhor, também significa “presença”. Assim, afirma-se
bíblico nunca questiona a justiça de Deus, mas afirma que ela está intima­
que há continuidade entre aquele que veio, que agora está e ainda é para
mente relacionada à intervenção divina para salvar o que ele criou. Neste
vir, “o Alfa e o Ômega” (Ap 1.8). Agora a presença do Senhor é oculta,
sentido há, no próprio momento do juízo, uma promessa de renovação e
só vista pela fé. Seu poder ainda é velado e também ativamente combati­
futuro: “Eis que faço novas todas as coisas!” (Ap 21.5).
do pelas forças do mal; então, será um reino de glória, pois “toda língua
A confissão de que Jesus Cristo “virá para julgar os vivos e os
confessará que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai” (Fp 1.11).
mortos” expressa a fé no Exaltado que está sentado à direita de Deus Pai.
Há acentuações diferentes no Novo Testamento, referentes à con­
Igual ao Pai, ele é justo; igualmente sua vinda é para julgar toda injustiça e
tinuidade entre o “já” e o “ainda não”. No Evangelho de João é realçada
redimir seu povo de todo mal.
a dimensão presencial: “Quem ouve a minha palavra e crê naquele que me
É essa presença divina que faz com que o juízo seja final. Onde
enviou, tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para
a vida” (Jo 5.24). Em outros escritos, pondera-se que ainda vivemos numa Deus julga, não é imaginável outra instância para uma revisão posterior.
realidade que deve passar por profundas transformações para que possa Mas o juízo também é final no sentido de que toda a humanidade está
ser realizado o que a fé espera (1 Co 15.50-58; Tg 5.7-8). incluída; a confissão afirma isto dizendo “os vivos e os mortos”. Deste
julgamento não escapa o mais poderoso, tampouco o mais insignificante;
Em todas estas colocações, porém, manifesta-se uma compreen­
todos serão vistos e ouvidos. A ressurreição dos mortos faz parte do
são de Deus como aquele que vem. Assim sempre foram lidas as pro­
pressuposto desta confissão, não como uma continuidade misteriosa da
messas do Antigo Testamento, e da mesma forma expressa-se a esperan­
vida terrena, mas, em primeiro lugar, como responsabilidade e presença
ça cristã. Mesmo quando é usada uma linguagem apocalíptica para des­
viva perante Deus no juízo final.
crever os eventos dramáticos no fim dos tempos, como é o caso do últi­
mo livro da Bíblia, nunca se perde de vista que nisto se revela a vinda Mais uma vez é mister realçar que só por meio de uma linguagem
simbólica podemos imaginar o como deste julgamento. Os nossos con­
gloriosa do Senhor. Por isso, os sinais nunca convidam para cálculos cro­
ceitos de tempo e espaço não permitem um pensar racional a respeito
nológicos. Os eventos apocalípticos não podem ser vistos em si; fora da
dele. Só enquanto discurso teológico, isto é, enquanto falar sobre Deus, é
perspectiva do juízo do Senhor, são ignorados, e o fim é comparado à
possível falar deste juízo final. Sem esta referência, logo se toma um dis­
vinda inesperada de um ladrão. Somente na perspectiva da parousia, os
sinais anunciam a vinda do Senhor, pois revelam sua presença neste mun­ curso esotérico e especulativo.
do, mesmo no auge de tribulações, e anunciam a plena realização de sua Igualmente é muito complicado refletir sobre o desfecho do juízo.
presença. Desde a época da Igreja Antiga, a reflexão teológica tem lutado com
diversas possibilidades. Dificulta esta reflexão o mero fato de que há di­
versas indicações no material bíblico. Há, por exemplo, textos em que

136 137
Jesus fala claramente de dois destinos dos julgados, por um lado “o reino” (Artigo XVII). Para muitos cristãos hoje é muito difícil seguir este ensina­
ou “a vida eterna”, por outro lado “o fogo etemo, preparado para o diabo mento tão firmemente formulado e, mais ainda, a atitude que ele parece
e seus anjos” (Mt 25.31-46). Mas há também textos, principalmente em expressar. Será que não há outras saídas do que conclusões tão absolu­
Paulo, que indicam a possibilidade da salvação universal, como, por exem­ tas?
plo, a expressão de que “todos serão vivificados em Cristo” e “Deus será Quando Lutero refletiu sobre este problema, asseverou que não
tudo em todos” (1 Co 15.22 e 28). cabe ao seres humanos questionar o juízo de Deus. Mas realçou que
É impossível conciliar, duma maneira simples e harmoniosa, estes e Deus é liberdade também no juízo, e que a fé confia na vontade salvífica
outros textos no Novo Testamento que falam de formas diferentes sobre de Deus revelada em Jesus Cristo. Vale a pena também registrar a posi­
o depois do juízo. Por isso, é importante ver o assunto não somente a ção de Karl Barth, talvez o maior teólogo do século XX. Ele concluiu que
partir de certos textos bíblicos, mas num conjunto mais amplo de reflexão não se pode ensinar a salvação universal, mas também não se pode ensi­
teológica. nar a não-salvação universal.
Neste conjunto, principalmente duas perguntas são de vital impor­
tância. A primeira se relaciona à injustiça humana e toda crueldade come­ 4. A esperança cristã
tida contra vítimas sem defesa. Podemos, sem maiores problemas, isentar
A esperança cristã baseia-se na convicção de que Cristo está pre­
torturadores e outros criminosos de sua responsabilidade perante Deus e
sente no juízo final. É nesta perspectiva que devem ser vistas as idéias sobre
simplesmente dizer que todos serão salvos? Isto levaria a um dilema ético
o destino dos julgados. Tanto a compreensão do duplo desfecho da história
insustentável, em primeiro lugar, perante as vítimas das atrocidades. É
com a possibilidade de condenação ou aniquilação etema dos “ímpios” quanto
difícil ignorar a voz forte na Escritura de que o pecado leva a conseqüências
a convicção de uma reconciliação universal devem ter como ponto de
severas para todas as relações, principalmente em relação a Deus. “De
referência a mensagem de que Jesus Cristo é Senhor e Salvador. Ele re­
Deus não se zomba; pois aquilo que o homem semear, isso também ceifa­
vela o critério último pelo qual o mundo será julgado (Braaten).
rá” (G16.7).
Esta esperança é doxológica por natureza, isto é, ela parte do lou­
A outra pergunta está vinculada à imagem de Deus como bondoso
vor a Deus por sua obra em Jesus Cristo. Nele se revela a plenitude da
e à vitória de Cristo sobre o pecado, a morte e todo o poder do mal.
existência humana, aqui já experimentada pela graça imerecida de Deus e
Como conciliar esta imagem com um juízo que leva a castigo ou aniquila­
ainda prometida no fim dos tempos como realização plena.
ção? Não seria a vitória de Cristo parcial se somente são salvos os que
confessam seu nome? Nem todos tiveram a oportunidade de confessar a O louvor expressa o temer e amar a Deus. Prostra-se perante sua
fé cristã, e como compreenderemos a imerecida graça de Deus se so­ majestade, mas sente-se também acolhido “à sombra de tuas asas” (SI
mente o que crê é premiado com vida etema? 36.7). Espera que a aliança que Deus estabeleceu com seu povo tenha
sido feita para não ter fim, e que Deus eternamente seja fiel à reconcilia­
A partir desta segunda pergunta, alguns teólogos ensinam o univer­
ção que ele mesmo operou (2 Co 5.18-21). Espera também que ainda
salismo, eventualmente como um processo de purificação ou reconcilia­
reste algo a ser realizado nesta relação com Deus; por isso, reza com
ção universal. A igreja oficial, porém, sempre resistiu a este ensinamento,
ansiedade: Maranata! Vem, nosso Senhor!
já formulado sob o nome de “apocatástase” por Orígenes, no século III.
O concílio de Constantinopla, em 353, formulou a seguinte condenação:
“Se alguém disser ou pensar que a punição dos demônios e dos homens 5. Atualização para o nosso contexto
ímpios é apenas temporária e um dia cessará [...] seja anátema”. Da mes­
1 .0 mundo não permanecerá para sempre como o experimenta­
ma forma, também a Confissão de Augsburgo ensina que “os homens
mos hoje: invadido pelas forças do mal. Tudo o que causa sofrimento e
ímpios e os demônios” serão condenados “ao inferno e castigo etemo”
opressão terá seu fim. Assim, todos os mecanismos de exclusão e toda

138 139
lógica da morte que se conforma com a injustiça serão julgados. Por ou­
tro lado, tudo o que experimentamos como bom, belo e justo terá conti­
nuidade e jamais será extinto. Em ambos os sentidos, a esperança cristã
conta com o advento definitivo de Deus para renovar de maneira plena a TERCEIRO ARTIGO
sua criação.
2. A fé em Jesus Cristo vê o juízo de Deus presente na vida atual. É
antecipado o julgamento quando pessoas já agora são libertadas da pri­
são da injustiça e culpa e transformadas em filhas e filhos de Deus. Já aqui
Creio no Espírito Santo
podemos experimentar as qualidades do Reino onde o último é o primei­
ro, e o primeiro o servo de todos (Mc 10.44). São experiências feitas
tanto na comunidade da fé quanto na sociedade civil, onde sinais de inclu­
Wanda Deifelt
são testemunham o que a fé ainda pode esperar. Em tudo isto, a fé vê o
senhorio de Jesus Cristo, e é Ele que um dia vai manifestar sua presença
(parousia) de maneira derradeira.
A primeira associação que nós, na igreja cristã, fazemos quando se
3. Nosso pensamento sobre “as últimas coisas” também hoje deve fala de Espírito Santo é lembrar o evento de Pentecostes (descrito em At
resistir às tentativas de substituir o enigma por especulações metafísicas. 2.1-13). O Espírito Santo é identificado com línguas de fogo que pousam
Tampouco devemos trocar o enigma por um racionalismo que permita sobre as mulheres e os homens reunidos, possibilitando que falem em
resignação onde o saber intelectual não consegue mais caminhar. “As úl­ outras línguas de modo que todos os povos compreendam as grandezas
timas coisas” pertencem somente aDeus, não aos grandes mestres religio­ de Deus em seu próprio idioma. Sem dúvida é um evento importante,
sos nem aos poderosos e governantes deste mundo. porque significa o início da igreja. No entanto, o Espírito Santo é muito
4 .0 Deus revelado por Jesus é o Deus da vida que quer vida. Esta mais do que uma aparição extraordinária em Pentecostes, reduzido a um
vontade se manifesta num chamamento à fé e ao serviço da vida. Diante momento histórico específico. Está presente já desde antes da criação do
do enigma do juízo final, devemos - como diz Lutero - “temer e amar a mundo, quando o Espírito de Deus pairava sobre as águas (Gn 1.2), e
Deus”, pois só ele pode ser o Senhor da vida, também da vida que ainda continua presente hoje, quando o invocamos em nossas celebrações e no
esperamos. Neste sentido, esperar somente em Deus não é nada mais do nosso cotidiano.
que diz o primeiro mandamento: Não terás outros deuses além de mim! Naturalmente, a discussão sobre o Espírito suscita polêmicas. Há
quem acredite que “ter o Espírito” requeira também falar em línguas ou
seguir padrões de comportamento não usuais. Entre alguns gntpos religio­
Literatura para aprofundar e discernir sos, por exemplo, receber manifestações espirituais é ter experiências de
BOFF, Leonardo. Vida para além da morte: o futuro, a festa e a contesta­ êxtase, estabelecer comunicação com antepassados ou ter contatos me-
ção do presente. Petrópolis: Vozes, 1973. diúnicos. Para nós, é fundamental estabelecer uma distinção entre o Espí­
BRUNNER, Emil. La esperanza dei hombre. Bilbao: Desclée de Brou- rito Santo e os demais espíritos. Neste sentido, os textos bíblicos e a
wer, 1973. tradição da Igreja nos ajudam a entender melhor os atributos do Espírito
Mysterium Salutis: v. V/3: A escatologia. Petrópolis: Vozes, 1985. Santo, que é objeto de discussão no Credo Apostólico, para entender­
BRAATEN, Cari E.; JENSON, Robert W. (Eds.). Dogmática cristã. São mos melhor as suas manifestações ainda hoje.
Leopoldo: Sinodal, 1990. v. 2, p. 538-551.

