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SANTO AGOSTINHO
CONFISSÕES
Tradução de J. Oliveira Santos, S.J., e A. Ambrósio de Pina, S.J.
DE MAGISTRO
CDO MESTRE)
EDITORA ABRIL
Confissões.................................................................................................... 9
DeMagÍstro.................................................................................................. . .319
CONFISSÕES
Índice
PRIMEIRA PARTE
LIVRO I
A INFÂNCIA
1. Invocação ou louvor? ........................................................................... 25
2. Deus está no homem; o homem em Deus .......................................... 26
3. Deus está todo em toda a parte ............................................................ 26
4. Cantando as perfeições de Deus .......................................................... 27'
5. Lágrimas do Pródigo ........................................................................... 27
6. No alvorecer da vida ........................................................................... 28
7. Prognósticos de vícios ......................................................................... 30
8. Como aprendi a falar ........................................................................... 31
9. Na paixão do jogo ................................................................................ 32
10. O orgulho da vitória .............................................................................. 33
11. No limiar do batistério ......................................................................... 33
12. Relutância em estudar ......................................................................... 34
13. Gosto do latim ............................... 35
14. Aversão à língua grega ......................................................................... 36
15. “Ouvi, Senhor... ” .............................................................................. 37
16. A mitologia impura .............................................................................. 37
17. A declamação ..................................................... 39
18. Desprezo das leis eternas ..................................................................... 39
19. Perversidade na puerícia ....................................................................... 40
20. Magnificat ................................... 41
LIVRO II
OS PECADOS DA ADOLESCÊNCIA
1. Desordens da juventude ....................................................................... 45
2. Sob a ação da carne .............................................................................. 45
3. “Nas praças da Babilônia” ................................................................... 46.
4. História dum furto ................................................................................ 48.
5. A causa ordinária do pecado .............................................................. 49
6. A alegria do mal ................................................................................... 50
7. O perdão ................................................................................................ 51
8. O prazer,da cumplicidade ..................................................................... 52
9. O riso da maldade ................................................................................ 52
10. Quero aluz ............................................................................................ 53
12’ ÍNDICE
LIVRO III
OS ESTUDOS
1. Amores impuros .................................................... 57
2. Do prazer dramático ..................................... . ;................................. 57
3. O estudante de retórica e os “demolidores” ......................................... 59
4. A influência de um livro de Cícero .................. .• .•............................... 59
5. Perante a simplicidade daBíblia .................................. 60
6. Seduzido pelo maniqueísmo ................................. .■............................. 61
7. Vencido pela ignorância epelos maniqueístas ..................................... 63
8. A moral e os costumes ......................................................... 64
9. As imperfeições .................................................................................... 66
10. Extravagâncias heréticas .................................................................. 66
11. O sonho de Mônica ................................................................ 67
12. Teu filho não perecerá! ........................................... 68
LIVRO IV
O PROFESSOR
1. Nove anos de erro ................................................................................ 73
2. Pela estrada larga .......................................... ............................... 73
3. A sedução da astrologia ...................................• . . . ........................... 74
4. A perda dum amigo ............. -..................... 76
5. O reconforto das lágrimas ..................................... 76
6. Violência da dor ........................................................... 76
7. Deixa Tagaste .................................................................. 78
8. O tempo diminui a dor ......................................................................... 79
9. A verdadeira amizade ......................................................................... 79
10. Insatisfação nas criaturas .............................................. 80
11. Eis a paz! .................................................................... 80
12. O amor em Deus ......................................................... 81
13. O que é o belo? .................................................................................... 82
14. Homenagem a Hiério ........................................................................... 82
15. O problema do belo e do mal .............................................................. 84
16. As dez categorias de Aristóteles .......................................................... 85
LIVRO V
EM ROMA E EM MILÃO
1. Lábios em prece ....................................................... . . •. 91
2. Não se foge à vista de Deus ........................ ’.............. 91
3. Inconsistência do maniqueísmo .......................................................... 92
4. Feliz o que conhece a Deus .................................................................. 93
5. O sábio ignorante .................................................. 94
6. Eloquência de Fausto ........................................................................... 95
7. O desiludido ........................................................................................ 96
8. A caminho de Roma ........................................................................... 97 '
9. O flagelo da doença ............................................................. 98
10. Erros maniqueístas de Agostinho ....................................................... 100
11. Evasiva dos maniqueístas '..................................................................... 101,
ÍNDICE 13
LIVRO VI
ENTRE AMIGOS
1. Amor de mãe ......................................................................................... 109
2. A obediência de Mônica ....................................................................... 110
3. O trabalho de Ambrósio ............................................ 111
4. A letra e o espírito ................................................................................ 112
5. O valor da Bíblia .................................................................................. 113
6. Miséria da ambição ! — O encontro do mendigo ............................... 114
7. A amizade de Ahpio ........... '............................................................... 115
8. Quem ama o perigo ....................................................... 117
9. Por linhas tortas. . . Alípio e um roubo ............................................ 118
10. Dois amigos ....................................... 119
11. Luta da alma em busca da verdade ..................................................... 120
12. Matrimônio e castidade ....................................................................... 121
13. O pedido de casamento ....................................................................... 122
14. Projeto desfeito .................................................................................... 123.
15. Cativo do prazer .................................................................................. 123
16. Sob a asa de Deus ................................................................................ 124
LIVRO VII
A CAMINHO DE DEUS
1. Emancipando-se do falso conceito de Deus ........................................ 129
2. Argumento de Nebrídio contra os maniqueístas ............................... 130
3. A causa do mal .................................................................................... 131
4. Deus é incorruptível .............................................................................. 132
5. É Deus*o autor do mal? ....................................................................... 132
6. Os vaticínios dos astrólogos ................................................................ 134
7. Ainda o problema do mal ..................................................................... 136
8. O colírio das dores .......................................................... *.................... 137
9. O neoplatonismo e a fé cristã .............................................................. 137
10. O descortinar do mistério divino .......................................................... 139
11. A relatividade das criaturas .......................................... 139
12. O problema do mal. A perfeição das criaturas .................................... 140
13. A solução do problema do mal. As dissonâncias de pormenor ......... 140
14. A trajetória dum erro ............................................................................ 141
15. A harmonia da criação ......................................................................... 142
16. Onde reside o mal . ...................................................................... .. . '142.
17. Ascensão dolorosa ................................................................................ 142
18. O único caminho para a Verdade ........................................................ 143
19. Hesitante na doutrina do Verbo .......................................................... 144
20. Do platonismo à Sagrada Escritura ........................................ •.......... 145
21. Entre o esplendor da verdade e o platonismo >...................................... 146
14 ÍNDICE
LIVRO VIII í
A CONVERSÃO
1. “A pérola preciosa” .............................................................................. 151
2. A conversão de Vitorino ....................................................................... 152
3. A alegria do que volta a Deus .............................................................. 154
4. O regozijo da Igreja .............................................................................. 155
5. A luta das vontades ............................................................................. 156
6. Narração de Ponticiano ....................................................................... 158
7. Reação de Agostinho ........................................................................... 160
8. No jardim de Milão. Luta espiritual ................................................... 161
9. A vontade em guerra ........................................................................... 162
10. Contra os maniqueístas ....................................................................... 162
11. O espírito e a carne. Últimas lutas ..................................................... 164
12. A conversão ........................................................................................... 165
LIVRO IX
O BATISMO
1. Em colóquio com Deus ....................................................................... 171
2. O adeus à cátedra .................................................................................. 171
3. Saudades dum amigo ........................................................................... 173
4. Na quinta de Cassicíaco ....................................................................... 174
5. Em comunicação com SantoAmbrósio .............................................. 177
6. O batismo ............................................................................................. 177
7. O canto na igreja. Prenúncios de perseguição .................................... 178
8. A morte de Mônica em óstia. Suaeducação ....................................... 179
9. Mônica,esposa modelar ....................................................................... 181
10. O êxtase de Óstia .................................................................................. 182
11. Últimos desejos de Mônica .............................................................. 184
12. Lágrimas de dor .................................................................................... 185
13. Preces pela mãe .................................................................................... 187
SEGUNDA PARTE
LIVRO X
O ENCONTRO DE DEUS
1. O apelo à verdade .................. '............................................................ 195
2. Deus tudo penetra ................................................................................ 195
3. Confessar-me aos homens? ! ........... ..................................................... 195
4. O fruto das “Confissões” ..................................................................... 196
5. A ignorância humana ........................................................................... 197
6. Quem é Deus? ...................................................................................... 198
7. Ultrapassando a força corpórea ......................................................... 200
8. O palácio da memória ......................................................................... 200
9. A memória intelectual ......................................................................... 202
10. A memória e os sentidos ....................................................................... 203
11. A memória e as idéias inatas .............................................................. 203
12. A memória e as matemáticas .............................................................. 204
13. “A memória lembra-se de se lembrar” ................................................. 204
ÍNDICE 15
LIVRO XI
O HOMEM E O TEMPO
1. Confessar a Deus o que Ele já conhece? ............................................ 235
2. Os arcanos das palavras divinas .......................................................... 235
3. Como compreender Moisés? .............................................................. 237
4. Deus, no poema da criação ................................................................... 237
5. A palavra criadora ................................................................................ 238
6. A voz ecoando no silêncio ................................................................... 239
7. O Verbo de Deus coeterno com Deus ................................................. 239
8. Nós, discípulos do Verbo ..................................................................... 240
9. A luz do Verbo em mim ....................................................................... 240
10. Que faria Deus antes da criação? ........................................................ 241
11. O tempo não pode medir a eternidade ................................................. 242
12. O que fazia Deus antes da criação do mundo .................................... 242
13. O eterno “hoje” .................................................................................... 243
14. O que é o tempo? .................................................................................. 243
J6 ÍNDICE
LIVRO XIII
A PAZ .
A INFÂNCIA
2
Deus está no homem; o homem em Deus
2. E como invocarei o meu Deus — se existo, que motivo pode haver para
meu Deus e meu Senhor —, se, ao Vos pedir que venhais a mim, já que
invocá-Lo, O invoco sem dúvida den não existiría se em mim não habitás
tro de mim?8 E que lugar há em mim, seis? Não estou no inferno, e, contudo,
para onde venha o meu Deus, para também Vós lá estais, pois “se descer
onde possa descer o Deus que “fez o ao inferno, aí estais presente1 °”.
céu e a terra”?9 Pois será possível, Se Por conseguinte, não existiría, meu
nhor meu Deus, que se oculte em mim Deus, de modo nenhum existiría, se
alguma coisa que Vos possa conter? É não estivésseis em mim. Ou antes, exis
verdade que o céu e a terra que criastes tiría eu se não estivesse em Vós, “de
e no meio dos quais me criastes Vos quem, por quem e em quem todas as
encerram? coisas subsistem”? Assim é, Senhor,
Será, talvez, pelo fato de nada do assim é. Para onde Vos hei de chamar,
que existe poder existir sem Vós, que se existo em Vós? Ou donde podereis
todas as coisas Vos contêm? E assim, .vir até mim? Para que lugar, fora do
céu e da terra, me retirarei, a fim de
8 Os cinco primeiros capítulos das Confissões que venha depois a mim o meu Deus,
assemelham-se muito à invocação duma epopéia
teológica ou sobrenatural. São um apelo do ser que disse: “Encho o céu e aterra”?
contingente dirigido a Deus Infinito.
9 Gên 1, 1. 10 Sl 138,8.
3
Deus está todo em toda parte
4
Cantando as perfeições de Deus1 2
4. Que sois, portanto, meu Deus? Amais sem paixão; ardeis em zelos
Que sois Vós, pergunto, senão o Se sem desassossego; arrependeis-Vos
nhor Deus? “E que outro Senhor há sem ato doloroso; irais-Vos e estais
além do Senhor, ou que outro Deus calmo; mudais as obras, mas não mu
além do nosso Deus?13” Ó Deus tão dais de resolução; recebeis o que
alto, tão excelente, -tão poderoso, tão encontrais, sem nunca o ter perdido.
onipotente, tão misericordioso e tão Nunca estais pobre e alegrais-Vos
justo, tão oculto e tão presente, tão for com os lucros; jamais avaro, e exigis
moso e tão forte, estável e incompreen com usura. Damo-Vos mais do que
sível, imutável e tudo mudando, nunca pedis, para que sejais nosso devedor;
novo e nunca antigo, inovando tudo e mas quem é que possui coisa alguma
cavando a ruína dos soberbos, sem que que não seja vossa? Pagais as dívidas,
eles o advirtam; sempre em ação e a ninguém devendo, e perdoais as dívi
sempre em repouso; granjeando sem das, sem nada perder. Que dizemos
precisão; conduzindo, enchendo e pro nós, meu Deus, minha vida, minha
tegendo, criando, nutrindo e aperfei santa delícia, ou que diz alguém quan
çoando, buscando, ainda que nada Vos do fala de Vós? ...1 4 Mas ai dos que
falte. se calam acerca de Vós, porque, embo
1 2 Este capítulo é uma síntese perfeita da teodicéia ra falem muito, serão mudos !
agostiniana. Repare-se no jogo de antítese e de
paradoxos: “tão oculto de tão presente”, etc. Agos 1 4 Agostinho não vê a transcendência de Deus,
tinho não pretende dar-nos a definição de Deus. (N. mas apreende-a tão genialmente como se fosse a
do T.) própria imanência. Deus surge-lhe como Sumo
13 Sl 17,32. Valor e-como “delícia”.
5
Lágrimas do Pródigo
6
No alvorecer da vida
mudais. O dia presente não passa por receberão igualmente o seu modo e o
Vós, e, contudo, em Vós se realiza, ser ! Vós, porém, sois sempre o mesmo,
porque todas estas coisas em Vós resi e todas as coisas de amanhã e do futu
dem, nem teriam caminhos para passar ro, de ontem e do passado, hoje as
se com o vosso poder as não contivés fareis, hoje as fizestes29.
seis. “Porque os vossos anos não Que posso eu fazer, se alguém não
morrem28”, são um eterno dia sempre compreende? Que esse exulte, dizendo:
presente. Quantos dias não passaram “Que maravilha é esta?30” Exulte
já para nós e para nossos antepassados muito embora e prefira encontrar-Vos
pelo dia eterno de que gozais e dele não Vos compreendendo, do que, com
receberam a existência e a duração ! E preendendo, não Vos encontrar.
hão de passar ainda outros que dele 29 A imutabilidade divina é um dos assuntos mais
predjletos do gênio agostiniano.
28 Sl 101, 28. 30 Êx 16, \5\Eclo 39,17.
7
Prognósticos de vícios
11. Ouvi-me, ó meu Deus! Ai dos dente de que é viciosa, pois nunca vi
pecados dos homens! É um homem ninguém que, para cortar o mal, rejei
que assim fala. Vós, Senhor, compade- tasse conscientemente o bem!
cei-Vos dele, porque sois o seu Criador Ou seria justo, mesmo para aquela
e não o autor do seu pecado. Quem me idade, exigir com choros o que talvez
poderá recordar o pecado da infância, prejudicialmente seria concedido, en-
já que ninguém há que diante de Vós colerizar-me com violência não contra
esteja limpo, nem mesmo o recém-nas pessoas a mim sujeitas, mas contra
cido, cuja vida sobre a terra é apenas pessoas livres e respeitáveis pela
um dia? Quem mo trará à memória? idade? Estaria bem zangar-me até con
Será porventura algum menino, ainda tra os pais, contra muitas outras pes
pequerrucho, onde posso ver a imagem soas mais sensatas, só por se não cur
do que fui e de que me não resta varem a um aceno do meu capricho,
lembrança? batendo-lhes e esforçando-me, quanto
Em que podia pecar, nesse tempo? possível, por lhes fazer mal, porque
Em desejar ardentemente, chorando, não se sujeitavam às minhas exigên
os peitos de minha mãe? Se agora sus cias, com as quais seria pernicioso
pirasse com a mesma avidez não pelos condescender?
seios matemos, mas pelo alimento que Assim, a debilidade dos membros
é próprio da minha idade, seria escar infantis é inocente, mas não a alma das
necido e justamente censurado. crianças31. Vi e observei uma, chéia de
Sem dúvida, então o meu procedi inveja, que ainda não falava e já olha
mento era repreensível. Mas como não va, pálida, de rosto colérico, para o
podia perceber a reprimenda, o uso e a irmãozito colaço. Quem não é testemu
razão não permitiam que eu fosse nha do que eu afirmo? Diz-se até que
repreendido. Com o crescer dos anos, as mães e as amas procuram esconju-
porém, desarraigamos e lançamos fora 31 O pecado original corrompeu a natureza huma
esta sofreguidão do apetite. Sinal evi na, mas não inteiramente. (N. do T.)
CONFISSÕES I 31
rar este defeito, não sei com que práti e bom, ainda que só tivésseis criado
cas supersticiosas. Mas, enfim, será estas coisas. Nenhum outro as pode
inocente a criança quando não tolera fazer senão Vós, ó Unidade, origem de
junto de si, na mesma fonte fecunda do toda a variedade, ó Formosura infinita
leite, o companheiro destituído de que tudo formais e ordenais, pela vossa
auxílio e só com esse alimento para lei.
sustentar a vida? Indulgentemente se Por isso, Senhor, envergonho-me de
permitem estas más inclinações, não contar, na minha vida terrena, esta
porque sejam ninharias sem importân idade que não me lembro de ter vivido.
cia, mas porque hão de desaparecer Somente acredito nela pelo testemunho
com o andar dos anos. Ê este o único alheio e pelas conjeturas que formei ao
motivo, pois essas paixões não se observar as outras crianças, conjeturas
podem de boa mente sofrer, quando se estas aliás muito fidedignas. Tudo
encontram numa pessoa mais ido^a. quanto se oculta nas trevas do meu
12. E Vós, Senhor e Deus meu, que esquecimento é para mim igual ao
destes à criança a vida e o corpo, tempo que vivi no seio materno. E se
assim como o vemos, provido dos sen “fui concebido em iniquidade” e se
tidos, formado pelos membros e ador “em pecado me alimentou, no ventre,
nados pelos traços da sua configura minha mãe33”, pergunto, Senhor e
ção, de Vós que lhe inspirastes o Deus meu, onde e quando esteve ino
instinto natural de defesa para assegu cente este vosso servo? Passo em silên
rar a sua integridade e conservação — cio esta quadra da vida. Que tenho eu
ordenais-me que em todas estas obras que ver com ela, se nem reminiscências
“louve, confesse e exalte o vosso nome, conservo?
ó Altíssimo32”! Sois Deus onipotente
32 5/91,2. 3 3 Sl 50,7.
8
Como aprendi a falar
13. Seguindo o curso da minha falar3 5. Não eram pessoas mais velhas
vida, não é verdade que da infância que me ensinavam as palavras, com
passei à puerícia? Ou antes, não foi métodos, como pouco depois o fizeram
esta que veio até mim e sucedeu à para as letras. Graças à inteligência
infância? A infância não se afastou. que Vós, Senhor, me destes, eu mesmo
Para onde fugiu então? Entretanto, ela aprendi, quando procurava exprimir os
já não existia, pois eu já não era um sentimentos do meu coração por gemi
bebê que não falava, mas um menino dos, gritos e movimentos diversos dos
que principiava a balbuciar algumas
palavras3 4. membros, para que obedecessem à
Dessa época já eu me lembro, e minha vontade. Não podia, porém,
mais tarde adverti como aprendera a exteriorizar tudo o que desejava, nem
3 4 Este menino, a quem foi diferido o batismo 3 5 A língua corrente falada em Tagaste era o carta
segundo os costumes africanos da época, recebeu o ginês ou púnico. Agostinho aprenderia simultanea
nome de Aurélio Agostinho. (N. do T.) mente as duas línguas: aquela e o latim. (N. do T.)
32 SANTO AGOSTINHO
9
Na paixão do jogo
14. Ó Deus, meu Deus, que misé desembaraçando-me das peias da lín
rias e enganos não experimentei, quan gua para Vos invocar. Embora crian
do simples criança me propunham ça, mas com ardente fervor, pedia-Vos
vida reta e obediência aos mestres, a que na escola não fosse açoitado.
fim de mais tarde brilhar no mundo e Quando me não atendíeis — “o que
me ilustrar nas artes da língua, servil era para meu proveito3 7” —, as pes
instrumento da ambição e da cobiça soas mais velhas e até os meus pró
dos homens. prios pais, que, afinal, me não deseja
Fui mandado à escola para aprender vam mal, riam-se dos açoites — o meu
as primeiras letras, cuja utilidade eu, maior e mais penoso suplício.
infeliz, ignorava. Todavia batiam-me 15. Haverá, Senhor, alma tão gene
se no estudo m.e deixava levar pela pre rosa e tão unida a Vós pelos laços dum
guiça. As pessoas grandes louvavam ardente afeto, que despreze, não por
esta severidade. Muitos dos nossos insensibilidade louca, mas por amor
predecessores na vida tinham traçado
estas vias dolorosas, por onde éramos intenso e forte para convosco, os cava
obrigados a caminhar, multiplicando letes, os garfos de ferro e os demais
os trabalhos e as dores aos filhos de tormentos deste gênero dos quais os
Adão, Encontrei, porém, Senhor, ho homens em toda parte suplicam que os
mens que Vos imploravam, e deles liberteis? Haverá alguma alma dessas
aprendi, na medida em que me foi pos que despreze essas torturas a ponto de
sível, que éreis alguma coisa de grande rir dos que tão acerbamente temem
e que podíeis, apesar de invisível aos esses suplícios, como meus pais caçoa
sentidos, ouvir-nos e socorrer-nos. vam das penalidades que a nós, meni
Ainda menino, comecei a rezar-Vos nos, infligiam os mestres? Eu não
como a “meu auxílio e refúgio3 6”, temia menos os castigos do que as tor-
3 6 07 93,22. 37 S121, 3.
CONFISSÕES I 33
10
O orgulho da vitória
11
No limiar do batistério
nossa soberba. Fui marcado pelo si- ele ainda não acreditava. Minha mãe
nal-da-cruz e condimentado com sal desejava ardentemente que eu Vos
divino, logo que saí do seio da minha considerasse a Vós, meu Deus, como
mãe, que punha em Vós todas as pai, mais do que àquele que ainda não
esperanças. tinha fé. Nisso a ajudáveis a triunfar
Vistes, Senhor, que, sendo ainda do marido, a quem servia melhor pelo
criança, sobrevindo-me certo dia uma fato de nisso obedecer às vossas
febre alta, motivada numa opressão do ordens.
estômago, bati às portas da morte. 18. Rogo-Vos, meu Deus, que me
Sabeis, meu Deus, pois já então por mostreis — se Vos apraz — qual o
mim vigiáveis, com que ardor e fé pedi desígnio por que me foi então diferido
à piedade de minha mãe e de nossa o batismo: se seria para meu bem
mãe comum — a vossa Igreja — o soltarem-se ou não as rédeas do peca
batismo de Cristo, Deus e Senhor meu. do. Por que razão ainda agora de toda
A minha mãe carnal, porque na sua fé parte chega aos meus ouvidos a res
e coração puro me gerava com maior peito de uns ou de outros: “deixai-o
solicitude para a vida eterna, pertur fazer o que quiser, pois ainda não está
bada, procurava com pressa iniciar-me batizado”? Mas da saúde do corpo
e purificar-me nos sacramentos da sal ninguém diz: “d.eixai-o, que se fira
vação, confessando-Vos eu, Senhor mais, porque ainda não está curado” !
Jesus, para obter a remissão dos meus Quanto me não era preferível ser
pecados. Dentro em breve, porém, logo curado, obtendo, pela minha dili
achei-me melhor, e essa purificação foi gência e dos meus, conservar intata,
diferida, como se fosse necessário con sob a vossa proteção, a saúde da alma
tinuar a corromper-me, para prolongar que me tínheis concedido !
a vida. Na verdade, depois do banho Sem dúvida, seria melhor. Minha
do batismo, as recaídas na imundície mãe, porém, já previra quantas e quão
do pecado seriam mais graves e perigo grandes ondas de tentações pareciam
sas. ameaçar-me depois da infância, e pre
Tinha eu já verdadeira fé, como feriu expor-me a elas, como terra gros
minha mãe e todos os de casa, exceto seira em que eu depois recebería
meu pai39, que não prevaleceu em forma, a expor-me a esse perigo já
mim contra os direitos da piedade como imagem40.
materna de eu crer em Cristo, no qual
40 O batismo, segundo a doutrina da Igreja, grava
39 Patrício só no fim da, vida recebeu o batismo. na alma a imagem de Deus ao conferir a graça. (N.
Morreu em 371. (N. do T.) do T.)
12
Relutância em estudar
19. Neste período da infância, cujo gado41. Por meio desta coação fa-
perigo temiam menos para mim do que 41 Agostinho guardou infelizes recordações -a res
o da adolescência, não gostava do peito da escola. Esta às vezes era um simples alpen
dre campestre, ou um inconfortável pardieiro. (N.
estudo, e tinha horror de ser a ele obri do T.) I
CONFISSÕES I 35
13
Gosto do latim
20. Mas qual era a causa da aver morte no pecado, longe de Vós, ó meu
são que tinha à língua grega que me Deus e minha Vida!
ensinaram quando criança? E o que 21. Nada mais digno de compaixão
ainda hoje me não sei explicar. Pelo do que o infeliz que derrama lágrimas
contrário, gostava muito da língua lati pela morte de Dido, originada no amor
na, não da que ensinavam os primeiros de Enéias, sem se compadecer de si
mestres, mas da que lecionavam os mesmo nem chorar a própria morte
gramáticos. por falta de amor para convosco, ó
Aquelas primeiras lições em que j se meu Deus, luz da minha alma, pão da
aprende a ler, escrever e contar eram- boca interior do meu espírito, poder
me tão pesadas e insuportáveis como fecundante da minha inteligência e seio
as de grego. Donde me vinha este abor do meu pensamento ! Não Vos amava.
recimento senão do pecado e vaidade “Prevaricava longe de Vós45” e em
da vida — porque “eu era carne e espí toda parte ressoavam aos meus ouvi
rito que passa e não volta”? 43 Aquelas dos de luxurioso estas palavras:
primeiras letras, a que devia e devo a “Bravo! Coragem!” A amizade deste
possibilidade de não só ler qualquer mundo é adultério contra Vós. Profe
escrito mas também de escrever o que rem-se as palavras “Bravo! Cora
me aprouver, eram sem dúvida mais gem!” para que o homem não se
úteis e mais certas do que aquelas em envergonhe de ser pecador. Não chora
que, esquecido dos meus erros, era va essas faltas, mas pranteava “a
obrigado a gravar na memória as nave morte de Dido, que se suicidara com
gações errantes dum certo Enéias e a 4 4 Santo Agostinho refere-se nesta passagem ao
chorar Dido, que se suicidara por episódio da Eneida de Virgílio, narrado no canto
VI, alusivo à Rainha Dido, apaixonada pelo nave
amor44. Entretanto, eu, misérrimo, gante Enéias, a caminho da foz do Tibre, foragido
suportava com olhos enxutos a minha de Tróia. Segundo a lenda, este fundou Roma. Na
realidade, foram seus fundadores uns pastores lati
nos dum grupo invasor italiota. (N. do T.)
“3 £7 77,39. 45 £7 72,27.
36 SANTO AGOSTINHO
14
Aversão à língua grega
23. Por que aborrecia eu também a gregos sucederá com Virgílio o mesmo
literatura grega4 8, que entoava tais fic que a mim com Homero, quando me
ções? Homero teceu habilmente essas obrigavam a estudá-lo49. O trabalho
fábulas, e é dulcíssimo na sua frivoli
49 Santo Agostinho sabia de cor muitos versos de
dade, ainda que para mim, menino, Virgílio, poeta da sua predileção. Ainda nos últimos
fosse amargo. Creio que aos jovens anos da vida, recordava passagens extensas e
expressões que citava em escritos teológicos. Desta
4 8 Santo Agostinho diz: graeca grammatica: Litte- simpatia pelo poeta mantuano participou a Idade
ratura ou Ars grammatica consistia, segundo Var- Média, que nos legou textos virgilianos com nota
rão, em ler, explicar e ajuizar dos poetas, oradores e ção musical, para serem cantados nas escolas. (N.
historiadores. (N. do T.) do T.) ,
CONFISSÕES I 37
15
“Ouvi, Senhor. . . ”
24. “Ouvi, Senhor, a oração50” Vós, Senhor, sois o meu rei e o meu
para que a minha alma não desfaleça Deus. A Vós consagro tudo quanto de
sob a vossa lei, nem esmoreça em con útil aprendi em criança. A Vós consa
fessar as misericórdias com que me gro tudo o que digo, escrevo, leio e
arrancastes de perversos caminhos. conto porque, quando aprendia-vaida-
Fazei que a vossa doçura supere todas des, Vós me disciplináveis, perdoan-
as seduções que eu seguia. Que eu Vos do-me depois os pecados de deleite
ame arrebatadamente e abrace a vossa nelas cometidos. É verdade que nessas
mão com toda a minha alma para que frivolidades aprendi muitas coisas
me livreis de todas as tentações até o úteis. Mas poder-se-iam aprender em
fim. estudos sérios, conscienciosos! Seria
esta a via segura pela qual deveríam
so 5/60,2. encaminhar as crianças.
16
A mitologia impura
17
A declamação
18
Desprezo das leis eternas
28. Que admira, pois, que fosse sequiosa das vossas delícias, e cujo
arrastado pelas vaidades e me afastasse coração Vos diz: “Busquei o vosso ros
de Vós, ó meu Deus, se me propunham to e tomá-lo-ei a buscar, Senhor 5 7”.
exemplos dos homens, a quem uma crí Andava longe da vossa face, retido
tica cobria de vergonha por um barba- por afeições tenebrosas. Todavia, não
rismo ou solecismo cometido ao nar nos apartamos ou aproximamos de
rarem ações virtuosas, e que se Vós com os pés ou com as distâncias
gloriavam de serem louvados quando de lugares. Aquele vosso filho mais
contavam com termos castiços e bem novo — o da parábola -—■ procurou
dispostos, copiosa e elegantemente, as cavalos, ou carros, ou navios, ou voou,
suas torpezas? com penas visíveis, ou viajou a pé,
Vedes tudo isso, ó Senhor, e calais- para viver e dissipar prodigamente, em
Vos, “paciente, cheio de compaixão e região afastada, o que Vós lhe entregá
de verdade5 6”. Porventura ficareis reis ao partir? Fostes Pai bondoso por
sempre calado? Agora arrancais, deste que lhe destes a fortuna, e fostes mais
abismo imenso, a alma ansiosa de Vós, carinhoso ainda para com ele, ao vol
56 Sl 102, 8; 85, 15. 5 7 5741, 3; 15, 11.
40 SANTO AGOSTINHO
tar. necessitado. Viveu entre paixões casse mais gravemente, a outrem, com
luxuriosas, isto é, tenebrosas, que é o perseguições, do que ao próprio cora
que quer dizer longe do vosso rosto 58. ção, com essa inimizade! Com certeza
29. Vede, ó Senhor Deus, e reparai a ciência gramatical não é mais inte
benigno, segundo é vosso costume, rior do que a lei da consciência — de
como os filhos dos homens observam não fazer a outrem o que não quere
diligentemente as regras da ortografia mos que nos façam a nós mesmos.
e das sílabas, recebidas dos primeiros Quão misterioso sois Vós, que habi
mestres, e desprezam as leis eternas da tais em silêncio no céu, Deus grande e
salvação eterna, de Vós recebidas. Se único, espalhando, com lei infatigável,
alguém, ao aprender ou ensinar as re cegueiras vingadoras sobre as paixões
gras tradicionais dos sons, pronunciar desordenadas! Vede este homem, pro
sem aspiração da primeira sílaba a curando a glória da eloquência, diante
“homo ” (homem), desagrada mais aos dum homem, o juiz, e, na presença de
homens do que se odiar, contra os vos grande número de homens, atacar o
sos mandamentos, outro homem, ape inimigo com ódio violentíssimo. Como
sar de este ser o “homem”. Como se, evita com toda a vigilância dizer
na realidade, se persuadisse haver um algum erro de linguagem, como não
inimigo mais molesto que o próprio aspira o h de “inter homines” (entre os
ódio com que se irrita contra si homens), pronunciando “inter omi-
mesmo; ou como se alguém prejudi- nes59”! Mas não tem cuidado de vi
58 Na parábola do filho pródigo, o pai representa
giar o furor da sua alma, que o arrasta
Deus, bondoso e amável, e o filho mais novo, dissi- a tirar um homem de entre os homens !
pador e perdulário, simboliza a alma pecadora. O
homem afasta-se de Deus pelo ato perverso da von 59 Modemamente, em latim, não se aspira o h. (N.
tade: o pecado. (N. do T.) do T.)
19
Perversidade na puerícia
30. Jazia eu, pobre criança, à beira Que coisa houve mais corrupta aos
deste abismo de corrupção. A luta vossos olhos do que eu? Até desagra
desta arena era aquela onde eu mais dava a esses homens, ao enganar com
temia cometer um barbarismo de ex inumeráveis mentiras o pedagogo,
pressão do que acautelar-me, se o mestres e pais, por amor do jogo, gosto
cometesse, da,inveja que sentia contra de espetáculos frívolos e ardor inquieto
aqueles que o evitavam. de os imitar!
Digo e confesso, diante de Vós, meu Cometia furtos na despensa e ina
Deus, estas fraquezas que me angaria mesa de meus pais, ou impelido pela
vam aplausos daqueles cuja simpatia gula ou para ter que dar aos rapazes,
equivalia para mim a viver cheio de retribuindo-me estes com o jogo, com
honra. Não via a voragem de luxúria o qual igualmente se deleitavam à
para a qual “era atirado, longe da minha custa,.porque mo vendiam. Ven
vossa vista60”. cido pelo louco desejo de superiori
dade, obtinha também muitas vezes
8° 5/30,23. nesse jogo as vitórias com fraude. No
CONFISSÕES I 41
20
Magnificat
31. Contudo, Senhor, graças Vos Tudo eram dons do meu Deus. Não
sejam dadas, a Vós, Criador e Ordena- fui eu quem mos deu a mim mesmo.
dor do universo, tão excelso e tão bom, São bens, e todos eles constituem em
embora quisésseis que eu não vivesse mim o “eu”. Portanto, é bom Aquele
além da infância. Então já eu possuía o que me criou. Ele mesmo é o meu bem,
ser, a vida, o sentimento, e tinha cuida e eu louvo-O com alegria por todos os
do da minha incolumidade, reflexo da bens que eu tinha até mesmo na
misteriosa unidade, fonte do meu ser. infância.
Vigiava, por um secreto instinto, pela Eu pecava, porque em vez de procu
integridade dos meus sentidos, e até rar em Deus os prazeres, as grandezas
nos meus frágeis pensamentos acerca e as verdades, procurava-os nas suas
de pequenas coisas me deleitava em criaturas: em mim e nos outros. Por
encontrar a verdade. isso, precipitava-me na dor, na confu
são e no erro.
Não queria ser enganado. Gozava Graças Vos sejam dadas, minha
de memória vigorosa e dotes de elocu- doçura, minha glória, minha confiança
* ção. Era sensível à amizade, fugia à e meu Deus! Graças Vos sejam dadas
dor, à objeção, à ignorância64. Não é pelos dons que me concedestes. Con-
isto admirável e digno de louvor em tal servai-mos.
criatura? Assim me haveis de conservar.
Também aumentareis e aperfeiçoareis
6 4 Agostinho não alude à sua inteligência genial. os vossos dons, e eu estarei convosco,
Passa em silêncio a sua acuidade intuitiva e o seu
poder raciocinante para se fixar só na sua “memória pois, se existo, Vós me destes a
vigorosa e dotes de elocução”. (N. do T.) existência.
LIVRO II
OS PECADOS DA ADOLESCÊNCIA
I — A adolescência (1-3).
II — O prazer de praticar o
mal (4-10).
1
Desordens da juventude
2
Sob a ação da carne
2. Que coisa me deleitava senão Vós, e permitíeis-mo 6 6. Arrojava-me,
amar e ser amado? Mas, nas relações derramava-me, espalhava-me e fervia
de alma para alma, não me continha a em minhas devassidões, e Vós em
moderação, conforme o limite lumi silêncio! Ó alegria que tão tarde
noso da amizade, visto que, da lodosa encontrei! Vós calado, e eu a afastar-
concupiscência da minha carne e do me cada vez mais de Vós, buscando,
borbulhar da juventude, exalavam-se constantemente, estéreis sementes de
vapores que me enevoavam e ofusca dores, com aviltante soberba e desin-
vam o coração, a ponto de não se dis quieto cansaço !
tinguir o amor sereno do prazer tene 3. Quem poderia refrear a minha
broso. Um e outro ardiam con miséria e fazer com que usasse bem da
fusamente em mim. Arrebatavam a formosura transitória de cada objeto?
minha débil idade despenhadeiros das Quem me fixaria um limite às suas
paixões e submergiam-se num abismo delícias, de tal maneira que as ondas
de vícios. Sem eu saber, a vossa ira
tinha-se robustecido sobre mim. Ensur 6 6 A crise da adolescência em Agostinho, como
em todos os jovens, revela um ofuscamento da
decí com o ruído da cadeia da minha razão e dos valores espirituais, substituídos pelo
mortalidade, em castigo da soberba de despertar impetuoso dos instintos.
A energia vital vai preferentemente para o corpo.
minha alma. A vontade e a inteligência ficam enfraquecidas. (N.
Afastava-me para mais longe de do T.)
46 SANTO AGOSTINHO
3
“Nas praças de Babilônia”
uma minoria. Então, para que escrevo amar as criaturas. Porém, já tínheis
isto? Para que eu e todos os que lerem começado a edificar em minha mãe o
estas palavras pensemos de que abis vosso templo e os fundamentos da
mo profundo se deve chamar por Vós. vossa santa habitação. Meu pai era
Que coisa mais próxima de vossos simples catecúmeno, recente ainda.
ouvidos do que um coração arrepen Por isso, minha mãe, com tal nova,
dido e uma vida de fé? agitou-se, levada de piedosa perturba
Quem não cumulava, então, de lou ção e temor. Apesar de eu ainda não
vores a meu pai, por ultrapassar até os ser batizado, receou que enveredasse
recursos do patrimônio, só para conce por caminhos tortuosos, por onde
der tudo o que era necessário ao filho andam “os que Vos voltam as costas e
que tinha viajado para longe por causa não o rosto 7 7”.
dos estudos? Numerosos cidadãos 7. Ai de mim! Como me atrevo a
muitíssimo mais opulentos nem de dizer que estáveis calado, quando
longe mostravam tal cuidado pelos continuamente me ia afastando de
filhos. No entanto, meu pai não se Vós! Guardáveis, porventura, silêncio
preocupava com saber se eu crescia diante de mim? De quem eram, senão
para Vós, isto é, se vivia castamente. de Vós, aquelas palavras que, por meio
Contanto que fosse diserto !. . . Mas de minha mãe, vossa fiel serva, pro
eu era antes um deserto7 5 quanto à nunciastes aos meus ouvidos? Nenhu
vossa cultura, ó meu Deus, único, ver ma delas, porém, desceu ao meu cora
dadeiro e bondoso Senhor do vosso ção, para cumprir o que ela me
campo — o meu coração. aconselhava. Lembro-me que, um dia,
6. Ora, nesta idade dos dezesseis querendo que me abstivesse da luxúria
anos, sucedendo-se um intermédio de e sobretudo não cometesse adultérios,
ociosidade por me ver livre de todas as avisou-me em particular e com grande
aulas devido a dificuldades domésti solicitude.
cas, comecei a viver com meus pais7 6. Envergonhava-me de seguir tais
Foi então que os espinhos das paixões conselhos, por me parecerem só pró
me sobrepujaram a cabeça, sem haver prios de mulheres. Porém eram vossos,
mão que os arrancasse. Bem pelo e eu sem o saber ! Julgava que nada me
contrário: meu pai, durante o banho, dizíeis, que só ela me falava; mas Vós
vendo-me entrar já na puberdade e dirigíeis-Vos a mim, por sua boca.
revestido da adolescência inquieta, Éreis desprezado na sua pessoa por
contou-o todo alegre, a minha mãe, mim, sim, por mim, pelo filho da vossa
como se tal verificação o fizesse saltar escrava, pelo vosso servo. Mas eu não
de prazer com a idéia de ter netos. Era sabia! Ignorante, precipitava-me tão
uma alegria, aliás, proveniente da cegamente que, entre os companheiros
embriaguez produzida pelo vinho invi da minha idade, me envergonhava de
sível da sua vontade perversa e incli ser menos infame do que eles. Ouvia-
nada às coisas baixas — embriaguez os jactarem-se de suas ignomínias, e
com que este mundo esquece o Cria tanto mais se gloriavam quanto mais
dor, para, em vez de Vós, Senhor, depravados eram. Assim, praticava o
mal não só pelo deleite da ação, mas
7 5 Jogo de palavras: disertus e desertus. É fre ainda para ser louvado.
quente em Santo Agostinho. Vejam-se também sar- Que haverá mais digno de vitupério
taga (sertã) e Cartago (Livro III, cap. I). (N. do T.)
7 6 Este intervalo de ociosidade deve ter-se prolon
gado por um ano. (N. do T.) 77 Jerl, 27.
48 SANTO AGOSTINHO
do que o vício? E eu, para não ser vitu- pelo afeto conjugal. Temia que o vín
perado, fazia-me cada vez mais vicio culo do.matrimônio servisse de empe
so ! Se não cometesse pecado com que cilho à esperança que de mim acalen
igualasse os mais corrompidos, fingia tava. Não temia que ele me impedisse
ter cometido o que não praticara, para a outra vida, pois esta colocava-a
que não parecesse mais abjeto quanto minha mãe unicamente em Vós. Re
mais inocente, e mais vil quanto mais ceava que me prejudicasse no estudo
casto. das letras, com que, tanto ela como
8. Eis os companheiros com quem meu pai, desejavam ardentemente a
andava pelas praças de Babilônia, minha celebridade: este, por não pen
revolvendo-me na lama, como em sar quase nada em Vós e alimentar de
cinamomo e ungüentos preciosos. Para mim vãs ambições; e minha mãe por
que mais tenazmente me agarrasse no julgar que estes tradicionais estudos
meio desse lodo, o inimigo invisível literários não me causariam dano,
calcava-me aos pés e seduzia-me, por antes ajudariam a aproximar-me de
que era fácil de seduzir. A mãe da Vós. Assim era, julgo eu, segundo a
minha carne, que jâ “tinha fugido do lembrança, quanto possível exata, que
faço do caráter de meus pais.
meio de Babilônia78”, mas que nou Ultrapassando até a medida da seve
tras faltas caminhava mais devagar, ridade, afrouxaram-me as rédeas no
refletiu no que ouvira dizer a meu pai, jogo e na dissolução de várias paixões.
e aconselhou-me a castidade. De toda essa miséria, ó meu Deus, ele
Mas, apesar de não poder cortar de vava-se uma escuridão que me ocul
raiz esta paixão pestífera que mais tava a luz serena da vossa Verdade. “A
tarde, como ela pressentia, me havia de maldade como que brotava da minha
ser perigosa, não procurou contê-la substância79.”
78 Jer 51, 6. 79 67 72,7.
4
História dum furto
5
A causa ordinária do pecado
10. O ouro, a prata, os corpos belos não como o meu Deus, que criou todas
e todas as coisas são dotadas dum as coisas, porque “Ele é as delícias dos
certo atrativo81. O prazer de conve corações retos, e é n’Ele que o justo
niência que se sente no contato da rejubila82”.
carne influi vivamente. Cada um dos 11. Portanto, quando se indaga a
outros sentidos encontra nos corpos razão por que se praticou um crime,
uma modalidade que lhes corresponde. esta ordinariamente não é digna de cré
Do mesmo modo a honra temporal e o dito, se não se descobre que a sua
poder de mandar e dominar encerram causa pode ter sido ou o desejo de
também um brilho, donde igualmente alcançar alguns dos bens a que chama
nasce a avidez de vingança. Todavia, mos ínfimos, ou o medo de os perder.
para a aquisição de todos estes bens, o Esses bens são, sem dúvida, belos e
homem não Vos deve abandonar nem atraentes, ainda que, comparados com
afastar-se da vossa lei, ó Senhor. A os superiores e celestes, não passem de
vida neste mundo seduz por causa desprezíveis e abjetos.
duma certa medida de beleza que lhe é Alguém matou um homem. E por
própria, e da harmonia que tem com quê? Ou porque lhe amava a esposa ou
todas as formosuras terrenas. A amiza o campo, ou porque queria roubar
de dos homens toma-se doce, por unifi para viver, ou porque temia que lhe
car, com um laço querido, muitas tirasse alguma coisa, ou finalmente
almas. porque, injuriado, ardia no desejo de
Por todos estes motivos e outros vingança. Quem acreditará que come
semelhantes, comete-se o pecado, por teu o homicídio só por deleite, se até
que, pela propensão imoderada para os Catilina, aquele homem louco e crude-
bens inferiores, embora sejam bons, se líssimo, de quem se disse ser perverso e
abandonam outros melhores e mais cruel sem razão, tinha um motivo: “o
elevados, ou seja, a Vós, meu Deus, à receio”, diz o historiador, “de que o
vossa verdade e à vossa lei. De fato, as ócio lhe entorpecesse as mãos e o espí
coisas ínfimas também deleitam, mas rito83”? Por que fim procedia ele
assim? Evidentemente, para que, exer-
81 Por que razão o homem é arrastado ao mal?
Porque neste há uma aparência de bem, um atrativo 82 Sl 63, 11.
para as forças instintivas psicológicas. (N. do T.) 88 Cf. Salústio, Cat. 16. (N. do T.)
50 SANTO AGOSTINHO
6
A alegria do mal
12. Que amei eu, miserável, em ti, ó todas as coisas. Que busca a ambição
meu furto, crime noturno dos meus senão honras e glória, embora só Vós
dezesseis anos? Não tinhas beleza tenhais direito a ser honrado sobre
alguma, pois eras um roubo! Mas és tudo e glorificado etemamente? A
realmente alguma coisa, para eu me sevícia dos poderosos aspira a fazer-se
dirigir a ti? As peras que roubamos, temer; mas quem deve ser temido
sim, eram belas por serem criaturas senão Deus? Quando, onde, até onde e
vossas, ó mais belo de todos os seres, quem pode tirar ou subtrair alguma
Criador de tudo, ó Deus tão bom, coisa ao vosso poder? As carícias dos
Deus soberano e meu verdadeiro Bem. voluptuosos desejam a reciprocidade
Aqueles pomos eram belos; mas não do amor; mas nada há mais acari-
foram esses que a minha alma depra ciante que a vossa caridade, nem se
vada apeteceu, pois tinha abundância pode amar nada mais salutar que a
doutros melhores. Colhi-os simples vossa verdade, a mais formosa e
mente para roubar. Tanto é assim que, resplandecente de todas. A curiosidade
depois de colhidos, os lancei fora, parece ambicionar o estudo da ciência,
banqueteando-me só na iniquidade quando só Vós é que conheceis plena
com cujo gozo me alegrara. Se algum mente tudo!
dos frutos entrou em minha boca, foi o Até a própria ignorância e estultícia
meu crime que lhes deu o sabor. se encobrem sob o nome de simplici
Agora, Senhor e Deus meu, procuro dade e de inocência. Mas nada se
saber o que me deleitava no furto, e encontra mais simples do que Vós.
não lhe encontro beleza alguma84. Quem há mais inocente do que Vós,
Não falo já da beleza que se encontra pois são as próprias obras que prejudi
na justiça e prudência, na inteligência cam os pecadores? À preguiça parece
do homem, na memória, nos sentidos e apetecer apenas o descanso; mas que
na vida vegetativa; nem mesmo da que repouso seguro há fora do Senhor? A
resplandece ou nos astros magníficos e luxúria deseja apelidar-se saciedade e
brilhantes nas suas órbitas ou na terra abundância; Vós, porém, sois a pleni
e mar, cheios de espécies que, nascen tude e a abundância interminável da
do, sucedem às que morrem; nem tam suavidade incorruptível. A prodigali
pouco desta defeituosa sombra de for dade cobre-se com a sombra da libera-
I
mosura com que os vícios seduzem. lidade; mas o mais magnanimo dispen-
13. O orgulho imita a altura, mas sador de todos os bens sois Vos. A
só Vós, meu Deus, sois excelso sobre avareza quer possuir muito; e Vós pos
suís tudo. A inveja litiga acerca da
8 4 Admirem-se nesta e noutras passagens “as aná “excelência”; mas que ser há mais
lises interiores, estas maravilhas da psicologia” a
que se refere Henry de Lubac no livro Catholicisme. excelente que Vós? A ira procura , a
(N. do T.) vingança; e quem se vinga mais justa
CONFISSÕES II 51
mente que Vós? O temor, enquanto há lugar para onde nos possamos afas
vigia pela segurança das coisas que tar totalmente de Vós8 5.
ama, detesta os acontecimentos insóli Que amei, portanto, naquele roubo e
tos e inesperados que lhes sejam adver em que imitei o meu Senhor, ainda
sos; porém, que há de insólito para mesmo criminosa e perversamente?
Tive ao menos o gosto de lutar pela
Vós? Que há de inesperado? Quem se fraude contra a vossa lei, já que o não
para de Vós o que amais? E onde podia pela força, a fim de imitar, sendo
encontrar a firme segurança senão em cativo, uma falsa liberdade, praticando
Vós? A tristeza definha-se com a perda impunemente, por uma tenebrosa se
dos bens em que a cobiça se deleita — melhança de onipotência, o que me
porque desejaria que nada, como a não era lícito? Eis-me “aquele escravo
Vós, se lhe pudesse tirar. que, fugindo a seu senhor, seguiu uma
14. Ê assim que a alma peca, quan sombra!8 6” Ó podridão, ó monstro da
do se aparta e busca fora de Vós o que vida e abismo da morte! Como pode
não pode encontrar puro e transpa agradar-me o ilícito sem outro motivo
rente, a não ser regressando a que o de me ser proibido?
3 5 Santo Agostinho desenvolve concretamente a
Vós de novo. Imitam-Vos perversa tese filosófica de que a atividade consciente ou
mente todos os que se afastam de Vós inconsciente dos seres imita a Ação do Ser. O gênio
Hiponense descreveu a analogia entre o Ser e os
e contra Vós se levantam. Ainda seres sob o aspecto de atividade ou dinamismo.
assim, imitando-Vos deste modo, mos Com este os seres pretendem valorizar-se e manifes
tar a sua natureza ínfima. No pecado o homem
tram que sois o Criador de toda a imita perversamente a atividade de Deus. (N. do T.)
natureza, e que, por conseguinte, não 8 6 Jó, 7, 2.
7
O perdão
15. “Como agradecerei ao Se próprias forças a sua castidade e ino
nhor87” o ter-se a minha memória cência para Vos amar menos, como se
recordado destes fatos e a minha alma lhe fosse pouco necessária a miseri
não ter sentido temor? Amar-Vos-ei, córdia com que perdoastes os pecados
Senhor, dar-Vos-ei graças e confessarei aos que se voltam para Vós? Aquele
o vosso nome, porque me perdoastes que, a vosso convite, seguiu o chama
ações tão más e tão indignas. Atribuo mento e evitou as faltas — que agora
à vossa graça e à vossa misericórdia o lê em mim, quando as recordo e con
terdes-me dissolvido, como gelo, os fesso — não se ria de eu ter sido cura
pecados. A vossa graça devo também do da minha doença por Aquele médi
o ter fugido do mal que não pratiquei. co. Por Ele foi-lhe concedido não cair
Oh! de que não era eu capaz, se até na mesma doença, ou antes, fez com
amei, sem recompensa, o pecado? ! que enfermasse com menos gravidade.
Confesso que tudo me foi perdoado: Por conseguinte, ame-Vos ele outro
o mal que de livre vontade cometi e o tanto. Mas que digo eu? ame-Vos
que não pratiquei graças à vossa ainda mais, por me ver a mim livre de
ajuda. Que homem há que, refletindo tão grande enfermidade, graças Àquele
na sua enfermidade, ouse atribuir às por quem, do mesmo modo, se vê
desenredado de tão grande languidez
87 Sl 115, 12. de pecados.
52 SANTO AGOSTINHO
8
O prazer da cumplicidade
16. Que fruto nessa ocasião colhi Que é esta, na realidade? Quem mo
eu, miserável, das ações que agora, ao ensinará senão Aquele que ilumina o
recordá-las, me fazem corar de vergo meu coração, rasgando-lhe as som
nha, nomeadamente daquele roubo, em bras? Por que ocorreu ao meu espírito
que amei o próprio roubo e nada mais? estar aqui a inquirir, discutir e conside
Nenhum, pois o furto nada valia, e, rar tais particularidades? Se então
com ele, me tornei mais miserável. amasse os pomos que furtei e com eles
me apetecesse regalar, poderia tê-los
Sozinho não o faria — lembro-me de roubado sozinho, se isso bastasse.
que era esta a minha disposição, Poderia ter cometido a iniquidade por
naquele momento; sim, absolutamente onde cheguei ao meu deleite, sem acen
só, não era capaz de o fazer. Portanto, der, com a fricção de almas cúmplices,
amei também no furto o consórcio o prurido da minha cobiça. Mas por
daqueles com quem o cometi. Amei, que não experimentava prazer naque
por isso, m'ais alguma coisa do que o les furtos, este consistia na própria
furto. Mas não: não amei mais nada, falta que praticavam os pecadores
porque a cumplicidade nada vale. simultaneamente, em cumplicidade.
9
O riso da maldade
17. Que sentimento era aquele da caria tal ação. Se estivesse absoluta
minha alma? Sem dúvida, um senti mente só, não a faria8 9.
mento muitíssimo vergonhoso; e ai de Eis perante Vós, ó meu Deus, uma
mim que o mantinha! Mas, enfim, que viva lembrança da minha alma. Sozi
era ele? “Quem conhece todos os deli nho, não cometería aquele furto, em
tos?88” Era um riso, como que a que me não aprazia o que roubava,
mas o ato de roubar, porque, comple
fazer-nos cócegas no coração, provo
tamente só, não sentiría prazer em pra
cado pelo gosto de enganar os que ti
nham como impossível o nosso feito e ticar o furto. Nem sequer o faria. Ó
vivamente o detestavam. amizade tão inimiga, ó sedução impe
netrável da mente, avidez de perpetrar .
Qual o motivo por que me deleitava o mal por brincadeira ou gracejo, ó
o não estar sozinho, quando cometia o apetite do dano alheio, sem lucro
furto? Seria porque ninguém facil nenhum, sem paixão de vingança, mas
mente se ri, quando está só? Ê certo só porque sentímos vergonha de não
que, sozinho, ninguém se ri facilmente. ser desavergonhados, quando* nós
Mas, se alguma coisa demasiado ridí dizem: “Vamos, façamos”.
cula acode aos sentidos ou à imagina 89 Reconhece Santo Agostinho a influência do
ção, o riso vence por vezes o homem, ambiente na perpetração de crimes. O homem no
mesmo quando sozinho e sem ter nin meio dum grupo ou da multidão deixa-se facilmente
guém presente. Ah ! sozinho não prati sugestionar. E todo receptividade psicológica. A
carga efetiva da coletividade galvaniza-o. Não reage
como ser independente, mas como parte dum todo.
88 Sl 18, 13. (N. do T.)
CONFISSÕES II 53
10
Quero a luz. . .
18. Quem desembaraçará este nó cência tão bela e tão formosa, como
tão enredado e emaranhado? É asque puros resplendores e insaciável satura
roso; não o quero fitar nem ver90. ção. Em Vós há grande tranquilidade e
Quero-Vos a Vós, ó Justiça e Ino vida imperturbável.
Quem entra em Vós penetra “no
90 Santo Agostinho reage perante o pecado como
um esteta perante a fealdade monstruosa e repug gozo do seu Senhor91”, e não só não
nante. Depois de o ter analisado como santo, como terá receio, mas também permanecerá
jurista e como psicólogo, fixa-o sob o aspecto artís soberanamente no bem perfeito.
tico. Acha-o repugnante I
Compare-se esta frase das Confissões: “é asque Na adolescência, afastei-me de Vós,
roso; não o quero fitar nem ver”, com esta outra andei errante, meu Deus, muito des
passagem: “Que impressões te causa um rapaz viado do vosso apoio, tornando-me
belíssimo que é ladrão? Quanto se horrorizam os
teus olhos? 1” (Santo Agostinho, Comentário ao para mim mesmo uma região de fome.
Evangelho de S. João, Vol. I, trat. III, n. 21, trad. do
P. José A. Rodrigues Amado). (N. do T.) si Mí25, 21.
LIVRO III
OS ESTUDOS
2
Do prazer dramático
em mim a inflamação do tumor, a Tal era a minha vida! Mas isso, meu
podridão e o pus repelente. Deus, podia chamar-se vida?
3
O estudante de retórica e os “demolidores”
4
A influência de um livro de Cícero
7. Era entre estes companheiros que gem, mais do que o coração, quase
eu, ainda de tenra idade, estudava todos louvam. Esse livro contém uma
eloquência, na qual desejava salientar- exortação ao estudo da filosofia. Cha-
me, com a intenção condenável e vã de ma-se Hortênsio3 7. Ele mudou o alvo
saborear os prazeres da vaidade huma
9 7 Neste livro, em diálogo, de que hoje apenas se
na. Seguindo o programa do curso, conhecem fragmentos, Cícero respondia às dificul
cheguei ao livro de Cícero, cuja lingua dades de Hortênsio contra a filosofia. (N. do T.)
60 SANTO AGOSTINHO
5
Perante a simplicidade da Bíblia
6
Seduzido pelo maniqueísmo
10. Caí assim nas mãos de homens efeito, as vossas criaturas espirituais
orgulhosamente extravagantes, dema são superiores às corpóreas, ainda que
siado carnais e loquazes. estas se apresentem brilhantes e se
movam no céu. Mas também não era
Havia na sua boca laços do demô
dessas primeiras criaturas que eu an
nio e um engodo, preparado com a
mistura de sílabas do vosso nome, do dava faminto e sequioso, mas sim de
Vós, de Vós, Verdade em que não há
de Nosso Senhor Jesus Cristo e do
Paráclito consolador, o Espírito Santo. “mudança nem sombra de vicissitu-
de101”.
Jamais esses nomes se lhes retira
vam dos lábios, mas eram apenas sons Naquelas bandejas serviam-me
e estrépito da língua. O seu coração es então ficções brilhantes. Já era mais
tava vazio de sinceridade. Diziam: acertado amar este Sol, verdadeiro ao
“Verdade e mais verdade!” Incessante menos para os olhos, do que estimar
mente me falavam dela, mas não exis estas falsidades, que pelos olhos ilu
tia neles! diam a inteligência. Contudo, porque
julgava que éreis Vós, alimentava-me
Exprimiam-se falsamente não só de com aqueles manjares, mas não avida
Vós, que verdadeiramente sois a Ver mente, porque não Vos saboreava na
dade, mas ainda acerca dos elementos minha boca, tal qual sois. Nem está
deste mundo, criaturas vossas. A res veis naquelas ficções vãs, que, longe de
peito destas, por amor de Vós, Pai me nutrirem, mais me debilitavam.
sumamente bom e Formosura de todas
as formosuras, tive de ultrapassar, nos A comida, em sonhos, é muitíssimo
raciocínios, aos filósofos, ainda mes semelhante à comida dos que estão
mo aos que falam com exatidão. acordados. Contudo, os que dormem
não se alimentam, porque dormem.
ó Verdade, Verdade, pela qual inti Mas aquelas coisas de nenhum modo
mamente suspiravam as fibras da mi Vos eram semelhantes, como Vós me
nha alma, ainda mesmo quando eles comunicastes depois, porque eram es
frequentemente e de muitos modos te
pectros corpóreos, falsos corpos. Mais
pronunciavam apenas com os lábios e
verdadeiros do que eles são os corpos
te liam em muitos e volumosos livros! celestes ou terrestres que vemos real
As iguarias que me apresentavam a mente com os olhos carnais. Vemo-los
mim, faminto da vossa graça, eram em como os vêem os animais e as aves, e
vez de Vós, o Sol e a Lua, lindas obras têm mais realidade do que ao imagi
vossas, mas enfim obras vossas e ná-los.
nunca Vós mesmo. Aquelas nem se
quer são as primeiras da criação. Com 101 Tg 1, 17.
62 SANTO AGOSTINHO
Do mesmo modo, essas imagens são alimento do meu espírito. Além disso,
mais reais do que as conjeturas que ainda que cantasse o “vôo de Medéia”,
formulamos acerca doutros corpos contudo, não afirmava a sua autentici
mais grandiosos e infinitos, mas que de dade, e, mesmo ao ouvi-lo cantar, não
modo nenhum existem. lhe dava crédito. Mas — ai! ai de
Destas quimeras me alimentava eu, mim! — acreditei nos erros dos
então, sem me saciar. Mas Vós, meu maniqueístas104. Por que passos ia
Amor, diante de quem desfaleço para descendo até ao profundo do inferno,
me tomar forte, não sois estes corpos trabalhando e consumindo-me com a
que vemos, mesmo que seja no céu. falta da verdade, quando eu Vos
Não sois nada daqueles seres que aí procurava!
não vemos, porque Vós os ocultastes e Meu Deus, a Vós o confesso, a Vós
não os considerais obras-primas das que de mim Vos compadecestes quan
vossas mãos. Quão longe estais, por do ainda Vos não conhecia, quando
tanto, daquelas minhas quimeras, flc- 104 O maniqueísmo espaíhou-se principalmente
ções de corpos que de nenhum modo pela Pérsia, Egito, Síria, África do Norte e Itália.
existem! Mais certas que elas são as Esta seita foi fundada por Maniqueu (ou Manés), o
qual , perseguido pelo rei e magos do seu país, a
imagens dos corpos que existem, e Pérsia, teve de refugiar-se na Mesopotâmia. Voltou
mais certas ainda que estas mesmas à pátria, onde foi esfolado e atirado às feras.
imagens são os próprios corpos que O maniqueísmo misturava as doutrinas de Zo-
roastro com o cristianismo. Eis os pontos principais
Vós não sois. Mas também não sois a da sua doutrina: Desde toda a eternidade existem
alma que é a vida dos corpos -—- esta dois princípios, o do bem e o do mal. O primeiro,
que se chama Deus, domina o reino da luz, e Ele
vida dos corpos melhor e mais real do mesmo é luz imaculada, que só pela razão e não
que os corpos —, porém sois a vida pelos sentidos se pode perceber. O segundo chama-
das almas, a Vida das vidas, que vive se Satanás, rei das trevas, e é mau quanto à sua
natureza, pois é matéria.infeccionada.
em razão de si mesma, e que não Ambos comunicam a sua substância a outros
muda, ó Vida da minha alma! seres, que são bons ou maus conforme a sua origem.
11. Onde então estavas para mim e Houve luta entre os reinos da luz e das trevas. Os
demônios arrebataram partículas de luz. Satanás
quão distante? Peregrinava longe de gerbu Adão e comunicou-lhe essas partículas, que
Vós, excluído até das bolotas dos ani seriam as almas dos homens.
Deus, para libertar a luz do cativeiro da matéria,
mais imundos, com que eu os alimen criou, por intermédio dos espíritos antagonistas dos
tava102. Quanto melhores na verdade demônios, o Sol e a Lua, os astros e a terra. Esta é
eram as fábulas dos gramáticos e poe de matéria inteiramente corrompida.
O homem compõe-se de três partes: de corpo,
tas do que aqueles enganosos laços ! oriundo do mal, de espírito, oriundo de Deus, e de
/ Com efeito, os versos, o canto e o alma insensível, cheia de maus apetites e dominada
“vôo de Medéia” são certamente mais por Satanás. Deus enviou Cristo para salvar os
homens. O Espírito Santo, menor que o Filho, tam
úteis que os cinco elementos do bém de substância puríssima, age beneficamente, ao
mundo103, coloridos de mil modos, contrário dos demônios, que só provocam calami
em razão dos cinco antros de trevas, dades. Cristo tomou um corpo aparente, e por isso a
sua morte não foi verdadeira. Maniqueu dizia-se o
que, além de não existirem, matam a enviado de Deus para completar a obra de Cristo.
quem neles acredita. Porém à poesia e Os maniqueístas acreditavam na purificação das
almas através de diversos corpos. Deviam castigar
ao verso transformo-os em delicioso o corpo e abster-se, quanto possível, da matéria.
