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VI

SANTO AGOSTINHO

CONFISSÕES
Tradução de J. Oliveira Santos, S.J., e A. Ambrósio de Pina, S.J.

DE MAGISTRO
CDO MESTRE)

Tradução de Ângelo Ricci

EDITORA ABRIL

EDITOR: VICTOR CIVITA


Títulos originais:
Confessionum, libri tredecim
De Magistro

l.a edição —Fevereiro 1973

— Copyright desta edição, 1973,


Abril S.A. Cultural e Industrial, São Paulo.
Traduções publicadas sob licença de:
Livraria Apostolado da Imprensa, Porto (Confissões).
Ângelo Ricci (De Magistro), detentor dos direitos autorais sobre a tradução.
Sumário

Confissões.................................................................................................... 9
DeMagÍstro.................................................................................................. . .319
CONFISSÕES
Índice
PRIMEIRA PARTE

LIVRO I
A INFÂNCIA
1. Invocação ou louvor? ........................................................................... 25
2. Deus está no homem; o homem em Deus .......................................... 26
3. Deus está todo em toda a parte ............................................................ 26
4. Cantando as perfeições de Deus .......................................................... 27'
5. Lágrimas do Pródigo ........................................................................... 27
6. No alvorecer da vida ........................................................................... 28
7. Prognósticos de vícios ......................................................................... 30
8. Como aprendi a falar ........................................................................... 31
9. Na paixão do jogo ................................................................................ 32
10. O orgulho da vitória .............................................................................. 33
11. No limiar do batistério ......................................................................... 33
12. Relutância em estudar ......................................................................... 34
13. Gosto do latim ............................... 35
14. Aversão à língua grega ......................................................................... 36
15. “Ouvi, Senhor... ” .............................................................................. 37
16. A mitologia impura .............................................................................. 37
17. A declamação ..................................................... 39
18. Desprezo das leis eternas ..................................................................... 39
19. Perversidade na puerícia ....................................................................... 40
20. Magnificat ................................... 41
LIVRO II
OS PECADOS DA ADOLESCÊNCIA
1. Desordens da juventude ....................................................................... 45
2. Sob a ação da carne .............................................................................. 45
3. “Nas praças da Babilônia” ................................................................... 46.
4. História dum furto ................................................................................ 48.
5. A causa ordinária do pecado .............................................................. 49
6. A alegria do mal ................................................................................... 50
7. O perdão ................................................................................................ 51
8. O prazer,da cumplicidade ..................................................................... 52
9. O riso da maldade ................................................................................ 52
10. Quero aluz ............................................................................................ 53
12’ ÍNDICE

LIVRO III
OS ESTUDOS
1. Amores impuros .................................................... 57
2. Do prazer dramático ..................................... . ;................................. 57
3. O estudante de retórica e os “demolidores” ......................................... 59
4. A influência de um livro de Cícero .................. .• .•............................... 59
5. Perante a simplicidade daBíblia .................................. 60
6. Seduzido pelo maniqueísmo ................................. .■............................. 61
7. Vencido pela ignorância epelos maniqueístas ..................................... 63
8. A moral e os costumes ......................................................... 64
9. As imperfeições .................................................................................... 66
10. Extravagâncias heréticas .................................................................. 66
11. O sonho de Mônica ................................................................ 67
12. Teu filho não perecerá! ........................................... 68
LIVRO IV
O PROFESSOR
1. Nove anos de erro ................................................................................ 73
2. Pela estrada larga .......................................... ............................... 73
3. A sedução da astrologia ...................................• . . . ........................... 74
4. A perda dum amigo ............. -..................... 76
5. O reconforto das lágrimas ..................................... 76
6. Violência da dor ........................................................... 76
7. Deixa Tagaste .................................................................. 78
8. O tempo diminui a dor ......................................................................... 79
9. A verdadeira amizade ......................................................................... 79
10. Insatisfação nas criaturas .............................................. 80
11. Eis a paz! .................................................................... 80
12. O amor em Deus ......................................................... 81
13. O que é o belo? .................................................................................... 82
14. Homenagem a Hiério ........................................................................... 82
15. O problema do belo e do mal .............................................................. 84
16. As dez categorias de Aristóteles .......................................................... 85
LIVRO V
EM ROMA E EM MILÃO
1. Lábios em prece ....................................................... . . •. 91
2. Não se foge à vista de Deus ........................ ’.............. 91
3. Inconsistência do maniqueísmo .......................................................... 92
4. Feliz o que conhece a Deus .................................................................. 93
5. O sábio ignorante .................................................. 94
6. Eloquência de Fausto ........................................................................... 95
7. O desiludido ........................................................................................ 96
8. A caminho de Roma ........................................................................... 97 '
9. O flagelo da doença ............................................................. 98
10. Erros maniqueístas de Agostinho ....................................................... 100
11. Evasiva dos maniqueístas '..................................................................... 101,
ÍNDICE 13

12. Fraude dos discípulos :......................................................................... 102


13. Em Milão. Encontro com Santo Ambrósio ........................................ 102
14. O catecúmeno ....................................................................................... 103

LIVRO VI
ENTRE AMIGOS
1. Amor de mãe ......................................................................................... 109
2. A obediência de Mônica ....................................................................... 110
3. O trabalho de Ambrósio ............................................ 111
4. A letra e o espírito ................................................................................ 112
5. O valor da Bíblia .................................................................................. 113
6. Miséria da ambição ! — O encontro do mendigo ............................... 114
7. A amizade de Ahpio ........... '............................................................... 115
8. Quem ama o perigo ....................................................... 117
9. Por linhas tortas. . . Alípio e um roubo ............................................ 118
10. Dois amigos ....................................... 119
11. Luta da alma em busca da verdade ..................................................... 120
12. Matrimônio e castidade ....................................................................... 121
13. O pedido de casamento ....................................................................... 122
14. Projeto desfeito .................................................................................... 123.
15. Cativo do prazer .................................................................................. 123
16. Sob a asa de Deus ................................................................................ 124

LIVRO VII
A CAMINHO DE DEUS
1. Emancipando-se do falso conceito de Deus ........................................ 129
2. Argumento de Nebrídio contra os maniqueístas ............................... 130
3. A causa do mal .................................................................................... 131
4. Deus é incorruptível .............................................................................. 132
5. É Deus*o autor do mal? ....................................................................... 132
6. Os vaticínios dos astrólogos ................................................................ 134
7. Ainda o problema do mal ..................................................................... 136
8. O colírio das dores .......................................................... *.................... 137
9. O neoplatonismo e a fé cristã .............................................................. 137
10. O descortinar do mistério divino .......................................................... 139
11. A relatividade das criaturas .......................................... 139
12. O problema do mal. A perfeição das criaturas .................................... 140
13. A solução do problema do mal. As dissonâncias de pormenor ......... 140
14. A trajetória dum erro ............................................................................ 141
15. A harmonia da criação ......................................................................... 142
16. Onde reside o mal . ...................................................................... .. . '142.
17. Ascensão dolorosa ................................................................................ 142
18. O único caminho para a Verdade ........................................................ 143
19. Hesitante na doutrina do Verbo .......................................................... 144
20. Do platonismo à Sagrada Escritura ........................................ •.......... 145
21. Entre o esplendor da verdade e o platonismo >...................................... 146
14 ÍNDICE

LIVRO VIII í

A CONVERSÃO
1. “A pérola preciosa” .............................................................................. 151
2. A conversão de Vitorino ....................................................................... 152
3. A alegria do que volta a Deus .............................................................. 154
4. O regozijo da Igreja .............................................................................. 155
5. A luta das vontades ............................................................................. 156
6. Narração de Ponticiano ....................................................................... 158
7. Reação de Agostinho ........................................................................... 160
8. No jardim de Milão. Luta espiritual ................................................... 161
9. A vontade em guerra ........................................................................... 162
10. Contra os maniqueístas ....................................................................... 162
11. O espírito e a carne. Últimas lutas ..................................................... 164
12. A conversão ........................................................................................... 165
LIVRO IX
O BATISMO
1. Em colóquio com Deus ....................................................................... 171
2. O adeus à cátedra .................................................................................. 171
3. Saudades dum amigo ........................................................................... 173
4. Na quinta de Cassicíaco ....................................................................... 174
5. Em comunicação com SantoAmbrósio .............................................. 177
6. O batismo ............................................................................................. 177
7. O canto na igreja. Prenúncios de perseguição .................................... 178
8. A morte de Mônica em óstia. Suaeducação ....................................... 179
9. Mônica,esposa modelar ....................................................................... 181
10. O êxtase de Óstia .................................................................................. 182
11. Últimos desejos de Mônica .............................................................. 184
12. Lágrimas de dor .................................................................................... 185
13. Preces pela mãe .................................................................................... 187
SEGUNDA PARTE
LIVRO X
O ENCONTRO DE DEUS
1. O apelo à verdade .................. '............................................................ 195
2. Deus tudo penetra ................................................................................ 195
3. Confessar-me aos homens? ! ........... ..................................................... 195
4. O fruto das “Confissões” ..................................................................... 196
5. A ignorância humana ........................................................................... 197
6. Quem é Deus? ...................................................................................... 198
7. Ultrapassando a força corpórea ......................................................... 200
8. O palácio da memória ......................................................................... 200
9. A memória intelectual ......................................................................... 202
10. A memória e os sentidos ....................................................................... 203
11. A memória e as idéias inatas .............................................................. 203
12. A memória e as matemáticas .............................................................. 204
13. “A memória lembra-se de se lembrar” ................................................. 204
ÍNDICE 15

14. A lembrança dos afetos da alma .......................................................... 205


15. A memória das coisas ausentes ............................................................ 206
16. A memória lembra-se do esquecimento .............................................. 206
17. Da memória a Deus .............................................................................. 207
18. A lembrança do objeto perdido ............................................................ 208
19. O que é a reminiscência? ..................................................................... 209
20. Como procurar a felicidade ................................................................ 209
21. A lembrança da felicidade ................................................................... 210
22. A alegria é só Deus .............................................................................. 211
23. A felicidade na verdade ....................................................................... 211
24. Deus na memória .................................................................................. 212
25. Onde? .................................................................................................... 213
26. O encontro de Deus .............................................................................. 213
27. Tarde Vos amei! . ................................................................................. 214
28. Miséria da vida humana ....................................................................... 214
29. Toda a esperança está em Deus .......................................................... 215
30. Tríplice tentação .................................................................................. 215
31. A gula .................................................................................................... 216
32. A sedução dos perfumes....................................................................... 218
33. O prazer do ouvido .............................................................................. 219
34. A sedução do olhos .............................................................................. 220
35. A curiosidade ....................................................................................... 221
36. O orgulho ............................................................................................. 223
37. A tentação do louvor ............................................................................ 224
38. A vangloria ........................................................................................... 226
39. O amor-próprio .................................................................................... 226
40. À busca de Deus .................................................................................. 227
41. A tríplice concupiscência ..................................................................... 228
42. Falsos mediadores ................................................................................ 228
43. Cristo, Mediador Imortal ..................................................................... 229

LIVRO XI
O HOMEM E O TEMPO
1. Confessar a Deus o que Ele já conhece? ............................................ 235
2. Os arcanos das palavras divinas .......................................................... 235
3. Como compreender Moisés? .............................................................. 237
4. Deus, no poema da criação ................................................................... 237
5. A palavra criadora ................................................................................ 238
6. A voz ecoando no silêncio ................................................................... 239
7. O Verbo de Deus coeterno com Deus ................................................. 239
8. Nós, discípulos do Verbo ..................................................................... 240
9. A luz do Verbo em mim ....................................................................... 240
10. Que faria Deus antes da criação? ........................................................ 241
11. O tempo não pode medir a eternidade ................................................. 242
12. O que fazia Deus antes da criação do mundo .................................... 242
13. O eterno “hoje” .................................................................................... 243
14. O que é o tempo? .................................................................................. 243
J6 ÍNDICE

15. As três divisões de tempo ..................................................................... 24'4


16. Pode medir-se o tempo .....................................’.................................... 245
17. Através do pretérito e do futuro ........................ *................................ 246'
18. O vaticínio do futuro pelo presente ..................................................... 246
19. Oração ao Senhor do futuro ................................................................ 247
20. Conclusão desta análise: nova terminologia ...................................... 248
21. Novas dificuldades: Como pode medir-se o tempo? ........................... 248
22. Senhor, desfazei este enigma! ......................... ’.................................. 249
23. O tempo é uma certa distensão ............................................................ 249
24. O tempo não é o movimento dos corpos ............................................ 251
25. “Senhor, iluminareis as minhas trevas” .............................................. 251
26. Nova teoria sobre o tempo .................................................................. 252
27. Uma experiência .................................................................... 253
28. O tempo e b espírito ............................................................................. 254
29. A unidade do meu ser ........................................................................... 255
30. Para além dos tempos ......................................................................... 256
31. Deus conhece de modo diferente das criaturas .................................... 256
LIVRO XII
A CRIAÇÃO
1. A grande tortura .................................................................................. 261
2. Dois céus e duas terras ......................................................................... 261
3. Trevas sobre o abismo ......................................................................... 261
4. A matéria informe . ..............’.............................................................. -262
5. Sua natureza ......... •................................................... 262
6. O conceito da matéria informe ............................................................ 262
7. A criação do céu e da terra .................................................................. 263
8. O princípio do mundo visível ....................:........................................ 264
9. O caos transcende o tempo . . .’............................................................ 264
10. Invocação à Verdade ........................................................................... 265
11. Revelastes-me ...................................................................................... 265
12. Duas criaturas prescindem dotempo .................................................. 266
13. Interpretação das primeiras palavras bíblicas .................................... 267
14. A profundeza da Escritura .................................................................. 267
15. Em discussão ................................................................................. 268
16. Adversários rejeitados ........... •............................................................ 270
17. Opiniões diversas .................................................................................. 270
18. Interpretações legítimas ................. 271
19. Interpretações únicas ........................................................................... 272
20. Interpretações arbitrárias . .................... ....... 272
21. Segundo versículo do Gênesis ....................... ■...................................... 273
22. Objeções ............................................................................................... 274
23. Duas espécies de questões .................................................................. 275
24. O pensamento de Moisés ,.................................................................. 275
25. A refutação ................................... ' 276
26. Se eu fosse o escritor do Gênesis! .......................... '1'11'
27. O passarinho implume! ...............................................•....................... 278
ÍNDICE D

28. Multiplicidade de interpretações .......................................................... 278


29. Objeções e prioridade da matéria ........................................................ 279
30. A concórdia ........................................................................................... 281
31. Moisés e os diversos sentidos da Bíblia ............................... 281
32. Senhor, inspirai-me! .............................................................................. 282

LIVRO XIII
A PAZ .

1. Benefícios de Deus para com o homem ............................................... 287


2. Deus, subsistência da criação . . . ..................................................... 287
3. O manancial divino ............... 288
4. Deus não precisa das criaturas ............................................................ 289
5. A Trindade divina ................................................................................ 289
6. Por que pairava o espírito sobre as águas ........... 290
7. Dons do Espírito Santo . . . . :............................................................ 290
8. A inquietação e o regaço de Deus ........................................................ 291
9. O peso do amor ............................. •...................................................... 291
10. Tudo o que temos é dom de Deus ....................................................... 292
11. A concepção da Trindade ..................................................................... 292
12. O “fiat lux” na Igreja ............................................................................ 293
13. Somos lamparina que há de ser estrela .............................................. 294
14. Na esperança ......................................................................................... 295
15. A Escritura e. os anjos ......................................................................... ‘ 296
16. Ciência, Luz e Vida .............................................................................. 297
17. As águas amargas, alegoria dos mundanos ........................................ 297
18. Os justos, astros no firmamento .......................................................... 298
19. Alegoria da “terra enxuta” ................................................................... 300
20. Interpretações místicas ......................................................................... 301
21. A alma cristã ......................................................................................... 302
22. Renovação de espírito .......................................................................... 304
23. De que coisas pode julgar o homem espiritual ................................... 304
24. “Crescei e multiplicai-vos!” ................................................................ 306
25. “Os frutos da terra” .............................................................................. 308
26. Almas refloridas — São Paulo ............................................................ 309
27. Os “peixes” e os “cetáceos” ................................................................. 310
28. A obra da Criação é essencialmente boa ...................... •................ 311
29. Fora do tempo ....................................................................................... 311
30. Erros dos maniqueístas sobre a criação ............................................... 312
31. Deus ilumina onosso olhar ................................................................. 312
32. O conjunto da criação ......................................................................... 313
33. A matéria e a forma do Universo ........................................................ 314
34. Simbolismo da Criação ....................................................................... 314
35. A paz ..................................... 315
36. O penhor da Vida Eterna ............................... ;................................... 315
37. O repouso de Deus ................................................................................. 316
38. A ação de Deus em nós ....................................................................... 316
Et sensi, expertus sum non esse mirum,
quodpalato non sano poena est etpanis, qui
sano suavis est, et oculis aegris odiosa lux,
quaepuris amabilis.

Senti e experimentei não ser para admirar


que o pão, tão saboroso ao paladar saudá­
vel, seja enjoativo ao paladar enfermo, e que
a luz, amável aos olhos límpidos, seja, odiosa
aos olhos doentes.
Liv. IV, cap. 16.

Fecisti nos ad Te et inquietum est cor nos-


trum, donec requiescat in Te.

Criastes-nos para Vós e o nosso coração


vive inquieto, enquanto não repousa em Vós.
Liv. I, cap. 1.
PRIMEIRA PARTE
Nesta primeira parte das “'Confissões”,
Santo Agostinho confessa o que foi outrora
nos seus desregramentos
LIVRO I

A INFÂNCIA

I — Apelo ao Ser (1-5).


II — Infância e puerícia (6-8).
hIII — A educação (9-20).
1
Invocação ou louvor?

1. “Sois grande, Senhor, e infinita­ Concedei, Senhor, que eu perfeita-


mente digno de ser louvado1.” “É mente saiba se primeiro Vos deva invo­
grande o vosso poder e incomensurável car ou encomiar, se, primeiro, Vos
a vossa sabedoria2.” O homem, frag- deva conhecer ou invocar4.
mentozinho da criação, quer louvar-
Vos; — o homem que publica a sua Mas quem é que Vos invoca se antes
mortalidade, arrastando o testemunho Vos não conhece? Esse, na sua igno­
do seu pecado e a prova de que Vós rância, corre perigo de invocar a
resistis- aos soberbos. Todavia, esse outrem. — Ou, porventura, não sois
homem, particulazinha da criação, de­ antes invocado para depois serdes
seja louvar-Vos. Vós o incitais a que se conhecido? “Mas como invocarão
deleite nos vossos louvores, porque nos Aquele em quem não acreditaram? Ou
criastes para Vós e o nosso coração como hão de acreditar, sem que al­
vive inquieto, enquanto não repousa guém lhes pregue? 5” “Louvarão ao Se­
em Vós3. nhor aqueles que O buscarem6.” Na
1 5/95,4. verdade, os que O buscam, encontrá-
2 Sl 146,5. Lo-ão, e aqueles que O encontram hão
3 Esta frase é a síntese de todo o livro. A nostalgia
de Deus habita no coração do homem. E um espi­ de louvá-Lo.
nho cravado na sua carne. . . O homem, na sua Que eu Vos procure, Senhor, invo-
angústia existencialista, como Kierkegaard, Jaspers,
Marcei, grita perante o ser. . . (N. do T.) cando-Vos; e que Vos invoque, crendo
4 Os cinco primeiros capítulos desenvolvem-se em em Vós, pois nos fostes pregado.
oração laudatória a Deus, num lirismo vibrante de Senhor, invoca-Vos a fé que me destes,
gênio. Eis o seu aspecto geral sistematizado: O
homem, “fragmentozinho da criação”, anseia lou­ a fé que me inspirastes por intermédio
var a Deus, centro e repouso da alma inquieta. da humanidade de vosso Filho e pelo
Como procurá-Lo e conhecê-Lo? Invocando-0 com
_ fé e louvor. ministério do vosso pregador 7.
Deus é imenso e está nos seres por presença (nada
lhe é oculto), por substância (existe em todas as coi­ 5 Rom 10, 14.
sas), por potência (opera em todos os seres). Quais e 5/21,27.
as suas perfeições? O que é a alma de Agostinho 7 Referência a Santo Ambrósio, que contribuiu
perante o único Bem? (N. do T.) para a conversão de Agostinho. (N. do T.)
26 SANTO AGOSTINHO

2
Deus está no homem; o homem em Deus

2. E como invocarei o meu Deus — se existo, que motivo pode haver para
meu Deus e meu Senhor —, se, ao Vos pedir que venhais a mim, já que
invocá-Lo, O invoco sem dúvida den­ não existiría se em mim não habitás­
tro de mim?8 E que lugar há em mim, seis? Não estou no inferno, e, contudo,
para onde venha o meu Deus, para também Vós lá estais, pois “se descer
onde possa descer o Deus que “fez o ao inferno, aí estais presente1 °”.
céu e a terra”?9 Pois será possível, Se­ Por conseguinte, não existiría, meu
nhor meu Deus, que se oculte em mim Deus, de modo nenhum existiría, se
alguma coisa que Vos possa conter? É não estivésseis em mim. Ou antes, exis­
verdade que o céu e a terra que criastes tiría eu se não estivesse em Vós, “de
e no meio dos quais me criastes Vos quem, por quem e em quem todas as
encerram? coisas subsistem”? Assim é, Senhor,
Será, talvez, pelo fato de nada do assim é. Para onde Vos hei de chamar,
que existe poder existir sem Vós, que se existo em Vós? Ou donde podereis
todas as coisas Vos contêm? E assim, .vir até mim? Para que lugar, fora do
céu e da terra, me retirarei, a fim de
8 Os cinco primeiros capítulos das Confissões que venha depois a mim o meu Deus,
assemelham-se muito à invocação duma epopéia
teológica ou sobrenatural. São um apelo do ser que disse: “Encho o céu e aterra”?
contingente dirigido a Deus Infinito.
9 Gên 1, 1. 10 Sl 138,8.

3
Deus está todo em toda parte

3. Encerram-Vos, portanto, o céu e não Vos derramais. E quando Vos der­


a terra porque os encheis? Ou, enchen- ramais sobre nós, não jazeis por terra,
do-os, resta ainda alguma parte de mas levantais-nos, nem Vos dispersais,
Vós, já que eles Vos não contêm? E, mas recolheis-nos.
ocupado o céu e a terra, para onde Vós, porém, que tudo encheis, não
estendereis o que resta de Vós? Ou não ocupais todas as coisas com toda a
tendes necessidade de ser contido em vossa grandeza? E, já que não podem
coisa, Vós que abrangeis tudo, conter-vos todas as criaturas, encer­
visto que as coisas que encheis as ocu­ ram elas parte de Vós e contêm simul­
pais, contendo-as? Não são, pois, os taneamente a mesma parte? ou cada
vasos11 cheios de Vós que Vos tornam parte contém a sua, as maiores, as par­
estável, porque, ainda que se quebrem,11 tes maiores, as menores, as partes
menores? Há então uma parte maior e
11 Santo Agostinho, nesta passagem, compara os
outra menor de Vós — ou estais intei­
seres a vasos, que a presença de Deus enche até ro em toda parte e nenhuma coisa Vos
transbordarem. (N. do T.) contém totalmente?
CONFISSÕES I 27

4
Cantando as perfeições de Deus1 2

4. Que sois, portanto, meu Deus? Amais sem paixão; ardeis em zelos
Que sois Vós, pergunto, senão o Se­ sem desassossego; arrependeis-Vos
nhor Deus? “E que outro Senhor há sem ato doloroso; irais-Vos e estais
além do Senhor, ou que outro Deus calmo; mudais as obras, mas não mu­
além do nosso Deus?13” Ó Deus tão dais de resolução; recebeis o que
alto, tão excelente, -tão poderoso, tão encontrais, sem nunca o ter perdido.
onipotente, tão misericordioso e tão Nunca estais pobre e alegrais-Vos
justo, tão oculto e tão presente, tão for­ com os lucros; jamais avaro, e exigis
moso e tão forte, estável e incompreen­ com usura. Damo-Vos mais do que
sível, imutável e tudo mudando, nunca pedis, para que sejais nosso devedor;
novo e nunca antigo, inovando tudo e mas quem é que possui coisa alguma
cavando a ruína dos soberbos, sem que que não seja vossa? Pagais as dívidas,
eles o advirtam; sempre em ação e a ninguém devendo, e perdoais as dívi­
sempre em repouso; granjeando sem das, sem nada perder. Que dizemos
precisão; conduzindo, enchendo e pro­ nós, meu Deus, minha vida, minha
tegendo, criando, nutrindo e aperfei­ santa delícia, ou que diz alguém quan­
çoando, buscando, ainda que nada Vos do fala de Vós? ...1 4 Mas ai dos que
falte. se calam acerca de Vós, porque, embo­
1 2 Este capítulo é uma síntese perfeita da teodicéia ra falem muito, serão mudos !
agostiniana. Repare-se no jogo de antítese e de
paradoxos: “tão oculto de tão presente”, etc. Agos­ 1 4 Agostinho não vê a transcendência de Deus,
tinho não pretende dar-nos a definição de Deus. (N. mas apreende-a tão genialmente como se fosse a
do T.) própria imanência. Deus surge-lhe como Sumo
13 Sl 17,32. Valor e-como “delícia”.

5
Lágrimas do Pródigo

5. Quem me dera repousar em Vós ! castigo não Vos amar?1 5 Ai de mim1.


Quem me dera que viésseis ao meu Pelas vossas misericórdias, dizei, Se­
coração e o inebriásseis com a vossa nhor meu, o que sois para comigo?
presença, para me esquecer de meus Dizei à minha alma: “Sou a tua salva­
males e me abraçar convosco, meu ção1 6”. Falai assim para que eu ouça.
único bem! Estão atentos, Senhor, os ouvidos do
Que sois para mim? Compadecei- meu coração. Abri-os e dizei à minha
Vos, para que possa falar ! Que sou eu alma: “Sou a tua salvação”. Correrei
aos vossos olhos para que me ordeneis
que Vos ame, irando-Vos comigo e i 5 O pecado, na sua desordem, na sua amargura e
ameaçando-me com tremendos casti­ na violência aos seres, é jâ um castigo. Contém uma
sanção íntima, imanente. (N. do T.)
gos, se o não fizer? Ê acaso pequeno i 6 Ó7 24, 3.
28 SANTO AGOSTINHO

após esta palavra e alcançar-Vos-ei. e não “me perdoastes, meu Deus, a


Não me escondais o rosto. Que eu impiedade do meu coração19”? “Não
morra para o contemplar, a fim de não entro em razões convosco”, que sois a
morrer etemamente! mesma Verdade. Não me quero iludir
6. A minha alma é estreita habita­ “para que a minha iniquidade não se
ção para Vos receber; dilatai-a, Se­ minta a si mesma20”. Não quero en­
nhor. Ameaça ruína, restaurai-a. Tem trar em razões convosco, porque, “se
manchas que ferem o vosso olhar. Eu o atendeis à iniqüidade, Senhor, Senhor,
reconheço e o confesso. Quem há de quem permanecerá?21 ”
purificá-la? A quem hei de clamar,
senão a Vós? “Purificai-me, Senhor, 1 2 Sl 18, 13, 14.
1 8 “Quem não crê ern Deus não crê no Ser; odeia a
dos pecados ocultos, e perdoai ao própria existência” (Paul Claudel). Agostinho crê;
vosso servo os alheios 17 !” Creio, e por por isso ama a própria existência e fala. (N. do T.)
1’ Sl 31,5.
isso falo1 8. Vós o sabeis, Senhor. Não 20 5/26, 12.
confessei contra mim os meus crimes, 2’ Sl 129,3.

6
No alvorecer da vida

7. Permiti, porém, que “eu, pó e Saboreei também as doçuras do leite


cinza22”, fale à vossa misericórdia. humano. Não era minha mãe nem as
Sim, deixai-me falar, já que à vossa minhas amas que se enchiam a si mes­
misericórdia me dirijo, e não ao mas os peitos de leite. Éreis Vós,
homem que de mim pode escarnecer. Senhor, que, por elas, me dáveis o ali­
Talvez Vos riais de mim, mas aplaca­ mento da infância, segundo os vossos
do, compadecer-Vos-eis. desígnios e segundo as riquezas que
Que pretendo dizer, Senhor meu depositastes até no mais íntimo das
Deus, senão que ignoro donde parti coisas.
para aqui, para esta que não sei como Também fazíeis com que eu não
chamar, se vida mortal ou morte desejasse mais além do que me dáveis;
vital23? Receberam-me na vida as permitíeis às amas que me quisessem
consolações da vossa misericórdia, dar o que lhes concedíeis: movidas por
como ouvi contar aos pais da minha afeição ordenada, desejavam dar-me
carne, de quem e em quem me formas­ aquilo em que, graças a Vós, abunda­
tes no tempo, que eu de nada disto me vam. O meu bem, recebido delas, cons­
lembro2 4. tituía para elas igualmente um bem,
não que delas proviesse, porque eram
22 Gén 18,27.
23 “A vida humana, enquanto se prolonga e parece apenas o instrumento e não a origem:
prolongar-se, é antes um decrescimento do que um de Vós, Senhor, me acorrem todos os
crescimento” (Santo Agostinho, Sermão XXX- bens e toda a salvação.
VIII).
2 4 Agostinho nasceu a 13 de novembro de 354, em Isto conheci, algum tempo mais
Tagaste, hoje chamada Souk-Ahrás, na atual Argé­ tarde, falando-me Vós por meio destes
lia, África do Norte. Era filho de Patrício, africano
romanizado, proprietário de doze hectares de terras, mesmos dons que interior e exterior­
e de Mônica, que teria, na altura em que Agostinho mente concedeis. Então, nada mais
nasceu, uns vinte e dois anos. Patrício e Mônica fazia senão sugar os peitos, saborear o
foram também os pais de-Navígio e duma menina
cujo nome se ignora, anos mais tarde freira e supe­ prazer e chorar as dores da minha
riora dum convento. (N. do T.) carne.
CONFISSÕES I 29

8. Em seguida comecei também a transitórias2 6. Dizei-me, eu Vo-lo su­


rir, primeiro, enquanto dormia, depois, plico, ó Deus, misericordioso para co­
acordado. Destas minhas ações me migo que sou miserável, dizei se a
informaram, e acreditei, porque assim minha infância sucedeu a outra idade
o vemos fazer às outras crianças, pois já morta ou se tal idade foi a que levei
nada me lembra do meu passado no seio da minha mãe. Pois alguma
decorrido nesse tempo. coisa me revelaram dessa vida, e eu
A pouco e pouco, ia reconhecendo mesmo vi mulheres grávidas.
onde me encontrava. Queria exprimir E antes deste tempo, que era eu,
os meus desejos às pessoas que os de­ minha doçura, meu Deus? Existi, por­
viam satisfazer e não podia, porque os ventura, em qualquer parte, ou era
desejos estavam dentro e elas fora, sem acaso alguém?2 7
poderem penetrar-me na alma com ne­ Não tenho quem me responda, nem
nhum dos sentidos. Estendia os braços, meu pai, nem minha mãe, nem a expe­
soltava vagidos, fazia sinais seme­ riência dos outros, nem a minha
lhantes aos meus desejos, os poucos memória. Sorris, talvez, de que tais
que me era possível esboçar, e que eu perguntas Vos faça, a Vós, que me
exprimia como podia. Mas eram inex­ ordenais que Vos louve e confesse,
pressivos. Como ninguém me obede­ naquilo que me é conhecido.
cia, ou porque não entendiam ou por­ 10. Confessar-Vos-ei, Senhor do
que receavam fazer-me mal, céu e da terra, louvando-Vos pelos
indignava-me com essas pessoas gran­ alvores da vida e pela infância de que
des e insubmissas, que, sendo livres, me não lembro. Concedestes ao
recusavam servir-me. Vingava-me homem a graça de conjeturar de si pelo
delas, chorando. Reconhecí que assim que vê nos outros, e de acreditar mui­
eram as crianças, como depois pude tas coisas a seu respeito, confiado na
observar. Elas me informaram melhor, autoridade de simples mulheres. Já
inconscientemente, daquilo que eu então verdadeiramente existia e vivia.
tinha sido então, do que as amas, com No fim da infância, já buscava sinais
a sua experiência. com que exprimir aos outros as minhas
9. A minha infância morreu há vontades.
muito; mas eu vivo ainda2*5. Porém, Donde podia vir semelhante criatu­
Vós, Senhor, que viveis sempre e em ra, _se não de Vós, Senhor? Alguém
quem nada falece — porque sois ante­ pode ser artífice de si mesmo? Ou pode
rior à manhã dos séculos e a tudo que derivar-se doutra parte algum manan­
se possa dizer anterior —, sois Deus e cial por onde corram até nós o ser e a
Senhor de tudo quanto criastes. Em vida, diferentes dos que nos dais, Se­
Vós estão as causas de todas as coisas nhor — Vós, em quem o ser e a vida se
instáveis, permanecem as origens imu­ equivalem, porque sois o Ser supremo
táveis de todas as coisas mudáveis, e e a suprema Vida?
vivem as razões eternas das coisas Sois o mais excelso e não Vos
2 5 Teixeira de Pascoais fixou-se nesta frase em que 2 6 Alusão ao exemplarismo. As idéias dos seres
encontrou um espanto doloroso: "Et ego vivo subsistem em Deus imutáveis, mas os seus termos
Aqui a conjunção et tem o valor de adversativa. ou os objetos estão sujeitos ao tempo. (N. do T.)
Nas edições anteriores foi suprimida para realçar 2 7 Alusão ao problema da origem das almas:
mais a frase. Agostinho tinha nesta altura, quando foram criadas todas ao mesmo tempo ou Deus cria
isto escreveu, quarenta e três ou quarenta e seis cada uma isoladamente? Santo Agostinho não ade­
anos, conforme a data que se adotar para início da riu a esta última hipótese, a mais provável, pois
composição das Confissões. (N. do T.) hesitou sempre até ao fim da vida. (N. do T.)
30 SANTO AGOSTINHO

mudais. O dia presente não passa por receberão igualmente o seu modo e o
Vós, e, contudo, em Vós se realiza, ser ! Vós, porém, sois sempre o mesmo,
porque todas estas coisas em Vós resi­ e todas as coisas de amanhã e do futu­
dem, nem teriam caminhos para passar ro, de ontem e do passado, hoje as
se com o vosso poder as não contivés­ fareis, hoje as fizestes29.
seis. “Porque os vossos anos não Que posso eu fazer, se alguém não
morrem28”, são um eterno dia sempre compreende? Que esse exulte, dizendo:
presente. Quantos dias não passaram “Que maravilha é esta?30” Exulte
já para nós e para nossos antepassados muito embora e prefira encontrar-Vos
pelo dia eterno de que gozais e dele não Vos compreendendo, do que, com­
receberam a existência e a duração ! E preendendo, não Vos encontrar.
hão de passar ainda outros que dele 29 A imutabilidade divina é um dos assuntos mais
predjletos do gênio agostiniano.
28 Sl 101, 28. 30 Êx 16, \5\Eclo 39,17.

7
Prognósticos de vícios

11. Ouvi-me, ó meu Deus! Ai dos dente de que é viciosa, pois nunca vi
pecados dos homens! É um homem ninguém que, para cortar o mal, rejei­
que assim fala. Vós, Senhor, compade- tasse conscientemente o bem!
cei-Vos dele, porque sois o seu Criador Ou seria justo, mesmo para aquela
e não o autor do seu pecado. Quem me idade, exigir com choros o que talvez
poderá recordar o pecado da infância, prejudicialmente seria concedido, en-
já que ninguém há que diante de Vós colerizar-me com violência não contra
esteja limpo, nem mesmo o recém-nas­ pessoas a mim sujeitas, mas contra
cido, cuja vida sobre a terra é apenas pessoas livres e respeitáveis pela
um dia? Quem mo trará à memória? idade? Estaria bem zangar-me até con­
Será porventura algum menino, ainda tra os pais, contra muitas outras pes­
pequerrucho, onde posso ver a imagem soas mais sensatas, só por se não cur­
do que fui e de que me não resta varem a um aceno do meu capricho,
lembrança? batendo-lhes e esforçando-me, quanto
Em que podia pecar, nesse tempo? possível, por lhes fazer mal, porque
Em desejar ardentemente, chorando, não se sujeitavam às minhas exigên­
os peitos de minha mãe? Se agora sus­ cias, com as quais seria pernicioso
pirasse com a mesma avidez não pelos condescender?
seios matemos, mas pelo alimento que Assim, a debilidade dos membros
é próprio da minha idade, seria escar­ infantis é inocente, mas não a alma das
necido e justamente censurado. crianças31. Vi e observei uma, chéia de
Sem dúvida, então o meu procedi­ inveja, que ainda não falava e já olha­
mento era repreensível. Mas como não va, pálida, de rosto colérico, para o
podia perceber a reprimenda, o uso e a irmãozito colaço. Quem não é testemu­
razão não permitiam que eu fosse nha do que eu afirmo? Diz-se até que
repreendido. Com o crescer dos anos, as mães e as amas procuram esconju-
porém, desarraigamos e lançamos fora 31 O pecado original corrompeu a natureza huma­
esta sofreguidão do apetite. Sinal evi­ na, mas não inteiramente. (N. do T.)
CONFISSÕES I 31

rar este defeito, não sei com que práti­ e bom, ainda que só tivésseis criado
cas supersticiosas. Mas, enfim, será estas coisas. Nenhum outro as pode
inocente a criança quando não tolera fazer senão Vós, ó Unidade, origem de
junto de si, na mesma fonte fecunda do toda a variedade, ó Formosura infinita
leite, o companheiro destituído de que tudo formais e ordenais, pela vossa
auxílio e só com esse alimento para lei.
sustentar a vida? Indulgentemente se Por isso, Senhor, envergonho-me de
permitem estas más inclinações, não contar, na minha vida terrena, esta
porque sejam ninharias sem importân­ idade que não me lembro de ter vivido.
cia, mas porque hão de desaparecer Somente acredito nela pelo testemunho
com o andar dos anos. Ê este o único alheio e pelas conjeturas que formei ao
motivo, pois essas paixões não se observar as outras crianças, conjeturas
podem de boa mente sofrer, quando se estas aliás muito fidedignas. Tudo
encontram numa pessoa mais ido^a. quanto se oculta nas trevas do meu
12. E Vós, Senhor e Deus meu, que esquecimento é para mim igual ao
destes à criança a vida e o corpo, tempo que vivi no seio materno. E se
assim como o vemos, provido dos sen­ “fui concebido em iniquidade” e se
tidos, formado pelos membros e ador­ “em pecado me alimentou, no ventre,
nados pelos traços da sua configura­ minha mãe33”, pergunto, Senhor e
ção, de Vós que lhe inspirastes o Deus meu, onde e quando esteve ino­
instinto natural de defesa para assegu­ cente este vosso servo? Passo em silên­
rar a sua integridade e conservação — cio esta quadra da vida. Que tenho eu
ordenais-me que em todas estas obras que ver com ela, se nem reminiscências
“louve, confesse e exalte o vosso nome, conservo?
ó Altíssimo32”! Sois Deus onipotente
32 5/91,2. 3 3 Sl 50,7.

8
Como aprendi a falar

13. Seguindo o curso da minha falar3 5. Não eram pessoas mais velhas
vida, não é verdade que da infância que me ensinavam as palavras, com
passei à puerícia? Ou antes, não foi métodos, como pouco depois o fizeram
esta que veio até mim e sucedeu à para as letras. Graças à inteligência
infância? A infância não se afastou. que Vós, Senhor, me destes, eu mesmo
Para onde fugiu então? Entretanto, ela aprendi, quando procurava exprimir os
já não existia, pois eu já não era um sentimentos do meu coração por gemi­
bebê que não falava, mas um menino dos, gritos e movimentos diversos dos
que principiava a balbuciar algumas
palavras3 4. membros, para que obedecessem à
Dessa época já eu me lembro, e minha vontade. Não podia, porém,
mais tarde adverti como aprendera a exteriorizar tudo o que desejava, nem
3 4 Este menino, a quem foi diferido o batismo 3 5 A língua corrente falada em Tagaste era o carta­
segundo os costumes africanos da época, recebeu o ginês ou púnico. Agostinho aprenderia simultanea­
nome de Aurélio Agostinho. (N. do T.) mente as duas línguas: aquela e o latim. (N. do T.)
32 SANTO AGOSTINHO

ser compreendido daqueles a quem me voz, que indica a afeição da alma


dirigia. quando pede ou possui e quando rejei­
Retinha tudo na memória quando ta ou evita. Por este processo retinha
pronunciavam o nome de alguma pouco a pouco as palavras convenien­
coisa, e quando, segundo essa palavra, temente dispostas em várias frases e
moviam o corpo para ela. Via e notava frequentemente ouvidas como sinais de
objetos. Domando a boca segundo
que davam ao objeto, quando o que­ aqueles sinais, exprimia por eles as mi­
riam designar, um nome que eles nhas vontades.
pronunciavam. Esse querer era-me re­ Assim principiei a comunicar
velado pelos movimentos do corpo, com as pessoas que me rodeavam, e
que são como que a linguagem natu­ entrei mais profundamente na socie­
ral a todos os povos e consiste na dade tempestuosa dos homens, sob a
expressão da fisionomia, no movi­ autoridade de meus pais e a obediência
mento dos olhos, nos gestos, no tom da dos mais velhos.

9
Na paixão do jogo

14. Ó Deus, meu Deus, que misé­ desembaraçando-me das peias da lín­
rias e enganos não experimentei, quan­ gua para Vos invocar. Embora crian­
do simples criança me propunham ça, mas com ardente fervor, pedia-Vos
vida reta e obediência aos mestres, a que na escola não fosse açoitado.
fim de mais tarde brilhar no mundo e Quando me não atendíeis — “o que
me ilustrar nas artes da língua, servil era para meu proveito3 7” —, as pes­
instrumento da ambição e da cobiça soas mais velhas e até os meus pró­
dos homens. prios pais, que, afinal, me não deseja­
Fui mandado à escola para aprender vam mal, riam-se dos açoites — o meu
as primeiras letras, cuja utilidade eu, maior e mais penoso suplício.
infeliz, ignorava. Todavia batiam-me 15. Haverá, Senhor, alma tão gene­
se no estudo m.e deixava levar pela pre­ rosa e tão unida a Vós pelos laços dum
guiça. As pessoas grandes louvavam ardente afeto, que despreze, não por
esta severidade. Muitos dos nossos insensibilidade louca, mas por amor
predecessores na vida tinham traçado
estas vias dolorosas, por onde éramos intenso e forte para convosco, os cava­
obrigados a caminhar, multiplicando letes, os garfos de ferro e os demais
os trabalhos e as dores aos filhos de tormentos deste gênero dos quais os
Adão, Encontrei, porém, Senhor, ho­ homens em toda parte suplicam que os
mens que Vos imploravam, e deles liberteis? Haverá alguma alma dessas
aprendi, na medida em que me foi pos­ que despreze essas torturas a ponto de
sível, que éreis alguma coisa de grande rir dos que tão acerbamente temem
e que podíeis, apesar de invisível aos esses suplícios, como meus pais caçoa­
sentidos, ouvir-nos e socorrer-nos. vam das penalidades que a nós, meni­
Ainda menino, comecei a rezar-Vos nos, infligiam os mestres? Eu não
como a “meu auxílio e refúgio3 6”, temia menos os castigos do que as tor-
3 6 07 93,22. 37 S121, 3.
CONFISSÕES I 33

turas, nem Vos suplicava menos que ninguém se compadeça da criança,


nos livrásseis deles. nem do homem, nem de ambos. Um
Contudo, pecava por negligência, juiz reto aprovaria os castigos que me
escrevendo, lendo e aprendendo as davam, por eu, em pequeno, jogar a
lições com menos cuidado do que de bola e o jogo ser um obstáculo ao meu
nós exigiam. aproveitamento nos estudos, com os
Senhor, não era a memória ou a quais eu havia de jogar menos inocen­
inteligência que me faltavam, pois me temente quando chegasse a homem?
-dotastes com o suficiente para aquela Agia, porventura, de modo diferente
idade. Mas gostava de jogar, e aqueles aquele que me batia, se nalguma ques-
que me castigavam procediam de tiúncula era vencido pelo seu competi­
modo idêntico! As ninharias, porém, dor? Então esse não era mais atormen­
dos homens chamam-se negócios; e as tado pela ira e inveja do que eu quando
dos meninos, sendo do mesmo jaez, superado no desafio da bola pelo meu
são punidas pelos grandes, sem que rival?. . .

10
O orgulho da vitória

16. Contudo eu pecava contra Vós, e me excitavam com interesse sempre


Senhor Deus, ordenador e criador de mais apaixonado. Essa curiosidade
todas as coisas da natureza, e dos brilhava dia a dia mais intensa nos
pecados somente o regularizador3 8. meus olhos, atraindo-me para espetá­
Eu pecava, Senhor, desobedecendo às culos e jogos de gente crescida.
ordens de meus pais e mestres, pois Por outro lado, aqueles que presi­
podia no futuro fazer bom uso desses dem aos jogos sobressaem tanto por
conhecimentos que me obrigavam a esta dignidade que quase todos dese­
adquirir, qualquer que fosse a intenção jam que seus filhos lhes sucedam nesta
com que mos impunham. Além disso, honra. Apesar disso, regozijam-se em
eu não desobedecia para fazer melhor castigá-los se tais divertimentos os
escolha, mas só pelo amor do jogo. afastam do estudo, que, segundo os
Amava nos combates o orgulho da seus desejos, lhes permitirá mais tarde
vitória. Gostava dessas histórias frívo­ organizar semelhantes espetáculos. . .
las que tanto me deleitavam os ouvidos Examinai, Senhor, estas fraquezas com
um olhar de compaixão. Socorrei-nos,
que já Vos invocamos, e socorrei tam­
38 Deus não é o autor do pecado. Permite-o para bém os que ainda Vos não invocam, a
servir aos seus desígnios. Santo Agostinho usa a
expressão: "peccatorum autem tantum ordinator". fim de que eles também Vos invoquem
(N. do T.) e sejam libertados.

11
No limiar do batistério

17. Ouvira eu falar, ainda criança, graças à humildade do vosso Filho,


da vida eterna que nos é prometida, Deus e Senhor nosso, descido até à
34 SANTO AGOSTINHO

nossa soberba. Fui marcado pelo si- ele ainda não acreditava. Minha mãe
nal-da-cruz e condimentado com sal desejava ardentemente que eu Vos
divino, logo que saí do seio da minha considerasse a Vós, meu Deus, como
mãe, que punha em Vós todas as pai, mais do que àquele que ainda não
esperanças. tinha fé. Nisso a ajudáveis a triunfar
Vistes, Senhor, que, sendo ainda do marido, a quem servia melhor pelo
criança, sobrevindo-me certo dia uma fato de nisso obedecer às vossas
febre alta, motivada numa opressão do ordens.
estômago, bati às portas da morte. 18. Rogo-Vos, meu Deus, que me
Sabeis, meu Deus, pois já então por mostreis — se Vos apraz — qual o
mim vigiáveis, com que ardor e fé pedi desígnio por que me foi então diferido
à piedade de minha mãe e de nossa o batismo: se seria para meu bem
mãe comum — a vossa Igreja — o soltarem-se ou não as rédeas do peca­
batismo de Cristo, Deus e Senhor meu. do. Por que razão ainda agora de toda
A minha mãe carnal, porque na sua fé parte chega aos meus ouvidos a res­
e coração puro me gerava com maior peito de uns ou de outros: “deixai-o
solicitude para a vida eterna, pertur­ fazer o que quiser, pois ainda não está
bada, procurava com pressa iniciar-me batizado”? Mas da saúde do corpo
e purificar-me nos sacramentos da sal­ ninguém diz: “d.eixai-o, que se fira
vação, confessando-Vos eu, Senhor mais, porque ainda não está curado” !
Jesus, para obter a remissão dos meus Quanto me não era preferível ser
pecados. Dentro em breve, porém, logo curado, obtendo, pela minha dili­
achei-me melhor, e essa purificação foi gência e dos meus, conservar intata,
diferida, como se fosse necessário con­ sob a vossa proteção, a saúde da alma
tinuar a corromper-me, para prolongar que me tínheis concedido !
a vida. Na verdade, depois do banho Sem dúvida, seria melhor. Minha
do batismo, as recaídas na imundície mãe, porém, já previra quantas e quão
do pecado seriam mais graves e perigo­ grandes ondas de tentações pareciam
sas. ameaçar-me depois da infância, e pre­
Tinha eu já verdadeira fé, como feriu expor-me a elas, como terra gros­
minha mãe e todos os de casa, exceto seira em que eu depois recebería
meu pai39, que não prevaleceu em forma, a expor-me a esse perigo já
mim contra os direitos da piedade como imagem40.
materna de eu crer em Cristo, no qual
40 O batismo, segundo a doutrina da Igreja, grava
39 Patrício só no fim da, vida recebeu o batismo. na alma a imagem de Deus ao conferir a graça. (N.
Morreu em 371. (N. do T.) do T.)

12
Relutância em estudar

19. Neste período da infância, cujo gado41. Por meio desta coação fa-
perigo temiam menos para mim do que 41 Agostinho guardou infelizes recordações -a res­
o da adolescência, não gostava do peito da escola. Esta às vezes era um simples alpen­
dre campestre, ou um inconfortável pardieiro. (N.
estudo, e tinha horror de ser a ele obri­ do T.) I
CONFISSÕES I 35

ziam-me um bem — embora eu proce­ cabelos42”, utilizáveis em meu pro­


desse mal —, pois não aprendería se veito o erro dos que me coagiam. Com
não fosse constrangido. Todavia, con­ relação a mim, que não queria apren­
tra a vontade, ninguém procede bem, der, utilizáveis a minha falta para me
ainda que a ação em si mesma seja dardes o castigo com que eu, tão
boa. Os que me obrigavam não agiam pequenino e já tão grande pecador,
merecia ser punido.
retamente. O bem que daí resultava
vinha só de Vós, meu Deus. Nesses Era assim que Vós transformáveis
em meu bem o mal que eles faziam, e
estudos a que me aplicavam, não ti­ me dáveis justa retribuição pelos meus
nham outra finalidade senão saciar os pecados. Com efeito, é vosso desígnio,
insaciáveis desejos de opulenta miséria e, assim, acontece que toda alma desre­
e de ignomíniosa glória. Mas Vós, grada seja para si mesma o seu castigo.
“para quem estão contados os nossos Mi 10, 30.

13
Gosto do latim

20. Mas qual era a causa da aver­ morte no pecado, longe de Vós, ó meu
são que tinha à língua grega que me Deus e minha Vida!
ensinaram quando criança? E o que 21. Nada mais digno de compaixão
ainda hoje me não sei explicar. Pelo do que o infeliz que derrama lágrimas
contrário, gostava muito da língua lati­ pela morte de Dido, originada no amor
na, não da que ensinavam os primeiros de Enéias, sem se compadecer de si
mestres, mas da que lecionavam os mesmo nem chorar a própria morte
gramáticos. por falta de amor para convosco, ó
Aquelas primeiras lições em que j se meu Deus, luz da minha alma, pão da
aprende a ler, escrever e contar eram- boca interior do meu espírito, poder
me tão pesadas e insuportáveis como fecundante da minha inteligência e seio
as de grego. Donde me vinha este abor­ do meu pensamento ! Não Vos amava.
recimento senão do pecado e vaidade “Prevaricava longe de Vós45” e em
da vida — porque “eu era carne e espí­ toda parte ressoavam aos meus ouvi­
rito que passa e não volta”? 43 Aquelas dos de luxurioso estas palavras:
primeiras letras, a que devia e devo a “Bravo! Coragem!” A amizade deste
possibilidade de não só ler qualquer mundo é adultério contra Vós. Profe­
escrito mas também de escrever o que rem-se as palavras “Bravo! Cora­
me aprouver, eram sem dúvida mais gem!” para que o homem não se
úteis e mais certas do que aquelas em envergonhe de ser pecador. Não chora­
que, esquecido dos meus erros, era va essas faltas, mas pranteava “a
obrigado a gravar na memória as nave­ morte de Dido, que se suicidara com
gações errantes dum certo Enéias e a 4 4 Santo Agostinho refere-se nesta passagem ao
chorar Dido, que se suicidara por episódio da Eneida de Virgílio, narrado no canto
VI, alusivo à Rainha Dido, apaixonada pelo nave­
amor44. Entretanto, eu, misérrimo, gante Enéias, a caminho da foz do Tibre, foragido
suportava com olhos enxutos a minha de Tróia. Segundo a lenda, este fundou Roma. Na
realidade, foram seus fundadores uns pastores lati­
nos dum grupo invasor italiota. (N. do T.)
“3 £7 77,39. 45 £7 72,27.
36 SANTO AGOSTINHO

uma espada46”. Segui atrás dos ínfi­ pradores de gramáticas, pois se os


mos objetos da vossa criação, abando- interrogar e lhes propuser uma dificul­
nando-Vos; como era terra, tendia dade acerca da veracidade do poeta ao
para aterra. narrar que Enéias veio a Cartago, os
Se me proibiam a leitura desses néscios responderão que não sabem, os
episódios, afligia-me por não ler aquilo instruídos negarão a autenticidade do
que me impressionava até à dor. O lou­ fato. Mas se lhes perguntar com que le­
cura! reputavam-se tais estudos como tras se escreve o nome de Enéias, todos
mais honrosos e úteis do que aqueles os que estudaram responder-me-ão
em que aprendi a ler e a escrever! acertadamente segundo esse contrato
22. Agora, que o meu Deus clame com que os homens fixaram o valor do
em mim e que a vossa Verdade me alfabeto.
diga: “Não é assim, não é assim: aque­ Do mesmo modo, quem não vê o
la primeira ciência é muito superior”. que há de responder todo aquele que
Eis-me mais pronto para esquecer as ainda se não esqueceu inteiramente de
navegações errantes de Enéias e outras si, se eu lhe perguntar que dano seria
narrações semelhantes do que para mais sensível à vida: esquecer a leitura
esquecer a leitura e a arte de escrever. e a escrita ou todas aquelas ficções
E verdade que nas escolas de gramá­ poéticas? P.ecava, sendo ainda criança,
tica há cortinas pendentes das portas, quando antepunha todos aqueles co­
mas servem mais de cobertura aos nhecimentos vãos a estes mais úteis;
erros do que de honra aos seus segre­ ou antes, quando odiava estes para
dos. Não gritem contra mim estes mes­ estimar aqueles.
tres — que eu já não temo — Repetir “um e um, dois; dois e dois,
enquanto Vos patenteio, meu Deus, quatro” era para mim uma cantilena
todos os desejos da minha alma, e fastidiosa. E, pelo contrário, encanta­
enquanto descanso na repreensão dos va-me o vão espetáculo dum cavalo
meus perversos caminhos para amar a feito de madeira e cheio de guerreiros,
retidão dos vossos! Não se levantem o incêndio de Tróia e até a sombra de
contra mim esses vendedores e com­ Creusa4 7.
4 7 Creusa era a esposa de Enéias, a quem apare­
4 6 "Venerai extinctam, ferroque extrema secutam ” ceu, depois de morta, sob figura humana feita de
(Eneida, VI, 457). sombra. (Cf. Eneida, II, 772). (N. do T.)

14
Aversão à língua grega

23. Por que aborrecia eu também a gregos sucederá com Virgílio o mesmo
literatura grega4 8, que entoava tais fic­ que a mim com Homero, quando me
ções? Homero teceu habilmente essas obrigavam a estudá-lo49. O trabalho
fábulas, e é dulcíssimo na sua frivoli­
49 Santo Agostinho sabia de cor muitos versos de
dade, ainda que para mim, menino, Virgílio, poeta da sua predileção. Ainda nos últimos
fosse amargo. Creio que aos jovens anos da vida, recordava passagens extensas e
expressões que citava em escritos teológicos. Desta
4 8 Santo Agostinho diz: graeca grammatica: Litte- simpatia pelo poeta mantuano participou a Idade
ratura ou Ars grammatica consistia, segundo Var- Média, que nos legou textos virgilianos com nota­
rão, em ler, explicar e ajuizar dos poetas, oradores e ção musical, para serem cantados nas escolas. (N.
historiadores. (N. do T.) do T.) ,
CONFISSÕES I 37

de aprender inteiramente essa língua seria possível sem aprender algumas


estrangeira como que aspergia com fel palavras, não da boca dos mestres,
toda a suavidade das fábulas gregas. mas daqueles que falavam comigo e
Não conhecia nenhuma palavra da­ em cujos ouvidos eu depunha as mi­
quela língua, e, para me fazerem nhas impressões.
aprender, ameaçavam-me com terrí­ Disso ressalta com evidência que,
veis castigos e crueldades. É verdade para aprender, é mais eficaz uma
que outrora, quando criancinha, tam­ curiosidade espontânea do que um
bém não sabia nenhuma palavra lati­ constrangimento ameaçador. Contudo,
na, e contudo instruí-me, sem temores esta violência refreia, graças as vossas
nem castigos, só com prestar atenção leis, os excessos da curiosidade; sim,
entre carícias das amas, entre os grace­ graças às vossas leis, que, desde as fé-
jos dos que se riam e as alegrias dos rulas dos mestres até às torturas dos
que folgavam. Aprendi, sem a pressão mártires, sabem dosear as suas triste­
correcional de instigadores, impelido zas salutares, para nos chamarem a
só pelo meu coração desejoso de dar à Vós, do meio das doçuras perniciosas
luz os seus sentimentos, o que não com que nos íamos afastando.

15
“Ouvi, Senhor. . . ”

24. “Ouvi, Senhor, a oração50” Vós, Senhor, sois o meu rei e o meu
para que a minha alma não desfaleça Deus. A Vós consagro tudo quanto de
sob a vossa lei, nem esmoreça em con­ útil aprendi em criança. A Vós consa­
fessar as misericórdias com que me gro tudo o que digo, escrevo, leio e
arrancastes de perversos caminhos. conto porque, quando aprendia-vaida-
Fazei que a vossa doçura supere todas des, Vós me disciplináveis, perdoan-
as seduções que eu seguia. Que eu Vos do-me depois os pecados de deleite
ame arrebatadamente e abrace a vossa nelas cometidos. É verdade que nessas
mão com toda a minha alma para que frivolidades aprendi muitas coisas
me livreis de todas as tentações até o úteis. Mas poder-se-iam aprender em
fim. estudos sérios, conscienciosos! Seria
esta a via segura pela qual deveríam
so 5/60,2. encaminhar as crianças.

16
A mitologia impura

25. Ai de ti, torrente dos hábitos barcam no lenho da cruz? Não li eu


humanos! Quem te resistirá? Até em ti que Júpiter troveja e adultera?
quando hás de correr, sem te secar? Decerto, não podia fazer essas duas
Até quando rolarás os filhos de Eva coisas simultaneamente, mas represen­
para o mar profundo e temeroso, tou-se assim para que tivesse autori­
somente atravessado pelos que se em­ dade para imitar um verdadeiro adulté­
38 SANTO AGOSTINHO

rio com o encanto desse trovão jovem escandaloso, imitando a Júpiter


imaginário. na libertinagem?
Porém, quem, dentre esses mestres O mancebo observa uma pintura na
de pênula5A, ouve com paciência um parede onde se desenhara a maneira
homem nascido do mesmo pó a afir­ como Júpiter, um dia, enviara, segundo
mar bem alto: “Imaginava Homero contam, para o regaço de Dânai uma
estas ficções e atribuía aos deuses os chuva de ouro a fim de a lograr. Repa­
vícios humanos; eu preferiría que trou­ ra como o jovem se excita à devassi­
xesse para nós as perfeições divi­ dão com este exemplo celeste:
nas?52”
Mas dir-se-á, com mais verdade, que “Mas que deus é este”, pergunta,
Homero fingia essas coisas para que, “que abala o templo do céu, com sumo
atribuindo aos homens viciosos a natu­ estrondo ?
reza divina, os vícios não fossem “Eu, um homenzinho, não havia de
considerados como tais, e todo aquele fazer o mesmo? Pois fi-lo, e de bom
que os cometesse não parecesse imitar grado 53”.
homens dissolutos, mas habitantes do De modo algum, de maneira nenhu­
céu. ma se aprendem melhor tais palavras
26. Todavia, ó torrente infernal, em por meio dessa torpeza, mas por essas
ti se precipitam os filhos dos homens, palavras se comete mais afoitamente a
com suas mercadorias, para aprende­
devassidão. Não incrimino as pala­
rem essas coisas. Tem-se como aconte­
vras, quais vasos escolhidos e precio­
cimento importante representar tudo
sos, mas o vinho do erro que por eles
isto oficialmente no Foro, à vista das
nos davam a beber os mestres embria­
leis, que concedem um salario aos ato­
res, além da paga dos particulares. gados. E se não bebêssemos, batiam-
Ferindo as penedias das margens com nos sem que pudéssemos apelar para
tuas vagas, ó torrente, clamas, dizen­ juiz mais sóbrio54. Apesar disso, ó
do: “Aqui aprendem-se as palavras, meu Deus, em cuja presença está segu­
aqui adquire-se a eloquência tão neces­ ra a minha lembrança, apesar disso,
sária para persuadir e expressar aprendia com gosto essas palavras, e,
os pensamentos”. Desconheceriamos, miserável, comprazia-me nelas, sendo
então, os vocábulos “chuva de ouro” tido por essa razão como menino de
(imbrem aureum), e “regaço” (gre- boas esperanças.
mium) e “logro” (fucum), e “templos
do céu” (templa caeli) e outras pala­ 53 At quem deum — inquit — qui templa caeli
summo sonitu concutit? Ego homuncio id nonface-
vras que naquele lugar estão escritas, rem? ■—-Ego illud verofeci ac libens.
se Terêncio não apresentasse um (Terêncio, Eunuco, At. 3, Cena 5.)
5 4 Agostinho é psicologicamente um amargurado
51 Pênula era uma espécie de capa ou manto roma­ contra os professores que o castigaram ferozmente
no. (N. do T.) na infância. A pedagogia moderna aboliu os casti­
52 Cícero, Tusculanas, I, 26. (N. do T.) gos. Foi talvez ao excesso contrário. (N. do T.)
CONFISSÕES I 39

17
A declamação

27. Consenti, ó meu Deus, que tam­ maior verossimilhança, os sentimentos


bém conte alguma coisa do meu talen­ de ira e de dor, revestindo as frases
to, dádiva vossa, e em que desatinos o com palavras muito apropriadas.
gastava. Propunha-se-me uma tarefa Que me aproveitou tudo aquilo?
de muita preocupação para o meu espí­ Que me aproveitou, ó Vida verdadeira
rito por causa dos louvores e descré­ e meu Deus, ter sido mais aclamado
dito ou receio de ser açoitado: que dis­ que os contemporâneos e condiscí­
sesse as palavras de Juno encolerizada pulos, quando recitava? Não é tudo
e cheia de dor por não poder “afastar isso fumo e vento? Não havia outra
da Itália o rei dos troianos 5 5”. Bem coisa em que exercitar a língua e o
sabia que Juno nunca proferira tal talento?
coisa, mas obrigavam-nos a seguir, Que os vossos louvores, Senhor, que
errantes, as pegadas das ficções dos os vossos louvores, enunciados pela
poetas, e a repetir em prosa o que o Escritura, levantassem a palmeira do
poeta cantara em verso. Recebia maio­ meu coração, e não seria arrebatado
res louvores o aluno que, segundo a por quimeras vãs, qual presa imunda
dignidade da personagem figurada, das aves. Com efeito, há várias manei­
exprimisse, mais fortemente e com ras de “sacrificar” aos anjos pecado­
s 5 Eneida, I, 38. res.

18
Desprezo das leis eternas

28. Que admira, pois, que fosse sequiosa das vossas delícias, e cujo
arrastado pelas vaidades e me afastasse coração Vos diz: “Busquei o vosso ros­
de Vós, ó meu Deus, se me propunham to e tomá-lo-ei a buscar, Senhor 5 7”.
exemplos dos homens, a quem uma crí­ Andava longe da vossa face, retido
tica cobria de vergonha por um barba- por afeições tenebrosas. Todavia, não
rismo ou solecismo cometido ao nar­ nos apartamos ou aproximamos de
rarem ações virtuosas, e que se Vós com os pés ou com as distâncias
gloriavam de serem louvados quando de lugares. Aquele vosso filho mais
contavam com termos castiços e bem novo — o da parábola -—■ procurou
dispostos, copiosa e elegantemente, as cavalos, ou carros, ou navios, ou voou,
suas torpezas? com penas visíveis, ou viajou a pé,
Vedes tudo isso, ó Senhor, e calais- para viver e dissipar prodigamente, em
Vos, “paciente, cheio de compaixão e região afastada, o que Vós lhe entregá­
de verdade5 6”. Porventura ficareis reis ao partir? Fostes Pai bondoso por­
sempre calado? Agora arrancais, deste que lhe destes a fortuna, e fostes mais
abismo imenso, a alma ansiosa de Vós, carinhoso ainda para com ele, ao vol­
56 Sl 102, 8; 85, 15. 5 7 5741, 3; 15, 11.
40 SANTO AGOSTINHO

tar. necessitado. Viveu entre paixões casse mais gravemente, a outrem, com
luxuriosas, isto é, tenebrosas, que é o perseguições, do que ao próprio cora­
que quer dizer longe do vosso rosto 58. ção, com essa inimizade! Com certeza
29. Vede, ó Senhor Deus, e reparai a ciência gramatical não é mais inte­
benigno, segundo é vosso costume, rior do que a lei da consciência — de
como os filhos dos homens observam não fazer a outrem o que não quere­
diligentemente as regras da ortografia mos que nos façam a nós mesmos.
e das sílabas, recebidas dos primeiros Quão misterioso sois Vós, que habi­
mestres, e desprezam as leis eternas da tais em silêncio no céu, Deus grande e
salvação eterna, de Vós recebidas. Se único, espalhando, com lei infatigável,
alguém, ao aprender ou ensinar as re­ cegueiras vingadoras sobre as paixões
gras tradicionais dos sons, pronunciar desordenadas! Vede este homem, pro­
sem aspiração da primeira sílaba a curando a glória da eloquência, diante
“homo ” (homem), desagrada mais aos dum homem, o juiz, e, na presença de
homens do que se odiar, contra os vos­ grande número de homens, atacar o
sos mandamentos, outro homem, ape­ inimigo com ódio violentíssimo. Como
sar de este ser o “homem”. Como se, evita com toda a vigilância dizer
na realidade, se persuadisse haver um algum erro de linguagem, como não
inimigo mais molesto que o próprio aspira o h de “inter homines” (entre os
ódio com que se irrita contra si homens), pronunciando “inter omi-
mesmo; ou como se alguém prejudi- nes59”! Mas não tem cuidado de vi­
58 Na parábola do filho pródigo, o pai representa
giar o furor da sua alma, que o arrasta
Deus, bondoso e amável, e o filho mais novo, dissi- a tirar um homem de entre os homens !
pador e perdulário, simboliza a alma pecadora. O
homem afasta-se de Deus pelo ato perverso da von­ 59 Modemamente, em latim, não se aspira o h. (N.
tade: o pecado. (N. do T.) do T.)

19
Perversidade na puerícia

30. Jazia eu, pobre criança, à beira Que coisa houve mais corrupta aos
deste abismo de corrupção. A luta vossos olhos do que eu? Até desagra­
desta arena era aquela onde eu mais dava a esses homens, ao enganar com
temia cometer um barbarismo de ex­ inumeráveis mentiras o pedagogo,
pressão do que acautelar-me, se o mestres e pais, por amor do jogo, gosto
cometesse, da,inveja que sentia contra de espetáculos frívolos e ardor inquieto
aqueles que o evitavam. de os imitar!
Digo e confesso, diante de Vós, meu Cometia furtos na despensa e ina
Deus, estas fraquezas que me angaria­ mesa de meus pais, ou impelido pela
vam aplausos daqueles cuja simpatia gula ou para ter que dar aos rapazes,
equivalia para mim a viver cheio de retribuindo-me estes com o jogo, com
honra. Não via a voragem de luxúria o qual igualmente se deleitavam à
para a qual “era atirado, longe da minha custa,.porque mo vendiam. Ven­
vossa vista60”. cido pelo louco desejo de superiori­
dade, obtinha também muitas vezes
8° 5/30,23. nesse jogo as vitórias com fraude. No
CONFISSÕES I 41

entanto, se surpreendia alguém, não o para os prédios, para os escravos,


queria tolerar, e até atrozmente o assim como ao castigo da palmatória
repreendia, quando era isto mesmo o sucedem piores suplícios.
que eu fazia aos outros ! Caso fosse eu Por conseguinte, apenas louvastes, ó
o surpreendido e o acusado, preferia nosso Rei, na estatura das crianças o
antes ser cruel do que ceder 61. símbolo da humildade, quando disses­
Será esta a inocência das crianças? tes: “Delas é o reino dos céus 63 ”.
Não é, Senhor, não é, permiti que Vo-
61 Jogo de palavras: saevire (ser cruel) e cedere
lo diga, meu Deus. Ê isto mesmo que, (ceder). (N. do T.)
com o andar dos anos, passa dos peda­ 62 O jogo das “nozes” consistia em adivinhar em
gogos, dos mestres, das “nozes 62”, das qual das três nozes estava escondida uma bola de
pez, que hábil jogador, com movimentos rápidos e
“bolas” e dos “passarinhos”, para os de prestidigitador, aí colocara. (N. do T.)
magistrados, para os reis, para o ouro, 63 Mí 19, 1.

20
Magnificat

31. Contudo, Senhor, graças Vos Tudo eram dons do meu Deus. Não
sejam dadas, a Vós, Criador e Ordena- fui eu quem mos deu a mim mesmo.
dor do universo, tão excelso e tão bom, São bens, e todos eles constituem em
embora quisésseis que eu não vivesse mim o “eu”. Portanto, é bom Aquele
além da infância. Então já eu possuía o que me criou. Ele mesmo é o meu bem,
ser, a vida, o sentimento, e tinha cuida­ e eu louvo-O com alegria por todos os
do da minha incolumidade, reflexo da bens que eu tinha até mesmo na
misteriosa unidade, fonte do meu ser. infância.
Vigiava, por um secreto instinto, pela Eu pecava, porque em vez de procu­
integridade dos meus sentidos, e até rar em Deus os prazeres, as grandezas
nos meus frágeis pensamentos acerca e as verdades, procurava-os nas suas
de pequenas coisas me deleitava em criaturas: em mim e nos outros. Por
encontrar a verdade. isso, precipitava-me na dor, na confu­
são e no erro.
Não queria ser enganado. Gozava Graças Vos sejam dadas, minha
de memória vigorosa e dotes de elocu- doçura, minha glória, minha confiança
* ção. Era sensível à amizade, fugia à e meu Deus! Graças Vos sejam dadas
dor, à objeção, à ignorância64. Não é pelos dons que me concedestes. Con-
isto admirável e digno de louvor em tal servai-mos.
criatura? Assim me haveis de conservar.
Também aumentareis e aperfeiçoareis
6 4 Agostinho não alude à sua inteligência genial. os vossos dons, e eu estarei convosco,
Passa em silêncio a sua acuidade intuitiva e o seu
poder raciocinante para se fixar só na sua “memória pois, se existo, Vós me destes a
vigorosa e dotes de elocução”. (N. do T.) existência.
LIVRO II

OS PECADOS DA ADOLESCÊNCIA

I — A adolescência (1-3).
II — O prazer de praticar o
mal (4-10).
1
Desordens da juventude

1. Quero recordar as minhas torpe- em desejos de me satisfazer em praze­


zas paSsadas e as depravações carnais res infernais, ousando até entrégar-me
da minha alma, não porque as ame, a vários e tenebrosos amores ! A minha
mas para Vos amar, ó meu Deus. É beleza definhou-se e apodrecí a vossos
por amor do vosso amor que, amarga­ olhos, por buscar a complacência pró­
mente, chamo à memória os caminhos pria e desejar ser agradável aos olhos
viciosos, para que me dulcifiqueis, ó dos homens 6 5.
doçura que não engana, doçura feliz e
firme. Concentro-me, livre da disper­ 6 5 Nesta altura da narrativa, Agostinho era estu­
dante em Madaura, onde seus olhos ávidos de
são. em que me dissipei e me reduzi ao adolescente contemplaram estátuas romanas e tem­
nada, afastando-me de vossa unidade plos de pórticos coríntios.
Desta cidade era natural Apuleio, orador, tauma-
para inúmeras bagatelas. turgo e filósofo, a quem os concidadãos ergueram
Quantas vezes, na adolescência, ardi uma estátua. (N. do T.)

2
Sob a ação da carne
2. Que coisa me deleitava senão Vós, e permitíeis-mo 6 6. Arrojava-me,
amar e ser amado? Mas, nas relações derramava-me, espalhava-me e fervia
de alma para alma, não me continha a em minhas devassidões, e Vós em
moderação, conforme o limite lumi­ silêncio! Ó alegria que tão tarde
noso da amizade, visto que, da lodosa encontrei! Vós calado, e eu a afastar-
concupiscência da minha carne e do me cada vez mais de Vós, buscando,
borbulhar da juventude, exalavam-se constantemente, estéreis sementes de
vapores que me enevoavam e ofusca­ dores, com aviltante soberba e desin-
vam o coração, a ponto de não se dis­ quieto cansaço !
tinguir o amor sereno do prazer tene­ 3. Quem poderia refrear a minha
broso. Um e outro ardiam con­ miséria e fazer com que usasse bem da
fusamente em mim. Arrebatavam a formosura transitória de cada objeto?
minha débil idade despenhadeiros das Quem me fixaria um limite às suas
paixões e submergiam-se num abismo delícias, de tal maneira que as ondas
de vícios. Sem eu saber, a vossa ira
tinha-se robustecido sobre mim. Ensur­ 6 6 A crise da adolescência em Agostinho, como
em todos os jovens, revela um ofuscamento da
decí com o ruído da cadeia da minha razão e dos valores espirituais, substituídos pelo
mortalidade, em castigo da soberba de despertar impetuoso dos instintos.
A energia vital vai preferentemente para o corpo.
minha alma. A vontade e a inteligência ficam enfraquecidas. (N.
Afastava-me para mais longe de do T.)
46 SANTO AGOSTINHO

da minha idade se agitassem de encon­ 4. Miserável de mim! Fervia em


tro à praia do matrimônio — já que cachoes, seguindo o ímpeto da minha
doutro modo não era possível a tran­ torrente, abandonando-Vos, e trans­
quilidade — e encontrassem o fim gredia todos os mandamentos sem
natural na geração de filhos, como escapar aos vossos açoites. E que mor­
prescreve a vossa lei, ó Senhor, que tal haverá que os evite? Sim, estáveis
criais a descendência da nossa raça sempre a meu lado, irritando-Vos
mortal e podeis suavizar, com mão misericordiosamente e aspergindo com
bondosa, os espinhos desconhecidos amargosíssimos desgostos todos os
no paraíso? A vossa onipotência está meus deleites ilícitos, para que bus­
perto de nós, ainda quando erramos casse a alegria sem Vos ofender, e
longe de Vós. nada pudesse encontrar em parte algu­
Certamente, deveria com mais dili­ ma senão a Vós, Senhor, a Vós, que
gência prestar ouvidos ao som vindo “nos dais a dor como preceito 71 ”, que
de vossas nuvens: “Sofrerão as tribula- “feris para curar 72” e nos tirais a vida
çoes da carne. Eu, porém, quisera para não morrermos longe de Vós.
poupar-Vos67”. Ou ainda: “E bom Onde me encontrava eu? Como me
para o homem não tocar em mulher tinha exilado para longe das delícias
alguma68”; “o que não tem esposa da vossa casa, aos dezesseis anos de
pensa nas coisas de Deus e em como idade, segundo a carne, quando a lou­
lhe há de agradar; o que está unido em cura deste prazer, que a nossa degrada­
matrimônio pensa nas coisas do ção liberta de todo o freio, e que é proi­
mundo e em como há de agradar à bido pela vossa lei, me fez aceitar o
esposa69”. Oxalá tivesse ouvido mais cetro que empunhei com ambas as
atentamente essas palavras! Se tivesse mãos ! Nenhum dos meus teve o cuida­
vivido eunuco “por amor do reino dos do de me suster na queda, pelo matri­
céus70” esperaria agora, mais feliz, os mônio, porque de mim só tinham uma
vossos abraços.6 preocupação: que aprendesse a com­
por discursos o mais belamente possí­
6’ 1 Cor 7, 28. vel e a persuadir por meio da oratória.
68 1 Cor 7, 1.
88 1 Cor 7, 32, 33. 71 57 93,20.
70 Mt 19, 12. 72 Dt32, 39.

3
“Nas praças de Babilônia”

5. Nesse mesmo ano73, interrompí e oratória. Meu pai, cidadão muito


os estudos porque fui chamado de modesto de Tagaste, levado mais pela
Madaura74, cidade vizinha, aonde ambição que pelos seus recursos, prje-
tinha ido assistir às aulas de literatura parava-me os meios necessários para
uma viagem mais longínqua, para
7 3 Em 370. (N. do T.)
Cartago.
7 4' Madaura, na Numídia (atual Argélia), aproxi­ Mas a quem narro eu estes fatos?
madamente a vinte e quatro quilômetros de Tagaste, Não é a Vós, meu Deus. Na vossa pre­
que foi a terra natal de Santo Agostinho. sença dirijo-me ao gênero humano,
Naquela cidade concluiu ele o curso de humani­
dades, ministrado por gramáticos oficiais. (N. do àquele a que eu pertenço, ainda que
T.) estas páginas possam chegar apenas a
CONFISSÕES II 47

uma minoria. Então, para que escrevo amar as criaturas. Porém, já tínheis
isto? Para que eu e todos os que lerem começado a edificar em minha mãe o
estas palavras pensemos de que abis­ vosso templo e os fundamentos da
mo profundo se deve chamar por Vós. vossa santa habitação. Meu pai era
Que coisa mais próxima de vossos simples catecúmeno, recente ainda.
ouvidos do que um coração arrepen­ Por isso, minha mãe, com tal nova,
dido e uma vida de fé? agitou-se, levada de piedosa perturba­
Quem não cumulava, então, de lou­ ção e temor. Apesar de eu ainda não
vores a meu pai, por ultrapassar até os ser batizado, receou que enveredasse
recursos do patrimônio, só para conce­ por caminhos tortuosos, por onde
der tudo o que era necessário ao filho andam “os que Vos voltam as costas e
que tinha viajado para longe por causa não o rosto 7 7”.
dos estudos? Numerosos cidadãos 7. Ai de mim! Como me atrevo a
muitíssimo mais opulentos nem de dizer que estáveis calado, quando
longe mostravam tal cuidado pelos continuamente me ia afastando de
filhos. No entanto, meu pai não se Vós! Guardáveis, porventura, silêncio
preocupava com saber se eu crescia diante de mim? De quem eram, senão
para Vós, isto é, se vivia castamente. de Vós, aquelas palavras que, por meio
Contanto que fosse diserto !. . . Mas de minha mãe, vossa fiel serva, pro­
eu era antes um deserto7 5 quanto à nunciastes aos meus ouvidos? Nenhu­
vossa cultura, ó meu Deus, único, ver­ ma delas, porém, desceu ao meu cora­
dadeiro e bondoso Senhor do vosso ção, para cumprir o que ela me
campo — o meu coração. aconselhava. Lembro-me que, um dia,
6. Ora, nesta idade dos dezesseis querendo que me abstivesse da luxúria
anos, sucedendo-se um intermédio de e sobretudo não cometesse adultérios,
ociosidade por me ver livre de todas as avisou-me em particular e com grande
aulas devido a dificuldades domésti­ solicitude.
cas, comecei a viver com meus pais7 6. Envergonhava-me de seguir tais
Foi então que os espinhos das paixões conselhos, por me parecerem só pró­
me sobrepujaram a cabeça, sem haver prios de mulheres. Porém eram vossos,
mão que os arrancasse. Bem pelo e eu sem o saber ! Julgava que nada me
contrário: meu pai, durante o banho, dizíeis, que só ela me falava; mas Vós
vendo-me entrar já na puberdade e dirigíeis-Vos a mim, por sua boca.
revestido da adolescência inquieta, Éreis desprezado na sua pessoa por
contou-o todo alegre, a minha mãe, mim, sim, por mim, pelo filho da vossa
como se tal verificação o fizesse saltar escrava, pelo vosso servo. Mas eu não
de prazer com a idéia de ter netos. Era sabia! Ignorante, precipitava-me tão
uma alegria, aliás, proveniente da cegamente que, entre os companheiros
embriaguez produzida pelo vinho invi­ da minha idade, me envergonhava de
sível da sua vontade perversa e incli­ ser menos infame do que eles. Ouvia-
nada às coisas baixas — embriaguez os jactarem-se de suas ignomínias, e
com que este mundo esquece o Cria­ tanto mais se gloriavam quanto mais
dor, para, em vez de Vós, Senhor, depravados eram. Assim, praticava o
mal não só pelo deleite da ação, mas
7 5 Jogo de palavras: disertus e desertus. É fre­ ainda para ser louvado.
quente em Santo Agostinho. Vejam-se também sar- Que haverá mais digno de vitupério
taga (sertã) e Cartago (Livro III, cap. I). (N. do T.)
7 6 Este intervalo de ociosidade deve ter-se prolon­
gado por um ano. (N. do T.) 77 Jerl, 27.
48 SANTO AGOSTINHO

do que o vício? E eu, para não ser vitu- pelo afeto conjugal. Temia que o vín­
perado, fazia-me cada vez mais vicio­ culo do.matrimônio servisse de empe­
so ! Se não cometesse pecado com que cilho à esperança que de mim acalen­
igualasse os mais corrompidos, fingia tava. Não temia que ele me impedisse
ter cometido o que não praticara, para a outra vida, pois esta colocava-a
que não parecesse mais abjeto quanto minha mãe unicamente em Vós. Re­
mais inocente, e mais vil quanto mais ceava que me prejudicasse no estudo
casto. das letras, com que, tanto ela como
8. Eis os companheiros com quem meu pai, desejavam ardentemente a
andava pelas praças de Babilônia, minha celebridade: este, por não pen­
revolvendo-me na lama, como em sar quase nada em Vós e alimentar de
cinamomo e ungüentos preciosos. Para mim vãs ambições; e minha mãe por
que mais tenazmente me agarrasse no julgar que estes tradicionais estudos
meio desse lodo, o inimigo invisível literários não me causariam dano,
calcava-me aos pés e seduzia-me, por­ antes ajudariam a aproximar-me de
que era fácil de seduzir. A mãe da Vós. Assim era, julgo eu, segundo a
minha carne, que jâ “tinha fugido do lembrança, quanto possível exata, que
faço do caráter de meus pais.
meio de Babilônia78”, mas que nou­ Ultrapassando até a medida da seve­
tras faltas caminhava mais devagar, ridade, afrouxaram-me as rédeas no
refletiu no que ouvira dizer a meu pai, jogo e na dissolução de várias paixões.
e aconselhou-me a castidade. De toda essa miséria, ó meu Deus, ele­
Mas, apesar de não poder cortar de vava-se uma escuridão que me ocul­
raiz esta paixão pestífera que mais tava a luz serena da vossa Verdade. “A
tarde, como ela pressentia, me havia de maldade como que brotava da minha
ser perigosa, não procurou contê-la substância79.”
78 Jer 51, 6. 79 67 72,7.

4
História dum furto

9. O furto é punido pela vossa lei, ó o que tinha em abundância e em muito


Senhor, lei que, indelevelmente grava­ melhores condições. Não pretendia
da nos corações dos homens, nem se­ desfrutar do furto, mas do roubo em si
quer a mesma iniquidade poderá apa­ e do pecado.
gar. Ora, que ladrão haverá que Havia, próximo da nossa vinha,
suporte com gosto outro ladrão, se até uma pereira, carregada de frutos nada
o rico não perdoa ao indigente que foi sedutores, nem pela beleza nem pelo
compelido ao roubo pela miséria? E eu sabor. Alta noite, pois tínhamos ó per­
verso costume de prolongar nasl eiras
quis roubar; roubei, não instigado pela
necessidade, mas somente pela penú­ os jogos até essas horas, eu com alguns
ria, pelo fastio da justiça e pelo excesso jovens malvados fomos sacudi-la para
da maldade80. Tanto é assim que furtei lhe roubarmos os frutos. Tiramos
grande quantidade, não para nos ban-
80 Como médico de almas e com a iluminação de quetearmos, se bem que provamos
santo, Agostinho escalpeliza este ato de malícia de
infringir a lei só pelo gosto de pecar e sem interesse alguns, mas para os lançarmos aos
algum. (N. do T.) porcos. Portanto, todo o nosso prazer
CONFISSÕES II 49

consistia em praticarmos o que nos para a minha malícia senão a própria


agradava, pelo fato de o roubo ser malícia. Era asquerosa e amei-a. Amei
ilícito. a minha morte, amei o meu pecado.
Eis o meu coração, Senhor, eis o Amei, não aquilo a que era arrastado,
meu coração, que olhaste com miseri­ senão a mesma queda. Que alma tão
córdia no fundo do abismo. Diga-Vos forte que se apartava do vosso firme
ele agora o que buscava nç.sse sorve­ apoio, para se lançar na morte, apete­
douro, sendo eu mau desinteressa- cendo não uma parcela da desvergo­
damente e não havendo outro motivo nha, mas a própria desvergonha!

5
A causa ordinária do pecado

10. O ouro, a prata, os corpos belos não como o meu Deus, que criou todas
e todas as coisas são dotadas dum as coisas, porque “Ele é as delícias dos
certo atrativo81. O prazer de conve­ corações retos, e é n’Ele que o justo
niência que se sente no contato da rejubila82”.
carne influi vivamente. Cada um dos 11. Portanto, quando se indaga a
outros sentidos encontra nos corpos razão por que se praticou um crime,
uma modalidade que lhes corresponde. esta ordinariamente não é digna de cré­
Do mesmo modo a honra temporal e o dito, se não se descobre que a sua
poder de mandar e dominar encerram causa pode ter sido ou o desejo de
também um brilho, donde igualmente alcançar alguns dos bens a que chama­
nasce a avidez de vingança. Todavia, mos ínfimos, ou o medo de os perder.
para a aquisição de todos estes bens, o Esses bens são, sem dúvida, belos e
homem não Vos deve abandonar nem atraentes, ainda que, comparados com
afastar-se da vossa lei, ó Senhor. A os superiores e celestes, não passem de
vida neste mundo seduz por causa desprezíveis e abjetos.
duma certa medida de beleza que lhe é Alguém matou um homem. E por
própria, e da harmonia que tem com quê? Ou porque lhe amava a esposa ou
todas as formosuras terrenas. A amiza­ o campo, ou porque queria roubar
de dos homens toma-se doce, por unifi­ para viver, ou porque temia que lhe
car, com um laço querido, muitas tirasse alguma coisa, ou finalmente
almas. porque, injuriado, ardia no desejo de
Por todos estes motivos e outros vingança. Quem acreditará que come­
semelhantes, comete-se o pecado, por­ teu o homicídio só por deleite, se até
que, pela propensão imoderada para os Catilina, aquele homem louco e crude-
bens inferiores, embora sejam bons, se líssimo, de quem se disse ser perverso e
abandonam outros melhores e mais cruel sem razão, tinha um motivo: “o
elevados, ou seja, a Vós, meu Deus, à receio”, diz o historiador, “de que o
vossa verdade e à vossa lei. De fato, as ócio lhe entorpecesse as mãos e o espí­
coisas ínfimas também deleitam, mas rito83”? Por que fim procedia ele
assim? Evidentemente, para que, exer-
81 Por que razão o homem é arrastado ao mal?
Porque neste há uma aparência de bem, um atrativo 82 Sl 63, 11.
para as forças instintivas psicológicas. (N. do T.) 88 Cf. Salústio, Cat. 16. (N. do T.)
50 SANTO AGOSTINHO

citado no crime, alcançasse, depois de o lançara a pobreza da herança e a


tomada a cidade de Roma, as honras, consciência do crime. Logo, nem o
o poder e as riquezas, libertando-se do mesmo Catilina. amou seus crimes,
medo das leis e da dificuldade em que mas aquilo por cujo fim os cometia.

6
A alegria do mal
12. Que amei eu, miserável, em ti, ó todas as coisas. Que busca a ambição
meu furto, crime noturno dos meus senão honras e glória, embora só Vós
dezesseis anos? Não tinhas beleza tenhais direito a ser honrado sobre
alguma, pois eras um roubo! Mas és tudo e glorificado etemamente? A
realmente alguma coisa, para eu me sevícia dos poderosos aspira a fazer-se
dirigir a ti? As peras que roubamos, temer; mas quem deve ser temido
sim, eram belas por serem criaturas senão Deus? Quando, onde, até onde e
vossas, ó mais belo de todos os seres, quem pode tirar ou subtrair alguma
Criador de tudo, ó Deus tão bom, coisa ao vosso poder? As carícias dos
Deus soberano e meu verdadeiro Bem. voluptuosos desejam a reciprocidade
Aqueles pomos eram belos; mas não do amor; mas nada há mais acari-
foram esses que a minha alma depra­ ciante que a vossa caridade, nem se
vada apeteceu, pois tinha abundância pode amar nada mais salutar que a
doutros melhores. Colhi-os simples­ vossa verdade, a mais formosa e
mente para roubar. Tanto é assim que, resplandecente de todas. A curiosidade
depois de colhidos, os lancei fora, parece ambicionar o estudo da ciência,
banqueteando-me só na iniquidade quando só Vós é que conheceis plena­
com cujo gozo me alegrara. Se algum mente tudo!
dos frutos entrou em minha boca, foi o Até a própria ignorância e estultícia
meu crime que lhes deu o sabor. se encobrem sob o nome de simplici­
Agora, Senhor e Deus meu, procuro dade e de inocência. Mas nada se
saber o que me deleitava no furto, e encontra mais simples do que Vós.
não lhe encontro beleza alguma84. Quem há mais inocente do que Vós,
Não falo já da beleza que se encontra pois são as próprias obras que prejudi­
na justiça e prudência, na inteligência cam os pecadores? À preguiça parece
do homem, na memória, nos sentidos e apetecer apenas o descanso; mas que
na vida vegetativa; nem mesmo da que repouso seguro há fora do Senhor? A
resplandece ou nos astros magníficos e luxúria deseja apelidar-se saciedade e
brilhantes nas suas órbitas ou na terra abundância; Vós, porém, sois a pleni­
e mar, cheios de espécies que, nascen­ tude e a abundância interminável da
do, sucedem às que morrem; nem tam­ suavidade incorruptível. A prodigali­
pouco desta defeituosa sombra de for­ dade cobre-se com a sombra da libera-
I
mosura com que os vícios seduzem. lidade; mas o mais magnanimo dispen-
13. O orgulho imita a altura, mas sador de todos os bens sois Vos. A
só Vós, meu Deus, sois excelso sobre avareza quer possuir muito; e Vós pos­
suís tudo. A inveja litiga acerca da
8 4 Admirem-se nesta e noutras passagens “as aná­ “excelência”; mas que ser há mais
lises interiores, estas maravilhas da psicologia” a
que se refere Henry de Lubac no livro Catholicisme. excelente que Vós? A ira procura , a
(N. do T.) vingança; e quem se vinga mais justa­
CONFISSÕES II 51

mente que Vós? O temor, enquanto há lugar para onde nos possamos afas­
vigia pela segurança das coisas que tar totalmente de Vós8 5.
ama, detesta os acontecimentos insóli­ Que amei, portanto, naquele roubo e
tos e inesperados que lhes sejam adver­ em que imitei o meu Senhor, ainda
sos; porém, que há de insólito para mesmo criminosa e perversamente?
Tive ao menos o gosto de lutar pela
Vós? Que há de inesperado? Quem se­ fraude contra a vossa lei, já que o não
para de Vós o que amais? E onde podia pela força, a fim de imitar, sendo
encontrar a firme segurança senão em cativo, uma falsa liberdade, praticando
Vós? A tristeza definha-se com a perda impunemente, por uma tenebrosa se­
dos bens em que a cobiça se deleita — melhança de onipotência, o que me
porque desejaria que nada, como a não era lícito? Eis-me “aquele escravo
Vós, se lhe pudesse tirar. que, fugindo a seu senhor, seguiu uma
14. Ê assim que a alma peca, quan­ sombra!8 6” Ó podridão, ó monstro da
do se aparta e busca fora de Vós o que vida e abismo da morte! Como pode
não pode encontrar puro e transpa­ agradar-me o ilícito sem outro motivo
rente, a não ser regressando a que o de me ser proibido?
3 5 Santo Agostinho desenvolve concretamente a
Vós de novo. Imitam-Vos perversa­ tese filosófica de que a atividade consciente ou
mente todos os que se afastam de Vós inconsciente dos seres imita a Ação do Ser. O gênio
Hiponense descreveu a analogia entre o Ser e os
e contra Vós se levantam. Ainda seres sob o aspecto de atividade ou dinamismo.
assim, imitando-Vos deste modo, mos­ Com este os seres pretendem valorizar-se e manifes­
tar a sua natureza ínfima. No pecado o homem
tram que sois o Criador de toda a imita perversamente a atividade de Deus. (N. do T.)
natureza, e que, por conseguinte, não 8 6 Jó, 7, 2.

7
O perdão
15. “Como agradecerei ao Se­ próprias forças a sua castidade e ino­
nhor87” o ter-se a minha memória cência para Vos amar menos, como se
recordado destes fatos e a minha alma lhe fosse pouco necessária a miseri­
não ter sentido temor? Amar-Vos-ei, córdia com que perdoastes os pecados
Senhor, dar-Vos-ei graças e confessarei aos que se voltam para Vós? Aquele
o vosso nome, porque me perdoastes que, a vosso convite, seguiu o chama­
ações tão más e tão indignas. Atribuo mento e evitou as faltas — que agora
à vossa graça e à vossa misericórdia o lê em mim, quando as recordo e con­
terdes-me dissolvido, como gelo, os fesso — não se ria de eu ter sido cura­
pecados. A vossa graça devo também do da minha doença por Aquele médi­
o ter fugido do mal que não pratiquei. co. Por Ele foi-lhe concedido não cair
Oh! de que não era eu capaz, se até na mesma doença, ou antes, fez com
amei, sem recompensa, o pecado? ! que enfermasse com menos gravidade.
Confesso que tudo me foi perdoado: Por conseguinte, ame-Vos ele outro
o mal que de livre vontade cometi e o tanto. Mas que digo eu? ame-Vos
que não pratiquei graças à vossa ainda mais, por me ver a mim livre de
ajuda. Que homem há que, refletindo tão grande enfermidade, graças Àquele
na sua enfermidade, ouse atribuir às por quem, do mesmo modo, se vê
desenredado de tão grande languidez
87 Sl 115, 12. de pecados.
52 SANTO AGOSTINHO

8
O prazer da cumplicidade
16. Que fruto nessa ocasião colhi Que é esta, na realidade? Quem mo
eu, miserável, das ações que agora, ao ensinará senão Aquele que ilumina o
recordá-las, me fazem corar de vergo­ meu coração, rasgando-lhe as som­
nha, nomeadamente daquele roubo, em bras? Por que ocorreu ao meu espírito
que amei o próprio roubo e nada mais? estar aqui a inquirir, discutir e conside­
Nenhum, pois o furto nada valia, e, rar tais particularidades? Se então
com ele, me tornei mais miserável. amasse os pomos que furtei e com eles
me apetecesse regalar, poderia tê-los
Sozinho não o faria — lembro-me de roubado sozinho, se isso bastasse.
que era esta a minha disposição, Poderia ter cometido a iniquidade por
naquele momento; sim, absolutamente onde cheguei ao meu deleite, sem acen­
só, não era capaz de o fazer. Portanto, der, com a fricção de almas cúmplices,
amei também no furto o consórcio o prurido da minha cobiça. Mas por­
daqueles com quem o cometi. Amei, que não experimentava prazer naque­
por isso, m'ais alguma coisa do que o les furtos, este consistia na própria
furto. Mas não: não amei mais nada, falta que praticavam os pecadores
porque a cumplicidade nada vale. simultaneamente, em cumplicidade.

9
O riso da maldade

17. Que sentimento era aquele da caria tal ação. Se estivesse absoluta­
minha alma? Sem dúvida, um senti­ mente só, não a faria8 9.
mento muitíssimo vergonhoso; e ai de Eis perante Vós, ó meu Deus, uma
mim que o mantinha! Mas, enfim, que viva lembrança da minha alma. Sozi­
era ele? “Quem conhece todos os deli­ nho, não cometería aquele furto, em
tos?88” Era um riso, como que a que me não aprazia o que roubava,
mas o ato de roubar, porque, comple­
fazer-nos cócegas no coração, provo­
tamente só, não sentiría prazer em pra­
cado pelo gosto de enganar os que ti­
nham como impossível o nosso feito e ticar o furto. Nem sequer o faria. Ó
vivamente o detestavam. amizade tão inimiga, ó sedução impe­
netrável da mente, avidez de perpetrar .
Qual o motivo por que me deleitava o mal por brincadeira ou gracejo, ó
o não estar sozinho, quando cometia o apetite do dano alheio, sem lucro
furto? Seria porque ninguém facil­ nenhum, sem paixão de vingança, mas
mente se ri, quando está só? Ê certo só porque sentímos vergonha de não
que, sozinho, ninguém se ri facilmente. ser desavergonhados, quando* nós
Mas, se alguma coisa demasiado ridí­ dizem: “Vamos, façamos”.
cula acode aos sentidos ou à imagina­ 89 Reconhece Santo Agostinho a influência do
ção, o riso vence por vezes o homem, ambiente na perpetração de crimes. O homem no
mesmo quando sozinho e sem ter nin­ meio dum grupo ou da multidão deixa-se facilmente
guém presente. Ah ! sozinho não prati­ sugestionar. E todo receptividade psicológica. A
carga efetiva da coletividade galvaniza-o. Não reage
como ser independente, mas como parte dum todo.
88 Sl 18, 13. (N. do T.)
CONFISSÕES II 53

10
Quero a luz. . .

18. Quem desembaraçará este nó cência tão bela e tão formosa, como
tão enredado e emaranhado? É asque­ puros resplendores e insaciável satura­
roso; não o quero fitar nem ver90. ção. Em Vós há grande tranquilidade e
Quero-Vos a Vós, ó Justiça e Ino­ vida imperturbável.
Quem entra em Vós penetra “no
90 Santo Agostinho reage perante o pecado como
um esteta perante a fealdade monstruosa e repug­ gozo do seu Senhor91”, e não só não
nante. Depois de o ter analisado como santo, como terá receio, mas também permanecerá
jurista e como psicólogo, fixa-o sob o aspecto artís­ soberanamente no bem perfeito.
tico. Acha-o repugnante I
Compare-se esta frase das Confissões: “é asque­ Na adolescência, afastei-me de Vós,
roso; não o quero fitar nem ver”, com esta outra andei errante, meu Deus, muito des­
passagem: “Que impressões te causa um rapaz viado do vosso apoio, tornando-me
belíssimo que é ladrão? Quanto se horrorizam os
teus olhos? 1” (Santo Agostinho, Comentário ao para mim mesmo uma região de fome.
Evangelho de S. João, Vol. I, trat. III, n. 21, trad. do
P. José A. Rodrigues Amado). (N. do T.) si Mí25, 21.
LIVRO III

OS ESTUDOS

I — Em Cartago. Nos estu­


dos (1-5).
II — Santo Agostinho e a sei­
ta de Maniqueu (6-12).
1
Amores impuros

1. Vim para Cartago. De todos os sa, lançava-se para fora, ávida de se


lados fervia a sertã (sartago) de crimi­ roçar miseravelmente aos objetos sen­
nosos amores92. Ainda não amava e já síveis. Mas se estes não tivessem alma,
gostava de amar93. Impelido por uma com certeza não seriam amados.
necessidade secreta, enraivecia-me Era para mim mais doce amar e ser
contra mim mesmo por não me sentir amado, se podia gozar do corpo da
mais faminto de amor. Gostando de pessoa amada. Deste modo, manchava
amar, procurava um objeto para esse com torpe concupiscência aquela fonte
amor: odiava a minha vida estável e o de amizade. Embaciava a sua pureza
caminho isento de riscos, porque sentia com o fumo infernal da luxúria. Não
dentro de mim uma fome de alimento obstante ser feio e impuro, desejava, na
interior — de Vós, ó meu Deus. Não minha excessiva vaidade, mostrar-me
tinha fome desta fome, porque estava afável e delicado.
sem apetites de alimentos incorruptí­ Precipitei-me finalmente no amor
veis, não porque deles transbordasse, em que anelava ser enredado, ó meu
mas porque, quanto mais vazio, tanto Deus, Misericórdia minha, ah ! quanto
mais enfastiado me sentia. Por isso fel derramou a vossa bondade nestas
minha alma não tinha saúde, e, ulcero- delícias! Fui amado, cheguei oculta­
mente aos laços do gozo. Mas, ainda
92 Há nestas frases um jogo de palavras, que facil­ que alegre, enredava-me nos laços das
mente transparece no original latino: Cartago e Sar­
tago (sertã). (N. do T.) tribulações para ser flagelado pelas fér­
93 Antes do ato psicológico, existe jâ no incons­ reas e esbraseantes varas do ciúme, das
ciente a tendência para buscar um valor adaptável
que possa ser um centro afetivo ou um núcleo de . suspeitas, dos temores, dos ódios e das
exercício de nova imanência de ser. (N. do T.) contendas:

2
Do prazer dramático

2. Arrebatavam-me os espetáculos mento, que, afinal, para ele constitui


teatrais, cheios de imagens das minhas um prazer. Que é isto senão rematada
misérias e de alimento próprio para o loucura? Com efeito, tanto mais cada
fogo das minhas paixões. um se comove com tais cenas quanto
Mas por que quer o homem con- menos curado se acha de tais afetos
doer-se, quando presencia cenas dolo­ (deletérios). Mas ao sofrimento próprio
rosas e trágicas, se de modo algum de­ chamamos ordinariamente desgraça, e
seja suportá-las? Todavia, o à comparticipação das dores alheias,
espectador anseia por sentir esse sofri­ compaixão. Que compaixão é essa em
58 SANTO AGOSTINHO

assuntos fictícios e cênicos, se não porém, compadeço-me mais do homem


induz o espectador a prestar auxílio, que se alegra no vício do que daquele
mas somente o convida à angústia e a que pungentemente sofre com a perda
comprazer ao dramaturgo, na propor­ do prazer funesto, ou com a privação
ção da dor que experimenta? E, se duma miserável felicidade. Esta pieda­
aquelas tragédias humanas, antigas ou de é mais real. Porém a dor não encon­
fingidas, se representam de modo a tra nela prazer algum. Ainda que o
não excitarem a compaixão, o especta­ dever da caridade aprove que nos con-
dor retira-se enfastiado e criticando. doamos do infeliz, todavia aquele que
Pelo contrário, se se comove, perma­ fratemalmente é misericordioso prefe­
nece atento e chora de satisfação. riría que nenhuma dor houvesse de que
3. Amamos, portanto, as lágrimas e se compadecesse. Se a benevolência
as dores. Mas todo homem deseja o fosse malévola — o que é impossível
gozo. Ora, ainda que a ninguém apra- —, poderia aquele que verdadeira e
za ser desgraçado, apraz-nos contudo sinceramente se inclina aos senti­
o ser compadecidos. Não gostaremos mentos de compaixão desejar que hou­
nós dessas emoções dolorosas pelo vesse infelizes para se compadecer.
único motivo de que a compaixão é Em certos casos podemos, pois,
companheira inseparável da dor? aprovar que haja alguma dor, mas
A amizade é a fonte destas simpa­ nunca a podemos amar. Portanto,
tias. Mas para onde se dirige? Para Senhor, Deus meu, amais as almas
onde corre? Por que se despenha na com amor infinitamente mais puro que
torrente de pez a ferver e nas vagas o nosso, compadeceis-Vos, sem perigo
alterosas das negras paixões, onde de corrupção, porque não sois ferido
voluntariamente se transforma e se por dor alguma. “Que homem há
aparta da serenidade celeste, que o capaz disso?9 6.’:'
homem abandonou e repudiou? Logo, 4. Mas eu, miserável, gostava então
deve-se repelir a compaixão? De modo de me condoer, e buscava motivos de
nenhum. Convém, portanto, amar, al­ dor. Só me agradava e me atraía com
guma vez, as dores. Mas acautela-te da veemência a ação do ator quando, num
impureza, ó minha alma, “sob a prote­ infortúnio alheio, fictício e cômico, me
ção do meu Deus, do Deus dos nossos borbulhavam nos olhos as lágrimas.
pais, digno de louvor e honra por todos Que admira pois que eu, infeliz ovelha
os séculos9 4”; foge da impureza. desgarrada do vosso rebanho e reni­
Agora nem por isso me fecho à tente à vossa guarda, me afeiasse com
compaixão. Mas em tempos passados ronha hedionda? ;-
compartilhava no teatro da satisfação
dos amantes que mutuamente se goza­ Disto provinha o meu afeto pelas
vam pela torpeza, se bem que espetá­ emoções dolorosas, só por aquelas que
culos destes não passassem de meras me não atingiam, profundamente, pois
não gostava de sofrer com as meismas
ficções. Quando se desgraçavam, eu
piedosamente me contristava. Numa e cenas em que a vista se deleitava.
noutra coisa, sentia prazer95. Hoje, Comprazia-me com aquelas coisas
que, ouvidas e fingidas, me tocavam na
3 4 Dan. 3, 52. superfície da alma. Mas, como acon­
9 5 O prazer dramático experimentado em teatro tece quando remexemos (uma ferida)
depende da identificação do que assiste com os
sentimentos do ator e também dum inconsciente com as unhas, este contato provocava
bem-estar por não sermos nós a sofrer realmente.
(N. do T.) 9 6 2 Cor 2, 16.
CONFISSÕES III 59

em mim a inflamação do tumor, a Tal era a minha vida! Mas isso, meu
podridão e o pus repelente. Deus, podia chamar-se vida?

3
O estudante de retórica e os “demolidores”

5. E a vossa fiel misericórdia paira­ riam ! Já naquele tempo era o primeiro


va, de longe, sobre mim. Em quantas da escola de retórica, coisa que me ale­
iniqüidades me corrompi e a quantas grava soberbamente e me fazia inchar
curiosidades sacrílegas me entreguei, de vaidade.
até me precipitar, abandonando-Vos, Como Vós o sabeis, Senhor, apesar
nos profundos abismos de infidelidade de eu estar mais sossegado e inteira­
e no serviço enganador dos demônios a mente alheio às turbulências dos “de­
quem “sacrificava” as minhas malda- molidores” — nome sinistro e diabó­
des ! Mas Vós em tudo me flageláveis ! lico por eles considerado como um
Até ousei, nas cerimônias dos vossos distintivo de elegância —, vivia contu­
mistérios, dentro das paredes da Igreja, do éntre eles com imprudente rubor de
conceber um mau desejo e descobrir o não os imitar. Quando me encontrava
meio para buscar os frutos de morte! com eles deleitava-me com a sua ami­
Por isso me punistes com graves casti­ zade, se bem que sempre me horrori­
gos, não em proporção do meu pecado, zasse o seu proceder, isto é, as troças
ó meu Deus, infinita misericórdia, meu com que insolentemente assaltavam a
refúgio em todas estas horrorosas simplicidade dos calouros, a quem
desordens! Nelas divaguei, de cabeça amedrontavam, rindo-se sem razão e
altiva, desgarrando-me para longe de achando nisso pasto para as suas mal­
Vós, preferindo os meus caminhos aos vadas alegrias. Nada mais semelhante
vossos, amando a liberdade de escravo aos seus atos do que as ações dos pró­
fugitivo! prios demônios. E assim, que nome
6. Os estudos a que me entregava, e mais acomodado para eles do que o de
que se apelidavam de honestos, davam “demolidores”? Mas primeiro foram
entrada para o foro dos litígios, onde “demolidos” e pervertidos pelos espíri­
me deveria distinguir tanto mais hon­ tos que ocultamente escarneciam deles
rosamente quanto mais hábil fosse a e os seduziam com os mesmos enganos
mentira. Quão grande é a cegueira dos com que eles gostavam de ludibriar ç
homens que até da cegueira se glo­ surpreender os outros.

4
A influência de um livro de Cícero
7. Era entre estes companheiros que gem, mais do que o coração, quase
eu, ainda de tenra idade, estudava todos louvam. Esse livro contém uma
eloquência, na qual desejava salientar- exortação ao estudo da filosofia. Cha-
me, com a intenção condenável e vã de ma-se Hortênsio3 7. Ele mudou o alvo
saborear os prazeres da vaidade huma­
9 7 Neste livro, em diálogo, de que hoje apenas se
na. Seguindo o programa do curso, conhecem fragmentos, Cícero respondia às dificul­
cheguei ao livro de Cícero, cuja lingua­ dades de Hortênsio contra a filosofia. (N. do T.)
60 SANTO AGOSTINHO

das minhas afeições e encaminhou meio do vosso bom e piedoso servo:


para Vós, Senhor, as minhas preces, “Vede não vos iluda alguém com a
transformando as minhas aspirações e filosofia e com miragens, conforme as
desejos. Imediatamente se tomaram tradições dos homens e os ensina­
vis, a meus olhos, as vãs esperanças. Já mentos do mundo, e não segundo Cris­
ambicionava, com incrível ardor do to, porque é n’Ele que habita corporal­
coração, a Sabedoria imortal. Princi­ mente toda a plenitude da Divin­
piava a levantar-me para voltar para dade99”.
Vós. Não era para limar a linguagem Mas Vós sabeis, Luz do meu cora­
— aperfeiçoamento que, segundo o ção, que naquele tempo ainda me não
meu parecer, compraria à custa do eram conhecidos estes ensinamentos
dinheiro da minha mãe —, não era do Apóstolo São Paulo.
para limar a linguagem, repito, que uti­ Apenas me deleitava, naquela exor­
lizava aquele livro — contando eu tação, o fato de essas palavras me exci­
dezenove anos de idade e havendo jâ tarem fortemente e acenderem em mim
decorrido dois após a morte de meu o desejo de amar, buscar, conquistar,
pai. Não era o estilo, mas sim o assun­ reter e abraçar., não esta ou aquela
to tratado que me persuadiam a lê-lo. seita, mas sim a mesma sabedoria,
8. Como ardia, Deus meu, como qualquer que ela fosse 1 °°.
ardia em desejos de voar das coisas Uma só coisa me magoava no meio
terrenas para Vós, sem saber como de tão grande ardor: não encontrar aí o
procedíeis comigo? “Em Vós está, ver­ nome de Cristo. Porque este nome,
dadeiramente, a sabedoria98”. Porém, segundo disposição da vossa miseri­
o amor da sabedoria, pelo qual aqueles córdia, Senhor, este nome do meu Sal­
estudos literários me apaixonavam, vador e Filho vosso, bebera-o com o
tem o nome grego de FILOSOFIA. Al­ leite materno o meu temo coração, e
guns há que nos seduzem por meio dele conservava o mais alto apreço.
dela, colorindo e adornando os seus Tudo aquilo de que estivesse ausente
erros com um nome grandioso, suave e este nome, ainda que fosse duma obra
honesto. Quase todos os filósofos literária burilada e verídica, nunca me
daquela época ou anteriores que assim arrebatava totalmente.
erram são apontados e refutados nesse 99 Col 2, 8 ss.
livro. Nele transparece aquele salutar 100 Santo Agostinho visiona a sabedoria como
ideal da verdade de que o homem desfruta no
conselho do vosso espírito, dado por mundo. A noção de sabedoria é um dos pontos cen­
trais da filosofia agostiniana. Identifica-se com o
98 Jó 12, 13. Bem Inteligível. (N. do T.)

5
Perante a simplicidade da Bíblia

9. Determinei, por isso, dedicar-me rios. Não estava ainda disposto a


ao estudo da Sagrada Escritura, para a poder entrar nela, ou inclinar a cerviz à
conhecer. sua passagem.
Vi então uma coisa encoberta para O que senti, quando tomei nas mãos
os soberbos, obscura para as crianças, aquele livro, não foi o que acabo de
mas humilde ao começo, sublime à me­ dizer, senão que: me pareceu indigno
dida que se avança e velada com misté­ compará-lo à elegância ciceroniana. A
CONFISSÕES III 61

sua' simplicidade repugnava ao meu ce com as crianças, porém eu de ne­


orgulho e a luz da minha inteligência nhum modo queria passar por criança,
não lhe penetrava no íntimo. e, enfatuado pelo orgulho, tinha-me na
Na verdade, a agudeza de vista cres­ conta de grande!