140 141
1. O testemunho bíblico derramada sobre homens e mulheres, jovens e pessoas idosas, sobre es­
cravos e escravas, sem qualquer distinção. Ela tem, portanto, o poder de
No Antigo Testamento, quando se fala de Espírito, usa-se a pala­ transformar também as relações sociais.
vra feminina ruach. Ela aparece 389 vezes. Em 113 casos, a palavra
Em muitas passagens, a ruach é identificada com o símbolo femini­
significa ar em movimento, vento, brisa, denotando a sua dinamicidade.
no da ave que, sob suas asas, oferece aconchego e proteção aos seus
Em 136 passagens, ela se refere ao espírito de Deus propriamente dito,
filhotes. Esta imagem feminina é encontrada nos salmos (SI 17.8; 36.7;
como parte integrante da divindade. Em 116 textos, ruach aparece como
57.1; 61.4; 91.4), onde as asas são sinônimo de guarida e abrigo. São
espírito humano. Somente dez vezes se refere a animais, e três vezes a
ídolos. No primeiro caso, como vento que sopra, ruach é sempre sinôni­ asas que protegem, salvam, poupam e livram (Is 31.5). Especialmente nos
momentos de aflição é evocada a imagem da águia que transporta os escra­
mo de movimento e dinamicidade. A ruach sopra as águas (Gn 1.2), traz
mudanças (Êx 10.13), faz as árvores estremecerem diante dela (Is 7.2). vos em suas enormes asas rumo à liberdade (Êx 19.4; Dt 32.11-12).
Ruach “designa um fenômeno poderoso, que está no poder e à disposi­ No Novo Testamento, a palavra que designa espírito é pneuma
ção de Javé.”1 (um termo neutro) e, como no Antigo Testamento, tem conotação de ar
em movimento, como expressão de energia e vida. Pode designar tam­
No caso do espírito humano, a ruach é o vínculo entre a divindade
bém a autoconsciência, o “eu” humano (1 Co 2.11,16.18, 2 Co 2.13)
e a humanidade, estabelecido desde a criação do primeiro ser humano
quando se refere ao pneuma humano. Mas a concepção central é, sem
quando Deus lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e Adam (o ser
dúvida, a compreensão de pneuma como a revelação do poder de Deus,
humano) passou a ser um ser vivente (Gn 2.7). A ruach é, portanto, a
que vem aos seres humanos como presente divino; Este espírito apresen­
respiração, o sopro de vida, a força vital (Gn 7.22; Is 42.5; 57.16; Jó
ta algo que está fora da esfera humana, que não está disponível, mas que
34.14). Esta força de vida é dada por Deus, que molda a ruach no ser
é oferecido por Deus como dádiva. Este pneuma divino não existe em si
humano (Zc 12.1) e toma a vida possível (SI 146.4). Toda vez que apare­
ou para si próprio, em isolamento. Pelo contrário, é atuante, manifestan­
ce, ruach é sinônimo de vida, de criação (SI 104.29). Em Ez 37.6-14,
do-se dentro da existência humana (Jo 4.24). O pneuma divino dá teste­
somente depois de Javé dar a ruach às ossadas revestidas é que os cor­
munho de que somos filhas e filhos de Deus (Rm 8.16), tomando o ser
pos se tomam vivos. A força vital, o espírito de vida, a ruach que movi­
menta o ser humano é sempre um presente de Deus. Por isso, em muitas humano ciente e deixando-se guiar (Rm 8.26; G15.18).
passagens a ruach humana não aparece desvinculada da ruach divina (Jó Esta atuação do pneuma divino se deu em Jesus Cristo. O teste­
34.14s.;Sl 104.29s.). munho bíblico atesta que Jesus foi concebido e nasceu de Maria por obra
do Espírito Santo (Lc 1.35), que o Espírito Santo esteve presente por
A ruach de Javé, no entanto, é mais do que vento vivificador que
ocasião do batismo de Jesus (Mt 3.16; Mc 1.10; At 10.38), confirmando
se toma sopro de vida no ser humano. Tem a mesma conotação ativa de
sua vocação e seu ministério (Mt 12.28; Lc 4.14; Jo 1.32s.). No entanto,
“palavra” (SI 33.6), pois tanto ruach (espírito) como dabar (palavra)
é no evento de Pentecostes (At 2.1-21) que o Espírito Santo assume seu
saem da boca de Deus. E força vital criadora, que domina as forças da
poder maior, tomando-se fonte de vida para a Igreja, agregando, desper­
natureza (Êx 15.8), determina a duração da vida (Gn 6.3), transforma o
tando a fé e concedendo dons e carismas que garantem a vida da comu­
ser humano (1 Sm 10.6) e confere dons, como o da profecia (Nm 24.2).
nidade cristã (1 Co 12.4-13;14.1). Apesar da diversidade de carismas, é
Javé também pode dispor de sua ruach, fazendo-a cair sobre o ser hu­
o Espírito Santo que mantém a unidade, pois é o único e o mesmo pneu­
mano, o que lhe dá um talento e um poder extraordinários (Is 42.1). A
ma que os concede (1 Co 12.11).
ruach se traduz em sabedoria, inteligência, conselho, fortaleza, conheci­
mento e temor a Deus (Is 11.2). Joel 3.1s. anuncia que a ruach será Em resumo, quando a Bíblia fala da atividade criadora de Deus, ela
faz uso do termo ruach ou pneuma para indicar Espírito de Deus. Origi­
nalmente associado à brisa e ao vento, indica o movimento dinâmico de
1 Hans Walter WOLFF, Antropologia do Antigo Testamento, p. 52.

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Deus que não pode ser dominado, confinado ou restrito. Representa o as igrejas cristãs do Ocidente, influenciadas por Agostinho e Atanásio,
sopro de vida, dom de Deus, que estabelece o vínculo entre a humanida­ defendiam que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho (para enfatizar
de e a divindade. O Espírito sopra onde quer e quando quer, independen­ a igualdade entre as três pessoas). Este “e” se constituiu, já em 867, em
temente das normas ou vontades humanas. Designa o poder de Deus em um motivo de cisma entre as igrejas do Oriente e do Ocidente, entre a
ação. No cristianismo, o Espírito é também identificado com o Paracleto, igreja romana e a grega. Mas somente no II Concílio de Lyon, em 1274,
que consola, ensina, protege e permanece junto aos discípulos e às discí­ posteriormente ratificado no Concílio dé Florença, em 1438, é que a pro­
pulas após a ausência de Jesus. cedência do Espírito Santo do Pai e do Filho se tomou doutrina oficial.
Todo este pano de fundo histórico serve para mostrar como a dis­
2. As disputas em torno da compreensão cussão em tomo do Espírito Santo levou, antes, ao seu aprisionamento
dogmático do que ao esclarecimento propriamente dito. Ao invés de ser
do Espírito Santo
um elemento agregador, o Espírito Santo foi motivo para muita polêmica.
Considerando a importância do Espírito Santo para a formação da Com a ênfase dada ao Espírito Santo apenas como integrante da Trinda­
igreja cristã, chama a atenção a brevidade com que ele é afirmado no de, a discussão sobre o seu poder dinâmico, criativo e vocacionador as­
Credo Apostólico. Isto se explica, em parte, pela centralidade cristológi- sumiu um caráter secundário. Por um lado, a afirmação dos concílios so­
ca dos credos da igreja antiga e pela necessidade de afirmar a revelação bre a procedência do Espírito Santo do Pai e do Filho lhe tirou a autono­
de Deus em Jesus Cristo. Mas, por detrás desta afirmação tão curta so­ mia como um tema teológico específico. Por outro lado, a pergunta dog­
bre o Espírito Santo, existe uma série de polêmicas. Liderados pelo bispo mática pelo Espírito Santo dentro da Trindade ofuscou a riqueza do teste­
Macedônio de Constantinopla (342-360), os hereges pneumatômacos, munho bíblico sobre o Espírito. O Espírito Santo acabou sendo aprisio­
por exemplo, viam no Espírito Santo somente uma criatura, ou seja, afir­ nado e subordinado ao dogma eclesiástico. Dentro dos primeiros séculos
mavam que o Espírito Santo não podia ser incorporado à Trindade. Foi do cristianismo, na tentativa de definir quem este Espírito Santo é, muitas
através do trabalho de Atanásio, dos Capadócios e de Basílio que o Es­ vezes experimentou-se o contrário do que este Espírito de vida realmente
pírito Santo foi reconhecido como Pessoa Divina. O resultado destas dis­ quer: congregar, renovar, vivificar.
putas foi assumido no Credo Niceno-Constantinopolitano, de 381 (que
expandiu o Credo Niceno de 325): “E cremos no Espírito Santo, senhor, 3. Considerações teológicas
doador da vida, procedente do Pai. O qual com o Pai e o Filho juntamen­
te é adorado e glorificado, o qual falou pelos profetas.” Em seu Catecismo Maior, Lutero afirma que o Espírito Santo san­
tifica. Em outras palavras, toma santo, aproximando do divino aquilo que
No ano seguinte, em 382, um segundo sínodo em Constantinopla
não é. Por nossos próprios meios, não conseguimos chegar a Deus nem
chegou à seguinte declaração sobre a natureza do Espírito Santo: “Con­
compreender suas obras. Precisamos da ajuda do Espírito Santo. “Por­
forme esta fé há uma só divindade, poder e substância do Pai, do Filho e
que nem tu nem eu jamais poderíamos saber algo a respeito de Cristo ou
do Espírito Santo; sendo igual a dignidade e a honra e sendo igualmente
crer nele e conseguir que seja nosso Senhor, se o Espírito não no-lo ofe­
eterna a majestade em três perfeitas hipóstases ou três pessoas perfeitas.”
recesse e o presenteasse ao coração pela pregação do evangelho.”2 O
Estava assim, definitivamente, descartada a noção do Espírito Santo como
modo como a santificação acontece, por intermédio do Espírito Santo, é
mera criatura, e ele passou a ser entendido definitivamente como parte
explicado no próprio Credo Apostólico: através da congregação dos santos
integrante da Trindade. No entanto, esta nova explicação não resolveu os
(igreja), o perdão dos pecados, a ressurreição do corpo e a vida etema.
conflitos. Gerou até mais problemas do que soluções, lançando inclusive
Estas são, por assim dizer, as obras do Espírito Santo.
uma semente de discórdia entre as igrejas cristãs do Oriente e do Ocidente.
As igrejas cristãs do Oriente preferiram acatar a formulação de 2 Martinho LUTERO, Catecismo Maior, in: Livro de Concórdia: as confissões da Igreja
381, onde se afirmava que o Espírito Santo procede do Pai, ao passo que Evangélica Luterana, 2. ed., São Leopoldo: Sinodal, 1981, p. 452.

144 145
O Espírito Santo sopra entre nós, dando-nos entendimento. Como
seres humanos, não conseguiríamos perceber a beleza da criação ou mesmo
reconhecer a importância da vida, morte e ressurreição de Cristo se não
fosse por intermédio do Espírito Santo. Tudo isto nos seria desconhecido, Na santa igreja cristã,
inacessível ou incompreensível. No entanto, para que pudéssemos valori­
zar o que nos cerca, dar graças pelas nossas vidas, colocar-nos na de­ a comunhão dos santos
pendência de Deus e reconhecer seu poder divino, Deus enviou e conti­
nua enviando o seu Espírito. O Espírito divino chega a nós pela proclama­
ção da Palavra e nos santifica, conduzindo-nos a Jesus Cristo.
A palavra hebraica para Espírito é ruach, uma palavra do gênero
Gottfried Brakemeier
feminino. Ela é brisa, corrente de ar, força e vida. O termo utilizado no
Novo Testamento é pneuma, uma palavra do gênero gramatical neutro
com um significado muito próximo ao do termo hebraico. Já o latim em­ 1. Introdução
prega o termo spiritus, do gênero gramatical masculino, de onde também “Pois, graças a Deus, uma criança de sete anos sabe o que é a
vem a palavra que nós empregamos em português para designar esta ca­ igreja, a saber, os santos crentes e ‘os cordeirinhos que ouvem a voz de
pacidade criadora e dinâmica de Deus, o Paracleto, bem como o chama­ seu pastor’.” Assim dizia Lutero há 450 anos. Hoje já não temos tanta
mento que os povos em toda a terra tem recebido para o seguimento e a certeza. Quando se fala em igreja, as pessoas pensam numa construção
pregação do Reino de Deus. Ao perceber que o Espírito podia ser iden­ com torre e sinos ou numa organização liderada por bispos ou pastores,
tificado de diferentes maneiras, Jerônimo, um tradutor bíblico e teólogo pensam nas inúmeras entidades religiosas espalhadas pelo País em acirra­
da igreja antiga, “imaginou que as mesmas indicavam que Deus transcen­ da disputa de clientela. Para muitos contemporâneos, a igreja se tomou
de a todas as categorias de sexualidade e que é realmente Espírito.”3 um fenômeno suspeito. Ela destoa pelo discurso, considerado antiquado.
O Espírito Santo tem esta conotação ativa, que nos impulsiona e Acumulou pecados em sua história, fazendo-se, não raro, cúmplice do
convida ao seguimento. Fogo, vento, luz e água são alguns termos de crime. Ademais, existem igrejas exploradoras, fazendo negócio com a fé
comparação e aproximação para entendermos a força criativa e criadora e os anseios do povo. Descobriram um lucrativo mercado. Que significa
de Deus neste mundo. Este dinamismo de Deus, esta força livre e criativa, comunhão dos santos nessas condições?
anda solta e se recusa a ser confinada. Para compreendê-la, fazemos uso Por outro lado, a igreja é merecedora também de respeito. Solida­
de uma linguagem metafórica. Assim como o ar não pode ser visto, tam­ riedade com os injustiçados, oposição aos males da época, compromisso
bém o Espírito Santo só pode ser experimentado e sentido. Mas para com a ética e a verdade, onde se deve encontrar isto, senão na igreja de
identificar esta força, até mesmo nossa linguagem é limitada. A experiên­ Jesus Cristo? No período das ditaduras na América Latina, muitos cris­
cia dos primeiros séculos da igreja cristã mostra quão catastrófica pode tãos sofreram perseguição e pagaram a fidelidade a Deus com sofrimen­
ser a tentativa de reduzir o poder do Espírito Santo a uma única formula­ to, renúncia e até com a vida. A igreja foi e é defensora da justiça. Não se
ção. Talvez seja por isso que o Credo Apostólico é tão lacônico em sua dobrou diante do arbítrio. Manteve acesa a chama da fé, da esperança e
formulação. Diz apenas “Creio no Espírito Santo”, deixando ao encargo do amor. Sem esta igreja, corajosa e cumpridora de seu mandato, a situ­
da igreja e sua membresia traduzir o significado deste Espírito Santo, em ação de nosso continente seria incomparavelmente pior.
cada época e em cada lugar.
Ainda assim, o quadro permanece confuso. Assusta o número de
cristãos indiferentes. H á concorrência entre as igrejas, bem como entre
3 Elizabeth A. JOHNSON, Aquela que é: o mistério de Deus no trabalho teológico feminino, estas e movimentos religiosos alegadamente mais “modernos”. E todos se
Petrópolis, Vozes, 1995, p. 129.
dizem de posse da verdade. O Credo Apostólico afirma: “Creio... na santa