Mas os vícios pululavam entre eles... A seita
10 2 Alusão à parábola do filho pródigo. (N. do T.) maniqueísta, para imitar o Colégio Apostólico,
103 Os cinco elementos eram: fumo, trevas, fogo, tinha à frente um chefe, seguiam-se-lhe doze minis
água e vento. Do fumo nasceram os bípedes; das tros, setenta e dois bispos, e, por fim, os diáconos e
trevas, as serpentes; do fogo, os quadrúpedes; da presbíteros. Celebravam missa sem vinho, festeja
água, os animais que nadam; e do vento, as aves. vam o domingo, Sexta-Eeira!S anta e o dia de aniver
(Santo Agostinho, De Haeresibus, cap. XLVI, sário da morte de Manés. (Cf. De Haeresibus, cap.
Opera Omnia, tomo X, 3.a edição de Veneza, 1797.) XLVI). (N. do T.)
CONFISSÕES III 63
• 7
Vencido pela ignorância e pelos maniqueístas
como sé num dia, cuja tarde fosse car facilmente pela experiência pró
declarada feriado, alguém se irritasse pria, no mesmo corpo, no mesmo dia e
por não lhe ser concedido expor ná mesma casa o qüe convém a tal
mercadorias à venda, sôb o pretexto de membro, a tais circunstâncias, a tal
que lhe fora permitido de manhã! Ou lugar õu a tais pessoas. No primeiro
como se na mesma casa alguém visse caso escandalizam-se, mas no segundo
um escravo a manusear qualquer coisa já se conformam.
que não é permitido tocar ao cópeiro, 14. Estas coisas desconhecia-as eu
ou fazer atrás duma estrebaria qual então, e hão refletia. De todos os ladòs
quer serviço proibido à mesáj e se feriam òs meus olhos, sem que as visse,
indignasse de que, sendo uma só a Declamava versos e também não me
habitação, uma só a família, hão te êrá lícito colocar um pé onde me
nham todos as mesmas atribuições em aprouvesse, mas sim conforme as
toda parte, . exigências do metro, e ainda num só
Tais são os qué se irritam por terem verso não podias meter o mesmo pé em
ouvido dizer que noütfós tempos se todas as partes. A própria arte da pro
permitia aos justos o qué agora lhes é sódia, segundo a qual recitava, nãó
vedado e que Deus, por razõés momen constava duma coisa aqui, outra ali.
tâneas, preceituou aos primeiros uma Pelo contrário, constituía um conjunto
coisa e aos vindouros outra, estando dé regras, Não reparava que a justiça,
uns é outros sujeitos à mesma injusti a que os homens retos e santos se sujei
ça. Como, se não vissem que riò mesmo taram, formava nos seüs preceitos üm
homem, no mesmo dia e na mesma todo muito mais belo e sublime. Não
casa, tal coisa convém a este rhembrõ, vária ria sua pàrte essencial, neiri dis
tal outra àquele. O qué há pouco era tribui e determina, pára as diversas
permitido já nãó o é agora, Certas coi épocás, tudo simultaneamente, más o
sas, que ántes eram lícitas e átê pres qué é próprio de cada uma delas.
critas, agora são justamènte proibidas Na minha cegueira, censurava os
e castigadas. piedosos patriarcas, que não só usa
Porventura a justiça é desigual e vam dó presente, conforme aos precei
mutável? Não. Os tempos a que ela tos e inspirações de. Deus, mas também
preside é que não correm a par, pois prefiguravam o futuro, segundo o qué
são tempos. É os homens — Cuja vida Deus lhes revelava1 °9.
sobre a terra é breve — não sabem
harmonizar pelo raciocínio as razões 109 À face da moral,há duas explicações para a
dos tempos passados e dos outros poligamia dos patriarcas: a dispensa da lei moilogâ-
mica pór parte de Deus; ou a persuasão íntima, em
povos, porque delas, não tiveram co bora errada de que procediam bem ao admitirem
nhecimento direto. Más podém verifi- aquele costume. (N. do T.)
8
A moral e os cóstumés
15. Em que tempo oü lugar será rrios110”? Por isso as devassidões
injusto qué “amemos a Deus com todo contrárias à natureza sempre e em toda
ó nosso coração, cóm toda a nòssá parte se devem detestár e punir, como
alma e com. toda a nossa mente, e que
amemos o próximo como a nós mes- "0 Mc 12,30; Mt 22, 37-39.
■CONFISSÕES III 65
ou com as desavenças, conforme o que trais-Vos indulgente para com o.s peca
lhes trouxer agrado ou moléstia. dos daqueles que os confessam e ouvis
Tudo isso sucede quando sois aban os gemidos dos cativos carregados de
donado, ó fonte de vida, único e verda ferros. Desse modo, soltais-nos dos
deiro Criador e Senhor de tudo ! Neste grilhões por nós mesmos preparados,
caso, por orgulho individual, ama-se a contanto que jamais ergamos contra
parte falsamente tomada como um Vós “os chifres duma falsa liberdade”,
todo. cobiçosos de possuir mais haveres,
É peía piedade humilde que se vai com risco de tudo perdermos prejudi
até Vós, para purificardes os nossos cialmente,. se amarmos mais o nosso
maus hábitos. Por causa dela, mos egoísmo do que a Vós, soberano Bem.
9
As imperfeições
17. Mas, a par de tantos delitos, cri mens louvam e que o vosso testemu
mes e iniqüidades, há também as nho condena, porque a aparência do
imperfeições dos que vão progredindo, ato e a disposição do que o pratica,
censurados pelos que julgam retamente bem como as circunstâncias ocultas do
segundo as normas da perfeição e lou tempo, não se correspondem plena
vadas pela esperança de proveito que mente. Mas quando subitamente orde
anunciam, assim como a verdura é nais alguma coisa imprevista e extraor
indício prometedor duma seara. dinária, posto que alguma vez a
Há certos atos que se assemelhavam tenhais proibido, e ocultais tempora
a delitos ou a maldades, e contudo não riamente a razão desse preceito, quem
são pecados, porque nem Vos ofendem duvida que a devamos cumprir, embo
a Vós, Senhor nosso, nem ao convívio ra seja contra as convenções sociais de
social. Por exemplo, quando se procu alguns indivíduos? Só é justa a socie
ra alcançar alguma coisa útil à vida e dade que Vos obedece.
aos tempos, não se sabendo se é por Felizes aqueles que sabem o. que
desejo desregrado de possuir, ou quan Vós lhes preceituastes!
do uma autoridade, legalmente estabe Tudo o que os^vossos servos prati
lecida, castiga pelo desejo de corrigir, cam se dirige ou a executar o que
duvidando-se se o pratica pelo prazer presentemente é preciso ou a significar
de fazer mal. o futuro113.
Desse modo muitas ações que aos
homens parecem reprováveis são, pelo 113 Às vezes os profetas faziam atos extraordi
nários para assinalarem fatos do futuro. Assim pro
vosso testemunho, aprovadas. Pelo cedeu Abraão ao querer- sacrificar seu filho Isaac.
contrário, há muitas ações que os ho (N. do T.)
10
Extravagâncias heréticas
18. Porque desconhecia essas ver deles, senão dar motivo a que Vos ris
dades, ria-me dos vossos santos e pro seis de mim? Pouco a pouco, insensi
fetas. Que fazia eu, quando me ria velmente, cheguei à extravagância de
CONFISSÕES III 67
crer que um figo, ao ser colhido, chora ções, exalaria anjos e até partículas de
va, juntamente com a mãe, a figueira, Deus!
lágrimas de leite! Mas se algum Essas partículas do soberano e ver
“santo11 4” comesse o figOj criminosa dadeiro Deus ficavam presas no fruto,
mente colhido não por ele mas por a não ser que fossem libertadas pelos
outrem, misturando-o nas suas entra dentes e estômago dum Eleito. Pobre
nhas, arrotando e gemendo entre ora- de mim! Julgava que aos frutos da
terra sè devia mais piedade do que aos
114 A palavra “santo” neste caso significa todo
homens para quem o solo os produz.
aquele que cumpria exatamente os preceitos de Pois se algum esfomeado, que não
Maniqueu. De duas classes de fiéis se compunha a fosse maniqueísta, me pedisse de
Igreja Maniqueísta: de “ouvintes” (auditores) e de
eleitos. Estes formavam a hierarquia sacerdotal. (N. comer, o dar-lhe umas migalhas quase
do T.) me parecia merecer a pena capital.
11
O sonho de Mônica
19. Mas Vós, lâ do alto, estendestes a minha perdição, mandou-a sossegar,
mão e arrancastes a minha alma dessa aconselhando-a a que atendesse e visse
voragem tenebrosa, enquanto minha que onde ela se encontrava lá estaria
mãe, vossa fiel serva, .junto de Vós eu também. Apenas olhou, viu-me
chorava por mim, mais do que as ou junto de si, de pé, na mesma régua.
tras mães choram sobre os cadáveres Donde poderia vir tudo isto, se os
dos filhos. Ê que ela, com o espírito de vossos ouvidos se não inclinassem
fé com que a dotastes, via a morte da sobre o seu coração? ó bondosa
minha alma. Vós, Senhor, escutastes Onipotência que olhais por cada um de
seus rogos. Vós a ouvistes. Não des nós como se dum só cuidásseis, velan
prezastes as lágrimas que, brotando- do por todos como por cada um!
lhe dos olhos, regavam a terra por toda 20. Como explicar o fato seguinte?
parte em que orava. Narrando-me esta visão, esforcei-me
Sim, vós a ouvistes. por interpretá-la de modo que ela não
Com efeito, donde podia vir aquele desesperasse de vir a ser o que eu era,
sonho com que de tal modo a conso isto é, maniqueísta. Declarou-me ime
lastes que condescendeu. em viver co diatamente, sem a mínima hesitação:
migo e assentar-se, em casa, à mesma “Não, não me foi dito: ‘onde ele está,
mesa? Durante um certo tempo recu aí estarás tu’, mas sim: ‘onde tu estás,
sou a minha morada, porque aborrecia aí estará ele também’ ”.
e detestava as blasfêmias do meu erro. Senhor, quanto me posso lembrar,
Nesse sonho viu-se de pé sobre uma confesso-Vos o que muitas vezes tenho
régua de madeira. Um jovem airoso e dito: mais do que o próprio sonho,
alegre veio ao seu encontro a sorrir- abalou-me então àquela vossa resposta
lhe, enquanto ela se conservava triste e dada por intermédio da solicitude de
amargurada. Perguntando-lhe ele as minha mãe. Esta não se perturbou com
causas do acabrunhamento e das lágri aquela interpretação falsa, mas tão
mas cotidianas — não para saber, mas prontamente viu o que devia ver, e o
para instruir, como é costume —, e que eu, na verdade, não vira, antes que
respondendo-lhe ela que chorava a ela o dissesse.
6S SANTO AGOSTINHO
Por meio deste sonho, foi anunciada e sóbria como Vós a quereis—, já,
com antecedência, a esta piedosa mu certamente, mais alegre pela esperan-
lher, para lenitivo da sua aflição pre . ça, mas não menos remissa em prantos
sente, uma alegria que só devia dar-se e gemidos, não se cansava de Vos fazer
muito tempo depois. queixa de mim, durante as horas em
Seguiram-se, efetivamente, quase que orava. “As suas preces chegaram à
nove anos mais, em que, tentando mui vossa presença11 5”. Contudo, deixá-
tas vezes levantar-me, caía mais grave veis-me ainçja revolver e envolver na
mente e me revolvia nesse lodo pro quela escuridão.
fundo e nas trevas da mentira.
Entretanto, aquela viúva casta, piedosa n 5 5/82, 3.
12
Teu filho não perecerá!
21. Nessa mesma ocasião destes-me xe-o ficar onde está; limite-se a rezar
outra resposta de que ainda me lem por ele a Deus; pela leitura ele mesmo
bro. Como estou com pressa de Vos reconhecerá o erro e quão grande é a
confessar o que é de mais urgência, sua impiedade”.
deixo de referir algumas coisas, não Ao mesmo tempo contou que tam
falando já de muitas outras de que não bém ele, em criança, tinha sido entre
me recordo. Destes-me, pois, outra res gue aos maniqueístas pela mãe, sedu
posta, por meio de certo bispo116, zida pelo erro; que não só lera, mas
ministro vosso que crescera à sombra copiara também quase todos os seus
do santuário, e muito douto nos vossos livros; que, sem qualquer controvérsia
livros. e §em que ninguém procurasse conven
Pedira-lhe minha mae que se dig cê-lo, chegara à conclusão de que tinha
nasse falar comigo, refutar-me os de abandonar aquela seita, e que por
erros, afastar-me do mal, ensinár-me o isso a deixara.
bem. Costumava fazer isto mesmo Depois de assim falar, não querendo
com todos os que achava dispostos. ela sossegar e instando com mais súpli
Recusou-se, porém, sem dúvida por cas e mais copiosas lágrimas, para que
prudência, como depois vim a perce me visse e discutisse comigo, disse-lhe
ber. Respondeu que eu era ainda indó o bispo, já um pouco enfadado: “Vai
cil, por me encontrar enfatuado com a em paz e continua a viver assim por
novidade daquela heresia e por ter já que é impossível que pereça o filhei de
embaraçado, com certas objeções fá- tantas lágrimas 1”
pejs, a muitos ignorantes, como ela lhe Muitas vezes recordava ela, mais
acabava de dizer, E acrescentou: ç‘Dei- tarde, nas suas conversas comigo, que
11 6 Provavelmente o bispo de Cartago, cujo nome recebera aquelas palavras como vindas
é desconhecido. (N. do T.) do céu.
LIVRO IV
O PROFESSOR
2
Pela estrada larga. . .
2. Ensinava por aqueles anos retóri lar com muito fumo esta minha boa fé,
ca; e, vencido pela cobiça, vendia esta que eu, no’ ensino, mostrava aos aman
vitoriosa verbosidade. Contudo, como tes da vaidade, indagadores da menti
sabeis, Senhor, preferia ter bons discí ra. Nisso era-lhes companheiro.
pulos, dos que se chamam “bons”, e, Por esses anos tinha em minha com
com simplicidade, ensinava-lhes artifí panhia uma mulher que não havia sido
cios, para deles usarem não contra a reconhecida em matrimônio o que se
vida dum inocente, mas em proveito, chama legítima, e que fora procurada
por vezes, da vida dum criminoso. E por um inquieto ardor, falho de pru
Vós, meu Deus, vistes de longe resva dência. Mas era só uma, e guardava-
lar num caminho escorregadio e cinti- lhe a fidelidade do leito. Com meu
74 SANTO AGOSTINHO
3
A sedução da astrologia
4. Não desistia, por isso, total truir o efeito salutar deste conselho,
mente, de consultar os embusteiros, a quando dizem: “A causa inevitável de
que chamam matemáticos120, por me pecares vem-te dos céus”. Também
parecer que não sacrificavam nem diri afirmam: “Foi Vênus ou Saturno ou
giam preces a nenhum espírito para Marte quem praticou esta ação”. Evi
adivinhar o futuro: ação que, conse dentemente, para, que o homem, carne,
quentemente, repele e condena a pieda sangue e orgulhosa podridão,-se tenha
de cristã e verdadeira. Bom é, portan por irresponsável e atribua toda a
to, confessar-se o homem a Vós, culpa ao Criador e Ordenador do céu e
Senhor, e dizer-Vos: “Compadecei- dos astros. E este quem é senão Vós,
Vos de mim, curai a minha alma por nosso Deus, suavidade e origem da jus
que pequei contra Vós1 21 ”. Porém não tiça que haveis de pagar “a cada um
deve abusar da vossa indulgência para segundo as suas obras1 23” e “não des
se dar permissão de pecar. Deve antes prezais o coração contrito e humilha
lembrar-se da palavra do Senhor: do124”? |
“Eis-te curado; não peques mais, para 5. Ora, havia, nesse tempo,j um
que te não aconteça algo pior1 22”. homem sagaz, peritíssimo e nobilís-
Ora, esses astrólogos procuram des- simo na arte da medicina. Foi este
quem, por sua própria mão, me colo-
120 Sinônimo de astrólogos. (N. do T.)
121 5/40,5. 123 Mt 16,27.
122 Jo5, 14. 124 5/50, 19. !
CONFISSÕES IV 75
cou na cabeça doentia a coroa, o prê livre arbítrio. Para que mais confiada-
mio do concurso. Colocou-ma como mente me acredites, repara que quem
procônsul, não como médico, pois só to diz sou eu, que estudei astrologia
Vós, “que resistis aos soberbos e dais com tanto ardor como quem dela
graça aos humildes1 2 5”, curais desta somente queria viver1 2 7.”
doença. Mas, ainda que não fosse mais Perguntei-lhe então o motivo por
que pela mão daquele velho, abando que saíam certos tantos presságios.
nastes-me ou cessastes de propor Respondeu-me como pôde, que era
cionar remédios à minha alma? pela força do acaso, espalhado por
Tendo mais familiaridade com ele, toda parte na natureza. Se alguém,
estava atenta e assiduamente suspenso dizia ele, consulta casualmente as pá
das suas conversas, que, sem atavios ginas de qualquer poeta, que de propó
de palavras, eram, pela viveza do sito cante um assunto inteiramente
pensamento, agradáveis e solenes. indiferente, depara muitas vezes com
Logo que, por conversa, chegou ao um verso admiravelmente adaptável à
conhecimento de que me tinha dado à sua preocupação. Não é para admirar
leitura dos livros dos astrólogos, ad que, em virtude de algum instinto supe
moestou-me, com paternal benevo rior, soe, na alma humana, incons
lência, a que os rejeitasse e, em tal qui ciente do que em si se passa, alguma
mera, não despendesse cuidado e palavra que se harmonize, não por
trabalho que me seriam necessários arte, mas por acaso, com os gestos e
para assuntos de utilidade. fatos do investigador.
6. Foi isso o que, daquele médico,
Acrescentou que se tinha entregado
também a este estudo, a ponto de, nos ou antes, por meio dele, me fizestes
aprender. Pintastes em minha memória
seus primeiros anos, ter tido o desejo
o que mais tarde devia procurar por
de o adotar como profissão para man
mim mesmo. Mas, por então, nem ele
ter a vida. Já compreendia Hipócra-
nem o meu queridíssimo Nebrídio,
126*, e, assim, poderia também
tes125
entender aqueles livros. Contudo, jovem tão bom e tão casto, que mofava
de toda essa arte de adivinhar, me
abandonou-os, para seguir a medicina, puderam persuadir a que a rejeitasse;
só pelo motivo de ter descoberto a sua porque, mais do que eles, movia-me a
falsidade absoluta. Como homem autoridade dos seus autores. Também
sério, não queria ganhar o pão a enga não tinha ainda encontrado a prova
nar os outros. “Mas tu”, disse-me ele, evidente, que procurava, por onde
“tens a retórica para te manteres na pudesse ver, sem ambiguidade, que os
sociedade. Segues estas mentiras não presságios dos astrólogos consultados
por necessidade, mas por gosto e de saíam certos por acaso ou sorte, e não
125 IPdr5,5-Tg. 4,6. pela arte da observação dos astros.
126 O maior médico da antiguidade, nascido na
ilha de Cós, na Grécia, pelo ano de 460 a.C. (N. do 127 O médico chamava-se Vindiciano (cf. Carta
T.) 138, adMarcellinum). (N. do T.)
76 SANTO AGOSTINHO
4
A perda dum amigo
7. Por aqueles anos, no tempo em Lutando ele com febre, jazeu por
que começava a ensinar no município muito tempo, sem acordo, banhado em
onde nasci, travei relações com um mortal suor. Sendo o caso desespe
amigo que, por ser meu companheiro rado, batizaram-no, sem elé o saber.
nos estudos, por ter a minha idade, e Não me importei com isto, persuadido
estar, como eu, na flor da juventude, de que o seu espírito reteria antes o que
me veio a ser muito querido. Menino, de mim recebera que a cerimônia feita
havia crescido comigo, tínhamos anda sobre o corpo inanimado. Mas sucedeu
do juntos na escola e juntos jogado inteiramente o contrário. Recobrou
também. Mas, então, ainda não era ânimo e melhorou. Imediatamente,
amigo íntimo, nem mesmo, mais tarde, apenas pude falar com elé — o que se
a nossa amizade foi verdadeira. Com realizou logo que ele também pôde, de
efeito, só há verdadeira amizade quan tal maneira dependíamos um do outro
do sois Vós quem enlaça os que Vos que não me afastava do seu lado —,
estão unidos “pela caridade difundida tentei pôr a ridículo, na sua presença, o
em nóssos corações pelo Espírito batismo que recebera com privação do
Santo que nos foi dado128”. Contudo, entendimento e dos sentidos. Mas já
era-me sumamente doce esta amizade lhe tinham dito que o havia recebido.
aquecida ao calor de idênticos estudos. Olhou-me, então, com horror, como a
Da verdadeira fé, que ele, na adoles inimigo. Com incrível e brusca liberda
cência, já não conservava íntima nem de, avisou-me que, se queria continuar
profundamente, tinha-o arrastado para a ser seu amigo, acabasse com tais
as minhas quimeras supersticiosas e modos de falar. Estupefato e pertur
funestas, que faziam derramar lágri bado, reprimi toda a emoção, espe
mas a minha mãe. Quanto a idéias, já rando que convalescesse e recuperasse
este homem andava comigo errante. as forças da saúde, para assim poder
Minha alma já não podia passar sem tratar com ele o que quisesse. Mas,
ele. Mas eis que, indo no encalço dos arrancado à minha louca amizade, a
escravos fugitivos, Vós, ó Deus de vin fim de consolar a minha alma e se con
gança, que sóis juntamente fonte de servar junto de Vós, poucos dias
misericórdia e nos converteis por depois, estando eu ausente, recai .na.
modos admiráveis, eis que o levaste febre e expira.
desta vida, quando apenas se tinha 9. Com tal dor, entenebreceu-se-me
passado um ano sobre esta amizade, o coração. Tudo> o que via era morte.
para mim mais doce que todas as sua- A pátria era para mim um exílio, e a
vidades da minha vida. casa paterna, um estranho tormento.
8. Que homem haverá, um só que Tudo o que com. ele comunicava!, sem
seja, que possa enumerar os vossos ele convertia-se-me em enorme martí
louvores, ainda dos que só em si expe rio. Os meus olhos indagavam-nò por
rimentou? Oh ! o que não fizestes Vós, toda parte, e não me era restituído.
então, ó meu Deus! Como é impene Tudo me aborrecia, porque nada o
trável o abismo dos vossos juízos! continha e ninguém me avisava: “ali
vem ele!”, como quanÓo voltava, ao
128 Rom 5, 5. encontrar-se ausente. Tinha-me tsrans-
CONFISSÕES IV 77
5
O reconforto das lágrimas
10. Agora, Senhor, já tudo passou e aí doçura, pela esperança que temos de
o tempo aliviou a minha ferida. Pode nos atenderdes? Na verdade, isto suce
rei aproximar da vossa boca o ouvido de na oração, porque esta encerra a
do coração, para ouvir de Vós, que ânsia de chegar até Vós.
sois a Verdade, o motivo por que o Mas ter-se-á dado o mesmo caso
choro é doce aos desgraçados? Ainda com a dor do objeto perdido e a tris
que Vos acheis presente em toda parte, teza que então me cobriam? Já não
repelistes para longe de Vós a nossa esperava que o meu amigo revivesse
miséria? Permaneceis também em Vós nem o suplicava com lágrimas. Só me
mesmo, quando somos revolvidos condoía e chorava, porque era infeliz e
pelos acontecimentos? Se não chorar tinha perdido a minha alegria. Sucede
mos a vossos ouvidos, nada restará da ría isto porque o pranto — qiie de si é
nossa esperança. Donde provém o amargo — nos deleita quando nos in
suave fruto que se colhe da amargura vade o fastio dos prazeres que antes
da vida, dos gemidos, dos prantos, dos gozávamos, andando nós aborrecidos
suspiros, das queixas? Encontraremos com eles?
6
Violência da dor
11. Mas para que falar de tudo isso, muito amargamente e descansava na
se agora não é o tempo de investigar, amargura. Oh ! era desgraçado ! Toda
mas de me confessar a Vós? Era via, tinha em maior apreço esta mise
desgraçado, e desgraçada é toda alma rável vida que aquele amigo, pois, se
presa pelo amor às coisas mortais. bem que desejasse mudar de vida, pre
Despedaça-se quando as perde, e então feria, contudo, perdê-lo a ele do que a
sente a miséria que a toma miserável, ela. Não sei se querería morrer por ele,
ainda antes de as perder1 31. como se conta — se não é ficção — de
Eis o que era nesse tempo: chorava Orestes e Pílades131
132, que juntamerite
131 O filósofo dinamarquês Sõren Kierkegaard, no 132 Ficaram célebres na história da Antiguidade as
seu livro O Desespero Humano, viu bem esta tragé amizades de Aquiles e Pâtroclo (Cf. Ilíada, IX ss.),
dia do pecado. O homem está no centro da luta de de Orestes e Pílades (Cícero, Da Amizade, VII), de
duas forças antagônicas.Dois pesos o vergam.(N. doT.) Niso e Euríalo (Eneida, IX). (N. do T.)
78 SANTO AGOSTINHO
7
Deixa Tagaste
12. Oh ! loucura que não sabe amar sava sobre mim o grande fardo da
os homens humahamente! Oh! que desgraça.
louco o homem que sofre, sem confor Sabia, ó Senhor, que a devia erguer
midade, os reveses humanos! Assim para Vós a fim de ser curada, mas não
era eu então. Por isso, inquietava-me, queria nem tinha forças, tanto mais
suspirava, chorava, perturbava-me sem que, ao pensar em Vós, não me pare-
descanso nem circunspecção. cíeis solidamente firme. O meu Deus
Trazia a alma despedaçada a escor não éreis Vós, mas um fantasma irreal
rer sangue: repugnava-lhe ser por mim e o erro. Se ali tentava colocá-la, para
conduzida, e eu não encontrava lugar descansar, deslizava pelo vácuo e ruía
onde a depusesse. Não descansava nos sobre mim, continuando eu a* ser um
bosques amenos, nem nos jogos e cân lugar de infelicidade, onde não podia
ticos, nem em lugares . suavemente permanecer e donde não podia afas-
perfumados, nem em banquetes fausto- tar-me. |
sos, nem no prazer da alcova e do Para onde o meu coração fugidia do
leito, nem finalmente nos livros e ver meu coração? Para onde fugiría de
sos. Tudo me horrorizava, até a pró mim mesmo? Para onde me não segui
pria luz. Tudo o que não era o que ele ría? Por isso fugi da pátria. Os olhos
era tinha por mau e fastidioso, exceto procurariam menos esse amigo la onde
os gemidos e lágrimas, pois só nestas o não costumavam ver. Da cidade de
encontrava algum repouso. Mas ape Tagaste vim para Cartago1 3 5.
nas de lá arrancava a minha alma, pe- 13 5 Em 376. (N. do T.)
CONFISSÕES IV 79
8
O tempo diminui a dor
13. O tempo não descansa, nem bula não morria em mim, ainda que
rola ociosamente pelos sentidos: pois morresse algum dos meus amigos.
produz na alma efeitos admiráveis. O Havia neles outros prazeres que me
tempo vinha e passava, dia após dia. seduziam ainda o coração: conversar e
Vindo e passando, inspirava-me novas rir, prestar obséquios com amabilidade
esperanças e novas recordações. Pouco uns aos outros, ler em comum livros
a pouco, reconfortava-me nos antigos deleitosos, gracejar, honrar-se mutua
prazeres, a que ia cedendo a minha mente, discordar de tempos a tempos,
dor. Não se sucediam, é certo, novas
dores, mas fontes de novas dores. Mas sem ódio, como cada um consigo
por que me penetrava tão facilmente e mesmo, e, por meio desta discórdia
até ao íntimo aquela dor, senão porque raríssima, afirmar a contínua harmo
derramei na areia a minha alma, nia, ensinar ou aprender reciproca
amando um mortal como se ele não mente qualquer coisa, ter saudades dos
houvesse de morrer? ausentes e receber com alegria os
Confortavam-me e alegravam-me recém-vindos. Estes e semelhantes si
sobretudo as consolações doutros anfí- nais, procedendo do coração dos que
gos, com os quais amava o que amava se amam e dos que pagam amor com
em vez de Vós, ou seja, a extensa fábu amor, manifestam-se no rosto, na lín
la e a longa mentira a cujo contato im gua, nos olhos e em mil gestos cheios
puro se corrompia o nosso espírito le de prazer, como se fossem acendalhas;
vado da comichão de ouvir o que lhe inflamam-se os corações e de muitos
lisonjeava as paixões. Porém, esta fá destes se vem a formar um só.
9
A verdadeira amizade
14. Ê isto o que se ama nos amigos. amor de Vós. Só não perde nenhum
De tal maneira se amam que a cons amigo aquele a quem todos são queri
ciência humana se julga por culpada, dos n’Aquele que nunca perdemos. E
se não ama a quem lhe paga amor com quem é Esse, senão o nosso Deus, o
amor, ou se não paga com amor a Deus que criou o céu e a terra e os
quem primeiro a amou, só procurando enche porque, enchendo-os, os criou?
na pessoa do amigo os sinais exteriores Ninguém Vos perde, a não ser quem
da benevolência. Daqui, esse luto Vos abandona; e, se Vos deixa, para
quando alguém morre, as trevas de onçie vai, para onde foge, senão de Vós
dores, o coração umedecido pela mu manso, para Vós irado? Onde é que
dança da doçura em angústia e a morte não encontra, no seu castigo, a vossa
dos vivos pela perda da vida dos lei? “A vossa lei é a verdade”, e “Vós a
mortos. mesma verdade1 3 6”.
Feliz o que Vos ama, feliz o que
ama o amigo e Vós, e o inimigo por 136 Sl 118, 142.
80 SANTO. AGOSTINHO
10
Insatisfação nas criaturas1 3 7
15. Deus das virtudes, convertei- versas se completam por meio de si
nos, mostrai-nos a vossa face, e sere nais sonoros. Não existiríam na sua
mos salvos. Para qualquer parte que se totalidade se cada palavra, depois de
volte a alma humana, é à dor que se emitidas as sílabas., se não extinguisse,
agarra, se não se fixa em Vós, ainda para outra lhe suceder.
mesmo que se agarre às belezas exis Que minha alma Vos louve por tudo
tentes fora de Vós e de si mesma. Estas isso, ó meu Deus, Criador de todas as
nada teriam de belo, se não proviessem coisas. Que não se agarre a elas pelo
de Vós. Nascem e morrem. Nascendo, visco do amor que entra pelos sentidos
começam a existir; crescem para se do corpo. Também as coisas cami
aperfeiçoarem; e, quando perfeitas, nham para não existirem, e dilaceram
envelhecem e morrem. Nem tudo enve
lhece, mas tudo morre. Por isso, os a alma com desejos pestilenciais, por-
seres, quando nascem e se esforçam qtle ela quer existir e gosta de descan
sar no que ama. Mas não tem onde,
por existir, quanto mais depressa cres
cem para existir tanto mais se apres porque ás coisas não são estáveis:
sam a não existir. Tal é a sua condi fogem. Quem as pode seguir com a
ção. Só isso lhes destes, porque são sensibilidade? Quem as pode alcançar
partes de coisas que não existem simul mesmo quando presentes? A sensibili
taneamente, e que, desaparecendo e dade é vagarosa porque é sensibili
sucedendo-se, perfazem juntas um todo dade. Tal é a sua condição. É sufi
de que são partes. É assim que as con- ciente para aquilo para que foi criada;
mas não o é para reter as coisas que
13 7 Capítulo trágico è genial! Os seres correm
velozmente para o seu termo: “O que nasceu é pre transitam dum principio devido para
ciso que ceda o lugar ao que há de nascer. E toda um fim que lhes é devido, porque, no
esta ordem de seres transeuntes decorre à maneira
dum rio”. (Santo Agostinho, Comentários ao Sl 65, vosso Verbo, que as criou, ouvem estas
ll.)(N.doT.) palavras: “Daqui até ali”.
11
Eis a paz !. . .
16. Não sejas vã, ó minha alma, o Verbo de Deus. Fixa aqui, ó alma, a
nem ensurdeças o ouvido do coração tua mansão. Retribui-lhe tudo o que
com o tumulto da tua vaidade. Ouve dele alcançaste, já que estás cansada
também: o mesmo Verbo clama que de tantos enganos.
voltes. O lugar do descanso impertur Entrega à Verdade tudo o que tens
bável está onde o Amor não é abando recebido da Verdade, e não só não per
nado, a não ser que o Amor nos aban derás nadá, mas ainda a tua podridão
done primeiro. Eis como estas coisas reflorescerá, as tuas fraquezas serão
passam, para outras lhes sucederem, e curadas, as tuas frouxidões serão refor
assim se formar de todas as suas partes madas, rejuvenescidas e estreitamente
este mundo, cá embaixo. “Afasto-me unidas a ti, sem te colocarem na ladei
eu, porventura, para outro lugar?”, diz ra por onde descem, mas ficando cohti-
CONFISSÕES IV 81
go e perm anecendo junto do Deus sem tasse. Oraj tu ouves pelos mesmos sen
pre estável e eterno. tidos carnais o que pronunciamos, e
17. Por que é que tu, perversa, se certamente não queres que as sílabas
gues a tua concupiscência? Que ela te parem, mas desejas que voem para ou
siga a ti, quando retrocederes. O que tras lhes sucederem, para assim ouvi
por ela sentes constitui partes^ e tu res o conjunto. Do mesmo modo acon
tece com as partes que formam um
ignoras o todo formado por essas par todo sem que haja simultaneidade nas
tes que ainda te deleitam. Mas se a partes de que consta o todo. Deleita
sensibilidade do teu corpo fosse apta mais o todo uno, quando pode ser per
para receber o todo — e se na parte do cebido, do que cada uma das partes.
todo não tivesses recebido, para teu Mas quanto melhor que estas coisas é
castigo, a justa limitação -—, quererias Aquele que as fez todas, o nosso Deus,
que passasse o que presentemente exis que não passa porque nada Lhe suce
te, para que o conjunto mais te delei de!
12
O amor em Deus
Fugiu dos nossos olhos para que do sereis duros de coração?1 43.” Será
entremos no coração e aí O encontre possível que, depois da descida da
mos. Sim, separou-se de nós, com relu vida, não queirais subir e viver? Mas
tância, mas ei-Lo aqui. Não quis estar para onde subis quando vos levantais e
conosco muito tempo, mas não nos “abris a vossa boca contra o céu?1 4 4”.
abandonou. Arrancou-se donde nunca Descei para subirdes, para subirdes até
se retirou, porque “o mundo foi por Deus, pois precipitastes-vos pensando
Ele criado1 41 ”, e “estava neste mundo elevar-vos contra Deus.
Alma, dize-lhes isto para que cho
e veio a este mundo salvar os pecado rem neste vale de pranto, e, assim, os
res1 42”. arrebates contigo para Deus, pois é o
A Ele se confessa minha alma, a séu Espírito que te inspira estas pala
Ele, seu Médico, pois contra Ele vras, se as disseres, ardendo no fogo da
pecou. “Filhos dos homens, até quan- caridade.
1 41 Jo 1, 10. 143 5/4,3.
1 42 1 Tim 1, 15. i 44 5/72,9.
13
O que é o belo?
20. Por esse tempo ignorava estas proveniente da união das suas partes
verdades e amava as belezas terrenas. — o todo — e a resultante da sua apta
Caminhava para o abismo e dizia a acomodação a alguma coisa, como,
meus amigos: “Amamos nós alguma por exemplo, a parte dum corpo ao seu
coisa que não seja o belo? Que é o todo, ou o calçado ao pé, e outras
belo, por conseguinte? Que é a beleza? semelhantes. Essas considerações bor
Que é que nos atrai e afeiçoa aos obje bulhavam no meu espírito desde o
tos que amamos? Se não houvesse fundo do coração. Escrevi, por isso, os
neles certo omato e formosura, não tratados De Pulchro et Aptoy 4 6, creio
nos atrairíam1 4 5”. que em dois ou três livros. Vós o
Eu notara e via que nos mesmos sabeis, meu Deus. Eu já me esqueci. Jâ
corpos se devia distinguir a beleza os não possuo. Desapareceram-me,
145 O Hiponense chegara à conclusão de que só não sei como.
amamos o que é belo. Assim, relaciona vitalmente a
beleza e o amor, num amplexo de dependência 1 4 6 Do Belo e do Conveniente — o primeiro livro
como num estreitamento de perfume e seiva na rosa. de Santo Agostinho, escrito em 380. Perdeu-se. (N.
(N. do T.) do T.)
14
Homenagem a Hiério
21. Que motivo, Senhor e Deus cia e por algumas palavras que, ao
meu, me levou a dedicar este tratado a ouvi-las repetir, me agradaram. Era-
Hiério, orador de Roma? Não o me simpático sobretudo por agradar
conhecia pessoalmente. Apenas o esti aos outros e todos o cumularem de
mava pela brilhante reputação de ciên louvores. Admiravam-se de que um
CONFISSÕES IV 83
15
O problema do belo e do mal
errante”, ainda não me voltava para vinte e sete anos, quando escrevi aque
Vós. Vagueando, caminhava por qui le tratado revolvendo no pensamento
meras que não existem nem em Vós, estas imaginações puramente materiais
nem em mim, nem nos corpos. Não que faziam ruído aos ouvidos do meu
são criações da vossa verdade, mas coração. Voltava-os, ó doce Verdade,
puras ficções que o meu orgulho for para a vossa melodia interior, quando
mava segundo os corpos. Com inepta meditava no “Belo e no Conveniente”.
tagarelice, perguntava aos pequeninos, Desejando estar na vossa presença,
fiéis vossos e meus concidadãos, de ouvir-Vos e alegrar-me intensamente
quem inconscientemente andava exila com a “voz do Esposo1 5 5”, não o
do: “Por que razão vagueia a alma, podia porque os rumorçs do erro arras
criada por Deus?” E não tolerava que tavam-me para fora e o peso da sober
me ripostassem: “E então, por que
ba precipitava-me no abismo. “Não
vagueia Deus?” Antes queria defender
concedíeis ao meu ouvido o gozo e a
que a vossa substância imutável era
coagida a andar errante do que confes alegria”; e os meus ossos, que não ti
sar que a minha, mudâvel, se tivesse nham sido “humilhados”, “não exulta
desencaminhado livremente, ou va vam”1 5 6.
gueasse por castigo. 1 5 5 Jo 3, 29,
27. Contava talvez vinte e seis ou i 5 6 SZ50, 10.
16
As dez categorias de Aristóteles
28. Que importava ter lido e com As Dez Categorias pareciam falar-
preendido, sozinho, pelos.vinte anos, a me claramente da substância: o
obra de Aristóteles, chamada As dez homem, por exemplo; do que nela se
Categorias' 5 7, que me tinha vindo às contém como a figura do homem; a
mãos? estatura, quantos pés mede; o paren
Quando um retórico de Cartago, tesco, de quem é irmão; onde se acha;
meu professor, e outros que se tinham quando nasceu; se está de pé ou senta
por doutos a citavam com palavras a do, calçado ou armado; se faz alguma
estalarem de soberba, ficava suspenso, coisa; se padece algo; e, enfim, toda a
à espera de qualquer coisa sublime e infinidade de coisas que se encontram
divina. Conversando sobre este assun nestes nove gêneros de que citei alguns
to com alguns que confessavam tê-las exemplos ou no próprio gênero da
dificilmente entendido, apesar de mes substância1 58.
tres muito eruditos lhas explicarem
com palavras e inumeráveis desenhos 29. De que me aproveitava isto, se
traçados na areia, eles nada me pude só me prejudicava? Julgando que tudo
ram ensinar que já não tivesse apren estava incluído nos dez predicamentos,
dido na simples leitura particular. 1 58 Santo Agostinho dá um exemplo para cada
uma das categorias de Aristóteles: Substância (o
157 As nossas idéias são tantas e tão diversas que, homem), Qualidade (qual é a sua figura), Relação
para evitar a obscuridade e confusão, é necessário (parentesco de quem é irmão), Quantidade ou esta
reduzi-las a certas classes universais. Estas classes tura (quantos pés mede), Ação (se faz alguma
chamam-se categorias. Os latinos deram-lhes o coisa), Paixão (se padece), Lugar (onde se acha),
nome de praedicamenta por representarem os predi Tempo (quando nasceu), Estado (se está de pé ou
cados que se atribuem ou podem atribuir-se a um sentado), Hábito (se está calçado ou armado). (N.
sujeito. (N. do T.) do T.)
86 SANTO AGOSTINHO
esforçava-me por igualmente Vos com Vós para uma região longínqua1 62”,
preender a Vós, meu Deus, que sois onde a dissipei nas paixões com mere-
admiravelmente simples e imutável, trizes1 63. De que me serviam estes
como se estivésseis subordinado à dons preciosos se usava mal deles? Só
vossa grandeza e beleza, ou como se compreendia como aquelas artes eram
fosseis um corpo, onde estes atributos difíceis de entender, ainda aos mais
se radicavam. Vós, porém, sois a vossa estudiosos e inteligentes, quando me
mesma grandeza e beleza. Ora, um esforçava por lhas expor. Dentre eles,
corpo, pelo fato de ser corpo, não é o melhor era só o que menos Vagarosa
grande nem belo; continuaria a ser mente seguia a minha exposição.
corpo ainda que fosse menor e menos 31. Mas que fruto tirava daqui,
belo1 59. Era falso o que pensava de Senhor, meu Deus — Suprema Verda
Vós. Era mentira. Eram ficções da de —, se Vos concebia como um corpo
minha miséria, e não uma concreti luminoso e imenso e me considerava
zação da vossa beleza. Tínheis orde como uma parcela desse corpo? Que
nado — e assim se realizava em mim. requintada perversidade! Assim era
— que a terra me produzisse “espi eu! Não me envergonho, meu Deus, de
nhos e cardos1 60” e que eu alcançasse confessar as vossas misericórdias para
o pão à custa de trabalho. comigo e de Vos invocar, já que não
30. A mim, tão mau escravo nesse me envergonhei de proferir blasfêmias
tempo, que me aproveitou ter lido e diante dos homens, e de ladrar contra
compreendido por mim mesmo todos Vós.
os livros que pude, das artes a que cha De que me servia possuir um talento
mam liberais? Comprazia-me neles, tão ágil para aquelas ciências e ter des
sem saber donde provinha tudo o que feito, sem auxílio de nenhum mestre
encerravam de certo e verdadeiro. Es humano, o nó de tantos livros intrinca-
tava de costas voltadas para a luz e díssimos, se errava na Ciência da Reli
com a face erguida para os objetos gião, com sacrílegas e deformantes tor-
iluminados. Por isso, o rosto com que pezas? E que prejuízo sofriam os
os via iluminados não era iluminado. vossos filhos em serem menos inteli
Vós sabeis, Senhor, meu Deus, tudo gentes, se não se afastavam de Vós, e,
o que aprendi, sem dificuldade e sem se se iam cobrindo de penas no ninho
mestre, acerca da eloquência, da dialé da vossa Igreja, nutrindo as asas da
tica, da geometria, da música e da caridade com o alimento sadio da fé?
matemática, porque a prontidão de Fazei, ó Senhor, nosso Deus, que
inteligência e a agudeza de instituição esperemos à sombra das vossas asas.
são dons vossos; mas nem por isso Protegei-nos e guiai-nos até quando
Vo-los oferecia em sacrifício. E assim, atingirem os cabelos brancos. A nossa
longe de me serem úteis, causavam-me firmeza só é firmeza quando Vós nela
ainda mais dano, porque insisti em estais; mas quando depende de pós,
apoderar-me da melhor parte da minha então é enfermidade. O nosso bem vive
herança “e não guardei em Vós a sempre em Vós; e somos perverisos
minha força1 61”, mas “afastei-me de porque nos apartamos de Vós. j
Fazei, ó Senhor, que voltemos’ já
159 Na Cidade de Deus, L. XXII, cap. 19, Santo
Agostinho define a beleza física: “Toda a beleza do para Vós para nos não submergirmos,
corpo é a congruência de partes com uma certa sua porque o nosso bem, que sois Vós
vidade de cor”. (N. do T.)
1 60 Gên 3, 18. • 62 Lc 15, 13.
i 61 5/58,10. 5 63 Alusão à parábola do filho pródigo. (N. do T.)
CONFISSÕES IV 87
I — Primeiras desilusões
do maniqueísmo (1-7).,
II — Em Roma (8-12).
III — Em Milão. Abandono
da doutrina de Mani-
queu (13-14).
1
Lábios em prece
1. Recebei o sacrifício das Confis misericórdias para que Vos louve.
sões, por meio do ministério da minha Toda a criação entoa continuamente
língua, por Vós formada e que impelis as vossas glórias. Todo o espírito Vos
tes a confessar o vosso nome. Sarai louva, pelos seus próprios lábios, er
todos os meus ossos, e que eles cla guidos para Vós; os animais e os seres
mem: “Senhor, quem hâ semelhante a do reino mineral louvam-Vos pela
Vós?1 64”. Aquele que se dirige a Vós boca daqueles que os consideram.
de coisa nenhuma que nele se realize Assim, a nossa alma levanta-se da las-
Vos informa, porque nem o coração
fechado se esconde ao vosso olhar, sidão até Vós, apoiando-se nas vossas
nem a dureza dos homens repele a criaturas, e atira-se para Vós, que
vossa mão. Pelo contrário, àquela maravilhosamente as criastes. Aí en
amolecei-la, quando quiserdes, ou com contrará o rejuvenescimento e a verda
a misericórdia ou com o castigo. “Não deira força.
há ninguém que se furte ao vosso
*5”
calor l1 6 2 1 64 S7 34, 10.
165 Sl 18, 7. — Nas Confissões há cerca de qui
Que a minha alma Vos louve para nhentas referências ao Livro de Salmos, que Santo
que Vos ame; que confesse as vossas Agostinho sabia de memória. (N. do T.)
2
Não se foge da vista de Deus
2. Que os revoltados e os maus presença dos que divagam longe de
fujam e se escapem! Vós os vedes e Vós ! Que se convertam e que Vos pro
distinguis as suas sombras. Convivem curem, porque, da mesma forma como
com todos os seres belos, e eles são deixaram o Criador, Vós abandonais a
feios! Que prejuízo Vos causaram! criatura.
Em que ponto desonram o vosso impé Convertam-se e procurem-Vos, já
rio, que permanece íntegro e justo, que estais no seu coração, no coração
desde os céus ao profundo dos abis dos que Vos confessam, dos que se lan
mos? Para onde fugiram, quando fu çam em Vós e choram no vosso seio,
giam do vosso rosto? Ou em que lugar depois de percorrerem os caminhos da
os não encontrais? Fugiram para Vos perdição.
não verem, a Vós, que os estais vendo ! Carinhosamente lhes enxugais as lá
Mas, obsecados, depararam convosco, grimas, e tanto mais gozam com os
- porque não abandonais nada do que prantos quanto mais choram, porque
criastes. Injustamente Vos ofenderam e não é o homem, nem é a carne e o san
justamente são castigados. Subtrain gue, mas sois Vós, seu Criador, que os
do-se à vossa benignidade, encon robusteceis e consolais. Onde estava
traram a vossa justiça e caíram sob a quando Vos procurava? Vós estáveis
vossa severidade! diante.de. mim; porém eu apartava-me
Naturalmente ignoram que estais de mim. e, se nem sequer me encon
em toda parte, e que nenhum lugar Vos trava a mim mesmo, muito menos a
circunscreve, e que só Vós estais na Vós!
92 SANTO AGOSTINHO
3
Inconsistência do maniqúeísmo
inumerável1 70.” O próprio Uhigênito de, e mudar a “glória dum Deus incor-
“fez-sé nossa sabedoria, justiça e santi rupto na imagem e semelhança do
ficação1 71”. Fòi considerado como homem corruptível, na das aves, qua
üm de nós e como tal pagou tributo a drúpedes e serpentes”. Convertem a
César. Não conheceram este caminho vossa verdade em mentira, veneram e
por onde, descendo de si mesmos ao servem antes “à criatura do que ao
Salvador, podiam subir por Ele até Criador.1 72”.
Ele: 6. Conservara, porém, destes filóso
Nãó conheceram este caminho e jul- fos muitas opiniões verdadeiras, cuja
gam-se tão altos e tão cintilantes como explicação se me oferecia por meio da
as estrelas! Mas .èis que ruíram em matemática, da ordem dos tempos e
terra e o seu coração insensato entene- testemunhos palpáveis das estrelas.
breceu-se. Dizem muitas verdades Conferia tudo com as declarações de
acerca das criaturas e não buscam Manés1 73, quej acerca destes assuntos,
piedosamente a Verdade^ o Artífice da delirando, escreveu muitas obras.
criação. Por conseguinte, não O en Não me dava ele a razão dos solstí
contram; ou, se O encontram, conhe cios e dos equinócios, nem dos eclipses
cendo a Deus, não O honram como a das estrelas nem de coisa alguma que
Deus, nem lhe dão graças. Desvane- aprendera nos livros profanos. Ali era
cem-se em seus pensamentos, dizem-sé obrigado a acreditar em coisas total
sábios e atribuem a si próprios o que é mente diversas, além de não concor
vosso. Por isso desejam, corrí tão per-^ darem com as noções qué eu, por cál
versa cegueira, atribuir-Vos também as culos matemáticos e pelos próprios
suas falsidades, isto é, imputar-vos as olhos, averiguara.
suas méntiraSj a Vós, que sois a Verda-
1 72 Rom 1, 21-25.
1 70 Sl 146,5. 1 73 Também conhecido pelo nome de Maniqueu
171 1 Cor 1,30. ou Mâni. (N. do T.)
4
Feliz o que conhece a Deus !
5
O sábio ignorante
8. Mas quem pedia a esse Manés problemas e confunde umas coisas
que escrevesse sobre estes assuntos, de com outras, sofro com paciência a sua
cujo conhecimento se pode prescindir opinião. Ainda que ele não saiba a
na aprendizagem da piedade? Vós dis posição e a natureza das criaturas
sestes ao homem: “A piedade é sabe corpóreas, não vejo que isso lhe seja
doria1 7 5”. prejudicial, contanto que não creia em
Podia Manés ignorar a piedade, coisas indignas de Vós, Senhor e Cria
ainda que fosse profundamente ins dor de tudo. Todavia, ser-lhe-á funesto,
truído nestas questões. Mas, já que se julga que isso pertence à essência
desavergonhadamente ousou ensiná- doutrinai da Religião, e se ousar defen
las sem as conhecer, de modo algum der pertinazmente o que não conhece.
poderia alcançar a piedade. É vaidade Mas ainda a essa fraqueza a suporta a
mundana pavonear-nos com esses co caridade materna no berço da fé, até
nhecimentos, porém é sinal de piedade que o homém novo se transforme “em
o confessar-Vos. Afastando-se desta varão perfeito1 7 6” e o vento de qual
regra, falou Manés tanto sobre isto que quer doutrina o não possa agitar.
os verdadeiramente sábios se conven Com respeito a Manés, quem não
ceram da sua ignorância. Donde clara julgaria digna de ser detestada com
mente se pode deduzir qual fosse a sua horror a sua rematada loucura, se
competência em matérias mais obscu fosse convencido da súa falsidade
ras. Não queria ser estimado mediocre- aquele que teve a ousadia de fazer-se
mente. Por isso tentou provar que o doutor, mestre, guia e chefe dos con
Espírito que consola e enriquece os vertidos a essas doutrinas, a ponto de
vossos fiéis habitava pessoalmente eles se persuadirem de que não se
dentro dele, com toda a plenitude do guiam a qualquer homem, mas ao
seu poder. Espírito Santo?
Foi surpreendido a falar erronea Ainda, porém, não me tinha certifi
mente sobre o céu, os astros e os movi cado se 'se podiam ou não explicar,
mentos do Sol e da Lua. E, ainda que segundo a sua doutrina, as mudanças
estes erros se não relacionem com do crescimento e diminuição dos dias e
assuntos religiosos, contudo obvia das noites, a alternativa do dia e da
mente transparece ser sacrílega a sua noite e os eclipses dos astros e outros
ousadia, porque não só ensinava o que fenômenos da natureza que eu conhe
lhe era desconhecido, mas também cia pelas minhas leituras. Suposto que
proferia mentiras, com tão insensato se pudessem explicar, seria ainda in
orgulho, que não hesitava em atribuí- certo para mim se esses fenômenos se
las a uma pessoa Divina. realizavam assim ou não; mas antiepu-
9. Quando ouço que algum dos nha a autoridade de Manés à minha fé,
meus irmãos em Cristo ignora estes porque o tinha na conta de santo.
175 Jó 18, 28. 1 7 6' E/4; 13.
CONFISSÕES V 95
6
Eloquência de Fausto
10. Durante cerca de nove anos, em fato de ser dita eloquentemente, nem
que o meu pensamento errante escu como falsa, por ser expressa em lin
tava a doutrina maniqueísta, ansiosa guagem rude. Pelo contrário, não a
mente esperava a vinda de Fausto. Se devemos julgar verdadeira por ser
por acaso encontrava alguns dos se- enunciada dum modo inculto, nem
quazes de Manes, sentiam-se embara falsa por ser proposta em estilo elegan
çados com as minhas objeções acerca te.
daqueles problemas. Mas assegura A sabedoria e a ignorância são
vam-me que, quando viesse Fausto, como os alimentos úteis ou nocivos.
facilmente me resolveria numa simples Podem-nos ser apresentados com pala
conversa todas estas dificuldades, e vras polidas ou com rudeza de forma,
ainda outras mais intrincadas que lhe como os bons e maus alimentos nos
propusesse. podem ser servidos em pratos finos ou
Logo que ele chegou, notei que era grosseiros.
homem amável, aliciante ha conversa, 11. A avidez com que durante tanto
e que expunha dum modo mais agradá tempo esperei Fausto deleitava-se
vel os mesmos assuntos que os outros enfim no ardor e sentimento com que
maniqueístas costumam tratar. Mas ele discutia, nos termos apropriados e
como é que esse copeiro tão elegante, na facilidade com que lhe ocorriam as
que me servia por copos preciosos, me palavras para adornar a frase. Gostava
podia matar a sede? Já estava saciado pois de o ouvir. Louvava-o e engrande
de ouvir semelhantes teorias. Nem cia-o como muitos outros, e ainda
estas me pareciam melhores pelo fato mais do que eles. Tinha pena de não
de serem propostas em linguagem mais me ser permitido, naquela reunião de
cuidada, nem a eloquência fazia com ouvintes, propor-lhe dificuldades e
que eu as tivesse como verdadeiras, compartilhar com ele os cuidados dos
nem o considerava como sábio por ser meus problemas, conferindo familiar
de rosto esbelto e palavreado colorido. mente, escutando e respondendo às
Aqueles que mo tinham elogiado não suas palavras.
eram bons apreciadores, pois tinham- Por isso, logo que se me ofereceu
no como prudente e sábio pelo fato de oportunidade, comecei com meus ami
os deleitar com a sua eloquência. gos a entrevistá-lo, numa ocasião em
Conheci outra espécie de pessoas que não nos era indecoroso discutir.
que tinham a verdade como suspeita e Expus-lhe algumas dúvidas das que me
não se lhe queriam render, se lhes fosse preocupavam. Notei que das artes libe
proposta em estilo copioso e elegante. rais apenas sabia a gramática, e, ainda
Vós, porém, meu Deus, já me tínheis esta, de modo nada extraordinário.
ensinado de modos admiráveis e ocul Porque ele tinha lido alguns discursos
tos ! Creio o que Vós me ensinastes, de Cícero, pouquíssimos tratados de
porque é verdade, e só Vós sois o Mes Sêneca, alguns trechos de poetas e os
tre da Verdade em qualquer parte e de poucos livros da seita elegantemente
qualquer lugar que ela brilhe. Já tinha escritos em latim, e, além disso, porque
aprendido de Vós que não devemos ter se exercitava cotidianamente na orató
qualquer coisa como verdadeira pelo ria, tinha adquirido esta facilidade de
96 SANTO AGOSTINHO
falar, que o bom emprego do seu talen meu coração e a minha memória dian
to e certa graça natural tomavam mais te de Vós, que já então me trazíeis no
agradável e sedutora. segredo oculto da vossa Providência!
Senhor e Deus meu, árbitro da Já então púnheis os meus pecados
minha consciência, não é, porventura, vergonhosos diante da minha face,
verdadeiro o que Vos relato? Eis o para que os visse e detestasse!
7
O desiludido
12. Logo que transpareceu com su rada fácil. Por isso se tomou mais sim
ficiente clareza a imperícia de Fausto pático aos meus olhos, porque a
nestas ciências em que o julgava emi modéstia da alma que confessa sua
nente, comecei a desesperar da sua incapacidade é mais bela que as coisas
capacidade para me esclarecer e desfa que eu desejava aprender. Com esta
zer as dificuldades que embaraçavam sua disposição de ânimo o encontrava
meu espírito. Poderia ele perfeita- em todas as questões mais difíceis e
mente, com a ignorância daquelas sutis.
questões, possuir a verdadeira piedade, 13. Resfriado assim o ardor com
contanto que não fosse maniqueísta. que me aplicava às doutrinas dos
Os livros desta seita, na verdade, maniqueístas, desesperei ainda mais
estão recheados de intermináveis fábu dos seus restantes mestres, depois que
las, acerca do céu, dos astros, do Sol e este, tão célebre, se revelou incapaz de
da Lua. Já não esperava que me pudes resolver os numerosos problemas que
se explicar argutamente aquelas teo me embaraçayam. Comecei a tratar
rias, como eu ardentemente desejava, com ele por causa da paixão que o
comparando-as com os cálculos astro inflamava pela literatura, que eu, como
nômicos, que eu em outras partes lera, retórico, já então ensinava aos jovens
a ver se era preferível a solução que os de Cartago. Lia com ele, ou aquilo que
livros maniqueístas davam ou se, pelo ele desejava ouvir ou o que eu julgava
menos, apresentavam igual explicação. conveniente ao seu espírito. Quanto ao
Quando lhe propus essas dificuldades mais, todo o esforço que determinada-
para serem discutidas, desculpou-se mente me impusera a fim de progredir
modestamente, sem ousar tomar sobre nesta seita ruiu por completo logo que
si tal encargo. Reconhecera a sua igno conheci aquele homem, mas não de tal
rância no assunto e não se ruborizou forma que dps maniqueístas me sepa
de a confessar. Não pertencia à classe rasse radiçalmente. Com efeito, não
dos palradores que eu muitas vezes encontrando, outro caminho melhor
suportava e que, esforçando-se por me que aquele por onde desesperadamente
elucidar naqueles problemas, nada me me lançara, resolvera contentar-me
diziam. Este homem tinha coração, e, entretanto com ele, até que brilhasse
se não era reto para Vós, era ao menos outra via de preferível escolha.
cauteloso para consigo mesmo. Deste modo, aquele Fausto, que
Não era inteiramente imperito na tinha sido para muitos outros um “laço
sua imperícia, e, portanto, não quis ser mortal1 7 7”, começara involuntária e
enredado nestas disputas temerárias,
donde não teria saída alguma nem reti 1 77 Sl 17,6. 1
CONFISSÕES V 97
8
A caminho de Roma
14. Vós me impelistes a tomar a eles tanto mais infelizes quanto maior
resolução de partir para Roma e de é a sem-cerimônia com que praticam,
preferir lecionar aí o que ensinava em como lícito, aquilo que a vossa lei eter
Cartago. Não deixarei de confessar o na nunca permitirá. Julgam que o
motivo desta minha determinação, fazem sem castigo, mas são punidos
pois que em tudo isso se devem reco pela sua mesma cegueira, e sofrem
nhecer e celebrar os vossos profundís males incomparavelmente maiores que
simos segredos e a vossa misericórdia, os ocasionados aos outros. Portanto,
sempre tão vizinha de nós. esses costumes, de que eu não quis
Portanto, se resolvi dirigif-me a compartilhar quando estudante, era
Roma, não foi porque meus amigos, obrigado a suportá-los de outrem,
que me aconselhavam essa viagem, me quando professor. Por este motivo,
prometessem maiores lucros e maior desejava partir para uma cidade na
dignidade, se bem que nesse tempo qual, segundo me asseguravam os
também estas razões moviam o meu informadores, nada acontecia de seme
espírito. O motivo principal e quase lhante.
único assentava em eu ouvir dizer que Na realidade, porém, Vós, “minha
os rapazes estudavam aí mais sossega- esperança e minha herança na terra
damente, refreados por mais regrada dos vivos180”, impelíeis-me a mudar
disciplina. Não invadiam desordenada de sítio para a salvação da minha
e imprudentemente a escola de outro alma. Estendí eis o aguilhão a Cartago,
que não tinham como professor, nem para dali me arrancardes, e oferecíeis-
eram admitidos sem sua licença. Em me delícias em Roma, para me atrair
Cartago, pelo contrário, a liberdade des. Propúnheis-me estas seduções por
dos estudantes é vergonhosa e destem meio dos homens que amam esta vida
perada. Precipitam-se cinicamente de morte, dos quais uns se entregavam
pelas escolas adentro e com atitude a atos de loucura, outros me prome
quase furiosa perturbam a ordem que o tiam vaidades. Usáveis ocultamente da
professor estabeleceu como necessária sua e minha perversidade, para me
ao adiantamento dos alunos. Com uma corrigirdes os passos. Dum lado, aque
insolência incrível, cometem mil im les que perturbavam o meu sossego
propérios que deviam ser punidos, se o estavam cegos por uma raiva vergo-
costume os não patrocinasse.
Isso, porém, apenas manifesta serem 180 57114,6.
98 SANTO AGOSTINHO
9
O flagelo da doença
16. Eis que em Roma sou acolhido morremos em Adão1 81. Ainda me não
pelo flagelo da doença. Já ia descer ao tínheis perdoado pelos merecimentos
inferno, levando comigo todas as faltas de Cristo nenhuma dessas culpas, nem
que tinha cometido contra Vós, contra Ele tinha ainda apagado, com a sua
mim e contra os outros. Eram elas cruz, as inimizades que eu, pelos meus
numerosas e pesavam sobre a cadeia
do pecado original, pelo qual todos 181 1 Cor 15, 22. ,
CONFISSÕES V 99
10
Erros maniqueístas de Agostinho
desejava pensar no meu Deus, não mais justo crer que não tivésseis criado
poder formar uma idéia dele, se não nenhum mal do que acreditar que pro
lhe atribuísse um corpo, visto parecer- viesse de Vós a sua natureza tal qual
me impossível que houvesse alguma eu a imaginava. Com efeito, o mal apa
coisa que não fosse material. recia à minha ignorância não só como
20. Daqui deduzia eu a existência substância mas como substância cor-
duma certa substância do mal que pórea, já que a minha mente não podia
tinha a sua massa feia e disforme — formular a idéia senão dum corpo
ou fosse grosseira como a que chamam sutil, difundido pelo espaço.
terra ou tênue e sutil como o ar —, a Também supunha que o nosso Sal
qual eu julgava ser o espírito maligno vador e vosso Unigênito, enviado para
investindo a terra. E porque a minha nos salvar, proviesse dessa luzidíssima
piedade, como quer que ela foáse, me substância do vosso corpo. Deste
obrigava a crer que a bondade de Deus modo, em nada acreditava, referente a
não criou nenhuma natureza má, esta Ele, a não ser no que a minha louca
belecia eu duas substâncias opostas a imaginação sugeria. Julgava que tal
si mesmas, ambas infinitas: a do mal, natureza não podia nascer de Maria
mais diminuta, e a do bem, mais exten Virgem sem se ajuntar com a carne.
sa. Deste princípio pestilencial provi Supunha então que se manchava, por
nham as restantes blasfêmias. que não via a possibilidade de ela se
Com efeito, quando o meu espírito ajuntar sem se corromper. Tinha re
se esforçava por voltar à fé católica, ceio, por isso, de que Ele tivesse nasci
sentia-se repelido, porque a opinião do da carne, para não ser obrigado a
que formava da fé católica não era crê-lo por ela maculado. Agora talvez
exata. Parecia-me mais piedoso — ó os vossos fiéis se riam suave e benevo
meu Deus, a quem confessam por mim lamente de mim, se lerem estas Confis
vossas misericórdias —, parecia-me sões^33. Contudo, era este o meu
mais piedoso crer-Vos infinito, e limi estado.
tado apenas sob este aspecto pela subs
tância do mal, do que julgar-Vos limi 188 Em Jesus Cristo, as duas naturezas, divina e
humana, permanecem íntegras e inconfundíveis,
tado de todos os lados segundo a sem se misturarem, reunidas substancialmente na
forma do corpo humano. Parecia-me unidade de Pessoa Divina. (N. do T.)