6
Seduzido pelo maniqueísmo

10. Caí assim nas mãos de homens efeito, as vossas criaturas espirituais
orgulhosamente extravagantes, dema­ são superiores às corpóreas, ainda que
siado carnais e loquazes. estas se apresentem brilhantes e se
movam no céu. Mas também não era
Havia na sua boca laços do demô­
dessas primeiras criaturas que eu an­
nio e um engodo, preparado com a
mistura de sílabas do vosso nome, do dava faminto e sequioso, mas sim de
Vós, de Vós, Verdade em que não há
de Nosso Senhor Jesus Cristo e do
Paráclito consolador, o Espírito Santo. “mudança nem sombra de vicissitu-
de101”.
Jamais esses nomes se lhes retira­
vam dos lábios, mas eram apenas sons Naquelas bandejas serviam-me
e estrépito da língua. O seu coração es­ então ficções brilhantes. Já era mais
tava vazio de sinceridade. Diziam: acertado amar este Sol, verdadeiro ao
“Verdade e mais verdade!” Incessante­ menos para os olhos, do que estimar
mente me falavam dela, mas não exis­ estas falsidades, que pelos olhos ilu­
tia neles! diam a inteligência. Contudo, porque
julgava que éreis Vós, alimentava-me
Exprimiam-se falsamente não só de com aqueles manjares, mas não avida­
Vós, que verdadeiramente sois a Ver­ mente, porque não Vos saboreava na
dade, mas ainda acerca dos elementos minha boca, tal qual sois. Nem está­
deste mundo, criaturas vossas. A res­ veis naquelas ficções vãs, que, longe de
peito destas, por amor de Vós, Pai me nutrirem, mais me debilitavam.
sumamente bom e Formosura de todas
as formosuras, tive de ultrapassar, nos A comida, em sonhos, é muitíssimo
raciocínios, aos filósofos, ainda mes­ semelhante à comida dos que estão
mo aos que falam com exatidão. acordados. Contudo, os que dormem
não se alimentam, porque dormem.
ó Verdade, Verdade, pela qual inti­ Mas aquelas coisas de nenhum modo
mamente suspiravam as fibras da mi­ Vos eram semelhantes, como Vós me
nha alma, ainda mesmo quando eles comunicastes depois, porque eram es­
frequentemente e de muitos modos te
pectros corpóreos, falsos corpos. Mais
pronunciavam apenas com os lábios e
verdadeiros do que eles são os corpos
te liam em muitos e volumosos livros! celestes ou terrestres que vemos real­
As iguarias que me apresentavam a mente com os olhos carnais. Vemo-los
mim, faminto da vossa graça, eram em como os vêem os animais e as aves, e
vez de Vós, o Sol e a Lua, lindas obras têm mais realidade do que ao imagi­
vossas, mas enfim obras vossas e ná-los.
nunca Vós mesmo. Aquelas nem se­
quer são as primeiras da criação. Com 101 Tg 1, 17.
62 SANTO AGOSTINHO

Do mesmo modo, essas imagens são alimento do meu espírito. Além disso,
mais reais do que as conjeturas que ainda que cantasse o “vôo de Medéia”,
formulamos acerca doutros corpos contudo, não afirmava a sua autentici­
mais grandiosos e infinitos, mas que de dade, e, mesmo ao ouvi-lo cantar, não
modo nenhum existem. lhe dava crédito. Mas — ai! ai de
Destas quimeras me alimentava eu, mim! — acreditei nos erros dos
então, sem me saciar. Mas Vós, meu maniqueístas104. Por que passos ia
Amor, diante de quem desfaleço para descendo até ao profundo do inferno,
me tomar forte, não sois estes corpos trabalhando e consumindo-me com a
que vemos, mesmo que seja no céu. falta da verdade, quando eu Vos
Não sois nada daqueles seres que aí procurava!
não vemos, porque Vós os ocultastes e Meu Deus, a Vós o confesso, a Vós
não os considerais obras-primas das que de mim Vos compadecestes quan­
vossas mãos. Quão longe estais, por­ do ainda Vos não conhecia, quando
tanto, daquelas minhas quimeras, flc- 104 O maniqueísmo espaíhou-se principalmente
ções de corpos que de nenhum modo pela Pérsia, Egito, Síria, África do Norte e Itália.
existem! Mais certas que elas são as Esta seita foi fundada por Maniqueu (ou Manés), o
qual , perseguido pelo rei e magos do seu país, a
imagens dos corpos que existem, e Pérsia, teve de refugiar-se na Mesopotâmia. Voltou
mais certas ainda que estas mesmas à pátria, onde foi esfolado e atirado às feras.
imagens são os próprios corpos que O maniqueísmo misturava as doutrinas de Zo-
roastro com o cristianismo. Eis os pontos principais
Vós não sois. Mas também não sois a da sua doutrina: Desde toda a eternidade existem
alma que é a vida dos corpos -—- esta dois princípios, o do bem e o do mal. O primeiro,
que se chama Deus, domina o reino da luz, e Ele
vida dos corpos melhor e mais real do mesmo é luz imaculada, que só pela razão e não
que os corpos —, porém sois a vida pelos sentidos se pode perceber. O segundo chama-
das almas, a Vida das vidas, que vive se Satanás, rei das trevas, e é mau quanto à sua
natureza, pois é matéria.infeccionada.
em razão de si mesma, e que não Ambos comunicam a sua substância a outros
muda, ó Vida da minha alma! seres, que são bons ou maus conforme a sua origem.
11. Onde então estavas para mim e Houve luta entre os reinos da luz e das trevas. Os
demônios arrebataram partículas de luz. Satanás
quão distante? Peregrinava longe de gerbu Adão e comunicou-lhe essas partículas, que
Vós, excluído até das bolotas dos ani­ seriam as almas dos homens.
Deus, para libertar a luz do cativeiro da matéria,
mais imundos, com que eu os alimen­ criou, por intermédio dos espíritos antagonistas dos
tava102. Quanto melhores na verdade demônios, o Sol e a Lua, os astros e a terra. Esta é
eram as fábulas dos gramáticos e poe­ de matéria inteiramente corrompida.
O homem compõe-se de três partes: de corpo,
tas do que aqueles enganosos laços ! oriundo do mal, de espírito, oriundo de Deus, e de
/ Com efeito, os versos, o canto e o alma insensível, cheia de maus apetites e dominada
“vôo de Medéia” são certamente mais por Satanás. Deus enviou Cristo para salvar os
homens. O Espírito Santo, menor que o Filho, tam­
úteis que os cinco elementos do bém de substância puríssima, age beneficamente, ao
mundo103, coloridos de mil modos, contrário dos demônios, que só provocam calami­
em razão dos cinco antros de trevas, dades. Cristo tomou um corpo aparente, e por isso a
sua morte não foi verdadeira. Maniqueu dizia-se o
que, além de não existirem, matam a enviado de Deus para completar a obra de Cristo.
quem neles acredita. Porém à poesia e Os maniqueístas acreditavam na purificação das
almas através de diversos corpos. Deviam castigar
ao verso transformo-os em delicioso o corpo e abster-se, quanto possível, da matéria.
Mas os vícios pululavam entre eles... A seita
10 2 Alusão à parábola do filho pródigo. (N. do T.) maniqueísta, para imitar o Colégio Apostólico,
103 Os cinco elementos eram: fumo, trevas, fogo, tinha à frente um chefe, seguiam-se-lhe doze minis­
água e vento. Do fumo nasceram os bípedes; das tros, setenta e dois bispos, e, por fim, os diáconos e
trevas, as serpentes; do fogo, os quadrúpedes; da presbíteros. Celebravam missa sem vinho, festeja­
água, os animais que nadam; e do vento, as aves. vam o domingo, Sexta-Eeira!S anta e o dia de aniver­
(Santo Agostinho, De Haeresibus, cap. XLVI, sário da morte de Manés. (Cf. De Haeresibus, cap.
Opera Omnia, tomo X, 3.a edição de Veneza, 1797.) XLVI). (N. do T.)
CONFISSÕES III 63

Vos buscava não segundo a compreen­ aquela mulher audaz e desprovida de


são da inteligência, mas segundo o prudência, enigma de Salomão, assen­
raciocínio da carne. tada à porta numa cadeira, a dizer:
Vós, porém, éreis mais íntimo que o “Comei à vontade o pão tomado às
meu próprio íntimo e mais sublime que escondidas e bebei a doçura da água
o ápice do meu ser10 5! Encontrei roubada10 6”. Ela me seduziu, porque
1 0 5 Admire-se esta síntese genial acerca da pre­ me encontrou fora de mim, a habitar
sença de Deus na nossa atividade psicológica. A nos olhos da minha carne e a ruminar
estas metáforas que Santo Agostinho emprega para o que por eles tinha devorado.
sugerir a idéia, do Transcendente alude o filósofo
Blondel em L’Aclion, T. II, Paris, 1936. o. 51'5. (N.
doT.) 106 Prov 9, 17.

• 7
Vencido pela ignorância e pelos maniqueístas

12. Com efeito, eu ignorava outra Desconhecia inteiramente que prin­


realidade, cuja existência é indubitável. cípio havia em nós segundo o qual na
Era como que impelido, por uma agui- Sagrada Escritura se diz que “fomos
Ihada, a submeter-me à opinião de feitos à imagem de Deus1 0 7”.
insensatos impostores quando me per­ 13. Ignorava a verdadeira justiça
guntavam a origem do mal,, se Deus interior, que não julga pelo costume,
era ou não limitado por forma corpó- mas pela lei retíssima de Deus Onipo­
rea, se tinha cabelos e unhas, se se de­ tente. Segundo ela formam-se os costu­
viam reputar justos os que possuíam, mes das nações e dos tempos, con­
simultaneamente muitas mulheres, os soante as nações e os tempos,
que assassinavam homens e sacrifi­ permanecendo ela sempre a mesma em
cavam animais. toda parte, sem se distinguir na essên­
Perturbava-se a minha ignorância cia ou nas modalidades, em qualquer
com estas perguntas. Assim, afastava- lugar. À face desta lei foram justos
me da verdade com, a aparência de Abraão; Isaac, Jacó, Moisés, Davi e
caminhar para ela, porque não sabia todos os que Deus louvou por sua pró­
que o mal é apenas a privação do bem, pria boca.
privação cujo último termo é o nada.
Como podia eu conhecê-lo, se meus A estes tiveram-nos na conta de lou­
olhos só atingiam o corpo e meu espí­ cos os ignorantes, que julgam con­
rito não via mais do que fantasmas? forme à “sabedoria humana1 0 8” e ava­
Ignorava que Deus é espírito e não liam todos os costumes do gênero
tem membros dotados de comprimento humano pela medida dos seus — tal
e de largura, nem é matéria, porque a qual um néscio que, desconhecendo na
matéria é menor na sua parte do-que armadura o que é apto a cada parte do
no seu todo. Ainda que a matéria fosse corpo, quisesse cobrir a cabeça com
infinita, seria menor em alguma das uma couraça e guarnecer os pés com
suas partes, limitada por um certo um capacete, e se queixasse de que não
espaço, do que na sua infinitude! Nem se adaptavam convenientemente. Ou
se concentra toda inteira em qualquer 7 ' Gên 1, 27.
parte,.como o espírito, como Deus. iQ! 1 Cor 4,3.
64 SANTO AGOSTINHO

como sé num dia, cuja tarde fosse car facilmente pela experiência pró­
declarada feriado, alguém se irritasse pria, no mesmo corpo, no mesmo dia e
por não lhe ser concedido expor ná mesma casa o qüe convém a tal
mercadorias à venda, sôb o pretexto de membro, a tais circunstâncias, a tal
que lhe fora permitido de manhã! Ou lugar õu a tais pessoas. No primeiro
como se na mesma casa alguém visse caso escandalizam-se, mas no segundo
um escravo a manusear qualquer coisa já se conformam.
que não é permitido tocar ao cópeiro, 14. Estas coisas desconhecia-as eu
ou fazer atrás duma estrebaria qual­ então, e hão refletia. De todos os ladòs
quer serviço proibido à mesáj e se feriam òs meus olhos, sem que as visse,
indignasse de que, sendo uma só a Declamava versos e também não me
habitação, uma só a família, hão te­ êrá lícito colocar um pé onde me
nham todos as mesmas atribuições em aprouvesse, mas sim conforme as
toda parte, . exigências do metro, e ainda num só
Tais são os qué se irritam por terem verso não podias meter o mesmo pé em
ouvido dizer que noütfós tempos se todas as partes. A própria arte da pro­
permitia aos justos o qué agora lhes é sódia, segundo a qual recitava, nãó
vedado e que Deus, por razõés momen­ constava duma coisa aqui, outra ali.
tâneas, preceituou aos primeiros uma Pelo contrário, constituía um conjunto
coisa e aos vindouros outra, estando dé regras, Não reparava que a justiça,
uns é outros sujeitos à mesma injusti­ a que os homens retos e santos se sujei­
ça. Como, se não vissem que riò mesmo taram, formava nos seüs preceitos üm
homem, no mesmo dia e na mesma todo muito mais belo e sublime. Não
casa, tal coisa convém a este rhembrõ, vária ria sua pàrte essencial, neiri dis­
tal outra àquele. O qué há pouco era tribui e determina, pára as diversas
permitido já nãó o é agora, Certas coi­ épocás, tudo simultaneamente, más o
sas, que ántes eram lícitas e átê pres­ qué é próprio de cada uma delas.
critas, agora são justamènte proibidas Na minha cegueira, censurava os
e castigadas. piedosos patriarcas, que não só usa­
Porventura a justiça é desigual e vam dó presente, conforme aos precei­
mutável? Não. Os tempos a que ela tos e inspirações de. Deus, mas também
preside é que não correm a par, pois prefiguravam o futuro, segundo o qué
são tempos. É os homens — Cuja vida Deus lhes revelava1 °9.
sobre a terra é breve — não sabem
harmonizar pelo raciocínio as razões 109 À face da moral,há duas explicações para a
dos tempos passados e dos outros poligamia dos patriarcas: a dispensa da lei moilogâ-
mica pór parte de Deus; ou a persuasão íntima, em­
povos, porque delas, não tiveram co­ bora errada de que procediam bem ao admitirem
nhecimento direto. Más podém verifi- aquele costume. (N. do T.)

8
A moral e os cóstumés
15. Em que tempo oü lugar será rrios110”? Por isso as devassidões
injusto qué “amemos a Deus com todo contrárias à natureza sempre e em toda
ó nosso coração, cóm toda a nòssá parte se devem detestár e punir, como
alma e com. toda a nossa mente, e que
amemos o próximo como a nós mes- "0 Mc 12,30; Mt 22, 37-39.
■CONFISSÕES III 65

o foram os pecados de Sodoma. Ainda na intenção de evitar a desgraça, como


que todos os povos as cometessem,' acontece àquele que se faz temido; ou
cai.riam na mesma culpabilidade de nasce da inveja, como quando um
pecado, segundo a lei de Deus, que não miserável quer mal ao afortunado ou
fez os homens para assim usarem de si. àquele que se lhe avantaja em alguma
Efetivamente, viola-se a própria particularidade, receando ser por ele
união quê deve existir entre Deus e igualado ou sofrendo por ele lhe ser
nós, quando a natureza, de quem Ele é igual. Esses atos culpáveis podem tam­
autor, se mancha pelas paixões depra­ bém provir unicamente do prazer de
vadas. Porém as tõrpezas luxuriosás, contemplar o infortúnio alheio, como
contrárias aos costumes humanos, de­ por exemplo nos que assistem aos
vem-se repelir, em razão da diversi­ combates de gladiadores ou nos que se
dade de costumes, a fim de que, por ' riem é escarnecem de outras quaisquer
nenhuma desvergonha de cidadão ou pessoas.
de estrangeiro, se quebre o pacto esta­ Tais são os capítulos da iniquidade
belecido pelo costume ou lei duma ci­ que brotam da paixão de dominar, de
dade ou nação. ver e de sentir, de umá ou duas paixões
E, pois, indecorosa qualquer parte
que não condiz com o seu todo. Contti- ou simultaneamente de todas. Vive-se
dOj quando Deus ordena alguma coisa pecamihosamente contra os manda­
contra os costumes ou contra quais­ mentos, contra o saltério de dez cor­
quer convenções, ainda mesmo que das, que é o vosso decálogo, ó Deus
esse preceito jamais aí se haja observa­ tão sublime e tão suave. Mas que ações
do, deve restaurar-se. Se é lícito ao rei pecaminosas Vos podem afligir,, a Vós,
da cidade a que preside dár uma Ordem a quem a corrupção não atinge? Ou
que antes dele jamais alguém, nem se­ que pecados se podem levantar contra
quer ele mesmo,' prescreveu, e se o Vós, a quem nada pode prejudicar?
obedecer-lhe não-vai contra os princí­ Punis o que os homens cometem con­
pios sociais da cidade, antes é contrá­ tra si próprios, porque, ainda mesmõ
rio a eles o désobedecér-lhe — pois a quando Vos ofendem, agem impia-
obediência aos reis é um pacto geral da menté contra as suas almas. A própria
sociedade humana —, com quanto iniquidade, se engana a si mesma,
maior razão se deve obedecer, sem corrompèndo-se e pervertendo-se na
hesitações, às ordens de Deus, rei efe­ sua natureza, feita e ordenada por VóSj
tivo de toda a criação ? quer servindo-Se imòderadamente das
De fato, assim como, nos poderes coisas que lhe são lícitas, quer ardendo
que existem na sociedade humana, o na concupiScêhciá do ilícito, “nó uso
maior se impõe ao menor, para qúe daquilo què é contra a natureza111
■ este lhe preste obediência, assim Deus
domina a todos. Agem pecaminosamente revoltàn-
16. O mesmo sucede nos atos em do-se contra a vossa vontade, de cora­
que aparece o desejo perverso de fazer ção ou com palavras, e recalcitrando
mal, quer pela injúria, quer pela agres­ contra o aguilhão112. Ofendem-Vos
são. Uma e outra coisa têm sua origem ■ igualmente quando, transpostos os li­
ou no desejo de vingança, como a mites da sociedade humana, se ale­
hostilidade entre dois inimigos; ou no gram audaciosamente com as facções
furto dos bens alheios, como no caso 111 Róm 1, 26.
em que o ladrão ataca o viajante; ou 1’2 Aí9, 5. '
66 SANTO AGOSTINHO

ou com as desavenças, conforme o que trais-Vos indulgente para com o.s peca­
lhes trouxer agrado ou moléstia. dos daqueles que os confessam e ouvis
Tudo isso sucede quando sois aban­ os gemidos dos cativos carregados de
donado, ó fonte de vida, único e verda­ ferros. Desse modo, soltais-nos dos
deiro Criador e Senhor de tudo ! Neste grilhões por nós mesmos preparados,
caso, por orgulho individual, ama-se a contanto que jamais ergamos contra
parte falsamente tomada como um Vós “os chifres duma falsa liberdade”,
todo. cobiçosos de possuir mais haveres,
É peía piedade humilde que se vai com risco de tudo perdermos prejudi­
até Vós, para purificardes os nossos cialmente,. se amarmos mais o nosso
maus hábitos. Por causa dela, mos­ egoísmo do que a Vós, soberano Bem.

9
As imperfeições

17. Mas, a par de tantos delitos, cri­ mens louvam e que o vosso testemu­
mes e iniqüidades, há também as nho condena, porque a aparência do
imperfeições dos que vão progredindo, ato e a disposição do que o pratica,
censurados pelos que julgam retamente bem como as circunstâncias ocultas do
segundo as normas da perfeição e lou­ tempo, não se correspondem plena­
vadas pela esperança de proveito que mente. Mas quando subitamente orde­
anunciam, assim como a verdura é nais alguma coisa imprevista e extraor­
indício prometedor duma seara. dinária, posto que alguma vez a
Há certos atos que se assemelhavam tenhais proibido, e ocultais tempora­
a delitos ou a maldades, e contudo não riamente a razão desse preceito, quem
são pecados, porque nem Vos ofendem duvida que a devamos cumprir, embo­
a Vós, Senhor nosso, nem ao convívio ra seja contra as convenções sociais de
social. Por exemplo, quando se procu­ alguns indivíduos? Só é justa a socie­
ra alcançar alguma coisa útil à vida e dade que Vos obedece.
aos tempos, não se sabendo se é por Felizes aqueles que sabem o. que
desejo desregrado de possuir, ou quan­ Vós lhes preceituastes!
do uma autoridade, legalmente estabe­ Tudo o que os^vossos servos prati­
lecida, castiga pelo desejo de corrigir, cam se dirige ou a executar o que
duvidando-se se o pratica pelo prazer presentemente é preciso ou a significar
de fazer mal. o futuro113.
Desse modo muitas ações que aos
homens parecem reprováveis são, pelo 113 Às vezes os profetas faziam atos extraordi­
nários para assinalarem fatos do futuro. Assim pro­
vosso testemunho, aprovadas. Pelo cedeu Abraão ao querer- sacrificar seu filho Isaac.
contrário, há muitas ações que os ho­ (N. do T.)

10
Extravagâncias heréticas

18. Porque desconhecia essas ver­ deles, senão dar motivo a que Vos ris­
dades, ria-me dos vossos santos e pro­ seis de mim? Pouco a pouco, insensi­
fetas. Que fazia eu, quando me ria velmente, cheguei à extravagância de
CONFISSÕES III 67

crer que um figo, ao ser colhido, chora­ ções, exalaria anjos e até partículas de
va, juntamente com a mãe, a figueira, Deus!
lágrimas de leite! Mas se algum Essas partículas do soberano e ver­
“santo11 4” comesse o figOj criminosa­ dadeiro Deus ficavam presas no fruto,
mente colhido não por ele mas por a não ser que fossem libertadas pelos
outrem, misturando-o nas suas entra­ dentes e estômago dum Eleito. Pobre
nhas, arrotando e gemendo entre ora- de mim! Julgava que aos frutos da
terra sè devia mais piedade do que aos
114 A palavra “santo” neste caso significa todo
homens para quem o solo os produz.
aquele que cumpria exatamente os preceitos de Pois se algum esfomeado, que não
Maniqueu. De duas classes de fiéis se compunha a fosse maniqueísta, me pedisse de
Igreja Maniqueísta: de “ouvintes” (auditores) e de
eleitos. Estes formavam a hierarquia sacerdotal. (N. comer, o dar-lhe umas migalhas quase
do T.) me parecia merecer a pena capital.

11
O sonho de Mônica
19. Mas Vós, lâ do alto, estendestes a minha perdição, mandou-a sossegar,
mão e arrancastes a minha alma dessa aconselhando-a a que atendesse e visse
voragem tenebrosa, enquanto minha que onde ela se encontrava lá estaria
mãe, vossa fiel serva, .junto de Vós eu também. Apenas olhou, viu-me
chorava por mim, mais do que as ou­ junto de si, de pé, na mesma régua.
tras mães choram sobre os cadáveres Donde poderia vir tudo isto, se os
dos filhos. Ê que ela, com o espírito de vossos ouvidos se não inclinassem
fé com que a dotastes, via a morte da sobre o seu coração? ó bondosa
minha alma. Vós, Senhor, escutastes Onipotência que olhais por cada um de
seus rogos. Vós a ouvistes. Não des­ nós como se dum só cuidásseis, velan­
prezastes as lágrimas que, brotando- do por todos como por cada um!
lhe dos olhos, regavam a terra por toda 20. Como explicar o fato seguinte?
parte em que orava. Narrando-me esta visão, esforcei-me
Sim, vós a ouvistes. por interpretá-la de modo que ela não
Com efeito, donde podia vir aquele desesperasse de vir a ser o que eu era,
sonho com que de tal modo a conso­ isto é, maniqueísta. Declarou-me ime­
lastes que condescendeu. em viver co­ diatamente, sem a mínima hesitação:
migo e assentar-se, em casa, à mesma “Não, não me foi dito: ‘onde ele está,
mesa? Durante um certo tempo recu­ aí estarás tu’, mas sim: ‘onde tu estás,
sou a minha morada, porque aborrecia aí estará ele também’ ”.
e detestava as blasfêmias do meu erro. Senhor, quanto me posso lembrar,
Nesse sonho viu-se de pé sobre uma confesso-Vos o que muitas vezes tenho
régua de madeira. Um jovem airoso e dito: mais do que o próprio sonho,
alegre veio ao seu encontro a sorrir- abalou-me então àquela vossa resposta
lhe, enquanto ela se conservava triste e dada por intermédio da solicitude de
amargurada. Perguntando-lhe ele as minha mãe. Esta não se perturbou com
causas do acabrunhamento e das lágri­ aquela interpretação falsa, mas tão
mas cotidianas — não para saber, mas prontamente viu o que devia ver, e o
para instruir, como é costume —, e que eu, na verdade, não vira, antes que
respondendo-lhe ela que chorava a ela o dissesse.
6S SANTO AGOSTINHO

Por meio deste sonho, foi anunciada e sóbria como Vós a quereis—, já,
com antecedência, a esta piedosa mu­ certamente, mais alegre pela esperan-
lher, para lenitivo da sua aflição pre­ . ça, mas não menos remissa em prantos
sente, uma alegria que só devia dar-se e gemidos, não se cansava de Vos fazer
muito tempo depois. queixa de mim, durante as horas em
Seguiram-se, efetivamente, quase que orava. “As suas preces chegaram à
nove anos mais, em que, tentando mui­ vossa presença11 5”. Contudo, deixá-
tas vezes levantar-me, caía mais grave­ veis-me ainçja revolver e envolver na­
mente e me revolvia nesse lodo pro­ quela escuridão.
fundo e nas trevas da mentira.
Entretanto, aquela viúva casta, piedosa n 5 5/82, 3.

12
Teu filho não perecerá!

21. Nessa mesma ocasião destes-me xe-o ficar onde está; limite-se a rezar
outra resposta de que ainda me lem­ por ele a Deus; pela leitura ele mesmo
bro. Como estou com pressa de Vos reconhecerá o erro e quão grande é a
confessar o que é de mais urgência, sua impiedade”.
deixo de referir algumas coisas, não Ao mesmo tempo contou que tam­
falando já de muitas outras de que não bém ele, em criança, tinha sido entre­
me recordo. Destes-me, pois, outra res­ gue aos maniqueístas pela mãe, sedu­
posta, por meio de certo bispo116, zida pelo erro; que não só lera, mas
ministro vosso que crescera à sombra copiara também quase todos os seus
do santuário, e muito douto nos vossos livros; que, sem qualquer controvérsia
livros. e §em que ninguém procurasse conven­
Pedira-lhe minha mae que se dig­ cê-lo, chegara à conclusão de que tinha
nasse falar comigo, refutar-me os de abandonar aquela seita, e que por
erros, afastar-me do mal, ensinár-me o isso a deixara.
bem. Costumava fazer isto mesmo Depois de assim falar, não querendo
com todos os que achava dispostos. ela sossegar e instando com mais súpli­
Recusou-se, porém, sem dúvida por cas e mais copiosas lágrimas, para que
prudência, como depois vim a perce­ me visse e discutisse comigo, disse-lhe
ber. Respondeu que eu era ainda indó­ o bispo, já um pouco enfadado: “Vai
cil, por me encontrar enfatuado com a em paz e continua a viver assim por­
novidade daquela heresia e por ter já que é impossível que pereça o filhei de
embaraçado, com certas objeções fá- tantas lágrimas 1”
pejs, a muitos ignorantes, como ela lhe Muitas vezes recordava ela, mais
acabava de dizer, E acrescentou: ç‘Dei- tarde, nas suas conversas comigo, que
11 6 Provavelmente o bispo de Cartago, cujo nome recebera aquelas palavras como vindas
é desconhecido. (N. do T.) do céu.
LIVRO IV

O PROFESSOR

I — Pelas estradas do erro


(1-3).
II — Em louvor da amizade
(4-8).
III -—■ Engano das criaturas,
libertação para Deus
(9-12).
IV — O problema do belo.
Primeiros trabalhos
literários de Santo
Agostinho (13-14).
1
Nove anos de erro

1. Durante esse período de nove Gracejem de mim os orgulhosos e os


anos, desde os dezenove até aos vinte e que ainda não foram salutarmente
oito, cercado de muitas paixões, era prostrados e esmagados por Vós, meu
seduzido e seduzia, era enganado e Deus. Eu, para vosso louvor, hei de
enganava: às claras, com as ciências a confessar minhas desvergonhas. Per­
que chamam liberais, e às ocultas, sob miti-me, eu Vo-lo peço, e concedei-me
o falso nome de religião. Aqui ostenta- que percorra com memória fiel os des­
va-me soberbo, além supersticioso, e vios passados dos meus erros, “imo-
em toda parte vaidoso. Ora corria lando-Vos uma vítima de louvor11 7”.
atrás da futilidade da glória popular,
até aos aplausos dos teatros, aos jogos Com efeito, sem Vós, que sou para
florais, ao torneio de coroas de feno, às mim mesmo, senão um guia para o
bagatelas de espetáculos e paixões abismo? Que sou, quando tudo me
desenfreadas, ora desejava purificar- corre bem, senão um pequenino a
me dessas nódoas, conduzindo aos que sugar o vosso leite e a gozar de Vós,
eram chamados “eleitos” e “santos” alimento que se não corrompe? E
alimentos com que, na oficina dos seus quem é o homem, seja quem for, se é
estômagos, fabricassem anjos e deuses homem? Riam-se de mim os fortes e os
que me dessem a liberdade. Seguia poderosos, mas eu, fraco e pobre,
estas práticas, dando-me a elas com confesso-me a Vós.
meus amigos, iludidos por mim e
comigo. 11 7 Sl 26, 6.

2
Pela estrada larga. . .

2. Ensinava por aqueles anos retóri­ lar com muito fumo esta minha boa fé,
ca; e, vencido pela cobiça, vendia esta que eu, no’ ensino, mostrava aos aman­
vitoriosa verbosidade. Contudo, como tes da vaidade, indagadores da menti­
sabeis, Senhor, preferia ter bons discí­ ra. Nisso era-lhes companheiro.
pulos, dos que se chamam “bons”, e, Por esses anos tinha em minha com­
com simplicidade, ensinava-lhes artifí­ panhia uma mulher que não havia sido
cios, para deles usarem não contra a reconhecida em matrimônio o que se
vida dum inocente, mas em proveito, chama legítima, e que fora procurada
por vezes, da vida dum criminoso. E por um inquieto ardor, falho de pru­
Vós, meu Deus, vistes de longe resva­ dência. Mas era só uma, e guardava-
lar num caminho escorregadio e cinti- lhe a fidelidade do leito. Com meu
74 SANTO AGOSTINHO

exemplo aprendí claramente, por expe­ honras, convidaria os demônios a


riência, qual é a distância que existe darem-me o voto. Mas não foi por
entre a moderação do prazer conjugal, amor da vossa pureza, ó Deus do meu
contratado em vista da geração, e o coração, que repudiei este crime. Não
pacto do amor sensual. Deste também sabia amar-Vos quem não sabia conce­
nascem filhos, mas contra a vontade ber senão esplendores corpóreos. Não
dos pais, se bem que, uma vez nasci­ é verdade que a alma que suspira por
dos, se vejam obrigados a amá-los. tais quimeras “se aniquila longe de
3. Recordo-me também de que, sen­ Vós11 8”, coloca sua confiança na fal­
tindo vontade de concorrer a um certa­ sidade e “apascenta ventos11 9”? Não
me de poesia dramática, não sei que queria, é certo, que, por minha causa,
feiticeiro me mandou perguntar que se sacrificasse aos demônios, mas, por
dádiva lhe queria oferecer, para eu sair superstição, sacrificara-lhes a alma!
vencedor. Mas eu, que detestava e abo­ Com efeito, que significa “apascentar
minava práticas tão nojentas, respon- ventos” senão apascentar os espíritos
di-lhe que não consentia que se matas­ diabólicos, isto é, tomarmo-nos, por
se uma mosca para ganhar a vitória, nossos erros, objeto do seu prazer e
mesmo que o prêmio fosse uma coroa escárnio?
de ouro incorruptível. Sim, porque esse
homem tinha de matar animais, em 118 5/72,27.
sacrifício, julgando ele que, com tais 119 Os 12, 1.

3
A sedução da astrologia

4. Não desistia, por isso, total­ truir o efeito salutar deste conselho,
mente, de consultar os embusteiros, a quando dizem: “A causa inevitável de
que chamam matemáticos120, por me pecares vem-te dos céus”. Também
parecer que não sacrificavam nem diri­ afirmam: “Foi Vênus ou Saturno ou
giam preces a nenhum espírito para Marte quem praticou esta ação”. Evi­
adivinhar o futuro: ação que, conse­ dentemente, para, que o homem, carne,
quentemente, repele e condena a pieda­ sangue e orgulhosa podridão,-se tenha
de cristã e verdadeira. Bom é, portan­ por irresponsável e atribua toda a
to, confessar-se o homem a Vós, culpa ao Criador e Ordenador do céu e
Senhor, e dizer-Vos: “Compadecei- dos astros. E este quem é senão Vós,
Vos de mim, curai a minha alma por­ nosso Deus, suavidade e origem da jus­
que pequei contra Vós1 21 ”. Porém não tiça que haveis de pagar “a cada um
deve abusar da vossa indulgência para segundo as suas obras1 23” e “não des­
se dar permissão de pecar. Deve antes prezais o coração contrito e humilha­
lembrar-se da palavra do Senhor: do124”? |
“Eis-te curado; não peques mais, para 5. Ora, havia, nesse tempo,j um
que te não aconteça algo pior1 22”. homem sagaz, peritíssimo e nobilís-
Ora, esses astrólogos procuram des- simo na arte da medicina. Foi este
quem, por sua própria mão, me colo-
120 Sinônimo de astrólogos. (N. do T.)
121 5/40,5. 123 Mt 16,27.
122 Jo5, 14. 124 5/50, 19. !
CONFISSÕES IV 75

cou na cabeça doentia a coroa, o prê­ livre arbítrio. Para que mais confiada-
mio do concurso. Colocou-ma como mente me acredites, repara que quem
procônsul, não como médico, pois só to diz sou eu, que estudei astrologia
Vós, “que resistis aos soberbos e dais com tanto ardor como quem dela
graça aos humildes1 2 5”, curais desta somente queria viver1 2 7.”
doença. Mas, ainda que não fosse mais Perguntei-lhe então o motivo por
que pela mão daquele velho, abando­ que saíam certos tantos presságios.
nastes-me ou cessastes de propor­ Respondeu-me como pôde, que era
cionar remédios à minha alma? pela força do acaso, espalhado por
Tendo mais familiaridade com ele, toda parte na natureza. Se alguém,
estava atenta e assiduamente suspenso dizia ele, consulta casualmente as pá­
das suas conversas, que, sem atavios ginas de qualquer poeta, que de propó­
de palavras, eram, pela viveza do sito cante um assunto inteiramente
pensamento, agradáveis e solenes. indiferente, depara muitas vezes com
Logo que, por conversa, chegou ao um verso admiravelmente adaptável à
conhecimento de que me tinha dado à sua preocupação. Não é para admirar
leitura dos livros dos astrólogos, ad­ que, em virtude de algum instinto supe­
moestou-me, com paternal benevo­ rior, soe, na alma humana, incons­
lência, a que os rejeitasse e, em tal qui­ ciente do que em si se passa, alguma
mera, não despendesse cuidado e palavra que se harmonize, não por
trabalho que me seriam necessários arte, mas por acaso, com os gestos e
para assuntos de utilidade. fatos do investigador.
6. Foi isso o que, daquele médico,
Acrescentou que se tinha entregado
também a este estudo, a ponto de, nos ou antes, por meio dele, me fizestes
aprender. Pintastes em minha memória
seus primeiros anos, ter tido o desejo
o que mais tarde devia procurar por
de o adotar como profissão para man­
mim mesmo. Mas, por então, nem ele
ter a vida. Já compreendia Hipócra-
nem o meu queridíssimo Nebrídio,
126*, e, assim, poderia também
tes125
entender aqueles livros. Contudo, jovem tão bom e tão casto, que mofava
de toda essa arte de adivinhar, me
abandonou-os, para seguir a medicina, puderam persuadir a que a rejeitasse;
só pelo motivo de ter descoberto a sua porque, mais do que eles, movia-me a
falsidade absoluta. Como homem autoridade dos seus autores. Também
sério, não queria ganhar o pão a enga­ não tinha ainda encontrado a prova
nar os outros. “Mas tu”, disse-me ele, evidente, que procurava, por onde
“tens a retórica para te manteres na pudesse ver, sem ambiguidade, que os
sociedade. Segues estas mentiras não presságios dos astrólogos consultados
por necessidade, mas por gosto e de saíam certos por acaso ou sorte, e não
125 IPdr5,5-Tg. 4,6. pela arte da observação dos astros.
126 O maior médico da antiguidade, nascido na
ilha de Cós, na Grécia, pelo ano de 460 a.C. (N. do 127 O médico chamava-se Vindiciano (cf. Carta
T.) 138, adMarcellinum). (N. do T.)
76 SANTO AGOSTINHO

4
A perda dum amigo

7. Por aqueles anos, no tempo em Lutando ele com febre, jazeu por
que começava a ensinar no município muito tempo, sem acordo, banhado em
onde nasci, travei relações com um mortal suor. Sendo o caso desespe­
amigo que, por ser meu companheiro rado, batizaram-no, sem elé o saber.
nos estudos, por ter a minha idade, e Não me importei com isto, persuadido
estar, como eu, na flor da juventude, de que o seu espírito reteria antes o que
me veio a ser muito querido. Menino, de mim recebera que a cerimônia feita
havia crescido comigo, tínhamos anda­ sobre o corpo inanimado. Mas sucedeu
do juntos na escola e juntos jogado inteiramente o contrário. Recobrou
também. Mas, então, ainda não era ânimo e melhorou. Imediatamente,
amigo íntimo, nem mesmo, mais tarde, apenas pude falar com elé — o que se
a nossa amizade foi verdadeira. Com realizou logo que ele também pôde, de
efeito, só há verdadeira amizade quan­ tal maneira dependíamos um do outro
do sois Vós quem enlaça os que Vos que não me afastava do seu lado —,
estão unidos “pela caridade difundida tentei pôr a ridículo, na sua presença, o
em nóssos corações pelo Espírito batismo que recebera com privação do
Santo que nos foi dado128”. Contudo, entendimento e dos sentidos. Mas já
era-me sumamente doce esta amizade lhe tinham dito que o havia recebido.
aquecida ao calor de idênticos estudos. Olhou-me, então, com horror, como a
Da verdadeira fé, que ele, na adoles­ inimigo. Com incrível e brusca liberda­
cência, já não conservava íntima nem de, avisou-me que, se queria continuar
profundamente, tinha-o arrastado para a ser seu amigo, acabasse com tais
as minhas quimeras supersticiosas e modos de falar. Estupefato e pertur­
funestas, que faziam derramar lágri­ bado, reprimi toda a emoção, espe­
mas a minha mãe. Quanto a idéias, já rando que convalescesse e recuperasse
este homem andava comigo errante. as forças da saúde, para assim poder
Minha alma já não podia passar sem tratar com ele o que quisesse. Mas,
ele. Mas eis que, indo no encalço dos arrancado à minha louca amizade, a
escravos fugitivos, Vós, ó Deus de vin­ fim de consolar a minha alma e se con­
gança, que sóis juntamente fonte de servar junto de Vós, poucos dias
misericórdia e nos converteis por depois, estando eu ausente, recai .na.
modos admiráveis, eis que o levaste febre e expira.
desta vida, quando apenas se tinha 9. Com tal dor, entenebreceu-se-me
passado um ano sobre esta amizade, o coração. Tudo> o que via era morte.
para mim mais doce que todas as sua- A pátria era para mim um exílio, e a
vidades da minha vida. casa paterna, um estranho tormento.
8. Que homem haverá, um só que Tudo o que com. ele comunicava!, sem
seja, que possa enumerar os vossos ele convertia-se-me em enorme martí­
louvores, ainda dos que só em si expe­ rio. Os meus olhos indagavam-nò por
rimentou? Oh ! o que não fizestes Vós, toda parte, e não me era restituído.
então, ó meu Deus! Como é impene­ Tudo me aborrecia, porque nada o
trável o abismo dos vossos juízos! continha e ninguém me avisava: “ali
vem ele!”, como quanÓo voltava, ao
128 Rom 5, 5. encontrar-se ausente. Tinha-me tsrans-
CONFISSÕES IV 77

formado num grande problema129. nada me sabia responder. Se lhe dizia:


Interrogava à minha alma por que an­ “Espera em Deus”, não obedecia. E
dava triste e se perturbava tanto1 30, e com razão, pois o homem tão querido
129 Pela introspecção, Agostinho encara e de­ que perdera era mais verdadeiro e me­
fronta o ponto crucial do seu drama. Pretende o Ser,
a Verdade, a Beatitude. Examina os anseios, as lhor que o fantasma em que lhe man­
tendências dum abismo a pedir plenitude. Eis, nesta dava ter esperança. Só o choro me era
frase, mais um ponto de contato do Hiponense com
a filosofia existencialista. (N. do T.) doce. Só ele sucedera ao meu amigo,
130 Sl 41,6, 12; 42, 5. nas delícias da alma.

5
O reconforto das lágrimas
10. Agora, Senhor, já tudo passou e aí doçura, pela esperança que temos de
o tempo aliviou a minha ferida. Pode­ nos atenderdes? Na verdade, isto suce­
rei aproximar da vossa boca o ouvido de na oração, porque esta encerra a
do coração, para ouvir de Vós, que ânsia de chegar até Vós.
sois a Verdade, o motivo por que o Mas ter-se-á dado o mesmo caso
choro é doce aos desgraçados? Ainda com a dor do objeto perdido e a tris­
que Vos acheis presente em toda parte, teza que então me cobriam? Já não
repelistes para longe de Vós a nossa esperava que o meu amigo revivesse
miséria? Permaneceis também em Vós nem o suplicava com lágrimas. Só me
mesmo, quando somos revolvidos condoía e chorava, porque era infeliz e
pelos acontecimentos? Se não chorar­ tinha perdido a minha alegria. Sucede­
mos a vossos ouvidos, nada restará da ría isto porque o pranto — qiie de si é
nossa esperança. Donde provém o amargo — nos deleita quando nos in­
suave fruto que se colhe da amargura vade o fastio dos prazeres que antes
da vida, dos gemidos, dos prantos, dos gozávamos, andando nós aborrecidos
suspiros, das queixas? Encontraremos com eles?

6
Violência da dor

11. Mas para que falar de tudo isso, muito amargamente e descansava na
se agora não é o tempo de investigar, amargura. Oh ! era desgraçado ! Toda­
mas de me confessar a Vós? Era via, tinha em maior apreço esta mise­
desgraçado, e desgraçada é toda alma rável vida que aquele amigo, pois, se
presa pelo amor às coisas mortais. bem que desejasse mudar de vida, pre­
Despedaça-se quando as perde, e então feria, contudo, perdê-lo a ele do que a
sente a miséria que a toma miserável, ela. Não sei se querería morrer por ele,
ainda antes de as perder1 31. como se conta — se não é ficção — de
Eis o que era nesse tempo: chorava Orestes e Pílades131
132, que juntamerite
131 O filósofo dinamarquês Sõren Kierkegaard, no 132 Ficaram célebres na história da Antiguidade as
seu livro O Desespero Humano, viu bem esta tragé­ amizades de Aquiles e Pâtroclo (Cf. Ilíada, IX ss.),
dia do pecado. O homem está no centro da luta de de Orestes e Pílades (Cícero, Da Amizade, VII), de
duas forças antagônicas.Dois pesos o vergam.(N. doT.) Niso e Euríalo (Eneida, IX). (N. do T.)
78 SANTO AGOSTINHO

desejavam morrer um pelo outro, por­ pés133”. Admirava-me de viverem os


que o não viverem juntos era para eles outros mortais, quando tinha morrido
pior que a própria morte. Mas não sei aquele que eu amava, como se ele não
que sentimento tinha nascido em mim, houvesse de morrer! E, sendo eu outro
tão contrário a este: dominava-me um ele, mais me admirava de ainda viver,
pesadíssimo tédio de viver e um medo estando ele morto.
de morrer. Creio que quanto mais o Que bem se exprimiu um poeta,
amava, mais odivava e temia, como quando chamou ao seu amigo “metade
inimigo feroz, a morte que mo arreba­ da sua alma12 13 4”! Ora, eu, que senti
tara. Julgava que ela ia consumir, de que a minha alma e a sua formavam
repente, todos os homens, jâ que isto uma só em dois corpos, tinha horror à
mesmo o pôde fazer a ele. Era exata­ vida, porque não queria viver só com
mente este o meu estado de espírito, se metade. Talvez por isso é que receava
bem me lembro. morrer, não viesse a morrer totalmente
Eis o meu coração, ó meu Deus, ei-
aquele a quem eu tanto amara.
lo por dentro! Reparai nestas evoca­
ções do passado, ó Esperança minha, 133 Sl 24, 15.
que me limpais da imundície destas 134 “ó nau, que levas Virgílio, â ti confiado, peço-
te que o entregues, ‘incólume, aos territórios da
afeições, dirigindo para Vós os meus Ática, e me conserves essa metade da minha alma"
olhos e “arrancando do laço os meus (Horácio, Odes, I, 3). (N. do T.)

7
Deixa Tagaste

12. Oh ! loucura que não sabe amar sava sobre mim o grande fardo da
os homens humahamente! Oh! que desgraça.
louco o homem que sofre, sem confor­ Sabia, ó Senhor, que a devia erguer
midade, os reveses humanos! Assim para Vós a fim de ser curada, mas não
era eu então. Por isso, inquietava-me, queria nem tinha forças, tanto mais
suspirava, chorava, perturbava-me sem que, ao pensar em Vós, não me pare-
descanso nem circunspecção. cíeis solidamente firme. O meu Deus
Trazia a alma despedaçada a escor­ não éreis Vós, mas um fantasma irreal
rer sangue: repugnava-lhe ser por mim e o erro. Se ali tentava colocá-la, para
conduzida, e eu não encontrava lugar descansar, deslizava pelo vácuo e ruía
onde a depusesse. Não descansava nos sobre mim, continuando eu a* ser um
bosques amenos, nem nos jogos e cân­ lugar de infelicidade, onde não podia
ticos, nem em lugares . suavemente permanecer e donde não podia afas-
perfumados, nem em banquetes fausto- tar-me. |
sos, nem no prazer da alcova e do Para onde o meu coração fugidia do
leito, nem finalmente nos livros e ver­ meu coração? Para onde fugiría de
sos. Tudo me horrorizava, até a pró­ mim mesmo? Para onde me não segui­
pria luz. Tudo o que não era o que ele ría? Por isso fugi da pátria. Os olhos
era tinha por mau e fastidioso, exceto procurariam menos esse amigo la onde
os gemidos e lágrimas, pois só nestas o não costumavam ver. Da cidade de
encontrava algum repouso. Mas ape­ Tagaste vim para Cartago1 3 5.
nas de lá arrancava a minha alma, pe- 13 5 Em 376. (N. do T.)
CONFISSÕES IV 79

8
O tempo diminui a dor

13. O tempo não descansa, nem bula não morria em mim, ainda que
rola ociosamente pelos sentidos: pois morresse algum dos meus amigos.
produz na alma efeitos admiráveis. O Havia neles outros prazeres que me
tempo vinha e passava, dia após dia. seduziam ainda o coração: conversar e
Vindo e passando, inspirava-me novas rir, prestar obséquios com amabilidade
esperanças e novas recordações. Pouco uns aos outros, ler em comum livros
a pouco, reconfortava-me nos antigos deleitosos, gracejar, honrar-se mutua­
prazeres, a que ia cedendo a minha mente, discordar de tempos a tempos,
dor. Não se sucediam, é certo, novas
dores, mas fontes de novas dores. Mas sem ódio, como cada um consigo
por que me penetrava tão facilmente e mesmo, e, por meio desta discórdia
até ao íntimo aquela dor, senão porque raríssima, afirmar a contínua harmo­
derramei na areia a minha alma, nia, ensinar ou aprender reciproca­
amando um mortal como se ele não mente qualquer coisa, ter saudades dos
houvesse de morrer? ausentes e receber com alegria os
Confortavam-me e alegravam-me recém-vindos. Estes e semelhantes si­
sobretudo as consolações doutros anfí- nais, procedendo do coração dos que
gos, com os quais amava o que amava se amam e dos que pagam amor com
em vez de Vós, ou seja, a extensa fábu­ amor, manifestam-se no rosto, na lín­
la e a longa mentira a cujo contato im­ gua, nos olhos e em mil gestos cheios
puro se corrompia o nosso espírito le­ de prazer, como se fossem acendalhas;
vado da comichão de ouvir o que lhe inflamam-se os corações e de muitos
lisonjeava as paixões. Porém, esta fá­ destes se vem a formar um só.

9
A verdadeira amizade

14. Ê isto o que se ama nos amigos. amor de Vós. Só não perde nenhum
De tal maneira se amam que a cons­ amigo aquele a quem todos são queri­
ciência humana se julga por culpada, dos n’Aquele que nunca perdemos. E
se não ama a quem lhe paga amor com quem é Esse, senão o nosso Deus, o
amor, ou se não paga com amor a Deus que criou o céu e a terra e os
quem primeiro a amou, só procurando enche porque, enchendo-os, os criou?
na pessoa do amigo os sinais exteriores Ninguém Vos perde, a não ser quem
da benevolência. Daqui, esse luto Vos abandona; e, se Vos deixa, para
quando alguém morre, as trevas de onçie vai, para onde foge, senão de Vós
dores, o coração umedecido pela mu­ manso, para Vós irado? Onde é que
dança da doçura em angústia e a morte não encontra, no seu castigo, a vossa
dos vivos pela perda da vida dos lei? “A vossa lei é a verdade”, e “Vós a
mortos. mesma verdade1 3 6”.
Feliz o que Vos ama, feliz o que
ama o amigo e Vós, e o inimigo por 136 Sl 118, 142.
80 SANTO. AGOSTINHO

10
Insatisfação nas criaturas1 3 7

15. Deus das virtudes, convertei- versas se completam por meio de si­
nos, mostrai-nos a vossa face, e sere­ nais sonoros. Não existiríam na sua
mos salvos. Para qualquer parte que se totalidade se cada palavra, depois de
volte a alma humana, é à dor que se emitidas as sílabas., se não extinguisse,
agarra, se não se fixa em Vós, ainda para outra lhe suceder.
mesmo que se agarre às belezas exis­ Que minha alma Vos louve por tudo
tentes fora de Vós e de si mesma. Estas isso, ó meu Deus, Criador de todas as
nada teriam de belo, se não proviessem coisas. Que não se agarre a elas pelo
de Vós. Nascem e morrem. Nascendo, visco do amor que entra pelos sentidos
começam a existir; crescem para se do corpo. Também as coisas cami­
aperfeiçoarem; e, quando perfeitas, nham para não existirem, e dilaceram
envelhecem e morrem. Nem tudo enve­
lhece, mas tudo morre. Por isso, os a alma com desejos pestilenciais, por-
seres, quando nascem e se esforçam qtle ela quer existir e gosta de descan­
sar no que ama. Mas não tem onde,
por existir, quanto mais depressa cres­
cem para existir tanto mais se apres­ porque ás coisas não são estáveis:
sam a não existir. Tal é a sua condi­ fogem. Quem as pode seguir com a
ção. Só isso lhes destes, porque são sensibilidade? Quem as pode alcançar
partes de coisas que não existem simul­ mesmo quando presentes? A sensibili­
taneamente, e que, desaparecendo e dade é vagarosa porque é sensibili­
sucedendo-se, perfazem juntas um todo dade. Tal é a sua condição. É sufi­
de que são partes. É assim que as con- ciente para aquilo para que foi criada;
mas não o é para reter as coisas que
13 7 Capítulo trágico è genial! Os seres correm
velozmente para o seu termo: “O que nasceu é pre­ transitam dum principio devido para
ciso que ceda o lugar ao que há de nascer. E toda um fim que lhes é devido, porque, no
esta ordem de seres transeuntes decorre à maneira
dum rio”. (Santo Agostinho, Comentários ao Sl 65, vosso Verbo, que as criou, ouvem estas
ll.)(N.doT.) palavras: “Daqui até ali”.

11
Eis a paz !. . .

16. Não sejas vã, ó minha alma, o Verbo de Deus. Fixa aqui, ó alma, a
nem ensurdeças o ouvido do coração tua mansão. Retribui-lhe tudo o que
com o tumulto da tua vaidade. Ouve dele alcançaste, já que estás cansada
também: o mesmo Verbo clama que de tantos enganos.
voltes. O lugar do descanso impertur­ Entrega à Verdade tudo o que tens
bável está onde o Amor não é abando­ recebido da Verdade, e não só não per­
nado, a não ser que o Amor nos aban­ derás nadá, mas ainda a tua podridão
done primeiro. Eis como estas coisas reflorescerá, as tuas fraquezas serão
passam, para outras lhes sucederem, e curadas, as tuas frouxidões serão refor­
assim se formar de todas as suas partes madas, rejuvenescidas e estreitamente
este mundo, cá embaixo. “Afasto-me unidas a ti, sem te colocarem na ladei­
eu, porventura, para outro lugar?”, diz ra por onde descem, mas ficando cohti-
CONFISSÕES IV 81

go e perm anecendo junto do Deus sem­ tasse. Oraj tu ouves pelos mesmos sen­
pre estável e eterno. tidos carnais o que pronunciamos, e
17. Por que é que tu, perversa, se­ certamente não queres que as sílabas
gues a tua concupiscência? Que ela te parem, mas desejas que voem para ou­
siga a ti, quando retrocederes. O que tras lhes sucederem, para assim ouvi­
por ela sentes constitui partes^ e tu res o conjunto. Do mesmo modo acon­
tece com as partes que formam um
ignoras o todo formado por essas par­ todo sem que haja simultaneidade nas
tes que ainda te deleitam. Mas se a partes de que consta o todo. Deleita
sensibilidade do teu corpo fosse apta mais o todo uno, quando pode ser per­
para receber o todo — e se na parte do cebido, do que cada uma das partes.
todo não tivesses recebido, para teu Mas quanto melhor que estas coisas é
castigo, a justa limitação -—, quererias Aquele que as fez todas, o nosso Deus,
que passasse o que presentemente exis­ que não passa porque nada Lhe suce­
te, para que o conjunto mais te delei­ de!

12
O amor em Deus

18. Se te agradam os corpos, louva contrário, será justamente amargo, se


neles a Deus e retribui o teu amor ao se ama injustamente o que d’Ele pro­
divino Artista para Lhe não desagra­ vém, abandonando a Deus.
dares nas coisas que te agradam. Por que andar de contínuo por
Se te agradam as almas, ama-as em caminhos difícéis e trabalhosos? Não
Deus porque são também mudáveis, e há descanso onde o procurais. Procu­
só fixas n’Ele encontram estabilidade. rais a vida feliz na região da morte:
Doutro modo passariam e morreríam. não está lá. Como encontrar vida feliz
Ama-as portanto n’Ele, arrebata-Lhe onde nem sequer vida existe?
contigo todas as qüe puderes e dize- 19. Ele, a nossa vida, desceu até
lhes: aAmemo-Lo”. Ele, quê não estâ nós. Suportou a nossa morte e matou-a
, foi o criador destas coisas;
longe138139 pela abundância da nossa vida. Com
Não as fez para depois as deixar, mas voz dè trovão clamou que voltássemos
d’Ele vêm e n’Ele estão. Elé está onde para Ele, para o lugar escondido donde
se saboreia a Verdade. Está no íntimo vèio a nós, descendo primeiro ao seio
do coração, mas o coração errou longe da Virgem onde se desposou com Ele a
d’Ele. natureza humana, a carne mortal, para
“Voltai, ó pecadores, ao cora­ não ficar etemamente mortal. E de lá,
ção133”, e ligai-vos Àquele que vos “conio um esposò que sai do tálamo,
crioü. Firmai-vos n’Ele e estareis fir­ deu saltos como um gigante para per­
mes. Descansai n’Ele e descansareis. correr o seu caminho1 40”. Não se
Para onde ides por caminhos escabro­ deteve, mas correu clamando com
sos? Para onde ides? O bem que amais palavras, com obras, com a própria
d’Ele procede. Mas só é bom e suave morte, com a vida, com a descida (ao
quando para Ele é dirigido. Pelo Limbo), com a Ascensão, clamando
sempre que a Ele voltássemos^
138 At 17, 27.
139 Is 46, 8. 1 40 Sl 18, 6.
82 SANTO AGOSTINHO

Fugiu dos nossos olhos para que do sereis duros de coração?1 43.” Será
entremos no coração e aí O encontre­ possível que, depois da descida da
mos. Sim, separou-se de nós, com relu­ vida, não queirais subir e viver? Mas
tância, mas ei-Lo aqui. Não quis estar para onde subis quando vos levantais e
conosco muito tempo, mas não nos “abris a vossa boca contra o céu?1 4 4”.
abandonou. Arrancou-se donde nunca Descei para subirdes, para subirdes até
se retirou, porque “o mundo foi por Deus, pois precipitastes-vos pensando
Ele criado1 41 ”, e “estava neste mundo elevar-vos contra Deus.
Alma, dize-lhes isto para que cho­
e veio a este mundo salvar os pecado­ rem neste vale de pranto, e, assim, os
res1 42”. arrebates contigo para Deus, pois é o
A Ele se confessa minha alma, a séu Espírito que te inspira estas pala­
Ele, seu Médico, pois contra Ele vras, se as disseres, ardendo no fogo da
pecou. “Filhos dos homens, até quan- caridade.
1 41 Jo 1, 10. 143 5/4,3.
1 42 1 Tim 1, 15. i 44 5/72,9.

13
O que é o belo?
20. Por esse tempo ignorava estas proveniente da união das suas partes
verdades e amava as belezas terrenas. — o todo — e a resultante da sua apta
Caminhava para o abismo e dizia a acomodação a alguma coisa, como,
meus amigos: “Amamos nós alguma por exemplo, a parte dum corpo ao seu
coisa que não seja o belo? Que é o todo, ou o calçado ao pé, e outras
belo, por conseguinte? Que é a beleza? semelhantes. Essas considerações bor­
Que é que nos atrai e afeiçoa aos obje­ bulhavam no meu espírito desde o
tos que amamos? Se não houvesse fundo do coração. Escrevi, por isso, os
neles certo omato e formosura, não tratados De Pulchro et Aptoy 4 6, creio
nos atrairíam1 4 5”. que em dois ou três livros. Vós o
Eu notara e via que nos mesmos sabeis, meu Deus. Eu já me esqueci. Jâ
corpos se devia distinguir a beleza os não possuo. Desapareceram-me,
145 O Hiponense chegara à conclusão de que só não sei como.
amamos o que é belo. Assim, relaciona vitalmente a
beleza e o amor, num amplexo de dependência 1 4 6 Do Belo e do Conveniente — o primeiro livro
como num estreitamento de perfume e seiva na rosa. de Santo Agostinho, escrito em 380. Perdeu-se. (N.
(N. do T.) do T.)

14
Homenagem a Hiério

21. Que motivo, Senhor e Deus cia e por algumas palavras que, ao
meu, me levou a dedicar este tratado a ouvi-las repetir, me agradaram. Era-
Hiério, orador de Roma? Não o me simpático sobretudo por agradar
conhecia pessoalmente. Apenas o esti­ aos outros e todos o cumularem de
mava pela brilhante reputação de ciên­ louvores. Admiravam-se de que um
CONFISSÕES IV 83

sírio de nascimento, já mestre de homem o que me horroriza ser? Gran­


eloquência grega, chegasse a orador de abismo é o homem, Senhor! Tendes
admirável da língua latina, e fosse contados os seus cabelos, e nenhum se
sábio profundo em assuntos de ciên­ perde para Vós1 47. Contudo, os seus
cias filosóficas. cabelos são mais fáceis de contar que
Louva-se um homem, e, ainda que os afetos e movimentos do coração !
se encontre ausente, é amado. Mas esse 23. Mas aquele retórico pertencia à
amor, que sai da boca do que louva, classe dos que eu amava tal qual como
entrará no coração do que ouve? Não; eu mesmo queria ser amado. Eu anda­
mas o amor de um acende-se com o va errante com o orgulho e era levado
amor do outro. Por isso só se ama o em redemoinho de qualquer tufão.
que é louvado. quando se está persua­ Mas, apesar disso, muito às ocultas,
dido de que esses louvores partem dum era ainda governado por Vós !
coração que não engana; quer dizer, Como sei e posso confessar, com
quando é o afeto (sincero) que o louva. verdade, diante de Vós, que o amava
22. Assim é que eu amava, então, mais pela estima dos que o louvavam
os homens regulando-me pelo juízo que pelos méritos por que era louvado?
dos mesmos homens, e não pelo vosso, Se, em vez de o louvarem, o vituperas-
ó meu Deus, no qual ninguém se enga­ sem, apregoando essas mesmas quali­
na. Mas por que os não louvava como dades como censura e desprezo, de
se louva um cocheiro triunfante ou um modo algum me entusiasmaria por ele.
caçador do circo, aclamado pelas ova­ Contudo, os méritos eram os mesmos;
ções populares? Pelo contrário, por a pessoa a mesma; somente seria outra
que os louvava de modo tão diferente, a estima dos narradores! Eis onde j az
com ponderação e da mesma maneira enferma a alma que ainda não aderiu à
como eu o queria ser? Certamente não solidez da Verdade! Avança e volta,
desejava ser louvado e estimado como retrocede e toma a retroceder, como os
os comediantes, apesar de também eu sopros das línguas que ventam dos pul­
os elogiar e amar. A escolher, que’ria mões dos sentenciosos! Para a alma a
antes ficar obscuro que tomar-me céle­ luz cobre-se de nuvens e a verdade não
bre com a arte deles. Assim, antes qué- se distingue, estando diante de nós.
ria ser odiado que amado. Tinha muito a peito que minhas
Como se podem manter numa alma palavras e estudos fossem conhecidos
propensões de amor tão variado e dife­ desse homem. Se os aprovasse, havia
rente? Como amo noutrem o que odeio de me entusiasmar ainda mais por ele;
e repilo para longe de mim? Não se os condenasse, o meu coração, futil
somos ambos porventura homens? e vazio da vossa firmeza, sentir-se-ia
Não se pode efetivamente aplicar ao ferido. Com grande prazer, meditava
hístríão, companheiro de nossa nature­ no “Belo e Conveniente” — assunto
za, o que se diz dum bom cavalo que da obra que tinha dedicado a Hiério,
alguém estima, e ao. qual ninguém se admirando-a na minha imaginação,
quer assemelhar, mesmo no caso de sem haver mais ninguém que a louvas­
isso ser possível? se !
E então, sendo eu homem, amo num 147 Mt 10,30.
84 SANTO AGOSTINHO

15
O problema do belo e do mal

24. Mas, ó Todo-Poderoso, “que só tância alguma, nem a nossa mente é


criais maravilhas-1 48”, ainda não via bem supremo e imutável.
na vossa arte o fulcro de tão grandes 25. Comete-se um crime quando o
obras. O meu espírito errava pelas for­ movimento vicioso do espírito, onde
mas corpóreas. reside a paixão, se atira arrogante e
Definia o belo “o que agrada por si tumultuosamente, ou pratica-se uma
mesmo”; e o conveniente “o que agra­ infâmia quando a alma não refreia os
da pela sua acomodação a alguma afetos donde nascem os prazeres car­
coisa”. Distinguia-os e comprovava-os nais. Assim, se a própria alma racional
com exemplos hauridos dos corpos. é viciosa, os erros e as falsas opiniões
Voltei-me, depois, para a natureza da contaminam a vida.
alma, mas as falsas opiniões que tinha Era este o estado da minha alma.
dos seres espirituais não me deixavam Ignorava que ela, por não ser a mesma
vislumbrar a verdade1 49. A própria essência da verdade, devia ser ilustrada
força desta precipitava-se-me contra os por outra luz, para participar da Ver­
olhos, mas logo eu retirava da realb dade, “porque Vós alumiareis a minha
dade incorpórea o espírito, para o meio lâmpada, Senhor, e esclarecereis as mi­
dps traços, cores e empoladas grande­ nhas trevas, ó meu Deus1 50”. “Todos
zas. Ora, como as não podia distinguir nós participamos da vossa plenitu­
na alma, julgava que não podia ver a de1 51”, porque “sois a verdadeira luz
minha alma. Amando a paz na virtude que alumia todo o homem vindo a este
e odiando a desunião no vício, notava mundo1 52”, e “em Vós não há mudan­
unidade na primeira e uma certa desu­ ça nem sombra instantânea1 53”.
nião no segundo. Parecia-me que a 26. Mas eu esforçava-me por me
alma racional e a essência da Verdade aproximar de Vós, e repelíeis-me para
e do Soberano Bem residiam nessa que saboreasse a morte, “pois resistis
unidade. aos soberbos1 5 4”. Haverá soberba
Pensava eu, miserável, que na desu­ maior do que afirmar, com inaudita
nião da vida irracional existia qualquer loucura, que eu, por natureza, era o
substância e natureza do sumo mal que mesmo qué Vós? Ora, sendo eu mudá-
não era só substância, senão também vel — o que para mim era evidente,
verdadeira vida. Mas era vida que não pois desejava ser sábio para, de menos
proviria de Vós, Deus meu, de quem se perfeito, me tomar mais pefeito -—,
originaram todas as coisas. Sem saber não obstante, preferia imaginar-Vos
o que dizia, chamava àquela unidade mudável do que não ser o que Vós sois.
“mônada”, como a alma sem sexo; à Por isso me repelíeis e resistíeis à
multiplicidade chamava “díade” por minha soberba cheia de vento. I
ser ira nos crimes e voluptuosidade nas Imaginava formas corpóreas; Eu,
paixões. Não conhecia ainda nem carne, acusava a cam.e; éu, “espírito
tinha aprendido que o mal não é subs­
1 50 5/17,29.
1 48 5/71, 18. 1 51 Jo 1, 16.
1 49 Note-se que nesta altura da narrativa Agosti­ 1 52 Jo 1,9.
nho ainda vivia sob a influência da filosofia mani- 1 53 Tg 1, 17.
queísta. (N. do T.) 1 54 Mt 16,28.
CONFISSÕES IV 85

errante”, ainda não me voltava para vinte e sete anos, quando escrevi aque­
Vós. Vagueando, caminhava por qui­ le tratado revolvendo no pensamento
meras que não existem nem em Vós, estas imaginações puramente materiais
nem em mim, nem nos corpos. Não que faziam ruído aos ouvidos do meu
são criações da vossa verdade, mas coração. Voltava-os, ó doce Verdade,
puras ficções que o meu orgulho for­ para a vossa melodia interior, quando
mava segundo os corpos. Com inepta meditava no “Belo e no Conveniente”.
tagarelice, perguntava aos pequeninos, Desejando estar na vossa presença,
fiéis vossos e meus concidadãos, de ouvir-Vos e alegrar-me intensamente
quem inconscientemente andava exila­ com a “voz do Esposo1 5 5”, não o
do: “Por que razão vagueia a alma, podia porque os rumorçs do erro arras­
criada por Deus?” E não tolerava que tavam-me para fora e o peso da sober­
me ripostassem: “E então, por que
ba precipitava-me no abismo. “Não
vagueia Deus?” Antes queria defender
concedíeis ao meu ouvido o gozo e a
que a vossa substância imutável era
coagida a andar errante do que confes­ alegria”; e os meus ossos, que não ti­
sar que a minha, mudâvel, se tivesse nham sido “humilhados”, “não exulta­
desencaminhado livremente, ou va­ vam”1 5 6.
gueasse por castigo. 1 5 5 Jo 3, 29,
27. Contava talvez vinte e seis ou i 5 6 SZ50, 10.

16
As dez categorias de Aristóteles

28. Que importava ter lido e com­ As Dez Categorias pareciam falar-
preendido, sozinho, pelos.vinte anos, a me claramente da substância: o
obra de Aristóteles, chamada As dez homem, por exemplo; do que nela se
Categorias' 5 7, que me tinha vindo às contém como a figura do homem; a
mãos? estatura, quantos pés mede; o paren­
Quando um retórico de Cartago, tesco, de quem é irmão; onde se acha;
meu professor, e outros que se tinham quando nasceu; se está de pé ou senta­
por doutos a citavam com palavras a do, calçado ou armado; se faz alguma
estalarem de soberba, ficava suspenso, coisa; se padece algo; e, enfim, toda a
à espera de qualquer coisa sublime e infinidade de coisas que se encontram
divina. Conversando sobre este assun­ nestes nove gêneros de que citei alguns
to com alguns que confessavam tê-las exemplos ou no próprio gênero da
dificilmente entendido, apesar de mes­ substância1 58.
tres muito eruditos lhas explicarem
com palavras e inumeráveis desenhos 29. De que me aproveitava isto, se
traçados na areia, eles nada me pude­ só me prejudicava? Julgando que tudo
ram ensinar que já não tivesse apren­ estava incluído nos dez predicamentos,
dido na simples leitura particular. 1 58 Santo Agostinho dá um exemplo para cada
uma das categorias de Aristóteles: Substância (o
157 As nossas idéias são tantas e tão diversas que, homem), Qualidade (qual é a sua figura), Relação
para evitar a obscuridade e confusão, é necessário (parentesco de quem é irmão), Quantidade ou esta­
reduzi-las a certas classes universais. Estas classes tura (quantos pés mede), Ação (se faz alguma
chamam-se categorias. Os latinos deram-lhes o coisa), Paixão (se padece), Lugar (onde se acha),
nome de praedicamenta por representarem os predi­ Tempo (quando nasceu), Estado (se está de pé ou
cados que se atribuem ou podem atribuir-se a um sentado), Hábito (se está calçado ou armado). (N.
sujeito. (N. do T.) do T.)
86 SANTO AGOSTINHO

esforçava-me por igualmente Vos com­ Vós para uma região longínqua1 62”,
preender a Vós, meu Deus, que sois onde a dissipei nas paixões com mere-
admiravelmente simples e imutável, trizes1 63. De que me serviam estes
como se estivésseis subordinado à dons preciosos se usava mal deles? Só
vossa grandeza e beleza, ou como se compreendia como aquelas artes eram
fosseis um corpo, onde estes atributos difíceis de entender, ainda aos mais
se radicavam. Vós, porém, sois a vossa estudiosos e inteligentes, quando me
mesma grandeza e beleza. Ora, um esforçava por lhas expor. Dentre eles,
corpo, pelo fato de ser corpo, não é o melhor era só o que menos Vagarosa­
grande nem belo; continuaria a ser mente seguia a minha exposição.
corpo ainda que fosse menor e menos 31. Mas que fruto tirava daqui,
belo1 59. Era falso o que pensava de Senhor, meu Deus — Suprema Verda­
Vós. Era mentira. Eram ficções da de —, se Vos concebia como um corpo
minha miséria, e não uma concreti­ luminoso e imenso e me considerava
zação da vossa beleza. Tínheis orde­ como uma parcela desse corpo? Que
nado — e assim se realizava em mim. requintada perversidade! Assim era
— que a terra me produzisse “espi­ eu! Não me envergonho, meu Deus, de
nhos e cardos1 60” e que eu alcançasse confessar as vossas misericórdias para
o pão à custa de trabalho. comigo e de Vos invocar, já que não
30. A mim, tão mau escravo nesse me envergonhei de proferir blasfêmias
tempo, que me aproveitou ter lido e diante dos homens, e de ladrar contra
compreendido por mim mesmo todos Vós.
os livros que pude, das artes a que cha­ De que me servia possuir um talento
mam liberais? Comprazia-me neles, tão ágil para aquelas ciências e ter des­
sem saber donde provinha tudo o que feito, sem auxílio de nenhum mestre
encerravam de certo e verdadeiro. Es­ humano, o nó de tantos livros intrinca-
tava de costas voltadas para a luz e díssimos, se errava na Ciência da Reli­
com a face erguida para os objetos gião, com sacrílegas e deformantes tor-
iluminados. Por isso, o rosto com que pezas? E que prejuízo sofriam os
os via iluminados não era iluminado. vossos filhos em serem menos inteli­
Vós sabeis, Senhor, meu Deus, tudo gentes, se não se afastavam de Vós, e,
o que aprendi, sem dificuldade e sem se se iam cobrindo de penas no ninho
mestre, acerca da eloquência, da dialé­ da vossa Igreja, nutrindo as asas da
tica, da geometria, da música e da caridade com o alimento sadio da fé?
matemática, porque a prontidão de Fazei, ó Senhor, nosso Deus, que
inteligência e a agudeza de instituição esperemos à sombra das vossas asas.
são dons vossos; mas nem por isso Protegei-nos e guiai-nos até quando
Vo-los oferecia em sacrifício. E assim, atingirem os cabelos brancos. A nossa
longe de me serem úteis, causavam-me firmeza só é firmeza quando Vós nela
ainda mais dano, porque insisti em estais; mas quando depende de pós,
apoderar-me da melhor parte da minha então é enfermidade. O nosso bem vive
herança “e não guardei em Vós a sempre em Vós; e somos perverisos
minha força1 61”, mas “afastei-me de porque nos apartamos de Vós. j
Fazei, ó Senhor, que voltemos’ já
159 Na Cidade de Deus, L. XXII, cap. 19, Santo
Agostinho define a beleza física: “Toda a beleza do para Vós para nos não submergirmos,
corpo é a congruência de partes com uma certa sua­ porque o nosso bem, que sois Vós
vidade de cor”. (N. do T.)
1 60 Gên 3, 18. • 62 Lc 15, 13.
i 61 5/58,10. 5 63 Alusão à parábola do filho pródigo. (N. do T.)
CONFISSÕES IV 87

mesmo, vive, sem deficiência- alguma, de o não encontrar quando voltarmos;


em Vós. Apesar de nos termos precipi­ porque, na nossa ausência, não desaba
tado do nosso bem, não temos receio a nossa morada — a vossa eternidade.
EM ROMA E EM MILÃO

I — Primeiras desilusões
do maniqueísmo (1-7).,
II — Em Roma (8-12).
III — Em Milão. Abandono
da doutrina de Mani-
queu (13-14).
1
Lábios em prece
1. Recebei o sacrifício das Confis­ misericórdias para que Vos louve.
sões, por meio do ministério da minha Toda a criação entoa continuamente
língua, por Vós formada e que impelis­ as vossas glórias. Todo o espírito Vos
tes a confessar o vosso nome. Sarai louva, pelos seus próprios lábios, er­
todos os meus ossos, e que eles cla­ guidos para Vós; os animais e os seres
mem: “Senhor, quem hâ semelhante a do reino mineral louvam-Vos pela
Vós?1 64”. Aquele que se dirige a Vós boca daqueles que os consideram.
de coisa nenhuma que nele se realize Assim, a nossa alma levanta-se da las-
Vos informa, porque nem o coração
fechado se esconde ao vosso olhar, sidão até Vós, apoiando-se nas vossas
nem a dureza dos homens repele a criaturas, e atira-se para Vós, que
vossa mão. Pelo contrário, àquela maravilhosamente as criastes. Aí en­
amolecei-la, quando quiserdes, ou com contrará o rejuvenescimento e a verda­
a misericórdia ou com o castigo. “Não deira força.
há ninguém que se furte ao vosso
*5”
calor l1 6 2 1 64 S7 34, 10.
165 Sl 18, 7. — Nas Confissões há cerca de qui­
Que a minha alma Vos louve para nhentas referências ao Livro de Salmos, que Santo
que Vos ame; que confesse as vossas Agostinho sabia de memória. (N. do T.)

2
Não se foge da vista de Deus
2. Que os revoltados e os maus presença dos que divagam longe de
fujam e se escapem! Vós os vedes e Vós ! Que se convertam e que Vos pro­
distinguis as suas sombras. Convivem curem, porque, da mesma forma como
com todos os seres belos, e eles são deixaram o Criador, Vós abandonais a
feios! Que prejuízo Vos causaram! criatura.
Em que ponto desonram o vosso impé­ Convertam-se e procurem-Vos, já
rio, que permanece íntegro e justo, que estais no seu coração, no coração
desde os céus ao profundo dos abis­ dos que Vos confessam, dos que se lan­
mos? Para onde fugiram, quando fu­ çam em Vós e choram no vosso seio,
giam do vosso rosto? Ou em que lugar depois de percorrerem os caminhos da
os não encontrais? Fugiram para Vos perdição.
não verem, a Vós, que os estais vendo ! Carinhosamente lhes enxugais as lá­
Mas, obsecados, depararam convosco, grimas, e tanto mais gozam com os
- porque não abandonais nada do que prantos quanto mais choram, porque
criastes. Injustamente Vos ofenderam e não é o homem, nem é a carne e o san­
justamente são castigados. Subtrain­ gue, mas sois Vós, seu Criador, que os
do-se à vossa benignidade, encon­ robusteceis e consolais. Onde estava
traram a vossa justiça e caíram sob a quando Vos procurava? Vós estáveis
vossa severidade! diante.de. mim; porém eu apartava-me
Naturalmente ignoram que estais de mim. e, se nem sequer me encon­
em toda parte, e que nenhum lugar Vos trava a mim mesmo, muito menos a
circunscreve, e que só Vós estais na Vós!
92 SANTO AGOSTINHO

3
Inconsistência do maniqúeísmo

3. Falarei, na presença do meu eclipses do Sol e da Lua, o dia, a hora


Deus, do ano vigésimo nono da minha e 0 lugar em que haviam de suceder,
idade. Já tinha vindo para Cartago o sem se enganarem nos cálculos. Os
bispo dos maniqueístas, chamado seus vaticínios realizaram-se. Escreve­
Fausto, “grande laço do demônio1 6 6”, ram normas que eles descobriram e
pois seduzia a muitos por meio da sua que ainda hoje se lêem. Por elas deter­
melíflua eloquência. Não obstante ser minaram em que ano, em que mês do
esta por mim aplaudida, sabia, contu­ ano, em que dia do mês e em que hora
do, discemi-la das verdades que dese­ do dia e em que parte da sua luz a Lua
java aprender. Não reparava no vaso ou o Sol se hão de eclipsar, aconte­
do discurso em que mas ministrava, cendo tudo exatamente como está
mas sim no alimento de ciência que predito.
Fausto, tão conceituado entre eles, me Os homens, que ignoram estes segre­
apresentava como manjar. Tinha che­ dos, admiram tais maravilhas e ficàm
gado até mim a fama de que era erudi- estupefatos. Os eruditos exultam e
tíssimo nas ciências mais prestigiosas, ensoberbecem-se. Esses, que por ímpio
e, sobretudo, conhecedor das artes orgulho se afastam e eclipsam da vossa
liberais. luz, prèvêem o eclipse futuro do Sol e
Como eu tinha lido muitos filósofos não vêem o seu, n.o tempo presente!
e conservava na memória as suas teo­ Não buscam religiosamente donde
rias, comparava algumas delas com as lhes veio o talento com que investigam
longas fábulas dos maniqueístas. As essas coisas. Achando que Vós as
doutrinas dos filósofos pareciam-me criastes, não se Vos entregam, para
mais prováveis porque “se mostraram que conserveis o que fizestes e para
com poder de avaliar o tempo presente, que matem em si mesmos o que eles se
ainda que de modo algum encontra­ fizeram. Sacrifiquem-Vos os pensa­
riam o seu Deus167”. “Porque sois mentos altivos, como se imolam as
grande, ó Senhor, pondes os olhos nas
aves; as curiosidades, como “peixes do
coisas humildes; porém, às excelsas, mar, com os quais passeiam pelos
vós as conheceis de longe1 68.” Só Vos caminhos secretos do abismo1 69”; e as
avizinhais dos corações contritos. Não luxúrias como animais do campo, pára
sois encontrado pelos soberbos, ainda
que Vós, ó fogo devorador, consumais
que numerem com hábil perícia as as suas preocupações já mortas, robus-
estrelas e as areias, ainda que meçam tecendo-os para a vida imortal.
as regiões siderais e investiguem o
curso dos astros. 5. Mas não conheceram o “cami­
nho”, o vosso Verbo, por meio de
4. Procuram estes segredos com a quem fizestes as coisas que se mjime-
razão e com o engenho que lhes conce­
destes; descobriram muitas coisas e ram e esses mesmos que as numeram,
vaticinaram muitos anos antes os os sentidos com que percebem o que
numeram, e a mente, graças à qual eles
1 6 6 1 Tini 3, 7.
as numerarri. “Só a vossa sabedoria é
167 Sab 13, 9.
1 88 SH3T, 6. 1 69 5/8, 9.
CONFISSÕES V 93

inumerável1 70.” O próprio Uhigênito de, e mudar a “glória dum Deus incor-
“fez-sé nossa sabedoria, justiça e santi­ rupto na imagem e semelhança do
ficação1 71”. Fòi considerado como homem corruptível, na das aves, qua­
üm de nós e como tal pagou tributo a drúpedes e serpentes”. Convertem a
César. Não conheceram este caminho vossa verdade em mentira, veneram e
por onde, descendo de si mesmos ao servem antes “à criatura do que ao
Salvador, podiam subir por Ele até Criador.1 72”.
Ele: 6. Conservara, porém, destes filóso­
Nãó conheceram este caminho e jul- fos muitas opiniões verdadeiras, cuja
gam-se tão altos e tão cintilantes como explicação se me oferecia por meio da
as estrelas! Mas .èis que ruíram em matemática, da ordem dos tempos e
terra e o seu coração insensato entene- testemunhos palpáveis das estrelas.
breceu-se. Dizem muitas verdades Conferia tudo com as declarações de
acerca das criaturas e não buscam Manés1 73, quej acerca destes assuntos,
piedosamente a Verdade^ o Artífice da delirando, escreveu muitas obras.
criação. Por conseguinte, não O en­ Não me dava ele a razão dos solstí­
contram; ou, se O encontram, conhe­ cios e dos equinócios, nem dos eclipses
cendo a Deus, não O honram como a das estrelas nem de coisa alguma que
Deus, nem lhe dão graças. Desvane- aprendera nos livros profanos. Ali era
cem-se em seus pensamentos, dizem-sé obrigado a acreditar em coisas total­
sábios e atribuem a si próprios o que é mente diversas, além de não concor­
vosso. Por isso desejam, corrí tão per-^ darem com as noções qué eu, por cál­
versa cegueira, atribuir-Vos também as culos matemáticos e pelos próprios
suas falsidades, isto é, imputar-vos as olhos, averiguara.
suas méntiraSj a Vós, que sois a Verda-
1 72 Rom 1, 21-25.
1 70 Sl 146,5. 1 73 Também conhecido pelo nome de Maniqueu
171 1 Cor 1,30. ou Mâni. (N. do T.)

4
Feliz o que conhece a Deus !

7. Senhor, Deus da Verdade, por­ aquele que, medindo-a e enumerando-


ventura quem conhece estas coisas já lhe todos os ramos, não só a não pos­
Vos agrada? Infeliz do homém que as sui mas nem sequer reconhece e ama O
conhece, mas Vos desconhece á Vós! que a criou? O mesmo se diga do
Feliz o que Vos conhece, ainda que as homem fiel a quem pertence todo o
ignore! O que Vos conhece a Vós e mundo com suas riquezas e que tudo
àquelas coisas não é máis bem-aven­ “possui como se nada tivesse”, se está
turado por causa delas, mas unica­ unido a Vós, a quem tudo serve. Ainda
mente por cauSá de Vós; se, conhecen­ que ele desconheça a trajetória das
do-as, Vos glorifica como a DeüSj Vos estrelas da Ursa Menor, seria loucura
rende graças e não se desvanece em duvidar se é ou não superior ao que
§eüs pensamentos. Vos despreza a Vós, que “tudo orde­
O homem que, reconliécendo estar nastes com número, peso e medi­
na posse duma árvore, V8s dá graças da1 7 4”, embora o desprezador meça
pelo uso dela (ainda que Ignore quan­ . os espaços do céu, conte as estrelas e
tos côvados tenha de altura e qual a pese os elementos.
largura da sua copa) não é melhor que 174 Sab 11,20.
94 SANTO AGOSTINHO

5
O sábio ignorante
8. Mas quem pedia a esse Manés problemas e confunde umas coisas
que escrevesse sobre estes assuntos, de com outras, sofro com paciência a sua
cujo conhecimento se pode prescindir opinião. Ainda que ele não saiba a
na aprendizagem da piedade? Vós dis­ posição e a natureza das criaturas
sestes ao homem: “A piedade é sabe­ corpóreas, não vejo que isso lhe seja
doria1 7 5”. prejudicial, contanto que não creia em
Podia Manés ignorar a piedade, coisas indignas de Vós, Senhor e Cria­
ainda que fosse profundamente ins­ dor de tudo. Todavia, ser-lhe-á funesto,
truído nestas questões. Mas, já que se julga que isso pertence à essência
desavergonhadamente ousou ensiná- doutrinai da Religião, e se ousar defen­
las sem as conhecer, de modo algum der pertinazmente o que não conhece.
poderia alcançar a piedade. É vaidade Mas ainda a essa fraqueza a suporta a
mundana pavonear-nos com esses co­ caridade materna no berço da fé, até
nhecimentos, porém é sinal de piedade que o homém novo se transforme “em
o confessar-Vos. Afastando-se desta varão perfeito1 7 6” e o vento de qual­
regra, falou Manés tanto sobre isto que quer doutrina o não possa agitar.
os verdadeiramente sábios se conven­ Com respeito a Manés, quem não
ceram da sua ignorância. Donde clara­ julgaria digna de ser detestada com
mente se pode deduzir qual fosse a sua horror a sua rematada loucura, se
competência em matérias mais obscu­ fosse convencido da súa falsidade
ras. Não queria ser estimado mediocre- aquele que teve a ousadia de fazer-se
mente. Por isso tentou provar que o doutor, mestre, guia e chefe dos con­
Espírito que consola e enriquece os vertidos a essas doutrinas, a ponto de
vossos fiéis habitava pessoalmente eles se persuadirem de que não se­
dentro dele, com toda a plenitude do guiam a qualquer homem, mas ao
seu poder. Espírito Santo?
Foi surpreendido a falar erronea­ Ainda, porém, não me tinha certifi­
mente sobre o céu, os astros e os movi­ cado se 'se podiam ou não explicar,
mentos do Sol e da Lua. E, ainda que segundo a sua doutrina, as mudanças
estes erros se não relacionem com do crescimento e diminuição dos dias e
assuntos religiosos, contudo obvia­ das noites, a alternativa do dia e da
mente transparece ser sacrílega a sua noite e os eclipses dos astros e outros
ousadia, porque não só ensinava o que fenômenos da natureza que eu conhe­
lhe era desconhecido, mas também cia pelas minhas leituras. Suposto que
proferia mentiras, com tão insensato se pudessem explicar, seria ainda in­
orgulho, que não hesitava em atribuí- certo para mim se esses fenômenos se
las a uma pessoa Divina. realizavam assim ou não; mas antiepu-
9. Quando ouço que algum dos nha a autoridade de Manés à minha fé,
meus irmãos em Cristo ignora estes porque o tinha na conta de santo.
175 Jó 18, 28. 1 7 6' E/4; 13.
CONFISSÕES V 95

6
Eloquência de Fausto
10. Durante cerca de nove anos, em fato de ser dita eloquentemente, nem
que o meu pensamento errante escu­ como falsa, por ser expressa em lin­
tava a doutrina maniqueísta, ansiosa­ guagem rude. Pelo contrário, não a
mente esperava a vinda de Fausto. Se devemos julgar verdadeira por ser
por acaso encontrava alguns dos se- enunciada dum modo inculto, nem
quazes de Manes, sentiam-se embara­ falsa por ser proposta em estilo elegan­
çados com as minhas objeções acerca te.
daqueles problemas. Mas assegura­ A sabedoria e a ignorância são
vam-me que, quando viesse Fausto, como os alimentos úteis ou nocivos.
facilmente me resolveria numa simples Podem-nos ser apresentados com pala­
conversa todas estas dificuldades, e vras polidas ou com rudeza de forma,
ainda outras mais intrincadas que lhe como os bons e maus alimentos nos
propusesse. podem ser servidos em pratos finos ou
Logo que ele chegou, notei que era grosseiros.
homem amável, aliciante ha conversa, 11. A avidez com que durante tanto
e que expunha dum modo mais agradá­ tempo esperei Fausto deleitava-se
vel os mesmos assuntos que os outros enfim no ardor e sentimento com que
maniqueístas costumam tratar. Mas ele discutia, nos termos apropriados e
como é que esse copeiro tão elegante, na facilidade com que lhe ocorriam as
que me servia por copos preciosos, me palavras para adornar a frase. Gostava
podia matar a sede? Já estava saciado pois de o ouvir. Louvava-o e engrande­
de ouvir semelhantes teorias. Nem cia-o como muitos outros, e ainda
estas me pareciam melhores pelo fato mais do que eles. Tinha pena de não
de serem propostas em linguagem mais me ser permitido, naquela reunião de
cuidada, nem a eloquência fazia com ouvintes, propor-lhe dificuldades e
que eu as tivesse como verdadeiras, compartilhar com ele os cuidados dos
nem o considerava como sábio por ser meus problemas, conferindo familiar­
de rosto esbelto e palavreado colorido. mente, escutando e respondendo às
Aqueles que mo tinham elogiado não suas palavras.
eram bons apreciadores, pois tinham- Por isso, logo que se me ofereceu
no como prudente e sábio pelo fato de oportunidade, comecei com meus ami­
os deleitar com a sua eloquência. gos a entrevistá-lo, numa ocasião em
Conheci outra espécie de pessoas que não nos era indecoroso discutir.
que tinham a verdade como suspeita e Expus-lhe algumas dúvidas das que me
não se lhe queriam render, se lhes fosse preocupavam. Notei que das artes libe­
proposta em estilo copioso e elegante. rais apenas sabia a gramática, e, ainda
Vós, porém, meu Deus, já me tínheis esta, de modo nada extraordinário.
ensinado de modos admiráveis e ocul­ Porque ele tinha lido alguns discursos
tos ! Creio o que Vós me ensinastes, de Cícero, pouquíssimos tratados de
porque é verdade, e só Vós sois o Mes­ Sêneca, alguns trechos de poetas e os
tre da Verdade em qualquer parte e de poucos livros da seita elegantemente
qualquer lugar que ela brilhe. Já tinha escritos em latim, e, além disso, porque
aprendido de Vós que não devemos ter se exercitava cotidianamente na orató­
qualquer coisa como verdadeira pelo ria, tinha adquirido esta facilidade de
96 SANTO AGOSTINHO

falar, que o bom emprego do seu talen­ meu coração e a minha memória dian­
to e certa graça natural tomavam mais te de Vós, que já então me trazíeis no
agradável e sedutora. segredo oculto da vossa Providência!
Senhor e Deus meu, árbitro da Já então púnheis os meus pecados
minha consciência, não é, porventura, vergonhosos diante da minha face,
verdadeiro o que Vos relato? Eis o para que os visse e detestasse!

7
O desiludido
12. Logo que transpareceu com su­ rada fácil. Por isso se tomou mais sim­
ficiente clareza a imperícia de Fausto pático aos meus olhos, porque a
nestas ciências em que o julgava emi­ modéstia da alma que confessa sua
nente, comecei a desesperar da sua incapacidade é mais bela que as coisas
capacidade para me esclarecer e desfa­ que eu desejava aprender. Com esta
zer as dificuldades que embaraçavam sua disposição de ânimo o encontrava
meu espírito. Poderia ele perfeita- em todas as questões mais difíceis e
mente, com a ignorância daquelas sutis.
questões, possuir a verdadeira piedade, 13. Resfriado assim o ardor com
contanto que não fosse maniqueísta. que me aplicava às doutrinas dos
Os livros desta seita, na verdade, maniqueístas, desesperei ainda mais
estão recheados de intermináveis fábu­ dos seus restantes mestres, depois que
las, acerca do céu, dos astros, do Sol e este, tão célebre, se revelou incapaz de
da Lua. Já não esperava que me pudes­ resolver os numerosos problemas que
se explicar argutamente aquelas teo­ me embaraçayam. Comecei a tratar
rias, como eu ardentemente desejava, com ele por causa da paixão que o
comparando-as com os cálculos astro­ inflamava pela literatura, que eu, como
nômicos, que eu em outras partes lera, retórico, já então ensinava aos jovens
a ver se era preferível a solução que os de Cartago. Lia com ele, ou aquilo que
livros maniqueístas davam ou se, pelo ele desejava ouvir ou o que eu julgava
menos, apresentavam igual explicação. conveniente ao seu espírito. Quanto ao
Quando lhe propus essas dificuldades mais, todo o esforço que determinada-
para serem discutidas, desculpou-se mente me impusera a fim de progredir
modestamente, sem ousar tomar sobre nesta seita ruiu por completo logo que
si tal encargo. Reconhecera a sua igno­ conheci aquele homem, mas não de tal
rância no assunto e não se ruborizou forma que dps maniqueístas me sepa­
de a confessar. Não pertencia à classe rasse radiçalmente. Com efeito, não
dos palradores que eu muitas vezes encontrando, outro caminho melhor
suportava e que, esforçando-se por me que aquele por onde desesperadamente
elucidar naqueles problemas, nada me me lançara, resolvera contentar-me
diziam. Este homem tinha coração, e, entretanto com ele, até que brilhasse
se não era reto para Vós, era ao menos outra via de preferível escolha.
cauteloso para consigo mesmo. Deste modo, aquele Fausto, que
Não era inteiramente imperito na tinha sido para muitos outros um “laço
sua imperícia, e, portanto, não quis ser mortal1 7 7”, começara involuntária e
enredado nestas disputas temerárias,
donde não teria saída alguma nem reti­ 1 77 Sl 17,6. 1
CONFISSÕES V 97

inconscientemente a afrouxar aquele comigo “de modo admirável1 78”. Fos­


com que eu fora capturado. As vossas tes Vós, meu Deus, quem dispôs deste
mãos, meu Deus, ocultas nos segredos modo as coisas, pois o “Senhor é quem
da vossa Providência, não abando­ dirige os passos do homem e lhe inspi­
navam minha alma. Noite e dia, minha ra o seu caminho1 79”. Quem nos sal­
mãe Vos oferecia por mim, em sacrifí­ varia senão a vossa mão, restauradora
da obra que fizestes?
cio, o sangue do seu coração transfor­
1 78 JZ2, 26.
mado em lágrimas. Vós procedestes 1 79 57 36, 23.

8
A caminho de Roma

14. Vós me impelistes a tomar a eles tanto mais infelizes quanto maior
resolução de partir para Roma e de é a sem-cerimônia com que praticam,
preferir lecionar aí o que ensinava em como lícito, aquilo que a vossa lei eter­
Cartago. Não deixarei de confessar o na nunca permitirá. Julgam que o
motivo desta minha determinação, fazem sem castigo, mas são punidos
pois que em tudo isso se devem reco­ pela sua mesma cegueira, e sofrem
nhecer e celebrar os vossos profundís­ males incomparavelmente maiores que
simos segredos e a vossa misericórdia, os ocasionados aos outros. Portanto,
sempre tão vizinha de nós. esses costumes, de que eu não quis
Portanto, se resolvi dirigif-me a compartilhar quando estudante, era
Roma, não foi porque meus amigos, obrigado a suportá-los de outrem,
que me aconselhavam essa viagem, me quando professor. Por este motivo,
prometessem maiores lucros e maior desejava partir para uma cidade na
dignidade, se bem que nesse tempo qual, segundo me asseguravam os
também estas razões moviam o meu informadores, nada acontecia de seme­
espírito. O motivo principal e quase lhante.
único assentava em eu ouvir dizer que Na realidade, porém, Vós, “minha
os rapazes estudavam aí mais sossega- esperança e minha herança na terra
damente, refreados por mais regrada dos vivos180”, impelíeis-me a mudar
disciplina. Não invadiam desordenada de sítio para a salvação da minha
e imprudentemente a escola de outro alma. Estendí eis o aguilhão a Cartago,
que não tinham como professor, nem para dali me arrancardes, e oferecíeis-
eram admitidos sem sua licença. Em me delícias em Roma, para me atrair­
Cartago, pelo contrário, a liberdade des. Propúnheis-me estas seduções por
dos estudantes é vergonhosa e destem­ meio dos homens que amam esta vida
perada. Precipitam-se cinicamente de morte, dos quais uns se entregavam
pelas escolas adentro e com atitude a atos de loucura, outros me prome­
quase furiosa perturbam a ordem que o tiam vaidades. Usáveis ocultamente da
professor estabeleceu como necessária sua e minha perversidade, para me
ao adiantamento dos alunos. Com uma corrigirdes os passos. Dum lado, aque­
insolência incrível, cometem mil im­ les que perturbavam o meu sossego
propérios que deviam ser punidos, se o estavam cegos por uma raiva vergo-
costume os não patrocinasse.
Isso, porém, apenas manifesta serem 180 57114,6.
98 SANTO AGOSTINHO

nhosa; do outro, os que me convida­ mente, enquanto ela ficou orando e


vam a mudar de residência saborea­ derramando lágrimas. Que Vos pedia
vam a terra. Porém, eu, que em ela, meu Deus, com tantos prantos,
Cartago detestava uma miséria verda­ senão que me não permitisseis fazer a
deira, apetecia, em Roma, uma felici­ viagem? Mas Vós, por um desígnio
dade mentirosa. mais profundo, ouvindo só o objeto
15. Só Vós, meu Deus, conhecíeis principal dos seus desejos, não aten­
os motivos por que abandonava Carta­ destes ao que ela então Vos pedia, para
go para me dirigir a Roma. Não mos realizardes em mim a aspiração das
manifestáveis a mim nem a minha suas contínuas preces.
mãe, que chorou amargamente a Soprou o vento, enfunou as velas e
minha partida e me seguiu até o mar. logo escapou à nossa vista a praia,
Como ela me agarrasse com violência onde, de manhã cedo, minha mãe,
para me fazer voltar ou para ir comigo, louca de dor, enchia, com suas queixas
eu enganei-a, fingindo não querer sepa- e prantos, os vossos ouvidos, insensí­
rar-me dum amigo, até que, soprando veis àquelas lamentações. Arrebatá-
o vento, ele pudesse navegar. Assim veis-me então çom os meus apetites
me escapei, mentindo a minha mãe, e para lhes pordes termo, e castigáveis,
que mãe! Mas Vós perdoastes-me com o justo flagelo da dor, as saudades
misericordiosamente este pecado, e eu, demasiado sensíveis de minha mãe.
todo cheio de execráveis imundícies, Ela, segundo os costumes das mães, e
fui Salvo por Vós das águas do mar até mais ainda que muitas outras, deseja­
me conduzirdes às águas da vossa va-me sempre junto de si, desconhe­
graça. Estas, purificando-me, deviam cendo as grandes alegrias que Vós lhe
secar os rios de lágrimas com que iríeis causar com a minha ausência.
todos os dias, na vossa presença, os Não o suspeitava, e desfazia-se em lá­
olhos de minha mãe, por minha causa, grimas e lamentações. Esses tormentos
regavam a terra. denunciavam nela a herança de Eva,
Recusando ela voltar sem mim, foi pois gerava com lágrimas o que com
com grande dificuldade que a persuadi lágrimas dera à luz.
a que permanecesse, durante essa Enfim, depois de incrimipar a minha
noite, num lugar vizinho ao nosso perfídia e crueldade, dedicou-se nova­
navio, e consagrado à memória de São mente a orar por mim, e entregou-se à
Cipriano. vida habitual, enquanto eu me dirigia a
Nessa mesma noite parti oculta­ Roma.

9
O flagelo da doença

16. Eis que em Roma sou acolhido morremos em Adão1 81. Ainda me não
pelo flagelo da doença. Já ia descer ao tínheis perdoado pelos merecimentos
inferno, levando comigo todas as faltas de Cristo nenhuma dessas culpas, nem
que tinha cometido contra Vós, contra Ele tinha ainda apagado, com a sua
mim e contra os outros. Eram elas cruz, as inimizades que eu, pelos meus
numerosas e pesavam sobre a cadeia
do pecado original, pelo qual todos 181 1 Cor 15, 22. ,
CONFISSÕES V 99

pecados, contraíra convosco. Como minha morte trespassasse as entranhas


podería Ele desfazê-las pela cruz, se eu do seu amor. Onde estariam essas ora­
julgava estar nela suspenso um fan­ ções, tão prolongadas, frequentes e
tasma sem realidade? Tão falsa, por­ nunca interrompidas? Em nenhuma
tanto, me parecia a morte da sua parte, senão em Vós. Seria possível que
carne, quão verdadeira era a da minha Vós, o Deus das misericórdias, despre­
alma; e tão verdadeira era a morte da zásseis “o coração contrito e humilha­
sua carne quão falsa era a vida da do182” de uma viúva casta e sóbria,
minha alma, que disto se não persua­ esmoler, obediente e obsequiadora dos
dia. vossos santos, que não deixava passar
Entretanto, agravando-se a febre, eu dia algum sem levar a sua oferenda ao
estava a ponto de partir e de perecer. vosso altar?
Para onde iria, se então morresse, Duas vezes ao dia, de manhã e à
senão para o fogo e tormentos propor­ tarde, sem exceção, se dirigia à vossa
cionados às minhas culpas, segundo igreja, não para gastar o tempo em vãs
vossas retas disposições? Minha mãe conversações e tagarelices de velhas,
não estava informada (lestes aconteci­ mas sim para escutar vossas palavras e
mentos, e, apesar de ausente, orava por ser por Vós ouvida em suas preces. E
mim. Mas Vós, presente em toda parte, poderieis Vós desdenhar das lágrimas
a ouvíeis onde ela estava. No sítio onde com que ela Vos pedia, não o ouro e a
eu residia, compadecí eis-Vos de mim, prata ou qualquer outro bem despre­
restituindo-me a saúde do corpo, ainda zível e frágil, mas a salvação da alma
que o meu coração sacrilegamente do seu filho? Poderieis Vós desprezar e
perseverasse na loucura. desamparar do vosso auxílio aquela a
Nem sequer num perigo tão emi­ quem transformastes com vossos
nente desejava o vosso batismo. Quan­ dons? De modo algum, Senhor. Pelo
do criança era mais santo do que contrário, assistíeis, escutáveis suas
agora, porque então o solicitei da pie­ petições e procedíeis segundo a ordem
dade de minha mãe, como já antes com que preordenáveis os aconteci­
recordei e confessei. Crescera em anos mentos.
para a minha desonra, e, na minha lou­ Longe de mim a idéia de suspeitar
cura, mofava dos remédios da vossa- de que a enganáveis naquelas visões e
medicina, que, em tal estado, me não respostas, das quais já recordei umas e
permitiu morrer duas vezes. Se o cora­ omiti outras. Guardava-as fielmente no
ção de minha mãe fosse golpeado por seu coração e, sempre orando, Vo-las
esta ferida, nunca mais sararia! apresentava como títulos dos vossos
Não sou bastante eloqüente para compromissos. Já que a “vossa miseri­
falar de quanto me aprecjava, nem da córdia não tem fim 183”, condescendeis
sua solicitude, mais cuidadosa em me em tomar-Vos, por vossas promessas,
gerar espiritualmente do que em me devedor daqueles a quem perdoastes
conceber quanto ao corpo. todas as dívidas.
17. Por isso, não vejo como poderia 182 Sl50,19.
fechar essa ferida se o punhal da ’83 Sl 117, 1.
100 SANTO AGOSTINHO

10
Erros maniqueístas de Agostinho

18. Restabelecestes-me daquela zade com os seus “eleitos”. Mas, já


doença e salvastes, então, pelo que res­ desesperado de poder alcançar a ver­
peita ao corpo, o filho da vossa serva, dade por meio desta falsa doutrina,
para terdes oportunidade de lhe conce­ resolvera ir-me contentando com ela,
der uma saúde melhor e mais firme. caso não encontrasse outra melhor. No
Em Roma, também me juntava com entanto, conservava-a com frouxidão e
aqueles “santos”, fingidos e embustei- negligência.
,ros18 4. Não convivia somente com os 19. Ocorreu-me ao pensamento ter
“discípulos” — em cujo número se havido uns filósofos chamados Acadê­
contava o dono da casa onde eu adoe­ micos, mais prudentes do que os ou­
cera e tivera a convalescença ■—•, mas, tros porque julgavam que de tudo se
sobretudo, mantinha relações com os havia de duvidar, e sustentavam que
que eles chamavam “eleitos1 8 5”. nada de verdadeiro podia ser com­
Ainda então me parecia que não preendido pelo homem. Ao meu espíri­
éramos nós que pecavamos, mas não to, que ainda não entendia tal doutrina,
sei que outra natureza, estabelecida em parecia que tinham raciocinado com
nós. A minha soberba deleitava-se com esperteza, como vulgarmente se julga­
não ter as responsabilidades da culpa. va. Não dissimulei em impugnar ao
Quando procedia mal, não confessava meu hospedeiro a sua demasiada cren­
a minha culpabilidade, para que me dice acerca das narrações fabulosas de
pudésseis curar a alma, já que Vos que estavam cheios os livros de Manés.
tinha ofendido, mas gostava de a des­ Convivia com estes homens em mais
culpar e de acusar uma outra coisa que estreita amizade do que com aqueles
estava comigo e que não era eu. Na que não estavam infeccionados da
verdade, tudo aquilo era eu, se bem heresia. Quanto a esta, já a não defen­
que a impiedade me tinha dividido dia com o entusiasmo de outrora. Mas
contra mim mesmo! Era este pecado as relações amigáveis com mani­
tanto mais difícil de cura quanto eu queístas — pQis grande número deles
menos pecador me julgava. se ocultava em Roma — tomavam-me
E que execranda iniqüidade, ó Deus bastante negligente em inquirir doutra
Todo-Poderoso, preferir que fosseis coisa.
derrotado em mim para minha ruína, a Principalmente, “ó Deus do Céu e
ser vencido por Vós para minha salva­ da terra1 8 7”, Criador de todas as coi­
ção. Ainda nessa época não tínheis sas visíveis e invisíveis, desesperava de
posto “uma guarda à minha boca e poder encontrar na vossa Igreja a ver­
uma porta de resguardo ao redor de dade, de que me tinham apartado.
meus lábios”, a fim de meu coração Parecia-me muito vergonhoso acredi­
“se não inclinar às palavras perversas tar que tínheis uma figura de camejhu-
e excogitar desculpas dos pecados mana e que éreis contornado pelos tra­
como fazem os homens prevaricado­ ços corporais dos nossos membros.
res1 8 6”. Por isso mantinha ainda ami­ Porém o principal e quase único moti­
1 8 4 Refere-se aos maniqueístas. (N. do T.) vo do meu erro inevitável era, quando
18 5 Constituíam os dirigentes da seita. (N. do T.)
18 6 Sl 140, 3 ss. 187 Gên 24, 3.
CONFISSÕES V 101

desejava pensar no meu Deus, não mais justo crer que não tivésseis criado
poder formar uma idéia dele, se não nenhum mal do que acreditar que pro­
lhe atribuísse um corpo, visto parecer- viesse de Vós a sua natureza tal qual
me impossível que houvesse alguma eu a imaginava. Com efeito, o mal apa­
coisa que não fosse material. recia à minha ignorância não só como
20. Daqui deduzia eu a existência substância mas como substância cor-
duma certa substância do mal que pórea, já que a minha mente não podia
tinha a sua massa feia e disforme — formular a idéia senão dum corpo
ou fosse grosseira como a que chamam sutil, difundido pelo espaço.
terra ou tênue e sutil como o ar —, a Também supunha que o nosso Sal­
qual eu julgava ser o espírito maligno vador e vosso Unigênito, enviado para
investindo a terra. E porque a minha nos salvar, proviesse dessa luzidíssima
piedade, como quer que ela foáse, me substância do vosso corpo. Deste
obrigava a crer que a bondade de Deus modo, em nada acreditava, referente a
não criou nenhuma natureza má, esta­ Ele, a não ser no que a minha louca
belecia eu duas substâncias opostas a imaginação sugeria. Julgava que tal
si mesmas, ambas infinitas: a do mal, natureza não podia nascer de Maria
mais diminuta, e a do bem, mais exten­ Virgem sem se ajuntar com a carne.
sa. Deste princípio pestilencial provi­ Supunha então que se manchava, por­
nham as restantes blasfêmias. que não via a possibilidade de ela se
Com efeito, quando o meu espírito ajuntar sem se corromper. Tinha re­
se esforçava por voltar à fé católica, ceio, por isso, de que Ele tivesse nasci­
sentia-se repelido, porque a opinião do da carne, para não ser obrigado a
que formava da fé católica não era crê-lo por ela maculado. Agora talvez
exata. Parecia-me mais piedoso — ó os vossos fiéis se riam suave e benevo­
meu Deus, a quem confessam por mim lamente de mim, se lerem estas Confis­
vossas misericórdias —, parecia-me sões^33. Contudo, era este o meu
mais piedoso crer-Vos infinito, e limi­ estado.
tado apenas sob este aspecto pela subs­
tância do mal, do que julgar-Vos limi­ 188 Em Jesus Cristo, as duas naturezas, divina e
humana, permanecem íntegras e inconfundíveis,
tado de todos os lados segundo a sem se misturarem, reunidas substancialmente na
forma do corpo humano. Parecia-me unidade de Pessoa Divina. (N. do T.)

Evasiva dos maniqueístas

21. Além disso, não estava persua­ Elpídio1 8 9, que falava na presença dos
dido de que se pudesse defender o que maniqueístas e disputava contra eles,
na vossa Escritura os maniqueístas propondo passagens da Sagrada Escri­
atacavam. Mas, uma vez por outra, tura a que eu não podia facilmente
desejava conférir cada um destes pon­ resistir. A resposta deles parecia-me
tos com algum varão muito douto nos fraca. Mesmo assim, não a expunham
seus livros, para lhe tatear a opinião.
Já me tinham começado a mover, 1 8 9 Atualmente nada se conhece desse polemis­
em Cartago, os discursos dum certo ta. (N. do T.)
102 SANTO AGOSTINHO

em público, mas em segredo, afir­ de certo modo cativo e sufocado por


mando que a Sagrada Escritura tinha imagens materiais, sentia-me compri­
sido falsificada no Novo Testamento mido por aquelas “substâncias”, sob
por certas pessoas que quiseram inserir
a lei dos judeus na fé cristã. E, contu­ as quais, arquejante, de maneira ne­
do, eles não alegavam nenhuns exem­ nhuma podia respirar o ar límpido e
plares que não fossem apócrifos! Eu, simples da vossa verdade.

12
Fraude dos discípulos

22. Em Roma, comecei diligente­ com as suas ações ilícitas. Não há dú­
mente a ocupar-me com a tarefa para vida de que são infames e se maculam
que tinha vindo, isto é, com o ensino longe de Vós amando os efêmeros
da retórica. Primeiramente juntei em passatempos e a recompensa de lodo
casa alguns discípulos, com os quais, e que suja as mãos quando se apanha,
por seu intermediário, principiei a ser abraçando o mundo que lhes foge e
conhecido. Mas eis que sou informado desprezando-Vos, a Vós, que permane­
de que em Roma estavam em praxe al­ ceis etemamente, a Vós, que chamais
guns procedimentos que eu não tole­ de novo, a Vós, que ofereceis o perdão
rava na África. Na verdade, não me à alma humana adúltera quando esta,
chegara aos ouvidos que ali, em Roma, como pródiga, se volta para Vós.
se dessem aquelas invasões às aulas, Agora detesto, como malvados e
por adolescentes corrompidos. disformes, esses jovens, ainda que os
ame para se emendarem, para preferi­
Mas logo me afirmaram que os alu­ rem ao dinheiro aquela mesma ciên­
nos conspiram e passam em grande nú­ cia que aprendem e para Vos aprecia­
mero dum professor para outro, a fim rem mais a Vós, Deus meu, não só
de não pagarem os mestres, faltando Verdade e abundância duma felicidade
deste modo aos compromissos e me­ certa, mas também Paz castíssima.
nosprezando a justiça por amor ao Mas eu, nesse tempo, não queria
dinheiro. A estes odiava-os meu cora­ suportá-los na sua maldade, mais por
ção, ainda que não fosse com verda­ interesse próprio do que por desejo, em
deiro rancor. Antipatizava talvez mais Vós motivado, de que eles se fizessem
com o que deles tinha sofrido do que bons.

13
Em Milão. Encontro com Santo Ambrósio
23. Portanto, depois que dirigiram destes mesmos amigos, embriagados
de Milão um pedido ao prefeito de pelas vaidades dos maniqueístas. Era
Roma para que aquela cidade fosse para me separar, mas tanto eles como
provida dum professor de retórica, a eu o ignorávamos. Propôs-me Símaco,
quem se concedería a licença de viajar então prefeito, um tema para discursar,
na diligência do Estado, eu próprio e, sendo eu aprovado, me enviou1 90.
solicitei esse emprego por intermédio 190 Em 384. (N. do T.)
CONFISSÕES V 103

Chegando a Milão, fui visitar o gerava ou diminuía a sua reputação


Bispo Ambrósio, conhecido pelas suas oratória1 91. Estava suspenso das suas
qualidades em toda a terra e vosso pie­ palavras, extasiado, porém indiferente
doso servirdor, cuja eloquência zelosa- e até mofando do que ele dizia. Delei­
mente servia ao vosso povo “a fina flor tava-me com a suavidade do discurso,
do vosso trigo, a alegria do azeite de bem mais erudito do que o de Fausto,
oliveira e a sóbria embriaguez do porém menos humorístico e sedutor na
vinho”. Vós me leváveis a Ambrósio, apresentação. Pelo que se refere a.o
sem eu o saber, para ser por ele assunto, não se podem comparar, pois
conscientemente levado a Vós. um vagabundeava pelos enganos dos
Este homem de Deus recebeu-me maniqueístas, e o outro ensinava com
patemalmente e apreciou a minha vida a máxima segurança a salvação.
bastante episcopalmente. Comecei a Mas “dos pecadores”, tal qual eu
amá-lo, ao princípio não como mestre era nesse tempo, “está longe a salva­
da Verdade — pois jamais esperava ção192”. Todavia, insensivelmente e
encontrá-la na vossa Igreja —, mas sem o saber, me ia aproximando dela.
como um homem benigno para mim. 191 Agostinho ouviu discursos profundamente
Ardorosamente o ouvia quando pre­ platônicos proferidos por Santo Ambrósio. Assim,
gava ao povo, não com o espírito que os sermões De Isaac vel anima e De bono mortis
revelam notável influência das Enêadas. (Pierre
convinha, mas como que a sondar a Cour.celle, Recherches sur les "Confessions”, Paris,
sua eloquência para ver se corres­ 1950). (N. doT.)
pondia à fama, ou se realmente se exa­ 192 5/44,8.