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igreja cristã...”. Que igreja é essa? Um clube místico, uma empresa religio­ 3. Como se manifesta a Igreja?
sa, uma organização não governamental, uma associação de bairro? Ou? Somente Deus sabe quem realmente crê. O ser humano é incapaz
de identificar, sem margem de erro, o lobo disfarçado em ovelha (cf. Mt
2. Como surge a igreja? 7.15). Por isso, a verdadeira igreja está oculta. “ [...] nesta vida muitos
hipócritas e maus lhe estão misturados [...]” (Conf. de Augsburgo, cap.
Igreja nasce de modo sempre igual, isto é, pela palavra de Deus e VIII). Não havendo como separar já agora o joio do trigo, a igreja antiga
pelos sacramentos. Podemos observar isto claramente em Atos 2: no dia incluiu a igreja nos objetos de fé: “Creio na santa igreja cristã”. Aliás, esta
de Pentecostes, Pedro se levanta e anuncia que Jesus de Nazaré, o cruci­ fé na igreja não se compara à fé no Espírito Santo, pois a confiança inte­
ficado que ressuscitou, é senhor e Messias. Este testemunho criou fé, gral, nós a depositamos não na igreja e, sim, no Deus triúno. A igreja não
conduziu ao batismo de quase 3 mil pessoas, foi experimentado como possui poder salvador por si mesma. Por isso, na verdade, não cremos
ação do Espírito Santo. Naquele dia, nasceu a igreja evangélico-católica na igreja. Cremos a igreja. E este o sentido do Credo Apostólico, ou
de Jerusalém. Não tardou que fossem fundadas outras comunidades. Os seja: nós cremos que a comunhão dos santos e verdadeiramente crentes de
apóstolos se lançaram à missão, atendendo à grande comissão de Jesus. fato existe, em meio e através de todas as denominações. A santa igreja
Fizeram discípulos de todas as nações e ensinaram o Evangelho (Mt cristã não é ilusão. É realidade, a despeito das evidências em contrário.
28.18s.). A igreja tem sua origem na missão e na evangelização.
Portanto, há uma diferença entre a igreja que cremos e a igreja que
A Reforma luterana não diz outra coisa. Define a igreja como sen­ vemos. Nenhuma instituição eclesiástica tem o direito de se igualar à pri­
do “a congregação dos santos na qual o evangelho é pregado de maneira meira. Somente o juízo final vai revelar o verdadeiro rebanho do bom
pura e os sacramentos são administrados corretamente” (Confissão de pastor (cf. Mt 7.21; 21.31s.; etc.). Todavia, isto não permite o desprezo
Augsburgo, cap. VII). A igreja é a criatura do Evangelho, insistia Lutero. às igrejas concretas que procuram trilhar a senda do discipulado. E im­
O próprio Espírito Santo, por palavra e sacramento, “chama, reúne, ilu­ pressionante com que carinho Lutero podia falar dessa igreja humana,
mina e santifica toda a Igreja” (Catecismo Menor). Portanto, igreja não é imperfeita, pecadora que havia infligido justamente a ele tanto sofrimento.
invenção ou fundação humana. É fruto do agir de Deus. “Eu amo esta tão querida serva, e não a posso esquecer.” E: “Quem qui­
Igreja também é fruto da fé das pessoas, pois a palavra de Deus, ser achar Cristo, deve primeiro achar a igreja.” São suas essas palavras.
que exige e julga e, por outro lado, também perdoa, justifica e liberta, De fato, a igreja verdadeira não existe à parte das instituições eclesiásti­
quer ser acolhida e convertida em vivência. O mesmo vale para os sacra­ cas. Está oculta em meio a elas. Enquanto os membros forem pecadores,
mentos, cujo significado de modo algum se restringe ao perdão dos peca­ também a igreja necessita da penitência.
dos. O batismo é o sinal visível de nossa vocação ao discipulado. É inser­ Mesmo assim, existem critérios de autenticidade eclesial. Há sinais
ção na comunidade (1 Co 12.13). Na santa ceia, por sua vez, Jesus con­ que constantemente fazem aparecer a igreja verdadeira. A eles perten­
cede comunhão consigo mesmo e, simultaneamente, une os comungantes cem, com absoluta primazia, a pregação da palavra de Deus e a celebra­
num só corpo (1 Co 10.16s.). A ceia é, assim podemos concluir, a contí­ ção dos sacramentos. O culto da comunidade, o estudo bíblico, a propa­
nua renovação e reconstituição da comunidade. No entanto, isto não acon­ gação do Evangelho é que identificam a igreja de Deus. Isto desde que
tece magicamente: o dom do sacramento quer ser recebido pela fé, pois haja preocupação com a coerência evangélica, pois a igreja que cremos é
fé é essencialmente isto: resposta afirmativa ao chamado do Evangelho, igreja apostólica, alicerçada na tradição das primeiras testemunhas, bem
reação agradecida à ação de Deus, confiança nas promessas divinas. Esta como na dos profetas que as precederam. Esta tradição original do Evan­
fé é fundamental, mas possível somente porque Deus agiu e falou primei­ gelho, nós a temos na Bíblia, na Sagrada Escritura, razão pela qual ela
ro. A igreja, embora constituída por “crentes”, tem Cristo por fundamen­ possui função normativa na igreja. “Apostólico” é sinônimo de “evangéli­
to (1 Co 3.11). Sem o Evangelho, ela não existe. Nasce da misericórdia co” e vice-versa. Está aí o alerta: nem toda igreja que se diz “evangélica”
de Deus, bem como da fé que lhe responde. passará pelo teste da apostolicidade.

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Mas há outros sinais da igreja, além destes. Lutero aponta para o resiste - ou deveria resistir - a ser encampada pelo mundo e os interesses
ofício das chaves, a convocação de servidores eclesiásticos, a oração humanos que o governam. A santidade da igreja é uma das principais
pública de louvor e agradecimento a Deus, a cruz imposta à comunidade fontes de sua liberdade.
em razão de sua obediência a Deus. Particularmente este último distintivo A igreja cristã compartilha a dignidade do povo de Deus com os
se tomou relevante na América Latiná. Pode haver uma igreja autêntica judeus. Deus fez com Israel a primeira aliança. Prometeu que, através de
que seja insensível ao clamor dos oprimidos? Injustiça, violência, corrup­ Abraão e seus descendentes, todo o mundo participaria da salvação (cf.
ção desafiam a voz profética da Igreja. Põem à prova a fidelidade a Jesus, Gn 12.3; Is 2.4s.; etc.). Já o Antigo Testamento, pois, afirma que o reino
o profeta por excelência, profeta crucificado (cf. Mc 8.27s.; Lc 1.76; de Deus tem dimensões universais. A igreja vê cumprida essa promessa
etc.). É o que vale em sentido geral: Jesus Cristo mesmo identifica sua em Jesus de Nazaré. Ele, judeu e filho de Abraão, deu acesso a Deus
igreja. Quanto mais ele aparece falando e atuando, tanto mais a igreja também aos pagãos. A misericórdia de Deus não permanece privilégio
corresponde à sua vocação. Pois ela é o reino de Cristo, a esfera em que exclusivo. Ela quer abranger o mundo todo. Israel foi eleito somente por
ele é Senhor e nós somos os irmãos e as irmãs (cf. Mt 23.8; etc.). graça (Dt 7.6s.). A igreja também. O fundamento é comum.
Mas Israel não reconhece em Jesus o Messias. Significa isto que
4. E as imagens da igreja na Bíblia - que dizem? deixou de ser o povo de Deus e que o primeiro pacto já não vale? De
modo algum! O apóstolo Paulo não se cansa de salientar que Deus per­
Essa relação orgânica entre Jesus Cristo e a igreja está em forte manece fiel às suas promessas (cf. Rm 3.3; etc.). A igreja é um enxerto no
evidência em todo o Novo Testamento. Jesus é a videira, nós os ramos tronco de Israel (Rm 11.17s.), e Deus há de compadecer-se de seu povo,
(Jo 1 5 .1s.);eleéocorpo, nós os membros (1 Co 12.12s.; etc.); ele é a “porque os dons e a vocação de Deus são irrevogáveis” (Rm 11.29).
pedra angular do templo de Deus, que somos nós (1 Pe 2.4s.). A igreja
A cristandade espera que, no fim dos tempos, Jesus se evidencie
tem vida somente enquanto a buscar naquele que é a ressurreição e a vida
como sendo, a um só tempo, o Messias de Israel e de todo o mundo. Até
(Jo 11.25). Também a imagem do povo de Deus o comprova: Jesus é o
lá cabe a Israel e à igreja, como “descendentes” do mesmo patriarca (cf.
sumo sacerdote que, oferecendo-se a si mesmo como sacrifício pelos
G13.6s.), conscientizar-se de seu tesouro comum e exercitar a fraternida­
pecados humanos, resgata para Deus um povo santo de sua exclusiva
de, mesmo em sua divergência sobre a messianidade de Jesus. Essa questão
propriedade, um sacerdócio real (cf. Hb 7.20s.; 1 Pe 2.9s.; etc.). Este
significa o grande desafio de parte a parte. A igreja não pode deixar de
povo não tem nacionalidade. É universal, católico. Acolhe membros de
dirigir aos judeus a pergunta se Jesus não é de fato o Cristo prometido
todas as nações, raças e culturas. Assim como a igreja que cremos é
pelos profetas e se ele não é realmente a mais clara manifestação precur­
evangélica, assim ela é também católica.
sora do reino de Deus que judeus e cristãos aguardam conjuntamente.
O povo de Deus é santo, mas não o é por qualidades morais. No
Antigo Testamento, são freqüentes as queixas sobre a obstinação e a du­
5. Qual é a tarefa da igreja?
reza de coração de Israel (cf. Êx 32.9; etc.). Se ainda assim é santo (Êx
19.6; etc.), é porque foi requisitado por Deus para ser sua propriedade, “O que temos visto e ouvido, anunciamos também a vós outros,
porque Deus lhe perdoou as iniqüidades e o elegeu como parceiro. Para para que vós igualmente mantenhais comunhão conosco.” Nestes termos
a igreja de Jesus Cristo não vale outra coisa. Ela continua sendo pecado­ a Primeira Carta de João descreve a incumbência da igreja (1 Jo 1.3).
ra, e é santa mesmo assim. Seus membros são “santificados em Cristo” (1 Cabe-lhe, em termos amplos, o testemunho (martyria) de Jesus Cristo
Co 1.2). Com isto, eles também foram purificados. Todavia, continuam e o anúncio do Evangelho, incluindo o convite para dele participar e inte­
dependentes da misericórdia de seu Senhor. Como santa, a igreja perten­ grar a comunidade dos discípulos e das discípulas (cf. Mt 28.18s.). A fé
ce a Deus. Não é do mundo, embora viva nele (cf. Jo 15.19; 17.14s.; vem por pregação, ensino, evangelização (Rm 10.17).
etc.). Seu referencial é Deus “acima de todas as coisas”, razão pela qual