21. Além disso, não estava persua Elpídio1 8 9, que falava na presença dos
dido de que se pudesse defender o que maniqueístas e disputava contra eles,
na vossa Escritura os maniqueístas propondo passagens da Sagrada Escri
atacavam. Mas, uma vez por outra, tura a que eu não podia facilmente
desejava conférir cada um destes pon resistir. A resposta deles parecia-me
tos com algum varão muito douto nos fraca. Mesmo assim, não a expunham
seus livros, para lhe tatear a opinião.
Já me tinham começado a mover, 1 8 9 Atualmente nada se conhece desse polemis
em Cartago, os discursos dum certo ta. (N. do T.)
102 SANTO AGOSTINHO
12
Fraude dos discípulos
22. Em Roma, comecei diligente com as suas ações ilícitas. Não há dú
mente a ocupar-me com a tarefa para vida de que são infames e se maculam
que tinha vindo, isto é, com o ensino longe de Vós amando os efêmeros
da retórica. Primeiramente juntei em passatempos e a recompensa de lodo
casa alguns discípulos, com os quais, e que suja as mãos quando se apanha,
por seu intermediário, principiei a ser abraçando o mundo que lhes foge e
conhecido. Mas eis que sou informado desprezando-Vos, a Vós, que permane
de que em Roma estavam em praxe al ceis etemamente, a Vós, que chamais
guns procedimentos que eu não tole de novo, a Vós, que ofereceis o perdão
rava na África. Na verdade, não me à alma humana adúltera quando esta,
chegara aos ouvidos que ali, em Roma, como pródiga, se volta para Vós.
se dessem aquelas invasões às aulas, Agora detesto, como malvados e
por adolescentes corrompidos. disformes, esses jovens, ainda que os
ame para se emendarem, para preferi
Mas logo me afirmaram que os alu rem ao dinheiro aquela mesma ciên
nos conspiram e passam em grande nú cia que aprendem e para Vos aprecia
mero dum professor para outro, a fim rem mais a Vós, Deus meu, não só
de não pagarem os mestres, faltando Verdade e abundância duma felicidade
deste modo aos compromissos e me certa, mas também Paz castíssima.
nosprezando a justiça por amor ao Mas eu, nesse tempo, não queria
dinheiro. A estes odiava-os meu cora suportá-los na sua maldade, mais por
ção, ainda que não fosse com verda interesse próprio do que por desejo, em
deiro rancor. Antipatizava talvez mais Vós motivado, de que eles se fizessem
com o que deles tinha sofrido do que bons.
13
Em Milão. Encontro com Santo Ambrósio
23. Portanto, depois que dirigiram destes mesmos amigos, embriagados
de Milão um pedido ao prefeito de pelas vaidades dos maniqueístas. Era
Roma para que aquela cidade fosse para me separar, mas tanto eles como
provida dum professor de retórica, a eu o ignorávamos. Propôs-me Símaco,
quem se concedería a licença de viajar então prefeito, um tema para discursar,
na diligência do Estado, eu próprio e, sendo eu aprovado, me enviou1 90.
solicitei esse emprego por intermédio 190 Em 384. (N. do T.)
CONFISSÕES V 103
14
O catecúmeno
24. Não me esforçava por aprender nada poder retorquir contra os ataques
o que o bispo dizia, mas só reparava dos maniqueus. Isto consegui-o eu por
no modo como ele falava. Este gosto ouvir muitíssimas vezes a interpre
frívolo da eloquência permanecera em tação de textos enigmáticos do Velho
mim, perdidas já todas as esperanças Testamento, que, tomados no sentido
de que se patenteasse ao homem o literal, rne davam a morte. Expostos
caminho para Vós. Contudo, junto assim, segundo o sentido alegórico,
com as palavras que me deleitavam, muitíssimos dos textos daqueles livros,
iam-se também infiltrando no meu já repreendia o meu desespero, que me
espírito os ensinamentos que despre levava a crer na impossibilidade de
zava. resistir àqueles que aborreciam e troça
Já os não podia discernir uns dos vam da lei e dos profetas.
outros. Enquanto abria o coração para Não obstante, não me julgava obri
receber as palavras eloquentes, entra gado a seguir logo o caminho da fé
vam também de mistura, pouco a católica, só pelo fato de ela também
pouco, as verdades que ele pregava. poder contar com doutos defensores,
Logo comecei a notar que estas se po que refutavam as objeções dos seus
diam defender. adversários com eloquência e lógica.
Já não julgava temerárias as afirma Outrossim, não me parecia condenável
ções da fé católica, que eu supunha o partido que eu abraçara, pois eram
104 SANTO AGOSTINHO
iguais as armas de defesa. Deste modo dos filósofos tiveram opiniões muito
a fé católica não me parecia vencida, mais prováveis.
mas também ainda se me não afigu Assim, duvidando de tudo, à manei
rava vencedora. ra dos Acadêmicos — como os julga a
25. Apliquei então ,as forças do opinião mais seguida —, e flutuando
espírito, para ver se dalgum modo entre todas as doutrinas, determinei
abandonar os maniqueístas, parecen
podia com argumentos decisivos con do-me que não devia, nesta crise de dú
vencer os maniqueístas da falsidade. vida, permanecer naquela seita à qual
Se a minha inteligência pudesse conce já antepunha alguns filósofos. Porém
ber uma substância espiritual, imedia recusava-me terminantemente a con
tamente se apagariam e seriam arran fiar a cura da enfermidade de minha
cadas da minha alma todas aquelas alma a esses filósofos que desconhe
invenções. Mas não podia. Contudo, ciam o nome salutar de Cristo.
quanto mais meditava, refletindo e Por isso, resolvi fazer-me catecú-
comparando as teorias acerca do meno na Igreja católica, à qual meus
mundo material e de toda a natureza pais me tinham inclinado, até vir algu
acessível aos sentidos do corpo, mais e ma certeza a elucidar-me no caminho a
mais me capacitava de que a maioria seguir.
LIVRO VI
ENTRE AMIGOS
I — Aproximação do ca
tolicismo (1-6).
II — Com os amigos: Alí-
pio e Nebrício (7-10).
III — Miragens terrenas (11-
161
1
Ariior de mãe
. 2
A obediência de Mônica
2. Assim, trazendo papas, pão e ainda aos que a faziam com sobrie
vinho puro, como em África costu dade, para que não se oferecesse oca
mava fazer, levando-os para junto das sião aos ébrios de se embriagarem e
sepulturas dos santos, foi impedida porque tais espécies de “paren-
pelo ostiário1 9 7. tais199” eram muito semelhantes à
Apenas soube que o bispo1 98 tinha superstição dos pagãos, de muito boa
proibido tal costume, tão piedosa e vontade se absteve dela. Em vez de um
submissamente se conformou, que me cabaz cheio de frutos terrestres, apren
admirei de que ela começasse antes a deu a levar aos túmulos dos mártires
reprovar o seu hábito e não a discutir um coração cheio de puríssimos dese
semelhante proibição. É que o seu espí jos. Dava aos necessitados tudo o que
rito não estava perturbado pela em podia. Assim, celebrava ali a comu
briaguez, nem o amor do vinho a inci nhão com o Corpo do Senhor, pois, à
tava ao ódio da verdade, como a imitação da sua Paixão, foram imola
muitos homens e mulheres que, ante dos e coroados os mártires.
um cântico de sobriedade, experi Mas parece-me, Senhor Deus meu
mentam a mesma náusea que os ébrios — e assim o vê o meu coração na
diante duma bebida aguada. Mas tra vossa presença —, que talvez minha
zendo o cabaz com as iguarias usuais mãe não teria cedido ao corte desse
para comer e distribuir, não bebia mais costume se outro, a quem não respei
que um pequeno copo de vinho, tempe tasse como a Ambrósio, Iho proibisse.
rado segundo o seu paladar bastante De fato, ela tinha-lhe muito amor por
sóbrio, para em nada desdizer da sua me ter salvado. E Ambrósio estimava-
dignidade. E, se havia muitas sepultu a pela solicitude tão religiosa com que
ras de mortos a honrar daquele modo, praticava fervorosamente as boas
levava sempre o mesmo copo, usando- obras e frequentava a igreja. Por isso,
o em toda parte, de tal maneira que muitas vezes, ao ver-me, irrompia em
não só já estava muito aguado, mas até louvores, felicitando-me por ter tal
bastante quente, e distribuindo-o em mãe.
pequenos tragos por todos os seus que Não imaginava ele o filho que ela
se achavam presentes, porque buscava tinha em mim: -—- um homem que
a piedade e não o prazer. duvidava de tudo aquilo e julgava
Todavia, apenas soube que aquele impossível encontrar o caminho da
ilustre pregador e bispo tão amante da vida!
piedade proibira semelhante prática, 199 Festa fúnebre pagã que, entre os romanos1, se
celebrava cada ano, de 13 a 21 de fevereiro,'em
1 9 7 Porteiro do templo e do cemitério. (N. do T.) honra dos mortos da mesma família, sobretudo dos
1 9 8 Santo Ambrósio. (N. do T.) pais. (N. do T.)
CONFISSÕES VI 111
3
O trabalho de Ambrósio
3. Eu ainda não gemia por Vós, ao a sua inteligência, não se queria ocu
rezar, para que me acudisseis, mas o par de mais nada. Lia em silêncio, para
meu espírito estava inclinado a procu- se precaver, talvez, contra a eventuali
rar-Vos, e inquieto por discutir. dade de lhe ser necessário explicar a
Ao ver o próprio Ambrósio honrado qualquer discípulo, suspenso e atento,
com tantos poderes, tinha-o na conta alguma passagem que se oferecesse
de homem feliz, segundo o mundo. Só mais obscura no livro que lia. Vinha
me parecia dura a sua vida de celibato. assim a gastar mais tempo neste traba
Não aprendera a julgar, nem experi lho e a ler menos tratados do que dese
mentara ainda a esperança que o ani jaria. Ainda que a razão mais provável
mava, nas lutas travadas contra as ten de ler em silêncio poderia ser para con
tações do seu alto cargo. Não tinha eu servar a voz, que facilmente lhe enrou-
experiência da consolação nas adversi- quecia. Mas, fosse qual fosse a inten
dades e do paladar íntimo do 'coração ção com que o fazia, só podia ser boa,
com que ele saborosamente ruminava como feita por tal homem.
o pão dos vossos gozos. Por seu turno, 4. O certo é que nenhum ensejo se
também ele não conhecia as minhas me oferecia de indagar o que desejava
agitações nem a cova onde eu perigava saber de tão santo oráculo vosso, qual
cair, pois não lhe podia perguntar, era o seu peito, senão quando lhe ouvia
como desejava, o que queria. As multi algumas breves palavras. Mas aquelas
dões dos homens de negócios, a quem minhas ânsias devorantes precisavam
ele acudia nas dificuldades, impe de encontrá-lo muito desocupado, para
diam-me de o ouvir e de lhe falar. No com ele se abrirem largamente. Jamais
pouquíssimo tempo em que não estava assim o achavam. É certo que todos os
com eles, refazia o corpo com o ali domingos o ouvia “expor fielmente ao
mento necessário, ou o espírito com a povo a palavra da verdade200”, con-
leitura. vencendo-me cada vez mais de que se
Mas, quando lia, os olhos divaga podiam desatar todos os nós das calú
vam pelas páginas e o coração penetra- nias sagazes que teciam contra os li
va-lhes o sentido, enquanto a voz e a vros divinos aqueles que me engana
língua descansavam. Nas muitas vezes vam.
em que me achei presente — porque a
ninguém era proibida a entrada, nem Logo soube também que esta verda
havia o costume de lhe anunciarem de: “o homem foi criado por Vós à
quem vinha —, sempre o via ler em vossa imagem201”, não era interpre
silêncio e nunca doutro modo. tada pelos vossos filhos espirituais —
Assentava-me e permanecia em que pela graça regenerastes na Santa
longo silêncio — quem é que ousaria Mãe Igreja — de modo a acreditarem
interrompê-lo no seu trabalho tão apli e Vos julgarem encerrado na forma de
cado? —, afastando-me finalmente. corpo humano. Eu, que nem sequer
Imaginava que, nesse curto espaço de levemente ou por enigma suspeitava do
tempo, em que, livre do bulício dos 200 2Tim2, 15.,
cuidados alheios, se entregava a aliviar 201 Gên 1, 26.
112 SANTO AGOSTINHO
que era substância espiritual, contudo, alto e tão perto de nós, tão escondido e
alegrei-me e envergonhei-me de ter tão presente, que não possuís uns
ladrado, durante tantcrs anos, não con membros maiores e outros menores,
tra a fé católica, mas contra ficções mâs estais todo em toda parte, não sois
tecidas de pensamentos corruptos. espaço nem sois certamente esta forma
Tinha sido temerário e ímpio, preci corpórea. Vós criastes o homem à
samente por haver caluniado e falado vossa imagem, e contudo ele, desde a
de verdades que deveria ter procurado cabeça aos pés, está contido no espa
conhecer. Vós, porém, que viveis tão ço !
4
A letra e o espírito
tão louco que imaginasse poder alcan Costuma suceder ao doente que con
çar esta evidência. Mas, como isso, sultou um médico desprestigiado ter
desejava entender todas as demais coi depois receio dum médico bom. Assim
sas: as .corpóreas que não tinha pre acontecia à saúde da minha alma, que
sente aos sentidos, e as espirituais, que não podia curar-se, senão crendo. Por
só por meio de formas corpóreas pode que temia crer o que era falso, recu
ría conceber. sava deixar-se curar, resistindo às vos
Se acreditasse, poderia ter obtido a sas mãos, ó Divino Médico, que
cura. Assim o olhar, já mais purifi fabricastes o remédio da fé e o derra
cado, da minha inteligência, dirigir-se- mastes em todas as enfermidades do
ia, de algum modo, para a vossa verda mundo, dando-lhe, a ela, tão grande
de sempre constante e indefectível. autoridade!
5
O valor da Bíblia
7. Entretanto, preferindo a doutrina eram dignos de censura os que acredi
católica, já sentia, então, que era mais tavam nos vossos Livros20 4, reconhe
razoável e menos enganoso sermos cidos com tanta autoridade em quase
obrigados a crer o que não demons todos os povos. Censuráveis eram os
trava, quer houvesse prova, mesmo que não criam. Por isso não lhes devia .
que esta não fosse para o alcance de dar ouvidos, se por acaso me disses
qualquer pessoa, quer a não houvesse. sem: “Como sabes que tais livros
Seria isso mais sensato do que zomba foram entregues ao gênero humano
rem da crença os maniqueístas, apoia pelo Espírito do único Deus verdadeiro
dos em temerária promessa de ciência, e infalível?” Ora, era isso precisamente
para depois nos mandarem acreditar o que havia de crer, porque nenhum
em inúmeras fábulas tão absurdas que ataque das inumeráveis controvérsias e
as não podiam provar. calúnias que lera em filósofos entre si
Em seguida, ó Senhor, tocastes e desavindos me pôde arrancar a fé. Por
dispusestes, a pouco e pouco, a minha isso nunca deixei de acreditar na vossa
alma, ao considerar os muitos fatos em existência, apesar de ignorar o que
que acreditava sem os ver nem presen éreis e desconhecer que o governo das
ciar na sua realização. Tais eram os coisas humanas Vos pertence.
inúmeros acontecimentos da história 8. Acreditava nisto, é verdade; mas
dos povos, a infinidade de notícias de umas vezes com mais firmeza, outras
lugares e cidades que não visitara, com mais frouxidão. Porém, sempre
muitos conhecimentos recebidos dos acreditei que existí eis e cuidáveis de
amigos, dos médicos, de tantos e tan nós, não obstante ignorar o que devia
tos homens, e de outras muitas coisas pensar da vossa substância, ou que
em que temos de crer, sob pena de caminho nos levaria ou reconduziría a
nada podermos realizar nesta vida.
Vós.
Enfim, com que fé inflexível acredi
tava serem meus os pais de que nasci! E assim, apesar de estarmos doentes
E podê-lo-ia saber, se não acreditasse para alcançár a verdade com a trans
no que ouvia? Então, ao considerar parência da razão e por isso nos ser
tudo isso, convencestes-me de que não 20 4 2 Cor 3, 6.
114 SANTO AGOSTINHO
6
Miséria da ambição ! — O encontro do mendigo
Não possuía o ébrio, é certo, a ale Naquela que não está em Vós. Porque
gria verdadeira. Mas, com tais ambi aquela alegria não era verdadeira,
ções, eu buscava-a muito mais falsa assim como o não era a glória, esta ia
mente. Ele, com certeza, andava agitando cada vez mais o meu espírito.
alegre, e eu preocupado; ele vivia segu O ébrio curaria ainda naquela noite a
ro, e eu cheio de inquietações. Se sua embriaguez, e eu já me deitara e
alguém me perguntasse se preferia erguera com a minha e com ela me
andar alegre ou perturbado, responde havia de deitar e erguer. E reparai,
ría: “andar alegre”. Se, porém, denovó Senhor, por quantos dias ! -
me interrogasse se antes queria ser Importa saber a razão por que cada
como o ébrio ou como eu era, escolhe um se alegra. Conheço e vejo que a
ría viver acabrunhado por cuidados e alegria da esperança fiel dista infinita
temores. Mas faria isso por maldade, mente daquela vaidade! Também entre
ou, talvez, com razão? É claro que me o ébrio e mim havia grande diferença.
não devia antepor a ele por ser mais Sem dúvida, ele era mais feliz, não só
culto, pois da ciência não- tirava ale porque transbordava de hilaridade —
gria, antes pelo contrário, procurava porém eu era devorado por ansiedades
com ela simplesmente agradar aos — mas porque ele adquirira o vinho
homens, não para os instruir, mas só desejando prosperidade aos seus ben
para lhes ser agradável. Era por isso feitores, enquanto eu procurava a
que “quebráveis os meus ossos20 6” ostentação com a mentira.
com avara da vossa justiça. Disse, então, muita coisa neste senti
do aos amigos, e muitas vezes, em
10. Afastem-se, pois, da minha casos semelhantes, examinava como
alma os que lhe bradam: “O que me corria a vida. Encontrava-me infe
importa é que haja motivo para ale liz, afligia-me, multiplicava a mesma
gria”. Aquele mendigo folgava na dor. Se me sorria alguma ventura, sen
embriaguez, tu ambicionavas a alegria tia náuseas em apanhá-la, porque ela
na glória. E em que glória, Senhor? voava no mesmo instante em que ia
20 6 5/41,11. agarrá-la.
7
A amizade de Alípio
11. Os que convivíamos em boa que eu. Fora meu aluno quando come
amizade, lamentávamo-nos no meio cei a ensinar na nossa terra e depois
destas reflexões. Falava mais intima em Cartago. Estimava-me muito por
mente destes assuntos sobretudo com lhe parecer bom e sábio, e eu aprecia
Alípio e Nebrídio2 0 7. va-o pela índole inclinada à virtude,
Alípio nascera no mesmo município que já brilhava em tenra idade208.
que eu. Seus pais eram da gente princi Porém, o abismo dos costumes cartagi
pal da cidade e ele era mais novo do neses, onde fervem os espetáculos frí-
20 7 Nebrídio acompanhou a Agostinho pela Itália. 208 Alípio seria elevado a bispo de Tagaste, sua
Voltou à África, falecendo em 390. Converteu a terra natal, em 394-395, pouco antes de Santo
família ao cristianismo. Conservam-se cópias de Agostinho receber a dignidade episcopal. Notabili
cartas suas escritas a Santo Agostinho no ano de zou-se na luta contra os hereges pelegianos e dona-
389. (N. do T.) tistas. (N. do T.)
116 SANTO AGOSTINHO
volos, engolfara-o na loucura dos cura. Mas Vós sabeis, ó meu Deus, que
jogos circenses. eu não pensava, então, em curar a Alí-
Quando se revolvia desgraçada- pio daquela peste. Todavia caiu em si,
mente nesse abismo, sendo eu ali pro e pensou que tenha dito aquilo por sua
fessor de retórica numa escola pública, causa. O que outro tomaria como mo
ainda me não ouvia, como mestre, por tivo para me censurar, tomou-o ele
causa duma desavença que se-levan como causa para se censurar a si
tara entre mim e o pai. Descobrindo mesmo e para me estimar com mais
que amava o circo funestamente, an ardor.
gustiava-me dolorosamente, por me Já, outrora, dissêreis e escrevêreis
parecer que ia a perder, ou já perdera, em vossos Livros: “Repreende o sábio,
tão bela esperança. Mas eu não tinha e amar-te-á209”. Eu não o repreende
nenhum poder conferido pela estima ría: mas Vós servis-Vos de todos, umas
da amizade, ou, ao menos, pelo direito vezes sabendo-o ele, outras não, segun
de mestre, para o repreender e fazer do a ordem justa que conheceis. Fizes
recuar, dando-lhe qualquer castigo. tes do meu coração e da minha língua
Julgava que compartilharia da mesma carvões ardentes210 com que queima
idéia do pai a meu respeito. Mas não. rieis e curarieis esse espírito corrupto,
Pondo de parte, neste assunto, a vonta mas de tão prometedora esperança.
de paterna, começou a cumprimentar- Cale os vossos louvores quem não
me, vinha às minhas aulas, ouvia algu atenta na vossa misericórdia, por mim
ma coisa e partia. confessada desde a medula do meu ser.
12. Mas já me fugia da memória O caso é que, após estas palavras,
tratar com ele, para se não, perder um escapou-se dum fosso tão profundo,
talento tã.o precioso, na paixão cega e onde gostosamente se ia enterrando e
impetuosa de jogos futeis. Vós, porém, cegando com a ânsia de gozo, e remo
ó Senhor, que presidis ao governo de çou a alma com a temperança corajo
tudo o que criastes, não Vos esque sa, retirando-se de todas as baixezas
cestes do que havia de ser, entre os do circo, aonde nunca mais voltou.
vossos filhos, ministro dos sacramen Convenceu depois o pai relutante a que
tos. Para que Vos fosse atribuída aber me contratasse como mestre. Aquele,
tamente a sua emenda, Vós a reali cedendo, fez-lhe a vontade. Come
zastes por meu intermédio, mas sem eu çando de novo Alípio a ouvir-me, foi
saber. comigo envolvido pela superstição,
Um dia, estando eu sentado no lugar amando nos maniqueístas a ostentação
do costume, com os alunos diante de de continência que julgava verdadeira
mim, chegou, saudou-me, sentoü-se, e e sincera. Esta era, porém, malvada e
prestou atenção ao assunto de que se sedutora, cativando as preciosas
tratava. Tinha em minhas mãos, por almas, ainda não experimentadas na
acaso, o texto da lição. Ora, ao expli estimativa da sublimidade do Bem, e
cá-lo, para compreenderem com mais facilmente enganadas pela aparência
agrado e clareza o que expunha, pare duma virtude, afinal, fingida e falsai
ceu-me oportuno juntar à comparação
dos jogos do circo uma crítica mordaz 209 Prov 9, 8.
aos que eram escravizados por tal lou 210 Ez 1, 13.
CONFISSÕES VI 117
9
Por linhas tortas. . . Alípio e um roubo
dida a multidão, que já começava a causas na vossa Igreja saiu assim expe
triunfar de Alípio. O futuro dispen- rimentado e instruído213.
sador da vossa palavra e juiz de tantas 213 Alípio foi mais tarde bispo deTagastes.(N.doT-)
10
Dois amigos
11
Luta da alma em busca da verdade
proveito, se, com a morte do corpo, se 20. Ao dizer isto, enquanto os ven
consumasse também a vida da alma. tos alternavam e impeliam o meu cora
Por que tardo, pois, em abandonar as ção para um e outro lado, o tempo
esperanças do mundo, para totalmente fugia e eu tardava em converter-me ao
me dedicar à busca de Deus e da vida Senhor. Adiava de dia para dia o viver
bem-aventurada? em Vós, sem, contudo, diferir o morrer
Mas espera! Os bens terrenos tam todos os dias em mim mesmo. Dese
bém são agradáveis. Possuem não jando a vida feliz, temia buscá-la na
pequenas doçuras. Não devemos, por sua morada. Procurava-a fugindo-lhe !
isso, apartar deles, inconsiderada- Julgava que seria extremamente des
mente, a nossa inclinação, pois seria graçado, se me privassem dos abraços
vergonhoso voltar de novo a eles. Olha duma esposa. Não pensava ainda no
quão pouco falta para alcançar um remédio da vossa misericórida, para
cargo honroso ! Que mais tenho a dese curar tal doença, porque nunca fizera a
jar? Tenho em abundância amigos experiência. Pensava que a castidade
poderosos. Sem necessidade de me era fruto das próprias forças, e persua-
apressar mais, podia jâ ser, ao menos, dia-me de que as não tinha. Sendo tão
presidente (dum tribunal), e casar-me néscio, não sabia que, como estava
com uma moça que possuísse alguma escrito, ninguém pode ser casto, se Vós
fortuna, para não sobrecarregar os lhe não concedeis forças. Sim, Vós
nossos gastos. Seria este o limite do dar-mas-íeis se com gemidos internos
meu desejo. Muitos homens. impor ferisse os vossos ouvidos, e com fé
tantes e dignos de imitação entrega- firme descarregasse em Vós todos os
ram-se, apesar de casados, ao estudo meus cuidados.
da Sabedoria.
12
Matrimônio e castidade
13
O pedido de casamento
23. Entretanto, instavam sem des peto do espírito humano arrasta, quan
canso para que me casasse. Já tinha do anda preocupado. Contava-me isso,
feito o pedido de casamento e recebido não com aquela confiança com que
boas promessas, ajudado sobretudo costumava, quando realmente Vos ma-
por minha mãe, que o fazia com o fim nifestáveis, mas com desprezo, pois
de me ver regenerado, depois do matri afirmava que, por um palpite que não
mônio, na água salutar do batismo. sabia explicaFcom palavras, distinguia
Minha mãe alegrava-se de me ver cada entre as vossas revelações e os sonhos
vez mais apto para o r.eceber, notando da sua alma.
que na minha fé se realizavam os seus
votos e as vossas promessas. Apesar de tudo, instava-se pelo
Vós nunca lhe quisestes revelar, em casamento, e pediu-se a mão da jovem.
visão, nada do meu futuro casamento, Faltava-lhe, porém, quase dois anos
apesar de, a meu pedido e desejo seu, para chegar à idade núbil219. Mas,
Vo-lo pedir, todos os dias, com fortes como ela agradava, ia-se esperando.
clamores do coração. Ela via umas 219 A idade núbil, para as mulheres, em Roma e
imagens vãs e fantásticas, aonde o ím no Império, era a dos doze anos. (N. do T.)
CONFISSÕES VI 123
14
Projeto desfeito
24. Éramos muitos os amigos que Pareceu-nos bem que dois de nós,
trazíamos o espírito agitado. Falava cada ano, como administradores, tra
mos com aborrecimento dos dissabo tassem de todo o necessário, ficando os
res tumultuosos da vida humana. Já outros em paz. Mas quando se come
quase tínhamos resolvido viver sosse- çou a pensar se as mulheres que uns já
gadamente, retirados da multidão. Tí tinham e eu desejava ter o permitiríam,
nhamos projetado aquele sossego deste desfez-se em nossas mãos todo aquele
modo: se alguma coisa possuíssemos, projeto que tão belamente imagina
juntá-la-íamos para uso comum, com
binando formar de tudo um só patri mos. Arruinou-se e teve que se rejeitar.
mônio, de tal forma que, por uma ami Daqui enveredamos de novo para os
zade sincera, não houvesse um objeto suspiros e gemidos, seguindo pelos
deste, outro daquele, mas de tudo se “caminhos largos e trilhados do sécu
fizesse uma só fortuna, sendo tudo de lo220”, porque “muitos eram os pensa
cada um e tudo de todos. Parecia-nos mentos no nosso coração. Porém os
que se poderíam reunir na mesma vossos desígnios permanecem eterna
sociedade cerca de dez homens. Entre mente221”. Por causa desses desígnios,
nós contavam-se alguns ricos, sobre ríeis-Vos das nossas resoluções, e
tudo Romaniano, meu conterrâneo e preparáveis as vossas, para “nos dar
amigo íntimo desde tenra infância, a
quem, então, grandes cuidados de des o alimento no tempo oportuno,
negócios haviam arrastado à corte para abrirdes a vossa mão e, enfim,
imperial. Era ele o que mais instara para encherdes as nossas almas com a
por este projeto e o que tinha mais vossa bênção222”.
autoridade para o persuadir, porque as
220 Af/ 7, 13.
suas enormes riquezas eram muito 221 Prov 19, 21; Sl 23, 11.
superiores às dos outros. 222 Sl 144, 15, 16.
Cativo do prazer
25. Entretanto os meus pecados do-me o filho natural que dela tive
multiplicavam-se. Sendo arrancada do ra223.
meu lado, como impedimento para o E eu, miserável, não imitei esta
matrimônio, aquela com quem parti mulher22 4 ! Impaciente da dilação —
lhava o leito, o meu coração, onde ela 223 Esta criança recebeu o nome de Adeodato.
Morrería na adolescência, em 388, depois de ter
estava presa, rasgou-se, feriu-se e es dado mostras de talento extraordinário. Nasceu em
corria sangue. Retirara-se ela para 372. (N. do T.)
22 4 Com ela vivera Agostinho durante quinze
África, fazendo-Vos voto de jamais anos. Parece ter sido pessoa de altas qualidades
conviver com outro homem e deixan intelectuais. (N. do T.)
124 SANTO AGOSTINHO
porque só depois de dois anos recebe perduraria até à vinda do reino matri
ría a que pedira em casamento — e monial. Não sarara ainda aquela
porque não era amante do matrimônio, chaga, aberta pelo corte da primeira
mas escravo do prazer, procurei outra
mulher — mas não esposa — para mulher. Mas após a inflamação e após
assim manter e prolongar, intata ou a dor pungentíssima, a ferida gangre
mais agravada, a doença da minha nava, doendo-me dum modo mais frio,
alma, patrocinada pelo mau hábito que mas mais desesperado.
16
Sob a asa de Deus
26. Louvor e glória a Vós, ó Fonte fruto da minha grande miséria. Assim
das Misericórdias! Eu a tomar-me imerso no vício e cego, não podia pen
mais desgraçado, e Vós, cada vez mais sar na luz da Virtude e da Beleza, que
pertinho de mim! Sem eu saber, a os ólhos da carne não vêem, e só o ínti
vossa mão direita, que me havia de mo da alma distingue.
arrancar da lama e lavar-me, estava Na minha miséria, nem sequer con
mesmo junto de mim. Só o temor da siderava de que manancial brotava este
morte e do vosso futuro juízo, que, gosto de tratar deliciosamente destes
através das várias doutrinas, nunca se assuntos vergonhosos com os amigos.
retirou do meu peito, me convidava a Sem estes não poderia ser feliz, por
sair do abismo tão profundo dos praze maior que fosse a afluência de prazeres
res carnais. carnais, segundo o desejo de sensuali
Disputava com Alípio e Nebrídio, dade que então possuía. Sim, amava
meus amigos, sobre o fim dos bons e estes amigos, mas com desinteresse.
dos maus, declarando que Epicuro, no Por sua vez, sentia que eles igualmente
meu conceito, teria recebido a palma, me amavam.
se eu não acreditasse que, depois da Ó caminhos tortuosos! Ai da alma
morte, continuava a vida da alma e audaciosa que se afastou de Vós, na
havia o juízo dos méritos, coisa que esperança de possuir algum bem me
Epicuro negou2 2 5. lhor ! Quer se vire ou revire para trás,
Perguntava o motivo por que é que quer se volte para os lados ou para
não seríamos felizes, ou que mais diante, tudo lhe é duro.
buscaríamos, se fôssemos imortais e Só Vós sois o descanso. Só Vós nos
vivéssemos em perpétuo gozo corpo assistis e libertais de erros deploráveis,
ral, sem receio algum de o perder. metendo-nos no vosso Caminho, con
Ainda ignorava que esta pergunta era solando-nos e dizendo: “Correi; eu
22 5 Este filósofo ensinou em Atenas, em 360 a.C.
guiar-vos-ei, conduzindo-vos até ao
Propunha-se dar a felicidade aos homens por meio fim, e aí vos hei de manter22 6”.
da apatia (ataraxia) e negando a existência duma
vida ultraterrena. (N. do T.) 22 6 Is 46, 4.
LIVRO VII
A CAMINHO DE DEUS
I — O problema de Deus e
o problema do mal.
A astrologia (1-8).
II — O neoplatonismo e San
to Agostinho.
Solução ao problema do
mal (9-21).
1
Emancipando-se do falso conceito de Deus
Eu não notava que este ato apreensivo Vós penetradas em todas as suas par
de entendimento com que formava tes, grandes e pequenas, para recebe
essas imagens não era da mesma natu rem a vossa presença, govemando-as
reza que estas. Com efeito, a atividade interiormente com vossa' oculta inspi
intelectual, se não fosse alguma coisa ração e exteriormente dirigindo tudo o
de grande, não poderia formar ima que criastes.
gens. Assim conjeturava eu, pois não Vos
A Vós, ó Vida da minha vida, tam podia conceber doutra maneira. Tal
bém Vos imaginava como um Ser conjetura, porém, era falsa. Deste
imenso, penetrando por todos os lados modo, uma parte da terra que fosse
a massa do Universo e alastrando-Vos maior deveria também encerrar maior
fora dele, por toda parte, através das parte de Vós; e outra que fosse menor,
imensidades sem limites, de tal modo uma parte menor. Estando tudo assim
que a terra, o céu e todas as coisas Vos impregnado de Vós, o corpo do elefan
continham e todas elas se acabavam te, pelo fato de ser maior e-ocupar mais
em Vós, sem, contudo, acabardes em espaço que o de um pássaro, teria
parte alguma. proporcionalmente mais de Vós que o
Mas assim como a massa do ar, corpo do pássaro. E, deste modo, parti
deste ar que está por cima da tenra, não do em fragmentos, comunicarieis a
se opõe a que a luz do sol penetre por vossa presença às grandes e pequenas
ele, atravessando-o sem o rasgar nem partes do Universo, respectivamente
cortar, mas enchendo-o inteiramente, com grandes e exíguas porções de Vós
assim julgava que não só as substân mesmo. Não é, porém, assim. Mas
cias transparentes do céu, do ar e do ainda não tínheis iluminado as minhas
mar, mas também as da terra eram por trevas.
2
Argumento de Nebrídio contra os maniqueístas
o Verbo seria corruptível, pois era for falsa, e logo, à primeira palavra, digna
mado duma só e mesma substância de abominação.
que a alma. Ora, se eles afirmam que -Bastava-me, portanto, só este racio
tudo o que sois, isto é, a substância de cínio contra aqueles que a todo o custo
que Vos formais, é incorruptível, (se- deveria vomitar do meu peito oprimi
gue-se que) todas aquelas suposições do. Com efeito, sentindo e falando
são falsas e abomináveis; se dizem, assim de Vós, não tinham por onde
pelo contrário, que o Verbo é corruptí sair, senão cometendo um horrível
vel, tal afirmação é, por si mesma, sacrilégio de coração e de língua.
3
A causa do mal
tendo sido criado anjo perfeito por um sa228”, se se admite a tese de estardes
Criador tão bom?” Vós antes sujeito ao mal do que o
De novo me sentia oprimido e sufo homem ser considerado capaz de o
cado por estes pensamentos, mas de cometer.
modo algum arrastado àquele inferno
do erro “onde ninguém Vos confes 228 S16,6.
4
Deus é incorruptível
6. Assim me esforçava por encon É absolutamente certo que de modo
trar as outras verdades, do mesmo nenhum pode a corrupção alterar o
modo que já tinha descoberto ser me nosso Deus, por meio de qualquer von
lhor o incorruptível que o corruptível. tade, de qualquer necessidade ou de
Por conseguinte, confessava que Vós, qualquer acontecimento imprevisto,
quem quer que fosseis, não estáveis porque Ele é o próprio Deus, porque
sujeito à corrupção. Jamais alma algu tudo o que deseja é bom e Ele próprio
ma pôde ou poderá conceber alguma é o mesmo Bem. Ora, estar sujeito à
coisa melhor do que Vós — sumo e corrupção não é um bem.
ótimo Bem. Não podeis ser obrigado, por força,
Sendo absolutamente certo e inegá seja ao que for, porque em Vós a von
vel que o incorruptível se antepõe ao tade não é maior do que o poder.
corruptível — como aliás já admitia Porém, seria maior, se Vós mesmo fôs
—,poderia eu, se não fosseis incorrup seis maior que Vós mesmo. Mas a von
tível, ter atingido com o pensamento tade e o poder de Deus são o mesmo
algo mais perfeito que o meu Deus. Deus. Para Vós, que tudo conheceis,
Portanto, logo que vi que o incorrup existe acaso alguma coisa imprevista?
tível se deve preferir ao corruptível, Nenhuma natureza existe, senão^pom
imediatamente Vos deveria ter busca que a conhecestes. Para^que"proferi
do, e, em seguida, deveria indagar mos nós tantas palayras"a fim de com
donde vem o mal, isto é; a corrupção, a provar que^substancia de Deus não é
qual de modo algum pode afetar a corruptível, já que, se o fosse, não seria
vossa substância. Deu^
I
CONFISSÕES VII 133
6
Os vaticínios dos astrólogos
com igual rapidez; o nascimento das conclui que os fatos preditos pela
crianças. Estas informações facilmente contemplação dos astros não se dizem
as conseguiam, como se o fato se pas por arte, mas por acaso; e que as falsi
sasse no seu respectivo prédio. dades proferem-se, não por imperícia
Acrescentava Firmino que esses na arte, mas porque falhou a sorte.
mensageiros se cruzavam com tanta 10. Aberta esta entrada, ruminava
precisão a meio do caminho das duas tudo isso comigo, para que nenhum
casas que era impossível que ambos desses loucos, que viviam de tal negó
não observassem exatamente as mes cio e que eu desejava atacar imediata
mas posições dos astros, nas mesmas mente e pôr a ridículo, me pudesse
frações de tempo. E contudo, Firmino, resistir, lançando-me à cara que Firmi
como filho de família ilustre, seguia no e o pai me tinham enganado. Des
pelos caminhos mais esplêndidos do viei o fio do raciocínio para os que
mundo, enriquecia continuamente e nascem gêmeos. A maioria destes
era cumulado de honras; ao passo que saem do ventre materno, um após
o escravo, sem jamais ser aliviado do outro, com tão pequeno intervalo de
jugo da sua condição, servia a seu tempo, que a este — por mais que haja
senhor, segundo informava aquele que luta entre os gêmeos para possuírem
perfeitamente o conhecia. na ordem natural a primazia — é
9. Ouvindo estas coisas e dando- impossível registrá-lo pela observação
lhes fé, em razão do crédito que me humana e tomar, notas dele, de molde a
merecia quem as narrava, toda aquela que os astrólogos, examinando-as, se
minha relutância caiu vencida. Esfor possam pronunciar exatamente. Os
cei-me logo por afastar Firmino daque prognósticos não serão exatos porque,
la vã curiosidade, dizendo-lhe que, vendo o astrólogo os mesmos docu
examinando eu as constelações que mentos, deveria dizer a mesma coisa
presidiram ao seu nascimento, para lhe de Esaú e Jacó. Mas os sucessos na
declarar a verdade, devia igualmente vida de um e de outro não foram os
adivinhar que seus pais eram os pri mesmos. Portanto, ou o astrólogo
meiros entre os seus concidadãos; sua anunciava falsidades ou, no caso de
família era nobre na própria terra falar certo, não deveria dizer a mesma
natal, que ele era de condição livre e coisa de ambos, ainda que visse os
que recebera educação esmerada e fora mesmos documentos. Neste caso, não
instruído nas artes liberais. Se aquele era por arte, mas por acaso é que dizia
escravo me pedisse que lhe dissesse a a verdade.
verdade segundo as mesmas constela Vós, porém, Senhor — justíssimo
ções — já que estas pertenciam a organizador de tudo —, por meio dum
ambos —, novamente deveria ler nelas secreto instinto, desconhecido aos con-
que esse tal era de família abjeta, de sulentes e aos astrólogos, fazeis que
condição servil, e tudo o mais, que di cada qual, enquanto consulta, ouça o
fere e dista muito das circunstâncias que lhe convém ouvir, segundo os
do primeiro caso. merecimentos ocultos da sua alma e
Mas como seria possível que eu, segundo os abismos dos vossos incor
examinando a mesma constelação, fa ruptíveis juízos. Que nenhum se atreva
lasse a verdade, predizendo futuros a perguntar-Vos: “Que é isto? Para
diversos? No caso de lhes prognosticar que é isto?” Não vo-lo pergunte; não
idêntico destino, eu não diria por isso a vo-lo pergunte, porque é um simples
verdade. Donde com toda a certeza se homem.
136 SANTO AGOSTINHO
8
O colírio das dores
9
O neoplatonismo e a fé cristã
13. Querendo Vós mostrar-me pri- todo homem que vem a este mundo.
meiramente como “resistis aos sober Estava neste mundo que foi feito por
bos e dais graças aos humildes23 7” e Ele, e o mundo não o conheceu.
quão grande seja a misericórdia com Porém, que veio para o que era seu e
que ensinastes aos homens o caminho os seus não o receberam; que a todos
da humildade, por “se ter feito carne o os que o receberam lhes deu poder de
vosso Verbo e ter habitado entre os fazerem filhos de Deus aos que cres
homens23 8”, deparastes-me por inter cessem em seu nome — isto não o li
médio dum certo homem, intumescido naqueles livros23 9.
por monstruoso orgulho, alguns livros 14. Do mesmo modo, li nesse lugar
platônicos, traduzidos do grego em que o Verbo Deus não nasceu da
latim. Neles-li, não com estas mesmas carne, nem do sangue, nem da vontade
palavras, mas provado com muitos e do homem, mas de Deus. Porém, que o
numerosos argumentos, que ao princí Verbo se fez homem e habitou entre
pio era o Verbo e o Verbo existia em nós2 40, isso não o li eu aí.
Deus e Deus era o Verbo: e este, no Descobri naqueles escritos, expresso
princípio, existia em Deus. Todas as de muitos e variados modos, que o
coisas foram feitas por Ele, e sem Ele Filho, “existindo com a forma do Pai,
nada foi criádo. O que foifeito, n Ele é não considerou como usurpação ser
vida, e a vida era a luz dos homens; a igual a Deus”, porque o é por nature
luz brilha nas trevas e as trevas não a za. Porém aqueles livros não trazem
compreenderam. A alma do homem, que “se aniquilou a si mesmo tomando
ainda que dê testemunho da Luz, não a forma de escravo, feito à imagem dos
é, porém, a Luz; mas o Verbo — Deus
— é a Luz verdadeira qüe ilumina 239 Infelizmente, essas traduções, que Santo Agos
tinho leu, não chegaram até nós. A maioria dos
autores julga que a referência diz respeitô a livros
Tg 4, 6; 1 Pdr 5, 5 de Plotino e de Porfírio. (N. do T.)
238 Jo 1, 14. 240 Jo 1 13.
138 SANTO AGOSTINHO
homens e sendo julgado, no exterior, cam como Deus, nem Lhe dão graças,
como um homem”. Não dizem que “se mas desvanecem-se em seus pensa
humilhou fazendo-se obediente até à mentos e o seu coração insensato
morte, e morte de cruz, pelo que Deus obscurece-se. Dizendo-se sábios, tor-
o exaltou dos mortos, e lhe deu um nam-se estultos”.
nome que estâ acima de todo nome, 15. Por isso lia também aí que
para que ao nome de Jesus todo joelho transformaram a imutável glória da
se dobre nos céus, na terra e nos infer vossa incorruptibilidade em ídolos e
nos, e toda língua confesse que o Se em estátuas de toda espécie, à seme
nhor Jesus está na glória de Deus lhança de imagem do homem corruptí
Pai241”. vel, das aves, dos animais e das serpen
Lá encontrei “que o vosso Filho tes246, ou seja, o alimento dos
Unigênito, eterno como Vós, perma egípcios, pelo qual Esaú perdeu o direi
nece imutável antes de todos os séculos to de primogenitura2 4 7. Israel, o povo
e sobre todos os séculos, que, para primogênito, “de coração voltado para
serem bem-aventuradas, todas as o Egito2 4 8”, curvando a vossa imagem
almas recebem da sua plenitude, e que, — a sua alma — ante o ídolo do “be
para serem sábias, são renovadas pela zerro que come feno2 49”, em lugar de
participação da Sabedoria que perma Vós, honrou a cabeça dum animal.
nece em si mesma”. Que “não perdoas Encontrei nesses livros estas afirma
tes ao vosso único Filho, mas o entre ções, mas não me alimentei delas.
gastes por todos nós2 42” — isso não' Agradou-Vos, Senhor, arrancar de
vem naqueles livros. Jacó o opróbrio do abatimento, para
“Escondestes pois estas coisas aos que o maior servisse ao menor. Cha
sábios e as revelastes aos humil mastes os povos à vossa herança. Eu
des243”, para que viessem “a Ele os também vim para Vós de entre os
atribulados e os sobrecarregados e Ele povos e fixei a mente no ouro que,
os aliviasse, porque é manso e humilde segundo a vossa vontade, o vosso povo
de coração”. Dirige os benignos na tirou do Egito, pois era vosso, onde
justiça e ensina aos mansos os seus quer que ele estivesse. Por meio do
caminhos. Vê a nossa humildade e o vosso Apóstolo, dissestes aos atenien
nosso trabalho e perdoa-nos todos os ses que em Vós “vivemos, nos move
pecados2 4 4. Porém, aqueles que se mos e existimos, como também o dis
levantaram no cotumo duma doutrina seram alguns dos vosSos poetas2 50”.
mais sublime2 4 5 não O ouvem dizer: Naturalmente daqui vieram aqueles
“Aprendei de mim que sou manso e
humilde de coração e encontrareis des 2 4 8 Rom 1,23.
canso para as vossas almas”. Ainda 24 7 Gên 25, 33.
2 48 At 1, 39. Santo Agostinho, na Exposição do
que conheçam “a Deus, não O glorifí- Salmo 4b (Com. ao Sl 46), assim se exprime: “Sabe
mos que as lentilhas são o alimento dos egípcios
porque abundam no Egito. São célebres as lentilhas
241 Flp 2,6-11. de Alexandria, e chegam até às nossas terras como
2 42 5/24, 18. se aqui não nascessem lentilhas. Portanto, Esaú,
2 43 Mtl 1,29. desejando o alimento dos egípcios, perdeu a primo
2 4 4 Rom 1,21. genitura. Assim, o povo judeu, de quem foi dito
24 5 A filosofia de Plotino ou neoplatônica, que ‘voltaram-se de coração para o Egito desejara de
foi o supremo esforço do pensamento helênico, certo modo as lentilhas, perdendo a primogenitura”.
ignorou a Cristo. Tudo nela se dirigia a pôr o (N. do T.)
homem em contato com o Uno por meio do êxtase 249 5/105,20.
voluntarista. (N. do T.) 2 60 At 11, 28
CONFISSÕES VII 139
livros. Mas não me fixei nos ídolos dos submetendo-se antes à criatura do que
egípcios, a quem serviam com o vosso ao Criador2 51 ”.
ouro “aqueles que mudaram a verdade
de Deus em mentira, venerando e 251 Rom 1,25.
10
O descortinar do mistério divino
16. Em seguida aconselhado a vol jeto do meu olhar. Mas eu ainda não
tar a mim mesmo, recolhi-me ao cora era capaz de ver! Deslumbrastes a fra
ção, conduzido por Vós. Pude fazê-lo, queza da minha íris, brilhando com
porque Vos tomastes meu auxílio. veemência sobre mim. Tremi com
Entrei, e, com aquela vista da minha amor e horror. Pareceu-me estar longe
alma, vi, acima dos meus olhos interio de Vós numa região desconhecida,
res e acima do meu espírito, a Luz como se ouvisse a vossa voz lá do alto:
imutável. Esta não era o brilho vulgar “Sou o pão dos fortes; cresce e comer-
que é visível a todo o homem, nem era Me-ás. Não Me transformarás em ti
do mesmo gênero, embora fosse maior. como ao alimento da tua carne, mas
Era como se brilhasse muito mais mudar-te-ás em Mim2 52”.
clara e abrangesse tudo com a sua Conheci que, “por causa da iniqüi-
grandeza. Não era nada disto, mas dâde, castigastes o homem e secastes a
outra coisa, outra coisa muito diferente minha alma como teia de aranha2 53”.
de todas estas. E disse: “Porventura não existe a ver
Essa Luz não permanecia sobre o dade, pelo fato de não estar espalhada
meu espírito como o azeite em cima da por espaços finitos nem infinitos?”
água, ou como o céu sobre a terra, mas Vós respondestes-me de longe:
muito mais elevada, pois Ela própria “Sim, Eu sou o que Sou2 5 4”. E ouvi
me criou e eu sou-lhe inferior, porque como se ouve no coração, sem ter mo
fiii criado por Ela. tivo algum para duvidar. Mais facil
Quem conhece a Verdade conhece a mente duvidaria da minha vida do que
Luz Imutável, e quem a conhece da existência da Verdade, cujo conhe
conhece a Eternidade. O Amor conhe cimento se apreende por meio das coi
ce-a! ó Verdade eterna, Amor verda sas criadas.
deiro, Eternidade adorável! Vós sois o
meu Deus! Por Vós suspiro noite e
dia. Quando pela primeira vez Vos 2 52 Assim sucede na Eucaristia. Porém a frase
refere-se à Sabedoria Divina. (N. do T.)
conheci, erguestes-me para que apren 2 53 Jer 31, 15.
desse a existência d’Aquele que era ob 254 Êx 3, 14.
11
A relatividade das criaturas
17. Examinei todas as outras coisas mente deixam de existir. Por um lado
que estão abaixo de Vós e vi que nem existem, pois provêm de Vós; por
existem absolutamente, nem total- outro nãó existem, pois não são aquilo
I
que Vós sois. Ora, só existe verdadei miar em mim. Ele, porém, permane
ramente o que permanece imutável. cendo em si, renova todas as coisas.
Por isso, “para mim é bom prender-me
a Deus2 5 5”; porque, se não permane “Vós sois o meu Senhor, pois não care
cer n’Ele, também não poderei conti- ceis dos meus bens2 5 6.”
2 5 5 5/72,28. 2 5 8 Sl 15,2.
12
O problema do mal. A perfeição das criaturas
18. Vi claramente que todas as coi Por isso, se são privadas de todo o
sas que se corrompem são boas: não se bem, deixarão totalmente de existir.
poderiam corromper se fossem suma Logo, enquanto existem, são boas.
mente boas, nem se poderiam corrom Portanto, todas às coisas que existem
per se não fossem boas. Com efeito, se são boas, e aquele mal que eu procu
fossem absolutamente boas, seriam rava não é uma substância, pois, se
incorruptíveis, e se não tivessem ne fosse substância, seria um bem. Na
nhum bem, nada haveria nelas que se verdade, ou seria substância incorrup
corrompesse. tível, e então era certamente um grande
De fato, a corrupção é nociva, e, se bem, ou seria substância corruptível, e,
não diminuísse o bem, não seria noci nesse caso, se não fosse boa, não se
va. Portanto, ou a corrupção nada pre poderia corromper.
judica — o que não é aceitável — ou Vi, pois, e pareceu-me evidente que
todas as coisas que se corrompem são criastes boas todas as coisas, e que
privadas de algum bem. Isto não admi certissimamente não existe nenhuma
te dúvida. Se, porém, fossem privadas substância que Vós não criásseis. E,
porque as não criastes todas iguais,
de todo o bem, deixariam inteiramente por esta razão, todas elas, ainda que
de existir. Se existissem e já não pudes boas em particular, tomadas conjunta
sem ser alteradas, seriam melhores mente são muito boas, pois o nosso
porque permaneciam incorruptíveis. Deus criou “todas as coisas muito
Que maior monstruosidade do que boas2 5 7”.
afirmar que as coisas se tomariam
melhores com perder todo o bem? 2 5 7 Gên 1,31.
13
A solução do problema do mal. As dissonâncias de pormenor
19. Em absoluto, o mal não existe zam com outros, são considerados
nem para Vós, nem para as vossas maus. Mas estes coadunam-se com
criaturas, pois nenhuma coisa há fora outros, e por isso são bons (no conjun
de Vós que se revolte ou que desman to) e bons em si mesmos. Todos estes
che a ordem que lhe estabelecestes. elementos que não concordam mutua
Mas porque, em algumas das suas par mente concordam na parte inferior da
tes, certos elementos não se harmoni criação a que chamamos terra, cujo
CONFISSÕES VII 141
14
A trajetória dum erro
20. Não há saúde naqueles a quem parte através do espaço infinito. Jul
desagrada alguma parte da vossa cria gando que éreis Vós, colocara esse
ção, como em mim também não a Deus no seu coração, e de novo ela se
havia, quando me não agradavam mui transformou num templo abominável
tas coisas que criastes. Porque a minha do seu ídolo2 61. Todavia, depois que
alma não ousava desgostar-se do meu afagastes, sem eu o saber, a minha ca
Deus, recusava olhar como obra vossa beça e fechastes “meus olhos para que
tudo o que lhe não agradava. Por isso, não vissem a vaidade2 62”, desprendi-
lançara-se na “teoria das duas substân me um pouco de mim mesmo, e a
cias2 60”, mas não encontrava descan minha loucura adormeceu profunda
so, e apenas expressava opiniões mente . . . Despertei em vossos braços,
alheias. e vi que éreis infinito, mas não daquele
Desembaraçando-se destes erros, a modo. Esta visão não provinha da
minha alma tinha imaginado, para si, carne.
um Deus que se difundia por toda
2 61 Aquela noção de que Deus era “ídolo” porque
2 60 Refere-se à doutrina maniqueísta do dualismo a alma materializava e circunscrevia ao espaço o
do bem e do mal, isto é, da luz e das trevas. (N. do Ser infinito. (N. do T.)
T.) 9 2 62 5/ 118, 37.
142 SANTO AGOSTINHO
15
A harmonia da criação
21. Olhei depois para as outras coi Reconheci que cada coisa se adapta
sas e vi que Vos deviam a existência. perfeitamente não só ao seu lugar, mas
Vi que tudo acaba em Vós, mas não também chega a seu tempo. Reconheci
como quem termina num espaço mate que Vós — único Ser Eterno —não
rial. Vós sois Aquele que tudo con
serva na Verdade, como se tudo susti- começastes a operar depois de épocas
incalculáveis de tempo, porque todos
vésseis na palma da mão. Por isso
todas as coisas são verdadeiras en estes espaços de tempo, passados ou
quanto existem, e não há falsidade futuros, não teriam passado nem vi
senão quando se julga que existe aqui ríam, se Vós, na vossa imutabilidade,
lo que não existe. não agisseis.
16
Onde reside o mal
22. Senti e experimentei não ser tes de Vós. Do mesmo modo são os
para admirar que o pão, tão saboroso maus tanto mais parecidos com os ele
ao paladar saudável, seja enjoativo ao mentos superiores da criação quanto
paladar enfermo, e que a luz, amável mais se tomam semelhantes a Vós.
aos olhos límpidos, seja odiosa aos Procurei o que era a maldade e não
olhos doentes. encontrei uma substância, mas sim
Se a vossa justiça desagrada aos uma perversão da vontade desviada da
maus, com muito mais razão lhes desa substância suprema — de Vós, ó Deus
gradam a víbora e o caruncho que — e tendendo para as coisas baixas:
criastes bons e adaptados às partes vontade que derrama as suas entranhas
inferiores dos seres criados, às quais os e se levanta com intumescência2 6 3.
próprios malvados são tanto mais
semelhantes quanto são mais diferen 2 63 Eclo 10,9
17
Ascensão dolorosa
23. Admirava-me de já Vos ter mas criaturas. Este peso eram os hábi
amor e de não amar um fantasma em tos da luxúria.
vez de Vós. Não permanecia estável no Mas a vossa lembrança acompanha
gozo do meu Deus. Era arrebatado va-me. Nem de forma alguma eu duvi
para Vós pela vossa Beleza, e logo dava da existência dum Ser a quem me
arrancado de Vós, pelo meu peso, para devesse unir. Sabia, porém, que ainda
me despenhar, a gemer, sobre as ínfi me não encontrava apto para essa
/ CONFISSÕES VII 143
18
O único caminho para a Verdade
24. Buscava um meio para me pro Vida2 68”. Eu também devia crer que o
ver de forças a fim de ser apto para Alimento que era incapaz de tomar se
gozar-Vos, mas não o encontraria, uniu à carne, pois “o Verbo se fez
enquanto não abraçasse “o Mediador homem2 69”, para que a vossa Sabedoy
entre Deus e os homens, Jesus Cristo ria, pela qual criastes tudo, se tomasse
Homem-Deus bendito por todos os sé o leite da nossa infância.
culos, que está acima de todas as Como possuía pouca humildade,
coisas2 6 7”. Ele chamava-me e dizia: não compreendia que Jesus, o meu
“Sou o caminho, a Verdade e a
2 88 Jo 14,6.
2 6 7 lTiml,5. 2 89 Jo 1, 14.
144 SANTO AGOSTINHO
Deus, fosse humilde, nem alcançava de soberba e alimenta o amor, para que,
que ensinamentos fosse mestra a sua cheios de confiança em si mesmos, se
fraqueza. Com efeito, p vosso Verbo, não afastem para mais longe. Pelo
Verdade eterna, exaltado sobre as cria contrário, humilham-se ao presenciar a
turas mais sublimes, ergue até si os que seus pés a Divindade tomada humilde
se lhe sujeitam. Porém nas partes infe pela comparticipação “da túnica da
riores da criação construiu para si, nossa carne2 70”, e cansados pros-
com o nosso lodo, uma vivenda humil tram-se-lhe diante d’Ele, que,, erguem
de. do-os, os exaltará.
Por meio desta, rebaixa e atrai para
si os que deseja submeter. Cura a 2 70 Gén-3,21.
19
Hesitante na doutrina do Verbo
25. Eu, porém, pensava doutra ma cia quanto me era possível, e de que
neira, e somente imaginava o meu Se não duvidava absolutamente nada.
nhor Jesus Cristo como um homem de Com efeito, mover agora pela vontade
excelente sabedoria, que ninguém po os membros do corpo, e logo depois
deria igualar, sobretudo porque nasceu não os mover; sentir agora um afeto e
maravilhosamente duma Virgem, para logo depois já o não sentir; exprimir,
nos dar exemplo de desprezo das coi por meio de sinais, sábias idéias, e logo
sas temporais e adquirir a imortalidade voltar ao silêncio são características
divina. Parecia-me que tinha merecido da mutabilidade da alma e da inteli
tão grande autoridade de magistério gência. Se isso que d’Ele se escreveu
pelo cuidado com que se ocupou de fosse falso, também tudo o mais corre
nós2 71. Nem sequer podia suspeitar ría risco de ser mentira, e nenhuma fé
que mistério encerravam as palavras: salvadora subsistiría nestes livros, para
“O Verbo se fez homem2 72”. Simples o gênero humano. Porque tais escritos
mente pelos escritos que d’Ele trata são autênticos, reconhecia apenas em
vam sabia que comeu, bebeu, dormiu, Cristo um homem completo: não só
fez caminhadas, regozijou-se, entriste um corpo humano ou um corpo e uma
ceu-se, conversou, e que aquela carne alma sem mente2 7 4, mas um homem
não se tinha unido ao vosso Verbo real, que eu julgava avantajar-se aos
senão pela alma e inteligência huma restantes mortais, não por ser a perso
na271
273.
* • nificação da Verdade, mas por motivo
Isto já o sabe todo aquele que da grande excelência de sua natureza
conhece a imutabilidade dó vosso humana e de sua mais perfeita partici
Verbo, imutabilidade que eu já conhe pação quanto à Sabedoria. s
Alípio, porém, supunha que os cató
271 Como Fotino, Santo Agostinho acreditava, licos acreditavam num Deus, revestido
nesse tempo, que Jesus Cristo fosse um simples
homem a quem fora concedida a plenitude da graça 2 7 4 O texto latino traz: “sine mente animum”.
em paga das suas virtudes humanas. (N. do T.) Mens, na filosofia de Santo Agostinho, compreende
2 72 Jo 1, 14. a Ratio, ou faculdade discursiva, de cujo exercício
2 73 Santo Agostinho não põe em dúvida a união resulta a ciência; e a inteligência, de cujo exercício
substancial do Verbo com a naturèza humana, em resulta a Sabedoria (conhecimento intuitivo do imu
Jesus Cristo. Apenas afirma que não houve mistura tável ou puro inteligível). Mens é o que há de mais
das duas naturezas. Declara-o nas palavras a seguir. sublime na alma. Agostinho desconhecia então a
(N. do T.) inteligência humana de Cristo. (N. do T.)
CONFISSÕES VII 145
20
Do platonismo à Sagrada Escritura
26. Mas depois de ler aqueles livros Vós, não seriaperzto, masperituro2 79.
dos platônicos e de ser induzido por Já então, cheio do meu castigo, come
eles a buscar a verdade incorpórea, vi çava a querer parecer um sábio; não
que “as vossas perfeições invisíveis se chorava e, por acréscimo, inchava-me
percebem por meio das coisas cria com a ciência.
das2 78”. Sendo, repelido (no meu esfor Onde estava aquela caridade que se
ço), senti o que, pelas trevas da minha levanta sobre o alicerce da humildade,
alma, me não era permitido contem que é Jesus Cristo? Quando é que estes
plar: experimentei a certeza de que livros ma ensinariam? Por isso, segun
existíeis e éreis infinito, sem contudo do julgo, Vós quisestes que eu fosse ao
vos estenderdes pelos espaços finitos e seu encontro antes de meditar as vos
infinitos. Sabia que éreis verdadeira sas Escrituras, para que se imprimisse
em minha memória o sentimento que
mente Aquele que sempre permanece o nelas experimentei.
mesmo, sem Vos transformardes em
outro, quer parcialmente e com algum Depois, quando em vossos livros
encontrasse a serenidade e minhas feri
movimento, quer de qualquer outro das fossem tocadas por vossos dedos e
modo. Sabia que todas as outras coisas fossem por eles curadas, discerniría
provêm de Vós, pelo motivo único e perfeitamente a diferença que havia
seguríssimo de existirem. Sim/tinha a entre a presunção e a humildade, entre
certeza disso. Porém, era demasiado os que vêem para onde se deve ir e os
fraco para gozar de Vós ! que não vêem por onde se vai nem o
Tagarelava à boca cheia como um caminho que conduz à pátria bem-
sabichão, mas, se não buscasse em aventurada. Esta será não somente ob-
Cristo Nosso Salvador o caminho para
2 79 Temos de novo um jogo de palavras: “Perito”
e “perituro”. “Perituro”: que havia de perecer (N.
2 78 Rom 1,20. do T.)
146 SANTO AGOSTINHO
21
Entre o esplendor da verdade e o platonismo
27. Por conseguinte lancei-me avi ele “perante a outra lei dos seus mem
damente sobre o venerável estilo (da bros, que recalcitra contra a lei do seu
Sagrada Escritura), ditada pelo vosso espírito e ó cativa na lei do pecado,
Espírito, preferindo, entre outros auto escrita nos seus membros283”? “Por
res, o Apóstolo São Paulo. Desvanece- isso, Vós, Senhor, sois justo; nós,
ram-se-me aquelas objeções segundo porém, pecamos, cometemos iniqui
as quais algumas vezes me pareceu . dade; procedemos impiamente, e a
haver contradição na Bíblia e incon vossa mão pesou sobre nós2 8 4.” Justa
gruência entre o texto dos seus discur mente fomos entregues ao pecador
sos e os testemunhos da Lei e dos Pro antigo, ao príncipe da morte, pois per
fetas. Compreendí o aspecto único suadia a nossa vontade a conformar-se
daqueles castos escritos, e “aprendi a com a sua, “que não permaneceu na
alegrar-me com tremor280”. Comecei vossa verdade2 8 5”.
a lê-los e notei que tudo o que de ver Que fará o infeliz homem? “Quem o
dadeiro tinha lido nos livros dos platô livrará deste corpo de morte, senão a
nicos se encontrava naqueles, mas com vossa graça por Jesus Cristo Nosso
esta recomendação da vossa graça: Senhor28 6”, que Vós gerastes coetemo
que aquele que vê não se glorie como e criastes no pmcípio de vossos cami
se não tivesse recebido não somente o nhos, ao qual “o príncipe deste
que vê mas também a possibilidade de mundo28 7”, apesar de o não encontrar
ver281. “Com efeito, que coisa tem ele em nada merecedor de morte, o
que não tenha recebido282?” E Vós, matou? “Foi assim anulado o libelo
que sois sempre o mesmo, não só o que nos era contrário2 8 8.”
admoestais para que Vos veja, mas
também para que se cure a fim de Vos Ora, isto não o dizem os .livros
possuir. platônicos. Suas páginas não encerram
Aquele que não pode ver de longe, a fisionomia daquela piedade, nem as
percorra, contudo, o caminho por onde lágrimas da compunção, nem “o vosso
possa vir a contemplar-Vos e a pos- sacrifício nem o espírito compungido,
suir-Vos. Efetivamente, ainda que o nem o coração contrito e humilha-
homem se deleite na “lei de Deus,
segundo o homem interior”, que fará 283 Roml, 22.