14
O catecúmeno

24. Não me esforçava por aprender nada poder retorquir contra os ataques
o que o bispo dizia, mas só reparava dos maniqueus. Isto consegui-o eu por
no modo como ele falava. Este gosto ouvir muitíssimas vezes a interpre­
frívolo da eloquência permanecera em tação de textos enigmáticos do Velho
mim, perdidas já todas as esperanças Testamento, que, tomados no sentido
de que se patenteasse ao homem o literal, rne davam a morte. Expostos
caminho para Vós. Contudo, junto assim, segundo o sentido alegórico,
com as palavras que me deleitavam, muitíssimos dos textos daqueles livros,
iam-se também infiltrando no meu já repreendia o meu desespero, que me
espírito os ensinamentos que despre­ levava a crer na impossibilidade de
zava. resistir àqueles que aborreciam e troça­
Já os não podia discernir uns dos vam da lei e dos profetas.
outros. Enquanto abria o coração para Não obstante, não me julgava obri­
receber as palavras eloquentes, entra­ gado a seguir logo o caminho da fé
vam também de mistura, pouco a católica, só pelo fato de ela também
pouco, as verdades que ele pregava. poder contar com doutos defensores,
Logo comecei a notar que estas se po­ que refutavam as objeções dos seus
diam defender. adversários com eloquência e lógica.
Já não julgava temerárias as afirma­ Outrossim, não me parecia condenável
ções da fé católica, que eu supunha o partido que eu abraçara, pois eram
104 SANTO AGOSTINHO

iguais as armas de defesa. Deste modo dos filósofos tiveram opiniões muito
a fé católica não me parecia vencida, mais prováveis.
mas também ainda se me não afigu­ Assim, duvidando de tudo, à manei­
rava vencedora. ra dos Acadêmicos — como os julga a
25. Apliquei então ,as forças do opinião mais seguida —, e flutuando
espírito, para ver se dalgum modo entre todas as doutrinas, determinei
abandonar os maniqueístas, parecen­
podia com argumentos decisivos con­ do-me que não devia, nesta crise de dú­
vencer os maniqueístas da falsidade. vida, permanecer naquela seita à qual
Se a minha inteligência pudesse conce­ já antepunha alguns filósofos. Porém
ber uma substância espiritual, imedia­ recusava-me terminantemente a con­
tamente se apagariam e seriam arran­ fiar a cura da enfermidade de minha
cadas da minha alma todas aquelas alma a esses filósofos que desconhe­
invenções. Mas não podia. Contudo, ciam o nome salutar de Cristo.
quanto mais meditava, refletindo e Por isso, resolvi fazer-me catecú-
comparando as teorias acerca do meno na Igreja católica, à qual meus
mundo material e de toda a natureza pais me tinham inclinado, até vir algu­
acessível aos sentidos do corpo, mais e ma certeza a elucidar-me no caminho a
mais me capacitava de que a maioria seguir.
LIVRO VI

ENTRE AMIGOS

I — Aproximação do ca­
tolicismo (1-6).
II — Com os amigos: Alí-
pio e Nebrício (7-10).
III — Miragens terrenas (11-
161
1
Ariior de mãe

1. “Ó esperança minha desde a vesse, começasse a falar e o entregás­


mocidade1 93”, onde estáveis, e para seis à mãe1 9 4 !
onde Vos apartastes? Não fostes Vós Não foi, portanto, com imoderado
quem- me criou, quem me distinguiu júbilo que seu coração estremeceu, ao
dos animais da terra e me fez mais ouvir que em grande parte me tinha
sábio do que as aves do céu? E, contu­ convertido, graça que ela todos os dias
do, caminhava por trevas e resvala- Vos pedia com lágrimas. Ainda não
douros e procurava-Vos fora de mim, havia alcançado a verdade, mas já me
sem descobrir o Deus do meu coração. tinha arrancado do erro. Tendo a cer­
Tinha chegado à profundeza do mar. teza de que Vós, que lhe prometestes a
Desconfiava e desesperava de encon­ graça total, me darieis o que faltava,
trar a verdade. respondeu-me com grande calma e
Minha mãe, forte na piedade, já
com o coração cheio de confianças que
tinha vindo ao meu encontro, seguin­
esperava em Cristo que, antes de partir
do-me por terra e por mar, com a segu­
desta vida, me havia de ver fiel católi­
rança posta em Vós, no meio de todos
co. Foi isso o que me disse. Mas, dian­
os perigos. Era ela que, nos riscos dos
te de Vós, ó fonte de misericórdias,
mares, incutia coragem aos próprios
aumentava cada vez mais as súplicas e
marinheiros que costumam animar os
lágrimas, para que apressásseis o
inexperientes navegadores do abismo,
vosso auxílio e iluminásseis as minhas
quando se perturbam: prometia-lhes a
trevas195. Por isso corria com mais
chegada a salvamento, porque Vós, em
diligência à igreja, ficando suspensa
visão, Iho havíeis prometido.
Encontrou-me em grave perigo, na dos lábios de Ambrósio como “duma
desesperação de buscar a verdade; fonte de água que jorra para a vida
mas, enfim, descobrindo-lhe que já não eterna 19 6”. Ela amava este homem
era maniqueísta, e que também ainda como um anjo de Deus, porque sabia
não era católico, não saltou de alegria, que fora ele quem me tinha levado a
como quem ouve qualquer nova impre­ flutuar nesta dúvida. Antevia, com
vista, apesar de já estar sossegada por absoluta certeza, que eu ia passar da
e'u abandonar parte da minha miséria, doença para a saúde, depois de sofrer
que a fazia chorar por mim como por de permeio um perigo mais grave, o
um morto, que havíeis de ressuscitar. dessa dúvida, que era o paroxismo da
Minha mãe oferecia-me a Vós, no enfermidade, que os médicos chamam
esquife do pensamento, para que dis­ estado crítico.
sésseis a este filho de viúva: “jovem, eu 1 9 4 Alude o Autor ao episódio da ressurreição do
te digo, levanta-te”, e para que ele revi­ filho da viúva de Naim. Lc 7, 14. (N. do T.)
195 Sll, 11; 17,29.
193 5/70,5. 196 Jó 4, 14.
110 SANTO AGOSTINHO

. 2
A obediência de Mônica

2. Assim, trazendo papas, pão e ainda aos que a faziam com sobrie­
vinho puro, como em África costu­ dade, para que não se oferecesse oca­
mava fazer, levando-os para junto das sião aos ébrios de se embriagarem e
sepulturas dos santos, foi impedida porque tais espécies de “paren-
pelo ostiário1 9 7. tais199” eram muito semelhantes à
Apenas soube que o bispo1 98 tinha superstição dos pagãos, de muito boa
proibido tal costume, tão piedosa e vontade se absteve dela. Em vez de um
submissamente se conformou, que me cabaz cheio de frutos terrestres, apren­
admirei de que ela começasse antes a deu a levar aos túmulos dos mártires
reprovar o seu hábito e não a discutir um coração cheio de puríssimos dese­
semelhante proibição. É que o seu espí­ jos. Dava aos necessitados tudo o que
rito não estava perturbado pela em­ podia. Assim, celebrava ali a comu­
briaguez, nem o amor do vinho a inci­ nhão com o Corpo do Senhor, pois, à
tava ao ódio da verdade, como a imitação da sua Paixão, foram imola­
muitos homens e mulheres que, ante dos e coroados os mártires.
um cântico de sobriedade, experi­ Mas parece-me, Senhor Deus meu
mentam a mesma náusea que os ébrios — e assim o vê o meu coração na
diante duma bebida aguada. Mas tra­ vossa presença —, que talvez minha
zendo o cabaz com as iguarias usuais mãe não teria cedido ao corte desse
para comer e distribuir, não bebia mais costume se outro, a quem não respei­
que um pequeno copo de vinho, tempe­ tasse como a Ambrósio, Iho proibisse.
rado segundo o seu paladar bastante De fato, ela tinha-lhe muito amor por
sóbrio, para em nada desdizer da sua me ter salvado. E Ambrósio estimava-
dignidade. E, se havia muitas sepultu­ a pela solicitude tão religiosa com que
ras de mortos a honrar daquele modo, praticava fervorosamente as boas
levava sempre o mesmo copo, usando- obras e frequentava a igreja. Por isso,
o em toda parte, de tal maneira que muitas vezes, ao ver-me, irrompia em
não só já estava muito aguado, mas até louvores, felicitando-me por ter tal
bastante quente, e distribuindo-o em mãe.
pequenos tragos por todos os seus que Não imaginava ele o filho que ela
se achavam presentes, porque buscava tinha em mim: -—- um homem que
a piedade e não o prazer. duvidava de tudo aquilo e julgava
Todavia, apenas soube que aquele impossível encontrar o caminho da
ilustre pregador e bispo tão amante da vida!
piedade proibira semelhante prática, 199 Festa fúnebre pagã que, entre os romanos1, se
celebrava cada ano, de 13 a 21 de fevereiro,'em
1 9 7 Porteiro do templo e do cemitério. (N. do T.) honra dos mortos da mesma família, sobretudo dos
1 9 8 Santo Ambrósio. (N. do T.) pais. (N. do T.)
CONFISSÕES VI 111

3
O trabalho de Ambrósio

3. Eu ainda não gemia por Vós, ao a sua inteligência, não se queria ocu­
rezar, para que me acudisseis, mas o par de mais nada. Lia em silêncio, para
meu espírito estava inclinado a procu- se precaver, talvez, contra a eventuali­
rar-Vos, e inquieto por discutir. dade de lhe ser necessário explicar a
Ao ver o próprio Ambrósio honrado qualquer discípulo, suspenso e atento,
com tantos poderes, tinha-o na conta alguma passagem que se oferecesse
de homem feliz, segundo o mundo. Só mais obscura no livro que lia. Vinha
me parecia dura a sua vida de celibato. assim a gastar mais tempo neste traba­
Não aprendera a julgar, nem experi­ lho e a ler menos tratados do que dese­
mentara ainda a esperança que o ani­ jaria. Ainda que a razão mais provável
mava, nas lutas travadas contra as ten­ de ler em silêncio poderia ser para con­
tações do seu alto cargo. Não tinha eu servar a voz, que facilmente lhe enrou-
experiência da consolação nas adversi- quecia. Mas, fosse qual fosse a inten­
dades e do paladar íntimo do 'coração ção com que o fazia, só podia ser boa,
com que ele saborosamente ruminava como feita por tal homem.
o pão dos vossos gozos. Por seu turno, 4. O certo é que nenhum ensejo se
também ele não conhecia as minhas me oferecia de indagar o que desejava
agitações nem a cova onde eu perigava saber de tão santo oráculo vosso, qual
cair, pois não lhe podia perguntar, era o seu peito, senão quando lhe ouvia
como desejava, o que queria. As multi­ algumas breves palavras. Mas aquelas
dões dos homens de negócios, a quem minhas ânsias devorantes precisavam
ele acudia nas dificuldades, impe­ de encontrá-lo muito desocupado, para
diam-me de o ouvir e de lhe falar. No com ele se abrirem largamente. Jamais
pouquíssimo tempo em que não estava assim o achavam. É certo que todos os
com eles, refazia o corpo com o ali­ domingos o ouvia “expor fielmente ao
mento necessário, ou o espírito com a povo a palavra da verdade200”, con-
leitura. vencendo-me cada vez mais de que se
Mas, quando lia, os olhos divaga­ podiam desatar todos os nós das calú­
vam pelas páginas e o coração penetra- nias sagazes que teciam contra os li­
va-lhes o sentido, enquanto a voz e a vros divinos aqueles que me engana­
língua descansavam. Nas muitas vezes vam.
em que me achei presente — porque a
ninguém era proibida a entrada, nem Logo soube também que esta verda­
havia o costume de lhe anunciarem de: “o homem foi criado por Vós à
quem vinha —, sempre o via ler em vossa imagem201”, não era interpre­
silêncio e nunca doutro modo. tada pelos vossos filhos espirituais —
Assentava-me e permanecia em que pela graça regenerastes na Santa
longo silêncio — quem é que ousaria Mãe Igreja — de modo a acreditarem
interrompê-lo no seu trabalho tão apli­ e Vos julgarem encerrado na forma de
cado? —, afastando-me finalmente. corpo humano. Eu, que nem sequer
Imaginava que, nesse curto espaço de levemente ou por enigma suspeitava do
tempo, em que, livre do bulício dos 200 2Tim2, 15.,
cuidados alheios, se entregava a aliviar 201 Gên 1, 26.
112 SANTO AGOSTINHO

que era substância espiritual, contudo, alto e tão perto de nós, tão escondido e
alegrei-me e envergonhei-me de ter tão presente, que não possuís uns
ladrado, durante tantcrs anos, não con­ membros maiores e outros menores,
tra a fé católica, mas contra ficções mâs estais todo em toda parte, não sois
tecidas de pensamentos corruptos. espaço nem sois certamente esta forma
Tinha sido temerário e ímpio, preci­ corpórea. Vós criastes o homem à
samente por haver caluniado e falado vossa imagem, e contudo ele, desde a
de verdades que deveria ter procurado cabeça aos pés, está contido no espa­
conhecer. Vós, porém, que viveis tão ço !

4
A letra e o espírito

5. Se não compreendia, portanto, que, apesar de sumo e amplo, seria,


como é que o homem poderia ser ima­ contudo, limitado.
gem vossa, a minha obrigação era 6. Alegrava-me também de ver que
bater à porta e perguntar-Vos como se já me não propunham a leitura dos
deveria crer, e não responder com antigos escritos da Lei e dos Profetas,
insultos, como se tal crença fosse com a mesma panorâmica em que,
como eu supunha. tempos antes, me pareciam absurdas
O desejo de saber o que havia de tais doutrinas, quando argüía os vos­
aceitar como verdadeiro roía tanto sos santos, na suposição de que os
mais fortemente o meu interior quanto interpretavam como eu julgava, quan­
mais me envergonhava de ter sido ilu­ do na verdade os não interpretavam
dido e enganado durante tanto tempo assim. Cheio de gozo, ouvia muitas
com a promessa da certeza, e de ter, vezes a Ambrósio dizer nos sermões ao
com erro e entusiasmo pueril, pairado povo, como que a recomendar, diligen­
tanto de inúmeras coisas incertas, temente, esta verdade: “A letra mata e
como se fossem verdadeiras. Depois vi
a razão por que eram falsas. O certo é o espírito vivifica202”. Removido
assim o místico véu, desvendou-me
que, sendo elas assim, considerei-as
espiritualmente passagens que, à letra,
outrora como irrefutáveis, quando em
cegos debates acusava a vossa Igreja pareciam ensinar o erro. Ele nada dizia
que me desagradasse, embora tivesse
Católica. Embora não estivesse ainda
convencido de que ela ensinasse a ver­ afirmações que eu ainda então igno­
dade, sabia, contudo, ao certo que não rava se eram ou não verdadeiras203.
ensinava aquilo de que a acusava. Abstinha o meu coração de qual­
Assim me convertia, ó meu Deus, quer afirmativa, com medo de cair no
confundindo-me e alegrando-me por a precipício. Mas esta suspensão mata­
única Igreja verdadeira — corpo do va-me ainda mais, porque desejjava
vosso Filho único, onde, em crianci­ estar tão certo do que não via, como de
nha, me ensinaram o nome de Cristo sete mais três serem dez. Não erá eu
— não gostar de bagatelas infantis. 202 2 Cor 3, 6.
Rejubilava por não existir entre a sua 203 Santo Ambrósio recorria muitas vezes à exege­
doutrina tão sã o erro de Vos circuns­ se alegórica para interpretar a Sagrada Escritura e
para responder às dificuldades. Estava então em
crever, ó Criador de tudo, sob a figura moda interpretar assim a Bíblia, em prejuízo do sen­
dos membros humanos, a um espaço, tido real. (N. do T.)
CONFISSÕES VI 113

tão louco que imaginasse poder alcan­ Costuma suceder ao doente que con­
çar esta evidência. Mas, como isso, sultou um médico desprestigiado ter
desejava entender todas as demais coi­ depois receio dum médico bom. Assim
sas: as .corpóreas que não tinha pre­ acontecia à saúde da minha alma, que
sente aos sentidos, e as espirituais, que não podia curar-se, senão crendo. Por­
só por meio de formas corpóreas pode­ que temia crer o que era falso, recu­
ría conceber. sava deixar-se curar, resistindo às vos­
Se acreditasse, poderia ter obtido a sas mãos, ó Divino Médico, que
cura. Assim o olhar, já mais purifi­ fabricastes o remédio da fé e o derra­
cado, da minha inteligência, dirigir-se- mastes em todas as enfermidades do
ia, de algum modo, para a vossa verda­ mundo, dando-lhe, a ela, tão grande
de sempre constante e indefectível. autoridade!

5
O valor da Bíblia
7. Entretanto, preferindo a doutrina eram dignos de censura os que acredi­
católica, já sentia, então, que era mais tavam nos vossos Livros20 4, reconhe­
razoável e menos enganoso sermos cidos com tanta autoridade em quase
obrigados a crer o que não demons­ todos os povos. Censuráveis eram os
trava, quer houvesse prova, mesmo que não criam. Por isso não lhes devia .
que esta não fosse para o alcance de dar ouvidos, se por acaso me disses­
qualquer pessoa, quer a não houvesse. sem: “Como sabes que tais livros
Seria isso mais sensato do que zomba­ foram entregues ao gênero humano
rem da crença os maniqueístas, apoia­ pelo Espírito do único Deus verdadeiro
dos em temerária promessa de ciência, e infalível?” Ora, era isso precisamente
para depois nos mandarem acreditar o que havia de crer, porque nenhum
em inúmeras fábulas tão absurdas que ataque das inumeráveis controvérsias e
as não podiam provar. calúnias que lera em filósofos entre si
Em seguida, ó Senhor, tocastes e desavindos me pôde arrancar a fé. Por
dispusestes, a pouco e pouco, a minha isso nunca deixei de acreditar na vossa
alma, ao considerar os muitos fatos em existência, apesar de ignorar o que
que acreditava sem os ver nem presen­ éreis e desconhecer que o governo das
ciar na sua realização. Tais eram os coisas humanas Vos pertence.
inúmeros acontecimentos da história 8. Acreditava nisto, é verdade; mas
dos povos, a infinidade de notícias de umas vezes com mais firmeza, outras
lugares e cidades que não visitara, com mais frouxidão. Porém, sempre
muitos conhecimentos recebidos dos acreditei que existí eis e cuidáveis de
amigos, dos médicos, de tantos e tan­ nós, não obstante ignorar o que devia
tos homens, e de outras muitas coisas pensar da vossa substância, ou que
em que temos de crer, sob pena de caminho nos levaria ou reconduziría a
nada podermos realizar nesta vida.
Vós.
Enfim, com que fé inflexível acredi­
tava serem meus os pais de que nasci! E assim, apesar de estarmos doentes
E podê-lo-ia saber, se não acreditasse para alcançár a verdade com a trans­
no que ouvia? Então, ao considerar parência da razão e por isso nos ser
tudo isso, convencestes-me de que não 20 4 2 Cor 3, 6.
114 SANTO AGOSTINHO

necessária a autoridade dos Livros reservava a dignidade dos seus misté­


Santos, já principiara, contudo, a crer rios para uma percepção mais profun­
que de modo nenhum concederieis da. Com palavras claríssimas e em es­
autoridade tão prestigiada à Escritura tilo simplicíssimo, dá-se a todos e
em toda a terra, se por meio dela não estimula a vontade, dos que não são
quisésseis que acreditassem em Vós e levianos de coração, para a todos rece­
Vos procurassem. ber no seu seio comum e (só) transpor­
Portanto, já atribuía à elevação dos tar, pela porta estreita, poucas almas
mistérios as obscuridades que na Sa­ para Vós. Estas, porém, são muitas
grada Escritura me costumavam im­ mais do que as que levaria, se ela não
pressionar, conquanto tivesse ouvido brilhasse no elevado píncaro da autori­
muitas explicações verossímeis a esse dade e não atraísse as multidões ao re­
respeito. A veracidade bíblica parecia- gaço da santa humildade.
me tanto mais venerável e digna de fé Pensava nisto e assistíeis-me; suspi­
sacrossanta quanto era claro que, pos­ rava e ouvíeis-me; flutuava e govemá-
suindo a Escritura a qualidade de ser veis-me; seguia pela estrada larga do
facilmente lida por todos os homens, mundo e não me desamparáveis.

6
Miséria da ambição ! — O encontro do mendigo

9. Eu a aspirar às honras, às rique­ cuidados e ardia na febre de pensa­


zas, ao casamento, e Vós a rirdes-Vos mentos corrompidos, quando, ao pas­
de mim! Sofria nestas ambições difi­ sar por um bairro de Milão, reparei
culdades bem amargas. Vós éreis-me num pobre mendigo, já ébrio, julgo eu,
tanto mais propício quanto menos mas humorístico e alegre. Gemi e falei,
consentíeis que me fosse agradável aos amigos que me acompanhavam,
tudo o que não éreis Vós. das muitas angústias provenientes das
Vede o meu coração, ó Vós, Senhor, nossas loucuras. Com todos os esfor­
que quisestes que recordasse estas ver­ ços — quais -eram os que então me
dades e Vo-las confessasse. Agora preocupavam, carregado, sob o agui­
anda unida a Vós esta alma que arran­ lhão das paixões, com o peso da minha
castes do visco tenaz da morte. desgraça, que aumentava ao arrastá-lo
Como era miserável! Picáveis a —, só queríamos chegar à alegria
parte mais sensível da ferida, para que, segura, aonde já tinha chegado, pri­
• deixando tudo, voltasse para Vós, que meiro que nós, aquele mendigo, e
estais acima de todas as coisas. Sem aonde nunca, talvez, chegaríamos. Di­
Vós nada existiría. Pungíeis a ferida rigia-me para aquilo mesmo que ele já
para que eu me convertesse e ela curas­ alcançara com poucas moedas pedidas
se. Coipo era miserável e como proce­ de esmola, isto é, para a alegria da feli­
destes para que sentisse a minha des­ cidade temporal, dando voltas e ro­
graça, naquele dia em que me deios trabalhosos.
preparava para declamar louvores ao
imperador20 5 ! Neles mentiría muito, e 20 5 Valentiniano era, nesta data (l.° de janeiro de
os que o sabiam apoiavam o mentiro­ 385), muito novo ainda. Nada tinha feito digno de
so ! figurar na história. A imperatriz Justina dominava-
o inteiramente. Este capítulo é um modelo de aná­
O meu coração agitava-se com estes lise psicológica. (N. do T.)
CONFISSÕES VI 115

Não possuía o ébrio, é certo, a ale­ Naquela que não está em Vós. Porque
gria verdadeira. Mas, com tais ambi­ aquela alegria não era verdadeira,
ções, eu buscava-a muito mais falsa­ assim como o não era a glória, esta ia
mente. Ele, com certeza, andava agitando cada vez mais o meu espírito.
alegre, e eu preocupado; ele vivia segu­ O ébrio curaria ainda naquela noite a
ro, e eu cheio de inquietações. Se sua embriaguez, e eu já me deitara e
alguém me perguntasse se preferia erguera com a minha e com ela me
andar alegre ou perturbado, responde­ havia de deitar e erguer. E reparai,
ría: “andar alegre”. Se, porém, denovó Senhor, por quantos dias ! -
me interrogasse se antes queria ser Importa saber a razão por que cada
como o ébrio ou como eu era, escolhe­ um se alegra. Conheço e vejo que a
ría viver acabrunhado por cuidados e alegria da esperança fiel dista infinita­
temores. Mas faria isso por maldade, mente daquela vaidade! Também entre
ou, talvez, com razão? É claro que me o ébrio e mim havia grande diferença.
não devia antepor a ele por ser mais Sem dúvida, ele era mais feliz, não só
culto, pois da ciência não- tirava ale­ porque transbordava de hilaridade —
gria, antes pelo contrário, procurava porém eu era devorado por ansiedades
com ela simplesmente agradar aos — mas porque ele adquirira o vinho
homens, não para os instruir, mas só desejando prosperidade aos seus ben­
para lhes ser agradável. Era por isso feitores, enquanto eu procurava a
que “quebráveis os meus ossos20 6” ostentação com a mentira.
com avara da vossa justiça. Disse, então, muita coisa neste senti­
do aos amigos, e muitas vezes, em
10. Afastem-se, pois, da minha casos semelhantes, examinava como
alma os que lhe bradam: “O que me corria a vida. Encontrava-me infe­
importa é que haja motivo para ale­ liz, afligia-me, multiplicava a mesma
gria”. Aquele mendigo folgava na dor. Se me sorria alguma ventura, sen­
embriaguez, tu ambicionavas a alegria tia náuseas em apanhá-la, porque ela
na glória. E em que glória, Senhor? voava no mesmo instante em que ia
20 6 5/41,11. agarrá-la.

7
A amizade de Alípio

11. Os que convivíamos em boa que eu. Fora meu aluno quando come­
amizade, lamentávamo-nos no meio cei a ensinar na nossa terra e depois
destas reflexões. Falava mais intima­ em Cartago. Estimava-me muito por
mente destes assuntos sobretudo com lhe parecer bom e sábio, e eu aprecia­
Alípio e Nebrídio2 0 7. va-o pela índole inclinada à virtude,
Alípio nascera no mesmo município que já brilhava em tenra idade208.
que eu. Seus pais eram da gente princi­ Porém, o abismo dos costumes cartagi­
pal da cidade e ele era mais novo do neses, onde fervem os espetáculos frí-
20 7 Nebrídio acompanhou a Agostinho pela Itália. 208 Alípio seria elevado a bispo de Tagaste, sua
Voltou à África, falecendo em 390. Converteu a terra natal, em 394-395, pouco antes de Santo
família ao cristianismo. Conservam-se cópias de Agostinho receber a dignidade episcopal. Notabili­
cartas suas escritas a Santo Agostinho no ano de zou-se na luta contra os hereges pelegianos e dona-
389. (N. do T.) tistas. (N. do T.)
116 SANTO AGOSTINHO

volos, engolfara-o na loucura dos cura. Mas Vós sabeis, ó meu Deus, que
jogos circenses. eu não pensava, então, em curar a Alí-
Quando se revolvia desgraçada- pio daquela peste. Todavia caiu em si,
mente nesse abismo, sendo eu ali pro­ e pensou que tenha dito aquilo por sua
fessor de retórica numa escola pública, causa. O que outro tomaria como mo­
ainda me não ouvia, como mestre, por tivo para me censurar, tomou-o ele
causa duma desavença que se-levan­ como causa para se censurar a si
tara entre mim e o pai. Descobrindo mesmo e para me estimar com mais
que amava o circo funestamente, an­ ardor.
gustiava-me dolorosamente, por me Já, outrora, dissêreis e escrevêreis
parecer que ia a perder, ou já perdera, em vossos Livros: “Repreende o sábio,
tão bela esperança. Mas eu não tinha e amar-te-á209”. Eu não o repreende­
nenhum poder conferido pela estima ría: mas Vós servis-Vos de todos, umas
da amizade, ou, ao menos, pelo direito vezes sabendo-o ele, outras não, segun­
de mestre, para o repreender e fazer do a ordem justa que conheceis. Fizes­
recuar, dando-lhe qualquer castigo. tes do meu coração e da minha língua
Julgava que compartilharia da mesma carvões ardentes210 com que queima­
idéia do pai a meu respeito. Mas não. rieis e curarieis esse espírito corrupto,
Pondo de parte, neste assunto, a vonta­ mas de tão prometedora esperança.
de paterna, começou a cumprimentar- Cale os vossos louvores quem não
me, vinha às minhas aulas, ouvia algu­ atenta na vossa misericórdia, por mim
ma coisa e partia. confessada desde a medula do meu ser.
12. Mas já me fugia da memória O caso é que, após estas palavras,
tratar com ele, para se não, perder um escapou-se dum fosso tão profundo,
talento tã.o precioso, na paixão cega e onde gostosamente se ia enterrando e
impetuosa de jogos futeis. Vós, porém, cegando com a ânsia de gozo, e remo­
ó Senhor, que presidis ao governo de çou a alma com a temperança corajo­
tudo o que criastes, não Vos esque­ sa, retirando-se de todas as baixezas
cestes do que havia de ser, entre os do circo, aonde nunca mais voltou.
vossos filhos, ministro dos sacramen­ Convenceu depois o pai relutante a que
tos. Para que Vos fosse atribuída aber­ me contratasse como mestre. Aquele,
tamente a sua emenda, Vós a reali­ cedendo, fez-lhe a vontade. Come­
zastes por meu intermédio, mas sem eu çando de novo Alípio a ouvir-me, foi
saber. comigo envolvido pela superstição,
Um dia, estando eu sentado no lugar amando nos maniqueístas a ostentação
do costume, com os alunos diante de de continência que julgava verdadeira
mim, chegou, saudou-me, sentoü-se, e e sincera. Esta era, porém, malvada e
prestou atenção ao assunto de que se sedutora, cativando as preciosas
tratava. Tinha em minhas mãos, por almas, ainda não experimentadas na
acaso, o texto da lição. Ora, ao expli­ estimativa da sublimidade do Bem, e
cá-lo, para compreenderem com mais facilmente enganadas pela aparência
agrado e clareza o que expunha, pare­ duma virtude, afinal, fingida e falsai
ceu-me oportuno juntar à comparação
dos jogos do circo uma crítica mordaz 209 Prov 9, 8.
aos que eram escravizados por tal lou­ 210 Ez 1, 13.
CONFISSÕES VI 117

Quem ama o perigo. . .

13. Sem, de modo nenhum, abando­ de toda a multidão sobressaltou-o


nar a carreira mundana que seus pais terrivelmente: vencido pela curiosidade
lhe pintaram mágica, partira, antes de e julgando-se preparado para despre­
mim, para Roma, a estudar direito. zar e dominar a cena, fosse qual fosse
Aqui deixou-se arrebatar incrivelmente abriu os olhos. Imediatamente foi feri­
pela excessiva avidez dos espetáculos do na alma por um golpe mais pro­
dos gladiadores211. fundo do que o que havia recebido no
Detestava ao princípio, por comple­ corpo o gladiador a quem desejou
to, tais divertimentos. Uma vez, alguns contemplar. Caiu mais miseravelmente
amigos e condiscípulos, ao voltarem do que aquele por cuja queda se tinha
dum jantar, encontraram-no por acaso levantado o clamor. Entrou-lhe este
no caminho e levaram-no com amigá­ pelos ouvidos e abriu-lhe os olhos, por
vel violência ao anfiteatro a assistir onde foi ferida e abatida a alma, até
aos jogos cruéis e funestos daquele dia. então mais audaz que corajosa e tanto
Ele recusava com veemência, e resistia, mais fraca quanto mais presumida de
dizendo: “Por arrastardes a esse lugar si mesma, em vez de confiar em Vós,
e lá colocardes o meu corpo, julgais como devia. Logo que viu o sangue,
que podereis fazer com que o espírito e bebeu simultaneamente a crueldade.
os olhos prestem atenção aos espetácu­ Não se retirou do espetáculo, antes se
los? Assistirei como ausente, saindo fixou nele. Sem o saber, sorvia o furor
assim triunfante de vós e mais dos popular, deleitava-se no combate cri­
espectáculos”. Ouvindo estas palavras, minoso, e inebriava-se no prazer san­
levaram-no consigo ao anfiteatro, sem grento. Já não era o mesmo que tinha
mais demora, com desejo, talvez, de vindo, mas um da turba a que se ajun-
observar se era capaz de cumprir a tara, um verdadeiro companheiro da­
promessa. queles por quem se deixara arrastar.
Apenas lá chegaram, ocuparam os Que mais direi? Presenciou, gritou,
lugares que puderam. Tudo fervia nas apaixonou-se e trouxe de lá um ardor
paixões mais selvagens. Ele, fechando tão louco que o inicitava a voltar não
as portas dos olhos, proibiu ao espírito só com os que o haviam arrastado,
cair em tais crueldades. Oxalá tivesse mas a ir à sua frente e arrastando os
também tapado os ouvidos ! Num inci­ outros.
dente da luta, um grande clamor saído Mas Vós o arrancastes deste cami­
21 ’ Os romanos tinham espetáculo de circo, em
nho com a vossa mão tão forte e
que os homens lutavam uns contra os outros; de misericordiosa, ensinando-lhe que
anfiteatro, em que combatiam homens contra feras; devia colocar toda a confiança em Vós
e de teatro, em que se representavam as histórias
dos deuses. Aqui trata-se de espetáculos de anfitea­ e não em si. Mas isso foi só muito
tro, em que havia quase sempre mortos. (N. do T.) tempo depois.
118 SANTO AGOSTINHO

9
Por linhas tortas. . . Alípio e um roubo

14. Retinha Alípio, contudo, na sua segurando a machada cujo barulho os


memória este fato, como remédio para tinha posto alerta. Acorrem, prendem-
o futuro. Lembro-me de outro caso que no e levam-no, gloriando-se, diante dos
lhe sucedeu quando andava em Carta; habitantes do Foro reunidos, de terem
go a estudar, sendo já meu discípulo. apanhado o ladrão em flagrante. Já
Estava no Foro, ao meio-dia, a pensar iam entregá-lo à justiça.
numa declamação que devia fazer 15. Mas a lição devia ficar por
como exercício, segundo o costume aqui, porque Vós, Senhor, socorrestes
dos estudantes, quando permitistes que imediatamente a inocência de quem
os guardas do Foro o viessem prender éreis única testemunha. Quando o con­
como ladrão. Parece-me que permi­ duziam à cadeia ou ao suplício, saiu-
tistes isso, ó meu Deus, só para que lhes ao encontro um arquiteto encarre­
aquele jovem, tão grande no futuro, gado da direção suprema dos edifícios
começasse já a aprender que, ao julgar públicos. Ficaram os guardas satis­
uma causa, o homem não deve conde­ feitos por encontrarem este magis­
nar a outro com facilidade e crueldade trado, que suspeitava serem eles os
temerária. autores dos roubos do Foro. Agora,
Foi o caso que, enquanto ele pas­ . poderia enfim reconhecer por quem
seava sozinho diante do tribunal com eram cometidos.
as tábuas e o estilete,, um jovem estu­ O arquiteto tinha visto várias vezes
dante, o verdadeiro ladrão, trazendo a Alípio em casa dum senador a quem
escondida uma machada, entrou, sem frequentemente visitava. Reconhecen­
ele notar, pelas grades que rodeiam a do-o, apertou-lhe a mão, afastou-o da
rua dos banqueiros, e começou a cor­ turbamulta e perguntou-lhe o motivo
tar o chumbo21 2. de tamanha desgraça. Ouvindo o que
Ouvindo o barulho das machada­ se tinha passado, mandou àquela mul­
das, os banqueiros que estavam em tidão tumultuosa, que ali estava amea­
cima começaram a gritar e mandaram çadora e fremente, que o seguisse. Che­
gente prender a quem encontrasse. garam à casa do jovem que praticara o
O ladrão, ao ouvir os gritos, esca­ roubo. Estava à porta um escravo, tão
pou-se e deixou a machada, porque novo ainda, que, sem medo do senhor,
temia ser apanhado com ela na mão. podia facilmente revelar tudo. Este
Alípio, que o não tinha visto entrar, escravo tinha acompanhado o jovem
sentiu-o sair e fugir apressadamente. ao Foro. Alípio reconheceu-o e decla-
rou-o ao arquiteto. Este mostrou-lhe a
Desejando saber o motivo, entrou no machada, perguntando-lhe de quem
terraço. Ao ver a machada, pegou nela,
e examinava-a admirado quando che­ era. “É nossa”, respondeu imediata­
garam os guardas. Encontram-no só, mente o escravo. Interrogado, manifes­
tou o resto.
212 Os romanos escreviam em tábuas enceradas. Deste modo, o processo foi transfe­
Alípio trazia tábuas e estiletes para escrever. (N. do
T.) rido para esta casa, ficando confun­
CONFISSÕES VI 119

dida a multidão, que já começava a causas na vossa Igreja saiu assim expe­
triunfar de Alípio. O futuro dispen- rimentado e instruído213.
sador da vossa palavra e juiz de tantas 213 Alípio foi mais tarde bispo deTagastes.(N.doT-)

10
Dois amigos

16. Encontrara eu a Alípio em O amor das letras em Alípio era o


Roma, onde se me ligou por um estrei­ único bem que estava a ponto de o ten­
tíssimo laço de amizade, e comigo par­ tar. Poderia com os lucros de pretor
tiu para Milão, para me não abando­ mandar transcrever códices. Porém,
nar e para exercer o direito, que sempre que consultava a justiça, deli­
aprendera mais por vontade dos pais berava pelo melhor, persuadido de que
que pela sua. Já por três vezes fora a integridade que lhe proibia esta ação
assessor e sempre com admirável de­ éra muito melhor que o poder que lha
sinteresse, causando admiração em permitia. Pequeno fato este, mas
todos os que antepunham o dinheiro à l£quem é fiel no pouco, também o é no
inocência. muito”; e de modo nenhum são vãs
O seu caráter foi posto à prova não àquelas palavras que saíram da boca
só pelo atrativo do prazer, mas tam­ ia vossa verdade: “Se, pois, não fordes
bém pelo aguilhão do medo. No tempo fiéis nas riquezas injustas, quem vos
em que servia, em Roma, de assessor ponfiará as verdadeiras? E se não for­
ao tesoureiro geral da Itália, havia um jes fiéis nas alheias, quem vos dará o
senador poderosíssimo, a quem esta­ jue é vosso21 4?”
vam sujeitos muitos clientes, uns por j Tal era, então, este meu amigo que
benefícios, outros por temor. Segundo me amava entranhadamente e que co-
costumam os da sua poderosa catego­ imigo estava para resolver o teor de
ria, quis que lhe fosse permitido não izida que devíamos seguir.
sei bem o quê, proibido pelas leis. Alí­ h 17. Quanto a Nebrídio, este aban­
pio opôs-se. Prometeu-lhe um presente: donou a terra natal vizinha de Cartago
troçou dele. Recorreu o senador às ê até deixou essa cidade, onde era
ameaças. Calcou-as aos pés, com geral ijnuito conhecido. Deixou as ricas
admiração de todos os que viam ânimo propriedades do pai, a casa e a própria
tão pouco comum e que não desejava |mãe, que o não quis seguir, e veio para
como amigo nem temia como inimigo "Milão, só pelo motivo único de convi­
um homem tão poderoso, célebre pela ver comigo no estudo aturadíssimo da
grande fama de possuir imensos meios Verdade e da Sabedoria. Amante in­
de beneficiar ou prejudicar. vestigador da vida feliz e acérrimo
O próprio juiz, de quem Alípio era indagador das questões mais difíceis,
conselheiro, apesar de também se opor suspirava e flutuava a par de mim.
às pretensões do senador, não lhas Eram, pois, três as bocas que tinham
recusava abertamente, e, descarre­ fome e respiravam dumas para as ou­
gando toda a responsabilidade sobre tras a sua pobreza, esperando que lhes
Alípio, afirmava que só este Iho não “désseis alimento no tempo oportu­
permitia, porque — e era verdade —, no21 5”. Se desejávamos vislumbrar o
se acedesse, Alípio demitir-se-ia ime­ 21 4 Lc 16, 10-12.
diatamente. 21 5 Sl 144, 15.
120 SANTO AGOSTINHO

motivo por que sofríamos, assalta­ sofrimento?” Repetíamos frequente­


vam-nos as trevas com todas as amar­ mente estas palavras. Mas, apesar de
guras que, por misericórdia vossa, as repetirmos, não deixávamos este
acompanhavam a nossa vida munda­ teor de vida, porque não víamos
na. Afastávamo-nos, então, a gemer, e nenhuma certeza a que nos pudés­
dizíamos: “Quanto tempo durará este semos segurar, se a abandonássemos.

11
Luta da alma em busca da verdade

18. Admirava-me muito, ao recor­ supúnhamos e incriminávamos com


dar diligentemente quão longo fora o leviandade.
período de tempo decorrido após os Os instruídos nos dogmas olham
dezenove anos, idade em que começara como um crime supor a Deus delimi­
a arder no desejo da Sabedoria, pro- tado pela figura dum corpo humano.
pondo-me, depois de a obter, abando­ E duvidamos ainda bater, para que
nar todas as esperanças frívolas e nos sejam abertas as restantes verda­
todas as loucuras enganosas das vãs des? Os discípulos ocupam-me as
paixões. Porém, chegado já aos trinta horas da manhã. E que faço das
anos, continuava ainda preso ao outras? Por que as não consagro a este
mesmo lodo de gozar dos bens presen­ trabalho? Mas, então, quando hei de
tes que fugiam e me dissipavam. visitar os amigos mais poderosos, de
Entretanto, exclamava: “Amanhã cujo favor tanto necessito? Quando hei
encontrá-la-ei; oh! a verdade' apare- de preparar as lições que os discípulos
cer-me-á com evidência e possuí-la-ei; me pagam? Quando hei de reparar as
Fausto virá explicar-me tudo”. Ó gran­ forças, descansando o espírito da fadi­
des homens da Academia! Nada se ga causada por tantos trabalhos?
pode conceber de certo para a conduta 19. “Pereça tudo isso e deixemos as
da vida? Não. Busquemos pois com coisas vãs e fúteis.” Entreguemo-nos
mais diligência, sem desesperar. Nos unicamente à busca da verdade. A vida
Livros Santos já não é absurdo o que é miserável e a hora da morte, incerta.
parecia absurdo, podendo ser interpre­ Se me surpreender de súbito, em que
tado dum modo diferente e mais acei­ estado sairei deste mundo e onde
tável. Fixarei os pés naquele degrau em aprenderei.o que nesta vida negligen­
que meus pais me colocaram quando ciei saber? Não terei antes de suportar
criança, até encontrar, finalmente, a os suplícios desta negligência? E se a
verdade manifesta. Mas onde a busca­ morte me amputar e exterminar todas
rei, e quando? A Ambrósio falta-lhe estas preocupações, tirando-me os sen­
tempo para me ouvir, e a mim para ler. tidos? E preciso, portanto, examinar
Além disso, onde encontrar esses li­ também este ponto.
vros? Donde e quando os poderei Mas longe de mim que tal suceda!
alcançar? E a quem hei de pedi-los? Não é supérfluo nem vão o estar por
Repartamos o tempo, distribuamos todo o mundo difundida a fé cristã, tão
algumas horas para a salvação da grandiosa e tão elevada! Nunca se te-
alma. Nasceu-nos uma grande espe­ riam criado, por poder divino, tantas e
rança: a fé católica não ensina o que tão grandes maravilhas para o nosso
CONFISSÕES VI 121

proveito, se, com a morte do corpo, se 20. Ao dizer isto, enquanto os ven­
consumasse também a vida da alma. tos alternavam e impeliam o meu cora­
Por que tardo, pois, em abandonar as ção para um e outro lado, o tempo
esperanças do mundo, para totalmente fugia e eu tardava em converter-me ao
me dedicar à busca de Deus e da vida Senhor. Adiava de dia para dia o viver
bem-aventurada? em Vós, sem, contudo, diferir o morrer
Mas espera! Os bens terrenos tam­ todos os dias em mim mesmo. Dese­
bém são agradáveis. Possuem não jando a vida feliz, temia buscá-la na
pequenas doçuras. Não devemos, por sua morada. Procurava-a fugindo-lhe !
isso, apartar deles, inconsiderada- Julgava que seria extremamente des­
mente, a nossa inclinação, pois seria graçado, se me privassem dos abraços
vergonhoso voltar de novo a eles. Olha duma esposa. Não pensava ainda no
quão pouco falta para alcançar um remédio da vossa misericórida, para
cargo honroso ! Que mais tenho a dese­ curar tal doença, porque nunca fizera a
jar? Tenho em abundância amigos experiência. Pensava que a castidade
poderosos. Sem necessidade de me era fruto das próprias forças, e persua-
apressar mais, podia jâ ser, ao menos, dia-me de que as não tinha. Sendo tão
presidente (dum tribunal), e casar-me néscio, não sabia que, como estava
com uma moça que possuísse alguma escrito, ninguém pode ser casto, se Vós
fortuna, para não sobrecarregar os lhe não concedeis forças. Sim, Vós
nossos gastos. Seria este o limite do dar-mas-íeis se com gemidos internos
meu desejo. Muitos homens. impor­ ferisse os vossos ouvidos, e com fé
tantes e dignos de imitação entrega- firme descarregasse em Vós todos os
ram-se, apesar de casados, ao estudo meus cuidados.
da Sabedoria.

12
Matrimônio e castidade

21. Alípio opunha-se bastante ao de alma. Acorrentado à enfermidade


meu casamento, afirmando que, se o da carne, arrastava com mortífero pra­
fizesse, jamais poderiamos viver jun­ zer a minha cadeia, temendo que se
tos, com segura tranquilidade, no amor quebrasse, e afastava as palavras deste
da sabedoria, como já de há muito bom conselheiro, como um doente que,
tempo desejávamos. Ele era de tal ao tocarem-lhe na ferida, repele a mão
modo castíssimo que causava admira­ que lha desliga.
ção, porque, ao entrar na juventude, Além disso, a serpente21 6 falava
experimentara o prazer carnal, mas por meu intermédio ao próprio Alípio,
não ficara preso a ele. Tinha-se arre­ para o enlaçar, estendendo no seu
pendido, desprezara-o e depois vivia já caminho, por meio da minha língua,
em perfeita continência. suaves armadilhas, a fim de que seus
Resistia-lhe eu, porém, argumen­ pés inocentes e livres nelas ficassem
tando com os exemplos dos que, embaraçados.
desposados, ' cultivaram a ciência, 22. Admirava-se de que eu, a quem
bem-merecendo de' Deus e guardando tanto estimava, estivesse de tal modo
fidelidade e amor aos seus amigos.
Mas estava bem longe desta grandeza 21 6 Gên 3, 14.
122 SANTO AGOSTINHO

preso ao visco da volúpia, a ponto de Da admiração passava ao desejo da


afirmar, sempre que disputávamos experiência, para depois descer à reali­
sobre tal assunto, ser-me de todo zação. Ia assim despenhar-se talvez na
impossível levar vida casta. Ao vê-lo mesma escravidão que o fazia espan­
assim admirado, defendia-me, dizendo tar, pois queria fazer um pacto com a
que havia grande distância entre o pra­ morte217, e quem ama o perigo218
zer que ele experimentara rápida e nele cairá.
furtivamente — prazer de que dificil­ Só superficialmente nos interessava,
mente se recordaria, e por isso sem tanto a ele como a mim, a beleza con­
custo nenhum com facilidade despre­ jugal que há nos deveres do matri­
zava — e os meus deleites costuma­ mônio e na educação dos filhos. O que
dos, aos quais, se se ajuntasse o título em grande parte e com violência me
honesto do matrimônio, já não haveria prendia e torturava era o hábito de sa­
motivo para se admirar de que eu não ciar a insaciável concupiscência. Pelo
pudesse desprezar tal teor de vida. contrário, a ele era a admiração que o
Depois disso, começou Alípio tam­ arrastava ao cativeiro.
bém a desejar o matrimônio, vencido
não pela paixão do prazer, mas da Tal era o nosso estado até o momen­
curiosidade. Dizia desejar saber que to em que Vós, ó Altíssimo, que não
felicidade era essa, sem a qual a minha abandonais o nosso barro, viestes
vida, que tanto lhe agradava, me não compassivamente, dé modo admirável
parecia vida, mas sofrimento. O seu e oculto, em socorro dos infelizes.
espírito, liberto dessa cadeia, ficava 21 7 Is 28, 18; Sab 1, 16.
estupefato perante a minha escravidão. 218 Eclo 3,27.

13
O pedido de casamento

23. Entretanto, instavam sem des­ peto do espírito humano arrasta, quan­
canso para que me casasse. Já tinha do anda preocupado. Contava-me isso,
feito o pedido de casamento e recebido não com aquela confiança com que
boas promessas, ajudado sobretudo costumava, quando realmente Vos ma-
por minha mãe, que o fazia com o fim nifestáveis, mas com desprezo, pois
de me ver regenerado, depois do matri­ afirmava que, por um palpite que não
mônio, na água salutar do batismo. sabia explicaFcom palavras, distinguia
Minha mãe alegrava-se de me ver cada entre as vossas revelações e os sonhos
vez mais apto para o r.eceber, notando da sua alma.
que na minha fé se realizavam os seus
votos e as vossas promessas. Apesar de tudo, instava-se pelo
Vós nunca lhe quisestes revelar, em casamento, e pediu-se a mão da jovem.
visão, nada do meu futuro casamento, Faltava-lhe, porém, quase dois anos
apesar de, a meu pedido e desejo seu, para chegar à idade núbil219. Mas,
Vo-lo pedir, todos os dias, com fortes como ela agradava, ia-se esperando.
clamores do coração. Ela via umas 219 A idade núbil, para as mulheres, em Roma e
imagens vãs e fantásticas, aonde o ím­ no Império, era a dos doze anos. (N. do T.)
CONFISSÕES VI 123

14
Projeto desfeito

24. Éramos muitos os amigos que Pareceu-nos bem que dois de nós,
trazíamos o espírito agitado. Falava­ cada ano, como administradores, tra­
mos com aborrecimento dos dissabo­ tassem de todo o necessário, ficando os
res tumultuosos da vida humana. Já outros em paz. Mas quando se come­
quase tínhamos resolvido viver sosse- çou a pensar se as mulheres que uns já
gadamente, retirados da multidão. Tí­ tinham e eu desejava ter o permitiríam,
nhamos projetado aquele sossego deste desfez-se em nossas mãos todo aquele
modo: se alguma coisa possuíssemos, projeto que tão belamente imagina­
juntá-la-íamos para uso comum, com­
binando formar de tudo um só patri­ mos. Arruinou-se e teve que se rejeitar.
mônio, de tal forma que, por uma ami­ Daqui enveredamos de novo para os
zade sincera, não houvesse um objeto suspiros e gemidos, seguindo pelos
deste, outro daquele, mas de tudo se “caminhos largos e trilhados do sécu­
fizesse uma só fortuna, sendo tudo de lo220”, porque “muitos eram os pensa­
cada um e tudo de todos. Parecia-nos mentos no nosso coração. Porém os
que se poderíam reunir na mesma vossos desígnios permanecem eterna­
sociedade cerca de dez homens. Entre mente221”. Por causa desses desígnios,
nós contavam-se alguns ricos, sobre­ ríeis-Vos das nossas resoluções, e
tudo Romaniano, meu conterrâneo e preparáveis as vossas, para “nos dar­
amigo íntimo desde tenra infância, a
quem, então, grandes cuidados de des o alimento no tempo oportuno,
negócios haviam arrastado à corte para abrirdes a vossa mão e, enfim,
imperial. Era ele o que mais instara para encherdes as nossas almas com a
por este projeto e o que tinha mais vossa bênção222”.
autoridade para o persuadir, porque as
220 Af/ 7, 13.
suas enormes riquezas eram muito 221 Prov 19, 21; Sl 23, 11.
superiores às dos outros. 222 Sl 144, 15, 16.

Cativo do prazer

25. Entretanto os meus pecados do-me o filho natural que dela tive­
multiplicavam-se. Sendo arrancada do ra223.
meu lado, como impedimento para o E eu, miserável, não imitei esta
matrimônio, aquela com quem parti­ mulher22 4 ! Impaciente da dilação —
lhava o leito, o meu coração, onde ela 223 Esta criança recebeu o nome de Adeodato.
Morrería na adolescência, em 388, depois de ter
estava presa, rasgou-se, feriu-se e es­ dado mostras de talento extraordinário. Nasceu em
corria sangue. Retirara-se ela para 372. (N. do T.)
22 4 Com ela vivera Agostinho durante quinze
África, fazendo-Vos voto de jamais anos. Parece ter sido pessoa de altas qualidades
conviver com outro homem e deixan­ intelectuais. (N. do T.)
124 SANTO AGOSTINHO

porque só depois de dois anos recebe­ perduraria até à vinda do reino matri­
ría a que pedira em casamento — e monial. Não sarara ainda aquela
porque não era amante do matrimônio, chaga, aberta pelo corte da primeira
mas escravo do prazer, procurei outra
mulher — mas não esposa — para mulher. Mas após a inflamação e após
assim manter e prolongar, intata ou a dor pungentíssima, a ferida gangre­
mais agravada, a doença da minha nava, doendo-me dum modo mais frio,
alma, patrocinada pelo mau hábito que mas mais desesperado.

16
Sob a asa de Deus

26. Louvor e glória a Vós, ó Fonte fruto da minha grande miséria. Assim
das Misericórdias! Eu a tomar-me imerso no vício e cego, não podia pen­
mais desgraçado, e Vós, cada vez mais sar na luz da Virtude e da Beleza, que
pertinho de mim! Sem eu saber, a os ólhos da carne não vêem, e só o ínti­
vossa mão direita, que me havia de mo da alma distingue.
arrancar da lama e lavar-me, estava Na minha miséria, nem sequer con­
mesmo junto de mim. Só o temor da siderava de que manancial brotava este
morte e do vosso futuro juízo, que, gosto de tratar deliciosamente destes
através das várias doutrinas, nunca se assuntos vergonhosos com os amigos.
retirou do meu peito, me convidava a Sem estes não poderia ser feliz, por
sair do abismo tão profundo dos praze­ maior que fosse a afluência de prazeres
res carnais. carnais, segundo o desejo de sensuali­
Disputava com Alípio e Nebrídio, dade que então possuía. Sim, amava
meus amigos, sobre o fim dos bons e estes amigos, mas com desinteresse.
dos maus, declarando que Epicuro, no Por sua vez, sentia que eles igualmente
meu conceito, teria recebido a palma, me amavam.
se eu não acreditasse que, depois da Ó caminhos tortuosos! Ai da alma
morte, continuava a vida da alma e audaciosa que se afastou de Vós, na
havia o juízo dos méritos, coisa que esperança de possuir algum bem me­
Epicuro negou2 2 5. lhor ! Quer se vire ou revire para trás,
Perguntava o motivo por que é que quer se volte para os lados ou para
não seríamos felizes, ou que mais diante, tudo lhe é duro.
buscaríamos, se fôssemos imortais e Só Vós sois o descanso. Só Vós nos
vivéssemos em perpétuo gozo corpo­ assistis e libertais de erros deploráveis,
ral, sem receio algum de o perder. metendo-nos no vosso Caminho, con­
Ainda ignorava que esta pergunta era solando-nos e dizendo: “Correi; eu
22 5 Este filósofo ensinou em Atenas, em 360 a.C.
guiar-vos-ei, conduzindo-vos até ao
Propunha-se dar a felicidade aos homens por meio fim, e aí vos hei de manter22 6”.
da apatia (ataraxia) e negando a existência duma
vida ultraterrena. (N. do T.) 22 6 Is 46, 4.
LIVRO VII

A CAMINHO DE DEUS

I — O problema de Deus e
o problema do mal.
A astrologia (1-8).
II — O neoplatonismo e San­
to Agostinho.
Solução ao problema do
mal (9-21).
1
Emancipando-se do falso conceito de Deus

1. A minha adolescência má e ne- volitavam à minha volta. Mas, apenas


fanda já tinha morrido. De caminho dispersa, eis que, num abrir e fechar de
para a juventude, quanto mais crescia olhos, ela, apinhando-se, de novo se
em anos, tanto mais vergonhoso me aproximava e irrompia contra as mi­
tomava com a minha vaidade, a ponto nhas pupilas, obscurecendo-as. E
de não poder imaginar outra subs­ assim, apesar de não Vos conceber sob
tância além da que os nossos olhos a forma de corpo humano, necessitava,
constantemente vêem. Desde que co­ contudo, de Vos imaginar como sendo
mecei a ouvir as lições da Sabedoria, alguma coisa corpórea situada no
não Vos supunha, ó meu Deus, sob a espaço, quer imanente ao mundo, quer
figura de corpo humano, pois sempre difundida por fora do mundo, através
fugi deste errado juízo, e me alegrava do infinito: Era este o ser incorruptível,
de encontrar esta verdadeira doutrina indeteriorável, imutável, que antepu­
na fé da nossa mãe espiritual, a vossa. nha ao que é corruptível, sujeito à dete­
Igreja Católicà: Mas não me ocorria rioração e à mudança. Tudo o que con­
outro modo de Vos conceber na imagi­ cebia como não ocupando espaço me
nação ! parecia um nada absoluto, e não um
Ora, sendo eu homem — e que vácuo, como sucedería se arrancás­
homem! —, esforçava-me por Vos semos um objeto dum lugar e este
imaginar o grande, o único verdadeiro ficasse vazio de qualquer corpo terres­
Deus. Com efeitò, acreditava, com tre, úmido, aéreo ou celeste22 7. Com
todas as fibras do coração, que éreis efeito, neste caso, um lugar vazio seria
incorruptível, inviolável e imutável. como que um nada espaçoso.
Porém, apesar de não saber donde e o 2. Assim “atoleimado de coração”,
modo como me vinha esta certeza, via sem conciência nítida de mim mesmo,
perfeitamente e estava certo de que considerava como um puro nada tudo
aquilo que se pode corromper é infe­ o que não se estendesse ou difundisse
rior ao incorruptível, e o que não se ou conglobasse ou dilatasse por um
pode deteriorar, sem hesitação o ante­ certo espaço, ou assumisse ou pudesse
punha ao deteriorável, e o imutável assumir qualquer destes estados. Quais
parecia-me melhor do que aquilo que é são as formas por onde meus olhos
suscetível de mudança. costumam passar, tais eram as ima­
O meu coração clamava com violên­ gens por onde meu espírito caminhava.
cia contra todos os meus fantasmas.
Com este único golpe, esforçava-me 22 7 Os antigos supunham que entravam quatro ele­
mentos na composição dos corpos: terra, água, ar e
por enxotar da vista do meu espírito a fogo. Não tirdiam ainda a noção dos corpos simples
turbamulta das imagens imundas que da química. (N. do T.)
130 SANTO AGOSTINHO

Eu não notava que este ato apreensivo Vós penetradas em todas as suas par­
de entendimento com que formava tes, grandes e pequenas, para recebe­
essas imagens não era da mesma natu­ rem a vossa presença, govemando-as
reza que estas. Com efeito, a atividade interiormente com vossa' oculta inspi­
intelectual, se não fosse alguma coisa ração e exteriormente dirigindo tudo o
de grande, não poderia formar ima­ que criastes.
gens. Assim conjeturava eu, pois não Vos
A Vós, ó Vida da minha vida, tam­ podia conceber doutra maneira. Tal
bém Vos imaginava como um Ser conjetura, porém, era falsa. Deste
imenso, penetrando por todos os lados modo, uma parte da terra que fosse
a massa do Universo e alastrando-Vos maior deveria também encerrar maior
fora dele, por toda parte, através das parte de Vós; e outra que fosse menor,
imensidades sem limites, de tal modo uma parte menor. Estando tudo assim
que a terra, o céu e todas as coisas Vos impregnado de Vós, o corpo do elefan­
continham e todas elas se acabavam te, pelo fato de ser maior e-ocupar mais
em Vós, sem, contudo, acabardes em espaço que o de um pássaro, teria
parte alguma. proporcionalmente mais de Vós que o
Mas assim como a massa do ar, corpo do pássaro. E, deste modo, parti­
deste ar que está por cima da tenra, não do em fragmentos, comunicarieis a
se opõe a que a luz do sol penetre por vossa presença às grandes e pequenas
ele, atravessando-o sem o rasgar nem partes do Universo, respectivamente
cortar, mas enchendo-o inteiramente, com grandes e exíguas porções de Vós
assim julgava que não só as substân­ mesmo. Não é, porém, assim. Mas
cias transparentes do céu, do ar e do ainda não tínheis iluminado as minhas
mar, mas também as da terra eram por trevas.

2
Argumento de Nebrídio contra os maniqueístas

3. Bastava-me, Senhor, para esma­ podia danificar, nenhum motivo have­


gar aqueles sedutores seduzidos, aque­ ría para que lutásseis e pelejásseis em
les faladores mudos — pois o vosso tais circunstâncias que uma parte de
Verbo não falava por meio deles —, Vós, um membro vosso ou um rebento
sim, bastava-me a objeção que já de há da vossa-própria substância se mistu­
muito tempo, em Cartago, lhes costu­ rava com forças inimigas e com natu­
mava propor Nebrídio, com que nos rezas que não criastes.
abalava a todos nós, que o ouvíamos: Ao contato destas, essa parte de Vós
Que poderia fazer contra Vós esta de tal modo se corrompería e danifica­
desprezível raça de trevas — de que os ria, que, caindo da felicidade para a
maniqueístas se costumam servir como miséria, necessitaria de socorro para se
de massa hostil para Vos atacar — se poder libertar e purificar! Ora, esse
não aceitásseis batalha contra ela? rebento de Vós mesmo era a nossa
Se alguém Vos respondesse que alma, que o vosso Verbo, livre, deve­
poderia ser nociva nalgum ponto, ria, com sua ajuda, arrancar do cati­
então seríeis violável e corruptível! Se, veiro, que o vosso Verbo imaculado
porém, dissesse que em nada Vos deveria remir da corrupção. Neste caso
CONFISSÕES VII 131

o Verbo seria corruptível, pois era for­ falsa, e logo, à primeira palavra, digna
mado duma só e mesma substância de abominação.
que a alma. Ora, se eles afirmam que -Bastava-me, portanto, só este racio­
tudo o que sois, isto é, a substância de cínio contra aqueles que a todo o custo
que Vos formais, é incorruptível, (se- deveria vomitar do meu peito oprimi­
gue-se que) todas aquelas suposições do. Com efeito, sentindo e falando
são falsas e abomináveis; se dizem, assim de Vós, não tinham por onde
pelo contrário, que o Verbo é corruptí­ sair, senão cometendo um horrível
vel, tal afirmação é, por si mesma, sacrilégio de coração e de língua.

3
A causa do mal

4. Mas, ó Senhor Nosso — ó Deus gulhava nele, e, sempre com reiterados


verdadeiro que criastes não só as nos­ esforços, me submergia sem cessar.
sas almas mas também os nossos cor­ Erguia-me para a vossa luz o fato de
pos, e não só nossas almas e corpos, eu saber tanto ao certo que tinha uma
mas ainda todos os seres e todas as vontade como sabia que tinha uma
coisas —, eu já então afirmava e cria vida. Por isso, quando queria ou não
firmemente que sois incontaminável, queria uma coisa, tinha á certeza abso­
alheio a toda alteração, e absoluta­ luta de que não era outro senão eu
mente imutável. quem queria ou não queria, experimen­
Todavia, não tinha uma idéia clara e tando cada vez mais que aí estava a
nítida da causa do mal. Porém, qual­ causa do meu pecado. Quanto ao que
quer que ela fosse, tinha assente para fazia contra a vontade, notava que isso
mim que de tal modo a havia de bus­ era antes padecer (o mal) do que prati­
car, que por ela não fosse constrangido cá-lo. Considerava isso não como uma
"ã^crer, como mutável, um Deus imutá­ falta, mas como uma punição, em que,
vel, pois^doutra maneira, cairia no mal reconhecendo a vossa justiça, era logo
cuja causa procurava. Por isso, busca­ forçado a confessar que justamente
va-a com segur ançaricertode que não
recebia o castigo.
era verdadeira a doutrina que-estes ho­
Mas de novo refletia: “Quem me
mens pregavam. Fugia deles com^a^
alma, porque, quando eu indagava a .criou? Não foi o meu Deus, que é bom,
origem do mal, via-os repletos de malí­ e é"também a mesma bondade? Donde
cia que os levava a crerem antes sujeita me veiõ>então, o querer eu o mal e não
ao mal a vossa substância do que a querer o bem?-Seria para que houvesse
deles ser suscetível de o cometer. motivo de eu justamente ser castigado?
5. Esforçava-me por entender (a Quem colocou em mim^quçm semeou
questão) — que ouvia declarar — em mim este viveiro de amarguras,
acerca de o livre arbítrio da vontade sendo eu inteira criação do meu Deüs'
ser a causa de praticarmos o mal, e o tão amoroso? Se foi o demônio quem
vosso reto juízo o motivo de o sofrer- me criou, donde é que veio ele? E se,
mos. Mas era incapaz de compreender por uma decisão de sua vontade per­
isso nitidamente. versa, se transformou de anjo bom em
Tentava arrancar do abismo a vista demônio, qual é a origem daquela von­
do meu espírito. Porém de novo mer­ tade má com que se mudou em diabo,
132 SANTO AGOSTINHO

tendo sido criado anjo perfeito por um sa228”, se se admite a tese de estardes
Criador tão bom?” Vós antes sujeito ao mal do que o
De novo me sentia oprimido e sufo­ homem ser considerado capaz de o
cado por estes pensamentos, mas de cometer.
modo algum arrastado àquele inferno
do erro “onde ninguém Vos confes­ 228 S16,6.

4
Deus é incorruptível
6. Assim me esforçava por encon­ É absolutamente certo que de modo
trar as outras verdades, do mesmo nenhum pode a corrupção alterar o
modo que já tinha descoberto ser me­ nosso Deus, por meio de qualquer von­
lhor o incorruptível que o corruptível. tade, de qualquer necessidade ou de
Por conseguinte, confessava que Vós, qualquer acontecimento imprevisto,
quem quer que fosseis, não estáveis porque Ele é o próprio Deus, porque
sujeito à corrupção. Jamais alma algu­ tudo o que deseja é bom e Ele próprio
ma pôde ou poderá conceber alguma é o mesmo Bem. Ora, estar sujeito à
coisa melhor do que Vós — sumo e corrupção não é um bem.
ótimo Bem. Não podeis ser obrigado, por força,
Sendo absolutamente certo e inegá­ seja ao que for, porque em Vós a von­
vel que o incorruptível se antepõe ao tade não é maior do que o poder.
corruptível — como aliás já admitia Porém, seria maior, se Vós mesmo fôs­
—,poderia eu, se não fosseis incorrup­ seis maior que Vós mesmo. Mas a von­
tível, ter atingido com o pensamento tade e o poder de Deus são o mesmo
algo mais perfeito que o meu Deus. Deus. Para Vós, que tudo conheceis,
Portanto, logo que vi que o incorrup­ existe acaso alguma coisa imprevista?
tível se deve preferir ao corruptível, Nenhuma natureza existe, senão^pom
imediatamente Vos deveria ter busca­ que a conhecestes. Para^que"proferi­
do, e, em seguida, deveria indagar mos nós tantas palayras"a fim de com­
donde vem o mal, isto é; a corrupção, a provar que^substancia de Deus não é
qual de modo algum pode afetar a corruptível, já que, se o fosse, não seria
vossa substância. Deu^

É Deus o autor do mal?


7. Buscava a origem do mal, mas espírito, todas as criaturas, tudo o que
buscaVma erroneamente. E, ainda nelas podemos ver, como a terra, o
mesmo nessa indagação, não enxer­ mar, o ar, as estrelas, as árvores e os
gava o mal que nela havia229. Obri­ animais sujeitos à morte, bem como
gava a passar, ante o olhar do, meu
aquilo que não vemos nela, como o fir­
229 Santo Agostinho queria ver o mal como se ele mamento do céu, todos os .anjos e
fosse alguma coisa de positivo. Não compreendia
que o mal é ausência de ser ou de perfeição. (N. do todos os espíritos celestes. Mas, como
se estes últimos fossem corpóreos, a

I
CONFISSÕES VII 133

minha imaginação colocou-os a uns ria em que existia algo de mau, e ao


nuns lugares, a outros noutros. dar-lhe a forma e ao ordená-la, ter dei­
Fiz da vossa criação uma única e xado nela alguma coisa que não trans­
imensa massa, diferenciada em diver­ formasse em bem? E isto por quê?
sas espécies de corpos: uns, corpos Não podia Ele convertê-la inteira­
verdadeiros; outros, espíritos que eu mente de modo a não permanecer nela
imaginava sob a figura de corpos. Eu a nada de mau, já que era Onipotente?
supus não com a sua própria grandeza, Enfim, por que quis fazer dela alguma
porque a não podia saber, mas com a coisa, e por que não preferiu antes
que me agradou, porém, limitada de reduzi-la totalmente ao nada, com a
todos os lados. A Vós, Senhor, infinito sua mesma Onipotência? Poderia
em todas as direções, imaginei-Vos a acaso ela existir contra a vontade divi­
rodeá-la e penetrá-la de todas as par­ na? Se a matéria é eterna, por que a
tes, como se fôsseis um único mar em deixou perdurar tanto no passado, por
toda parte e de todos os lados infinito um espaço indefinido de tempo, e por
na vossa imensidade, tendo dentro de que motivo se comprazeu em fazer
si uma esponja da grandeza que nos dela alguma coisa, só tanto tempo
aprouvesse, mas rodeada e inteira­ depois?
mente cheia dum mar imenso. “Se subitamente quis fazer alguma
Assim, a vossa criatura finita, supu­ coisa, por que a não reduziu ao nada,
nha-a eu cheia de Vós, que sois o infi­ sendo Onipotente, e não ficou só Ele,
nito. Dizia: “Eis Deus, e eis o que todo verdadeiro Bem, todo sumo Bem,
Deus criou! Deus é bom e assombroso todo Bem infinito? Se não convinha
e incomparavelmente preferível a tudo que Aquele que é bom permanecesse
isto. Ele é bom e, por conseguinte, estéril de obras boas, não poderia Ele
criou boas coisas. E eis como Ele as fazer desaparecer e aniquilar a matéria
rodeia e as enche! Onde está, portanto, que era má, estabelecendo outra que
o mal? Donde e por onde conseguiu fosse boa, donde criasse tudo? Não
penetrar? Qual é a sua raiz e a sua seria pois todo-poderoso, se nada de
semente? Porventura não existe nenhu­ bom pudesse criar sem a ajuda daquela
ma? Por que recear muito, então, o que matéria a que Ele mesmo não tinha
não existe? E, se é em vão que teme­ dado a existência.”
mos, o próprio medo indubitavelmente Revolvia tudo isto dentro do meu
é o mal que nos tortura e inutilmente peito miserável, oprimido pelos morda­
nos oprime o coração. Esse mal é tanto zes cuidados dó temor da morte e por
mais compressivo quanto é certo que' não' ter encontrado a verdade. Estava,
não existe o que tememos, e nem por contudo,'"arraigada no meu coração a
isso deixamos de temer. Por conse- fé em “Jesus Cristo, vosso Filho, Se­
qüência, ou existe o mal que tememos, nhor Salvador NossoBJ30, professada
ou esse temor é o mal. pela Igreja Católica. Se bem que me
“Qual a sua origem, se Deus, que é achasse ainda informe e flutuando^
bom, fez todas as coisas? Sendo o. para além da norma da doutrina, con­
supremo e sumo Bem, criou bens tudo o meu espírito não abandonava a
menores do que Ele; mas, enfim, o fé, antes cada vez mais se abraçava a
Criador e as criaturas, todos são bons. ela.
Donde, pois, vem o mal? Ou seria pelo
fato de Deus fazer tudo isso com maté­ 230 2 Pdr 2, 20.
134 SANTO AGOSTINHO

6
Os vaticínios dos astrólogos

8. Também jâ tinha rejeitado as que já então neste assunto me come­


enganadoras predições e os ímpios çava a deixar dobrar pelas razões de
delírios dos astrólogos. Ainda nisso, Nebrídio, não me recusei a expor-lhe
meu Deus, Vos quero confessar as vos­ os meus prognósticos e o que me ocor­
sas misericórdias, desde as fibras mais rera, acrescentando contudo que esta­
secretas da minha alma! Fostes Vós, va já quase persuadido de que tudo isto
só Vós — pois quem é que nos afasta era ridículo e quimérico.
da morte de todo o erro, senão a Vida Contou Firmino então que seu pai
que não conhece morte, a Sabedoria também se interessava por semelhantes
que ilumina as inteligências indigentes, livros e que- tivera um amigo que, do
sem precisar de luz alguma, e rege todo mesmo modo e simultaneamente, acre­
o mundo, até às folhas movediças das ditava em tudo aquilo. Com igual
árvores? —, fostes Vós que medicastes unanimidade e com igual ardor se
a contumácia que eu opunha ao arguto entregavam a essas ninharias que lhes
velho Vindiciano, e a Nebrídio, jovem incendiavam o coração. Até observa­
de alma admirável. O primeiro dizia- vam os momentos do nascimento dos
me com toda a veemência e o segundo animais domésticos que em casa viam
frequentemente — ainda que com a luz do dia, anotando a posição das
certa hesitação — que nenhuma arte estrelas, para deste modo fazerem
existia para prever o futuro; que as deduções das experiências da sua arte.'
conjeturas eram fundadas no acaso, e Dizia, pois, Firmino ter ouvido referir
que, por jogo de palavras, se vatici- ao pai que, quando a mãe se ia predis­
navam muitas coisas; que aqueles mes­ pondo para o dar à luz, também uma
mos que as diziam ignoravam se se ha­ escrava daquele amigo paterno se
viam de realizar, acertando nelas achou grávida, coisa que não passou
somente porque as não calaram. despercebida ao senhor, o qual, com
Fostes Vós que me suscitastes um apurada diligência, até procurava in-
amigo, assíduo em interrogar os astró­ formar-se de^quando as cadelas tinham
logos. Embora ele não fosse muito ver­ a cria.
sado nessa ciência, contudo, como já E aconteceu que — contando com a
disse, curiosamente consultava os as­ maior cautela os dias, as horas e as
trólogos, e sabia alguma coisa que afir­ partes mínimas das horas, um, da mu­
mava ter ouvido ao pai. Ignorava ele lher e o outro, da escrava — ambas se
quanto isso valia paradestruir a fama recolheram ao leito ao mesmo tempo,
daquela arte de modo que, com igual miniicia,
Este homem, chamado Firmino, que foram obrigados a dar a mesma estre­
.tinh-aTsido educado nas artes liberais e la, um ao nascimento do filho e o outro
instruído na eloquência, consultou-me ao nascimento do escravozinho. Quan­
um dia, como a amigo muito íntimo, a do as mulheres começaram a sentir as
respeito de uns negócios em que tinha dores do parto, informaram-se eles
grandes esperanças. Perguntou qual mutuamente do que em suas casas se
fosse o meu vaticínio, “segundo a sua passava. Prepararam criados para
estrela”, como eles dizem. Porém, eu, mandarem um ao outro a anunciar,
CONFISSÕES VII 135

com igual rapidez; o nascimento das conclui que os fatos preditos pela
crianças. Estas informações facilmente contemplação dos astros não se dizem
as conseguiam, como se o fato se pas­ por arte, mas por acaso; e que as falsi­
sasse no seu respectivo prédio. dades proferem-se, não por imperícia
Acrescentava Firmino que esses na arte, mas porque falhou a sorte.
mensageiros se cruzavam com tanta 10. Aberta esta entrada, ruminava
precisão a meio do caminho das duas tudo isso comigo, para que nenhum
casas que era impossível que ambos desses loucos, que viviam de tal negó­
não observassem exatamente as mes­ cio e que eu desejava atacar imediata­
mas posições dos astros, nas mesmas mente e pôr a ridículo, me pudesse
frações de tempo. E contudo, Firmino, resistir, lançando-me à cara que Firmi­
como filho de família ilustre, seguia no e o pai me tinham enganado. Des­
pelos caminhos mais esplêndidos do viei o fio do raciocínio para os que
mundo, enriquecia continuamente e nascem gêmeos. A maioria destes
era cumulado de honras; ao passo que saem do ventre materno, um após
o escravo, sem jamais ser aliviado do outro, com tão pequeno intervalo de
jugo da sua condição, servia a seu tempo, que a este — por mais que haja
senhor, segundo informava aquele que luta entre os gêmeos para possuírem
perfeitamente o conhecia. na ordem natural a primazia — é
9. Ouvindo estas coisas e dando- impossível registrá-lo pela observação
lhes fé, em razão do crédito que me humana e tomar, notas dele, de molde a
merecia quem as narrava, toda aquela que os astrólogos, examinando-as, se
minha relutância caiu vencida. Esfor­ possam pronunciar exatamente. Os
cei-me logo por afastar Firmino daque­ prognósticos não serão exatos porque,
la vã curiosidade, dizendo-lhe que, vendo o astrólogo os mesmos docu­
examinando eu as constelações que mentos, deveria dizer a mesma coisa
presidiram ao seu nascimento, para lhe de Esaú e Jacó. Mas os sucessos na
declarar a verdade, devia igualmente vida de um e de outro não foram os
adivinhar que seus pais eram os pri­ mesmos. Portanto, ou o astrólogo
meiros entre os seus concidadãos; sua anunciava falsidades ou, no caso de
família era nobre na própria terra falar certo, não deveria dizer a mesma
natal, que ele era de condição livre e coisa de ambos, ainda que visse os
que recebera educação esmerada e fora mesmos documentos. Neste caso, não
instruído nas artes liberais. Se aquele era por arte, mas por acaso é que dizia
escravo me pedisse que lhe dissesse a a verdade.
verdade segundo as mesmas constela­ Vós, porém, Senhor — justíssimo
ções — já que estas pertenciam a organizador de tudo —, por meio dum
ambos —, novamente deveria ler nelas secreto instinto, desconhecido aos con-
que esse tal era de família abjeta, de sulentes e aos astrólogos, fazeis que
condição servil, e tudo o mais, que di­ cada qual, enquanto consulta, ouça o
fere e dista muito das circunstâncias que lhe convém ouvir, segundo os
do primeiro caso. merecimentos ocultos da sua alma e
Mas como seria possível que eu, segundo os abismos dos vossos incor­
examinando a mesma constelação, fa­ ruptíveis juízos. Que nenhum se atreva
lasse a verdade, predizendo futuros a perguntar-Vos: “Que é isto? Para
diversos? No caso de lhes prognosticar que é isto?” Não vo-lo pergunte; não
idêntico destino, eu não diria por isso a vo-lo pergunte, porque é um simples
verdade. Donde com toda a certeza se homem.
136 SANTO AGOSTINHO

Ainda o problema do mal


11. Deste modo já Vós, ó meu porque ela estava dentro, e eu estava
Auxílio, me tínheis libertado daquelas fora. Nem ela precisava de espaço.
prisões. Entretanto buscava, sem êxito, Mas eu fixava a atenção naquelas que
a origem do mal. Porém, não permi- são contidas pelo espaço, sem aí
tíeis que eu, nas ondas do pensamento, encontrar um sítio para descansar.
me apartasse daquela fé pela qual acre­ Nem elas me hospedavam de modo , a
ditava na vossa existência, na vossa poder dizer: “Isto me basta; estou
substância inalterável, na vossa provi­ bem!” Nem me deixavam partir para
dência para com os homens, e na vossa onde me achasse satisfeito. Quanto a
Justiça. Cria em Jesus Cristo, vosso elas, era superior; mas era inferior com
Filho, na Sagrada Escritura, que a relação a Vós. Éreis para mim, sujeito
autoridade da vossa Igreja recomenda. a Vós, verdadeiro gozo, submetendo-
Cria que Vós estabelecestes um cami­ me todas estas criaturas que criastes
nho de salvação para os homens em abaixo de mim.
direção àquela Vida que começa após Esta minha situação constituía um
a morte. justo equilíbrio e um lugar interme­
Salvos e bem arraigados, no meu diário ,da minha salvação, se perseve-
coração, estes princípios, investigava rasse servindo-Vos conforme à “vossa
angustiosamente a origem do mal. Que imagem”. Mas como eu, na minha
tormentos aqueles do meu coração soberba, me rebelei contra Vós e inves­
parturiente! quantos gemidos, meu ti o Senhor, confiado “no escudo da
Deus! Quando em silêncio, esforçada- minha dura cerviz”232, até mesmo
mente, Vos procurava, grandes clamo­ estas ínfimas criaturas se ergueram
res se dirigiam à vossa misericórdia. sobre mim e me oprimiam, sem nunca
Eram as angústias tácitas da minha ter sossego nem alívio.
alma. Vós sabíeis o que eu padecia,
Enquanto as olhava, elas mesmas se
mas nenhum homem o sabia. De fato,
me ofereciam, de toda parte, em tropel
quão pouco era o que comunicava com
e em massa. Mas voltava a refletir e
a língua aos ouvidos dós meus mais ín­
logo as imagens dos corpos se me opu­
timos amigos ! Porventura chegava até
nham, como que a dizerem: “Para
eles todo o tumulto, do meu coração,
onde vais, indigno e impuro?” E com
que nem o tempo nem os meus lábios
as minhas chagas, cresciam elas em
bastavam para declarar?
ousadia, porque “humilhastes o sober­
Mas todas “as lamentações que ru- bo como a homem ferido233”. Com a
' giam do fundo do meu coração” iam
presunção, separava-me de Vós. A
ter aos vossos ouvidos; “diante de Vós
minha face, bastante inchada, tapava-
estava o meu desejo, mas a luz dos
me os olhos.
vossos olhos não estava em mim231”,
232 Jó 15, 26.
231 Sl 37,9-11. 233 Sl 88, 11.
CONFISSÕES VII 137

8
O colírio das dores

12. Mas Vós, Senhor, “permaneceis Estimuláveis-me com um misterioso


intemamente23 4” e “não Vos irais aguilhão para que estivesse impaciente
conosco para sempre23 5” porque Vos até me certificar da vossa existência,
compadecestes da terra e do pó e Vos por uma intuição interior. O meu
tumor decrescia ao contato da mão
comprazestes em reformar, na vossa
oculta da vossa medicina. A vista per­
presença23 6, as minhas deformidades. turbada e entenebrecida da minha inte­
234 5/32, 11.
ligência melhorava, de' dia para dia,
23 5 5/84,6. com o colírio das .minhas dores saluta­
23 8 5/58,21. res.

9
O neoplatonismo e a fé cristã
13. Querendo Vós mostrar-me pri- todo homem que vem a este mundo.
meiramente como “resistis aos sober­ Estava neste mundo que foi feito por
bos e dais graças aos humildes23 7” e Ele, e o mundo não o conheceu.
quão grande seja a misericórdia com Porém, que veio para o que era seu e
que ensinastes aos homens o caminho os seus não o receberam; que a todos
da humildade, por “se ter feito carne o os que o receberam lhes deu poder de
vosso Verbo e ter habitado entre os fazerem filhos de Deus aos que cres­
homens23 8”, deparastes-me por inter­ cessem em seu nome — isto não o li
médio dum certo homem, intumescido naqueles livros23 9.
por monstruoso orgulho, alguns livros 14. Do mesmo modo, li nesse lugar
platônicos, traduzidos do grego em que o Verbo Deus não nasceu da
latim. Neles-li, não com estas mesmas carne, nem do sangue, nem da vontade
palavras, mas provado com muitos e do homem, mas de Deus. Porém, que o
numerosos argumentos, que ao princí­ Verbo se fez homem e habitou entre
pio era o Verbo e o Verbo existia em nós2 40, isso não o li eu aí.
Deus e Deus era o Verbo: e este, no Descobri naqueles escritos, expresso
princípio, existia em Deus. Todas as de muitos e variados modos, que o
coisas foram feitas por Ele, e sem Ele Filho, “existindo com a forma do Pai,
nada foi criádo. O que foifeito, n Ele é não considerou como usurpação ser
vida, e a vida era a luz dos homens; a igual a Deus”, porque o é por nature­
luz brilha nas trevas e as trevas não a za. Porém aqueles livros não trazem
compreenderam. A alma do homem, que “se aniquilou a si mesmo tomando
ainda que dê testemunho da Luz, não a forma de escravo, feito à imagem dos
é, porém, a Luz; mas o Verbo — Deus
— é a Luz verdadeira qüe ilumina 239 Infelizmente, essas traduções, que Santo Agos­
tinho leu, não chegaram até nós. A maioria dos
autores julga que a referência diz respeitô a livros
Tg 4, 6; 1 Pdr 5, 5 de Plotino e de Porfírio. (N. do T.)
238 Jo 1, 14. 240 Jo 1 13.
138 SANTO AGOSTINHO

homens e sendo julgado, no exterior, cam como Deus, nem Lhe dão graças,
como um homem”. Não dizem que “se mas desvanecem-se em seus pensa­
humilhou fazendo-se obediente até à mentos e o seu coração insensato
morte, e morte de cruz, pelo que Deus obscurece-se. Dizendo-se sábios, tor-
o exaltou dos mortos, e lhe deu um nam-se estultos”.
nome que estâ acima de todo nome, 15. Por isso lia também aí que
para que ao nome de Jesus todo joelho transformaram a imutável glória da
se dobre nos céus, na terra e nos infer­ vossa incorruptibilidade em ídolos e
nos, e toda língua confesse que o Se­ em estátuas de toda espécie, à seme­
nhor Jesus está na glória de Deus lhança de imagem do homem corruptí­
Pai241”. vel, das aves, dos animais e das serpen­
Lá encontrei “que o vosso Filho tes246, ou seja, o alimento dos
Unigênito, eterno como Vós, perma­ egípcios, pelo qual Esaú perdeu o direi­
nece imutável antes de todos os séculos to de primogenitura2 4 7. Israel, o povo
e sobre todos os séculos, que, para primogênito, “de coração voltado para
serem bem-aventuradas, todas as o Egito2 4 8”, curvando a vossa imagem
almas recebem da sua plenitude, e que, — a sua alma — ante o ídolo do “be­
para serem sábias, são renovadas pela zerro que come feno2 49”, em lugar de
participação da Sabedoria que perma­ Vós, honrou a cabeça dum animal.
nece em si mesma”. Que “não perdoas­ Encontrei nesses livros estas afirma­
tes ao vosso único Filho, mas o entre­ ções, mas não me alimentei delas.
gastes por todos nós2 42” — isso não' Agradou-Vos, Senhor, arrancar de
vem naqueles livros. Jacó o opróbrio do abatimento, para
“Escondestes pois estas coisas aos que o maior servisse ao menor. Cha­
sábios e as revelastes aos humil­ mastes os povos à vossa herança. Eu
des243”, para que viessem “a Ele os também vim para Vós de entre os
atribulados e os sobrecarregados e Ele povos e fixei a mente no ouro que,
os aliviasse, porque é manso e humilde segundo a vossa vontade, o vosso povo
de coração”. Dirige os benignos na tirou do Egito, pois era vosso, onde
justiça e ensina aos mansos os seus quer que ele estivesse. Por meio do
caminhos. Vê a nossa humildade e o vosso Apóstolo, dissestes aos atenien­
nosso trabalho e perdoa-nos todos os ses que em Vós “vivemos, nos move­
pecados2 4 4. Porém, aqueles que se mos e existimos, como também o dis­
levantaram no cotumo duma doutrina seram alguns dos vosSos poetas2 50”.
mais sublime2 4 5 não O ouvem dizer: Naturalmente daqui vieram aqueles
“Aprendei de mim que sou manso e
humilde de coração e encontrareis des­ 2 4 8 Rom 1,23.
canso para as vossas almas”. Ainda 24 7 Gên 25, 33.
2 48 At 1, 39. Santo Agostinho, na Exposição do
que conheçam “a Deus, não O glorifí- Salmo 4b (Com. ao Sl 46), assim se exprime: “Sabe­
mos que as lentilhas são o alimento dos egípcios
porque abundam no Egito. São célebres as lentilhas
241 Flp 2,6-11. de Alexandria, e chegam até às nossas terras como
2 42 5/24, 18. se aqui não nascessem lentilhas. Portanto, Esaú,
2 43 Mtl 1,29. desejando o alimento dos egípcios, perdeu a primo­
2 4 4 Rom 1,21. genitura. Assim, o povo judeu, de quem foi dito
24 5 A filosofia de Plotino ou neoplatônica, que ‘voltaram-se de coração para o Egito desejara de
foi o supremo esforço do pensamento helênico, certo modo as lentilhas, perdendo a primogenitura”.
ignorou a Cristo. Tudo nela se dirigia a pôr o (N. do T.)
homem em contato com o Uno por meio do êxtase 249 5/105,20.
voluntarista. (N. do T.) 2 60 At 11, 28
CONFISSÕES VII 139

livros. Mas não me fixei nos ídolos dos submetendo-se antes à criatura do que
egípcios, a quem serviam com o vosso ao Criador2 51 ”.
ouro “aqueles que mudaram a verdade
de Deus em mentira, venerando e 251 Rom 1,25.

10
O descortinar do mistério divino
16. Em seguida aconselhado a vol­ jeto do meu olhar. Mas eu ainda não
tar a mim mesmo, recolhi-me ao cora­ era capaz de ver! Deslumbrastes a fra­
ção, conduzido por Vós. Pude fazê-lo, queza da minha íris, brilhando com
porque Vos tomastes meu auxílio. veemência sobre mim. Tremi com
Entrei, e, com aquela vista da minha amor e horror. Pareceu-me estar longe
alma, vi, acima dos meus olhos interio­ de Vós numa região desconhecida,
res e acima do meu espírito, a Luz como se ouvisse a vossa voz lá do alto:
imutável. Esta não era o brilho vulgar “Sou o pão dos fortes; cresce e comer-
que é visível a todo o homem, nem era Me-ás. Não Me transformarás em ti
do mesmo gênero, embora fosse maior. como ao alimento da tua carne, mas
Era como se brilhasse muito mais mudar-te-ás em Mim2 52”.
clara e abrangesse tudo com a sua Conheci que, “por causa da iniqüi-
grandeza. Não era nada disto, mas dâde, castigastes o homem e secastes a
outra coisa, outra coisa muito diferente minha alma como teia de aranha2 53”.
de todas estas. E disse: “Porventura não existe a ver­
Essa Luz não permanecia sobre o dade, pelo fato de não estar espalhada
meu espírito como o azeite em cima da por espaços finitos nem infinitos?”
água, ou como o céu sobre a terra, mas Vós respondestes-me de longe:
muito mais elevada, pois Ela própria “Sim, Eu sou o que Sou2 5 4”. E ouvi
me criou e eu sou-lhe inferior, porque como se ouve no coração, sem ter mo­
fiii criado por Ela. tivo algum para duvidar. Mais facil­
Quem conhece a Verdade conhece a mente duvidaria da minha vida do que
Luz Imutável, e quem a conhece da existência da Verdade, cujo conhe­
conhece a Eternidade. O Amor conhe­ cimento se apreende por meio das coi­
ce-a! ó Verdade eterna, Amor verda­ sas criadas.
deiro, Eternidade adorável! Vós sois o
meu Deus! Por Vós suspiro noite e
dia. Quando pela primeira vez Vos 2 52 Assim sucede na Eucaristia. Porém a frase
refere-se à Sabedoria Divina. (N. do T.)
conheci, erguestes-me para que apren­ 2 53 Jer 31, 15.
desse a existência d’Aquele que era ob­ 254 Êx 3, 14.

11
A relatividade das criaturas
17. Examinei todas as outras coisas mente deixam de existir. Por um lado
que estão abaixo de Vós e vi que nem existem, pois provêm de Vós; por
existem absolutamente, nem total- outro nãó existem, pois não são aquilo
I

140 SANTO AGOSTINHO

que Vós sois. Ora, só existe verdadei­ miar em mim. Ele, porém, permane­
ramente o que permanece imutável. cendo em si, renova todas as coisas.
Por isso, “para mim é bom prender-me
a Deus2 5 5”; porque, se não permane­ “Vós sois o meu Senhor, pois não care­
cer n’Ele, também não poderei conti- ceis dos meus bens2 5 6.”

2 5 5 5/72,28. 2 5 8 Sl 15,2.

12
O problema do mal. A perfeição das criaturas
18. Vi claramente que todas as coi­ Por isso, se são privadas de todo o
sas que se corrompem são boas: não se bem, deixarão totalmente de existir.
poderiam corromper se fossem suma­ Logo, enquanto existem, são boas.
mente boas, nem se poderiam corrom­ Portanto, todas às coisas que existem
per se não fossem boas. Com efeito, se são boas, e aquele mal que eu procu­
fossem absolutamente boas, seriam rava não é uma substância, pois, se
incorruptíveis, e se não tivessem ne­ fosse substância, seria um bem. Na
nhum bem, nada haveria nelas que se verdade, ou seria substância incorrup­
corrompesse. tível, e então era certamente um grande
De fato, a corrupção é nociva, e, se bem, ou seria substância corruptível, e,
não diminuísse o bem, não seria noci­ nesse caso, se não fosse boa, não se
va. Portanto, ou a corrupção nada pre­ poderia corromper.
judica — o que não é aceitável — ou Vi, pois, e pareceu-me evidente que
todas as coisas que se corrompem são criastes boas todas as coisas, e que
privadas de algum bem. Isto não admi­ certissimamente não existe nenhuma
te dúvida. Se, porém, fossem privadas substância que Vós não criásseis. E,
porque as não criastes todas iguais,
de todo o bem, deixariam inteiramente por esta razão, todas elas, ainda que
de existir. Se existissem e já não pudes­ boas em particular, tomadas conjunta­
sem ser alteradas, seriam melhores mente são muito boas, pois o nosso
porque permaneciam incorruptíveis. Deus criou “todas as coisas muito
Que maior monstruosidade do que boas2 5 7”.
afirmar que as coisas se tomariam
melhores com perder todo o bem? 2 5 7 Gên 1,31.

13
A solução do problema do mal. As dissonâncias de pormenor
19. Em absoluto, o mal não existe zam com outros, são considerados
nem para Vós, nem para as vossas maus. Mas estes coadunam-se com
criaturas, pois nenhuma coisa há fora outros, e por isso são bons (no conjun­
de Vós que se revolte ou que desman­ to) e bons em si mesmos. Todos estes
che a ordem que lhe estabelecestes. elementos que não concordam mutua­
Mas porque, em algumas das suas par­ mente concordam na parte inferior da
tes, certos elementos não se harmoni­ criação a que chamamos terra, cujo
CONFISSÕES VII 141

céu acastelado de nuvens e batido donzelas, os velhos e os mais novos


pelos ventos quadra bem com ela. louvam o vosso nome2*5 8”.
Longe de mim o pensamento de Mas também Vos louvam lá do alto
dizer: “Estas coisas não deveríam exis­ do céu. . . Entoam os vossos louvores,
Deus Nosso, “nas alturas, todos os
tir”. Embora, ao considerá-las só a vossos anjos, todas as potestades, o
elas, eu desejasse que fossem melhores, Sol e a Lua, todas as estrelas e a luz, os
contudo bastava só isto para eu ter de céus dos céus. Também as águas que
Vos louvar, pois sois digníssimo de estão sobre os céus exaltam o vosso
louvor, como o proclamam “os dra­ Nome2 59”. Já não desejava coisas
gões da terra e todos os abismos, o melhores, porque, abarcando tudo com
fogo, o granizo, a neve, a geada, o o pensamento, via que os elementos
vento das tempestades que executam superiores são incontestavelmente
mais perfeitos que os inferiores. Mas
as vossas ordens; os montes e todas as um juízo mais sensato fazia-me com­
colinas; as árvores frutíferas e todos os preender que a criação em conjunto
cedros; as feras e todos os gados; ps valia mais que os elementos superiores
répteis e as aves que voam; os reis da tomados isoladamente.
terra e todos os povos; os príncipes e 2 58 5/143,7-12.
todos os juizes da terra. Os jovens e as 2 59 5/148,1-5.

14
A trajetória dum erro
20. Não há saúde naqueles a quem parte através do espaço infinito. Jul­
desagrada alguma parte da vossa cria­ gando que éreis Vós, colocara esse
ção, como em mim também não a Deus no seu coração, e de novo ela se
havia, quando me não agradavam mui­ transformou num templo abominável
tas coisas que criastes. Porque a minha do seu ídolo2 61. Todavia, depois que
alma não ousava desgostar-se do meu afagastes, sem eu o saber, a minha ca­
Deus, recusava olhar como obra vossa beça e fechastes “meus olhos para que
tudo o que lhe não agradava. Por isso, não vissem a vaidade2 62”, desprendi-
lançara-se na “teoria das duas substân­ me um pouco de mim mesmo, e a
cias2 60”, mas não encontrava descan­ minha loucura adormeceu profunda­
so, e apenas expressava opiniões mente . . . Despertei em vossos braços,
alheias. e vi que éreis infinito, mas não daquele
Desembaraçando-se destes erros, a modo. Esta visão não provinha da
minha alma tinha imaginado, para si, carne.
um Deus que se difundia por toda
2 61 Aquela noção de que Deus era “ídolo” porque
2 60 Refere-se à doutrina maniqueísta do dualismo a alma materializava e circunscrevia ao espaço o
do bem e do mal, isto é, da luz e das trevas. (N. do Ser infinito. (N. do T.)
T.) 9 2 62 5/ 118, 37.
142 SANTO AGOSTINHO

15
A harmonia da criação
21. Olhei depois para as outras coi­ Reconheci que cada coisa se adapta
sas e vi que Vos deviam a existência. perfeitamente não só ao seu lugar, mas
Vi que tudo acaba em Vós, mas não também chega a seu tempo. Reconheci
como quem termina num espaço mate­ que Vós — único Ser Eterno —não
rial. Vós sois Aquele que tudo con­
serva na Verdade, como se tudo susti- começastes a operar depois de épocas
incalculáveis de tempo, porque todos
vésseis na palma da mão. Por isso
todas as coisas são verdadeiras en­ estes espaços de tempo, passados ou
quanto existem, e não há falsidade futuros, não teriam passado nem vi­
senão quando se julga que existe aqui­ ríam, se Vós, na vossa imutabilidade,
lo que não existe. não agisseis.

16
Onde reside o mal
22. Senti e experimentei não ser tes de Vós. Do mesmo modo são os
para admirar que o pão, tão saboroso maus tanto mais parecidos com os ele­
ao paladar saudável, seja enjoativo ao mentos superiores da criação quanto
paladar enfermo, e que a luz, amável mais se tomam semelhantes a Vós.
aos olhos límpidos, seja odiosa aos Procurei o que era a maldade e não
olhos doentes. encontrei uma substância, mas sim
Se a vossa justiça desagrada aos uma perversão da vontade desviada da
maus, com muito mais razão lhes desa­ substância suprema — de Vós, ó Deus
gradam a víbora e o caruncho que — e tendendo para as coisas baixas:
criastes bons e adaptados às partes vontade que derrama as suas entranhas
inferiores dos seres criados, às quais os e se levanta com intumescência2 6 3.
próprios malvados são tanto mais
semelhantes quanto são mais diferen­ 2 63 Eclo 10,9

17
Ascensão dolorosa
23. Admirava-me de já Vos ter mas criaturas. Este peso eram os hábi­
amor e de não amar um fantasma em tos da luxúria.
vez de Vós. Não permanecia estável no Mas a vossa lembrança acompanha­
gozo do meu Deus. Era arrebatado va-me. Nem de forma alguma eu duvi­
para Vós pela vossa Beleza, e logo dava da existência dum Ser a quem me
arrancado de Vós, pelo meu peso, para devesse unir. Sabia, porém, que ainda
me despenhar, a gemer, sobre as ínfi­ me não encontrava apto para essa
/ CONFISSÕES VII 143

união, pois “o corpo que se corrompe raciocinante. A esta pertence ajuizar


sobrecarrega a alma, e a morada terre­ acerca das impressões recebidas pelos
na comprime o espírito que se dissi­ sentidos corporais. Mas essa potência,
pa264”. descobrindo-se também mudável em
Estava certíssimo de que “as vossas mim, levantou-se até à sua própria
perfeições invisíveis se podem tomar inteligência, afastou o pensamento das
compreensíveis desde o princípio do suas cogitações habituais, desembara-
mundo por meio das coisas criadas, çando-se das turbas contraditórias dos
bem como o eterno poder e a vossa fantasmas, para descortinar qual fosse
Divindade2 6 5”. Buscando, pois, o mo­ a luz que a esclarecia, quando procla­
tivo por que é que aprovara a beleza mava, sem a menor sombra de dúvida,
dos corpos, quer celestes, quer terre­ que o imutável devia preferir-se ao
nos, e que coisa me tomava capaz de mudável.
Daqui provinha o seu conhecimento
julgar e dizer corretamente dos seres
a respeito do próprio Imutável, pois, se
mutáveis: “Isto deve ser assim, aquilo
de nenhuma maneira o conhecesse,
não deve ser assim”, procurando qual
não o anteporia com toda a segurança
fosse a razão deste meu raciocínio ao ao variável.
exprimir-me naqueles termos, descobri Foi assim que ela atingiu aquele Ser,
a imutável e verdadeira Eternidade, num abrir e fechar de olhos. Com­
por cima da minha inteligência sujeita preendí então que “as vossas perfei­
à mudança. ções invisíveis se declaram por meio
Deste modo, dos corpos subia das coisas que foram criadas2 6 6”. Mas
pouco a pouco à alma que sente por não pude fixar a vista, e, ferido pela
meio do corpo, e de lá à sua força inte­ minha enfermidade, tomei aos vícios
rior, à qual os sentidos comunicam o habituais. Não conservava comigo
que é exterior — é este o limite até senão aquela lembrança amorosa, de­
onde chega o conhecimento dós ani­ sejando, se assim me posso exprimir,
mais —■, e, de novo, dali à potência os aromas dos alimentos que ainda
não podia comer.
2 e 4 Sab 10,15.
2 6 5 Rom 1, 20. 2 6 6 Rom 1, 20.

18
O único caminho para a Verdade
24. Buscava um meio para me pro­ Vida2 68”. Eu também devia crer que o
ver de forças a fim de ser apto para Alimento que era incapaz de tomar se
gozar-Vos, mas não o encontraria, uniu à carne, pois “o Verbo se fez
enquanto não abraçasse “o Mediador homem2 69”, para que a vossa Sabedoy
entre Deus e os homens, Jesus Cristo ria, pela qual criastes tudo, se tomasse
Homem-Deus bendito por todos os sé­ o leite da nossa infância.
culos, que está acima de todas as Como possuía pouca humildade,
coisas2 6 7”. Ele chamava-me e dizia: não compreendia que Jesus, o meu
“Sou o caminho, a Verdade e a
2 88 Jo 14,6.
2 6 7 lTiml,5. 2 89 Jo 1, 14.
144 SANTO AGOSTINHO

Deus, fosse humilde, nem alcançava de soberba e alimenta o amor, para que,
que ensinamentos fosse mestra a sua cheios de confiança em si mesmos, se
fraqueza. Com efeito, p vosso Verbo, não afastem para mais longe. Pelo
Verdade eterna, exaltado sobre as cria­ contrário, humilham-se ao presenciar a
turas mais sublimes, ergue até si os que seus pés a Divindade tomada humilde
se lhe sujeitam. Porém nas partes infe­ pela comparticipação “da túnica da
riores da criação construiu para si, nossa carne2 70”, e cansados pros-
com o nosso lodo, uma vivenda humil­ tram-se-lhe diante d’Ele, que,, erguem
de. do-os, os exaltará.
Por meio desta, rebaixa e atrai para
si os que deseja submeter. Cura a 2 70 Gén-3,21.

19
Hesitante na doutrina do Verbo
25. Eu, porém, pensava doutra ma­ cia quanto me era possível, e de que
neira, e somente imaginava o meu Se­ não duvidava absolutamente nada.
nhor Jesus Cristo como um homem de Com efeito, mover agora pela vontade
excelente sabedoria, que ninguém po­ os membros do corpo, e logo depois
deria igualar, sobretudo porque nasceu não os mover; sentir agora um afeto e
maravilhosamente duma Virgem, para logo depois já o não sentir; exprimir,
nos dar exemplo de desprezo das coi­ por meio de sinais, sábias idéias, e logo
sas temporais e adquirir a imortalidade voltar ao silêncio são características
divina. Parecia-me que tinha merecido da mutabilidade da alma e da inteli­
tão grande autoridade de magistério gência. Se isso que d’Ele se escreveu
pelo cuidado com que se ocupou de fosse falso, também tudo o mais corre­
nós2 71. Nem sequer podia suspeitar ría risco de ser mentira, e nenhuma fé
que mistério encerravam as palavras: salvadora subsistiría nestes livros, para
“O Verbo se fez homem2 72”. Simples­ o gênero humano. Porque tais escritos
mente pelos escritos que d’Ele trata­ são autênticos, reconhecia apenas em
vam sabia que comeu, bebeu, dormiu, Cristo um homem completo: não só
fez caminhadas, regozijou-se, entriste­ um corpo humano ou um corpo e uma
ceu-se, conversou, e que aquela carne alma sem mente2 7 4, mas um homem
não se tinha unido ao vosso Verbo real, que eu julgava avantajar-se aos
senão pela alma e inteligência huma­ restantes mortais, não por ser a perso­
na271
273.
* • nificação da Verdade, mas por motivo
Isto já o sabe todo aquele que da grande excelência de sua natureza
conhece a imutabilidade dó vosso humana e de sua mais perfeita partici­
Verbo, imutabilidade que eu já conhe­ pação quanto à Sabedoria. s
Alípio, porém, supunha que os cató­
271 Como Fotino, Santo Agostinho acreditava, licos acreditavam num Deus, revestido
nesse tempo, que Jesus Cristo fosse um simples
homem a quem fora concedida a plenitude da graça 2 7 4 O texto latino traz: “sine mente animum”.
em paga das suas virtudes humanas. (N. do T.) Mens, na filosofia de Santo Agostinho, compreende
2 72 Jo 1, 14. a Ratio, ou faculdade discursiva, de cujo exercício
2 73 Santo Agostinho não põe em dúvida a união resulta a ciência; e a inteligência, de cujo exercício
substancial do Verbo com a naturèza humana, em resulta a Sabedoria (conhecimento intuitivo do imu­
Jesus Cristo. Apenas afirma que não houve mistura tável ou puro inteligível). Mens é o que há de mais
das duas naturezas. Declara-o nas palavras a seguir. sublime na alma. Agostinho desconhecia então a
(N. do T.) inteligência humana de Cristo. (N. do T.)
CONFISSÕES VII 145

de carne, de modo que além de Deus e Confesso, porém, que só um pouco


da carne não havia em Cristo uma mais tarde aprendi de que modo a ver­
alma. Não julgava que Lhe atri­ dade católica se aparta do erro de Foti-
buíssem uma inteligência humana.
Porque estava bem persuadido de que no, a respeito de “o Verbo se ter feito
as ações de Jesus Cristo, transmitidas homem2 7 6”. Por isso a reprovação dos
à posteridade, não se dariam n’Ele sem hereges, dâ azo a que se manifeste cia-’
uma criatura vital provida de razão, ramente o que sente a vossa Igreja e q
Alípio, com demasiada preguiça, se ia que contém a sã doutrina. “Foi neces­
aproximando da mesma fé cristã. Mas
depois, reconhecendo que tal erro era sário haver hereges para que os fortes
próprio dos hereges apolinaristas2 7 5, se manifestassem entre os fracos2 7 7.”
jubiloso, juntou-se à fé católica.
2 7 6 Fotino, herege do século IV e bispo de Sírmio,
2 7 6 Apolinário, bispo de Laodicéia, viveu no sécu­ negou a-união substancial do Verbo com a natureza
lo IV. Negou que em Jesus Cristo houvesse inteli­ humana, de tal forma que Jesus Cristo era filho ado­
gência humana, afirmando que o Verbo fazia as tivo de Deus e puro homem. (N. do T.)
vezes desta. (N. do T.) 2 7 7 1 Cor 11, 19.

20
Do platonismo à Sagrada Escritura
26. Mas depois de ler aqueles livros Vós, não seriaperzto, masperituro2 79.
dos platônicos e de ser induzido por Já então, cheio do meu castigo, come­
eles a buscar a verdade incorpórea, vi çava a querer parecer um sábio; não
que “as vossas perfeições invisíveis se chorava e, por acréscimo, inchava-me
percebem por meio das coisas cria­ com a ciência.
das2 78”. Sendo, repelido (no meu esfor­ Onde estava aquela caridade que se
ço), senti o que, pelas trevas da minha levanta sobre o alicerce da humildade,
alma, me não era permitido contem­ que é Jesus Cristo? Quando é que estes
plar: experimentei a certeza de que livros ma ensinariam? Por isso, segun­
existíeis e éreis infinito, sem contudo do julgo, Vós quisestes que eu fosse ao
vos estenderdes pelos espaços finitos e seu encontro antes de meditar as vos­
infinitos. Sabia que éreis verdadeira­ sas Escrituras, para que se imprimisse
em minha memória o sentimento que
mente Aquele que sempre permanece o nelas experimentei.
mesmo, sem Vos transformardes em
outro, quer parcialmente e com algum Depois, quando em vossos livros
encontrasse a serenidade e minhas feri­
movimento, quer de qualquer outro das fossem tocadas por vossos dedos e
modo. Sabia que todas as outras coisas fossem por eles curadas, discerniría
provêm de Vós, pelo motivo único e perfeitamente a diferença que havia
seguríssimo de existirem. Sim/tinha a entre a presunção e a humildade, entre
certeza disso. Porém, era demasiado os que vêem para onde se deve ir e os
fraco para gozar de Vós ! que não vêem por onde se vai nem o
Tagarelava à boca cheia como um caminho que conduz à pátria bem-
sabichão, mas, se não buscasse em aventurada. Esta será não somente ob-
Cristo Nosso Salvador o caminho para
2 79 Temos de novo um jogo de palavras: “Perito”
e “perituro”. “Perituro”: que havia de perecer (N.
2 78 Rom 1,20. do T.)
146 SANTO AGOSTINHO

jeto e contemplação,' mas também vez eles me arrancassem do sólido fun­


lugar e morada. damento da piedade. Ou, se persistisse
Ora, se antes de tudo me tivesse ins­ no sentimento salutar que deles tinha
truído nas vossas Santas Escrituras, e, haurido, julgaria que, se alguém apren­
familiarizado com elas, sentisse a desse só por esses livros, também deles
vossa doçura, se deparasse depois com podería alcançar o mesmo afeto espiri­
aqueles volumes (dos platônicos), tal­ tual.