150 151
Essa fé vai necessariamente expressar-se em culto (liturgia). Por celebração da liturgia e na vivência da comunhão em Cristo, em que já
ele, a comunidade desafia o mundo, documentando que adoração com­ não há “judeu nem grego, nem escravo nem liberto, nem homem nem
pete exclusivamente a Deus. “Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele mulher” (G13.28). Ao mesmo tempo, porém, a igreja é chamada a cola­
darás culto” (Dt 6.13; Mt 4.10). Através do culto, a comunidade reafirma borar no combate às forças do mal. Deve opor-se ao pecado. Neste
a validade do primeiro mandamento e aponta para a fonte de que lhe esforço, ela vai sofrer resistências. Vai experimentar a cruz. Ela fará, in­
advém o alimento em sua jornada. clusive, a experiência de seu próprio fracasso, de sua culpa e traição. E
A isso se associa o serviço (a diaconia). “Assim brilhe também a doloroso constatar que, normalmente, cristãos e cristãs ficam em débito
V /

vossa luz diante dos homens para que vejam as vossas boas obras e glo­ com a sua vocação. A igreja convém modéstia. E igreja militante, mas
rifiquem a vosso Pai que está nos céus” (Mt 5.16). É dever da Igreja ainda não igreja triunfante. Precisa do recurso Aquele que disse a alguém
curar males, restabelecer direitos feridos, socorrer as pessoas em suas incapacitado de caminhar: “Levanta-te, toma o teu leito e vai...” E ele
necessidades. O louvor a Deus nasce da experiência do amor, da solida­ andou! (Mc2.11s.).
riedade, da alegria.
Não menos importante é, por último, a construção de comunhão 6. Como se organiza a igreja?
(koinonia). Ser igreja é viver na fraternidade peculiar dos membros de
Comunhão é vivência, ação e movimento. Por isso, também a igre­
um só corpo. “Assim já não sois estrangeiros, mas concidadãos dos san­
ja o é. Ela “acontece”, toma-se visível pela sua vida. Mesmo assim, não
tos e sois da família de Deus” (Ef 2.19). A convivência em Cristo reverte
pode prescindir de estruturas. Também a igreja necessita de regras de
rupturas, reconcilia inimigos, ensina às pessoas a servirem umas às outras
jogo. A comunhão precisa organizar-se numa comunidade que se rege
com seus respectivos dons.
por estatutos, regulamentos e ordens, assumindo o caráter de uma insti­
Embora distintas, essas quatro tarefas não permitem ser vistas em tuição.
separado. São complementares. Na atuação da igreja, nenhuma pode
Costuma-se distinguir entre comunidade local e igreja nacional ou
faltar. Elas convergem para a igreja ser sinal do reino de Deus, sal da terra
universal. N a verdade, porém, comunidade e igreja são sinônimos. O
e luz do mundo (Mt 5.13). Assim como o seu mestre, também ela vai
apóstolo Paulo escreve “à igreja de Deus que está em Corinto” (1 Co
pregar a conversão, denunciar o pecado, empenhar-se na libertação dos
1.2). Portanto, em cada comunidade local, faz-se presente a igreja uni­
oprimidos, compadecer-se de quem sofre, curar enfermidades, saciar fa­
versal, assim como esta não deixa de ser comunidade de Jesus Cristo no
mintos, perdoar a quem se arrepende, ensaiar nova comunhão, anunciar a
mundo. Não é a soma das comunidades que faz a igreja. Pelo contrário,
soberania de Deus. A comunidade de Jesus Cristo está a serviço da vida.
sempre que pessoas se reúnem em nome de Jesus Cristo (cf. Mt 18.20),
Mas o êxito de seu engajamento pastoral, humanitário e sociopolítico con-
temos manifestação da igreja toda.
diciona-se à sua fidelidade a Deus. Somente assim ela permanecerá sen­
do igreja e salvaguardará a natureza evangélica de seu discurso e de sua Nesta igreja, deve reinar “paz” (1 Co 14.33), não o caos nem a
prática. Cabe-lhe o papel de advogada dos direitos de Deus neste mundo concorrência dos membros e grupos. Para tanto servem os regulamentos.
e de promotora da fé, da esperança e do amor (cf. 1 Co 13.13), sem os Eles estabelecem um “direito eclesiástico”, que tem a função de discipli­
quais a vida humana está condenada a sucumbir. nar o exercício do poder na igreja, de distribuir competências e de servir
à missão do povo de Deus. É convicção luterana que a ordem na igreja
A igreja não recebeu a incumbência de salvar o mundo. Isto é obra
tem caráter funcional. É boa na medida em que facilita a vivência e o curso
de seu Senhor, e recomenda-se não confundir as competências. A função
do Evangelho. Quando obstaculiza esse objetivo, necessita de reforma.
da igreja também não se restringe a ser “instrumento” do Reino. Ela é
O direito não é constitutivo, e, sim, regulativo na igreja.
mais do que serva. É “noiva” de seu Senhor (cf. E f 5.25), ou seja, ela
antecipa algo da novidade escatológica. Isto acontece particularmente na Tal conceituação distingue o luteranismo de igrejas irmãs, para as
quais o direito eclesiástico tem peso maior, como no caso da Igreja Cató­

152 153
lica Romana, ou então significativamente menor, como no caso das Igre­ a cristandade (Jo 17.21). Ecumenismo é mandato cristão inalienável. Tra­
jas Pentecostais. Distingue, inclusive, as igrejas luteranas entre si. Em al­ ta-se de aprofundar e concretizar a comunhão dos santos. Vai ser uma
gumas, vamos encontrar estruturas mais “episcopais”, portanto, mais hie­ comunhão multiforme, baseada em acordos entre as instituições eclesiás­
rárquicas, em outras, estruturas mais “congregacionais”, voltadas para a ticas, na confissão comum da fé e em projetos de cooperação prática. Se
“base”, ou seja, a congregação. As diferenças decorrem da afirmação da for autêntica, vai ser uma comunhão vivida em parceria, aberta para uma
Confissão de Augsburgo que diz: “Não é necessário que as tradições diversidade já não mais excludente, e, sim, reconciliada.
humanas ou os ritos e cerimônias instituídas pelos homens sejam seme­
lhantes em toda parte” (cap. VII). Estruturas, embora imprescindíveis, 7. E o futuro da igreja?
são variáveis nas igrejas luteranas.
Igreja existe no ínterim entre a vinda de Jesus a esta terra e a con­
Há limites dessa variedade, entretanto. A tradição luterana enfatiza
sumação de todas as coisas. Ela não é o reino de Deus. Continua rogando
o sacerdócio dos crentes. Por Jesus Cristo, o único mediador (1 Tm 2.5),
por sua vinda. Mas, na provisoriedade deste mundo, compete-lhe prepa­
todos os batizados têm acesso direto a Deus. Lutero compromete com a
rar o caminho do Senhor (Is 40.3; M t 3.3) e reunir o povo de Deus (At
edificação de comunidade adulta, capaz de julgar sobre toda doutrina,
1.8). Seu papel é, a um só tempo, profético, sacerdotal e diaconal. A
como ele o disse em um de seus escritos. Da mesma forma, porém, a
igreja vai exercer essa sua vocação em estreita solidariedade com o mun­
tradição luterana valoriza o ministério (cf. CA V), não para desincumbir a
do em que vive e, todavia, também no confronto com ele, sempre tendo
comunidade de suas funções, mas para fomecer-lhe o alimento espiritual
em vista o bem pretendido por Deus para a sua criatura.
e para conduzi-la à maturidade. Sacerdócio geral e ministério especial
não se excluem. Importa zelar para que as atribuições próprias de cada O futuro da igreja está nas mãos de seu Senhor. Ela tem a promes­
qual não venham a atrofiar um ao outro. A comunidade cristã precisa de sa de as portas do inferno não prevalecerem contra ela (Mt 16.18). Essa
liderança. Mas esta não deve ser “hierárquica”, no sentido de eliminar a perspectiva, porém, não dispensa a comunidade de Jesus da responsabi­
responsabilidade do “leigo”. Na comunidade luterana, o magistério infalí­ lidade própria. Ela deve achar meios de responder adequadamente aos
vel está reservado a Jesus Cristo. desafios de sua respectiva época e de seu ambiente. Que significa ser
igreja de Jesus nos conflitos sociais que sacodem a América Latina? Como
A pluralidade existente nas igrejas abrange não só “ritos” e “ceri­
construir comunhão dos santos nos monstros urbanos deste continente?
mônias”, ou seja, aspectos formais. Ela abrange, em sentido amplo, a
Como enfrentar o pluralismo religioso, o relativismo ético, a destruição do
expressão da fé. Diversidade é a característica do corpo de Cristo (1 Co
meio ambiente, a miséria, a violência, a injustiça? Vivemos num mundo
12.4s.). Decorre da variedade de dons, de contextos históricos e desafi­
estúpido, louco até, extremamente carente da sabedoria de Deus. Espe-
os específicos com que a igreja se vê defrontada. Uniformidade iria es­
ra-se da igreja nada mais do que que seja fiel a seu Senhor (1 Co 4.2).
trangular a vida e privar a igreja da eficácia de sua ação. Quando, porém,
a variedade resulta em polarização, ferindo o espírito de Cristo e produ­
zindo divisão (1 Co l.lO s.), o Evangelho sofre prejuízo. Assim como Literatura para aprofundar e discernir
existe um só Senhor, uma só fé, um só batismo (Ef 4.4s.), assim também BOFF, Leonardo. E a Igreja se fez povo. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1986.
cremos uma só igreja. CONFISSÃO DA FÉ APOSTÓLICA, A. Documento de estudo da Co­
E consolo saber que existe um vínculo de união entre todos os cris­ missão de Fé e Ordem do Conselho Mundial de Igrejas. Tradução de Jaci
tãos, anterior e superior às divisões. Em Cristo somos um. Mas importa Maraschin. São Paulo: Bartira, 1993.
FEINER, Johannes; VISCHER, Lukas. O novo livro da fé. Petrópolis:
fazer visível esta unidade, traduzindo-a em estruturas respectivas e em
Vozes, 1976. p. 395-422.
muita fraternidade eclesial. É escandalosa a fragmentação da uma igreja LUTERO, Martinho. Dos concílios e da Igreja. In: id. Obras seleciona­
de Cristo em tantas denominações e “seitas”. Por isso, o esforço por das. São Leopoldo / Porto Alegre: Sinodal / Concórdia, 1992. v. 3, p.
recuperar ou manter a integridade do corpo de Cristo é obrigatório para 300ss. (especialmente p. 404s.).

154 155
1. Pecado: o que é isso?
“Errar é humano!” “Somos todos/as pecadores/as!” Expressões
Na remissão dos pecados como essas são úteis para nos legitimarmos diante de quem cobra nossa
responsabilidade por alguma falta cometida. Mas elas estão longe de iden­
tificar que alguém assumiu sua culpa por algo. Temos dificuldades para
assumir e confessar culpa. Cometemos erros e falhas, mas isso é humano!
Logo, por que deveríamos sentir-nos culpados? Reconhecemos que so­
Osmar Luís Witt
mos todos/as pecadores/as, mas por que deveríamos sentir-nos culpa­
dos/as disso? Por outro lado, culpas não assumidas pesam no subconsci­
“Perdoar é ente de muitas pessoas que, por não relacionarem esse sentimento com a
devolver ao outro religião, buscam auxílio nos consultórios psiquiátricos. A linguagem da fé
o direito de ser feliz!” nos conduz a falar aqui da realidade do pecado.
Quando dizemos “pecado”, em geral, pensamos na desobediência
Os seres humanos foram criados para viverem numa relação de
a um conjunto de leis ou regras estabelecidas; assim também o encontra­
amizade com Deus (Gn 1.27s.). A narrativa da criação informa que Ele os mos em várias passagens bíblicas (p. ex., D t 26.16). Pecado, pois, é não
colocou, homem e mulher, num jardim, para que o cultivassem e dele
cumprir a lei de Deus, os seus mandamentos. Se não houvesse as leis, não
cuidassem (Gn 2.15). Deu-lhes liberdade e limites (Gn 2.16s.). O ser haveria pecado. Esse modo de ver é confirmado também pelo apóstolo
humano, porém, não aceitou os limites que lhe poderiam assegurar uma Paulo: “eu não teria conhecido o pecado, senão por intermédio da lei”
vida na comunhão com seu Criador. Preferiu ser senhor de si mesmo e,
(Rm 7.7). Mas isso ainda não é tudo o que a Bíblia diz sobre pecado. Do
dessa forma, rebelou-se contra o Criador (Gn 3). Preferiu confiar em si
ponto de vista da fé cristã, o ser humano não somente comete pecados
mesmo em lugar de confiar naquele que lhe soprou o fôlego da vida. A
(no sentido de descumprir leis), mas ele é pecador, ou como dito acima, é
essa falta de confiança, ignorando que Deus é senhor e transformando-o
uma criatura de Deus que não deseja submeter-se ao seu Criador e, por
em servo dos desejos e objetivos humanos, é o que a Bíblia chama de
y> isso, se encontra num estado de rebelião contra ele. Este estado de rebe­
pecado. E também essa falta de confiança em Deus que nos faz pecado­
lião afasta o ser humano de Deus e o conduz para a descrença e a prática
res e pecadoras. A esta postura de auto-suficiência dos seres humanos
da iniqüidade. Faz com que tenha dificuldade para viver da fé, na certeza
em relação a Deus, a teologia tem chamado de pecado original. Neste
das coisas que não se vêem (Hb 11.1). Prefere acreditar no que pode ver
sentido, os pecados que cometemos são pecados originais, pois decor­
e na sua capacidade de exercer domínio. Ao pretender ser senhor de si
rem desta falta de fé no Criador. Essa condição de pecador atinge a todos
mesmo, não permite que Deus seja Deus. Ao rebelar-se contra a sua
os seres humanos desde o nascimento (Gn 8.21). Daí que, na teologia, se
condição de criatura, toma-se escravo de pecado e culpa, pois, em lugar
fale também de pecado hereditário. Não que sejamos herdeiros do peca­ de uma relação que se funda na fé em Deus, dirige a fé para outro alvo,
do e da culpa de alguém outro, mas herdamos aquele estado de rebelião
incorrendo em idolatria. O apóstolo Paulo nos lembra que tudo o que não
contra Deus, que é parte de nossa natureza por causa do pecado. A fé
provém da fé é pecado (Rm 14.23). O reformador Martim Lutero resu­
cristã confessa que dessa condição os seres humanos são incapazes de se
miu esse tema da seguinte maneira: “Assim como só a fé justifica e traz o
libertarem sozinhos. Vivemos todos na esfera de influência do pecado
espírito e a disposição para boas obras exteriores, da mesma forma é
(Rm3.23).
apenas a falta de fé que peca e induz a came a más obras exteriores,
como aconteceu com Adão e Eva no paraíso (Gn 3.2s.).” Sendo assim,
fica descartada uma postura moralista que somente enxerga o erro e a