28 4 Dan 3, 27; SZ 31, 4.
28 5 Jo 8, 44.
280 S12, 11. 28 6 Rom 1,24.
281 1 Cor 4, 7. 28 7 Jo 14,30.
282 1 Cor 4, 7. 288 Col2, 14.
CONFISSÕES VII 147
do289”, nem a salvação do povo, nem Uma coisa é ver dum píncaro arbo
a cidade desposada290, nem o penhor rizado a pátria da paz e não encontrar
do Espírito Santo, nem o cálice do o caminho para ela, gastando esforços
nosso resgate291. Lá ninguém canta: vãos por vias inacessíveis, entre os ata
Porventura a minha alma não há de ques e insídias dos desertores fugitivos
estar sujeita a Deus? “Depende d’Ele a com o seu chefe Leão e Dragão29 4; e
minha salvação, porquanto Ele é o outra coisa é alcançar o caminho que
meu Deus e Salvador. Ele me recebe e para lá conduz, defendido pelos cuida
d’Ele não me apartarei mais2 9 2.” dos do general celeste, onde os que
desertaram da milícia do paraíso não
Nos livros platônicos ninguém ouve podem roubar, pois o evitam como um
Aquele que exclama: “Vinde a Mim, suplício29 5.
vós, os que trabalhais”. Desdenham Estas coisas penetraram-me até às
em aprender d’Ele, que é manso e entranhas, por modos admiráveis, ao
humilde de coração. “Escondestes ler (São Paulo) “o mínimo dos vossos
estas coisas aos sábios e entendidos, e Apóstolos29 6”. E enchia-me de espan
as revelastes aos humildes293.” to, considerando as vossas obras. . .
289 Sl50, 19. 294 Sl 90, 13.
290 Apc21,2. 29 5 Nesta passagem parece ter-se inspirado Santo
291 2 Cor 5,5. Inácio de Loiola para elaborar a meditação das
292 5/61,2,3. Duas Bandeiras. (N. do T.)
293 Mt 11,28; 11,25. 29 6 1 Cor 15, 9.
LIVRO VIII
A CONVERSÃO
I — Simpliciano. A con
versão de Vitorino ,
suas dificuldades e
alegrias (1-4).
II — A- luta na conversão:
As duas vontades. . .
A exposição de Pontf
ciano (5-7).
III — A conversão de Santo
Agostinho, de Alípio e
a alegria de Santa Mô-
pica (8-12).
1
“A pérola preciosa”
1. Fazei, ó meu Deus, que eu recor . falar com Simpliciano302, que eu tinha
de e confesse, em ação de graças, as por um bom servo vosso e em quem
vossas misericórdias para comigo! brilhava a vossa graça. Ouvira dizer,
Permiti que os meus ossos se penetrem além disso, que desde a juventude vivia
do vosso amor e digam: “Senhor, devotadamente para Vós. Com efeito,
quem é semelhante a Vós?29 7” Rom jâ envelhecera, e, em tão longa idade,
pestes os meus grilhões e “ofertar- seguira sempre, com zelo ardente, o
Vos-ei um sacrifício de louvor298”. vosso caminho. Devia ser um homem
Narrarei como os rompestes, e todos muito experimentado e instruído.
os que Vos adoram exclamarão: “Ben Assim era, na verdade. Queria, por
dito seja o Senhor no céu e na terra; o isso, falar com ele das minhas inquie
seu nome é grande e admirável299”. tações, para que me descobrisse o
As vossas palavras tinham-se grava modo de uma alma agitada como a
do no íntimo do meu coração. Vós minha adiantar no vosso caminho.
cercáveis-me de todos os lados. Tinha 2. Via cheia a Igreja. Uns caminha
a certeza de que a vossa vida era eter vam duma maneira, outros doutra.
na, apesar de só a ter visto “em enigma Desagradava-me a vida que levava no
e como num espelho300”. Toda a dúvi mundo. Era para mim de grande peso,
da sobre a substância incorruptível me agora que as paixões e a esperança de
fora resolvida, ao ver que dela provém honras e dinheiro já me não anima
toda a substância. Desejava. . . não vam, como de ordinário, a sofrer tão
digo estar mais certo de Vós, mas mais pesada servidão. Sim, tudo isso já me
firme em Vós. Tudo vacilava, porém, não deleitava, em vista da vossa doçu
na minha vida temporal, e o meu cora ra e da beleza da vossa casa, que amei.
ção precisava ser limpo do antigo Mas ainda estava tenazmente ligado à
fermento301. O verdadeiro caminho, mulher. Ê certo que o Apóstolo303 não
que é o Salvador, encantava-me, mas me proibia casar, não obstante exor
ainda me repugnava enveredar por tar-me a um estado melhor, porque
seus estreitos desfiladeiros. queria ardentemente que todos os ho
mens fossem como ele. Eu, pforém,
Inspirastes-me então a idéia — que,
demasiado fraco, escolhia o lugar mais
no meu conceito, julguei boa — de ir
aprazível. Era só por isso que vivia de
hesitações em tudo o mais, lânguido e
29 7 57 34, 10. enfermo por causa das preocupações
29B. Sl 115, 16.
299 S115,2. 302 Simpliciano sucedeu, mais tarde, a Santo
300 1 Cor 13, 12. Ambrósio no bispado de Milão, em 397. (N. do T.)
301 1 Cor 5, 7. 303 São Paulo. (N. do T0
152 SANTO AGOSTINHO
2
A conversão de Vitorino
3. Dirigi-me, portanto, a Simpli- Em seguida, para me exortar à
ciano, que, na concessão da graça, era humildade de Cristo, “escondida aos
pai do Bispo Ambrósio311. E, na ver sábios e revelada aos pequeninos313”,
dade, este amava-o como pai. Narrei- falou de Vitorino, a quem conhecera
lhe ps labirintos do meu erro. Quando, intimamente, quando estava em Roma.
porém, lhe disse que tinha lido uns li Não guardarei silêncio sobre o que me
vros platônicos vertidos para o latim contou dele, porque encerra grande
por Vitorino — outrora retórico em louvor, que só à vossa graça se deve
Roma, e de quem eu ouvira dizer ter atribuir. Vitorino não teve vergonha de
morrido cristãq —, Simpliciano deu- se fazer servo do vosso Cristo e crian
me os parabéns por não ter caído nos cinha na vossa fonte31 4, sujeitando q
escritos dos outros filósofos, cheios de pescoço ao jugo da humildade e
falácias e enganos, “segundo os ele dobrando a fronte sob o opróbfip da
mentos do mundo312”. As obras pla Cruz, ele, o célebre e dqutíssimo
tônicas sugerem, de todos os modos, ancião, perito em todas as artes libe
Deus e o seu Verbo. rais, leitor e crítico de tantas obras
filosóficas, preceptor de tantos senado-
311 São Simpliciano viera de Roma a Milão para
instruir Santo Ambrósio na Sagrada Escritura e o
dirigir espiritualmente. Este sacerdote, muito ins 313 Af£ll, 25.
truído, foi o sucessor de Santo Ambrósio. (N. do T.) ?1, J Refere-se ao Sacramento do Batismo. (N. do
312 Col 2, 8.
CONFISSÕES VIII 153
res ilustres; ele, que, pelo seu insigne e tanto, são as paredes da igreja que nos
notável magistério, merecera e aceitara fazem cristãos?” Repetia muitas vezes
a honra que os cidadãos deste mundo que já era cristão. Simpliciano respon
têm por mais excelsa — uma estátua dia-lhe com a mesma frase, e Vitorino
no Foro romano; ele, até àquela idade de novo repetia o gracejo das paredes.
o adorador dos ídolos e o compartici- Este temia ofender os amigos — sober
pante dos ritos sacrílegos, com que bos adoradores dos demônios —, por
então quase toda a nobreza romana, julgar que, do cimo das suas dignida-
apaixonada, inspirava ao povo o culto des babilônicas e mundanas, como do
de Osíris31 5, “de monstros de deuses alto de cedros do Líbano que o Senhor
de todo o gênero e até do ladrador ainda não abatera, haviam de ruir
Anúbis31 6” — monstros que outrora sobre ele pesadas perseguições.
“pegaram em armas contra Netuno, Mas depois que hauriu força na lei
Vênus e Minerva31 7” — a quem tura e oração, temeu ser negado por
Roma fazia súplicas, depois de os ter Cristo, “na presença dos santos
vencido; ele, enfim, o velho Vitorino, anjos”, se receasse “confessá-lo peran
que por tantos anos defendera esses te os homens31 9”. Imaginou-se réu de
deuses com aterradora eloquência. grande crime por se envergonhar dos
4. O Senhor, Senhor, que “incli sacramentos de humildade do vosso
nastes os céus e de lá descestes, que Verbo, e não corar com as sacrílegas
tocastes os montes e fumegaram318”,
como pudestes insinuar-Vos naquele adorações dos soberbos demônios, as
coração? Vitorino — afirmou-me Sim- quais, como soberbo imitador, aceita
pliciano — lia a Sagrada Escritura, ra. Teve pejo da vaidade e corou à
perscrutava e investigava ansiosa vista da verdade. De súbito e inespera
mente a verdade na literatura cristã. damente disse a Simpliciano, como
Dizia a Simpliciano, não às claras, este me contou: “Vamos à igreja;
mas na intimidade e familiarmente: quero fazer-me cristão”. Simpliciano,
“Sabes que já sou cristão?” E aquele não cabendo em si de alegria, foi com
respondia-lhe: “Não acreditarei em ti ele. Quando assimilou os primeiros
nem te contarei entre os cristãos, mistérios da doutrina, deu, não muito
enquanto te não vir na Igreja dê Cris depois, o nome para se regenerar no
to”. Vitorino- sofria, dizendo: “Por batismo, causando admiração em
Roma e regozijo na Igreja. Os sober
31 5 Divindade suprema da mitologia egípcia, que, bos, ao verem o caso, iravam-se, ran
juntamente com ísis, sua esposa, e Hórus, seu filho, giam os dentes e consumiam-se. Vós,
constituía uma trindade familiar. Segundo a lenda,
Osíris, deus do Nilo e da vegetação, foi assassinado porém, Deus e Senhor, éreis a espe
por Set, o deus do deserto, e ressuscitado por sua rança cio vosso servo, que “não olhava
esposa, ísis, a deusa da terra fértil. Hórus matou a para yaidades e enganpsas loucu
Set, para vingar o pai. Os egípcios representavam os
deuses por figuras de animais e por figuras humanas ras329”.
com cabeça "de animal. Ádoravam: o crocodilo, o
gato, o leão, o escaravelho, o falcão, o boi, a íbis, 5. Enfim, chegada a hora de fazer a
etc. (N. do T.) profissão de fé — em Roma, os que se
31 6 Divindade egípcia que, segundo a mitologia, hão de aproximar para receber a graça
embalsamou o cadáver do deus Osíris. É represen
tado sob o corpo de homem e cabeça de chacal, que costumam fazer essa profissão dum
os gregos e Virgílio confundiram com um cão a lugar elevado, em fórmulas fixas e
ladrar. Camões refere-se a ele nos Lusíadas, VII, 48.
(N. do T.j ' .
31 7 Virgílio, Eneida VIII, 698. 319 Lc 12, 9;Mc 8, 38.
318 57143,5. 320 Sl 39, 5.
154 SANTO AGOSTINHO
3
A alegria do que volta a Deus
6. ó Deus tãó bom, que se passa no jais-Vos em nós e em vossos anjos
homem, para que se regozije mais com santificados por um amor Santo. Sois
a salvação duma alma desesperada e sempre o mesmo. Conheceis sempre e
agora livre dum grande perigo, do que do mesmo modo tudo o que nem sem
se ele sempre tivesse conservado a pre nem da mesma maneira existe.
esperança acerca dela e fosse menor o 7. Que é, pois, o que se opera na
perigo? Mas também Vós, ó Pai alma,.quando se deleita mais com as
misericordioso, sentis mais gozo “por coisas encontradas _qu reavidas que
um só penitente, do que por noventa e estima, do que se as possuíssejsempre?
nove justos, que não precisam da Há, na verdade, muitos outros exem
penitência322”. Também nós ouvimos plos que o afirmam. Abundam os teste
com imenso prazer a alegria do pastor munhos que nos gritam: ’“É assim
que conduz aos ombros a ovelha mesmo!” Triunfa o general vitorioso.
desgarrada, ou a da mulher que encon Mas não teria alcançado a vitória se
trou a dracma, e, no meio do regozijo não tivesse pelejado, e quanto mais
dos vizinhos, a repõe nos vossos tesou grave foi o perigo no combate, tanto
ros. O júbilo da solenidade d'a vossa maior é o gozo no triunfo. A tempes
morada estanca-nos as lágrimas ao ler tade arremessa os marinheiros, amea
mos que em vossa casa o filho mais çando-os com o naufrágio: “Todos
novo “estava morto e reviveu, tinha empalidecem com a morte iminen
perecido e foi encontrado323”. Regozi te32 4”. Mas tranqüilizam-se o céu e o
mar, e todos exultam muito, porque
322 Lc 15,7.
323 Lc 15.32. 32 4 Verso de Virgílio, Eneida IV, 644.
CONFISSÕES VIII 155
muito temeram. Está doente um amigo amizade, como também naquele “que
e o seu pulso acusa perigo. Todos os estava morto e reviveu, havia perecido
que o desejam ver curado sentem-se e foi achado32 5”. Por toda parte, uma
simultaneamente doentes na alma. Me alegria maior é precedida duma dor
lhora. Ainda não recuperou as forças também maior.
antigas e já reina tal júbilo qual não Por que assim, ó Senhor, Deus meu,
existia antes, quando se achava são e quando Vós próprio sois a vossa ale
forte. gria eterna, e tudo o que está à vossa
Até os próprios prazeres da vidá hu volta se alegra em Vós? Por que é que
mana não se apossam do coração do esta parte das vossas obras oscila em
homem só por desgraças inesperadas e alternativas de queda e de progresso,
fortuitas, mas por molétias previstas e de ofçnsas e de reconciliações? Será
voluntariamente procuradas. Não há esta a sua condição? Só lhe conce
prazer nenhum no comer e beber; se o
incômodo da fome e da sede o não pre destes isso, quando das alturas dos
cede. Por isso os ébrios costumam céus até aos abismos da terra, do prin
tomar certos alimentos salgados, para cípio ao fim dos séculos, do anjo ao
que se lhes tome molesta a sede arden mais pequenino verme, do primeiro ao
te que se há de transformar em prazer, último movimento dispúnheis todas as
quando acalmada pela bebida. Está variedades de bens e todas as vossas
estabelecido que não sê entregam ime obras justas no seu lugar, e as determi-
diatamente aos maridos as esposas náveis no seu respectivo tempo? Ai de
prometidas, para que o esposo, no caso mim! Quão alto sois nas alturas e
de nunca haver suspirado pela esposa, quão profundo nos profundos abis
não a venha a ter como coisa desprezí mos ! Nunca Vos apartais de nós, e,
vel. contudo, com que dificuldade nos vol
8. Isso tanto se verifica na alegria tamos para Vós!
torpe e execranda como no prazer per
mitido e lícito; na mais sincera e pura 32 5 Lc 15, 32.
4
O regozijo da Igreja
5
A luta das vontades
10. Logo que o vosso servo Simpli duma vontade alheia, mas pelas mi
ciano me contou tudo isso de Vitorino, nhas, também de ferro.
imediatamente ardi em desejos de imi O inimigo dominava o meu querer, e
tá-lo. De fato, toda a sua narração dele me forjava uma cadeia com que
tinha este mesmo fim em vista. Porém, me apertava. Ora, a lúxúria provém da
quando depois acrescentou que nos vontade perversa; enquanto se serve à
tempos do Imperador Juliano tinha luxúria, contrai-se o hábito; e, se não
sido promulgada uma lei proibindo aos se resiste a um hábito, origina-se uma
cristãos ensinarem literatura e oratória necessidade. Era assiih que, por uma
— lei que Vitorino abraçou, preferindo espécie de anéis entrelaçados — por
assim abandonar antes a escola dos isso lhes chamei cadeia —, me segu
palradores do que a vossa Palavra, rava apertado em durà escravidão. A
“com que tomais eloquentes as línguas vontade nova, que começava a existir
das crianças331” — pareceu-me que em mim, a vontade de Vos honrar
Vitorino era tão corajoso como feliz, gratuitamente e de querer gozar de
por ter encontrado ocasião propícia Vós, ó meu Deus, único contentamento
para se entregar a Vós. Por isso eu sus seguro, ainda se não achava apta pára
pirava, atado, não pelas férreas cadeias superar a outra vontade, fortificada
pela concupiscência. Assim, duas von
331 Sab 10,21. tades, uma concupiscente, outra dorhi-
CONFISSÕES VIII 157
6
Narração de Ponticiano
13. Contarei agora e confessarei, “ó maior número de horas possível para
Senhor, meu amparo para glória do indagar, ler ou ouvir ler qualquer coisa
vosso nome, Redentor33 6”, como me da sabedoria.
arrancastes dos laços do desejo carnal, 14. Ora, um dia — não me recordo
a que estava tão estreitamente preso. por que é que Nebrídio se achava
Levava a vida do costume, numa ausente —, um tal Ponticiano, nosso
ansiedade crescente, suspirando todos compatriota, como africano que era,
os dias por Vós e frequentando a vossa que no palácio desempenhava um
igreja por todo o tempo que me deixa cargo elevado, veio à nossa casa visi
vam livre os negócios sob cujo peso tar-nos, a mim e a Alípio. Já não sei o
gemia. Habitava comigo Alípio, deso que nos queria. Sentamo-nos para con
nerado do cargo de juiz, depois de ter versar. Por acaso, viu em cima da
sido assessor pela terceira vez, espe mesa de jogo que estava diante de nós
rando ocasião de vender de novo as um códice. Pegou nele, abriu-o, e
consultas como eu vendia a arte da inesperadamente encontrou as Epísto
eloquência, se é que, pelo ensino, a las do Apóstolo São Paulo. Imaginara
podemos transmitir33 7. Nebrídio, que era algum dos livros cujo estudo
porém, havia cedido à nossa amizade, me atarefava. Então, sorriu para mim
vindo substituir, nas aulas, a Verecun- e, felicitando-me, admirou-se de ter
do, o nosso mais íntimo amigo, cida encontrado, em frente de meus olhos,
dão milanês e gramático, que com este livro e só este livro.
grande instância desejava e em nome
da amizade pedia que um de nós lhe Ponticiano era um cristão fiel que
prestasse a ajuda de que tanto carecia. muitas vezes se prostrara diante de
Portanto, não foi o desejo das como Vós, ó meu Deus, na igreja, em fre
didades que atraiu para este ofício quente e longa oração. Declarei-lhe
Nebrídio — pois poderia, se quisesse, que todo o meu maior cuidado ia para
aquela Bíblia. Assim nasceu a con
tirar mais rendimento das suas letras
—, mas, como amigo tão doce e apra versa de Ponticiano acerca de Antão,
zível, não quis, por dever de benevo monge do Egito, cujo nome resplan
lência, desprezar o nosso pedido. Pro decia notoriamente entre vossos ser
cedia, porém, com a maior prudência, vos, mas que até àquela hora nos era
tendo o cuidado de se não fazer conhe desconhecido. Quando reparou nisto,
cido dos grandes segundo este mundo. alongou-se na conversa. Sugeria-nos
Evitava no trato com eles toda a um homem tão grande, para nós desco
inquietação do espírito, que queria nhecido, e estranhava a nossa ignorân
conservar livre e desocupado, com o cia. Ouvíamos, estupefatos, as vossas
maravilhas tão autênticas, tão recentes
33 6 Sl 53, 8; 18, 15. e quase contemporâneas, realizadas na
33 7 Segundo o platónismo, ensinar é trazer à flor verdadeira Fé, na Igreja Católica.
da alma conhecimentos que nela jaziam adormeci Todos nos admirávamos: nós, por
dos. Esta doutrina influiu na teoria agostiniana da
“Reminiscência” e da “Iluminação Divina”. (N. do serem estas coisas tão grandes; e ele,
T.) por nunca as termos ouvido.
CONFISSÕES VIII 159
7
Reação de Agostinho
Com que açoites de palavras não flage tos e refutados. Só ficara nela um
lei a alma, para que seguisse o impulso mudo temor. A alma tinha medo,
que eu fazia para ir atrás de Vós? Mas como da morte, de ser desviada da cor
ela, renitente, recusava sem se escusar. rente do vício em que ia apodrecendo
Todos os argumentos estavam desfei mortalmente.
8
No jardim de Milão. Luta espiritual
19. Então, no meio daquela grande Afastei-me para o jardim e Alípio
refrega que, na minha casa interior, no seguiu-me, passo a passo. Mesmo com
meu quarto — o coração —, violenta ele presente, a minha solidão conti
mente tinha travado contra a alma, nuava. Como me havia ele de deixar,
precipito-me sobre Alípio, excla naquele estado? Sentamo-nos o mais
mando, perturbado no rosto e no espí longe possível de casa.
rito: “Por que Sofremos? Que significa Eu rangia em espírito, irando-me
o que acabas de ouvir? Os ignorantes com turbulentíssima indignação, por
levantam-se e arrebatam o céu3 4 4, e não poder seguir o vosso agrado e
nós, com doutrinas insensatas, eis aliança, ó meu Deus, pela qual todos
como nos revolvemos na carne e no os meus ossos clamavam, erguendo-
sangue! Teremos vergonha de os se Vos louvores até ao céu. Para lá che
guir, porque nos precederam, e não nos gar não se vai de navio, de carro ou a
envergonhamos sequer de os não se pé, nem sequer para andar o caminho
guir?” que tinha percorrido desde casa ao
Tais foram algumas das palavras lugar onde estávamos sentados. Com
que disse. A perturbação arrancou-me efeito, não só o ir ao céu, mas também
de Alípio. Ficou calado e atônito, a o atingi-lo não são mais que o querer
olhar-me, por eu falar dum modo insó ir, mas um querer forte e total, não
lito. A fronte, as faces, os olhos, á cor, uma vontade tíbia que anda e desanda
o timbre da voz descreviam mais o es daqui para ali, que luta consigo
tado da minha alma, do que as pala mesma, erguendo-se num lado e caindo
vras que proferia. no outro.
Na habitação de que usávamos, bem 20. Enfim, naquelas hesitações cau
como do resto da casa — pois o sadas pela dúvida, fazia os gestos que
hospedeiro, o dono, não a habitava —, costumam fazer os homens que que
havia um pequeno jardim. Para lá me rem e não podem, ou porque não pos
levara o tumulto do meu peito, onde suem membros ou porque os têm liga
ninguém era capaz de evitar a ardente dos com cadeias, debilitados pela
luta que eu travara comigo e que se fraqueza, ou de qualquer modo impedi
prolongaria até se resolver o assunto dos. Agarrei o cabelo, feri a fronte,
conforme Vós sabíeis e eu ignorava. apertei os joelhos entre os dedos entre
Esta minha loucura seria salutar e esta laçados. Fiz todos estes gestos porque
morte, vivificante. Eu sabia o que tinha quis. Poderia, porém, querer e não os
de mal, e ignorava o bem que havia de fazer, se a flexibilidade dos membros
ter pouco tempo depois. me não obedecesse.
Fiz, portanto, muitos movimentos,
3** Mt 11, 12. quando o querer não era o mesmo que
162 SANTO AGOSTINHO
o poder. Não fiz o 4ue incompara acontecia assim, porque o corpo, mo
velmente desejava muito mais, apesar vendo ao mínimo sinal os membros,
de o poder fazer logo que quisesse, obedecia mais facilmente à vontade
porque, para o querer, basta querer fraquíssima da alma, do que a própria
sinceramente. Ora, aqui a faculdade de alma se obedecia a si mesma para efe
poder identificava-se com a vontade; o tuar a sua grande vontade, só com a
querer era já praticar. E contudo não vontade.
9
A vontade em guerra
21. Donde vem este prodígio? Qual Mas não quer totalmente. Portanto,
o motivo? Fazei que brilhe a vossa também não ordena terminantemente.
misericórdia, e eu pergunte, pois talvez Manda na proporção do querer. Não
me possam responder os castigos som se executa o que ela ordena enquanto
brios dos homens e as tenebrosíssimas ela não quiser, porque a vontade é que
desolações dos filhos de Adão. Donde
manda que seja vontade. Não é outra
provém este prodígio? Qual a causa?
alma, mas é ela própria. Se não ordena
A alma manda ao corpo, e estç imedia
tamente lhe obedece; a alma dá uma plenamente, logo não é o'5que manda,
ordem a si-mesma, e resiste! Ordena a pois, se a vontade fosse plena, não
alma à mão que se mova, e é tão gran ■ ordenaria que fosse vontade, porque já
de a facilidade, que o mandado mal se o era. Portanto, não é prodígio nenhum
distingue da execução. E a alma é em parte querer e em parte não querer,
alma, e a mão é corpo ! A alma ordena mas doença da alma. Com efeito, esta,
que a alma queira; e, sendo a mesma sobrecarregada pelo hábito, não se
alma, não obedece. Donde nasce este
prodígio? Qual a razão? Repito: a levanta totalmente, apesar de socorrida
alma ordena que queira — porque se pela verdade. São, pois, duas vontades.
não quisesse não mandaria —, e não Porque uma delas não é completa,
executa o que lhe manda! encerra o que falta à outra.
10
Contra os maniqueístas
22. Desapareçam, ó meu Deus, da dade e concordarem com os homens de
vossa face, como vãos faladores e verdade, para que o vosso Apóstolo
sedutores do espírito, os que, ao obser lhes possa também dizer: “Outrora
varem a deliberação das duas vonta fostes trevas, mas agora sois luz no
des, afirmam que temos duas almas de Senhor3 4 5”. Porém, enquanto quise
naturezas diferentes: uma boa e outra rem ser luz em si mesmos e não no
má. Ora, esses tais são realmente Senhor, julgando que a natureza da
maus, ao seguirem essa má doutrina.
Só serão bons quando sentirem a ver 3 4 5 £/5, 8.
CONFISSÕES VIU 163
tades ou mais ainda, pois é tão grande des o coração do homem, enquanto
a abundância dos objetos apetecidos! delibera qual delas preferentemente
Contudo, eles, os maniqueístas, não deve abraçar? E todas são boas e
têm o costume de afirmar que haja tão lutam mutuamente até que se tome
grande multidão de substâncias diver uma resolução para a qual a vontade,
sas !. . . que dantes se dividia, se volte inteira
O mesmo acontece nas vontades mente, já unificada.
boas. Com efeito, pergunto-lhes se é Assim também quando a eternidade
bom deleitar-me com a leitura do deleita a parte superior, e o desejo do
Apóstolo, se é bom deleitar-me com o bem temporal retém a parte inferior, é
canto moderado dum salmo ou se é a mesma alma que, sem vontade plena,
bom comentar o Evangelho. A cada quer uma ou outra coisa. Por isso
uma destas perguntas, responderão: “É despedaça-se em penosas dores en
bom”. Mas se todas nos agradassem quanto pela verdade prefere a eterni
igualmente e ao mesmo tempo, não dade, e pelo hábito não quer desprezar
atormentariam já estas diversas vonta o desejo do bem temporal.
11
O espírito e a carne. Últimas lutas
25. Assim sofria e me atormentava, A paixão’ arraigada em mim, domina
acusando-me muito mais asperamente va-me mais do que o bem, cujo hábito
que de ordinário, rolando-me e revol desconhecia. Ao passo que se vinha
vendo-me nas minhas cadeias até que aproximando o tempo em que me
totalmente estalassem, pois só tenue- devia transformar noutro homem,
mente estava atado a elas. Mas, enfim, maior era o horror que me incutia.
ainda estava preso. E Vós, ó Senhor, Mas este não me repelia para trás nem
instáveis nos recônditos do meu cora me desencaminhava. Simplesmente se
ção. Com severa misericórdia duplicá- mantinha indeciso.
veis os açoites do temor e da vergonha, 26. Retinham-me preso bagatelas
para eu não afrouxar, e para eu partir de bagatelas, vaidades de vaidades, mi
as pequenas e leves cadeias que tinham nhas velhas amigas, que me sacudiam
ficado, a fim de se não robustecerem o vestido carnal e murmuravam baixi
de novo, ligando-me mais tenazmente. nho: “Então despedes-nos? Daqui por
Dizia dentro de mim: “Vai ser diante, nunca mais estaremos contigo.
agora, agora mesmo”. E pelas palavras Desde agora, nunca mais te será lícito
caminhava para a decisão final. Estava fazer isto e aquilo ...”
a ponto de a cumprir, e não a cumpria. E que coisas, ó meu Deus, que
Já não recaía nas antigas paixões, mas pensamentos me sugeriam as vaidades
estava próximo delas e respirava-as. no que eu chamei “isto ou aquilo”!
Ao mesmo tempo, esforçava-me por Afaste-os da alma do vosso servo a
chegar a uma decisão. Faltava pouco, vossa misericórdia! Que imundícies
sim, faltava pouco. Já quase a atingia e me sugeriam, que indecências! Redu
segurava. Mas ainda lá não estava nem zia-se já a menos de metade o número
a tocava, nem á alcançava, hesitando de vezes em que lhes dava ouvidos. Já
em morrer na morte ou viver na vida. as vaidades me não contradiziam aber
CONFISSÕES VIII 165
tamente, de frente, mas, como que a Vós, Esposo e Senhor. Ria-se de mim
segredar-me pelas costas, espicaça- com ironia animadora, òomo que a
vam-me furtivamente para que olhasse dizer: “Então, não poderás fazer o que
para trás quando procurava afastar- estes e estas fizeram? É porventura por
me. Contudo, faziam-me retardar, por si mesmos que estes o podem fazer?
duvidar arrancar-me e desfazer-me Não é por virtude de seu Deus e
delas, para saltar aonde me chama Senhor? Foi o Senhor seu Deus quem
vam, enquanto o hábito violento me me entregou a eles. Por que te apoias
rosnava: “Julgas que poderás passar em ti, ficando assim instável? Lança-te
sem elas?” n’Ele e não temas ! Ele não fugirá de ti,
27. MaS o hábito já me dizia isso e tu não cairás. Lança-te confiada-
com voz muito débil. Do lado para mente, e Ele, recebendo-te, curar-te-á”.
onde voltava o rosto e por onde temia Estava todo envergonhado porque
passar, abria-se diante de mim a casta ainda ouvia os murmúrios daquelas
dignidade da continência, serena, sem bagatelas e ficava suspenso na dúvida.
alegria desordenada. Convidava-me, De novo, a castidade parecia dizer-me:
acariciando-me honestamente, para “Sê surdo às tentações imundas dos
que viesse sem receios. Estendia-me as teus membros na terra, para os mortifi-
mãos piedosas e cheias de rebanhos de cares. Narram-te deleites, mas estes
boas obras para me receber e me abra não são segundo a lei do Senhor teu
çar. Junto dela, quantos meninos, don Deus”.
zelas, numerosa juventude, todas as Esta controvérsia em meu coração
idades, viúvas venerandas, virgens ido era apenas eu a lutar comigo mesmo.
sas ! Em nenhuma delas era estéril a Entretanto, Alípio, fixo a meu lado,
mesma continência, senão mãe fecun aguardava, silencioso, o desenlace
da de filhos gerados nas alegrias de desta insólita agitação.
12
A conversão
28. Quando, por uma análise pro representava-se-me mais açondicio-
funda, arranquei do mais íntimo toda a nada ao choro. Retirei-me o suficiente
minha miséria e a reuni perante a vista para que a sua presença me não pudes
do meu coração, levantou-se enorme se ser pesada.
tempestade que arrastou consigo uma Eis em que estado me encontrava!
chuva torrencial de lágrimas3 49. Para Alípio bem o adivinhou, porque lhe
as-derramar todas com seus gemidos, disse, julgo eu, qualquer coisa em que
afastei-me de Alípio, porque a solidão se descortinava o tom pesado que o
choro imprimia ao timbre da voz.
3 49 Esta luta interior repete-se na história íntima Tinha-me, então, erguido. Alípio, no
dos convertidos. Assim o confessa um deles, o
holandês Meer de Walcheren, discípulo de Leão auge do assombro, ficou imóvel no
Blois, que lhe prefaciou o livro Nostalgia de Deus. sítio onde estivéramos. Retirei-me, não
Escreveu ele: “Lemos as Confissões de Santo Agos
tinho, e surpreende-me ver que este santo, antes de sei como, para debaixo duma figueira,
encontrar a alta paz da fé, passou pelas mesmas e larguei as rédeas ao choro.
angústias e as mesmas dúvidas que me torturam tão
atrozmente a mim, um homem moderno” (cf. Nos Prorromperam em rios de lágrimas
talgia de Deus). (N. do T.) os meus olhos. Este sacrifício era-Vos
166 SANTO AGOSTINHO
que eu já não procurava esposa, nem fecunda do que ela desejava, e muito
esperança alguma do século, mas per mais querida e casta do que a que
manecia firme naquela regra de fé em podia esperar dos netos nascidos da
que tantos anos antes me tínheis mos minha carne.
trado a minha mãe3 5 7. Transformastes
a sua tristeza numa alegria muito mais 3 5 7 cf. Livro III, cap. 11. (N. do T.)
LIVRO IX
O BATISMO
I — O adeus ao professo-
rando. Na quinta de
Cassicíaco. De novo
em Milão (1-7).
II — Traços biográficos e
morte de Môniça, mãe
de Agostinho (8-13).
1
Em colóquio com Deus
1. “ó Senhor, eu sóu vosso servo, o meu livre arbítrio? De que profundo
sim, vosso servo e filho da vossa escra e misterioso abismo foi ele charnado
va. Quebrastes as minhas cadeias; num momento a fim de inclinar a
sacrificar-Vos-ei uma vítima de lou minha cerviz ao vosso suave jugo e os
vor3*58.” Fazei que meu coração e meus ombros ao vosso fardo tão leve,
minha língua Vos louvem e todos ós ó Cristo Jesus, “minha ajuda e reden
meus ossos exclamem: “Senhor, quem ção3 61”? Quão suave se me tomou de
há semelhante a Vós?3 5 9”. repente carecer de delícias fúteis!
Profiram eles estas palavras, e Vós, Receava perdê-las, e agora já sentia
respondei, dizendo à minha alma: “Eu prazer em abandoná-las ! Vós, a verda
sou atua salvação3 60”. deira e suprema Suavidade, as afastá-
Quem sou? Como sou eu? Que veis de mim. Vós as afastáveis, e em
malícia não houve nos meus atos; ou, vez delas entráveis Vós, mais doce que
se não a houve nos meus atos, nas mi todo prazer — mas não para a carne e
nhas palavras; ou, se não a houve nas o sangue —, mais resplandecente que
minhas palavras, na minha vontade 1 toda a luz, mas mais oculto que todo
Vós, porém, Senhor bom e miseri segredo, mais sublime que toda honra,
cordioso, olhastes para a profundeza mas não para aqueles que se exaltam
da minha morte e, com a vossa direita, em si mesmos.
exauristes do fundo do meu coração o Já o meu coração estava livre de
abismo de perversidade. E agora tudo torturantes cuidados, de ambição, de
era não querer aquilo que eu queria, e ganhos, e de se revolver e esfregar na
querer o que Vós queríeis. sarna das paixões. Entretinha-me em
Mas onde esteve durante tantos anos conversa convosco, minha Claridade,
minha Riqueza, minha Salvação, Se
3 58 Sl 115, 16, 17. nhor, meu Deus.
3 59 5/34, 10.
3 60 5/34,3.- 361 5/18,15.
2
O adeus à cátedra
2. Pareceu-me bem, na vossa pre ele suavemente, para dali em diante
sença, não abandonar ostensivamente não comprarem, da minha boca, armas
o ministério da minha língua de artifi- para o seu furor os jovens que não se
ciosa loquacidade, mas subtrair-me a preocupam da vossa lei nem da vossa
172 SANTO AGOSTINHO
paz, mas de loucuras vãs e combates demitir-me dum cargo público, exposto
tribunícios. aos olhares de toda a gente, seria por
Felizmente já faltavam poucos dias certo atrair a atenção de todos para a
para as férias das vindimas3 62. Resol- minha conduta. Muitas coisas se di
vi por isso suportá-los com paciência, ríam: que eu deixei chegar de propó
para depois me retirar como de costu sito um dia próximo às férias das vin
me, e, resgatado por Vós, não mais me dimas para me dar aparências dum
tornar a vender. grande homem. E que utilidade havia
Estáveis a par do nosso plano, não em entregar às críticas e às disputas os
porém os homens, a não ser os da meus sentimentos íntimos e “se blasfe-'
nossa intimidade. Tínhamos combi masse o meu bem3 6 6”?
nado que não se comunicasse a nin 4. Além disso, nesse verão, os pul
guém, ainda que Vós, quando nos mões, por causa do demasiado traba
erguíamos “do vale das lágrimas3 63” lho literário, começavam a sentir-se
entoando o “cântico das subidas3 6 4”, fracos e a respirar com dificuldade. A
nos tínheis concebido “setas agudas, lesão revelava-se nas dores do peito,
carvões devoradores contra a língua que se recusava a emitir voz mais níti
pérfida3 6 5”. Esta tudo contradiz sob da e mais prolongada. A princípio tais
pretexto de dar conselhos, e, como achaques perturbavam-me, porque
quem devora alimento, ama o que quase me tinham constrangido a depor
consome. o fardo do magistério, e, para poder
3. Tínheis dardejado o nosso cora curar-me e convalescer, sem dúvida
ção com setas da vossa caridade, e tra ter ia de interrompê-lo !
zíamos as vossas palavras trespas M-as apenas nasceu e se firmou em
sadas nas entranhas. E os exemplos mim a plena vontade de “repousar e de
dos vossos servos — que das Trevas ver que Vós sois o Senhor3 6 7” — Vós
trouxêreis à luz e da morte à Vida — o sabeis, meu Deus —, comecei a ale
reunidos no seio do nosso pensamento grar-me por se me deparar uma escusa
queimavam e consumiam a pesada verdadeira, com que pudesse moderar
sonolência, a fim de não mais nos o agastamento dos homens, que, por
inclinarmos para as baixezas. Inflama- causa dos seus filhos, jamais queriam ’
vam-nos tão vivamente que todo sopro que retomasse a minha liberdade.
da contradição, originado da crítica Cheio pois de tal consolação, supor
malévola, longe de nos extinguir, nos tava o decurso daquele intervalo de
incendiaria mais e mais. tempo — seriam talvez uns vinte dias
Contudo, por causa do vosso nome, —, mas rudemente o suportava, pois já
que santificastes através do universo, se tinha ausentado de mim a cobiça do
também o nosso desígnio e resolução ganho que me ajudava a desempenhar
teriam certamente panegiristas". Pare a dura ocupação. Eu ficaria esmagado,
cería quase jactância não esperar pelo se a paciência não sucedesse à cobiça.
tempo das férias já tão próximo; mas Alguns dos vossos servos e meus
irmãos dirão talvez que pequei, por
3 62 Estas começavam a 22 de agosto e terminavam que, com o coração já cheio do Vosso
a 15 de outubro, prolongando-se pelo mesmo tempo serviço, consenti assentar-me ainda
que as dos tribunais e repartições do Estado. (N. do
T.)
3 63 S183,6.
3 6 4 Sl 119, 1. 3 6 6 Rom 14, 16.
3 8 5 Ez 36, 23. 3 6 7 Sl44, 11.
CONFISSÕES IX 173
uma hora na cadeia da mentira. Não tes e lavastes na água santa este peca
discuto. Não é verdade que Vós, Se do, com todas as outras horrendas
nhor misericordiosíssimo, me perdoas fraquezas de morte?
3
Saudades dum amigo
4
Na quinta de Cassicíaco
7. Chegou o dia em que, na realida mostram-no as cartas3 7 5. Quando en
de, me devia libertar da profissão de contrarei tempo suficiente para come
retórico, da qual já estava desligado no morar todos os vossos grandes benefí
pensamento. Assim sucedeu. Livrastes cios para comigo, sobretudo nesta
a minha língua do lugar de que me tí- época da vida? Tenho pressa de referir
nheis já libertado o coração. Eu Vos outras graças mais importantes.
bendizia, partindo radiante de júbilo Chama por mim a recordação do
para a casa do campo, com todos os meu passado e toma-se-me doce, Se
meus3 72. nhor, confessar-Vos com que interiores
O que aí realizei nas letras — já estímulos me submetestes; como apla
incontestavelmente em vosso serviço, nastes a minha alma, abatendo os
mas respirando ainda a soberba da montes e as colinas dos meus pensa
escola, como o leitor numa pausa — mentos; como endireitastes as minhas
vias tortuosas e suavizastes as aspere
atestam-no os livros de disputas com
zas3 7 6, e como submetestes Alípio, o
os presentes3 73, ou só comigo na
irmão do meu coração, ao nome de
vossa presença3 7 4. O que tratei em
discussões com Nebrídio, ausente, vosso Filho único, “Nosso Senhor e
Salvador Jesus Cristo3 7 7”, nome que
ele a princípio desdenho s amente su
3 72 Cassicíaco, para onde se retirou Agostinho, portava que fosse inserido nos meus
chama-se hoje Cassago de Brianza, situado à dis
tância de sete léguas de Milão. Está encravado no escritos. Preferia Alípio que cheiras
meio dos montes. Na colina onde existia a casa de sem antes ao perfume dos cedros das
Verecundo, levantaram, séculos mais tarde, os du escolas, já abatidos pelo Senhor, do
ques Visconti di Modrone, um palácio. (N. do T.)
3 73 Esses livros em forma de diálogo têm por títu
lo: Contra Acadêmicos (trata da certeza e da verda 3 7 5 Em Cassicíaco repousavam então, além de
de); Da Vida Feliz (onde se prova que a verdadeira Agostinho e de Mônica: Adeodato, Navígio; Lasti-
felicidade reside na filosofia); Da Ordem (sobre a diano e Rústico; Trigécio, Licêncio, que estudavam
ordem do mundo e o problema do mal). (N. do T.) retórica e filosofia; e Alípio, que por vezes se ausen
3 7 4 Refere-se ao livro dos Solilóquios. Santo Agos tava até Milão. (N. do T.)
tinho permaneceu em Cassicíaco desde setembro de 3 7 8 Zs 40, 4;Zc 3, 4.
386 até março de 387. (N. do T.) 3 7 7 2RZr3, 18.
CONFISSÕES IX 175
que ao odor das ervas salutares da causa deles que eu pronunciava aque
vossa Igreja, antídoto contra o veneno las palavras com que entrecortava os
das serpentes. salmos. Efetivamente não as teria pro
8. Que exclamações elevei até Vós, ferido nem as entoaria daquela manei
meu Deus, ao ler os salmos de Davi, ra, se percebesse que era visto. Nem
esses cânticos de fé, esses hinos de pie eles, se eu as dissesse, as teriam rece
dade que baniam de mim o espírito da bido tais como as pronunciei comigo
soberba! Eu, bisonho no vosso verda quando, com familiar afeto à minha
deiro amor e ainda catecúmeno, gasta alma, me dirigi a mim mesmo, na
va o tempo naquela casa de campo vossa presença.
com o catecúmeno Alípio. Vivia ao 9. Horrorizei-me com temor e aí
nosso lado minha mãe, mulher no mesmo me abrasei em esperança, ale-
aspecto, mas viril na fé, com a calma grando-une “na vossa misericór
própria duma idade avançada, ternura dia380”, ó Pai. Tudo isto saía pelos
de mãe e piedade cristã. meus olhos e pela minha voz, quando o
Quantas exclamações proferia na vosso Espírito de bondade, chegando-
leitura desses salmos e como me infla se a nós, nos dizia: “Filhos dos
mava com eles, no vosso amor, dese homens, até quando sereis duros de
jando ardentemente recitá-los a toda a coração? Para que amais a vaidade e
terra, se me fosse possível, para rebater buscais a mentira?3 81 ”
o orgulho do gênero humano! Com Sim! eu tinha amado a vaidade e
efeito, são cantados em todo o univer buscara a mentira. Vós, Senhor, já “tr-
so, pois “não há ninguém que se sub nheis engrandecido o vosso Filho,
traia ao vosso calor3 78”. ressuscitando-o dos mortos e colocan
Como era veemente e atroz a dor do-o à vossa direita382”, para que lá
com que me indignava contra os do alto Jesus enviasse Aquele que
maniqueístas! De novo me compade tinha prometido, “o Paráclito, o Espí
cia deles por não conhecerem aqueles rito de verdade3 8 3 ”.
sacramentos, aqueles remédios, e por Ele já o tinha mandado 3 8 4, mas eu
se enfurecerem loucamente contra um não o sabia. Enviara-õ, porque já esta
antídoto que os podia curar. va glorificado com ressurgir dos mor
Querería que estivessem então junto tos e subir ao céu. Antes, porém, “o .
de mim, em qualquer parte — sem eu Espírito ainda não tinha sido concedi
saber que eles estavam presentes —, e do, porque Jesus ainda não estava
que contemplassem o meu rosto e glorificado3 8 5”.- Clama o profeta:
ouvissem as minhas exclamações ao “Até quando sereis duros de coração?
ler, naquelas férias, o salmo quarto. Para que amais a vaidade e buscais a
Oxalá vissem eles o que fez de mim mentira? Sabei que o senhor glorificou
aquele salmo: “Quando Vos invoquei, o seu Filho3 8 6”.
ouvistes-me, ó Deus da minha justiça. Clama: “Até quando”; clama: “SaL
Dilatastes a minha alma na tribulação. be.i E eu errante tanto tempo, sem o
Tende misericórdia de mim, Senhor, e saber, amei a vaidade e busquei amen-
ouvi a minha súplica3 7 9”. Oxalá me
380 5130, 8.
tivessem ouvido — sem eu o saber —, 3 81 514,3.
para que não pensassem que era por 382 514, 4;#/1,20.
3 83 jo 14, 16.
384 At2, 1.
3 78 SI 18,7. 38 5 Jo 6, 39.
3 79 SI 4, 2. 38 8 5/4,3.
176 SANTO AGOSTINHO
tira. Por isso, ouvi e tremi, porque me Oh! se vissem o interno e eterno
lembrava de ter sido igual àqueles a Esplendor que me fazia irritar contra
quem tais palavras se dirigiam. mim mesmo! Porque embora eu o
Nos fantasmas que eu tivera como saboreasse, não lhes poderia mostrar
verdade, só havia vaidade e mentira. esse brilho, se acaso trouxessem, no
Soltei pesados e fortes queixumes, na olhar, o seu coração pousado fora de
amargura da minha recordação. Oxalá Vós, e me dissessem: “Quem nos mos
os tivessem ouvido aqueles que até trará o Bem?”
agora amaram a vaidade, e buscam a Ali, onde me irava comigo mesmo,
mentira. Talvez se confundissem e no recôndito da alma onde me com
vomitassem o erro! Vós ouvi-los-eis, pungia, onde Vos oferecera um sacrifí
pois por nós morreu, com verdadeira cio, imolando-Vos a minha concupis-
morte corporal, “Aquele que continua cência392, onde, cheio de esperança
mente intercede por nós3 8 7”. em Vós, começara a meditar na minha
10. Lia: “Irai-vos e não pe renovação, aí mesmo principiastes a
queis388”. E eu, que já aprendera a fazer-me saborear as vossas doçuras,
irar-me contra os meus crimes passa “dando alegria ao meu coração393”.
dos, quanto me sentia impelido a não Saía-me em exclamações, quando,
mais pecar, ó meu Deus! Justamente lendo estas palavras fora de mim, as
me encolerizava, porque não pecava entendia no meu interior. Não desejava
em mim outra natureza de ascendência enriquecer-me de bens terrenos, devo
tenebrosa, como afirmam os que não rando o tempo e sendo por ele devora
se irritam consigo mesmos e “entesou- do, pois possuía, na eterna simplici
ram, contra si, a ira, para o dia da dade, “outro trigo, vinho e azeite3 9 4”.
vossa ira, dia da revelação do vosso 11. No versículo seguinte, num
justo juízo389”. grito profundo do meu coração, excla
Os meus bens já não estavam fora, mava: “Oh! estarei em paz ! Oh! vive
nem eram procurados sob este sol rei em paz no seu mesmo Ser3 9 5 !”
pelos olhos da carne. Aqueles que que Oh! o que eu disse: “Dormirei e
rem gozar fora de si mesmos facil descansarei”! Quem nos resistirá
mente se dissipam e derramam naque quando se cumprir aquela palavra que
las coisas aparentes e temporais, está escrita: “A morte foi devorada
lambendo com o pensamento faminto pela vitória39 6”? Vós sois esse Ente
as imagens de tais objetos. Oh ! se eles que não muda, em Vós está o descanso
se debilitassem com a fome e disses que faz esquecer todos os trabalhos,
sem: “Quem nos mostrará o Bem?3 90” porque nenhum outro repouso, existe
Ouçam a nossa resposta: “Está gra senão Vós3 9 7. Fora de Vós nem sequer
vada dentro de nós a luz do vosso posso adquirir outras muitas coisas
rosto, Senhor391”. Nós não somos a que não são o que Vós sois. “Mas Vós,
luz que ilumina a todo* homem, mas Senhor, singularmente me destes! a
somos iluminados por Vós, para que esperança3 9 8.”
sejamos luz em Vós os que fomos
outrora trevas. 392 Ã letra: “minha velhice”. A expressão signifi
ca: tendências pecaminosas. (N. do T.)
3935/4, 7.
38 7 7?om 8, 34. 394 5/4,8.
3 88 5/4,5. 39 5 5/4,9.
389 Roml, 5. 39 6 1 Cor 15, 54.
390 5/4,6. 39 7 Dt4, 35;Zí 45, 4.
391 5/4,6. 398 5/4, 10.
I
CONFISSÕES IX 177
5
Em comunicação com Santo Ambrósio
13. Acabadas as férias, fiz saber Escrituras, a fim de melhor me dispor e
aos habitantes de Milão que deviam de me tornar mais apto para a recep
prover os seus estudos com outro ven ção de tão insigne graça.
dedor de palavras, já que determinava Ordenou-me que lesse o profeta
consagrar-me ao vosso serviço. Nem Isaías, segundo me parece, por ter vati-
eu, pelas dores de peito e dificuldade cinado, mais claramente do que qual
em respirar, poderia desempenhar o quer outro, o vosso Evangelho e a
cargo. vocação dos gentios à fé. Mas não o
Comuniquei por carta, ao . vosso compreendí na primeira leitura, e, jul
santo Bispo Ambrósio, os meus desre- gando que todo ele era assim obscuro,
gramentos passados e a minha resolu deferi a sua repetição para quando esti
ção presente, para que me indicasse o vesse mais experimentado na palavra
que de preferência devia ler nas vossas do Senhor.
6
O batismo
14. Chegada a ocasião em que con cer para Vós, juntamente comigo, no
vinha inscrever-me entre os catecúme- batismo, já revestido da humildade tão
nos, deixando o campo, voltamos a conforme com os vossos sacramentos.
Milão400. Quis também Alípio renas Era ele um fortíssimo dorhador do
400 Em março de 387. (N. do T.) corpo, a ponto de trilhar descalço, com
178 SANTO AGOSTINHO
insólito arrojo, o solo regelado de senão Vós, poderia ser o artista de tais
Itália. maravilhas?
Juntamos também a nós Adeodato, Depressa lhe tirastes a vida da terra.
o filho carnal do meu pecado, a quem É com a maior tranqüilidade que eu
tínheis dotado de grandes qualidades. me lembro dele, nada lhe receando na
Com quinze anos incompletos ultra infância, nem na adolescência,'nem no
passava já em talento a muitos homens decurso da idade.
idosos e doutos. Confesso estes vossos Associamo-lo a nós como irmão na
dons, Senhor meu Deus, Criador de graça, para o educarmos na vossa lei.
todas as coisas e tão poderoso para Recebemos o batismo e abandonou-
corrigir as nossas deformidades, por nos a preocupação da vida passada.
que nada de meu havia nesse jovem,
além do pecado. Se por mim fora cria Não me saciava, nesses primeiros
do na vossa lei, fostes Vós e mais nin dias, de considerar, com inefável doçu
guém quem no-lo inspirou. Confesso- ra, a profundeza de vossos planos
Vos, pois, estes vossos dons. sobre a salvação da humanidade.
Há um livro meu que se intitula De Quanto não chorei, fortemente como
Magistro, onde ele dialoga comigo. Sa vido, ao escutar os hinos e cânticos,
beis que todas as opiniões que aí se ressoando maviosamente na vossa
inserem, atribuídas ao meu interlocu Igreja! Essas vozes insinuavam-se-me
tor, eram as dele quando tinha dezes nos ouvidos, orvalhando de verdade o
seis anos. Notei nele coisas ainda mais meu coração; ardia em afetos piedosos
prodigiosas. Aquele talento causava- e corriam-me dos olhos as lágrimas:
me calafrios de admiração, pois quem, mas sentia-me consolado.
7
O canto na igreja. Prenúncios de perseguição
15. Não havia muito tempo que a vosso servo. Minha mãe, vossa serva
Igreja de Milão começara a adotar o que era a principal nas vigílias e na
consolador e edificante costume dos inquietação geral, vivia em contínua
cânticos, com grande regozijo dos prece. Nós mesmos, ainda frios sem o
fiéis, que uniam num só coro as vozes calor do vosso espírito, nos como
e os corações. Havia um ano ou pouco víamos com a perturbação e conster
mais que Justina, mãe do jovem Impe nação da cidade.
rador Valentiniano, perseguia o vosso Foi então que, para o povo se não
servo Ambrósio por causa da heresia acabrunhar com o tédio e tristeza, se
com que fora seduzida pelos aria estabeleceu o canto de hinos e salmos
nos401. segundo o uso das igrejas do Oriente.
A multidão dos fiéis velava na igre Desde então até hoje tem-se mantido
ja, pronta a morrer com o seu bispo, entre nós este costume, sendo imitado
por muitos, por quase todos os vossos
401 Estes hereges, partidários de Ário, sacerdote de rebanhos de fiéis, espalhados no uni
Alexandria, negavam que Jesus Cristo fosse da verso.
mesma substância que o Pai, isto é, que fosse Deus.
Foram condenados no concilio ecumênico de 16. Ao vosso bispo, que acabo de
Nicéia, em 325. (N. do T.) nomear, manifestastes nesta conjun
CONFISSÕES IX 179
tura, por uma visão, o.lugar onde esta olhos402”. Logo que tocou com o
vam escondidos os corpos dos mártires lenço e o levou aos olhos, estes
Gervásio e Protásio, que por tantos abriram-se-lhe subitamente.
anos conservastes incorruptos no te Propagou-se logo a fama do mila
souro dos vossos segredos, para no gre, elevandõ-se até Vós ardentes e
momento oportuno os descobrirdes, a esplendorosos louvores. O coração da
fim de refreardes o furor duma simples perseguidora, ainda que se não tenha
mulher, embora imperatriz. Com efei rendido à fe da salvação, contudo
to, descobertos e desenterrados os cor reprimiu o furor na sua luta contra
pos, quando os transportavam com nós.
todas as honras à Basílica Ambro- Graças Vos dou, ó meu Deus!
siana, uns possessos, vexados por espí Donde chamastes? Para que parte cha
ritos imundos, foram curados, con- ’ mastes minha memória, a fim de con
forme confessaram os mesmos fessar estes acontecimentos que, apesar
demônios. da sua importância, omitira por esque
Também um cego de há vários anos, cimento ?
cidadão muito conhecido na cidade, Ainda não corria atrás de Vós,
tendo perguntado a causa das manifes quando deste modo se exalava “o
tações de regozijo entre o povo, infor aroma das vossas fragrâncias403”. Por
mado dos acontecimentos, levantou-se isso mais chorava ouvindo os vossos
e pediu ao guia que o levasse para hinos. Suspirava outrora por Vós, e
junto dos corpos dos mártires. Chega enfim.respirava quanto o permite o af
duma choça de colmo.
do lá, pediu licença para tocar com um
lenço o ataúde dos vossos “santos, 402 07 115,15.'
cuja morte fora preciosa aos vossos 403 Cãntl, 3.
8
A morte de Mônica em óstia. Sua educação
17. “Vós, que fazeis com que os Passo muitas coisas em silêncio,
unânimes habitem na mesma mora porque tenho pressa. Recebei, meu
da40 4”, associastes a nós o jovem Evó- Deus, as minhas Confissões e ações de
dio, natural do nosso município. Era graças por tão inumeráveis benefícios,
agente de negócios do imperador e, de que não faço aqui menção. Mas não
tendo-se convertido e batizado antes de quero calar os sentimentos que me bro
nós, renunciou às milícias profanas; tam da alma, acerca desta vossa serva,
alistando-se na vossa. Estávamos jun que, pela carne, me concebeu para a
tos, queríamos habitar em comum num vida temporal, e pelo coração me fez
convívio santo. nascer para a eterna. Não quero publi
Procurando um lugar onde mais car os seus méritos, mas os dons que
acomodadamente Vós servíssemos jun lhe concedestes. Não foi ela, efetiva
tos, voltávamos à África, quando em mente, que se fez ou educou a si
óstia, na foz do Tibre, faleceu minha mesma. Nem o pai nem a mãe podiam
mãe. adivinhar o que viria a ser aquela a
quem geraram.
40 4 S/67, 7. A disciplina do vosso Cristo, e a
180 SANTO AGOSTINHO
doutrina do vosso Filho único educa- Não o fazia, por inclinação à embria
ram-na no vosso temor no seio de uma guez, mas por excessos exuberantes da
família fiel, que era digno membro da juventude, que fervem sob a forma de
vossa Igreja. movimentos alegres e que de ordinário
Mais ainda que a diligência e educa se- corrigem nos ânimos pueris, pela
ção da mãe, Mônica enaltecia a vigi autoridade severa dos mais velhos.
lância de uma velha escrava, que já to Aumentando, porém, dia a dia, a
mara meu avô materno às costas, porção — “pois quem.despreza as coi
sendo ainda menino, como é costume sas pequenas insensivelmente cai nas
serem trazidas as crianças pelas meni maiores40 5” —, escorregou para o há
nas mais crescidas. Estas recordações, bito, de modo a esvaziar gulosamente
a sua idade avançada e os costumes copos cheios de vinho.
exemplares tornavam-na veneranda Onde estava então a prudente anciã
aos olhos dos amos, nesta casa cristã. e a sua severa proibição? Que remédio
Esta serva desempenhava com soli podia ser eficaz contra a doença ocul
citude o encargo que lhe confiaram os- ta, se a vossa medicina, Senhor, não
seus senhores de lhes olhar pelas filhas, vigiasse por nós? Na ausência do pai,
repreendendo-as quando era necessá da mãe e dos educadores, estáveis pre
rio, com santa e enefgica severidade, e sente Vós que nos criastes, que nos
instruindo-as com discreta prudência. chamais a Vós, e que por vossos lega
Além das horas em que tomavam uma dos procurais fazer algum bem para a
sóbria refeição à mesa de seus pais, salvação das almas. Que fizestes, pois,
nem água lhes deixava beber, ainda meu Deus? Como a socorrestes?
que ardessem em sede. Queria -preve Como a curastes? Não fizestes sair
ni-las dum mau hábito, e aduzia esta duma alma um sarcasmo agudo e
sábia razão: “Quereis agora beber doloroso, como ferro cirúrgico das
água, porque não tendes vinho em vossas provisões secretas, para cortar
vosso poder; quando vos casardes e dum só golpe aquela gangrena?
ficardes senhoras da adega e da des De fato, a escrava que costumava
pensa, não mais gostareis da água, mas acompanhá-la até junto do tonel, liti-
o hábito de beber prevalecerá”. gando um dia com a sua jovem senho
Com este método de aconselhar e ra, estando sós, lançou-lhe em rosto a
mandar com autoridade, lhes refreava ihtemperança, chamando-lhe com
o apetite em tenra idade e lhes adap atroz insulto: “Bêbeda40 6 !”
tava a sede às regras da temperança, Ferida por este aguilhão, considerou
para que não desejassem o que não a fealdade do seu hábito, reprovou-o e
convinha. corrigiu-se. Assim como as adulações
18. Apesar disso — como a vossa dos amigos nos pervertem, do mesmo
serva mo contou a mim, seu filho —, modo as censuras dos inimigos nos
insinuou-se-lhe pouco a pouco o gosto reformam. Contudo, não lhes retribuís
pelo vinho. Como filha sóbria, os pais segundo o que obrais por seu intermé
mandavam-na, segundo o costume, dio, mas segundo o mal que queriam
tirar vinho do tonel. Mergulhava a ca praticar. A escrava, zangada, quis
neca na cuba, aberta pela parte supe
rior, e antes de despejar o vinho para a
garrafa sorvia com a ponta dos lábios 40 B Eclo 19, 1.
40 6 O texto latino usa a palavra meribibula =
um poucochinho, porque, por causa da “bebedorazinha de vinho”, a qual só aparece nesta
repugnância, não podia beber mais. obra e em mais nenhum escritor. (N. do T.)
I
CONFISSÕES IX 181
9
Mônica, esposa modelar
cio, dócil à mãe e solícito pelo bom em pouca conta para alguém dotado
governo da casa e pela concórdia entre de sentimentos humanos o não atiçar
os seus, mandou flagelar as culpadas, ou não acender, com ditos malévolos,
segundo o desejo de quem as acusara. as inimizades dos outros, se não procu
A sogra declarou que podia esperar ra também, com boas palavras, extin
igual castigo quem quer que para lhe gui-las. Assim era minha mãe, como
agradar lhe dissesse mal da nora. Nin Vós, seu íntimo Mestre, a ensinastes na
guém ousou mais expor-se a tal risco, e escola do coração.
viveram as duas em doce harmonia, 22. Enfim, até Vos ganhou o mari
digna de ser lembrada. do, nos últimos tempos desta vida tem
21. Concedestes ainda um grande poral, e não teve mais a lamentar nele
dom a esta fiel serva em cujo seio me o que lhe sofrerá antes de se converter.
criastes, “ó meu Deus e minha miseri Era verdadeiramente a serva dos vos
córdia408”. Quando podia, mostrava- sos servos! Todos os que a conheciam
se conciliadora entre as almas discor Vos louvavam, honrando-Vos e arnan-
des e desavindas, a ponto de nada do-Vos nela, porque lhe sentiam no
referir de uma à outra senão o que coração a vossa presença, comprovada
podia levá-las a reconciliar-se, ouvindo pelos frutos duma existência tão santa.
dum lado e doutro as queixas amargas, Tinha sido “esposa dum só marido,
as quais costuma vomitar a discórdia saldara aos pais a sua dívida de grati
encolerizada e cheia de ressentimentos, dão, governara a casa piedosamen-
quando em presença duma amiga, o te409”. Com as suas boas obras, dava
vômito de rancores contra a inimiga testemunhos de santidade41 °.
ausente desabafa em azedas confidên-' Educara os filhos, dando-os tantas
cias. vezes à luz, quantas os via apartarem-
De pouca importância me parecia se de Vós. Enfim, ainda antes de ela
este bem, se uma triste experiência me adormecer no Senhor, quando já vivía
não mostrasse que um grande número mos unidos em Vós pela graça do
de pessoas — não sei por que hor batismo, era tão desvelada para todos
rendo contágio de malícia, já espa — já que por vossa liberalidade permi
lhado por muito longe —não só repete tis que nos dirijamos aos vossos servos
a inimigos encolerizados o que uns, — como se nos tivesse gerado a todos,
zangados, disseram de. outros, mas servindo-nos como se fosse filha de
ainda acrescenta coisas que eles não cada um.
proferiram. Pelo contrário, deve ter-se
409 1 Tim. 5,9, 4, 10.