21
Entre o esplendor da verdade e o platonismo
27. Por conseguinte lancei-me avi­ ele “perante a outra lei dos seus mem­
damente sobre o venerável estilo (da bros, que recalcitra contra a lei do seu
Sagrada Escritura), ditada pelo vosso espírito e ó cativa na lei do pecado,
Espírito, preferindo, entre outros auto­ escrita nos seus membros283”? “Por
res, o Apóstolo São Paulo. Desvanece- isso, Vós, Senhor, sois justo; nós,
ram-se-me aquelas objeções segundo porém, pecamos, cometemos iniqui­
as quais algumas vezes me pareceu . dade; procedemos impiamente, e a
haver contradição na Bíblia e incon­ vossa mão pesou sobre nós2 8 4.” Justa­
gruência entre o texto dos seus discur­ mente fomos entregues ao pecador
sos e os testemunhos da Lei e dos Pro­ antigo, ao príncipe da morte, pois per­
fetas. Compreendí o aspecto único suadia a nossa vontade a conformar-se
daqueles castos escritos, e “aprendi a com a sua, “que não permaneceu na
alegrar-me com tremor280”. Comecei vossa verdade2 8 5”.
a lê-los e notei que tudo o que de ver­ Que fará o infeliz homem? “Quem o
dadeiro tinha lido nos livros dos platô­ livrará deste corpo de morte, senão a
nicos se encontrava naqueles, mas com vossa graça por Jesus Cristo Nosso
esta recomendação da vossa graça: Senhor28 6”, que Vós gerastes coetemo
que aquele que vê não se glorie como e criastes no pmcípio de vossos cami­
se não tivesse recebido não somente o nhos, ao qual “o príncipe deste
que vê mas também a possibilidade de mundo28 7”, apesar de o não encontrar
ver281. “Com efeito, que coisa tem ele em nada merecedor de morte, o
que não tenha recebido282?” E Vós, matou? “Foi assim anulado o libelo
que sois sempre o mesmo, não só o que nos era contrário2 8 8.”
admoestais para que Vos veja, mas
também para que se cure a fim de Vos Ora, isto não o dizem os .livros
possuir. platônicos. Suas páginas não encerram
Aquele que não pode ver de longe, a fisionomia daquela piedade, nem as
percorra, contudo, o caminho por onde lágrimas da compunção, nem “o vosso
possa vir a contemplar-Vos e a pos- sacrifício nem o espírito compungido,
suir-Vos. Efetivamente, ainda que o nem o coração contrito e humilha-
homem se deleite na “lei de Deus,
segundo o homem interior”, que fará 283 Roml, 22.
28 4 Dan 3, 27; SZ 31, 4.
28 5 Jo 8, 44.
280 S12, 11. 28 6 Rom 1,24.
281 1 Cor 4, 7. 28 7 Jo 14,30.
282 1 Cor 4, 7. 288 Col2, 14.
CONFISSÕES VII 147

do289”, nem a salvação do povo, nem Uma coisa é ver dum píncaro arbo­
a cidade desposada290, nem o penhor rizado a pátria da paz e não encontrar
do Espírito Santo, nem o cálice do o caminho para ela, gastando esforços
nosso resgate291. Lá ninguém canta: vãos por vias inacessíveis, entre os ata­
Porventura a minha alma não há de ques e insídias dos desertores fugitivos
estar sujeita a Deus? “Depende d’Ele a com o seu chefe Leão e Dragão29 4; e
minha salvação, porquanto Ele é o outra coisa é alcançar o caminho que
meu Deus e Salvador. Ele me recebe e para lá conduz, defendido pelos cuida­
d’Ele não me apartarei mais2 9 2.” dos do general celeste, onde os que
desertaram da milícia do paraíso não
Nos livros platônicos ninguém ouve podem roubar, pois o evitam como um
Aquele que exclama: “Vinde a Mim, suplício29 5.
vós, os que trabalhais”. Desdenham Estas coisas penetraram-me até às
em aprender d’Ele, que é manso e entranhas, por modos admiráveis, ao
humilde de coração. “Escondestes ler (São Paulo) “o mínimo dos vossos
estas coisas aos sábios e entendidos, e Apóstolos29 6”. E enchia-me de espan­
as revelastes aos humildes293.” to, considerando as vossas obras. . .
289 Sl50, 19. 294 Sl 90, 13.
290 Apc21,2. 29 5 Nesta passagem parece ter-se inspirado Santo
291 2 Cor 5,5. Inácio de Loiola para elaborar a meditação das
292 5/61,2,3. Duas Bandeiras. (N. do T.)
293 Mt 11,28; 11,25. 29 6 1 Cor 15, 9.
LIVRO VIII

A CONVERSÃO

I — Simpliciano. A con­
versão de Vitorino ,
suas dificuldades e
alegrias (1-4).
II — A- luta na conversão:
As duas vontades. . .
A exposição de Pontf
ciano (5-7).
III — A conversão de Santo
Agostinho, de Alípio e
a alegria de Santa Mô-
pica (8-12).
1
“A pérola preciosa”

1. Fazei, ó meu Deus, que eu recor­ . falar com Simpliciano302, que eu tinha
de e confesse, em ação de graças, as por um bom servo vosso e em quem
vossas misericórdias para comigo! brilhava a vossa graça. Ouvira dizer,
Permiti que os meus ossos se penetrem além disso, que desde a juventude vivia
do vosso amor e digam: “Senhor, devotadamente para Vós. Com efeito,
quem é semelhante a Vós?29 7” Rom­ jâ envelhecera, e, em tão longa idade,
pestes os meus grilhões e “ofertar- seguira sempre, com zelo ardente, o
Vos-ei um sacrifício de louvor298”. vosso caminho. Devia ser um homem
Narrarei como os rompestes, e todos muito experimentado e instruído.
os que Vos adoram exclamarão: “Ben­ Assim era, na verdade. Queria, por
dito seja o Senhor no céu e na terra; o isso, falar com ele das minhas inquie­
seu nome é grande e admirável299”. tações, para que me descobrisse o
As vossas palavras tinham-se grava­ modo de uma alma agitada como a
do no íntimo do meu coração. Vós minha adiantar no vosso caminho.
cercáveis-me de todos os lados. Tinha 2. Via cheia a Igreja. Uns caminha­
a certeza de que a vossa vida era eter­ vam duma maneira, outros doutra.
na, apesar de só a ter visto “em enigma Desagradava-me a vida que levava no
e como num espelho300”. Toda a dúvi­ mundo. Era para mim de grande peso,
da sobre a substância incorruptível me agora que as paixões e a esperança de
fora resolvida, ao ver que dela provém honras e dinheiro já me não anima­
toda a substância. Desejava. . . não vam, como de ordinário, a sofrer tão
digo estar mais certo de Vós, mas mais pesada servidão. Sim, tudo isso já me
firme em Vós. Tudo vacilava, porém, não deleitava, em vista da vossa doçu­
na minha vida temporal, e o meu cora­ ra e da beleza da vossa casa, que amei.
ção precisava ser limpo do antigo Mas ainda estava tenazmente ligado à
fermento301. O verdadeiro caminho, mulher. Ê certo que o Apóstolo303 não
que é o Salvador, encantava-me, mas me proibia casar, não obstante exor­
ainda me repugnava enveredar por tar-me a um estado melhor, porque
seus estreitos desfiladeiros. queria ardentemente que todos os ho­
mens fossem como ele. Eu, pforém,
Inspirastes-me então a idéia — que,
demasiado fraco, escolhia o lugar mais
no meu conceito, julguei boa — de ir
aprazível. Era só por isso que vivia de
hesitações em tudo o mais, lânguido e
29 7 57 34, 10. enfermo por causa das preocupações
29B. Sl 115, 16.
299 S115,2. 302 Simpliciano sucedeu, mais tarde, a Santo
300 1 Cor 13, 12. Ambrósio no bispado de Milão, em 397. (N. do T.)
301 1 Cor 5, 7. 303 São Paulo. (N. do T0
152 SANTO AGOSTINHO

enervantes, porque, parecendo coagido convosco, é Deus, um só Deus, por


a entregar-me à vida conjugal, via-me quem tudo criastes.
também obrigado a incumbir-me de Há outra espécie de ímpios, que,
novas obrigações que não queria su­ “tendo conhecido a Deus, não o glori­
portar. ficaram nem lhe renderam graças30 6”.
Ouvira, da boca da Verdade, que Tinha também caído neste pecado. “A
“existiam eunucos que a si próprios se vossa destra, porém, amparou-me30 7”,
mutilaram por amor do reino dos e, depois de me arrancardes de lá, colo­
céus”. Mas Ela acrescenta: “quem castes-me onde me restabelecesse, di­
pode compreender, compreenda30 4”.
“São vãos, por certo, todos os homens zendo ao homem: “a piedade é sabedo­
em quem se não acha a ciência de’ ria308”; “não queirais parecer sábios,
Deus, e que, pelos bens visíveis, não porque os que se dizem sábios tor-
chegaram a conhecer Aquele que nam-se insensatos309”. Já encontrara
é30 5.” Mas já não me encontrava a “pérola preciosa31 °” que devia com­
naquela vaidade. Ultrapassara-a, e, prar, depois de vender tudo o que pos­
pelo testemunho de todas as criaturas, suía. Mas duvidáva ainda.
ó Criador nosso, encontrara-Vos, a
Vós e ao vosso Verbo, que, juntamente 30 6 Rom 1,21.
30 7 5/17,36.
308 Jó 28, 28.
304 Mt 19, 12. 309 Rom 1,22.
30 5 Sab 13, 1. 310 M/13,45.

2
A conversão de Vitorino
3. Dirigi-me, portanto, a Simpli- Em seguida, para me exortar à
ciano, que, na concessão da graça, era humildade de Cristo, “escondida aos
pai do Bispo Ambrósio311. E, na ver­ sábios e revelada aos pequeninos313”,
dade, este amava-o como pai. Narrei- falou de Vitorino, a quem conhecera
lhe ps labirintos do meu erro. Quando, intimamente, quando estava em Roma.
porém, lhe disse que tinha lido uns li­ Não guardarei silêncio sobre o que me
vros platônicos vertidos para o latim contou dele, porque encerra grande
por Vitorino — outrora retórico em louvor, que só à vossa graça se deve
Roma, e de quem eu ouvira dizer ter atribuir. Vitorino não teve vergonha de
morrido cristãq —, Simpliciano deu- se fazer servo do vosso Cristo e crian­
me os parabéns por não ter caído nos cinha na vossa fonte31 4, sujeitando q
escritos dos outros filósofos, cheios de pescoço ao jugo da humildade e
falácias e enganos, “segundo os ele­ dobrando a fronte sob o opróbfip da
mentos do mundo312”. As obras pla­ Cruz, ele, o célebre e dqutíssimo
tônicas sugerem, de todos os modos, ancião, perito em todas as artes libe­
Deus e o seu Verbo. rais, leitor e crítico de tantas obras
filosóficas, preceptor de tantos senado-
311 São Simpliciano viera de Roma a Milão para
instruir Santo Ambrósio na Sagrada Escritura e o
dirigir espiritualmente. Este sacerdote, muito ins­ 313 Af£ll, 25.
truído, foi o sucessor de Santo Ambrósio. (N. do T.) ?1, J Refere-se ao Sacramento do Batismo. (N. do
312 Col 2, 8.
CONFISSÕES VIII 153

res ilustres; ele, que, pelo seu insigne e tanto, são as paredes da igreja que nos
notável magistério, merecera e aceitara fazem cristãos?” Repetia muitas vezes
a honra que os cidadãos deste mundo que já era cristão. Simpliciano respon­
têm por mais excelsa — uma estátua dia-lhe com a mesma frase, e Vitorino
no Foro romano; ele, até àquela idade de novo repetia o gracejo das paredes.
o adorador dos ídolos e o compartici- Este temia ofender os amigos — sober­
pante dos ritos sacrílegos, com que bos adoradores dos demônios —, por
então quase toda a nobreza romana, julgar que, do cimo das suas dignida-
apaixonada, inspirava ao povo o culto des babilônicas e mundanas, como do
de Osíris31 5, “de monstros de deuses alto de cedros do Líbano que o Senhor
de todo o gênero e até do ladrador ainda não abatera, haviam de ruir
Anúbis31 6” — monstros que outrora sobre ele pesadas perseguições.
“pegaram em armas contra Netuno, Mas depois que hauriu força na lei­
Vênus e Minerva31 7” — a quem tura e oração, temeu ser negado por
Roma fazia súplicas, depois de os ter Cristo, “na presença dos santos
vencido; ele, enfim, o velho Vitorino, anjos”, se receasse “confessá-lo peran­
que por tantos anos defendera esses te os homens31 9”. Imaginou-se réu de
deuses com aterradora eloquência. grande crime por se envergonhar dos
4. O Senhor, Senhor, que “incli­ sacramentos de humildade do vosso
nastes os céus e de lá descestes, que Verbo, e não corar com as sacrílegas
tocastes os montes e fumegaram318”,
como pudestes insinuar-Vos naquele adorações dos soberbos demônios, as
coração? Vitorino — afirmou-me Sim- quais, como soberbo imitador, aceita­
pliciano — lia a Sagrada Escritura, ra. Teve pejo da vaidade e corou à
perscrutava e investigava ansiosa­ vista da verdade. De súbito e inespera­
mente a verdade na literatura cristã. damente disse a Simpliciano, como
Dizia a Simpliciano, não às claras, este me contou: “Vamos à igreja;
mas na intimidade e familiarmente: quero fazer-me cristão”. Simpliciano,
“Sabes que já sou cristão?” E aquele não cabendo em si de alegria, foi com
respondia-lhe: “Não acreditarei em ti ele. Quando assimilou os primeiros
nem te contarei entre os cristãos, mistérios da doutrina, deu, não muito
enquanto te não vir na Igreja dê Cris­ depois, o nome para se regenerar no
to”. Vitorino- sofria, dizendo: “Por­ batismo, causando admiração em
Roma e regozijo na Igreja. Os sober­
31 5 Divindade suprema da mitologia egípcia, que, bos, ao verem o caso, iravam-se, ran­
juntamente com ísis, sua esposa, e Hórus, seu filho, giam os dentes e consumiam-se. Vós,
constituía uma trindade familiar. Segundo a lenda,
Osíris, deus do Nilo e da vegetação, foi assassinado porém, Deus e Senhor, éreis a espe­
por Set, o deus do deserto, e ressuscitado por sua rança cio vosso servo, que “não olhava
esposa, ísis, a deusa da terra fértil. Hórus matou a para yaidades e enganpsas loucu­
Set, para vingar o pai. Os egípcios representavam os
deuses por figuras de animais e por figuras humanas ras329”.
com cabeça "de animal. Ádoravam: o crocodilo, o
gato, o leão, o escaravelho, o falcão, o boi, a íbis, 5. Enfim, chegada a hora de fazer a
etc. (N. do T.) profissão de fé — em Roma, os que se
31 6 Divindade egípcia que, segundo a mitologia, hão de aproximar para receber a graça
embalsamou o cadáver do deus Osíris. É represen­
tado sob o corpo de homem e cabeça de chacal, que costumam fazer essa profissão dum
os gregos e Virgílio confundiram com um cão a lugar elevado, em fórmulas fixas e
ladrar. Camões refere-se a ele nos Lusíadas, VII, 48.
(N. do T.j ' .
31 7 Virgílio, Eneida VIII, 698. 319 Lc 12, 9;Mc 8, 38.
318 57143,5. 320 Sl 39, 5.
154 SANTO AGOSTINHO

decoradas, na presença do povo fiel conhecesse? Ressoou, em som reprimi­


—, contou-me Simpliciano que os do, pela boca de todo o povo delirante
presbíteros ofereceram a Vitorino para de alegria: “Vitorino, Vitorino!” Ao
a fazer à parte, como se costumava verem-no, imediatamente o aclamaram
permitir a alguns que deixavam ante­ com júbilo. Mas logo emudeceram
ver timidez e vergonha. Mas ele prefe­ para o ouvirem com atenção. Vitorino
riu confessar a sua salvação na pre- pronunciou, com notável firmeza, a
sençá da plebe santa. Se tinha fórmula da verdadeira fé. Todos o
professado publicamente a retórica, desejavam raptar para dentro do cora­
apesar de nela não ter ensinado a sal­ ção.’Raptaram-no com o amor e a ale­
vação, que motivo havia para, ao pro­ gria. Estas eram as mãos com que o
nunciar as vossas palavras, ter medo arrebataram321 !
da vossa mansa grei, ele que, ao profe­
rir os seus discursos, não temia as tur­
bas dos insensatos?! Quando subiu 321 Mário Vitorino, cujas obras se lêem em Migne,
P.L., t. VII, pp. 1 000-1 308, foi também filósofo.
para dar testemunho da fé, como todos Teve uma estátua em Roma, no foro de Trajano.
o conheciam, unanimemente soltaram Traduziu para o latim a Isagoge, de Porfírio, as
Enêadas, de Plotiro, e as Categorias, de Aristóteles.
com alarido o seu nome, em gritos de Escreveu sobre filosofia, retórica e religião. (N. do
regozijo. Quem havia ali que o não T.)

3
A alegria do que volta a Deus
6. ó Deus tãó bom, que se passa no jais-Vos em nós e em vossos anjos
homem, para que se regozije mais com santificados por um amor Santo. Sois
a salvação duma alma desesperada e sempre o mesmo. Conheceis sempre e
agora livre dum grande perigo, do que do mesmo modo tudo o que nem sem­
se ele sempre tivesse conservado a pre nem da mesma maneira existe.
esperança acerca dela e fosse menor o 7. Que é, pois, o que se opera na
perigo? Mas também Vós, ó Pai alma,.quando se deleita mais com as
misericordioso, sentis mais gozo “por coisas encontradas _qu reavidas que
um só penitente, do que por noventa e estima, do que se as possuíssejsempre?
nove justos, que não precisam da Há, na verdade, muitos outros exem­
penitência322”. Também nós ouvimos plos que o afirmam. Abundam os teste­
com imenso prazer a alegria do pastor munhos que nos gritam: ’“É assim
que conduz aos ombros a ovelha mesmo!” Triunfa o general vitorioso.
desgarrada, ou a da mulher que encon­ Mas não teria alcançado a vitória se
trou a dracma, e, no meio do regozijo não tivesse pelejado, e quanto mais
dos vizinhos, a repõe nos vossos tesou­ grave foi o perigo no combate, tanto
ros. O júbilo da solenidade d'a vossa maior é o gozo no triunfo. A tempes­
morada estanca-nos as lágrimas ao ler­ tade arremessa os marinheiros, amea­
mos que em vossa casa o filho mais çando-os com o naufrágio: “Todos
novo “estava morto e reviveu, tinha empalidecem com a morte iminen­
perecido e foi encontrado323”. Regozi­ te32 4”. Mas tranqüilizam-se o céu e o
mar, e todos exultam muito, porque
322 Lc 15,7.
323 Lc 15.32. 32 4 Verso de Virgílio, Eneida IV, 644.
CONFISSÕES VIII 155

muito temeram. Está doente um amigo amizade, como também naquele “que
e o seu pulso acusa perigo. Todos os estava morto e reviveu, havia perecido
que o desejam ver curado sentem-se e foi achado32 5”. Por toda parte, uma
simultaneamente doentes na alma. Me­ alegria maior é precedida duma dor
lhora. Ainda não recuperou as forças também maior.
antigas e já reina tal júbilo qual não Por que assim, ó Senhor, Deus meu,
existia antes, quando se achava são e quando Vós próprio sois a vossa ale­
forte. gria eterna, e tudo o que está à vossa
Até os próprios prazeres da vidá hu­ volta se alegra em Vós? Por que é que
mana não se apossam do coração do esta parte das vossas obras oscila em
homem só por desgraças inesperadas e alternativas de queda e de progresso,
fortuitas, mas por molétias previstas e de ofçnsas e de reconciliações? Será
voluntariamente procuradas. Não há esta a sua condição? Só lhe conce­
prazer nenhum no comer e beber; se o
incômodo da fome e da sede o não pre­ destes isso, quando das alturas dos
cede. Por isso os ébrios costumam céus até aos abismos da terra, do prin­
tomar certos alimentos salgados, para cípio ao fim dos séculos, do anjo ao
que se lhes tome molesta a sede arden­ mais pequenino verme, do primeiro ao
te que se há de transformar em prazer, último movimento dispúnheis todas as
quando acalmada pela bebida. Está variedades de bens e todas as vossas
estabelecido que não sê entregam ime­ obras justas no seu lugar, e as determi-
diatamente aos maridos as esposas náveis no seu respectivo tempo? Ai de
prometidas, para que o esposo, no caso mim! Quão alto sois nas alturas e
de nunca haver suspirado pela esposa, quão profundo nos profundos abis­
não a venha a ter como coisa desprezí­ mos ! Nunca Vos apartais de nós, e,
vel. contudo, com que dificuldade nos vol­
8. Isso tanto se verifica na alegria tamos para Vós!
torpe e execranda como no prazer per­
mitido e lícito; na mais sincera e pura 32 5 Lc 15, 32.

4
O regozijo da Igreja

9. Eia, Senhor, agi, despertai-nos, e conhecidos no mundo social, até as


chamai-nos! Vinde abrasar-nos e arré- pessoas que os conhecem já se alegram
batai-nos, inflamai-nos, enchei-nos de menos. Com efeito, quando a alegria
doçura: amemos, corramos. Não são invade a muitos, o gáudio é mais abun­
muitos os que, dum tártaro de cegueira dante em cada um, pois aquecem-se e
mais profundo que o de Vitorino, se inflamam-se uns aos outros. Depois, os
voltam para Vós, se aproximam e, que são conhecidos de muita gente
recebendo a luz, se vêem iluminados? exercem influência na salvação de mui­
E, no caso de receberem essa luz, não é tos e caminham adiante, seguidos de
verdade que recebem igualmente de
Vós o poder de ,se fazerem vossos numerosas pessoas. Por isso, dão tam­
filhos32 6? Mas, se eles são menos bém grande alegria aos que os precede­
ram. Não se regozijam só consigo.
32 6 Jo 1, 9, 12. Mas longe de mim pensar que no
156 SANTO AGOSTINHO

vosso tabemáculo se recebem os ricos naquele em quem ele domina commais


de preferência aos pobres, ou os nobres império e por meio do qual retém
de preferência aos desprezados, porque maior número de sequazes. Por isso, o
escolhestes “o fraco segundo p mundo, inimigo segura com mais força os
para confundirdes o forte; escolhestes soberbos por meio do nome da nobre­
o vil deste mundo, o desprezível e o za, e, por intermédio destes, a outros
que não é nada para destruirdes o que muitos pelo título da autoridade.
é3 2 7”. Contudo, “o mínimo dos vossos Ora, quanto mais favorável era a
apóstolos328”, por cuja língua fizeste opinião que havia do coração de Vito­
ressoar estas palavras, quando fez pas­ rino — espécie de reduto inexpugnável
sar, sob o jugo de Cristo, o Procônsul que o demônio tinha ocupado — e dà
Paulo, cuja soberba abateu pela força e língua — dardo comprido e agudo
o transformou em súdito do grande com que dera a morte a muitas almas
Rei, gostou de se chamar também —, tanto mais superabundantemente
Paulo em vez do antigo Saulo, por ser deviam exultar os vossos filhos, ao
tão grande a vitória brilhantemente verem que o nosso Rei agrilhoara o
alcançada329. Com efeito, o adver­ forte, e que os seus vasos roubados se
sário é mais completamente vencido tinham purificado e acondicionado à
vossa honra, tomando-se “úteis ao Se­
3:17 1 Cor 1,27. nhor para toda boa obra3 3 °”.
328 São Paulo, 1 Cor 15,9.
329 At 13, 7-12. 330 2 Tim 2,21.

5
A luta das vontades

10. Logo que o vosso servo Simpli­ duma vontade alheia, mas pelas mi­
ciano me contou tudo isso de Vitorino, nhas, também de ferro.
imediatamente ardi em desejos de imi­ O inimigo dominava o meu querer, e
tá-lo. De fato, toda a sua narração dele me forjava uma cadeia com que
tinha este mesmo fim em vista. Porém, me apertava. Ora, a lúxúria provém da
quando depois acrescentou que nos vontade perversa; enquanto se serve à
tempos do Imperador Juliano tinha luxúria, contrai-se o hábito; e, se não
sido promulgada uma lei proibindo aos se resiste a um hábito, origina-se uma
cristãos ensinarem literatura e oratória necessidade. Era assiih que, por uma
— lei que Vitorino abraçou, preferindo espécie de anéis entrelaçados — por
assim abandonar antes a escola dos isso lhes chamei cadeia —, me segu­
palradores do que a vossa Palavra, rava apertado em durà escravidão. A
“com que tomais eloquentes as línguas vontade nova, que começava a existir
das crianças331” — pareceu-me que em mim, a vontade de Vos honrar
Vitorino era tão corajoso como feliz, gratuitamente e de querer gozar de
por ter encontrado ocasião propícia Vós, ó meu Deus, único contentamento
para se entregar a Vós. Por isso eu sus­ seguro, ainda se não achava apta pára
pirava, atado, não pelas férreas cadeias superar a outra vontade, fortificada
pela concupiscência. Assim, duas von­
331 Sab 10,21. tades, uma concupiscente, outra dorhi-
CONFISSÕES VIII 157

nada, uma carnal e outra espiritual, queira dormir sempre. A sã razão de


batalhavam mutuamente em mim. Dis­ todos concorda que é preferível estar
cordando, dilaceravam-me a alma. acordado. E contudo, quando o torpor
11. Por isso, compreendia, por ex­ toma os membros, pesados, retarda-se,
periência própria, o que tinha lido. as mais das vezes, a hora de sacudir o
Entendia agora como “a carne tem sono, e vai-se continuando, de boa
desejos contra o espírito, e o espírito vontade, a prolongá-lo até ao aborreci­
tem-nos contra a carne332”. Eu, na mento, mesmo depois de haver chega­
verdade, vivia em ambos: na carne e do o tempo de levantar.
no espírito. Vivia, porém, mais naquele Também eu estava certo de que o
que aprovava em mim (no desejo do entregar-se ao vosso amor era melhor
espírito contra a carne), do que no que ceder ao meu apetite. Mas o pri­
outro que em mim condenava (no dese­ meiro agradava-me e vencia-me; o
jo da carne contra o espírito). Com segundo aprazia-me e encadeava-me.
efeito, neste já não era eu quem vivia, Não tinha, por isso, nada que Vos res­
visto que, em grande parte, o sofria ponder, quando me dizíeis: “Desperta,
mais contra a vontade, do que o prati­ ó tu que dormes; levanta-te de entre os
cava de livre arbítrio. Mas, enfim, o mortos e Cristo te iluminará333”.
hábito, que combatia tanto contra Mostrando-me Vós, por toda parte,
mim, provinha de mim, porque, com que faláveis verdade, eu, que já estava
atos da vontade, eu chegava onde não convencido, não tinha absolutamente
queria. E quem poderá protestar legiti­ nada que Vos responder senão pala­
mamente, quando um castigo justo vras preguiçosas e sonolentas: “Um
persegue o pecador? instante, um instantinho, esperai um
Eu já não tinha aquela escusa pela momento”. Mas este “instante” não
qual ordinariamente me parecia que, se tinha fim, e este “esperai um momen­
ainda não desprezava o mundo, pára to” ia-se prolongando.
Vos servir, era porque tinha uma luz “Deleitava-me com a vossa Lei
incerta de verdade. Já não tinha essa segundo o homem interior, mas em
escusa, pois a luz também já era certa vão, porque em meus membros outra
para mim. Porém, ainda ligado à terra, lei repugnava à lei do meu espírito, e
recusava alistar-me no Vosso exército, me mantinha cativo na lei do pecado
e temia tanto ver-me livre de todos os que está em meus membros33 4.” Com
impedimentos como se receasse ffcar efeito, a lei do pecado é a violência do
preso. hábito, pela qual a alma, mesmo
12. Semelhante ao que dorme niim contrafeita, é arrastada e presa, mas
sonho, sentia-me docemente oprimiíio merecidamente, porque, querendo, se
pelo peso do século. Os pensamentos deixa escorregar. Ah! miserável de
com que em Vós meditava pareciam-se mim! “Quem me livrará deste corpo
com os esforços daqueles que desejam mortal, senão a vossa graça, por/Jesus
despértar, mas que, vencidos pela pro­ Cristo Nosso Senhor?33 5”
fundeza da sonolência, de novo mergu­
lham no sono. Não há ninguém que 333 Ef5, 14.
33 4 Roml, 2.
332 Gál 5, 17. 33 5 Rom 7, 22-25.
158 SANTO AGOSTINHO

6
Narração de Ponticiano
13. Contarei agora e confessarei, “ó maior número de horas possível para
Senhor, meu amparo para glória do indagar, ler ou ouvir ler qualquer coisa
vosso nome, Redentor33 6”, como me da sabedoria.
arrancastes dos laços do desejo carnal, 14. Ora, um dia — não me recordo
a que estava tão estreitamente preso. por que é que Nebrídio se achava
Levava a vida do costume, numa ausente —, um tal Ponticiano, nosso
ansiedade crescente, suspirando todos compatriota, como africano que era,
os dias por Vós e frequentando a vossa que no palácio desempenhava um
igreja por todo o tempo que me deixa­ cargo elevado, veio à nossa casa visi­
vam livre os negócios sob cujo peso tar-nos, a mim e a Alípio. Já não sei o
gemia. Habitava comigo Alípio, deso­ que nos queria. Sentamo-nos para con­
nerado do cargo de juiz, depois de ter versar. Por acaso, viu em cima da
sido assessor pela terceira vez, espe­ mesa de jogo que estava diante de nós
rando ocasião de vender de novo as um códice. Pegou nele, abriu-o, e
consultas como eu vendia a arte da inesperadamente encontrou as Epísto­
eloquência, se é que, pelo ensino, a las do Apóstolo São Paulo. Imaginara
podemos transmitir33 7. Nebrídio, que era algum dos livros cujo estudo
porém, havia cedido à nossa amizade, me atarefava. Então, sorriu para mim
vindo substituir, nas aulas, a Verecun- e, felicitando-me, admirou-se de ter
do, o nosso mais íntimo amigo, cida­ encontrado, em frente de meus olhos,
dão milanês e gramático, que com este livro e só este livro.
grande instância desejava e em nome
da amizade pedia que um de nós lhe Ponticiano era um cristão fiel que
prestasse a ajuda de que tanto carecia. muitas vezes se prostrara diante de
Portanto, não foi o desejo das como­ Vós, ó meu Deus, na igreja, em fre­
didades que atraiu para este ofício quente e longa oração. Declarei-lhe
Nebrídio — pois poderia, se quisesse, que todo o meu maior cuidado ia para
aquela Bíblia. Assim nasceu a con­
tirar mais rendimento das suas letras
—, mas, como amigo tão doce e apra­ versa de Ponticiano acerca de Antão,
zível, não quis, por dever de benevo­ monge do Egito, cujo nome resplan­
lência, desprezar o nosso pedido. Pro­ decia notoriamente entre vossos ser­
cedia, porém, com a maior prudência, vos, mas que até àquela hora nos era
tendo o cuidado de se não fazer conhe­ desconhecido. Quando reparou nisto,
cido dos grandes segundo este mundo. alongou-se na conversa. Sugeria-nos
Evitava no trato com eles toda a um homem tão grande, para nós desco­
inquietação do espírito, que queria nhecido, e estranhava a nossa ignorân­
conservar livre e desocupado, com o cia. Ouvíamos, estupefatos, as vossas
maravilhas tão autênticas, tão recentes
33 6 Sl 53, 8; 18, 15. e quase contemporâneas, realizadas na
33 7 Segundo o platónismo, ensinar é trazer à flor verdadeira Fé, na Igreja Católica.
da alma conhecimentos que nela jaziam adormeci­ Todos nos admirávamos: nós, por
dos. Esta doutrina influiu na teoria agostiniana da
“Reminiscência” e da “Iluminação Divina”. (N. do serem estas coisas tão grandes; e ele,
T.) por nunca as termos ouvido.
CONFISSÕES VIII 159

15. Daqui, passou a conversa à Que esperança maior podemos conce­


multidão de mosteiros, aos bons costu­ ber no palácio, do que sermos validos
mes que recendiam o vosso suave per­ do imperador? Mas, para isso,- quanta
fume, e, enfim, aos férteis desertos do incerteza e quantos perigos? ! Quantos
ermo. Tudo isto ignorávamos absolu­ perigos para chegar a um perigo ainda
tamente. Havia mesmo em Milão, fora maior? E quando lá chegaremos nós?
das muralhas, um mosteiro cheio de Porém, se eu quiser ser amigo de Deus,
santos religiosos, sob a tutela de posso sê-lo desde já, imediatamente”.
Ambrósio, e nós sem o sabermos. Pon- Disse essas palavras, e, agitado,
ticiano prosseguia, continuando sem­ exaltado por . aquela gestação de vida
pre a falar, e nós todos atentos, em nova, lançou de novo os olhos ao livro.
silêncio. Lia e transformava-se interiormente,
Passou a contar-nos que um dia, onde só Vós o ví eis. O pensamento
não sei quando, ele e três camaradas fugia-lhe deste mundo, como logo se
saíram, creio que em Tréveris, a pas­ notou. Ao ler, revolveram-se-lhe as
sear pelos jardins contíguos às mura­ ondas do coração. Sentiu de vez em
lhas. Era depois do meio-diq e o quando frêmitos, viu o melhor partido
imperador33*8 achava-se absorvido nos a tomar e, resolvido a segui-lo, disse, já
jogos circenses. todo vosso, para o amigo: “Já rompi
Por acaso, caminhando afastados, com todas as nossas esperanças; decidi
em grupos de dois, um com Ponti- servir a Deus; entro para o Seu servi­
ciano, e do mesmo modo os outros, ço, nesta hora e neste lugar. Se não
tomaram por caminhos diferentes. tens força para me imitares, não me
Ora, estes últimos deram com uma ca­ sejas contrário”. Respondeu o outro
bana onde habitavam uns vossos ser­ que se lhe queria também juntar com o
vos, “pobres em espírito, de quem é o companheiro de tão grande prêmio, em
reino dos céus339”. Encontraram lá tão grande combate. E ambos, já vos­
um códice onde estava escrita a vida sos, edificavam, com capital suficiente,
de Antão3 40. Um deles começa a lê-la. uma torre de salvação, deixando tudo
Principia a admirar-se, a abrasar-se, e, o que possuíam para Vos se­
enquanto lia, pensava em abraçar tal guir341. Então, Ponticiano e o que
vida, e servir-Vos, abandonando a com ele passeava pelas outras partes
milícia do século. Pertenciam ao nú­ do jardim foram procurá-los. Chega­
mero dos chamados agentes de negó­ ram ao sítio onde se encontravam, e
cios (do imperador). Então, de repente, avisaram-nos para que voltassem, pois
cheio de santo amor e salutar confu­ já entardecia. Mas eles, contando a sua
são, irado consigo mesmo, pousou os resolução, o propósito e o modo como
olhos no amigo e disse-lhe: “Peço-te tal vontade havia nascido neles e se
que me digas: ónde pretendemos nós enraizara, pediram que os não moles­
chegar com todos estes trabalhos? Que tassem, caso recusassem juntar-se-lhes.
buscamos? Por que razão militamos? Estes, porém, sem mudarem de vida,
choraram-se a si mesmos, como referia
33 8 Valentiniano II. Morreu assassinado (n. 371 Ponticiano. Felicitaram-nos piamente,
-m. 392). (N. do T.) encomendaram-se às suas orações e,
339 Mí5,3.
3 40 Trata-se da Vida de Santo Antão, escrita em arrastando o coração pela terra, afas-
grego por Santo Atanásio, bispo de Alexandria, a
qual, em 371, foi traduzida para o latim por Evá-
grio. (N. do T.) 341 Lc 14,28.
160 SANTO AGOSTINHO

taram-se para o palácio. Os outros vas. Quando estas depois souberam de


dois, fixando o seu coração no céu, tal resolução, consagraram-Vos tam­
ficaram na cabana. Ambos tinham noi­ bém a Virgindade.

7
Reação de Agostinho

16. Isto me contava Ponticiano. e, enfim, aos prazeres corporais, que, a


Mas Vós, Senhor, enquanto ele falava, um aceno, afluíam à minha volta.
fazíeis-me refletir sobre mim mesmo, Eu, jovem tão miserável, sim, mise­
tirando-me da posição de costas em rável desde o despertar da juventude,
que me tinha posto para eu próprio me tinha-Vos pedido a castidade, nestes
não podêr ver. Colocáveis-me perante termos: “Dai-me a castidade e a conti­
o meu rokto, para que visse como an­ nência; mas não ma deis já”. Temia
dava torpe, disforme, sujo, manchado e que me ouvisseis logo e me curásseis
ulceroso. Via-me e horrorizava-me; imediatamente da doença da concupis- .
mas não tinha por onde fugir. cência, que antes preferia suportar que
Todas as vezes que me esforçava extinguir. Tinha andado por maus
por afastar essa vista, Ponticiano caminhos, em sacrílega superstição,
avançava sempre na narrativa. Colo­ não que estivesse certo dela, mas por­
cáveis-me a mim mesmo diante de que a antepunha a outras verdades que
mim, e arreme^sáveis-me para a frente não procurava com piedade e comba­
dos meus olhos, para que, “encon­ tia hostilmente.
trando a minha iniquidade, a odias­
se3 42”. Conhecia-a, mas fingia que a 18. Julgava que o motivo por que
não via, procurando esquecê-la. adiava de dia para dia o desprezo da
17. Mas quanto mais ardentemente esperança do século e o seguir-Vos só
amava aqueles jovens3 43, de quem a Vós era porque me não aparecia
ouvia contar salutares exemplos — nada certo por onde dirigisse o meu
pois se entregaram todos a Vós para os trajeto. Veio então o dia em que me vi
curardes —, tanto mais execrável­ todo nu, sob as repreensões da cons­
mente me odiava, ao comparar-me ciência: “Onde está a tua palavra? Não
com eles. Com efeito, já tinham decor­ dizias que era por causa da incerteza
rido muitos anos — talvez uns doze — da verdade que não atiravas com o
desde o ano décimo nono da minha fardo da tua vaidade? Já tens a certeza
idade, em que me apaixonei pelo estu­ e ainda o fardo te carrega, quando
do da Sabedoria, ao ler o Hortênsio de outros, que não se mataram em procu­
Cícero. Eu ia adiando a hora de des­ rá-la, nem meditaram dez anos ou
prezar a felicidade terrena, para me mais, em tais assuntos, recebem asas
entregar à busca da Sabedoria, cuja nos seus ombros mais livres”.
investigação, para não falar já da sua Assim me roía interiormente, con­
descoberta, se deve antepor aos tesou­ fundindo-me com horrível e acentuada
ros encontrados, aos reinos do mundo vergonha, enquanto Ponticiano falava.
Finda a conversa e alcançando o fim a
3 42 Sl 35, 3.
3 43 (Cf. cap. ant.). Os jovens que se fizeram eremi­ que viera, partiu. E eu voltei a mim. O
tas. (N. do T.) que não proferi contra mim mesmo?
CONFISSÕES VIII 161

Com que açoites de palavras não flage­ tos e refutados. Só ficara nela um
lei a alma, para que seguisse o impulso mudo temor. A alma tinha medo,
que eu fazia para ir atrás de Vós? Mas como da morte, de ser desviada da cor­
ela, renitente, recusava sem se escusar. rente do vício em que ia apodrecendo
Todos os argumentos estavam desfei­ mortalmente.

8
No jardim de Milão. Luta espiritual
19. Então, no meio daquela grande Afastei-me para o jardim e Alípio
refrega que, na minha casa interior, no seguiu-me, passo a passo. Mesmo com
meu quarto — o coração —, violenta­ ele presente, a minha solidão conti­
mente tinha travado contra a alma, nuava. Como me havia ele de deixar,
precipito-me sobre Alípio, excla­ naquele estado? Sentamo-nos o mais
mando, perturbado no rosto e no espí­ longe possível de casa.
rito: “Por que Sofremos? Que significa Eu rangia em espírito, irando-me
o que acabas de ouvir? Os ignorantes com turbulentíssima indignação, por
levantam-se e arrebatam o céu3 4 4, e não poder seguir o vosso agrado e
nós, com doutrinas insensatas, eis aliança, ó meu Deus, pela qual todos
como nos revolvemos na carne e no os meus ossos clamavam, erguendo-
sangue! Teremos vergonha de os se­ Vos louvores até ao céu. Para lá che­
guir, porque nos precederam, e não nos gar não se vai de navio, de carro ou a
envergonhamos sequer de os não se­ pé, nem sequer para andar o caminho
guir?” que tinha percorrido desde casa ao
Tais foram algumas das palavras lugar onde estávamos sentados. Com
que disse. A perturbação arrancou-me efeito, não só o ir ao céu, mas também
de Alípio. Ficou calado e atônito, a o atingi-lo não são mais que o querer
olhar-me, por eu falar dum modo insó­ ir, mas um querer forte e total, não
lito. A fronte, as faces, os olhos, á cor, uma vontade tíbia que anda e desanda
o timbre da voz descreviam mais o es­ daqui para ali, que luta consigo
tado da minha alma, do que as pala­ mesma, erguendo-se num lado e caindo
vras que proferia. no outro.
Na habitação de que usávamos, bem 20. Enfim, naquelas hesitações cau­
como do resto da casa — pois o sadas pela dúvida, fazia os gestos que
hospedeiro, o dono, não a habitava —, costumam fazer os homens que que­
havia um pequeno jardim. Para lá me rem e não podem, ou porque não pos­
levara o tumulto do meu peito, onde suem membros ou porque os têm liga­
ninguém era capaz de evitar a ardente dos com cadeias, debilitados pela
luta que eu travara comigo e que se fraqueza, ou de qualquer modo impedi­
prolongaria até se resolver o assunto dos. Agarrei o cabelo, feri a fronte,
conforme Vós sabíeis e eu ignorava. apertei os joelhos entre os dedos entre­
Esta minha loucura seria salutar e esta laçados. Fiz todos estes gestos porque
morte, vivificante. Eu sabia o que tinha quis. Poderia, porém, querer e não os
de mal, e ignorava o bem que havia de fazer, se a flexibilidade dos membros
ter pouco tempo depois. me não obedecesse.
Fiz, portanto, muitos movimentos,
3** Mt 11, 12. quando o querer não era o mesmo que
162 SANTO AGOSTINHO

o poder. Não fiz o 4ue incompara­ acontecia assim, porque o corpo, mo­
velmente desejava muito mais, apesar vendo ao mínimo sinal os membros,
de o poder fazer logo que quisesse, obedecia mais facilmente à vontade
porque, para o querer, basta querer fraquíssima da alma, do que a própria
sinceramente. Ora, aqui a faculdade de alma se obedecia a si mesma para efe­
poder identificava-se com a vontade; o tuar a sua grande vontade, só com a
querer era já praticar. E contudo não vontade.

9
A vontade em guerra

21. Donde vem este prodígio? Qual Mas não quer totalmente. Portanto,
o motivo? Fazei que brilhe a vossa também não ordena terminantemente.
misericórdia, e eu pergunte, pois talvez Manda na proporção do querer. Não
me possam responder os castigos som­ se executa o que ela ordena enquanto
brios dos homens e as tenebrosíssimas ela não quiser, porque a vontade é que
desolações dos filhos de Adão. Donde
manda que seja vontade. Não é outra
provém este prodígio? Qual a causa?
alma, mas é ela própria. Se não ordena
A alma manda ao corpo, e estç imedia­
tamente lhe obedece; a alma dá uma plenamente, logo não é o'5que manda,
ordem a si-mesma, e resiste! Ordena a pois, se a vontade fosse plena, não
alma à mão que se mova, e é tão gran­ ■ ordenaria que fosse vontade, porque já
de a facilidade, que o mandado mal se o era. Portanto, não é prodígio nenhum
distingue da execução. E a alma é em parte querer e em parte não querer,
alma, e a mão é corpo ! A alma ordena mas doença da alma. Com efeito, esta,
que a alma queira; e, sendo a mesma sobrecarregada pelo hábito, não se
alma, não obedece. Donde nasce este
prodígio? Qual a razão? Repito: a levanta totalmente, apesar de socorrida
alma ordena que queira — porque se pela verdade. São, pois, duas vontades.
não quisesse não mandaria —, e não Porque uma delas não é completa,
executa o que lhe manda! encerra o que falta à outra.

10
Contra os maniqueístas
22. Desapareçam, ó meu Deus, da dade e concordarem com os homens de
vossa face, como vãos faladores e verdade, para que o vosso Apóstolo
sedutores do espírito, os que, ao obser­ lhes possa também dizer: “Outrora
varem a deliberação das duas vonta­ fostes trevas, mas agora sois luz no
des, afirmam que temos duas almas de Senhor3 4 5”. Porém, enquanto quise­
naturezas diferentes: uma boa e outra rem ser luz em si mesmos e não no
má. Ora, esses tais são realmente Senhor, julgando que a natureza da
maus, ao seguirem essa má doutrina.
Só serão bons quando sentirem a ver­ 3 4 5 £/5, 8.
CONFISSÕES VIU 163

alma é a mesma que a de Deus, vão-se des desavindas entre si, se há de ir ao


fazendo trevas cada vez mais densas. teatro ou à nossa igreja. Não flutuarão
Com efeito, na sua repugnante arro­ os maniqueístas na resposta que hão
gância, afastaram-se para mais longe de dar? Ou hão de confessar o que não
de Vós, verdadeira luz que ilumina querem, que a vontade boa é que o
todo homem que vem a este conduz à nossa igreja, aonde se diri­
mundo3 4 6. Refleti no que afirmais e gem os que já foram embebidos e liga­
corai de vergonha. Aproximai-vos dos pelos Sacramentos — ou então
d’Ele para serdes iluminados e os vos­ hão de julgar que num só homem com­
sos rostos não serão cobertos de batem duas naturezas e duas almas
confusão3 4 7. más. Portanto, será falso o que costu­
Quando eu deliberava servir já o Se­ mam dizer, que há uma natureza boa e
nhor meu Deus, como há muito tempo outra má. Oü se hão de voltar, enfim,
tinha proposto, era eu o que queria e para a verdade, sem poder deixar de
era eu o que não queria; era eu mesmo. afirmar que, quando se delibera, ã
Nem queria, nem deixava de querer alma é uma só, hesitante entre diversas
inteiramente. Por isso me digladiava, vontades.
rasgando-me a mim mesmo. Esta des­ 24. Logo, admitindo eles que duas
truição operava-se, é certo, contra a vontades combatem num só homem,
minha vontade, porém não indicava a nem por isso afirmam que contendem
natureza duma alma estranha, mas o duas almas contrárias, uma boa e
castigo da minha própria alma. “Era o outra má, formadas de duas substân­
pecado3 48”, que habitava em mim e cias contrárias e de dois princípios
não eu quem mo afligia em castigo dum também contrários! Vós, Deus verda­
pecado cometido com mais liberdade deiro, os reprovais, argüis e conven­
por ser filho de Adão. ceis, uma vez que o mesmo acontece
23. Se houvesse, portanto, tantas em vontades diferentes, ambas más,
naturezas contrárias quantas as vonta­ como, por exemplo, quando alguém
des que em nós se debatem, havería delibera se há de assassinar um homem
não duas, mas maior número de natu­ a veneno ou a punhal, se há de assaltar
rezas. Se alguém hesita em ir . a uma esta • ou aquela propriedade alheia
das ridículas reuniões dos mani- quando as não pode apanhar ambas, se
queístas ou ao teatro, logo aqueles gri­ se há de servir do dinheiro para com­
tam: “Eis duas naturezas: uma. boa, prar o prazer luxurioso ou conservá-lo
que o atrai para cá; outra má, que o na avareza, se há de ir ao circo ou a
afasta. Que outra origem pode ter esta teatro, dado o caso de serem no mesmo
indecisão de vontades contrárias entre dia. Acrescento uma terceira delibera­
si?” Porém eu, pela minha parte, digo ção: se se há de ir roubar a casa alheia
que ambas são más, tanto aquela que o havendo para isso oportunidade. Ajun-
arrasta para eles, como a outra que to uma quarta incerteza: se se há de
leva ao teatro. Mas eles só têm como cometer adultério patenteando-se com
boa a vontade que o conduz às suas isso simultaneamente a possibilidade.
reuniões! Ora, se todas estas hipóteses se
Mas suponhamos que um dos nos­ realizassem num dado momento e com
sos delibera e flutua entre duas vontã- igual ânsia se desejassem todas —
coisa que de modo algum pode aconte­
346 Jo 1,9. cer ao mesmo tempo —, despedaça­
347 V/33,6.
3 48 Rom 7, 17. riam a alma numa luta de quatro von­
164 SANTO AGOSTINHO

tades ou mais ainda, pois é tão grande des o coração do homem, enquanto
a abundância dos objetos apetecidos! delibera qual delas preferentemente
Contudo, eles, os maniqueístas, não deve abraçar? E todas são boas e
têm o costume de afirmar que haja tão lutam mutuamente até que se tome
grande multidão de substâncias diver­ uma resolução para a qual a vontade,
sas !. . . que dantes se dividia, se volte inteira­
O mesmo acontece nas vontades mente, já unificada.
boas. Com efeito, pergunto-lhes se é Assim também quando a eternidade
bom deleitar-me com a leitura do deleita a parte superior, e o desejo do
Apóstolo, se é bom deleitar-me com o bem temporal retém a parte inferior, é
canto moderado dum salmo ou se é a mesma alma que, sem vontade plena,
bom comentar o Evangelho. A cada quer uma ou outra coisa. Por isso
uma destas perguntas, responderão: “É despedaça-se em penosas dores en­
bom”. Mas se todas nos agradassem quanto pela verdade prefere a eterni­
igualmente e ao mesmo tempo, não dade, e pelo hábito não quer desprezar
atormentariam já estas diversas vonta­ o desejo do bem temporal.

11
O espírito e a carne. Últimas lutas
25. Assim sofria e me atormentava, A paixão’ arraigada em mim, domina­
acusando-me muito mais asperamente va-me mais do que o bem, cujo hábito
que de ordinário, rolando-me e revol­ desconhecia. Ao passo que se vinha
vendo-me nas minhas cadeias até que aproximando o tempo em que me
totalmente estalassem, pois só tenue- devia transformar noutro homem,
mente estava atado a elas. Mas, enfim, maior era o horror que me incutia.
ainda estava preso. E Vós, ó Senhor, Mas este não me repelia para trás nem
instáveis nos recônditos do meu cora­ me desencaminhava. Simplesmente se
ção. Com severa misericórdia duplicá- mantinha indeciso.
veis os açoites do temor e da vergonha, 26. Retinham-me preso bagatelas
para eu não afrouxar, e para eu partir de bagatelas, vaidades de vaidades, mi­
as pequenas e leves cadeias que tinham nhas velhas amigas, que me sacudiam
ficado, a fim de se não robustecerem o vestido carnal e murmuravam baixi­
de novo, ligando-me mais tenazmente. nho: “Então despedes-nos? Daqui por
Dizia dentro de mim: “Vai ser diante, nunca mais estaremos contigo.
agora, agora mesmo”. E pelas palavras Desde agora, nunca mais te será lícito
caminhava para a decisão final. Estava fazer isto e aquilo ...”
a ponto de a cumprir, e não a cumpria. E que coisas, ó meu Deus, que
Já não recaía nas antigas paixões, mas pensamentos me sugeriam as vaidades
estava próximo delas e respirava-as. no que eu chamei “isto ou aquilo”!
Ao mesmo tempo, esforçava-me por Afaste-os da alma do vosso servo a
chegar a uma decisão. Faltava pouco, vossa misericórdia! Que imundícies
sim, faltava pouco. Já quase a atingia e me sugeriam, que indecências! Redu­
segurava. Mas ainda lá não estava nem zia-se já a menos de metade o número
a tocava, nem á alcançava, hesitando de vezes em que lhes dava ouvidos. Já
em morrer na morte ou viver na vida. as vaidades me não contradiziam aber­
CONFISSÕES VIII 165

tamente, de frente, mas, como que a Vós, Esposo e Senhor. Ria-se de mim
segredar-me pelas costas, espicaça- com ironia animadora, òomo que a
vam-me furtivamente para que olhasse dizer: “Então, não poderás fazer o que
para trás quando procurava afastar- estes e estas fizeram? É porventura por
me. Contudo, faziam-me retardar, por si mesmos que estes o podem fazer?
duvidar arrancar-me e desfazer-me Não é por virtude de seu Deus e
delas, para saltar aonde me chama­ Senhor? Foi o Senhor seu Deus quem
vam, enquanto o hábito violento me me entregou a eles. Por que te apoias
rosnava: “Julgas que poderás passar em ti, ficando assim instável? Lança-te
sem elas?” n’Ele e não temas ! Ele não fugirá de ti,
27. MaS o hábito já me dizia isso e tu não cairás. Lança-te confiada-
com voz muito débil. Do lado para mente, e Ele, recebendo-te, curar-te-á”.
onde voltava o rosto e por onde temia Estava todo envergonhado porque
passar, abria-se diante de mim a casta ainda ouvia os murmúrios daquelas
dignidade da continência, serena, sem bagatelas e ficava suspenso na dúvida.
alegria desordenada. Convidava-me, De novo, a castidade parecia dizer-me:
acariciando-me honestamente, para “Sê surdo às tentações imundas dos
que viesse sem receios. Estendia-me as teus membros na terra, para os mortifi-
mãos piedosas e cheias de rebanhos de cares. Narram-te deleites, mas estes
boas obras para me receber e me abra­ não são segundo a lei do Senhor teu
çar. Junto dela, quantos meninos, don­ Deus”.
zelas, numerosa juventude, todas as Esta controvérsia em meu coração
idades, viúvas venerandas, virgens ido­ era apenas eu a lutar comigo mesmo.
sas ! Em nenhuma delas era estéril a Entretanto, Alípio, fixo a meu lado,
mesma continência, senão mãe fecun­ aguardava, silencioso, o desenlace
da de filhos gerados nas alegrias de desta insólita agitação.

12
A conversão
28. Quando, por uma análise pro­ representava-se-me mais açondicio-
funda, arranquei do mais íntimo toda a nada ao choro. Retirei-me o suficiente
minha miséria e a reuni perante a vista para que a sua presença me não pudes­
do meu coração, levantou-se enorme se ser pesada.
tempestade que arrastou consigo uma Eis em que estado me encontrava!
chuva torrencial de lágrimas3 49. Para Alípio bem o adivinhou, porque lhe
as-derramar todas com seus gemidos, disse, julgo eu, qualquer coisa em que
afastei-me de Alípio, porque a solidão se descortinava o tom pesado que o
choro imprimia ao timbre da voz.
3 49 Esta luta interior repete-se na história íntima Tinha-me, então, erguido. Alípio, no
dos convertidos. Assim o confessa um deles, o
holandês Meer de Walcheren, discípulo de Leão auge do assombro, ficou imóvel no
Blois, que lhe prefaciou o livro Nostalgia de Deus. sítio onde estivéramos. Retirei-me, não
Escreveu ele: “Lemos as Confissões de Santo Agos­
tinho, e surpreende-me ver que este santo, antes de sei como, para debaixo duma figueira,
encontrar a alta paz da fé, passou pelas mesmas e larguei as rédeas ao choro.
angústias e as mesmas dúvidas que me torturam tão
atrozmente a mim, um homem moderno” (cf. Nos­ Prorromperam em rios de lágrimas
talgia de Deus). (N. do T.) os meus olhos. Este sacrifício era-Vos
166 SANTO AGOSTINHO

agradável. Dirigi-Vos muitas pergun­ e li em silêncio o primeiro capítulo em


tas, não por estas mesmas palavras, que pus os olhos: “Não caminheis em
mas por outras do mesmo teor: “E glutonarias e embriaguez, nem em
Vós, Senhor, até quando? Até quando desonestidades e dissoluções, nem em
continuareis irritado3 50? Não Vos contendas e rixas; mas revesti-vos do
lembreis das minhas antigas iniqüida- Senhor Jesus Cristo e não procureis a
des3 51 ”. Sentia ainda que elas me satisfação da carne com seus apeti­
prendiam. Soltava gritos lamentosos: tes3 5 4”.
“Por quanto tempo, por quanto tempo Não quis ler mais, nem era necessá­
andarei a clamar: Amanhã, amanhã? rio. Apenas acabei de ler estas frases,
Por que não há de ser agora? Por que penetrou-me no coração uma espécie
o termo das minhas torpezas não há de de luz serena, e todas as trevas da dú­
vir já, nesta hora?” vida fugiram.
29. Assim falava e chorava, opri­ 30. Então, marcando a passagem
mido pela mais amarga dor do cora­ com o dedo ou com outro sinal qual­
ção. Eis que, de súbito, ouço uma voz quer, fechei o livro. Já com o rosto
vinda da casa próxima. Não sei se era tranquilo, mostrei-o a Alípio. Por sua
de menino, se. de menina. Cantava e vez, ele também me descobriu tudo o
repetia frequentes vezes: “Toma e lê; que em si se passara e que eu ignorava.
toma e lê”. Pediu-me que lhe mostrasse a passa­
Imediatamente mudando de sem­ gem lida por mim. Indiquei-lha e ele
blante, comecei com a máxima aten­ prosseguiu, ultrapassando o que eu
ção a considerar se as crianças tinham tinhã lido. Eu ignorava, porém, o texto
ou não o costume de trautear essa can­ seguinte, que era este: “Recebei ao
ção em algum dos jogos.' Vendo que fraco na fé3 5 5”. Alípio aplicou-o a si
em parte nenhuma a tinha ouvido, próprio e mostrou-mo. Com tal adver­
reprimi o ímpeto das lágrimas, e levan- tência, firmou-se no desejo e bom
tei-me, persuadindo-me de que Deus só propósito, perfeitamente de acordo
me mandava uma coisa: abrir o códi­ com os seus costumes regrados, que,
ce3 52, e ler o primeiro capítulo que desde há muito tempo, o distanciavam
encontrasse. Tinha ouvido que Antão, enormemente de mim. Sem nenhuma
assistindo, por acaso, a uma leitura do hesitação turbulenta, juntou-se a mim.
Evangelho, fora por ela advertido, Vamos ter em seguida com minha mãe,
como se essa passagem que se lia lhe e declaramos-lhe o sucedido. Ela reju-
fosse dirigida pessoalmente: “Vai, bila. Contamos-lhe como o caso se
vende tudo o que possuis, dá-o aos passou. Exulta e triunfa, bendizendo-
pobres, e terás um tesouro no céu; de­ Vos, Senhor, “que sois poderoso para
pois vem e segue-Me3 53”. Com este fazer todas as coisas mais superabun-
oráculo se converteu a Vós. • dantemente do que pedimos ou enten­
Abalado, voltei aonde Alípio estava demos3 5 6”. Bendizia-Vos porque via
sentado, pois eu tinha aí colocado o que, em mim, lhe tíriheis concedido
livro das Epístolas do Apóstolo, quan­ muito mais do que ela costumava
do de lá me levantei. Agarrei-o, abri-o pedir, com tristes e lastimosos gemi­
dos.
3 50 S16, 4. De tal forma me convertestes a Vós
351 S118,8.
3 52 Abrir o códice: refere-se ao livro das Epístolas 3 54 Rom 13, 13.
de São Paulo, como explica depois. (N. do T.) 3 5 5 Rom 14, 1.
3 53 Míl9,21. 3 5 6 Ef3, 20.
CONFISSÕES VIII 167

que eu já não procurava esposa, nem fecunda do que ela desejava, e muito
esperança alguma do século, mas per­ mais querida e casta do que a que
manecia firme naquela regra de fé em podia esperar dos netos nascidos da
que tantos anos antes me tínheis mos­ minha carne.
trado a minha mãe3 5 7. Transformastes
a sua tristeza numa alegria muito mais 3 5 7 cf. Livro III, cap. 11. (N. do T.)
LIVRO IX

O BATISMO

I — O adeus ao professo-
rando. Na quinta de
Cassicíaco. De novo
em Milão (1-7).
II — Traços biográficos e
morte de Môniça, mãe
de Agostinho (8-13).
1
Em colóquio com Deus
1. “ó Senhor, eu sóu vosso servo, o meu livre arbítrio? De que profundo
sim, vosso servo e filho da vossa escra­ e misterioso abismo foi ele charnado
va. Quebrastes as minhas cadeias; num momento a fim de inclinar a
sacrificar-Vos-ei uma vítima de lou­ minha cerviz ao vosso suave jugo e os
vor3*58.” Fazei que meu coração e meus ombros ao vosso fardo tão leve,
minha língua Vos louvem e todos ós ó Cristo Jesus, “minha ajuda e reden­
meus ossos exclamem: “Senhor, quem ção3 61”? Quão suave se me tomou de
há semelhante a Vós?3 5 9”. repente carecer de delícias fúteis!
Profiram eles estas palavras, e Vós, Receava perdê-las, e agora já sentia
respondei, dizendo à minha alma: “Eu prazer em abandoná-las ! Vós, a verda­
sou atua salvação3 60”. deira e suprema Suavidade, as afastá-
Quem sou? Como sou eu? Que veis de mim. Vós as afastáveis, e em
malícia não houve nos meus atos; ou, vez delas entráveis Vós, mais doce que
se não a houve nos meus atos, nas mi­ todo prazer — mas não para a carne e
nhas palavras; ou, se não a houve nas o sangue —, mais resplandecente que
minhas palavras, na minha vontade 1 toda a luz, mas mais oculto que todo
Vós, porém, Senhor bom e miseri­ segredo, mais sublime que toda honra,
cordioso, olhastes para a profundeza mas não para aqueles que se exaltam
da minha morte e, com a vossa direita, em si mesmos.
exauristes do fundo do meu coração o Já o meu coração estava livre de
abismo de perversidade. E agora tudo torturantes cuidados, de ambição, de
era não querer aquilo que eu queria, e ganhos, e de se revolver e esfregar na
querer o que Vós queríeis. sarna das paixões. Entretinha-me em
Mas onde esteve durante tantos anos conversa convosco, minha Claridade,
minha Riqueza, minha Salvação, Se­
3 58 Sl 115, 16, 17. nhor, meu Deus.
3 59 5/34, 10.
3 60 5/34,3.- 361 5/18,15.

2
O adeus à cátedra
2. Pareceu-me bem, na vossa pre­ ele suavemente, para dali em diante
sença, não abandonar ostensivamente não comprarem, da minha boca, armas
o ministério da minha língua de artifi- para o seu furor os jovens que não se
ciosa loquacidade, mas subtrair-me a preocupam da vossa lei nem da vossa
172 SANTO AGOSTINHO

paz, mas de loucuras vãs e combates demitir-me dum cargo público, exposto
tribunícios. aos olhares de toda a gente, seria por
Felizmente já faltavam poucos dias certo atrair a atenção de todos para a
para as férias das vindimas3 62. Resol- minha conduta. Muitas coisas se di­
vi por isso suportá-los com paciência, ríam: que eu deixei chegar de propó­
para depois me retirar como de costu­ sito um dia próximo às férias das vin­
me, e, resgatado por Vós, não mais me dimas para me dar aparências dum
tornar a vender. grande homem. E que utilidade havia
Estáveis a par do nosso plano, não em entregar às críticas e às disputas os
porém os homens, a não ser os da meus sentimentos íntimos e “se blasfe-'
nossa intimidade. Tínhamos combi­ masse o meu bem3 6 6”?
nado que não se comunicasse a nin­ 4. Além disso, nesse verão, os pul­
guém, ainda que Vós, quando nos mões, por causa do demasiado traba­
erguíamos “do vale das lágrimas3 63” lho literário, começavam a sentir-se
entoando o “cântico das subidas3 6 4”, fracos e a respirar com dificuldade. A
nos tínheis concebido “setas agudas, lesão revelava-se nas dores do peito,
carvões devoradores contra a língua que se recusava a emitir voz mais níti­
pérfida3 6 5”. Esta tudo contradiz sob da e mais prolongada. A princípio tais
pretexto de dar conselhos, e, como achaques perturbavam-me, porque
quem devora alimento, ama o que quase me tinham constrangido a depor
consome. o fardo do magistério, e, para poder
3. Tínheis dardejado o nosso cora­ curar-me e convalescer, sem dúvida
ção com setas da vossa caridade, e tra­ ter ia de interrompê-lo !
zíamos as vossas palavras trespas­ M-as apenas nasceu e se firmou em
sadas nas entranhas. E os exemplos mim a plena vontade de “repousar e de
dos vossos servos — que das Trevas ver que Vós sois o Senhor3 6 7” — Vós
trouxêreis à luz e da morte à Vida — o sabeis, meu Deus —, comecei a ale­
reunidos no seio do nosso pensamento grar-me por se me deparar uma escusa
queimavam e consumiam a pesada verdadeira, com que pudesse moderar
sonolência, a fim de não mais nos o agastamento dos homens, que, por
inclinarmos para as baixezas. Inflama- causa dos seus filhos, jamais queriam ’
vam-nos tão vivamente que todo sopro que retomasse a minha liberdade.
da contradição, originado da crítica Cheio pois de tal consolação, supor­
malévola, longe de nos extinguir, nos tava o decurso daquele intervalo de
incendiaria mais e mais. tempo — seriam talvez uns vinte dias
Contudo, por causa do vosso nome, —, mas rudemente o suportava, pois já
que santificastes através do universo, se tinha ausentado de mim a cobiça do
também o nosso desígnio e resolução ganho que me ajudava a desempenhar
teriam certamente panegiristas". Pare­ a dura ocupação. Eu ficaria esmagado,
cería quase jactância não esperar pelo se a paciência não sucedesse à cobiça.
tempo das férias já tão próximo; mas Alguns dos vossos servos e meus
irmãos dirão talvez que pequei, por­
3 62 Estas começavam a 22 de agosto e terminavam que, com o coração já cheio do Vosso
a 15 de outubro, prolongando-se pelo mesmo tempo serviço, consenti assentar-me ainda
que as dos tribunais e repartições do Estado. (N. do
T.)
3 63 S183,6.
3 6 4 Sl 119, 1. 3 6 6 Rom 14, 16.
3 8 5 Ez 36, 23. 3 6 7 Sl44, 11.
CONFISSÕES IX 173

uma hora na cadeia da mentira. Não tes e lavastes na água santa este peca­
discuto. Não é verdade que Vós, Se­ do, com todas as outras horrendas
nhor misericordiosíssimo, me perdoas­ fraquezas de morte?

3
Saudades dum amigo

5. Angustiadamente sofria Vere- monte abundante, no vosso monte, no


cundo por causa do nosso bem-estar, monte da fertilidade3 68”.
porque, pelas cadeias que tenacissima- 6. Angustiava-me então Verecundo,
mente o retinham, se via privado do mas Nebrídio alegrava-se. Também
nosso convívio. Não era ainda cristão. este se despenhara, não sendo ainda
A esposa, cristã, opunha-lhe uma ca­ cristão, naquela cova de erro tão perni­
deia bastante apertada com relação a cioso, a ponto de acreditar que a carne
nós, a qual o retardava no caminho verdadeira do vosso Filho era uma
que encetáramos. Dizia Verecundo que aparência. Contudo, erguendo-se dessa
não queria ser cristão doutro modo, cova — tal era a sua posição —, ainda
senão daquele que lhe era proibido. não impregnado dos sacramentos da
vossa Igreja, buscava apaixonada-
Delicadamente, porém, nos ofereceu
mente a verdade.
uma quinta para lá estacionarmos
Não muito depois da nossa conver­
durante o tempo que nos aprouvesse.
são e regeneração por meio do vosso
Vós, Senhor, o recompensareis na
batismo, Vós o libertastes da carne
Ressurreição dos Justos, pois já lhes
quando já era fiel católico. Servia-Vos
concedestes o prêmio. Na nossa ausên­
com perfeita castidade e continência,
cia, quando já estávamos em Roma, na África, entre os seus. Nesse tempo
acometido de doença e já fiel cristão, já toda a sua casa se tinha feito cristã,
emigrou desta vida. Assim Vos compa­ por seu intermédio.
decestes, não só dele mas também de Agora ele vive no “seio de
nós, para não nos afligirmos com dor Abraão3 69” — qualquer que seja o
intolerável, ao recordar a sua extre­ significado de “seio”; nele vive o meu
mosa delicadeza de amigo, se o não Nebrídio, o meu doce amigo, e com
pudéssemos contar entre vosso reba­ relação a Vós, Senhor, o vosso filho
nho. que, de liberto, tomastes adotivo. Aí
Graças Vos sejam dadas, Senhor vive3 70. Pois, para essa alma, que
nosso Deus. Somos vossos. As vossas lugar existe diferente daquele? Aí vive,
exortações e consolações o demons­ nesse sítio a respeito do qual me fazia
tram. Fiel cumpridor de vossas pro­ muitas perguntas, a mim, homenzinho
messas, recompensais, com a- ameni- ignorante. Já não aproxima o seu ouvi-
dade do vosso Paraíso eternamente 3 68 S161, 16.
viçoso, a Verecundo, por nos ter ofere­ 3 69 Lc 16, 22.
3 70 Superlativamente emocional, poucos corações
cido aquela sua propriedade de Cassi- amaram tanto como Agostinho. O seu lirismo
cíaco, onde, longe do borbulhar do incendeia-se em novas labaredas quando trata da
amizade. Çom que doçura e saudade o filho de Mô-
mundo, repousamos em Vós. Perdoas­ nica se refere aos amigos que a morte arrebatara!
tes-lhe os pecados sobre a terra, “no (N. do T.)
174 SANTO AGOSTINHO

do da minha boca, mas aproxima a sua isto é, na vida conjugal, esperando a


boca espiritual da vossa fonte, e bebe, ocasião de ele nos seguir. Isto, podia
até mais não poder, a Sabedoria, em realizá-lo brevemente, e estava mesmo
proporção da sua avidez, feliz para a ponto de o fazer. Enfim decorreram
sempre. Nem creio que se inebrie de tal aqueles dias que pareciam muitos e
sorte com ela que se esqueça de mim, longos por causa do amor da liberdade
quando é certo que Vós, Senhor, de que eu queria para poder cantar, no ín­
quem ele bebe, Vos lembrais de mim.
timo do meu ser: “Disse o meu cora­
Assim éramos nós. Consolavamos
ção: busquei o vosso rosto, Senhor; de
Verecundo, que nos permanecia fiel à novo o procurarei3 71 ”.
amizade, apesar da nossa conversão
ser para ele objeto de tristeza. Exortá­
vamo-lo à fidelidade no seu estado, 371 57 26,8.

4
Na quinta de Cassicíaco
7. Chegou o dia em que, na realida­ mostram-no as cartas3 7 5. Quando en­
de, me devia libertar da profissão de contrarei tempo suficiente para come­
retórico, da qual já estava desligado no morar todos os vossos grandes benefí­
pensamento. Assim sucedeu. Livrastes cios para comigo, sobretudo nesta
a minha língua do lugar de que me tí- época da vida? Tenho pressa de referir
nheis já libertado o coração. Eu Vos outras graças mais importantes.
bendizia, partindo radiante de júbilo Chama por mim a recordação do
para a casa do campo, com todos os meu passado e toma-se-me doce, Se­
meus3 72. nhor, confessar-Vos com que interiores
O que aí realizei nas letras — já estímulos me submetestes; como apla­
incontestavelmente em vosso serviço, nastes a minha alma, abatendo os
mas respirando ainda a soberba da montes e as colinas dos meus pensa­
escola, como o leitor numa pausa — mentos; como endireitastes as minhas
vias tortuosas e suavizastes as aspere­
atestam-no os livros de disputas com
zas3 7 6, e como submetestes Alípio, o
os presentes3 73, ou só comigo na
irmão do meu coração, ao nome de
vossa presença3 7 4. O que tratei em
discussões com Nebrídio, ausente, vosso Filho único, “Nosso Senhor e
Salvador Jesus Cristo3 7 7”, nome que
ele a princípio desdenho s amente su­
3 72 Cassicíaco, para onde se retirou Agostinho, portava que fosse inserido nos meus
chama-se hoje Cassago de Brianza, situado à dis­
tância de sete léguas de Milão. Está encravado no escritos. Preferia Alípio que cheiras­
meio dos montes. Na colina onde existia a casa de sem antes ao perfume dos cedros das
Verecundo, levantaram, séculos mais tarde, os du­ escolas, já abatidos pelo Senhor, do
ques Visconti di Modrone, um palácio. (N. do T.)
3 73 Esses livros em forma de diálogo têm por títu­
lo: Contra Acadêmicos (trata da certeza e da verda­ 3 7 5 Em Cassicíaco repousavam então, além de
de); Da Vida Feliz (onde se prova que a verdadeira Agostinho e de Mônica: Adeodato, Navígio; Lasti-
felicidade reside na filosofia); Da Ordem (sobre a diano e Rústico; Trigécio, Licêncio, que estudavam
ordem do mundo e o problema do mal). (N. do T.) retórica e filosofia; e Alípio, que por vezes se ausen­
3 7 4 Refere-se ao livro dos Solilóquios. Santo Agos­ tava até Milão. (N. do T.)
tinho permaneceu em Cassicíaco desde setembro de 3 7 8 Zs 40, 4;Zc 3, 4.
386 até março de 387. (N. do T.) 3 7 7 2RZr3, 18.
CONFISSÕES IX 175

que ao odor das ervas salutares da causa deles que eu pronunciava aque­
vossa Igreja, antídoto contra o veneno las palavras com que entrecortava os
das serpentes. salmos. Efetivamente não as teria pro­
8. Que exclamações elevei até Vós, ferido nem as entoaria daquela manei­
meu Deus, ao ler os salmos de Davi, ra, se percebesse que era visto. Nem
esses cânticos de fé, esses hinos de pie­ eles, se eu as dissesse, as teriam rece­
dade que baniam de mim o espírito da bido tais como as pronunciei comigo
soberba! Eu, bisonho no vosso verda­ quando, com familiar afeto à minha
deiro amor e ainda catecúmeno, gasta­ alma, me dirigi a mim mesmo, na
va o tempo naquela casa de campo vossa presença.
com o catecúmeno Alípio. Vivia ao 9. Horrorizei-me com temor e aí
nosso lado minha mãe, mulher no mesmo me abrasei em esperança, ale-
aspecto, mas viril na fé, com a calma grando-une “na vossa misericór­
própria duma idade avançada, ternura dia380”, ó Pai. Tudo isto saía pelos
de mãe e piedade cristã. meus olhos e pela minha voz, quando o
Quantas exclamações proferia na vosso Espírito de bondade, chegando-
leitura desses salmos e como me infla­ se a nós, nos dizia: “Filhos dos
mava com eles, no vosso amor, dese­ homens, até quando sereis duros de
jando ardentemente recitá-los a toda a coração? Para que amais a vaidade e
terra, se me fosse possível, para rebater buscais a mentira?3 81 ”
o orgulho do gênero humano! Com Sim! eu tinha amado a vaidade e
efeito, são cantados em todo o univer­ buscara a mentira. Vós, Senhor, já “tr-
so, pois “não há ninguém que se sub­ nheis engrandecido o vosso Filho,
traia ao vosso calor3 78”. ressuscitando-o dos mortos e colocan­
Como era veemente e atroz a dor do-o à vossa direita382”, para que lá
com que me indignava contra os do alto Jesus enviasse Aquele que
maniqueístas! De novo me compade­ tinha prometido, “o Paráclito, o Espí­
cia deles por não conhecerem aqueles rito de verdade3 8 3 ”.
sacramentos, aqueles remédios, e por Ele já o tinha mandado 3 8 4, mas eu
se enfurecerem loucamente contra um não o sabia. Enviara-õ, porque já esta­
antídoto que os podia curar. va glorificado com ressurgir dos mor­
Querería que estivessem então junto tos e subir ao céu. Antes, porém, “o .
de mim, em qualquer parte — sem eu Espírito ainda não tinha sido concedi­
saber que eles estavam presentes —, e do, porque Jesus ainda não estava
que contemplassem o meu rosto e glorificado3 8 5”.- Clama o profeta:
ouvissem as minhas exclamações ao “Até quando sereis duros de coração?
ler, naquelas férias, o salmo quarto. Para que amais a vaidade e buscais a
Oxalá vissem eles o que fez de mim mentira? Sabei que o senhor glorificou
aquele salmo: “Quando Vos invoquei, o seu Filho3 8 6”.
ouvistes-me, ó Deus da minha justiça. Clama: “Até quando”; clama: “SaL
Dilatastes a minha alma na tribulação. be.i E eu errante tanto tempo, sem o
Tende misericórdia de mim, Senhor, e saber, amei a vaidade e busquei amen-
ouvi a minha súplica3 7 9”. Oxalá me
380 5130, 8.
tivessem ouvido — sem eu o saber —, 3 81 514,3.
para que não pensassem que era por 382 514, 4;#/1,20.
3 83 jo 14, 16.
384 At2, 1.
3 78 SI 18,7. 38 5 Jo 6, 39.
3 79 SI 4, 2. 38 8 5/4,3.
176 SANTO AGOSTINHO

tira. Por isso, ouvi e tremi, porque me Oh! se vissem o interno e eterno
lembrava de ter sido igual àqueles a Esplendor que me fazia irritar contra
quem tais palavras se dirigiam. mim mesmo! Porque embora eu o
Nos fantasmas que eu tivera como saboreasse, não lhes poderia mostrar
verdade, só havia vaidade e mentira. esse brilho, se acaso trouxessem, no
Soltei pesados e fortes queixumes, na olhar, o seu coração pousado fora de
amargura da minha recordação. Oxalá Vós, e me dissessem: “Quem nos mos­
os tivessem ouvido aqueles que até trará o Bem?”
agora amaram a vaidade, e buscam a Ali, onde me irava comigo mesmo,
mentira. Talvez se confundissem e no recôndito da alma onde me com­
vomitassem o erro! Vós ouvi-los-eis, pungia, onde Vos oferecera um sacrifí­
pois por nós morreu, com verdadeira cio, imolando-Vos a minha concupis-
morte corporal, “Aquele que continua­ cência392, onde, cheio de esperança
mente intercede por nós3 8 7”. em Vós, começara a meditar na minha
10. Lia: “Irai-vos e não pe­ renovação, aí mesmo principiastes a
queis388”. E eu, que já aprendera a fazer-me saborear as vossas doçuras,
irar-me contra os meus crimes passa­ “dando alegria ao meu coração393”.
dos, quanto me sentia impelido a não Saía-me em exclamações, quando,
mais pecar, ó meu Deus! Justamente lendo estas palavras fora de mim, as
me encolerizava, porque não pecava entendia no meu interior. Não desejava
em mim outra natureza de ascendência enriquecer-me de bens terrenos, devo­
tenebrosa, como afirmam os que não rando o tempo e sendo por ele devora­
se irritam consigo mesmos e “entesou- do, pois possuía, na eterna simplici­
ram, contra si, a ira, para o dia da dade, “outro trigo, vinho e azeite3 9 4”.
vossa ira, dia da revelação do vosso 11. No versículo seguinte, num
justo juízo389”. grito profundo do meu coração, excla­
Os meus bens já não estavam fora, mava: “Oh! estarei em paz ! Oh! vive­
nem eram procurados sob este sol rei em paz no seu mesmo Ser3 9 5 !”
pelos olhos da carne. Aqueles que que­ Oh! o que eu disse: “Dormirei e
rem gozar fora de si mesmos facil­ descansarei”! Quem nos resistirá
mente se dissipam e derramam naque­ quando se cumprir aquela palavra que
las coisas aparentes e temporais, está escrita: “A morte foi devorada
lambendo com o pensamento faminto pela vitória39 6”? Vós sois esse Ente
as imagens de tais objetos. Oh ! se eles que não muda, em Vós está o descanso
se debilitassem com a fome e disses­ que faz esquecer todos os trabalhos,
sem: “Quem nos mostrará o Bem?3 90” porque nenhum outro repouso, existe
Ouçam a nossa resposta: “Está gra­ senão Vós3 9 7. Fora de Vós nem sequer
vada dentro de nós a luz do vosso posso adquirir outras muitas coisas
rosto, Senhor391”. Nós não somos a que não são o que Vós sois. “Mas Vós,
luz que ilumina a todo* homem, mas Senhor, singularmente me destes! a
somos iluminados por Vós, para que esperança3 9 8.”
sejamos luz em Vós os que fomos
outrora trevas. 392 Ã letra: “minha velhice”. A expressão signifi­
ca: tendências pecaminosas. (N. do T.)
3935/4, 7.
38 7 7?om 8, 34. 394 5/4,8.
3 88 5/4,5. 39 5 5/4,9.
389 Roml, 5. 39 6 1 Cor 15, 54.
390 5/4,6. 39 7 Dt4, 35;Zí 45, 4.
391 5/4,6. 398 5/4, 10.

I
CONFISSÕES IX 177

Eu lia inflamado em fervor ,e - não numa tabuazinha encerada e entre-


encontrava o que havia de fazer a esses guei-o para que lhes fosse lido. Logo
surdos-mudos, de quem eu fora a peste, que dobramos os joelhos, em piedosa
ladrando amarga e cegamente contra a súplica, aquela dor desapareceu. Mas
Bíblia, dulciflcada com o mel do céu e que dor? E como fugiu?! Fiquei des­
cintilante com a vossa claridade. Con­ lumbrado, eu o confesso, ó meu Senhor
sumia-me de dor por causa dos. inimi­ Deus, ó meu Deus. Nunca experimen­
gos da Escritura3 9 9. tara tal coisa desde os meus primeiros
12. Quando recordarei todos os anos! O vosso poder insinuou-se em
fatos sucedidos naquele silêncio, o mim profundamente. Alegre na minha
rigor do vosso castigo e a admirável fé, louvei o vosso nome. Mas esta fé
prontidão da vossa misericórdia? não me deixava estar seguro, pelo que
Atormentâveis-me, então, com uma dizia respeito aos meus pecados passa­
dor de dentes. Piorando tanto que não dos, os quais, ainda então, me não ti­
podia falar, ocorreu-me pedir a todos nham sido perdoados pelo vosso batis­
os meus que estavam presentes para mo.
que rogassem por mim, ó Deus de toda
a salvação. Este pedido, escrevi-o 3 99 Sl 123, 21.

5
Em comunicação com Santo Ambrósio
13. Acabadas as férias, fiz saber Escrituras, a fim de melhor me dispor e
aos habitantes de Milão que deviam de me tornar mais apto para a recep­
prover os seus estudos com outro ven­ ção de tão insigne graça.
dedor de palavras, já que determinava Ordenou-me que lesse o profeta
consagrar-me ao vosso serviço. Nem Isaías, segundo me parece, por ter vati-
eu, pelas dores de peito e dificuldade cinado, mais claramente do que qual­
em respirar, poderia desempenhar o quer outro, o vosso Evangelho e a
cargo. vocação dos gentios à fé. Mas não o
Comuniquei por carta, ao . vosso compreendí na primeira leitura, e, jul­
santo Bispo Ambrósio, os meus desre- gando que todo ele era assim obscuro,
gramentos passados e a minha resolu­ deferi a sua repetição para quando esti­
ção presente, para que me indicasse o vesse mais experimentado na palavra
que de preferência devia ler nas vossas do Senhor.

6
O batismo

14. Chegada a ocasião em que con­ cer para Vós, juntamente comigo, no
vinha inscrever-me entre os catecúme- batismo, já revestido da humildade tão
nos, deixando o campo, voltamos a conforme com os vossos sacramentos.
Milão400. Quis também Alípio renas­ Era ele um fortíssimo dorhador do
400 Em março de 387. (N. do T.) corpo, a ponto de trilhar descalço, com
178 SANTO AGOSTINHO

insólito arrojo, o solo regelado de senão Vós, poderia ser o artista de tais
Itália. maravilhas?
Juntamos também a nós Adeodato, Depressa lhe tirastes a vida da terra.
o filho carnal do meu pecado, a quem É com a maior tranqüilidade que eu
tínheis dotado de grandes qualidades. me lembro dele, nada lhe receando na
Com quinze anos incompletos ultra­ infância, nem na adolescência,'nem no
passava já em talento a muitos homens decurso da idade.
idosos e doutos. Confesso estes vossos Associamo-lo a nós como irmão na
dons, Senhor meu Deus, Criador de graça, para o educarmos na vossa lei.
todas as coisas e tão poderoso para Recebemos o batismo e abandonou-
corrigir as nossas deformidades, por­ nos a preocupação da vida passada.
que nada de meu havia nesse jovem,
além do pecado. Se por mim fora cria­ Não me saciava, nesses primeiros
do na vossa lei, fostes Vós e mais nin­ dias, de considerar, com inefável doçu­
guém quem no-lo inspirou. Confesso- ra, a profundeza de vossos planos
Vos, pois, estes vossos dons. sobre a salvação da humanidade.
Há um livro meu que se intitula De Quanto não chorei, fortemente como­
Magistro, onde ele dialoga comigo. Sa­ vido, ao escutar os hinos e cânticos,
beis que todas as opiniões que aí se ressoando maviosamente na vossa
inserem, atribuídas ao meu interlocu­ Igreja! Essas vozes insinuavam-se-me
tor, eram as dele quando tinha dezes­ nos ouvidos, orvalhando de verdade o
seis anos. Notei nele coisas ainda mais meu coração; ardia em afetos piedosos
prodigiosas. Aquele talento causava- e corriam-me dos olhos as lágrimas:
me calafrios de admiração, pois quem, mas sentia-me consolado.

7
O canto na igreja. Prenúncios de perseguição

15. Não havia muito tempo que a vosso servo. Minha mãe, vossa serva
Igreja de Milão começara a adotar o que era a principal nas vigílias e na
consolador e edificante costume dos inquietação geral, vivia em contínua
cânticos, com grande regozijo dos prece. Nós mesmos, ainda frios sem o
fiéis, que uniam num só coro as vozes calor do vosso espírito, nos como­
e os corações. Havia um ano ou pouco víamos com a perturbação e conster­
mais que Justina, mãe do jovem Impe­ nação da cidade.
rador Valentiniano, perseguia o vosso Foi então que, para o povo se não
servo Ambrósio por causa da heresia acabrunhar com o tédio e tristeza, se
com que fora seduzida pelos aria­ estabeleceu o canto de hinos e salmos
nos401. segundo o uso das igrejas do Oriente.
A multidão dos fiéis velava na igre­ Desde então até hoje tem-se mantido
ja, pronta a morrer com o seu bispo, entre nós este costume, sendo imitado
por muitos, por quase todos os vossos
401 Estes hereges, partidários de Ário, sacerdote de rebanhos de fiéis, espalhados no uni­
Alexandria, negavam que Jesus Cristo fosse da verso.
mesma substância que o Pai, isto é, que fosse Deus.
Foram condenados no concilio ecumênico de 16. Ao vosso bispo, que acabo de
Nicéia, em 325. (N. do T.) nomear, manifestastes nesta conjun­
CONFISSÕES IX 179

tura, por uma visão, o.lugar onde esta­ olhos402”. Logo que tocou com o
vam escondidos os corpos dos mártires lenço e o levou aos olhos, estes
Gervásio e Protásio, que por tantos abriram-se-lhe subitamente.
anos conservastes incorruptos no te­ Propagou-se logo a fama do mila­
souro dos vossos segredos, para no gre, elevandõ-se até Vós ardentes e
momento oportuno os descobrirdes, a esplendorosos louvores. O coração da
fim de refreardes o furor duma simples perseguidora, ainda que se não tenha
mulher, embora imperatriz. Com efei­ rendido à fe da salvação, contudo
to, descobertos e desenterrados os cor­ reprimiu o furor na sua luta contra
pos, quando os transportavam com nós.
todas as honras à Basílica Ambro- Graças Vos dou, ó meu Deus!
siana, uns possessos, vexados por espí­ Donde chamastes? Para que parte cha­
ritos imundos, foram curados, con- ’ mastes minha memória, a fim de con­
forme confessaram os mesmos fessar estes acontecimentos que, apesar
demônios. da sua importância, omitira por esque­
Também um cego de há vários anos, cimento ?
cidadão muito conhecido na cidade, Ainda não corria atrás de Vós,
tendo perguntado a causa das manifes­ quando deste modo se exalava “o
tações de regozijo entre o povo, infor­ aroma das vossas fragrâncias403”. Por
mado dos acontecimentos, levantou-se isso mais chorava ouvindo os vossos
e pediu ao guia que o levasse para hinos. Suspirava outrora por Vós, e
junto dos corpos dos mártires. Chega­ enfim.respirava quanto o permite o af
duma choça de colmo.
do lá, pediu licença para tocar com um
lenço o ataúde dos vossos “santos, 402 07 115,15.'
cuja morte fora preciosa aos vossos 403 Cãntl, 3.

8
A morte de Mônica em óstia. Sua educação
17. “Vós, que fazeis com que os Passo muitas coisas em silêncio,
unânimes habitem na mesma mora­ porque tenho pressa. Recebei, meu
da40 4”, associastes a nós o jovem Evó- Deus, as minhas Confissões e ações de
dio, natural do nosso município. Era graças por tão inumeráveis benefícios,
agente de negócios do imperador e, de que não faço aqui menção. Mas não
tendo-se convertido e batizado antes de quero calar os sentimentos que me bro­
nós, renunciou às milícias profanas; tam da alma, acerca desta vossa serva,
alistando-se na vossa. Estávamos jun­ que, pela carne, me concebeu para a
tos, queríamos habitar em comum num vida temporal, e pelo coração me fez
convívio santo. nascer para a eterna. Não quero publi­
Procurando um lugar onde mais car os seus méritos, mas os dons que
acomodadamente Vós servíssemos jun­ lhe concedestes. Não foi ela, efetiva­
tos, voltávamos à África, quando em mente, que se fez ou educou a si
óstia, na foz do Tibre, faleceu minha mesma. Nem o pai nem a mãe podiam
mãe. adivinhar o que viria a ser aquela a
quem geraram.
40 4 S/67, 7. A disciplina do vosso Cristo, e a
180 SANTO AGOSTINHO

doutrina do vosso Filho único educa- Não o fazia, por inclinação à embria­
ram-na no vosso temor no seio de uma guez, mas por excessos exuberantes da
família fiel, que era digno membro da juventude, que fervem sob a forma de
vossa Igreja. movimentos alegres e que de ordinário
Mais ainda que a diligência e educa­ se- corrigem nos ânimos pueris, pela
ção da mãe, Mônica enaltecia a vigi­ autoridade severa dos mais velhos.
lância de uma velha escrava, que já to­ Aumentando, porém, dia a dia, a
mara meu avô materno às costas, porção — “pois quem.despreza as coi­
sendo ainda menino, como é costume sas pequenas insensivelmente cai nas
serem trazidas as crianças pelas meni­ maiores40 5” —, escorregou para o há­
nas mais crescidas. Estas recordações, bito, de modo a esvaziar gulosamente
a sua idade avançada e os costumes copos cheios de vinho.
exemplares tornavam-na veneranda Onde estava então a prudente anciã
aos olhos dos amos, nesta casa cristã. e a sua severa proibição? Que remédio
Esta serva desempenhava com soli­ podia ser eficaz contra a doença ocul­
citude o encargo que lhe confiaram os- ta, se a vossa medicina, Senhor, não
seus senhores de lhes olhar pelas filhas, vigiasse por nós? Na ausência do pai,
repreendendo-as quando era necessá­ da mãe e dos educadores, estáveis pre­
rio, com santa e enefgica severidade, e sente Vós que nos criastes, que nos
instruindo-as com discreta prudência. chamais a Vós, e que por vossos lega­
Além das horas em que tomavam uma dos procurais fazer algum bem para a
sóbria refeição à mesa de seus pais, salvação das almas. Que fizestes, pois,
nem água lhes deixava beber, ainda meu Deus? Como a socorrestes?
que ardessem em sede. Queria -preve­ Como a curastes? Não fizestes sair
ni-las dum mau hábito, e aduzia esta duma alma um sarcasmo agudo e
sábia razão: “Quereis agora beber doloroso, como ferro cirúrgico das
água, porque não tendes vinho em vossas provisões secretas, para cortar
vosso poder; quando vos casardes e dum só golpe aquela gangrena?
ficardes senhoras da adega e da des­ De fato, a escrava que costumava
pensa, não mais gostareis da água, mas acompanhá-la até junto do tonel, liti-
o hábito de beber prevalecerá”. gando um dia com a sua jovem senho­
Com este método de aconselhar e ra, estando sós, lançou-lhe em rosto a
mandar com autoridade, lhes refreava ihtemperança, chamando-lhe com
o apetite em tenra idade e lhes adap­ atroz insulto: “Bêbeda40 6 !”
tava a sede às regras da temperança, Ferida por este aguilhão, considerou
para que não desejassem o que não a fealdade do seu hábito, reprovou-o e
convinha. corrigiu-se. Assim como as adulações
18. Apesar disso — como a vossa dos amigos nos pervertem, do mesmo
serva mo contou a mim, seu filho —, modo as censuras dos inimigos nos
insinuou-se-lhe pouco a pouco o gosto reformam. Contudo, não lhes retribuís
pelo vinho. Como filha sóbria, os pais segundo o que obrais por seu intermé­
mandavam-na, segundo o costume, dio, mas segundo o mal que queriam
tirar vinho do tonel. Mergulhava a ca­ praticar. A escrava, zangada, quis
neca na cuba, aberta pela parte supe­
rior, e antes de despejar o vinho para a
garrafa sorvia com a ponta dos lábios 40 B Eclo 19, 1.
40 6 O texto latino usa a palavra meribibula =
um poucochinho, porque, por causa da “bebedorazinha de vinho”, a qual só aparece nesta
repugnância, não podia beber mais. obra e em mais nenhum escritor. (N. do T.)

I
CONFISSÕES IX 181

vexar a sua jovem senhora, e não vossos desígnios a torrente profunda


curá-la. Fê-lo em segredo, ou porque o da iniquidade e regulais o curso turbu­
lugar e a ocasião da questiúncula as lento dos séculos, curastes uma alma
encontrava sozinhas, ou porque ela pela insolência de outra. Por isso nin­
mesma se expunha a um perigo por a guém, ao refletir neste caso, atribua ao
ter denunciado tão tarde. seu poder pessoal o sucesso das suas
Mas Vós, Senhor, que tudo dirigis palavras, dirigidas a quem deseja cor­
no céu e na terra e endireitais para os rigir.

9
Mônica, esposa modelar

19. Educada assim na modéstia e admoestando-as seriamente como por


temperança, Vós a tomáveis mais sub­ gracejo. Lembrava-lhes que, desde o
missa aos pais do que eles a tomavam momento em que ouviram o contrato
obediente a Vós. Quando chegou à de matrimônio, como quem escuta a
idade núbil plena, deram-na em matri­ leitura dum documento pelo qual são
mônio a um-homem, a quem: servia feitas escravas, elas se deviam conside­
como a senhor40 7. Procurava conquis- rar como tais. Por este motivo, tendo
tá-lo para Vós, falando-lhe em Vós presente essa condição, não podiam
pelos seus bons costumes, com os ser altivas com os seus senhores.
quais a tomáveis bela, respeitosamente Estas matronas, conhecendo o mau
amável e encantadora aos olhos do gênio que ela suportava ao marido,
marido. Sofria-lhe também as infideli­ admiravam-se de nada lhe ouvirem,
dades matrimoniais com tanta paciên­ nem por indício algum contar que
cia, que nunca teve discórdia alguma Patrício-lhe batesse ou que algum di'a
com o marido, por este motivo. Espe­ se desàviessem por questiúnculas do­
rava que a vossa misericórdia, des­ mésticas. Perguntavam-lhe familiar­
cendo sobre ele, o fizesse casto, quan­ mente a razão, e a minha mãe expu­
do crescesse em Vós. nha-lhes seu modo de proceder, de que
Se o coração do marido era. afetuo­ acima fiz menção. As que o punham
so, o temperamento era arrebatado. em prática, depois de o experimen­
Mas ela sabia que era melhor não tarem, felicitavam-na. As outras, que
resistir à ira do esposo, nem por ações não faziam caso, continuavam a ser
nem por palavras. Logo que o via mais vexadas e oprimidas.
calmo e sossegado, oportunamente lhe 20. A princípio a sogra irritava-se
dava a explicação da sua conduta, se contra ela, por causa duns mexericos
por acaso ele irrefletidamente se irrita­ de escravas malévolas. De tal forma
va. Enfim, muitas senhoras, tendo minha mãe a conquistou com afabili­
maridos muito mais benignos, traziam dades, com paciência e mansidão inal­
no rosto desfigurado os vestígios das teráveis, que a própria sogra esponta­
pancadas. Conversando entre amigas, neamente denunciou ao filho as
enxovalhavam a vida dos esposos. línguas intrigantes das escravas como
Minha- mãe repreendia-lhes -a língua, perturbadoras dá paz doméstica entre
a nora e ela, e lhe rogou que fossem
40 7 Chamava-se Patrício. (N. do T.) castigadas. Com efeito, depois, Patrí­
182 SANTO AGOSTINHO

cio, dócil à mãe e solícito pelo bom em pouca conta para alguém dotado
governo da casa e pela concórdia entre de sentimentos humanos o não atiçar
os seus, mandou flagelar as culpadas, ou não acender, com ditos malévolos,
segundo o desejo de quem as acusara. as inimizades dos outros, se não procu­
A sogra declarou que podia esperar ra também, com boas palavras, extin­
igual castigo quem quer que para lhe gui-las. Assim era minha mãe, como
agradar lhe dissesse mal da nora. Nin­ Vós, seu íntimo Mestre, a ensinastes na
guém ousou mais expor-se a tal risco, e escola do coração.
viveram as duas em doce harmonia, 22. Enfim, até Vos ganhou o mari­
digna de ser lembrada. do, nos últimos tempos desta vida tem­
21. Concedestes ainda um grande poral, e não teve mais a lamentar nele
dom a esta fiel serva em cujo seio me o que lhe sofrerá antes de se converter.
criastes, “ó meu Deus e minha miseri­ Era verdadeiramente a serva dos vos­
córdia408”. Quando podia, mostrava- sos servos! Todos os que a conheciam
se conciliadora entre as almas discor­ Vos louvavam, honrando-Vos e arnan-
des e desavindas, a ponto de nada do-Vos nela, porque lhe sentiam no
referir de uma à outra senão o que coração a vossa presença, comprovada
podia levá-las a reconciliar-se, ouvindo pelos frutos duma existência tão santa.
dum lado e doutro as queixas amargas, Tinha sido “esposa dum só marido,
as quais costuma vomitar a discórdia saldara aos pais a sua dívida de grati­
encolerizada e cheia de ressentimentos, dão, governara a casa piedosamen-
quando em presença duma amiga, o te409”. Com as suas boas obras, dava
vômito de rancores contra a inimiga testemunhos de santidade41 °.
ausente desabafa em azedas confidên-' Educara os filhos, dando-os tantas
cias. vezes à luz, quantas os via apartarem-
De pouca importância me parecia se de Vós. Enfim, ainda antes de ela
este bem, se uma triste experiência me adormecer no Senhor, quando já vivía­
não mostrasse que um grande número mos unidos em Vós pela graça do
de pessoas — não sei por que hor­ batismo, era tão desvelada para todos
rendo contágio de malícia, já espa­ — já que por vossa liberalidade permi­
lhado por muito longe —não só repete tis que nos dirijamos aos vossos servos
a inimigos encolerizados o que uns, — como se nos tivesse gerado a todos,
zangados, disseram de. outros, mas servindo-nos como se fosse filha de
ainda acrescenta coisas que eles não cada um.
proferiram. Pelo contrário, deve ter-se
409 1 Tim. 5,9, 4, 10.
*°*S168, 18. 410 Gál. 4, 19.

10
O êxtase de óstia 411
23. Próximo já do dia em que ela ia 411 Este capítulo é um dos mais célebres das
sair desta vida — dia que Vós conhe- Confissões. Notabiliza-se pela arte descritiva, pela
análise psicológica genial e intuição do Transcen­
cíeis e nós ignorávamos —, sucedeu, • dente. Trata um assunto da mais alta mística: o êx­
segundo creio, por disposição de vos­ tase. Faz-nos vislumbrar um mundo de silêncio e de
gozo para além do tempo e da fantasia dos sentidos.
sos secretos desígnios, que nos encon­ A cena foi representada num quadro por Ary Schef-
trássemos sozinhos, ela e eu, apoiados fer. (N. do T.)
CONFISSÕES IX 183

a uma janela cuja vista dava para o mesma, pois existe como sempre foi e
jardim interior da casa onde moráva- como sempre será. Antes, não há nela
mos. Era em óstia, na foz do Tibre, ter sido, nem haver de ser, pois
onde, apartados da multidão, após o simplesmente “é”, por ser eterna. Ter
cansaço duma longa viagem, retempe­ sido e haver de ser não são próprios do
ravamos as forças para embarcarmos. Ser eterno.
Falávamos a sós, muito docemente, Enquanto assim falávamos, anelan-
“esquecendo o passado e ocupando- tes pela Sabedoria, atingimo-la mo­
nos do futuro412”. Na presença da mentaneamente num ímpeto completo
Verdade, que sois Vós,, alvitrávamos do nosso coração. Suspiramos e deixa­
qual seria a vida eterna dos santos, mos lá agarradas “as primícias do
“que nunca os olhos viram, nunca o nosso espírito41 5”. Voltamos ao vão
ouvido ouviu, nem o coração do ruído dos nossos lábios, onde a pala­
homem imaginou413”. Sim, os lábios vra. começa e acaba. Como poderá
do nosso coração abriam-se ansiosos esta, meu Deus, comparar-se ao vosso
para a corrente celeste “da Vossa Verbo, que subsiste por si mesmo,
fonte, a fonte da Vida41 4”, que está em nunca envelhecendo e tudo renovan­
Vós, para que, aspergidos segundo a do?
nossa capacidade, pudéssemos de 25. Dizíamos pois: Suponhamos
algum modo pensar num assunto tão uma alma onde jazem em silêncio a
transcendente. rebelião da carne, as vãs imaginações
24. Encaminhamos a conversa até à da terra, da água, do ar e do céu. Supo­
conclusão de que as delícias dos senti­ nhamos que ela guarda silêncio consi­
dos do corpo, por maiores que sejam, e go mesma, que passa para além de si,
por mais brilhante que seja õ resplen- nem sequer pensando em si; uma alma
dor sensível que as cerca, não são dig­ na qual se calem igualmente os sonhos
nas de comparar-se à felicidade daque­ e as revelações imaginárias, toda a
la vida, nem merecem que delas se faça palavra humana, todo o sinal, enfim,
menção. tudo o que sucede passageiramente.
Elevando-nos em afetos mais arden­ Imaginemos que nessa mesma alma
tes por essa felicidade, divagamos existe o silêncio completo porque, se
gradualmente por todas as coisas cor­ ainda pode ouvir, todos os seres lhe
porais até o próprio céu, donde o Sol, dizem: “Não nos fizemos a nós mes­
a Lua e as estrelas iluminam a terra. mos, fez-nos O que permanece etema­
Subíamos ainda mais em espírito,
meditando, falando e admirando as mente41 6”. Se ditas estas palavras os
vossas obras. Chegamos às nossas seres emudecerem, porque j á . escuta­
ram quem os fez, suponhamos então
almas e passamos por elas para atingir
que Deus sozinho fala, não por essas
essa região de inesgotável abundância, criaturas, mas diretamente, de modo a
onde apascentais etemamente Israel ouvirmos a sua palavra, não pronun­
com o pastio da verdade. Ali a vida é a ciada por uma língua corpórea, nem
própria Sabedoria, por quem tudo foi por voz de anjo, nem pelo estrondo do
criado, tudo o que existiu e o que há de trovão, nem por metáforas enigmáti­
existir, sem que ela própria se crie a si cas, mas já por Ele mesmo.
412 Flp 3, 13.
- 413 l Cor 2,9. 41 5 Romí, 23.
41 4 SZ 30, 10. 41 6 S199, 3.5.
184 SANTO AGOSTINHO

Suponhamos que ouvíamos Aquele Mas então não “seremos todos trans­
que amamos nas criaturas, mas sem o' formados41 8”?
intermédio delas, assim como nós aca­ 26. Ainda que isto disséssemos, não
bamos de experimentar, atingindo, pelo mesmo modo e por estas palavras,
num relance de pensamento, a Eterna contudo bem sabeis, Senhor, quanto o
mundo e os seus prazeres nos pareciam
Sabedoria, que permanece imutável
vis, naquele dia, quando assim conver-
sobre todos os seres. Se esta contem­ sávamos. Minha mãe então disse: Meu
plação se continuasse e se todas as ou­ filho, quanto a mim, já nenhuma coisa
tras visões de ordem muito inferior me dâ gosto, nesta vida. Não sei o que
cessassem, se unicamente esta arreba­ faço ainda aqui, nem por que ainda cá
tasse a alma e a absorvesse, de tal esteja, esvanecidas já as esperanças
modo que a vida eterna fosse seme­ deste mundo. Por um só motivo dese­
java prolongar um pouco mais a vida:
lhante a este vislumbre intuitivo, pelo
para ver-te católico antes de morrer.
qual suspiramos: não seria isto a reali­ Deus concedeu-me esta graça supera-
zação do “entra no gozo do teu bundantemente, pois vejo que já des­
Senhor*' 7 ”? E quando sucederá isto? prezas a felicidade terrena para servi­
Será quando todos “ressuscitarmos”? res ao Senhor. Que faço eu, pois, aqui?
41 7 Mí25,21. 418 1 Cor 15, 51.

11
Últimos desejos de Mônica
27. Não me lembro bem do que lhe vras nas quais mostrava o desejo de
respondi a respeito destas palavras. vê-la morrer na pátria, o que julgava
Dentro de cinco dias ou pouco mais, melhor, e não em país estranho. Ou­
recolhia-se ao leito, com febre. Num viu-o, e, com o rosto cheio de aflição,
daqueles dias da sua doença perdeu os fixando nele os olhos, repreendeu-o por
sentidos e, durante um curto espaço de acalentar tais sentimentos. Olhando
tempo, não dava acordo dos presentes. depois para mim: “Vê o que ele diz!”
Acorremos logo e imediatamente recu­ E logo, dirigindo-se a ambos: “Enter­
perou os sentidos. rai este corpo em qualquer parte e não
Vendo-nos de pé junto dela, a mim e vos preocupeis com ele. Só vos peço
ao meu irmão419, disse-nos como que vos lembreis de mim diante do
quem procura alguma coisa: “Onde es­ altar do Senhor, onde quer que este­
tava eu?” Depois, reparando em nós, jais”. i
atônitos de tristeza, acrescentou: “Se­ Tendo explicado o seu pensamento
pultareis aqui a vossa mãe”: Eu estava nos termos que lhe foi possível, calou-
calado e sustendo as lágrimas. Meu se. Com o agravamento da enfermi­
irmão, porém, proferiu algumas pala- dade, dilataram-se-lhe as dores.
28. Eu, ó Deus Invisível, pensando
41 9 Chamava-se Navígio e era o primogênito dos nos vossos dons, que disseminais pelos
irmãos. Além deste, Santo Agostinho teve uma irmã corações dos vossos fiéis, donde pro­
cujo nome se ignora e da qual apenas se sabe que foi
religiosa e governou um mosteiro junto de Hipona. vêm colheitas admiráveis, alegrava-me
(N. do T.) e rendia-Vos graças, ao lembrar-me de
CONFISSÕES IX 185

quanto sabia a respeito do cuidado que mos em Õstia, um dia em que eu não
sempre a preocupara da sua sepultura, estava em casa, tinha ela falado com
dispondo e ordenando que fosse junto uma confiança maternal a alguns dos
do corpo de seu marido. meus amigos acerca do desprezo desta
Porque tinha vivido com ele em tão vida e da felicidade da morte. Eles,
estreita união, desejava também ajun- admirados com aquele valor de uma
tar a esta felicidade — como a alma mulher — fostes Vós que Iho destes!
humana é incapaz das coisas divinas! —, perguntaram-lhe se não temia dei­
— a dita de os homens poderem recor­ xar o corpo tão longe da sua cidade.
dar que, após a sua peregrinação de Respondeu: “Para Deus não é longe,
além mar, lhe fora concedida a graça nem devo temer que no fim dos séculos
de a terra cobrir na mesma sepultura a não saiba onde me há de ressuscitar”.
ambos os consortes. Enfim, no nono dia da doença, aos
cinquenta e seis anos de idade, e no tri­
Quando esta vaidade começara a
retirar-se do seu coração, eu não o gésimo terceiro de minha vida, aquela
alma piedosa e santa libertou-se do
sabia, mas alegrava-me, admirando-me
corpo 420.
de que ela assim mo patenteasse. Con­
tudo, na nossa conversa à janela, quan­
420 Mônica recebeu da Igreja é da tradição cristã o
do me disse: “Que estou eu a fazer título de santa. O seu corpo foi sepultado na cripta
neste mundo?”, já não mostrava desejo da Igreja de Santa Áurea, em óstia, onde foi desco­
berto em 1430 e trasladado para Roma, primeiro
de morrer na pátria. para a Igreja de São Trifão e mais tarde para a igre­
Soube também que já quando vivía­ ja que lhe foi dedicada. (N. do T.)

12
Lágrimas de dor
29. Fechei-lhe os olhos é apode- tos ou o seu completo desapareci­
rou-se-me da alma uma tristeza imen­ mento. A morte de minha mãe, pelo
sa, que se desfazia em torrentes de lá­ contrário, não foi infeliz nem total.
grimas. Mas, ao mesmo tempo, os Sabíamo-lo pelo testemunho dos seus
meus olhos, sob o império violento da costumes, “pela sinceridade da sua
vontade, absorviam essa fonte até a fé421” epor outras razões inequívocas.
secarem. Oh! como foi angustiosa' 30. Que era aquilo que me pungia
para mim a luta! dentro da alma, .senão uma chaga,
Quando ela exalou o último suspiro, recente por ter sido arrancada num ins­
Adeodato, meu filho, rebentou em tante ao convívio tão doce e tão queri­
pranto. Mas, instado por todos nós, do de viver junto da minha mãe?
calou-se: deste modo a sua voz juvenil,
voz do coração, também reprimiu e Causava-me grande consolação o
calou em mim esta espécie de emoção seguinte testemunho que deu de mim:
pueril que se expandia em choro. Pare­ na sua última doença, correspondendo
cia-nos que não ficava bem celebrar- com grande ternura aos meus obsé­
lhe os funerais com pranto, lamenta­ quios, chamava-me “bom filho” e lem­
ções e gemidos, porque essas brava, com grande sentimento de
demonstrações servem de ordinário
para deplorar a infelicidade dos mor­ 421 1 Cor 15, 51.
186 SANTO AGOSTINHO

amor, que nunca da minha boca fora 32. Foi conduzido o cadáver à
proferida contra ela uma só palavra sepultura. Fui e voltei, sem derramar
• dura e injuriosa. Contudo, meu Deus, lágrimas. Nem mesmo chorei durante
meu Criador, que comparação havia as orações que Vos dirigimos, ao ser
entre a solicitude que lhe tributava a oferecido o Sacrifício da nossa reden­
servidão a que ela por mim se sujeita­ ção pela defunta, cujo cadáver já esta­
ra? Por me sentir assim desamparado va depositado junto do sepulcro, antes
de lenitivo tão grande, a minha alma fi­ de o enterrarem, como ali é costume.
cava em chaga, e a minha vida, forma­ Nem sequer chorei durante as orações !
da pela fusão da sua, despedaçava-se. Mas todo o dia senti, no meu íntimo,
31. Estancado o pranto de Adeoda- uma tristeza oprimente.
to, Evódio, tomando um saltério, co­ Com o espírito agitado Vos suplica­
meçou a cantar um salmo ao qual va, com todas as forças, que sarásseis
todos respondíamos: “Cantar-Vos-ei, a minha dor. Creio que, se mo não
Senhor, a misericórdia e a justiça422”. concedíeis, era para gravardes na
Informando-se do que se passava, minha memória, ao menos por esta
concorreram muitos dos nossos irmãos única experiência, quanto são podero- t
e mulheres piedosas. Enquanto aqueles sos os laços do hábito até na alma que
que costumavam encarregar-se dos já se não alimenta com palavras enga­
funerais exerciam seu ofício, eu, em nadoras. Lembrei-me de ir ao banho;
lugar onde a boa educação mo permi­ ouvira dizer que este nome lhe fora
tia, falava com os meus amigos, que dado por causa dos gregos lhe chama­
julgavam não me dever deixar só. Fa­ rem balanêion, por aliviar o espírito de
lava de assuntos conforme a minha angústias. Confesso também isso à
situação, e com o bálsamo da verdade vossa misericórdia, ó Pai dos órfãos,
procurava mitigar os sofrimentos que confesso que depois do banho fiquei
só Vós conhecíeis e eles ignoravam. como estava, sem conseguir expulsar
Escutavam-me com atenção, julgando do coração esta amarga tristeza. De­
que não sentia nenhuma dor. Porém pois adormeci.
eu, pertinho de vossos ouvidos, onde Acordei e achei a minha dor bas­
nenhum amigo me ouvia, censurava a tante mitigada. Estando só, deitado no
ternura da minha sensibilidade e esfor­ meu leito, recordei os versos verídicos
çava-me por reprimir a onda de tris­ do vosso Ambrósio: Vós sois, na
teza que me invadia. Cedia ela um verdade,
pouco ao meu esforço para de novo se
insurgir impetuosa, sem contudo me
fazer brotar as lágrimas ou me alterar “Deus, Criador de todas as
o rosto. Mas eu sabia o que comprimia [coisas,
no coração! Regendo o mundo supremo,
Desgostava-me, profundamente, ser Vestindo o dia com a beleza ;
tão sensível a estas vicissitudes huma­ [da luz,
nas que irremediavelmente acontecem Vestindo a noite com a graça
conforme a ordem natural e a sorte de [do sono,
nossa condição. Por isso, a minha dor
suscitava-me uma nova dor, e afligia- Para que o repouso, ao labor
me com uma dupla tristeza. [de cada dia,
Os membros fatigados resti-
422 Sl100,13. [tua,
CONFISSÕES IX 187

As mentes cansadas alivie por ela, e também por causa de mim e


E as tristezas angustiosas dis- por mim. As lágrimas que reprimia,
[sipe... 423” soltei-as para que corressem à vontade,
estendendo-as como um leito sob o
meu coração. Este repousou nelas, por­
33. Depois, pouco a pouco, voltava que aí estavam os vossos ouvidos e
aos anteriores sentimentos a respeito não os de qualquer homem que sober­
da vossa serva. Recordava-me da sua bamente interpretasse o meu choro.
convivência, piedosa para convosco, e Confesso-Vos agora tudo isso, Se­
santamente afável e paciente para nhor, por escrito. Leia-o quem quiser,
comigo, e que de repente me fora arre­ interprete-o como lhe parecer. Se al­
batada. Sentia consolação em chorar guém julgar que eu pequei, chorando
ante a vossa presença por causa dela e uns breves minutos por minha mãe —
que eu nesses momentos ,via morta
423 “Deus, creator omnium ante os meus olhos e que tantos anos
Polique rector vestiens por mim chorara para que eu vivesse
Diem decoro lumine
Noctem soporis gratia, aos vossos olhos —, esse não se ria.
Mas se é dotado de grande caridade,
Artus solutos ut quies chore pelos meus pecados diante de
Reddat labor is usui
Mentesquefessas allevet Vós, que sois o Pai de todos os irmãos
Luctusque solvat anxios. ” do vosso Cristo.