156 157
culpa das outras pessoas e não os próprios. Jesus ensinou a não ignorar a 3. Quem é o Redentor?
trave no próprio olho (Mt 7.3) e a não julgar (Mt 7.1). Isto não significa A confissão “Cristo morreu pelos nossos pecados” (1 Co 15.3) é
diminuir ou ignorar a necessidade de avaliarmos posturas e atos que se um dos artigos essenciais de fé da Igreja. Como, porém, entender que
oponham aos mandamentos divinos e também de identificarmos e denun­ tenha sido “necessário” que Jesus morresse para libertar-nos do pecado?
ciarmos pecados e culpas, mas evita que nos julguemos a nós mesmos
A morte de Jesus em favor da humanidade, a fim de reconciliar
melhores do que as outras pessoas (Lc 18.9-14). Somente quando assu­
toda a criação com o seu Criador, só pode ser entendida na perspectiva
mimos e não ocultamos nossa culpa é que podemos experimentar o que
da misericórdia de Deus. Ele não quer nossa ruína e, por isso, se encar­
significa ser remido (perdoado) de nossos pecados pela obra de Cristo
nou, assumiu nossa humanidade para resgatá-la do pecado e da culpa. A
em nosso favor, apesar de toda a culpa.
fé poderá confessar que era seu propósito libertar-nos por meio do sacri­
fício de seu Filho. Contudo, essa confissão não ignora e não desculpa
2. Ser remido: o que é isso? aquelas pessoas que de fato provocaram a morte de Jesus (cf. Mt 26.24).
Ele foi morto por razões e em circunstâncias históricas; foi eliminado como
Se buscarmos uma definição em um dicionário, encontraremos uma
maldito (crucificado fora da cidade), porque se tomara um incômodo para
formulação semelhante a esta: “Remir é resgatar, tirar alguém do cativeiro
os detentores do poder religioso e político. Não foi Deus quem quis a
ou do poder alheio, livrar das penas, libertar de uma dívida pagando a sua
morte de seu Filho, mas sim aqueles que o rejeitaram. Que, ainda assim,
importância.” É nesse sentido que o Credo Apostólico trata da remissão
Deus tenha transformado essa morte em fundamento de nossa redenção,
dos pecados, retomando uma linguagem que encontramos no Antigo e no
nisso consiste seu amor e misericórdia.
Novo Testamentos.
Em vista do sacrifício de Jesus em favor de nós, não precisamos mais
No Antigo Testamento, a remissão é entendida como uma compen­
oferecer novos sacrifícios (cf. Hb 9) e temos advogado junto ao Pai (1 Jo 2.1),
sação que se oferece para arrancar da morte ou da escravidão uma vida
para sermos perdoados de nossos pecados e, assim, podermos dar novo rumo
humana que se encontra em tal condição em razão de falta cometida contra
às nossas vidas. O que resulta desse perdão incondicional de Cristo é o com­
outras pessoas ou contra Deus (Êx 30.11-16; Jó 33.24; Pv 6.35; 13.8; Is
promisso de também perdoarmos às pessoas com quem convivemos e que
43.3s.). No caso de falta cometida contra outras pessoas, o resgate ou
julgamos que erraram conosco. Assim oram os cristãos: ‘‘Perdoa-nos as nossas
remissão normalmente é feito mediante o pagamento de uma quantia em
dívidas, como nós temos perdoado aos nossos devedores” (Mt 6.12).
dinheiro. No caso de uma falta contra Deus, ele recebe a vida de um animal
sacrificado em troca da vida do culpado, o qual se toma livre da culpa. A nova vida, que a certeza do perdão possibilita, não pode voltar
as costas para a dimensão social do pecado. Ao trilharem seus caminhos
No Novo Testamento, a idéia de resgate ou remissão serve para
sem considerar os propósitos divinos, as pessoas constroem relações so­
dar significação à morte de Jesus (“Cordeiro de Deus que tira o pecado
ciais baseadas no egoísmo e na busca da supremacia sobre os semelhan­
do mundo” ) e para falar da libertação e reconciliação oferecida por Jesus
tes. Daí resultam estruturas sociais que carregam também a marca do
para a humanidade. “O Filho do homem veio para dar a vida em resgate
pecado humano. Questionar e combater estruturas que sustentam e pro­
por muitos” (Mc 10.45). Essa confissão transparece em vários outros
movem relações injustas na sociedade, tais como a existência da pobreza
textos bíblicos, como, por exemplo: 1 Co 6.20; 7.23; 1 Tm 2.6; Tt 2.14;
e suas seqüelas, está no horizonte de pessoas que admitem que a vida
Hb 9.12; 1 Pe 2.18ss.; Ap 5.9. Mais do que o aspecto da remoção de
deve ser preservada como dádiva do Criador, que se encarnou e se doou
pecado e culpa, a dimensão positiva da remissão como dádiva é enfatiza­
para que a reconciliação com Ele e entre as criaturas sej a possível.
da nos textos neotestamentários, pois a quem é perdoado está sendo
oferecida a possibilidade de um novo começo, ainda que nem a mereça. As pessoas remidas de seus pecados sabem que necessitam do
“Deus prova o seu próprio amor para conosco, pelo fato de ter Cristo perdão diário: somos simultaneamente santas e pecadoras e, como tais,
morrido por nós, sendo nós ainda pecadores” (Rm 5.8). pessoas amadas por Deus que, ao perdoar-nos, restitui-nos a possibili­
dade de sermos felizes.

158 159
2. A morte como o fim da existência
físico-espiritual do ser humano
É muito difundida, também entre cristãos, a concepção de que o
Na ressurreição do corpo e na vida eterna ser humano é constituído por um corpo (físico) e uma alma (espiritual) que
existem numa tensão entre si. Por influência da filosofia grega, com a qual
a Igreja entrou em contato quando ultrapassou as fronteiras do mundo
semita, conferiu-se por muito tempo uma visão negativa ao corpo, no
Osmar Luís Witt sentido de que ele representaria uma espécie de “prisão” para a alma, a
qual se encontra desejosa de libertar-se dele. Na compreensão dos filó­
sofos gregos, o corpo físico é o que se desintegraria na morte do ser
Não sei como explicar brevemente
humano, enquanto sua alma seria imortal. Por isso, a morte poderia ser
o que se refere à ressurreição da carne encarada com serenidade e até desejada, pois libertaria a alma para uma
(que não se identifica com a de certas vida mais plena.
pessoas que ressuscitaram dentre os mortos,
Não há como negar, porém, que esta filosofia representa algo es­
mas voltaram a morrer, senão que
tranho para o pensamento bíblico sobre o ser humano. Aprendemos a
é como a ressurreição de Cristo,
confessar no próprio Credo Apostólico, com base no testemunho de
ou seja, para uma vida eterna).
Gênesis, que Deus criou os seres humanos e que, portanto, esses fazem
Agostinho
parte da boa criação de Deus. Também nosso corpo, pois, é boa obra de
Deus por meio da qual podemos glorificá-lo. Nosso corpo não é uma
1. Introdução prisão para a vida que Deus nos dá (Gn 2.7); antes, no dizer do apóstolo
Paulo, é “templo” do Espírito (1 Co 6.19), e é por meio dele que pode­
A morte exerce sobre as pessoas um fascínio misterioso. As incer­
mos entrar em comunhão com as pessoas que pertencem ao corpo de
tezas e as dúvidas sobre o que sucederá a cada um em sua morte levan­
Cristo. Por essa razão, Paulo admoesta os coríntios no sentido de que
tam inúmeras perguntas. Cristãos são questionados em relação à sua fé na
seus corpos devem estar a serviço de Cristo (1 Co 6.13).
ressurreição dos mortos por grupos religiosos que propõem outras ma­
neiras de encarar a vida após a morte e também por pessoas que prefe­ O ser humano é um todo físico-espiritual que não pode ser dividi­
rem negar qualquer possibilidade de vida além da que se vive no tempo e do. Nós não temos simplesmente um corpo e uma alma, mas somos,
espaço atuais. Há quem afirme que, na morte, a vida não acaba, mas cada qual, um corpo com vida e uma vida num corpo. Desta forma, afir­
continua num plano diferente, espiritual. Há quem diga que a morte é o fim mar que na morte deixa de existir somente o corpo é negar que a morte
de tudo e que não passa de ilusão alimentar esperanças para além do nos atinge de fato em todo o nosso ser.
tempo presente.
Como posicionar-nos diante de visões tão diferentes? Para bus­ 3. E depois da morte?
carmos respostas aos questionamentos que temos, bem como aos que
nos são dirigidos por outras pessoas, devemos ouvir o que nos diz o “A única coisa certa na vida é a morte!” Sim, visto na perspectiva
testemunho bíblico sobre a morte e a vida etema, pois, quando os cristãos da natureza, é essa, realmente, a experiência que fazemos. Todo ser vivo
professam sua fé na ressurreição, estão tocando num aspecto importante nasce, se desenvolve, declina e morre. No instante em que nascemos, já
da maneira como vêem a existência humana e de como encaram a morte. começamos a morrer, um pouco a cada dia. Também a Bíblia constata
que, mesmo que se estendam os anos de nossas vidas, é certo que chega­

160 161
rá o fim (SI 90). No entanto, a Bíblia também sustenta que a morte não tenham morrido em épocas diferentes, encontrarão Deus no mesmo tem­
nos lança no abismo do nada, e, mesmo morrendo, não somos separados po, o tempo da eternidade, e, assim, minha morte é já o Ultimo Dia e,
do amor de Deus revelado em Jesus Cristo (Rm 8.38s.). com ela, chegou a ressurreição do corpo.
A morte com seu terror e angústia foi vencida pela vida na ressur­ Assumindo-se essa postura, fica difícil não ignorar o que o Novo
reição de Cristo (Rm 6.9; 2 Tm 1.10). A vitória de Cristo, o primeiro Testamento escreve relativamente ao tempo da ressurreição dos mortos
entre os mortos (1 Co 15.20), sustenta a esperança cristã na ressurreição (Ap 6.9-11). Parece mesmo haver uma concordância nos textos neotes-
dos que morreram. Por isso, o apóstolo Paulo desafia, confiante: “Onde tamentários de que a ressurreição ocorrerá no Último Dia, isto é, na volta
está, ó morte, a tua vitória?” (1 Co 15.55). Não ficarão na morte os que de Cristo (1 Co 15.23s.; 1 Ts 4.15; Jo 14.1-3). E, então, Deus fará
são de Cristo. Isto, porém, não elimina a realidade de que as pessoas “novo céu e nova terra” (2 Pe 3.13), ou seja, a ressurreição não somente
continuam morrendo mesmo depois da ressurreição de Jesus. Por um atingirá os mortos, mas fará nova toda a criação. Este dia será também o
tempo ainda, enquanto este mundo existir, a morte continuará exercendo Dia do Juízo (Mt 25.31-46), quando Deus julgará segundo o que cada
seu poder sobre nós - até o último dia, quando Cristo vencer todos os um tiver feito em vida. Mas tomamos a perguntar: o que sucede aos mor­
seus inimigos (1 Co 15.25s.). Assim é, porque a morte é o salário do tos enquanto esse dia não vem?
pecado (Rm 6.23). Quer dizer, Deus não tem prazer na morte de sua Aproximamo-nos, dessa maneira, do caminho da especulação. Os
criatura, mas o afastamento e a rebelião contra Deus conduziram e con­ escritores bíblicos evitaram trilhar esse rumo. Por isso, podem orientar
duzem o ser humano para a morte. Essa morte é realmente o fim de uma nosso caminhar. Em primeiro lugar, cabe realçar outra vez que, no pensa­
existência e não somente o fim da vida numa dimensão corporal para assu­ mento bíblico, não há lugar para uma visão dualista que separe o corpo da
mir a vida numa dimensão diferente, espiritual. Nesse ponto, porém, princi­ alma no ser humano. A ressurreição é a vitória sobre a morte e não sobre
piam as dúvidas e, não raro, as especulações. Se a morte já não tem poder o corpo. O ser humano é um todo e somente pode existir na sua corpora-
de separar-nos do amor de Deus, o que sucede com os que morrem? lidade. É por isso que professamos a fé na ressurreição do corpo. Sem
ele não podemos ser plenamente nós mesmos. E por isso também que a
4. M orrer é descansar em Deus morte é o fim radical da velha existência (do ser humano todo), e o que
vem depois será nova criação de Deus. Porém, não somos separados de
Em muitas lápides de túmulos em cemitérios podemos ler a inscri­ Deus pela morte, pois já em vida somos transformados pelo Espírito San­
ção: “Aqui descansa em paz...” Essa inscrição revela como os cristãos to (Rm 6.3s.; Jo 3.3ss.). Quando morremos, pois, não somos arrancados
entendem o estado daqueles que morreram. Muitas passagens do Novo de Deus, antes “dormimos” nele, esperando a ressurreição (nova criação)
Testamento referem-se à morte como um “dormir” (1 Co 15.20; 1 Ts do corpo que nos dará vida plena e eterna. Nele, pois, estamos seguros e
4 .13s.). Nossa curiosidade natural quer saber também como será esse já não precisamos mais temer a morte como quem não tem esperança. E
dormir. Será já um sono dos ressuscitados ou dos que ainda esperam pela realmente confortante sabermos que, no fim de nossa peregrinação neste
ressurreição? A ressurreição dos mortos se dá na morte de cada pessoa, mundo, não mergulharemos no vazio, mas por fidelidade de Deus sere­
ou haverá um tempo intermediário entre a morte pessoal e a ressurreição mos acolhidos em seu seio até a chegada do Último Dia e a ressurreição
de todos os mortos? dos mortos. Até lá, o estado dos mortos não é o da perfeição e plenitude
Não são perguntas fáceis de serem respondidas. Alguns sustentam de uma alma libertada que alcançou seu objetivo. É antes, no dizer do
que a ressurreição acontece na morte de cada pessoa, sem nenhum tem­ apóstolo, um estado de nudez. E, ao chegar aquele dia, o que é corruptí­
po intermediário de espera. A noção de tempo e de espaço que usamos vel será revestido de incorruptibilidade e o que é mortal será revestido de
para exprimir nossa existência, dizem, não pode ser aplicada à eternida­ imortalidade (1 Co 15.54); veremos a face de Deus e ingressaremos na
de, na qual ingressamos após a morte. Não havendo como utilizar nossa plenitude da vida eterna com nossos corpos ressuscitados, vida eterna
noção de tempo na eternidade, segue que todas as pessoas, ainda que que não será continuidade da vida terrena fadada a morrer, mas um esta-

162 163
do novo (Mt 22.30). Quem garante a identidade e a unidade essencial do
velho ser humano (o que morreu) e do novo (o que ressuscitará) é Deus
mesmo. Como ele o fará não nos foi revelado, tal como continua difícil
explicar a nossa primeira criação. Somente a fé pode confessar que naquele
dia “estaremos para sempre com o Senhor” (1 Ts 4.17).