*°*S168, 18. 410 Gál. 4, 19.
10
O êxtase de óstia 411
23. Próximo já do dia em que ela ia 411 Este capítulo é um dos mais célebres das
sair desta vida — dia que Vós conhe- Confissões. Notabiliza-se pela arte descritiva, pela
análise psicológica genial e intuição do Transcen
cíeis e nós ignorávamos —, sucedeu, • dente. Trata um assunto da mais alta mística: o êx
segundo creio, por disposição de vos tase. Faz-nos vislumbrar um mundo de silêncio e de
gozo para além do tempo e da fantasia dos sentidos.
sos secretos desígnios, que nos encon A cena foi representada num quadro por Ary Schef-
trássemos sozinhos, ela e eu, apoiados fer. (N. do T.)
CONFISSÕES IX 183
a uma janela cuja vista dava para o mesma, pois existe como sempre foi e
jardim interior da casa onde moráva- como sempre será. Antes, não há nela
mos. Era em óstia, na foz do Tibre, ter sido, nem haver de ser, pois
onde, apartados da multidão, após o simplesmente “é”, por ser eterna. Ter
cansaço duma longa viagem, retempe sido e haver de ser não são próprios do
ravamos as forças para embarcarmos. Ser eterno.
Falávamos a sós, muito docemente, Enquanto assim falávamos, anelan-
“esquecendo o passado e ocupando- tes pela Sabedoria, atingimo-la mo
nos do futuro412”. Na presença da mentaneamente num ímpeto completo
Verdade, que sois Vós,, alvitrávamos do nosso coração. Suspiramos e deixa
qual seria a vida eterna dos santos, mos lá agarradas “as primícias do
“que nunca os olhos viram, nunca o nosso espírito41 5”. Voltamos ao vão
ouvido ouviu, nem o coração do ruído dos nossos lábios, onde a pala
homem imaginou413”. Sim, os lábios vra. começa e acaba. Como poderá
do nosso coração abriam-se ansiosos esta, meu Deus, comparar-se ao vosso
para a corrente celeste “da Vossa Verbo, que subsiste por si mesmo,
fonte, a fonte da Vida41 4”, que está em nunca envelhecendo e tudo renovan
Vós, para que, aspergidos segundo a do?
nossa capacidade, pudéssemos de 25. Dizíamos pois: Suponhamos
algum modo pensar num assunto tão uma alma onde jazem em silêncio a
transcendente. rebelião da carne, as vãs imaginações
24. Encaminhamos a conversa até à da terra, da água, do ar e do céu. Supo
conclusão de que as delícias dos senti nhamos que ela guarda silêncio consi
dos do corpo, por maiores que sejam, e go mesma, que passa para além de si,
por mais brilhante que seja õ resplen- nem sequer pensando em si; uma alma
dor sensível que as cerca, não são dig na qual se calem igualmente os sonhos
nas de comparar-se à felicidade daque e as revelações imaginárias, toda a
la vida, nem merecem que delas se faça palavra humana, todo o sinal, enfim,
menção. tudo o que sucede passageiramente.
Elevando-nos em afetos mais arden Imaginemos que nessa mesma alma
tes por essa felicidade, divagamos existe o silêncio completo porque, se
gradualmente por todas as coisas cor ainda pode ouvir, todos os seres lhe
porais até o próprio céu, donde o Sol, dizem: “Não nos fizemos a nós mes
a Lua e as estrelas iluminam a terra. mos, fez-nos O que permanece etema
Subíamos ainda mais em espírito,
meditando, falando e admirando as mente41 6”. Se ditas estas palavras os
vossas obras. Chegamos às nossas seres emudecerem, porque j á . escuta
ram quem os fez, suponhamos então
almas e passamos por elas para atingir
que Deus sozinho fala, não por essas
essa região de inesgotável abundância, criaturas, mas diretamente, de modo a
onde apascentais etemamente Israel ouvirmos a sua palavra, não pronun
com o pastio da verdade. Ali a vida é a ciada por uma língua corpórea, nem
própria Sabedoria, por quem tudo foi por voz de anjo, nem pelo estrondo do
criado, tudo o que existiu e o que há de trovão, nem por metáforas enigmáti
existir, sem que ela própria se crie a si cas, mas já por Ele mesmo.
412 Flp 3, 13.
- 413 l Cor 2,9. 41 5 Romí, 23.
41 4 SZ 30, 10. 41 6 S199, 3.5.
184 SANTO AGOSTINHO
Suponhamos que ouvíamos Aquele Mas então não “seremos todos trans
que amamos nas criaturas, mas sem o' formados41 8”?
intermédio delas, assim como nós aca 26. Ainda que isto disséssemos, não
bamos de experimentar, atingindo, pelo mesmo modo e por estas palavras,
num relance de pensamento, a Eterna contudo bem sabeis, Senhor, quanto o
mundo e os seus prazeres nos pareciam
Sabedoria, que permanece imutável
vis, naquele dia, quando assim conver-
sobre todos os seres. Se esta contem sávamos. Minha mãe então disse: Meu
plação se continuasse e se todas as ou filho, quanto a mim, já nenhuma coisa
tras visões de ordem muito inferior me dâ gosto, nesta vida. Não sei o que
cessassem, se unicamente esta arreba faço ainda aqui, nem por que ainda cá
tasse a alma e a absorvesse, de tal esteja, esvanecidas já as esperanças
modo que a vida eterna fosse seme deste mundo. Por um só motivo dese
java prolongar um pouco mais a vida:
lhante a este vislumbre intuitivo, pelo
para ver-te católico antes de morrer.
qual suspiramos: não seria isto a reali Deus concedeu-me esta graça supera-
zação do “entra no gozo do teu bundantemente, pois vejo que já des
Senhor*' 7 ”? E quando sucederá isto? prezas a felicidade terrena para servi
Será quando todos “ressuscitarmos”? res ao Senhor. Que faço eu, pois, aqui?
41 7 Mí25,21. 418 1 Cor 15, 51.
11
Últimos desejos de Mônica
27. Não me lembro bem do que lhe vras nas quais mostrava o desejo de
respondi a respeito destas palavras. vê-la morrer na pátria, o que julgava
Dentro de cinco dias ou pouco mais, melhor, e não em país estranho. Ou
recolhia-se ao leito, com febre. Num viu-o, e, com o rosto cheio de aflição,
daqueles dias da sua doença perdeu os fixando nele os olhos, repreendeu-o por
sentidos e, durante um curto espaço de acalentar tais sentimentos. Olhando
tempo, não dava acordo dos presentes. depois para mim: “Vê o que ele diz!”
Acorremos logo e imediatamente recu E logo, dirigindo-se a ambos: “Enter
perou os sentidos. rai este corpo em qualquer parte e não
Vendo-nos de pé junto dela, a mim e vos preocupeis com ele. Só vos peço
ao meu irmão419, disse-nos como que vos lembreis de mim diante do
quem procura alguma coisa: “Onde es altar do Senhor, onde quer que este
tava eu?” Depois, reparando em nós, jais”. i
atônitos de tristeza, acrescentou: “Se Tendo explicado o seu pensamento
pultareis aqui a vossa mãe”: Eu estava nos termos que lhe foi possível, calou-
calado e sustendo as lágrimas. Meu se. Com o agravamento da enfermi
irmão, porém, proferiu algumas pala- dade, dilataram-se-lhe as dores.
28. Eu, ó Deus Invisível, pensando
41 9 Chamava-se Navígio e era o primogênito dos nos vossos dons, que disseminais pelos
irmãos. Além deste, Santo Agostinho teve uma irmã corações dos vossos fiéis, donde pro
cujo nome se ignora e da qual apenas se sabe que foi
religiosa e governou um mosteiro junto de Hipona. vêm colheitas admiráveis, alegrava-me
(N. do T.) e rendia-Vos graças, ao lembrar-me de
CONFISSÕES IX 185
quanto sabia a respeito do cuidado que mos em Õstia, um dia em que eu não
sempre a preocupara da sua sepultura, estava em casa, tinha ela falado com
dispondo e ordenando que fosse junto uma confiança maternal a alguns dos
do corpo de seu marido. meus amigos acerca do desprezo desta
Porque tinha vivido com ele em tão vida e da felicidade da morte. Eles,
estreita união, desejava também ajun- admirados com aquele valor de uma
tar a esta felicidade — como a alma mulher — fostes Vós que Iho destes!
humana é incapaz das coisas divinas! —, perguntaram-lhe se não temia dei
— a dita de os homens poderem recor xar o corpo tão longe da sua cidade.
dar que, após a sua peregrinação de Respondeu: “Para Deus não é longe,
além mar, lhe fora concedida a graça nem devo temer que no fim dos séculos
de a terra cobrir na mesma sepultura a não saiba onde me há de ressuscitar”.
ambos os consortes. Enfim, no nono dia da doença, aos
cinquenta e seis anos de idade, e no tri
Quando esta vaidade começara a
retirar-se do seu coração, eu não o gésimo terceiro de minha vida, aquela
alma piedosa e santa libertou-se do
sabia, mas alegrava-me, admirando-me
corpo 420.
de que ela assim mo patenteasse. Con
tudo, na nossa conversa à janela, quan
420 Mônica recebeu da Igreja é da tradição cristã o
do me disse: “Que estou eu a fazer título de santa. O seu corpo foi sepultado na cripta
neste mundo?”, já não mostrava desejo da Igreja de Santa Áurea, em óstia, onde foi desco
berto em 1430 e trasladado para Roma, primeiro
de morrer na pátria. para a Igreja de São Trifão e mais tarde para a igre
Soube também que já quando vivía ja que lhe foi dedicada. (N. do T.)
12
Lágrimas de dor
29. Fechei-lhe os olhos é apode- tos ou o seu completo desapareci
rou-se-me da alma uma tristeza imen mento. A morte de minha mãe, pelo
sa, que se desfazia em torrentes de lá contrário, não foi infeliz nem total.
grimas. Mas, ao mesmo tempo, os Sabíamo-lo pelo testemunho dos seus
meus olhos, sob o império violento da costumes, “pela sinceridade da sua
vontade, absorviam essa fonte até a fé421” epor outras razões inequívocas.
secarem. Oh! como foi angustiosa' 30. Que era aquilo que me pungia
para mim a luta! dentro da alma, .senão uma chaga,
Quando ela exalou o último suspiro, recente por ter sido arrancada num ins
Adeodato, meu filho, rebentou em tante ao convívio tão doce e tão queri
pranto. Mas, instado por todos nós, do de viver junto da minha mãe?
calou-se: deste modo a sua voz juvenil,
voz do coração, também reprimiu e Causava-me grande consolação o
calou em mim esta espécie de emoção seguinte testemunho que deu de mim:
pueril que se expandia em choro. Pare na sua última doença, correspondendo
cia-nos que não ficava bem celebrar- com grande ternura aos meus obsé
lhe os funerais com pranto, lamenta quios, chamava-me “bom filho” e lem
ções e gemidos, porque essas brava, com grande sentimento de
demonstrações servem de ordinário
para deplorar a infelicidade dos mor 421 1 Cor 15, 51.
186 SANTO AGOSTINHO
amor, que nunca da minha boca fora 32. Foi conduzido o cadáver à
proferida contra ela uma só palavra sepultura. Fui e voltei, sem derramar
• dura e injuriosa. Contudo, meu Deus, lágrimas. Nem mesmo chorei durante
meu Criador, que comparação havia as orações que Vos dirigimos, ao ser
entre a solicitude que lhe tributava a oferecido o Sacrifício da nossa reden
servidão a que ela por mim se sujeita ção pela defunta, cujo cadáver já esta
ra? Por me sentir assim desamparado va depositado junto do sepulcro, antes
de lenitivo tão grande, a minha alma fi de o enterrarem, como ali é costume.
cava em chaga, e a minha vida, forma Nem sequer chorei durante as orações !
da pela fusão da sua, despedaçava-se. Mas todo o dia senti, no meu íntimo,
31. Estancado o pranto de Adeoda- uma tristeza oprimente.
to, Evódio, tomando um saltério, co Com o espírito agitado Vos suplica
meçou a cantar um salmo ao qual va, com todas as forças, que sarásseis
todos respondíamos: “Cantar-Vos-ei, a minha dor. Creio que, se mo não
Senhor, a misericórdia e a justiça422”. concedíeis, era para gravardes na
Informando-se do que se passava, minha memória, ao menos por esta
concorreram muitos dos nossos irmãos única experiência, quanto são podero- t
e mulheres piedosas. Enquanto aqueles sos os laços do hábito até na alma que
que costumavam encarregar-se dos já se não alimenta com palavras enga
funerais exerciam seu ofício, eu, em nadoras. Lembrei-me de ir ao banho;
lugar onde a boa educação mo permi ouvira dizer que este nome lhe fora
tia, falava com os meus amigos, que dado por causa dos gregos lhe chama
julgavam não me dever deixar só. Fa rem balanêion, por aliviar o espírito de
lava de assuntos conforme a minha angústias. Confesso também isso à
situação, e com o bálsamo da verdade vossa misericórdia, ó Pai dos órfãos,
procurava mitigar os sofrimentos que confesso que depois do banho fiquei
só Vós conhecíeis e eles ignoravam. como estava, sem conseguir expulsar
Escutavam-me com atenção, julgando do coração esta amarga tristeza. De
que não sentia nenhuma dor. Porém pois adormeci.
eu, pertinho de vossos ouvidos, onde Acordei e achei a minha dor bas
nenhum amigo me ouvia, censurava a tante mitigada. Estando só, deitado no
ternura da minha sensibilidade e esfor meu leito, recordei os versos verídicos
çava-me por reprimir a onda de tris do vosso Ambrósio: Vós sois, na
teza que me invadia. Cedia ela um verdade,
pouco ao meu esforço para de novo se
insurgir impetuosa, sem contudo me
fazer brotar as lágrimas ou me alterar “Deus, Criador de todas as
o rosto. Mas eu sabia o que comprimia [coisas,
no coração! Regendo o mundo supremo,
Desgostava-me, profundamente, ser Vestindo o dia com a beleza ;
tão sensível a estas vicissitudes huma [da luz,
nas que irremediavelmente acontecem Vestindo a noite com a graça
conforme a ordem natural e a sorte de [do sono,
nossa condição. Por isso, a minha dor
suscitava-me uma nova dor, e afligia- Para que o repouso, ao labor
me com uma dupla tristeza. [de cada dia,
Os membros fatigados resti-
422 Sl100,13. [tua,
CONFISSÕES IX 187
13
Preces pela mãe
34. Agora, sarado já o meu coração vida humana, ainda a mais louvável, se
desta ferida, na qual se poderia censu a julgardes sem a vossa misericórdia!
rar a minha sentimentalidade, derramo Mas porque não examinais as nossas
diante de Vós, meu Deus, pela vossa faltas com rigor, confiadamente espe
serva, uma outra espécie de lágrimas. ramos algum lugar junto de Vós.
Manam dum espírito comovido pelos Quem, porém, Vos enumera os seus
perigos que cercam toda a alma “que verdadeiros méritos, que outra coisa
morre em Adão42 4”. Vivificada em expõe senão os vossos benefícios? Oh!
Cristo ainda antes de ser libertada da se os homens se reconhecessem como
carne, vivia de tal modo que o vosso homens, “se aquele que se gloria se
nome era louvado na sua fé e nos seus gloriasse no Senhor42 6!”
bons costumes. 35. Por isso, “Deus do meu cora
Contudo, não ouso dizer que desde ção, minha glória e minha vida42 7”,
o tempo em que a regenerastes pelo esqueço um momento as boas ações de
batismo, não caísse de sua boca algu minha mãe, pelas quais alegremente
ma palavra oposta à vossa lei. O vosso Vos dou graças, para Vos pedir perdão
Filho, que é a Verdade, declarou: “Se de seus pecados. Ouvi-me em nome
alguém chamar ‘louco’ a seu irmão, d’Aquele que é a Medicina das nossas
* chagas, que foi suspenso do madeiro
será réu do fogo da geena42 5”. E ai da424
424 1 Cor 15, 22. 42 6 2 Cor 10, 17.
42 5 Mt 5,22. 42 7 Sl 117, 14.27.26.
188 SANTO AGOSTINHO
I — Introdução à segunda
parte: A caminho de
Deus (1-7).
II — Da análise da /Tze/nó-
ria a Deus (8-17).
III — Misérias e tentações do
homem (18-41).
IV — Cristo é o único Me
diador (42-43).
1
O apelo à verdade
1. Fazei que eu Vos conheça, ó duma alegria sã. Os outros bens desta
Conhecedor de mim mesmo, sim, que vida tanto menos se deveriam chorar
Vos conheça como de Vós sou conhe quanto mais os choramos; e tanto mais
4. Ó virtude da minha alma, en
cido 43 3 se deveriam chorar quanto menos os
trai nela, adaptai-a a Vós, para á terdes choramos. Mas Vós amastes a verda
e possuirdes sem mancha nem ruga. É de43 5, pelo que quem a pratica alcan
esta a esperança com que falo,'a espe ça a luz 43 6. Quero-a também praticar
rança em que me alegro quando gozo no meu coração, confessando-me a
Vós, e, nos meus escritos, a um grande
43 4 A filosofia de Santo Agostinho sintetiza-se na numero de testemunhas.
expressão: “Que me conheça a mim, que Te conhe
ça a Ti, Deus” (Solilóquios, Livro II, cap. 1). (N. do 43 5 si 50,8.
T.) 43 6 Jó 3, 21.
2
Deus tudo penetra
2. Para Vós, Senhor, a cujos olhos tos do pensamento, que vossos ouvidos
está patente o abismo da consciência já conhecem. Quando sou mau, o
humana, que haveria em mim oculto, confessar-me a Vós é o mesmo que
ainda que Vo-lo não quisesse confes desagradar-me a mim próprio; porém,
sar? Poder-Vos-ia ocultar a mim quando sou bom, o confessar-me a Vós
mesmo, mas não poderia esconder-me só significa que não atribuo nada a
de Vós. Agora que os meus gemidos mim, porque abençoais, Senhor, o
são testemunhas de que me desagrado, justo mas antes o justificais da impie
Vós iluminais-me, agradais-me, e eu de dade43 7. Assim, ó meu Deus, a confis
tal modo Vos amo e desejo quejáme são que faço na vossa presença é e não
envergonho de mim. Desprezo-me e é em silêncio. É em silêncio quanto às
escolho-Vos. Só por vosso amor desejo palavras; mas é em clamor quanto aos
agradar-Vos a Vós e a mim. afetos. Nenhuma verdade digo aos ho
Senhor, conheceis-me tal como sou. mens que Vós já antes ma não tenhais
Já Vos disse com que .fruto me vou ouvido. Nem me ouvis nada que já
confessando a Vós. Não Vos faço esta antes mo não tivésseis dito.
confissão com palavras e vozes de
carne, mas com palavras da alma e gri 43 7 Rom 4, 5.
3
Confessar-me aos homens?!
3. Que tenho eu que ver com os curar das minhas enfermidades? Que
homens, para que me ouçam as Con gente curiosa para conhecer a vida
fissões, como se houvessem de me alheia e que indolente para corrigir a
196 SANTO AGOSTINHO
sua! Por que pretendem que lhes “não posso”. Despertam-na para que
declare quem sou, se não desejam tam vigie no amor da vossa misericórdia e
bém ouvir de Vós quem eles são? na doçura da vossa graça, com a qual
Ouvindo-mè falar de mim, como hão se toma poderoso o fraco que, por ela,
de saber que lhes declaro a verdade, se toma consciência da sua fraqueza.
ninguém “sabe o que se passa num Consolam-se, além disso, os bons ao
homem, a não ser o espírito desse ouvirem os males passados daqueles
homem que nele habita43 5 *8”? Se, que já não sofrem. Deleitam-se não por
porém, Vos ouvem falar a seu respeito, serem males, mas porque o foram e
não poderão dizer: “Nosso Senhor agora não o são.
mente”. Com efeito, o ouvir em-Vos Ó Senhor meu — a quem a minha
falar a seu respeito, que é senão conhe consciência cotidianamente se confes
cerem-se a si mesmos? E quem há que, sa, mais confiada na esperança da
conhecendo-se, diga sem mentir: “é vossa misericórdia do que na sua ino
falso”? “A caridade tudo crê43 9”, cência -—-, mostrai-me, eu Vo-lo peço,
sobretudo entre os que ela unifica, que proveito, sim, que proveito haverá
ligando-os entre si. Por isso também em confessar, neste livro, também aos
eu, Senhor, me confesso a Vós, para homens, diante de Vós, não quem fui,
que os homens, a quem não posso pro mas quem sou? Já vi e recordei o fruto
var que falo verdade, me ouçam. Mas que daí se tira. Há muitos, porém, que
aqueles a quem a caridade abre em desejam saber quem eu sou no momen
meu proveito os ouvidos acreditam em to atual em que escrevo as Confissões.
mim. Desses, uns conhecem-me, outros não;
4. Vós, que sois o Médico do meu ou, simplesmente ouviram de mim ou
interior, esclarecei-me sobre o fruto de outros, a meu respeito, alguma
com que faço esta confissão. Na verda coisa. Mas os seus ouvidos não me
de, as confissões dos meus males pas auscultam o coração, onde eu sou o
sados — que perdoastes e esquecestes que sou. Querem, pois, ouvir-me con
para me tomardes feliz em Vós, trans fessar quem sou no interior, para onde
formando-me a alma com a fé e com o não podem lançar o olhar, o ouvido ou
vosso sacramento —, quando se lêem a mente. Querem-no, contudo, dispos
ou ouvem, despertam o coração para tos a acreditar. Poder-me-ão conhecer?
que não durma no desespero nem diga: A caridade, porém, que os torna justos,
diz-lhes que eu, ao confessar-me, não
438 1 Cor 2, 11. minto. E ela quem os faz acreditar em
439 1 Cor 13, 7. mim.
4
O fruto das “confissões”
5. Querem ouvir-me; mas com que Bem, mostrar-lhes-ei quem sou. Já não
fruto? Desejarão congratular-se comi é pequeno fruto, Senhor meu Deus, que
go, ouvindo quanto a vossa graça me muitos Vos rendam graças por mim e
aproximou de Vós? Desejarão orar por que numerosas pessoas Vos implorem
mim, sabendo quanto o peso dos meus em meu favor. Oxalá que o coração
pecados me faz atrasar (na virtude)? dos meus irmãos ame, em mim, o que
CONFISSÕES X 197
5
A ignorância humana
7. Vós, Senhor, podeis julgar-me, espírito que nele habita conhece. Mas
porque ninguém “conhece o que se Vós,- Senhor, que o criastes, sabeis
passa num homem, senão o seu espíri todas as suas coisas. Eu, ainda que
to, que nele reside4 4 4”. Há, porém, diante de Vós me despreze e me tenha
coisas no homem que nem sequer o na conta de terra e cinza, sei de Vós
algumas coisas que não conheço de
4 4 4 1 Cor 2, 11. mim. “Nós agora vemos como por um
198 SANTO AGOSTINHO
6
Quem é Deus? 448
11. Que amo então quando amo o Hâ, portanto, outra força que não só
meu Deus? Qúem é Aquele que está no vivifica, mas também sensibiliza a
cimo da minha alma? Pela minha pró carne que o Senhor me criou, man
pria alma hei de subir até Ele. Ultra dando aos olhos que não ouçam e ao
passarei a força com que me prende ao ouvido que não veja, mas aos primei
corpo e com que encho de vida o meu ros que vejam e a este que ouça e a
organismo. Mas não é com essa vida cada um dos restantes sentidos o que é
que encontro o meu Deus, porque próprio dos seus lugares e ofícios. Por
(nesse caso) também “o cavalo e a eles, que eu — espírito uno — realizo
mula, que não têm inteligência 4 5 4”, O as diversas funções. (Na minha in
encontrariam, pois possuem essa vestigação) ultrapassei ainda esta
mesma força que lhes vivifica os força que igualmente q cavalo e a mula
corpos. possuem, visto que também sentem por
454 S131,9. meio do corpo.
8
O palácio da memória 455
12. Transporei, então, esta força da mente, outras fazem-me esperar por
minha natureza, subindo por degraus mais tempo, até serem extraídas, por
até Àquele que me criou. assim dizer, de certos receptáculos
Chego aos campos e vastos palácios ainda mais recônditos. Outras irrom
da memória onde estão tesouros de pem aos turbilhões e, enquanto se pede
inumeráveis imagens trazidas por per e se procura uma outra, saltam para o
cepções de toda espécie. Aí está tam meio, como que a dizerem: “Não sere
bém escondido tudo o que pensamos, mos nós?” Eu, então, com a mão do
quer aumentando quer diminuindo ou espírito, afasto-as do rosto da memó
até variando de qualquer modo os ria, até que se desanuvie o que quero e
objetos que os sentidos atingiram. do seu esconderijo a imagem apareça à
Enfim, jaz aí tudo o que se lhes entre vista. Outras imagens ocorrem-me
gou e depôs, se é que o esquecimento com facilidade e em série ordenada, à
ainda o não absorveu e sepultou. medida que as chamo. Então as prece
Quando lá entro mando comparecer dentes cedem o lugar às seguintes, e,
diante de mim todas as imagens que ao cedê-lo, escondem-se, para de novo
quero. Umas apresentam-se imediata avançarem quando eu quiser. Ê o que
acontece, quando digo alguma coisa
4 5 5 Esta série de capítulos dedicada ao estudo da decorada.
memória, e que principia aqui, tem sumo vaíor para
a psicologia experimental. O Hiponense saberá 13. Lá se conservam distintas e
encontrar Deus na memória, que é faculdade de classificadas todas as sensações que
imagens corpóreas e, na sua constituição mais per
feita, faculdade puramente espiritual. Há, pois, duas entram isoladamente pela sua porta.
espécies de memória. (N. do T.) Por exemplo, a luz, as cores e as for
CONFISSÕES X 201
mas dos corpos penetram pelos olhos; palácio da memória. Afestão presentes
todas as espécies de sons, pelos ouvi o céu, a terra e o mar com todos os
dos; todos os cheiros, pelo nariz; todos pormenores que neles pude perceber
os sabores, pela boca. Enfim, pelo tato pelos sentidos, exceto os que já esque
entra tudo o que é duro, mole, quente, cí. É lá que me encontro a mim
frio, brando ou áspero, pesado ou leve, mesmo, e recordo as ações que fiz, o
tanto extrínseco como intrínseco ao seu tempo, lugar, e até os sentimentos
corpo. que me dominavam ao praticá-las. E lá
O grande receptáculo da memória que estão também todos os conheci
— sinuosidades secretas e inefáveis, mentos que recordo, aprendidos ou
onde tudo entra pelas portas respec pela experiência própria ou pela crença
tivas e se aloja sem confusão — recebe no testemunho de outrem.
todas estas impressões, para as recor Deste conjunto dé idéias, tiro analo
dar e revistar quando for necessário. gias de coisas por mim experimentadas
Todavia, não são os próprios objetos ou em que acreditei apoiado em expe
que entram, mas as suas imagens: ima riências anteriores. Teço umas e outras
gens das coisas sensíveis, sempre pres com as passadas. Medito as ações
tes à oferecer-se ao pensamento que as futuras, os acontecimentos, as esperan
recorda. ças. Reflito em tudo, como se me esti
Quem poderá explicar o modo como vesse presente. “Farei isto e aquilo”,
elas se formaram, apesar de se conhe digo no meu interior, nesse seio imenso
cer por que sentidos foram recolhidas e do espírito■, repleto de imagens de tan
escondidas no interior? Pois mesmo tas e tão grandes coisas. Tiro esta ou
quando me-encontro em trevas e silên aquela conclusão: “Oh! se sucedesse
cio posso representar na memória, se tal e tal acontecimento ! Afaste Deus
quiser, as cores, e distinguir o branco esta ou aquela calamidade!”
do preto e todas as mais entre si. Os Eis o que exclamo dentro de mim.
sons não invadem nem perturbam as Ao dizer isso, tenho presentes as ima
imagens que aí se encontrarem. Estão gens de tudo o que exprime, hauridas.
como que escondidos, e retirados. Se do tesouro da memória, pois, se faltas
me apetece chamá-los, imediatamente sem, absolutamente nada disto poderia
se apresentam. Então, estando a língua dizer.
em repouso e a garganta eim silêncio, 15. É grande esta força da memó
canto o qu,e me apraz. Aquelas ima ria, imensamente grande, ó meu Deus.
gens das cores, que não obstante lá Ê um santuário infinitamente amplo.
continuam, não se interpõem nem me Quem o pode sondar até ao profundo?
interrompem quando manejo estoutro Ora, esta potência é própria do meu
tesouro que entrou pelos ouvidos. espírito, e pertence à minha natureza.
Do mesmo modo, conforme me Não chego, porém, a apreender todo o
agrada, recordo as restantes percep meu ser. Será porque o espírito ' é
ções que foram reunidas e acumuladas demasiado estreito para se conter a si
pelos outros sentidos. Assim, sem chei mesmo? Então onde está o que de si
rar nada, distingo o perfume dos lírios mesmo não encerra? Estará fora e não
do das violetas, ou então, sem provar dentro dele? Mas como é que o não
nem apalpar, apenas pela lembrança, contém?
prefiro o mel ao arrobe e o macio ao Este ponto faz. brotar em mim uma
áspero. admiração sem limites que me subjuga.
14. Tudo isto realizo no imenso Os homens vão admirar os píncaros
í
202 SANTO AGOSTINHO
9
A memória intelectual
16. Não é só isto o que a capaci passa, deixando nos ouvidos a impres
dade imensa da minha memória encer são dum rasto que no-la faz recordar,
ra. Também lá se encontra tudo o que como se continuasse a ressoar quando
não esqueci, aprendido nas artes libe na realidade já não ressoa. Sucedería
rais. como ao perfume, que, ao passar e
Estes conhecimentos estão como desvanecer-se nos ares, afeta o olfato,
que retirados num lugar mais íntimo, donde transmite para a memória a sua
que não é lugar. Ora, eu não trago co imagem, que se reproduz com a lem
migo as suas imagens, mas as próprias brança; como ao alimento, que no
estômago perde o sabor, mas parece
realidades. As noções de literatura, de conservá-lo na memória; finalmente,
dialética, as diferentes espécies de como acontece a qualquer objeto que o
questões e todos os conhecimentos que corpo sente pelo tato e que a memória
tenho a este respeito existem também imagina, mesmo quando afastado de
na minha memória, mas de tal modo nós.
que, se não retivesse a imagem, deixa De fato, todas estas realidades não
ria fora o objeto 4 5 7. Neste caso suce nos penetram na memória. Só as suas
dería como à voz que ressoa e logo imagens é que são recolhidas com
espantosa rapidez e dispostas, por
4 5 7 Distingue Santo Agostinho entre ciência e ima assim dizer, em células admiráreis,
gens de objetos. A ciência está em nós sem imagens,
e os objetos estão em nós pelas suas imagens. (N. do donde admiravelmente são tiradas pela
T>) lembrança.
CONFISSÕES X 203
10
A memória e os sentidos
17. Quando ouço dizer que há três ainda o sentido do gosto: “Se não ti
espécies de questões, a saber: “se uma nham sabor, nada me perguntes”. E o
coisa existe (an sit?), qual a sua natu tato: “Se não eram sensíveis, não as
reza (quid sit?) e qual a sua qualidade apalpei; e se as não apalpei, não as
(quale sit?)”, retenho as imagens dos pude indicar”.
sons de que se formaram estas pala Donde e por que parte me entraram
vras, e vejo que eles passaram com na memória? Ignoro-o, porque, quan
ruído através do ar, e jâ não existem-. do as aprendi, não acreditei nelas fiado
Não foi por nenhum dos sentidos do num parecer alheio, mas reconheci-as
corpo que atingí essas coisas signifi existentes enTmim, admitindo-as como
cadas nestes sons, nem as vi em parte verdadeiras. Entreguei-as ao meu espí
nenhuma a não ser no meu espírito. rito, como quem as deposita, para de
Escondi na memória não as suas ima pois as tirar quando quiser. Estavam
gens, mas os próprios objetos. lá, portanto, mesmo antes de as apren
Que digam, se podem, por onde der, mas não estavam na minha memó
entraram em mim. Percorrendo todas ria. Onde estavam então? Por que as
as portas do corpo, não consigo saber conheci, quando disse: “Sim, é verda
por qual entraram. Os olhos dizem: de”, senão porque já existiam na
“Se eram coloridas, fomos nós que minha memória? Mas tão retiradas e
anunciamos”. Replicam os ouvidos: escondidas em concavidades secretís
“Ressoaram, foram por nós comunica simas estavam que não poderia talvez
das”. Declara o olfato: “Se tinham pensar nelas, se dali não fossem arran
cheiro, passaram por mim”. Afirma cadas por alguém que me advertisse.
11
A memória e as idéias inatas
escapam para esconderijos mais pro cogo) é que vem cogitare; pois cogo e
fundos. E assim, como se fossem cogito são como ago e agito, facio e
novos, é necessário pensar, segunda facito. Porém a inteligência reivin
vez, nesses conhecimentos existentes dicou como próprio este verbo (cogi
na memória — pois não têm outra to), de tal maneira que só ao ato de
habitação — e juntá-los (cogenda) coligir (colligerej, isto é, ao ato de jun
novamente, para que se possa saber. tar (cogere) no espírito, e não em qual
Quer dizer, precisamos de os coligir quer parte, é que propriamente se
(colligenda), subtraindo-os a uma espé chama “pensar” (cogitarej.
cie de dispersão. E daqui (cogenda,
12
A memória e as matemáticas
13
“A memória lembra-se de se lembrar”
20. Conservo tudo isso na memória com que as distingui tantas vezes,
e, bem assim, o modo por que o apren quando com frequência as conside
dí. Retenho na memória as muitas rava. Recordo-me, portanto, de muitas
disputas que ouvi, cheias de erros con vezes ter compreendido isto. E o que
tra estas verdades. Ainda que falsas, agora entendo e distingo, conservo-o
não é falso lembrar-me delas. Recor na memória para depois me lembrar de
do-me também ter sabido, nessas dis que agora o entendi. Por isso lembro-
putas, discernir as verdades das falsida me de que me lembrei. E assim, se
des. mais tarde me lembrar de que agora
Agora vejo que as distingo dum pude recordar estas coisas, será pela
modo inteiramente diferente daqueles força da memória!
CONFISSÕES X 205
14
A lembrança dos afetos da alma
16
A memória lembra se do esquecimento
17
Da memória a Deus
mória, nos seus antros e cavernas sem . espírito até Vós, que morais lá no alto,
número, repletas, ao infinito, de toda a. acima de mim, transporei esta potência
espécie de coisas que lâ estão grava que se chama memória. Quero alcan-
das, ou por imagens, como os corpos, çar-Vos por onde podeis ser atingido, e
ou por si mesmas, como as ciências e prender-me a Vós por onde for possí
as artes, ou, então, por não sei que vel. Os animais e as aves têm também
noções e sinais, como os movimentos memória. Doutro modo não poderiam
da alma, os quais, ainda quando a não regressar aos covis e ninhos, nem fa
agitam, se enraizam na memória, posto riam muitas outras coisas a que estão
que esteja na memória tudo o que está acostumados. Sem a memória não
na alma. Percorro todas estas para poderiam contrair hábitos nenhuns.
gens. Vou por aqui e por ali. Penetro Passarei, pois, além da memória,
para poder atingir Aquele que me dis-
por toda parte quanto posso, sem tinguiu dos animais e me fez mais
achar fim. Tão grande é a potência da sábio que as aves do céu. Passarei,
memória e tal o vigor da vida que resi então, para além da memória, para
de no homem vivente e mortal! Vos encontrar. Mas onde, ó Bondade
Que farei, ó meu Deus, ó minha ver verdadeira e suavidade segura? Para
dadeira Vida? Transporei esta potên Vos encontrar, mas onde? Se Vos
cia que se chama memória. Transpô- encontro sem a memória, estou esque
la-ei para chegar ate Vós, ó minha cido de Vós. E como Vos hei de lá
doce Luz? Que me dizeis? Subindo em encontrar se me não lembro de Vós?
18
A lembrança do objeto perdido
27. A mulher que perdera a drac encontramos alguma coisa perdida. Se,
ma462 e a procurou corrí a lanterna por acaso, um objeto — por exemplo,
não a teria encontrado se dela se não um corpo qualquer visível — nos desa
lembrasse. Tendo-a depois achado, parece dos olhos e não da memória,
como sabería se era aquela, se dela se conservamos a sua imagem lá dentro, e
não recordasse já? Lembro-me de ter procuramo-lo, até se nos oferecer à
procurado muitos objetos perdidos, e vista. Quando for encontrado, reconhe
de os ter encontrado. Sei-o porque, se cemo-lo pela imagem que ficara den
ao procurar algum desses objetos me tro.
perguntavam: “É este? Não será talvez Não dizemos ter achado uma coisa
aquele?”, respondia sempre: “Não é”, que se perdera, se a não conhecemos,
até aparecer o que buscava. nem a podemos .conhecer, se dela nos
Se já me não recordasse desse obje não lembramos. Esse objeto desapare
to, fosse ele qual fosse, poder-mo-iam cera para os olhos que a memória
apresentar, que eu não o descobriría, conservara4 63.
por não o poder reconhecer. É sempre
o que sucede quando procuramos e 4 63 A memória sensitiva conserva a imagem do
objeto perdido, e a memória intelectual guarda a
462 Lc 15,8. sua idéia (N. do T.)
CONFISSÕES X .209
19
O que é a reminiscência?
20
Como procurar a felicidade
29. Então, como Vos hei de procu esqueci? Pelo desejo de travar conheci
rar, Senhor? Quando Vos procuro, mento com uma vida, para mim incóg
meu Deus, busco a vida feliz. Procu- nita, ou porque nunca a cheguei a
rar-Vos-ei, para que a minha alma conhecer, ou porque já a esqueci tão
viva. O meu corpo vive da minha alma completamente, que nem sequer me
e esta vive de Vós. lembro de a ter esquecido? Então, não
Como procurar, então, a vida feliz? é feliz aquela vida que todos desejam,
Não a alcançarei enquanto não excla sem haver absolutamente ninguém que
mar: “Basta, ei-la”. Mas onde poderei a não queira? Onde a conheceram para
dizer estas palavras? Como procurar assim a desejarem? Onde a viram para
essa felicidade? Como? Pela lembran a amarem? Que a possuímos, é certo.
ça, como se a tivesse esquecido, e Agora, o modo é que eu não sei.
como se agora me recordasse de que a Há uma maneira diferente de ser
210 SANTO AGOSTINHO
21
A lembrança da felicidade
22
A alegria é só Deus
32. Longe de mim, Senhor, longe do A vida feliz consiste em nos alegrar
coração deste vosso servo, que se con mos em Vós, de Vós e por Vós. Eis a
fessa a Vós, o julgar-se feliz, seja com vida feliz, e não há outra. Os' que jul
que alegria for. Há uma alegria que
gam que existe outra apegam-se a uma
não é concedida-aos ímpios4 6 5, mas só
àqueles que desinteressadamente Vos alegria que não é a verdadeira. Contu
servem: essa alegria sois Vós. do, a sua vontade jamais se afastará de
4 6 5 Zs48,22. alguma imagem de alegria. . .
23
A felicidade na verdade
33. Poderemos então concluir que muitos não fazem o que querem4 6 6”,
nem todos querem ser felizes porque mas entregam-se àquilo que podem
há alguns que não querem alegrar-se fazer. Com isso se contentam, porque
em Vós, que sois a única vida feliz? aquilo que não podem realizar, não o
Não; todos querem uma vida feliz. querem com a vontade quanta é neces
Mas como “a carne combate contra o sária para o poderem fazer.
espírito e o espírito contra a carne, 4 6 6 Gál 10, 17.
212 SANTO AGOSTINHO
Pergunto a todos se preferem encon 34. Por que é que ã verdade gera o
trar a alegria na verdade ou na falsida ódio 4 6 9 ? Por que é que os homens têm
de. Todos são categóricos em afirmar como inimigo aquele que prega a ver
que a preferem na verdade, como em dade, se amam a vida feliz, que não é
dizer que desejam ser felizes. A vida mais que a alegria vinda da verdade?
feliz é a alegria que provém da verda Talvez por amarem de tal modo a ver
de. Tal é a que brota de Vós, ó Deus, dade que todos os que amam outra
que sois “a minha luz, a felicidade do coisa querem que o que amam seja a
meu rosto 4 6 7” e o meu Deus. Todos verdade. Como não querem ser enga
desejam esta vida feliz. Oh ! todos que nados, não se querem convencer de
rem esta vida, que é a única feliz; sim, que estão em erro. Assim, odeiam a
todos querem a alegria que provém da verdade, por causa daquilo que amam
verdade. em vez da verdade. Amam-na quando
Encontrei muitos com desejos de os ilumina, e odeiam-na quando os
enganar outros, mas não encontrei nin repreende4 70. Não querendo ser enga
guém que quisesse ser enganado. Onde nados e desejando enganar, amam-na
conheceram eles esta vida feliz senão quando ela se manifesta e odeiam-na
onde alcançaram o conhecimento da
verdade? Amam a verdade, porque quando os descobre. Porém a verdade
não querem ser enganados; e, ao ama castigá-los-á, denunciando todos os
rem a verdade feliz, que não é mais que que não quiserem ser manifestados por
a alegria oriunda da verdade, amam, ela. Mas nem por isso ela se lhes há de
com certeza, também a verdade. Não a mostrar.
poderiam amar, se não tivessem na E assim, é assim, é assim também a
memória qualquer noção de verdade. alma humana: cega, lânguida, torpe e
Por que não encontram nela a sua indecente, procura ocultar-se e não
alegria? Por que não são felizes? Não quer que nada lhe seja oculto. Em cas
são felizes porque, entregando-se com tigo, não se pode ocultar ,à verdade,
demasiado afinco a outras ocupações mas oculta-se-lhe. Apesar de ser tão
que, em vez de ditosos, os tomam infeliz, antes quer encontrar a alegria
ainda mais desgraçados, recordam, nas coisas verdadeiras do que nas fal
apenas frouxamente, aquela Verdade sas. Será feliz quando, liberta de todas
que os pode fazer felizes. “Por en as moléstias, se alegrar somente na
quanto ainda há uma luz entre os Verdade, origem de tudo o que é
homens.” Caminhem, caminhem de verdadeiro.
pressa, “para que as trevas os não
surpreendam4 68”! 4 68 Jo 12,35. __
4 68 T&rèncio,Ãndria, 68.
4 6 7 Jo 14, 6; 5/26, 1; 41, 12. 4 70 Jo 5, 35; 3,-20.
24
Deus na memória
35. Eis o ^espaço que percorri atra de que não me lembrasse, pois, desde-
vés da memória, para Vos buscar, que Vos conheci, nunca me esquecí de
Senhor, e não Vos encontrei fora dela. Vós.
Nada encontrei que se referisse a Vós Onde encontrei a verdade, aí encon
CONFISSÕES X .213
25
Onde?. . .
26
O encontro de Deus
37. Mas onde Vos encontrei para tis a todos os que Vos consultam e ao
Vos poder conhecer? Vós não habitá mesmo tempo respondeis aos que Vos
veis na minha memória, quando ainda interrogam sobre os mais variados
Vos não conhecia. Onde Vos encon assuntos. Respondeis com clareza,
trei, para Vos conhecer, senão em Vós mas nem todos. Vos ouvem com a
mesmo, que estais acima de mim? mesma lucidez. Todos Vos consultam
Nessa região não há espaço absoluta sobre.o que desejam, mas nem sempre
mente nenhum. Quer retrocedamos, ouvem o que querem. O Vosso servo
mais fiel é aquele que não espera nem
quer nos aproximemos de Vós, aí não prefere ouvir aquilo que quer, mas se
existe espaço. propõe aceitar, antes de tudo, a res
Ó Verdade, Vós em toda parte assis posta que de Vós ouviu.
214' SANTO AGOSTINHO
27
Tarde Vos Amei!
38. Tarde Vos amei, ó Beleza tão Porém chamastes-me com uma voz tão
antiga e tão nova, tarde Vo's amei4 72 ! forte que rompestes a minha surdez!
Eis que habitáveis dentro de mim, e eu Brilhastes, cintilastes e logo afugen
lá fora a procurar-Vos ! Disforme, lan tastes a minha cegueira! Exalastes per
çava-me sobre estas formosuras que
criastes. Estáveis comigo, e eu não es fume: respirei-o, suspirando por Vós.
tava convosco! Saboreei-Vos, e agora tenho fome e
Retinha-me longe de Vós aquilo que sede de Vós. Tocastes-me e ardi no de
não existiria se não existisse em Vós. sejo da vossa paz 4 73.
4 72 Este clamor de pródigo e de esteta converteu a 4 7 3 Este pequeno capítulo é um dos mais impressio-1
elegante M.elle Lionne, ao escutá-lo da boca do ora nantes e comovedores das Confissões. O drama
dor P. Cláudio La Colombière, que a Igreja depois interior de Agostinho provocara-o a sedução da for
beatificou. (N. do T.) mosura que o afastara da Beleza Supremá.(N. do T.)
28
Miséria da vida humana. . .
29
Toda a esperança está em Deus
30
Tríplice tentação 478
lhe introduzem? Fecha-se, - quando não seja rebelde, nem sequer no sono;
cerro os olhos? Dorme simultanea para que não cometa tais torpezas e
mente com os sentidos corporais? E depravaçoes sob a ação de imagens
por que é que muitas vezes, mesmo no animalescas, descendo até à lascívia
sono, resistimos, lembrados do nosso carnal; para que, enfim, de modo ne
propósito, e nele permanecemos cas nhum nelas consinta.
tos, não dando nenhum consentimento Não é muito para Vós — ó Onipo
a tais enganos? Contudo, a diferença é tente, que podeis fazer ainda mais do
tão grande, que, quando no sono nos que aquilo que pedimos e compreen
sucede não resistir, ao acordar volta demos — impedir, não só nesta vida
mos ao descanso da consciência. Por mas também nesta idade, que alguma
essa mesma diferença é que vemos que das tentações me deleite, mesmo que
não praticamos voluntariamente essàs seja tão pequena como a que posso
ações, dado o fato de sentirmos pena vencer logo, ao primeiro esforço da
de que tais atos se tivessem passado vontade, quando adormeço em pensa
em nós. mentos castos. Agora, porém, exul
tando embora com tremor perante o
42. Não é poderosa a vossa mão, ó bem que me concedestes, e lamentan
Deus onipotente, para me sarar todas do-me diante do que ainda não obtive,
as enfermidades da alma e para extin- disse ao meu Senhor que ainda me
guir com graça mais abundante, os encontrava neste gênero de mal. Espe
movimentos lascivos mesmo durante o ro quê aperfeiçoareis em mim as vos
sono? Aumentareis, Senhor, em mim, sas misericórdias até à paz plena, que
cada vez mais as vossas dádivas, para os sentidos interiores e exteriores terão
que a minha alma, liberta do visco da convosco, quando a morte for substi
concupiscência, siga até Vós. Para que tuída pela vitória.
31
A gula
32
A sedução do perfume
33
O prazer do ouvido
34
A sedução dos olhos
das, sobre os netos, filhos de José, não ultrapassam o uso necessário mode
segundo a ordem por que os colocara o rado e a piedosa representação dós
pai que via com os olhos externos, mas objetos! No exterior correm atrás das
segundo uma outra ordem que ele dis suas obras. No interior esquecem
cernia no seu interior 5 0 0 1 Aquele que os criou e destroem o que
Eis a verdadeira Luz, a única Luz por meio d’Ele fizeram!
que, de todos os que a veem e amam Eu, ó meu Deus e minha glória, até
faz um todo único ! daqui tiro razões para Vos cantar um
A outra luz corporal a que me refe hino, oferecendo um sacrifício de lou
ria ameniza a vida aos cegos amantes vor ao meu Sacrificador 503, porque as
do século, com atraente e pérfida doçu belezas que passam da alma para as
ra. Contudo, os que nela sabem achar mãos do artista procedem daquela Be-
motivos para Vos, louvar, ó Deus, leza que está acima das nossas almas e
Criador de todas as coisas, assumem- pela qual a minha alma suspira de dia
na como um hino em vosso; louvor, e de noite.
sem por ela serem engolidos ' no seu Mas os artistas e amadores destas
sono. É assim que eu quero ser.: belezas externas tiram desta suma Be
Resisto às seduções dos olhos para leza apenas o critério para as aprecia
que os pés, com que começo a andar rem. Só não aprendem a regra para as
no vosso caminho, me não fiquem pre usar bem! Contudo, esta também lá
sos. Levanto até Vós, por isso, os olhos está. Porém não a vêem, porque, do
invisíveis, a fim de que me livreis os contrário, não iriam tão longe, mas
pés do laço da tentação501. Vós não reservariam para Vós toda a sua força,
cessais, de mos libertar, porque fre e não a dissipariam em fatigantes
quentemente se me prendem. E como delícias.
fico, a cada passo, preso nas insídias Eu mesmo, apesar de expor e com
espalhadas por toda parte, Vós não preender claramente esta doutrina,
cessais de mos desenredar, “porque também me deixo prender por estas-
sois o guarda de Israel e não adorme belezas; mas Vós, ó Senhor, libertais-
ceis nem dormis 502”. me ! Libertais-me, “porque a vossa
53. Que multidão inumerável de misericórdia está perante os meus
encantos não acrescentaram os ho olhos 50 4”'. Caio miseravelmente, e Vós
mens às seduções da vista, com a levantais.-me misericordiosamente,
variedade das artes, com as indústrias umas vezes sem sofrimento, porque
de vestidos, calçados, vasos, com ou resvalei suavemente; outras, com dor,
tros fabricos desta espécie, com pintu por ter caído desamparado no chão !
ras e esculturas variadas, com que 503 Vários códices antigos das Confissões, em vez
500 Gên 48-49. de meu Sacrificador, trazem meu Santificador. (N.
501 57 24, 15. do T.)
502 5/120,4. 50 4 5/25,3.
35
A curiosidade54
que se vale a magia para as suas res queza, me não avisardes que me liberte
postas. Detesto todos esses ritos sacrí desse espetáculo, e se eu me não elevar
legos, Mas, ó Senhor meu Deus, a até Vós com alguma consideração, ou
quem devo servir na humilhação e desprezando-o por completo ou pas
simplicidade, copi quantas maquina sando adiante, ficarei loucamente ab
ções me incita o inimigo a pedir-Vos sorvido.
um sinal! Contudo, suplico-Vos, pelo Quando estou sentado em casa não
nosso Chefe e nossa Pátria — a pura e me prende também muitas vezes a
casta Jerusalém —, que, assim como atenção um estelião 50 6 a caçar mos
até agora esteve longe de mim este cas, ou uma aranha enredando as que
consentimento, assim continue a estar se atiram às suas teias? Acaso, por
cada vez mais. Quando Vos peço a sal serem animais pequenos, a curiosidade
vação de alguém, o fim do meu intento deixará de ser a mesma? É certo que
é muito diferente. Concedei-me agora e disto me aproveito para Vos louvar, ó
no futuro a graça de Vos servir jubilo- Criador admirável e Coordenador de
samente, fazendo Vós o que quiserdes. todas as coisas. Mas não é isso o que
57. Contudo, quem poderá contar primeiro me desperta a atenção. Uma
as insignificantes e desprezíveis misé coisa é levantar-me após a queda, e
rias que todos os dias tentam a nossa outra coisa é não cair nunca.
curiosidade, e o número de vezes em De tais misérias está repleta a minha
que escorregamos? Quantas e quantas vida. A minha única esperança é a
vezes não ouvimos contar banalida vossa infinita misericórdia. Como o
des ! Ao princípio toleramo-las, só nosso coração é recipiente de todas
para não ofender os fracos; mas depois estas misérias e porque traz essa imen
ouvimo-las com gosto sempre crescen sa multidão de vaidades, muitas vezes
te ! as nossas orações interrompem-se e
Já não contemplo um cão a correr perturbam-se.
atrás duma lebre quando isso sucede Enquanto na vossa presença eleva
no circo. Mas se a caçada for no mos atéjiinto dos vossos ouvidos a voz
campo, que eu casualmente atravesso, da nossa alma, não sei donde provêm
talvez ela me distraia dum pensamento tantos pensamentos fúteis, que se des-
importante, e, se me não obriga a penham sobre nós e nos cortam a aten
mudar de caminho para a seguir a ção em coisa tão importante.
cavalo, sigo-a ao menos com um dese
50 6 Espécie de lagartixa do norte da África, que no
jo de coração. Se imediatamente, por dorso apresenta manchas parecidas a estrelas. (N.
meio da minha já tão conhecida fra do T.)
36
O orgulho
misericórdia, e, enfim, para saciardes, de ser amados e temidos, não por amor
com os vossos bens, os meus desejos. de Vós, mas em vez de Vós; para que,
Depois, rebatestes o meu orgulho com assim, assemelhando-nos a ele, viva
o vosso temor e amansastes a minha mos na sua companhia, associados aos
cerviz sob o vosso jugo. Trago-o agora seus suplícios, e não unidos na concór
e sinto-me leve, porque assim prome dia da caridade. Determinou ele “esta
testes e o cumpristes. Ele era, na verda belecer a sua morada no aquilão”,
de, leve, mas eu não sabia, quando para .que naquelas obscuras e geladas
receava tomá-lo. regiões o servíssemos como vosso
59. Acaso, ó Senhor — único Se sinuoso e perverso imitador.
nhor que não reina com orgulho, por Mas olhai, Senhor! Nós somos o
que sois o único Senhor verdadeiro, o vosso pequenino rebanho! Sede o
único que não tem senhor —, acaso nosso possuidor! Estendei as vossas
cessou em mim, ou poderá jamais ces asas, para nos refugiarmos debaixo
sar em toda a minha vida, este terceiro delas. Sede a nossa glória! Fazei que
gênero de tentações, que consiste em sejamos amados só por amor de Vós, e
querer ser temido e amado dos homens que a vossa palavra ache em nós
só com o fim exclusivo de encontrar acatamento.
uma alegria que não é alegria? Oh! Reprovais aquele qué deseja ser lou
que vida miserável! Qúe repugnante vado pelos homens. Por isso não será
arrogância! Tal é o motivo por que defendido pelos homens quando o jul
não Vos amamos, nem santamente Vos gardes, nem liberto quando o conde
tememos. Por isso, resistis aos sober nardes. “Não louvamos o pecador nos
bos e dais a vossa graça aos humildes ! desejos da sua alma, nem é bem-aven
Trovejais sobre as ambições do. século, turado o que faz a iniquidade 50 7. Se
fazendo abalar até as raízes das mon um homem glorificado por qualquer
tanhas. dom que Vós, ó meu Deus, lhe conce
Em face dos deveres exigidos pela destes se compraz mais em louvar-se
sociedade, precisamos de ser amados e do que em possuir esse dom que lhe
temidos dos homens. Mas o inimigo da atrai o louvor — Vós o reprovais, ape
nossa felicidade espalha laços por toda sar de louvado pelos homens. E, nesse
parte e insta conosco, gritando: caso, aquele que o louvou é melhor que
“Vamos, coragem!”, para que, ao aquele que foi louvado; porque o pri
procurarmos com avidez estas lisonjas, meiro comprazeu-se com o dom de
nos deixemos prender incautamente e Deus dado ao homem, e ó segundo ale
desliguemos a nossa alegria da vossa grou-se mais com o dom do homem do
verdade, colocando-a na mentira hu que com o dom de Deus. ■
mana.
O inimigo incita-nos a que gostemos 50 7 SI 10, 3.
37
A tentação dó louvor
60. Todos os dias nos vemos inves louvores humanos são a fornalha onde
tidos por estas tentações, ó Senhor! cotidianamente somos postos à prova.
Somos tentados sem interrupção! Os Também nesta miséria nos ordenais a
CONFISSÕES X 225
sos quando agradam também aos que me examine ainda mais diligente
outros? De certo modo, não sou louva mente.
do quando a minha opinião, a meu res Se nos louvores que me tributam
peito, não é elogiada, porque ou en tenho em vista a utilidade do próximo,
chem de encômios as coisas que me qual é a razão por que, ao ser outro
desagradam, ou louvam ainda mais as injustamente vituperado, me sensibi
coisas que menos me comprazem. lizo menos do que se essa injúria me
Sobre este ponto não sou eu um enig fosse dirigida a mim? Por que é que a
ma para comigo mesmo?
mordedura dum ultraje que me fere me
62. Em Vós, ó Verdade, vejo que
é mais sensível do que a injúria igual
não é por causa de mim, mas por utili
mente injusta, arremessada a outro, na
dade do próximo que me devo sensibi
minha presença? Ignoro eu isto?
lizar com os louvores que me dirigem.
Se é este ou não o meu caso, ignoro-o. Deduzirei ainda que me engano a
Nesta questão, conheço-Vos melhor a mim mesmo e corrompo a verdade
Vós do que a mim mesmo. diante de Vós no meu coração e na
Peço-Vos, meu Deus, que me mos minha língua? Afastai, Senhor, para
treis as feridas que em mim encontrava longe de mim esta loucura, para que as
para que as manifeste aos meus ir minhas palavras não sejam azeite de
mãos, dispostos a orar por mim. Fazei pecador a ungir a minha cabeça.
38
A vangloria
39
O amor-próprio
64. Existe dentro, bem dentro de que se comprazem em si, ainda quando
nós, outro mal, oriundo do mesmo gê não agradam aos outros — e até lhes
nero de tentação, que faz vãos todos os desagradam —, ou mesmo quando
CONFISSÕES X 227
40
À busca de Deus
65. Quando é que Vós, ó Verdade, Eu ouvia os vossos ensinamentos e as
me não acompanhastes para me ensi vossas ordens. Costumo fazê-lo muitas
nardes o que havia de evitar e o que vezes, porque sinto nisso grande ale
devia desejar, todas as vezes que Vos gria. Sempre que, nos meus trabalhos
consultei? Por mim, quanto possível de obrigação, posso dispor de algum
foi-Vos manifestado tudo o que pude descanso, refugio-me nestes prazeres.
observar no meu interior. Entre todas estas coisas que percorro,
Percorri o melhor possível, com os depois de Vos consultar, só em Vós
sentidos, o mundo exterior. Observei encontro um reduto para a minha
em mim a vida do corpo e os próprios alma. Nele se reúnem os meus pensa
sentidos. Passei depois às profundezas mentos dispersos, e nada de mim se
da memória, a essas amplidões sucessi afasta de Vós.
vas, admiravelmente repletas de inu Algumas vezes, submergis-me em
meráveis riquezas. Observei-as, estupe devoção interior deveras extraordi
fato. Mas, sem Vós, nada pude nária, que me transporta a uma inex
distinguir. Contudo, reconhecí que Vós plicável doçura, a qual, se em mim
nada disto éreis. atingisse o fastígio, alcançaria uma
Não era eu quem descobria estas nota misteriosa que já não pertence a
maravilhas. É certo que as percorri a esta vida510. Mas caio em baixezás
todas e tentei distingui-las e avaliá-las cujo peso me acabrunha. Deixo-me
no seu justo valor, tomando e interro absorver e dominar pelas imperfeições
gando os seres que traziam mensagens habituais. Choro muito por isso, mas
aos meus sentidos. Analisei outros sinto-me ainda muito preso. Tão pesa
seres que sentia unidos a mim e exami do é o fardo do costume! Não quero
nei as suas informações. Revolvia nos estar onde posso, nem posso estar onde
grandes tesouros da memória várias quero. De ambos os modos sou mise
impressões, ora percorrendo umas, óra rável !
manifestando outras. Mas não era eu
510 Santo Agostinho teve graças místicas de ora
quem fazia tudo isso, nem era a força ção, e parece ter alcançado o grau supremo. A tra
com que eu agia, a qual não éreis Vós, dução literal daquela frase é: “a qual, se em mim
porque sois a luz imutável que eu con atingisse o fastígio, não sei o que seria, porque esta
vida não subsistiría”. Texto latino: "quae siperfi-
sultava acerca da existência, da quali ciatur in me néscio quid erit quod vita ista non erit ”.
dade e do valor em todas estas coisas. (N. do T.)
228 SANTO AGOSTINHO
41
A tríplice concupiscência
42
Falsos mediadores... •
43
Cristo, Medidor imortal
68. O verdadeiro Mediador, que por Efetivamente, foi sacerdote porque foi
vossa oculta misericórdia mostrastes e sacrifício. De escravos fez-nos. vossos
enviastes aos homens para que a seu filhos, servindo-nos, apesar de ter nas
exemplo aprendessem a humildade, é‘b cido de Vós.
homem Jesus Cristo, Mediador entre
Deus_e os homens 51 5”. Com razão n’Ele coloco toda a
minha firme confiança, esperando que
Apareceu como intermediário entre curareis todas as minhas enfermidades,
os mortais pecadores e o Justo Imortal. por intermédio d’Aquele que, sentado à
Apareceu mortal com os homens, e
justo com Deus. Como a recompensa vossa Direita, “intercede por nós 520”.
da justiça é a vida e a paz, pela justiça Doutro modo, desesperaria, pois são
unida a Deus desfez a morte51 6 dós múitas e grandes as minhas fraquezas !
ímpios justificados, querendo compar- Sim, são muitas e grandes, mas máiõr
tilhá-la com eles. é o poder da vossa medicina. Pode
Cristo foi revelado aos santos do riamos pensar que o vosso Verbo se
Antigo Testamento para que se salvas tinha afastado da união com o homem,
sem pela fé na sua futura paixão, como e, desesperado de nos salvar, se não se
nós nos salvamos pela fé já passada. tivesse feito homem e habitado entre
De fato, só é Mediador enquanto nós 521.
homem. Como Verbo não é interme Atemorizado com os meus pecados
diário, porque é igual a Deus e é Deus e com o peso da minha miséria, tinha
em Deus, sendo ao mesmo tempo um revolvido e meditado, em meu coração,
só Deus. o projeto de fugir para o ermo 522. Mas
Como nos amastes, ó Pai bondoso ! Vós mo proibistes e me fortalecestes,
“Não perdoastes ao Vosso Filho dizendo: “Cristo morreu por todos,
Único! Vós o entregastes à morte por para que os viventes não vivam para si,
nós, ímpios pecadores51 7 !” Como nos mas para Aquele que morreu por
amastes ! Foi por nosso amor que Ele, eles 523”.
“não considerando como rapina o ser Pois bem, Senhor, lanço em vossas
igual a Vós, se fez por nós obediente mãos o cuidado da minha vida para
até à morte e morte de cruz 51 8”. “Ele que viva, e “meditarei nas maravilhas
era o único entre os mortos que estava da vossa lei52 4”. Conheceis a minha
isento da morte, o único que tinha o ignorância e doença. Ensinai-me e
poder de entregar a vida e de a reassu curai-me 52 5.
mir de novo 51 9 !” Foi, diante de Vós, o 520 Mt4, 23; Rom 7, 34.
nosso vencedor e vítima. Tomou-se 521 Jo 1, 14.
vencedor porque foi vítima. Foi, diante 522 Santo Agostinho pensava em tomar-se eremita
519quando
de Vós, o nosso Sacerdote e sacrifício.515
*518 habitou em Cassicíaco, e mais tarde, quan
do bispo, esteve a ponto de retirar-se para o seu
mosteiro de Hipona, por causa dos ágapes sobre os
515 1 TY/n 2, 5. sepulcros dos mártires. Os hiponenses não queriam
51 6 GúZ 5, 4. corrigir-se desse costume meio pagão. (N. do T.)
51 7 Rom 8, 32. 523 2 Cor 5, 15.
518 ^2,6.8. 524 57 5 4,23; 118,28.