13
Preces pela mãe
34. Agora, sarado já o meu coração vida humana, ainda a mais louvável, se
desta ferida, na qual se poderia censu­ a julgardes sem a vossa misericórdia!
rar a minha sentimentalidade, derramo Mas porque não examinais as nossas
diante de Vós, meu Deus, pela vossa faltas com rigor, confiadamente espe­
serva, uma outra espécie de lágrimas. ramos algum lugar junto de Vós.
Manam dum espírito comovido pelos Quem, porém, Vos enumera os seus
perigos que cercam toda a alma “que verdadeiros méritos, que outra coisa
morre em Adão42 4”. Vivificada em expõe senão os vossos benefícios? Oh!
Cristo ainda antes de ser libertada da se os homens se reconhecessem como
carne, vivia de tal modo que o vosso homens, “se aquele que se gloria se
nome era louvado na sua fé e nos seus gloriasse no Senhor42 6!”
bons costumes. 35. Por isso, “Deus do meu cora­
Contudo, não ouso dizer que desde ção, minha glória e minha vida42 7”,
o tempo em que a regenerastes pelo esqueço um momento as boas ações de
batismo, não caísse de sua boca algu­ minha mãe, pelas quais alegremente
ma palavra oposta à vossa lei. O vosso Vos dou graças, para Vos pedir perdão
Filho, que é a Verdade, declarou: “Se de seus pecados. Ouvi-me em nome
alguém chamar ‘louco’ a seu irmão, d’Aquele que é a Medicina das nossas
* chagas, que foi suspenso do madeiro
será réu do fogo da geena42 5”. E ai da424
424 1 Cor 15, 22. 42 6 2 Cor 10, 17.
42 5 Mt 5,22. 42 7 Sl 117, 14.27.26.
188 SANTO AGOSTINHO

da cruz e, sentado “à vossa direita, Quem poderá restituir a Cristo Jesus


intercede por nós 42 8”. Sei que ela pra­ seu sangue inocente? Quem lhe poderá
ticou a misericórdia e que perdoou de restituir o preço com que nos resgatou
coração as faltas contra ela cometidas; do inimigo para nos arrancar dele? Era
perdoai-lhe também as suas dívidas, se- a este mistério da vossa redenção que a
algumas contraiu em tantos anos que vossa serva ligara a sua alma pelos
se seguiram ao batismo. vínculos da fé. Ninguém a arranque ja­
Perdoai-lhe, Senhor, perdoai-lhe, eu mais da vossa proteção. Que o leão e o
Vo-lo suplico, e “não entreis com ela dragão nem à força nem por insídias se
em juízo 428 429”. “Que a vossa miseri­ entreponham entre ela e Vós. Para que
córdia supere a vossa justiça430”, pois o astuto acusador a não convença e
são verdadeiras as vossas palavras e arrebate, ela não responderá que nada
prometestes misericórdia aos miseri­ deve. Dirá antes que as suas dívidas
cordiosos. Contudo, se alguém foi lhe foram perdoadas por Aquele a
misericordioso, a Vós o deve, a Vós, quem ninguém pode restituir o que por
“que Vos compadecereis de quem jâ nós pagou sem ser devedor.
tiverdes tido piedade e usareis de mise­ 37. Que ela esteja em paz com o
ricórdia com quem tiverdes sido mise­ marido, já que, anteriormente ou pos­
ricordioso 431”. teriormente à sua união com ele, com
36. Creio que fizestes já o que Vos ninguém mais se desposou. Serviu-o
suplico, mas desejo, Senhor, que com paciência, alcançando méritos
“aproveis esta oblação voluntária da para também o ganhar para Vós.
minha boca432”. Perto do dia da sua
morte, minha mãe não desejou que seu Inspirai, meu Senhor e meu Deus,
corpo fosse pomposamente sepultado, inspirai aos vossos servos, meus ir­
nem que fosse ungido com aromas, mãos, aos vossos filhos, meus senho­
nem ambicionou um túmulo magní­ res, a quem sirvo pelo coração, pela
fico, nem se preocupou com tê-lo na voz e pela pena, inspirai a todos os que
pátria. Nenhuma destas coisas nos lerem estas páginas que se lembrem,
recomendou. Mostrou apenas desejo junto ao altar, de Mônica, vossa serva,
de que nos lembrássemos dela junto do e de Patrício, outrora seu esposo, pelos
vosso altar, onde nunca tinha faltado quais me introduzistes nesta vida, dum
um só dia a render-Vos homenagens, modo tal que eu ignoro.
porque sabia que lá se distribui a víti­ Que se lembrem, com piedoso afeto,
ma santa que “destruira o libelo de dos que foram meus pais nesta vida
condenação, contrário a nós433”. Com transitória e meus irmãos em Vós,
essa vítima triunfou do inimigo que nosso Pai, e na Igreja Católica, nossa
enumera as nossas faltas e procura Mãe, e meus concidadãos na eterna
acusações contra nós. Mas o nosso Jerusalém. Por esta suspira o vosso
adversário nada encontrou n’Aquele povo na sua peregrinação, desde a par­
com quem nós vencemos. tida até ao regresso.
428 Rom 8,34.
Assim, graças a estas Confissões, o
429 57 142,2. desejo último de minha mãe será mais
430 Tg2, 13. copiosamente cumprido, com as ora­
431 Rom 9, 15; cf. 2?z 33, 19. ções de muitos, do que somente com as
432 Sl 118, 108.
433 Co/2, 14. minhas.
SEGUNDA PARTE
Nesta segunda parte das Confissões Agosti­
nho confessa não o que foi outrora, mas o
que é presentemente, como bispo e santo.
Depois de falar de si no Livro X, louva a
Deus nos três últimos livros, tomando como
motivo a Criação.
O ENCONTRO DE DEUS

Predominam, neste livro, a formosís­


sima descrição da memória e a análise às
seduções da gula, do perfume, da música e
das belezas naturais.

I — Introdução à segunda
parte: A caminho de
Deus (1-7).
II — Da análise da /Tze/nó-
ria a Deus (8-17).
III — Misérias e tentações do
homem (18-41).
IV — Cristo é o único Me­
diador (42-43).
1
O apelo à verdade
1. Fazei que eu Vos conheça, ó duma alegria sã. Os outros bens desta
Conhecedor de mim mesmo, sim, que vida tanto menos se deveriam chorar
Vos conheça como de Vós sou conhe­ quanto mais os choramos; e tanto mais
4. Ó virtude da minha alma, en­
cido 43 3 se deveriam chorar quanto menos os
trai nela, adaptai-a a Vós, para á terdes choramos. Mas Vós amastes a verda­
e possuirdes sem mancha nem ruga. É de43 5, pelo que quem a pratica alcan­
esta a esperança com que falo,'a espe­ ça a luz 43 6. Quero-a também praticar
rança em que me alegro quando gozo no meu coração, confessando-me a
Vós, e, nos meus escritos, a um grande
43 4 A filosofia de Santo Agostinho sintetiza-se na numero de testemunhas.
expressão: “Que me conheça a mim, que Te conhe­
ça a Ti, Deus” (Solilóquios, Livro II, cap. 1). (N. do 43 5 si 50,8.
T.) 43 6 Jó 3, 21.

2
Deus tudo penetra
2. Para Vós, Senhor, a cujos olhos tos do pensamento, que vossos ouvidos
está patente o abismo da consciência já conhecem. Quando sou mau, o
humana, que haveria em mim oculto, confessar-me a Vós é o mesmo que
ainda que Vo-lo não quisesse confes­ desagradar-me a mim próprio; porém,
sar? Poder-Vos-ia ocultar a mim quando sou bom, o confessar-me a Vós
mesmo, mas não poderia esconder-me só significa que não atribuo nada a
de Vós. Agora que os meus gemidos mim, porque abençoais, Senhor, o
são testemunhas de que me desagrado, justo mas antes o justificais da impie­
Vós iluminais-me, agradais-me, e eu de dade43 7. Assim, ó meu Deus, a confis­
tal modo Vos amo e desejo quejáme são que faço na vossa presença é e não
envergonho de mim. Desprezo-me e é em silêncio. É em silêncio quanto às
escolho-Vos. Só por vosso amor desejo palavras; mas é em clamor quanto aos
agradar-Vos a Vós e a mim. afetos. Nenhuma verdade digo aos ho­
Senhor, conheceis-me tal como sou. mens que Vós já antes ma não tenhais
Já Vos disse com que .fruto me vou ouvido. Nem me ouvis nada que já
confessando a Vós. Não Vos faço esta antes mo não tivésseis dito.
confissão com palavras e vozes de
carne, mas com palavras da alma e gri­ 43 7 Rom 4, 5.

3
Confessar-me aos homens?!
3. Que tenho eu que ver com os curar das minhas enfermidades? Que
homens, para que me ouçam as Con­ gente curiosa para conhecer a vida
fissões, como se houvessem de me alheia e que indolente para corrigir a
196 SANTO AGOSTINHO

sua! Por que pretendem que lhes “não posso”. Despertam-na para que
declare quem sou, se não desejam tam­ vigie no amor da vossa misericórdia e
bém ouvir de Vós quem eles são? na doçura da vossa graça, com a qual
Ouvindo-mè falar de mim, como hão se toma poderoso o fraco que, por ela,
de saber que lhes declaro a verdade, se toma consciência da sua fraqueza.
ninguém “sabe o que se passa num Consolam-se, além disso, os bons ao
homem, a não ser o espírito desse ouvirem os males passados daqueles
homem que nele habita43 5 *8”? Se, que já não sofrem. Deleitam-se não por
porém, Vos ouvem falar a seu respeito, serem males, mas porque o foram e
não poderão dizer: “Nosso Senhor agora não o são.
mente”. Com efeito, o ouvir em-Vos Ó Senhor meu — a quem a minha
falar a seu respeito, que é senão conhe­ consciência cotidianamente se confes­
cerem-se a si mesmos? E quem há que, sa, mais confiada na esperança da
conhecendo-se, diga sem mentir: “é vossa misericórdia do que na sua ino­
falso”? “A caridade tudo crê43 9”, cência -—-, mostrai-me, eu Vo-lo peço,
sobretudo entre os que ela unifica, que proveito, sim, que proveito haverá
ligando-os entre si. Por isso também em confessar, neste livro, também aos
eu, Senhor, me confesso a Vós, para homens, diante de Vós, não quem fui,
que os homens, a quem não posso pro­ mas quem sou? Já vi e recordei o fruto
var que falo verdade, me ouçam. Mas que daí se tira. Há muitos, porém, que
aqueles a quem a caridade abre em desejam saber quem eu sou no momen­
meu proveito os ouvidos acreditam em to atual em que escrevo as Confissões.
mim. Desses, uns conhecem-me, outros não;
4. Vós, que sois o Médico do meu ou, simplesmente ouviram de mim ou
interior, esclarecei-me sobre o fruto de outros, a meu respeito, alguma
com que faço esta confissão. Na verda­ coisa. Mas os seus ouvidos não me
de, as confissões dos meus males pas­ auscultam o coração, onde eu sou o
sados — que perdoastes e esquecestes que sou. Querem, pois, ouvir-me con­
para me tomardes feliz em Vós, trans­ fessar quem sou no interior, para onde
formando-me a alma com a fé e com o não podem lançar o olhar, o ouvido ou
vosso sacramento —, quando se lêem a mente. Querem-no, contudo, dispos­
ou ouvem, despertam o coração para tos a acreditar. Poder-me-ão conhecer?
que não durma no desespero nem diga: A caridade, porém, que os torna justos,
diz-lhes que eu, ao confessar-me, não
438 1 Cor 2, 11. minto. E ela quem os faz acreditar em
439 1 Cor 13, 7. mim.

4
O fruto das “confissões”

5. Querem ouvir-me; mas com que Bem, mostrar-lhes-ei quem sou. Já não
fruto? Desejarão congratular-se comi­ é pequeno fruto, Senhor meu Deus, que
go, ouvindo quanto a vossa graça me muitos Vos rendam graças por mim e
aproximou de Vós? Desejarão orar por que numerosas pessoas Vos implorem
mim, sabendo quanto o peso dos meus em meu favor. Oxalá que o coração
pecados me faz atrasar (na virtude)? dos meus irmãos ame, em mim, o que
CONFISSÕES X 197

ensinais a amar, e igualmente aborreça esperança, não só diante de Vós mas


o que ensinais a aborrecer! também diante de todos os que creem
Que isso brote-dum coração frater­ em Vós; dos que participam da mesma
no, não dum coração estranho, nem de alegria e, como eu, estão sujeitos à
filhos espúrios “cuja boca falou vaida­ morte; do-s que são meus concidadãos
de e cuja direita é mão de iniquida­ e peregrinam neste mundo; e enfim,
de4 40”. Faça isso um coração fraterno diante dos que me precedem, me se­
que se alegre comigo quando me apro­ guem ou me acompanham no caminho
va e se entristeça quando me desapro­ da vida. Estes são os vossos servos, os
va, porque igualmente me ama, quer meus irmãos, aos quais constituístes
me aprove, quer me desaprove. A estes vossos filhos e meus senhores. A eles
é que me revelarei: respirem eles nas me mandastes servir, se quisesse viver
minhas ações boas, e suspirem nas de Vós e convosco.
más. As ações boas são obras e dons Mas esta ordem dir-me-ia pouco se
vossos; as más são delitos meus e juí­ o vosso Verbo, antes de me preceituar
zos vossos. Respirem nas ações boas e com palavras, não fosse à frente com
suspirem nas más. Subam à vossa pre­ obras. Eu cumpro-a com fatos e pala­
sença hinos e lágrimas destes corações vras. Faço-o ao abrigo das vossas
fraternos que são “os vossos. turíbu- asas; porque o perigo seria grande se,
441”.
los440 debaixo das vossas asas, a minha alma
Vós, Senhor, deleitado com os per­ não Vos estivesse sujeita e a minha fra­
fumes do vosso santo templo, “tende queza Vos não fosse conhecida. Sou
piedade de mim, segundo a vossa gran­ uma criancinha, mas meu Pai vive
de misericórdia4 42”, por causa do sempre e é para mim o tutor idôneo.
vosso nome. Se nunca abandonais as Foi ele quem me gerou e é ele quem me
obras começadas, aperfeiçoai o que em protege. Vós sois todo o meu bem,
mim há incompleto. Vós, onipotente, que estais comigo,
6. O fruto das minhas Confissões é mesmo antes de eu estar convosco.
ver, não o que fui, mas o que sou. Revelarei, pois, àqueles a quem mè
Confesso-Vos isto, com íntima exulta- mandais servir, não o que fui, mas o
ção e temor, com secreta tristeza e que já sou e o que ainda sou. “Mas não
me julgo a mim mesmo4 43.” Seja,
440 Sl 143, 7. pois, escutado assim.
4 41 Apc 8, 3.
4 42 5/50,3. 4 43 1 Cor 4, 3.

5
A ignorância humana

7. Vós, Senhor, podeis julgar-me, espírito que nele habita conhece. Mas
porque ninguém “conhece o que se Vós,- Senhor, que o criastes, sabeis
passa num homem, senão o seu espíri­ todas as suas coisas. Eu, ainda que
to, que nele reside4 4 4”. Há, porém, diante de Vós me despreze e me tenha
coisas no homem que nem sequer o na conta de terra e cinza, sei de Vós
algumas coisas que não conheço de
4 4 4 1 Cor 2, 11. mim. “Nós agora vemos como por um
198 SANTO AGOSTINHO

espelho, em enigma, e não ainda face a Com a tentação, dais-nos também os


face4 4 5”. Por isso, enquanto peregrino meios para a podermos suportar 4 4 6.
longe de Vós, estou mais presente a Confessarei, pois, o que sei de mim,
mim do que a Vós. Sei que em nada e confessarei também o que de mim
podeis ser prejudicado, mas ignoro a ignoro, pois o que sei de mim, só o sei
que tentações posso ou não posso porque Vós me iluminais; e o que igno­
resistir. Todavia, tenho esperança, por­ ro, ignorá-lo-ei somente enquanto as
que sois fiel e não permitis que sejamos minhas trevas se não transformarem
em meio-dia, na vossa presença 4 4 7.
tentados acima das próprias forças.
4 4 6 1 Cor 10, 13.
4 4 5 1 Cor 13, 12. 4 4 7 Cf.Is 58, 10.

6
Quem é Deus? 448

8. A minha consciência, Senhor, contudo, amo uma luz, uma voz, um


não duvida, antes tem a certeza de que perfume, um alimento e um abraço,
Vos amo. Feristes-me o coração com a quando amo o meu Deus, luz, voz, per­
vossa palavra e amei-Vos. O céu, a fume e abraço do homem interior,
terra e tudo o que neles existe dizem- onde brilha para a minha alma uma
me por toda parte que Vos ame. Não luz que nenhum espaço contém, onde
cessam de o repetir a todos os homens, ressoa uma voz que o tempo não arre­
para que sejam inescusáveis. Compa- bata, ojide se exala um perfume que o
decer-Vos-eis mais profundamente da­ vento não esparge, onde se saboreia
quele de quem já Vos compadecestes, e uma comida que a sofreguidão não
concedereis misericórdia àquele para diminui, onde se sente um contato que
quem já fostes misericordioso. De a saciedade não desfaz. Eis o que amo,
outro modo, o céu e a terra só a surdos quando amo o meu Deus.
cantariam os vossos louvores. Quem é Deus?
9. Perguntei-o à terra e disse-me:
Que amo eu, quando Vos amo? Não “Eu não sou”. E tudo o que nela existe
amo a formosura corporal, nem a gló­ respondeu-me o mesmo. Interroguei o
ria temporal, nem a claridade da luz,
mar, os abismos e os répteis animados
tão amiga destes meus olhos, nem as
e vivos e responderam-me: “Não
docés melodias das canções de todo o
somos o teu Deus; busca-o acima de
gênero, nem o suave cheiro, das flores, nós”. Perguntei aos ventos que so­
dos perfumes ou dos aromas, nem o pram; e o ar, com os seus habitantes
maná ou o mel, nem os membros tão respondeu-me: “Anaxímenes4 49 j está
flexíveis aos abraços da carne. Nada enganado; eu não sou o teu Deus”.
disto amo, quando amo o meu Deus. E Interroguei o céu, o Sol, a Lua, as
4 48 Este capítulo é outro dos mais célebres das estrelas e disseram-me: “Nós também
Confissões. Nele se exemplifica um dos processos não somos o Deus que procuras”'.
literários favoritos do Hiponense: interrogar os Disse a todos os seres que me rodeiam
seres sob aspecto estético em ordem a um fim meta­
físico: “Quem é Deus? Perguntei-o à terra e disse- as portas da carne: “Já que não sois o
me: ‘Eu não sou’ ”. (N. do T.) meu Deus, falai-me do meu Deus,
CONFISSÕES X 199

dizei-me, ao menos, alguma coisa homem interior — alma —, eu conhe-


d’Ele”. E exclamaram com alarido: ci-a também pelos sentidos do corpo^
“Foi Ele quem nos criou 4 5°”. Perguntei pelo meu Deus à massa do
A minha pergunta consistia em Universo, e respondeu-me: “Não sou
contemplá-las; a sua resposta era a sua eu; mas foi Ele quem me criou”.
beleza4 51. 10. Mas não se manifesta esta bele­
Dirigi-me, então, a mim mesmo, e za a todos os que possuem sentidos
perguntei-me: “E tu, quem és?” “Um perfeitos? Porque não fala a todos do
homem” respondi. Servem-me um mesmo modo? Os animais, pequenos
corpo e uma alma; o primeiro é exte­ ou grandes, vêem a beleza, mas não a
rior, a outra interior. Destas duas subs­ podem interrogar. Não lhes' foi dada a
tâncias, a qual deveria eu perguntar razão — juiz que julga o que os senti­
quem é o meu Deus, que já tinha pro­ dos lhe anunciam. Os homens, pelo
curado com o corpo, desde a terra ao contrário, podem-na interrogar, para
verem as perfeições invisíveis de Deus,
céu, até onde pude enviar, como considerando-as nas obras criadas 4 52.
mensageiros, os raios dos meus olhos? Submetem-se todavia a estas pelo
À parte interior, que é a melhor. Na amor, e, assim, já não as podem julgar.
verdade, a ela é que os mensageiros do Nem a todos os que as interrogam res­
corpo remetiam, como a um presidente pondem as criaturas, mas só aos que
ou juiz, as respostas do céu, da terra e as julgam. Não mudam a-voz, isto é, a
de todas as coisas que neles existem, e beleza, se um a vê simplesmente,
que diziam: “Não somos Deus; mas enquanto outro a vê e a interroga. Não
foi Ele quem nos criou”. O homem aparecem a um duma maneira e a
interior conheceu esta, verdade pelo outro doutra. . . Mas, aparecendo a
ministério do homem exterior. Ora, eu, ambos do mesmo modo, para um é
449 Filósofo do século VI antes de Cristo. Era
muda e para outro fala. Ou antes, fala
natural de Mileto, na Jônia, província da Ásia a todos, mas somente a entendem
Menor. Supunha ele que a matéria era dotada essen­ aqueles que comparam a voz vinda de
cialmente de vida. Por isso, não admitia um Ser
supremo que estivesse para além do mundo. Vendo fora com a verdade interior.
a evolução constante a que estavam sujeitos os Ora, a verdade diz-me: “O teu Deus
seres, procurou indagar qual o princípio que presi­ não é o céu, nem a terra, nem corpo
dia a estas transformações. Notando que o ar
restaurava, pela respiração, a vida animal, e que o algum”. E a natureza deles exclama:
espírito, na hora derradeira, era exalado como um “Repara que a matéria é menor na
sopro, escolheu o ar como princípio de tudo. Do ar
vivo e infinito, por dilatações e contrações, provi­ parte que no todo”. Por isso te digo, ó
nham todos os seres. A âgua era, para Anaxímenes, minha alma, que és superior ao corpo,
o ar condensado; e o fogo era ar rarefeito. Anaxíme­ porque vivificas a matéria do teu
nes, Tales, Anaximandro, Empédocles e Anaxá-
goras constituem, na história da filosofia grega, a corpo, dando-lhe vida, o que nenhum
Escola Jônica. (N. do T.) corpo pode fazer a outro corpo 4 53.
4 50 5/99,3. Além disso, o teu Deus é também para
4 51 Em Santo Agostinho, o artista é uma das face­
tas do seu gênio complexo, que ultrapassou as teo­ ti vida da tua vida.
rias platônicas e plotinianas e soube solucionar
originalmente o difícil problema das idéias estéticas. 4 52 Rom 1,20.
Não sentiu apenas a Beleza, não a revelou apenas 4 53 A alma dá vida ao corpo porque é a sua forma
na sua arte literária e na sua teologia tão profunda e substancial. Sem esta unidade íntima e profunda, o
exuberante, mas foi também o filósofo que investi­ corpo seria apenas um instrumento da alma que a
gou e admirou no mundo as imagens coloridas do seu talante poderia deixar de vivificar, quando bem
Supremo Ser. (N. do T.) lhe parecesse. (N. do T.)
200 SANTO AGOSTINHO

Ultrapassando a força corpórea. . .

11. Que amo então quando amo o Hâ, portanto, outra força que não só
meu Deus? Qúem é Aquele que está no vivifica, mas também sensibiliza a
cimo da minha alma? Pela minha pró­ carne que o Senhor me criou, man­
pria alma hei de subir até Ele. Ultra­ dando aos olhos que não ouçam e ao
passarei a força com que me prende ao ouvido que não veja, mas aos primei­
corpo e com que encho de vida o meu ros que vejam e a este que ouça e a
organismo. Mas não é com essa vida cada um dos restantes sentidos o que é
que encontro o meu Deus, porque próprio dos seus lugares e ofícios. Por
(nesse caso) também “o cavalo e a eles, que eu — espírito uno — realizo
mula, que não têm inteligência 4 5 4”, O as diversas funções. (Na minha in­
encontrariam, pois possuem essa vestigação) ultrapassei ainda esta
mesma força que lhes vivifica os força que igualmente q cavalo e a mula
corpos. possuem, visto que também sentem por
454 S131,9. meio do corpo.

8
O palácio da memória 455

12. Transporei, então, esta força da mente, outras fazem-me esperar por
minha natureza, subindo por degraus mais tempo, até serem extraídas, por
até Àquele que me criou. assim dizer, de certos receptáculos
Chego aos campos e vastos palácios ainda mais recônditos. Outras irrom­
da memória onde estão tesouros de pem aos turbilhões e, enquanto se pede
inumeráveis imagens trazidas por per­ e se procura uma outra, saltam para o
cepções de toda espécie. Aí está tam­ meio, como que a dizerem: “Não sere­
bém escondido tudo o que pensamos, mos nós?” Eu, então, com a mão do
quer aumentando quer diminuindo ou espírito, afasto-as do rosto da memó­
até variando de qualquer modo os ria, até que se desanuvie o que quero e
objetos que os sentidos atingiram. do seu esconderijo a imagem apareça à
Enfim, jaz aí tudo o que se lhes entre­ vista. Outras imagens ocorrem-me
gou e depôs, se é que o esquecimento com facilidade e em série ordenada, à
ainda o não absorveu e sepultou. medida que as chamo. Então as prece­
Quando lá entro mando comparecer dentes cedem o lugar às seguintes, e,
diante de mim todas as imagens que ao cedê-lo, escondem-se, para de novo
quero. Umas apresentam-se imediata­ avançarem quando eu quiser. Ê o que
acontece, quando digo alguma coisa
4 5 5 Esta série de capítulos dedicada ao estudo da decorada.
memória, e que principia aqui, tem sumo vaíor para
a psicologia experimental. O Hiponense saberá 13. Lá se conservam distintas e
encontrar Deus na memória, que é faculdade de classificadas todas as sensações que
imagens corpóreas e, na sua constituição mais per­
feita, faculdade puramente espiritual. Há, pois, duas entram isoladamente pela sua porta.
espécies de memória. (N. do T.) Por exemplo, a luz, as cores e as for­
CONFISSÕES X 201

mas dos corpos penetram pelos olhos; palácio da memória. Afestão presentes
todas as espécies de sons, pelos ouvi­ o céu, a terra e o mar com todos os
dos; todos os cheiros, pelo nariz; todos pormenores que neles pude perceber
os sabores, pela boca. Enfim, pelo tato pelos sentidos, exceto os que já esque­
entra tudo o que é duro, mole, quente, cí. É lá que me encontro a mim
frio, brando ou áspero, pesado ou leve, mesmo, e recordo as ações que fiz, o
tanto extrínseco como intrínseco ao seu tempo, lugar, e até os sentimentos
corpo. que me dominavam ao praticá-las. E lá
O grande receptáculo da memória que estão também todos os conheci­
— sinuosidades secretas e inefáveis, mentos que recordo, aprendidos ou
onde tudo entra pelas portas respec­ pela experiência própria ou pela crença
tivas e se aloja sem confusão — recebe no testemunho de outrem.
todas estas impressões, para as recor­ Deste conjunto dé idéias, tiro analo­
dar e revistar quando for necessário. gias de coisas por mim experimentadas
Todavia, não são os próprios objetos ou em que acreditei apoiado em expe­
que entram, mas as suas imagens: ima­ riências anteriores. Teço umas e outras
gens das coisas sensíveis, sempre pres­ com as passadas. Medito as ações
tes à oferecer-se ao pensamento que as futuras, os acontecimentos, as esperan­
recorda. ças. Reflito em tudo, como se me esti­
Quem poderá explicar o modo como vesse presente. “Farei isto e aquilo”,
elas se formaram, apesar de se conhe­ digo no meu interior, nesse seio imenso
cer por que sentidos foram recolhidas e do espírito■, repleto de imagens de tan­
escondidas no interior? Pois mesmo tas e tão grandes coisas. Tiro esta ou
quando me-encontro em trevas e silên­ aquela conclusão: “Oh! se sucedesse
cio posso representar na memória, se tal e tal acontecimento ! Afaste Deus
quiser, as cores, e distinguir o branco esta ou aquela calamidade!”
do preto e todas as mais entre si. Os Eis o que exclamo dentro de mim.
sons não invadem nem perturbam as Ao dizer isso, tenho presentes as ima­
imagens que aí se encontrarem. Estão gens de tudo o que exprime, hauridas.
como que escondidos, e retirados. Se do tesouro da memória, pois, se faltas­
me apetece chamá-los, imediatamente sem, absolutamente nada disto poderia
se apresentam. Então, estando a língua dizer.
em repouso e a garganta eim silêncio, 15. É grande esta força da memó­
canto o qu,e me apraz. Aquelas ima­ ria, imensamente grande, ó meu Deus.
gens das cores, que não obstante lá Ê um santuário infinitamente amplo.
continuam, não se interpõem nem me Quem o pode sondar até ao profundo?
interrompem quando manejo estoutro Ora, esta potência é própria do meu
tesouro que entrou pelos ouvidos. espírito, e pertence à minha natureza.
Do mesmo modo, conforme me Não chego, porém, a apreender todo o
agrada, recordo as restantes percep­ meu ser. Será porque o espírito ' é
ções que foram reunidas e acumuladas demasiado estreito para se conter a si
pelos outros sentidos. Assim, sem chei­ mesmo? Então onde está o que de si
rar nada, distingo o perfume dos lírios mesmo não encerra? Estará fora e não
do das violetas, ou então, sem provar dentro dele? Mas como é que o não
nem apalpar, apenas pela lembrança, contém?
prefiro o mel ao arrobe e o macio ao Este ponto faz. brotar em mim uma
áspero. admiração sem limites que me subjuga.
14. Tudo isto realizo no imenso Os homens vão admirar os píncaros
í
202 SANTO AGOSTINHO

dos montes, as ondas alterosas do mar, Mas, ao presenciá-los com os olhos,


as largas correntes dos rios, a ampli­ não os absorvi com a vista: residem
dão do oceano, as órbitas dos astros: e em mim, não os próprios objetos, mas
nem pensam em si mesmos! Não se as suas imagens. Conheço com que
admiram de eu ter falado (agora) de sentido do corpo me foi impressa cada
todas estas coisas num tempo em que imagem.
as não via com os olhos! Ora, não 456 O oceano era para os antigos romanos o mar
poderia falar delas se, dentro da minha que cercava toda a terra. Era particularmente o
Atlântico que recebia este nome. Cícero, por exem­
memória, nos espaços tão vastos como plo, no Sonho de Cipião: “A terra está rodeada
se fora de mim os visse, não observasse daquele mar que se chama Atlântico, o Grande, o
Oceano...” Santo Agostinho apenas sulcou as
os montes, as ondas, os rios, os astros ondas do Mediterrâneo e do mar Tirreno, onde não
há marés. Porém o seu discípulo Paulo Orósio,
que contemplei e o oceano em que natural de Braga, poder-lhe-ia descrever as marés
acredito por testemunho alheio4 5 6. do Atlântico nas praias lusitanas, (N. dó T.)

9
A memória intelectual

16. Não é só isto o que a capaci­ passa, deixando nos ouvidos a impres­
dade imensa da minha memória encer­ são dum rasto que no-la faz recordar,
ra. Também lá se encontra tudo o que como se continuasse a ressoar quando
não esqueci, aprendido nas artes libe­ na realidade já não ressoa. Sucedería
rais. como ao perfume, que, ao passar e
Estes conhecimentos estão como desvanecer-se nos ares, afeta o olfato,
que retirados num lugar mais íntimo, donde transmite para a memória a sua
que não é lugar. Ora, eu não trago co­ imagem, que se reproduz com a lem­
migo as suas imagens, mas as próprias brança; como ao alimento, que no
estômago perde o sabor, mas parece
realidades. As noções de literatura, de conservá-lo na memória; finalmente,
dialética, as diferentes espécies de como acontece a qualquer objeto que o
questões e todos os conhecimentos que corpo sente pelo tato e que a memória
tenho a este respeito existem também imagina, mesmo quando afastado de
na minha memória, mas de tal modo nós.
que, se não retivesse a imagem, deixa­ De fato, todas estas realidades não
ria fora o objeto 4 5 7. Neste caso suce­ nos penetram na memória. Só as suas
dería como à voz que ressoa e logo imagens é que são recolhidas com
espantosa rapidez e dispostas, por
4 5 7 Distingue Santo Agostinho entre ciência e ima­ assim dizer, em células admiráreis,
gens de objetos. A ciência está em nós sem imagens,
e os objetos estão em nós pelas suas imagens. (N. do donde admiravelmente são tiradas pela
T>) lembrança.
CONFISSÕES X 203

10
A memória e os sentidos

17. Quando ouço dizer que há três ainda o sentido do gosto: “Se não ti­
espécies de questões, a saber: “se uma nham sabor, nada me perguntes”. E o
coisa existe (an sit?), qual a sua natu­ tato: “Se não eram sensíveis, não as
reza (quid sit?) e qual a sua qualidade apalpei; e se as não apalpei, não as
(quale sit?)”, retenho as imagens dos pude indicar”.
sons de que se formaram estas pala­ Donde e por que parte me entraram
vras, e vejo que eles passaram com na memória? Ignoro-o, porque, quan­
ruído através do ar, e jâ não existem-. do as aprendi, não acreditei nelas fiado
Não foi por nenhum dos sentidos do num parecer alheio, mas reconheci-as
corpo que atingí essas coisas signifi­ existentes enTmim, admitindo-as como
cadas nestes sons, nem as vi em parte verdadeiras. Entreguei-as ao meu espí­
nenhuma a não ser no meu espírito. rito, como quem as deposita, para de­
Escondi na memória não as suas ima­ pois as tirar quando quiser. Estavam
gens, mas os próprios objetos. lá, portanto, mesmo antes de as apren­
Que digam, se podem, por onde der, mas não estavam na minha memó­
entraram em mim. Percorrendo todas ria. Onde estavam então? Por que as
as portas do corpo, não consigo saber conheci, quando disse: “Sim, é verda­
por qual entraram. Os olhos dizem: de”, senão porque já existiam na
“Se eram coloridas, fomos nós que minha memória? Mas tão retiradas e
anunciamos”. Replicam os ouvidos: escondidas em concavidades secretís­
“Ressoaram, foram por nós comunica­ simas estavam que não poderia talvez
das”. Declara o olfato: “Se tinham pensar nelas, se dali não fossem arran­
cheiro, passaram por mim”. Afirma cadas por alguém que me advertisse.

11
A memória e as idéias inatas

18. Por esta razão, aprender estas mos encontrado e — como já me


noções — de que não haurimos as exprimi — as tivemos como que à
imagens pelo.s sentidos, mas que sem mão! Nós somos de parecer que já
imagens vemos no nosso interior tais aprendemos e conhecemos estas coi­
como são em si mesmas — achamos sas4 58. Mas se deixar de as recordar,
que consiste apenas em coligir pelo ainda que seja por pequeno espaço de
pensamento aquelas coisas que a me­ tempo, de novo imergem e como que se
mória encerrava dispersas e desorde­
nadas e em obrigá-las, pela força da * 5 8. Alusão à teoria agostiniana da reminiscência.
atenção, a estarem sempre como que à Segundo esta, Deus, iluminando a nossa mente,
mão e a apresentarem-se com facili­ deporia em nós muitos, conhecimentos que viriam
depois a ser utilizados pela alma, à medida que os
dade £0 esforço costumado do nosso recordasse. Santo Agostinho adotou assim em parte
espírito. a teoria platônica das idéias, segundo a qual a alma,
ao encarnar num corpo, trazia do outro mundo as
Quantas destas espécies nos traz a imagens das coisas. Aprender seria, portanto, recor­
nossa memória as quais jâ antes havía­ dar o que vira noutros tempos. (N. do T.)
204 SANTO AGOSTINHO

escapam para esconderijos mais pro­ cogo) é que vem cogitare; pois cogo e
fundos. E assim, como se fossem cogito são como ago e agito, facio e
novos, é necessário pensar, segunda facito. Porém a inteligência reivin­
vez, nesses conhecimentos existentes dicou como próprio este verbo (cogi­
na memória — pois não têm outra to), de tal maneira que só ao ato de
habitação — e juntá-los (cogenda) coligir (colligerej, isto é, ao ato de jun­
novamente, para que se possa saber. tar (cogere) no espírito, e não em qual­
Quer dizer, precisamos de os coligir quer parte, é que propriamente se
(colligenda), subtraindo-os a uma espé­ chama “pensar” (cogitarej.
cie de dispersão. E daqui (cogenda,

12
A memória e as matemáticas

19. Do mesmo modo a memória adelgaçadas como um- fio de aranha.


contém as noções e as regras inumerá­ Mas essas linhas materiais são diferen­
veis dos números e das dimensões. tes das imagens que os olhos carnais
Não foram os sentidos quem nos gra­ me anunciaram. Quem quer pode co­
vou estas idéias, porque estas não têm nhecê-las e representá-las interior­
cor, nem som, nem cheiro, nem gosto, mente, sem ter necessidade de pensar
nem são táteis. Quando delas se fala, num corpo. Por todos os sentidos cor­
ouço os sons das palavras que as signi­ porais é que cheguei também ao conhe­
cimento dos números. Mas esses nú­
ficam. Mas os números são uma coisa meros com que contamos são bem
e as-idéias que exprimem, outra; os pri­ diferentes: não são as imagens dos nú­
meiros soam diferentemente em grego meros sensíveis. Por conseguinte, são
e em latim. Porém as idéias nem são mais reais. Ria-se de mim quem não
gregas nem latinas, nem de nenhuma compreender estas coisas que exponho.
outra língua. Eu terei compaixão de quem escarneça
Vi linhas traçadas por artistas, tão de mim.

13
“A memória lembra-se de se lembrar”

20. Conservo tudo isso na memória com que as distingui tantas vezes,
e, bem assim, o modo por que o apren­ quando com frequência as conside­
dí. Retenho na memória as muitas rava. Recordo-me, portanto, de muitas
disputas que ouvi, cheias de erros con­ vezes ter compreendido isto. E o que
tra estas verdades. Ainda que falsas, agora entendo e distingo, conservo-o
não é falso lembrar-me delas. Recor­ na memória para depois me lembrar de
do-me também ter sabido, nessas dis­ que agora o entendi. Por isso lembro-
putas, discernir as verdades das falsida­ me de que me lembrei. E assim, se
des. mais tarde me lembrar de que agora
Agora vejo que as distingo dum pude recordar estas coisas, será pela
modo inteiramente diferente daqueles força da memória!
CONFISSÕES X 205

14
A lembrança dos afetos da alma

21. Encerro também na memória os como o ventre da alma. A alegria,


afetos da minha alma, não da maneira' porém, e a tristeza são o seu alimento,
como os sente a própria alma, quando |i doce ou amargo. Quando tais emoções
os experimenta, mas de- outra muito ii se confiam à memória, podem ali
diferente, segundo o exige a força da l| encerrar-se depois de terem passado,
memória. por assim dizer, para esse estômago;
De fato, não estando agora alegre, mas não podem ter sabor. É ridículo
recordo-me de ter estado contente. Sem considerar estas coisas como idênticas.
tristeza, recordo a amargura passada, i Contudo, também não são inteira­
Repasso sem temor o medo que outro- ? mente dessemelhantes.
ra senti, e, sem ambição, recordo a an­ 22. Reparai que me apóio na me­
tiga cobiça. Algumas vezes, pelo con­ mória, quando afirmo que são quatro
trário, evoco com alegria as tristezas as perturbações da alma: o desejo, a
passadas; e com amargura relembro as alegria, o medo e a tristeza4 60. Qual­
alegrias. I! quer que seja o raciocínio que possa
Não é de admirar, tratando-se do ■ fazer, dividindo cada uma delas pelas
corpo: porque o espírito é uma coisa e i espécies dos seus gêneros e definindo-
o corpo é outra. Por isso, se recordo, i as, aí encontro que dizer e declaro-o
cheio de gozo, as dores passadas do depois. Mas não me altero com nenhu­
corpo, não é de admirar. Porém1, aqui o h ma daquelas perturbações, quando as
espírito é a memória4 59. Efetivàmente, -! relembro com a memória. Ainda antes
quando confiamos a alguém qualquer de eu as recordar e revolver, já lá esta­
negócio, para que se lhe grave na vam. Por isso consegui, mediante a
memória, dizemos-lhe: “Vê lá, grava-ó lembrança, arrancá-las dali.
bem no teu espírito”. E quando nos Assim como a comida, graças à
esquecemos, exclamamos: “Não o ' ruminação, sai do estômago, assim
conservei no espírito”, ou então: “Es- i também elas saem da memória, devido
capou-se-me do espírito”; portanto, í à lembrança. Então por que é que o
chamamos espírito à própria memória. disputador, ou aquele que se vai recor­
Sendo assim, por que será que ao ji dando, não sente, na boca do pensa­
evocar com alegria as minhas tristezas . mento, a doçura da alegria, nem a
passadas a alma contém a alegria, e a amargura da tristeza? Porventura nisto
memória a tristeza, de modo que a é dessemelhante o que não é seme­
minha alma se regozija com a alegria lhante em todos os seus aspectos?
que em si tem, e a memória se não Quem de nós falaria voluntaria­
entristece com a tristeza que em si pos­ mente da tristeza e do temor, se fôsse­
sui? Será porque não faz parte da mos obrigados a entristecer-nos e a
alma? Quem se atreverá a afirmá-lo ?‘ temer, sempre que falamos de tristeza
Não há dúvida que a memória é ou temor? Contudo, não os traríamos
4 59 Traduzimos o vocábulo animus ordinaria­ 4 60 Estas perturbações são o que a psicologia
mente por-'espírito, mas também tem o sentido de moderna chama paixões fundamentais. Cícero tam­
alma (anima) ou mente (mens). (N. do T.) bém as denomina perturbações (Tusculanas, IV, 6).
(N. do T.)
206 SANTO AGOSTINHO j

à conversa se não encontrássemos na çamos por nenhuma porta da carne,


nossa memória, não só os sons destas mas foi o espírito que, pela experiência
palavras, conforme as imagens grava­ das próprias emoções, as sentiu e con­
das em nós pelos sentidos corporais, fiou à memória; ou então foi a própria
mas também a noção desses mesmos memória que as reteve sem que nin­
sentimentos. As noções não as alcan­ guém lhas entregasse.

A memória das coisas ausentes

23. Quem poderá facilmente expli­ palavra. Os doentes, ao ouvirem o


car se esta recordação se produz por nome' “saúde”, não saberiam de que se
meio de imagens ou não? Pronuncio o trata, se a força da memória lhes não
nome, por exemplo, de “pedra”, ou de conservasse a própria imagem, embora
“sol”, quando tais objetos me não a realidade esteja longe do corpo.
estão presentes aos sentidos. É claro Pronuncio os nomes dos números
que as suas imagens estão-me presen­ por que contamos. Ficam-me presentes
tes na memória. Evoco a dor corporal: na memória não as suas imagens, mas
se nada me dói, não a posso ter presen­ os próprios números. Evoco a imagem
te. Contudo, se a sua imagem me não do Sol e logo se me apresenta na
estivesse presente na memória, eu não memória. Neste caso, eu não recordo a
sabia o que dizia, e, ao raciocinar, não imagem duma imagem, mas a própria
a distinguiria do prazer. Profiro o imagem. É ela que se me apresenta
nome de “saúde” corporal, quando quando a relembro. Nomeio a palavra
estou bom de saúde. Aqui já tenho pre­ “memória” e reconheço o que nomeio.
sente o próprio objeto. Porém, se a sua Onde o reconheço senão na própria
imagem não residisse na minha memó­ memória? Mas então está ela presente
ria, de modo nenhum poderia recordar a si mesma, pela sua imagem, e não
a significação que tem o som desta por si própria?

16
A memória lembra se do esquecimento

24. E mesmo quando falo no esque­ com que me recorde, e o esquecimento


cimento e conheço o que pronuncio, que lembro.
como poderia reconhecê-lo, se dele me Que é esquecimento senão a priva­
não lembrasse? Não falo do som desta ção da memória? E como é, entãoS que
palavra, mas do objeto que exprime. Se o esquecimento pode ser objeto da
o esquecesse, não me poderia lembrar memória se, quando está presente, não
do que esse som significava. Ora, me posso recordar? Se nós retemos na
quando me lembro da memória, esta memória aquilo de que nos lembra­
fica presente a si, por si mesma. Quan­ mos, e se nos é impossível, ao ouvir a
do me lembro do esquecimento, estão palavra “esquecimento”, compreender
ao mesmo tempo presentes o esqueci­ o que ela significa, a não ser que dele
mento e a memória: a memória que faz nos lembremos, conclui-se que a me-
CONFISSÕES X 207

mória retém o esquecimento. Á pre­ tremo, absurdas. Vejamos, pois, a ter­


sença do esquecimento faz com que o ceira, que antes insinuei. Com que fun­
não esqueçamos; mas quando está pre­ damento posso alvitrar que é a imagem
sente, esquecemo-nos. Não se deverá do esquecimento, e não o próprio
concluir que o esquecimento, quando o esquecimento, que está gravado na
recordamos, está presente na memória, memória, quando dele me lembro?
não por si mesmo, mas por uma ima­ Como poderei, afirmar tal hipótese, se,
gem sua? De fato, se ele estivesse pre­ quando a imagem de qualquer objeto
sente por si mesmo, faria com que o se nos imprime na memória, é preciso
não lembrássemos, mas o esquecês- que primeiro o próprio objeto nos este­
1 semos. Quem poderá penetrar, quem ja presente, para que nos possa ser gra­
poderá compreender o modo como isto vada a imagem? E assim que relembro
se realiza? 1 Cartago, todos os lugares em que esti­
25. Eu, Senhor, cogito este proble­ ve, os rostos das pessoas que vi, todos
ma, trabalho em mim mesmo, transfor- os objetos anunciados pelos outros
mei-me numa terra de dificuldades e de sentidos e, do mesmo modo, a saúde e
suor copioso. Agora já não escalo as as dores do próprio corpo. Quando a
regiões do firmamento; não meço as memória tinha estas coisas presentes,
distâncias dos astros; não procuro as tomou-lhes as imagens, para eu, de­
leis do equilíbrio da Terra; sou eu que pois, as poder contemplar e repassar
me lembro, eu, o meu espírito. Não é no' espírito, ao recordá-las quando
de admirar que esteja longe de mim ausentes.
tudo o que não sou eu. Todavia, que há Se, pois, é pela imagem, e não por si
mais perto de mim do que eu mesmo? mesmo, que o esquecimento se enraiza
Oh! nem sequer chego a com­ na memória, foi preciso que se achasse
preender a força da minha memória,, presente para que a memória pudesse
.sem a qual não poderia pronunciar o captar a imagem. Como pôde o esque­
meu próprio nome! Que direi eu, pois, cimento, quando estava presente, gra­
var a sua imagem na memória, se ele,
quando tenho a certeza de que me lem­
com a sua presença, apaga tudo o que
bro do esquecimento? Poderei afirmar
que não existe na minha memória lá encontra impresso? Enfim, seja
como for, apesar de ser inexplicável e
aquilo de que me não lembro? Ou incompreensível o modo como se reali­
então, que o esquecimento está na za este fato, estou certo de que me lem­
minha memória, para que o não bro do esquecimento, que nos varre da
esqueça? r memória tudo aquilo de que nos
Ambas estas hipóteses são, em ex­ lembramos.

17
Da memória a Deus

26. Grande é a potência da memó­ vida variada de inumeráveis formas


ria, ó meu Deus! Tem não sei quê de com amplidão imensa4 61.
horrendo, uma multiplicidade pro­ Eis-me nos campos da minha me-
funda e infinita. Mas isto é o espírito, 461 O homem, segundo este belo pensamento agos-
sou eu mesmo. E que sou eu, ó meu tiniano, é uma vivência repleta de formas, com hori­
Deus? Qual é á minha natureza? Uma zontes sobre o infinito. (N. do T.)
208 SANTO AGOSTINHO

mória, nos seus antros e cavernas sem . espírito até Vós, que morais lá no alto,
número, repletas, ao infinito, de toda a. acima de mim, transporei esta potência
espécie de coisas que lâ estão grava­ que se chama memória. Quero alcan-
das, ou por imagens, como os corpos, çar-Vos por onde podeis ser atingido, e
ou por si mesmas, como as ciências e prender-me a Vós por onde for possí­
as artes, ou, então, por não sei que vel. Os animais e as aves têm também
noções e sinais, como os movimentos memória. Doutro modo não poderiam
da alma, os quais, ainda quando a não regressar aos covis e ninhos, nem fa­
agitam, se enraizam na memória, posto riam muitas outras coisas a que estão
que esteja na memória tudo o que está acostumados. Sem a memória não
na alma. Percorro todas estas para­ poderiam contrair hábitos nenhuns.
gens. Vou por aqui e por ali. Penetro Passarei, pois, além da memória,
para poder atingir Aquele que me dis-
por toda parte quanto posso, sem tinguiu dos animais e me fez mais
achar fim. Tão grande é a potência da sábio que as aves do céu. Passarei,
memória e tal o vigor da vida que resi­ então, para além da memória, para
de no homem vivente e mortal! Vos encontrar. Mas onde, ó Bondade
Que farei, ó meu Deus, ó minha ver­ verdadeira e suavidade segura? Para
dadeira Vida? Transporei esta potên­ Vos encontrar, mas onde? Se Vos
cia que se chama memória. Transpô- encontro sem a memória, estou esque­
la-ei para chegar ate Vós, ó minha cido de Vós. E como Vos hei de lá
doce Luz? Que me dizeis? Subindo em encontrar se me não lembro de Vós?

18
A lembrança do objeto perdido

27. A mulher que perdera a drac­ encontramos alguma coisa perdida. Se,
ma462 e a procurou corrí a lanterna por acaso, um objeto — por exemplo,
não a teria encontrado se dela se não um corpo qualquer visível — nos desa­
lembrasse. Tendo-a depois achado, parece dos olhos e não da memória,
como sabería se era aquela, se dela se conservamos a sua imagem lá dentro, e
não recordasse já? Lembro-me de ter procuramo-lo, até se nos oferecer à
procurado muitos objetos perdidos, e vista. Quando for encontrado, reconhe­
de os ter encontrado. Sei-o porque, se cemo-lo pela imagem que ficara den­
ao procurar algum desses objetos me tro.
perguntavam: “É este? Não será talvez Não dizemos ter achado uma coisa
aquele?”, respondia sempre: “Não é”, que se perdera, se a não conhecemos,
até aparecer o que buscava. nem a podemos .conhecer, se dela nos
Se já me não recordasse desse obje­ não lembramos. Esse objeto desapare­
to, fosse ele qual fosse, poder-mo-iam cera para os olhos que a memória
apresentar, que eu não o descobriría, conservara4 63.
por não o poder reconhecer. É sempre
o que sucede quando procuramos e 4 63 A memória sensitiva conserva a imagem do
objeto perdido, e a memória intelectual guarda a
462 Lc 15,8. sua idéia (N. do T.)
CONFISSÕES X .209

19
O que é a reminiscência?

28. Quando a própria memória ao pensamento e, esquecidos do seu


perde qualquer lembrança, como suce­ nome, o procuramos. Ao ocorrer-nos
de quando nos esquecemos e procura­ outro nome, não o ligamos (a tal pes­
mos lembrar-nos, onde é que, afinal, a soa), porque nunca nos acostumamos
procuramos, senão na mesma memó­ a associá-los no nosso pensamento.
ria? E se esta casualmente nos apre­ Por isso afastamos esse nome até se
senta uma coisa por outra, repelimo-la nos apresentar aquele que simultânea e
até nos ocorrer o que buscamos. Ape­ perfeitamente concorde com o conheci­
nas nos ocorre, exclamamos: “É isto !” mento habitual.
Ora, não soltaríamos tal exclamação, Donde nos vem esse nome senão da
se não conhecéssemos esse objeto, nem própria memória? Supondo que o
o reconheceriamos, se dele nos não conhecemos por advertência doutrem,
lembrássemos. Ê certo,, portanto, que o
tínhamos esquecido. Poder-se-ia tam­ ainda é dela que nos vem, porque não
bém dizer que esse objeto não fugira o reconhecemos como um novo conhe­
totalmente, mas que nós, por meio da cimento, senão que, recordando-o,
parte que nos ficou impressa, procurá- aprovamos ser esse o nome que nos
vamos a outra? Com efeito, a memória disseram. Se se apagou completamente
sentia que jâ não podia resolver em do espírito, não nos lembramos dele,
conjunto o que conjuntamente costu­ ainda que nos avisem. Mas aquilo de
mava, e truncada no seu hábito e a que nos lembramos ter esquecido,
coxear, exigia a entrega da parte que ainda o não esquecemos inteiramente.
lhe faltava. Por isso, não podemos procurar um
■ O mesmo sucede quando uma pes­ objeto perdido, se dele nos esquecemos
soa conhecida se nos depara à vista ou totalmente.

20
Como procurar a felicidade

29. Então, como Vos hei de procu­ esqueci? Pelo desejo de travar conheci­
rar, Senhor? Quando Vos procuro, mento com uma vida, para mim incóg­
meu Deus, busco a vida feliz. Procu- nita, ou porque nunca a cheguei a
rar-Vos-ei, para que a minha alma conhecer, ou porque já a esqueci tão
viva. O meu corpo vive da minha alma completamente, que nem sequer me
e esta vive de Vós. lembro de a ter esquecido? Então, não
Como procurar, então, a vida feliz? é feliz aquela vida que todos desejam,
Não a alcançarei enquanto não excla­ sem haver absolutamente ninguém que
mar: “Basta, ei-la”. Mas onde poderei a não queira? Onde a conheceram para
dizer estas palavras? Como procurar assim a desejarem? Onde a viram para
essa felicidade? Como? Pela lembran­ a amarem? Que a possuímos, é certo.
ça, como se a tivesse esquecido, e Agora, o modo é que eu não sei.
como se agora me recordasse de que a Há uma maneira diferente de ser
210 SANTO AGOSTINHO

feliz, quando cada um possui a felici­ na infelicidade. O que eu quero saber é


dade em concreto. Hâ quem seja feliz se a vida feliz reside ou não na memó­
simplesmente em esperança. Estes pos­ ria. Se a não conhecéssemos, não a
suem a felicidade dum modo inferior podíamos amar.
ao daqueles que já são realmente feli­ Mal ouvimos este nome, “felicida­
zes. Mas, ainda assim, estão muito me­ de”, imediatamente temos de confessar
lhor que aqueles que não têm nem a que é isso mesmo o que apetecemos;
felicidade, nem a sua esperança. não nos deleitamos simplesmente com
Mesmo estes devem experimentá-la de o som da palavra. Quando um grego
qualquer modo, porque, no caso con- ■ ouve pronunciar esse vocábulo em
trário, não desejariam ser felizes. Ora, latim, não se deleita, porque ignora o
é absolutamente certo que-eles o que­ sentido. Mas nós deleitamo-nos; e ele
rem ser.
Não sei como conheceram a felici­ também se deleita, se ouve em grego,
dade, nem por que noção a apreende­ porque a felicidade real não é grega
ram. O que me preocupa é saber se nem latina, mas os gregos, os latinos e
essa noção habita na memória. Se lá os homens de todas as línguas têm um
existe, é sinal de que alguma vez já desejo ardente de a alcançar. E assim,
fomos felizes. Eu agora não procuro se fosse possível perguntar-lhes a uma
indagar se fomos todos felizes indivi­ só voz se “queriam ser felizes”, todos,
dualmente, ou se fomos somente na­ sem hesitação, responderíam que sim.
quele homem que primeiro pecou, em O que não aconteceria, se a memória
que todos morremos4 6 4, e nascemos não conservasse a própria realidade,
4 6 4 Cor 15, 22. significada nessa palavra.

21
A lembrança da felicidade

30. Quem recorda esta felicidade, sentidos corporais, prestaram atenção


recordá-la-á como a cidade de Carta- a outros oradores. Foi por isso que se
go, quem a viu? Não; a felicidade não deleitaram, e agora desejam também
é um corpo, e por isso não se vê com ser eloquentes. É certo que não se
os olhos. deleitariam com a eloquência se não a
Lembramo-la, então, como quem conhecessem por qualquer noção inte­
lembra números? Não; porque a estes, rior, nem a quereríam alcançar, se com
quem já os conhece, não os procura ela se não deleitassem. Porém, não é
adquirir. Ora, nós, tendo conhecimento pelos sentidos corporais que desco­
da felicidade, amamo-la. Mais ainda: brimos a vida feliz nos outros.
queremos possuí-la, para sermos feli­ Recordá-la-emos, então, como: a ale­
zes. gria? Sim, talvez. Eu lembro-me da
Lembramo-la talvez como a elo­ alegria passada, mesmo quando estou
quência? Também não, porque muitos, triste, e penso na felicidade, quando me
ao ouvirem pronunciar a palavra “elo­ encontro desolado. Nunca vi, nem
quência”, recordam logo a sua reali­ ouvi, nem cheirei, nem gostei, nem.
dade e desejam ser eloquentes, eles, apalpei a alegria com os sentidos cor­
que ainda o não são, e que possuem já porais. Simplesmente a experimentei
qualquer idéia de eloquência. Pelos na alma quando me alegrei.
CONFISSÕES X 211

A idéia de alegria enraizou-se-me na Se perguntarmos a dois homens se


memória para mais tarde a poder querem alistar-se no exército, é possí­
recordar, umas vezes com enfado, ou­ vel que um responda que sim, outro
tras com saudade, segundo as circuns­ que não. Porém, se lhes perguntarmos
tâncias em que me lembro de ter esta­ se. querem ser felizes, ambos dizem
do alegre. Assim, por exemplo, logo, sem' hesitação, que sim, que o
inundei-me de gozo em ações torpes desejam, porque tanto o que quer ser
que agora, ao lembrá-las, detesto e militar como o que não quer têm um só
aborreço; ou então, alegrei-me em atos fim em vista: o serem felizes. Opta um
legítimos e honestos, que lembro agora por um emprego, e outro por outro.
com saudade. Como os não tenho já Mas ambos são unânimes em quere­
presentes, evoco com tristeza essa anti­ rem ser felizes, como o seriam também
ga alegria. se. lhes perguntassem se queriam ter
31. Onde e quando experimentei a alegria. De fato, já chamam felicidade
vida feliz, para a poder recordar, amar à alegria. Ainda que um siga por um
e desejar? Não sou eu o único, nem caminho e outro por outro, esforçam-
são poucos os que a desejam. Todos, se por .chegar a um só fim, que é
absolutamente todos, querem ser feli­ alegrarem-se. Como ninguém pode
zes. Se não conhecéssemos a vida feliz dizer que não experimentou a alegria,
por uma noção certa, não a deseja­ encontramo-la na memória e reconhe­
ríamos com tão firme vontade. Que cemo-la sempre que dela ouvimos
significa isto? falar.

22
A alegria é só Deus

32. Longe de mim, Senhor, longe do A vida feliz consiste em nos alegrar­
coração deste vosso servo, que se con­ mos em Vós, de Vós e por Vós. Eis a
fessa a Vós, o julgar-se feliz, seja com vida feliz, e não há outra. Os' que jul­
que alegria for. Há uma alegria que
gam que existe outra apegam-se a uma
não é concedida-aos ímpios4 6 5, mas só
àqueles que desinteressadamente Vos alegria que não é a verdadeira. Contu­
servem: essa alegria sois Vós. do, a sua vontade jamais se afastará de
4 6 5 Zs48,22. alguma imagem de alegria. . .

23
A felicidade na verdade

33. Poderemos então concluir que muitos não fazem o que querem4 6 6”,
nem todos querem ser felizes porque mas entregam-se àquilo que podem
há alguns que não querem alegrar-se fazer. Com isso se contentam, porque
em Vós, que sois a única vida feliz? aquilo que não podem realizar, não o
Não; todos querem uma vida feliz. querem com a vontade quanta é neces­
Mas como “a carne combate contra o sária para o poderem fazer.
espírito e o espírito contra a carne, 4 6 6 Gál 10, 17.
212 SANTO AGOSTINHO

Pergunto a todos se preferem encon­ 34. Por que é que ã verdade gera o
trar a alegria na verdade ou na falsida­ ódio 4 6 9 ? Por que é que os homens têm
de. Todos são categóricos em afirmar como inimigo aquele que prega a ver­
que a preferem na verdade, como em dade, se amam a vida feliz, que não é
dizer que desejam ser felizes. A vida mais que a alegria vinda da verdade?
feliz é a alegria que provém da verda­ Talvez por amarem de tal modo a ver­
de. Tal é a que brota de Vós, ó Deus, dade que todos os que amam outra
que sois “a minha luz, a felicidade do coisa querem que o que amam seja a
meu rosto 4 6 7” e o meu Deus. Todos verdade. Como não querem ser enga­
desejam esta vida feliz. Oh ! todos que­ nados, não se querem convencer de
rem esta vida, que é a única feliz; sim, que estão em erro. Assim, odeiam a
todos querem a alegria que provém da verdade, por causa daquilo que amam
verdade. em vez da verdade. Amam-na quando
Encontrei muitos com desejos de os ilumina, e odeiam-na quando os
enganar outros, mas não encontrei nin­ repreende4 70. Não querendo ser enga­
guém que quisesse ser enganado. Onde nados e desejando enganar, amam-na
conheceram eles esta vida feliz senão quando ela se manifesta e odeiam-na
onde alcançaram o conhecimento da
verdade? Amam a verdade, porque quando os descobre. Porém a verdade
não querem ser enganados; e, ao ama­ castigá-los-á, denunciando todos os
rem a verdade feliz, que não é mais que que não quiserem ser manifestados por
a alegria oriunda da verdade, amam, ela. Mas nem por isso ela se lhes há de
com certeza, também a verdade. Não a mostrar.
poderiam amar, se não tivessem na E assim, é assim, é assim também a
memória qualquer noção de verdade. alma humana: cega, lânguida, torpe e
Por que não encontram nela a sua indecente, procura ocultar-se e não
alegria? Por que não são felizes? Não quer que nada lhe seja oculto. Em cas­
são felizes porque, entregando-se com tigo, não se pode ocultar ,à verdade,
demasiado afinco a outras ocupações mas oculta-se-lhe. Apesar de ser tão
que, em vez de ditosos, os tomam infeliz, antes quer encontrar a alegria
ainda mais desgraçados, recordam, nas coisas verdadeiras do que nas fal­
apenas frouxamente, aquela Verdade sas. Será feliz quando, liberta de todas
que os pode fazer felizes. “Por en­ as moléstias, se alegrar somente na
quanto ainda há uma luz entre os Verdade, origem de tudo o que é
homens.” Caminhem, caminhem de­ verdadeiro.
pressa, “para que as trevas os não
surpreendam4 68”! 4 68 Jo 12,35. __
4 68 T&rèncio,Ãndria, 68.
4 6 7 Jo 14, 6; 5/26, 1; 41, 12. 4 70 Jo 5, 35; 3,-20.

24
Deus na memória

35. Eis o ^espaço que percorri atra­ de que não me lembrasse, pois, desde-
vés da memória, para Vos buscar, que Vos conheci, nunca me esquecí de
Senhor, e não Vos encontrei fora dela. Vós.
Nada encontrei que se referisse a Vós Onde encontrei a verdade, aí encon­
CONFISSÕES X .213

trei o meu Deus, a mesma Verdade. Vós me lembro e em Vós me deleito-.


Desde que a conheci, nunca mais a dei­ São estas as minhas santas delícias,
xei esquecer. Por isso, desde que Vos
conheci, permaneceis na minha memó­ que, por vossa misericórdia, me destes,
ria, onde Vos encontro sempre que de ao olhardes para a minha pobreza.

25
Onde?. . .

36. Onde residis, Senhor, na minha a tristeza, o desejo, o temor, a lem­


memória? Em que lugar aí estais? Que brança, o esquecimento e outras pai­
esconderijo fabricastes dentro dela xões semelhantes, assim também não
para Vós? Que santuário edificastes? podeis ser o meu espírito, porque sois o
Dignastes-Vos tributar esta honra à seu Senhor e o seu Deus. Tudo isso
minha memória, mas o que . eu ■ pre­ muda. Vós, porém, permaneceis imutá­
tendo saber é em que parte habitais. vel sobre todas as coisas, e, apesar
Ao recordar-Vos, ultrapassei todas disso, dignastes-Vos habitar na minha
aquelas, partes da memória que os ani? memória, desde que Vos conheci.
mais também possuem, porque não
Vos encontrava entre as imagens dos Por que procuro eu o lugar onde
seres corpóreos. Cheguei àquelas re­ habitais, como se na memória hou­
giões onde tinha depbsitado os afetos vesse compartimentos? Ê fora de dúvi­
da alma. Nem mesmo lá Vos encon­ da que residis dentro dela porque me
trei. Entrei na sede da própria alma, na lembro de Vós, desde que Vos conheci
morada que ela tem na memória — e encontro-Vós lá dentro, sempre que
pois o espírito também se recorda de si de Vós me lembro 4 71.
mesmo —, e nem aí estáveis. Assim
471 É na memória como faculdade espiritual que o
como não sois nem imagem corpórea homem depara com Deus e o descobre como Ser
nem afeto de ser vivo, qual é a alegria, Transcendente. (N. do T.)

26
O encontro de Deus
37. Mas onde Vos encontrei para tis a todos os que Vos consultam e ao
Vos poder conhecer? Vós não habitá­ mesmo tempo respondeis aos que Vos
veis na minha memória, quando ainda interrogam sobre os mais variados
Vos não conhecia. Onde Vos encon­ assuntos. Respondeis com clareza,
trei, para Vos conhecer, senão em Vós mas nem todos. Vos ouvem com a
mesmo, que estais acima de mim? mesma lucidez. Todos Vos consultam
Nessa região não há espaço absoluta­ sobre.o que desejam, mas nem sempre
mente nenhum. Quer retrocedamos, ouvem o que querem. O Vosso servo
mais fiel é aquele que não espera nem
quer nos aproximemos de Vós, aí não prefere ouvir aquilo que quer, mas se
existe espaço. propõe aceitar, antes de tudo, a res­
Ó Verdade, Vós em toda parte assis­ posta que de Vós ouviu.
214' SANTO AGOSTINHO

27
Tarde Vos Amei!
38. Tarde Vos amei, ó Beleza tão Porém chamastes-me com uma voz tão
antiga e tão nova, tarde Vo's amei4 72 ! forte que rompestes a minha surdez!
Eis que habitáveis dentro de mim, e eu Brilhastes, cintilastes e logo afugen­
lá fora a procurar-Vos ! Disforme, lan­ tastes a minha cegueira! Exalastes per­
çava-me sobre estas formosuras que
criastes. Estáveis comigo, e eu não es­ fume: respirei-o, suspirando por Vós.
tava convosco! Saboreei-Vos, e agora tenho fome e
Retinha-me longe de Vós aquilo que sede de Vós. Tocastes-me e ardi no de­
não existiria se não existisse em Vós. sejo da vossa paz 4 73.
4 72 Este clamor de pródigo e de esteta converteu a 4 7 3 Este pequeno capítulo é um dos mais impressio-1
elegante M.elle Lionne, ao escutá-lo da boca do ora­ nantes e comovedores das Confissões. O drama
dor P. Cláudio La Colombière, que a Igreja depois interior de Agostinho provocara-o a sedução da for­
beatificou. (N. do T.) mosura que o afastara da Beleza Supremá.(N. do T.)

28
Miséria da vida humana. . .

39. Quando estiver unido a Vós e preocupações? Ordenais aos homens


com todo o meu ser, em parte nenhu­ que os suportem e não que os amem.
ma sentirei dor e trabalho. A minha Ninguém ama o que lhe custa, ainda
vida será então verdadeiramente viva, quando goste de o suportar, porque,
porque estará toda cheia de Vós. apesar de se alegrar com o sofrimento,
Libertais do seu peso aqueles que prefere não ter nada que sofrer. Nos
encheis. Porque não estou cheio de reveses anseio pela prosperidade, e nas
Vós, sou ainda peso para mim. coisas prósperas temo a adversidade.
As minhas alegrias, que deviam ser Entre estes dois extremos, qual será
choradas, lutam com as tristezas que o termo médio onde a vida humana
me deviam incutir júbilo. Ignoro de não seja tentação? Ai das prosperi-
que lado está a vitória. As tristezas do dades do mundo, repito, ai das prospe-
meu mal pelejam com os contenta­ ridades do mundo, por causa do receio
mentos bons, e não sei em que parte
da desgraça e da corrupção da alegria!
está o triunfo.
“Ai de mim! Ó Senhor, tende com­ Ai das adversidades do mundo, uma,
duas e três vezes, por causa do desejo
paixão de mim4 7 4!” Olhai, eu não
da prosperidade, por ser a desgraça
escondo as minhas feridas. Vós sois o
médico, e eu o enfermo; sois misericor­ dura e ameaçar não é “a vida humana
dioso e eu miserável. Não é, “a vida do sobre a terra uma tentação contínua”?
homem, sobre a terra, uma contínua 4 7 4 5/30,10.
tentação 4 7 5”? Quem deseja trabalhos 4 7 5 Jó7,1.
CONFISSÕES X 215

29
Toda a esperança está em Deus

40. Só na grandeza da vossa miseri­ continência. Ora, afirmou um sábio:


córdia coloco toda a minha esperança. “Ao conhecer que ninguém pode ser
Dai-me o que me ordenais, e ordenai- casto sem o dom de Deus, é já um efei­
me o que quiserdes4*7 6. Ordenais-nos a to da sabedoria o saber de quem pro­
vém este dom 4 7 7”.
4 7 6 É um dos pensamentos mais belos das Confis­
sões, e um dos mais profundos de Santo Agostinho. Pela continência, reunimo-nos e re-
"Da quod iubes et iube quod vis.” Contra estas duzimo-nos à unidade, da qual nos
palavras insurgiu-se Pelâgio, quando, em Roma, um afastamos ao derramarmo-nos por inu­
bispo, amigo do Santo Doutor, as recordou àquele
herege. Através das suas obras, o bispo de Hipona meráveis criaturas. Pouco Vos ama
parafraseia-as, a cada passo, com novos e profun­ aquele que ama, ao mesmo tempo,
díssimos conceitos. No tratado De Bono Perseve-
rantiae, por exemplo, diz: "Quid vero nobis primi- outra criatura, e nunca Vos extinguis !
tus et maxime Deus iubet, nisi ut credamús in Eum? Ó caridade, ó meu Deus, inflamai-me!
Et hoç ergo ipse dat" . (Que nos ordena Deus em Ordenais-me a continência? Dai-me o
primeiro lugar e com mais insistência, senão que
acreditemos n’Ele? Ora, é precisamente, esta graça que me ordenais e ordenai-me o que
que Ele nos concede.) quiserdes!
"Da quod iubes, et iube quod vis" aparece quatro
vezes neste Livro X. (N. do T.) 4 7 7 5aò8 8,21.

30
Tríplice tentação 478

41. Mandais-me, sem dúvida, que rado lá fixou. Quando, acordadb, me


me abstenha da “concupiscência da vêm à mente, não. têm força. Porém,
carne, da concupiscência dos olhos e durante o sono, não só me arrastam ao
da ambição do mundo 4 79”. Ordenas­ deleite, mas até à aparência do consen­
tes-me que me abstivesse das relações timento e da ação. A ilusão da imagem
luxuriosas. Quanto ao matrimônio, possui tanto poder na minha alma e na
apesar de o permitirdes, ensinastes-me minha carne, que, enquanto durmo,
que havia outro estado melhor. E por­ falsos fantasmas me persuadem a
que mo concedestes, abracei-o antes de ações a que, acordado, nem sequer as
ser nomeado dispensador do vosso realidades me podem persuadir.
Sacramento480. Meu Deus e Senhor, não sou eu o
Mas na minha memória, de que lon­ mesmo nessas ocasiões? Apesar disso,
gamente falei, vivem ainda as imagens que diferença tão grande vai de mim a
de obscenidades que o hábito invete­ mim mesmo, desde o momento em que
ingresso no sono até àquele tempo em
4 78 Com este capítulo Santo Agostinho principia a
descrever as mais pequenas e atuais imperfeições que de lá volto !
que procura aniquilar. Todos os santos têm faltas Onde está nesse momento a razão
involuntárias e padecem tentações. (N. do T.) que resiste a tais sugestões quando
4 79 1 Jo2, 16.
480 Santo Agostinho abraçou a vida religiosa antes estou acordado e permanece inabalá­
de ser ordenado sacerdote. (N. do T.) vel, quando as próprias realidades se
216. SANTO AGOSTINHO

lhe introduzem? Fecha-se, - quando não seja rebelde, nem sequer no sono;
cerro os olhos? Dorme simultanea­ para que não cometa tais torpezas e
mente com os sentidos corporais? E depravaçoes sob a ação de imagens
por que é que muitas vezes, mesmo no animalescas, descendo até à lascívia
sono, resistimos, lembrados do nosso carnal; para que, enfim, de modo ne­
propósito, e nele permanecemos cas­ nhum nelas consinta.
tos, não dando nenhum consentimento Não é muito para Vós — ó Onipo­
a tais enganos? Contudo, a diferença é tente, que podeis fazer ainda mais do
tão grande, que, quando no sono nos que aquilo que pedimos e compreen­
sucede não resistir, ao acordar volta­ demos — impedir, não só nesta vida
mos ao descanso da consciência. Por mas também nesta idade, que alguma
essa mesma diferença é que vemos que das tentações me deleite, mesmo que
não praticamos voluntariamente essàs seja tão pequena como a que posso
ações, dado o fato de sentirmos pena vencer logo, ao primeiro esforço da
de que tais atos se tivessem passado vontade, quando adormeço em pensa­
em nós. mentos castos. Agora, porém, exul­
tando embora com tremor perante o
42. Não é poderosa a vossa mão, ó bem que me concedestes, e lamentan­
Deus onipotente, para me sarar todas do-me diante do que ainda não obtive,
as enfermidades da alma e para extin- disse ao meu Senhor que ainda me
guir com graça mais abundante, os encontrava neste gênero de mal. Espe­
movimentos lascivos mesmo durante o ro quê aperfeiçoareis em mim as vos­
sono? Aumentareis, Senhor, em mim, sas misericórdias até à paz plena, que
cada vez mais as vossas dádivas, para os sentidos interiores e exteriores terão
que a minha alma, liberta do visco da convosco, quando a morte for substi­
concupiscência, siga até Vós. Para que tuída pela vitória.

31
A gula

43. “Outro mal tem o dia481”, e . jejuns, reduzindo o corpo à escravidão.


oxalá que lhe bastasse! Reparamos os Mas depois disto vem o prazer para
gastos cotidianos do corpo, comendo e afastar as minhas dores. Efetivamente,
bebendo até ao momento em que Vós, se o remédio dos alimentos não nos
destruindo os alimentos e o estômago, socorrer, a fome e a sede tomam-se
matardes a minha indigência, com tormentos que abrasam e matam como
uma. saciedade maravilhosa, e reves­ a febre. Ora, estando este remédio sem­
tirdes este corpo corruptível com a pre ao nosso alcance, graças à liberali­
eterna incorruptibilidade. Por enquan­ dade dos vossos dons, que faz com que
to, esta necessidade (de alimento) é-me a terra, a água e o céu sirvam à nossa
agradável, e combato contra esta delí­ enfermidade, chamamos delícias a tal
cia, para me não deixar dominar por desgraça.
ela. 44. Ensinastes-me a tomar os ali­
Sustento uma guerra cotidiana com mentos, só como remédio. Mas, quan­
do passo do tormento da indigência ao
481 JkfZ 6,34. descanso da saciedade, o laço da
CONFISSÕES X 217

concupiscência arma-me ciladas no tos benefícios quando Vos invocamos.


caminho. Com efeito, esta passagem é Todo o bem que recebemos antes de
um prazer, e não há outro por onde se orar, recebemo-lo de Vós. Enfim, é
possa ir para chegar aonde a necessi­ ainda um dom que nos concedeis o
dade nos obriga. reconhecermos depois como vosso esse
Sendo a saúde o motivo do comer e benefício. Nunca estive embriagado.
beber, o prazer junta-se a esta necessi­ Mas conheci muitos que foram vítimas
dade, como um companheiro perigoso. de tal vício e, pela vossa graça, toma-
Ordinariamente procura ir adiante, ram-se sóbrios. Os que nunca foram
para que se faça por ele o que, segundo inclinados à embriaguez devem-no a
vou dizendo, faço ou quero fazer por Vós; e os que, durante algum tempo,
causa da saúde. Ora, o limite não é o foram inclinados a ela, devem-Vos a
mesmo para ambos os casos, pois o cura. Uns e outros dévem-Vos o sabe­
que basta à saúde é insuficiente para o rem que fostes Vós quem lhes conce­
prazer. deu essa graça.
Muitas vezes não se vê bem ao certo E ouvi também outra palavra vossa:
se é o cuidado necessário do corpo que “Não corras atrás das tuas concupis-
pede esse esforço do alimento, ou se é cências, e reprime a tua sensualida­
a voluptuosa e enganadora sensuali­ de483”.
dade que exige ser servida. A infeliz Por benefício vosso, prestei ouvidos
alma alegra-se com esta incerteza, e ainda a outra frase de que muito gos­
nela procura o apoio duma escusa, tei: “Nem porque comamos, teremos
regozijando-se com não poder determi­ abundância, nem porque não coma­
nar o que é suficiente para o cuidado mos, nos faltará48 4”. Quer dizer: nem
moderado da saúde. Por isso, sob pre­ a abundância me há de fazer rico, nem
texto da sua conservação, encobre a a necessidade me há de tomar pobre.
satisfação do prazer. Ouvi ainda outra voz: “Aprendí a
Esforço-me todos os dias por resistir contentar-me com o que possuo; sei
a estas tentações, invocando, em meu viver na abundância e sofrer a penúria.
auxílio, a vossa destra, e submetendo- Tudo posso naquele que me confor­
Vos as minhas incertezas, porque nesta ta48 5”. Eis como fala um soldado do.s
matéria ainda não está firme o meu acampamentos celestiais, que não é o
parecer. pó que nós somos>Mas lembrai-Vos,
45. Ouço a voz do meu Deus, que Senhor, de que somos pó e que do pó
me ordena: “Não se façam pesados os criastes o homem. Lembrai-Vos. de que
vossos corações com a intemperança e este “tinha perecido e foi encontra­
a embriaguez482”. A embriaguez está do48 6”. Porque foi pó aquele a quem
longe de mim. Vós tereis compaixão da amei pelas palavras inspiradas que
minha alma, não a deixando aproxi- proferiu, também nada pôde por si
mar-se de mim. mesmo e assim disse: “Tudo posso
A intemperança, porém, algumas naquele que me conforta48 7”. Conce­
vezes arrasta o vosso servo, mas dei-me o que me ordenais e ordenai-me
compadecer-Vos-eis de mim, e a vossa o que quiserdes. O Apóstolo confessa
misericórdia afastá-la-á para longe.
Ninguém pode ser continente se Vós 483 Eclo 18, 30.
484 1 Cor 8, 9.
não lhe dais graça. Concedeis-nos mui­ 48 5 Flp 4, 4,11.13.
48 6 Sl 102,14; Gên 3, 19;Lc 15, 2'4-32.
482 Lc 21, 34. 48 7 1 Cor 1,3.
218 SANTO AGOSTINHO

que tudo recebeu de Deus, e, “quando os gafanhotos que lhe serviam de


se gloria, gloria-se no Senhor488”. alimento 492. Mas sei também que
Ouvi também outro homem que Vos Esaú se deixou enganar pela sofregui-
pedia para receber de Vós esta graça: dão ardente dum prato de lentilhas 493 ;
“Tirai-me as concupiscências do que Davi se repreendeu a si mesmo,
comer e do beber89”. Donde se con­ por ter desejado água; e que o nosso
clui claramente, ó Deus Santo, que sois Rei foi tentado não com carne, mas
Vós que concedeis a graça, quando com pão48 49 4. Por isso, o I^ovo (de
fazemos o que mandais. Israel) mereceu ser repreendido 4 9 5 no
46. Ensinastes-me, Pai bondoso, deserto, não por desejar carne, mas
que “tudo- é puro para os puros”, e que porque murmurou contra o Senhor por
“o comer com escândalo dos outros é causa do desejo de alimento.
mau para o homem”; que “todas as 47. Exposto, portanto, a estas tenta­
vossas criaturas são boas, e nada se ções, combato cotidianamente contra a
deve desprezar do que se pode tomar concupiscência do comer e do beber,
com ação dè graças” ;.que “não é o ali­ pois esta paixão não é coisa que se
mento que nos faz recomendáveis a possa cortar logo duma vez, com o
Deus”; que “ninguém nos julgue na co­ simples propósito de jamais a tocar
mida e na bebida”, e, enfim, que para o futuro, como pude fazer no
“aquele que come não despreze o que concúbito. Por isso, devemos ter mão
não come, e aquele que não come não nos freios do gosto, para afrouxar as
condene aquele que come490”. rédeas com moderação, ou retesá-las.
Eis o que aprendi de Vós. Dou-Vos Quem será, Senhor, que se não deixe
graças e louvores, ó meu Deus e meu arrastar um pouco para além dos limi­
Mestre, a Vós, que batestes às portas tes da necessidade? Se alguém há,
dos meus ouvidos e me iluminastes o como é grande! Engrandeça o vosso
coração. Arrancai-me de toda tenta­ nome! Eu, porém, não sou deste núme­
ção. Não receio a impureza .do alimen­ ro, porque sou pecador. Mas também
to, mas temo a imundície do prazer. engrandeço o vosso nome. Sei que
Sei que Noé teve licença para comer Aquele que venceu o mundo intercede,
toda espécie de carne que pudesse ser­ junto de Vós, pelos meus pecados. Sei
vir de alimento 4 91. Sei que Elias refez que Ele me enumera entre os membros
as forças comendo carne; e que João, ^enfermos do seu corpo, porque os vos­
homem de admirável abstinência, não sos olhos viram a imperfeição dele e
se manchou com animais, isto é, com todos hão de ser inscritos no vosso
livro.
488 J7p4,13.
489 Eclo 23, 6. 492 M/3,4.
490 2 Ti 1, 15-, Rom 14,20; 1 Tim 4, 4; 1 Cor 8, 8; 493 Gên 25, 30-34; 2Rs 23, 15-17.
Col 2, 16; Rom 14, 3. 494 M/4,3.
491 1 Crôn 17, 6. 49 5 Núm 11, 4. |

32
A sedução do perfume

48. Não me inquieto demasiado com afastado, não o procuro. Quando o


as seduções do perfume. Quando está tenho presente, não me esquivo, mas
CONFISSÕES X 219

também estou preparado para déíe me quando a experiência claramente Iho


abster. Ao menos assim me parece. manifesta.
Talvez me engane. Ninguém se deve ter por seguro
A própria razão, que em mim existe, nesta vida que toda ela se chama tenta­
de tal maneira se esconde nestas trevas ção49 6. Quem é que, sendo pior, não
deploráveis que me rodeiam que, quan­ se pode tomar melhor, e de melhor
do o meu espírito se interroga a si descer a pior? Só há uma única espe­
mesmo acerca das próprias forças, rança, uma única promessa inabalável:
julga que não deve acreditar facilmente a vossa misericórdia.
em si, por desconhecer, na maior parte
dos casos, o que nele se passa, exceto 496 Jól, 1.

33
O prazer do ouvido

49. Os prazeres do ouvido . pren­ muitas vezes. Os sentidos, não que­


dem-me e subjugam-me com mais rendo colocar-se humildemente atrás
tenacidade. Mas Vós desligastes-me da razão, negam-se a acompanhá-la.
deles, libertando-me. Confesso que Só porque, graças à razão, mereceram
ainda agora encontro algum descanso ser admitidos, já se esforçam por
nos cânticos que as vossas palavras ’ precedê-la e arrastá-la! Deste modo
viviflcam, quando são entoadas com peco sem consentimento, mas advirto
suavidade e arte. Não digo que fique depois.
preso por eles. Mas custa-me deixá-los 50. Outras vezes, preocupando-me
quando quero. Para que essas melodias imoderadamente com este embuste,
se possam intrometer no meu interior, peco por demasiada severidade. Uso às
em companhia dos pensamentos que vezes de tanto rigor que desejaria des­
lhes dão vida, procuram no meu cora­ terrar dos meus ouvidos e da própria
ção um lugar de certa dignidade. Mas igreja todas as melodias dos suaves
eu apenas concedo o que lhes convém. cânticos que ordinariamente costu­
Às vezes parece-me que lhes tributo mam acompanhar o saltério de Davi.
mais honra do que a conveniente. Nessas ocasiões parece-me que o mais
Quando ouço cantar essas vossas san­ seguro é seguir o costume de Atanásio,
tas palavras com mais piedade e ardor, bispo de Alexandria. Recordo-me de
sinto que o meu espírito também vibra muitas vezes me terem dito que aquele
com devoção mais religiosa e ardente prelado obrigava o leitor a recitar os
do que se fossem cantadas doutro salmos com tão diminuta inflexão de
modo. Sinto que todos os afetos da voz que mais parecia um leitor que um
minha alma encontram, na voz e no cantor.
canto, segundo a diversidade de cada Porém, quando me lembro das lágri­
um, as suas próprias modulações, mas derramadas ao ouvir os cânticos
vibrando em razão dum parentesco da vossa Igreja nos primórdios da
oculto, para mim desconhecido, que minha conversão à fé, e ao sentir-me
entre eles existe. Mas o deleite da agora atraído, não pela música, mas
minha carne, ao qual se não deve dar pelas letras dessas melodias, cantadas
licença de enervar a alma, engana-me em voz límpida e modulação apro­
220 SANTO AGOSTINHO

priada, reconheço, de novo, a grande ouvir cantar. Eis em que estado me


utilidade deste costume. encontro.
Assim flutuo entre o perigo do pra­ Chorai comigo, chorai por mim,
zer e os salutares efeitos que a expe­ vós que praticais o bem no vosso inte­
riência nos mostra. Portanto, sem pro­ rior, donde nascem as boas ações.
ferir uma sentença irrevogável, Estas coisas, Senhor, não Vos podem
inclino-me a aprovar o costume de impressionar, porque não as sentis.
cantar na Igreja, para que, pelos delei­ Porém, “ó meu Senhor e meu Deus,
tes do ouvido, o espírito, demasiado olhai para mim, ouvi-me, vede-me,
fraco, se eleve até aos afetos de pieda­ compadecei-Vos de mim e curai-
de. Quando, às vezes, a música me me497”. Sob o vosso olhar transfor­
sensibiliza mais do que as letras que se mei-me, para mim mesmo, num enig­
cantam, confesso com dor que pequei. ma que é a minha própria enfermidade.
Neste caso, por castigo, preferiría não 497 Sl 12,3.

34
A sedução dos olhos

51. Resta-me falar da voluptuo- que dela me abstrai498. Insinua-se


sidade destes olhos da minha carne. com tal veemência que, se de repente
Oxalá os ouvidos piedosos de meus me for arrebatada, procuro-a com vivo
irmãos, em que habitais como em tem­ desejo. Se se ausenta por muito tempo,
plo vosso, me escutassem esta confis­ a minha alma cobre-se de tristeza.
são que vou fazer! Concluiremos, 52. Ó luz que Tobias contempla­
assim, as tentações da concupiscência va499, quando, cego dos olhos corpo­
da carne, que ainda me perseguem, rais, instruía o filho no caminho da
fazendo-me gemer e desejar ser reves­ Vida, jomadeando à sua frente com os
tido pelo nosso tabemáculo, que é o pés da Caridade, sem nunca se enga­
céu. nar !
Os olhos amam a beleza e a varie­ Ó luz que Isaac via, quando, apésar
dade das formas, o brilho e a ameni- da velhice lhe ter oprimido e fechado
dade das cores. Oxalá que tais atrati­ os olhos carnais, mereceu não aben­
vos não me acorrentassem a alma! çoar os filhos reconhecendo-os, mas
Oxalá que ela só fosse possuída por reconhecê-los, abençoando-os!
aquele Deus que criou estas coisas tão Ó luz que Jacó via, quando, privado
belas ! O meu bem é Ele, e não as cria­ também da vista pela avançada idade,
turas que todos os dias me importu­ irradiou, do seu coração iluminado,
nam acordado, não me dando descan­ fulgores para todas as gerações do
so, como o dão as vozes dos cantores, povo futuro, representadas nos seus
que por vezes ficam todas em silêncio. filhos!
A própria rainha das cores, esta luz O luz que Jacó contemplava quando
que se derrama por tudo o que vemos e impôs as mãos, misteriosamente cruza-
por todos os lugares em que me encon­
tro no decorrer do dia, investe contra 498 Poucos poetas cantaram tão carinhosamente a
mim de mil maneiras e acaricia-me, até luz como a alma artística de Agostinho, neste hino
à “rainha das cores”. (N, do T.)
mesmo quando me ocupo noutra coisa 499 Tob 4, 2.
CONFISSÕES X 221

das, sobre os netos, filhos de José, não ultrapassam o uso necessário mode­
segundo a ordem por que os colocara o rado e a piedosa representação dós
pai que via com os olhos externos, mas objetos! No exterior correm atrás das
segundo uma outra ordem que ele dis­ suas obras. No interior esquecem
cernia no seu interior 5 0 0 1 Aquele que os criou e destroem o que
Eis a verdadeira Luz, a única Luz por meio d’Ele fizeram!
que, de todos os que a veem e amam Eu, ó meu Deus e minha glória, até
faz um todo único ! daqui tiro razões para Vos cantar um
A outra luz corporal a que me refe­ hino, oferecendo um sacrifício de lou­
ria ameniza a vida aos cegos amantes vor ao meu Sacrificador 503, porque as
do século, com atraente e pérfida doçu­ belezas que passam da alma para as
ra. Contudo, os que nela sabem achar mãos do artista procedem daquela Be-
motivos para Vos, louvar, ó Deus, leza que está acima das nossas almas e
Criador de todas as coisas, assumem- pela qual a minha alma suspira de dia
na como um hino em vosso; louvor, e de noite.
sem por ela serem engolidos ' no seu Mas os artistas e amadores destas
sono. É assim que eu quero ser.: belezas externas tiram desta suma Be­
Resisto às seduções dos olhos para leza apenas o critério para as aprecia­
que os pés, com que começo a andar rem. Só não aprendem a regra para as
no vosso caminho, me não fiquem pre­ usar bem! Contudo, esta também lá
sos. Levanto até Vós, por isso, os olhos está. Porém não a vêem, porque, do
invisíveis, a fim de que me livreis os contrário, não iriam tão longe, mas
pés do laço da tentação501. Vós não reservariam para Vós toda a sua força,
cessais, de mos libertar, porque fre­ e não a dissipariam em fatigantes
quentemente se me prendem. E como delícias.
fico, a cada passo, preso nas insídias Eu mesmo, apesar de expor e com­
espalhadas por toda parte, Vós não preender claramente esta doutrina,
cessais de mos desenredar, “porque também me deixo prender por estas-
sois o guarda de Israel e não adorme­ belezas; mas Vós, ó Senhor, libertais-
ceis nem dormis 502”. me ! Libertais-me, “porque a vossa
53. Que multidão inumerável de misericórdia está perante os meus
encantos não acrescentaram os ho­ olhos 50 4”'. Caio miseravelmente, e Vós
mens às seduções da vista, com a levantais.-me misericordiosamente,
variedade das artes, com as indústrias umas vezes sem sofrimento, porque
de vestidos, calçados, vasos, com ou­ resvalei suavemente; outras, com dor,
tros fabricos desta espécie, com pintu­ por ter caído desamparado no chão !
ras e esculturas variadas, com que 503 Vários códices antigos das Confissões, em vez
500 Gên 48-49. de meu Sacrificador, trazem meu Santificador. (N.
501 57 24, 15. do T.)
502 5/120,4. 50 4 5/25,3.

35
A curiosidade54

54. À tentação sobredita junta-se aspectos. Além da concupiscência da


outra, mais perigosa sob múltiplos carne — quê vegeta na deleitação de
222 SANTO AGOSTINHO

todos os sentidos e prazeres, e mata a para satisfazer a paixão de tudo exami­


todos os que a servem, isto é, àqueles nar e conhecer.
que se afastam para longe de Vós —, Que gosto há em ver um cadáver
pulula na alma, em virtude dos pró­ dilacerado, a que se tem horror? Ape­
prios sentidos do corpo, não um apeti­ sar disso, onde quer que esteja, toda a
te de se deleitar na carne, mas um dese­ gente lá acorre, ainda que, vendo-o, se
jo de conhecer tudo, por meio da entristeça e empalideça. Depois, até
carne. em sonhos temem vê-lo, como se
Este desejo curioso e vão disfarça-se alguém os tivesse obrigado a ir exami­
sob o nome de “conhecimento” e ná-lo, quando estavam acordados, ou
“ciência”. Como nasce da paixão de como se qualquer anúncio de beleza os
conhecer tudo, é chamado nas divinas tivesse persuadido a lá irem.
Escrituras a concupiscência dos O mesmo se dá com os outros senti­
olhos 50 5, por serem estes os sentidos dos. Iríamos longe se os percorrés­
mais aptos para o conhecimento. semos a todos. Por causa desta doença
É aos olhos que propriamente per­ dà curiosidade, exibem-se no teatro
tence o ver. Empregamos, contudo, cenas monstruosas de superstição.
este termo mesmo em relação aos ou­ Dela nasce o desejo de perscrutar os
tros sentidos, quando os usamos para segredos pretematurais, que afinal
obter qualquer conhecimento. Assim, nada nos aproveita conhecer, e que os
não dizemos: “ouve como brilha”, homens anseiam saber, só por saber.
“cheira como resplandece”, “saboreia E ainda a curiosidade que, com o
como reluz”, “apalpa como cintila”. mesmo intuito de alcançar uma ciência
Mas já podemos dizer que todas essas perversa, faz o homem recorrer às
coisas se vêem. Por isso não só dize­ artes mágicas. Enfim é ela que, até na
mos: “vê como isto brilha” — pois só religião, nos arrasta a tentar a Deus,
os olhos o podem sentir —, mas tam­ pedindo-lhe milagres e prodígios*, não
bém: “vê como ressoa, vê como cheira, porque os exija a salvação das almas,
vê como sabe bem, vê como é duro”. Ê mas só porque se deseja fazer a
por isso, como jâ disse, que. se chama experiência.
concupiscência dos olhos à total expe­ 56. Neste bosque imenso, repleto de
riência que nos vem pelos sentidos. tantas insídias e perigos, cortei e expul­
Apesar de o ofício da vista pertencer sei da minha alma muitos males. Vós
primariamente aos olhos, contudo, os assim mo concedestes, ó Deus da
restantes sentidos usurpam-no por ana­ minha salvação. Mas quando, no meio
logia, quando procuram um conheci­ de tantas tentações desta espécie, que
mento qualquer. por todos os lados me circundam e
55. Daqui se vê claramente quanto perturbam a vida cotidiana, ousarei
a volúpia e curiosidade agem em nós afirmar que nenhuma delas me há de
pelos sentidos: o prazer corre atrás do prender a atenção? Quando poderei
belo, do harmonioso, do suave, do afirmar que não‘hei de ver, nem me hei
saboroso, do brando; a curiosidade, de deixar arrastar por nenhuma curio­
porém, gosta às vezes de experimentar sidade vã?
o contrário dessas sensações, não para Os teatros, é certo, já me não arre­
se sujeitar a enfados dolorosos, mas batam, nem procuro conhecer o curso
dos astros, nem nunca a minha alma
50 5 Uo2, 16. esperou as respostas das sombras de
CONFISSÕES X 223

que se vale a magia para as suas res­ queza, me não avisardes que me liberte
postas. Detesto todos esses ritos sacrí­ desse espetáculo, e se eu me não elevar
legos, Mas, ó Senhor meu Deus, a até Vós com alguma consideração, ou
quem devo servir na humilhação e desprezando-o por completo ou pas­
simplicidade, copi quantas maquina­ sando adiante, ficarei loucamente ab­
ções me incita o inimigo a pedir-Vos sorvido.
um sinal! Contudo, suplico-Vos, pelo Quando estou sentado em casa não
nosso Chefe e nossa Pátria — a pura e me prende também muitas vezes a
casta Jerusalém —, que, assim como atenção um estelião 50 6 a caçar mos­
até agora esteve longe de mim este cas, ou uma aranha enredando as que
consentimento, assim continue a estar se atiram às suas teias? Acaso, por
cada vez mais. Quando Vos peço a sal­ serem animais pequenos, a curiosidade
vação de alguém, o fim do meu intento deixará de ser a mesma? É certo que
é muito diferente. Concedei-me agora e disto me aproveito para Vos louvar, ó
no futuro a graça de Vos servir jubilo- Criador admirável e Coordenador de
samente, fazendo Vós o que quiserdes. todas as coisas. Mas não é isso o que
57. Contudo, quem poderá contar primeiro me desperta a atenção. Uma
as insignificantes e desprezíveis misé­ coisa é levantar-me após a queda, e
rias que todos os dias tentam a nossa outra coisa é não cair nunca.
curiosidade, e o número de vezes em De tais misérias está repleta a minha
que escorregamos? Quantas e quantas vida. A minha única esperança é a
vezes não ouvimos contar banalida­ vossa infinita misericórdia. Como o
des ! Ao princípio toleramo-las, só nosso coração é recipiente de todas
para não ofender os fracos; mas depois estas misérias e porque traz essa imen­
ouvimo-las com gosto sempre crescen­ sa multidão de vaidades, muitas vezes
te ! as nossas orações interrompem-se e
Já não contemplo um cão a correr perturbam-se.
atrás duma lebre quando isso sucede Enquanto na vossa presença eleva­
no circo. Mas se a caçada for no mos atéjiinto dos vossos ouvidos a voz
campo, que eu casualmente atravesso, da nossa alma, não sei donde provêm
talvez ela me distraia dum pensamento tantos pensamentos fúteis, que se des-
importante, e, se me não obriga a penham sobre nós e nos cortam a aten­
mudar de caminho para a seguir a ção em coisa tão importante.
cavalo, sigo-a ao menos com um dese­
50 6 Espécie de lagartixa do norte da África, que no
jo de coração. Se imediatamente, por dorso apresenta manchas parecidas a estrelas. (N.
meio da minha já tão conhecida fra­ do T.)

36
O orgulho

58. Teremos estas misérias na conta transformastes já. Curastes-me a pai­


de desprezíveis? Haverá qualquer xão da vingança, para depois me per­
coisa que me restitua a esperança, a doardes todas as minhas maldades,
não ser a vossa conhecida miseri­ para me curardes todas as fraquezas,
córdia, que principiou a obra da minha para me resgatardes da morte a vida,
conversão? Vós sabeis quanto me para me coroardes com a vossa graça e
224 SANTO AGOSTINHO

misericórdia, e, enfim, para saciardes, de ser amados e temidos, não por amor
com os vossos bens, os meus desejos. de Vós, mas em vez de Vós; para que,
Depois, rebatestes o meu orgulho com assim, assemelhando-nos a ele, viva­
o vosso temor e amansastes a minha mos na sua companhia, associados aos
cerviz sob o vosso jugo. Trago-o agora seus suplícios, e não unidos na concór­
e sinto-me leve, porque assim prome­ dia da caridade. Determinou ele “esta­
testes e o cumpristes. Ele era, na verda­ belecer a sua morada no aquilão”,
de, leve, mas eu não sabia, quando para .que naquelas obscuras e geladas
receava tomá-lo. regiões o servíssemos como vosso
59. Acaso, ó Senhor — único Se­ sinuoso e perverso imitador.
nhor que não reina com orgulho, por­ Mas olhai, Senhor! Nós somos o
que sois o único Senhor verdadeiro, o vosso pequenino rebanho! Sede o
único que não tem senhor —, acaso nosso possuidor! Estendei as vossas
cessou em mim, ou poderá jamais ces­ asas, para nos refugiarmos debaixo
sar em toda a minha vida, este terceiro delas. Sede a nossa glória! Fazei que
gênero de tentações, que consiste em sejamos amados só por amor de Vós, e
querer ser temido e amado dos homens que a vossa palavra ache em nós
só com o fim exclusivo de encontrar acatamento.
uma alegria que não é alegria? Oh! Reprovais aquele qué deseja ser lou­
que vida miserável! Qúe repugnante vado pelos homens. Por isso não será
arrogância! Tal é o motivo por que defendido pelos homens quando o jul­
não Vos amamos, nem santamente Vos gardes, nem liberto quando o conde­
tememos. Por isso, resistis aos sober­ nardes. “Não louvamos o pecador nos
bos e dais a vossa graça aos humildes ! desejos da sua alma, nem é bem-aven­
Trovejais sobre as ambições do. século, turado o que faz a iniquidade 50 7. Se
fazendo abalar até as raízes das mon­ um homem glorificado por qualquer
tanhas. dom que Vós, ó meu Deus, lhe conce­
Em face dos deveres exigidos pela destes se compraz mais em louvar-se
sociedade, precisamos de ser amados e do que em possuir esse dom que lhe
temidos dos homens. Mas o inimigo da atrai o louvor — Vós o reprovais, ape­
nossa felicidade espalha laços por toda sar de louvado pelos homens. E, nesse
parte e insta conosco, gritando: caso, aquele que o louvou é melhor que
“Vamos, coragem!”, para que, ao aquele que foi louvado; porque o pri­
procurarmos com avidez estas lisonjas, meiro comprazeu-se com o dom de
nos deixemos prender incautamente e Deus dado ao homem, e ó segundo ale­
desliguemos a nossa alegria da vossa grou-se mais com o dom do homem do
verdade, colocando-a na mentira hu­ que com o dom de Deus. ■
mana.
O inimigo incita-nos a que gostemos 50 7 SI 10, 3.

37
A tentação dó louvor

60. Todos os dias nos vemos inves­ louvores humanos são a fornalha onde
tidos por estas tentações, ó Senhor! cotidianamente somos postos à prova.
Somos tentados sem interrupção! Os Também nesta miséria nos ordenais a
CONFISSÕES X 225

continência. Concedei-nos o que nos me dessem à escolha ou ser um doido


ordenais e ordenai-nos o que quiserdes. que se engana em todas as coisas, mas
Conheceis os gemidos que, a este res­ que é louvado por todos, ou ser um
peito, se evolam do meu coração para homem seguríssimo da verdade, mas
Vós. Conheceis os rios de lágrimas que por toda gente escarnecido, bem sei o
rebentam dos meus olhos! Ah! dificil­ que escolhería. Portanto, não querería
mente entrevejo até que ponto estou que o louvor saído duns lábios alheios
limpo desta peste. . aumentasse o gosto que experimento
Receio muito as minhas veniali- pela boa obra, seja ela qual for. Porém,
dades ocultas, que vossos olhos'conhe­ tenhcr de confessar que não só o louvor
cem e os meus não veem. Nos, outros lhe aumenta o deleite, mas também que
gêneros de tentações, posso examinar- o vitupério Iho diminui.
me sem dificuldade; mas'neste,, quase Quando me perturbo com esta
nada. A facilidade que alcancei em minha miséria, penetra-me na mente
refrear a alma quanto aos prazeres da uma desculpa cuja natureza Vós co­
carne e quanto à vã curiosidade, reco­ nheceis, meu Deus. Tomo-me duvi­
nheço-a quando me abstenho dessas doso e perplexo ante ela. .
paixões, quer seja voluntariamente, Pois Vós não só nos ordenastes a
quer porque as não tenha diante de continência, que nos ensina que coisas
mim. Nestes casos, pergunto a mim devemos afastar da nossa afeição, mas
mesmo se me causa maior ou menor também preceituastes a justiça, que
pena o não tê-las. nos ensina para onde havemos de diri­
Quanto às riquezas que se ambicio­ gir o nosso amor. Não quisestes que
nam para satisfazer uma ou duas ou nos amássemos somente à nós, mas
mesmo três concupiscências, se acaso também ao próximo. Ora, muitas
a alma, ao possuí-las, não pode sentir vezes, quando retamente me deleito no
se as despreza, ainda pode afastá-las louvor que é dado por uma pessoa inte­
para provar o seu desapego. Mas para ligente, parece que me comprazo no
carecer de louvores e experimentarmos aproveitamento e nas esperanças de
se podemos passar sem eles, precisa­ que dá mostras. E, pelo contrário,
remos nós de entregar-nos a uma vida entristeço-me com a sua maldade,
pecaminosa tão perdida e brutal que quando a ouço censurar o que ignoro
ninguém nos conheça sem nos detes­ ou o que é bom.
tar? Que maior loucura se pode dizer Algumas vezes também me con-
ou imaginar? tristo com os louvores que me dirigem,
Se o louvor deve ser habitualmente quando enaltecem em mim coisas que
companheiro da vida sã.e das boas me desagradam, ou quando apreciam
obras, nesse caso não nos podemos bens somenos e transitórios, com
abster do convívio do louvor que maior estima do que merecem. Mas,
acompanha a vida santa. A verdade, repito de novo, como hei de eu saber se
porém, é que não distinguimos se a pri­ este sentimento me aflige por causa de
vação dum bem nos é indiferente ou eu não querer que o meu admirador
molesta, senão na ausência desse bem. pense a meu respeito -de modo diverso
61. Que Vos hei de eu, Senhor, con­ do que eu penso?
fessar, neste gênero de tentações? Que Será, não porque me deixe arrastar
me deleito muito com os louvores? pelo valor e utilidade desse meu admi­
Mas ainda me deleito mais com a ver­ rador, mas porque aqueles bens que em
dade do que com os louvores 1 Pois, se mim me agradam me são mais saboro­
226 SANTO AGOSTINHO

sos quando agradam também aos que me examine ainda mais diligente­
outros? De certo modo, não sou louva­ mente.
do quando a minha opinião, a meu res­ Se nos louvores que me tributam
peito, não é elogiada, porque ou en­ tenho em vista a utilidade do próximo,
chem de encômios as coisas que me qual é a razão por que, ao ser outro
desagradam, ou louvam ainda mais as injustamente vituperado, me sensibi­
coisas que menos me comprazem. lizo menos do que se essa injúria me
Sobre este ponto não sou eu um enig­ fosse dirigida a mim? Por que é que a
ma para comigo mesmo?
mordedura dum ultraje que me fere me
62. Em Vós, ó Verdade, vejo que
é mais sensível do que a injúria igual­
não é por causa de mim, mas por utili­
mente injusta, arremessada a outro, na
dade do próximo que me devo sensibi­
minha presença? Ignoro eu isto?
lizar com os louvores que me dirigem.
Se é este ou não o meu caso, ignoro-o. Deduzirei ainda que me engano a
Nesta questão, conheço-Vos melhor a mim mesmo e corrompo a verdade
Vós do que a mim mesmo. diante de Vós no meu coração e na
Peço-Vos, meu Deus, que me mos­ minha língua? Afastai, Senhor, para
treis as feridas que em mim encontrava longe de mim esta loucura, para que as
para que as manifeste aos meus ir­ minhas palavras não sejam azeite de
mãos, dispostos a orar por mim. Fazei pecador a ungir a minha cabeça.

38
A vangloria

63. “Sou necessitado e pobre 508”, e lhe e mendiga votos e pareceres


o melhor que há em mim é aborrecer- alheios. A vangloria tenta-me até
me a mim mesmo, entre os secretos mesmo quando a critico em mim. Mas
gemidos do meu coração, buscando eu eu repreendo-a desse mesmo desejo de
a vossa misericórdia até ver a minha louvor.
indigência reparada e aperfeiçoada O homem muitas vezes gloria-se vã­
com a paz desconhecida aos olhos do mente no desprezo da vangloria. Mas,
soberbo. Porém, as nossas palavras, de fato, jâ não se pode gloriar nesse
saídas da boca, e as nossas ações, desprezo de glória, porque quando se
conhecidas dos homens, escondem gloria, já não despreza a glória 509 !
uma tentação muito perigosa, origi­
nada da estima do louvor, a qual reco- 509 Os filósofos antigos Antístenes e Diógenes
vangloriavam-se de desprezar a vangloria! (N. do
508 5/140,5. T.)

39
O amor-próprio

64. Existe dentro, bem dentro de que se comprazem em si, ainda quando
nós, outro mal, oriundo do mesmo gê­ não agradam aos outros — e até lhes
nero de tentação, que faz vãos todos os desagradam —, ou mesmo quando
CONFISSÕES X 227

nem sequer procuram agradar-lhes. vossa graça, não se alegram amigavel­


Ora, os que assim se comprazem em si mente de que outros também os pos­
mesmos desagradam-Vos muito, ó meu suam, tendo-lhes ainda por isso mesmo
Deus, não só quando se gloriam dos inveja.
males como se fossem bens, mas sobre­
tudo quando se gloriam dos vossos Em todos estes perigos e trabalhos
bens como se fossem seus; ou quando, Vós vedes claramente quanto teme o
reconhecendo-os como provenientes de meu coração. Eu sinto que, no entanto,
Vós, os atribuem aos próprios méritos; sois mais diligente em me curar do que
ou enfim quando, atribuindo-os à eu em me não infligir novas feridas.

40
À busca de Deus
65. Quando é que Vós, ó Verdade, Eu ouvia os vossos ensinamentos e as
me não acompanhastes para me ensi­ vossas ordens. Costumo fazê-lo muitas
nardes o que havia de evitar e o que vezes, porque sinto nisso grande ale­
devia desejar, todas as vezes que Vos gria. Sempre que, nos meus trabalhos
consultei? Por mim, quanto possível de obrigação, posso dispor de algum
foi-Vos manifestado tudo o que pude descanso, refugio-me nestes prazeres.
observar no meu interior. Entre todas estas coisas que percorro,
Percorri o melhor possível, com os depois de Vos consultar, só em Vós
sentidos, o mundo exterior. Observei encontro um reduto para a minha
em mim a vida do corpo e os próprios alma. Nele se reúnem os meus pensa­
sentidos. Passei depois às profundezas mentos dispersos, e nada de mim se
da memória, a essas amplidões sucessi­ afasta de Vós.
vas, admiravelmente repletas de inu­ Algumas vezes, submergis-me em
meráveis riquezas. Observei-as, estupe­ devoção interior deveras extraordi­
fato. Mas, sem Vós, nada pude nária, que me transporta a uma inex­
distinguir. Contudo, reconhecí que Vós plicável doçura, a qual, se em mim
nada disto éreis. atingisse o fastígio, alcançaria uma
Não era eu quem descobria estas nota misteriosa que já não pertence a
maravilhas. É certo que as percorri a esta vida510. Mas caio em baixezás
todas e tentei distingui-las e avaliá-las cujo peso me acabrunha. Deixo-me
no seu justo valor, tomando e interro­ absorver e dominar pelas imperfeições
gando os seres que traziam mensagens habituais. Choro muito por isso, mas
aos meus sentidos. Analisei outros sinto-me ainda muito preso. Tão pesa­
seres que sentia unidos a mim e exami­ do é o fardo do costume! Não quero
nei as suas informações. Revolvia nos estar onde posso, nem posso estar onde
grandes tesouros da memória várias quero. De ambos os modos sou mise­
impressões, ora percorrendo umas, óra rável !
manifestando outras. Mas não era eu
510 Santo Agostinho teve graças místicas de ora­
quem fazia tudo isso, nem era a força ção, e parece ter alcançado o grau supremo. A tra­
com que eu agia, a qual não éreis Vós, dução literal daquela frase é: “a qual, se em mim
porque sois a luz imutável que eu con­ atingisse o fastígio, não sei o que seria, porque esta
vida não subsistiría”. Texto latino: "quae siperfi-
sultava acerca da existência, da quali­ ciatur in me néscio quid erit quod vita ista non erit ”.
dade e do valor em todas estas coisas. (N. do T.)
228 SANTO AGOSTINHO

41
A tríplice concupiscência

66. Considerei, portanto, as fraque­ Vós sois a verdade que preside a


zas dos meus pecados na tríplice tudo, e eu, na minha avareza, não Vos
concupiscência, e invoquei a vossa queria perder. Mas, além de Vós,- dese­
destra para me salvar. Com efeito, ape­ java possuir também a mentira. Nisto
sar de ter o coração ferido, ainda pude parecia-me com aqueles que não que­
ver o vosso esplendor. Mas, obrigado a rem mentir muito, com receio de per­
recuar, exclamei: quem pode lá che­ der a noção da verdade. Foi assim que
gar? “Fui expulso dos vossos Vos perdi, porque Vós não permitis
olhos511.” que Vos possuamos juntamente com a
511 67 30,23. mentira.