5. Ressurreição não é reencarnação


A reencarnação é a doutrina segundo a qual a alma humana, depois
da morte, assume outro corpo, encarnando de novo. As pessoas que
defendem o reencamacionismo (em nosso meio, conhecido sobretudo
pelo espiritismo) resumem seus argumentos nos seguintes pontos: a) Exis­
tem várias existências terrestres; nossa vida corporal não é a primeira e,
provavelmente, não será a última. Após morrermos, voltaremos noutra Parte IV
existência, b) A razão das sucessivas reencamações é o contínuo pro­
gresso para a perfeição. Assim, as almas caminham para a perfeição final
de um espírito purificado, c) A purificação é atingida por meio dos méri­
tos acumulados na existência encarnada, na medida do esforço pessoal,
d) O progresso na escala da perfeição garante à alma uma existência
sempre mais espiritual, até atingir o estado de independência da matéria.
É preciso reconhecer que essa compreensão parece ter uma base
muito racional. Contudo, há também diferenças em relação aos ensina­
mentos bíblicos. Primeiro: o reencamacionismo retoma uma visão dualista
do ser humano. O corpo é mero instrumento da alma, que o abandona
após cada existência. Segundo: não há lugar no reencamacionismo para
uma concepção de juízo final, pois todas as almas se encontram no cami­
nho de atingir a perfeição. Os males cometidos numa existência serão
pagos noutra. No Novo Testamento, lemos: “aos seres humanos está or­
denado morrerem uma só vez e, depois disto, o juízo” (Hb 9.27). Terceiro:
não há necessidade de um Redentor para os reencamacionistas, pois a per­
feição é alcançada por meio do esforço pessoal. Atinge-se, dessa forma, o
conteúdo central da fé cristã, que professa Jesus Cristo como único salva­
dor, que nos oferece salvação por graça e não em retribuição aos nossos
méritos, os quais não nos bastariam caso dependêssemos somente deles.
Quarto: os fracassos e os sofrimentos de cada um são aceitos com resig­
nação, pois seriam a retribuição por males cometidos noutras vidas e ser­
viriam à purificação da alma. Em oposição, a fé cristã acentua que a existên­
cia do mal é sinal da rebelião contra Deus e do afastamento dele.

164
A contemporaneidade do Credo,
em onze versões atualizadas

Walter Altmann

A atualidade permanente do Credo Apostólico (e dos demais cre­


dos da Igreja Antiga) e a conveniência ou necessidade de formulações
atuais da “esperança que há em nós” (1 Pe 3.15) não se excluem mutua­
mente. Ao contrário, as atualizações e novas formulações dão expressão
ao conteúdo da fé para dentro de novas realidades e situações específi­
cas. Servem também para posicionar-se com clareza diante de crenças e
comportamentos reconhecidos como ameaça ou negação da fé cristã.
Naturalmente, as novas formulações não podem “competir” com o
Credo estabelecido, muito menos substituí-lo. São, em certo sentido, ape­
nas tentativas de atualização do Credo, originalmente concebido em ou­
tro contexto e outra realidade. No entanto, os credos da Igreja Antiga
servem de medida crítica para os credos atuais, assim como os próprios
credos da Igreja Antiga resumem o testemunho escriturístico e são por
este medidos. Inversamente, porém, as novas formulações, concebidas
em outros contextos e realidades, contribuem para realçar a atualidade e
a relevância permanentes do Credo como confissão da fé cristã.
Também é importante enfatizar que esses credos, independente­
mente de seu conteúdo teológico, muitas vezes não são formulados mera­
mente como uma descrição sumária da fé cristã, mas como textos desti­
nados ao uso litúrgico, como confissões a serem proferidas pela comuni­
dade em culto. Elas adquirem, portanto, um caráter doxológico de louvor
em relação a Deus e, simultaneamente, um caráter de comprometimento
ético, em relação ao próximo1. Igualmente, nessas formulações atualiza-

1 Cf. quanto a isso, acima, o capítulo intitulado Credo = eu creio.

167
das ocorre com freqüência uma “redução” intencional, isto é, o credo é Creio em Deus, mesmo sendo eu abandonado ou perseguido por to­
formulado a partir e para dentro de uma realidade específica, bem parti­ das as pessoas. Creio em Deus, apesar de tudo, seja eu pobre, sem
cular. Neste caso, o “novo” credo não pretende resumir e atualizar o todo entendimento, sem sabedoria, desprezado ou carente de todas as coi­
da fé cristã, e sim realçar uma dimensão reconhecida como essencial, mas sas. Creio em Deus, mesmo sendo eu um ser pecador. E que essa
negligenciada ou encoberta nas formulações mais tradicionais. minha confiança inabalável deve pairar acima de tudo o que existe e
Para tomar mais palpáveis a atualidade do Credo e a diversidade não existe, acima de pecado e virtude - sim, acima de todas as coisas
das formulações atuais, passamos a arrolar algumas dessas confissões. -, para em Deus manter-se pura e limpa, tal qual o primeiro manda­
mento me compele.
Tampouco lhe peço qualquer milagre, para tentá-lo. Confio nele sem
1. Um credo de Lutero cessar, por mais que ele demore, e não lhe imponho termo, prazo,
O Reformador Lutero expôs muitas vezes o sentido do Credo medida ou forma, mas confio tudo à sua divina vontade com uma fé
Apostólico para a sua realidade e seu tempo. As mais conhecidas dessas livre e autêntica.4
interpretações encontramos nos Catecismos Menor e Maior, de 15292.
Nelas é característica, entre outros, a ênfase no envolvimento pessoal de 2. Confissão de Barmen
quem confessa a fé. “Deus me criou a mim e a todas as criaturas” ; “Jesus
Cristo [...] é meu Senhor” ; “o Espírito Santo me chamou pelo evange­ Em 1934, líderes de comunidades evangélicas da Alemanha, lutera­
lho”3. Mas há ainda outras exposições do Credo de autoria de Lutero, nas e reformadas, reuniram-se em Barmen e adotaram uma confissão de fé,
menos conhecidas. A que é mencionada a seguir assume praticamente a com o objetivo de contrapor-se à ideologia nacional-socialista centrada na
forma de formulação atualizada do Credo e provém do ano de 1520, ano figura do Führer (Adolf Hitler) e à interferência do Estado nacional-socia­
crucial para a Reforma e no qual Lutero redigiu algumas de suas obras lista, com sua ideologia, na vida da Igreja. O principal redator foi o conhe­
mais importantes. Nesta exposição, podemos observar como a pessoa cido teólogo Karl Barth. Reproduzimos as passagens principais, baseadas
que confessa a fé, destituída de todo valor próprio, deposita a sua confi­ em Jesus Cristo como único Senhor da Igreja. Por razões de espaço, omi­
ança inteira no próprio Deus, pois Deus, sim, é plenamente confiável. timos as introduções, com suas citações bíblicas com base nas quais se faz
a afirmação de fé e a negação da falsa doutrina5. Algumas igrejas, inclusive
Desta maneira, a formulação de Lutero reflete sua redescoberta central
da justificação por graça (de Deus) mediante a fé (de quem crê). de fora da Alemanha, como a Igreja Presbiteriana Unida dos Estados Uni­
dos da América e a Igreja Presbiteriana Reformada de Cuba6, reconhece­
Não coloco a minha confiança em nenhum ser humano na terra, nem ram oficialmente a Confissão de Barmen como sua confissão de fé.
em mim mesmo, em meu poder, saber, bondade ou piedade, nem na­
quilo que eu venha a possuir. Não coloco a minha confiança em ne­
nhuma criatura, esteja ela no céu ou sobre a terra. Eu me atrevo e 4 Martinho LUTERO, Obras selecionadas, v. 2: O programa da Reforma: escritos de 1520.
São Leopoldo / Porto Alegre: Sinodal / Concórdia, 1989, p. 185. [Tradução revista por
coloco a minha confiança exclusivamente no Deus uno, invisível, in­ mim.]
compreensível, criador do céu e da terra e que, só Ele, está acima de 5 O texto completo pode ser encontrado, em português em A Constituição da Igreja Presbi­
todas as criaturas. Por outro lado, não me apavoro com toda a malda­ teriana Unida dos Estados Unidos da América: Parte 1: Livro de confissões, São Paulo:
Missão Presbiteriana do Brasil Central, 1969, par. 8.01-8.28.
de do príncipe deste mundo e dos seus comparsas. Meu Deus está 6 A Igrej a Presbiteriana Reformada de Cuba adota as mesmas confissões da Igreja Presbiteri­
acima de todos eles. ana Unida dos Estados Unidos da América (que adotou inclusive, na década de 60, uma
confissão própria, a “Confissão de 1967”, centrada no tema da reconciliação, 2 Coríntios
5.19), mas acrescenta uma confissão própria, relativamente extensa, La confesión de f e de
1977, formulada tendo em mente o contexto de um país socialista. (Cf. LA CONSTITUCI-
2 In: Livro de Concórdia: as confissões da Igreja Evangélica Luterana, 4. ed., São Leopoldo ON DE LA IGLESIA PRESBITERIANA-REFORMADA EN CUBA: Parte I: Libro de
/ Porto Alegre: Sinodal / Concórdia, 1993, respectivamente p. 361-384 e 385-496. confesiones, LaHabana: Departamento de Publicaciones, Iglesia Presbiteriana-Reformada
3 Ibid., p. 370-371. en Cuba, 1997, respectivamente p. 203-216 e 217-251.) A í encontramos, por exemplo, as