519 Jo 10, 18. 52 9 57 6,3.
230 SANTO AGOSTINHO
O HOMEM E O TEMPO
2
Os arcanos das palavras divinas
horas que me deixam livres as necessi nas sagradas cheias de mistérios. Por
dades de alimentar o corpo e de repou ventura esses bosques não possuem
sar da contensão do espírito. Gastarei também os seus veados que aí se aco
nisso os momentos livres dos serviços lhem e refugiam, aí passeiam e pastam,
que devemos aos homens e dos que aí se deleitam ruminando?
lhes prestamos sem Ihos dever. Ó Senhor, aperfeiçoai-me e paten
3. Senhor, Deus meu, “atendei a teai-me esses mistérios. A vossa pala-
minha oração 53 4”, e oxalá a vossa vra é a minha alegria. A vossa voz é
misericórdia ouça o meu desejo 53 5, mais deleitosa do que toda a afluência
porque não é só por mim que ele palpi de prazeres. Concedei-me o que amo,
ta, senão também por aqueles que a porque estou inebriado de amor. E isso
caridade me faz olhar como a irmãos. me concedestes. Não abandoneis os
Vós vedes no meu coração que assim vossos dons, nem deixeis de regar esta
é. Sacrificar-Vos-ei as operações do erva sequiosa.
meu pensamento e da minha língua. Oxalá Vos confesse tudo o que
Dai-me, porém, aquilo que Vos desejo encontrar nos vossos livros e “ouça a
oferecer e sacrificar 53 6. “Eu sou pobre voz dos vossos louvores 53 9”. Possa eu
e indigente. Vós sois rico para os que inebriar-me de Vós e considerar as
Vos invocam53 7”, vigiando sobre nós maravilhas da vossa lei, desde o princí
com segurança. pio em que criastes o céu e a terra, até
Purificai os meus lábios e o meu ao tempo em que partilharemos con-
coração de toda temeridade e mentira. vosco do reino perpétuo da vossa
Sejam as Sagradas Escrituras as mi Santa Cidade.
nhas castas delícias. Que eu não seja 4. Senhor, tende compaixão de mim
enganado nelas, nem com elas engane e ouvi o meu desejo. Julgo que nele não
os outros. Escutai a minha alma, há nada de terrestre, nem de ouro nem
Senhor, e tende piedade de mim, ó meu de prata nem de pedras preciosas nem
Deus, que sois luz dos cegols, força dos de vestidos luxuosos nem de.honras e
enfermos, e simultaneamente luz dos poderes nem de prazeres da carne nem
que vêem e força dos fortes. Escutai de coisas necessárias ao corpo e a esta
compassivo a minha alma, ouvi-a nossa via de peregrinos. Tudo nos é
enquanto clama do mais profundo dado por acréscimo, a nós, que busca
abismo em que se encontra. Se os vos mos o reino do céu e. vossa justiça 5 4 0.
sos ouvidos não estão presentes lá Vede, Senhor meu Deus, donde
nesse abismo, para onde nos dirigire nasce o meu anseio. “Os maus conta
mos? Por quem chamaremos? ram-me às suas alegrias, mas estas não
“Vosso é o dia e vossa é a noite 5 3 8.” são como as que provêm da vossa lei,
A um aceno da vossa vontade, os ins ó Senhor5 41.” Eis donde brota o meu
tantes voam. Concedei-me, por conse anseio. Vede, ó Pai, aprovai e tende
guinte, tempo para meditar os segredos por bem que eu, sob o olhar da vossa
da vossa lei, e não a fecheis aos que lhe misericórdia, encontre graça diante de
vêm bater à porta. Não foi em vão que Vós, para que os arcanos das vossas
quisestes fossem escritas tantas pági- palavras se abram, quando o meu espí
rito lhes bater à porta.
534 5/60,2. Peço-Vos por intermédio- de Nosso
53 5 si 10, 17.
53 6 5/65, 15; 85, 1. 539 5/25,7.
53 7 Rom 10, 12. 5 40 Mt6, 33. ■ (
538 5/73, 16. 541 5/ 118,85. ■
CONFISSÕES XI 237
Senhor Jesus Cristo, “vosso Filho, o mastes à adoção o povo dos crentes,
homem sentado à vossa destra, o Filho entre qs quais estou eu também. Por
do Homem5 42”, ao qual confirmastes Ele, que “está sentado à vossa direita e
como Mediador entre Vós e nós. Por intercede por nós diante de Vós 5 43”.
Ele nos buscastes quando Vos não “N’Ele se encontram todos os tesouros
procurávamos. Buscastes-nos para que de Sabedoria e Ciência5 4 4”, aos quais
também Vos buscássemos. procuro nos vossos livros. Moisés
Rogo-vos por intermédio do vosso escreveu a seu respeito: “Isto di-lo Ele,
Verbo, pelo qual criastes todas as coi isto di-lo a Verdade 5 4 5”.
sas, e, entre elas, a mim. Rogo-Vos
pelo vosso Unigênito, pelo qual cha- 543 Romü, 3'4.
5 4 4 Col 2, 3.
5 42 57 79,18. 5 4 5 Cf. Jo 5, 46.
3
Como compreender Moisés?
5. Concedei-me que eu ouça e com Mas como saberia eu que ele falava
preenda como “no princípio criastes o verdade? E quando o soubesse, sabê-
céu e a terra5 4 6” Isto escreveu Moi lo-ia por seu intermédio? A mesma
sés. Escreveu-o e deixou este mundo. Verdade, que não é hebraica nem grega
Partiu daqui, de Vós para Vós, e agora nem latina nem bárbara, dir-me-ia
não está na minha presença. Se esti interiormente, dentro do domicílio do
vesse presente, detê-lo-ia para lhe pedir meu pensamento, sem o auxílio dos ór
e suplicar, por vosso intermédio, que gãos da boca e da língua, e sem ruído
me patenteasse o sentido desta frase. de sílabas: “Moisés fala verdade”. E
Prestaria atenção às palavras saídas eu, imediatamente, com toda a certeza
dos seus lábios. Se Moisés falasse na e confiança, diria àquele vos’so servo:
língua hebraica, em vão impressio “Dizeis a verdade”.
naria os meus ouvidos, porque nenhu Como o não posso consultar, inter-
ma idéia atingiría a minha mente 5 4 7. rogo-Vos, ó Verdade cuja plenitude ele
Se, porém, se exprimisse enr latim, possuía e com a qual enunciou aquelas
compreendería o que ele me dissesse. verdades. Suplico-Vos, ó meu Deus,
que me perdoeis os pecados, e, já que
permitistes que aquele vosso servo dis
5 4 6 Gên i, 1.
5 4 7 Santo Agostinho ignorava a língua hebraica. sesse estas coisas, fazei também que eu
(N. do T.) as compreenda.
4
Deus, no poema da criação
5
A palavra criadora
criatura existe que não exija a vossa falastes, e os seres foram criados549
existência? Vós os criastes pela vossa palavra!
Portanto, é necessário concluir que 5 49 57 32,6.9.
8. Mas como é que falastes? Por muito grande !• Estas palavras estão
ventura do mesmo modo como quando muito abaixo de mim. Nem sequer
se ouviu de entre a nuvem a voz que existem, porque fogem e passam”.
dizia: “Este é o meu filho predile- “Porém o Verbo de Deus permanece
to 5 50«9 sobre mim etemamente 5 51.”
Com efeito, aquela voz ecoou e Se foi, portanto, por meio de pala
sumiu-se. Começou e findou. Ressoa vras soantes e transitórias que disses
ram as sílabas e passaram, a segunda tes que fossem feitos o céu e a terra, e
após a primeira, a terceira após a se assim os criastes, conclui-se que já
segunda, e todas pela mesma ordem, antes do céu e da terra existia uma
até à última, e, depois da última, o criatura material por cujas vibrações
silêncio. . . Donde claramente ressalta aquela voz pôde correr no tempo.
que uma criatura as pronunciou, me Porém, nenhum corpo existia antes
diante uma vibração temporal, a servi do céu e da terra, ou, se existia, Vós o
ço da vossa eterna vontade. Essas tínheis certãmente criado sem ser por
palavras transitórias anunciou-as ela, meio de voz transitória. Por ele emitis
por intermédio dos ouvidos externos, à tes a voz passageira com que dissestes
inteligência que as compreende e cujos que o céu e a terra fossem feitos.
órgãos interiores da audição estão dis Efetivamente, qualquer que seja a
postos para escutarem o vosso Verbo substância com que produzistes essa
Eterno. voz, de modo algum poderia existir, se
A inteligência comparou essas pala a não tivésseis criado. Mas que palavra
vras, proferidas no tempo, com o vosso pronunciastes para dar ser à matéria,
Verbo, gerado no eterno silêncio, e com que havíeis de formar aquelas
disse: “Sim, a diferença é grande, palavras?
5 50 Mt3, 17; 17,5. 551 Zs40, 8.
7
O Verbo de Deus coetemo com Deus
10. Dizei-me a causa de tudo isto, ensina, ainda que nos fale, é como se
eu vo-lo peço, Deus e Senhor meu! Al não nos falasse. Mas, além da Verdade
guma coisa entendo, mas não sei como Imutável, quem é que nos ensina?
me exprimir. Limito-me a dizer que Ainda quando somos elucidados pela
tudo quanto começa a existir ou deixa criatura mutável, somos encaminhados
de existir só principia ou acaba quando também para a Verdade Imutável,
se conhece, na vossa Razão eterna, que onde verdadeiramente aprendemos.
tudo isso deve ter começado ou termi Então conservamo-nos de pé a ouvi-lo
nado, ainda que nela nada começa e e “enchemo-nos de alegria por causa
nada desaparece.
da voz do Esposo 5 52”, que nos conduz
O vosso Verbo é este Princípio de
à origem donde somos.
todas as coisas porque também nos
fala. Assim, falou-nos no Evangelho Portanto, é Ele o princípio, porque,
por meio do seu corpo. Ressoou essa se Ele não permanecesse, não teríamos
voz exteriormente aos ouvidos dos ho para onde voltar quando vagueás
mens para que acreditassem nele, o semos errantes. Quando, porém, volta
buscassem dentro de si mesmos e o mos do erro, voltamos com plena cons
encontrassem na eterna Verdade, onde ciência. Ensina-nos, a fim de que
o bom e único Mestre ensina a todos possuamos essa plena consciência da
os discípulos. nossa volta, porque é o Princípio. Ele
Senhor, ouço aí a vossa voz a dizer- fala-nos.
me que só nos fala verdadeiramente
aquele que nos ensina. Quem nos não 5 52 Jo 3, 29.
9
A luz do Verbo em mim
11. Criastes, ó Deus, o céu e a terra, vosso Filho, na vossa Virtude, na
neste princípio, no vosso Verbo, no vossa Sabedoria, falando e agindo dum
CONFISSÕES XI 241
10
Que faria Deus antes da criação?
12. Não é verdade que estão ainda nada seria criado se antes não existisse
cheios de velhice espiritual 5 5 7 aqueles a vontade do Criador. Essa vontade
que nos dizem: “Que fazia Deus antes pertence à própria substância de Deus.
de criar o céu e a terra? Se estava ocio Se alguma coisa surgisse na substância
so e nada realizava”, dizem eles, “por de Deus que antes lá não estivesse, não
que não ficou sempre assim no decurso podíamos, com verdade, chamar a essa
dos séculos, abstendo-se, como antes, substância eterna. Mas, se desde toda a
de toda ação? Se existiu em Deus um eternidade é vontade de Deus que exis
novo movimento, uma vontade nova tam criaturas, por que razão não são
para dar o ser a criaturas que nunca as criaturas eternas? 558
antes criara, como pode haver, verda 5 58 Santo Agostinho trata este mesmo assunto no
deira eternidade, se n’Ele aparece uma De Genesi contra Manichaeos, liv. I, cap. 2. A cria
vontade que antes não existia?” ção não foi db aetemo. Deus criou livremente, por
um ato eterno de volição. As idéias das coisas exis
A vontade de Deus não é uma cria tem na Inteligência Divina desde toda a eternidade.
tura. Está antes de toda criatura, pois Porém, os termos ou objetos que Deus quer produ
zir só aparecem no momento determinado pela sua
5 5 7 "Pleni vetustatis suae”, diz Santo Agostinho. volição. Os filósofos escolásticos medievais comba
No sermão 267, explica: “carnalitas vetustas est”: a teram o averroísmo e a tese de Aristóteles que pro
sensualidade é velhice (espiritual). punha a eternidade do mundo. (N. do T.)
242 SÀNTO AGOSTINHO
11
O tempo não pode medir a eternidade
13. Quem afirma tais coisas, ó “Sa Ora, estes não podem alongar-se si
bedoria de Deus 5 5 9”, Luz das inteli multaneamente.
gências, ainda não compreendeu como Na eternidade, ao' contrário, nada
se realiza o que se faz por Vós e em
Vós. Esforça-se por saborear as coisas passa, tudo é presente, ao passo que o
eternas, mas o seu pensamento ainda tempo nunca é todo presente. Esse tal
volita ao redor das idéias da sucessão verá que o passado é impelido pelo fu
dos tempos passados e futuros, e, por turo e que todo o futuro está precedido
isso, tudo o que excogita é vão. dum passado, e todo o passado e futu
A esse, quem o poderá prender e ro são criados e dimanam d’Aquele
fixar, para que pare um momento e que sempre é presente. Quem poderá
arrebate um pouco do esplendor da prender o coração do homem, para que
eternidade perpetuamente imutável,
para que veja como a eternidade é pare e veja como a eternidade imóvel
incomparável, se -a confronta com o determina o futuro e o passado, não
tempo, que nunca pára? Compreen sendo ela nem passado nem futuro?
derá então que a duração do tempo Poderá, porventura, a minha mão que
não será longa, se não se compuser de escreve explicar isto? Poderá a ativi
muitos movimentos passageiros 5 60, dade da minha língua conseguir pela
5 59 Ef3, 10. palavra realizar empresa tão grandio
5 60 Ações sucessivas transitórias. (N. do T.) ■ sa?
12
O que fazia Deus antes da criação do mundo
14. Eis a minha resposta àquele que que se escarneça do que propôs a difi
pergunta: “Que-fazia Deus antes de culdade e se louve aquele que respon
criar o céu e a terra?” Não lhe respon deu coisas falsas.
derei nos mesmos- termos com que Mas eu digo, meu Deus, que sois o
alguém, segundo se narra, respondeu, Criador de tudo o que foi criado. Se
eludindo, com graça, a dificuldade do pelo nome de “céu e terra” se com
problema: “Preparava”, disse, “a preendem todas as criaturas, não temo
afirmar que antes de criardes o céu e a
geena para aqueles que perscrutam
terra não fazíeis coisa alguma. Pois, se
estes profundos mistérios !” Uma coisa tivésseis feito alguma coisa, que pode
é ver a solução do problema e outra é ría ser senão criâtura vossa? Oxalá eu
rir-se dela. Não darei essa resposta. soubesse tudo o que me importa
Gosto mais de responder: não sei — conhecer, como sei que Deus não fazia
quando de fato não sei — do que apre nenhuma criatura antes que se fizesse
sentar aquela solução, dando motivo a alguma criatura!
CONFISSÕES XI 243
13
O eterno “hoje”
14
O que é o tempo?
17. Não houve tempo nenhum em porque Vós‘permaneceis imutável, e se
que não fizésseis alguma coisa, pois os tempos assim permanecessem, já
fazíeis o próprio tempo. não seriam tempos. Que é, pois, o
Nenhuns tempos Vos são coeternos, •tempo? Quem poderá explicá-lo clara
244 SANTO AGOSTINHO
15
As três divisões do tempo
18. Contudo, dizemos tempo longo capaz de ser longa. O passado já não
ou breve, e isto, só o podemos afirmar existia; portanto não podia ser longo
do futuro ou do passado. Chamamos aquilo que totalmente deixara de exis
“longo” ao tempo passado, se é ante tir.
rior ao presente, por exemplo, cem Não digamos pois: “o tempo passa
anos. Do mesmo modo dizemos que o do foi longo”, porque não encontra
tempo futuro é “longo”, se é posterior remos aquilo que tivesse podido ser
ao presente também cem anos. Chama longo, visto que já não existe desde o
mos “breve” ao passado, se dizemos, instante em que passou. Digamos
por exemplo, “há dez dias”; e ao futu antes: “aquele tempo presente foi
ro, se dizemos “daqui a dez dias”. Mas longo”, porque só enquanto foi pre
como pode ser breve ou longo o que sente é que foi longo. Ainda não tinha
não existe? Com efeito, o passado já passado ao não-ser, e portanto existia
não existe e o futuro ainda não existe. uma coisa que podia ser longa. Mas,
Não digamos: “é longo”; mas digamos logo que passou, simultaneamente dei
do passado: “foi longo”; e do futuro: xou de ser longo, porque deixou1 de
“será longo”. existir.
Nesta questão, escarnecerá do 19. Vejamos, portanto, ó alma hu
homem a vossa Verdade, ó meu Deus e mana, se o tempo presente pode ser
minha Luz? O tempo longo, já passa longo. Foi-te concedida a prerrogativa
do, foi longo depois de passado ou de perceberes e medires a sua duração.
quando ainda era presente? Só então Que me responderás? Porventura cem
podia ser longo (nesse momento pre anos presentes são muito tempo? Con
sente), quando existia alguma coisa sidera primeiro se cem anos podem, ser
CONFISSÕES XI 245
16
Pode medir-se o tempo
Mas não medimos os.tempos que tiver decorrido, não o pode perceber
passam, quando os medimos pela nem medir, porque esse tempo já não
sensibilidade. Quem pode medir os existe 5 6 6.
tempos passados que já não existem ou
os futuros que ainda não chegaram? 5 6 6 O tempo não é apenas uma sucessão de instan
Só se alguém se atrever a dizer que tes separados. É um contínuo, e, como tal, é indivi
,pode medir o que não existe! Quando sível. O tempo, para ser estudado na sua metafísica,
não se deve dividir no “antes” e no “depois”, mas
está decorrendo o tempo, pode perce considerar-se na sua síntese de continuidade. (N. do
bê-lo e medi-lo. Quando, porém, já T.) •
17
Através do pretérito e do futuro
22. Não afirmo, ó Pai. Apenas per noutro esconderijo, quando de presente
gunto. Meu Deus, assisti-me e dirigi- se faz passado? Onde é que os adivi
me! nhos viram as coisas futuras que vati-
Quem se atreveria a dizer-me que cinaram, se elas ainda não existem?
não há três tempos, conforme aprende Efetivamente, não é possível ver o que
mos na infância e às crianças o ensina não existe. E os que narram fatos pas
mos: o pretérito, o presente e o futuro? sados, sem dúvida não os poderiam
Existirá somente o presènte, visto que veridicamente contar, se os não vissem
os outros dois não existem? Ou eles com a alma. Ora, se esses fatos passa
também existem, e então o tempo pro dos não existissem, de modo nenhum
cede de algum retiro oculto, quando de poderiam ser vistos. Existem, portanto,
futuro se faz presente? Entra o tempo fatos futuros e pretéritos.
18
O vaticínio do futuro pelo presente
existentes das coisas que ainda não existem, e aqueles que predifcem o futu
existem. Sei com certeza que nós, a ro já os vêem como presentes junto a
maior parte das vezes, premeditamos si.
as nossas açoès futuras, e essa preme- Tomemos algum exemplo da multi
ditação é presente, ao passo que a ação dão tão numerosa de fenômenos.
premeditada ainda não existe, porque é Vejo a aurora e prognostico que o
futura. Quando empreendermos e co sol vai nascer. O que vejo é presente, o
meçarmos a realizar o que premedita que anuncio é futuro. Não é o sol que é
mos, então essa ação existirá, porque futuro, porque esse já existe, mas sim o
já não é futura, mas presente. De qual seu nascimento, que ainda se não reali
quer modo que suceda este pressenti zou. Contudo, não o poderia prognos
ticar sem conceber também, na minha
mento oculto das coisas futuras, não
podemos ver senão o que possui exis imaginação, o mesmo nascimento,
tência. Ora, o que já existe não é futu como agora o faço quando isso decla
ro. Mas nem aquela aurora que eu vejo
ro, -mas presente. Por conseguinte, no céu e que precede o aparecimento
quando se diz que se vêem os aconteci do sol, nem aquela imagem formada
mentos futuros, não se vêem os pró no meu espírito são o mesmo nasci
prios acontecimentos ainda inexis mento do sol, ainda que, para se predi
tentes — isto é, os. fatos futuros —, zer este futuro, se devam enxergar a
mas sim as suas causas, ou talvez os aurora e a sua imagem como presentes.
seus prognósticos já dotados de exis Por conseguinte, as coisas futuras
tência. Portanto, com relação aos que ainda não existem; e se ainda não exis
os vêem, esses acontecimentos não são tem, não existem presentemente. De
futuros, mas sim presentes. modo algum podem ser vistas, se não
24. Por esses vaticínios é apenas existem. Mas podem ser prognosti
profetizado o futuro já preconcebido cadas pelas coisas presentes que já
na alma. Esses vaticínios, repito, já existem e se deixam observar.
19
Oração ao senhor do futuro
25. Declarai-nos, pois, ó Soberano futuro? Pois o que não existe também
das vossas criaturas, de que modo não pode, evidentemente, ser ensina
ensinais às almas os acontecimentos do !
futuros, pois não se pode duvidar de Este modo misterioso está dema
siado acima da minha inteligência. Su
que os revelastes aos vossos profetas. pera as minhas forças. Por mim. não
De que modo ensinais as coisas futu poderei atingi-lo. Porém, podê-lo-ei
ras, ó Senhor para quem não há futu por Vós, quando mo concederdes, ó
ro? Ou antes, de que modo ensinais doce luz dos ocultos olhos da minha
algumas coisas presentes acerca do alma.
248 SANTO AGOSTINHO
20
Conclusão desta análise: nova terminologia
26. O que agora claramente trans sões, vejo então três tempos e confesso
parece é que nem há tempos futuros que são três.
nem pretéritos. Ê impróprio afirmar Diga-se também que há três tempos:
que os tempos são três: pretérito, pre pretérito, presente e futuro, como ordi
sente e futuro. Mas talvez fosse próprio nária e abusivamente se usa. Não me
dizer que os tempos são três: presente importo nem me oponho nem critico
das coisas passadas, presente das pre tal uso, contanto que se entenda o que
sentes, presente das futuras. Existem, se diz e não se julgue que aquilo que é
pois, estes três tempos na minha mente futuro já possui existência, ou que, o
que não vejo em outra parte: lem passado subsiste ainda. Poucas são as
brança presente das coisas passadas, coisas que exprimimos com termino
visão presente das coisas presentes e logia exata. Falamos muitas vezes sem
esperança presente das coisas futuras. exatidão, mas entende-se o que preten
Se me é lícito empregar tais expres demos dizer!
21
Novas dificuldades: como pode medir-se o tempo?
27. Disse há pouco que medimos os Por onde caminha,' senão pelo presen
tempos que passam, de modo que te? Para onde se dirige, senão para o
podemos afirmar: este espaço de passado? Portanto, nasce naquilo que
tempo é. duplo de tal outro, ou é-lhe ainda não existe, atravessando aquilo
equivalente, ou este é igual àquele. Do que carece de dimensão, para ir para
mesmo modo exprimimos outras sub aquilo que já não existe.
1
divisões do tempo, se mais alguma Porém, que medimos nós senão o
outra medida pudermos enunciar. Por tempo nalgum espaço? Não diriamos
conseguinte, como dizia, medimos os tempos simples, duplos, triplos e iguais
tempos ao decorrerem. E se alguém me
disser: “Como o sabeis?”, responder- ou com outras denominações análo
Ihe-ei: “Sei-o porque os medimos”. gas, se os não considerássemos como
Não medimos o que não existe. Ora, as espaços de tempos. Em que espaço
coisas pretéritas ou futuras não exis medimos o tempo que está para pas
tem. Como medimos nós o tempo pre sar? Será no futuro, donde parte? Mas
sente, se não tem espaço? Mede-se nós não podemos medir o que ainda
quando passa. Porém, quando já tiver não existe! Será no presente, por onde
passado, não se mede, porque já não parte? Mas nós não medimos o que
será possível medi-lo. não tem nenhuma extensão! Será no
Mas donde se origina ele? Por onde passado, para onde parte? Mas, para
e para onde passa, quando se mede? nós, não é mensurável o que já não
Donde se origina ele senão do futuro? existe!
CONFISSÕES XI 249
22
Senhor, desfazei este enigma!
28. O meu espírito ardeu em ânsias Cristo, em nome do Santo dos Santos,
de compreender este enigma tão com que ninguém me perturbe nesta investi
plicado. Não fecheis, Senhor meu gação. “Acreditei, e eis o motivo por
Deus e Pai bondoso — peço-Vo-lo por que falo 3*5 6 7.” É esta a minha esperan
amor de Jesus Cristo —, não fecheis ça. Vivo para ela a fim de contemplar
ao meu desejo estes problemas comuns as delícias do Senhor. “Tomastes ve
e ao mesmo tempo misteriosos.'Fazei, lhos os meus dias 5 68”, e eles passam,
Senhor, que penetre neles e que me sem saber como.
sejam claros e manifestos pela; vossa Falamos do tempo e mais do tempo,
misericórdia. dos tempos e ainda dos tempos. Anda
A quem devo interrogar sobre estas mos constantemente com o “tempo”
questões ou a quem poderei com mais na boca: “Por quanto tempo falou este
fruto confessar a minha ignorância dò homem?” “Quanto tempo demorou a
que a Vós, a quem não molestam as fazer isto?” “Há quanto tempo não
minhas ânsias excessivamente inflama vejo aquilo?” “Esta sílaba tem o dobro
das no estudo das vossas Escrituras? de tempo daquela sílaba breve.” Dize
Dai-me o que amo, pois Vós me conce mos e ouvimos semelhantes expres
destes esta graça de amar. Dai-me, Pai, sões. Os outros compreendem-nos e
o que Vos peço, Vós que verdadeira nós compreendemo-los.
mente sabeis presentear os vossos fi São palavras muito claras e muito
lhos com dádivas valiosas. Dai-mo, ordinárias, mas ao mesmo tempo bas
porque determinei conhecê-lo e • não tante obscuras. Exigem, por isso, uma
. descansarei enquanto não mo manifes nova análise.
tardes.
Peço-Vos por intermédio de Jesus 5 6 7 Sl 115, 1.
5 68 5/38,6.
23
O tempo é uma certa distensão
29. Ouvi dizer a um homem ins deixaria de haver tempo para medir
truído que o tempo não é mais que o mos as suas voltas? Não poderiamos
movimento do Sol, da Lua e dos dizer que estas se realizavam em espa
astros 5 69. Não concordei. Porque não ços iguais, ou, se a roda umas vezes se
seria antes o movimento de todos os movesse mais devagar, outras depres
corpos? Se os astros.parassem e. conti sa, não poderiamos afirmar que umas
nuasse, a mover-se a roda do oleiro, voltas demoravam mais, outras
menos? Ou, ao dizermos isto, não fala
3 69 Assim ò afirmava EratÓstenes: “O tempo é o mos nós no tempo, e não há nas nossas
curso do Sol”. Igual teoria se atribuiu a Platão no
livro Timeu. A este se refere o texto. (N. do T.) palavras sílabas longas e sílabas bre
250 SANTO AGOSTINHO
ves, assim chamadas, porque umas res que o Sol desse vinte e quatro voltas
soam durante mais tempo e outras para completar um dia. Se fossem o
durante menos tempo? Fazei, meu movimento do Sol e a duração desse
Deus, com que os homens conheçam movimento a dar origem ao dia, este
por meio deste simples exemplo as não se poderia apelidar com tal nome,
noções comuns das coisas grandes e se o Sol perfizesse o seu giro completo
pequenas. no espaço de uma hora. Também o
Há estrelas e luzeiros no céu que não chamaríamos dia, se se passasse
servem de sinais, indicam as estações, tanto tempo estando o Sol parado,
as horas e os anos. Com certeza, exis quanto este costuma gastar no seu per
tem. Mas nem eu afirmo que uma volta curso de uma manhã a outra manhã.
daquela roda de madeira represente Agora não procuro averiguar em
um dia, nem aquele sábio se atreverá a que consiste aquilo que apelidamos
dizer que esse giro não representa um dia, mas sim o que seja o tempo, uni
determinado tempo. dade pela qual, medindo o trajeto do
Sol, diriamos que o completou em
30. Desejo saber a força e natureza menos de metade do espaço do tempo
do tempo com que medimos o movi
costumado, se acaso o perfizesse no es
mento dos corpos e dizemos, por paço de tempo quanto é aquele em que
exemplo, que tal movimento é duas decorrem doze horas. Comparando as
vezes mais longo no tempo do que
duas durações,«diremos que uma é sim
outro qualquer. Prossigamos na inves
ples e outra dupla, ainda que o Sol
tigação: chamamos dia não somente à
demorasse umas vezes o tempo sim
demora do Sol sobre a Terra, pela qual
ples, outras vezes o dobro, no seu per
se diferencia o dia e a noite, mas tam
curso do Oriente ao Oriente 5 7 0.
bém, ao giro completo que o Sol des
Ninguém me diga, portanto, que o
creve do Oriente ao Oriente. Por isso
tempo é o movimento dos corpos celes
dizemos: • “Passaram-se tantos dias”.
tes. Quando, com â oração de Josué, o
Entendemos também as respectivas
Sol parou, a fim de ele concluir vitorio
noites, sem enumerar à parte os seus
samente o combate, o Sol estava para
espaços. Portanto, já que o movimento
do, mas o tempo caminhava 5 71. Este
do Sol e o seu percurso do Oriente ao
espaço de tempo foi o suficiente para
Oriente completam um dia, desejava
executar e para pôr termo ao combate.
saber se é o movimento que constitui o
Vejo portanto que o tempo é uma certa
dia, ou se é a duração em que se reali
distensão. Vejo, ou parece-me que
za esse movimento, ou se são estas
vejo? Só Vós, Luz e Verdade, mo
duas coisas conjuntamente.
demonstrareis 5 7 2.
Se fosse o movimento do Sol que
constituísse o dia, feríamos um dia, 5 70 Os romanos mediam o dia dum nascer do Sol
ainda que o Sol completasse a sua car até ao outro nascer do Sol. Os judeus, ao contrário,
contavám-no dum pôr do Sol até ao outro !pôr do
reira num tão pequeno espaço de Sol. (N. do T.)
tempo quanto é o duma só hora. Se 571 Santo Agostinho pretende distinguir o tempo
fosse a duração do percurso do Sol que astronômico do tempo metafísico e do tempo psico
lógico. Aqui refere-se ao astronômico. (N. do T.)
constituísse o dia, não haveria dia, se 5 72 O tempo psicológico é a impressão do antes e
dum nascer a outro nascer do Sol hou depois que as coisas gravam no espírito. Ê o senti
mento de presença das imagens que se sucedem,
vesse a breve duração de tempo quanto sucederam ou hão de suceder, referidas a uma
é o duma só hora. Mas seria preciso anterioridade. (N. do T.)
CONFISSÕES XI ,251
24
O tempo não é o movimento dos corpos
25
“Senhor, iluminareis as minhas trevas”
32. Confesso-Vos, Senhor, que sei? Ai de mim, que nem ao menos sei
ainda ignoro o que seja o tempo. De o que ignoro!
novo Vos confesso também, Senhor — Eis-me diante de Vós, ó meu Deus,
isto não o ignoro —, que digo estas para Vos declarar que não minto.
coisas no tempo e que já há muito que Falo-Vos tal qual é o meu coração.
falo do tempo, e que esta longa demora “Vós acendereis a minha candeia, Se
não é outra coisa senão uma duração, nhor Meu Deus, e iluminareis as mi
de tempo. E como posso saber isto, se nhas trevas 5 73.”
ignoro o que seja o tempo? Acontecerá
talvez que não saiba exprimir o que 5 73 Sl 17,29.
252 SANTO AGOSTINHO
26
Nova teoria sobre o tempo
33. Acaso minha alma não Vos Mas nem assim afcançamos medida
engrandece ao declarar-Vos, com ver certa para o tempo, porque pode suce
dade, que meço os tempos? Efetiva der que um Verso menos extenso ressoe
mente, meu Deus, eu meço-os, e não por maior espaço de tempo, se se pro
sei o que meço. Meço o movimento nuncia mais lentamente do que outro
dum corpo com o tempo. Não poderei mais longo, se é proferido mais depres
eu medir o tempo do mesmo modo? sa. O mesmo sucede aos poemas, pés e
Ser-me-á possível medir o movimento sílabas.
dum corpo enquanto ele perdura, e
quanto o corpo leva em chegar dum Pelo que, pareceu-me que o tempo
lugar a outro sem que meça o tempo não é. outra coisa senão distensão; mas
em que se move? de que coisa o seja, ignoro-o 5 7 4. Seria
Com que posso eu medir o tempo? para admirar que não fosse a da pró
É com um espaço mais breve de tempo pria alma5 7 5. Portanto, dizei-me, eu
que calculamos outro mais longo, do Vo-lo suplico, meu Deus, que coisa
mesmo modo que medimos o compri meço eu, quando declaro indetermina-
mento dum caibro com o côvado? damente: “Este tempo é mais longo do
Igualmente vemos que, pela duração que aquele”, ou quando digo determi-
duma sílabq breve, se avalia a duma sí nadamente: “Este é duplo daquele
laba longa, e afirmamos que a duração
duma é dupla da outra. Assim, medi outro”? Sei perfeitamente que meço o
mos a extensão dum poema pelo núme tempo, mas não o futüro, porque ainda
ro de versos, a grandeza dos versos não existe. Também não avalio o pre
pela dos pés, a dos pés pela duração sente, pois não tem extensão, nem o
das sílabas, as-sílabas longas pelas bre passado, que não existe. Que meço eu
ves, e não pelo número de páginas, então? O tempo que presentemente
pois deste modo mediriamos os espa decorre e não o que já passou? Assim
ços e não os tempos. Conforme as o tinha dito eu.
palavras passam e nós as pronuncia
mos, dizemos: “Este poema é extenso, 5 7 4 Santo Agostinho não emprega o termo espa
pois se compõe de tantos versos; os cial de extensão, para se referir ao tempo. Em vez
versos são compridos porque constam daquele vocábulo, usa distensão. (N. do T.)
5 7 5 No conceito de tempo há dois elementos: um
de tantos pés; os pés também são com transitório (sucessão) e outro permanente (duração).
pridos pois se estendem por tantas síla O tempo psicológico não é mais do que a percepção
bas; estas são longas porque são o dessa: sucessão contínua no campo da consciência
com aspecto de localização e de anterioridade. (N.
dobro das breves”. do T.)
CONFISSÕES XI 253
27
Uma experiência
Também não meço esta mesma síla dizemos que aquele silêncio durou o
ba longa enquanto é presente, pois só mesmo tempo que aquela voz, não diri
me é possível medi-la depois de termi gimos o pensamento para a duração da
nada. E, uma vez terminada, passou. voz, como se ressoasse ainda, a fim de
Que medirei eu, portanto? Onde está a podermos avaliar no espaço de tempo
sílaba breve que me serve de medida? o intervalo dos silêncios? Com efeito,
Onde está a longa para eu a medir? quando, sem abrir a boca nem pronun
Ambas ressoaram, voaram, foram pas ciar palavra, fazemos mentalmente
sando e já não existem. Meço-as e, poemas, versos ou qualquer discurso,
com a certeza que me pode dar a per ou medimos quaisquer movimentos,
cepção dum sentido, respondo confia- comparamo-los pelos espaços de
damente que no espaço de tempo uma tempo e achamos a relação duns com
é simples, outra é dupla. Nem posso outros como se os pronunciássemos
dizê-lo senão porque passaram e termi em voz alta.
naram. Não as meço, portanto, a elas, Se alguém quisesse soltar uma pala
que já não existem, mas a alguma vra um pouco mais longa e regulasse
coisa delas que permanece gravada na com o pensamento a sua duração, esse
minha memória. delimitaria o espaço de tempo em
36. Em ti, ó meu espírito, meço os silêncio. Confiando-o à memória, co
tempos! Não queiras atormentar-me, meçaria a produzir aquela palavra que
pois assim é. Não te perturbes com os soa, até atingir o limite proposto. Mas
tumultos das tuas emoções. Em ti, essa voz ressoa e ressoará, pois a parte
repito, meço os tempos. Meço a im que esmoreceu sem dúvida já ressoou,
pressão que as coisas gravam em ti à e o que resta soará ainda. Vai assim
sua passagem, impressão que permane emudecendo pouco a pouco, enquanto
ce, ainda depois de elas terem passado. a presente atenção do espírito vai lan
Meço-a a ela enquanto é presente, e çando o futuro para o passado. Com a
não àquelas coisas que se sucederam diminuição do futuro, o passado cresce
para a impressão ser produzida: Ê a até ao momento em que seja tudo
essa impressão ou percepção que eu pretérito, pela consumição do futuro.
meço, quando meço os tempos. Por 5 7 8 É mérito de Santo Agostinho “ter posto em
tanto, ou esta impressão é os tempos relevo, de maneira definitiva, o caráter psicológico
do tempo, o seu pertencer à consciência” (J. M. Le
ou eu não meço os tempos 5 7 8. Blond, S. J., Les .Conversions de Saint Augustin,
Quando medimos os silêncios e Paris, 1950, p. 256). (N. do T.)
28
O tempo e o espírito
contesta que o presente carece de espa sente e por ela passa o que era futuro
ço, porque passa num momento? Con para se tomar pretérito. Quanto mais o
tudo, a atenção perdura, e através dela hino se aproxima do fim, tanto mais a
continua a retirar-se o que era presen memória se alonga e a expectação se
te. Portanto, o futuro não é um tempo abrevia, até que esta fica totalmente
longo, porque ele não existe: o futuro consumida, quando a ação, já toda
longo é apenas a longa expectação do acabada,. passar inteiramente para o
futuro. Nem é longo o tempo passado domínio da memória 5 7 9.
porque não existe, mas o pretérito Ora, o que acontece em todo o cân
longo outra coisa não é senão a longa tico, isso mesmo sucede em cada uma
lembrança do passado. das partes, em cada uma das sílabas,
38. Vou recitar um hino qúe apren- em cada ação mais longa — da qual
di de cor. Antes de principiar, a minha aquele cântico é talvez uma parte — e
expectação estende-se a todo ele. em toda a vida do homem, cujas partes
Porém, logo que o começar, a minha são os atos humanos. Isto mesmo suce
memória dilata-se, colhendo tudo o de em toda a história “dos filhos dos
que passa de expectação para o preté homens 580”, da qual cada uma das
rito. A vida deste meu ato divide-se em vidas individuais é apenas uma parte.
memória, por causa do que já recitei, e
5 79 A atenção na sua função de síntese liga o pas
em expectação, por causa do que hei sado ao futuro. (N. do T.)
de recitar. A minha atenção eçtá pre 580 Sl 30,20.
29
A unidade do meu ser
39. Mas “porque a vossa miseri futuras e transitórias, mas com aquelas
córdia é superior às vidas581” confes- que existem no presente. “Com fervor
so-Vos que a minha vida é disten de espírito, dirijo-me para a palma da
são332. “A vossa destra recolheu- celestial vocação, onde ouvirei o cân
me 5 8 3 ” por meio do meu Senhor, tico dos vossos louvores e contem
Filho do Homem e Mediador entre plarei a vossa alegria39 *58 4”, que não
Vós, que sois uno, e nós, que,-além de conhece futuro nem passado.
sermos muitos em número, vivemos Agora, porém, “os meus anos decor
apegados e divididos por muitas coi rem entre gemidos 58 5”. Vós Senhor,
sas. Assim me unirei por Ele a Vós, a consolação minha, sois etemamente
quem, por seu intermédio, fui ligado. meu Pai. Mas eu dispersei-me no
Desprendendo-me dos dias em que tempo, cuja ordem ignoro 58 6. Os meus
dominou em mim a “concupiscência”, pensamentos, as entranhas íntimas da
alcançarei a unidade do meu ser, minha alma são dilacerados por tumul
seguindo a Deus Uno. 'Esquecerei as tuosas vicissitudes, até ao momento
coisas passadas. Preocupar-me-ei sem em que eu, limpo e purificado pelo
distração alguma, não com as coisas fogo do vosso amor, me una a Vós.
681 5/62,4.
582 Termo já usado por Plotirio, na forma grega 58 4 Flp 3, 12-14; Sl 15, 7; Sl 26, 4.
diástasis, no sentido de dilatação. (Enêades, III, 7.) 58 5 5/ 30, 11.
(N. do T.) 58 6 Alusão aò tempo vital ou biológico que se re
683 5/17,36; 62,9. vela nos sinais do envelhecimento. (N. do T.)
256 SANTO AGOSTINHO
30
Para além dos tempos. . .
40. Estarei firme e imutável em que Deus, em nenhum tempo, criara
Vós na minha forma, na vossa verda coisa alguma? Que eles vejam que ne
de. Não tolerarei as questões dos ho nhum tempo pode existir sem a cria
mens. que, devido à enfermidade, casti ção, e deixem essa linguagem oca. Que
go da sua culpa, têm mais sede de estendam também o pensamento por
saber do que permite a sua capacidade. aquelas coisas que estão antes, e enten
Perguntam: “Que fazia Deus antes de dam que Vós sois, antes de todos os
criar o céu e a terra?” Ou também: tempos, o eterno Criador de todos os
“Como lhe veio à mente a idéia de tempos. Estes não podem ser coetemos
fazer alguma coisa, já que antes nunca convosco, nem nenhumas outras cria
fizera nada?” turas, ainda que haja algumas que
Concedei-lhes, Senhor, a graça de preexistem aos tempos 5 8 7.
pensarem bem no que dizem e de sabe
rem que não se emprega o advérbio
“nunca”, onde não existe o tempo. Por 38 7 Tais são os anjos e os demônios, e, segundo
Santo Agostinho, também o céu e a terra (cf. liv.
conseguinte, dizer que “Deus nunca fi XII, cap. 12). A estas duas últimas criaturas parti
zera nada” não é o mesmo que afirmar cularmente se refere. (N. do T.)
31
Deus conhece de modo diferente das criaturas
41. Que abismo, Senhor, meu Deus, sar qúe conheceis assim todos os segre
o dos vossos profundos segredos, e dos futuros e passados. O vosso conhe
quão longe deles me levaram as conse- cimento diverge muito do nosso. É
qüências dos meus delitos! Sarai os extraordinariamente mais admirável e
meus olhos para me alegrar com a incomparavelmente mais misterioso.
vossa luz ! Se realmente existe um espí Quando se canta uma melodia co
rito dotado de tão grande ciência e nhecida, o afeto varia e o sentimento
presciência que conheça todo o passa espraia-se com a expectativa dos sons
do e futuro — como eu sei um cântico que estão para vir ou com a recorda
dos mais vulgarizados — esse espírito ção dos que passaram. A Vós, que sois
é extraordinariamente maravilhoso e imutavelmente eterno, isto é, verdadei
vertiginosamente estupendo. ramente eterno Criador das inteligên
Com efeito, nada se lhe esconde nem cias, não sucede o mesmo. Assim
do passado nem dos restantes séculos, comó, sem variar de ciência, conhe
assim como, quando entôo aquele cân cestes “no princípio o céu e a terra”,
tico, não se me escapa o número de assim também “criastes no princípio o
estrofes proferidas desde o início, nem céu e a terra588”, sem modificação al
as que faltam para chegar ao termo. guma da vossa atividade.
Mas longe de mim pensar que Vós, Entoe vossos louvores aquele que
Criador do Universo, Criador das
almas e dos corpos, longe de mim pen 588 Gên 1,’ 1. 1I
CONFISSÕES XI 257
A CRIAÇÃO
1. Senhor, na miséria desta vida, o destruirá? “Se Deus é por nós, quem
meu coração, agitado pelas palavras contra nós 589?” “Pedi e recebereis;
da vossa Sagrada Escritura, anda buscai e achareis; batei e abrir-se-vos-
profundamente inquieto. Por isso, na á. Com efeito, todo aquele que pede
maior parte dos casos, a pobreza da recebe; o que busca, encontra; e a
inteligência humana manifesta-se na quem bate, abrir-se-á 5 9 0.”
abundância de palavras, porque a Estas são as vossas promessas.
investigação é mais loquaz no buscar Quem temerá ser iludido, quando é a
do que no descobrir, o pedir demora própria Verdade quem promete?
mais do que o obter e a mão, batendo à
porta, cansa-se mais do que recebendo. 589 Ro-mi, 31.
Mas temos a vossa promessa, e quem a 590 Jo 16, 24;Mt 7. 7-8.
2
Dois céus e duas terras
2. A humildade da minha língua efeito, ainda que todo este mundo cor-
confessa a vossa excelsitude, porque póreo, cujo fundo é a nossa terra, não
fizeste o céu e a terra. Sim, criastes este seja inteiramente belo em todas as suas
céu que vejo e esta terra que piso e facetas, contudo, recebeu uma aparên
donde tiraste a terra que em mim levo. cia de formosura, mesmo nos seus últi
Onde está, Senhor, o céu do céu, do mos elementos. Não obstante, em
qual ouvimos dizer pela voz do Salmis- comparação daquele céu do céu, o céu
ta: “O céu do céu é do Senhor, mas da nossa terra é terra. Não é, portanto,
deu a terra aos filhos dos homens 5 913 *”? absurdo dizer que cada um destes dois
Onde está o céu que não vemos, ante o grandes corpos (o nosso céu e a nossa
qual todo este que vemos é terra? Com terra) é terra, se os compararmos àque
le céu misterioso que pertence ao Se
591 57 113,16. nhor e não aos filhos dos homens.
3
Trevas sobre o abismo
3. NãoJ admira, pois, que esta “terra zia-se a uma espécie de abismo pro-
fosse invisível e informe 592”. Redu- fundo onde não entrava luz, por não
592 Gên 1,2. ter nenhuma forma. Por isso, mandas-
262 SANTO AGOSTINHO
tesque se escrevesse: “As trevas esta mesmo modo que reina o silêncio onde
vam espalhadas sobre o abismo”. não há som. E que significa haver
Que são as trevas senão a ausência silêncio, senão o não haver som?
da luz? Se houvesse luz, onde é que ela Não fostes Vós, Senhor, que ensi
poderia existir se não iluminasse nem nastes esta alma que a Vós se confes
aclarasse a superfície da terra? E sa? Não me ensinastes, Senhor, que
quando a luz ainda não existia, o que antes de formardes e diferenciardes
era a presença das trevas, senão a esta matéria informe, nada existia, nem
ausência da luz? cor, nem figura, nem corpo, nem espí
As trevas reinavam sobre o abismo, rito? Não era, porém, o nada absoluto.
porque a luz não brilhava sobre ele, do Era antes a massa informe sem figura.
4
A matéria informe
4. Que nome darei a esta matéria? mo são menos formosos que os outros
Com que sentido e de que modo pode corpos superiores, tão brilhantes e tão
rei dá-la a conhecer a inteligências cur belos!
tas, a não ser por meio de algum vocá
bulo já usado? E pode acaso Então, por que não hei de admitir
descobrir-se, em todas as partes da esta matéria informe comodamente
terra, alguma coisa mais parecida com manifestada aos homens pelo nome de
essa deformidade total do que a terra e “terra invisível e ordenada” que crias
o abismo? Na verdade, em razão do tes sem beleza, para dela fazerdes um
seu grau ínfimo de ser, a terra e o abis mundo belo?
5
Sua natureza
6. Senhor, se pela boca e pela pena pessoas que também nada entendiam.
Vos confessar tudo o que acerca desta Imaginava-a sob numerosas formas
matéria me ensinastes, tenho a dizer- diversas, sem conseguir concretizá-la
Vos que não percebia nada quando na imaginação. O meu espírito revol
outrora ouvia pronunciar este nome a via em imensa desordem forma[s he
CONFISSÕES XII 263
diondas e horríveis. Mas, enfim, sem mutabilidade, pela qual deixam de ser
pre eram formas. Chamava informe a o que tinham sido, para começarem a
essa matéria não porque não tivesse ser o que não eram. Suspeitei de que
forma, mas por ser tal que, se me apa esta transição duma forma para a
recesse assim tão insólita e imprópria, outra se fazia por meio de qualquer ser
ela afastaria os meus sentidos e pertur informe, e não pelo nada absoluto.
baria a minha fraqueza de homem. Mas o que eu desejava era saber, e
O que eu imaginava era informe, não suspeitar. Se a minha voz e a
não por carência de toda forma, mas minha pena Vos confessassem todos os
por comparação com as formas mais nós que nesta questão me desatastes,
belas. Mas a verdadeira razão persua quem dos meus leitores seria capaz de
dia-me a que, se quisesse imaginar um me compreender? Por isso, o meu
coração não cessará de Vos honrar,
ser informe, o abstraísse de todas as com um cântico de louvor por tudo
minudências de forma. Não me era aquilo que não consigo exprimir com
possível, porque mais depressa julgava palavras.
como inexistente o que não tinha A própria mutabilidade das coisas
forma do que concebia um meio-termo mudáveis é capaz de tomar todas as
entre a forma e o nada, que não fosse formas em que se transfiguram as coi
nem forma, nem nada, mas um ser sas mudáveis. O que é ela? Um espíri
informe próximo do não-ser. to? Um corpo? Uma espécie de espí
A minha inteligência, então, cessou rito ou de corpo? Se pudéssemos dizer:
de interrogar a imaginação cheia de “um certo nada, que é e não é” — eis o
imagens de formas corpóreas que ela, a nome que lhe daria. Mas tinha de exis
seu arbítrio, ia mudando e variando. tir de qualquer maneira, para poder
Fixei a atenção nos mesmos corpos, tomar estas formas visíveis e comple
analisando mais profundamente a sua xas.
7
A criação do céu e da terra
de e uma terra pequena. Só Vós exis- de Vós, outra perto do nada; uma que
tíeis, e nada mais. Deste nada fizestes só a Vós tem como superior, outra que
o céu e a terra, duas coisas: uma perto nada tem inferior a ela.
8
O princípio do mundo visível
8. Mas este “céu do céu 59 4” perten- este céu corpóreo, este firmamento que
ce-Vos, Senhor. A terra que destes aos separa umas águas das outras, por Vós
filhos dos homens para a verem e toca criado, no segundo dia, depois da luz,
rem não era como agora a vemos e quando dissestes: “Faça-se, e assim se
tocamos. Era invisível e informe. Era fez”.
um abismo sobre o qual não havia luz. Chamastes céu ao firmamento. Cha
As trevas estendiam-se sobre o abis mastes céu ao céu desta terra e deste
mo 59 5, isto é, mais do que se estives mar que criastes no terceiro dia, dando
sem no abismo. Sim, porque este abis uma forma visível à matéria informe
mo das águas, agora visíveis, tem que tínheis criado antes de haver dia.
ainda nas suas entranhas uma espécie Já anteriormente a este, tínheis criado
de luz, de algum modo sensível aos outro céu, que era o céu do céu, porque
peixes e aos animais que se arrastam no princípio criastes o céu e a terra.
Porém, esta mesma terra a que destes o
no fundo. Mas tudo isto era um quase-
nada, pois que ainda era absoluta ser era matéria informe, por ser invisí
mente informe; porém já era um ser vel e informe e por se estenderem as
capaz de ter forma. trevas sobre o abismo. Desta terra
invisível e informe, deste caos, deste
Criastes, portanto, Senhor, o quase-nada, fizestes tudo aquilo de que
mundo, da matéria informe. Criastes é formado (ou não) o mundo mutável
do nada este quase-nada, donde, de onde aparece esta mobilidade, na qual
pois, fizestes as grandes coisas, que se pode sentir e medir o tempo. Este é
nós, os filhos dos homens, admiramos. feito das mudanças das coisas, en
De fato, é verdadeiramente admirável quanto variam e se transformam as
59 4 Sl 113, 16. formas cuja matéria, como já disse, é
59 5 Gên 1,2. terra invisível.
9
O caos transcende o tempo
ultrapassando, por isso, todas as volú passa; e onde nada passa, não pode
veis vicissitudes do tempo. haver dias nem sucessão de espaços de
Porém, este caos, esta terra invisível tempo!
e informe não foi numerada entre os 59 7 Quer dizer: Moisés, no Gênesis, ao descrever,
por dias, a criação do universo, em nenhum deles se
dias 59 7. Onde não há nenhuma forma refere expressamente à criação desta matéria infor
nem nenhuma ordem, nada vem e nada me. (N. do T.)
10
Invocação à Verdade
11
Revelastes-me. . .
11. Já dissestes, Senhor, com voz que se afasta de Vós, Ser Supremo,
forte, aos meus ouvidos interiores, que para se rebaixar ao menos ser, porque
sois eterno e que só Vós possuís a tal movimento é delito e pecado.
imortalidade 599, porque não mudais Dissestes-me que nenhum pecado
sob o aspecto de forma ou de mqvi- Vos prejudica ou perturba a ordem do
mento. A vossa Vontade não varia vosso império no sumo como no ínfi
com o tempo, porque uma vontade mo. Vejo claramente esta verdade na
mutável não pode ser imortal. Vejo vossa presença. Peço-Vos que a veja
claramente esta verdade na vossa pre cada vez mais claramente e que, prote
sença. Peço-Vos que a veja cada vez gido pelas vossas asas, persista com
mais claramente e que, debaixo das sobriedade neste conhecimento.
vossas asas, persista com sobriedade Ainda dissestes, com voz forte, aos
neste conhecimento. meus ouvidos interiores, que aquela
12. Outrossim, dissestes, Senhor, criatura cujo deleite sois Vós também
com voz forte, aos meus ouvidos inte não é coetema convosco. Dissestes que
riores, que todas as naturezas e subs ela goza de Vós em castidade firme e
tâncias que não são o que Vós sois, perseverante; que nunca mostra em
mas existem, foram criadas por Vós. parte nenhuma a sua mutabilidade
Só não veio de Vós o que não existe, natural; que Vos tem sempre presente e
bem como o movimento da vontade se conserva sempre unida a Vós com
todo o afeto; que não tem nada a espe
599 ITim 6, 16. rar do futuro, nem fatos passados a
266 SANTO AGOSTINHO
recordar; que, enfim, não varia com as Vossa Casa, que nunca se afastou de
vicissitudes nem se distende no tempo. Vós, apesar de não ser eterna como
Se tal criatura existe, oh! como é Vós, não sofre as vicissitudes do
feliz por estar unida à vossa Felici tempo, pelo fato de Vos estar inces
dade, tendo-Vos como seu eterno habi- sante e indefectivelmente unida!
tador e iluminador! Nada encontro Vejo claramente esta verdade na
que mais naturalmente se possa cha vossa presença. Peço-Vos que a veja
mar “céu do céu 600 que pertence ao cada vez mais claramente, e que, prote
Senhor”, do que a vossa Habitação, gido pelas vossas asas, persista com
que contempla as vossas delícias sem humildade neste conhecimento.
nenhum defeito que a arraste para 14. Não sei que informidade vejo
outra parte. Ela é alma pura, entranha- nas mudanças das últimas e ínfimas
damente unida, por um laço de paz, criaturas. E quem mo poderá dizer
aos Santos Espíritos, cidadãos da senão aquele que, com suas imagina
vossa cidade, situada no céu que está ções, divaga e se revolve nas frivoli
acima do nosso céu. dades do coração? 602 Quem, senão
13. Se a alma que peregrinou longe este, me ousará dizer que a informi
de Vós já teve sede de Vós; “se as .suas dade poderia significar as vicissitudes
lágrimas foram para ela o pão, quando do tempo, contanto que todas as for
todos os dias lhe dizem: ‘onde está o mas diminuíssem e se consumissem,
teu Deus 601 ?’ ”; se pede e busca uni ficando só esta massa informe, que faz
camente a graça de habitar em vossa com que todas as coisas se mudem e se
casa todos os dias durante toda a sua transformem ora numa ora noutra
vida. E quem é a sua vida senão Vós? forma? Esta hipótese é absolutamente
Que são os vossos dias senão a vossa impossível, porque não há tempo sem
eternidade, ou que são os vossos anos variedade de movimentos; nem há
que não acabam em razão de serdes variedade alguma onde não há nenhu
sempre o mesmo? Essa alma com ma forma.
preenda, se pode, como é que sois eter
no, inteiramente superior a todos os
tempos. 602 Para melhor compreensão desta passagem,
veja-se liv. XII, cap. 6, onde se descreve como
600 Sl 113, 16. Santo Agostinho imaginava a matéria informe sob
601 5741,3.4.11. “formas hediondas e horríveis”. (N. do T.)
12
Duas criaturas prescindem do tempo
Mas “a terra era invisível, desorga nada. Desta matéria informe é que nas
nizada; e as trevas cobriam a face do ceríam estoutro céu, e estoutra terra
abismo”. Estas palavras insinuam a visível e organizada, esta água crista
idéia de matéria informe 603, para se lina e, enfim, tudo o que na criação do
instruírem gradualmente aqueles que mundo foi feito em dias sucessivos,
não podem conceber que uma coisa como se recorda na Bíblia. Com efeito,
possa ser privada de toda espécie de todas estas criaturas estão de tal modo
forma, sem estar contudo reduzida a constituídas que, devido às mudanças
ordenadas dos movimentos e das for
603 O texto latino diz informidade, em: vez de mas, se realizam nelas alternativas dos
matéria informe. (N. do T.) tempos.
13
Interpretação das primeiras palavras bíblicas
16. “No princípio criou Deus o céu massa informe, sem aquela alternativa
e a terra; a terra, porém, era invisível e de tempo que costuma fazer com que
desorganizada; e as trevas cobriam a as coisas tenham ora isto, ora aquilo,
face do abismo 60 4.” porque onde não há forma, também
Quando ouço, ó meu Deus, estas não existe “isto e aquilo”.
palavras da Escritura, e noto que não Sem mencionar o dia, diz a vossa
se faz referência ao dia em que os Escritura: “No princípio criou Deus o
criastes, interpreto-as deste modo: “o céu e a terra”. Sobre estes dois elemen
céu do céu” é o céu intelectual, onde a tos, “céu e terra”, o primeiro formado
inteligência conhece simultaneamente desde o princípio, e o segundo inteira
e não por partes, nem por enigmas ou mente informe, eis a minha opinião:
como em espelho, mas inteiramente, céu significa o céu do céu; e terra quer
com toda a clareza, face a face 60 5. dizer a terra invisível e desorganizada.
Conhece, não agora uma coisa, logo Por isso a Escritura ajuntou imediata
outra, mas, como já disse, simultanea mente a que terra se referia. Já ao nar
mente, sem vicissitude de tempo. A rar que no segundo dia foi criado o fir
terra invisível e desorganizada é a mamento que se chama céu 60 6, dá a
entender a que céu se referia antes,
60 4 Gên 1, 1. quando não mencionou o dia.
60 5 Nestas expressões nota-se a influência de São
Paulo (1 Cor 13, 12), que usa semelhante linguagem
para descrever a felicidade dos eleitos. (N. do T.) 60 6 Gên 1, 1.
14
A profundeza da Escritura
desaparecessem! O meu desejo era vê- sés, escreveu estas palavras, não quis
los morrer a si mesmos, a fim de vive de maneira nenhuma dar-lhes esse sen
rem para Vós! tido com que o interpreta, mas estoutro
Outros, então, apresentam-se não que nós lhe damos”.
como críticos, mas como panegiristas Eis, ó Deus de todos nós, a resposta
do Gênesis. Dizem eles: “O Espírito de que dou a esses intérpretes, tomando-
Deus, que-, por meio de seu servo Moi Vos por Árbitro.
15
Em discussão
18. Atrever-vos-eis a apontar como falso que toda criatura revestida de
falso o que a Verdade, com voz clara, forma, ou toda matéria capaz de forma
comunica ao ouvido da minha alma, só existem por Aquele que, por ser o
acerca da verdadeira- eternidade do Ente supremo, é soberanamente bom?
Criador? Direis que a sua substância “Também não”, dizem eles. Então, que
nunca varia com o tempo nem jamais a negais? Talvez o que afirmei da exis
sua vontade prescinde da sua substân tência duma criatura sublime unida ao
cia? Deste princípio se deduz que Deus Deus verdadeiro e verdadeiramente
não quer ora isto, ora aquilo, mas que eterno, por um amor tão puro? Essa,
o que uma vez quis, simultaneamente e apesar de lhe não ser coeterna, não
para sempre o quer. Não pode querer pode separar-se dele nem derivar para
repetidas vezes nem querer agora uma a variedade ou vicissitude do tempo,
coisa, e logo outra, nem querer depois mas descansa apenas na contemplação
o que antes não queria ou deixar de da sua verdade. Essa criatura, aman-
querer o que queria, porque tál vonta do-Vos quanto Vós lhe mandais, não
de, sendo mutável, não é eterna; ora, o se afasta de Vós para si mesma, porque
nosso Deus é eterno. Vós, ó meu Deus, lhe mostrais a face e
Mais ainda. Essa voz que fala ao ou a saciais. Ela é a casa de Deus, man
vido interno da minha alma declara- são que não é terrena nern sequer for
me que a expectação das coisas futuras mada de matéria celeste ou corpórea,
passará a ser intuição, quando se cum mas espiritual e participante da vossa
prirem. A sua intuição transformar- eternidade, porque permanece eterna
se-á em memória, depois de se realiza mente imaculada. Vós a fundastes
rem. Mas todo o pensamento que pelos séculos dos séculos. Fixastes-lhe
assim varia, é mutável, e o mutável uma ordem que não passará ja
não é eterno; ora, o nosso Deus é mais608. Porém, essa habitação não
eterno. Vos é coetema, ó meu Deus, pprque
Condensando e reunindo todas estas teve princípio. Foi criada. '
verdades, deduzo que o meu Deus, o 20. É certo que antes dela não
Deus eterno, não criou o mundo por descobrimos o tempo, porque a sabe
um novo ato de vontade, e que nem a doria foi criada anteriormente a todas
sua ciência pode sofrer alguma transi as coisas. Não me refiro, é claro, àque
ção. la Sabedoria de que Vós, ó meu Deus,
19. Que me respondeis, ó contradi- sois Pai, e que é coetema convosco,
tores? São falsas estas coisas? “Não”,
respondem. Então quê? Porventura é 608 57 148,6.
CONFISSÕES XII 269
igual a Vós, pela qual todas as coisas bilidade que a entenebreceria e enrege-
são criadas, e em cujo Princípio fizes laria, se não Vos estivesse unida por
tes o céu e a terra, mas simplesmente a um grande amor, brilhando sempre
esta sabedoria criada, quer dizer, a como a luz do meio-dia, e refervendo
esta natureza intelectual que é luz pela ao contato do calor que de Vós recebe.
contemplação da luz, e é chamada Ó casa resplandecente e pura, amei
também sabedoria, ainda que criada. a tua beleza e o lugar da habitação da
Porém, a diferença que há entre a glória do meu Senhor, que te criou e
Luz que ilumina e a luz iluminada é possui. Por ti suspiro no meu exílio,
tão grande como a que separa a Sabe pedindo ao teu Criador que também
doria criadora da sabedoria criada, ou me possua dentro de ti, porque tam
como a que distingue a Justiça justifi- bém a mim me criou. Andei errante
cante da justiça feita em nós pela justi como a ovelha desgarrada, mas espero
ficação. Nós somos também chamados ser reconduzido, para dentro de ti, aos
a vossa Justiça. Diz um vosso servo: ombros d’Aquele que é o meu Pastor e
“Para que em Cristo nos tomemos a teu arquiteto.
justiça de Deus 609”. Portanto, antes 22. Que me respondeis, ó contradi
de tudo, criastes uma sabedoria criada, tares e meus interlocutores? Que me
espírito racional e intelectual que habi podeis responder, se acreditais em
ta na vossa casta Cidade. Moisés — o piedoso servo de Deus —
Esta última é nossa mãe, que está lá e nos seus Livros, oráculos do Espírito
no alto, livre e eterna nos céus610, e Santo? Não é esta a casa de Deus, que,
em que céus senão nos céus dos céus apesar de não ser coetema com Deus,
que Vos louvam, por serem o céu do é, a seu modo, eterna nos céus, onde
céu que pertence ao Senhor? Se não procurais as vicissitudes dos tempos,
encontramos o tempo antes dessa sabe mas em vão, porque as não podeis
doria, por ter sido também criada encontrar? Ela transcende toda a ex
antes de todas as coisas e preceder a tensão e todo o espaço volúvel do
criação do tempo, então é evidente que tempo. A sua felicidade consiste em
existe antes dela a eternidade do Cria estar sempre unida a Deus.
dor. Deste recebeu a origem, não no “Ê certo”, dizem eles.
tempo, porque ainda não existia, mas Então, qual destas verdades procla
na sua própria condição de ente cria madas ante o meu Deus pelo meu
do. coração, quando escutava no seu inte
rior a voz dos seus louvores, podeis
21. A sabedoria criada procede, apontar como falsa? O ter afirmado
portanto, de Vós, ó meu Deus, apesar que a matéria era informe, e que nela
de ser inteiramente diferente de Vós e não podia haver ordem, porque não
de ser doutra natureza. Não encon tinha forma? Mas olhai que onde não
tramos o tempo, não só antes dela, mas havia ordem também não podia haver
nem sequer nela, porque é suscetível de vicissitude de tempo. Mas este quase-
contemplar etemamente a vossa face, nada, visto não ser um nada absoluto,
sem jamais dela se apartar, tomando- provinha, é certo, d’Aquele de quem
se, assim, inacessível a toda variação. nasce tudo o que de qualquer modo
Contudo, é-lhe inerente a mesma muta- existe.