42
Falsos mediadores... •

67. Poderia encontrar alguém que procuravam reconciliar-se, sóis imor­


me reconciliasse convosco? Deveria eu tal e sem pecado. Convinha que o
recorrer aos anjos? Mas com que ora­ mediador entre Deus e os homens
ções? Com que ritos? Ouvia dizer que tivesse semelhança com Deus e os
muitos, querendo voltar, para Vós, ten­ homens; pois, se se parecesse só com
taram meter-se por este caminho, já os homens, estaria longe de Deus, e se
que o não podiam fazer por si mesmos. fosse semelhante só a Deus, estaria
Mas caíram no desejo de presenciar longe dos homens. Assim, não haveria
visões curiosas, merecendo, por isso, mediador!
ficar entregues às ilusões. Aquele falso intermediário (o demô­
Esses soberbos procuravam-Vos, le­ nio), que, por vossos ocultos juízos,
vados mais pelo intento de ostentar o tem licença para iludir a soberba
fausto da ciência do que pelo desejo de humana, possui apenas uma coisa de
bater no peito. Por isso, dada a analo­ comum com os homens: o pecado.
gia dos seus corações com os demô­ Finge, contudo, assemelhar-se com
nios aéreos, por cujo poder mágico se Deus. Em razão de não estar vestido,
deixaram iludir, atraíram a si os espíri­ de carne mortal, mostra-se imortal.
tos maus como cúmplices e compa­ Mas, como “a morte é o castigo do
nheiros da sua soberba. Procuravam pecado 51 4”, o demônio traz de comum
um mediador que os purificasse e não com os homens a este, o que faz com
o acharam. “O demônio tinhá-se trans­ que seja condenado à morte junta­
figurado em anjo de luz 512.” Ele sedu- mente com eles.
ziu-lhes fortemente a carne orgulhosa, 513 Alude o santo aos neoplatônicos e aos seus
precisamente pela prerrogativa de não ritos religiosos. Porfírio e Apuleio interpunham,
entre os deuses e os homens, os demônios que habi­
possuir corpo carnal513. tavam na região do ar (cf. A Cidade de Deus, X, 26
Eles eram mortais e pecadores. E e 29). Estes levavam petições dos mortais às divin­
Vós, Senhor, com quem soberbamente dades e traziam favores. Assim o julgavam os
i neoplatônicos. (N. do T.)
512 2 Cor 11, 14. 51 4 Rom 6,23.
CONFISSÕES X 229

43
Cristo, Medidor imortal

68. O verdadeiro Mediador, que por Efetivamente, foi sacerdote porque foi
vossa oculta misericórdia mostrastes e sacrifício. De escravos fez-nos. vossos
enviastes aos homens para que a seu filhos, servindo-nos, apesar de ter nas­
exemplo aprendessem a humildade, é‘b cido de Vós.
homem Jesus Cristo, Mediador entre
Deus_e os homens 51 5”. Com razão n’Ele coloco toda a
minha firme confiança, esperando que
Apareceu como intermediário entre curareis todas as minhas enfermidades,
os mortais pecadores e o Justo Imortal. por intermédio d’Aquele que, sentado à
Apareceu mortal com os homens, e
justo com Deus. Como a recompensa vossa Direita, “intercede por nós 520”.
da justiça é a vida e a paz, pela justiça Doutro modo, desesperaria, pois são
unida a Deus desfez a morte51 6 dós múitas e grandes as minhas fraquezas !
ímpios justificados, querendo compar- Sim, são muitas e grandes, mas máiõr
tilhá-la com eles. é o poder da vossa medicina. Pode­
Cristo foi revelado aos santos do riamos pensar que o vosso Verbo se
Antigo Testamento para que se salvas­ tinha afastado da união com o homem,
sem pela fé na sua futura paixão, como e, desesperado de nos salvar, se não se
nós nos salvamos pela fé já passada. tivesse feito homem e habitado entre
De fato, só é Mediador enquanto nós 521.
homem. Como Verbo não é interme­ Atemorizado com os meus pecados
diário, porque é igual a Deus e é Deus e com o peso da minha miséria, tinha
em Deus, sendo ao mesmo tempo um revolvido e meditado, em meu coração,
só Deus. o projeto de fugir para o ermo 522. Mas
Como nos amastes, ó Pai bondoso ! Vós mo proibistes e me fortalecestes,
“Não perdoastes ao Vosso Filho dizendo: “Cristo morreu por todos,
Único! Vós o entregastes à morte por para que os viventes não vivam para si,
nós, ímpios pecadores51 7 !” Como nos mas para Aquele que morreu por
amastes ! Foi por nosso amor que Ele, eles 523”.
“não considerando como rapina o ser Pois bem, Senhor, lanço em vossas
igual a Vós, se fez por nós obediente mãos o cuidado da minha vida para
até à morte e morte de cruz 51 8”. “Ele que viva, e “meditarei nas maravilhas
era o único entre os mortos que estava da vossa lei52 4”. Conheceis a minha
isento da morte, o único que tinha o ignorância e doença. Ensinai-me e
poder de entregar a vida e de a reassu­ curai-me 52 5.
mir de novo 51 9 !” Foi, diante de Vós, o 520 Mt4, 23; Rom 7, 34.
nosso vencedor e vítima. Tomou-se 521 Jo 1, 14.
vencedor porque foi vítima. Foi, diante 522 Santo Agostinho pensava em tomar-se eremita
519quando
de Vós, o nosso Sacerdote e sacrifício.515
*518 habitou em Cassicíaco, e mais tarde, quan­
do bispo, esteve a ponto de retirar-se para o seu
mosteiro de Hipona, por causa dos ágapes sobre os
515 1 TY/n 2, 5. sepulcros dos mártires. Os hiponenses não queriam
51 6 GúZ 5, 4. corrigir-se desse costume meio pagão. (N. do T.)
51 7 Rom 8, 32. 523 2 Cor 5, 15.
518 ^2,6.8. 524 57 5 4,23; 118,28.
519 Jo 10, 18. 52 9 57 6,3.
230 SANTO AGOSTINHO

O vosso Filho Único, “em quem, o preço da minha redenção. Como o


estão escondidos os tesouros da Sabe­ Corpo e bebo o Sangue desta Vítima.
doria e da Ciência52 6”, remiu-me corrí Distribuo pelos outros. Sou pobre e
o seu sangue. “Não me caluniem os anelo saciar-me com Ela na compa­
soberbos 52 7”, porque eu conheço bem nhia daqueles que A comem e se sa­
52 6 Col2, 3.
ciam (na Eucaristia).
52 7 Os soberbos são os neoplatônicos, que adora­ “Louvarão o Senhor aqueles que O
vam demônios e bebiam sangue de vítimas. Santo buscam 52 8.”
Agostinho diz-lhes que bebe o Sangue de Cristo na-
Eucaristia. (N. do T.) 528 5/21,27.
LIVRO XI

O HOMEM E O TEMPO

Começa Santo Agostinho a explicação


do princípio do Gênesis, detendo-se espe­
cialmente nas palavras: “No princípio
criou Deus o céu e a terra”.

Sobressai, neste livro, a célebre análise


filosófica sobre a essência do tempo,
questão ainda hoje obscura e controversa.

Pedro Duhen, na sua magistral obra “O


Sistema do Mundo”, louva a rigorosa pre­
cisão astronômica da teoria agostiniana
do tempo.

I — Deus criador. O Verbo


de Deus (1-9).
II — Análise do tempo. O
tempo e a eternidade
(10-27).
1
Confessar a Deus o que ele já conhece?

1. Sendo vossa a eternidade, igno­ para convosco, confessando-Vos as


rais porventura, Senhor, o que eu Vos nossas misérias e as vossas misericór­
digo, ou não vedes no tempo o que se dias, a fim de que ponhais termo à
passa no tempo? Por que razão Vos obra já começada da nossa libertação
narro, pois, tantos acontecimentos? e sejamos felizes em Vós, cessando de
Não é, certamente, para que os conhe­ ser miseráveis em nós. Por isso nos
çais por mim, mas para excitar o meu chamastes para que fôssemos pobres
afeto para convosco e o daqueles que de espírito e mansos, para que chorás­
lêem estas páginas, a fim de todos semos tendo fome e sede de justiça, ‘
exclamarmos: “Deus é grande e digno para que fôssemos misericordiosos,
de todo o louvor 52 9”. Já disse e tomo puros e pacíficos. 531.
Já Vos narrei muitas coisas segundo
a repetir: Narro estas'coisas pelo dese­
me foi possível e segundo o desejo de
jo de Vos amar. Também nós oramos,
minha alma, já que fostes o primeiro a
e contudo a Verdade diz-nos: “O vosso
exigir de mim que me confessasse a
Pai conhece o que vos é necessário, Vós, meu Senhor e Meu Deus, “porque
antes de Lho pedirdes 53 °”. sois bom e a vossa misericórdia é
Por isso, patenteamos o nosso amor eterna532”.
529 5/95,4. 531 Mt5, 3-9.
530 MtG, 8. 532 5/118,1.

2
Os arcanos das palavras divinas

2. Quando poderei eu, com a língua confessar-Vos a minha ciência e impe-


da minha pena, enumerar todas as vos­ rícia533, os primeiros alvores da ilumi­
sas solicitações, terrores, consolações e nação da minha alma e os restos das
incitamentos com que me introduzistes minhas trevas, até que a minha fra­
a pregar a vossa palavra e a distribuir queza seja absorvida pela vossa forta­
a vossa doutrina ao vosso povo? leza.
Mesmo que fosse capaz de as enunciar Não quero gastar noutras coisas as
por ordem, cada gota de tempo me é
preciosa. 533 “Santo Agostinho fez filosofia como teólogo, e
fez teologia cómo filósofo” (Agostinho Veloso, Nas
Desde menino que anseio ardente­ Encruzilhadas do Pensamento, T. III, Porto, 1957,
mente meditar a vossa lei, e nela p. 77). (N. do T.)
236 SANTO AGOSTINHO

horas que me deixam livres as necessi­ nas sagradas cheias de mistérios. Por­
dades de alimentar o corpo e de repou­ ventura esses bosques não possuem
sar da contensão do espírito. Gastarei também os seus veados que aí se aco­
nisso os momentos livres dos serviços lhem e refugiam, aí passeiam e pastam,
que devemos aos homens e dos que aí se deleitam ruminando?
lhes prestamos sem Ihos dever. Ó Senhor, aperfeiçoai-me e paten­
3. Senhor, Deus meu, “atendei a teai-me esses mistérios. A vossa pala-
minha oração 53 4”, e oxalá a vossa vra é a minha alegria. A vossa voz é
misericórdia ouça o meu desejo 53 5, mais deleitosa do que toda a afluência
porque não é só por mim que ele palpi­ de prazeres. Concedei-me o que amo,
ta, senão também por aqueles que a porque estou inebriado de amor. E isso
caridade me faz olhar como a irmãos. me concedestes. Não abandoneis os
Vós vedes no meu coração que assim vossos dons, nem deixeis de regar esta
é. Sacrificar-Vos-ei as operações do erva sequiosa.
meu pensamento e da minha língua. Oxalá Vos confesse tudo o que
Dai-me, porém, aquilo que Vos desejo encontrar nos vossos livros e “ouça a
oferecer e sacrificar 53 6. “Eu sou pobre voz dos vossos louvores 53 9”. Possa eu
e indigente. Vós sois rico para os que inebriar-me de Vós e considerar as
Vos invocam53 7”, vigiando sobre nós maravilhas da vossa lei, desde o princí­
com segurança. pio em que criastes o céu e a terra, até
Purificai os meus lábios e o meu ao tempo em que partilharemos con-
coração de toda temeridade e mentira. vosco do reino perpétuo da vossa
Sejam as Sagradas Escrituras as mi­ Santa Cidade.
nhas castas delícias. Que eu não seja 4. Senhor, tende compaixão de mim
enganado nelas, nem com elas engane e ouvi o meu desejo. Julgo que nele não
os outros. Escutai a minha alma, há nada de terrestre, nem de ouro nem
Senhor, e tende piedade de mim, ó meu de prata nem de pedras preciosas nem
Deus, que sois luz dos cegols, força dos de vestidos luxuosos nem de.honras e
enfermos, e simultaneamente luz dos poderes nem de prazeres da carne nem
que vêem e força dos fortes. Escutai de coisas necessárias ao corpo e a esta
compassivo a minha alma, ouvi-a nossa via de peregrinos. Tudo nos é
enquanto clama do mais profundo dado por acréscimo, a nós, que busca­
abismo em que se encontra. Se os vos­ mos o reino do céu e. vossa justiça 5 4 0.
sos ouvidos não estão presentes lá Vede, Senhor meu Deus, donde
nesse abismo, para onde nos dirigire­ nasce o meu anseio. “Os maus conta­
mos? Por quem chamaremos? ram-me às suas alegrias, mas estas não
“Vosso é o dia e vossa é a noite 5 3 8.” são como as que provêm da vossa lei,
A um aceno da vossa vontade, os ins­ ó Senhor5 41.” Eis donde brota o meu
tantes voam. Concedei-me, por conse­ anseio. Vede, ó Pai, aprovai e tende
guinte, tempo para meditar os segredos por bem que eu, sob o olhar da vossa
da vossa lei, e não a fecheis aos que lhe misericórdia, encontre graça diante de
vêm bater à porta. Não foi em vão que Vós, para que os arcanos das vossas
quisestes fossem escritas tantas pági- palavras se abram, quando o meu espí­
rito lhes bater à porta.
534 5/60,2. Peço-Vos por intermédio- de Nosso
53 5 si 10, 17.
53 6 5/65, 15; 85, 1. 539 5/25,7.
53 7 Rom 10, 12. 5 40 Mt6, 33. ■ (
538 5/73, 16. 541 5/ 118,85. ■
CONFISSÕES XI 237

Senhor Jesus Cristo, “vosso Filho, o mastes à adoção o povo dos crentes,
homem sentado à vossa destra, o Filho entre qs quais estou eu também. Por
do Homem5 42”, ao qual confirmastes Ele, que “está sentado à vossa direita e
como Mediador entre Vós e nós. Por intercede por nós diante de Vós 5 43”.
Ele nos buscastes quando Vos não “N’Ele se encontram todos os tesouros
procurávamos. Buscastes-nos para que de Sabedoria e Ciência5 4 4”, aos quais
também Vos buscássemos. procuro nos vossos livros. Moisés
Rogo-vos por intermédio do vosso escreveu a seu respeito: “Isto di-lo Ele,
Verbo, pelo qual criastes todas as coi­ isto di-lo a Verdade 5 4 5”.
sas, e, entre elas, a mim. Rogo-Vos
pelo vosso Unigênito, pelo qual cha- 543 Romü, 3'4.
5 4 4 Col 2, 3.
5 42 57 79,18. 5 4 5 Cf. Jo 5, 46.

3
Como compreender Moisés?

5. Concedei-me que eu ouça e com­ Mas como saberia eu que ele falava
preenda como “no princípio criastes o verdade? E quando o soubesse, sabê-
céu e a terra5 4 6” Isto escreveu Moi­ lo-ia por seu intermédio? A mesma
sés. Escreveu-o e deixou este mundo. Verdade, que não é hebraica nem grega
Partiu daqui, de Vós para Vós, e agora nem latina nem bárbara, dir-me-ia
não está na minha presença. Se esti­ interiormente, dentro do domicílio do
vesse presente, detê-lo-ia para lhe pedir meu pensamento, sem o auxílio dos ór­
e suplicar, por vosso intermédio, que gãos da boca e da língua, e sem ruído
me patenteasse o sentido desta frase. de sílabas: “Moisés fala verdade”. E
Prestaria atenção às palavras saídas eu, imediatamente, com toda a certeza
dos seus lábios. Se Moisés falasse na e confiança, diria àquele vos’so servo:
língua hebraica, em vão impressio­ “Dizeis a verdade”.
naria os meus ouvidos, porque nenhu­ Como o não posso consultar, inter-
ma idéia atingiría a minha mente 5 4 7. rogo-Vos, ó Verdade cuja plenitude ele
Se, porém, se exprimisse enr latim, possuía e com a qual enunciou aquelas
compreendería o que ele me dissesse. verdades. Suplico-Vos, ó meu Deus,
que me perdoeis os pecados, e, já que
permitistes que aquele vosso servo dis­
5 4 6 Gên i, 1.
5 4 7 Santo Agostinho ignorava a língua hebraica. sesse estas coisas, fazei também que eu
(N. do T.) as compreenda.

4
Deus, no poema da criação

6. Existem, pois, o céu e aterra. Em vicissitudes. Ainda mesmo o que não


voz alta dizem-nos que foram criados, foi criado e todavia existe nada tem em
porque estão sujeitos a mudanças e si que antes não existisse. Portanto so­
238 SANTO AGOSTINHO

freu mudança e passou por vicissitu- que não se fizeram a si próprias:


des 5 48. Proclamem todas estas coisas “Existimos porque fomos criados. Por­
5 48 “Ainda mesmo o que não foi criado e todavia tanto, não existíamos antes de existir,
existe...” Esta frase só se compreende tendo em para que nos pudéssemos criar”.
vista a teoria agostiniana da criação. Para o Santo
Doutor, as criaturas foram tiradas do nada num só A mesma evidência é a voz com que
momento. Algumas apareceram logo na sua forma
perfeita, como o firmamento, os astros, a alma dos o céu e a terra nos falam. Vós, Senhor,
homens, os anjos. Outras surgiram na terra sob os criastes. Porque sois belo, eles são
forma incompleta, mas dotadas de virtudes intrín­
secas evolutivas (rationes seminales). Assim se ori­ belos; porque sois bom, eles são bons;
ginaram da matéria bruta, por evolução, os animais, porque existis, eles existem. Não são
e até o corpo do primeiro homem. No seu tempo,
dizia Santo Agostinho, apenas se verificava esta lei tão formosos, nem tão bons, nem exis­
nos animais inferiores, como nas rãs, lagartixas, tem do mesmo modo que vós, seu
etc., que eram produzidas pela terra, na qual já se
encontravam os gérmens desses mesmos seres. Criador. Comparados convosco, nem
Por conseguinte, a frase parcialmente transcrita são belos nem são bons nem existem.
deve entender-se: “Ainda mesmo o que nãõ foi cria­
do na sua forma definitiva e perfeita, e, todavia, por Graças Vos sejam dadas por saber­
processo evolutivo das razões seminais, obteve a
existência, nada tem em si que antes não existis­ mos estas coisas. Mas a nossa ciência,
se. . .” (N. doT.) comparada com a vossa, é ignorância.

5
A palavra criadora

7. De que modo, porém, criastes o Concedestes ao artista os sentidos


céu e a terra, e qual foi a máquina de do corpo, com os quais, servindo-se
que Vos servistes para esta obra tão deles como de intérpretes, transpõe da
imensa, se não procedestes como o fantasia para a matéria a figura que de­
artífice que forma um corpo doutro seja realizar. Com eles anuncia ao
corpo, impondo-lhe, segundo a concep­ espírito o que fez, para que este'lá den­
ção da sua mente vigorosa, a imagem tro pergunte à Verdade —juiz da alma
que vê em si mesma, com, os olhos do — se a obra foi bem realizada.
espírito? Donde lhe viria este poder, se Todas estas criaturas Vos louvam
Vós lhe não tivésseis criado a imagina­ como a Criador de tudo. Mas de que
ção? modo as fazeis? Como fizestes, meu
O artífice impõe a forma à matéria Deus, o céu e a terra? Sem dúvida, não
— a qual já existia e já a continha — fizestes o céu e a terra no céu ou na
isto é, à terra, ou à pedra, ou à madeira terra, nem no ar ou nas águas, porque
ou ao ouro ou a qualquer coisa mate­ também estes pertencem ao céu e à
rial. Mas donde proviríam estes seres, terra. Nem criastes o Universo no Uni­
se os não tivésseis criado? Fizestes ao verso, porque, antes de o criardes, não
artífice o corpo, fizestes-lhe a alma que havia espaço onde pudesse existir.
impera aos membros. Criastes a maté­ Nem tínheis à mão matéria alguma
ria com que fabrica os objetos, a inspi­ com que modelásseis o céu e a terra.
ração com que ele concebe a arte e vê Nesse caso, donde viria essa matéria
intemamente o plano que executa no que Vós não criáreis e com a qual
exterior. pudésseis fabricar alguma coisa? Que
CONFISSÕES XI .239

criatura existe que não exija a vossa falastes, e os seres foram criados549
existência? Vós os criastes pela vossa palavra!
Portanto, é necessário concluir que 5 49 57 32,6.9.

A voz ecoando no silêncio

8. Mas como é que falastes? Por­ muito grande !• Estas palavras estão
ventura do mesmo modo como quando muito abaixo de mim. Nem sequer
se ouviu de entre a nuvem a voz que existem, porque fogem e passam”.
dizia: “Este é o meu filho predile- “Porém o Verbo de Deus permanece
to 5 50«9 sobre mim etemamente 5 51.”
Com efeito, aquela voz ecoou e Se foi, portanto, por meio de pala­
sumiu-se. Começou e findou. Ressoa­ vras soantes e transitórias que disses­
ram as sílabas e passaram, a segunda tes que fossem feitos o céu e a terra, e
após a primeira, a terceira após a se assim os criastes, conclui-se que já
segunda, e todas pela mesma ordem, antes do céu e da terra existia uma
até à última, e, depois da última, o criatura material por cujas vibrações
silêncio. . . Donde claramente ressalta aquela voz pôde correr no tempo.
que uma criatura as pronunciou, me­ Porém, nenhum corpo existia antes
diante uma vibração temporal, a servi­ do céu e da terra, ou, se existia, Vós o
ço da vossa eterna vontade. Essas tínheis certãmente criado sem ser por
palavras transitórias anunciou-as ela, meio de voz transitória. Por ele emitis­
por intermédio dos ouvidos externos, à tes a voz passageira com que dissestes
inteligência que as compreende e cujos que o céu e a terra fossem feitos.
órgãos interiores da audição estão dis­ Efetivamente, qualquer que seja a
postos para escutarem o vosso Verbo substância com que produzistes essa
Eterno. voz, de modo algum poderia existir, se
A inteligência comparou essas pala­ a não tivésseis criado. Mas que palavra
vras, proferidas no tempo, com o vosso pronunciastes para dar ser à matéria,
Verbo, gerado no eterno silêncio, e com que havíeis de formar aquelas
disse: “Sim, a diferença é grande, palavras?
5 50 Mt3, 17; 17,5. 551 Zs40, 8.

7
O Verbo de Deus coetemo com Deus

9. Assim nos convidais a com­ acaba o que estava sendo pronunciado


preender o Verbo, Deus junto de 'Vós, nem se diz outra coisa para dar lugar a
que sois Deus, o qual é pronunciado que tudo se possa dizer, mas tudo se
por toda a eternidade e no qual tudo é diz simultânea e éternamente. Se assim
pronunciado etemamente. Nunca se não fosse já haveria tempo e mudança,
2*40 SANTO AGOSTINHO

e não ■ verdadeira eternidade e verda­ vosso Verbo, porém, nada desaparece,


deira imortalidade. nada se substitui, porque é verdadeira­
mente eterno e imortal. Por isso, ao
Tudo isso entendi, meu Deus, e por
Verbo que é coetemo convosco, dizeis,
isso Vos dou graças. Confesso-Vos,
ao mesmo tempo e eternamente, tudo o
Senhor, que o entendi, e comigo Vos que dizeis. E tudo o que dizeis que se
conhece e bendiz todo o que não é faça realiza-se! Para Vós não há dife­
ingrato à infalível Verdade. Sabemos, rença nenhuma entre o dizer e o criar.
Senhor, sabemos que uma coisa morre Nem tudo, porém, o que fazeis com a
e nasce, consoante deixa de ser o que vossa palavra se realiza simultanea­
era e passa a,ser o que não era. No mente e desde toda a eternidade.

Nós, discípulos do Verbo

10. Dizei-me a causa de tudo isto, ensina, ainda que nos fale, é como se
eu vo-lo peço, Deus e Senhor meu! Al­ não nos falasse. Mas, além da Verdade
guma coisa entendo, mas não sei como Imutável, quem é que nos ensina?
me exprimir. Limito-me a dizer que Ainda quando somos elucidados pela
tudo quanto começa a existir ou deixa criatura mutável, somos encaminhados
de existir só principia ou acaba quando também para a Verdade Imutável,
se conhece, na vossa Razão eterna, que onde verdadeiramente aprendemos.
tudo isso deve ter começado ou termi­ Então conservamo-nos de pé a ouvi-lo
nado, ainda que nela nada começa e e “enchemo-nos de alegria por causa
nada desaparece.
da voz do Esposo 5 52”, que nos conduz
O vosso Verbo é este Princípio de
à origem donde somos.
todas as coisas porque também nos
fala. Assim, falou-nos no Evangelho Portanto, é Ele o princípio, porque,
por meio do seu corpo. Ressoou essa se Ele não permanecesse, não teríamos
voz exteriormente aos ouvidos dos ho­ para onde voltar quando vagueás­
mens para que acreditassem nele, o semos errantes. Quando, porém, volta­
buscassem dentro de si mesmos e o mos do erro, voltamos com plena cons­
encontrassem na eterna Verdade, onde ciência. Ensina-nos, a fim de que
o bom e único Mestre ensina a todos possuamos essa plena consciência da
os discípulos. nossa volta, porque é o Princípio. Ele
Senhor, ouço aí a vossa voz a dizer- fala-nos.
me que só nos fala verdadeiramente
aquele que nos ensina. Quem nos não 5 52 Jo 3, 29.

9
A luz do Verbo em mim
11. Criastes, ó Deus, o céu e a terra, vosso Filho, na vossa Virtude, na
neste princípio, no vosso Verbo, no vossa Sabedoria, falando e agindo dum
CONFISSÕES XI 241

modo admirável. Quem o poderá com­ • iniqüidades”, me cureis também de


preender? Quem o poderá contar? Que todos os achaques. “Resgatareis pois a
luz é esta que me ilumina de quando minha alma da corrupção, coroar-me-
em quando e me fere o coração, sem o eis na vossa compaixão e misericórdia,
lesar? Horrorizo-me e inflamo-me: saciareis de bem o meu desejo, porque
horrorizo-me enquanto sou diferente então a minha juventude será renovada
dela, inflamo-me enquanto sou seme­ como a da águia5*5 4.” “Fomos salvos
lhante a ela. pela esperança e aguardamos com
E a Sabedoria, a mesma Sabedoria paciência as vossas promessas 5 5 5.”
que bruxuleia em mim e rasga a minha Ouça, pois, vossa voz em seu interior,
nuvem. Esta encobre-me de novo quem puder! Eu- clamarei, confiado no
quando desanimo por causa da escuri­ vosso oráculo: “Quão magníficas são
dão e-do peso das minhas misérias. as vossas obras, Senhor! Tudo fizestes
“Enfraqueceu-se de tal modo na na vossa Sabedoria5 5 6”. Ê ela o Prin­
indigência o meu vigor555” que não cípio, e foi neste Princípio que criastes
suporto o meu próprio bem, i até que o céu e a terra.
Vós, Senhor, que “Vos tomastes com­
passivo para com todas as minhas 5 5 4 Sl 102, 3-5.
5 5 5 Tim 8, 29.
5 53 07 30,11. 5 5 6 Sl 103, 24.

10
Que faria Deus antes da criação?

12. Não é verdade que estão ainda nada seria criado se antes não existisse
cheios de velhice espiritual 5 5 7 aqueles a vontade do Criador. Essa vontade
que nos dizem: “Que fazia Deus antes pertence à própria substância de Deus.
de criar o céu e a terra? Se estava ocio­ Se alguma coisa surgisse na substância
so e nada realizava”, dizem eles, “por de Deus que antes lá não estivesse, não
que não ficou sempre assim no decurso podíamos, com verdade, chamar a essa
dos séculos, abstendo-se, como antes, substância eterna. Mas, se desde toda a
de toda ação? Se existiu em Deus um eternidade é vontade de Deus que exis­
novo movimento, uma vontade nova tam criaturas, por que razão não são
para dar o ser a criaturas que nunca as criaturas eternas? 558
antes criara, como pode haver, verda­ 5 58 Santo Agostinho trata este mesmo assunto no
deira eternidade, se n’Ele aparece uma De Genesi contra Manichaeos, liv. I, cap. 2. A cria­
vontade que antes não existia?” ção não foi db aetemo. Deus criou livremente, por
um ato eterno de volição. As idéias das coisas exis­
A vontade de Deus não é uma cria­ tem na Inteligência Divina desde toda a eternidade.
tura. Está antes de toda criatura, pois Porém, os termos ou objetos que Deus quer produ­
zir só aparecem no momento determinado pela sua
5 5 7 "Pleni vetustatis suae”, diz Santo Agostinho. volição. Os filósofos escolásticos medievais comba­
No sermão 267, explica: “carnalitas vetustas est”: a teram o averroísmo e a tese de Aristóteles que pro­
sensualidade é velhice (espiritual). punha a eternidade do mundo. (N. do T.)
242 SÀNTO AGOSTINHO

11
O tempo não pode medir a eternidade

13. Quem afirma tais coisas, ó “Sa­ Ora, estes não podem alongar-se si­
bedoria de Deus 5 5 9”, Luz das inteli­ multaneamente.
gências, ainda não compreendeu como Na eternidade, ao' contrário, nada
se realiza o que se faz por Vós e em
Vós. Esforça-se por saborear as coisas passa, tudo é presente, ao passo que o
eternas, mas o seu pensamento ainda tempo nunca é todo presente. Esse tal
volita ao redor das idéias da sucessão verá que o passado é impelido pelo fu­
dos tempos passados e futuros, e, por turo e que todo o futuro está precedido
isso, tudo o que excogita é vão. dum passado, e todo o passado e futu­
A esse, quem o poderá prender e ro são criados e dimanam d’Aquele
fixar, para que pare um momento e que sempre é presente. Quem poderá
arrebate um pouco do esplendor da prender o coração do homem, para que
eternidade perpetuamente imutável,
para que veja como a eternidade é pare e veja como a eternidade imóvel
incomparável, se -a confronta com o determina o futuro e o passado, não
tempo, que nunca pára? Compreen­ sendo ela nem passado nem futuro?
derá então que a duração do tempo Poderá, porventura, a minha mão que
não será longa, se não se compuser de escreve explicar isto? Poderá a ativi­
muitos movimentos passageiros 5 60, dade da minha língua conseguir pela
5 59 Ef3, 10. palavra realizar empresa tão grandio­
5 60 Ações sucessivas transitórias. (N. do T.) ■ sa?

12
O que fazia Deus antes da criação do mundo

14. Eis a minha resposta àquele que que se escarneça do que propôs a difi­
pergunta: “Que-fazia Deus antes de culdade e se louve aquele que respon­
criar o céu e a terra?” Não lhe respon­ deu coisas falsas.
derei nos mesmos- termos com que Mas eu digo, meu Deus, que sois o
alguém, segundo se narra, respondeu, Criador de tudo o que foi criado. Se
eludindo, com graça, a dificuldade do pelo nome de “céu e terra” se com­
problema: “Preparava”, disse, “a preendem todas as criaturas, não temo
afirmar que antes de criardes o céu e a
geena para aqueles que perscrutam
terra não fazíeis coisa alguma. Pois, se
estes profundos mistérios !” Uma coisa tivésseis feito alguma coisa, que pode­
é ver a solução do problema e outra é ría ser senão criâtura vossa? Oxalá eu
rir-se dela. Não darei essa resposta. soubesse tudo o que me importa
Gosto mais de responder: não sei — conhecer, como sei que Deus não fazia
quando de fato não sei — do que apre­ nenhuma criatura antes que se fizesse
sentar aquela solução, dando motivo a alguma criatura!
CONFISSÕES XI 243

13
O eterno “hoje”

15. Mas se a célere fantasia de 16. Precedeis, porém, todo o passa­


alguém anda vagueando por tempos do, alteando-Vos sobre ele com a vossa
imaginários anteriores à criação e se se eternidade sempre presente5 61. Domi­
admira de que Vós, Deus Onipotente, nais todo o futuro porque está ainda
Criador e Mantenedor de todas as coi­ para vir. Quando ele chegar, já será
sas, Artífice do céu e da terra, antes de pretérito. “Vós, pelo contrário, perma­
empreenderdes essa empresa, Vos te­ neceis sempre o mesmo, e os vossos
nhais abstido, durante inumeráveis sé­ anos não morrem 5 62”.
culos, da realização de tão grande Os vossos anos não vão nem vêm.
obra, esse que atenda e considere quão Porém os nossos vão e vêm, para que
falso é o objeto da sua admiração. todos venham. Todos os vossos anos
Como poderiam ter passado inume­ estão conjuntamente parados, porque
ráveis séculos, se Vós, que sois o Autor estão fixos, nem os anos que chegam
e o Criador de todos os séculos, ainda expulsam os que vão, porque estes não
os não tínheis criado? Que tempo, passam. Quanto aos nossos anos, só
poderia existir se não fosse estabele­ poderão existir todos, quando já todos
cido por Vós? E como poderia,esse não existirem. Os vossos anos são
tempo decorrer, se nunca tivesse existi­ como um só dia5 63, e o vosso dia não
do? se repete de modo que possa chamar-se
Sendo, pois, Vós o obreiro de todos cotidiano, mas é um perpétuo “hoje”,
os tempos — se é que existiu algum porque este vosso “hoje” não se afasta
tempo antes da criação do céu e da do “amanhã”, nem sucede ao “ontem”.
terra —, por que razão se diz que Vos O vosso “hoje” é a eternidade. Por isso
abstínheis de toda a obra? Efetiva­ gerastes coetemo o vosso Filho, a
mente fostes Vós que criastes esse quem dissestes: “Eu hoje te gerei5 6
mesmo tempo, nem ele podia decorrer Criastes todos os tempos e existis
antes de o criardes ! Porém, se antes da antes de todos os tempos. Não é conce­
criação do céu e da terra não havia bível um tempo em que possa dizer-se
tempo, para que perguntar o que que não havia tempo.
fazíeis então? Não podia haver 56i Sl 101, 28.
“então” onde não havia tempo. Não é 5 62 “O tempo é um vestígio de eternidade” (Santo
no tempo que Vós precedeis o tempo, Agostinho, De Genesi, lib. imperf. XIII, 38). (N. do
T.)
pois, doutro modo, não seríeis anterior 5 63 2PíZr3,8.
a todos os tempos. 5 6 4 Sl2,T-,Hbr 5,5.

14
O que é o tempo?
17. Não houve tempo nenhum em porque Vós‘permaneceis imutável, e se
que não fizésseis alguma coisa, pois os tempos assim permanecessem, já
fazíeis o próprio tempo. não seriam tempos. Que é, pois, o
Nenhuns tempos Vos são coeternos, •tempo? Quem poderá explicá-lo clara
244 SANTO AGOSTINHO

e brevemente? Quem o poderá apreen­ o passado já não existe e o futuro


der, mesmo só com o pensamento, ainda não veio? Quanto ao presente, se
para depois nos traduzir por palavras fosse sempre presente, e não passasse
o seu conceito? E que assunto mais para o pretérito, já não seria tempo,
familiar e mais batido nas nossas con­ mas eternidade. Mas se o presente,
versas do que o tempo? Quàndo dele para ser tempo, tem necessariamente
falamos, compreendemos o que dize­ de passar para o pretérito, como pode­
mos. Compreendemos também o que mos afirmar que ele exisfe, se a causa
nos dizem quando dele nos falam. O
que é, por conseguinte, o tempo? Se da sua existência é a mesma pela qual
ninguém mo perguntar, eu sei; se o qui­ deixará de existir? Para que digamos
ser explicar a quem me fizer a pergun­ que o tempo verdadeiramente existe,
ta, já não sei. Porém, atrevo-me a porque tende anão ser? 5 6 5.
declarar, sem receio de contestação,
5 6 5 O tempo é um ser de razão com fundamento na
que, se nada sobreviesse, não haveria realidade. Santo Agostinho estuda o problema do
tempo futuro, e se agora nada houves­ tempo apenas sob o aspecto psicológico: como é
se, não existiria o tempo presente. que nós o apreendemos. Não o estuda sob o aspecto
ontológicò: como é em si mesmo. Para este-último
De que modo existem aqueles dois caso, teria de o considerar como indivisível. (N. do
tempos -—- o passado e o futuro -—•, se T.)

15
As três divisões do tempo
18. Contudo, dizemos tempo longo capaz de ser longa. O passado já não
ou breve, e isto, só o podemos afirmar existia; portanto não podia ser longo
do futuro ou do passado. Chamamos aquilo que totalmente deixara de exis­
“longo” ao tempo passado, se é ante­ tir.
rior ao presente, por exemplo, cem Não digamos pois: “o tempo passa­
anos. Do mesmo modo dizemos que o do foi longo”, porque não encontra­
tempo futuro é “longo”, se é posterior remos aquilo que tivesse podido ser
ao presente também cem anos. Chama­ longo, visto que já não existe desde o
mos “breve” ao passado, se dizemos, instante em que passou. Digamos
por exemplo, “há dez dias”; e ao futu­ antes: “aquele tempo presente foi
ro, se dizemos “daqui a dez dias”. Mas longo”, porque só enquanto foi pre­
como pode ser breve ou longo o que sente é que foi longo. Ainda não tinha
não existe? Com efeito, o passado já passado ao não-ser, e portanto existia
não existe e o futuro ainda não existe. uma coisa que podia ser longa. Mas,
Não digamos: “é longo”; mas digamos logo que passou, simultaneamente dei­
do passado: “foi longo”; e do futuro: xou de ser longo, porque deixou1 de
“será longo”. existir.
Nesta questão, escarnecerá do 19. Vejamos, portanto, ó alma hu­
homem a vossa Verdade, ó meu Deus e mana, se o tempo presente pode ser
minha Luz? O tempo longo, já passa­ longo. Foi-te concedida a prerrogativa
do, foi longo depois de passado ou de perceberes e medires a sua duração.
quando ainda era presente? Só então Que me responderás? Porventura cem
podia ser longo (nesse momento pre­ anos presentes são muito tempo? Con­
sente), quando existia alguma coisa sidera primeiro se cem anos podem, ser
CONFISSÕES XI 245

presentes. Se o primeiro ano está O dia e a noite compõem-se de vinte


decorrendo, este é presente, mas os ou­ e quatro horas, entre as quais a pri­
tros noventa e nove são futuros, e por­ meira tem as outras todas como futu­
tanto ainda não existem. Se está decor­ ras, e a última tem a todas como pas­
rendo o segundo ano, um é passado, sadas. Com respeito a qualquer hora
outro presente e os restantes' futuros. intermediária são pretéritas aquelas
Se apresentarmos como presente qual­ que a precedem, e futuras as subse­
quer dos anos intermediários- da série quentes. Uma hora compõe-se de fugi­
centenária, notamos que os que estão tivos instantes. Tudo o que dela já
antes dele são passados, e os que estão debandou é passado. Tudo o que ainda
depois são futuros. Pelo que cem anos resta é futuro. Se pudermos conceber
não podem ser presentes. um espaço de tempo que não seja
Examina, pelo menos, se o ano que suscetível de ser subdividido em mais
está transitando pode ser' presente. partes, por mais pequeninas que sejam,
Com efeito, se o primeiro mês está pas­ só a esse podemos chamar tempo pre­
sando, os outros são futuros. Se esta­ sente. Mas este voa tão rapidamente do
mos no segundo mês, o primeiro já futuro ao passado, que não tem nenhu­
passou e os outros ainda não existem. ma duração. Se a tivesse, dividir-se-ia
Logo, nem o ano que está decorrendo em passado e futuro. Logo, o tempo
pode ser todo presente, e, se não é todo presente não tem nenhum espaço.
presente, não é um ano presente. O ano Onde existe portanto o tempo que
compõe-se de doze meses; um mês podemos chamar longo? Será o futu­
ro? Mas deste tempo não dizemos que
qualquer é presente enquanto "decorre; é longo, porque ainda não existe. Dize­
os outros são passados ou futuros. mos: “será longo”. E quando será? Se
Nem sequer, porém, o mês que está esse tempo ainda agora está para vir,
decorrendo é presente, mas somente o nem então será longo, porque ainda
dia. Se é o primeiro dia, todos os ou­ não existe nele aquilo que seja capaz
tros são futuros; se é o último, todos os de ser longo. Suponhamos que, ao
outros são passados; se é um dia inter­ menos, no futuro será longo. Mas só o
mediário, está entre dias passados e poderá começar á ser no instante em
futuros. que ele nasce desse futuro ■—- que
20. O tempo presente ■— o único ainda não existe — e se toma tempo
que julgávamos poder chamar longo presente, porque só então possui capa-
—, ei-lo reduzido apenas ao espaço . cidade de ser longo. Mas com as pala­
dum só dia! Mas discutamos.também vras que acima deixamos transcritas o
acerca dele, porque nem sequer um dia tempo presente clama que não pode ser
é inteiramente presente. longo.

16
Pode medir-se o tempo

21. E contudo, Senhor, percebemos mais comprido ou mais curto do que


os intervalos dos tempos, compara- outro, e respondemos que um é duplo
mo-los entre si e dizemos que uns são ou triplo, ou que a relação entre eles é
mais longos e outros são mais breves. simples, ou que este é tão grande como
Medimos também quando este tempo é aquele.
246 SANTO AGOSTINHO

Mas não medimos os.tempos que tiver decorrido, não o pode perceber
passam, quando os medimos pela nem medir, porque esse tempo já não
sensibilidade. Quem pode medir os existe 5 6 6.
tempos passados que já não existem ou
os futuros que ainda não chegaram? 5 6 6 O tempo não é apenas uma sucessão de instan­
Só se alguém se atrever a dizer que tes separados. É um contínuo, e, como tal, é indivi­
,pode medir o que não existe! Quando sível. O tempo, para ser estudado na sua metafísica,
não se deve dividir no “antes” e no “depois”, mas
está decorrendo o tempo, pode perce­ considerar-se na sua síntese de continuidade. (N. do
bê-lo e medi-lo. Quando, porém, já T.) •

17
Através do pretérito e do futuro

22. Não afirmo, ó Pai. Apenas per­ noutro esconderijo, quando de presente
gunto. Meu Deus, assisti-me e dirigi- se faz passado? Onde é que os adivi­
me! nhos viram as coisas futuras que vati-
Quem se atreveria a dizer-me que cinaram, se elas ainda não existem?
não há três tempos, conforme aprende­ Efetivamente, não é possível ver o que
mos na infância e às crianças o ensina­ não existe. E os que narram fatos pas­
mos: o pretérito, o presente e o futuro? sados, sem dúvida não os poderiam
Existirá somente o presènte, visto que veridicamente contar, se os não vissem
os outros dois não existem? Ou eles com a alma. Ora, se esses fatos passa­
também existem, e então o tempo pro­ dos não existissem, de modo nenhum
cede de algum retiro oculto, quando de poderiam ser vistos. Existem, portanto,
futuro se faz presente? Entra o tempo fatos futuros e pretéritos.

18
O vaticínio do futuro pelo presente

23. Permiti, Senhor, minha Espe­ passados, a memória relata, não os


rança, que eu leve mais além as minhas próprios acontecimentos que já decor­
investigações. Não se perturbe a minha reram, mas sim as palavras concebidas
atenção! pelas imagens daqueles fatos, os quais,
Se existem coisas futuras e passa­ ao passarem pelos sentidos, gravaram
das, quero saber onde elas estão. Se no espírito uma espécie de vestígios.
ainda o não posso compreender, sei Por conseguinte, a minha infância, que
todavia que em qualquer parte onde já não existe presentemente, existe no
estiverem, aí não são futuras nem passado que já não é. Porém a sua
pretéritas, mas presentes. Pois, se tam­ imagem, quando a evoco e se toma ob­
bém aí são futuras, ainda lá não estão; jeto de alguma descrição, vejo-a no
e, se nesse lugar são pretéritas, já lá tempo presente-, porque ainda está na
não estão. Por 'conseguinte, em qual­ minha memória.
quer parte onde estiverem, quaisquer Confesso-Vos, meu Deus, que não
que elas sejam, não podem existir sei se a causa pela qual se prediz o- fu­
senão no presente. Ainda que se nar­ turo equivale ao fenômeno de se apre­
rem os acontecimentos verídicos já sentarem ao espírito as imagens, já
CONFISSÕES XI 247

existentes das coisas que ainda não existem, e aqueles que predifcem o futu­
existem. Sei com certeza que nós, a ro já os vêem como presentes junto a
maior parte das vezes, premeditamos si.
as nossas açoès futuras, e essa preme- Tomemos algum exemplo da multi­
ditação é presente, ao passo que a ação dão tão numerosa de fenômenos.
premeditada ainda não existe, porque é Vejo a aurora e prognostico que o
futura. Quando empreendermos e co­ sol vai nascer. O que vejo é presente, o
meçarmos a realizar o que premedita­ que anuncio é futuro. Não é o sol que é
mos, então essa ação existirá, porque futuro, porque esse já existe, mas sim o
já não é futura, mas presente. De qual­ seu nascimento, que ainda se não reali­
quer modo que suceda este pressenti­ zou. Contudo, não o poderia prognos­
ticar sem conceber também, na minha
mento oculto das coisas futuras, não
podemos ver senão o que possui exis­ imaginação, o mesmo nascimento,
tência. Ora, o que já existe não é futu­ como agora o faço quando isso decla­
ro. Mas nem aquela aurora que eu vejo
ro, -mas presente. Por conseguinte, no céu e que precede o aparecimento
quando se diz que se vêem os aconteci­ do sol, nem aquela imagem formada
mentos futuros, não se vêem os pró­ no meu espírito são o mesmo nasci­
prios acontecimentos ainda inexis­ mento do sol, ainda que, para se predi­
tentes — isto é, os. fatos futuros —, zer este futuro, se devam enxergar a
mas sim as suas causas, ou talvez os aurora e a sua imagem como presentes.
seus prognósticos já dotados de exis­ Por conseguinte, as coisas futuras
tência. Portanto, com relação aos que ainda não existem; e se ainda não exis­
os vêem, esses acontecimentos não são tem, não existem presentemente. De
futuros, mas sim presentes. modo algum podem ser vistas, se não
24. Por esses vaticínios é apenas existem. Mas podem ser prognosti­
profetizado o futuro já preconcebido cadas pelas coisas presentes que já
na alma. Esses vaticínios, repito, já existem e se deixam observar.

19
Oração ao senhor do futuro

25. Declarai-nos, pois, ó Soberano futuro? Pois o que não existe também
das vossas criaturas, de que modo não pode, evidentemente, ser ensina­
ensinais às almas os acontecimentos do !
futuros, pois não se pode duvidar de Este modo misterioso está dema­
siado acima da minha inteligência. Su­
que os revelastes aos vossos profetas. pera as minhas forças. Por mim. não
De que modo ensinais as coisas futu­ poderei atingi-lo. Porém, podê-lo-ei
ras, ó Senhor para quem não há futu­ por Vós, quando mo concederdes, ó
ro? Ou antes, de que modo ensinais doce luz dos ocultos olhos da minha
algumas coisas presentes acerca do alma.
248 SANTO AGOSTINHO

20
Conclusão desta análise: nova terminologia

26. O que agora claramente trans­ sões, vejo então três tempos e confesso
parece é que nem há tempos futuros que são três.
nem pretéritos. Ê impróprio afirmar Diga-se também que há três tempos:
que os tempos são três: pretérito, pre­ pretérito, presente e futuro, como ordi­
sente e futuro. Mas talvez fosse próprio nária e abusivamente se usa. Não me
dizer que os tempos são três: presente importo nem me oponho nem critico
das coisas passadas, presente das pre­ tal uso, contanto que se entenda o que
sentes, presente das futuras. Existem, se diz e não se julgue que aquilo que é
pois, estes três tempos na minha mente futuro já possui existência, ou que, o
que não vejo em outra parte: lem­ passado subsiste ainda. Poucas são as
brança presente das coisas passadas, coisas que exprimimos com termino­
visão presente das coisas presentes e logia exata. Falamos muitas vezes sem
esperança presente das coisas futuras. exatidão, mas entende-se o que preten­
Se me é lícito empregar tais expres­ demos dizer!

21
Novas dificuldades: como pode medir-se o tempo?

27. Disse há pouco que medimos os Por onde caminha,' senão pelo presen­
tempos que passam, de modo que te? Para onde se dirige, senão para o
podemos afirmar: este espaço de passado? Portanto, nasce naquilo que
tempo é. duplo de tal outro, ou é-lhe ainda não existe, atravessando aquilo
equivalente, ou este é igual àquele. Do que carece de dimensão, para ir para
mesmo modo exprimimos outras sub­ aquilo que já não existe.
1
divisões do tempo, se mais alguma Porém, que medimos nós senão o
outra medida pudermos enunciar. Por tempo nalgum espaço? Não diriamos
conseguinte, como dizia, medimos os tempos simples, duplos, triplos e iguais
tempos ao decorrerem. E se alguém me
disser: “Como o sabeis?”, responder- ou com outras denominações análo­
Ihe-ei: “Sei-o porque os medimos”. gas, se os não considerássemos como
Não medimos o que não existe. Ora, as espaços de tempos. Em que espaço
coisas pretéritas ou futuras não exis­ medimos o tempo que está para pas­
tem. Como medimos nós o tempo pre­ sar? Será no futuro, donde parte? Mas
sente, se não tem espaço? Mede-se nós não podemos medir o que ainda
quando passa. Porém, quando já tiver não existe! Será no presente, por onde
passado, não se mede, porque já não parte? Mas nós não medimos o que
será possível medi-lo. não tem nenhuma extensão! Será no
Mas donde se origina ele? Por onde passado, para onde parte? Mas, para
e para onde passa, quando se mede? nós, não é mensurável o que já não
Donde se origina ele senão do futuro? existe!
CONFISSÕES XI 249

22
Senhor, desfazei este enigma!

28. O meu espírito ardeu em ânsias Cristo, em nome do Santo dos Santos,
de compreender este enigma tão com­ que ninguém me perturbe nesta investi­
plicado. Não fecheis, Senhor meu gação. “Acreditei, e eis o motivo por
Deus e Pai bondoso — peço-Vo-lo por que falo 3*5 6 7.” É esta a minha esperan­
amor de Jesus Cristo —, não fecheis ça. Vivo para ela a fim de contemplar
ao meu desejo estes problemas comuns as delícias do Senhor. “Tomastes ve­
e ao mesmo tempo misteriosos.'Fazei, lhos os meus dias 5 68”, e eles passam,
Senhor, que penetre neles e que me sem saber como.
sejam claros e manifestos pela; vossa Falamos do tempo e mais do tempo,
misericórdia. dos tempos e ainda dos tempos. Anda­
A quem devo interrogar sobre estas mos constantemente com o “tempo”
questões ou a quem poderei com mais na boca: “Por quanto tempo falou este
fruto confessar a minha ignorância dò homem?” “Quanto tempo demorou a
que a Vós, a quem não molestam as fazer isto?” “Há quanto tempo não
minhas ânsias excessivamente inflama­ vejo aquilo?” “Esta sílaba tem o dobro
das no estudo das vossas Escrituras? de tempo daquela sílaba breve.” Dize­
Dai-me o que amo, pois Vós me conce­ mos e ouvimos semelhantes expres­
destes esta graça de amar. Dai-me, Pai, sões. Os outros compreendem-nos e
o que Vos peço, Vós que verdadeira­ nós compreendemo-los.
mente sabeis presentear os vossos fi­ São palavras muito claras e muito
lhos com dádivas valiosas. Dai-mo, ordinárias, mas ao mesmo tempo bas­
porque determinei conhecê-lo e • não tante obscuras. Exigem, por isso, uma
. descansarei enquanto não mo manifes­ nova análise.
tardes.
Peço-Vos por intermédio de Jesus 5 6 7 Sl 115, 1.
5 68 5/38,6.

23
O tempo é uma certa distensão

29. Ouvi dizer a um homem ins­ deixaria de haver tempo para medir­
truído que o tempo não é mais que o mos as suas voltas? Não poderiamos
movimento do Sol, da Lua e dos dizer que estas se realizavam em espa­
astros 5 69. Não concordei. Porque não ços iguais, ou, se a roda umas vezes se
seria antes o movimento de todos os movesse mais devagar, outras depres­
corpos? Se os astros.parassem e. conti­ sa, não poderiamos afirmar que umas
nuasse, a mover-se a roda do oleiro, voltas demoravam mais, outras
menos? Ou, ao dizermos isto, não fala­
3 69 Assim ò afirmava EratÓstenes: “O tempo é o mos nós no tempo, e não há nas nossas
curso do Sol”. Igual teoria se atribuiu a Platão no
livro Timeu. A este se refere o texto. (N. do T.) palavras sílabas longas e sílabas bre­
250 SANTO AGOSTINHO

ves, assim chamadas, porque umas res­ que o Sol desse vinte e quatro voltas
soam durante mais tempo e outras para completar um dia. Se fossem o
durante menos tempo? Fazei, meu movimento do Sol e a duração desse
Deus, com que os homens conheçam movimento a dar origem ao dia, este
por meio deste simples exemplo as não se poderia apelidar com tal nome,
noções comuns das coisas grandes e se o Sol perfizesse o seu giro completo
pequenas. no espaço de uma hora. Também o
Há estrelas e luzeiros no céu que não chamaríamos dia, se se passasse
servem de sinais, indicam as estações, tanto tempo estando o Sol parado,
as horas e os anos. Com certeza, exis­ quanto este costuma gastar no seu per­
tem. Mas nem eu afirmo que uma volta curso de uma manhã a outra manhã.
daquela roda de madeira represente Agora não procuro averiguar em
um dia, nem aquele sábio se atreverá a que consiste aquilo que apelidamos
dizer que esse giro não representa um dia, mas sim o que seja o tempo, uni­
determinado tempo. dade pela qual, medindo o trajeto do
Sol, diriamos que o completou em
30. Desejo saber a força e natureza menos de metade do espaço do tempo
do tempo com que medimos o movi­
costumado, se acaso o perfizesse no es­
mento dos corpos e dizemos, por paço de tempo quanto é aquele em que
exemplo, que tal movimento é duas decorrem doze horas. Comparando as
vezes mais longo no tempo do que
duas durações,«diremos que uma é sim­
outro qualquer. Prossigamos na inves­
ples e outra dupla, ainda que o Sol
tigação: chamamos dia não somente à
demorasse umas vezes o tempo sim­
demora do Sol sobre a Terra, pela qual
ples, outras vezes o dobro, no seu per­
se diferencia o dia e a noite, mas tam­
curso do Oriente ao Oriente 5 7 0.
bém, ao giro completo que o Sol des­
Ninguém me diga, portanto, que o
creve do Oriente ao Oriente. Por isso
tempo é o movimento dos corpos celes­
dizemos: • “Passaram-se tantos dias”.
tes. Quando, com â oração de Josué, o
Entendemos também as respectivas
Sol parou, a fim de ele concluir vitorio­
noites, sem enumerar à parte os seus
samente o combate, o Sol estava para­
espaços. Portanto, já que o movimento
do, mas o tempo caminhava 5 71. Este
do Sol e o seu percurso do Oriente ao
espaço de tempo foi o suficiente para
Oriente completam um dia, desejava
executar e para pôr termo ao combate.
saber se é o movimento que constitui o
Vejo portanto que o tempo é uma certa
dia, ou se é a duração em que se reali­
distensão. Vejo, ou parece-me que
za esse movimento, ou se são estas
vejo? Só Vós, Luz e Verdade, mo
duas coisas conjuntamente.
demonstrareis 5 7 2.
Se fosse o movimento do Sol que
constituísse o dia, feríamos um dia, 5 70 Os romanos mediam o dia dum nascer do Sol
ainda que o Sol completasse a sua car­ até ao outro nascer do Sol. Os judeus, ao contrário,
contavám-no dum pôr do Sol até ao outro !pôr do
reira num tão pequeno espaço de Sol. (N. do T.)
tempo quanto é o duma só hora. Se 571 Santo Agostinho pretende distinguir o tempo
fosse a duração do percurso do Sol que astronômico do tempo metafísico e do tempo psico­
lógico. Aqui refere-se ao astronômico. (N. do T.)
constituísse o dia, não haveria dia, se 5 72 O tempo psicológico é a impressão do antes e
dum nascer a outro nascer do Sol hou­ depois que as coisas gravam no espírito. Ê o senti­
mento de presença das imagens que se sucedem,
vesse a breve duração de tempo quanto sucederam ou hão de suceder, referidas a uma
é o duma só hora. Mas seria preciso anterioridade. (N. do T.)
CONFISSÕES XI ,251

24
O tempo não é o movimento dos corpos

31. Se alguém me disser que o lhante, nos outros casos. Se pudermos


tempo é o movimento dum corpo, observar de que lado vem o corpo que
mandar-me-eis estar de acordo? Não se move e para onde vai, ou se as suas
mandareis. Ouço dizer que os corpos partes se movem como um tomo,
só se podem mover no tempo. Vós poderemos dizer quanto tempo durou
mesmo o afirmais. Mas não ouço dizer de um lugar a outro o movimento deste
que o tempo é esse movimento dos cor­ corpo ou das partes.
pos. Não o dizeis. Quando um corpo Portanto, sendo diferentes o movi­
se móve, é com o tempo que meço a mento do corpo e a medida da duração
duração desse movimento, desde que do movimento, quem não vê qual des­
começou até acabar. Se o não vi prin­ tas duas coisas se deve chamar de
cipiar a mover-se e persevera de modo tempo? Num .corpo que umas vezes se
a não poder notar quando termina, só move com diferente velocidade e ou­
me é permitido medir a duração do tras vezes está parado,, medimos não
movimento desde o instante em que somente o seu movimento mas também
comecei a vê-lo até que o deixei de ver. o tempo que está parado. Dizemos:
Se o presencio por longo espaço, não “Esteve tanto tempo parado como a
posso dizer quanto tempo demorou, andar”, ou “esteve parado o dobro ou
mas somente que demorou muito o triplo do tempo em que esteve em
tempo, porque o “quanto” só por movimento”, e assim por diante. Ainda
comparação o podemos avaliar. Dize­ no cálculo exato ou aproximativo, cos­
mos, por exemplo, que “isto durou tuma dizer-se “mais” e “menos”.
tanto quanto aquilo”, que “isto durou Portanto, o tempo não é o=- movi­
o dobro daquilo” e de modo seme­ mento dos corpos.

25
“Senhor, iluminareis as minhas trevas”

32. Confesso-Vos, Senhor, que sei? Ai de mim, que nem ao menos sei
ainda ignoro o que seja o tempo. De o que ignoro!
novo Vos confesso também, Senhor — Eis-me diante de Vós, ó meu Deus,
isto não o ignoro —, que digo estas para Vos declarar que não minto.
coisas no tempo e que já há muito que Falo-Vos tal qual é o meu coração.
falo do tempo, e que esta longa demora “Vós acendereis a minha candeia, Se­
não é outra coisa senão uma duração, nhor Meu Deus, e iluminareis as mi­
de tempo. E como posso saber isto, se nhas trevas 5 73.”
ignoro o que seja o tempo? Acontecerá
talvez que não saiba exprimir o que 5 73 Sl 17,29.
252 SANTO AGOSTINHO

26
Nova teoria sobre o tempo
33. Acaso minha alma não Vos Mas nem assim afcançamos medida
engrandece ao declarar-Vos, com ver­ certa para o tempo, porque pode suce­
dade, que meço os tempos? Efetiva­ der que um Verso menos extenso ressoe
mente, meu Deus, eu meço-os, e não por maior espaço de tempo, se se pro­
sei o que meço. Meço o movimento nuncia mais lentamente do que outro
dum corpo com o tempo. Não poderei mais longo, se é proferido mais depres­
eu medir o tempo do mesmo modo? sa. O mesmo sucede aos poemas, pés e
Ser-me-á possível medir o movimento sílabas.
dum corpo enquanto ele perdura, e
quanto o corpo leva em chegar dum Pelo que, pareceu-me que o tempo
lugar a outro sem que meça o tempo não é. outra coisa senão distensão; mas
em que se move? de que coisa o seja, ignoro-o 5 7 4. Seria
Com que posso eu medir o tempo? para admirar que não fosse a da pró­
É com um espaço mais breve de tempo pria alma5 7 5. Portanto, dizei-me, eu
que calculamos outro mais longo, do Vo-lo suplico, meu Deus, que coisa
mesmo modo que medimos o compri­ meço eu, quando declaro indetermina-
mento dum caibro com o côvado? damente: “Este tempo é mais longo do
Igualmente vemos que, pela duração que aquele”, ou quando digo determi-
duma sílabq breve, se avalia a duma sí­ nadamente: “Este é duplo daquele
laba longa, e afirmamos que a duração
duma é dupla da outra. Assim, medi­ outro”? Sei perfeitamente que meço o
mos a extensão dum poema pelo núme­ tempo, mas não o futüro, porque ainda
ro de versos, a grandeza dos versos não existe. Também não avalio o pre­
pela dos pés, a dos pés pela duração sente, pois não tem extensão, nem o
das sílabas, as-sílabas longas pelas bre­ passado, que não existe. Que meço eu
ves, e não pelo número de páginas, então? O tempo que presentemente
pois deste modo mediriamos os espa­ decorre e não o que já passou? Assim
ços e não os tempos. Conforme as o tinha dito eu.
palavras passam e nós as pronuncia­
mos, dizemos: “Este poema é extenso, 5 7 4 Santo Agostinho não emprega o termo espa­
pois se compõe de tantos versos; os cial de extensão, para se referir ao tempo. Em vez
versos são compridos porque constam daquele vocábulo, usa distensão. (N. do T.)
5 7 5 No conceito de tempo há dois elementos: um
de tantos pés; os pés também são com­ transitório (sucessão) e outro permanente (duração).
pridos pois se estendem por tantas síla­ O tempo psicológico não é mais do que a percepção
bas; estas são longas porque são o dessa: sucessão contínua no campo da consciência
com aspecto de localização e de anterioridade. (N.
dobro das breves”. do T.)
CONFISSÕES XI 253

27
Uma experiência

34. Insiste, ó minha alma, e redobra suscetível de ser comensurada, de


esforçadamente de atenção: “Deus nos modo que possamos calcular a sua
ajudará, pois Ele nos criou e não longa ou breve duração. Nem podemos
fomos nós que nos criamos 5 7 6” afirmar que seja igual a alguma outra,
Fixa o olhar onde desponta o ama­ ou que a sua relação seja simples ou
nhecer da Verdade. Supõe, por exem­ dupla, nem estabelecer qualquer outra
plo, que a voz dum corpo começa a proporção. Logo que essa voz cesse,
ressoar, ecoa, continua a ecoar e cala- fica destituída de existência. Então, de
se. Fez-se silêncio. . . a voz esmore­ qhe modo poderá ser avaliada? Com
ceu. . . já não é voz. Era futura antes efeito, medimos os tempos, mas não os
de ecoar e não podia ser medida por­ que ainda não existem ou já passaram,
que ainda não existia, e agora também nem os que não têm duração alguma,
não é possível medi-la porque já se nem os que não têm limites. Não medi­
calou. Nesses instantes em que res­ mos, por conseguinte, os tempos futu­
soava era comensurável, porque então ros nem os passados, nem os presentes,
existia uma coisa suscetível de ser nem os que estão passando. Contudo,
medida. Mas mesmo nesses momentos medimos os tempos!
não era estável. Ia esmorecendo e pas­ 35. Este verso “Deus Creator om-
sava. Não seria por acaso esta instabi­ nium 5 7 7 ”, de oito sílabas, vai-se alter­
lidade ou movimento o que a tomava nando com sílabas breves e longas.
mensurável? Com efeito, ao esmore­ Quatro breves: a primeira, terceira,
cer, estendia-se por um espaço de quinta e sétima. Estas são simples,
tempo pretérito onde seria possível comparadas com as quatro longas: a
medi-la, já que o presente não tem segunda, quarta, sexta e oitava. Cada
nenhuma extensão. uma destas tem o dobro de tempo com
relação às outras. Assim o noto pelo
Porém, se então era possível medi- testemunho dos sentidos. Segundo o
la, suponhamos que outra voz come­ que estes me revelam, meço a sílaba
çou a ressoar e ainda ressoa numa longa pela breve e vejo que a longa
vibração contínua e de igual intensi­ contém duas vezes a breve. Mas quan­
dade. Meçamo-la enquanto ela ressoa, do soa uma após a outra, se a primeira
pois, desde que cesse de vibrar, já será é breve e a segunda é longa, como hei
pretérita e não a poderemos medir. de reter a breve?
Meçamo-la por conseguinte e calcule­ Como hei de aplicar a breve à longa
mos a sua duração. Todavia, ainda para medir esta, de modo a poder ave­
soa, e não a podemos avaliar senão riguar que a longa tem o dobro de
desde o seu princípio — em que come­ duração? Não é verdade que a longa
çou a ressoar — até o fim, quando só começa a ressoar no momento em
emudecer, porque todo o intervalo se que a breve tenha cessado?
mede desde um certo ponto até um li­
mite determinado. Por este motivo, a 5 7 7 "Deus Creator omnium”, “Deus, Criador de
voz que ainda não terminou não é tudo”. Pertence a um hino de Santo Ambrósio. Eis a
quantidade das suas sílabas: v-v-w-w-.A sílaba
5 7 6 Sl 61,9; 99, 3. longa (-) vale o dobro duma breve (v ). (N. do T.)
254 SANTO AGOSTINHO

Também não meço esta mesma síla­ dizemos que aquele silêncio durou o
ba longa enquanto é presente, pois só mesmo tempo que aquela voz, não diri­
me é possível medi-la depois de termi­ gimos o pensamento para a duração da
nada. E, uma vez terminada, passou. voz, como se ressoasse ainda, a fim de
Que medirei eu, portanto? Onde está a podermos avaliar no espaço de tempo
sílaba breve que me serve de medida? o intervalo dos silêncios? Com efeito,
Onde está a longa para eu a medir? quando, sem abrir a boca nem pronun­
Ambas ressoaram, voaram, foram pas­ ciar palavra, fazemos mentalmente
sando e já não existem. Meço-as e, poemas, versos ou qualquer discurso,
com a certeza que me pode dar a per­ ou medimos quaisquer movimentos,
cepção dum sentido, respondo confia- comparamo-los pelos espaços de
damente que no espaço de tempo uma tempo e achamos a relação duns com
é simples, outra é dupla. Nem posso outros como se os pronunciássemos
dizê-lo senão porque passaram e termi­ em voz alta.
naram. Não as meço, portanto, a elas, Se alguém quisesse soltar uma pala­
que já não existem, mas a alguma vra um pouco mais longa e regulasse
coisa delas que permanece gravada na com o pensamento a sua duração, esse
minha memória. delimitaria o espaço de tempo em
36. Em ti, ó meu espírito, meço os silêncio. Confiando-o à memória, co­
tempos! Não queiras atormentar-me, meçaria a produzir aquela palavra que
pois assim é. Não te perturbes com os soa, até atingir o limite proposto. Mas
tumultos das tuas emoções. Em ti, essa voz ressoa e ressoará, pois a parte
repito, meço os tempos. Meço a im­ que esmoreceu sem dúvida já ressoou,
pressão que as coisas gravam em ti à e o que resta soará ainda. Vai assim
sua passagem, impressão que permane­ emudecendo pouco a pouco, enquanto
ce, ainda depois de elas terem passado. a presente atenção do espírito vai lan­
Meço-a a ela enquanto é presente, e çando o futuro para o passado. Com a
não àquelas coisas que se sucederam diminuição do futuro, o passado cresce
para a impressão ser produzida: Ê a até ao momento em que seja tudo
essa impressão ou percepção que eu pretérito, pela consumição do futuro.
meço, quando meço os tempos. Por­ 5 7 8 É mérito de Santo Agostinho “ter posto em
tanto, ou esta impressão é os tempos relevo, de maneira definitiva, o caráter psicológico
do tempo, o seu pertencer à consciência” (J. M. Le
ou eu não meço os tempos 5 7 8. Blond, S. J., Les .Conversions de Saint Augustin,
Quando medimos os silêncios e Paris, 1950, p. 256). (N. do T.)

28
O tempo e o espírito

37. Mas como diminui ou se conso­ atenção para o domínio da memória.


me o futuro, se ainda não existe? Ou Quem, por conseguinte, se atreve a
como cresce o pretérito, que já não ~ negar que as coisas futuras ainda não
existe, a não ser pelo motivo de três existem? Não está já no espírito a
coisas se nos depararem no espírito expectação das coisas futuras? Quem
onde isto se realiza: expectação, aten­ pode negar que as coisas pretéritas já
ção e memória? Aquilo que o espírito não existem? Mas está ainda na alma a
espera passa através do domínio da memória das coisas passadas. E 'quem
CONFISSÕES XI 255

contesta que o presente carece de espa­ sente e por ela passa o que era futuro
ço, porque passa num momento? Con­ para se tomar pretérito. Quanto mais o
tudo, a atenção perdura, e através dela hino se aproxima do fim, tanto mais a
continua a retirar-se o que era presen­ memória se alonga e a expectação se
te. Portanto, o futuro não é um tempo abrevia, até que esta fica totalmente
longo, porque ele não existe: o futuro consumida, quando a ação, já toda
longo é apenas a longa expectação do acabada,. passar inteiramente para o
futuro. Nem é longo o tempo passado domínio da memória 5 7 9.
porque não existe, mas o pretérito Ora, o que acontece em todo o cân­
longo outra coisa não é senão a longa tico, isso mesmo sucede em cada uma
lembrança do passado. das partes, em cada uma das sílabas,
38. Vou recitar um hino qúe apren- em cada ação mais longa — da qual
di de cor. Antes de principiar, a minha aquele cântico é talvez uma parte — e
expectação estende-se a todo ele. em toda a vida do homem, cujas partes
Porém, logo que o começar, a minha são os atos humanos. Isto mesmo suce­
memória dilata-se, colhendo tudo o de em toda a história “dos filhos dos
que passa de expectação para o preté­ homens 580”, da qual cada uma das
rito. A vida deste meu ato divide-se em vidas individuais é apenas uma parte.
memória, por causa do que já recitei, e
5 79 A atenção na sua função de síntese liga o pas­
em expectação, por causa do que hei sado ao futuro. (N. do T.)
de recitar. A minha atenção eçtá pre­ 580 Sl 30,20.

29
A unidade do meu ser

39. Mas “porque a vossa miseri­ futuras e transitórias, mas com aquelas
córdia é superior às vidas581” confes- que existem no presente. “Com fervor
so-Vos que a minha vida é disten­ de espírito, dirijo-me para a palma da
são332. “A vossa destra recolheu- celestial vocação, onde ouvirei o cân­
me 5 8 3 ” por meio do meu Senhor, tico dos vossos louvores e contem­
Filho do Homem e Mediador entre plarei a vossa alegria39 *58 4”, que não
Vós, que sois uno, e nós, que,-além de conhece futuro nem passado.
sermos muitos em número, vivemos Agora, porém, “os meus anos decor­
apegados e divididos por muitas coi­ rem entre gemidos 58 5”. Vós Senhor,
sas. Assim me unirei por Ele a Vós, a consolação minha, sois etemamente
quem, por seu intermédio, fui ligado. meu Pai. Mas eu dispersei-me no
Desprendendo-me dos dias em que tempo, cuja ordem ignoro 58 6. Os meus
dominou em mim a “concupiscência”, pensamentos, as entranhas íntimas da
alcançarei a unidade do meu ser, minha alma são dilacerados por tumul­
seguindo a Deus Uno. 'Esquecerei as tuosas vicissitudes, até ao momento
coisas passadas. Preocupar-me-ei sem em que eu, limpo e purificado pelo
distração alguma, não com as coisas fogo do vosso amor, me una a Vós.
681 5/62,4.
582 Termo já usado por Plotirio, na forma grega 58 4 Flp 3, 12-14; Sl 15, 7; Sl 26, 4.
diástasis, no sentido de dilatação. (Enêades, III, 7.) 58 5 5/ 30, 11.
(N. do T.) 58 6 Alusão aò tempo vital ou biológico que se re­
683 5/17,36; 62,9. vela nos sinais do envelhecimento. (N. do T.)
256 SANTO AGOSTINHO

30
Para além dos tempos. . .
40. Estarei firme e imutável em que Deus, em nenhum tempo, criara
Vós na minha forma, na vossa verda­ coisa alguma? Que eles vejam que ne­
de. Não tolerarei as questões dos ho­ nhum tempo pode existir sem a cria­
mens. que, devido à enfermidade, casti­ ção, e deixem essa linguagem oca. Que
go da sua culpa, têm mais sede de estendam também o pensamento por
saber do que permite a sua capacidade. aquelas coisas que estão antes, e enten­
Perguntam: “Que fazia Deus antes de dam que Vós sois, antes de todos os
criar o céu e a terra?” Ou também: tempos, o eterno Criador de todos os
“Como lhe veio à mente a idéia de tempos. Estes não podem ser coetemos
fazer alguma coisa, já que antes nunca convosco, nem nenhumas outras cria­
fizera nada?” turas, ainda que haja algumas que
Concedei-lhes, Senhor, a graça de preexistem aos tempos 5 8 7.
pensarem bem no que dizem e de sabe­
rem que não se emprega o advérbio
“nunca”, onde não existe o tempo. Por 38 7 Tais são os anjos e os demônios, e, segundo
Santo Agostinho, também o céu e a terra (cf. liv.
conseguinte, dizer que “Deus nunca fi­ XII, cap. 12). A estas duas últimas criaturas parti­
zera nada” não é o mesmo que afirmar cularmente se refere. (N. do T.)

31
Deus conhece de modo diferente das criaturas

41. Que abismo, Senhor, meu Deus, sar qúe conheceis assim todos os segre­
o dos vossos profundos segredos, e dos futuros e passados. O vosso conhe­
quão longe deles me levaram as conse- cimento diverge muito do nosso. É
qüências dos meus delitos! Sarai os extraordinariamente mais admirável e
meus olhos para me alegrar com a incomparavelmente mais misterioso.
vossa luz ! Se realmente existe um espí­ Quando se canta uma melodia co­
rito dotado de tão grande ciência e nhecida, o afeto varia e o sentimento
presciência que conheça todo o passa­ espraia-se com a expectativa dos sons
do e futuro — como eu sei um cântico que estão para vir ou com a recorda­
dos mais vulgarizados — esse espírito ção dos que passaram. A Vós, que sois
é extraordinariamente maravilhoso e imutavelmente eterno, isto é, verdadei­
vertiginosamente estupendo. ramente eterno Criador das inteligên­
Com efeito, nada se lhe esconde nem cias, não sucede o mesmo. Assim
do passado nem dos restantes séculos, comó, sem variar de ciência, conhe­
assim como, quando entôo aquele cân­ cestes “no princípio o céu e a terra”,
tico, não se me escapa o número de assim também “criastes no princípio o
estrofes proferidas desde o início, nem céu e a terra588”, sem modificação al­
as que faltam para chegar ao termo. guma da vossa atividade.
Mas longe de mim pensar que Vós, Entoe vossos louvores aquele que
Criador do Universo, Criador das
almas e dos corpos, longe de mim pen­ 588 Gên 1,’ 1. 1I
CONFISSÕES XI 257

compreende, e quem não compreende são os humildes de coração ! Levantais


enalteça-Vos também! Oh! quão su­ os que caíram, e não caem aqueles de
blime sois! Contudo, a vossa morada quem Vós sois a altura!
LIVRO XII

A CRIAÇÃO

Este livro trata principalmente do problema da origem do


mundo, da interpretação alegórica da Bíblia e da existência da
matéria informe ou matéria “prima” de Aristóteles.
I — Santo Agostinho continua a explicação das pala­
vras: “No princípio criou Deus o céu e a terra”. Por
céu julga que se deve entender alegoricamente os
seres espirituais que gozam da vista de Deus; por
terra a matéria ainda privada de forma e donde vie­
ram os seres corpóreos dotados de formas várias
(1-15).
II — Como a profundeza das Escrituras é inexaurível,
Santo Agostinho confessa que não pretende conde­
nar outras maneiras verdadeiras de interpretar este
lugar do Gênesis (16-32).
I
1
A grande tortura

1. Senhor, na miséria desta vida, o destruirá? “Se Deus é por nós, quem
meu coração, agitado pelas palavras contra nós 589?” “Pedi e recebereis;
da vossa Sagrada Escritura, anda buscai e achareis; batei e abrir-se-vos-
profundamente inquieto. Por isso, na á. Com efeito, todo aquele que pede
maior parte dos casos, a pobreza da recebe; o que busca, encontra; e a
inteligência humana manifesta-se na quem bate, abrir-se-á 5 9 0.”
abundância de palavras, porque a Estas são as vossas promessas.
investigação é mais loquaz no buscar Quem temerá ser iludido, quando é a
do que no descobrir, o pedir demora própria Verdade quem promete?
mais do que o obter e a mão, batendo à
porta, cansa-se mais do que recebendo. 589 Ro-mi, 31.
Mas temos a vossa promessa, e quem a 590 Jo 16, 24;Mt 7. 7-8.

2
Dois céus e duas terras

2. A humildade da minha língua efeito, ainda que todo este mundo cor-
confessa a vossa excelsitude, porque póreo, cujo fundo é a nossa terra, não
fizeste o céu e a terra. Sim, criastes este seja inteiramente belo em todas as suas
céu que vejo e esta terra que piso e facetas, contudo, recebeu uma aparên­
donde tiraste a terra que em mim levo. cia de formosura, mesmo nos seus últi­
Onde está, Senhor, o céu do céu, do mos elementos. Não obstante, em
qual ouvimos dizer pela voz do Salmis- comparação daquele céu do céu, o céu
ta: “O céu do céu é do Senhor, mas da nossa terra é terra. Não é, portanto,
deu a terra aos filhos dos homens 5 913 *”? absurdo dizer que cada um destes dois
Onde está o céu que não vemos, ante o grandes corpos (o nosso céu e a nossa
qual todo este que vemos é terra? Com terra) é terra, se os compararmos àque­
le céu misterioso que pertence ao Se­
591 57 113,16. nhor e não aos filhos dos homens.

3
Trevas sobre o abismo

3. NãoJ admira, pois, que esta “terra zia-se a uma espécie de abismo pro-
fosse invisível e informe 592”. Redu- fundo onde não entrava luz, por não
592 Gên 1,2. ter nenhuma forma. Por isso, mandas-
262 SANTO AGOSTINHO

tesque se escrevesse: “As trevas esta­ mesmo modo que reina o silêncio onde
vam espalhadas sobre o abismo”. não há som. E que significa haver
Que são as trevas senão a ausência silêncio, senão o não haver som?
da luz? Se houvesse luz, onde é que ela Não fostes Vós, Senhor, que ensi­
poderia existir se não iluminasse nem nastes esta alma que a Vós se confes­
aclarasse a superfície da terra? E sa? Não me ensinastes, Senhor, que
quando a luz ainda não existia, o que antes de formardes e diferenciardes
era a presença das trevas, senão a esta matéria informe, nada existia, nem
ausência da luz? cor, nem figura, nem corpo, nem espí­
As trevas reinavam sobre o abismo, rito? Não era, porém, o nada absoluto.
porque a luz não brilhava sobre ele, do Era antes a massa informe sem figura.

4
A matéria informe

4. Que nome darei a esta matéria? mo são menos formosos que os outros
Com que sentido e de que modo pode­ corpos superiores, tão brilhantes e tão
rei dá-la a conhecer a inteligências cur­ belos!
tas, a não ser por meio de algum vocá­
bulo já usado? E pode acaso Então, por que não hei de admitir
descobrir-se, em todas as partes da esta matéria informe comodamente
terra, alguma coisa mais parecida com manifestada aos homens pelo nome de
essa deformidade total do que a terra e “terra invisível e ordenada” que crias­
o abismo? Na verdade, em razão do tes sem beleza, para dela fazerdes um
seu grau ínfimo de ser, a terra e o abis­ mundo belo?

5
Sua natureza

5. Quando o nosso pensamento, ao ria corpórea; nem mesmo forma sensí­


procurar saber o que os nossos senti­ vel, porque o que se vê e se sente não
dos atingem a respeito desta matéria pode ser invisível e informe”; quando o
informe, se responde a si mesmo: “Não pensamento humano se diz estas coi­
é uma forma inteligível como a vida sas, procura conhecê-la, ignorando-a,
nem como a justiça, porque ela é maté­ ou ignorá-la, conhecendo-a?

O conceito da matéria informe

6. Senhor, se pela boca e pela pena pessoas que também nada entendiam.
Vos confessar tudo o que acerca desta Imaginava-a sob numerosas formas
matéria me ensinastes, tenho a dizer- diversas, sem conseguir concretizá-la
Vos que não percebia nada quando na imaginação. O meu espírito revol­
outrora ouvia pronunciar este nome a via em imensa desordem forma[s he­
CONFISSÕES XII 263

diondas e horríveis. Mas, enfim, sem­ mutabilidade, pela qual deixam de ser
pre eram formas. Chamava informe a o que tinham sido, para começarem a
essa matéria não porque não tivesse ser o que não eram. Suspeitei de que
forma, mas por ser tal que, se me apa­ esta transição duma forma para a
recesse assim tão insólita e imprópria, outra se fazia por meio de qualquer ser
ela afastaria os meus sentidos e pertur­ informe, e não pelo nada absoluto.
baria a minha fraqueza de homem. Mas o que eu desejava era saber, e
O que eu imaginava era informe, não suspeitar. Se a minha voz e a
não por carência de toda forma, mas minha pena Vos confessassem todos os
por comparação com as formas mais nós que nesta questão me desatastes,
belas. Mas a verdadeira razão persua­ quem dos meus leitores seria capaz de
dia-me a que, se quisesse imaginar um me compreender? Por isso, o meu
coração não cessará de Vos honrar,
ser informe, o abstraísse de todas as com um cântico de louvor por tudo
minudências de forma. Não me era aquilo que não consigo exprimir com
possível, porque mais depressa julgava palavras.
como inexistente o que não tinha A própria mutabilidade das coisas
forma do que concebia um meio-termo mudáveis é capaz de tomar todas as
entre a forma e o nada, que não fosse formas em que se transfiguram as coi­
nem forma, nem nada, mas um ser sas mudáveis. O que é ela? Um espíri­
informe próximo do não-ser. to? Um corpo? Uma espécie de espí­
A minha inteligência, então, cessou rito ou de corpo? Se pudéssemos dizer:
de interrogar a imaginação cheia de “um certo nada, que é e não é” — eis o
imagens de formas corpóreas que ela, a nome que lhe daria. Mas tinha de exis­
seu arbítrio, ia mudando e variando. tir de qualquer maneira, para poder
Fixei a atenção nos mesmos corpos, tomar estas formas visíveis e comple­
analisando mais profundamente a sua xas.

7
A criação do céu e da terra

7. Se a mutabilidade existia, donde Sabedoria que procedeu de vossa subs­


provinha senão de Vós, de quem todas tância, criastes alguma coisa do nada.
as coisas recebem o ser, de qualquer Criastes, sim, o céu e a terra, sem os
modo que elas sejam? Tanto mais tirardes de Vós. Doutro modo, seriam
longe estão de Vós quanto mais dife­ iguais ao vosso Filho Unigênito, e, por
rentes são de Vós. Porém, tal distância isso mesmo, iguais também a Vós.
não é espacial. Ora, de modo nenhum seria justo que
Vós, pois, Senhor, que não sois fosse igual a Vós o que não é da vossa
umas vezes uma coisa, e outras outra, substância.
mas o mesmo, o mesmo, sempre o Nada havia, fora de Vós, com que
mesmo, o “Santo, Santo, Santo, o os pudésseis criar, ó Trindade Una e
Senhor” Deus onipotente 593, Vós, no Unidade Trina. Do nada, pois, fizestes
princípio que procede de Vós, e na o céu e a terra, àquele, grande, e a esta,
pequena, porque sois onipotente e bom
593 Is 6, 3. para criardes tudo bom: um céu gran­
264 SANTO AGOSTINHO I

de e uma terra pequena. Só Vós exis- de Vós, outra perto do nada; uma que
tíeis, e nada mais. Deste nada fizestes só a Vós tem como superior, outra que
o céu e a terra, duas coisas: uma perto nada tem inferior a ela.

8
O princípio do mundo visível

8. Mas este “céu do céu 59 4” perten- este céu corpóreo, este firmamento que
ce-Vos, Senhor. A terra que destes aos separa umas águas das outras, por Vós
filhos dos homens para a verem e toca­ criado, no segundo dia, depois da luz,
rem não era como agora a vemos e quando dissestes: “Faça-se, e assim se
tocamos. Era invisível e informe. Era fez”.
um abismo sobre o qual não havia luz. Chamastes céu ao firmamento. Cha­
As trevas estendiam-se sobre o abis­ mastes céu ao céu desta terra e deste
mo 59 5, isto é, mais do que se estives­ mar que criastes no terceiro dia, dando
sem no abismo. Sim, porque este abis­ uma forma visível à matéria informe
mo das águas, agora visíveis, tem que tínheis criado antes de haver dia.
ainda nas suas entranhas uma espécie Já anteriormente a este, tínheis criado
de luz, de algum modo sensível aos outro céu, que era o céu do céu, porque
peixes e aos animais que se arrastam no princípio criastes o céu e a terra.
Porém, esta mesma terra a que destes o
no fundo. Mas tudo isto era um quase-
nada, pois que ainda era absoluta­ ser era matéria informe, por ser invisí­
mente informe; porém já era um ser vel e informe e por se estenderem as
capaz de ter forma. trevas sobre o abismo. Desta terra
invisível e informe, deste caos, deste
Criastes, portanto, Senhor, o quase-nada, fizestes tudo aquilo de que
mundo, da matéria informe. Criastes é formado (ou não) o mundo mutável
do nada este quase-nada, donde, de­ onde aparece esta mobilidade, na qual
pois, fizestes as grandes coisas, que se pode sentir e medir o tempo. Este é
nós, os filhos dos homens, admiramos. feito das mudanças das coisas, en­
De fato, é verdadeiramente admirável quanto variam e se transformam as
59 4 Sl 113, 16. formas cuja matéria, como já disse, é
59 5 Gên 1,2. terra invisível.

9
O caos transcende o tempo

9. E por isso o Espírito, Mestre do dizer, uma criatura intelectual, que,


vosso servo 59 6, quando recorda que apesar de não ser coeterna convosco, ó
no princípio criastes o céu e a terra, Trindade, participa contudo da vossa
cala-se perante o tempo. Fica em silên­ eternidade. Conserva-se totalmente
cio perante os dias. O céu do céu, cria­ imóvel pela doçura que sente em Vos
do por Vós no princípio, é, por assim contemplar na suprema felicidade.
59 6 Moisés, o autor inspirado do Gênesis. (N. do Sem movimento nenhum desde que foi
T.) criada, permanece sempre unida a Vós,
CONFISSÕES XII 265

ultrapassando, por isso, todas as volú­ passa; e onde nada passa, não pode
veis vicissitudes do tempo. haver dias nem sucessão de espaços de
Porém, este caos, esta terra invisível tempo!
e informe não foi numerada entre os 59 7 Quer dizer: Moisés, no Gênesis, ao descrever,
por dias, a criação do universo, em nenhum deles se
dias 59 7. Onde não há nenhuma forma refere expressamente à criação desta matéria infor­
nem nenhuma ordem, nada vem e nada me. (N. do T.)

10
Invocação à Verdade

10. Ó Verdade, Luz do meu cora­ Agora, ardente e anelante, volto à


ção, não me falem as minhas trevas. tua frente. Ah! ninguém me impeça;
Por elas me deixei escorregar, e obscu- .beberei, e assim viverei. Oxalá eu não
reci-me. Mas, mesmo no fundo desse seja a minha própria vida! Por minha
abismo, sim, desse abismo, amei-Vos. culpa, mal vivi; causei-me a morte. Em
“Errei, mas recordei-me de Vós. Ouvi Vós revivo. Falai, conversai comigo.
atrás de mim a vossa voz” a exortar- Acreditei nos vossos Livros, cujas
me a que voltasse. Porém dificilmente palavras encerram grandes mistérios.
a podia ouvir, por causa do tumulto
dos turbulentos 5 9 8. 598 Sl 118,176.

11
Revelastes-me. . .
11. Já dissestes, Senhor, com voz que se afasta de Vós, Ser Supremo,
forte, aos meus ouvidos interiores, que para se rebaixar ao menos ser, porque
sois eterno e que só Vós possuís a tal movimento é delito e pecado.
imortalidade 599, porque não mudais Dissestes-me que nenhum pecado
sob o aspecto de forma ou de mqvi- Vos prejudica ou perturba a ordem do
mento. A vossa Vontade não varia vosso império no sumo como no ínfi­
com o tempo, porque uma vontade mo. Vejo claramente esta verdade na
mutável não pode ser imortal. Vejo vossa presença. Peço-Vos que a veja
claramente esta verdade na vossa pre­ cada vez mais claramente e que, prote­
sença. Peço-Vos que a veja cada vez gido pelas vossas asas, persista com
mais claramente e que, debaixo das sobriedade neste conhecimento.
vossas asas, persista com sobriedade Ainda dissestes, com voz forte, aos
neste conhecimento. meus ouvidos interiores, que aquela
12. Outrossim, dissestes, Senhor, criatura cujo deleite sois Vós também
com voz forte, aos meus ouvidos inte­ não é coetema convosco. Dissestes que
riores, que todas as naturezas e subs­ ela goza de Vós em castidade firme e
tâncias que não são o que Vós sois, perseverante; que nunca mostra em
mas existem, foram criadas por Vós. parte nenhuma a sua mutabilidade
Só não veio de Vós o que não existe, natural; que Vos tem sempre presente e
bem como o movimento da vontade se conserva sempre unida a Vós com
todo o afeto; que não tem nada a espe­
599 ITim 6, 16. rar do futuro, nem fatos passados a
266 SANTO AGOSTINHO

recordar; que, enfim, não varia com as Vossa Casa, que nunca se afastou de
vicissitudes nem se distende no tempo. Vós, apesar de não ser eterna como
Se tal criatura existe, oh! como é Vós, não sofre as vicissitudes do
feliz por estar unida à vossa Felici­ tempo, pelo fato de Vos estar inces­
dade, tendo-Vos como seu eterno habi- sante e indefectivelmente unida!
tador e iluminador! Nada encontro Vejo claramente esta verdade na
que mais naturalmente se possa cha­ vossa presença. Peço-Vos que a veja
mar “céu do céu 600 que pertence ao cada vez mais claramente, e que, prote­
Senhor”, do que a vossa Habitação, gido pelas vossas asas, persista com
que contempla as vossas delícias sem humildade neste conhecimento.
nenhum defeito que a arraste para 14. Não sei que informidade vejo
outra parte. Ela é alma pura, entranha- nas mudanças das últimas e ínfimas
damente unida, por um laço de paz, criaturas. E quem mo poderá dizer
aos Santos Espíritos, cidadãos da senão aquele que, com suas imagina­
vossa cidade, situada no céu que está ções, divaga e se revolve nas frivoli­
acima do nosso céu. dades do coração? 602 Quem, senão
13. Se a alma que peregrinou longe este, me ousará dizer que a informi­
de Vós já teve sede de Vós; “se as .suas dade poderia significar as vicissitudes
lágrimas foram para ela o pão, quando do tempo, contanto que todas as for­
todos os dias lhe dizem: ‘onde está o mas diminuíssem e se consumissem,
teu Deus 601 ?’ ”; se pede e busca uni­ ficando só esta massa informe, que faz
camente a graça de habitar em vossa com que todas as coisas se mudem e se
casa todos os dias durante toda a sua transformem ora numa ora noutra
vida. E quem é a sua vida senão Vós? forma? Esta hipótese é absolutamente
Que são os vossos dias senão a vossa impossível, porque não há tempo sem
eternidade, ou que são os vossos anos variedade de movimentos; nem há
que não acabam em razão de serdes variedade alguma onde não há nenhu­
sempre o mesmo? Essa alma com­ ma forma.
preenda, se pode, como é que sois eter­
no, inteiramente superior a todos os
tempos. 602 Para melhor compreensão desta passagem,
veja-se liv. XII, cap. 6, onde se descreve como
600 Sl 113, 16. Santo Agostinho imaginava a matéria informe sob
601 5741,3.4.11. “formas hediondas e horríveis”. (N. do T.)

12
Duas criaturas prescindem do tempo

15. Enquanto mo permitistes, medi­ sofrer intervalo de mudança alguma,


tei, ó meu Deus, nestas verdades. ainda que seja mutável por natureza. A
Durante elas, excitastes-me a bater à outra é tão informe, que não pode
porta, e abristes-ma. Ora, após essas mudar de forma nem no movimento
reflexões, encontrei duas criaturas que nem no estado de repouso. É-lhe
não estão sujeitas ao tempo, apesar de impossível estar sujeita ao tempo. Mas
nenhuma delas Vos ser coetema; uma não permitistes que ficasse informe
de tal modo é formada que goza da porque, antes de qualquer dia, criastes
vossa eternidade e imutabilidade, sem no princípio o CÉU e a TERRA, as
nunca cessar de Vos contemplar nem duas criaturas a que me referia.
CONFISSÕES XII 267

Mas “a terra era invisível, desorga­ nada. Desta matéria informe é que nas­
nizada; e as trevas cobriam a face do ceríam estoutro céu, e estoutra terra
abismo”. Estas palavras insinuam a visível e organizada, esta água crista­
idéia de matéria informe 603, para se lina e, enfim, tudo o que na criação do
instruírem gradualmente aqueles que mundo foi feito em dias sucessivos,
não podem conceber que uma coisa como se recorda na Bíblia. Com efeito,
possa ser privada de toda espécie de todas estas criaturas estão de tal modo
forma, sem estar contudo reduzida a constituídas que, devido às mudanças
ordenadas dos movimentos e das for­
603 O texto latino diz informidade, em: vez de mas, se realizam nelas alternativas dos
matéria informe. (N. do T.) tempos.

13
Interpretação das primeiras palavras bíblicas

16. “No princípio criou Deus o céu massa informe, sem aquela alternativa
e a terra; a terra, porém, era invisível e de tempo que costuma fazer com que
desorganizada; e as trevas cobriam a as coisas tenham ora isto, ora aquilo,
face do abismo 60 4.” porque onde não há forma, também
Quando ouço, ó meu Deus, estas não existe “isto e aquilo”.
palavras da Escritura, e noto que não Sem mencionar o dia, diz a vossa
se faz referência ao dia em que os Escritura: “No princípio criou Deus o
criastes, interpreto-as deste modo: “o céu e a terra”. Sobre estes dois elemen­
céu do céu” é o céu intelectual, onde a tos, “céu e terra”, o primeiro formado
inteligência conhece simultaneamente desde o princípio, e o segundo inteira­
e não por partes, nem por enigmas ou mente informe, eis a minha opinião:
como em espelho, mas inteiramente, céu significa o céu do céu; e terra quer
com toda a clareza, face a face 60 5. dizer a terra invisível e desorganizada.
Conhece, não agora uma coisa, logo Por isso a Escritura ajuntou imediata­
outra, mas, como já disse, simultanea­ mente a que terra se referia. Já ao nar­
mente, sem vicissitude de tempo. A rar que no segundo dia foi criado o fir­
terra invisível e desorganizada é a mamento que se chama céu 60 6, dá a
entender a que céu se referia antes,
60 4 Gên 1, 1. quando não mencionou o dia.
60 5 Nestas expressões nota-se a influência de São
Paulo (1 Cor 13, 12), que usa semelhante linguagem
para descrever a felicidade dos eleitos. (N. do T.) 60 6 Gên 1, 1.

14
A profundeza da Escritura

17. Oh! que admirável profundeza temor de respeito e temor de amor!


das vossas palavras! Como a sua face Odeio com veemência os seus inimi­
nos acaricia como as crianças! Oh! gos. Oh! Se os matásseis com uma es­
que admirável profundeza, ó meu pada de dois gumes 60 7, para que
Deus, que admirável profundeza! Ate-
moriza-nos lançar os olhos para ela: 60 7 Sl 149, 6; Eclo 21,4.
268 SANTO AGOSTINHO

desaparecessem! O meu desejo era vê- sés, escreveu estas palavras, não quis
los morrer a si mesmos, a fim de vive­ de maneira nenhuma dar-lhes esse sen­
rem para Vós! tido com que o interpreta, mas estoutro
Outros, então, apresentam-se não que nós lhe damos”.
como críticos, mas como panegiristas Eis, ó Deus de todos nós, a resposta
do Gênesis. Dizem eles: “O Espírito de que dou a esses intérpretes, tomando-
Deus, que-, por meio de seu servo Moi­ Vos por Árbitro.

15
Em discussão
18. Atrever-vos-eis a apontar como falso que toda criatura revestida de
falso o que a Verdade, com voz clara, forma, ou toda matéria capaz de forma
comunica ao ouvido da minha alma, só existem por Aquele que, por ser o
acerca da verdadeira- eternidade do Ente supremo, é soberanamente bom?
Criador? Direis que a sua substância “Também não”, dizem eles. Então, que
nunca varia com o tempo nem jamais a negais? Talvez o que afirmei da exis­
sua vontade prescinde da sua substân­ tência duma criatura sublime unida ao
cia? Deste princípio se deduz que Deus Deus verdadeiro e verdadeiramente
não quer ora isto, ora aquilo, mas que eterno, por um amor tão puro? Essa,
o que uma vez quis, simultaneamente e apesar de lhe não ser coeterna, não
para sempre o quer. Não pode querer pode separar-se dele nem derivar para
repetidas vezes nem querer agora uma a variedade ou vicissitude do tempo,
coisa, e logo outra, nem querer depois mas descansa apenas na contemplação
o que antes não queria ou deixar de da sua verdade. Essa criatura, aman-
querer o que queria, porque tál vonta­ do-Vos quanto Vós lhe mandais, não
de, sendo mutável, não é eterna; ora, o se afasta de Vós para si mesma, porque
nosso Deus é eterno. Vós, ó meu Deus, lhe mostrais a face e
Mais ainda. Essa voz que fala ao ou­ a saciais. Ela é a casa de Deus, man­
vido interno da minha alma declara- são que não é terrena nern sequer for­
me que a expectação das coisas futuras mada de matéria celeste ou corpórea,
passará a ser intuição, quando se cum­ mas espiritual e participante da vossa
prirem. A sua intuição transformar- eternidade, porque permanece eterna­
se-á em memória, depois de se realiza­ mente imaculada. Vós a fundastes
rem. Mas todo o pensamento que pelos séculos dos séculos. Fixastes-lhe
assim varia, é mutável, e o mutável uma ordem que não passará ja­
não é eterno; ora, o nosso Deus é mais608. Porém, essa habitação não
eterno. Vos é coetema, ó meu Deus, pprque
Condensando e reunindo todas estas teve princípio. Foi criada. '
verdades, deduzo que o meu Deus, o 20. É certo que antes dela não
Deus eterno, não criou o mundo por descobrimos o tempo, porque a sabe­
um novo ato de vontade, e que nem a doria foi criada anteriormente a todas
sua ciência pode sofrer alguma transi­ as coisas. Não me refiro, é claro, àque­
ção. la Sabedoria de que Vós, ó meu Deus,
19. Que me respondeis, ó contradi- sois Pai, e que é coetema convosco,
tores? São falsas estas coisas? “Não”,
respondem. Então quê? Porventura é 608 57 148,6.
CONFISSÕES XII 269

igual a Vós, pela qual todas as coisas bilidade que a entenebreceria e enrege-
são criadas, e em cujo Princípio fizes­ laria, se não Vos estivesse unida por
tes o céu e a terra, mas simplesmente a um grande amor, brilhando sempre
esta sabedoria criada, quer dizer, a como a luz do meio-dia, e refervendo
esta natureza intelectual que é luz pela ao contato do calor que de Vós recebe.
contemplação da luz, e é chamada Ó casa resplandecente e pura, amei
também sabedoria, ainda que criada. a tua beleza e o lugar da habitação da
Porém, a diferença que há entre a glória do meu Senhor, que te criou e
Luz que ilumina e a luz iluminada é possui. Por ti suspiro no meu exílio,
tão grande como a que separa a Sabe­ pedindo ao teu Criador que também
doria criadora da sabedoria criada, ou me possua dentro de ti, porque tam­
como a que distingue a Justiça justifi- bém a mim me criou. Andei errante
cante da justiça feita em nós pela justi­ como a ovelha desgarrada, mas espero
ficação. Nós somos também chamados ser reconduzido, para dentro de ti, aos
a vossa Justiça. Diz um vosso servo: ombros d’Aquele que é o meu Pastor e
“Para que em Cristo nos tomemos a teu arquiteto.
justiça de Deus 609”. Portanto, antes 22. Que me respondeis, ó contradi­
de tudo, criastes uma sabedoria criada, tares e meus interlocutores? Que me
espírito racional e intelectual que habi­ podeis responder, se acreditais em
ta na vossa casta Cidade. Moisés — o piedoso servo de Deus —
Esta última é nossa mãe, que está lá e nos seus Livros, oráculos do Espírito
no alto, livre e eterna nos céus610, e Santo? Não é esta a casa de Deus, que,
em que céus senão nos céus dos céus apesar de não ser coetema com Deus,
que Vos louvam, por serem o céu do é, a seu modo, eterna nos céus, onde
céu que pertence ao Senhor? Se não procurais as vicissitudes dos tempos,
encontramos o tempo antes dessa sabe­ mas em vão, porque as não podeis
doria, por ter sido também criada encontrar? Ela transcende toda a ex­
antes de todas as coisas e preceder a tensão e todo o espaço volúvel do
criação do tempo, então é evidente que tempo. A sua felicidade consiste em
existe antes dela a eternidade do Cria­ estar sempre unida a Deus.
dor. Deste recebeu a origem, não no “Ê certo”, dizem eles.
tempo, porque ainda não existia, mas Então, qual destas verdades procla­
na sua própria condição de ente cria­ madas ante o meu Deus pelo meu
do. coração, quando escutava no seu inte­
rior a voz dos seus louvores, podeis
21. A sabedoria criada procede, apontar como falsa? O ter afirmado
portanto, de Vós, ó meu Deus, apesar que a matéria era informe, e que nela
de ser inteiramente diferente de Vós e não podia haver ordem, porque não
de ser doutra natureza. Não encon­ tinha forma? Mas olhai que onde não
tramos o tempo, não só antes dela, mas havia ordem também não podia haver
nem sequer nela, porque é suscetível de vicissitude de tempo. Mas este quase-
contemplar etemamente a vossa face, nada, visto não ser um nada absoluto,
sem jamais dela se apartar, tomando- provinha, é certo, d’Aquele de quem
se, assim, inacessível a toda variação. nasce tudo o que de qualquer modo
Contudo, é-lhe inerente a mesma muta- existe.
609 2 Cor 5, 21. “Também te não contestamos isso”,
610 Gál4,26. respondem eles.
270- SANTO AGOSTINHO

16
Adversários rejeitados

23. Quero, ó meu Deus, conversar Esposo, as suas castas e perpétuas delí­
um pouco, na vossa presença, só com cias, a firme alegria, numa palavra,
aqueles que reconhecem como verda­ todos os bens inefáveis, porque sois
deiras todas estas iluminações que a único, sumo e verdadeiro Bem.
vossa Verdade não esconde ao meu Não me apartarei de Vós, enquanto
espírito. me não reunirdes todas as partes do
Os outros, que a negam, ladrem meu ser, dispersas e deformadas, para
para aí quanto quiserem, até enrouque- que assim, ó meu Deus e misericórdia
cerem. Pela minha parte, esforçar-me-
minha, me conformeis e estabeleçais
ei por persuadi-los a que acalmem e na paz desta mãe tão amada (a Jerusa­
dêem acesso, em seus corações, às vos­
lém celeste), onde estão as primícias do
sas palavras. Se recusarem e me repeli­ meu espírito e donde me vêm estas
rem, peço-Vos, ó meu Deus, que não
certezas.
sejais surdo aos meus rogos. Falai ao
meu coração a linguagem da Verdade, A todos aqueles que não têm como
pois só Vós assim falais. Deixá-los-ei falsas todas estas verdades, e, pelo
fora a soprar o pó, e a levantar a terra contrário, as veneram conosco, ele­
contra os próprios olhos. Entrarei no vando ao cume da autoridade a vossa
recinto do coração e cantar-vos-ei Sagrada Escritura, ditada (em parte)
hinos de amor, soluçando inefáveis por Moisés, e que não obstante nos
gemidos, neste lugar do meu desterro, contradizem nalguns pontos, dirijo
recordando Jerusalém, minha Pátria e estas palavras: ó meu Deus, sede Vós o
Mãe, e para Vós, que sois o seu Rei, o árbitro entre as minhas confissões e as
seu Iluminador, o seu Pai, Defensor, suas contradições.

17
Opiniões diversas
24. Dizem eles: “Apesar de as tuas exprimir precisamente o que nós afir­
afirmações serem verdadeiras, contu­ mamos. Foi isso o que ele declarou
do, não era isso o que Moisés queria com tais palavras.”
significar quando disse, por inspiração Isso, o quê?
do Espírito Santo: ‘no princípio criou “Com as palavras céu e terra quis
Deus o céu e a terra 611 ’. Com o nome primeiramente significar, numa expres­
céu não quis exprimir essa criatura são breve e resumida, todo este mundo
espiritual ou intelectual que sempre visível, para depois classificar, pela
contempla a face de Deus; nem com o enumeração dos dias, ponto por ponto,
vocábulo terra quis significar a maté­ tudo o que ao Espírito Santo agradou
ria informe”. enunciar assim. Moisés dirigia-se a ho­
Então? mens que constituíam um povo rude e
“Moisés”, respondem eles, “quis carnal; por isso julgou oportuno reve­
lar-lhes só as obras visíveis de Deus,”
611 Gên 1, 1. Portanto, os meus adversários con­
CONFISSÕES XII 271

cedem-me que “por terra invisível e A matéria, comum a todas as coisas


desorganizada e tenebroso abismo” — visíveis e invisíveis, até então informe,
os princípios de que foram sucessiva­ mas certamente suscetível de forma,
mente criadas as coisas visíveis que donde se fariam o céu e a terra, isto é,
todos conhecem — posso, sem perigo as duas criaturas já formadas, a invisí­
de contradição, entender a matéria vel e a visível, foi designada pelas
informe de que falei. expressões de “terra visível e desorde­
25. E se alguém disser que este caos nada”, e “trevas sobre o abismo”. Há
e esta informidade da matéria foram apenas uma distinção a fazer: por
sugeridos primeiramente sob o nome “terra invisível e desordenada” enten­
de céu e terra, por se ter fundado e de-se a matéria corporal antes de' ser
qualificada pela forma; e “por trevas
aperfeiçoado nestes dois elementos o
sobre o abismo” entende-se a matéria
mundo visível, que se costuma desig­
espiritual antes de Deus lhe reprimir
nar por céu e terra, com todas as natu­
aquela imoderação fluida e antes de a
rezas que nele tão claramente apare­
iluminar com a sabedoria.
cem? 26. Outro, se quiser, ainda pode
E se alguém propuser a hipótese de defender esta opinião: as palavras “céu
que as naturezas visíveis (da terra) e as e terra”, que se lêem no Gênesis, quan­
invisíveis (do céu) não se chamam do diz: “No princípio criou Deus o céu
impropriamente céu e terra, e que, por­ e a terra”, não designam as naturezas
tanto, todos os seres criados por Deus invisíveis ou visíveis já perfeitas e for­
na Sabedoria, isto é, no Princípio, madas, mas sim matéria informe, sig- .
estão compreendidos igualmente nestes nificada nesses termos. Essa matéria
dois vocábulos? Porém, como não seria o princípio dos seres que se ha­
foram feitos da mesma substância de viam de formar e criar, porque estes já
Deus, mas tirados do nada, e porque nela existiam confusamente, se bem
não são a mesma coisa que Deus, que ainda não diferenciados pelas qua­
todos estão sujeitos a uma certa muta- lidades e formas. Ora, esses seres dis­
bilidade, quer permaneçam como a postos por suas ordens chamam-se céu
eterna mansão de Deus, quer mudem, e terra: uma, criatura corporal, e o
como a alma e o corpo do homem. outro, espiritual.

18
Interpretações legítimas

27. Ouvidas e consideradas todas esquecer os dois preceitos em que o


estas teorias, quero evitar questões de nosso Mestre resumia toda a lei e os
palavras que para nada aproveitam, profetas 613. Ora, se eu confesso arden­
senão para confusão dos ouvintes. temente esses preceitos, ó meu Deus,
Porém a Lei é boa para edificação, se Luz dos meus olhos na escuridão, que
se usa legitimamente, porque a Lei tem me interessa que se dêem sentidos dife­
por fim a caridade nascida dum cora­ rentes àquelas palavras, se todos são
ção puro, duma consciência reta e verdadeiros? Sim, que me interessa que
duma fé não fingida 612. Nem se devem outro tenha uma opinião diferente da
612 1 77m 1, 5, 8. 613 Mt22, 40.
272 SANTO AGOSTINHO

minha, se julga ser esse o verdadeiro Escritura conforme a idéia daquele que
pensamento do Escritor61 4? as escreveu, que mal há em interpretá-
Nós todos os que o lemos esforça- las noutro sentido, se Vós, ó Luz de
mo-nos por indagar e compreender o todas as mentes sinceras, Iho mostrais
pensamento do autor. Quando o temos como verdadeiro? Que mal há nisso, sé
por verídico, não ousamos imputar- o autor que lemos só teve em vista a
lhe, como dito por ele, nada do que verdade, apesar de não ter dado ao
sabemos ,ou julgamos ser falso. Con­ texto este segundo sentido? 61 5
tanto que cada um se esforce por inte- 61 5 Santo Agostinho, no livro XIII das Confissões,
pretar bem as passagens da Sagrada interpretará alegoricamente os primeiros versículos
do Gênesis. Neste livro XII procura fazer exegese
61 4 De Moisés, a quem Santo Agostinho atribui a literal, o que nem sempre consegue, fugindo por
autoria do Gênesis. (N. do T.) vezes para a exegese alegórica". (N. do T.)

19
Interpretações únicas

28. É verdade, Senhor, que criastes frer as alternativas do tempo. É verda­


o céu e a terra. Ê verdade que o Princí­ de que a matéria, de que se faz uma
pio é a vossa Sabedoria em que crias- coisa, pode já ter, se assim nos pode­
. tes todas as coisas 61 6. mos exprimir, o nome do objeto que
É também verdade que este mundo dela resulta, e portanto também se
visível se compõe de duas grandes par­ pode chamar “céu e terra” àquela
tes: “o céu e a terra” — breve síntese mátéria informe donde foram criados o
de todas as naturezas criadas e consti­ céu e a terra. É verdade que, de todas
tuídas. Ê ainda verdade que tudo o que as coisas revestidas de forma, nada se
é mutável apresenta ao nosso pensa­ aproxima mais do informe do que a
mento o conceito duma massa informe, terra e o abismo.
capaz de tomar forma, de se mudar ou É verdade que Vós, origem de todas
de se transformar. as coisas 61 7, fizestes não só o que foi
É verdade que um ser de si mutável, criado e formado, mas também o que é
se está inerente a uma forma imutável, criável e formável. Finalmente, é ver­
não se pode mudar nem submeter-se ao dade que tudo o que se forma do infor­
tempo. Ê verdade que a massa informe, me e, ao princípio, informe, e só depois
que afinal é quase o nada, não pode so- é que recebe forma.
6’ 6 Sl 103,24. 61 7 1 Cor 8, 6.

20
Interpretações arbitrárias

29. A todas estas verdades, de que em espírito de verdade, há quem lhes


, não duvida nenhum daqueles que de dê esta interpretação: as palavras “no
Vós recebeu a graça de as ver com o princípio fez Deus o céu e a terra” que­
olhar íntimo da alma, crendo firme­ rem dizer que Deus criou, no seu
mente que o vosso servo Moisés falou Verbo, que lhe é coetemo, o mundo
CONFISSÕES XII 273

racional e sensível, ou espiritual e corporal, onde, então, residiam con­


corporal. fundidos o céu e a terra, que agora
Outro diz: “No princípio fez Deus o vemos já diferenciados e moldados
céu e a terra”, isto é, Deus criou, no nesta grande estruturado mundo.
seu Verbo, que lhe é coetemo, toda E ainda outro: “No princípio criou
esta massa do mundo corpóreo, com Deus o céu e a terra” quer dizer que
tudo o que ele contém de realidades Deus, quando começou a atuar e a
manifestamente conhecidas. operar, criou a matéria informe que em
Outro afirma: “No princípio criou si continha confusamente o céu e a
Deus o céu e a terra” quer dizer que terrà, que agora nos surgem e apare­
Deus fez no seu Verbo, que lhe é coe­ cem já formados, com tudo o que neles
temo, a matéria informe das criaturas existe 618.
espirituais e corporais.
Sustenta outro: “No princípio criou 618 “No princípio criou Deus o céu e a terra”
Deus o céu e a terra” significa que interpreta-se modemamente assim: “No começo,
antes do início dos tempos, Deus (Eloim) tirou do
Deus criou no seu Verbo, que lhe é nada o céu e .a terra, que não eram massa caótica,
coetemo, a matéria informe da criatura mas eram já o mundo organizado”. (N. do T.)

21
Segundo versículo do Gênesis

30. Do mesmo modo, pelo que per­ que se chamou “céu e terra” era ainda
tence à interpretação das palavras que matéria informe e tenebrosa, donde ha­
vêm a seguir, entre as muitas opiniões viam de sair o céu inteligível — ou,
verdadeiras, uns escolhem esta: as por outras palavras, o céu do céu — e
palavras “a terra era invisível e em a terra, que era toda a natureza corpó­
! desordem, e as trevas estavam sobre a rea, entendendo igualmente sob este
face do abismo” significam que aquela nome o céu material. Dessa matéria
massa corpórea que Deus fez era ainda haviam de sair todas as criaturas invi­
a matéria informe das coisas corpó- síveis e visíveis.
reas, sem ordem nem luz. Outros propõem: Com as palavras
Outros dizem: “A terra era invisível “a terra era invisível e sem ordem, e as
e sem ordem, e as trevas estavam sobre trevas estavam sobre o abismo” não
a face do abismo” quer dizer que tudo quis a Escritura chamar “céu e terra” a
o que se chama céu e terra era ainda a essa massa informe, pois ela já existia.
matéria informe e tenebrosa donde ha­ Dessa massa informe chamada “terra
viam de sair o céu corpóreo e a terra invisível e desorganizada, e abismo
também corpórea, com tudo o que tenebroso”, Deus criou o céu e a terra,
neles existe, apreendido pelos nossos ou seja, as criaturas corporais e espiri­
sentidos corporais. tuais, como foi dito anteriormente ao
Outros optam por esta interpreta­ afirmar-se que da matéria informe
ção: “A terra era invisível e sem Deus criara o céu e a terra.
ordem, e as trevas estavam sobre a Outros dizem: “A terra era invisível
face do abismo” significa que tudo o e sem ordem, e as trevas estavam sobre
274 SANTO AGOSTINHO

o abismo” significa que essa massa as criaturas nelas existentes, que co­
informe era jâ a matéria de que Deus, nhecemos e de que nos servimos 61 9.
como diz a Escritura anteriormente,
619 O segundo versículo do Gênesis traduz-se
formou o céu e a terra, ou, por outros assim modemamente: “A terra era vazia e deserta e
termos, toda esta mole corpórea do as trevas estavam por cima do oceano e o espírito
. de Deus inclinava-se por cima das águas”. Santo
mundo, dividida em duas grandes par­ Agostinho adotou a tradução incorreta dos Setenta:
tes: a superior e a inferior, com todas “a terra era invisível e em desordem, etc.” (N. do T.)