168 169
1. [...] Jesus Cristo, como nos é atestado na Sagrada Escritura, é a 5. [...] A Escritura nos diz que o Estado tem o dever, conforme or­
única Palavra de Deus que devemos ouvir, e em quem devemos con­ dem divina, de zelar pela justiça e pela paz no mundo ainda que não
fiar e a quem devemos obedecer na vida e na morte. redimido, no qual também vive a igreja, segundo o padrão de julga­
Rejeitamos a falsa doutrina de que a Igreja teria o dever de reconhe­ mento e capacidade humana com emprego da intimidação e exercí­
cer - além e à parte da Palavra de Deus - ainda outros acontecimen­ cio da força. A igreja reconhece os benefícios dessa ordem divina
tos e poderes, personagens e verdades como fontes da sua pregação com gratidão e reverência a Deus. Lembra a existência do Reino de
e como revelação divina. Deus, dos mandamentos e da justiça divina, chamando, dessa forma,
2. [...] Assim como Jesus Cristo é a certeza divina do perdão de a atenção para a responsabilidade de governantes e governados. Ela
todos os nossos pecados, assim e também com a mesma seriedade, é confia no poder da Palavra e lhe presta obediência, mediante a qual
a reivindicação poderosa de Deus sobre toda a nossa existência. Por Deus sustenta todas as coisas.
seu intermédio experimentamos uma jubilosa libertação dos ímpios Rejeitamos a falsa doutrina de que o Estado poderia ultrapassar a sua
grilhões deste mundo, para servirmos livremente e com gratidão às missão específica, tomando-se uma diretriz única e totalitária da exis­
suas criaturas. tência humana, podendo também cumprir, desse modo, a missão con­
Rejeitamos a falsa doutrina de que, em nossa existência, haveria áreas fiada à Igreja.
em que não pertencemos a Jesus Cristo, mas a outros senhores, áreas Rejeitamos a falsa doutrina de que a Igreja poderia e deveria, ultra­
em que não necessitaríamos da justificação e santificação por meio passando a sua missão específica, apropriar-se das características,
dele. das tarefas e da dignidade7 estatais, tomando-se assim, ela mesma,
3. [...] A Igreja Cristã é a comunidade dos irmãos, na qual Jesus um órgão do Estado.
Cristo age atualmente como o Senhor na Palavra e nos Sacramentos 6. [...] A missão da Igreja, na qual repousa sua liberdade, consiste em
através do Espírito Santo. Como igreja formada por pecadores justi­ transmitir a todo o povo - em nome de Cristo e, portanto, a serviço da
ficados, ela deve, num mundo pecador, testemunhar com sua fé, sua sua Palavra e da sua obra pela pregação e pelo sacramento - a men­
obediência, sua mensagem e sua organização que só dele ela é pro­ sagem da livre graça de Deus.
priedade, que ela vive e deseja viver tão-somente da sua consolação Rejeitamos a falsa doutrina de que a Igreja, possuída de arrogância
e das suas instruções na expectativa da sua vinda. humana, poderia colocar a Palavra e a obra do Senhor a serviço de
Rejeitamos a falsa doutrina de que à Igreja seria permitido substituir quaisquer desejos, propósitos e planos escolhidos arbitrariamente. [...]
a forma da sua mensagem e organização, a seu bel-prazer ou de acor­
do com as respectivas convicções ideológicas e políticas reinantes. 3. Um Novo Credo (Igreja Unida do Canadá)
4. [...] A diversidade de funções na Igreja não estabelece o predomí­
nio de uma sobre a outra, mas antes o exercício do ministério confia­ Em 1968, a Igreja Unida do Canadá adotou sua confissão de fé,
do e ordenado a toda a comunidade. intitulada singelamente de “Um novo credo”. Trata-se de uma igreja uni­
Rejeitamos a falsa doutrina de que a Igreja, desviada deste ministé­ da, na qual se fundiram, em 1925, os metodistas, a maioria dos presbite­
rio, poderia dar a si mesma ou permitir que se lhe dessem líderes rianos e congregacionais, além de cerca de mil congregações unidas lo­
especiais revestidos de poderes de mando. cais do Canadá. Seu “novo credo”, formulado originalmente na década
de 60, adota a tradicional estrutura trinitária (Deus8, Jesus e o Espírito),
seguintes afirmações paralelas lapidares: “A fé em Jesus Cristo obriga a Igreja a pôr no mas a ênfase recai nitidamente na atualização. A afirmação básica, com a
centro de seu interesse e preocupação o ser humano e a considerar sua integridade como
parâmetro para julgar todas as coisas [...]”; “[...] Deus em Jesus Cristo nos revela que o
centro de seu interesse, preocupação e valorização de todas as coisas está em sua ‘criatura’ 7 Considero esta tradução mais adequada do que “dos deveres e das dignidades”, como consta
humana, até o ponto de ‘despojar-se’ a si mesmo e fazer-se ‘carne de pecado’ por sua em Á Constituição da Igreja Presbiteriana Unida dos Estados Unidos da América (cf. nota
redenção.” (Id., p. 227). A seguir, a categoria “ser humano” é desdobrada em suas múltiplas
5 ) , par. 8.26.
dimensões: economia, trabalho, comunidade, liberdade, história, e a Confissão proclama o 8 Note-se que é evitada a palavra “Pai”, como reflexo dos debates de teologia feminista que
Reino de Deus como superação da realidade do pecado.
tomaram força na década de 60.

170 171
qual o credo principia e conclui, é existencial: “Não estamos sós.” Não Não estamos sós.
estamos sós, fundamentalmente, porque Deus está conosco, mas tam­
Demos graças a Deus10.
pouco estamos sós como comunidade de fé. Pelo Espírito, Deus age tam­
bém em outras pessoas, que não pertencem a essa comunidade confes-
sante. O credo é, portanto, ecumênico e inclusivo, embora se possa ob­ 4. Um credo da África do Sul (Allan Boesak)11
servar que a questão da “solidão” e da “angústia existencial”, dela decor­ O credo a seguir reflete a confissão de fé no contexto de discrimi­
rente, é um problema mais agudo precisamente em países e grupos mais nação e segregação racial, característica do regime de apartheid, que
afluentes. Contudo, observe-se também que a proclamação de Jesus cru­ vigorou na África do Sul até os primórdios da década de 90. Também
cificado e ressurreto vem acompanhada do empenho pela justiça e da reflete a situação de pobreza e injustiça social. A intensidade do conflito e
resistência ao mal. A Igreja Unida do Canadá tem se caracterizado por da opressão faz com que, neste credo, sejam formuladas, em primeiro
forte solidariedade com igrejas e movimentos do Terceiro Mundo, pelo lugar, as negações, para serem contrapostas a seguir com as afirmações
empenho em causas sociais em seu próprio país e busca de reconciliação
bíblicas.
com as nações indígenas do território canadense9. 0 credo também con­
tém a afirmação da criação contínua de Deus. Em 1996, foi adotada uma Não é verdade que este mundo e suas pessoas estejam condenadas a
emenda que realça a consciência e a responsabilidade ecológica, incluin­ morrer e a se perderem - ISTO é verdade: “Porque Deus amou ao
do-se a expressão “viver com respeito na criação”. Segue o texto integral: mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigénito, para que todo o
que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.” (Jo 3.16)
Não estamos sós, vivemos no mundo de Deus. Não é verdade que devamos aceitar desumanidade e discriminação,
Cremos em Deus: fome e pobreza, morte e destruição - ISTO é verdade: “Eu vim para
Quem criou e segue criando; que tenham vida, e a tenham em abundância.” (Jo 10.10)
quem veio em Jesus, a Palavra feita carne, Não é verdade que a violência e o ódio devam ter a última palavra, e
para reconciliar e renovar; que a guerra e a destruição tenham vindo para permanecer para sem­
quem age em nós e em outras pessoas, pelo Espírito. pre - ISTO é verdade: “Um menino nos nasceu, um filho se nos deu;
Confiamos em Deus. o govemo está sobre os seus ombros; e o seu nome será: Maravilho­
Somos chamados a ser a Igreja: so, Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz.” (Is
Para celebrar a presença de Deus, 9.5)
viver com respeito na Criação, Não é verdade que nós simplesmente sejamos vítimas dos poderes
amar e servir às demais pessoas, do mal que procuram dominar o mundo - ISTO é verdade: “Toda
empenhar-se pela justiça e resistir ao mal, autoridade me foi dada no céu e na terra. [...] E eis que estou con­
proclamar a Jesus crucificado e ressurreto, vosco todos os dias até a consumação do século.” (Mt 28.18b,20b)
nosso juiz e nossa esperança. Não é verdade que, antes de poder fazer alguma coisa, tenhamos que
Na vida, na morte, na vida já além da morte, esperar por aquelas pessoas que são particularmente dotadas, que
Deus está conosco. são profetas da Igreja - ISTO é verdade: “Derramarei do meu espí­
rito sobre toda carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vos­
sos jovens terão visões, e sonharão vossos velhos.” (At 2.17)
9 Cf. Patrícia WELLS, Introducing the United Church o f Canada (s. 1., s. d., 20 p.): “Desde
seus inícios históricos [...] a Igreja Unida [do Canadá] tem sido portadora de uma forte
10 Finding your way. A newcomer’s guide to The United Church o f Canada, Etobicoke:
preocupação em favor da justiça social e uma crença de que não apenas nós, como indivíduos,
UCC, s. d., p. 24. (Tradução do Autor.)
mas nossa sociedade e suas estruturas, suas políticas e práticas, estão gravemente necessi­
11 Adaptado de um sermão; coletado por mim por ocasião de uma celebração ecumênica (sem
tadas de redenção.” (p. 15).
indicação de fonte original).

172 173
Não é verdade que nossos sonhos de libertação da humanidade, de Creio no Homem Novo que é Jesus Cristo Ressuscitado, primogênito
justiça, de dignidade humana, de paz, não sejam destinados para esta de todo Homem Novo!
terra e para esta história —ISTO é verdade: “Vem a hora, e já chegou Amém. Aleluia!
[...] que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e ver­
dade.” (Jo 4.23a,24b)
6. Credo da solidariedade (Luiz Carlos Ramos)13

5. Credo pela nova humanidade A confissão de fé a seguir é um belo exemplo de como, ainda que
(Dom Pedro Casaldáliga)12 seguindo fielmente a estrutura trinitária tradicional, inclusive com a dimen­
são eclesiológica e escatológica de sua parte final, a reformulação lhe
Observe-se neste credo, elaborado pelo bispo de São Félix do confere um caráter de grande atualidade e inclusividade. A influência da
Araguaia, a nítida influência da teologia da libertação. O contexto é ca­ teologia feminista se faz notar quando o amor de Deus assume traços
racterizado por injustiças, em meio às quais se afirma a confiança em paternos e matemos, embora o amor de Deus exceda todo amor huma­
Deus e na renovação do ser humano. no. Também Jesus é mais do que irmão, mas na Eucaristia nos faz compa­
Creio verdadeiramente na Causa do Homem Novo. nheiros e companheiras dele. O Espírito Santo tem a ver com sofrimento
Creio em outra Humanidade mais fraterna. [...] e alegria, e a Igreja, comunidade de fé, constrói e gesta uma nova realida­
Creio no impossível e necessário Homem Novo! de, consumada no Reino, eternidade do amor.
Não creio na segregação racial ou classista. (Porque uma só é a Creio em Deus, criador de tudo que é bom,
imagem de Deus no Homem.) que me ama com amor maior que o de pai
Não creio no desenvolvimento das minorias nem no desenvolvimento e cuida de mim com temura maior que a de mãe.
“desenvolvimentista” da maioria. (Porque esse desenvolvimento já Creio em Jesus Cristo, amigo mais chegado que irmão,
não é o nome novo da Paz.) que pagou por mim a grande dívida
Não creio no progresso a qualquer preço. (Porque o Homem foi com­ e convidou-me para ser-lhe companheiro
prado ao preço do Sangue de Cristo.) no cálice e no pão, na cruz e na ressurreição.
Não creio na técnica mecanizadora dos que dizem ao computador: Creio no Espírito Santo, temo consolador,
“Nosso pai és tu”. (Porque somente o Deus vivo é nosso Pai.) que me enxuga dos olhos as lágrimas
Não creio na consumidora sociedade de consumo. (Porque só são e me inspira nos lábios o sorriso.
bem-aventurados os que têm fome e sede de Justiça.) Creio na comunidade de fé, mutirão de fiéis,
Não creio na Cidade Celeste à custa da Cidade Terrestre. (Porque operários de um novo tempo,
“a Terra é o único caminho que nos pode levar ao Céu”.) gestantes do novo céu e da nova terra.
Não creio na Cidade Terrena à custa da Cidade Celeste. (Porque Creio no Reino pleno de vida abundante,
“não temos aqui cidade permanente e vamos para a que há de vir”.) na ressurreição dos corpos oprimidos,
Não creio no homem velho. (Porque creio no Homem Novo.) na eternidade do amor
e na solidariedade divino-humana.
Amém.

12 D. Pedro CASALDÁLIGA, Creio na justiça e na esperança, 2. ed., Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 1978, p. 240. Em contrapartida, a formulação deste credo ainda é
nitidamente androcêntrica, isto é, centrada no ser humano de gênero masculino. Credos 13 In: Rubem ALVES (Org.), CultoArte: celebrando a vida: Advento/Natal/Epifania, Petró-
que dão atenção à consciência de igualdade entre homem e mulher evitarão essa linguagem. polis / Campinas: Vozes, CEBEP, 1999, p. 32.

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7. Credo da mulher (Rachel C. Wahlberg)14 que curou uma mulher no sábado,
restabelecendo-lhe a saúde porque era um ser humano.
Nas últimas décadas, tem se difundido e avançado a causa da igual­ Creio em Jesus, que comparou Deus
dade e da libertação da mulher de estruturas patriarcais de dominação. A a uma mulher à procura de uma moeda perdida,
concepção de um papel subalterno para a mulher em relação ao homem, a uma mulher que varria, à procura de sua moeda.
e mesmo da mulher como um ser inferior, tem uma longa, profunda e Creio em Jesus,
trágica história no mundo ocidental e também na tradição cristã. Em con­ que considerava a gravidez e o nascimento com veneração,
trapartida, cresce atualmente a consciência de que a mulher tem igual dig­ não como um castigo,
nidade ao homem, enquanto criatura feita à imagem de Deus. E resgatam- mas como um acontecimento arrebatador,
se na Bíblia os elementos de igualdade e dignificação da mulher nela con­ uma metáfora de transformação,
tidos. Na atuação de Jesus é percebida, inclusive, uma valorização espe­ um novo nascer da angústia para a alegria.
cial da mulher através da atenção e da solidariedade concretas que ele Creio em Jesus,
devota a mulheres marginalizadas. Essa nova percepção também se faz no­ que se comparou à galinha que abriga seus pintinhos sob suas asas.
tória em numerosos credos atuais, de que aqui apresentamos um exemplo. Creio em Jesus,
Creio em Deus, que apareceu primeiro à Maria Madalena
que criou a mulher e o homem à sua imagem, e a enviou para transmitir a assombrosa mensagem
que criou o mundo e confiou a ambos os sexos o cuidado da terra. da ressurreição: “Vai e conta...”
Creio em Jesus, Creio na universalidade do Salvador,
Filho de Deus, eleito de Deus, em quem não há judeu nem grego,
nascido de uma mulher, Maria, escravo nem ser15 livre,
o qual escutava as mulheres e as apreciava: homem nem mulher,
morava em suas casas porque todos somos um na salvação.
e conversava com elas sobre o reino; Creio no Espírito Santo,
tinha mulheres discípulas, o espírito feminino de Deus,
que o seguiam e o ajudavam com seus bens. que nos criou e nos fez nascer,
Creio em Jesus, e qual galinha nos cobre com suas asas.
que falou de teologia com uma mulher, junto a um poço,
e lhe revelou, pela primeira vez, ser ele o Messias, 8. Credo de Seul: Creio nas promessas divinas16
a motivou a ir e contar as grandes novas à cidade.
Creio em Jesus, Este credo provém da assembléia ecumênica realizada em Seul,
sobre quem uma mulher derramou perfume, na casa de Simão; Coréia do Sul, em 1992, em tomo do programa de justiça, paz e integri­
o qual repreendeu os homens convidados que a criticavam; dade da criação do Conselho Mundial de Igrejas. O credo atualiza a fé e
creio em Jesus, a esperança cristãs para dentro das relações humanas e sociais deteriora­
o qual disse que essa mulher seria lembrada das, incluindo também a preocupação pelo cuidado da natureza. A vio-
pelo que havia feito - servir a Jesus.
Creio em Jesus,
15 Por motivos de linguagem inclusiva e por presunção de fidelidade ao original, alterei a
expressão “homem livre”, da versão à minha disposição, para “ser livre”.
16 Apud Beatrice AEBI et al. (Eds.), Sinfonia Oecumenica, Gütersloh, Basel: GUtersloher
14 Tradução de Maria Luiza Rtickert; coletado por mim por ocasião de uma celebração
Verlagshaus, Basileia, 1999, p. 962-965. (Tradução ao português do Autor.)
litúrgica (sem indicação de fonte original).