609 2 Cor 5, 21. “Também te não contestamos isso”,
610 Gál4,26. respondem eles.
270- SANTO AGOSTINHO
16
Adversários rejeitados
23. Quero, ó meu Deus, conversar Esposo, as suas castas e perpétuas delí
um pouco, na vossa presença, só com cias, a firme alegria, numa palavra,
aqueles que reconhecem como verda todos os bens inefáveis, porque sois
deiras todas estas iluminações que a único, sumo e verdadeiro Bem.
vossa Verdade não esconde ao meu Não me apartarei de Vós, enquanto
espírito. me não reunirdes todas as partes do
Os outros, que a negam, ladrem meu ser, dispersas e deformadas, para
para aí quanto quiserem, até enrouque- que assim, ó meu Deus e misericórdia
cerem. Pela minha parte, esforçar-me-
minha, me conformeis e estabeleçais
ei por persuadi-los a que acalmem e na paz desta mãe tão amada (a Jerusa
dêem acesso, em seus corações, às vos
lém celeste), onde estão as primícias do
sas palavras. Se recusarem e me repeli meu espírito e donde me vêm estas
rem, peço-Vos, ó meu Deus, que não
certezas.
sejais surdo aos meus rogos. Falai ao
meu coração a linguagem da Verdade, A todos aqueles que não têm como
pois só Vós assim falais. Deixá-los-ei falsas todas estas verdades, e, pelo
fora a soprar o pó, e a levantar a terra contrário, as veneram conosco, ele
contra os próprios olhos. Entrarei no vando ao cume da autoridade a vossa
recinto do coração e cantar-vos-ei Sagrada Escritura, ditada (em parte)
hinos de amor, soluçando inefáveis por Moisés, e que não obstante nos
gemidos, neste lugar do meu desterro, contradizem nalguns pontos, dirijo
recordando Jerusalém, minha Pátria e estas palavras: ó meu Deus, sede Vós o
Mãe, e para Vós, que sois o seu Rei, o árbitro entre as minhas confissões e as
seu Iluminador, o seu Pai, Defensor, suas contradições.
17
Opiniões diversas
24. Dizem eles: “Apesar de as tuas exprimir precisamente o que nós afir
afirmações serem verdadeiras, contu mamos. Foi isso o que ele declarou
do, não era isso o que Moisés queria com tais palavras.”
significar quando disse, por inspiração Isso, o quê?
do Espírito Santo: ‘no princípio criou “Com as palavras céu e terra quis
Deus o céu e a terra 611 ’. Com o nome primeiramente significar, numa expres
céu não quis exprimir essa criatura são breve e resumida, todo este mundo
espiritual ou intelectual que sempre visível, para depois classificar, pela
contempla a face de Deus; nem com o enumeração dos dias, ponto por ponto,
vocábulo terra quis significar a maté tudo o que ao Espírito Santo agradou
ria informe”. enunciar assim. Moisés dirigia-se a ho
Então? mens que constituíam um povo rude e
“Moisés”, respondem eles, “quis carnal; por isso julgou oportuno reve
lar-lhes só as obras visíveis de Deus,”
611 Gên 1, 1. Portanto, os meus adversários con
CONFISSÕES XII 271
18
Interpretações legítimas
minha, se julga ser esse o verdadeiro Escritura conforme a idéia daquele que
pensamento do Escritor61 4? as escreveu, que mal há em interpretá-
Nós todos os que o lemos esforça- las noutro sentido, se Vós, ó Luz de
mo-nos por indagar e compreender o todas as mentes sinceras, Iho mostrais
pensamento do autor. Quando o temos como verdadeiro? Que mal há nisso, sé
por verídico, não ousamos imputar- o autor que lemos só teve em vista a
lhe, como dito por ele, nada do que verdade, apesar de não ter dado ao
sabemos ,ou julgamos ser falso. Con texto este segundo sentido? 61 5
tanto que cada um se esforce por inte- 61 5 Santo Agostinho, no livro XIII das Confissões,
pretar bem as passagens da Sagrada interpretará alegoricamente os primeiros versículos
do Gênesis. Neste livro XII procura fazer exegese
61 4 De Moisés, a quem Santo Agostinho atribui a literal, o que nem sempre consegue, fugindo por
autoria do Gênesis. (N. do T.) vezes para a exegese alegórica". (N. do T.)
19
Interpretações únicas
20
Interpretações arbitrárias
21
Segundo versículo do Gênesis
30. Do mesmo modo, pelo que per que se chamou “céu e terra” era ainda
tence à interpretação das palavras que matéria informe e tenebrosa, donde ha
vêm a seguir, entre as muitas opiniões viam de sair o céu inteligível — ou,
verdadeiras, uns escolhem esta: as por outras palavras, o céu do céu — e
palavras “a terra era invisível e em a terra, que era toda a natureza corpó
! desordem, e as trevas estavam sobre a rea, entendendo igualmente sob este
face do abismo” significam que aquela nome o céu material. Dessa matéria
massa corpórea que Deus fez era ainda haviam de sair todas as criaturas invi
a matéria informe das coisas corpó- síveis e visíveis.
reas, sem ordem nem luz. Outros propõem: Com as palavras
Outros dizem: “A terra era invisível “a terra era invisível e sem ordem, e as
e sem ordem, e as trevas estavam sobre trevas estavam sobre o abismo” não
a face do abismo” quer dizer que tudo quis a Escritura chamar “céu e terra” a
o que se chama céu e terra era ainda a essa massa informe, pois ela já existia.
matéria informe e tenebrosa donde ha Dessa massa informe chamada “terra
viam de sair o céu corpóreo e a terra invisível e desorganizada, e abismo
também corpórea, com tudo o que tenebroso”, Deus criou o céu e a terra,
neles existe, apreendido pelos nossos ou seja, as criaturas corporais e espiri
sentidos corporais. tuais, como foi dito anteriormente ao
Outros optam por esta interpreta afirmar-se que da matéria informe
ção: “A terra era invisível e sem Deus criara o céu e a terra.
ordem, e as trevas estavam sobre a Outros dizem: “A terra era invisível
face do abismo” significa que tudo o e sem ordem, e as trevas estavam sobre
274 SANTO AGOSTINHO
o abismo” significa que essa massa as criaturas nelas existentes, que co
informe era jâ a matéria de que Deus, nhecemos e de que nos servimos 61 9.
como diz a Escritura anteriormente,
619 O segundo versículo do Gênesis traduz-se
formou o céu e a terra, ou, por outros assim modemamente: “A terra era vazia e deserta e
termos, toda esta mole corpórea do as trevas estavam por cima do oceano e o espírito
. de Deus inclinava-se por cima das águas”. Santo
mundo, dividida em duas grandes par Agostinho adotou a tradução incorreta dos Setenta:
tes: a superior e a inferior, com todas “a terra era invisível e em desordem, etc.” (N. do T.)
22
Objeções
nas com Deus, pelo fato de as ouvir mada pela Escritura “terra invisível,
mos mencionadas no Livro do Gêne desorganizada e abismo tenebroso”, a
sis, embora sem referência ao dia em fez Deus do nada, e que, por isso, não
que foram criadas. Logo, por que moti lhe é coetema, ainda que a narração
vo não entendemos, como no-lo ensina bíblica deixe de referir o momento pre
a verdade, que esta massa informe cha ciso em que foi criada?
23
Duas espécies de questões
24
O pensamento de Moisés
33. Entre tantas opiniões verda misericórdia que se realize este meu
deiras que ocorrem aos intérpretes des desejo. Senhor, eis que eu proclamo
tas palavras compreendidas ora duma confiadamente que tudo, o visível e
maneira ora doutra, quem de nós invisível, foi criado por Vós, no vosso
encontrou o verdadeiro sentido, de tal Verbo imutável. Mas posso eu dizer
modo que possa determinar com segu com a mesma certeza que foi esta, e
rança o pensamento de Moisés e o não outra, a intenção de Moisés, ao
significado das suas narrações? Com escrever: “No princípio criou Deus o
que segurança esse tal o pode afirmar céu e a terra”? Se bem que me per
como verdade, quer Moisés tenha pen suado de que isto é certo na vossa Ver
sado isso quer tenha pensado outra dade, não vejo, porém, qual fosse o
coisa? pensamento do seu espírito, ao escre
Eu, vosso servo — meu Deus, eu ver tais palavras.
Vo-lo manifesto! —, determinei con- Pôde ele, de fato, referir-se ao come
sagrar-Vos nestas páginas o sacrifício ço da criação, quando disse: “No prin
da minha confissão. Peço à vossa cípio”. Pôde voluntariamente signifi
276 SANTO AGOSTINHO
car nesta passagem, por “céu e terra”, Porém, ou esse grande homem, ao pro
não uma natureza, ou espiritual ou ferir estas expressões, lhe tenha dado
corporal, já perfeitamente constituída, um destes dois sentidos, ou qualquer
mas uma e outra, ainda incipientes e
outro que eu não declarei, não duvido,
informes. Vejo que verdadeiramente se
pode afirmar qualquer destas opiniões, contudo, de que ele tenha conhecido a
mas não vejo, com a mesma clareza, verdade, e de que a enunciou dum
que sentido deu ele a essas palavras. modo adequado.
25
A refutação
34. Ninguém mais me queira moles pertencente a todos os amantes da
tar, dizendo-me: “Moisés não pensou o verdade.
que tu dizes, mas o que eu digo”. Se Quanto ao pretenderem que Moisés
alguém me dissesse: “Como sabes tu não pensou segundo a minha interpre
que esse sentido atribuído por ti às tação, mas segundo a deles, isto é o
palavras de Moisés é autenticamente o que eu não aceito. Ainda que assim
de Moisés?”, eu não me deveria agas- fosse, a sua temeridade não é conce
tar e respondería talvez como acima o bida pela ciência, mas pela audácia;
fiz, ou respondería com algum desen não é gerada pela clarividência, mas
volvimento, se o meu impugnador pelo orgulho.
fosse mais pertinaz. Mas quando al São terríveis os vossos Juízos, Se
guém me declara: “Não pensou ele o nhor, pois a vossa Verdade não é
que tu dizes, mas o que eu digo”, sem minha nem de qualquer outro, mas de
coitudo o contraditor negar a veraci- todos nós, a quem manifestamente
dacj do que ambos afirmamos, então, convidais a participar dela. Admoes
ó meu Deus, ó vida dos pobres, em tais-nos severis sim amente a que a não
cujo seio não pode haver contradição, queiramos ter como bem privativo,
derramai uma chuva de suavidades no para que não nos privemos dela. Efeti
meu ânimo, para que possa suportar vamente, quem reivindica só para si
tais homens com paciência! próprio aquilo que ofereceis para gozo
Não afirmam isto porque sejam, de todos, querendo como particular o
muito espirituais ou porque leiam no que é de todos, é repelido desses bens
coração do vosso servo o que procla comuns para os seus, isto é, da verdade
mam, mas, sim, por serem soberbos. para a mentira. “Com efeito, quem fala
Não conhecem a opinião de Moisés, de si próprio mente 623.”
mas amam somente o próprio parecer, 35. Ouvi, ó Juiz ótimo, ó Deus que
não por ser verdadeiro, mas por ser o sois a mesma Verdade, ouvi a minha
deles. Se assim não fosse, estimariam resposta, dirigida a esse impugnador.
igualmente a opinião dos outros quan Atendei. Digo-a diante de Vós e dos
do é verdadeira, assim çomo eu estimo meus irmãos que “seguem legitima
o que eles dizem, quando afirmam a mente a lei cujo fim é a caridade”.
verdade, e, por esse motivo, já não é Escutai e vede, se Vos apraz, o que eu
um bem exclusivo deles. Se amam essa lhes digo.
opinião por ser a verdade, pertence-
lhes a eles e a mim. É um bem comum, 623 Uo8,44.
CONFISSÕES XII 277
26
Se eu fosse o escritor do Gênesis
27
O passarinho implume
37. A fonte (cujas águas se aglome e que passam. Julgam que, imediata
ram) num pequeno reservatório é (de mente após o desvanecimento destas
pois) mais abundante e fornece o cau palavras, começou a existir o que fora
dal a diversos regatos para uma mandado que existisse. E, se por acaso
extensão mais ampla do que a de qual têm alguma opinião diversa, igual
quer deles. Estes, oriundos da mesma mente se ressentem da baixeza huma
fonte, espalham-se por muitos lugares. na.
Assim, de modo idêntico, a narração Mas estes são ainda como crianças,
do vosso Dispensador, que havia de pois a sua debilidade alimenta-se desta
ser útil a todos os intérpretes, de pou humílima espécie de palavras como
cas e modestas palavras faz deslizar quem se alimenta do seio materno.
correntes de verdade cristalina. Destas, Com isso, a fé fortifica-se neles salu
cada um pode haurir a parte de verda tarmente. Por ela têm como certo e
de que é capaz, uns duma maneira, ou sustentam que Deus criou todas as
tros doutra, para a desenvolverem em naturezas às quais os seus sentidos
seguida por longos rodeios de expres descobrem numa variedade admirável.
são. Mas se algum deles, desprezando a
Alguns, ao lerem ou escutarem as quase vulgaridade de vossas palavras e
palavras (da Criação) supõem a Deus cheio de orgulhosa debilidade, se lan
como homem, ou como uma persona çar fora do ninho onde fora criado,
gem dotada duma estrutura imensa, e então, cairá miseravelmente! Vós, “Se
que, por decisão nova e repentina, nhor Deus, tende .compaixão 62 8” dele,
criou fora de si mesmo, como em luga para que os que passam pelo caminho
res. distantes, o céu e a terra, dois cor não calquem aos pés esse passarinho
pos gigantescos, um no alto, outro implume. Enviai o vosso anjo. Ele o
embaixo, nos quais estão contidas tome a colocar no ninho, para que
todas as coisas. E ao ouvirem: “Disse assim a avezinha possa viver enquanto
Deus: faça-se aquilo, e logo foi feito”, não souber voar.
supoêm que são palavras que come
çam e que acabam, que soam no tempo 628 57 50,3.
28
Multiplicidade de interpretações
38. Outros, para quem estas pala- mente enquanto buscam e colhem
vras(da Criação) não são já um ninho, esses frutos.
mas um vergei cheio de sombra, desco Quando lêem e ouvem palavras de
brem nelas frutos escondidos e volitam Moisés, vêem que a vossa eterna e
cheios de alegria, e cantam festiva estável subsistência, ó Deus, domina
CONFISSÕES XII 279
29
Objeções e prioridade da matéria
dade de entender com verdade “céu” e É anterior, não porque fosse sua
“terra” senão significando por estes causa eficiente, pois ela também é
vocábulos a matéria do céu e da terra, antecipadamente criada. Nem a sua
isto é, a criação universal, ou, por ou prioridade é de intervalo de tempo.
tros termos, a criação espiritual e Com efeito, não entoamos em primeiro
material. Pois, se quisesse referir-se ao lugar sons informes, independen
conjunto da criação já formado, po- temente do canto, para em seguida os
der-se-lhe-ia com razão perguntar: “Se ligarmos e dispormos em forma de
Deus criou isto em primeiro lugar, o melodia, como manufaturamos a ma
que criou em seguida?” Depois do deira de que se faz a arca ou a prata de
conjunto da criação nada mais encon que é fabricado o vaso.
trará que fosse criado, e, por isso, há Estas substâncias precedem, por
de ouvir com desprazer esta pergunta: certo, no tempo, as formas das coisas
“Como criou primeiramente aquilo, se que delas se fazem. No canto não é
nada criou depois?” assim. Quando se canta, ouvimos o
Quando porém afirma que ao princí som, mas este não soa primeiro desar-
pio a matéria era informe e que depois moniosamente para, em seguida, rece
a dotara duma forma, isto já não é ber a forma do canto. Com efeito, uma
absurdo, ainda que importe distinguir vez que o som tiver ressoado, já pas
o que seja prioridade quanto à eterni sou. Nem se encontrará dele qualquer
dade, ao tempo, ao apreço, à origem: coisa que, retomada, se possa coorde
quanto à eternidade, por exemplo, nar pela arte. Por conseguinte, o canto
Deus antecede tudo; quanto ao tempo, é constituído pelo próprio som que é a
a flor antecede o fruto; quanto ao apre sua matéria. Por isso, esta recebe uma
ço, o fruto antecede a flor; quanto à forma para ser canto. Por conseguinte,
origem, o som antecede o canto. Des como dizia, a matéria (o som) é ante
tas quatro afirmações, a primeira e a rior à forma que é o canto. A priori
última que citei dificilmente se com dade não se radica ao poder de criar,
preendem; as duas intermediárias, pois o som não é artífice do canto, mas
porém, entendem-se com facilidade. está subordinado à alma do cantor, ao
Com efeito, é raro e dificultoso ao ser emitido por um órgão corporal
entendimento chegar a conhecer bem, com o qual canta. Nem é anterior no
Senhor, a vossa eternidade, a qual, tempo, pois é entoado conjuntamente.
permanecendo imutável, cria as coisas Nem é o primeiro da preferência, pois
mutáveis, e por isso é anterior a elas. o som não é superior ao canto, visto
Depois, quem tem a vista tão pene que o canto não é somente som, mas
trante que possa com a inteligência também um som artístico. Mas é ante
distinguir, sem grande trabalho, de que rior na origem, porque o canto não é
maneira o som antecede ao canto? formado para que seja som, mas o som
Podemos chegar a compreendê-lo re é formado para que seja canto. |
fletindo nisto: o som precede ao canto, Com este exemplo, já se pode
porque o canto não é outra coisa senão compreender como a matéria das coi
um som que recebeu a sua forma. Ora, sas foi primeiramente criada e chama
pode muito bem existir alguma coisa da “céu” e “terra” porque dela foi for
que ainda não tenha forma, mas esta mado o céu e a terra. Não foi criada
nunca pode ser infundida naquilo que primeiramente no tempo, porque as
não existe. A matéria é assim anterior formas das coisas é que produzem o
àquilo que dela se formou. tempo. Ora, aquela matéria estava
CONFISSÕES XII 281
30
A concórdia
31
Moisés e os diverso s sentidos da Bíblia
Eu, sem duvidar, digo com intrepi Assim, não desejo ser tão temerário,
dez, do fundo do coração: se eu, eleva meu Deus, que acredite que qualquer
do ao cume da autoridade, escrevesse ' homem merecesse de Vós tal graça.
alguma coisa, preferiria fazê-lo de tal Moisés advertiu e pensou, sem dúvi
modo que as minhas palavras procla da, ao escrever estas palavras, em tudo
massem tudo aquilo que alguém pudes
se conceber de verdadeiro acerca des aquilo que de verdadeiro pudemos
sas coisas. Quereria antes isso do que I encontrar, em tudo aquilo que não
pôr um só sentido autêntico, de tal pudemos encontrar ou que, até agora,
forma claro, que excluísse os restantes não pudemos descobrir, e que, não
cuja falsidade me não pudesse ofender. obstante, se pode achar nelas.
32
Senhor, inspirai-me!
43. Enfim, Senhor — que sois Deus teis, para não nos deixarmos, iludir
e não carne e sangue! —, se o homem com o erro. Vede, Senhor, Deus meu,
nem tudo pode ver completamente, sim, vede, eu Vo-lo peço, quantas e
porventura o vosso bom espírito, “que quantas coisas escrevi sobre tão pou
me há de conduzir à terra da reti cos versículos! Deste modo, como
dão 63 5”, pôde desconhecer qualquer terei forças e tempo suficiente para
das coisas que, por estas palavras, examinar todos os vossos Livros?
tencionáveis revelar aos leitores vin Por isso, permiti-me que seja mais
douros, apesar de Moisés, por cujo breve ao enaltecer-Vos neles e que,
meio foram pronunciadas, as não entre as muitas interpretações que me
entender, senão num único sentido dos ocorrem, e acerca dos quais muitas ou
muitos verdadeiros? Se assim é, a tras me poderão ocorrer, eu escolha
interpretação que Moisés deu é mais uma única, que seja verdadeira, boa e
elevada que as outras. Mas, Senhor, inspirada por Vós. Deste modo serei
mostrai-nos essa interpretação ou fiel em confessar-Vos. Se exprimir o
aquela outra que^seja verdadeira e que mesmo sentido que seguiu o vosso
mais Vos agradefpara que, patentean servo Moisés, eu o declararei perfeita e
exatamente, pois me devo esforçar por
do-nos o mesmo sentido revelado ao
isso. Se ainda não consegui, possa ao
vosso servo, ou outro em conformi
menos declarar o que a vossa Verdade,
dade com a ocasião em que essas pala
pelas suas palavras, me quis dizer, a
vras foram pronunciadas, nos alimen-
qual também inspirou a Moisés o que
63 5 Sl 142, 10. lhe aprouve.
LIVRO XIII
A PAZ
Neste livro salientam-se os primeiros capítulos, muito seme
lhantes aos do início das “Confissões”, as narrativas da Inquietação
Humana (cap. 8 e 9), da Beleza da Criação e da Esperança do
Repouso em Deus.
Este livro contém passagens de exegese, teologia, filosofia e diva-
gações poéticas e místicas. Dão-lhe unidade o sentimento religioso
e a exaltação lírica.
I — Agradecimento a Deus pela sua bondade manifesta na
Criação e descoberta da Santíssima Trindade nas primei
ras palavras do Gênesis (1-12).
II — Diversas alegorias sugeridas pelos primeiros versículos
da Sagrada Escritura: a Luz (a alma iluminada pela fé), o
Firmamento (a Bíblia), Águas no Firmamento (os anjos),
Águas Amargas (os mundanos), a Terra Enxuta (a alma
caritativa), os Frutos da Terra (as obras de misericórdia),
os Peixes e os Cetáceos (os milagres estupendos), etc-.
(13-28).
III — Finalmente, a Beleza da Criação no pormenor e no con
junto (29-34), e a Esperança do Repouso em Deus
(35-38).
1
Benefícios de Deus para com o homem
1. Invoco-Vos, “ó meu Deus, mise do, eis que existo por um gesto de
ricórdia minha” 63 6, que me criastes e vossa Bondade, que precedeu tudo
não Vos esquecestes de quem Vos aquilo de que me fizestes. Não tivestes
esqueceu. Chamo-Vos à minha alma, necessidade de mim para nada, nem
que preparastes para Vos receber, sou um bem tão valioso que de mim
inspirando-lhe esse desejo. Agora, não Vos possais ajudar, meu Senhor e meu
desampareis aquele que Vos invoca. Deus. Não sou homem que, com os
Vós me prevenistes antes de Vos meus serviços, Vos possa aliviar, como
invocar, e instastes comigo de tantos e se Vós sentisseis fadiga no trabalho.
repetidos modos para que de longe Vos Nem o vosso poder diminui, se carecer
escutasse, me convertesse e chamasse das minhas homenagens. Se Vos não
por Vós, que chamáveis por mim. Sim, prestar culto, não sucede como à terra,
Vós, Senhor, apagastes todos os meus que fica inculta se o lavrador a não
delitos para os não castigardes como cultivar. Devo servir-Vos e honrar-Vos
mereciam as obras de minhas mãos, as para que a felicidade me venha até
quais me afastaram de Vós. mim de Vós, de quem recebi a exis
Antecipastes todas as minhas obras tência e a aptidão para gozar do bem.
para me dardes a recompensa do tra
balho de vossas mãos 63 7 que me cria 63 6 S15Z, 18.
ram, porque Vós já éreis antes de eu 63 7 Deus doou-nos a existência e a graça, para
realizarmos o bem. E contudo, Deus recompensa-
existir. Nem eu era digno de que Vós nos como se Ele não fosse o autor do bem que há
me concedésseis a existência! Contu em nós! (N. do T.)
2
Deus, subsistência da criação.
rível ao puro nada. Assim, essas cria Assim como para um corpo não é a
turas dependiam do vosso Verbo, e mesma coisa ser corpo e ser belo —
ficariam informes, se Ele mesmo as caso contrário, não poderia haver
não houvesse chamado à vossa Unida disformidade —, assim também para
de e lhes não desse uma forma, de tal um espírito criado, não é a mesma
modo que todas Vos ficaram devendo coisa viver e viver sapientemente, pois
o serem muito boas, ó único e sumo doutro modo a sua ciência seria imutá
Bem. Que . merecimentos antecipados vel. Mas é para ele sumamente provei
apresentaram diante de Vós estas cria toso quedar-se sempre unido a Vós,
turas que nem sequer informes existi para que, afastando-se, não perca a
ríam, se as não criásseis? claridade que adquiriu com o voltar-se
3. Que Vos mereceu a matéria cor para Vós, e não resvale para a vida
poral, para que existisse, ao menos semelhante às trevas dos abismos.
invisível e inorgânica, se nem sequer Na verdade, nós, que, pela alma,
isso fora, se a não tivésseis chamado à somos criaturas espirituais, afastados
existência? Nenhuma coisa, perante outrora de Vós — nossa luz —, fomos
Vós, podia merecer o dom da criação,
visto que não existia para o merecer. E trevas, nessa vida 63 8. E por entre os
que favores devíeis à criatura espiritual restos da nossa escuridão, lutamos até
ainda insipiente para que vagueasse que nos tomemos vossa justiça 63 9, em
pelo menos tenebrosa, semelhante aos vosso único Filho, e nos assemelhemos
abismos e diferente de Vós, se o vosso às montanhas de Deus. Efetivamente
Verbo a não conduzisse ao mesmo fomos objeto dos vossos juízos, que
Verbo que a criou, e anão iluminasse e são profundos como o abismo 6 40.
transformasse em luz — luz não igual
63 8 £/5, 8.
(ao Verbo), mas semelhante à sua Bele 639 2 Cor 5, 21.
za, que Vos é igual? 6 40 Sl 25,1.
3
O manancial divino
4. A respeito das palavras que dis feita”, de nenhum modo Vos agrada
sestes nos alvores da criação: “Faça-se ria.
a luz, e fez-se a luz 6 41 ”, entendo que a A criatura espiritual agrada-Vos
sua aplicação se adapta bem às criatu não pelo fato de existir, mas por ver a
ras espirituais, porque já então existia luz.que à ilumina e por aderir a ela.
qualquer espécie de vida que poderieis Assim, deve a sua vida e toda a sua
iluminar. Mas assim como nenhuma felicidade de viver apenas à vossa
possui títulos especiais para ser essa graça. Com efeito, por uma feliz esco
vida que pudésseis iluminar, do mesmo lha voltou-se para o que é incapaz de
modo nenhuma delas mereceu, depois mudança para melhor, ou para pior.
de adquirir a existência, a graça de a Voltou-se para Vós, que sois o único
iluminardes, tanto mais que a sua que existis, o único que simplesmen
“informidade 6 42”, “se a luz não fosse 643 existis, para Vós, que não pos
te641
642
suís outra vida, senão a vida feliz, pois
641 Génl,3.
642 Não se confunda “informidade” com disformi
sois a vossa Felicidade.
dade. A primeira é ausência de “forma”; a segunda
significa fealdade, ou forma defeituosa. (N. do T.) 6 43 Isto é, sem composição de partes. (N. do T.)
CONFISSÕES XIII 289
4
Deus não precisa das criaturas
5. O que faltaria, portanto, ao vosso levado por elas, como se nelas descan
bem — que para Vós consiste em Vós sasse. Diz-se que o vosso Espírito bom
mesmo — se essas criaturas espirituais nelas repousava, quando era ele que
ou quaisquer outras interiormente não em si as fazia repousar 6 4 4. Mas a
existissem ou se permanecessem infor vossa vontade incorruptível e imutável,
mes? Não as fizestes por necessidade. que se basta a si própria, era levada
Levado unicamente pela plenitude da sobre aquela vida que tínheis criado.
vossa Bondade as amoldastes e impu- Para esta, não é o mesmo viver e viver
sestes-lhes uma forma. Mas não foi feliz, porque não deixa de viver ainda
para completardes com elas o vosso que flutue na sua obscuridade. Essa
gozo. A sua imperfeição desagrada- vida tem necessidade de voltar-se para
Vos porque sois perfeito, e por isso as o Criador, de viver cada vez mais pró
aperfeiçoais para que Vos possam xima da Fonte da Vida, de ver a luz na
agradar, e não para que hajais de ser Luz divina. Precisa de aperfeiçoar-se,
aperfeiçoado por elas. iluminar-se, e nela alcançar a felici
Com efeito, o vosso Espírito bom dade.
era levado sobre as águas, mas não era 644 Núm 11,25.
5
A Trindade Divina
7. Que razão houve, ó Luz verda elemento sobre o qual se poderia ima
deira — aproximo de Vós o meu cora ginar pairando o vosso Espírito? De
ção para que me não iluda com falsi fato não pairava acima do Pai, nem
dades e lhe dissipeis as trevas —, acima do Filho, nem se poderia dizer
dizei-me, eu Vo-lo peço pela nossa que pairava, se não pairasse sobre al
mãe, a Caridade, dizei-me a razão por guma coisa.
que só depois de se nomear o céu, a Era, pois, necessário falar primeiro
terra invisível e informe e as trevas do elemento sobre que pairava, e de
sobre os abismos é que a Escritura fala pois nomear Aquele a quem não podia
no vosso Espírito? Será porque conve referir-se doutra maneira senão dizen
nha apresentá-lo dizendo que Ele “pai do que pairava.
rava sobre alguma coisa”? E como se Mas por que não convinha apresen
poderia dizer isto sem fazer menção do tá-lo, senão dizendo que pairava?
7
Dons do. Espírito Santo
8. Agora, aquele que o puder fazer Como falar da caridade que nos eleva
siga pela inteligência o vosso Apóstolo pelo vosso Espírito adejante sobre’as
quando diz que “a vossa caridade se águas? Que termos empregarei? “Sub-
difundiu nos nossos corações pelo mergimo-nos” e “emergimos”? Mas
Espírito que nos foi dado 6 4 6”. O nem sequer há lugar onde mergu
Apóstolo instrui-nos nas coisas espiri lhemos e venhamos à superfície. Que
tuais 6 4 7, demonstrando-nos a excelsa maior semelhança e que maior diferen
via da caridade e ajoelhando-se por ça? Por um lado são os nossos afetos,
nossa causa diante Vós, para que os nossos amores, a imundice do nosso
conheçamos “a altíssima ciência da espírito a deixar-se arrastar para
caridade de Cristo 6 48”. baixo, pelo amor das preocupações.
Por isso, como era “sobre-eminente” Por outro é a vossa santidade que nos
desde o princípio, pairava sobre as eleva por amor da tranquilidade, para
águas. que levantemos os corações ao alto até
Mas a quem hei de falar? Como junto de Vós, onde o vosso Espírito
falar do peso da concupiscência que paira sobre as águas, e, para que che
nos arrasta para o abismo escarpado? guemos à excelsa paz, depois de a
“nossa alma ter atravessado as águas
6 4 6 RomS, 5. desta vida, que nada têm de firme 6 4 89”.
8 4 7 1 Cor 12, 1. 31.
6 48 £/3, 14. 19. 6 49 Sl 123, 5.
CONFISSÕES XIII 291
8
A inquietação e o regaço de Deus
9. Caiu o Anjo, caiu a alma do repouso, por isso mesmo, nem sequer
homem, mostrando com a sua queda se contenta a si própria6 51.
que lá nas profundezas das trevas Vós, o nosso “Deus, esclareceis as
havia o abismo. Este encerraria todas nossas trevas: de Vós provêm as nos
as criaturas espirituais, se não tivésseis sas vestes tecidas da vossa luz; as nos
dito desde o princípio: “Faça-se a sas trevas serão como as trevas do
luz!”, e a luz não tivesse aparecido, e meio-dia 6 52”.
todas as inteligências da vossa cidade Dai-Vos a mim, ó meu Deus; entre-
celeste se não unissem a Vós pela gai-Vos a mim. Eu amo-Vos; e, se é
obediência e descansassem em vosso ainda pouco, fazei que Vos ame com
Espírito, que pairava imutável sobre os mais força. Não posso avaliar quanto
seres transitórios. amor me falta para ter o suficiente a
Doutro modo, “o céu do céu” seria, fim de a minha vida correr para o
em si, um abismo de trevas, ao passo vosso regaço e não sair dele, enquanto
que agora é luz do Senhor 610 *50. Nesta se não esconder nos segredos do vosso
lamentável inquietação dos espíritos rosto. Uma só coisa reconheço: é que
caídos que mostram as suas trevas des tudo me corre mal fora de Vós, e não
só à volta de mim, mas até em mim.
pidas da vossa luz, suficientemente Toda a abundância que não é o meu
demonstrais quão sublime fizestes a Deus, é para mim indigência.
criatura racional. Efetivamente, tudo o
que for menor do que Vós, de modo 651 A inquietação agostiniana reapareceu, embora
imperfeita, na filosofia de Sõren Kierkegaard, o
algum, a sacia na ânsia de felicidade e vidente da História como Pecado-Expiação. (N. do
T.)
6 50 Ef5, 8. 652 Sl 17,29.
9
O peso do amor
10. Porventura o Pai e o Filho não falar duma espécie de lugar onde esta
pairavam sobre as águas? Se se imagi va Aquele que certamente não ocupa
na um corpo pairando num espaço, o espaço e do qual unicamente se disse
conceito não se pode aplicar nem que é o “vosso dom”? É no “vosso
mesmo ao Espírito Santo. Mas se se dom” que repousamos. Nele gozare
considera a eminência imutável da mos de Vós. É o nosso descanso, é o
Divindade pairando acima de tudo o nosso lugar. É para lá que o Amor nos
que é transitório, então o Pai e o Filho arrebata e que o “Espírito Santo levan
também eram levados sobre as águas, ta o nosso abatimento desde as portas
como o Espírito Santo. da morte 6 53. Na vossa “boa vontade”
Qual o motivo por que só se faz esta temos a paz.
afirmação do Espírito Santo? Porque é
que só a Ele se refere a Escritura, ao 6 53 S19, 15.
292 SANTO AGOSTINHO
10
Tudo o que temos é dom de Deus
11. Feliz a criatura que não conhe Bíblia não faz mais que indicar o que
ceu outro estado! E, contudo, ela não ela teria sido, se não fosse iluminada.
o teria alcançado, se imediatamente Por isso fala dela como se antes fosse
após a sua criação, sem nenhum inter flutuante e tenebrosa. Assim aparece
valo de tempo, o “vosso Dom 6 5 7”, que melhor a causa que a conduziu ao res-
paira sobre todo objeto mutável, a não plendor inextinguível e a transfigurou
tivesse erguido, com a palavra que dis em luz.
sestes: “Faça-se. a luz” e fez-se a Entenda estas coisas aquele que
luz 6 58”. Em nós distingue o ternpo em puder, e o que não puder, que Vos peça
que fomos trevas daquele em fomos a graça de as compreender. Mas por
feitos luz 6 59. Mas daquela criatura a que razão este me faz perguntas impor
tunas, como se eu fosse a luz que “ilu
6 5 7 O Dom de Deus é o Espírito Santo, a quem se
atribui o Amor, assim como ao Filho, a Sabedoria, mina todo homem vindo a este
e ao Pai, o Poder. (N. do T.) mundo 6 60”?
6 58 Gên 1,3.
6 59 Ef5, 8. 6 60 Jo 1,9.
CONFISSÕES XIII 293
11
A concepção da Trindade
12
O “Fiat Lux” na Igreja
13. Ó minha fé, avança na tua sua Igreja. A nossa “terra”, antes de
confissão! Diz ao Senhor teu Deus: receber a forma da doutrina, era “invi
“Santo, Santo, Santo é o Senhor meu sível e desordenada”. Estávamos enter
Deus”. Em vosso nome, Pai, Filho, rados nas trevas da ignorância, porque
Espírito Santo, fomos batizados661. castigastes o “homem pela sua iniqui
Em vosso nome, Pai, Filho e Espírito dade662”, e “os vossos justos juízos
Santo, batizamos, pois pelo seu Cristo são como abismos profundos 6 63”.
criou Deus entre nós um “céu” e uma Mas, porque o vosso Espírito “pai
“terra”, isto é, os espirituais e os car- rava sobre as águas”, a vossa miseri-
nasis, os perfeitos e os imperfeitos da
6 62 SZ37, 12.
661 Mí 28, 19. 6 63 SI 35,7.
294 SANTO AGOSTINHO
13
Somos lamparina que há de ser estrela
14. Contudo, somos luz só pela fé e conformeis com este século, mas refor
não pela visão clara (de Deus). mai-vos pela renovação do vosso espí
“Fomos salvos pela esperança 6 6 7.” E, rito 6 7 4”. “Não sejais crianças nas vos
quando se vê o que se espera, não há sas mentes, mas sede como crianças
esperança. Ainda “o abismo chama quanto ao mal, para que sejais perfei
por outro abismo”, mas é já por inter tos no espírito 6 7 5.”
médio do “sussurro das vossas catara E repreende também: “Ó loucos gá-
tas668”. latas, quem vos fascinou 6 7 6?”
São Paulo, que diz: “Não vos pude Isto di-lo (São Paulo), não já com a
falar como a espirituais, mas sim como sua voz, mas com a vossa. Enviastes lá
a carnais 6 69”, até ele julga que ainda de cima o Espírito Santo, por inter
não alcançou a meta. Assim, esquecen médio de Jesus, que subiu ao alto a
do-se das coisas passadas 6 70, estende abrir as cataratas dos vossos dons para
o seu pensamento para as coisas futu que a torrente caudalosa alegrasse a
ras e geme sob o peso que o esma vossa Cidade 6 7 7. Por esta suspira (São
ga6 71. A sua alma anseia pelo Deus Paulo) o amigo do Esposo 6 7 8, pos
vivo, “como os cervos pelas fontes suindo já, em si, “as primícias do espí
vivas 6 72”, e exclama: “Quando chega rito679”, mas gemendo ainda consigo
rei lá?” Desejando “abrigar-se sob a mesmo, esperando a adoção e o resga
sua morada, que está no céu 6 73”, te do seu corpo. Por Ela suspira —
chama também pelos que estão no pois é membro da Esposa; por Ela se
abismo inferior, dizendo: “Não vos abraseia em zelo — pois é o amigo do
6 6 7 2 Cor 5, 7. Esposo 68°. Zela pela Igreja e não por
6 68 Sl 41, 8. A alma que vive da fé e não da visão si, porque, com a voz das vossas cata
face a face de Deus, precisa de ser doutrinada. ratas, e não com a sua, chama por
Para Santo Agostinho, o abismo é o homem
(particularmente o seu coração, o qual chama por 6 7 4 Rom 12,2.
outro abismo quando instrui outro homem nas ver
dades da fé). Mas essa elucidação só é proveitosa 6 7 5 1 Cor 14,20.
quando se faz pela voz de Deus, isto é, pelos seus 6 7 6 GáZ3,l.
Enviados e pela Sagrada Escritura. (N. do T.)
6 7 7 57 45,5.
6 69 1 Cor 3,1.
6 70 Flp 3,13. 6 78 Jo3, 29.
671 2 Cor 5,4. 6 7 9 RomZ, 23.
6 72 57 41, 3.4. 680 No sentido místico, o Esposo é Jesus Cristo, e
6 73 2 Cor 5,2. a Esposa é a Igreja1. (N. do T.)
CONFISSÕES XIII 295
outro abismo 681 objeto do seu zelo e Quão resplandecente será aquela luz
dos seus temores. Receia que, “assim da sua Beleza, quando ,O contem
como a serpente enganou a Eva com a plarmos tal qual é e tiverem passado
sua astúcia, assim os sentidos (dos “as lágrimas que se tomaram o meu
imperfeitos) degenerem da castida
pão de dia e de noite, ao perguntar-se-
de682” que está no nosso Ésposo,
vosso único Filho. ; me todos os dias: Onde está o teu
Deus? 683”
681 Quer isto dizer que instrui os outros não em
seu próprio nome, mas em nome de Jesus Cristo.
(N. do T.)
682 2 Cor 11, 3. 683 5/41,4.
14
Na esperança
15. E eu digo: “Meu Deus, onde sua presença 68 7.” “Verei a salvação
estais? Onde estais Vós? Respiro em do meu rosto 688”, isto é, o meu Deus,
Vós um pouco, quando derramo a que “vivificará os nossos corpos mor
minha alma sobre mim num cântico de tais pelo seu Espírito, que em nós habi
exultação e de louvor, semelhante ao ta689.” Ele desliza misericordio
ruído dum festim 68 4”. Mas ainda está samente à superfície do nosso interior
triste, porque escorrega e se trans tenebroso e flutuante.
forma em abismo, ou melhor, sente que
Recebemos por isso nesta peregrina
é ainda abismo.
A minha fé, a fé que acendestes à ção o penhor de sermos já luz (nesta
minha frente para de noite alumiar vida), ao sermos salvos pela esperança.
De filhos da noite e das trevas que dan
meus pés, diz-lhe: “Por que estás triste,
ó minha alma! e por que me pertur tes éramos, tomamo-nos filhos da luz e
bas? Espera no Senhor 68 5”; a sua do dia. Só Vós, por entre a incerteza da
palavra é lâmpada para os teus passos. ciência humana, distinguis entre uns e
Espera e persevera, até que passe a outros, porque provais os nossos cora
noite, que é a mãe dos maus, até que ções e chamais “à luz, dia, e às trevas,
passe a ira do Senhor, ira de quem noite 690”. Sim, quem, senão Vós, pode
fomos filhos quando outrora éramos fazer este discernimento? Mas que
trevas. Destas, arrastamos ainda os coisa possuímos que não tenhamos de
restos no corpo morto pelo pecado, até Vós recebido? Fomos feitos vasos de
que chegue o alvorecer do dia e se'dis honra, da mesma massa de argila de
sipem as sombras. Espera no Senhor. que outros foram feitos vasos de
De manhã pôr-me-ei na sua presença e ignomínia6 91.
o contemplarei; “sempre o hei de
louvar 6 8 6”. “De manhã pôr-me-ei na 68 7 5/5,5.
688 5/42,5.
884 5/41,5. 689 Rom 8, 11.
68 5 5/41,6. 690 Gên 1, 5.
68 6 Cântl, 17. 691 JRom9,21.
296 SANTO AGOSTINHO
15
AEscritura e os anjos 692
16. Mas quem, senão Vós, Senhor, les que ainda são meninos e crianças
estendeu sobre nós e para nosso pro de peito 69 6.”
veito o “firmamento” de autoridade da De fato, não conhecemos outros li
vossa divina Escritura? “O céu será vros que assim destruam a soberba e
dobrado como um livro 693”, e agora, assim arruinem o inimigo defensor que
estende-se como um pergaminho sobre resiste a toda reconciliação convosco e
as nossas cabeças. advoga seus pecados. Não conheci, ó
A vossa divina Escritura goza da Senhor, não conheci palavras tão
mais sublime autoridade depois que puras, que tanto me persuadissem a
aqueles mortais, por quem no-la dis confessar-Vos, que tanto suavizassem
pensastes, encontraram a morte. Vós, a sujeição da minha mente ao vosso
Senhor, sabeis como vestistes de jugo e me convidassem a servir-Vos
peles 69 4 os homens, ao tomarem-se tão desinteressadamente! Possa eu
mortais pelo pecado. Pelo que, desdo compreender essas verdades, ó Pai
brastes como um pergaminho o firma querido. Concedei este favor à minha
mento do vosso livro. sujeição, já que para os submissos as
Desenrolastes os vossos oráculos firmastes.
em tudo concordes, que dispusestes 18. Há sobre este firmamento ou
acima de nós por meio do ministério tras águas que, segundo creio, são
de homens mortais. Sem dúvida, pela imortais e isentas de toda a corrupção
sua morte, o fundamento da autori terrena. Que elas louvem o vosso
dade em vossas palavras por eles nome! Que os povos supracelestes de
divulgadas admiravelmente se estende vossos anjos, que não têm necessidade
acima de tudo o que exista cá embaixo de olhar este firmamento nem de
na terra. Enquanto eles viveram no conhecer, pela leitura, a vossa palavra,
mundo, essa autoridade não se tinha Vos bendigam! Eles vêem continua
dilatado tão sublimemente. Ainda não mente a vossa face e percebem, sem o
tínheis desenrolado o céu como se faz auxílio de sílabas que passam, a vossa
a um pergaminho. vontade. Sim, percebem-na, elegem-na
17. Ainda não tínheis divulgado por e amam-na. Aprendem continuamente,
toda parte a fama que alcançariam aos e nunca esquecem o que aprendem!
nossos olhares! Neles está o vosso Elegendo e amando a vossa vontade,
testemunho, que dá sabedoria aos lêem a imutável estabilidade de vossas
humildes 69 5. “Completai, meu Deus, resoluções. Os seus códices não se fe
os vossos louvores pelos lábios daque cham nem os seus livros se cerram^ por
692 Novos símbolos e alegorias: o firmamento é a
que Vós mesmo sois etemamente o seu
alegoria da Escritura; as águas colocadas sobre o livro, já que estabelecestes os vossos
firmamento são a alegoria dos anjos. (N. do T.) anjos acima deste firmamento, por Vós
693 Is 34, 4; 5/103,2.
69 4 Para a aproximação de idéias, advertimos que assente sobre a fraqueza dos homens,
Santo Agostinho emprega a mesma palavra (pelíis) para que estes, olhando-o, conheçam a
para significar “pele” e “pergaminho”. (N. do T.)
69 5 5/8,4. 69 6 5/ 18,8.
CONFISSÕES XIII 297
16
Ciência, luz e vida
19. Ora, assim como sois o Ser conheça a luz imutável como ela se
absoluto, assim também sois o único conhece a si própria. Por isso, “a
que possui a verdadeira ciência. minha alma é, aos vossos olhos, como
Vós sois imutável na vossa existên terra ressequida sem água702”, por
cia; imutável a vossa sabedoria; imutá que, assim como ela se não pode ilumi
vel na vossa vontade. A vossa essência nar por si mesma, assim também, por
sabe e quer imutavelmente; a vossa virtude própria, se não pode saciar.
sabedoria é e quer imutavelmente; a “Em Vós jorra a fonte da vida, e na
vossa vontade imutavelmente é e sabe. vossa Luz veremos a luz 7 0 3. ”
Nem parece justo aos vossos olhos que 702 57 142, 6
o ser mutável e por Vós iluminado 703 Sl 35, 10.
17
As águas amargas, alegoria dos mundanos
20. Quem é que reuniu num só es disse às águas que “se reunissem num
paço as águas amargas? Têm estas só lugar”, e que aparecesse “a terra
como fim obter uma felicidade tempo enxuta70 4”, sedenta de Vós?
ral e terrena. Para a alcançar não se O mar é vosso, fostes Vós que o
poupam a esforços, apesar de serem já
70 4 Gên 1, 9. No mar do mundanismo surgem ilhas
muitos e variados os cuidados que as de “terra enxuta”. Estas significam alegoricamente
agitam. Quem, Senhor, senão Vós, as almas de bem. (N. do T.)
298 SANTO AGOSTINHO
fizestes. Foram as vossas mãos que xão, conforme for a sua semelhança
formaram a “terra enxuta”. Chama-se com o próximo, porque é o sentimento
mar não à amargura das vontades, mas nascido da nossa miséria que nos leva
à reunião das águas. Reprimis as a ter piedade dos que estão precisados,
tendências más das almas e determi na proporção em que desejaríamos que
nais os limites até onde podem avançar nos auxiliassem, se tivéssemos as mes
as águas, para que as ondas se que mas necessidades.
brem contra si próprias. Assim, criais
o màr (do mundo) submetido ao vosso Devemos socorrer o próximo não
poder universal. somente nas coisas fáceis, semelhantes
21. Porém, às almas que têm sede às ervas70 5 nascidas de semente, mas
de Vós e que aparecem aos vossos também obsequiá-lo com uma prote
olhos separadas do mar (do mundo) ção forte e vigorosa. Assim a terra pro
por outra vocação, Vós as regais com duz árvores de fruto, isto é, obras que
uma água misteriosa e doce, para que arrebatam das mãos dos poderosos os
a “terra” dê o seu fruto. E então, quan que sofrem vitupérios e lhes dão a
do Vós, seu Dono e seu Deus, o orde sombra da nossa proteção, com o roble
nais, a nossa alma germina em obras resistente da verdadeira justiça.
de misericórdia, conformes à sua pró 70 5 Há obras de caridade que se exercitam todos os
pria condição, amando o próximo, aju dias. Na abundância e facilidade com que se encon
dando-o nas necessidades materiais. tram, assemelham-se às ervas. Há outras obras de
misericórdia que só raramente e dificilmente se nos
Essa “terra” (a alma misericordiosa) deparam. Assemelham-se às árvores de fruto. (N. do
contém em~si esta semente de compai T.)
18
Os justos, astros no firmamento
22. Assim, como Vós, Senhor, esta pequena colheita das nossas boas
criais e repartis a alegria e a força, obras, fazei que obtenhamos a graça
assim, eu vo-lo peço, nasça também da de nos elevarmos até à contemplação
“terra” a verdade; a “justiça70 6” olhe das delícias do Verbo da Vida, para
para nós do céu, e façam-se astros no que brilhemos, “no mundo, como
“firmamento 70 7”. Repartamos o nosso astros710”, fixos no firmamento da
pão com os que têm fome, alojemos em vossa Escritura. Nela ensinais-nos a
nossa casa o pobre sem abrigo, vista distinguir as coisas inteligíveis das
mos os nus e não desprezemos os que, sensíveis, como o dia da noite. Nela
“habitando sob o mesmo teto, são ensinais-nos a diferenciar as almas
nossos semelhantes 708”. espirituais daquelas que se entregam
Nascidos estes frutos na nossa aos sentidos.
“terra”, vede, Senhor, como a germina Deste modo, já não sois Vós o único
ção é boa. Fazei que apareça a nossa a separar a luz das trevas, nos arcanos
“luz no momento oportuno 709”. Com da vossa inteligência, como sucedia
antes de estar criado o firmamento.
70 6 Ó7 84,12.
70 7 Gên í, 14. Também as vossas criaturas espirituais
708 Is 63, 7.8. \
709 Is 58, 8. 710 Flp2, 16.
CONFISSÕES XIII 299
19
Alegoria da “Terra enxuta”720
mento” do céu, astros que possuíam a tros brilhantes! Vós sois a luz do
palavra da Vida72 9. Discorrei por mundo e não deveis permanecer sob o
toda parte luminares sacrossantos, as- alqueire. Aquele a quem vos ligastes
foi exaltado e exaltou-vos. Discorrei e
729 Flp 15, 16 dai-vos a conhecer a todas as gentes 1
20
Interpretações místicas
26. Que o mar conceba também e confundo a questão, misturando os
dê à luz as vossas obras, e que “as conhecimentos claríssimos referentes a
águas gerem os répteis de almas estas coisas resplendorosas no firma
vivas 730”. Pois, separando o precioso mento do céu, não as distinguindo das
do vil, vós vos tomastes a boca de obras corporais criadas no mar agita
Deus, por quem Ele diz: “Que as águas do do mundo e sob o firmamento do
produzam”, não as almas vivas que a céu? Não, certamente! Por um lado, as
terra origina, mas “répteis dotados de noções acerca dos seres materiais são
almas vivas e as aves que voam sobre a sólidas e invariáveis, nem se multi
terra”. Os vossos sacramentos são plicam de geração em geração, como
como estes répteis que pelas obras dos as luzes da Sabedoria e da Ciência.
vossos santos, ó meu Deus, deslizaram Por outro, estes seres orgânicos com
por meio das ondas das tentações do portam muitas e variadas operações
século para banharem os gentios com corporais, e, crescendo uns de outros,
o vosso nome e os regenerarem pelo multiplicam-se sob a vossa bênção, ó
vosso batismo. meu Deus. Consolastes, por este meio,
Então (no início da Igreja) foram o fastio dos sentidos do corpo, permi
operadas grandes maravilhas731 — tindo que uma verdade única seja figu
semelhantes a enormes cetáceos —, e rada e apresentada ao entendimento de
as vozes dos vossos mensageiros voa múltiplos modos, por meio de diversas
ram sobre a terra, perto do firmamento operações sensíveis.
da vossa Escritura. Esta protegia-os Eis as maravilhas que “as águas
com sua autoridade e sob esse firma produziram 73 4” pela onipotência da
mento voavam, para qualquer parte vossa palavra. As necessidades dos
que se dirigissem. “Não há língua nem povos, afastados da vossa eterna Ver
palavras em que não se ouçam as suas dade, provocam estes prodígios por
vozes 732”. Efetivamente, o brado dos intermédio do vosso Evangelho. Efeti
Apóstolos espalhou-se por toda a terra vamente foram as águas que lançaram
e as suas palavras chegaram até aos de suas entranhas essas maravilhas. A
confins do orbe. Vós, Senhor, “as sua amargura doentia deu ocasião a
multiplicastes 733” com as vossas bên que esses seres se originassem da vossa
çãos. palavra73 5.
27. Porventura falto à verdade ou
73 4 Gên 1, 24.
730 Gên 1, 20. Os “répteis dotados de almas vivas” 73 5 Santo Agostinho quer dizer que “as águas
simbolizam os Sacramentos; “as aves que voam amargas”, isto é, os mundanos, deram azo a que
sobre a terra” são a alegoria dos apóstolos e missio Deus efetuasse prodigiosos milagres nos primórdios
nários. (N. do T.) da Igreja. Com efeito dos Apóstolos, para converter
731 At2, 11. os infiéis, lançaram mãos de maravilhas sobrenatu
732 Sl18,5. rais, como de curas extraordinárias, profecias, etc.
733 Sl 18, 4. (N. do T.)
302 SANTO AGOSTINHO
21
A alma cristã
29. Pelo que, não foi o mar profun palavra, por intermédio dos vossos
do, mas a terra separada das águas mensageiros!
amargas que lançou de si, impelida Nós falamos das maravilhas dos
pela vossa palavra, não répteis de Apóstolos, mas quem age por seu
almas vivas e aves, mas uma “alma intermédio, para que possam produzir
viva73 8”. Já não tem necessidade do uma alma viva, sois Vós.
batismo, imprescindível aos gentios, e Quem a germina é a terra, porque é
igualmente indispensável para ela, a causa de que se realizem estes fenô
quando ainda se encontrava coberta menos à sua superfície, assim como o
pelas “águas”. mar foi a causa de que fossem produzi
A alma não pode entrar no reino dos dos “os répteis de almas vivas e as
céus por outro caminho, porque assim aves, sob o firmamento” do céu. A
o determinastes. Não busca deslum terra já não precisa de aves e répteis,
bramentos de milagres para se enraizar porque se alimenta do peixe 7 40 tirado
na fé. do fundo do oceano, para aquela
Essa alma é a terra fiel separada das “mesa (da Eucaristia) que preparastes
águas amargas do mar, símbolo do na presença741” dos crentes. Pois, se
paganismo. Por isso, não deixa de foi extraído do fundo das águas, foi
acreditar mesmo que não veja milagres para alimentar a terra. E as aves, ainda
e prodígios, pois “o prodígio das lín- que nascidas no mar, multiplicam-se
gwas não é para os fiéis, mas para os também sobre a face da terra.
infiéis73 9”. A terra, por Vós estabele A infidelidade dos hornens foi a
cida sobre as águas, não tem necessi causa das primeiras palavras dos
dade desta espécie de aves que as
águas produziram em obediência à voz 7 40 Alusão à figura do peixe, sob a qual os primei
ros cristãos representavam a Jesus Cristo. A origem
do vosso mando. Enviai-lhe a vossa deste símbolo reside na palavra l/Qúç, que em
grego significa peixe, formada pelas iniciais de
73 8 A “alma viva” produzida pela terra (Gên 1, 24) cinco palavras que, traduzidas, significam: Jesus
é alegoria da alma cristã. (N. do T.) Cristo, Filho de Deus Salvador.
739 1 Cor 14, 22. 741 S122,5.
CONFISSÕES XIII 303
22
Renovação de espírito
32. Deste modo, Deus, Senhor e perfeito 7 5 4”. Por isso não dizeis: “Fa-
Criador nosso, quando os afetos do ça-se o homem”, mas: “Façamos o
amor mundano forem refreados — homem”. Nem dizeis “segundo a espé
vivendo mal, com eles morremos — e cie”, mas: “à nossa imagem e seme
quando a alma for vivente — vivendo lhança”.
bem — e estiver cumprida aquela sen O homem, renovado pelo espírito e
tença que dissestes pela boca do Após vendo perfeitamente a vossa verdade,
tolo: “Não vos conformeis com este não precisa das indicações de outro
mundo 7 51 ”, seguir-se-á aquilo que homem para proceder “segundo a sua
imediatamente ajuntastes. Assim dis espécie”. Graças aos vossos ensina
sestes: “Mas reformai-vos no rejuve mentos, ele mesmo compreende a
nescimento da vossa mente”, não já vossa vontade e aquilo que é bom,
“segundo a espécie”, como quem imita agradável e perfeito. Vós o ensinais a
uma personagem ou como quem vive ver a Trindade da Unidade e a Unida
cingido à autoridade dum homem mais de da Trindade, porque já é capaz
justo. Não dissestes: “Faça-se o
deste ensinamento. Tendo Vós falado
homem segundo a sua espécie”, mas:
no plural: “Façamos o homem”, afir
“Façamos o homem à nossa imagem e
ma-se logo no singular: “E fez Deus o
semelhança 7 5 2”, para que entendamos
qual seja a vossa vontade. homem”. Tendo Vós falado no plural:
Além disso, o vosso Dispensador “A nossa imagem”, enuncia-se no sin
(São Paulo), que gerava os filhos pelo gular: “À imagem de Deus”.
Evangelho, não querendo que aqueles Deste modo, “o homem renova-se
que alimentara com o leite e que, como no conhecimento de Deus, segundo a
ama, criara fossem criancinhas, disse- imagem d’Aquele que o criou 7 5 5”, e,
lhes: “Reformai-vos 7 53 no rejuvenes tomando-se espiritual, julga de todas
cimento do vosso espírito para enten as coisas que certamente hão de ser
derdes qual seja a vontade de Deus, e julgadas. Porém ele de “ninguém é
discernirdes o bem, o agradável e o julgado 7 5 6”.
751 Rom 12,2. 7 5 4 Rom 12,2.
752 Gên 1,26. 7 5 5 Col 3, 10.
7 53 1 Cor 3, 2; 1 Tes 2, 7. 7 5 6 1 Cor 2, 15.
23
De que coisas pode julgar o homem espiritual
33. Quando, porém, lemos que o que “pela terra se arrastam 7 5 7”. Este
homem “julga todas as coisas”, isto poder, exerce-o por meio da inteli
significa que tem poder sobre os peixes gência, pela qual percebe o que é do
do mar, sobre as aves do céu, sobre Espírito de Deus. Mas o “homem,
todos os animais domésticos e feras,
sobre toda a terra, e sobre os répteis 7 5 7 Gên 1, 26.
CONFISSÕES XIII 305
da carne, que não nos permite contem encontra de vicioso nas almas e costu
plar os pensamentos alheios, e por isso mes dos fiéis. Julga das esmolas que
nos obriga a valer-nos de vozes e de são como frutos da terra, da alma viva
sons que firam ruidosamente os ouvi que dominou suas afeições “pela casti
dos dos outros, para lhes comuni dade, pelos jejuns 7 6 7”, pelos pensa
carmos os nossos pensamentos. Assim, mentos piedosos. Julga de tudo aquilo
ainda que as aves se multipliquem que pelos sentidos corporais se mani
sobre a terra, recebem contudo a sua festa. Resumindo, afirmo que o homem
origem das águas. espiritual tem faculdade de julgar de
Também o homem que vive segundo tudo o que possa corrigir.
o espírito formula o seu parecer, apro
vando o que é reto, e censurando o que 7 6 7 2 Cor 6, 5.
24
“Crescei e multiplicai-vos!”
35. Mas que é isto e que mistério é? seres se multiplicam por geração,
Abençoais os homens, Senhor, para como os peixes, as aves e os homens, e
que “cresçam, se multipliquem e en deste modo mantêm a sua espécie.
cham a terra7 68”. Não querereis dar- 36. Que direi então, ó Verdade e
nos a perceber algumas coisas sobre minha Luz? Que estas palavras foram
estas palavras? proferidas inutilmente e sem motivo?
Por que não abençoastes assim a De modo nenhum, Pai de misericórdia.
luz, a quem chamastes dia, nem ao fir Longe de mim que o servo do vosso
mamento do céu, nem aos astros, nem Verbo diga tal coisa! Se eu não enten
às estrelas, nem à terra, nem ao mar? do o que quereis dizer com estas pala
Eu diria, meu Deus, que nos criastes à vras, entendam-no outros melhores que
vossa imagem. Sim, eu diria que qui eu, quer dizer, outros mais inteligentes
sestes conceder particularmente este segundo a capacidade, meu Deus, que
dom ao homem, mesmo que assim não a cada um proporcionastes.
tivésseis abençoado os peixes e os cetá Agrade-Vos pois a minha confissão,
ceos para que crescessem, se multipli feita “diante de vossos olhos 7 70”. Por
cassem e ocupassem as águas do mar, ela declaro-Vos que creio, Senhor, que
e para que as aves se multiplicassem não foi em vão que assim falastes!
sobre a terra. Nem calarei o que estas palavras me
Do mesmo modo afirmaria que esta sugeriram ao lê-las. O que eu penso é
bênção se estende também a todas as verdadeiro, e nada impede que eu
espécies que a si mesmas se propagam assim explique as palavras figuradas
por meio de geração, se acaso as dos vossos Livros. Sei que, por meio de
encontrasse entre os arbustos, entre as sinais sensíveis, se significam diversas
árvores de fruto e entre os animais da coisas que o nosso espírito pèrcebe de
terra. Porém, nem às ervas, nem às ár uma única maneira; e que, pelo contrá
vores, nem aos animais ferozes, nem às rio, o espírito entende de muitas
serpentes foi dito: “Crescei e multipli maneiras o que os sinais sensíveis
cai-vos! 7 69”, se bem que todos estes representam duma só. Assim, por
7 68 Gên 1,28.
7 69 Gên 1,28. 7 70 S118, 10.
CONFISSÕES XIII 307
25
“Os frutos da terra”
38. Quero também expor, Senhor servo Paulo e por se não ter envergo
meu Deus, o que me sugere a vossa nhado das cadeias do Apóstolo 7 7 7. O
Escritura, ao continuar a lê-la, e di-lo- mesmo fizeram “os irmãos que da
ei sem me envergonhar. Exporei verda Macedônia lhe forneceram o neces
des que me inspirastes e aquilo que sário 7 7 8”, dando com isso mostras de
Vós quisestes que eu daquelas palavras produzir iguais frutos. Igualmente se
deduzisse. Nem creio que diga a verda queixava São Paulo de algumas árvo
de, se outro além de Vós me inspirar, res que lhe não deram o fruto que
pois só Vós sois “a Verdade, e todo o deviam. Por isso diz: “Na minha pri
homem é mentiroso 7 73”. Por isso, meira defesa ninguém me assistiu;
“quem fala de si mesmo enuncia todos me abandonaram; que isto lhes
mentiras 7 7 4”. Portanto eu, para falar não seja imputado ! 7 7 9”
verdade, falarei do que me inspirastes. Devemos dar estes frutos aos que
Destes-nos, “para alimento, todas as nos ministram doutrina conforme à
ervas semeáveis que produzem semen razão, explicando-nos os divinos mis
te à superfície de toda a terra, e as ár térios. Por este motivo os frutos são-
vores que têm em si o fruto, junto com lhes devidos como a homens. São-lhes
o germe 7 7 5”. Não no-las concedestes devidos também como a almas vivas,
só a nós, mas também às aves do céu, pois dão-nos exemplos de todas as vir
aos animais da terra e às serpentes. tudes. Do mesmo modo, esses frutos
Não as ofertastes, porém, aos peixes e são-lhes devidos como a aves do céu,
aos grandes cetáceos. por causa das suas bênçãos que se
Dizíamos nós que nestes frutos da multiplicam sobre a terra, pois “a toda
terra se significavam e representavam ela se estendeu a sua voz 78 °”.
alegoricamente as obras de miseri
córdia, as quais brotam da terra fecun 7 7 7 2 Tim 1, 16.
da, para ocorrerem às necessidades da 7 78 2 Cor 11, 9.