22
Objeções

31. Podería alguém tentar opor às que o Apóstolo claramente denomina


duas últimas opiniões esta objeção: Se ‘Tronos, Dominações, Potestades 620’,
não quereis dar o nome de “céu e embora seja manifesto' que Deus os
terra” a esta matéria informe, havia criou.
portanto alguma coisa que Deus não “E, se tudo se quer compreender nas
tinha feito de que formou o céu e a palavras ‘fez o céu e a terra’, que dizer
terra, visto que a Escritura não referiu então das águas sobre que pairava o
que Deus tivesse feito essa matéria — Espírito de Deus621? Se tudo preten­
a não ser que a queiramos com­ demos compreender na palavra ‘terra’,
preender na designação de céu e terra
como é que no nome da ‘terra’ se pode
ou no simples nome de “terra” quando
conceber a matéria informe, quando
se diz: “No princípio criou Deus o céu
vemos tanta beleza no mar? Se aquela
e a terra”. E assim, ainda que nos agra­
realmente lá está compreendida, por­
de chamar matéria informe à que é
designada por estas palavras que se que é que está escrito que desta massa
seguem: “A terra era invisível e sem informe foi formado o firmamento que
ordem”, contudo, por “terra” não se chamou céu, sem se declarar que
devemos entender outra além da que também assim foram formadas as
Deus fez conforme ao que está escrito: águas, que, longe de serem informes e
“Fez Deus o céu e a terra”. invisíveis, contemplamos em caudais
Os que quiserem sustentar estas tão lindos? Se receberam esta formo­
duas opiniões que pus em último lugar, sura quando Deus disse: ‘Reúnam-se
ou qualquer delas, responderão, ao as águas que estão debaixo do firma­
ouvir estas palavras, dizendo: “Não mento622’, e se as embelezou ao reu­
negamos, na verdade, que esta matéria ni-las, que dizer das águas que estão
informe tenha sido feita por Deus, de sobre o firmamento? Se fossem ainda
quem descem todas as coisas tão exce­ informes, não teriam recebido um
lentes. Com efeito, dizemos que o que lugar tão honroso. Nem está escrito
foi criado e formado é um bem maior, com que palavras foram formadas.”
assim como também confessamos que Ora, não repugna à fé sã nem à inte­
o que é meramente criável e formável ligência clara que o Gênesis passasse
constitui um bem menor, mas, enfim, em silêncio alguma coisa das que Deus
um bem. Muito embora a Escritura criou, nem ousa nenhuma doutrina
não ateste que Deus fez esta massa séria sustentar que as águas são coeter-
informe, muitas outras coisas há de
620 Col 1, 16.
que ela também não fala, como dos 621 Gên 1,2. i
Querubins, dos Serafins e dos espíritos 622 Gên 1, 9.
CONFISSÕES XII 275

nas com Deus, pelo fato de as ouvir­ mada pela Escritura “terra invisível,
mos mencionadas no Livro do Gêne­ desorganizada e abismo tenebroso”, a
sis, embora sem referência ao dia em fez Deus do nada, e que, por isso, não
que foram criadas. Logo, por que moti­ lhe é coetema, ainda que a narração
vo não entendemos, como no-lo ensina bíblica deixe de referir o momento pre­
a verdade, que esta massa informe cha­ ciso em que foi criada?

23
Duas espécies de questões

3.2. Tenho ouvido e meditado estas Quanto ao primeiro problema, afas­


teorias, segundo mo permite a debili­ tem-se de mim todos os que têm como
dade do meu entendimento. Eu Vo-la verdadeiras essas suas falsidades.
confesso, meu Deus, se bem que a Quanto ao segundo, retirem-se tam­
conheceis! Vejo que duas espécies de bém da minha presença os que atri­
questões se podem originar, quando buem essas falsas doutrinas a Moisés
uma coisa é enunciada por intérpretes como tendo sido proferidas por ele.
fidedignos: uma é sobre a veracidade Possa eu associar-me e deliciar-me em
das afirmações em si mesmas; outra, Vós, Senhor, com aqueles que se ali­
se eles, os intérpretes, estão em desa­ mentam com a vossa Verdade, na
cordo com a intenção do que as enun­ amplidão da Caridade. Aproximemo-
cia. Uma coisa é inquirir a verdade nos simultaneamente das palavras do
sobre a criação, outra, procurar saber vosso Livro, procurando nelas o senti­
o que Moisés, egrégio confidente da do genuíno do vosso Pensamento,
vossa Fé, quis significar a quem o lê ou segundo a intenção do vosso servo, por
escuta. cuja pena as revelastes.

24

O pensamento de Moisés

33. Entre tantas opiniões verda­ misericórdia que se realize este meu
deiras que ocorrem aos intérpretes des­ desejo. Senhor, eis que eu proclamo
tas palavras compreendidas ora duma confiadamente que tudo, o visível e
maneira ora doutra, quem de nós invisível, foi criado por Vós, no vosso
encontrou o verdadeiro sentido, de tal Verbo imutável. Mas posso eu dizer
modo que possa determinar com segu­ com a mesma certeza que foi esta, e
rança o pensamento de Moisés e o não outra, a intenção de Moisés, ao
significado das suas narrações? Com escrever: “No princípio criou Deus o
que segurança esse tal o pode afirmar céu e a terra”? Se bem que me per­
como verdade, quer Moisés tenha pen­ suado de que isto é certo na vossa Ver­
sado isso quer tenha pensado outra dade, não vejo, porém, qual fosse o
coisa? pensamento do seu espírito, ao escre­
Eu, vosso servo — meu Deus, eu ver tais palavras.
Vo-lo manifesto! —, determinei con- Pôde ele, de fato, referir-se ao come­
sagrar-Vos nestas páginas o sacrifício ço da criação, quando disse: “No prin­
da minha confissão. Peço à vossa cípio”. Pôde voluntariamente signifi­
276 SANTO AGOSTINHO

car nesta passagem, por “céu e terra”, Porém, ou esse grande homem, ao pro­
não uma natureza, ou espiritual ou ferir estas expressões, lhe tenha dado
corporal, já perfeitamente constituída, um destes dois sentidos, ou qualquer
mas uma e outra, ainda incipientes e
outro que eu não declarei, não duvido,
informes. Vejo que verdadeiramente se
pode afirmar qualquer destas opiniões, contudo, de que ele tenha conhecido a
mas não vejo, com a mesma clareza, verdade, e de que a enunciou dum
que sentido deu ele a essas palavras. modo adequado.

25
A refutação
34. Ninguém mais me queira moles­ pertencente a todos os amantes da
tar, dizendo-me: “Moisés não pensou o verdade.
que tu dizes, mas o que eu digo”. Se Quanto ao pretenderem que Moisés
alguém me dissesse: “Como sabes tu não pensou segundo a minha interpre­
que esse sentido atribuído por ti às tação, mas segundo a deles, isto é o
palavras de Moisés é autenticamente o que eu não aceito. Ainda que assim
de Moisés?”, eu não me deveria agas- fosse, a sua temeridade não é conce­
tar e respondería talvez como acima o bida pela ciência, mas pela audácia;
fiz, ou respondería com algum desen­ não é gerada pela clarividência, mas
volvimento, se o meu impugnador pelo orgulho.
fosse mais pertinaz. Mas quando al­ São terríveis os vossos Juízos, Se­
guém me declara: “Não pensou ele o nhor, pois a vossa Verdade não é
que tu dizes, mas o que eu digo”, sem minha nem de qualquer outro, mas de
coitudo o contraditor negar a veraci- todos nós, a quem manifestamente
dacj do que ambos afirmamos, então, convidais a participar dela. Admoes­
ó meu Deus, ó vida dos pobres, em tais-nos severis sim amente a que a não
cujo seio não pode haver contradição, queiramos ter como bem privativo,
derramai uma chuva de suavidades no para que não nos privemos dela. Efeti­
meu ânimo, para que possa suportar vamente, quem reivindica só para si
tais homens com paciência! próprio aquilo que ofereceis para gozo
Não afirmam isto porque sejam, de todos, querendo como particular o
muito espirituais ou porque leiam no que é de todos, é repelido desses bens
coração do vosso servo o que procla­ comuns para os seus, isto é, da verdade
mam, mas, sim, por serem soberbos. para a mentira. “Com efeito, quem fala
Não conhecem a opinião de Moisés, de si próprio mente 623.”
mas amam somente o próprio parecer, 35. Ouvi, ó Juiz ótimo, ó Deus que
não por ser verdadeiro, mas por ser o sois a mesma Verdade, ouvi a minha
deles. Se assim não fosse, estimariam resposta, dirigida a esse impugnador.
igualmente a opinião dos outros quan­ Atendei. Digo-a diante de Vós e dos
do é verdadeira, assim çomo eu estimo meus irmãos que “seguem legitima­
o que eles dizem, quando afirmam a mente a lei cujo fim é a caridade”.
verdade, e, por esse motivo, já não é Escutai e vede, se Vos apraz, o que eu
um bem exclusivo deles. Se amam essa lhes digo.
opinião por ser a verdade, pertence-
lhes a eles e a mim. É um bem comum, 623 Uo8,44.
CONFISSÕES XII 277

Eis as palavras fraternas e pacíficas que manda amar o Senhor Nosso


que lhes dirijo: Se ambos vemos qué é Deus, “com todo o nosso coração,
verdade o que tu dizes, e se ambos com toda a nossa alma, com todo o
vemos que é verdade o que eu digo, nosso espírito e ao nosso próximo,
onde, pergunto eu, o vemos nós? Nem como a nós mesmos 62 5”. Se não acre­
eu, sem dúvida, o vejo em ti, nem tu em ditarmos que tudo o que Moisés exa­
mim, mas vemo-lo ambos na imutável rou naqueles livros o pensou por causa
Verdade que está acima das nossas destes dois preceitos da caridade, fare­
inteligências. Não discutindo nós da mos do Senhor um mentiroso, ao inter­
própria luz do Senhor nosso Deus, por pretarmos o pensamento do seu servo
que razão havemos de disputar sobre o de modo diferente do que ele lhe ensi­
pensamento dos outros, ao qual não
podemos contemplar como se contem­ nou. Entre tão grande número de opi­
pla a Verdade imutável? Ainda que niões verdadeiras que daquelas pala­
Moisés nos aparecesse, e dissesse “este vras se podem deduzir, vede já como é
é o meu pensamento”, nem assim o estulto afirmar temerariamente a qual
compreenderiamos, mas somente acre­ delas Moisés dera o seu assentimento.
ditaríamos nele. Seria expor a caridade a ofensas e a
Por isso, “ninguém se exalte contra perniciosas contendas. Ora, por causa
outro, acerca do que afirmam as Escri­ dela é que Moisés proferiu todas as
turas624”, esquecendo-se do preceito palavras que procuramos interpretar!
62 4 1 Cor 4, 16. 62 5 Mt 22, 37.39.

26
Se eu fosse o escritor do Gênesis

36. Ó meu Deus, elevação da minha Quereria eu, se então estivesse em


baixeza e descanso dos meus traba­ lugar de Moisés — pois vimos todos
lhos, que ouvis as minhas Confissões e da mesma massa 62 6; e “que é o
me perdoais os pecados! homem se não Vos lembrais de­
Já que me ordenais que ame o pró­ le? 6 2 7” —, se eu fosse o que ele foi, e
ximo como a mim mesmo, não posso Vós me tivésseis encarregado de escre­
contudo crer que Moisés, vosso servo ver o Gênesis, eu quereria receber de
tão fiel, fosse cumulado de menos dons Vós uma tal arte de expressão e uma
do que eu teria desejado e apetecido tal modalidade de estilo que até esses
para mim, se tivesse nascido naquela que não podem compreender como é
época e me tivésseis posto em seu que Deus cria se não recusassem a
lugar, para distribuir a Escritura pelo acreditar nas minhas, palavras, por
ministério do meu coração e da minha ultrapassarem as suas forças. Eu que­
língua. Ela, muito tempo depois, deve­ reria que aqueles que já são capazes
ria ser útil a todas as gentes, e, com o
seu prestígio e excelsa autoridade, desta compreensão, se, acaso, refle­
deveria rebater, no mundo inteiro, as tindo, chegassem a qualquer outra
afirmações das doutrinas falsas e orgu­ 62 6 Rom 9, 21.
lhosas. 62 7 Sl 8, 5.
278 SANTO AGOSTINHO

doutrina verdadeira, a pudessem en­ dade, a outro se representasse diferente


contrar consignada nas poucas pala­ opinião, eu desejaria que a pudesse
vras do vosso servo. E se, à luz da Ver­ também aí encontrar.

27
O passarinho implume

37. A fonte (cujas águas se aglome­ e que passam. Julgam que, imediata­
ram) num pequeno reservatório é (de­ mente após o desvanecimento destas
pois) mais abundante e fornece o cau­ palavras, começou a existir o que fora
dal a diversos regatos para uma mandado que existisse. E, se por acaso
extensão mais ampla do que a de qual­ têm alguma opinião diversa, igual­
quer deles. Estes, oriundos da mesma mente se ressentem da baixeza huma­
fonte, espalham-se por muitos lugares. na.
Assim, de modo idêntico, a narração Mas estes são ainda como crianças,
do vosso Dispensador, que havia de pois a sua debilidade alimenta-se desta
ser útil a todos os intérpretes, de pou­ humílima espécie de palavras como
cas e modestas palavras faz deslizar quem se alimenta do seio materno.
correntes de verdade cristalina. Destas, Com isso, a fé fortifica-se neles salu­
cada um pode haurir a parte de verda­ tarmente. Por ela têm como certo e
de que é capaz, uns duma maneira, ou­ sustentam que Deus criou todas as
tros doutra, para a desenvolverem em naturezas às quais os seus sentidos
seguida por longos rodeios de expres­ descobrem numa variedade admirável.
são. Mas se algum deles, desprezando a
Alguns, ao lerem ou escutarem as quase vulgaridade de vossas palavras e
palavras (da Criação) supõem a Deus cheio de orgulhosa debilidade, se lan­
como homem, ou como uma persona­ çar fora do ninho onde fora criado,
gem dotada duma estrutura imensa, e então, cairá miseravelmente! Vós, “Se­
que, por decisão nova e repentina, nhor Deus, tende .compaixão 62 8” dele,
criou fora de si mesmo, como em luga­ para que os que passam pelo caminho
res. distantes, o céu e a terra, dois cor­ não calquem aos pés esse passarinho
pos gigantescos, um no alto, outro implume. Enviai o vosso anjo. Ele o
embaixo, nos quais estão contidas tome a colocar no ninho, para que
todas as coisas. E ao ouvirem: “Disse assim a avezinha possa viver enquanto
Deus: faça-se aquilo, e logo foi feito”, não souber voar.
supoêm que são palavras que come­
çam e que acabam, que soam no tempo 628 57 50,3.

28
Multiplicidade de interpretações
38. Outros, para quem estas pala- mente enquanto buscam e colhem
vras(da Criação) não são já um ninho, esses frutos.
mas um vergei cheio de sombra, desco­ Quando lêem e ouvem palavras de
brem nelas frutos escondidos e volitam Moisés, vêem que a vossa eterna e
cheios de alegria, e cantam festiva­ estável subsistência, ó Deus, domina
CONFISSÕES XII 279

todos os tempos, passados e futuros, e, Então, entre aqueles que no vocá­


por conseguinte, não há criatura tem­ bulo “princípio” entendem que Deus
poral que não seja obra vossa. Veem criou, na sua Sabedoria, o céu e a
que a vossa vontade, que se confunde terra, um crê que “o céu e a terra”
convosco, criou as coisas, sem sofrer designam a matéria de que o céu e a
mudança alguma ou impulso que antes terra foram criados; outro pensa que a
não estivesse nela. Com um ato de expressão se aplica a naturezas forma­
vontade criastes todas as coisas, tiran­ das e distintas; outro sustenta que pela
do de Vós, não um modelo que fosse a palavra “céu” se designa a substância
forma substancial de todos os seres, formada e espiritual, e pelo vocábulo
mas sim, tirando do nada uma matéria “terra” a substância informe e corpo­
informe que não fosse igual a Vós. ral.
A esta, dar-lhe-íeis uma forma se­
gundo a vossa imagem, recorrendo Aqueles,porém, que entendem pelas
Vós à vossa Unidade, segundo a medi­ palavras “céu e terra” a matéria ainda
da preestabelecida que coube a cada informe, com a qual se haviam de for­
um dos seres na sua própria espé­ mar o céu e a terra, esses não são unâ­
cie629. Veem que “todas as obras da nimes nessa mesma interpretação: um
criação são muito boas”, quer perma­ pretende que dessa matéria hão de pro­
neçam à volta de Vós, quer, afastan­ vir as criaturas inteligentes e sensíveis;
do-se pouco a pouco para mais longe outro julga que dela somente há de
de Vós, através do espaço e do tempo, nascer uma certa massa sensível e cor­
sofram ou assumam variedades belas. pórea contendo, no seu volumoso seio,
Reconhecem estas coisas e alegram-se todas as substâncias lúcidas e já
à luz da vossa Verdade, quanto as suas visíveis 631.
forças Iho permitem cá na terra.
39. Outro, examinando o sentido Também não são concordes os que
destas palavras: “no princípio criou crêem que, neste texto, se chama “céu
Deus”, reconhece por “princípio” a e terra” às criaturas já dispostas e
Sabedoria, “porque ela mesma no-lo coordenadas. Um pretende que signi­
diz 630”. Outro, considerando igual­ fica o mundo invisível e visível; outro,
mente estas palavras, entende por a natureza visível, na qual vemos o céu
“princípio” o começo de todos os seres luminoso e a terra caliginosa, com
criados. Para eles, “Deus no princípio tudo o que neles há.
criou” significa: “Deus fez primeira­
mente”. 631 A Santo Agostinho não repugnava que hou­
vesse matéria espiritual mais lúcida, mais transpa­
629 Alusão à sua teoria do exemplarismo. Segundo rente e mais fluida que a deste mundo. No livro ina­
esta, Deus realiza a criação pelas idéias exemplares, cabado De Genesi (IV, 17), diz: “Pode entender-se
isto é, pelas imagens intelectuais dos seres, as quais por espírito de Deus uma criatura vital em que este
subsistem n’Ele ab aeterno. (N. do T.) universo, o mundo visível e todos os corpos se
630 Jo 8, 25. contêm...” (N. do T.)

29
Objeções e prioridade da matéria

40. Mas aquele que às palavras “no como se dissessem: “primeiramente


princípio criou” dá este mesmo sentido criou”, esse não tem outra possibili-
280 SANTO AGOSTINHO

dade de entender com verdade “céu” e É anterior, não porque fosse sua
“terra” senão significando por estes causa eficiente, pois ela também é
vocábulos a matéria do céu e da terra, antecipadamente criada. Nem a sua
isto é, a criação universal, ou, por ou­ prioridade é de intervalo de tempo.
tros termos, a criação espiritual e Com efeito, não entoamos em primeiro
material. Pois, se quisesse referir-se ao lugar sons informes, independen­
conjunto da criação já formado, po- temente do canto, para em seguida os
der-se-lhe-ia com razão perguntar: “Se ligarmos e dispormos em forma de
Deus criou isto em primeiro lugar, o melodia, como manufaturamos a ma­
que criou em seguida?” Depois do deira de que se faz a arca ou a prata de
conjunto da criação nada mais encon­ que é fabricado o vaso.
trará que fosse criado, e, por isso, há Estas substâncias precedem, por
de ouvir com desprazer esta pergunta: certo, no tempo, as formas das coisas
“Como criou primeiramente aquilo, se que delas se fazem. No canto não é
nada criou depois?” assim. Quando se canta, ouvimos o
Quando porém afirma que ao princí­ som, mas este não soa primeiro desar-
pio a matéria era informe e que depois moniosamente para, em seguida, rece­
a dotara duma forma, isto já não é ber a forma do canto. Com efeito, uma
absurdo, ainda que importe distinguir vez que o som tiver ressoado, já pas­
o que seja prioridade quanto à eterni­ sou. Nem se encontrará dele qualquer
dade, ao tempo, ao apreço, à origem: coisa que, retomada, se possa coorde­
quanto à eternidade, por exemplo, nar pela arte. Por conseguinte, o canto
Deus antecede tudo; quanto ao tempo, é constituído pelo próprio som que é a
a flor antecede o fruto; quanto ao apre­ sua matéria. Por isso, esta recebe uma
ço, o fruto antecede a flor; quanto à forma para ser canto. Por conseguinte,
origem, o som antecede o canto. Des­ como dizia, a matéria (o som) é ante­
tas quatro afirmações, a primeira e a rior à forma que é o canto. A priori­
última que citei dificilmente se com­ dade não se radica ao poder de criar,
preendem; as duas intermediárias, pois o som não é artífice do canto, mas
porém, entendem-se com facilidade. está subordinado à alma do cantor, ao
Com efeito, é raro e dificultoso ao ser emitido por um órgão corporal
entendimento chegar a conhecer bem, com o qual canta. Nem é anterior no
Senhor, a vossa eternidade, a qual, tempo, pois é entoado conjuntamente.
permanecendo imutável, cria as coisas Nem é o primeiro da preferência, pois
mutáveis, e por isso é anterior a elas. o som não é superior ao canto, visto
Depois, quem tem a vista tão pene­ que o canto não é somente som, mas
trante que possa com a inteligência também um som artístico. Mas é ante­
distinguir, sem grande trabalho, de que rior na origem, porque o canto não é
maneira o som antecede ao canto? formado para que seja som, mas o som
Podemos chegar a compreendê-lo re­ é formado para que seja canto. |
fletindo nisto: o som precede ao canto, Com este exemplo, já se pode
porque o canto não é outra coisa senão compreender como a matéria das coi­
um som que recebeu a sua forma. Ora, sas foi primeiramente criada e chama­
pode muito bem existir alguma coisa da “céu” e “terra” porque dela foi for­
que ainda não tenha forma, mas esta mado o céu e a terra. Não foi criada
nunca pode ser infundida naquilo que primeiramente no tempo, porque as
não existe. A matéria é assim anterior formas das coisas é que produzem o
àquilo que dela se formou. tempo. Ora, aquela matéria estava
CONFISSÕES XII 281

informe, a qual só depois de receber a das do que as informes. A matéria


forma se pôde observar juntamente informe é também precedida pela eter­
com o tempo. Nem afinal se pode nar­ nidade do Criador, que a fez para que
rar alguma coisa acerca da matéria fossem extraídas do nada as coisas 632.
informe, se não se considera anterior
ao tempo, se bem que, no valor e esti­
632 As coisas informes quanto ao tempo não pos­
ma, ela ocupa o último lugar, pois, sem suem ainda existência. Neste sentido, são nada. (N.
dúvida, são melhores as coisas forma­ do T.)

30
A concórdia

•41. Nesta diversidade de pareceres A Vós, nosso Deus, Fonte de Verda­


verdadeiros, a mesma verdade faça' de, nós Vos amamos igualmente, se
nascer a concórdia! Que o nosso Deus tivermos sede não de simples quime­
tenha compaixão de nós, “para que ras, mas da mesma verdade. E àquele
usemos legitimamente da lei, segundo vosso servo, cheio do vosso espírito,
o preceito que tem por fim a caridade por quem recebemos esta Escritura,
pura 633”. reverenciemo-lo. Estejamos certos de
Por isso, se alguém me perguntar o que ele, ao escrever estas coisas por
que pensou acerca disto aquele vosso
vossa revelação, teve em vista aquilo
servo Moisés, não serão verdadeiras as
que nelas ressalta, principalmente a luz
palavras das minhas Confissões, se
da verdade e o fruto da utilidade.
Vos não confessar que o ignoro. Sei
todavia que essas opiniões são legíti­ 633 Tim 1, 8. 5.
mas, excluídas as interpretações gros­ 63 * Nem a teologia, nem a exegese bíblica, nem a
seiras, acerca das quais expus o meu ciência nos sabem responder se Deus, quanto ao
mundo sensível, criou tudo na forma perfeita ou se
parecer 53 4. São porém “meninos” de primeiro fez algo donde todos os seres derivassem.
grandes esperanças os que não temem No domínio científico têm sido propostas diversas
estas palavras do vosso Livro, humil­ teorias. Uma delas é a de que Deus criou primeiro a
energia na sua forma elementar de elétrons. Outra
demente sublimes e eloquentemente teoria afirma que Deus criou primeiro os átomos. R.
breves. Mas confesso que todos os que Tocquet diz: “A matéria evanescente destrói-se e
transforma-se em luz e em diversas radiações; mais
nestas palavras distinguimos e dizemos tarde, no seio dos espaços cósmicos, a luz edifica os
a verdade nos amamos uns aos outros. átomos materiais a partir de si mesma”. (N. do T.)

31
Moisés e os diverso s sentidos da Bíblia

42. Assim, quando alguém disser: um terceiro e um quarto ou mais senti­


“Moisés entendeu isto como eu” e ou­ dos verdadeiros, por que não acredita­
trem replicar: “Pelo contrário, pensou remos que todas estas interpretações as
como eu”, julgo que se dirá com mais 'viu Moisés, por meio do qual o Único
Deus acomodou a Escritura Sagrada à
piedade: “Por que não quis ele antes inteligência de muitos que haviam de
expressar uma e outra coisa, se ambas descobrir nela coisas verdadeiras e
são verdadeiras?” Se alguém encontrar diferentes?
282 SANTO AGOSTINHO

Eu, sem duvidar, digo com intrepi­ Assim, não desejo ser tão temerário,
dez, do fundo do coração: se eu, eleva­ meu Deus, que acredite que qualquer
do ao cume da autoridade, escrevesse ' homem merecesse de Vós tal graça.
alguma coisa, preferiria fazê-lo de tal Moisés advertiu e pensou, sem dúvi­
modo que as minhas palavras procla­ da, ao escrever estas palavras, em tudo
massem tudo aquilo que alguém pudes­
se conceber de verdadeiro acerca des­ aquilo que de verdadeiro pudemos
sas coisas. Quereria antes isso do que I encontrar, em tudo aquilo que não
pôr um só sentido autêntico, de tal pudemos encontrar ou que, até agora,
forma claro, que excluísse os restantes não pudemos descobrir, e que, não
cuja falsidade me não pudesse ofender. obstante, se pode achar nelas.

32
Senhor, inspirai-me!

43. Enfim, Senhor — que sois Deus teis, para não nos deixarmos, iludir
e não carne e sangue! —, se o homem com o erro. Vede, Senhor, Deus meu,
nem tudo pode ver completamente, sim, vede, eu Vo-lo peço, quantas e
porventura o vosso bom espírito, “que quantas coisas escrevi sobre tão pou­
me há de conduzir à terra da reti­ cos versículos! Deste modo, como
dão 63 5”, pôde desconhecer qualquer terei forças e tempo suficiente para
das coisas que, por estas palavras, examinar todos os vossos Livros?
tencionáveis revelar aos leitores vin­ Por isso, permiti-me que seja mais
douros, apesar de Moisés, por cujo breve ao enaltecer-Vos neles e que,
meio foram pronunciadas, as não entre as muitas interpretações que me
entender, senão num único sentido dos ocorrem, e acerca dos quais muitas ou­
muitos verdadeiros? Se assim é, a tras me poderão ocorrer, eu escolha
interpretação que Moisés deu é mais uma única, que seja verdadeira, boa e
elevada que as outras. Mas, Senhor, inspirada por Vós. Deste modo serei
mostrai-nos essa interpretação ou fiel em confessar-Vos. Se exprimir o
aquela outra que^seja verdadeira e que mesmo sentido que seguiu o vosso
mais Vos agradefpara que, patentean­ servo Moisés, eu o declararei perfeita e
exatamente, pois me devo esforçar por
do-nos o mesmo sentido revelado ao
isso. Se ainda não consegui, possa ao
vosso servo, ou outro em conformi­
menos declarar o que a vossa Verdade,
dade com a ocasião em que essas pala­
pelas suas palavras, me quis dizer, a
vras foram pronunciadas, nos alimen-
qual também inspirou a Moisés o que
63 5 Sl 142, 10. lhe aprouve.
LIVRO XIII

A PAZ
Neste livro salientam-se os primeiros capítulos, muito seme­
lhantes aos do início das “Confissões”, as narrativas da Inquietação
Humana (cap. 8 e 9), da Beleza da Criação e da Esperança do
Repouso em Deus.
Este livro contém passagens de exegese, teologia, filosofia e diva-
gações poéticas e místicas. Dão-lhe unidade o sentimento religioso
e a exaltação lírica.
I — Agradecimento a Deus pela sua bondade manifesta na
Criação e descoberta da Santíssima Trindade nas primei­
ras palavras do Gênesis (1-12).
II — Diversas alegorias sugeridas pelos primeiros versículos
da Sagrada Escritura: a Luz (a alma iluminada pela fé), o
Firmamento (a Bíblia), Águas no Firmamento (os anjos),
Águas Amargas (os mundanos), a Terra Enxuta (a alma
caritativa), os Frutos da Terra (as obras de misericórdia),
os Peixes e os Cetáceos (os milagres estupendos), etc-.
(13-28).
III — Finalmente, a Beleza da Criação no pormenor e no con­
junto (29-34), e a Esperança do Repouso em Deus
(35-38).
1
Benefícios de Deus para com o homem

1. Invoco-Vos, “ó meu Deus, mise­ do, eis que existo por um gesto de
ricórdia minha” 63 6, que me criastes e vossa Bondade, que precedeu tudo
não Vos esquecestes de quem Vos aquilo de que me fizestes. Não tivestes
esqueceu. Chamo-Vos à minha alma, necessidade de mim para nada, nem
que preparastes para Vos receber, sou um bem tão valioso que de mim
inspirando-lhe esse desejo. Agora, não Vos possais ajudar, meu Senhor e meu
desampareis aquele que Vos invoca. Deus. Não sou homem que, com os
Vós me prevenistes antes de Vos meus serviços, Vos possa aliviar, como
invocar, e instastes comigo de tantos e se Vós sentisseis fadiga no trabalho.
repetidos modos para que de longe Vos Nem o vosso poder diminui, se carecer
escutasse, me convertesse e chamasse das minhas homenagens. Se Vos não
por Vós, que chamáveis por mim. Sim, prestar culto, não sucede como à terra,
Vós, Senhor, apagastes todos os meus que fica inculta se o lavrador a não
delitos para os não castigardes como cultivar. Devo servir-Vos e honrar-Vos
mereciam as obras de minhas mãos, as para que a felicidade me venha até
quais me afastaram de Vós. mim de Vós, de quem recebi a exis­
Antecipastes todas as minhas obras tência e a aptidão para gozar do bem.
para me dardes a recompensa do tra­
balho de vossas mãos 63 7 que me cria­ 63 6 S15Z, 18.
ram, porque Vós já éreis antes de eu 63 7 Deus doou-nos a existência e a graça, para
realizarmos o bem. E contudo, Deus recompensa-
existir. Nem eu era digno de que Vós nos como se Ele não fosse o autor do bem que há
me concedésseis a existência! Contu­ em nós! (N. do T.)

2
Deus, subsistência da criação.

2. Com a plenitude da vossa Bon­ gundo a vossa Sabedoria? Que me


dade subsistem as criaturas. O bem — digam o que elas mereceram para rece­
embora inútil para Vós e que de modo ber de Vós, cada uma na sua espécie
algum se pode igualar convosco, ainda espiritual ou corporal, esse ser, mesmo
que provenha de Vós — não deixará imperfeito, informe e caminhando para
de existir. a dissolução e para longe da vossa
Que merecimentos poderíam apre- imagem!
sentar-Vos o céu e a terra para que no Um ser espiritual, ainda que infor­
princípio os criásseis? Que tinham me, vale mais do que qualquer corpo
merecido essas naturezas de ordem material organizado. Por sua vez, o ser
espiritual e corpórea que criastes se­ material, ainda que informe, é prefe­
288 SANTO AGOSTINHO

rível ao puro nada. Assim, essas cria­ Assim como para um corpo não é a
turas dependiam do vosso Verbo, e mesma coisa ser corpo e ser belo —
ficariam informes, se Ele mesmo as caso contrário, não poderia haver
não houvesse chamado à vossa Unida­ disformidade —, assim também para
de e lhes não desse uma forma, de tal um espírito criado, não é a mesma
modo que todas Vos ficaram devendo coisa viver e viver sapientemente, pois
o serem muito boas, ó único e sumo doutro modo a sua ciência seria imutá­
Bem. Que . merecimentos antecipados vel. Mas é para ele sumamente provei­
apresentaram diante de Vós estas cria­ toso quedar-se sempre unido a Vós,
turas que nem sequer informes existi­ para que, afastando-se, não perca a
ríam, se as não criásseis? claridade que adquiriu com o voltar-se
3. Que Vos mereceu a matéria cor­ para Vós, e não resvale para a vida
poral, para que existisse, ao menos semelhante às trevas dos abismos.
invisível e inorgânica, se nem sequer Na verdade, nós, que, pela alma,
isso fora, se a não tivésseis chamado à somos criaturas espirituais, afastados
existência? Nenhuma coisa, perante outrora de Vós — nossa luz —, fomos
Vós, podia merecer o dom da criação,
visto que não existia para o merecer. E trevas, nessa vida 63 8. E por entre os
que favores devíeis à criatura espiritual restos da nossa escuridão, lutamos até
ainda insipiente para que vagueasse que nos tomemos vossa justiça 63 9, em
pelo menos tenebrosa, semelhante aos vosso único Filho, e nos assemelhemos
abismos e diferente de Vós, se o vosso às montanhas de Deus. Efetivamente
Verbo a não conduzisse ao mesmo fomos objeto dos vossos juízos, que
Verbo que a criou, e anão iluminasse e são profundos como o abismo 6 40.
transformasse em luz — luz não igual
63 8 £/5, 8.
(ao Verbo), mas semelhante à sua Bele­ 639 2 Cor 5, 21.
za, que Vos é igual? 6 40 Sl 25,1.

3
O manancial divino
4. A respeito das palavras que dis­ feita”, de nenhum modo Vos agrada­
sestes nos alvores da criação: “Faça-se ria.
a luz, e fez-se a luz 6 41 ”, entendo que a A criatura espiritual agrada-Vos
sua aplicação se adapta bem às criatu­ não pelo fato de existir, mas por ver a
ras espirituais, porque já então existia luz.que à ilumina e por aderir a ela.
qualquer espécie de vida que poderieis Assim, deve a sua vida e toda a sua
iluminar. Mas assim como nenhuma felicidade de viver apenas à vossa
possui títulos especiais para ser essa graça. Com efeito, por uma feliz esco­
vida que pudésseis iluminar, do mesmo lha voltou-se para o que é incapaz de
modo nenhuma delas mereceu, depois mudança para melhor, ou para pior.
de adquirir a existência, a graça de a Voltou-se para Vós, que sois o único
iluminardes, tanto mais que a sua que existis, o único que simplesmen­
“informidade 6 42”, “se a luz não fosse 643 existis, para Vós, que não pos­
te641
642
suís outra vida, senão a vida feliz, pois
641 Génl,3.
642 Não se confunda “informidade” com disformi­
sois a vossa Felicidade.
dade. A primeira é ausência de “forma”; a segunda
significa fealdade, ou forma defeituosa. (N. do T.) 6 43 Isto é, sem composição de partes. (N. do T.)
CONFISSÕES XIII 289

4
Deus não precisa das criaturas

5. O que faltaria, portanto, ao vosso levado por elas, como se nelas descan­
bem — que para Vós consiste em Vós sasse. Diz-se que o vosso Espírito bom
mesmo — se essas criaturas espirituais nelas repousava, quando era ele que
ou quaisquer outras interiormente não em si as fazia repousar 6 4 4. Mas a
existissem ou se permanecessem infor­ vossa vontade incorruptível e imutável,
mes? Não as fizestes por necessidade. que se basta a si própria, era levada
Levado unicamente pela plenitude da sobre aquela vida que tínheis criado.
vossa Bondade as amoldastes e impu- Para esta, não é o mesmo viver e viver
sestes-lhes uma forma. Mas não foi feliz, porque não deixa de viver ainda
para completardes com elas o vosso que flutue na sua obscuridade. Essa
gozo. A sua imperfeição desagrada- vida tem necessidade de voltar-se para
Vos porque sois perfeito, e por isso as o Criador, de viver cada vez mais pró­
aperfeiçoais para que Vos possam xima da Fonte da Vida, de ver a luz na
agradar, e não para que hajais de ser Luz divina. Precisa de aperfeiçoar-se,
aperfeiçoado por elas. iluminar-se, e nela alcançar a felici­
Com efeito, o vosso Espírito bom dade.
era levado sobre as águas, mas não era 644 Núm 11,25.

5
A Trindade Divina

6. Eis que me aparece, como num No vocábulo “Deus”, eu entendia já


enigma, a Trindade. Sois Vós, meu o Pai que criou todas as coisas; e pela
Deus, pois Vós, Pai, criastes o céu e a palavra “princípio” significava o
terra no princípio da nossa Sabedoria, Filho, no qual tudo foi criado pelo Pai.
que é a vossa Sabedoria, que de Vós E, como eu acreditasse que o meu
nasceu, igual e coetema convosco, isto Deus é Trino, procurava a Trindade
é, no vosso Filho. nas vossas Escrituras e via que o vosso
Já largamente falei do “céu do céu” Espírito “pairava sobre as águas”. Eis
da “terra invisível e informe”, e do a vossa Trindade, meu Deus: Pai,
“abismo das trevas”, onde as nature­ Filho e Espírito Santo. Eis o Criador
zas espirituais permaneceríam errantes de toda criatura 6 4 5.
na sua imperfeição primitiva, se se não
6 4 5 Santo Agostinho e a tradição cristã viram no
voltassem para Aquele donde procede “espírito de Deus que pairava sobre as águas” uma
toda a vida. Naquele abismo de trevas emanação de Deus, o Espírito Santo. A liturgia
a Luz divina ia espalhar alguns raios aceitou essa mesma interpretação no hino Veni
Creator Spiritus. O sentido literal daquele texto é o
de beleza, para que fossem o “céu do seguinte: “o sopro de Deus planava como uma ave,
seu céu”, que foi mais tarde criado sobre as trevas do caos”. Aquele sopro ou espírito
significava que Deus é origem ou fonte da vida.
entre as águas superiores e as águas A palavra ruah, em hebraico, equivale a sopro,
inferiores. vento, espírito. (N. do T.)
290 SANTO AGOSTINHO

Porque pairava o Espírito sobre as águas

7. Que razão houve, ó Luz verda­ elemento sobre o qual se poderia ima­
deira — aproximo de Vós o meu cora­ ginar pairando o vosso Espírito? De
ção para que me não iluda com falsi­ fato não pairava acima do Pai, nem
dades e lhe dissipeis as trevas —, acima do Filho, nem se poderia dizer
dizei-me, eu Vo-lo peço pela nossa que pairava, se não pairasse sobre al­
mãe, a Caridade, dizei-me a razão por guma coisa.
que só depois de se nomear o céu, a Era, pois, necessário falar primeiro
terra invisível e informe e as trevas do elemento sobre que pairava, e de­
sobre os abismos é que a Escritura fala pois nomear Aquele a quem não podia
no vosso Espírito? Será porque conve­ referir-se doutra maneira senão dizen­
nha apresentá-lo dizendo que Ele “pai­ do que pairava.
rava sobre alguma coisa”? E como se Mas por que não convinha apresen­
poderia dizer isto sem fazer menção do tá-lo, senão dizendo que pairava?

7
Dons do. Espírito Santo

8. Agora, aquele que o puder fazer Como falar da caridade que nos eleva
siga pela inteligência o vosso Apóstolo pelo vosso Espírito adejante sobre’as
quando diz que “a vossa caridade se águas? Que termos empregarei? “Sub-
difundiu nos nossos corações pelo mergimo-nos” e “emergimos”? Mas
Espírito que nos foi dado 6 4 6”. O nem sequer há lugar onde mergu­
Apóstolo instrui-nos nas coisas espiri­ lhemos e venhamos à superfície. Que
tuais 6 4 7, demonstrando-nos a excelsa maior semelhança e que maior diferen­
via da caridade e ajoelhando-se por ça? Por um lado são os nossos afetos,
nossa causa diante Vós, para que os nossos amores, a imundice do nosso
conheçamos “a altíssima ciência da espírito a deixar-se arrastar para
caridade de Cristo 6 48”. baixo, pelo amor das preocupações.
Por isso, como era “sobre-eminente” Por outro é a vossa santidade que nos
desde o princípio, pairava sobre as eleva por amor da tranquilidade, para
águas. que levantemos os corações ao alto até
Mas a quem hei de falar? Como junto de Vós, onde o vosso Espírito
falar do peso da concupiscência que paira sobre as águas, e, para que che­
nos arrasta para o abismo escarpado? guemos à excelsa paz, depois de a
“nossa alma ter atravessado as águas
6 4 6 RomS, 5. desta vida, que nada têm de firme 6 4 89”.
8 4 7 1 Cor 12, 1. 31.
6 48 £/3, 14. 19. 6 49 Sl 123, 5.
CONFISSÕES XIII 291

8
A inquietação e o regaço de Deus

9. Caiu o Anjo, caiu a alma do repouso, por isso mesmo, nem sequer
homem, mostrando com a sua queda se contenta a si própria6 51.
que lá nas profundezas das trevas Vós, o nosso “Deus, esclareceis as
havia o abismo. Este encerraria todas nossas trevas: de Vós provêm as nos­
as criaturas espirituais, se não tivésseis sas vestes tecidas da vossa luz; as nos­
dito desde o princípio: “Faça-se a sas trevas serão como as trevas do
luz!”, e a luz não tivesse aparecido, e meio-dia 6 52”.
todas as inteligências da vossa cidade Dai-Vos a mim, ó meu Deus; entre-
celeste se não unissem a Vós pela gai-Vos a mim. Eu amo-Vos; e, se é
obediência e descansassem em vosso ainda pouco, fazei que Vos ame com
Espírito, que pairava imutável sobre os mais força. Não posso avaliar quanto
seres transitórios. amor me falta para ter o suficiente a
Doutro modo, “o céu do céu” seria, fim de a minha vida correr para o
em si, um abismo de trevas, ao passo vosso regaço e não sair dele, enquanto
que agora é luz do Senhor 610 *50. Nesta se não esconder nos segredos do vosso
lamentável inquietação dos espíritos rosto. Uma só coisa reconheço: é que
caídos que mostram as suas trevas des­ tudo me corre mal fora de Vós, e não
só à volta de mim, mas até em mim.
pidas da vossa luz, suficientemente Toda a abundância que não é o meu
demonstrais quão sublime fizestes a Deus, é para mim indigência.
criatura racional. Efetivamente, tudo o
que for menor do que Vós, de modo 651 A inquietação agostiniana reapareceu, embora
imperfeita, na filosofia de Sõren Kierkegaard, o
algum, a sacia na ânsia de felicidade e vidente da História como Pecado-Expiação. (N. do
T.)
6 50 Ef5, 8. 652 Sl 17,29.

9
O peso do amor

10. Porventura o Pai e o Filho não falar duma espécie de lugar onde esta­
pairavam sobre as águas? Se se imagi­ va Aquele que certamente não ocupa
na um corpo pairando num espaço, o espaço e do qual unicamente se disse
conceito não se pode aplicar nem que é o “vosso dom”? É no “vosso
mesmo ao Espírito Santo. Mas se se dom” que repousamos. Nele gozare­
considera a eminência imutável da mos de Vós. É o nosso descanso, é o
Divindade pairando acima de tudo o nosso lugar. É para lá que o Amor nos
que é transitório, então o Pai e o Filho arrebata e que o “Espírito Santo levan­
também eram levados sobre as águas, ta o nosso abatimento desde as portas
como o Espírito Santo. da morte 6 53. Na vossa “boa vontade”
Qual o motivo por que só se faz esta temos a paz.
afirmação do Espírito Santo? Porque é
que só a Ele se refere a Escritura, ao 6 53 S19, 15.
292 SANTO AGOSTINHO

O corpo, devido ao peso, tende para arrebata-nos para o alto. Ardemos e


o lugar que lhe é próprio, porque o partimos. Fazemos ascensões no cora­
peso não tende só para baixo, mas ção e cantamos o “cântico dos de­
também para o lugar que lhe é próprio. graus655”. É O VOSSO fogO, O VOS.SO
Assim o fogo encaminha-se para cima, fogo benfazejo que nos consome en­
e a pedra para baixo. Movem-se segun­ quanto vamos e subimos para a paz da
do o seu peso. Dirigem-se para o lugar Jerusalém celeste. “Regozijei-me com
que lhes compete. O azeite derramado aquilo que me disseram: Iremos para a
sobre a água aflora à superfície; a água casa do Senhor 6 5 6.” Lá nos colocará a
vertida sobre o azeite submerge-se “boa vontade”, para que nada mais
debaixo deste: movem-se segundo o desejemos senão permanecer ali eter­
seu peso e dirigem-se para o lugar que namente.
lhes compete. As coisas que não estão
6 5 5 Sl 119 — Canticum graduum (o cântico dos
no próprio lugar agitam-se, mas, quan­ degraus) é um gracioso saltério composto de quinze
do o encontram, ordenam-se e repou­ salmos (119-133). Não se conhece bem a origem
sam. deste nome. São várias as opiniões. 1) Segundo
alguns, eram cânticos de alegria, que os grupos de
O meu amor é o meu peso. Para judeus vindos da Caldéia para a Palestina, após o
qualquer parte que vá, é ele quem me edito de Ciro, entoaram em sinal de regozijo.
leva6 5 4. O vosso Dom inflama-nos e 2) Para outros, os “degraus” simbolizavam as
peregrinações a Jerusalém, que ficava num alto,
6 5 4 Por esta idéia, “o meu peso é o meu Amor” obrigatórios para os judeus três vezes por ano.
(Pondus meum amor meus), Santo Agostinho proje­ 3) Segundo certos exegetas, a origem do nome está
ta a sua influência em Max Scheler, o filósofo da no ritmo graduado dos salmos. (N. do T.)
teoria dos valores. (N. do T.) 6 5 6 5/126,6.

10
Tudo o que temos é dom de Deus

11. Feliz a criatura que não conhe­ Bíblia não faz mais que indicar o que
ceu outro estado! E, contudo, ela não ela teria sido, se não fosse iluminada.
o teria alcançado, se imediatamente Por isso fala dela como se antes fosse
após a sua criação, sem nenhum inter­ flutuante e tenebrosa. Assim aparece
valo de tempo, o “vosso Dom 6 5 7”, que melhor a causa que a conduziu ao res-
paira sobre todo objeto mutável, a não plendor inextinguível e a transfigurou
tivesse erguido, com a palavra que dis­ em luz.
sestes: “Faça-se. a luz” e fez-se a Entenda estas coisas aquele que
luz 6 58”. Em nós distingue o ternpo em puder, e o que não puder, que Vos peça
que fomos trevas daquele em fomos a graça de as compreender. Mas por
feitos luz 6 59. Mas daquela criatura a que razão este me faz perguntas impor­
tunas, como se eu fosse a luz que “ilu­
6 5 7 O Dom de Deus é o Espírito Santo, a quem se
atribui o Amor, assim como ao Filho, a Sabedoria, mina todo homem vindo a este
e ao Pai, o Poder. (N. do T.) mundo 6 60”?
6 58 Gên 1,3.
6 59 Ef5, 8. 6 60 Jo 1,9.
CONFISSÕES XIII 293

11
A concepção da Trindade

12. Quem compreende a Trindade Cada um está diante de si mesmo.


Onipotente? E quem não fala dela, Estude-se, veja e responda-me. Mas se
ainda que a não compreenda? Ê rara a refletir nesta matéria e me responder o
pessoa que ao falar da Santíssima que tiver descoberto, não julgue que
Trindade saiba o que diz. Contendem e chegou a conhecer o que é Incomutá-
disputam. E contudo ninguém contem­ vel. Este, como tal, é superior a todas
pla esta visão sem paz interior. Quise­ estas operações da alma. É Incomu-
ra que os homens meditassem três coi­ tável no Ser, Incomutável no Conheci­
sas, dentro de si mesmos. Todas estão mento e Incomutável na Vontade. Mas
muito afastadas da Augusta Trindade, é por causa destas três faculdades que
mas apresento-lhes assunto onde se existe em Deus a Trindade? Ou estas
exercitem, experimentem e sintam três faculdades existem em cada uma
quão longe estão de compreender este das Pessoas Divinas, de tal maneira
mistério. que todas as três se encontram em
As três coisas que digo são: existir, cada uma delas? Ou ambas as’coisas
conhecer e querer. Existo, conheço e se realizam misteriosamente, numa
quero. Existo sabendo e querendo; e simplicidade que é justamente multipli­
sei que existo e quero; e quero existir e cidade, sendo a Trindade o seu próprio
saber. fim infinito, pelo qual existe, se conhe­
Repare, quem puder, como a vida é ce e se basta imutavelmente na magni­
inseparável nestes três conceitos: uma tude copiosa da sua Unidade?
só vida, uma só inteligência, uma só Quem facilmente o pensará? Quem
essência, sem que seja possível operar o poderá explicar dalgum modo?
uma distinção, que, apesar de tudo, Quem se atreverá temerariamente a
existe. dar uma solução de qualquer modo?

12
O “Fiat Lux” na Igreja

13. Ó minha fé, avança na tua sua Igreja. A nossa “terra”, antes de
confissão! Diz ao Senhor teu Deus: receber a forma da doutrina, era “invi­
“Santo, Santo, Santo é o Senhor meu sível e desordenada”. Estávamos enter­
Deus”. Em vosso nome, Pai, Filho, rados nas trevas da ignorância, porque
Espírito Santo, fomos batizados661. castigastes o “homem pela sua iniqui­
Em vosso nome, Pai, Filho e Espírito dade662”, e “os vossos justos juízos
Santo, batizamos, pois pelo seu Cristo são como abismos profundos 6 63”.
criou Deus entre nós um “céu” e uma Mas, porque o vosso Espírito “pai­
“terra”, isto é, os espirituais e os car- rava sobre as águas”, a vossa miseri-
nasis, os perfeitos e os imperfeitos da
6 62 SZ37, 12.
661 Mí 28, 19. 6 63 SI 35,7.
294 SANTO AGOSTINHO

córdia não abandonou a nossa miséria, Jordão, na montanha igual a Vós 6 6 5,


e disssestes: “Faça-se a luz”; “Fazei mas diminuída em altura, por nossa
penitência, pois se aproximou o reino causa. Desagradaram-nos as nossas
dos céus 6 6 4”. “Fazei penitência, faça- trevas. Voltamo-nos para Vós e fez-se
se a luz.” a luz.
Porque a alma nos perturba, lembra- Fomos “outrora trevas; agora,
mo-nos de Vós, ó Senhor, na terra do porém, somos luz no Senhor 6 6 6”.
6 6 5 5Z41, 7.
6 6 4 Mt 3,2. 6 6 6 £/5,8.

13
Somos lamparina que há de ser estrela

14. Contudo, somos luz só pela fé e conformeis com este século, mas refor­
não pela visão clara (de Deus). mai-vos pela renovação do vosso espí­
“Fomos salvos pela esperança 6 6 7.” E, rito 6 7 4”. “Não sejais crianças nas vos­
quando se vê o que se espera, não há sas mentes, mas sede como crianças
esperança. Ainda “o abismo chama quanto ao mal, para que sejais perfei­
por outro abismo”, mas é já por inter­ tos no espírito 6 7 5.”
médio do “sussurro das vossas catara­ E repreende também: “Ó loucos gá-
tas668”. latas, quem vos fascinou 6 7 6?”
São Paulo, que diz: “Não vos pude Isto di-lo (São Paulo), não já com a
falar como a espirituais, mas sim como sua voz, mas com a vossa. Enviastes lá
a carnais 6 69”, até ele julga que ainda de cima o Espírito Santo, por inter­
não alcançou a meta. Assim, esquecen­ médio de Jesus, que subiu ao alto a
do-se das coisas passadas 6 70, estende abrir as cataratas dos vossos dons para
o seu pensamento para as coisas futu­ que a torrente caudalosa alegrasse a
ras e geme sob o peso que o esma­ vossa Cidade 6 7 7. Por esta suspira (São
ga6 71. A sua alma anseia pelo Deus Paulo) o amigo do Esposo 6 7 8, pos­
vivo, “como os cervos pelas fontes suindo já, em si, “as primícias do espí­
vivas 6 72”, e exclama: “Quando chega­ rito679”, mas gemendo ainda consigo
rei lá?” Desejando “abrigar-se sob a mesmo, esperando a adoção e o resga­
sua morada, que está no céu 6 73”, te do seu corpo. Por Ela suspira —
chama também pelos que estão no pois é membro da Esposa; por Ela se
abismo inferior, dizendo: “Não vos abraseia em zelo — pois é o amigo do
6 6 7 2 Cor 5, 7. Esposo 68°. Zela pela Igreja e não por
6 68 Sl 41, 8. A alma que vive da fé e não da visão si, porque, com a voz das vossas cata­
face a face de Deus, precisa de ser doutrinada. ratas, e não com a sua, chama por
Para Santo Agostinho, o abismo é o homem
(particularmente o seu coração, o qual chama por 6 7 4 Rom 12,2.
outro abismo quando instrui outro homem nas ver­
dades da fé). Mas essa elucidação só é proveitosa 6 7 5 1 Cor 14,20.
quando se faz pela voz de Deus, isto é, pelos seus 6 7 6 GáZ3,l.
Enviados e pela Sagrada Escritura. (N. do T.)
6 7 7 57 45,5.
6 69 1 Cor 3,1.
6 70 Flp 3,13. 6 78 Jo3, 29.
671 2 Cor 5,4. 6 7 9 RomZ, 23.
6 72 57 41, 3.4. 680 No sentido místico, o Esposo é Jesus Cristo, e
6 73 2 Cor 5,2. a Esposa é a Igreja1. (N. do T.)
CONFISSÕES XIII 295

outro abismo 681 objeto do seu zelo e Quão resplandecente será aquela luz
dos seus temores. Receia que, “assim da sua Beleza, quando ,O contem­
como a serpente enganou a Eva com a plarmos tal qual é e tiverem passado
sua astúcia, assim os sentidos (dos “as lágrimas que se tomaram o meu
imperfeitos) degenerem da castida­
pão de dia e de noite, ao perguntar-se-
de682” que está no nosso Ésposo,
vosso único Filho. ; me todos os dias: Onde está o teu
Deus? 683”
681 Quer isto dizer que instrui os outros não em
seu próprio nome, mas em nome de Jesus Cristo.
(N. do T.)
682 2 Cor 11, 3. 683 5/41,4.

14
Na esperança

15. E eu digo: “Meu Deus, onde sua presença 68 7.” “Verei a salvação
estais? Onde estais Vós? Respiro em do meu rosto 688”, isto é, o meu Deus,
Vós um pouco, quando derramo a que “vivificará os nossos corpos mor­
minha alma sobre mim num cântico de tais pelo seu Espírito, que em nós habi­
exultação e de louvor, semelhante ao ta689.” Ele desliza misericordio­
ruído dum festim 68 4”. Mas ainda está samente à superfície do nosso interior
triste, porque escorrega e se trans­ tenebroso e flutuante.
forma em abismo, ou melhor, sente que
Recebemos por isso nesta peregrina­
é ainda abismo.
A minha fé, a fé que acendestes à ção o penhor de sermos já luz (nesta
minha frente para de noite alumiar vida), ao sermos salvos pela esperança.
De filhos da noite e das trevas que dan­
meus pés, diz-lhe: “Por que estás triste,
ó minha alma! e por que me pertur­ tes éramos, tomamo-nos filhos da luz e
bas? Espera no Senhor 68 5”; a sua do dia. Só Vós, por entre a incerteza da
palavra é lâmpada para os teus passos. ciência humana, distinguis entre uns e
Espera e persevera, até que passe a outros, porque provais os nossos cora­
noite, que é a mãe dos maus, até que ções e chamais “à luz, dia, e às trevas,
passe a ira do Senhor, ira de quem noite 690”. Sim, quem, senão Vós, pode
fomos filhos quando outrora éramos fazer este discernimento? Mas que
trevas. Destas, arrastamos ainda os coisa possuímos que não tenhamos de
restos no corpo morto pelo pecado, até Vós recebido? Fomos feitos vasos de
que chegue o alvorecer do dia e se'dis­ honra, da mesma massa de argila de
sipem as sombras. Espera no Senhor. que outros foram feitos vasos de
De manhã pôr-me-ei na sua presença e ignomínia6 91.
o contemplarei; “sempre o hei de
louvar 6 8 6”. “De manhã pôr-me-ei na 68 7 5/5,5.
688 5/42,5.
884 5/41,5. 689 Rom 8, 11.
68 5 5/41,6. 690 Gên 1, 5.
68 6 Cântl, 17. 691 JRom9,21.
296 SANTO AGOSTINHO

15
AEscritura e os anjos 692

16. Mas quem, senão Vós, Senhor, les que ainda são meninos e crianças
estendeu sobre nós e para nosso pro­ de peito 69 6.”
veito o “firmamento” de autoridade da De fato, não conhecemos outros li­
vossa divina Escritura? “O céu será vros que assim destruam a soberba e
dobrado como um livro 693”, e agora, assim arruinem o inimigo defensor que
estende-se como um pergaminho sobre resiste a toda reconciliação convosco e
as nossas cabeças. advoga seus pecados. Não conheci, ó
A vossa divina Escritura goza da Senhor, não conheci palavras tão
mais sublime autoridade depois que puras, que tanto me persuadissem a
aqueles mortais, por quem no-la dis­ confessar-Vos, que tanto suavizassem
pensastes, encontraram a morte. Vós, a sujeição da minha mente ao vosso
Senhor, sabeis como vestistes de jugo e me convidassem a servir-Vos
peles 69 4 os homens, ao tomarem-se tão desinteressadamente! Possa eu
mortais pelo pecado. Pelo que, desdo­ compreender essas verdades, ó Pai
brastes como um pergaminho o firma­ querido. Concedei este favor à minha
mento do vosso livro. sujeição, já que para os submissos as
Desenrolastes os vossos oráculos firmastes.
em tudo concordes, que dispusestes 18. Há sobre este firmamento ou­
acima de nós por meio do ministério tras águas que, segundo creio, são
de homens mortais. Sem dúvida, pela imortais e isentas de toda a corrupção
sua morte, o fundamento da autori­ terrena. Que elas louvem o vosso
dade em vossas palavras por eles nome! Que os povos supracelestes de
divulgadas admiravelmente se estende vossos anjos, que não têm necessidade
acima de tudo o que exista cá embaixo de olhar este firmamento nem de
na terra. Enquanto eles viveram no conhecer, pela leitura, a vossa palavra,
mundo, essa autoridade não se tinha Vos bendigam! Eles vêem continua­
dilatado tão sublimemente. Ainda não mente a vossa face e percebem, sem o
tínheis desenrolado o céu como se faz auxílio de sílabas que passam, a vossa
a um pergaminho. vontade. Sim, percebem-na, elegem-na
17. Ainda não tínheis divulgado por e amam-na. Aprendem continuamente,
toda parte a fama que alcançariam aos e nunca esquecem o que aprendem!
nossos olhares! Neles está o vosso Elegendo e amando a vossa vontade,
testemunho, que dá sabedoria aos lêem a imutável estabilidade de vossas
humildes 69 5. “Completai, meu Deus, resoluções. Os seus códices não se fe­
os vossos louvores pelos lábios daque­ cham nem os seus livros se cerram^ por­
692 Novos símbolos e alegorias: o firmamento é a
que Vós mesmo sois etemamente o seu
alegoria da Escritura; as águas colocadas sobre o livro, já que estabelecestes os vossos
firmamento são a alegoria dos anjos. (N. do T.) anjos acima deste firmamento, por Vós
693 Is 34, 4; 5/103,2.
69 4 Para a aproximação de idéias, advertimos que assente sobre a fraqueza dos homens,
Santo Agostinho emprega a mesma palavra (pelíis) para que estes, olhando-o, conheçam a
para significar “pele” e “pergaminho”. (N. do T.)
69 5 5/8,4. 69 6 5/ 18,8.
CONFISSÕES XIII 297

vossa misericórdia, que no tempo Vos palavra permanece etemamente.


enaltece, a Vós, Criador dos tempos. Agora, ela aparece-nos não como é,
“No céu, Senhor, reside a vossa miseri­ mas em enigma de nuvens e através do
córdia e a vossa verdade levanta-se até espelho do céu, porque “ainda não
às nuvens 6 9 7.” manifestou o que havemos de ser 69 9”,
Passam as nuvens, porém o céu per­ posto que também nós sejamos diletos
manece. Passarão desta vida à eterna ao vosso Filho.
os pregadores da vossa palavra, mas a Jesus olha-nos através da teia da
vossa Escritura estender-se-á sobre carne. Acariciou-nos, inflamou-nos no
todos os povos até ao fim dos séculos. seu amor, e “nós corremos atrás do
“Também o firmamento e a terra dei­ aroma do seu perfume700”. Mas
xarão de existir. Porém, vossas pala­ “quando aparecer, seremos seme­
vras jamais hão de emudecer 6 9 8.” Este lhantes a Ele, porque vê-Lo-emos tal
“pergaminho” será enrolado, e o feno qual é701”. Senhor, concedei-nos a
sobre o qual se estendia sumir-se-á graça de O vermos como é, pois ainda
com o seu resplendor. Mas a vossa O não podemos contemplar.
699 1 7o 3, 2.
69 7 .57 35, 6. 700 Cãnt 1, 3.
698 AfZ 24. 35. 701 17o 3. 2.

16
Ciência, luz e vida

19. Ora, assim como sois o Ser conheça a luz imutável como ela se
absoluto, assim também sois o único conhece a si própria. Por isso, “a
que possui a verdadeira ciência. minha alma é, aos vossos olhos, como
Vós sois imutável na vossa existên­ terra ressequida sem água702”, por­
cia; imutável a vossa sabedoria; imutá­ que, assim como ela se não pode ilumi­
vel na vossa vontade. A vossa essência nar por si mesma, assim também, por
sabe e quer imutavelmente; a vossa virtude própria, se não pode saciar.
sabedoria é e quer imutavelmente; a “Em Vós jorra a fonte da vida, e na
vossa vontade imutavelmente é e sabe. vossa Luz veremos a luz 7 0 3. ”
Nem parece justo aos vossos olhos que 702 57 142, 6
o ser mutável e por Vós iluminado 703 Sl 35, 10.

17
As águas amargas, alegoria dos mundanos

20. Quem é que reuniu num só es­ disse às águas que “se reunissem num
paço as águas amargas? Têm estas só lugar”, e que aparecesse “a terra
como fim obter uma felicidade tempo­ enxuta70 4”, sedenta de Vós?
ral e terrena. Para a alcançar não se O mar é vosso, fostes Vós que o
poupam a esforços, apesar de serem já
70 4 Gên 1, 9. No mar do mundanismo surgem ilhas
muitos e variados os cuidados que as de “terra enxuta”. Estas significam alegoricamente
agitam. Quem, Senhor, senão Vós, as almas de bem. (N. do T.)
298 SANTO AGOSTINHO

fizestes. Foram as vossas mãos que xão, conforme for a sua semelhança
formaram a “terra enxuta”. Chama-se com o próximo, porque é o sentimento
mar não à amargura das vontades, mas nascido da nossa miséria que nos leva
à reunião das águas. Reprimis as a ter piedade dos que estão precisados,
tendências más das almas e determi­ na proporção em que desejaríamos que
nais os limites até onde podem avançar nos auxiliassem, se tivéssemos as mes­
as águas, para que as ondas se que­ mas necessidades.
brem contra si próprias. Assim, criais
o màr (do mundo) submetido ao vosso Devemos socorrer o próximo não
poder universal. somente nas coisas fáceis, semelhantes
21. Porém, às almas que têm sede às ervas70 5 nascidas de semente, mas
de Vós e que aparecem aos vossos também obsequiá-lo com uma prote­
olhos separadas do mar (do mundo) ção forte e vigorosa. Assim a terra pro­
por outra vocação, Vós as regais com duz árvores de fruto, isto é, obras que
uma água misteriosa e doce, para que arrebatam das mãos dos poderosos os
a “terra” dê o seu fruto. E então, quan­ que sofrem vitupérios e lhes dão a
do Vós, seu Dono e seu Deus, o orde­ sombra da nossa proteção, com o roble
nais, a nossa alma germina em obras resistente da verdadeira justiça.
de misericórdia, conformes à sua pró­ 70 5 Há obras de caridade que se exercitam todos os
pria condição, amando o próximo, aju­ dias. Na abundância e facilidade com que se encon­
dando-o nas necessidades materiais. tram, assemelham-se às ervas. Há outras obras de
misericórdia que só raramente e dificilmente se nos
Essa “terra” (a alma misericordiosa) deparam. Assemelham-se às árvores de fruto. (N. do
contém em~si esta semente de compai­ T.)

18
Os justos, astros no firmamento

22. Assim, como Vós, Senhor, esta pequena colheita das nossas boas
criais e repartis a alegria e a força, obras, fazei que obtenhamos a graça
assim, eu vo-lo peço, nasça também da de nos elevarmos até à contemplação
“terra” a verdade; a “justiça70 6” olhe das delícias do Verbo da Vida, para
para nós do céu, e façam-se astros no que brilhemos, “no mundo, como
“firmamento 70 7”. Repartamos o nosso astros710”, fixos no firmamento da
pão com os que têm fome, alojemos em vossa Escritura. Nela ensinais-nos a
nossa casa o pobre sem abrigo, vista­ distinguir as coisas inteligíveis das
mos os nus e não desprezemos os que, sensíveis, como o dia da noite. Nela
“habitando sob o mesmo teto, são ensinais-nos a diferenciar as almas
nossos semelhantes 708”. espirituais daquelas que se entregam
Nascidos estes frutos na nossa aos sentidos.
“terra”, vede, Senhor, como a germina­ Deste modo, já não sois Vós o único
ção é boa. Fazei que apareça a nossa a separar a luz das trevas, nos arcanos
“luz no momento oportuno 709”. Com da vossa inteligência, como sucedia
antes de estar criado o firmamento.
70 6 Ó7 84,12.
70 7 Gên í, 14. Também as vossas criaturas espirituais
708 Is 63, 7.8. \
709 Is 58, 8. 710 Flp2, 16.
CONFISSÕES XIII 299

mamento^ depois de a vossa graça se É Ele quem, distintamente, para utili­


ter manifestado através do mundo, bri­ dade dos fiéis, faz aparecer o brilho
lham sobre a terra, dividindo o dia da destes astros.
noite è determinando as diferenças dos O dom da ciência — que contém
tempos. todos os vossos mistérios, os quais,
Com efeito, antiga aliança passou, e como a Lua, têm a sua fase segundo os
eis que surge outra nova 711. A nossa tempos 715 — e todos os outros dons
salvação está mais perto do que quan­ sucessivamente mencionados, compa­
do começamos a acreditar. A noite rei-os eu às estrelas. Mas, do brilho da
avançou em sua marcha e aproximou- Sabedoria com que se alegra o anun­
se o dia. Vós coroais o ano da vossa ciado dia, distinguem-se tanto que, em
bênção enviando operários para a
vossa messe712 em cuja sementeira sua comparação, não são mais do que
outros trabalharam, e enviando-os o começo da noite! Porém os vossos
também para outra sementeira,: cuja dons são necessários àqueles a quem
colheita não se há de recolher antes do vosso servo prudente (São Paulo) não
fim dos séculos. pôde falar como a homens espirituais,
Deste modo realizais os desejos dos mas como a homens carnais71 e, ele,
justos e abençoais os seus anos. Porém que pregou a Sabedoria entre os
“Vós sois sempre o mesmo71 3”, e nos perfeitos71 7.
vossos anos, que não têm fim, prepa­ Quanto ao homem “carnal718” —
rais um celeiro para os anos que como menino em Cristo qne ainda se
passam. sustenta de leite —, não se considere
23. Por um desígnio eterno, lançais abandonado na sua noite, mas esteja
sobre a terra os dons celestes, no contente com a luz da lua e das estre­
tempo determinado: a uns dais, por las, até que alcance forças jpará> poder
meio do Espírito Santo, a palavra da mastigar alimentos sólidos e fixar os
Sabedoria, semelhante a grande corpo olhos no brilho do sol.
luminoso, destinado àqueles que se Eis o que sapientissimamente nos
deleitam — como ao raiar do dia — ensinais, nosso Deus, no vosso Livro,
com a luz cintilante da Verdade; a ou­ no vosso firmamento, para que discer­
tros dais, por meio do mesmo espírito, namos todas as coisas por meio duma
a palavra da Ciência, corpo já menos contemplação inefável, apesar de estar­
luminoso; a outros dais a fé, a outros o mos sujeitos, por enquanto, “às conste­
poder de curar, a outros o dom dos lações, .ao tempo, aos dias e aos
milagres, a outros o da profecia a ou­ anos719”.
tros o dom do discernimento dos espí­
ritos, a outros o dom das línguas. E 71 5 Quer o Santo Doutor dizer, nesta frase, que os
todos estes dons são como estrelas. . . sinais misteriosos do Antigo Testamento não são os
mesmos do Novo Testamento. O próprio Santo
“Todas estas graças as opera um só e Agostinho afirma: “Os mistérios (sacramenta) não
mesmo Espírito, que reparte por cada são os mesmos, porque uns são os que dão a salva­
um os seus dons como lhe agrada71 4.” ção, e outros são os que prometem o Salvador”(Co-
mentário ao Sl 73, 2). (N. do T.)
711 2 Cor 5, 17. '71 5 1 Cor 2, 6
712 Mt 9, 38. 71 7 1 Cor 2, 14.
713 51101,28. 718 1 Cor 3,1-2. ,
71 4 1 Cor 12,7.11. 719 Gên 1, 14.
300 SANTO AGOSTINHO

19
Alegoria da “Terra enxuta”720

24. Mas, antes de tudo, “lavai-vos e do firmamento do céu. Isto não se


sede limpos; tirai a maldade de vossas poderá realizar, se o teu coração não
almas e da presença de meus olhos 721”, estiver no céu, o que, igualmente não
para que a “terra enxuta” comece a acontecerá sem nele residir o teu tesou­
aparecer. Aprendei a praticar o bem, ro723, como ouviste dizer ao Bom
prestai justiça ao órfão, mantende os Mestre.
direitos da viúva, para que a terra pn> Mas “a terra estéril entristeceu-
duza erva de pastagem e árvores frutí­ se72 4” e “os espinhos sufocaram72 5”
feras. Em seguida vinde, disputemos a palavra divina.
— diz o Senhor —, para que brilhem 25. Vós, porém, geração escolhida,
os astros no firmamento e espalhem a “fracos segundo o mundo 72 6”, que
sua luz sobre a terra. deixastes tudo para seguir ao Senhor,
Perguntava aquele rico ao Bom caminhai em seu seguimento e con­
Mestre que havia de fazer para conse­ fundi os fortes. Segui-o com os pés
guir a vida eterna722. Diga-lhe o Bom resplandecentes e brilhai no “firma­
Mestre — Bom, porque é Deus, mas mento” para que “os céus narrem a
que o rico tinha na conta de simples sua glória72 7”. Sabei distinguir entre a
homem e de nada mais ! —, diga-lhe o luz dos perfeitos, que não é ainda
Bom Mestre que, se quiser conseguir a como a dos Anjos, e as trevas dos
vida, guarde os mandamentos e aparte pequenos a quem não faltou a esperan­
de si a amargura da malícia e da ça. Resplandecei sobre toda a terra, e
iniquidade; que não mate, não cometa que o vosso dia, incandescente com o
adultério, não roube, -não pronuncie sol, revele ao dia a palavra da Sabedo­
falsos testemunhos, para que apareça a ria, e que a noite iluminada pela lua
“terra enxuta” e germine o respeito ao anuncie à noite a palavra da Ciência.
pai e à mãe, e o amor ao próximo. A lua e as estrelas alumiam a noite.
“Tudo isto fiz eu”, respondeu o rico. Mas esta não as obscurece, antes pelo
Donde provêm, então, tantos espi­ contrário, elás esclarecem a noite na
nhos, se esta terra é boa e frutífera? medida em que pode ser iluminada.
Vai, arranca os silvados densos da Assim sucedeu nos princípios da Igre­
avareza, vende quanto possuis, enche a ja, como se Deus dissesse: “Apareçam
tua alma de frutos, dando tudo aos os astros no firmamento do céu!”, e
pobres, e terás um tesouro no céu; subitamente se produzisse um ruído
segue ao Senhor, se queres ser perfeito vindo do céu, como se soprasse um
e do número daqueles que Ele instrui turbilhão veemente de vento. Foram
na Divina Sabedoria. O Senhor sabe a vistas línguas de fogo, que, dividindo-
distinção que é preciso formular entre se, pousaram sobre cada um dos após­
o dia e a noite, e fará que a conheças tolos 728. Assim se criaram, no “firma-
para que tenhas lugar entre os astros 723 Mt6, 21.
724 Lc 18.
720 A “terra enxuta” significa a alma que faz o 72 5 Mt 13,7.
bem. (N. do T.) 726 IPdrl, 19; 1 Cor 1, 27.
721 Is 1, 1618. 72 7 5/18,2.
722 Mt 19, 16-22;Mc 10,17-22;Lc 18, 18-23. 728 Aí 2, 2.3.
CONFISSÕES XIII 301

mento” do céu, astros que possuíam a tros brilhantes! Vós sois a luz do
palavra da Vida72 9. Discorrei por mundo e não deveis permanecer sob o
toda parte luminares sacrossantos, as- alqueire. Aquele a quem vos ligastes
foi exaltado e exaltou-vos. Discorrei e
729 Flp 15, 16 dai-vos a conhecer a todas as gentes 1

20
Interpretações místicas
26. Que o mar conceba também e confundo a questão, misturando os
dê à luz as vossas obras, e que “as conhecimentos claríssimos referentes a
águas gerem os répteis de almas estas coisas resplendorosas no firma­
vivas 730”. Pois, separando o precioso mento do céu, não as distinguindo das
do vil, vós vos tomastes a boca de obras corporais criadas no mar agita­
Deus, por quem Ele diz: “Que as águas do do mundo e sob o firmamento do
produzam”, não as almas vivas que a céu? Não, certamente! Por um lado, as
terra origina, mas “répteis dotados de noções acerca dos seres materiais são
almas vivas e as aves que voam sobre a sólidas e invariáveis, nem se multi­
terra”. Os vossos sacramentos são plicam de geração em geração, como
como estes répteis que pelas obras dos as luzes da Sabedoria e da Ciência.
vossos santos, ó meu Deus, deslizaram Por outro, estes seres orgânicos com­
por meio das ondas das tentações do portam muitas e variadas operações
século para banharem os gentios com corporais, e, crescendo uns de outros,
o vosso nome e os regenerarem pelo multiplicam-se sob a vossa bênção, ó
vosso batismo. meu Deus. Consolastes, por este meio,
Então (no início da Igreja) foram o fastio dos sentidos do corpo, permi­
operadas grandes maravilhas731 — tindo que uma verdade única seja figu­
semelhantes a enormes cetáceos —, e rada e apresentada ao entendimento de
as vozes dos vossos mensageiros voa­ múltiplos modos, por meio de diversas
ram sobre a terra, perto do firmamento operações sensíveis.
da vossa Escritura. Esta protegia-os Eis as maravilhas que “as águas
com sua autoridade e sob esse firma­ produziram 73 4” pela onipotência da
mento voavam, para qualquer parte vossa palavra. As necessidades dos
que se dirigissem. “Não há língua nem povos, afastados da vossa eterna Ver­
palavras em que não se ouçam as suas dade, provocam estes prodígios por
vozes 732”. Efetivamente, o brado dos intermédio do vosso Evangelho. Efeti­
Apóstolos espalhou-se por toda a terra vamente foram as águas que lançaram
e as suas palavras chegaram até aos de suas entranhas essas maravilhas. A
confins do orbe. Vós, Senhor, “as sua amargura doentia deu ocasião a
multiplicastes 733” com as vossas bên­ que esses seres se originassem da vossa
çãos. palavra73 5.
27. Porventura falto à verdade ou
73 4 Gên 1, 24.
730 Gên 1, 20. Os “répteis dotados de almas vivas” 73 5 Santo Agostinho quer dizer que “as águas
simbolizam os Sacramentos; “as aves que voam amargas”, isto é, os mundanos, deram azo a que
sobre a terra” são a alegoria dos apóstolos e missio­ Deus efetuasse prodigiosos milagres nos primórdios
nários. (N. do T.) da Igreja. Com efeito dos Apóstolos, para converter
731 At2, 11. os infiéis, lançaram mãos de maravilhas sobrenatu­
732 Sl18,5. rais, como de curas extraordinárias, profecias, etc.
733 Sl 18, 4. (N. do T.)
302 SANTO AGOSTINHO

28. Todas as coisas são belas, pois dispensadores 73 7 descobrissem, mate­


Vós sois o seu autor; mas Vós, que rial e sensivelmente, tantos fatos alegó­
criastes tudo, sois indizivelmente mais ricos e palavras misteriosas.
belo ! Se Adão, pela sua queda, não se Foi assim que me ocorreu inter­
tivesse afastado de Vós, não se difundi­ pretar aqueles “répteis” e “aves”. Até
ría do seu regaço a salsugem do mar, mesmo os homens imbuídos e inicia­
isto é, o gênero humano profunda­ dos neste simbolismo não avançariam
mente curioso, procelosamente intu- mais “no conhecimento desses misté­
mescido, inconstante e movediço nas rios”, se a sua alma, subindo mais alto,
suas ondas. Não seria necessário que, não se robustecesse na vida espiritual,
no meio de tantas águas 73 6, os vossos e se, após as palavras iniciais (do batis­
mo), não aspirasse à perfeição.
73 6 “Tantas águas” simbolizam os vários povos.
(N. do T.) 73 7 Os pregadores da palavra de Deus. (N. do T.)

21
A alma cristã

29. Pelo que, não foi o mar profun­ palavra, por intermédio dos vossos
do, mas a terra separada das águas mensageiros!
amargas que lançou de si, impelida Nós falamos das maravilhas dos
pela vossa palavra, não répteis de Apóstolos, mas quem age por seu
almas vivas e aves, mas uma “alma intermédio, para que possam produzir
viva73 8”. Já não tem necessidade do uma alma viva, sois Vós.
batismo, imprescindível aos gentios, e Quem a germina é a terra, porque é
igualmente indispensável para ela, a causa de que se realizem estes fenô­
quando ainda se encontrava coberta menos à sua superfície, assim como o
pelas “águas”. mar foi a causa de que fossem produzi­
A alma não pode entrar no reino dos dos “os répteis de almas vivas e as
céus por outro caminho, porque assim aves, sob o firmamento” do céu. A
o determinastes. Não busca deslum­ terra já não precisa de aves e répteis,
bramentos de milagres para se enraizar porque se alimenta do peixe 7 40 tirado
na fé. do fundo do oceano, para aquela
Essa alma é a terra fiel separada das “mesa (da Eucaristia) que preparastes
águas amargas do mar, símbolo do na presença741” dos crentes. Pois, se
paganismo. Por isso, não deixa de foi extraído do fundo das águas, foi
acreditar mesmo que não veja milagres para alimentar a terra. E as aves, ainda
e prodígios, pois “o prodígio das lín- que nascidas no mar, multiplicam-se
gwas não é para os fiéis, mas para os também sobre a face da terra.
infiéis73 9”. A terra, por Vós estabele­ A infidelidade dos hornens foi a
cida sobre as águas, não tem necessi­ causa das primeiras palavras dos
dade desta espécie de aves que as
águas produziram em obediência à voz 7 40 Alusão à figura do peixe, sob a qual os primei­
ros cristãos representavam a Jesus Cristo. A origem
do vosso mando. Enviai-lhe a vossa deste símbolo reside na palavra l/Qúç, que em
grego significa peixe, formada pelas iniciais de
73 8 A “alma viva” produzida pela terra (Gên 1, 24) cinco palavras que, traduzidas, significam: Jesus
é alegoria da alma cristã. (N. do T.) Cristo, Filho de Deus Salvador.
739 1 Cor 14, 22. 741 S122,5.
CONFISSÕES XIII 303

Evangelizadores, que exortam os fiéis e neno da curiosidade são os movimen­


lhes lançam a bênção de muitos modos tos da alma inerte, a qual não morre a
de dia em dia. Mas a alma viva (a alma ponto de carecer de todo o movimento.
cristã) recebeu a sua origem da terra, Morre, afastando-se da fonte da Vida,
porque só aos fiéis é meritório' refrea­ e é arrebatada pelo mundo que passa e
rem-se no amor a este mundo, para que com o qual se conforma.
a alma deles viva para Vós. Sim, ela 31. A vossa palavra, porém, meu
estava morta quando vivia, Senhor, Deus, é “fonte de Vida eterna7 4 6”, e
“nas delícias 7 42”, que eram mortífe­ não passa. Pela vossa palavra é-nos
ras, porque só Vós sois as delícias vi­ proibido esse afastamento de Vós, ao
tais do coração puro. dizer-nos: “Não vos conformeis com
30. Que os vossos ministros traba­ este mundo, a fim de que a terra produ­
lhem na terra, não como entre as águas za uma alma viva”, na fonte da Vida,
da infidelidade, anunciando e falando uma alma pura que observe a vossa
por milagres é frases místicas que, à palavra declarada pelos Evangelistas e
vista destes prodígios misteriosos, tor­ imite os Imitadores do vosso Cris­
nam atenta a ignorância, mãe da admi­ to747.
ração. Tal é a entrada da fé, para os fi­
lhos de Adão, que, esquecidos de Vós, Eis o sentido místico da expressão
se escondem da vossa face7 43 e se tor­ “segundo a espécie 7 48”, porque o
nam um abismo. Os vossos ministros homem imita aquele que ama. “Sede
arroteiem esse campo como “terra como eu”, disse São Paulo, “porque
enxuta” separada das fauces do abis­ também sou como vós 7 49. ”
mo e sejam modelo para os fiéis, viven­ Deste modo, as feras (as paixões) da
do na sua presença de tal modo que os alma viva tomar-se-ão boas, na doçura
excitem a imitar o bem. ‘ das suas ações. Assim no-lo ordenas­
Assim, os fiéis ouvem não só para tes, ao dizer: “Realiza as tuas obras na
ouvir mas também para praticar o que mansidão, e serás amado por todo
lhes é ensinado: “Buscai a Deus e a homem 7 50”.
vossa alma viverá”, para que a terra Os animais domésticos serão bons.
produza uma alma viva 7 4 4”: “não vos Se comerem, não terão fastio, e, se não
conformeis com este mundo7 4 5”; abs- comerem, não padecerão fome. As ser­
tende-Vos dele. Se a alma evita o pentes tomar-se-ão boas. Não serão
mundo, vive, e, se o busca, morre. venenosas para fazerem mal, mas astu­
Refreai-vos na violenta bestialidade tas para se acautelarem. Investigarão a
da soberba, no prazer inerte da luxúria, natureza das coisas temporais tanto
na fama enganadora da ciência, a fim quanto bastá para compreenderem, por
de que as alimárias sejam mansas e os meio das coisas criadas, a eternidade.
animais domésticos sejam doma.dos, e Estes animais, as paixões, servem à
as serpentes não sejam venenosas. Tais razão, quando vivem refreados em
são as paixões da alma, representadas todos os seus caminhos de morte e
alegoricamente. Mas o desdém da forem bons.
arrogância, o prazer da torpeza e o ve-
74 6 Jo 1, 3; 5, 14.
742 lTimS,6. 747 1 Cor 11, 1.
743 Gên 3, 8. 7 48 Gên 1,21.
744 Sl 68, 65. 7 49 GáZ 6, 12.
745 Rom 12, 2. 7 50 Eclo 3, 19.
304 SANTO AGOSTINHO

22
Renovação de espírito

32. Deste modo, Deus, Senhor e perfeito 7 5 4”. Por isso não dizeis: “Fa-
Criador nosso, quando os afetos do ça-se o homem”, mas: “Façamos o
amor mundano forem refreados — homem”. Nem dizeis “segundo a espé­
vivendo mal, com eles morremos — e cie”, mas: “à nossa imagem e seme­
quando a alma for vivente — vivendo lhança”.
bem — e estiver cumprida aquela sen­ O homem, renovado pelo espírito e
tença que dissestes pela boca do Após­ vendo perfeitamente a vossa verdade,
tolo: “Não vos conformeis com este não precisa das indicações de outro
mundo 7 51 ”, seguir-se-á aquilo que homem para proceder “segundo a sua
imediatamente ajuntastes. Assim dis­ espécie”. Graças aos vossos ensina­
sestes: “Mas reformai-vos no rejuve­ mentos, ele mesmo compreende a
nescimento da vossa mente”, não já vossa vontade e aquilo que é bom,
“segundo a espécie”, como quem imita agradável e perfeito. Vós o ensinais a
uma personagem ou como quem vive ver a Trindade da Unidade e a Unida­
cingido à autoridade dum homem mais de da Trindade, porque já é capaz
justo. Não dissestes: “Faça-se o
deste ensinamento. Tendo Vós falado
homem segundo a sua espécie”, mas:
no plural: “Façamos o homem”, afir­
“Façamos o homem à nossa imagem e
ma-se logo no singular: “E fez Deus o
semelhança 7 5 2”, para que entendamos
qual seja a vossa vontade. homem”. Tendo Vós falado no plural:
Além disso, o vosso Dispensador “A nossa imagem”, enuncia-se no sin­
(São Paulo), que gerava os filhos pelo gular: “À imagem de Deus”.
Evangelho, não querendo que aqueles Deste modo, “o homem renova-se
que alimentara com o leite e que, como no conhecimento de Deus, segundo a
ama, criara fossem criancinhas, disse- imagem d’Aquele que o criou 7 5 5”, e,
lhes: “Reformai-vos 7 53 no rejuvenes­ tomando-se espiritual, julga de todas
cimento do vosso espírito para enten­ as coisas que certamente hão de ser
derdes qual seja a vontade de Deus, e julgadas. Porém ele de “ninguém é
discernirdes o bem, o agradável e o julgado 7 5 6”.
751 Rom 12,2. 7 5 4 Rom 12,2.
752 Gên 1,26. 7 5 5 Col 3, 10.
7 53 1 Cor 3, 2; 1 Tes 2, 7. 7 5 6 1 Cor 2, 15.

23
De que coisas pode julgar o homem espiritual

33. Quando, porém, lemos que o que “pela terra se arrastam 7 5 7”. Este
homem “julga todas as coisas”, isto poder, exerce-o por meio da inteli­
significa que tem poder sobre os peixes gência, pela qual percebe o que é do
do mar, sobre as aves do céu, sobre Espírito de Deus. Mas o “homem,
todos os animais domésticos e feras,
sobre toda a terra, e sobre os répteis 7 5 7 Gên 1, 26.
CONFISSÕES XIII 305

posto em lugar de honra, não entendeu Senhor, já os conheceis, já os classifi­


a sua grandeza e igualou-se aos jumen­ castes, já lhes fizestes ocuitamente o
tos insensatos, tomando-se semelhante convite antes de ser criado o firma­
a eles 7 58”. Por isso, na vossa Igreja, mento.
meu Deus, tanto os que presidem como Também não é da gente alvorotada
os que obedecem julgam pelo Espírito deste mundo que o homem espiritual
segundo a graça que a cada um conce­ julga. Efetivamente, que tem ele “a jul­
destes, porque “somos obra vossa e gar dos que estão fora7 6 4”, ignorando
criados para obras boas 7 59”. Desse quem dentre eles chegará à doçura da
modo formastes a criatura humana, o vossa graça e quem há de permanecer
homem e a mulher na vossa graça espi­ na eterna amargura da impiedade?
ritual, sem que no entanto houvesse na 34. Portanto, o homem que fizestes
ordem do espírito distinção de sexo à vossa imagem não recebeu poder
entre eles, porque “não há judeu, nem sobre os astros do céu, nem sobre o
grego, nem escravo, nem homem próprio firmamento misterioso, nem
livre 7 60”. sobre o dia e a noite, que chamastes à
Portanto, os “espirituais”, quer os existência antes da criação do céu,
que presidem, quer os que obedecem, nem sobre a junção das águas, que é o
julgam espiritualmente. A sua inteli­ mar. Mas recebeu jurisdição sobre os
gência não se exerce sobre os pensa­ peixes do mar, sobre as aves do céu,
mentos intelectuais que brilham no sobre todos os animais, sobre toda a
firmamento, pois não lhes pertence for­ terra e sobre todos os répteis que raste­
mular juízos sobre tão sublime autori­ jam no chão.
dade. Nem julgam da vossa Escritura,
Julga, pois, e aprova o que é bom, e
ainda que esta contenha obscuridades,
porque lhe devemos sujeitar a inteli­ condena o que é mau, quer na celebra­
gência. Temos como certo ainda ção dos sacramentos pelos quais são
mesmo o que permanece velado à iniciados os que a vossa misericórdia
nossa compreensão, e acreditamos que procura no mar profundo; quer no
isso não foi dito com justiça e com banquete em que se apresenta o
verdade. Peixe 7 6 5, tirado do fundo do oceano
Deste modo o homem, se bem que j á para alimento da terra fiel; quer nas
espiritual e renovado “no conheci­ vozes alegóricas e nas palavras sujeitas
à autoridade do vosso Livro 7 6 6, e que
mento de Deus, segundo • a imagem
d’Aquele que o criou761”, deve ser voam, por assim dizer, sob o vosso
cumpridor e não juiz da lei7 52. Igual­ firmamento, quando o vosso pregador
mente não pode ajuizar daquilo que interpreta, expõe, disserta, disputa,
distingue os homens espirituais dos louva e Vos invoca com orações. Estas
carnais. Estes, meu Deus, são conheci­ brotam, em voz alta dos seus lábios,
para que o povo responda: “Assim
dos aos vossos olhos. Ainda se não
seja!”
manifestaram a nós com nenhuma das
suas obras, para que, “pelos seus fru­ A razão por que precisamos de
tos, os conheçamos 7 63”. Porém, Vós, enunciar tudo isso por palavras mate­
riais é o abismo do mundo e a cegueira
7 58 SZ 48, 21.
7 59 Ef2, 10. 7 8 4 1 Cor 5, 12.
7 80 Col3, 11. 7 8 5 O peixe é um símbolo de Nosso Senhor Jesus
781 Col 3, 10. C-risto e particularmente da Sagrada Eucaristia. (N.
7 62 TgA, 11. do T.)
7 83 Mt 2, 2Q. 7 8 8 A Sagrada Escritura. (N. do T.)
306 SANTO AGOSTINHO

da carne, que não nos permite contem­ encontra de vicioso nas almas e costu­
plar os pensamentos alheios, e por isso mes dos fiéis. Julga das esmolas que
nos obriga a valer-nos de vozes e de são como frutos da terra, da alma viva
sons que firam ruidosamente os ouvi­ que dominou suas afeições “pela casti­
dos dos outros, para lhes comuni­ dade, pelos jejuns 7 6 7”, pelos pensa­
carmos os nossos pensamentos. Assim, mentos piedosos. Julga de tudo aquilo
ainda que as aves se multipliquem que pelos sentidos corporais se mani­
sobre a terra, recebem contudo a sua festa. Resumindo, afirmo que o homem
origem das águas. espiritual tem faculdade de julgar de
Também o homem que vive segundo tudo o que possa corrigir.
o espírito formula o seu parecer, apro­
vando o que é reto, e censurando o que 7 6 7 2 Cor 6, 5.

24
“Crescei e multiplicai-vos!”
35. Mas que é isto e que mistério é? seres se multiplicam por geração,
Abençoais os homens, Senhor, para como os peixes, as aves e os homens, e
que “cresçam, se multipliquem e en­ deste modo mantêm a sua espécie.
cham a terra7 68”. Não querereis dar- 36. Que direi então, ó Verdade e
nos a perceber algumas coisas sobre minha Luz? Que estas palavras foram
estas palavras? proferidas inutilmente e sem motivo?
Por que não abençoastes assim a De modo nenhum, Pai de misericórdia.
luz, a quem chamastes dia, nem ao fir­ Longe de mim que o servo do vosso
mamento do céu, nem aos astros, nem Verbo diga tal coisa! Se eu não enten­
às estrelas, nem à terra, nem ao mar? do o que quereis dizer com estas pala­
Eu diria, meu Deus, que nos criastes à vras, entendam-no outros melhores que
vossa imagem. Sim, eu diria que qui­ eu, quer dizer, outros mais inteligentes
sestes conceder particularmente este segundo a capacidade, meu Deus, que
dom ao homem, mesmo que assim não a cada um proporcionastes.
tivésseis abençoado os peixes e os cetá­ Agrade-Vos pois a minha confissão,
ceos para que crescessem, se multipli­ feita “diante de vossos olhos 7 70”. Por
cassem e ocupassem as águas do mar, ela declaro-Vos que creio, Senhor, que
e para que as aves se multiplicassem não foi em vão que assim falastes!
sobre a terra. Nem calarei o que estas palavras me
Do mesmo modo afirmaria que esta sugeriram ao lê-las. O que eu penso é
bênção se estende também a todas as verdadeiro, e nada impede que eu
espécies que a si mesmas se propagam assim explique as palavras figuradas
por meio de geração, se acaso as dos vossos Livros. Sei que, por meio de
encontrasse entre os arbustos, entre as sinais sensíveis, se significam diversas
árvores de fruto e entre os animais da coisas que o nosso espírito pèrcebe de
terra. Porém, nem às ervas, nem às ár­ uma única maneira; e que, pelo contrá­
vores, nem aos animais ferozes, nem às rio, o espírito entende de muitas
serpentes foi dito: “Crescei e multipli­ maneiras o que os sinais sensíveis
cai-vos! 7 69”, se bem que todos estes representam duma só. Assim, por
7 68 Gên 1,28.
7 69 Gên 1,28. 7 70 S118, 10.
CONFISSÕES XIII 307

exemplo, o amor de Deus e do próxi­ para utilidade do próximo, simboli­


mo, com quantas metáforas, em que zados nos astros do céu; as afeições
inúmeras línguas — e, em cada língua, regradas pela temperança, simboli­
com que inúmeras expressões! — se zadas na alma viva.
enuncia de maneira concreta! Em tudo isso, pois, encontramos
É neste sentido que “crescem e se variedade, abundância e acréscimo.
multiplicam os peixes das águas”. Mas, que uma só coisa cresça e se
Mas tu, leitor, quem quer que sejas, multiplique de tal modo que se enuncie
atende novamente. A Escritura declara de muitas formas e uma só perfeição se
duma só maneira, e a nossa voz tam­ entenda de muitas maneiras, não o
bém dum só modo pronuncia estas encontramos senão nos símbolos sensí­
palavras: “No princípio criou Deus o veis e nas alegorias concebidas pelo
céu e a terra. . . 7 71”E no entanto não espírito. Nós entendemos, como equi­
é verdade que se interpretam sob vá­ valendo a “símbolos sensíveis”, “as
rios aspectos, não sofistica: e falsa­ gerações criadas nas águas”, porque
mente, mas segundo a variedade de esses símbolos foram necessariamente
pontos de vista legítimos? motivados pela profundeza da nossa
Assim crescem e se multiplicam as miséria carnal. Simbolizamos também
gerações dos homens. por “gerações humanas” “as alegorias
37. Se considerarmos não alegori- concebidas pelo espírito”, por causa da
camente, mas no sentido real a natu­ fecundidade da razão 7 72. Por isso,
reza das coisas, vemos que as palavras Senhor, creio que dissestes a uns e a
“crescei e multiplicai-vos” se estendem outros: “Crescei e multiplicai-vos!”
a tudo o que nasce de semente. Se, pelo Por meio desta benção concedei-nos o
contrário, as interpretarmos em senti­ poder e a licença de enunciar de diver­
do figurado, que era, a meu ver, o que
a Escritura pretendia, a qual, com cer­ sos modos o que o nosso espírito con­
teza, não atribui inutilmente esta bên­ cebe duma maneira simples, e de per­
ção só às crias dos peixes ou aos filhos ceber sob várias formas o que nos
dos homens! — encontraremos uma vossos Livros lemos enunciado, obscu­
grande multidão de criaturas corporais ramente, duma só maneira.
e espirituais, simbolizadas no céu e na Ê assim que se povoam “as águas
terra; as almas dos justos e perversos, do mar”, que não se moveríam sem
simbolizadas na luz e nas trevas; os estas diversas interpretações. E assim
santos legisladores por quem Deus nos que as várias gerações dos homens en­
deu a Lei, simbolizados no firmamento chem a terra, cuja “aridez” se fertiliza
que foi estabelecido entre as águas pela paixão da verdade, sob o domínio
superiores e as águas inferiores; a da razão.
sociedade dos povos amargurados
7 72 Santo Agostinho, nesta passagem, aplica a
pelas suas paixões, simbolizada no frase “crescei e multiplicai-vos”, alegoricamente,
mar; as afeições das almas piedosas, quer às imagens sensíveis quer às puras concepções
simbolizados na “terra enxuta”; as intelectuais. A multiplicação dos peixes simboliza
— diz ele — as imagens sensíveis, porque estas
obras de misericórdia praticadas nesta originam-se no mar da nossa miséria e imperfeição.
vida, simbolizadas nas ervas que nas­ Se fôssemos puros espíritos não precisaríamos de
cem de sementes e nas árvores frutífe­ imagens sensíveis. A multiplicação dos homens
representa as nossas concepções intelectuais e as
ras; os dons espirituais manifestados alegorias porque se originam noutro elemento mais
nobre, na fecundidade do nosso entendimento. (N.
771 Gên 1,1. do T.)
308 SANTO AGOSTINHO

25
“Os frutos da terra”
38. Quero também expor, Senhor servo Paulo e por se não ter envergo­
meu Deus, o que me sugere a vossa nhado das cadeias do Apóstolo 7 7 7. O
Escritura, ao continuar a lê-la, e di-lo- mesmo fizeram “os irmãos que da
ei sem me envergonhar. Exporei verda­ Macedônia lhe forneceram o neces­
des que me inspirastes e aquilo que sário 7 7 8”, dando com isso mostras de
Vós quisestes que eu daquelas palavras produzir iguais frutos. Igualmente se
deduzisse. Nem creio que diga a verda­ queixava São Paulo de algumas árvo­
de, se outro além de Vós me inspirar, res que lhe não deram o fruto que
pois só Vós sois “a Verdade, e todo o deviam. Por isso diz: “Na minha pri­
homem é mentiroso 7 73”. Por isso, meira defesa ninguém me assistiu;
“quem fala de si mesmo enuncia todos me abandonaram; que isto lhes
mentiras 7 7 4”. Portanto eu, para falar não seja imputado ! 7 7 9”
verdade, falarei do que me inspirastes. Devemos dar estes frutos aos que
Destes-nos, “para alimento, todas as nos ministram doutrina conforme à
ervas semeáveis que produzem semen­ razão, explicando-nos os divinos mis­
te à superfície de toda a terra, e as ár­ térios. Por este motivo os frutos são-
vores que têm em si o fruto, junto com lhes devidos como a homens. São-lhes
o germe 7 7 5”. Não no-las concedestes devidos também como a almas vivas,
só a nós, mas também às aves do céu, pois dão-nos exemplos de todas as vir­
aos animais da terra e às serpentes. tudes. Do mesmo modo, esses frutos
Não as ofertastes, porém, aos peixes e são-lhes devidos como a aves do céu,
aos grandes cetáceos. por causa das suas bênçãos que se
Dizíamos nós que nestes frutos da multiplicam sobre a terra, pois “a toda
terra se significavam e representavam ela se estendeu a sua voz 78 °”.
alegoricamente as obras de miseri­
córdia, as quais brotam da terra fecun­ 7 7 7 2 Tim 1, 16.
da, para ocorrerem às necessidades da 7 78 2 Cor 11, 9.
7 79 2 Tim 4, 16; Na primeira defesa. . . “Estas
vida7 7 6. O piedoso Onesífero era se­ palavras não fazem alusão ao primeiro cativeiro do
melhante a esta terra. Foi à sua casa autor (São Paulo), mas ao segundo. Trata-se aqui
que concedestes misericórdia, por ter da prima actio de seu processo atual, da sua pri­
meira apresentação pública e oficial diante do impe­
matado a sede muitas vezes ao vosso rador ou do seu representante.” Ninguém me assis­
tiu ... “O sentido é que ninguém, entre os cristãos
7 73 Jo ]A,6-,Rom3,4. presentes em Roma, tinha até então assistido a
774 Jo8,44. Paulo na qualidade de advogado, de testemunha de
7 7 5 Gên 1, 29. justificação ou de amigo, como a lei o permitia. A
7 7 6 Os frutos da terra (Gên 1, 29) figuram as obras todos tinha faltado coragem.” L. Cl. Filion, La
de piedade e o emolumento devido a quem anuncia Sainte Bible, T. VIII, p. 515, Paris, 1904.
a palavra de Deus. (N. do T.) 7 80 57 18,5.
CONFISSÕES XIII 309

26
Almas refloridas — São Paulo
39. Mas com estes frutos só se nu­ sido ensinado a tolerar a fartura e a
trem aqueles que alegremente os sabo­ penúria, a estar na abundância e a so­
reiam. Os outros, “cujo deus é o seu frer necessidades. Tudo posso
ventre781782
*”, não podem regozijar-se n’Aquele que me conforta7 8 4” .
com eles. Até mesmo nos que dão 40. Qual o motivo da tua alegria, ó
esmola, o “fruto” não é o que eles dão, grande Paulo? Qual o motivo do teu
mas o espírito com que a oferecem. júbilo? De que te alimentas, ó homem
Vejo por isso perfeitamente qual era a “renovado para o conhecimento de
fonte destas alegrias em São Paulo, Deus segundo a imagem do que te
que servia a Deus e não ao seu ventre. criou”, ó alma viva, tão iura, língua
Vejo, e intensamente me congratulo alada que nos fala de mistérios? Por
com ele. que a esta espécie de animais se deve
Recebera o Apóstolo, por inter­ tal alimento? Dize-me: o que é que
médio de Epafrodite, as ofertas que lhe naquela obra dos filipenses servia de
enviaram os filipenses 7 82. Vejo a manjar à tua alma? — A alegria.
causa da sua alegria. O que o alegrava Ouçamos o que segue: “Contudo”,
era aquilo de que São Paulo se nutria, diz ele, “fizeste bem em compartilhar
pois afirma com verdade: “Alegrei-me da minha tributação 7 8 5”. O que lhe dâ
sumamente no Senhor, por ter de novo alegria, o que o nutre é terem eles pro­
florescido a vossa estima para comigo, cedido bem; e não o ter sido alargada a
em que antes abundáveis, já que eu vos sua estreiteza. Por isso, meu Deus, ele
tinha causado aborrecimento 7 83”. afirma: Vós, “na angústia, dilatastes-
Portanto, tinham eles emurchecido me o coração 78 6”. Aprende em Vós
com um prolongado aborrecimento, e -—- que o confortais — a estar na abun­
como que secaram para os frutos das dância e a sofrer privação. “Também
boas obras. Congratula-se com eles vós, ó filipenses”, acrescenta ele, “sa­
porque refloresceram, e não se congra­ beis que no começo da pregação do
tula consigo mesmo por terem acudido Evangelho, quando parti da Macedô-
à sua indigência. nia, nenhuma Igreja teve comigo inter­
Por isso declara São Paulo logo a câmbio para dar e para receber, senão
seguir: “Não digo isto porque alguma vós somente, porque para Tessalônica
coisa me falte, pois, nas circunstâncias várias vezes enviastes com que ocorrer
em que me acho, aprendi a contentar- às minhas necessidades 7 8 7 ” Agora
me. Sei passar privações e sei viver na rejubila por terem voltado a praticar
abundância. Em tudo e por tudo tenho tão boas obras e alegra-se por terem
reflorido como um campo fértil e
781 Flp 3, 19. verdej ante.
782 Flp 4, 18.
7 83 Flp 4, 10. — Por deficiência do texto grego 41. Seria acaso por causa das suas
que Santo Agostinho utilizou, houve confusão por precisões, pois declarou: “Ocorrestes
parte do Santo Doutor ao traduzir esta passagem
para o latim, onde São Paulo louvava os filipenses. 78 4 Flp 6, 11. 12.
Não os repreendeu, ao contrário do que insinua
Santo Agostinho. Em vez de “já que eu vos tinha 78 5 Flp 4, 14.
causado aborrecimento”, o texto grego da Epístola 78 6 Sl 4, 14;Sl 4, 2.
aos Filipenses diz: “Faltou-vos ocasião”. (N. do T.) 78 7 Flp 4, 15.
310 SANTO AGOSTINHO

às minhas necessidades”? Alegra-se, “O que der um copo de água fresca a


porventura, por causa disso? Não, um dos mais pequeninos dos meus”
decerto. Como o sabemos? Porque mas ajuntou “só na sua qualidade de
logo acrescenta: “Não é a vossa dádi­ discípulo”. Por isso conclui: “Em ver­
va que eu busco, mas o fruto 7 8 8”. dade vos digo, não ficará sem recom­
Aprendi de Vós, meu Deus, a distin­ pensa”.
guir entre a dádiva e o fruto. A dádiva Ê uma dádiva receber um profeta,
é o próprio objeto oferecido por quem receber um justo, dar um copo de água
nos provê nas necessidades, como fresca a um discípulo. O fruto, porém,
dinheiro, comida, bebida, roupa, posa­ está em praticar esta ação como a um
da e ajuda. O fruto, porém, é a boa e profeta, como a um justo, como a um
sincera vontade do doador. O nosso discípulo. Com o fruto era Elias sus­
Mestre, na verdade, não disse somente: tentado pela viúva7 89, porque esta
“O que receber um profeta”, mas sabia que alimentava um homem de
acrescentou: “na sua qualidade de pro­ Deus, e por isso mesmo o alimentava.
feta”. Nem afirmou apenas: “quem Porém o Profeta nutria-se com a dádi­
receber um homem justo”, mas acres­ va do corvo. Não era o Elias interior
centou também “na sua qualidade de que era alimentado, mas só o Elias
justo”. Deste modo, aquele receberá a exterior, que poderia morrer à míngua
recompensa do profeta, e este a do deste alimento.
homem justo. Não se limita só a dizer:7887 69 Natural de Sarepta, à qual recorreu o profeta
para sobreviver à fome e à qual ressuscitou o filho
788 Flp 4, 17. em agradecimento (1 Rs 17). (N. do T.)

*
27
Os “peixes” e os “cetáceos”

42. Portanto, Senhor, direi a verda­ que a devem praticar, nem eles os ali­
de diante de Vós. Algumas vezes os mentam, nem estes são alimentados
homens ignorantes e infiéis, que para por eles; porque nem os primeiros pra­
serem iniciados e ganhos à fé precisam ticam essas boas obras com santa e
destas metáforas de principiantes e reta intenção, nem os segundos se ale­
destes milagres grandíloquos — figu­ gram com as dádivas, nas quais não
rados, assim o creio, sob o nome de descobrem ainda fruto algum. Ora, a
“peixes” e de “cetáceos” —, tomam o alma só se alimenta daquilo que lhe
encargo de aliviar os vossos filhos ou traz alegria. Por isso os “peixes” e os
de os auxiliar nalguma necessidade da “cetáceos” não se nutrem de alimentos
vida, presente. que brotam da terra só depois de sepa­
Mas, como ignoram a natureza da rada e limpa da salsugem das águas
sua ação e o verdadeiro motivo por marinhas.
CONFISSÕES XIII 311

28
A obra da criação é essencialmente boa

43. Vós vistes, ó meu Deus, todas elas então não só Vos pareceram
as coisas que criastes. Pareceram-Vos “boas”, mas “muito boas 7 91 ”.
elas muito boas 7 90 e, assim, também Cada uma das criaturas separada­
nós as vemos e as achamos igualmente mente era boa. Porém, consideradas
excelentes. em conjunto, eram não só “boas”, mas
até “muito boas”. Isto mesmo o afirma
Depois de dizerdes a cada uma das também a belezá de qualquer ser orgâ­
espécies das vossas obras que “fossem nico. Um corpo, formado de membros
criadas” e depois de elas o serem, vis­ todos belos, é muito mais belo que
tes que eram boas. cada um dos seus membros de cuja
Sete vezes contei-as eu, está escrito conexão harmoniosíssima se forma o
que vistes ser excelente a obra por Vós conjunto, posto que também cada
criada. Na oitava declara-se que con­ membro separadamente tenha uma be­
templastes todas as vossas criaturas leza peculiar.
como obra vista de conjunto, e eis que 791 Aparecem estas palavras oito vezes na versão
bíblica dos Setenta. Na Vulgata diz-se seis vezes
eram boas e uma vez, a sétima: eram muito boas.
790 Gên 1,31. (N. do T.)

29
Fora do tempo

44. Inquiri atentamente se foram criaturas, e tendo-as eu contado, as


sete ou oito vezes que Vos pareceram vezes que as vistes, achei o seu
boas as vossas obras, ao agradarem- número?
Vos 7 92. Nessa vossa contemplação A isso me respondeis. Porque sois o
não encontrei o tempo pelo qual pudes­ meu Deus o dizeis com voz forte ao
se compreender ser esse o número de ouvido interior do vosso servo, rom­
vezes que admirastes a criação. Por pendo a minha surdez e exclamando:
isso exclamei: O Senhor, eu creio que é “Homem, o que a minha Escritura diz,
verdadeira a vossa Escritura, pois não Eu o digo. Mas ela di-lo no tempo, e
fostes Vós, a autêntica e a própria Ver­ este não atinge o meu Verbo, que sub­
dade, que a ditastes? Por que me dizeis siste comigo numa eternidade igual à
que a vossa visão dos seres criados não minha. Assim, o que vedes pelo meu
está sujeita ao tempo, se a vossa Escri­ espírito, sou Eu que o vejo; o que di­
tura me narra, dia a dia, terdes Vós zeis pelo meu espírito, sou Eu que o
contemplado a excelência das vossas* digo. Mas, assim como quando vós
contemplais estas coisas no tempo, Eu
792 Segundo a Versão Bíblica dos Setenta que não as contemplo no tempo, assim,
Santo Agostinho seguia, foram oito vezes. Segundo quando vós as dizeis no tempo, Eu não
a Vulgata que consultou, foram sete vezes. (N. do
T.) as digo no tempo”.
312 SANTO AGOSTINHO

30
Erros dos maniqueístas sobre a criação

45. Eu ouvi, Senhor, meu Deus, a exemplo, os organismos corpóreos,


vossa voz. Tomei uma gota de doçura todos os animais pequeninos e também
da vossa Verdade. Compreendi que hâ tudo o que se agarra à terra por meio
alguns a quem desagradam vossas de raízes. Declaram que um espírito
obras, dizendo que muitas delas as hostil e uma outra natureza por Vós
criastes impelido pela necessidade, não criados os formam e geram nas
como, por exemplo, a estrutura do céu regiões inferiores do mundo. Esses
e a organização dos astros. Afirmam insensatos afirmam tais coisas porque
que as não fizestes por Vós mesmo, não vêem as vossas obras através do
mas que já existiam criadas noutro vosso Espírito, nem Vos reconhecem
lugar. Tirando-as de lá, simplesmente nelas793.
as reunistes, compondo-as e coorde­ 793 Refere-se, neste capítulo, o Santo Doutor aos
nando-as, quando edificastes as mura­ maniqueístas. Estes, não podendo compreender a
lhas do mundo, depois de vencidos os origem do mal ou a imperfeição nos seres e que­
rendo ser reverentes para com Deus, admitiram um
inimigos, para que, cativos nessa forta­ princípio criador da matéria, independente do Ser
leza, jamais pudessem de novo rebe­ infinito, e recorreram a fábulas para explicar a cria­
lar-se contra Vós. ção. Imaginaram uma luta entre o primeiro homem
e os demônios, a prisão destes nos astros e a queda
Dizem que nem criastes os outros de fetos de origem diabólica das estrelas para a
seres nem os ordenastes, como, por terra (cf. Contra Fausto, VI, 8). (N. do T.)

31
Deus ilumina o nosso olhar
46. O contrário sucede àqueles que cermos dos dons que Deus nos conce­
contemplam essas obras pelo vosso deu794.”
Espírito, 'porque então sois Vós quem Sinto-me impelido a perguntar: não
vê neles. Por conseguinte, quando sabendo ninguém com certeza o que é
vêem que são boas, Vós vedes também de Deus, senão o Espírito de Deus,
essa bondade. Em tudo o que lhes como conhecemos nós também os
agrada, por causa de Vós, nisso Vos dons que Deus nos concede?
tomais agradável; e aquilo que pelo Responder-me-á alguém: “As coisas
que nós conhecemos pelo seu Espírito,
vosso Espírito nos agrada, é em nós ninguém as sabe senão o Espírito de
que Vos agrada. Quem dos homens Deus”. Por conseguinte, assim como
sabe o que é do homem, senão o espí­ se disse com toda a razão àqueles que
rito do homem que nele está? Assim, falavam pelo Espírito de Deus: “Não
também o que pertence a Deus nin­ sois vós quem fala79 5”; e aos que
guém o sabe, senão o Espírito de Deus. sabem pelo Espírito de Deus: “Não
“Nós, porém”, diz São Paulo, “rece­ sois vós quem sabe”; não menos reta-
bemos não o espírito deste mundo, mas 79 4 lCor2, 11. 12.
o Espírito que é de Deus, para conhe­ 79 5 MIO, 20.
CONFISSÕES XIII 313

mente se diz àqueles que vêem pelo que alguma criatura é boa sendo Deus
Espírito de Deus: “Não sois vós quem quando vê nele que a criatura é boa,
vê”. Deste modo, tudo o que pelo Espí­ porque é bom que Deus seja amado
rito de Deus vêem de bom, não são naquilo que criou. Ele somente serâ
eles, mas Deus, quem o vê assim. amado pelo Espírito que nos concedeu,
Por isso, uma coisa é um julgar “pois a caridade de Deus foi difundida
como mau o que é bom, como os em’ no.ssos corações pelo Espírito
(maniqueístas) de que acima falei; e Santo que nos foi dado 7 9 6”. Por Ele
outra, ver o homem como bom o que é vemos que é bom tudo o que de qual­
bom, como acontece a muitos a quem quer modo existe, pois procede
agrada a vossa criação, por esta ser d’Aquele que não existe de qualquer
excelente. Contudo, não sois Vós que modo, pois o que Ele é, é-o por
lhes agradais nela, pois querem antes o essência.
gov:o da criatura do que a Vós. Enfim,
outra coisa sucede quando o homem vê 79 6 Rom5,S.