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lência, o armamentismo e a guerra são reconhecidos como contrários à e que a promessa de um novo céu e uma nova terra,
vontade de Deus. onde florescerão a justiça e a paz, será cumprida.
Creio em Deus que é amor
e que deu a terra a toda a humanidade. 9. Um credo pela terra (Dorothee Sõlle)17
Creio em Jesus Cristo,
Mais e mais se descobre a relevância e urgência da questão ecoló­
que veio para nos salvar
e nos libertar de toda classe de opressão. gica. O tema bíblico do domínio sobre a natureza (Gn 1) vai sendo enten­
dido cada vez mais em conjugação com o tema igualmente bíblico do
Creio no Espírito de Deus,
cuidado para com a natureza (Gn 2). O próprio ser humano vai sendo
que atua em todas e através de todos
os que buscam a verdade. redescoberto como parte integrante do conjunto da natureza, não como
um sujeito contraposto à natureza, a qual ele poderia explorar para seu
Creio na comunidade das pessoas que crêem,
usufruto ilimitado. O ser humano é parte da boa criação de Deus, que
que está chamada a servir a humanidade.
toda ela anela pela redenção, conforme testifica o apóstolo Paulo (Rm
Creio na promessa de Deus
8.18-23). Essa nova percepção se faz sentir também em novas formula­
de destruir a força do pecado em todos nós
ções do Credo, como este da teóloga alemã Dorothee Sõlle:
e de criar para a humanidade inteira um reino de paz e justiça.
Não creio no direito do mais forte, Creio na boa criação de Deus, a Terra.
nem na força das armas Ela é santa,
nem no poder da opressão. ontem, hoje e amanhã.
Creio nos direitos humanos, Não a toques,
na solidariedade entre todos os seres, ela não te pertence,
no poder da não-violência. muito menos a qualquer empresa.
Não creio no racismo, Não a possuímos como um objeto,
no poder que cresce de riqueza e privilégios, que se compra, utiliza e joga fora;
ela pertence a alguém outro.
nem em nenhum sistema existente que escravize homens e mulheres.
Creio que todas as mulheres e todos os homens são seres iguais em Que poderíamos saber acerca de Deus
sua humanidade sem ela, nossa Mãe?
Como poderíamos falar acerca de Deus
e que um sistema baseado na violência e injustiça não é ordem ne­
nhuma. sem as flores que louvam a Deus,
sem o vento e a água,
Não creio que a guerra e a fome sejam inevitáveis, que em sussurros falam a seu respeito?
nem que a paz nunca possa ser alcançada. Como poderíamos amar a Deus,
Creio na beleza da simplicidade, sem aprender de nossa mãe
no amor com as mãos abertas, o cuidar e o preservar?
na paz sobre a terra. Creio na boa criação de Deus, a Terra;
Não creio que o sofrimento seja em vão, ela está aí para todas as pessoas, não apenas para os ricos.
que a morte seja o fim, Ela é santa.
que Deus tenha querido a deformação de nosso mundo.
Mas me atrevo a crer 17 Dorothee SÖLLE, Credo für die Erde, Ökumenische Rundschau, Frankfurt am Main, v.
que o poder de Deus pode transformar e produzir mudanças 48, p. 488, out. 1999.

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Cada uma das folhas, Com nossos irmãos e irmãs judeus, confessamos que
o mar e a terra firme, Deus é o criador do Universo e é Santo.
a luz e a escuridão, Diferente deles, confessamos que
o nascer e o morrer, o Criador se faz criatura e que o Santo se encarnou.
todos cantam a canção da Terra. Com nossos irmãos e irmãs muçulmanos, confessamos que
Não nos deixes viver um único dia Deus é Todo-Poderoso, Perfeito e Imortal.
no esquecimento dela. Diferente deles, confessamos que o Todo-poderoso aceitou fazer-se
Queremos preservar seu ritmo frágil,
e deixar que brilhe sua sorte, que o Perfeito levou nossas imperfeições e
protegê-la de ganância e prepotência. que o Imortal, pela morte e ressurreição de Jesus,
Porque ela é santa, transfigurou nossa mortalidade.
podemos tomar-nos livres de ganância. Com nossos irmãos e irmãs hindus, confessamos que
Porque ela é santa, Deus é o Uno indescritível.
aprendemos a saná-la. Diferente deles, confessamos que sua Unidade é multiplicidade
Creio na boa criação de Deus, a Terra. e que o mundo múltiplo não se desfaz dentro do Uno.
Ela é santa, Com nossos irmãos e irmãs budistas, confessamos que
ontem, hoje e amanhã. a Realidade última é Inexprimível.
Diferente deles, confessamos que o Inexprimível se exprimiu,
não como um “Vazio” impessoal, o nada (shunyata),
10. Confissão cristã num contexto inter-religioso: mas como uma Pessoalidade que se “esvaziou” (kénosis).
Crer num Deus vivente18 Assim, com as religiões do Oriente confessamos
que Deus é Silêncio e Sopro.
No mundo atual, a cristandade se encontra inserida numa realidade
Com as religiões judaica e muçulmana,
cada vez mais multicultural e multirreligiosa. Esse é um novo desafio, em
que Deus é Palavra.
que a fé cristã reconhece que, sem renunciar à afirmação do caráter único Diferente delas, confessamos que Deus é tudo simultaneamente,
da fé em Cristo como Salvador, deixa de lado qualquer espírito de supe­ Silêncio, Palavra e Sopro (Pai, Filho e Espírito Santo),
rioridade do cristianismo como expressão religiosa, mas se encontra lado a que a fonte silenciosa se fez Palavra,
lado em diálogo e, tanto quanto possível, cooperação com outras religiões. que a Palavra se fez carne
Com todos os nossos irmãos e irmãs cristãs confessamos e que pelo Sopro da Palavra toda carne pode converter-se
que Deus é Único, em palavra animada para a glória de Deus bem além de tudo.
Pai, bem além de tudo e de todos, Com todos os nossos irmãos e irmãs da humanidade sem religião e de
Filho, aproximando-se a tudo e a todas boa vontade
e Espírito Santo, dentro de tudo e de todos. confessamos que os direitos do homem e da mulher são inalienáveis.
Confessamos que o Deus três vezes Santo é Mistério Diferente deles, confessamos que o ser humano é imagem divina.
de infinidade e de proximidade, Com o Apóstolo Paulo e todas as pessoas cristãs de todos os tempos,
de comunhão e de comunicação, confessamos a divindade, a encarnação, a morte, a ressurreição e a
de ternura e de justiça. ascensão de Jesus,
Filho de Deus, reconhecido como Messias,
que veio e que há de vir (Fp 2.5-11).
18 B. AEBI et al., op. cit., p. 970-973. (Tradução ao português do Autor.) Esta confissão comum nos alegra enormemente.

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11. Confissão do povo de Deus de Abya Yala: Cremos que tens o sonho
um credo macroecumênico19 de tomar-nos plenamente humanos,
mulheres e homens em harmonia
O cenário multirreligioso também se faz notar, crescentemente, na sobre esta Terra-Mãe
América Latina. Percebe-se com clareza cada vez maior a diversidade que nos alimenta e nos une,
cultural dos povos e etnias. O intento de refletir e confessar a fé cristã em uma só casa e em uma mesa comum.
nesse contexto pode levar também a formulações ousadas, como a deste Cremos que teu sonho coincide
Credo Macroecumênico. A expressão “macroecumenismo”, oriunda de com os melhores sonhos
uma proposta de Dom Pedro Casaldáliga e crescentemente empregada, de todas as pessoas e povos.
é bastante controvertida. Ela pretende estender o arco do que seja ecu­ Queres fazer-nos felizes,
menismo para além das igrejas cristãs, incorporando as demais religiões. já aqui e mais além da morte,
junto a ti e a nossos antepassados,
Isso é legítimo, na medida em que o termo ecumene significa, etimologi-
junto a toda a humanidade.
camente, “toda a terra habitada”, englobando portanto a humanidade in­
Mas sabemos que esse sonho teu
teira. Contudo, o termo tampouco é desprovido de ambigüidades, po­ demanda nossa participação
dendo sugerir um nivelamento “sincrético” de diferentes expressões religio­ livre e solidária em defesa da Vida
sas, além de poder indiretamente depreciar o ecumenismo entre igrejas e na implantação da Paz, da Justiça.
cristãs como sendo algo secundário ou de menor valor. Em todo caso, a Sentimos-te presente
pluralidade cultural e religiosa perfaz um contexto cada vez mais inevitável como “o próximo e o junto”
para a comunidade cristã em seu testemunho de fé. em nosso caminhar de Libertação.
Mulheres e homens Descobrimos-te em cada rosto humano,
de muitos sangues mulher e homem;
mas de um só coração indígena, negro, mestiço e branco;
e numa mesma Pátria Grande, criança e idoso;
confessamos-te e amamos-te e na luz e na terra e nas águas.
como o Coração do Céu Acolhemos-te em todos os pobres e
e o Coração da Terra, marginalizados do mundo
desde todos os tempos como o grande necessitado de amor.
adorado em todas as culturas, Confiamos na força e no júbilo de teu Espírito
caminho em todos os caminhos dos Povos. que nos mantém e nos impulsiona
Deus de todos os nomes e nos faz cantar e dançar
e maior que todos eles, e nos leva pelas veredas da utopia,
fazedor do Universo, fonte de Vida, apesar da dor e contra o império da destruição.
Pai e Mãe de nós todos, Sabemos que vencerás sobre os ídolos da morte,
que se tomou como um de nós adorados no lucro e na prepotência,
e Libertador de todos, assassinos de milhões de vidas,
em Jesus de Nazaré. aniquiladores da Pachamama,
em nosso continente e em todo o Terceiro Mundo.
Cremos que nos amas porque és o Amor.
Sabemos que nos queres sempre mais semelhantes a ti.
19 I Encontro da Assembléia do Povo de Deus (APD), Quito, Equador, setembro de 1992.

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Vida, Presença e Comunhão,
Mulheres Novas e Homens Novos,
na comunidade fraterna de teu Povo,
caminho para a terra sem males,
o Novo Céu e a Nova Terra
que nos preparaste como herança.
Jahuai, Axé, Shalom.

12. Palavra final


Colaboraram na
Em conclusão, podemos dizer que a comunidade cristã está per­ elaboração deste livro
manentemente chamada a confessar sua fé. Recorre, para tanto, também
os seguintes teólogos
a novas formulações, às Vezes ousadas, mas guia-se, em seu discernimen­
to, por aquelas confissões da Igreja Antiga que passaram a ser patrimônio e teóloga:
comum da cristandade, nas quais a comunidade cristã reconheceu como
corretamente expressa sua fé. Entre elas, está em lugar proeminente o Walter Altmann
Credo Apostólico. Formulações de outros tempos e outros lugares po­
dem ter elevada relevância, como expressão dessa fé dentro de novas
Martin N. Dreher
situações. Eventualmente, igrejas inteiras chegam a identificar-se com es­ Gottfried Brakemeier
sas novas formulações, incorporando-as à sua base confessional. No mais Wanda Deifelt
das vezes, as tentativas se esvaem com seu próprio tempo. Nenhuma
delas, por mais atual e relevante que possa ser, pode pretender substituir Ricardo W. Rieth
aqueles credos da Igreja Antiga ou colocar-se em pé de igualdade com Albérico Baeske
eles. A medida de todos os credos, porém, inclusive do Apostólico, se
Enio R. Mueller
encontra na própria Escritura, como testemunho da única Palavra de Deus,
que contudo se atualiza em todas as épocas, lugares e situações. Joaquim H. Fischer
Kjell Nordstokke
Osmar L. Witt

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