32
O conjunto da criação
47. Graças Vos damos, Senhor! lua e as estrelas consolarem a noite, e
Vemos o céu e a terra, isto é, as partes as divisões do tempo serem designadas
superior e inferior corpórea, ou a cria­ e medidas por todos estes astros.
ção espiritual e material. Para adorno Contemplamos por toda parte o ele­
destas partes componentes de toda a mento da água, fecundo em peixes, em
massa do mundo ou de toda a criação monstros marinhos e em aves 7 9 7, pois
no seu conjunto, vemos a luz, criada e a densidade do ar, que sustenta o vôo
separada das trevas. dos pássaros, cresce com a exalação
Vemos o firmamento do céu, quer o das águas.
entendamos como sendo o primeiro Vemos a face da terra embelezar-se
corpo do universo situado entre as com animais terrestres. Vemos o
águas espirituais superiores e as águas homem, criado à vossa imagem e
corporais inferiores, quer seja este es­ semelhança, constituído em dignidade
paço do ar, a que também se dá o acima de todos os viventes irracionais,
nome de atmosfera. Por esta diva- por causa de vossa mesma imagem e
gueiam as aves, entre as águas que se semelhança, isto é, por virtude da
lhes sobrepõem em forma de vapor -—- razão e da inteligência. E assim como
que em noites serenas cai em gotas de na sua alma há uma parte que impera
orvalho — e as águas em estado lí­ pela reflexão e outra que se submete
quido pela terra. para obedecer, assim também a mulher
Vemos a formosura das águas reuni­ foi criada, quanto ao corpo, para o
das nas campinas do mar. Vemos a homem. Ela, possuindo, sem dúvida,
terra árida, nua, ou de forma visível e uma alma de igual natureza racional e
ordenada, essa terra, mãe das plantas e de igual inteligência, está, quanto ao
das árvores.
7 9 7 Porque na atmosfera há vapor de água, Santo
Vemos brilhar por cima de nós os Agostinho diz que as águas são fecundas em aves.
luzeiros do céu, o sol bastar ao dia, a (N. do T.)
314 SANTO AGOSTINHO

sexo, dependente do sexo masculino, Estas são as coisas que contempla­


assim como o apetite, de que nasce o
mos, as quais, tomadas de per si, são
ato, se subordina à inteligência para
conceber da razão a facilidade em belas, e em seu conjunto são ainda
ordem ao bom procedimento. mais belas.

33
A matéria e a forma do Universo

48. Enalteçam-Vos as vossas obras, matéria pertencente a outrem ou ante­


para que Vos amemos! Que nós Vos rior a Vós, mas da matéria concriada,
amemos, para que as vossas obras Vos isto é, criada por Vós ao mesmo tempo
enalteçam! Elas têm princípio e fim no que elas, e que, sem nenhum intervalo
tempo, nascimento e morte, progresso de tempo, fizestes passar da informi-
e decadência, beleza e imperfeição. dade à forma.
Portanto, todas elas têm sucessiva­ E certo que a matéria do céu é dife­
mente manhã e tarde, ora oculta ora rente da da terra e a beleza de um dife­
manifestamente 7 9 8. re da beleza do outro, pois a matéria
Foram feitas por Vós do nada, não do mundo a tirastes do nada, e a beleza
porém da vossa substância ou de certa do mundo, da matéria informe. Vós as
criastes, contudo, ao mesmo tempo, a
798 Bela síntese da evolução do Universo! Tudo matéria e a forma, porque entre a cria­
caminha para o entardecer.
Enquanto os seres louvam a Deus, o homem recebe ção da matéria e a da forma não me­
o convite para o amar. (N. do T.) diou nenhum espaço de tempo.

34
Simbolismo da criação
49. Meditei igualmente sobre as . nos na voragem das trevas. O vosso
verdades espirituais que quisestes sig­ misericordioso Espírito pairava sobre
nificar quer pela ordem e sucessão de nós, para vir em nosso auxílio, em
vossas obras, quer pela ordem com que tempo oportuno.
quisestes que fossem referidas. Notei Justificastes os ímpios, separaste-los
que as vossas obras, consideradas dos pecadores e confirmastes a impor­
singularmente, são belas, e em seu con­ tância da vossa Escritura entre as pes­
junto são ainda mais belas. soas de autoridade que Vos haviam de
No vosso Verbo, no vosso Único ser dóceis, e entre os súditos, que se
Filho, criastes o céu e a terra, a cabeça lhes haviam de sujeitar. Congregastes
e o corpo da Igreja, numa predesti­ numa só aspiração a sociedade dos
nação anterior a todos os tempos, sem infiéis799, para que aparecessem os
manhã nem tarde. Logo, porém, come­ bons sentimentos dos fiéis e produ-
çastes a executar no tempo o que tí­
799 O problema da convivência dos bons e dos
nheis predestinado, a fim de manifes­ maus, dos fiéis e dos infiéis, trata-o Santo Agosti­
tardes os vossos planos misteriosos e nho no livro: A Cidade de Deus. Esta resume-se na
coordenardes as nossas desordens, frase:“Dois Amores fizeram duas cidades: a terrena
fê-la o amor de si até ao desprezo de Deus; a celeste,
pois sobre nós pesavam os nossos fê-la o amor de Deus até ao desprezo de si” (A Ci­
pecados. Longe de Vós, precipitamo- dade de Deus, L. XIV, cap. 28). (N. do T.)
CONFISSÕES XIII 315

zissem em vossa honra obras de a Vós submissa, e que não precisa de


misericórdia, distribuindo aos pobres nenhum exemplo de autoridade huma­
igualmente os bens da terra para na para imitar. Sujeitastes a atividade
adquirirem os do céu. racional ao poder do entendimento,
Depois acendestes no firmamento como a mulher ao homem. Quisestes
alguns luzeiros, isto é, os vossos San­ que a todos os vossos Ministros, neces­
tos, que têm palavras de vida e reful-
sários para aperfeiçoar nesta vida os
gem pela sublime autoridade conferida
cristãos, fossem prestados auxílios
pelos dons espirituais. Para comuni­
cardes a vossa Lei às nações idólatras, pelos mesmos fiéis, nas necessidades
formastes de matéria visível os Sacra­ temporais. Esta obra de caridade ser-
mentos, fizestes milagres visíveis e Ihes-á valiosa para o futuro.
determinastes, em conformidade com o Vemos todas estas coisas, e todas
firmamento da vossa Escritura, as “pa­ elas são muito boas, porque as contem­
lavras das vossas palavras”, para que plais em nós, ó Deus, que nos conce­
com elas fossem abençoados os fiéis. destes o Espírito para as podermos ver
Em seguida, formastes no vigor da e para nelas Vos amarmos800.
continência a alma viva dos cristãos
por meio dos afetos ordenados. 800 Para Santo Agostinho, a natureza e a Bíblia
são os dois grandes livros do homem. Os seres são
Finalmente, renovastes, à vossa palavras de Deus, símbolos do mundo superior,
imagem e semelhança, a alma, somente imagem da Palavra Eterna. (N. do T.)

A paz

50. Ó Senhor meu Deus, concedei- formosíssima de seres excelentemente


me a paz801, pois tudo nos oferecestes, bons há de passar, depois de realizados
a paz tranquila, paz do sábado que não ' os seus modos de existência. Fez-se
entardece. Com efeito, toda esta ordem neles alvorada e tarde 8 0 2.
801 O “repouso” do sétimo dia dá criação provoca
em Santo Agostinho o desejo da paz, “a tranqui­ 802 O Universo evoluirá até gastar as energias
lidade da ordem”. (N. do T.) latentes. Depois virá a derrocada. (N. do T.)

36
O penhor da vida eterna

51. Ora o sétimo dia não tem as quais realizastes sem fadiga —
crepúsculo. Não possui ocaso, porque significa-nos, pela palavra de vossa
Vós o santificastes para permanecer Escritura, que também nós, depois do-s
etemamente. Aquele descanso com que nossos trabalhos, que são bons porque
repousastes no sétimo dia após tantas no-los concedestes, descansaremos em
obras excelentes e sumamente boas — Vós, no sábado da Vida Eterna.
316 SANTO AGOSTINHO

37
O repouso de Deus
52. Também então repousareis em forme o tempo. Porém, concedeis-nos
nós, da mesma maneira que agora ope­ que vejamos no tempo, fazeis o próprio
rais em nós. Este nosso repouso serâ tempo e o nosso repouso, para além do
vosso por nós, assim como são vossas tempo803.
estas ações por nós.
Senhor, Vós sempre estais ativo; 803 “Aí repousaremos e veremos;-veremos e ama­
remos; amaremos e louvaremos. Eis o que haverá
sempre estais em repouso. Não vedes, no fim sem-fim” (Santo Agostinho, A Cidade de
não Vos moveis, nem descansais, con­ Deus, L. XXII, cap. 30). (N. do T.)

38
A ação de Deus em nós

53. Nós vemos todas estas vossas beneficiar. Com a vossa graça algumas
criaturas porque existem e têm ser. obras realizamos; mas estas não são
Mas porque Vós as vedes é que elas eternas. Depois de as termos pratica­
existem. Eternamente, vemos que exis­ do, esperamos repousar na vossa gran­
tem; e no nosso íntimo notamos que de santificação. Vós sois o Bem que de
são boas. Vós, porém, as vistes feitas, nenhum bem precisa. Estais sempre em
onde julgastes que se deviam fazer. repouso, porque sois Vós mesmo o
Nós, agora, somos inclinados a pra­ vosso descanso.
ticar o bem, depois que o nosso cora­ Quem dos homens poderá dar a
ção o concebeu, inspirado pelo vosso outro homem a inteligência deste mis­
Espírito. Mas, ao princípio, desertando tério? Que anjo a outro anjo? Que anjo
de Vós, éramos arrastados para o ao homem? A Vós se peça, em Vós se
mal80 4. Contudo, Vós, meu Deus e procure, à vossa porta se bata. Deste
único Bem, nunca deixastes de nos modo, sim, deste modo se há de rece­
80 4 Alusão à vida de pecador e de maniqueísta: ber, se há de encontrar e se há de abrir
desgarramento moral e doutrinário. (N. do T.) a porta do mistério.
DE MAGISTRO
CDO MESTRE)
Índice

Cap. I — Finalidade da linguagem .............................................................. 323


Cap. II — O homem mostra o significado das palavras só pelas palavras . 325
Cap. III — Se é possível mostrar alguma coisa sem o emprego de um sinal . 326
Cap. IV — Se os sinais se mostram por sinais ............................................ 328
Cap. V — Sinais recíprocos ......................................................................... 332
Cap. VI — Sinais que significam a si mesmos ............................................ 337
Cap. VII — Resumo dos capítulos anteriores ............................................... 338
Cap. VIII — Não se discutem inutilmente estas questões. Assim, para res­
ponder àquele que interroga, devemos dirigir a mente, depois de
percebermos os sinais, às coisas que estes significam............... 340
Cap. IX — Se devemos preferir as coisas, ou o conhecimento delas, aos
seus sinais......................... 344
Cap. X — Se é possível ensinar algo sem sinais. As coisas não se apre­
ndem pelas palavras...................................................................... 346
Cap. XI — Não aprendemos pelas palavras que repercutem exteriormente,
mas pela verdade que ensina interiormente................................. 350
Cap. XII — Cristo é a verdade que ensina interiormente ................. 351
Cap. XIII — A força das palavras não consegue mostrar nem sequer o
pensamento de quem fala.............................................................. 353
Cap. XIV — Cristo ensina interiormente, o homem avisa exteriormente
palavras........................................................................ 355
Capitulo I
Finalidade da linguagem

Agostinho trará nesta nossa conversação. Mas, se


— Que te parece que pretendemos tu pensas que não aprendemos quando
fazer quando falamos? recordamos ou que não ensina aquele
Adeodato que recorda, eu não me oponho; e
— Pelo que de momento me ocorre, désde já declaro que o fim da palavra é
ou ensinar ou aprender. duplo: ou para ensinar ou para suscitar
Agostinho recordações nos outros ou em nós mes­
— Vejo uma dessas duas coisas e mos; o que fazemos também quando
concordo; com efeito, é evidente que cantamos; ou, por acaso, não te pare­
quando falamos queremos ensinar; ce?
porém, como aprender? Adeodato
Adeodato — Não, absolutamente: porque
— Mas, então, de que maneira pen­ muito raramente acontece que eu cante
sas que se possa aprender, senão para lembrar-me, mas frequentemente
perguntando? para deleitar-me.
Agostinho Agostinho
— Ainda neste caso, creio que só — Compreendo o que queres dizer;
uma coisa queremos: ensinar. Pois, mas não percebes que o que te deleita
dize-me, interrogas por outro motivo a no canto não é senão uma certa modu-
não ser para ensinar o que queres lação do som, que, pelo fato de se
àquele a quem perguntas? poder acrescentar ou subtrair às pala­
Adeodato vras, faz com que uma coisa seja o
— Dizes a verdade. . falar e outra o cantar? Em verdade;
Agostinho também com a flauta e a citara se emi­
— Vês portanto' que com o falar tem modulações, cantam também os
não nos propomos senão ensinar. pássaros, e nós mesmos, às vezes,
Adeodato entoamos um motivo musical sem
— Não vejo isto claramente; por­ palavras, o que se pode chamar canto,
que se falar nada mais é que emitir mas não fala; tens algo a opor a isto?
palavras, isto fazemos também quando Adeodato
cantamos; às vezes o fazemos sozi­ •—■ Nada.
nhos, sem que esteja presente alguém Agostinho
que possa aprender; não creio que — Parece-te então que a palavra 2
pretendamos então ensinar algo. não foi instituída senão para ensinar
Agostinho e recordar?
— Há todavia, creio, certa maneira Adeodato
de ensinar pela recordação, maneira — Assim pensaria se não me levas­
sem dúvida valiosa, como se demons­ se a opinar contrariamente o fato de
324 SANTO AGOSTINHO

que, quando rezamos, sem dúvida fala­ seu pensamento, mas não para que
mos, e, certamente, não é lícito crer Deus, e sim os homens ouçam, e, por
que ensinamos ou recordamos algo a meio do consentimento na recordação,
Deus. sejam elevados até Deus. Ou não pen­
Agostinho sas assim?
— Tenho a impressão de que não Adeodato
sabes que, se nos foi ordenado rezar — Concordo plenamente.
em lugares fechados1, expressão que Agostinho
significa o espaço secreto da alma, o — Portanto, não te preocupa o fato
foi porque Deus não quer ser lembrado de que o soberano Mestre, ensinando a
de algo ou ensinado por nossas pala­ rezar aos seus discípulos 5, ensinou cer­
vras, para conceder-nos o que deseja­ tas e determinadas palavras, pelo que
mos. Quem fala, pois, dâ exteriormente não parece ter feito outra coisa senão
o sinal da sua vontade por meio da ensinar como devemos falar quando
articulação do som: mas devemos pro­ rezamos?
curar Deus e suplicar-lhe no mais ínti­ Adeodato
mo recesso da alma racional, que se — Isso não me preocupa de modo
denomina o homem interior; quis Ele algum, pois não lhes ensinou palavras,
que fosse este o seu templo. Não leste mas, pelas palavras, aquelas coisas
no Apóstolo: “Não sabeis que sois o com que ficassem avisados quanto a
templo de Deus e que o espírito de quem e o que haviam de pedir quando
Deus habita em vós2”, e que “Cristo orassem, como foi dito, no segredo da
habita no homem interior3?” E não mente.
reparaste no que diz o Profeta: “Falai Agostinho
dentro dos vossos corações e nos vos­ — Entendeste certo: creio também
sos leitos arrependei-vos: oferecei os teres notado, apesar de haver quem
sacrifícios da justiça e confiai no não concorde, que, mesmo sem emitir
Senhor4”? som algum, nós falamos enquanto inti­
Onde crês que se podem oferecer os mamente pensamos as próprias pala­
sacrifícios da justiça a não ser no tem­ vras em nossa mente; assim, com as
plo da mente e no íntimo do coração? palavras nada mais fazemos do que
Onde se fizer o sacrifício, aí também se chamar a atenção; entretanto, a memó­
há de orar. Por isso não são de mister ria, a que as palavras aderem, em as
palavras quando rezamos, isto é, pala­ agitando, faz com que venham à mente
vras soantes, exceto, talvez, no caso do as próprias coisas, das quais as pala­
sacerdote que expressa pela palavra o vras são sinais.
1 Af/6, 6. Adeodato
2 1 Cor 3, 16. — Compreendo e acompanho-te.
3 Ef3, 16, 17.
* SI 4, 5,6. 5 Mt 6, 9.
DE MAGISTRO 325

Capítulo II
O homem mostra o significado das palavras só pelas palavras
Agostinho Adeodato
3 — Concordamos ambos, portanto, — “Nihil”que outra coisa significa
em que as palavras são sinais. senão o que não existe?
Adeodato Agostinho
— Concordamos. — Talvez digas a verdade, porém
Agostinho me impede de concordar contigo o que
— Então, um sinal pode ser sinal afirmaste acima: que não existe sinal
sem significar algo? sem que signifique algo; ora, o que não
Adeodato existe de maneira nenhuma pode ser al­
— Não. guma coisa. Por isto, a segunda pala­
Agostinho vra deste verso não é um sinal, porque
— Quantas palavras há neste nada significa, e, então, erroneamente
verso: “Si nihil ex tanta superis placet concordamos que todas as palavras
urbe relinqui6 ”? são sinais, ou que todo sinal signifique
Adeodato algo.
— Oito. Adeodato
Agostinho — Estás me apertando demasiado;
— Logo, oito são os sinais. porém observa que, quando não temos
Adeodato nada para expressar, sem dúvida seria
— E mesmo. coisa tola proferirmos alguma palavra:
Agostinho creio que tu, falando agora comigo,
— Creio que compreendes este não emites algum som inútil, mas que,
verso. com todos os que saem da tua boca,
Adeodato ofereces-me um sinal, para que eu
— Assaz, parece-me. entenda algo; não precisavas ter pro­
Agostinho nunciado essas duas sílabas (ni-híl) se
— Dize-me o sentido de cada pala­ com elas não querias significar algo.
vra. Se, entretanto, consideras que com elas
Adeodato necessariamente se produza uma enun-
— Sei o que significa “si”, mas não ciação e que elas, ao soarem aos nos­
encontro outra palavra para expres­ sos ouvidos, nos ensinam ou nos lem­
sar-lhe o significado. bram algo, perceberás logo o que eu
Agostinho desejaria dizer, mas não posso expli­
— Sabes indicar, ao menos, onde car.
está o que esta palavra significa? Agostinho
Adeodato — Como vamos fazer então? Dire­
— Parece-me que o “si” expressa mos que com esta palavra (nihil), mais
dúvida: mas onde a dúvida se encon­ do que a própria coisa, que não existe,
tra, senão no espírito? queremos significar aquele estado da
Agostinho alma produzido quando não se vê a
— Por enquanto, aceito; continua. coisa, e, no entanto, descobre-se ou se
6 “Se nada aos deuses agrada que fique de tão pensa ter descoberto que a coisa não
grande cidade” (Virgílio, Eneida, II, 659). existe?
326 SANTO AGOSTINHO

Adeodato tudo, por enquanto, admitamos que


— É isto mesmo o que eu procu­ seja assim. Certamente, se este poeta,
rava explicar. em vez de dizer “ex tanta urbe”, tivesse
Agostinho dito “de tanta urbe”, e eu te pergun­
— Seja como for, vamos adiante, tasse que significa “de”, responderías
para que não nos aconteça cair na “ex”, sendo que estas duas palavras,
mais absurda das coisas. isto é, sinais, significam — como tu
Adeodato crês — uma só e a mesma coisa; eu,
— Qual? porém, busco esta mesma coisa, não
Agostinho sei se uma e idêntica, que é significada
— Que “nada” nos detenha e, no com estes dois sinais.
entanto, a nossa conversação fique Adeodato
parada. — Parece-me que signifique a sepa­
ração de algo da própria coisa em que
Adeodato
estava contido e à qual se diz que per­
— Na verdade, é ridículo, e, mesmo tence; ou porque essa coisa não conti­
não sabendo como possa acontecer, nue existindo, como acontece neste
vejo claramente que isto já se deu.
verso, onde sem existir mais a cidade
Agostinho (de Tróia) podiam existir dela alguns
4 — Se Deus o permitir, compreende­ troianos, ou porque permaneça, como
remos melhor, no momento oportuno, quando dizemos haver na África uns
este gênero de repugnância; agora comerciantes vindos da cidade de
volta àquele verso e procura mostrar, Roma.
segundo as tuas possibilidades, o que Agostinho
significam as demais palavras. — Para conceder-te que isto é
Adeodato assim, não irei enumerar todas as obje-
— A terceira, “ex ”, è uma preposi­ ções que por acaso se poderíam apre­
ção, em lugar da qual penso que pode­ sentar a essa tua regra; mas podes
mos dizer “de ”. facilmente reparar que-explicaste pala­
Agostinho > vras com outras palavras, isto é, sinais
— Mas eu não te solicito que digas com outros sinais, coisas conhecidís-
em lugar de uma palavra conheci- simas com outras conhecidíssimas;
díssima outra igualmente conhecidís- porém, gostaria que, se pudesses, me
sima, que signifique a mesma coisa, mostrasses as coisas mesmas de que
suposto que signifique o mesmo; con­ estas são os sinais.

Capítulo III
Se é possível mostrar alguma coisa
sem o emprego de um sinal
Adeodato responder senão bom palavras. Tu,
s — Admira-me que não saibas, ou porém, indagas de coisas que, sejam
melhor, simules não saber que não quais forem, de modo nenhum podem
podes obter de mim resposta que satis­ considerar-se palavras; e, no entanto,
faça ao teu desejo; do fato de estarmos também sobre essas tu me interrogas
conversando resulta que não podemos com palavras. Começa tu a interro­
DE MAGISTRO 327

gar-me sem palavras, para que depois isto sejam corporais, não se podem
eu te possa responder da mesma todavia mostrar com o dedo.
forma. Agostinho
Agostinho — Mas nunca viste como os ho­
— Tens razão, confessó-o; porém mens conversam com os surdos por
se te perguntasse o significado destas meio dè gestos, e os próprios surdos
três sílabas: “paries” (parede), não também por gestos ou perguntam ou
poderías tu mostrar-me com o dedo, de respondem, ou ensinam ou indicam
maneira que eu a visse, a coisa mesma tudo o que querem, ou, pelo menos,
de que é sinal esta palavra de três síla­ quase tudo? Se é assim, então não se
bas, demonstrando-a assim e indican- mostram sem palavras apenas as coi­
do-a tu mesmo, sem usar palavra sas visíveis, mas ainda os sons e os
alguma? sabores e as outras coisas semelhantes.
Adeodato Também os histriões, nos teatros,
— Concedo que se possa fazer isso, expõem sem palavras e interpretam
mas só com aqueles nomes que signifi­ representações inteiras, na maioria das
cam corpos e quando estes corpos este­ vezes com gestos pantomímicos.
jam presentes. Adeodato
Agostinho — Nada tenho a opor-te, a não ser
— Mas à cor, por acaso, lhe cha­ que aquele “ex” (de), não apenas eu,
mamos corpo, ou, antes, certa quali­ mas nem mesmo um histrião dança­
dade do corpo? rino poderia demonstrar-te, sem pala­
Adeodato vras, o que significa.
— Uma qualidade. Agostinho
Agostinho — Talvez digas a verdade, mas 6
— Por que, então, também a cor se vamos supor que ele possa; não duvi­
pode mostrar com o dedo? Ou ainda das certamente, como creio, que, qual­
acrescentas aos corpos suas qualida­ quer que seja o movimento do corpo
des, de maneira que essas também pos­ com que ele tente demonstrar a coisa
sam ser demonstradas sem palavras, que é significada com esta palavra, não
quando estão presentes? será a coisa mesma, porém um sinal.
Adeodato Por isso também o histrião terá indica­
— Eu, ao falar dos corpos, queria do, se não uma palavra com outra
que se entendesse todo o corporal, isto palavra, pelo menos um sinal com
é, tudo o que nos corpos se percebe. outro sinal; de modo que este monossí-
Agostinho labo “ex ” e aquele seu gesto significa­
— Considera, porém, se ainda aqui rão a mesma coisa que eu queria me
não terás de fazer alguma exceção. fosse demonstrada ou indicada sem
Adeodato sinais.
— A advertência é justa, pois, de Adeodato
fato, não deveria dizer todas as coisas — Mas, rogo-te, como é possível o
corpóreas, mas todas as coisas visíveis. que tu estás pedindo?
Na verdade, confesso que o som, o Agostinho
cheiro, o sabor, a gravidade, o calor e — Do mesmo modo por que o foi
muitas outras coisas que pertencem pela parede.
aos outros sentidos, embora não se Adeodato
possam perceber sem os corpos, e por — Mas também esta, como resulta
328 SANTO AGOSTINHO

do desenvolvimento dc nosso raciocí­ Pois quem caminha nem por isso anda
nio, não pode ser mostrada sem sinal. depressa, e quem anda depressa não
Po'is o ato de apontar o dedo certa­ quer dizer que caminhe: tanto mais
mente não é a parede, mas é apenas a que podemos achar pressa no ler, no
maneira com que se dá um sinal, por escrever, e em muitíssimas outras coi­
meio de que a parede pode ser vista. sas. Por isso, se fizesses mais depressa,
Não vejo, portanto, nada que possa ser depois da minha interrogação, o que
indicado sem sinais. estavas fazendo antes, eu poderia crer
Agostinho que caminhar outra coisa não é do que
— Se, porém, eu te perguntasse o apressar-se, posto que a pressa fora a
que é caminhar e tu te levantasses e novidade por ti acrescentada, e eu com
fizesses aquela ação,, não usarias da isto seria induzido a engano.
própria coisa para ensinar-me isto, em Adeodato
vez de palavras ou de outros sinais?. — Confesso que não se pode mos­
Adeodato trar a coisa sem sinal, se, no momento
■—- Confesso ser assim, e me enver­ em que a fazemos, somos interroga­
gonha não ter percebido uma coisa tão dos; pois, se não acrescentarmos nada
evidente, a qual me traz à memória à ação que estamos realizando, quem
milhares de coisas, que valem por si nos interrogar poderá supor que não
mesmas, e não pelos sinais com que se queremos responder-lhe, e, depois de
mostram, como sejam: comer, beber, desprezá-lo, continuamos a nossa
estar sentado, ficar de pé, gritar e inú­ ação. Mas se alguém perguntar sobre
meras outras. coisas que podemos fazer e não o fizer
Agostinho na mesma hora em que as fazemos,
— Vamos, dize-me: se eu não co­ podemos, fazendo-as, depois da inter­
nhecesse o valor da palavra e te rogação, mostrar-lhe com a própria
perguntasse, enquanto caminhas, o que coisa, antes que com um sinal, o que
é caminhar, como me ensinarias isto? ele pergunta: a não ser que por acaso
Adeodato ele me pergunte, enquanto falo, o que é
— Realizaria a mesma ação, ou falar: porque qualquer que seja a coisa
seja, andaria, mas um pouco mais que lhe disser para ensinar-lhe isso,
depressa, para que uma novidade qual­ sempre o farei falando; e assim conti­
quer te suscitasse a atenção; e, no nuando, ensinar-lhe-ei, enquanto não
entanto, não teria feito coisa diversa lhe fique perfeitamente claro, o que
do que te deveria ser mostrado. quer, sem afastár-me da própria coisa
Agostinho que desejava lhe fosse demonstrada,
— Não sabes tu que uma coisa é nem, além disto, procurar sinais com
caminhar e outra é andar depressa? que demonstrá-la.

Capítulo IV
Se os sinais se mostram com sinais

Agostinho vir entre nós que se podem mostrar


7 — Argumentas muito agudamente, sem sinais as coisas que não fazemos
e por isso considera se é possível con- quando se nos perguntam, mas que
DE MAGISTRO 329

podemos fazer logo em seguida, ou as nam e recordam os mesmos sinais, ou


que fazemos desde que estas nada mais outros sinais diferentes. Não te parece?
sejam do que os próprios sinais. Pois, Adeodato
quando falamos, fazemos sinais, donde — Está claro.
provém a palavra “significar” (fazer si­ Agostinho
nais — signa facere). — Dize-me, então: os sinais que s
Adeodato são palavras a qual dos sentidos
— Ê possível convir. pertencem?
Agostinho Adeodato
— Portanto, quando se discute — Ao ouvido.
sobre os sinais, resulta que se podem Agostinho
mostrar uns sinais por meio de outros; — E o gesto?
mas quando se discute sobre as coisas Adeodato
qüe não são sinais, não se podem mos­ — À vista.
trar senão fazendo-o imediatamente Agostinho
após a pergunta — se for possível —, •—- Como? Quando encontramos
ou dando algum sinal pelo qual pos­ palavras escritas, estas, por acaso, não
sam ser compreendidas. serão também palavras? Ou, mais
Adeodato exatamente, não serão entendidas
— Exatamente. como sinais de palavras, de maneira
Agostinho que a palavra seja o que se profere,
— Nessa tríplice distribuição com certo significado, mediante a arti­
vamos primeiro considerar, se quise­ culação da voz? Mas a voz não pode
res, o caso em que se mostram sinais ser percebida por outro sentido a não
com sinais: mas as palavras sozinhas ser pelo ouvido; daí resulta que, quan­
são sinais? 5 do se escreve uma palavra, apresenta-
Adeodato se para os olhos um sinal, que desperta
— Não. na mente o que se percebe com o
Agostinho ouvido.
— Parece-me, portanto, que, falan­ Adeodato
do, significamos pelas palavras^ ou as — Concordo plenamente
próprias palavras ou outros sinais, Agostinho
como seria o gesto quando falamos, ou •—- Creio que estás também de acor- .
as letras quando escrevemos; porque do em reconhecer que quando dizemos
as coisas que indicamos com estes dois “nome” queremos significar algo.
vocábulos (gesto e letra) ou são ainda Adeodato
sinais (o próprio gesto e as próprias — É verdade.
letras), ou algo que não é sinal, como Agostinho
quando dizemos “pedra”. Esta pala­ — Mas o quê, afinal?
vra, pois, é um sinal enquanto significa Adeodato
algo, mas não é um sinal o que ela •—■ Naturalmente aquilo cujo nome
indica. Este gênero de palavras que se diz, como Rômulo, Roma, virtude,
significam coisas que não são' sinais rio e inúmeras outras coisas.
não pertence, porém, à parte que nos Agostinho
propomos discutir. Com efeito, nós — Estes quatro nomes não signifi­
nos propomos considerar o caso dos cam nenhuma coisa?
sinais que se mostram por sinais, e nele Adeodato
distinguimos dois aspectos: ou se ensi­ -—- Sim, algumas coisas.
330 SANTO AGOSTINHO

Agostinho Adeodato
— Não há nenhuma diferença entre — Sim, lembra-me que isto tam-
estes nomes e as coisas que são signifi­ •bém foi dito há pouco. Por isso res­
cadas por eles? pondí que o nome significa algo, e a
Adeodato este significado subordinei esses qua­
— Muitíssima. tro nomes; e aquele e estes, se é verda­
Agostinho de que se proferem com'a voz, reco­
— Gostaria de ouvir de ti qual é nheço serem audíveis.
ela. Agostinho
Adeodato — Que diferença há, portanto,
— Em primeiro lugar, estes são si­ entre o sinal audível e as coisas audí­
nais e aquelas não o são. veis significadas, que, por sua vez,
Agostinho também são sinais?
— Agrada-te que chamemos de Adeodato
“significáveis” as coisas que podem ser — Entre aquilo que chamamos de
significadas pelos sinais, e não são nome e estas quatro coisas que subor­
' sinais, assim como chamamos de “visí­ dinamos ao seu significado, vejo existir
veis” as que podem ser vistas, para de­ esta diferença: o nome é sinal audível
pois disputarmos sobre elas mais co­ dos sinais audíveis, enquanto as coisas
modamente? audíveis são também sinais audíveis,
Adeodato mas não sinais de sinais audíveis, e sim
— Agrada-me. de coisas em parte visíveis, como Rô-
Agostinho mulo, Roma, rio; em parte inteligíveis,
— E os quatro sinais que hâ pouco como virtude.
pronunciaste podem ser significados Agostinho
por qualquer outro sinal? — Aceito e aprovo; mas sabes que 9

Adeodato se chama palavra tudo aquilo que é


— Admira-me que julgues possa eu proferido com a voz e que tem algum
ter esquecido o que já ficou assentado, significado?
isto é: que as letras escritas são sinais Adeodato
de sinais, quer dizer, sinais dos sons — Sei.
articulados pela voz. A gostinho
Agostinho — Logo, o nome também é pala­
— Que diferença há entre eles? vra, porque vemos que é- proferido
Adeodato mediante a articulação da voz e que
— Aquelas (as letras escritas) são tem um significado; e quando dizemos
visíveis, e estes (os sons articulados que um homem eloquente se serve de
pela voz), audíveis. Por que haverias tu palavras apropriadas, sem dúvida que­
de sentir dificuldade em aceitar este remos dizer que usa nomes; e quando,
nome, “audíveis”, se admitimos “signi- em Terêncio, o escravo fala ao velho
ficáveis”? patrão: “.Rogo que digas boas pala­
Agostinho vras 7”, entende “nomes”.
— Certamente que o aceito, e com Adeodato
agrado. Porém, novamente pergunto se — Concordo.
esses quatro sinais podem ser signifi­ A gostinho
cados por algum outro sinal audível, — Concedes, portanto, que com
como lembraste acontecer com os estas duas sílabas que articulamos
visíveis. 7 Andria, ato I, cena II, V. 33.
DE MAGISTRO 331

quando dizemos “verbum” (palavra) cavalo e animal., A não ser que te im­
queremos significar também um nome, peça de concordar o fato de que por
e que, por conseguinte, a palavra é um “verbum”, além de “palavra”, pode-se
sinal do nome? entender “verbo”, isto é, aquela parte
Adeodato do discurso que se declina por tempos,
— Concedo. como “escrevo”, “escrevi”, “-leio”, “li”,
Agostinho que manifestamente não são nomes.
— Gostaria que tu respondesses Adeodato
também a isto: sendo a palavra sinal — Acabas de fazer referência ao
do nome e o nome sinal do rio e o rio que me suscitava dúvidas.
sinal de uma coisa que se pode ver, e Agostinho
tendo tu reconhecido a diferença entre — Isto não deve preocupar-te. Na
esta coisa e o rio, isto é, o seu sinal, e verdade, em geral chamamos sinais a
entre este sinal e o nome que é sinal tudo o que significa algo, e entre estes
deste sinal, qual crês que seja a dife­ encontramos -também as palavras.
rença entre o sinal do nome que disse­ Ainda chamamos sinais (insígnias) às
mos ser a palavra é o mesmo nome de bandeiras militares, que são sinais em
que ela é sinal? sentido próprio, coisa que não se pode­
Adeodato ría dizer das palavras. Todavia, se te
— Acho que a diferença seja esta: dissesse que todo cavalo é animal, mas
o que é significado com o nome é signi­ nem todo animal é cavalo, assim como
ficado também com a palavra; como, toda palavra é sinal, mas nem todo
pois, nome é palavra, assim também sinal é palavra, creio que não te susci­
rio é palavra; mas nem tudo o que é taria dúvida alguma.
significado com a palavra é significado Adeodato
também com o nome. Também aquêle — Já entendo, e concordo plena­
“si ”(se) com que começa o verso por ti mente, que entre “palavra” tomada em
proposto e aquele “ex” (de) do qual sentido geral e “nome” existe a mesma
tratamos tão longamente, guiados pela diferença que há entre animal e cavalo.
razão, até chegarmos à presente ques­ Agostinho
tão, são palavras, mas não nomes, e — Sabes também que, quando dize- 10
muitos outros exemplos semelhantes mos animal, uma coisa é este nome
podemos encontrar. Pois, como todos trissílabo, que é proferido pela voz, e
os nomes são palavras, mas nem todas outra aquilo que com ele se significa?
as palavras são nomes, julgo estar Adeodato
clara a diferença entre palavra e nome, — Já concedí isto, há pouco, a res­
isto é, entre o sinal daquele sinal que peito de todos os sinais e de todos os
não significa nenhum outro sinal e o significáveis.
sinal daquele sinal que pode significar Agostinho
outros. — Não te parece que todos os si­
Agostinho nais significam uma coisa distinta da
— Concedes que todo cavalo é ani­ que são, como quando pronunciamos
mal, mas nem todo animal é cavalo? este nome trissílabo — animal — de
Adeodato modo algum significaremos aquilo que
— Quem duvidaria? ele mesmo é?
Agostinho Adeodato
— Pois bem, entre nome e palavra — Não, certamente; pois quando
existe a mesma diferença que há entre dizemos sinal, este não significa ape­
332 SANTO AGOSTINHO

nas todos os outros sinais, quaisquer perguntasse que parte da oração é


que sejam, mas a si mesmo também, nome, não poderias responder-me
pois é uma palavra, e, sem dúvida,' acertadamente dizendo “nome”?
todas as palavras são sinais. Adeodato
Agostinho — Ê verdade.
— E quando pronunciamos este Agostinho
dissílabo, “verbum” (palavra), não
— Portanto, há sinais que, entre as
acontece algo semelhante? Pois, se
outras coisas que significam, signifi­
tudo o que com algum significado se
cam também a si mesmos.
profere pela articulação da voz é tam­
Adeodato
bém significado por este dissílabp, ele
— Há.
também está incluído no gênero dos
sinais. Agostinho
Adeodato — Quando dizemos “coniunctio”
— Assim é. (conjunção), parece-te que este sinal
Agostinho quadrissílábico possa ser um daqueles?
— E não é assim também para o Adeodato
nome? Este, pois, significa os nomes — De maneira alguma; porque as
de todos os gêneros, e “nome” mesmo coisas que significa não são nomes,
é um nome de gênero neutro. Ou, se te enquanto ele é um nome.

Capítulo V
Sinais recíprocos

Agostinho Agostinho
u — Raciocinaste bem; agora vê se é — Não sabes, então, que, quando
possível encontrar sinais que se signifi­ dizemos “nome” e “palavra”, dizemos
quem reciprocamente, de maneira que, duas palavras?
assim como este significa aquele, tam­ Adeodato .
bém aquele signifique este; pois não — Sei, sim.
me parece que concordem entre si Agostinho
aquele quadrissílabo'cotizwazcízo ” e as — E não sabes que, quando dize­
coisas que este significa, tais como: mos “nome” e “palavra”, dizemos dois
“si” (se), “vel” (ou), “nam” (pois), nomes?'
“namque” (e pois), “nisi” (se não), Adeodato
“ergo” (logo), “quoniam” (porque) e — Também sei.
outras semelhantes: porque aquela pa­ Agostinho
lavra sozinha significa todas estas, — Por conseguinte, sabes que tanto
mas não há nenhuma entre estas últi­ o nome pode significar-se com a pala­
mas que possa significar aquele qua- vra, quanto a palavra com o nome.
drissílabo. Adeodato
Adeodato —- Concordo.
— Compreendo e desejo conhecer Agostinho •
quais os sinais que se significam — E podes dizer-me, salvo o fato
reciprocamente. de que se escrevem e pronunciam
DE MAGISTRO 333

diversamente, em que diferem entre si? Adeodato


Adeodato’ — Já vejo que isto pode acontecer,
— Talvez possa, porque vejo tra­ mas espero que me mostres de que
tar-se da mesma coisa de que falei há modo acontece.
pouco. Com efeito, quando dizemos AgostInho
“palavra”, entendemos tudo o que com — Reparas, creio eu, que tudo
algum significado proferimos pela arti­ quanto, com algum significado, se pro­
culação da voz; assim, todo nome, e fere pela articulação da voz fere o ou­
ainda o próprio termo “nome”, é uma vido de forma a ser percebido, e é
palavra, mas nem toda palavra é nome, enviado à memória para ficar conheci­
embora quando dizemos “palavra” do.
entendamos “nome”. Adeodato
Agostinho — Sim, reparo.
12 — Mas, se alguém te afirmasse e Agostinho
demonstrasse que, assim como cada — Acontecem, portanto, duas coi­
nome é palavra, também cada palavra sas quando algo emitimos com a voz.
é nome, poderias determinar em que se Adeodato
diferenciam, afora o diverso som de — Assim é.
pronúncia? Agostinho
Adeodato ■—- Que dirias tu se por uma destas
— Não poderia, e creio que não qualidades fossem chamadas palavras
haja diferença alguma. (“verba”, de “verberare percutir,
Agostinho bater) e pela outra nomes (“nomina”,
— Como? Pois se tudo o que, com de “nosco”: conhecer)? E o primeiro
algum significado, se profere pela arti­ termo assim se denominasse por causa
culação da voz tanto são palavras dos ouvidos e o segundo do espírito?
como nomes; e, contudo, por certas Adeodato
razões, são palavras, e, por outras, são — Concordarei quando me tiveres u
nomes, nenhuma distinção haverá demonstrado como podemos, com
entre nome e palavra? razão, chamar nomes a todas as
Adeodato palavras.
— Não compreendo como possa Agostinho
ser isto. — É fácil, pois creio que apren­
Agostinho deste e te lembras de que se chama
— Isto ao menos entendes: tudo o “pronome” o que está em lugar do
que é “colorido” é visível e tudo o que nome, ainda que denote a coisa com
é visível é “colorido”, embora estas um significado menos pleno do que o
duas palavras signifiquem duas coisas nome. Pois, assim acho, o definiu o
distintas e separadas. gramático a quem fizeste referência:
Adeodato “Pronome é uma parte da oração que,
— Entendo. usada no lugar do nome, significa a
Agostinho mesma coisa que este, porém menos
— E ser-te-ia difícil admitir que plenamente”.
assim também toda palavra é nome e Adeodato
todo nome é palavra, embora estçs — Lembro-me e aprovo.
dois nomes ou palavras, isto é, os ter­ Agostinho
mos “nome” e “palavra”, tenham — Vês, portanto, que, segundo esta
significação diferente? definição, os pronomes se referem só
334 SANTO AGOSTINHO

aos nomes, e só no lugar destes podem Agostinho


colocar-se, como quando se diz: este — Sem dúvida estás enganado; n
homem, o mesmo rei, a mesma mulher, mas, apesar disso, demonstras certa
esse ouro, aquela prata, os termos agudeza; entretanto, para pôr fim ao
“este”, “mesmo”, “mesma”, “esse”, engano, presta mais atenção ao que
“aquela” são pronomes, “homem”, vou dizer, se conseguir dizê-lo como
“rei”, “mulher”, “ouro”, “prata” são quero, pois falar sobre palavras com
nomes com que, mais plenamente que palavras é tão complicado como entre­
com os mesmos pronomes, as coisas laçar os dedos e assim querer esfregá-
são significadas. los, quando somente quem os mexe
Adeodato pode distinguir os dedos que têm comi­
— Vejo e estou de acordo. chão dos que ajudam a acalmar os que
Agostinho têm prurido.
— Enuncia-me agora algumas con­ Adeodato
junções; as que quiseres. —- Eis-me aqui com toda a minha
Adeodato alma, pois esta comparação desper­
— “E” (et), “também” (que), “mas” tou-me profundo interesse.
(at), “senão” (atque). Agostinho
Agostinho — As palavras resultam certa­
—. Tudo o que disseste parece-te mente de som e de letras.
nome? Adeodato
Adeodato — Assim é.
— De maneira alguma. Agostinho
Agostinho — Ora, para servir-nos especial­
— Mas ao menos te pareceu que eu mente de uma autoridade que nos é
falei bem dizendo: “tudo isso”, “tudo o caríssima, quando o Apóstolo Paulo
que” disseste? diz: “Não havia em Cristo o sim e o
Adeodato não, mas somente havia nele o sim8”,
— Completamente bem; e agorã não creio que se deva pensar que estas
compreendo quão admiravelmente tu três letras que pronunciamos dizendo
assim mostraste que enunciei nomes, “sim” (est) existissem em Cristo, mas,
pois de outra maneira não se poderia antes, o que com estas três letras
dizer: “tudo isto” (haec omnia), “todas significamos.
estas coisas”. Mas agora me surge a Adeodato
dúvida de que a tua locução me “pare­ — Ê verdade.
ceu” justa, porque não posso negar que Agostinho
estas quatro conjunções sejam também — Compreendes, portanto, que
palavras (verba); de forma que tam­ quem dizia: “Havia nele o sim” (est),
bém destas se pode dizer corretamente nada mais disse do que: “aquilo que
“todas estas coisas” (haec omnia), era nele é denominado ‘sim’ ” (est);
como se poderia dizer corretamente 8 Cor 1, 19. A frase do texto latino "Non erat in
“todas estas palavras” (haec omnia Christo est et non, sed est in illo erat ” foi traduzida
verba). Se porém me perguntares a que aqui colocando “sim” em lugar de “é”, que seria o
exato correspondente português do "est"latino, mas
parte da oração pertence “palavra”, que não daria o mesmo sentido do latim.'No entan­
responderei que é um nome. Eis por to, mais adiante, para não desvirtuar o texto origi­
que a este nome acrescentaste o prono­ nal, mantivemos o "est”, que — como se sabe —
em latim, embora verbo, servia também para
me, para que a tua frase estivesse expressar o advérbio de afirmação “sim”, que não
correta. existia na língua. (N. do T.)
DE MAGISTRO 335

como, se dissesse: “Virtude era nele”, mos demonstrado com o raciocínio


não diria senão que se chama virtude o que é também nome.
que era nele, e não pensaríamos certa­ Adeodato
mente que se encontravam nele aquelas — É exatamente como dizes.
duas sílabas que proferimos quando Agostinho
dizemos “virtus ” (virtude), mas aquilo — Por acaso duvidarás ainda de
que é significado por estas duas síla­ que também as outras partes da oração
bas. sejam nomes, como demonstramos no
Adeodato caso do verbo “est”?
— Entendo e acompanho-te. Adeodato
Agostinho — Não duvido, pois confesso que
— E certamente compreendes que significam algo; mas se me perguntares
não há diferença entre dizer: “se a respeito das próprias coisas que elas
chama virtude” ou “se nomeia virtu­ significam, isto é, como cada uma,
de”? individualmente, se chame ou nomeie,
Adeodato não posso responder senão com aque­
— É claro. las partes da oração a que nós não
Agostinho chamamos de nomes, mas que, pelo
— Assim, é, portanto, igualmente que vejo, devemos chamar assim.
claro não haver diferença se alguém Agostinho
diz: “o que havia nele (em Cristo) se — Nem te preocupa que alguém is
chama ‘sim’ ” ou “se nomeia ‘sim’”. possa vir abalar o nosso raciocínio
afirmando que se deve atribuir ao
Adeodato
Apóstolo autoridade de doutrina, mas
— Vejo que aqui também não há
não de palavras, e, portanto, que o fun­
diferença. damento da nossa persuasão não é tão
Agostinho
firme como parecia, podendo aconte­
. — E também já percebes aonde cer que Paulo, não obstante tenha vivi­
quero chegar? do e ensinado retissimamente, não
Adeodato tenha falado com^igual retidão quando
— Ainda não. disse: “o ‘sim’ era nele” (em Cristo);
Agostinho tanto mais que ele_ mesmo se confessa
— E não vês que nome é aquilo indouto na arte de falar9? Como pen­
com que se nomeia uma coisa? sas que se possa refutar essa objeção?
Adeodato Adeodato
— Não há para mim coisa mais — Não saberia o que opor, e rogo-
clara. te que procures algum daqueles em
Agostinho quem se reconhece máxima autoridade
— Então vês que “est ” (é — sim) é na arte da palavra, para demonstrar o
nome, se o que havia em Cristo se que desejas.
chama “est”(é — sim). Agostinho
Adeodato — Parece-te, pois, que a razão por
— Não posso negá-lo. si mesma, sem o apoio da autoridade,
Agostinho não seja suficiente para demonstrar
— Mas se te ^perguntasse a que, que todas as partes da oração signifi­
parte do discurso pertence “est” (é,— cam algo e que, por isto, cabe-lhes uma
sim), creio que não responderías
“nome”, mas “verbo”, embora tenha­ 9 2 Cor 11, 6.
336 SANTO AGOSTINHO

denominação; ora, se se chamam, tam­ verbo, quer seja afirmativa ou negati­


bém se nomeiam, e, se se nomeiam, va; o que Túlio (Cícero), em certa pas­
terão de nomear-se com o nome; o que sagem, denomina enunciado ou propo­
se vê mui facilmente nas diversas lín­ sição. Quando o verbo está na terceira
guas. Pois quem é que não vê que, se pessoa, dizem que o caso do nome
perguntarmos como os gregos no­ deve ser o nominativo, e dizem bem; e
meiam o que nós nomeamos “quis” se, quando dizemos: “O homem senta,
(quem), responder-se-ia tíç ; como o cavalo corre”, examinares o que
nomeiam o que nós nomeamos “volo ” ficou dito, reconhecerás, segundo
(quero), responder-se-ia 0éXco ; aquilo penso, que ocorrem aí duas proposi­
que nós nomeamos “bene ” (bem), eles ções.
xaXüç ; n que nós nomeamos “scrip- Adeodato
tum ” (escrito), eles to Yeypaiqxévov ; o — Reconheço-o.
que nós “et” (e), eles kaí ; o que nós Agostinho
“ab ” (por, de), eles àirò ; o que nós — Vês tu que em cada uma há um
“heu ” (ai), eles oí ; e em todas nome, na primeira, “homem”, e, na
estas partes da oração que agora enu­ segunda, “cavalo”, e que, em cada
merei, retamente fala quem assim uma, existe um verbo, “senta” e
interrogar; e seria possível isto se não “corre”?
fossem nomes? Que sob este aspecto o Adeodato
Apóstolo Paulo tenha falado correta­ -—■ Vejo-o.
mente, podemos demonstrá-lo me­ Agostinho
diante este processo, sem invocarmos a — Logo, se eu dissesse somente
autoridade de todos os oradores: que “senta” ou “corre”, com toda razão me
necessidade há, portanto, de procu­ perguntarias quem ou que coisa, para
rarmos em outros o apoio para a nossa que eu respondesse “homem”, ou “ca­
opinião? valo”, ou “animal”, ou qualquer outra
16 — Mas se houver alguém tão tardio coisa pela qual o nome referido ao
ou tão teimoso que ainda não ceda e verbo completasse o enunciado, isto é,
firme não ceder sem a autoridade a proposição, que poderia ser afirma­
daqueles autores, aos quais, por con­ tiva ou negativa.
senso de todos, se atribuem as normas Adeodato
da arte de falar, quem se poderia — Compreendo.
encontrar na língua latina mais exce­ Agostinho
lente do que Cícero? Ora, este, nas — Espera mais um pouco, e supõe
suas nobilíssimas orações que apelida­ que estamos vendo algo bem distante e
mos “verrinas”, chama nome ao termo não sabemos se é um animal ou uma
“coram ” (diante de), ainda que naque­ pedra ou outra coisa, e que eu te diga:
la passagem possa ser tomado como “porque é um homem, é (também) ani­
preposição ou como advérbio. Mas, mal”, não faria uma afirmação temerá­
porque poderia acontecer que eu não ria?
esteja compreendendo bem aquela pas­ Adeodato
sagem, que poderá ser interpretada — Muito temerária, mas não fala­
diversamente por outrem, vou citar um rias tão temerariamente se dissesses:
caso a que não creio se possa objetar “Se é um homem, é um animal”.
nada. Os mais conhecidos mestres de Agostinho
dialética dizem que uma frase com­ — Dizes bem. Portanto, na tua
pleta resulta formada pelo nome e pelo frase, o “se” agrada a mim e a ti; e, ao
DE MAGISTRO 337

contrário, aos dois desagrada o “por­ tros haveriam de ser senão “se” e
que” da minha. “porque”?
Adeodato Agostinho
— Concordo. :—- Logot está suficientemente de­
Agostinho monstrado que estas duas conjunções
— Observa agora se estas duas são também nomes.
proposições, “se agrada”, “porque- de­ Adeodato
sagrada”, estão completas. •—- Sim, suficientemente.
Adeodato
— Completas, certamente/ Agostinho
Agostinho — E poderias por ti mesmo, se­
— Vamos, dize-me agora quais guindo esta regra, demonstrar a
sejam os verbos e quais os nomes. - mesma coisa nos confrontos das de­
Adeodato mais partes da oração?
— Vejo que os verbos são “agrada” Adeodato
e “desagrada”; e os nomes, quais ou­ — Poderia.

Capítulo VI
Sinais que significam a si mesmos
Agostinho nome; e que assim — além do som das
17 — Passemos adiante e dize-me sé, letras — não há outra diferença no que
assim como achamos que todas as diz respeito ao nome em geral; mas
palavras são nomes, e todos os nomes que, quanto ao nome em particular,
palavras, assim também te parece que dizemos ser uma das oito partes da
todos os nomes são vocábulos e todos oração, sem que naturalmente inclua
os vocábulos nomes. as outras sete.
Adeodato Adeodato
— Não encontro entre eles outra — Compreendo.
diferença senão a do som das sílabas. Agostinho
Agostinho
— Por enquanto não me oponho, — No entanto, era isso mesmo que
embora não faltem os que encontram estava dizendo quando afirmava que
entre eles uma diferença de significado, vocábulo e nome significam-se recipro­
o que não é conveniente discutirmos camente.
agora. Porém, certamente com­ Adeodato
preendes que já chegamos àqueles — Entendo, mas pergunto o que is
sinais, que se significam reciproca­ pretendias dizer com as palavras
mente, sem outra diferença que a do “ainda significam a si mesmos-junto
som, e àqueles que significam a si mes­ com as demais partes da oração”.
mos junto com as demais partes da - Agostinho
oração. — Não nos demonstrou a discus­
Adeodato j são anterior que todas as partes da
— Não estou entendendo. i oração podem chamar-se tanto nomes
Agostinho como vocábulos, isto é, podem ser
— Não compreendes então que significadas pelos termos de “nome” e
nome significa vocábulo e vocábulo de “vocábulo”?
338 SANTO AGOSTINHO

Adeodato do em sentido geral e em sentido parti­


— Assim é. cular, e “vocábulo”, aó contrário, não
Agostinho está incluído entre as oito partes da
— Se te perguntasse como chamas oração; parece-me, portanto, que os
o próprio nome, isto é, o som expresso dois termos se diferenciam, não só pelo
por estas duas sílabas, não me respon­ som, mas também por isso.
derías corretamente “nome”? Agostinho
Adeodato — Julgas tu que “nomen ” (nome) e
— Corretamente. ovop.a (nome) se diferenciam por algo
Agostinho
mais do que pelo som, que também
— E por acaso também significará distingue a língua grega da latina?
Adeodato
a si mesmo o sinal que proferimos com
— Aqui, sinceramente, .nada, mais
quatro sílabas, quando dizemos “co-
niunctio” (conjunção)? Não; porque encontro.
Agostinho
este nome não pode ser incluído entre
— Chegamos, portanto, àqueles si­
as coisas que significa.
nais que significam a si mesmos e, com
Adeodato inteira reciprocidade, um significa o
— Compreendo peffeitamente. outro, ou seja, os seus significados
Agostinho reciprocamente se significam, de forma
— Foi isso mesmo que afirmamos: que o que este significa também aquele
que o nome significa a si mesmo junto significa e vice-versa, diferenciando-se
com os outros nomes que significa; o entre si apenas pelo som: este quarto
que por ti próprio podes entender tam­ caso viemos encontrá-lo agora: os três
bém do “vocábulo”. anteriores referem-se a “nome” e “pa­
Adeodato lavra”.
— Sim, é fácil, mas agora me ocor­ Adeodato
re que o termo “nome” pode ser toma­ — Chegamos.

Capítulo VII
Resumo dos capítulos anteriores

Agostinho por prazer não pertence propriamente à


19 — Desejaria que resumisses o que locução’; e quando na oração nos diri­
encontramos discutindo entre nós. gimos a Deus, a quem não cremos
Adeodato poder ensinar ou recordar algo, as
.— Farei quanto puder. Antes de palavras têm valor ou para admoestar
mais nada, lembra-me que por certo a nós mesmos ou para, por nós,
espaço de tempo indagamos por que admoestar e instruir aos outros. Suces­
razão se fala e achamos que se fala sivamente, depois de suficientemente
para ensinar ou para recordar: pois, teres demonstrado que as palavras
ainda quando interrogamos, não pre­ nada mais são do que sinais e que não
tendemos nada mais do que fazer saber pode existir sinal sem significar algo,
a quem for interrogado o que dele que­ apresentaste um verso, cujas palavras
remos ouvir; depois vimos que, quando procurei explicar, no seu significado,
cantamos, aquilo que fazemos apenas uma por uma; o verso era: “Si nihil\ ex
DE MAGISTRO 339

tanta superis placet urbe relinqui”. que se poderia demonstrar sem sinal
Quanto à sua segunda palavra (nihil) aquelas coisas que nós não fazemos no
apesar de conhecidíssima, não conse­ momento em que somos interrogados,
guimos, no entanto, encontrar o que mas que podemos fazer depois da
significava, pois a mim me parecia que interrogação; a locução, porém, não é
nós, quando falamos, não a emprega­ desta espécie, pois se, quando falamos,
mos inútilmente, mas para ensinar algo alguém nos perguntar o que é falar,
a quem nos ouve; isto é, parecia-me isto se demonstra facilmente por si
que com esta palavra se indicasse, tal­ mesmo: falando.
vez, o estado mesmo da mente, quando — Com isto ficamos avisados de 20
acha que não existe a coisa que procu­ que: ou se mostram sinais com sinais
ra ou que julga tê-la achado, e tu me ou, com sinais, se mostram outras coi­
respondeste evitando com uma brinca­ sas que sinais não são, ou então, sem
deira aprofundar não sei de que manei­ sinal podem mostrar-se as coisas que
ra a questão, e adiando para outro podemos fazer depois de interrogados:
momento o esclarecimento: não acre­ e, desses três casos, detivemo-nos a
dites, pois, que eu me esqueça dessa considerar e discutir com mais minú­
tua dívida para comigo. Depois, en­ cia o primeiro. Mediante esta discus­
quanto eu procurava explicar a ter­ são, ficou esclarecido que existem si­
ceira palavra do verso, fui por ti convi­ nais que não podem, por sua vez, ser
dado a não indicar outra palavra que significados pelos sinais que eles signi­
tivesse o mesmo valor, mas, pelo ficam, como acontece no caso do
contrário, a mostrar a própria coisa quadrissílabo“conzuncfio "(conjunção);
significada pelas palavras. Depois de ao passo que existem outros que, ao
responder, durante a nossa conversa­ contrário, o podem, como quando
ção, que isto não seria possível, passa­ dizemos “sinal” e entendemos signifi­
mos para aquelas coisas que podem ser car também “palavra”, pois sinal e
indigitadas aos nossos interlocutores. palavra são dois sinais e duas palavras
Pensava eu que tais fossem todas as (sinal-palavra, palavra-sinal). Neste
coisas corpóreas, mas achamos serem caso em que os sinais se significam
assim somente as visíveis. Daí passa­ reciprocamente, demonstramos, ainda,
mos, não sei de que modo, aos surdos e que uns não têm o mesmo valor, outros
aos histriões, observando que signifi­ o têm igual, e outros finalmente são
cam pelo gesto e sem a voz não apenas idênticos. Assim, quando proferimos
as coisas visíveis, senão muitas outras este dissílabo, “sinal”, certamente indi­
e quase todas as que expressamos com camos todos os sinais com que uma
a palavra, e concordamos em que os coisa pode ser indicada ou significada:
gestos também são sinais. Então reco­ mas, se dizemos “palavra”, esta não é
meçamos a indagar como poderiamos o sinal de todos os sinais, mas apenas
indicar, sem sinal algum, as mesmas dos que se pronunciam articulando a
coisas que se indicam pelos sinais, voz. Donde resulta manifesto que —
sendo que aquela parede e aquela cor e embora “palavra” também seja indi­
tudo o que é visível e que se indica cada com um sinal, e “sinal” (signum)
apontando o dedo, devemos convir que com “palavra” (verbum), isto é, estas
é sempre indicado por certo sinal. duas sílabas por aquelas, e aquelas por
Aqui, eu, errando, disse que nada de estas —, no entanto, “sinal” vale mais
semelhante poderiamos encontrar, e, que “palavra”, porque aquelas duas sí­
não obstante, ficou assentado entre nós labas (sinal) denotam mais coisas que
340 SANTO AGOSTINHO

estas (palavra). Têm, porém, o mesmo ; moratio: notio, noscere). do espírito;


valor “palavra” em geral e “nome” em , por isso dizemos muito bem, quando
geral. Ensinou-nos, pois, o raciocínio falamos qual é o “nome” desta coisa
que todas as partes da oração também desejando gravá-la na memória, e não
•são nomes, sendo que a todas podemos dizemos, ao contrário, “palavra”.
substituir pelo pronome e de todas . Entre os sinais que não têm apenas o
podemos dizer que “nomeiam” algo, e mesmo valor, mas são completamente
não há nenhuma que não forme, se lhe idênticos, diferenciando-se só pelo som
acrescentarmos o verbo, uma proposi­ das letras, encontramos “nomen”
ção ou um enunciado completo. Mas, (nome) e õvop.a (nome).
não obstante “nome” e “palavra” te­ A respeito desse gênero de sinais que
nham o mesmo valor, pois tudo o que é se significam reciprocamente, esca-
“palavra” é “nome”, também, no en­ pou-me que não encontramos nenhum
tanto, não são idênticos. Vimos, duran­ sinal que, além de significar os outros,
te a discussão, com bastante probabili­ não significasse também a si mesmo.
dade, que uma é a razão por que se diz Eis tudo o que pude recordar. Tu, que,
“verba” (palavras) e outra por que nesta discussão, nada disseste sem
“nomina” (nomes). A primeira refere- saber e sem ter a certeza, poderás ver
se à ^percussão (verberatio) do ouvido, se recapitulei tudo correta e ordenada­
a segunda ao conhecimento (comme- mente.

Capítulo VIII

Não se discutem inutilmente estas questões. Assim,


para responder àquele que interroga, devemos dirigir a mente,
depois de percebermos os sinais, às coisas que estes significam

Agostinho um aceno. Eu, porém, desejaria, antes


21. — Sem dúvida resumiste bastante de mais nada, que não julgasses que
bem tudo o que eu queria, e confesso-te quis, com esta conversação, fazer uma
que todas estas distinções me parecem brincadeira inoportuna: embora às
mais claras agora do que quando, vezes brincássemos, a minha brinca­
indagando e disputando, ambos as deira jamais poderá ser considerada
tirávamos de não sei que esconderijos. infantil e eu nunca pensei em bens
Porém, aonde eu deseje chegar contigo pequenos e medíocres. No entanto, se
por meio de tantas voltas e rodeios é te dissesse que é precisamente a vida
difícil dizer neste momento. Talvez bem-aventurada e sempitema o lugar
penses que, ou nos divertimos, ou afas­ aonde, sob a guia de Deus, isto é, da
tamos a mente das coisas sérias com própria verdade, pretendia chegar com
questõezinhas pueris, procurando, passos de certa maneira ajustados ao
quando muito, uma utilidade qualquer, nosso pé mal firme, teria medo, de
pequena e medíocre que seja, pois, se parecer ridículo por haver começado
destas discussões tivesse de sair algo percorrendo caminho tão longo, não
de grande ou de importante,’ gostarias em consideração às próprias coisas
de sabê-lo já, ou, ao menos, ouvir disto que são significadas, mas aos sinais.
DE MAGISTRO 341

Espero que me perdoes, portanto, se Adeodato


quis fazer contigo uma espécie de pre­ —- De .maneira alguma. Porém
lúdio, não para brincar, e sim para trei­ agora vejo para onde tendes.
nar as forças e a agudeza da mente, Agostinho
graças às quais possamos depois não — Fala, então, pois que não crês
só suportar, senão ainda amar a luz e o que estou zombando de ti.
calor daquela região onde se encontra Adeodato
a vida bem-aventurada. — Pensas, porventura, se possa
Adeodato concluir que não sou “homem”?
— Continua como começaste, pois Agostinho
eu não poderia julgar desprezível ou de — Como? Não pensas o mesmo,
pouco valor qualquer coisa que digas tu, que concedeste ser verdade tudo o
ou faças. que precede e de que se tira essa
Agostinho
conclusão?
Adeodato
22' — Então, continuemos! E conside­
raremos aquela parte da nossa discus­ — Não vou dizer-te o que estou
pensando, antes de ouvir de ti qual a
são relativa aos sinais que não signifi­
tua intenção ao perguntar-me “se
cam outros sinais, aquelas coisas que
homem é homem”; fazias referência a
chamamos “significáveis”. Em pri­
meiro lugar, dize-me se “homem é estas duas sílabas ou ao que elas
significam?
homem”.
Agostinho ‘
Adeodato — Antes, responde-me tu em que
— Agora, na verdade, não sei se sentido tomaste a minha pergunta:
estás brincando. pois,-se é ambígua, era teu dever preca-
Agostinho ver-te e não responder antes de ter cer­
— Por quê? teza sobre o sentido de minha pergun­
Adeodato ta.
— Porque me estás perguntando se Adeodato
o “homem” é outra coisa que -—- E que obstáculo podia oferecer-
“homem”. me esta ambiguidade, desde que res­
Agostinho ‘ pondí num sentido e no outro? Natu­
— Acreditarias, penso eu, ‘que ralmente que homem é homem, e estas
estou igualmente a zombar de ti se te duas sílabas nada mais são do que
perguntasse se a primeira sílaba deste' duas sílabas, e o que elas significam
nome é mesmo “ho” e a segúnda nada mais é do que é (homem).
mem . Agostinho
Adeodato — Resposta inteligente: mas por
— Não há dúvida. que tomaste nos dois sentidos apenas
(o que se diz) “homem” e não todas as
Agostinho outras coisas de que falamos?
— Mas negarás que estas duas síla­ Adeodato
bas dêem “homem”? i; — E como poderia convencer-me
Adeodato j; de que não tomei assim as outras?
— E quem o negaria? Agostinho
Àgostinho — Pondo de lado o resto, se tives­
Pergunto, portanto, se és por ses tomado a minha primeira pergunta
acaso estas duas sílabas unidas. só no sentido do som das sílabas, não

I
342 SANTO AGOSTINHO

me terias respondido nada: pois podia Agostinho


até parecer-te que nada houvesse inda­ — Observa ainda se, juntando estas
gado, mas, como fiz repercutir no teu duas sílabas, poder-se-á fazer um
ouvido três palavras, uma das quais re­ homem.
peti no meio, dizendo: “utrum homo Adeodato
homo sit” (se homem é homem), tu — De maneira alguma concedería
tomaste a primeira e a segunda palavra isto, porque concordamos, com razão,
•não segundo os mesmos sinais, mas que, depois de ter o sinal, a mente vai
segundo o que elas significam, coisa examinar o que este significa, e após o
esta manifesta pelo simples fato de que exame é que concede ou nega o que se
logo pensaste que devias responder à diz. Mas aquelas duas sílabas, por soa­
minha pergunta com rapidez e desem­ rem sem qualquer significado, se pro­
baraço. nunciadas separadamente, ficou esta­
Adeodato belecido que têm valor, somente como
— Dizes a verdade. som.
Agostinho Agostinho
— Por que então preferiste tomar — Concordas, portanto, com con­
só a palavra que está no meio (homo) vicção que não se deve responder às
segundo o som e o significado? perguntas senão segundo as coisas
Adeodato significadas pelas palavras?
Adeodato
— Mas, agora, tomo-a totalmente
só, segundo o seu significado; pois — Não compreendo por que não
concordo contigo não ser possível con­ haveria de concordar com isto, desde
versar se a mente, depois de ouvir as que se trate de palavras.
Agostinho
palavras, não se voltar para as coisas
de qüe aquelas são sinais. Por este — Gostaria de saber como respon­
motivo, mostra-me como possa eu tçr derías para aquele que, jocosamente
sidoxçnganado por esse raciocínio, com ouvimos dizer, fez sair um leão da
que sexconclui que não sou homem. boca do companheiro com quem esta­
va disputando. Depois de perguntar-
Agostinho lhe se o que dizemos sai da nossa boca,
— Melhor será que te apresente e não podendo negá-lo, induziu o inter­
novamente as mesmas perguntas, pará locutor (o que era fácil) a pronunciar o
que tu encontres por ti mesmo onde nome “leão”; feito isto, começou a
erraste. andar ao redor dele e escamecê-lo,
Adeodato
porque, depois de confessar que tudo o
— Está bem. que dizemos sai da nossa boca e não
Agostinho
podendo negar que pronunciara a pala­
23 — Não te vou perguntar o que te vra “leão”, estava admitindo — ele,
perguntei antes, porquanto já o conce­ pessoa não ruim — que vomitara um
deste. Observa, ao invés, com mais animal tão feroz.
atenção, se na palavra “homo ” Adeodato
(homem) a sílaba “ho ” é outra coisa — Não seria difícil responder a
que não “ho e a sílaba “mo ” nada esse brincalhão, pois não lhe concede­
mais que “mo ría que tudo o que dizemos sai da
Adeodato nossa boca, porque o que dizemos
— Não vejo, na verdade, nada nada mais é que sinal, e da nossa boca
mais. sai não a coisa que é significada, mas o
DE MAGISTRO 343

sinal com que a significamos; assunto . peito de “homem” só como sinal. Se,
este de que tratamos há pouco. • ao contrário, perguntar se é animal,
Agostinho anuirei muito mais facilmente, porque,
24 — Desse modo refutá-lo-ias bem, ainda que calasse os termos’“nome” e
mas que me responderias, ao pergun- “animal” para perguntar apenas “o
tar-te se homem é um nome? que é homem”, segundo aquela regra
Adeodato • *•
do falar que já estabelecemos, a minha
— Que mais, senão que é um mente voltar-se-ia para o que se signi­
fica com aquelas duas sílabas, e outra
nome?
coisa não poderia responder senão
Agostinho “animal” e até poderia citar também
— Então, quando te vejo, vejo um toda a definição, isto é, “animal racio­
nome? : nal, mortal”; não te parece?
Adeodato Adeodato
— Não. — Certamente; mas, se concede­
Agostinho mos ser um nome, como poderemos
— Queres portanto que diga o que evitar a conclusão injuriosa de que não
disso resulta? somos homens?
Adeodato Agostinho
— Não te incomodes: eu mesmo, -—■ Demonstrando que não foi tira­
que respondi que um homem é nome da do sentido da palavra usada quando
quando me perguntaste se homem era assentíamos com o nosso interlocutor.
nome, reconheço que declarei não ser E se este dissesse que quer deduzi-la da
eu homem; e fiz isto embora já ficasse palavra considerada como sinal, nada
estabelecido que devemos admitir ou haveria que recear, pois que poderia eu
negar o que se diz segundo o signifi­ temer confessando que não sou
cado das coisas. homem, isto é, não sou aquelas duas
Agostinho sílabas?
— Porém a mim parece que tu não Adeodato
foste incidir nesta resposta sem certa — Não há nada de mais verda­
causa, pois a própria lei da razão, gra­
deiro. Mas por que então fere o espírito
vada em nossas mentes, pode superar a ouvir dizer: “Tu não és portanto
tua vigilância: com efeito, se te pergun­ homem” desde que, pelo que já conce­
tasse o que é “homem”, responderias demos, nada há que se possa dizer com
talvez: “animal”; porém, se te pergun­ maior verdade?
tasse que parte da oração é “homem”,
de nenhum outro modo me poderias Agostinho
responder bem, senão dizendo: — Pelo fato de que não posso evi­
“nome”; assim, concluímos que tar pensar que a conclusão — logo que
“homem” é nome e animal: o primeiro se ouvem estas duas sílabas — não se
(ser nome) se diz enquanto é sinal; o relacione com o que elas significam,
segundo (ser animal) enquanto indica a devido àquela regra, cujo valor natural
coisa significada. A quem, portanto, é grandíssimo, de que a nossa atenção,
me perguntar se homem é nome, nada depois de ouvirmos os sinais, volta-se
mais respondería senão que é, porque para as coisas significadas.
com esta pergunta ele deixa suficiente­ Adeodato
mente entender que quer saber a res- — Aceito tudo quanto dizes.
344 SANTO AGOSTINHO

Capítulo IX
Se devemos preferir as coisas, ou o conhecimento delas,
aos seus sinais
Agostinho Agostinho
25 — Desejo, portanto, que com­ — Podes, ao menos, dizer-me que
preendas bem que se devem apreciar intenção, que escopo tens tu quando
mais as coisas significadas do que os pronuncias esse nome?
sinais. Tudo o que existe devido a Adeodato
outra coisa, necessariamente tem valor — Sim. Com esse sinal quero avi­
menor que a coisa pela qual existe, sar ou ensinar à pessoa com quem falo
caso não penses diversamente. • aquilo sobre o que julgo necessário
Adeodato avisá-la ou ensiná-la.
— Parece-me que não se possa con­ Agostinho
cordar com isto sem refletir. Quando, — Como? O fato de ensinar e avi­
por exemplo, se diz “coenum ” (lama­ sar ou de ser ensinado e avisado, que
çal), parece-me que este nome seja em facilmente expões com este nome ou
muito superior à coisa que significa. que te é exposto, por acaso não deverá
Com efeito, o que nos ofende ao ouvir­ ser-te mais caro que a própria palavra?
mos esta palavra não é o som; “coe­ Adeodato
num ”, mudando apenas uma letra, tor­ — Admito que o conhecimento que
na-se “coelum” (céu), mas nós se consegue por meio deste sinal seja
sabemos que enorme diferença há entre preferível ao próprio sinal, mas não
as coisas significadas por estes dois preferível à coisa também.
nomes. Por isso eu não atribuiria a Agostinho
essa palavra todo o ódio que reservo — -Então, na nossa afirmação 20
ao que significa, e, portanto, eu a prefi­ acima, embora seja falso que devemos
ro a isso; pois menos desagrada ouvir preferir todas as coisas aos seus sinais,
esta palavra do que ver ou tocar a não é falso, porém, que tudo o que
coisa que significa. existe devido a outra coisa seja de
Agostinho valor menor que a coisa pela qual exis­
— Falas muito habilmente. Assim, te. O conhecimento, portando, do
seria falso dizermos que todas as coi­ lamaçal, para o qual foi instituído esse
sas têm um valor superior aos sinais nome, há de ser apreciado mais que a
pelos quais se expressam. palavra, que, por sua vez, vimos ser
Adéodato preferível ao próprio lamaçal. Nem por
— Assim parece. outro motivo o conhecimento é prefe­
Agostinho rível ao sinal de que estamos tratando,
— Dize-me, então, que intenção fe­ senão porque este existe devido àquele
riam os que aplicaram um nome a e não aquele por causa deste. Assim,
coisa tão feia e desprezível? Tu os um certo comilão, devoto do ventre,
aprovas ou desaprovas? segundo a frase do Apóstolo10, dizen­
Adeodato do que vivia para comer, foi contes­
— Na verdade, não ouso nem apro- tado por um homem sóbrio, que lhe
vâ-los nem desaprová-los, e nem sei
que intenção pudessem ter. 10 Rom 16, 18.

1
DE MAGISTRO 345

ouviu as palavras e não as pôde tole­ concedes é-me suficiente para chegar
rar, desta maneira: “Quanto melhor aonde me proponho. Concedes-me,
seria que comesses para viver”; e, pois, que o conhecimento das coisas é
certamente, o sóbrio falou assim se­ mais precioso que os sinais cfas mes­
guindo essa mesma regra11. Pois o mas. Logo,- o conhecimento das coisas
comilão só desagradou porque ava­ que são significadas há de preferir-se
liava em tão pouco a sua vida, que a ao conhecimento dos sinais; ou não te
tinha em menor conta do que os praze­ parece?
res do paladar, afirmando viver para Adeodato
comer; o outro, isto é, o sóbrio, é digno — Mas -eu concedi, por acaso, que
de louvor porque, compreendendo qual o conhecimento das coisas é superior
destas duas coisas (comer e viver) é ao dos sinais, ou antes, que é superior
feita pela outra, isto é, qual estâ subor­ aos próprios sinais? Por isto hesito em
dinada à outra, avisou que antes devía­ concordar contigo neste ponto. Se o
mos comer para viver do que viver nome “lamaçal” é melhor que a coisa
para comer. Analogamente, tu, e todo por ele indicada, por que o conheci­
homem que aprecie as coisas pelo seu mento deste nome não haveria de ser
justo lado e valor, a um charlatão que preferido também ao da coisa, embora
dissesse: “Ensino para falar”, respon­ o nome por si seja inferior 'àquele
derias: “Homem, e por que antes não conhecimento? Temos aqui quatro ter­
falas para ensinar?” Ora, se estas coi­ mos: nome, coisa, conhecimento do
sas são verdadeiras, como aliás reco­ nome, conhecimento da coisa. Como o
nheces, observa quanto as palavras primeiro é superior ao segundo, por
devem ser consideradas de menor que também o terceiro não é superior
importância com confronto com aqui­ ao quarto? E, se não é superior, há de
lo por que as usamos; tanto mais que o também estar-lhe subordinado?
próprio uso das palavras já é de se Agostinho
antepor às mesmas; as palavras, pois, —. Percebo que guardas na memó- 28
existem para que as usemos, e as usa­ ria maravilhosamente bem o que con­
mos para ensinar. Logo, é melhor ensi­ cedeste, e que explicaste claramente a
nar que falar, e, assim, é melhor o dis­ tua opinião. Mas, creio eu, com­
curso que a palavra. Muito melhor que preendes que este nome trissílabo “vz-
as palavras é, portanto, a doutrina. tium ” (vício), quando o pronunciamos,
Mas desejo ouvir o que, por acaso, te­ é melhor, como som, do que aquilo que
nhas a opor. significa; no entanto, o conhecimento
27 Adeodato — Concordo em que do simples nome é muito inferior ao
a doutrina seja melhor que as palavras; conhecimento dos vícios. Assim, ainda
mas não sei se não há algo a objetar que tu estabeleças e consideres aqui
contra esta regra com que se diz: “tudo também os quatro termos: nome e
o que existe devido a uma outra coisa é coisa, conhecimento do nome e conhe­
inferior àquilo pelo qual existe”: cimento da coisa, com razão nós ante­
Agostinho ■' pomos o primeiro ao segundo. Quando
— Trataremos disto mais pportu- Pérsio12 coloca na sua Sátira este
namente e com maior diligêqcia em nome, dizendo: “Sed stupet hic vitio”
outra ocasião: por enquanto, o que me (Mas este se admira do vício), não só
não toma viciado o verso, mas, pelo
11 (Regra que estabelece que tudo o que é devido a
: outra coisa, assim como o comer é devido ao viver
— é inferior à coisa pela qual existe.) 12 Sat.III,32.
346 SANTO AGOSTINHO

contrário, de certa maneira dá-lhe bele­ pois entendo que não devem ser culpa­
za apesar de a coisa significada por dos os próprios conhecimentos, entre
esse nome formar um vício, onde quer os quais o da moral, que é de todas as
que se encontre. Mas reparamos não disciplinas à melhor, com que o espí­
ser igualmente preferível o terceiro rito se educou, mas sim, que devem
(termo) ao quarto; e sim o quarto ao ser considerados — como, aliás, creio
terceiro. O conhecimento deste nome que também Pérsio pensava — misér-
(vício) é de pouca monta em compara­ rimos entre todos os que são atacados
ção ao conhecimento dos vícios. por tal doença, que nem um tão grande
Adeodato remédio pode curar.
— Julgas que este conhecimento, Agostinho
não obstante nos tome mais mesqui­ — Entendeste bem; mas que nos
nhos, ainda há de ser preferido? O pró­ importa o pensamento de Pérsio? Não
prio Pérsio, pois, a todas as penas que estamos submetidos, nessas coisas, a
a crueldade dos tiranos excogitou ou a autoridade semelhante; tanto mais que
cobiça fez sofrer, antepõe unicamente não é fácil explicar aqui que conheci­
aquela com que são atormentados os mento deve ser preferido a outro.
homens, quando obrigados a reconhe­ Estou satisfeito, no momento, com o
cerem os vícios que não conseguem que conseguimos; isto é, ser o conheci­
evitar. mento das coisas que são significadas
Agostinho de valor superior, se não ao conheci­
— Desta maneira poderias. também mento dos sinais, pelo menos aos pró­
chegar a negar que deve ser preferido o prios sinais. Por isto voltemos já a dis­
conhecimento das virtudes ao do seu cutir, mais ainda, sobre o gênero das
nome, pois ver a virtude e não a ter é coisas que dizíamos poderem mostrar-
um suplício, com que o mesmo poeta se por si mesmas’, sem sinais, como
satírico desejou que fossem punidos os sejam: comer, passear, sentar, jazer e
tiranos1 3. semelhantes.
Adeodato
Adeodato
— Deus afaste de mim tal loucura: — Volto a meditar as tuas pala­
13 Ibidem, vv. 35-38. vras.

Capítulo X
Se é possível ensinar algo sem sinais.
As coisas não se aprendem pelas palavras
Agostinho sem sinal, excluindo, talvez, o próprio.
29 — Parece-te que podemos mostrar falar e o ensinar, mas este só quando
sem sinal tudo o que podemos fazer, alguém pergunta o que é ensinar. Pois
logo após sermos interrogados, ou vejo que quem pergunta — faça eu o
excetuas algo? que fizer após a sua interrogação para
Adeodato que aprenda — não o pode aprender
— Eu, na verdade, venho pensando pela própria coisa, que deseja lhe seja
neste gênero de coisas, mas não consi­ mostrada; como, por exemplo: se a
go encontrar nada que se possa ensinar mim, que parei de andar ou que estou
DE MAGISTRO 347

fazendo outra coisa, alguém pergun­ Adeodato


tasse que é caminhar e eu, imediata­ — Dizes a verdade, .e eu não res­
mente, começando a caminhar, procu­ pondí corretamente dizendo que são a
rasse ensinar-lhe ou demonstrar-lhe. mesma coisa.
isto sem sinal; como poderia evitar que Agostinho
ele acreditasse que caminhar é apenas, — Agora, responde a isto: quem
o quanto andei? Ora, se ele pensar ensina o que é ensinar o faz usando si­
isso, estará enganado, porque julgará nais ou diversamente?
que não caminhará quem andar ou Adeodato
mais ou menos de quanto eu tiver ■—- Não vejo como o poderia fazer
andado. E o que disse apenas desta diversamente.
palavra aplica-se também a todas aque­ Agostinho
las que concedi poderem mostrar-se — Então é falso o que há pouco
sem sinal, menos as duas que' excluí. disseste, isto é, que não se pode ensinar
Agostinho sem sinais a quem pergunte o que é
30 — Concordo com isto, mas não te ensinar, porque estamos vendo que
parece que falar é uma coisa e ensinar nem isto sequer podemos fazer sem
é outra? usar sinais, pois me concedeste que
Adeodato uma coisa é usar sinais (significar) e
— Certamente, pois se fossem a outra ensinar. Se são duas coisas dife­
mesma coisa não se poderia ensinar rentes e uma se mostra pela outra, quer
senão falando; mas, porque se ensinam dizer que não se mostra certamente por
muitas coisas com outros sinais além si, como te pareceu. Portanto, nada
das palavras, quem poderia duvidar encontramos até agora que possa ser
desta diferença? mostrado por si, salvo a palavra, que,
Agostinho entre as outras coisas, significa tam­
— Ensinar e significar são a bém a si mesma: porém, por ser ela
mesma coisa ou diferem em algo? também um sinal, nada temos que pa­
Adeodato reça poder ensinar-se sem sinais.
— Creio que a mesma. Adeodato
Agostinho — Nada tenho a opor.
— Fala corretamente quem diz que Agostinho
nós usamos de sinais (que significa­ — Concluiu-se portanto, que nada 31
mos) para ensinar? se pode ensinar sem sinais, e que o pró­
Adeodato prio conhecimento há de ser a nós
— Sem dúvida. mais caro do que os sinais, através dos
Agostinho quais o alcançamos, embora nem
— Se alguém dissesse que ensina­ todas as coisas que se expressam por
mos pará usar sinais (para significar), eles possam ser preferidas aos seus
não seria facilmente refutado pela afir­ próprios sinais.
mação precedente? Adeodato
Adeodato — Assim parece.
— Seria. Agostinho
Agostinho — Lembras quantos rodeios demos
— Se, portanto, usarmos os sinais para chegar a tão pequeno resultado?
para ensinar, não ensinamos para usar Desde o momento em que começamos
os sinais: uma coisa é ensinar e outra é a trocar palavras, o que fizemos duran­
usar os sinais (significar). te muito tempo, fatigamo-nos bastante
.348 SANTO AGOSTINHO

para encontrar, estas três coisas: 1) se varas e visco, deparasse com um caça­
era possível ensinar sem sinais; 2) se dor armado destes instrumentos, mas
havia sinais preferíveis às coisas que que vai indo pelo caminho sem ter
expressam; 3) se o conhecimento das começado ainda a sua tarefa, e, vendo
coisas pode ser melhor que os sinais. o caçador, começasse a apressar o
Mas há uma quarta coisa que gostaria passo, e, como acontece, estranhando
de saber já: se as coisas por nós encon­ em seu íntimo tudo aquilo, perguntasse
tradas, tu as julgas de tal maneira que a si mesmo que poderiam querer dizer
não deixem em ti possibilidade de aqueles apetrechos; e o caçador, em se
dúvida. vendo observado e admirado, para
Adeodato fazer mostra de si, exibisse a cana e,
— Gostaria mesmo que, depois com ela e o gavião, alcançasse e pegas­
de tantos rodeios, tivéssemos chegado se um passarinho que está passando
à certeza, mas esta tua pergunta me por ele: o caçador, sem usar de sinais,
suscita certa inquietação, que me proí­ mas pela própria coisa, não ensinaria
be de assentir. Tenho a impressão, ao seu espectador o que esse queria
pois, que não me farias esta pergunta saber?
se não tivesses alguma objeção a apre­ Adeodato
sentar: e a própria complicação das — Tenho a impressão de que o
coisas não me permite ver tudo e res­ caso é semelhante àquele de que'já
ponder com segurança, por medo de falei, isto é, de quem pergunta o que é
que, entre tantos véus, se esconda algo caminhar. Aqui também não vejo que
que os olhos da minha mente não pos­ foi mostrada toda a arte de caçar.
sam divisar. Agostinho
Agostinho — Ê fácil libertar-se desta impres­
— Recebo com prazer a tua dúvi­ são; acrescento pois: se aquele especta­
da, porque revela uma alma não levia­ dor fosse tão inteligente que compreen­
na e isto assegura grandemente a desse por completo toda a arte de
tranquilidade. É muito difícil não se caçar só pelo que viu, isto, já seria o
perturbar quando o que nós guardá- bastante para demonstrar, sem mais,
vamos com consenso fácil e pacífico que alguns homens podem ser ins­
por discussões contrárias é derrubado truídos sem sinais sobre algumas coi­
e como que arrebatado das mãos. Por sas, se bem que não sobre todas.
isso, como é eqüitativo ceder depois de Adeodato
observar e examinar bem os motivos, — Então também posso acres­
assim é perigoso manter como coisa centar isto: quem pergunta o que é
conhecida o que não é. Porque, às caminhar, se for bem inteligente, com­
vezes, quando desaba aquilo que pre­ preenderá por completo (em geral) o
sumíamos seguramente estável e per­ que é caminhar, depois de se lhe mos­
manente, há o receio de chegarmos a trar com poucos passos.
tão grande ódio ou medo da razão que Agostinho
nos pareça não dever mais emprestar — Podes, nem eu me oponho, antes
fé nem sequer à verdade mais evidente. estou contente. Vês, portanto, termos
32 Mas, vamos! Reexaminemos agora um ambos chegado a esse resultado que
pouco mais depressa se tens razão de umas coisas podem ser ensinadas sem
duvidar. Pergunto-te, portanto, se al­ sinais, e, consequentemente, é falso
guém, desconhecendo as armadilhas aquilo que há pouco nos parecia verda­
que se preparam aos pássaros com deiro, isto é, não existir nada que se
DE MAGISTRO 349

possa mostrar ou ensinar sem sinais; e mente que ela denotava aquela coisa
apresentam-se à mente não uma ou que, por tê-la visto, a mim já era
duas coisas, senão milhares que, sem conhecidíssima. Mas antes de achar
necessitarem de nenhum sinal, podem isto, aquela palavra era para mim ape­
mostrar-se por si mesmas. Logo, como, nas um som, e aprendi que ela era um
podemos duvidar, eu te pergunto? Dei­ sinal quando encontrei aquilo de que
xando de lado os numerosos espetá­ era sinal, o que aprendi não pelo signi­
culos em que alguns atores repre­ ficado, mas pela visão direta do objeto.
sentam em todos os teatros as coisas Portanto, mais através do conheci­
sem sinais, Deus e a natureza não mento da coisa se aprende o sinal do
apresentam e mostram por si mesmos, que Se aprende a coisa depois de ter o
a quem os observa, o sol e a luz, qué sinal.
tudo invade e veste, a lua e as estrelas, Para que compreendas isto mais clara- 34
a terra e os mares e os inumeráveis mente, imagina nós estarmos ouvindo
seres, que neles são gerados? neste momento, pela primeira vez, pro­
33 Mas, se considerarmos isto com maior nunciar a palavra “caput” (cabeça), e
atenção, talvez não encontres nada que que, por não sabermos se esta voz é só
se possa aprender pelos seus próprios um som ou se quer também significar
sinais. Com efeito, se me for apresen­ algo, começaremos a procurar o que é
tado um sinal e eu me encontrar na “caput” (cabeça). (Lembra-te que nós
condição de não saber de que coisa é queremos ter conhecimento, não da
sinal, este nada poderá ensinar-me; se, coisa que é significada, mas do próprio
ao contrário, já sei de que é sinal, que sinal, conhecimento que nós não temos
aprendo por meio dele? Assim, quando enquanto ignorarmos de que coisa é
leio “Et saraballae eorum non sunt sinal.) Se a nós, que estamos fazendo
immutatae' 4” (E as suas coifas não esta pesquisa, fosse mostrada ou apon­
foram deterioradas), a palavra (coifas) tada com o dedo a própria coisa,
não me mostra a coisa que significa. então, depois de vê-la, temos conheci­
Pois se certos objetos que servem para mento do sinal; isto é, sabemos o que
cobrir a cabeça se chamam com este quer dizer aquele sinal, que antes ape­
nome de “saraballae ” (coifas), porven­ nas tínhamos ouvido, mas não com­
tura, depois de ouvi-lo, aprendi o que é preendido. Nesse sinal há duas coisas:
cabeça e o que é cobertura? Eu, ao o som e o significado; ora, o som não
contrário, já antes conhecia estas coi­ foi certamente percebido como sinal de
sas, delas adquiri conhecimento sem algo, mas como simples percussão no
que as ouvisse chamar assim por ouvido; enquanto o significado foi
outrem, mas vendo-as com os meus apreendido pela visão da coisa que é
próprios olhos. Quando as duas síla­ significada. Como o apontar do dedo
bas com que dizemos “caput” (cabeça) não pode significar senão aquilo para
repercutiram pela primeira vez no meu que o dedo está apontando, e o dedo
ouvido, sabia tão pouco o que signifi­ não está apontado para o sinal, mas
cavam como quando ouvi e li pela pri­ para aquela parte do corpo que se
meira vez “saraballae”. Porém, ouvin­ chama “caput” (cabeça), assim eu, por
do muitas vezes dizer “caput”(cabeça) meio desse gesto, não posso conhecer a
e notando e observando a palavra coisa, que já conhecia, nem o sinal
quando era pronunciada, reparei facil- para o que o dedo estava apontado.
Mas não quero dar demasiada atenção
14 Z>an3,94. ao gesto de apontar o dedo, porque,
350 SANTO AGOSTINHO

para mim, ele é mais o sinal do ato de daquelas “saraballae” (coifas). Se al­
indicar do que das próprias coisas guém com um gesto me indicar estas
indicadas, como acontece quando dize­ “saraballae ” (coifas) ou mas pintar, ou
mos “ecce” (eis), e costumamos acom­ me mostrar algo de semelhante a elas,
panhar este advérbio também com o não direi, como aliás conseguiría se
dedo apontado, como se não bastasse quisesse falar um pouco mais, que não
um só desses dois sinais para indicar. mas ensinou, porém direi que não me
E disto maximamente procurarei con­ ensinou com as palavras o que está
vencer-te, se puder: que não aprende­ diante de mim. Se eu, no momento em
mos nada por meio desses sinais que que as vejo, por acaso fosse avisado
chamamos palavras: antes, como já com as palavras: “Ecce saraballae”
disse, aprendemos o valor da palavra, (eis as coifas), aprendería uma coisa
ou seja, o significado que está escon­ que não sabia, não pelas palavras que
dido no som através do conhecimento foram pronunciadas, mas pela visão da
ou da própria percepção da coisa própria coisa, por meio da qual conhe­
significada; mas não a própria coisa cí e gravei também o valor do nome.
através do significado. Pois, quando aprendi a própria coisa,
35 E o que disse da cabeça, poderia dizer não acreditei nas palavras de outrem,
do que serve para cobrir a cabeça e de mas nos meus olhos; talvez acreditasse
muitíssimas outras coisas; que, embo­ também nelas, mas apenas para des­
ra conhecidas de mim, nunca, até pertar a'atenção, ou seja, para procu­
agora, tive por isto conhecimento rar com os olhos o que era para eu ver.

Capítulo XI
Não aprendemos pelas palavras que repercutem exteriormente,
mas pela verdade que ensina interiormente

Agostinho se consegue, portanto, o conhecimento


36 — Até aqui chega o valor das pala­ completo das palavras; ao contrário,
vras, das quais, porque quero atribuir- ouvindo somente as palavras, não
lhes muito, direi que apenas incitam a aprendemos nem sequer estas. Com
procurar as coisas, sem porém mos­ efeito, não tivemos conhecimento-das
trá-las. para que as conheçamos. No palavras que aprendemos nem pode­
entanto, ensina-me algo quem apresen­ mos declarar ter aprendido as que não
tar, diante dos meus olhos ou a um dos conhecemos, senão depois que lhes
sentidos do corpo ou também à pró­ percebemos o significado, o que se
pria mente, as coisas que quero conhe­ verifica não mediante a audição das
cer. Com as palavras não aprendemos vozes proferidas, mas pelo conheci­
senão palavras; antes, o som e o ruído mento das coisas significadas. Ao
das palavras, porque, se o que não é serem proferidas palavras, é perfeita-
sinal não pode ser palavra, não sei mente razoável que se diga que nós
também como possa ser palavra aquilo sabemos ou não sabemos o que signifi­
que ouvi pronunciado como palavra cam; se o sabemos, não foram elas que
enquanto não lhe conhecer o signifi­ no-lo ensinaram, apenas o recordaram;
cado. Só depois de conhecer as coisas se não o sabemos, nem sequer o recor­
DE MAGISTRO 351

dam, mas talvez nos incitem a procu- ta: “Se não credes, não entendereis1 5”;
rá-lo. certamente não diria isto se não jul­
37 Se disseres que daqueles objetos que gasse necessário pôr uma diferença
servem para cobrir a cabeça e dos entre as duas coisas. Portanto, creio
quais temos o nome (coifas) apenas tudo o que entendo, mas nem tudo que
através do som podemos adquirir creio também entendo. Tudo o que
noção só depois de vê-los; e que, por­ compreendo conheço, mas nem tudo
tanto, nem sequer o seu nome conhece­ que creio conheço. E não ignoro quan­
mos completamente senão depois de to é útil crer também em muitas coisas
conhecermos os próprios objetos; e se que não conheço, utilidade que encon­
acrescentares que, no entanto, de ne­ tro também na história dos três jovens.
nhum outro modo, senão pelas pala­ Pois, não podendo saber a maioria das
vras, conseguimos aprender o que se coisas, sei porém quanto é útil acredi­
narra a respeito dos três jovens, isto é, tar nelas. No que diz respeito a todas 38
que com sua fé e religião venceram o as coisas que compreendemos, não
rei e as chamas, quais foram os hinos consultamos a voz de quem fala, a
de louvor que cantaram a Deus, quais qual soa por fora, mas a verdade que
as honras que mereceram do próprio dentro de nós preside à própria mente,
inimigo, responder-te-ei que todas as incitados talvez pelas palavras a con­
coisas significadas por aquelas pala­ sultá-la. Quem é consultado ensina
vras já eram de nosso conhecimento. verdadeiramente, e este é Cristo, que
Pois eu jâ tinha na minha mente o que habita, como foi dito, no homem inte­
significa três jovens, o que é forno, o rior1 6, isto é: a virtude incomutável de
que é fogo, o que é rei, o que quer dizer Deus e a sempitema Sabedoria, que
ser preservado do fogo e, finalmente, toda alma racional consulta, mas que
todas as outras coisas significadas por se revela a cada um quanto é permitido
aquelas palavras. Mas desconhecidos, pela sua própria boa ou má vontade. E
como aquelas “saraballae” (coifas), se às vezes há enganos, isto não acon­
ficam para mim os jovens Ananias, tece por erro da verdade consultada,
Azarias e Misael; nem os seus nomes como não é por erro da luz externa que
me ajudaram ou poderíam ajudar a os olhos, volta e meia, se enganam: luz
conhecê-los. E confesso que, mais que que confessamos consultar a respeito
saber, posso dizer acreditar que tudo das coisas sensíveis, para que no-las
aquilo que se lê naquela narração his­ mostre na proporção em que nos é per­
tórica aconteceu naquele tempo assim mitido distingui-las.
como foi escrito; e os próprios histo­
riadores a que emprestamos fé não 9.
15 Is 1,
ignoravam esta diferença. Diz o profe­ 16 São Paulo, Ef3, 16, 17.

Capitulo XII
Cristo é a verdade que ensina interiormente
Agostinho consultamos os elementos deste
39 — Mas se para as cores cônsul- mundo, os mesmos corpos percebidos
tamos a luz, e para as outras coisas ' e os próprios sentidos de que a mente
que percebemos mediante o corpo se serve como de intérpretes para
352 SANTO AGOSTINHO

conhecer as coisas externas; e, no são documentos só para nós, pois


entanto, para aquelas coisas que se aquele que nos ouve, se percebeu ou
conhecem mediante a inteligência con­ teve presentes as coisas, não as apren­
sultamos, por meio da razão, a verdade de pelas minhas palavras, mas as reco­
interior; o que é que podemos dizer, nhece mediante as imagens que tam­
para que fique claro, senão que nós bém ele levou consigo; se, no entanto,
pelas palavras não aprendemos nada nunca as percebeu, quem há que não
mais além do som que repercute no veja que ele mais do que aprende, crê
ouvido? Pois todas as coisas que nas palavras?
percebemos, percebemo-las ou pelos Quando, pois, se trata das coisas que 40
sentidos do corpo ou pela mente. Cha­ percebemos pela mente, isto é, através
mamos às primeiras “sensíveis”, às do intelecto e da razão, estamos, falan­
segundas “inteligíveis”, ou, para falar do ainda em coisas que vemos como
segundo costumam os nossos autores, presentes naquela luz interior de verda­
às primeiras “carnais” e às segundas de, pela qual é iluminado e de que frui
“espirituais”. Sobre as primeiras res­ o homem interior; mas também neste
pondemos se, ao sermos interrogados, caso quem nos ouve conhece o que eu
estiverem perto as coisas que percebe­ digo por sua própria contemplação e
mos, como quando estamos olhando a não através das minhas palavras,
lua nova, alguém nos pergunte qual é desde que ele também veja por si a
ou onde ela está. Neste caso, quem per­ mesma coisa com olhos* interiores e
gunta, se não enxerga, acredita nas simples. Por conseguinte, nem sequer a
palavras oü, às vezes, não acredita, este, que vê coisas verdadeiras, ensino
mas de maneira alguma aprende, a não algo dizendo-lhe a verdade, porque
ser que também veja o que lhe está aprende não pelas minhas palavras,
sendo afirmado, e, então, não aprende mas pelas próprias coisas, que a ele
pelas palavras, que apenas foram um interiormente revela Deus; por isto,
simples som, mas pelas coisas mesmas interrogado sobre elas, sem mais, po­
e pelos sentidos. As palavras, pois, têm deria responder. Ora, que absurdo
o mesmo som para quem vê, como o maior do que crer ter sido instruído
tiveram para quem não vê. Quando pelas minhas palavras aquele que, se
porém, somos interrogados, não sobre interrogado antes de eu falar, poderia
as coisas que sentimos diante e sim responder sobre o assunto? O caso que
sobre as que percebemos outrora, frequentemente se dá de uma pessoa
então, falando, nós não fazemos, refe­ interrogada negar algo e depois, esti­
rências às mesmas, mas às imagens mulada com ulteriores perguntas, aca­
por elas gravadas e escritas na memó­ bar por concordar, depende da fra­
ria, que não sei como poderiamos cha­ queza de quem enxerga e que não pode
mar de verdadeiras, pois percebemos consultar sobre todas as coisas a luz
serem falsas, a não ser que queiramos interior, e está sendo estimulado a
dizer que não as vemos ou percebe­ fazê-lo, parte por parte, pelas interro­
mos, porém já as vimos e as temos per­ gações sobre estas mesmas partes, das
cebido. Portanto, nós levamos nos quais se compõe aquela verdade, que
penetrais da memória as imagens ele não estava capacitado a intuir,
como documentos das coisas anterior­ duma vez, no seu conjunto. Se chegar a
mente percebidas; contemplando-as isto pelas palavras de quem pergunta,
com reta intenção na nossa mente, não não quer dizer que as palavras lhe ensi­
mentimos quando falamos..Mas estes naram alguma coisa, mas apenas que
DE MAGISTRO 353

lhe proporcionaram a maneira de tor­ entanto que sabes com certeza a segun­
nar-se idôneo para enxergar no seu da. Daqui compreenderías claramente
interior; assim como se eu te pergun­ que nada aprendeste pelas minhas
tasse sobre o que neste momento esta­ palavras: nem aquilo que ignoravas
mos tratando, isto é, se é possível ensi­ enquanto eu o afirmava, nem aquilo
nar algo pelas palavras, e tu, incapaz que já sabias otimamente; pois jura­
de abranger com a mente toda a ques­ rias, ao ser interrogado parte por- parte
tão, julgasses, no primeiro momento, sobre as duas coisas, que a primeira te
absurda a pergunta. Precisava por isso era desconhecida e a segunda conheci­
apresentar a pergunta como o permite da. E então chegarias a admitir tudo o
a tua capacidade de ouvir aquele mes­ que antes negavas ao conhecer que são
tre interior, e dizer-te portanto aquelas claras e certas as partes de que a ques­
coisas que, quando me ouves falar, tão se compõe; isto é, que a respeito de
confessas serem verdadeiras e delas todas as coisas de que falamos, quem
tens certeza e que afirmas conhecê-las nos está ouvindo ou ignora que são
bem; onde as aprendeste? Responde­ verdadeiras, ou não ignora que são fal­
rias, talvez, que fui eu quem tas ensi­ sas, ou sabe que são verdadeiras. No
nou. E então eu acrescentaria: Como? primeiro destes três casos, ou crê, ou
Se eu dissesse que vi um homem voan­ opina, ou duvida; no segundo, nega; no
do, as minhas palavras dar-te-iam terceiro, afirma: em nenhum dos três
tanta certeza como se me ouvisses aprende. Seja quem, depois das minhas
dizer que os homens sábios são melho­ palavras, ignora a coisa, seja quem
res que os tolos? Tu, sem dúvida, de­ conhece que ouviu coisas falsas e
pois de negar, responderias não acredi­ quem, interrogado, poderia responder
tar na primeira destas duas coisas, ou, as mesmas coisas que foram ditas,
mesmo que acreditasses, que ela é para demonstra que nada aprendeu pelas
ti completamente desconhecida, e no minhas palavras.

Capítulo XIII
A força das palavras não consegue mostrar nem sequer
o pensamento de quem fala

Agostinho sas ditas, enquanto quem as disse não


4r — Por isto, também no que diz res­ as sabe; como no caso em que alguém,
peito às coisas que se contemplam com acreditando nos epicuristas e julgando
a mente, inutilmente ouve as palavras mortal a alma, repetisse as razões que
de quem as vê toda pessoa que não já foram tratadas pelos mais sábios
consegue vê-las, a não ser porque é útil sobre a sua imortalidade na presença
acreditar em tais coisas enquanto se de quem pode intuir as coisas espiri­
ignoram. Cada qual, ao contrário, que tuais. Este julgaria que aquele diz a
as pode ver interiormente, é discípulo verdade; mas aquele que fala assim ig­
da verdade; exteriormente, é juiz de nora se está dizendo a verdade, antes
quem fala, ou, antes, das suas pala­ considerará falsíssimo o que diz. Deve­
vras; porque muitas vezes sabe as coi­ mos, portanto, acreditar que ensina
354 SANTO AGOSTINHO

quem não sabe? E, no entanto, serve-se pensa, mas apenas para si e para
das mesmas palavras que também alguns, e não para aquele com quem
poderia usar quem sabe. está falando e para os demais. Por
42 Por este motivo, nem sequer resta às exemplo, se alguém em nossa presença
palavras o ofício de, ao menos, mani­ dissesse que o homem é superado em
festarem o pensamento de quem fala, valor por alguns animais, não pode­
pois é incerto se- este sabe ou não o que riamos tolerá-lo e imediatamente refu­
diz. Acrescenta o caso dos mentirosos taríamos com grande energia esta tão
é enganadores e facilmente compreen­ falsa e perniciosa afirmação; e talvez
derás que, com as palavras, eles não só por' valor ele entenda as forças do
não revelam, mas até ocultam o pensa­ corpo e com este nome enuncie mesmo
mento. De maneira alguma duvido que o que pensava, sem que minta, sem que
as palavras das pessoas sinceras se se engane no fato, sem que oculte as
esforcem e, por assim dizer, façam palavras gravadas na memória, agi­
questão de manifestar o espírito de tando na mente alguma outra coisa,
quem fala, o que conseguiríam, com sem que por um lapso da língua emita
aprovação de todos, se não fosse per­ um som diverso do que corresponde ao
mitido aos mentirosos falarem. Entre­ seu pensamento; mas apena chama
tanto, várias vezes experimentamos em com um nome diverso do nosso a coisa
nós mesmos e nos outros que as pala­ que pensa: nós teríamos concordado
vras não expressam o que se pensa; e imediatamente com ele, se nos tivesse
vejo que isto pode acontecer de duas sido possível intuir o seu pensamento,
maneiras: ou quando as palavras que que não conseguiu explicar-nos com as
gravamos e muitas vezes repetimos palavras pronunciadas e com sua afir­
saem da boca de quem pensa em algo mação. Dizem que a um tal erro pode
diferente, o que acontece volta e meia remediar a definição; assim, se nesta
quando cantamos um hino; ou quando, questão se define o que é valor (virtus),
ao contrário, nos escapam umas pala­ tomar-se-ia claro, dizem, que a contro­
vras, em vez de outras, contra a nossa vérsia gira não em tomo da coisa,
vontade, por um lapso da própria lín­ senão da palavra: mas, mesmo conce­
gua; também aqui não são ouvidos os dendo isto, quantos bons definidores
sinais das coisas que temos na mente. poderemos encontrar? E, no entanto,
Os mentirosos, sem dúvida, pensam tem-se discutido bastante sobre a arte
também as coisas que dizem, de forma de definir, o que não é oportuno tratar
que, embora não saibamos se falam a neste lugar, nem merece sempre a
verdade, sabemos porém que, eles têm minha aprovação.
em mente o que dizem, a não ser que Deixo de lado o caso de não ouvirmos 44
lhes aconteça uma das duas coisas que bem muitas coisas e disputarmos de-
disse acima: e se alguém objetar que, moradamente e muito sobre elas como
às vezes, podem acontecer, e que, se as tivéssemos ouvido. Assim como
quando acontecem, aparecem, ainda há pouco, quando quis dizer “miseri­
que possam freqüentemente ficar ocul­ córdia” com uma certa palavra púnica,
tas e que eu, ao ouvi-las, às vezes tam­ sustentavas ter ouvido, daqueles aos
bém fique enganado, não me oponho. quais esta língua era mais conhecida,
43 Mas a este se acrescenta outro caso, que aquela palavra significa “pieda­
bastante frequente e origem de inúme­ de”. Eu opunha-me, afirmando que
ros dissentimentos e disputas: quando saíra completamente da tua memória o
quem fala exprime, na Vterdade, o que que tinhas ouvido, porque me parecia
DE MAGISTRO 355

não “piedade” teres dito, mas “fé” e, o mesmo vocábulo “piedade” e “mise­
no entanto, estávamos sentados bem ricórdia”. Estas coisas acontecem com
perto, e de maneira alguma estas duas freqüência, mas, como disse, vamos
palavras podiam levar a um engano deixá-las de lado, para que não pareça
pela semelhança do som. Por um longo que quero atribuir culpa às palavras
espaço de tempo pensei, todavia, que pela negligência de quem ouve ou tam­
não soubesses aquilo que te fora dito, e bém pela surdez dos homens. O que
aflige mais é aquilo que disse acima,
no entanto era eu que não sabia o que
isto é, quando não conseguimos conhe­
havias dito; pois, se tivesse eu ouvido cer o pensamento de quem fala, embo­
bem as tuas palavras, não teria rece­ ra percebendo claramente pelo ouvido
bido a impressão por nada absurda de as palavras, e palavras latinas, e sendo
que em língua púnica se indicasse com nós da mesma língua.

Capítulo XIV
Cristo ensina interiormente,
o homem avisa exteriormente pelas palavras
Agostinho verdadeiras, louvam os mestres sem
45 — Mas eis que agora admito e con­ saber que elogiam mais homens doutri­
cedo que, quando as palavras tenham nados que doutos: se é que aqueles
sido recebidas pelo ouvido daquele por também sabem o que dizem. Erram,
quem são conhecidas, a este possa pois, os homens ao chamarem de mes­
também parecer que quem fala tenha tres os que não o são, porque a maioria
realmente pensado no seu significado; . das vezes entre o tempo da audição e o
mas daí decorre, por acaso, que tam­ tempo da cognição nenhum intervalo
bém aprendeu o que agora estamos se interpõe; e porque, como depois da
indagando, isto é, que aquele tenha fa­ admoestação do professor, logo apren­
lado a verdade? E, porventura, os mes­ dem interiormente, julgam que apren­
tres pretendem que se conheçam e rete­ deram pelo mestre exterior, que nada
nham os seus próprios conceitos e não mais faz do que admoestar.
as disciplinas mesmas, que pensam Mas sobre a utilidade das palavras, 46
ensinar quando falam? Mas quem é que, bem considerada no seu conjunto,
tão tolamente curioso que mande o seu não é pequena, falaremos, se Deus per­
filho à escola para que aprenda o que mitir, em outra parte. Agora, avisei-te,
pensa o mestre? Mas quando tivera simplesmente, que não lhes atribuas
explicado com as palavras todas as importância maior do que é necessário,
disciplinas que dizem professar, inclu­ para que não apenas se creia, mas tam­
sive as que concernem à própria virtu­ bém se comece a compreender com
de e à sabedoria, então é que os discí­ quanta verdade está escrito nos livros
pulos vão considerar consigo mesmos sagrados que não se chame a ninguém
se as coisas ditas são verdadeiras, de mestre na terra, pois o verdadeiro e
contemplando segundo as suas forças único Mestre de todos está no céu1 7 .
a verdade interior. Então é que, final­ Mas o que depois haja nos céus, no-lo
mente, aprendem; e, quando dentro de
si descobrirem que as coisas ditas são 17 Mt 23, 8-10.
356 SANTO AGOSTINHO

ensinará Aquele que também, por meio Adeodato


dos homens, nos admoesta com sinais, — Eu, na verdade, pela admoesta-
e exteriòrmente, a fim de que, voltados ção das tuas palavras aprendi que
para Ele interiormente, sejamos ins­ estas não servem senão para estimular
truídos. Amar e conhecer a Ele, esta é o homem a aprender, e que é já grande
a vida bem-aventurada, que, se todos coisa se, através da palavra, transpa­
proclamam procurar, poucos são ver­ rece um pouquinho do pensamento de
dadeiramente os que se alegram por quem fala. Se, depois, foi dita a verda­
tê-la encontrado. Mas agora gostaria de, isto no-lo pode ensinar somente
que me desses as tuas impressões sobre Aquele que, falando por fora, avisa
todo este meu exposto. Porque, se que habita dentro de nós; Aquele que,
conhecesses que eram verdadeiras pela sua graça, hei de amar tanto mais
todas as coisas expostas, dirias igual­ ardorosamente quanto mais eu progre­
mente que as sabias quando interro­
gado sobre cada uma separadamente; dir no conhecimento. Mas nos con­
observa, portanto, de quem as apren­ frontos dessa tua oração, que usaste
deste; não certamente de mim, a quem sem interrupção, sou-te grato particu­
terias respondido, se interrogado sobre larmente por isto: que ela previu e
elas. Se, ao contrário, conheces que resolveu todas as objeções que estava
não são verdadeiras, nem eu nem preparado para fazer e nada foi por ti
Aquele as ensinou a ti: eu, porque não descurado daquilo que me tomava
tenho nunca a possibilidade de ensi­ duvidoso e sobre o que não me respon­
nar; Aquele, porque tu não tens ainda dería assim aquele secreto oráculo,
a.possibilidade de aprender. como foi afirmado pelas tuas palavras..
Este livro integra a coleção
OS PENSADORES — HISTÓRIA DAS GRANDES IDÉIAS DO.MUNDO OCIDENTAL
Composto e impresso nas oficinas da
Abril SA. Cultural e Industrial, caixa postal 2372, São Paulo i

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