7 79 2 Tim 4, 16; Na primeira defesa. . . “Estas
vida7 7 6. O piedoso Onesífero era se palavras não fazem alusão ao primeiro cativeiro do
melhante a esta terra. Foi à sua casa autor (São Paulo), mas ao segundo. Trata-se aqui
que concedestes misericórdia, por ter da prima actio de seu processo atual, da sua pri
meira apresentação pública e oficial diante do impe
matado a sede muitas vezes ao vosso rador ou do seu representante.” Ninguém me assis
tiu ... “O sentido é que ninguém, entre os cristãos
7 73 Jo ]A,6-,Rom3,4. presentes em Roma, tinha até então assistido a
774 Jo8,44. Paulo na qualidade de advogado, de testemunha de
7 7 5 Gên 1, 29. justificação ou de amigo, como a lei o permitia. A
7 7 6 Os frutos da terra (Gên 1, 29) figuram as obras todos tinha faltado coragem.” L. Cl. Filion, La
de piedade e o emolumento devido a quem anuncia Sainte Bible, T. VIII, p. 515, Paris, 1904.
a palavra de Deus. (N. do T.) 7 80 57 18,5.
CONFISSÕES XIII 309
26
Almas refloridas — São Paulo
39. Mas com estes frutos só se nu sido ensinado a tolerar a fartura e a
trem aqueles que alegremente os sabo penúria, a estar na abundância e a so
reiam. Os outros, “cujo deus é o seu frer necessidades. Tudo posso
ventre781782
*”, não podem regozijar-se n’Aquele que me conforta7 8 4” .
com eles. Até mesmo nos que dão 40. Qual o motivo da tua alegria, ó
esmola, o “fruto” não é o que eles dão, grande Paulo? Qual o motivo do teu
mas o espírito com que a oferecem. júbilo? De que te alimentas, ó homem
Vejo por isso perfeitamente qual era a “renovado para o conhecimento de
fonte destas alegrias em São Paulo, Deus segundo a imagem do que te
que servia a Deus e não ao seu ventre. criou”, ó alma viva, tão iura, língua
Vejo, e intensamente me congratulo alada que nos fala de mistérios? Por
com ele. que a esta espécie de animais se deve
Recebera o Apóstolo, por inter tal alimento? Dize-me: o que é que
médio de Epafrodite, as ofertas que lhe naquela obra dos filipenses servia de
enviaram os filipenses 7 82. Vejo a manjar à tua alma? — A alegria.
causa da sua alegria. O que o alegrava Ouçamos o que segue: “Contudo”,
era aquilo de que São Paulo se nutria, diz ele, “fizeste bem em compartilhar
pois afirma com verdade: “Alegrei-me da minha tributação 7 8 5”. O que lhe dâ
sumamente no Senhor, por ter de novo alegria, o que o nutre é terem eles pro
florescido a vossa estima para comigo, cedido bem; e não o ter sido alargada a
em que antes abundáveis, já que eu vos sua estreiteza. Por isso, meu Deus, ele
tinha causado aborrecimento 7 83”. afirma: Vós, “na angústia, dilatastes-
Portanto, tinham eles emurchecido me o coração 78 6”. Aprende em Vós
com um prolongado aborrecimento, e -—- que o confortais — a estar na abun
como que secaram para os frutos das dância e a sofrer privação. “Também
boas obras. Congratula-se com eles vós, ó filipenses”, acrescenta ele, “sa
porque refloresceram, e não se congra beis que no começo da pregação do
tula consigo mesmo por terem acudido Evangelho, quando parti da Macedô-
à sua indigência. nia, nenhuma Igreja teve comigo inter
Por isso declara São Paulo logo a câmbio para dar e para receber, senão
seguir: “Não digo isto porque alguma vós somente, porque para Tessalônica
coisa me falte, pois, nas circunstâncias várias vezes enviastes com que ocorrer
em que me acho, aprendi a contentar- às minhas necessidades 7 8 7 ” Agora
me. Sei passar privações e sei viver na rejubila por terem voltado a praticar
abundância. Em tudo e por tudo tenho tão boas obras e alegra-se por terem
reflorido como um campo fértil e
781 Flp 3, 19. verdej ante.
782 Flp 4, 18.
7 83 Flp 4, 10. — Por deficiência do texto grego 41. Seria acaso por causa das suas
que Santo Agostinho utilizou, houve confusão por precisões, pois declarou: “Ocorrestes
parte do Santo Doutor ao traduzir esta passagem
para o latim, onde São Paulo louvava os filipenses. 78 4 Flp 6, 11. 12.
Não os repreendeu, ao contrário do que insinua
Santo Agostinho. Em vez de “já que eu vos tinha 78 5 Flp 4, 14.
causado aborrecimento”, o texto grego da Epístola 78 6 Sl 4, 14;Sl 4, 2.
aos Filipenses diz: “Faltou-vos ocasião”. (N. do T.) 78 7 Flp 4, 15.
310 SANTO AGOSTINHO
*
27
Os “peixes” e os “cetáceos”
42. Portanto, Senhor, direi a verda que a devem praticar, nem eles os ali
de diante de Vós. Algumas vezes os mentam, nem estes são alimentados
homens ignorantes e infiéis, que para por eles; porque nem os primeiros pra
serem iniciados e ganhos à fé precisam ticam essas boas obras com santa e
destas metáforas de principiantes e reta intenção, nem os segundos se ale
destes milagres grandíloquos — figu gram com as dádivas, nas quais não
rados, assim o creio, sob o nome de descobrem ainda fruto algum. Ora, a
“peixes” e de “cetáceos” —, tomam o alma só se alimenta daquilo que lhe
encargo de aliviar os vossos filhos ou traz alegria. Por isso os “peixes” e os
de os auxiliar nalguma necessidade da “cetáceos” não se nutrem de alimentos
vida, presente. que brotam da terra só depois de sepa
Mas, como ignoram a natureza da rada e limpa da salsugem das águas
sua ação e o verdadeiro motivo por marinhas.
CONFISSÕES XIII 311
28
A obra da criação é essencialmente boa
43. Vós vistes, ó meu Deus, todas elas então não só Vos pareceram
as coisas que criastes. Pareceram-Vos “boas”, mas “muito boas 7 91 ”.
elas muito boas 7 90 e, assim, também Cada uma das criaturas separada
nós as vemos e as achamos igualmente mente era boa. Porém, consideradas
excelentes. em conjunto, eram não só “boas”, mas
até “muito boas”. Isto mesmo o afirma
Depois de dizerdes a cada uma das também a belezá de qualquer ser orgâ
espécies das vossas obras que “fossem nico. Um corpo, formado de membros
criadas” e depois de elas o serem, vis todos belos, é muito mais belo que
tes que eram boas. cada um dos seus membros de cuja
Sete vezes contei-as eu, está escrito conexão harmoniosíssima se forma o
que vistes ser excelente a obra por Vós conjunto, posto que também cada
criada. Na oitava declara-se que con membro separadamente tenha uma be
templastes todas as vossas criaturas leza peculiar.
como obra vista de conjunto, e eis que 791 Aparecem estas palavras oito vezes na versão
bíblica dos Setenta. Na Vulgata diz-se seis vezes
eram boas e uma vez, a sétima: eram muito boas.
790 Gên 1,31. (N. do T.)
29
Fora do tempo
30
Erros dos maniqueístas sobre a criação
31
Deus ilumina o nosso olhar
46. O contrário sucede àqueles que cermos dos dons que Deus nos conce
contemplam essas obras pelo vosso deu794.”
Espírito, 'porque então sois Vós quem Sinto-me impelido a perguntar: não
vê neles. Por conseguinte, quando sabendo ninguém com certeza o que é
vêem que são boas, Vós vedes também de Deus, senão o Espírito de Deus,
essa bondade. Em tudo o que lhes como conhecemos nós também os
agrada, por causa de Vós, nisso Vos dons que Deus nos concede?
tomais agradável; e aquilo que pelo Responder-me-á alguém: “As coisas
que nós conhecemos pelo seu Espírito,
vosso Espírito nos agrada, é em nós ninguém as sabe senão o Espírito de
que Vos agrada. Quem dos homens Deus”. Por conseguinte, assim como
sabe o que é do homem, senão o espí se disse com toda a razão àqueles que
rito do homem que nele está? Assim, falavam pelo Espírito de Deus: “Não
também o que pertence a Deus nin sois vós quem fala79 5”; e aos que
guém o sabe, senão o Espírito de Deus. sabem pelo Espírito de Deus: “Não
“Nós, porém”, diz São Paulo, “rece sois vós quem sabe”; não menos reta-
bemos não o espírito deste mundo, mas 79 4 lCor2, 11. 12.
o Espírito que é de Deus, para conhe 79 5 MIO, 20.
CONFISSÕES XIII 313
mente se diz àqueles que vêem pelo que alguma criatura é boa sendo Deus
Espírito de Deus: “Não sois vós quem quando vê nele que a criatura é boa,
vê”. Deste modo, tudo o que pelo Espí porque é bom que Deus seja amado
rito de Deus vêem de bom, não são naquilo que criou. Ele somente serâ
eles, mas Deus, quem o vê assim. amado pelo Espírito que nos concedeu,
Por isso, uma coisa é um julgar “pois a caridade de Deus foi difundida
como mau o que é bom, como os em’ no.ssos corações pelo Espírito
(maniqueístas) de que acima falei; e Santo que nos foi dado 7 9 6”. Por Ele
outra, ver o homem como bom o que é vemos que é bom tudo o que de qual
bom, como acontece a muitos a quem quer modo existe, pois procede
agrada a vossa criação, por esta ser d’Aquele que não existe de qualquer
excelente. Contudo, não sois Vós que modo, pois o que Ele é, é-o por
lhes agradais nela, pois querem antes o essência.
gov:o da criatura do que a Vós. Enfim,
outra coisa sucede quando o homem vê 79 6 Rom5,S.
32
O conjunto da criação
47. Graças Vos damos, Senhor! lua e as estrelas consolarem a noite, e
Vemos o céu e a terra, isto é, as partes as divisões do tempo serem designadas
superior e inferior corpórea, ou a cria e medidas por todos estes astros.
ção espiritual e material. Para adorno Contemplamos por toda parte o ele
destas partes componentes de toda a mento da água, fecundo em peixes, em
massa do mundo ou de toda a criação monstros marinhos e em aves 7 9 7, pois
no seu conjunto, vemos a luz, criada e a densidade do ar, que sustenta o vôo
separada das trevas. dos pássaros, cresce com a exalação
Vemos o firmamento do céu, quer o das águas.
entendamos como sendo o primeiro Vemos a face da terra embelezar-se
corpo do universo situado entre as com animais terrestres. Vemos o
águas espirituais superiores e as águas homem, criado à vossa imagem e
corporais inferiores, quer seja este es semelhança, constituído em dignidade
paço do ar, a que também se dá o acima de todos os viventes irracionais,
nome de atmosfera. Por esta diva- por causa de vossa mesma imagem e
gueiam as aves, entre as águas que se semelhança, isto é, por virtude da
lhes sobrepõem em forma de vapor -—- razão e da inteligência. E assim como
que em noites serenas cai em gotas de na sua alma há uma parte que impera
orvalho — e as águas em estado lí pela reflexão e outra que se submete
quido pela terra. para obedecer, assim também a mulher
Vemos a formosura das águas reuni foi criada, quanto ao corpo, para o
das nas campinas do mar. Vemos a homem. Ela, possuindo, sem dúvida,
terra árida, nua, ou de forma visível e uma alma de igual natureza racional e
ordenada, essa terra, mãe das plantas e de igual inteligência, está, quanto ao
das árvores.
7 9 7 Porque na atmosfera há vapor de água, Santo
Vemos brilhar por cima de nós os Agostinho diz que as águas são fecundas em aves.
luzeiros do céu, o sol bastar ao dia, a (N. do T.)
314 SANTO AGOSTINHO
33
A matéria e a forma do Universo
34
Simbolismo da criação
49. Meditei igualmente sobre as . nos na voragem das trevas. O vosso
verdades espirituais que quisestes sig misericordioso Espírito pairava sobre
nificar quer pela ordem e sucessão de nós, para vir em nosso auxílio, em
vossas obras, quer pela ordem com que tempo oportuno.
quisestes que fossem referidas. Notei Justificastes os ímpios, separaste-los
que as vossas obras, consideradas dos pecadores e confirmastes a impor
singularmente, são belas, e em seu con tância da vossa Escritura entre as pes
junto são ainda mais belas. soas de autoridade que Vos haviam de
No vosso Verbo, no vosso Único ser dóceis, e entre os súditos, que se
Filho, criastes o céu e a terra, a cabeça lhes haviam de sujeitar. Congregastes
e o corpo da Igreja, numa predesti numa só aspiração a sociedade dos
nação anterior a todos os tempos, sem infiéis799, para que aparecessem os
manhã nem tarde. Logo, porém, come bons sentimentos dos fiéis e produ-
çastes a executar no tempo o que tí
799 O problema da convivência dos bons e dos
nheis predestinado, a fim de manifes maus, dos fiéis e dos infiéis, trata-o Santo Agosti
tardes os vossos planos misteriosos e nho no livro: A Cidade de Deus. Esta resume-se na
coordenardes as nossas desordens, frase:“Dois Amores fizeram duas cidades: a terrena
fê-la o amor de si até ao desprezo de Deus; a celeste,
pois sobre nós pesavam os nossos fê-la o amor de Deus até ao desprezo de si” (A Ci
pecados. Longe de Vós, precipitamo- dade de Deus, L. XIV, cap. 28). (N. do T.)
CONFISSÕES XIII 315
A paz
36
O penhor da vida eterna
51. Ora o sétimo dia não tem as quais realizastes sem fadiga —
crepúsculo. Não possui ocaso, porque significa-nos, pela palavra de vossa
Vós o santificastes para permanecer Escritura, que também nós, depois do-s
etemamente. Aquele descanso com que nossos trabalhos, que são bons porque
repousastes no sétimo dia após tantas no-los concedestes, descansaremos em
obras excelentes e sumamente boas — Vós, no sábado da Vida Eterna.
316 SANTO AGOSTINHO
37
O repouso de Deus
52. Também então repousareis em forme o tempo. Porém, concedeis-nos
nós, da mesma maneira que agora ope que vejamos no tempo, fazeis o próprio
rais em nós. Este nosso repouso serâ tempo e o nosso repouso, para além do
vosso por nós, assim como são vossas tempo803.
estas ações por nós.
Senhor, Vós sempre estais ativo; 803 “Aí repousaremos e veremos;-veremos e ama
remos; amaremos e louvaremos. Eis o que haverá
sempre estais em repouso. Não vedes, no fim sem-fim” (Santo Agostinho, A Cidade de
não Vos moveis, nem descansais, con Deus, L. XXII, cap. 30). (N. do T.)
38
A ação de Deus em nós
53. Nós vemos todas estas vossas beneficiar. Com a vossa graça algumas
criaturas porque existem e têm ser. obras realizamos; mas estas não são
Mas porque Vós as vedes é que elas eternas. Depois de as termos pratica
existem. Eternamente, vemos que exis do, esperamos repousar na vossa gran
tem; e no nosso íntimo notamos que de santificação. Vós sois o Bem que de
são boas. Vós, porém, as vistes feitas, nenhum bem precisa. Estais sempre em
onde julgastes que se deviam fazer. repouso, porque sois Vós mesmo o
Nós, agora, somos inclinados a pra vosso descanso.
ticar o bem, depois que o nosso cora Quem dos homens poderá dar a
ção o concebeu, inspirado pelo vosso outro homem a inteligência deste mis
Espírito. Mas, ao princípio, desertando tério? Que anjo a outro anjo? Que anjo
de Vós, éramos arrastados para o ao homem? A Vós se peça, em Vós se
mal80 4. Contudo, Vós, meu Deus e procure, à vossa porta se bata. Deste
único Bem, nunca deixastes de nos modo, sim, deste modo se há de rece
80 4 Alusão à vida de pecador e de maniqueísta: ber, se há de encontrar e se há de abrir
desgarramento moral e doutrinário. (N. do T.) a porta do mistério.
DE MAGISTRO
CDO MESTRE)
Índice
que, quando rezamos, sem dúvida fala seu pensamento, mas não para que
mos, e, certamente, não é lícito crer Deus, e sim os homens ouçam, e, por
que ensinamos ou recordamos algo a meio do consentimento na recordação,
Deus. sejam elevados até Deus. Ou não pen
Agostinho sas assim?
— Tenho a impressão de que não Adeodato
sabes que, se nos foi ordenado rezar — Concordo plenamente.
em lugares fechados1, expressão que Agostinho
significa o espaço secreto da alma, o — Portanto, não te preocupa o fato
foi porque Deus não quer ser lembrado de que o soberano Mestre, ensinando a
de algo ou ensinado por nossas pala rezar aos seus discípulos 5, ensinou cer
vras, para conceder-nos o que deseja tas e determinadas palavras, pelo que
mos. Quem fala, pois, dâ exteriormente não parece ter feito outra coisa senão
o sinal da sua vontade por meio da ensinar como devemos falar quando
articulação do som: mas devemos pro rezamos?
curar Deus e suplicar-lhe no mais ínti Adeodato
mo recesso da alma racional, que se — Isso não me preocupa de modo
denomina o homem interior; quis Ele algum, pois não lhes ensinou palavras,
que fosse este o seu templo. Não leste mas, pelas palavras, aquelas coisas
no Apóstolo: “Não sabeis que sois o com que ficassem avisados quanto a
templo de Deus e que o espírito de quem e o que haviam de pedir quando
Deus habita em vós2”, e que “Cristo orassem, como foi dito, no segredo da
habita no homem interior3?” E não mente.
reparaste no que diz o Profeta: “Falai Agostinho
dentro dos vossos corações e nos vos — Entendeste certo: creio também
sos leitos arrependei-vos: oferecei os teres notado, apesar de haver quem
sacrifícios da justiça e confiai no não concorde, que, mesmo sem emitir
Senhor4”? som algum, nós falamos enquanto inti
Onde crês que se podem oferecer os mamente pensamos as próprias pala
sacrifícios da justiça a não ser no tem vras em nossa mente; assim, com as
plo da mente e no íntimo do coração? palavras nada mais fazemos do que
Onde se fizer o sacrifício, aí também se chamar a atenção; entretanto, a memó
há de orar. Por isso não são de mister ria, a que as palavras aderem, em as
palavras quando rezamos, isto é, pala agitando, faz com que venham à mente
vras soantes, exceto, talvez, no caso do as próprias coisas, das quais as pala
sacerdote que expressa pela palavra o vras são sinais.
1 Af/6, 6. Adeodato
2 1 Cor 3, 16. — Compreendo e acompanho-te.
3 Ef3, 16, 17.
* SI 4, 5,6. 5 Mt 6, 9.
DE MAGISTRO 325
Capítulo II
O homem mostra o significado das palavras só pelas palavras
Agostinho Adeodato
3 — Concordamos ambos, portanto, — “Nihil”que outra coisa significa
em que as palavras são sinais. senão o que não existe?
Adeodato Agostinho
— Concordamos. — Talvez digas a verdade, porém
Agostinho me impede de concordar contigo o que
— Então, um sinal pode ser sinal afirmaste acima: que não existe sinal
sem significar algo? sem que signifique algo; ora, o que não
Adeodato existe de maneira nenhuma pode ser al
— Não. guma coisa. Por isto, a segunda pala
Agostinho vra deste verso não é um sinal, porque
— Quantas palavras há neste nada significa, e, então, erroneamente
verso: “Si nihil ex tanta superis placet concordamos que todas as palavras
urbe relinqui6 ”? são sinais, ou que todo sinal signifique
Adeodato algo.
— Oito. Adeodato
Agostinho — Estás me apertando demasiado;
— Logo, oito são os sinais. porém observa que, quando não temos
Adeodato nada para expressar, sem dúvida seria
— E mesmo. coisa tola proferirmos alguma palavra:
Agostinho creio que tu, falando agora comigo,
— Creio que compreendes este não emites algum som inútil, mas que,
verso. com todos os que saem da tua boca,
Adeodato ofereces-me um sinal, para que eu
— Assaz, parece-me. entenda algo; não precisavas ter pro
Agostinho nunciado essas duas sílabas (ni-híl) se
— Dize-me o sentido de cada pala com elas não querias significar algo.
vra. Se, entretanto, consideras que com elas
Adeodato necessariamente se produza uma enun-
— Sei o que significa “si”, mas não ciação e que elas, ao soarem aos nos
encontro outra palavra para expres sos ouvidos, nos ensinam ou nos lem
sar-lhe o significado. bram algo, perceberás logo o que eu
Agostinho desejaria dizer, mas não posso expli
— Sabes indicar, ao menos, onde car.
está o que esta palavra significa? Agostinho
Adeodato — Como vamos fazer então? Dire
— Parece-me que o “si” expressa mos que com esta palavra (nihil), mais
dúvida: mas onde a dúvida se encon do que a própria coisa, que não existe,
tra, senão no espírito? queremos significar aquele estado da
Agostinho alma produzido quando não se vê a
— Por enquanto, aceito; continua. coisa, e, no entanto, descobre-se ou se
6 “Se nada aos deuses agrada que fique de tão pensa ter descoberto que a coisa não
grande cidade” (Virgílio, Eneida, II, 659). existe?
326 SANTO AGOSTINHO
Capítulo III
Se é possível mostrar alguma coisa
sem o emprego de um sinal
Adeodato responder senão bom palavras. Tu,
s — Admira-me que não saibas, ou porém, indagas de coisas que, sejam
melhor, simules não saber que não quais forem, de modo nenhum podem
podes obter de mim resposta que satis considerar-se palavras; e, no entanto,
faça ao teu desejo; do fato de estarmos também sobre essas tu me interrogas
conversando resulta que não podemos com palavras. Começa tu a interro
DE MAGISTRO 327
gar-me sem palavras, para que depois isto sejam corporais, não se podem
eu te possa responder da mesma todavia mostrar com o dedo.
forma. Agostinho
Agostinho — Mas nunca viste como os ho
— Tens razão, confessó-o; porém mens conversam com os surdos por
se te perguntasse o significado destas meio dè gestos, e os próprios surdos
três sílabas: “paries” (parede), não também por gestos ou perguntam ou
poderías tu mostrar-me com o dedo, de respondem, ou ensinam ou indicam
maneira que eu a visse, a coisa mesma tudo o que querem, ou, pelo menos,
de que é sinal esta palavra de três síla quase tudo? Se é assim, então não se
bas, demonstrando-a assim e indican- mostram sem palavras apenas as coi
do-a tu mesmo, sem usar palavra sas visíveis, mas ainda os sons e os
alguma? sabores e as outras coisas semelhantes.
Adeodato Também os histriões, nos teatros,
— Concedo que se possa fazer isso, expõem sem palavras e interpretam
mas só com aqueles nomes que signifi representações inteiras, na maioria das
cam corpos e quando estes corpos este vezes com gestos pantomímicos.
jam presentes. Adeodato
Agostinho — Nada tenho a opor-te, a não ser
— Mas à cor, por acaso, lhe cha que aquele “ex” (de), não apenas eu,
mamos corpo, ou, antes, certa quali mas nem mesmo um histrião dança
dade do corpo? rino poderia demonstrar-te, sem pala
Adeodato vras, o que significa.
— Uma qualidade. Agostinho
Agostinho — Talvez digas a verdade, mas 6
— Por que, então, também a cor se vamos supor que ele possa; não duvi
pode mostrar com o dedo? Ou ainda das certamente, como creio, que, qual
acrescentas aos corpos suas qualida quer que seja o movimento do corpo
des, de maneira que essas também pos com que ele tente demonstrar a coisa
sam ser demonstradas sem palavras, que é significada com esta palavra, não
quando estão presentes? será a coisa mesma, porém um sinal.
Adeodato Por isso também o histrião terá indica
— Eu, ao falar dos corpos, queria do, se não uma palavra com outra
que se entendesse todo o corporal, isto palavra, pelo menos um sinal com
é, tudo o que nos corpos se percebe. outro sinal; de modo que este monossí-
Agostinho labo “ex ” e aquele seu gesto significa
— Considera, porém, se ainda aqui rão a mesma coisa que eu queria me
não terás de fazer alguma exceção. fosse demonstrada ou indicada sem
Adeodato sinais.
— A advertência é justa, pois, de Adeodato
fato, não deveria dizer todas as coisas — Mas, rogo-te, como é possível o
corpóreas, mas todas as coisas visíveis. que tu estás pedindo?
Na verdade, confesso que o som, o Agostinho
cheiro, o sabor, a gravidade, o calor e — Do mesmo modo por que o foi
muitas outras coisas que pertencem pela parede.
aos outros sentidos, embora não se Adeodato
possam perceber sem os corpos, e por — Mas também esta, como resulta
328 SANTO AGOSTINHO
do desenvolvimento dc nosso raciocí Pois quem caminha nem por isso anda
nio, não pode ser mostrada sem sinal. depressa, e quem anda depressa não
Po'is o ato de apontar o dedo certa quer dizer que caminhe: tanto mais
mente não é a parede, mas é apenas a que podemos achar pressa no ler, no
maneira com que se dá um sinal, por escrever, e em muitíssimas outras coi
meio de que a parede pode ser vista. sas. Por isso, se fizesses mais depressa,
Não vejo, portanto, nada que possa ser depois da minha interrogação, o que
indicado sem sinais. estavas fazendo antes, eu poderia crer
Agostinho que caminhar outra coisa não é do que
— Se, porém, eu te perguntasse o apressar-se, posto que a pressa fora a
que é caminhar e tu te levantasses e novidade por ti acrescentada, e eu com
fizesses aquela ação,, não usarias da isto seria induzido a engano.
própria coisa para ensinar-me isto, em Adeodato
vez de palavras ou de outros sinais?. — Confesso que não se pode mos
Adeodato trar a coisa sem sinal, se, no momento
■—- Confesso ser assim, e me enver em que a fazemos, somos interroga
gonha não ter percebido uma coisa tão dos; pois, se não acrescentarmos nada
evidente, a qual me traz à memória à ação que estamos realizando, quem
milhares de coisas, que valem por si nos interrogar poderá supor que não
mesmas, e não pelos sinais com que se queremos responder-lhe, e, depois de
mostram, como sejam: comer, beber, desprezá-lo, continuamos a nossa
estar sentado, ficar de pé, gritar e inú ação. Mas se alguém perguntar sobre
meras outras. coisas que podemos fazer e não o fizer
Agostinho na mesma hora em que as fazemos,
— Vamos, dize-me: se eu não co podemos, fazendo-as, depois da inter
nhecesse o valor da palavra e te rogação, mostrar-lhe com a própria
perguntasse, enquanto caminhas, o que coisa, antes que com um sinal, o que
é caminhar, como me ensinarias isto? ele pergunta: a não ser que por acaso
Adeodato ele me pergunte, enquanto falo, o que é
— Realizaria a mesma ação, ou falar: porque qualquer que seja a coisa
seja, andaria, mas um pouco mais que lhe disser para ensinar-lhe isso,
depressa, para que uma novidade qual sempre o farei falando; e assim conti
quer te suscitasse a atenção; e, no nuando, ensinar-lhe-ei, enquanto não
entanto, não teria feito coisa diversa lhe fique perfeitamente claro, o que
do que te deveria ser mostrado. quer, sem afastár-me da própria coisa
Agostinho que desejava lhe fosse demonstrada,
— Não sabes tu que uma coisa é nem, além disto, procurar sinais com
caminhar e outra é andar depressa? que demonstrá-la.
Capítulo IV
Se os sinais se mostram com sinais
Agostinho Adeodato
— Não há nenhuma diferença entre — Sim, lembra-me que isto tam-
estes nomes e as coisas que são signifi •bém foi dito há pouco. Por isso res
cadas por eles? pondí que o nome significa algo, e a
Adeodato este significado subordinei esses qua
— Muitíssima. tro nomes; e aquele e estes, se é verda
Agostinho de que se proferem com'a voz, reco
— Gostaria de ouvir de ti qual é nheço serem audíveis.
ela. Agostinho
Adeodato — Que diferença há, portanto,
— Em primeiro lugar, estes são si entre o sinal audível e as coisas audí
nais e aquelas não o são. veis significadas, que, por sua vez,
Agostinho também são sinais?
— Agrada-te que chamemos de Adeodato
“significáveis” as coisas que podem ser — Entre aquilo que chamamos de
significadas pelos sinais, e não são nome e estas quatro coisas que subor
' sinais, assim como chamamos de “visí dinamos ao seu significado, vejo existir
veis” as que podem ser vistas, para de esta diferença: o nome é sinal audível
pois disputarmos sobre elas mais co dos sinais audíveis, enquanto as coisas
modamente? audíveis são também sinais audíveis,
Adeodato mas não sinais de sinais audíveis, e sim
— Agrada-me. de coisas em parte visíveis, como Rô-
Agostinho mulo, Roma, rio; em parte inteligíveis,
— E os quatro sinais que hâ pouco como virtude.
pronunciaste podem ser significados Agostinho
por qualquer outro sinal? — Aceito e aprovo; mas sabes que 9
quando dizemos “verbum” (palavra) cavalo e animal., A não ser que te im
queremos significar também um nome, peça de concordar o fato de que por
e que, por conseguinte, a palavra é um “verbum”, além de “palavra”, pode-se
sinal do nome? entender “verbo”, isto é, aquela parte
Adeodato do discurso que se declina por tempos,
— Concedo. como “escrevo”, “escrevi”, “-leio”, “li”,
Agostinho que manifestamente não são nomes.
— Gostaria que tu respondesses Adeodato
também a isto: sendo a palavra sinal — Acabas de fazer referência ao
do nome e o nome sinal do rio e o rio que me suscitava dúvidas.
sinal de uma coisa que se pode ver, e Agostinho
tendo tu reconhecido a diferença entre — Isto não deve preocupar-te. Na
esta coisa e o rio, isto é, o seu sinal, e verdade, em geral chamamos sinais a
entre este sinal e o nome que é sinal tudo o que significa algo, e entre estes
deste sinal, qual crês que seja a dife encontramos -também as palavras.
rença entre o sinal do nome que disse Ainda chamamos sinais (insígnias) às
mos ser a palavra é o mesmo nome de bandeiras militares, que são sinais em
que ela é sinal? sentido próprio, coisa que não se pode
Adeodato ría dizer das palavras. Todavia, se te
— Acho que a diferença seja esta: dissesse que todo cavalo é animal, mas
o que é significado com o nome é signi nem todo animal é cavalo, assim como
ficado também com a palavra; como, toda palavra é sinal, mas nem todo
pois, nome é palavra, assim também sinal é palavra, creio que não te susci
rio é palavra; mas nem tudo o que é taria dúvida alguma.
significado com a palavra é significado Adeodato
também com o nome. Também aquêle — Já entendo, e concordo plena
“si ”(se) com que começa o verso por ti mente, que entre “palavra” tomada em
proposto e aquele “ex” (de) do qual sentido geral e “nome” existe a mesma
tratamos tão longamente, guiados pela diferença que há entre animal e cavalo.
razão, até chegarmos à presente ques Agostinho
tão, são palavras, mas não nomes, e — Sabes também que, quando dize- 10
muitos outros exemplos semelhantes mos animal, uma coisa é este nome
podemos encontrar. Pois, como todos trissílabo, que é proferido pela voz, e
os nomes são palavras, mas nem todas outra aquilo que com ele se significa?
as palavras são nomes, julgo estar Adeodato
clara a diferença entre palavra e nome, — Já concedí isto, há pouco, a res
isto é, entre o sinal daquele sinal que peito de todos os sinais e de todos os
não significa nenhum outro sinal e o significáveis.
sinal daquele sinal que pode significar Agostinho
outros. — Não te parece que todos os si
Agostinho nais significam uma coisa distinta da
— Concedes que todo cavalo é ani que são, como quando pronunciamos
mal, mas nem todo animal é cavalo? este nome trissílabo — animal — de
Adeodato modo algum significaremos aquilo que
— Quem duvidaria? ele mesmo é?
Agostinho Adeodato
— Pois bem, entre nome e palavra — Não, certamente; pois quando
existe a mesma diferença que há entre dizemos sinal, este não significa ape
332 SANTO AGOSTINHO
Capítulo V
Sinais recíprocos
Agostinho Agostinho
u — Raciocinaste bem; agora vê se é — Não sabes, então, que, quando
possível encontrar sinais que se signifi dizemos “nome” e “palavra”, dizemos
quem reciprocamente, de maneira que, duas palavras?
assim como este significa aquele, tam Adeodato .
bém aquele signifique este; pois não — Sei, sim.
me parece que concordem entre si Agostinho
aquele quadrissílabo'cotizwazcízo ” e as — E não sabes que, quando dize
coisas que este significa, tais como: mos “nome” e “palavra”, dizemos dois
“si” (se), “vel” (ou), “nam” (pois), nomes?'
“namque” (e pois), “nisi” (se não), Adeodato
“ergo” (logo), “quoniam” (porque) e — Também sei.
outras semelhantes: porque aquela pa Agostinho
lavra sozinha significa todas estas, — Por conseguinte, sabes que tanto
mas não há nenhuma entre estas últi o nome pode significar-se com a pala
mas que possa significar aquele qua- vra, quanto a palavra com o nome.
drissílabo. Adeodato
Adeodato —- Concordo.
— Compreendo e desejo conhecer Agostinho •
quais os sinais que se significam — E podes dizer-me, salvo o fato
reciprocamente. de que se escrevem e pronunciam
DE MAGISTRO 333
contrário, aos dois desagrada o “por tros haveriam de ser senão “se” e
que” da minha. “porque”?
Adeodato Agostinho
— Concordo. :—- Logot está suficientemente de
Agostinho monstrado que estas duas conjunções
— Observa agora se estas duas são também nomes.
proposições, “se agrada”, “porque- de Adeodato
sagrada”, estão completas. •—- Sim, suficientemente.
Adeodato
— Completas, certamente/ Agostinho
Agostinho — E poderias por ti mesmo, se
— Vamos, dize-me agora quais guindo esta regra, demonstrar a
sejam os verbos e quais os nomes. - mesma coisa nos confrontos das de
Adeodato mais partes da oração?
— Vejo que os verbos são “agrada” Adeodato
e “desagrada”; e os nomes, quais ou — Poderia.
Capítulo VI
Sinais que significam a si mesmos
Agostinho nome; e que assim — além do som das
17 — Passemos adiante e dize-me sé, letras — não há outra diferença no que
assim como achamos que todas as diz respeito ao nome em geral; mas
palavras são nomes, e todos os nomes que, quanto ao nome em particular,
palavras, assim também te parece que dizemos ser uma das oito partes da
todos os nomes são vocábulos e todos oração, sem que naturalmente inclua
os vocábulos nomes. as outras sete.
Adeodato Adeodato
— Não encontro entre eles outra — Compreendo.
diferença senão a do som das sílabas. Agostinho
Agostinho
— Por enquanto não me oponho, — No entanto, era isso mesmo que
embora não faltem os que encontram estava dizendo quando afirmava que
entre eles uma diferença de significado, vocábulo e nome significam-se recipro
o que não é conveniente discutirmos camente.
agora. Porém, certamente com Adeodato
preendes que já chegamos àqueles — Entendo, mas pergunto o que is
sinais, que se significam reciproca pretendias dizer com as palavras
mente, sem outra diferença que a do “ainda significam a si mesmos-junto
som, e àqueles que significam a si mes com as demais partes da oração”.
mos junto com as demais partes da - Agostinho
oração. — Não nos demonstrou a discus
Adeodato j são anterior que todas as partes da
— Não estou entendendo. i oração podem chamar-se tanto nomes
Agostinho como vocábulos, isto é, podem ser
— Não compreendes então que significadas pelos termos de “nome” e
nome significa vocábulo e vocábulo de “vocábulo”?
338 SANTO AGOSTINHO
Capítulo VII
Resumo dos capítulos anteriores
tanta superis placet urbe relinqui”. que se poderia demonstrar sem sinal
Quanto à sua segunda palavra (nihil) aquelas coisas que nós não fazemos no
apesar de conhecidíssima, não conse momento em que somos interrogados,
guimos, no entanto, encontrar o que mas que podemos fazer depois da
significava, pois a mim me parecia que interrogação; a locução, porém, não é
nós, quando falamos, não a emprega desta espécie, pois se, quando falamos,
mos inútilmente, mas para ensinar algo alguém nos perguntar o que é falar,
a quem nos ouve; isto é, parecia-me isto se demonstra facilmente por si
que com esta palavra se indicasse, tal mesmo: falando.
vez, o estado mesmo da mente, quando — Com isto ficamos avisados de 20
acha que não existe a coisa que procu que: ou se mostram sinais com sinais
ra ou que julga tê-la achado, e tu me ou, com sinais, se mostram outras coi
respondeste evitando com uma brinca sas que sinais não são, ou então, sem
deira aprofundar não sei de que manei sinal podem mostrar-se as coisas que
ra a questão, e adiando para outro podemos fazer depois de interrogados:
momento o esclarecimento: não acre e, desses três casos, detivemo-nos a
dites, pois, que eu me esqueça dessa considerar e discutir com mais minú
tua dívida para comigo. Depois, en cia o primeiro. Mediante esta discus
quanto eu procurava explicar a ter são, ficou esclarecido que existem si
ceira palavra do verso, fui por ti convi nais que não podem, por sua vez, ser
dado a não indicar outra palavra que significados pelos sinais que eles signi
tivesse o mesmo valor, mas, pelo ficam, como acontece no caso do
contrário, a mostrar a própria coisa quadrissílabo“conzuncfio "(conjunção);
significada pelas palavras. Depois de ao passo que existem outros que, ao
responder, durante a nossa conversa contrário, o podem, como quando
ção, que isto não seria possível, passa dizemos “sinal” e entendemos signifi
mos para aquelas coisas que podem ser car também “palavra”, pois sinal e
indigitadas aos nossos interlocutores. palavra são dois sinais e duas palavras
Pensava eu que tais fossem todas as (sinal-palavra, palavra-sinal). Neste
coisas corpóreas, mas achamos serem caso em que os sinais se significam
assim somente as visíveis. Daí passa reciprocamente, demonstramos, ainda,
mos, não sei de que modo, aos surdos e que uns não têm o mesmo valor, outros
aos histriões, observando que signifi o têm igual, e outros finalmente são
cam pelo gesto e sem a voz não apenas idênticos. Assim, quando proferimos
as coisas visíveis, senão muitas outras este dissílabo, “sinal”, certamente indi
e quase todas as que expressamos com camos todos os sinais com que uma
a palavra, e concordamos em que os coisa pode ser indicada ou significada:
gestos também são sinais. Então reco mas, se dizemos “palavra”, esta não é
meçamos a indagar como poderiamos o sinal de todos os sinais, mas apenas
indicar, sem sinal algum, as mesmas dos que se pronunciam articulando a
coisas que se indicam pelos sinais, voz. Donde resulta manifesto que —
sendo que aquela parede e aquela cor e embora “palavra” também seja indi
tudo o que é visível e que se indica cada com um sinal, e “sinal” (signum)
apontando o dedo, devemos convir que com “palavra” (verbum), isto é, estas
é sempre indicado por certo sinal. duas sílabas por aquelas, e aquelas por
Aqui, eu, errando, disse que nada de estas —, no entanto, “sinal” vale mais
semelhante poderiamos encontrar, e, que “palavra”, porque aquelas duas sí
não obstante, ficou assentado entre nós labas (sinal) denotam mais coisas que
340 SANTO AGOSTINHO
Capítulo VIII
I
342 SANTO AGOSTINHO
sinal com que a significamos; assunto . peito de “homem” só como sinal. Se,
este de que tratamos há pouco. • ao contrário, perguntar se é animal,
Agostinho anuirei muito mais facilmente, porque,
24 — Desse modo refutá-lo-ias bem, ainda que calasse os termos’“nome” e
mas que me responderias, ao pergun- “animal” para perguntar apenas “o
tar-te se homem é um nome? que é homem”, segundo aquela regra
Adeodato • *•
do falar que já estabelecemos, a minha
— Que mais, senão que é um mente voltar-se-ia para o que se signi
fica com aquelas duas sílabas, e outra
nome?
coisa não poderia responder senão
Agostinho “animal” e até poderia citar também
— Então, quando te vejo, vejo um toda a definição, isto é, “animal racio
nome? : nal, mortal”; não te parece?
Adeodato Adeodato
— Não. — Certamente; mas, se concede
Agostinho mos ser um nome, como poderemos
— Queres portanto que diga o que evitar a conclusão injuriosa de que não
disso resulta? somos homens?
Adeodato Agostinho
— Não te incomodes: eu mesmo, -—■ Demonstrando que não foi tira
que respondi que um homem é nome da do sentido da palavra usada quando
quando me perguntaste se homem era assentíamos com o nosso interlocutor.
nome, reconheço que declarei não ser E se este dissesse que quer deduzi-la da
eu homem; e fiz isto embora já ficasse palavra considerada como sinal, nada
estabelecido que devemos admitir ou haveria que recear, pois que poderia eu
negar o que se diz segundo o signifi temer confessando que não sou
cado das coisas. homem, isto é, não sou aquelas duas
Agostinho sílabas?
— Porém a mim parece que tu não Adeodato
foste incidir nesta resposta sem certa — Não há nada de mais verda
causa, pois a própria lei da razão, gra
deiro. Mas por que então fere o espírito
vada em nossas mentes, pode superar a ouvir dizer: “Tu não és portanto
tua vigilância: com efeito, se te pergun homem” desde que, pelo que já conce
tasse o que é “homem”, responderias demos, nada há que se possa dizer com
talvez: “animal”; porém, se te pergun maior verdade?
tasse que parte da oração é “homem”,
de nenhum outro modo me poderias Agostinho
responder bem, senão dizendo: — Pelo fato de que não posso evi
“nome”; assim, concluímos que tar pensar que a conclusão — logo que
“homem” é nome e animal: o primeiro se ouvem estas duas sílabas — não se
(ser nome) se diz enquanto é sinal; o relacione com o que elas significam,
segundo (ser animal) enquanto indica a devido àquela regra, cujo valor natural
coisa significada. A quem, portanto, é grandíssimo, de que a nossa atenção,
me perguntar se homem é nome, nada depois de ouvirmos os sinais, volta-se
mais respondería senão que é, porque para as coisas significadas.
com esta pergunta ele deixa suficiente Adeodato
mente entender que quer saber a res- — Aceito tudo quanto dizes.
344 SANTO AGOSTINHO
Capítulo IX
Se devemos preferir as coisas, ou o conhecimento delas,
aos seus sinais
Agostinho Agostinho
25 — Desejo, portanto, que com — Podes, ao menos, dizer-me que
preendas bem que se devem apreciar intenção, que escopo tens tu quando
mais as coisas significadas do que os pronuncias esse nome?
sinais. Tudo o que existe devido a Adeodato
outra coisa, necessariamente tem valor — Sim. Com esse sinal quero avi
menor que a coisa pela qual existe, sar ou ensinar à pessoa com quem falo
caso não penses diversamente. • aquilo sobre o que julgo necessário
Adeodato avisá-la ou ensiná-la.
— Parece-me que não se possa con Agostinho
cordar com isto sem refletir. Quando, — Como? O fato de ensinar e avi
por exemplo, se diz “coenum ” (lama sar ou de ser ensinado e avisado, que
çal), parece-me que este nome seja em facilmente expões com este nome ou
muito superior à coisa que significa. que te é exposto, por acaso não deverá
Com efeito, o que nos ofende ao ouvir ser-te mais caro que a própria palavra?
mos esta palavra não é o som; “coe Adeodato
num ”, mudando apenas uma letra, tor — Admito que o conhecimento que
na-se “coelum” (céu), mas nós se consegue por meio deste sinal seja
sabemos que enorme diferença há entre preferível ao próprio sinal, mas não
as coisas significadas por estes dois preferível à coisa também.
nomes. Por isso eu não atribuiria a Agostinho
essa palavra todo o ódio que reservo — -Então, na nossa afirmação 20
ao que significa, e, portanto, eu a prefi acima, embora seja falso que devemos
ro a isso; pois menos desagrada ouvir preferir todas as coisas aos seus sinais,
esta palavra do que ver ou tocar a não é falso, porém, que tudo o que
coisa que significa. existe devido a outra coisa seja de
Agostinho valor menor que a coisa pela qual exis
— Falas muito habilmente. Assim, te. O conhecimento, portando, do
seria falso dizermos que todas as coi lamaçal, para o qual foi instituído esse
sas têm um valor superior aos sinais nome, há de ser apreciado mais que a
pelos quais se expressam. palavra, que, por sua vez, vimos ser
Adéodato preferível ao próprio lamaçal. Nem por
— Assim parece. outro motivo o conhecimento é prefe
Agostinho rível ao sinal de que estamos tratando,
— Dize-me, então, que intenção fe senão porque este existe devido àquele
riam os que aplicaram um nome a e não aquele por causa deste. Assim,
coisa tão feia e desprezível? Tu os um certo comilão, devoto do ventre,
aprovas ou desaprovas? segundo a frase do Apóstolo10, dizen
Adeodato do que vivia para comer, foi contes
— Na verdade, não ouso nem apro- tado por um homem sóbrio, que lhe
vâ-los nem desaprová-los, e nem sei
que intenção pudessem ter. 10 Rom 16, 18.
1
DE MAGISTRO 345
ouviu as palavras e não as pôde tole concedes é-me suficiente para chegar
rar, desta maneira: “Quanto melhor aonde me proponho. Concedes-me,
seria que comesses para viver”; e, pois, que o conhecimento das coisas é
certamente, o sóbrio falou assim se mais precioso que os sinais cfas mes
guindo essa mesma regra11. Pois o mas. Logo,- o conhecimento das coisas
comilão só desagradou porque ava que são significadas há de preferir-se
liava em tão pouco a sua vida, que a ao conhecimento dos sinais; ou não te
tinha em menor conta do que os praze parece?
res do paladar, afirmando viver para Adeodato
comer; o outro, isto é, o sóbrio, é digno — Mas -eu concedi, por acaso, que
de louvor porque, compreendendo qual o conhecimento das coisas é superior
destas duas coisas (comer e viver) é ao dos sinais, ou antes, que é superior
feita pela outra, isto é, qual estâ subor aos próprios sinais? Por isto hesito em
dinada à outra, avisou que antes devía concordar contigo neste ponto. Se o
mos comer para viver do que viver nome “lamaçal” é melhor que a coisa
para comer. Analogamente, tu, e todo por ele indicada, por que o conheci
homem que aprecie as coisas pelo seu mento deste nome não haveria de ser
justo lado e valor, a um charlatão que preferido também ao da coisa, embora
dissesse: “Ensino para falar”, respon o nome por si seja inferior 'àquele
derias: “Homem, e por que antes não conhecimento? Temos aqui quatro ter
falas para ensinar?” Ora, se estas coi mos: nome, coisa, conhecimento do
sas são verdadeiras, como aliás reco nome, conhecimento da coisa. Como o
nheces, observa quanto as palavras primeiro é superior ao segundo, por
devem ser consideradas de menor que também o terceiro não é superior
importância com confronto com aqui ao quarto? E, se não é superior, há de
lo por que as usamos; tanto mais que o também estar-lhe subordinado?
próprio uso das palavras já é de se Agostinho
antepor às mesmas; as palavras, pois, —. Percebo que guardas na memó- 28
existem para que as usemos, e as usa ria maravilhosamente bem o que con
mos para ensinar. Logo, é melhor ensi cedeste, e que explicaste claramente a
nar que falar, e, assim, é melhor o dis tua opinião. Mas, creio eu, com
curso que a palavra. Muito melhor que preendes que este nome trissílabo “vz-
as palavras é, portanto, a doutrina. tium ” (vício), quando o pronunciamos,
Mas desejo ouvir o que, por acaso, te é melhor, como som, do que aquilo que
nhas a opor. significa; no entanto, o conhecimento
27 Adeodato — Concordo em que do simples nome é muito inferior ao
a doutrina seja melhor que as palavras; conhecimento dos vícios. Assim, ainda
mas não sei se não há algo a objetar que tu estabeleças e consideres aqui
contra esta regra com que se diz: “tudo também os quatro termos: nome e
o que existe devido a uma outra coisa é coisa, conhecimento do nome e conhe
inferior àquilo pelo qual existe”: cimento da coisa, com razão nós ante
Agostinho ■' pomos o primeiro ao segundo. Quando
— Trataremos disto mais pportu- Pérsio12 coloca na sua Sátira este
namente e com maior diligêqcia em nome, dizendo: “Sed stupet hic vitio”
outra ocasião: por enquanto, o que me (Mas este se admira do vício), não só
não toma viciado o verso, mas, pelo
11 (Regra que estabelece que tudo o que é devido a
: outra coisa, assim como o comer é devido ao viver
— é inferior à coisa pela qual existe.) 12 Sat.III,32.
346 SANTO AGOSTINHO
contrário, de certa maneira dá-lhe bele pois entendo que não devem ser culpa
za apesar de a coisa significada por dos os próprios conhecimentos, entre
esse nome formar um vício, onde quer os quais o da moral, que é de todas as
que se encontre. Mas reparamos não disciplinas à melhor, com que o espí
ser igualmente preferível o terceiro rito se educou, mas sim, que devem
(termo) ao quarto; e sim o quarto ao ser considerados — como, aliás, creio
terceiro. O conhecimento deste nome que também Pérsio pensava — misér-
(vício) é de pouca monta em compara rimos entre todos os que são atacados
ção ao conhecimento dos vícios. por tal doença, que nem um tão grande
Adeodato remédio pode curar.
— Julgas que este conhecimento, Agostinho
não obstante nos tome mais mesqui — Entendeste bem; mas que nos
nhos, ainda há de ser preferido? O pró importa o pensamento de Pérsio? Não
prio Pérsio, pois, a todas as penas que estamos submetidos, nessas coisas, a
a crueldade dos tiranos excogitou ou a autoridade semelhante; tanto mais que
cobiça fez sofrer, antepõe unicamente não é fácil explicar aqui que conheci
aquela com que são atormentados os mento deve ser preferido a outro.
homens, quando obrigados a reconhe Estou satisfeito, no momento, com o
cerem os vícios que não conseguem que conseguimos; isto é, ser o conheci
evitar. mento das coisas que são significadas
Agostinho de valor superior, se não ao conheci
— Desta maneira poderias. também mento dos sinais, pelo menos aos pró
chegar a negar que deve ser preferido o prios sinais. Por isto voltemos já a dis
conhecimento das virtudes ao do seu cutir, mais ainda, sobre o gênero das
nome, pois ver a virtude e não a ter é coisas que dizíamos poderem mostrar-
um suplício, com que o mesmo poeta se por si mesmas’, sem sinais, como
satírico desejou que fossem punidos os sejam: comer, passear, sentar, jazer e
tiranos1 3. semelhantes.
Adeodato
Adeodato
— Deus afaste de mim tal loucura: — Volto a meditar as tuas pala
13 Ibidem, vv. 35-38. vras.
Capítulo X
Se é possível ensinar algo sem sinais.
As coisas não se aprendem pelas palavras
Agostinho sem sinal, excluindo, talvez, o próprio.
29 — Parece-te que podemos mostrar falar e o ensinar, mas este só quando
sem sinal tudo o que podemos fazer, alguém pergunta o que é ensinar. Pois
logo após sermos interrogados, ou vejo que quem pergunta — faça eu o
excetuas algo? que fizer após a sua interrogação para
Adeodato que aprenda — não o pode aprender
— Eu, na verdade, venho pensando pela própria coisa, que deseja lhe seja
neste gênero de coisas, mas não consi mostrada; como, por exemplo: se a
go encontrar nada que se possa ensinar mim, que parei de andar ou que estou
DE MAGISTRO 347
para encontrar, estas três coisas: 1) se varas e visco, deparasse com um caça
era possível ensinar sem sinais; 2) se dor armado destes instrumentos, mas
havia sinais preferíveis às coisas que que vai indo pelo caminho sem ter
expressam; 3) se o conhecimento das começado ainda a sua tarefa, e, vendo
coisas pode ser melhor que os sinais. o caçador, começasse a apressar o
Mas há uma quarta coisa que gostaria passo, e, como acontece, estranhando
de saber já: se as coisas por nós encon em seu íntimo tudo aquilo, perguntasse
tradas, tu as julgas de tal maneira que a si mesmo que poderiam querer dizer
não deixem em ti possibilidade de aqueles apetrechos; e o caçador, em se
dúvida. vendo observado e admirado, para
Adeodato fazer mostra de si, exibisse a cana e,
— Gostaria mesmo que, depois com ela e o gavião, alcançasse e pegas
de tantos rodeios, tivéssemos chegado se um passarinho que está passando
à certeza, mas esta tua pergunta me por ele: o caçador, sem usar de sinais,
suscita certa inquietação, que me proí mas pela própria coisa, não ensinaria
be de assentir. Tenho a impressão, ao seu espectador o que esse queria
pois, que não me farias esta pergunta saber?
se não tivesses alguma objeção a apre Adeodato
sentar: e a própria complicação das — Tenho a impressão de que o
coisas não me permite ver tudo e res caso é semelhante àquele de que'já
ponder com segurança, por medo de falei, isto é, de quem pergunta o que é
que, entre tantos véus, se esconda algo caminhar. Aqui também não vejo que
que os olhos da minha mente não pos foi mostrada toda a arte de caçar.
sam divisar. Agostinho
Agostinho — Ê fácil libertar-se desta impres
— Recebo com prazer a tua dúvi são; acrescento pois: se aquele especta
da, porque revela uma alma não levia dor fosse tão inteligente que compreen
na e isto assegura grandemente a desse por completo toda a arte de
tranquilidade. É muito difícil não se caçar só pelo que viu, isto, já seria o
perturbar quando o que nós guardá- bastante para demonstrar, sem mais,
vamos com consenso fácil e pacífico que alguns homens podem ser ins
por discussões contrárias é derrubado truídos sem sinais sobre algumas coi
e como que arrebatado das mãos. Por sas, se bem que não sobre todas.
isso, como é eqüitativo ceder depois de Adeodato
observar e examinar bem os motivos, — Então também posso acres
assim é perigoso manter como coisa centar isto: quem pergunta o que é
conhecida o que não é. Porque, às caminhar, se for bem inteligente, com
vezes, quando desaba aquilo que pre preenderá por completo (em geral) o
sumíamos seguramente estável e per que é caminhar, depois de se lhe mos
manente, há o receio de chegarmos a trar com poucos passos.
tão grande ódio ou medo da razão que Agostinho
nos pareça não dever mais emprestar — Podes, nem eu me oponho, antes
fé nem sequer à verdade mais evidente. estou contente. Vês, portanto, termos
32 Mas, vamos! Reexaminemos agora um ambos chegado a esse resultado que
pouco mais depressa se tens razão de umas coisas podem ser ensinadas sem
duvidar. Pergunto-te, portanto, se al sinais, e, consequentemente, é falso
guém, desconhecendo as armadilhas aquilo que há pouco nos parecia verda
que se preparam aos pássaros com deiro, isto é, não existir nada que se
DE MAGISTRO 349
possa mostrar ou ensinar sem sinais; e mente que ela denotava aquela coisa
apresentam-se à mente não uma ou que, por tê-la visto, a mim já era
duas coisas, senão milhares que, sem conhecidíssima. Mas antes de achar
necessitarem de nenhum sinal, podem isto, aquela palavra era para mim ape
mostrar-se por si mesmas. Logo, como, nas um som, e aprendi que ela era um
podemos duvidar, eu te pergunto? Dei sinal quando encontrei aquilo de que
xando de lado os numerosos espetá era sinal, o que aprendi não pelo signi
culos em que alguns atores repre ficado, mas pela visão direta do objeto.
sentam em todos os teatros as coisas Portanto, mais através do conheci
sem sinais, Deus e a natureza não mento da coisa se aprende o sinal do
apresentam e mostram por si mesmos, que Se aprende a coisa depois de ter o
a quem os observa, o sol e a luz, qué sinal.
tudo invade e veste, a lua e as estrelas, Para que compreendas isto mais clara- 34
a terra e os mares e os inumeráveis mente, imagina nós estarmos ouvindo
seres, que neles são gerados? neste momento, pela primeira vez, pro
33 Mas, se considerarmos isto com maior nunciar a palavra “caput” (cabeça), e
atenção, talvez não encontres nada que que, por não sabermos se esta voz é só
se possa aprender pelos seus próprios um som ou se quer também significar
sinais. Com efeito, se me for apresen algo, começaremos a procurar o que é
tado um sinal e eu me encontrar na “caput” (cabeça). (Lembra-te que nós
condição de não saber de que coisa é queremos ter conhecimento, não da
sinal, este nada poderá ensinar-me; se, coisa que é significada, mas do próprio
ao contrário, já sei de que é sinal, que sinal, conhecimento que nós não temos
aprendo por meio dele? Assim, quando enquanto ignorarmos de que coisa é
leio “Et saraballae eorum non sunt sinal.) Se a nós, que estamos fazendo
immutatae' 4” (E as suas coifas não esta pesquisa, fosse mostrada ou apon
foram deterioradas), a palavra (coifas) tada com o dedo a própria coisa,
não me mostra a coisa que significa. então, depois de vê-la, temos conheci
Pois se certos objetos que servem para mento do sinal; isto é, sabemos o que
cobrir a cabeça se chamam com este quer dizer aquele sinal, que antes ape
nome de “saraballae ” (coifas), porven nas tínhamos ouvido, mas não com
tura, depois de ouvi-lo, aprendi o que é preendido. Nesse sinal há duas coisas:
cabeça e o que é cobertura? Eu, ao o som e o significado; ora, o som não
contrário, já antes conhecia estas coi foi certamente percebido como sinal de
sas, delas adquiri conhecimento sem algo, mas como simples percussão no
que as ouvisse chamar assim por ouvido; enquanto o significado foi
outrem, mas vendo-as com os meus apreendido pela visão da coisa que é
próprios olhos. Quando as duas síla significada. Como o apontar do dedo
bas com que dizemos “caput” (cabeça) não pode significar senão aquilo para
repercutiram pela primeira vez no meu que o dedo está apontando, e o dedo
ouvido, sabia tão pouco o que signifi não está apontado para o sinal, mas
cavam como quando ouvi e li pela pri para aquela parte do corpo que se
meira vez “saraballae”. Porém, ouvin chama “caput” (cabeça), assim eu, por
do muitas vezes dizer “caput”(cabeça) meio desse gesto, não posso conhecer a
e notando e observando a palavra coisa, que já conhecia, nem o sinal
quando era pronunciada, reparei facil- para o que o dedo estava apontado.
Mas não quero dar demasiada atenção
14 Z>an3,94. ao gesto de apontar o dedo, porque,
350 SANTO AGOSTINHO
para mim, ele é mais o sinal do ato de daquelas “saraballae” (coifas). Se al
indicar do que das próprias coisas guém com um gesto me indicar estas
indicadas, como acontece quando dize “saraballae ” (coifas) ou mas pintar, ou
mos “ecce” (eis), e costumamos acom me mostrar algo de semelhante a elas,
panhar este advérbio também com o não direi, como aliás conseguiría se
dedo apontado, como se não bastasse quisesse falar um pouco mais, que não
um só desses dois sinais para indicar. mas ensinou, porém direi que não me
E disto maximamente procurarei con ensinou com as palavras o que está
vencer-te, se puder: que não aprende diante de mim. Se eu, no momento em
mos nada por meio desses sinais que que as vejo, por acaso fosse avisado
chamamos palavras: antes, como já com as palavras: “Ecce saraballae”
disse, aprendemos o valor da palavra, (eis as coifas), aprendería uma coisa
ou seja, o significado que está escon que não sabia, não pelas palavras que
dido no som através do conhecimento foram pronunciadas, mas pela visão da
ou da própria percepção da coisa própria coisa, por meio da qual conhe
significada; mas não a própria coisa cí e gravei também o valor do nome.
através do significado. Pois, quando aprendi a própria coisa,
35 E o que disse da cabeça, poderia dizer não acreditei nas palavras de outrem,
do que serve para cobrir a cabeça e de mas nos meus olhos; talvez acreditasse
muitíssimas outras coisas; que, embo também nelas, mas apenas para des
ra conhecidas de mim, nunca, até pertar a'atenção, ou seja, para procu
agora, tive por isto conhecimento rar com os olhos o que era para eu ver.
Capítulo XI
Não aprendemos pelas palavras que repercutem exteriormente,
mas pela verdade que ensina interiormente
dam, mas talvez nos incitem a procu- ta: “Se não credes, não entendereis1 5”;
rá-lo. certamente não diria isto se não jul
37 Se disseres que daqueles objetos que gasse necessário pôr uma diferença
servem para cobrir a cabeça e dos entre as duas coisas. Portanto, creio
quais temos o nome (coifas) apenas tudo o que entendo, mas nem tudo que
através do som podemos adquirir creio também entendo. Tudo o que
noção só depois de vê-los; e que, por compreendo conheço, mas nem tudo
tanto, nem sequer o seu nome conhece que creio conheço. E não ignoro quan
mos completamente senão depois de to é útil crer também em muitas coisas
conhecermos os próprios objetos; e se que não conheço, utilidade que encon
acrescentares que, no entanto, de ne tro também na história dos três jovens.
nhum outro modo, senão pelas pala Pois, não podendo saber a maioria das
vras, conseguimos aprender o que se coisas, sei porém quanto é útil acredi
narra a respeito dos três jovens, isto é, tar nelas. No que diz respeito a todas 38
que com sua fé e religião venceram o as coisas que compreendemos, não
rei e as chamas, quais foram os hinos consultamos a voz de quem fala, a
de louvor que cantaram a Deus, quais qual soa por fora, mas a verdade que
as honras que mereceram do próprio dentro de nós preside à própria mente,
inimigo, responder-te-ei que todas as incitados talvez pelas palavras a con
coisas significadas por aquelas pala sultá-la. Quem é consultado ensina
vras já eram de nosso conhecimento. verdadeiramente, e este é Cristo, que
Pois eu jâ tinha na minha mente o que habita, como foi dito, no homem inte
significa três jovens, o que é forno, o rior1 6, isto é: a virtude incomutável de
que é fogo, o que é rei, o que quer dizer Deus e a sempitema Sabedoria, que
ser preservado do fogo e, finalmente, toda alma racional consulta, mas que
todas as outras coisas significadas por se revela a cada um quanto é permitido
aquelas palavras. Mas desconhecidos, pela sua própria boa ou má vontade. E
como aquelas “saraballae” (coifas), se às vezes há enganos, isto não acon
ficam para mim os jovens Ananias, tece por erro da verdade consultada,
Azarias e Misael; nem os seus nomes como não é por erro da luz externa que
me ajudaram ou poderíam ajudar a os olhos, volta e meia, se enganam: luz
conhecê-los. E confesso que, mais que que confessamos consultar a respeito
saber, posso dizer acreditar que tudo das coisas sensíveis, para que no-las
aquilo que se lê naquela narração his mostre na proporção em que nos é per
tórica aconteceu naquele tempo assim mitido distingui-las.
como foi escrito; e os próprios histo
riadores a que emprestamos fé não 9.
15 Is 1,
ignoravam esta diferença. Diz o profe 16 São Paulo, Ef3, 16, 17.
Capitulo XII
Cristo é a verdade que ensina interiormente
Agostinho consultamos os elementos deste
39 — Mas se para as cores cônsul- mundo, os mesmos corpos percebidos
tamos a luz, e para as outras coisas ' e os próprios sentidos de que a mente
que percebemos mediante o corpo se serve como de intérpretes para
352 SANTO AGOSTINHO
lhe proporcionaram a maneira de tor entanto que sabes com certeza a segun
nar-se idôneo para enxergar no seu da. Daqui compreenderías claramente
interior; assim como se eu te pergun que nada aprendeste pelas minhas
tasse sobre o que neste momento esta palavras: nem aquilo que ignoravas
mos tratando, isto é, se é possível ensi enquanto eu o afirmava, nem aquilo
nar algo pelas palavras, e tu, incapaz que já sabias otimamente; pois jura
de abranger com a mente toda a ques rias, ao ser interrogado parte por- parte
tão, julgasses, no primeiro momento, sobre as duas coisas, que a primeira te
absurda a pergunta. Precisava por isso era desconhecida e a segunda conheci
apresentar a pergunta como o permite da. E então chegarias a admitir tudo o
a tua capacidade de ouvir aquele mes que antes negavas ao conhecer que são
tre interior, e dizer-te portanto aquelas claras e certas as partes de que a ques
coisas que, quando me ouves falar, tão se compõe; isto é, que a respeito de
confessas serem verdadeiras e delas todas as coisas de que falamos, quem
tens certeza e que afirmas conhecê-las nos está ouvindo ou ignora que são
bem; onde as aprendeste? Responde verdadeiras, ou não ignora que são fal
rias, talvez, que fui eu quem tas ensi sas, ou sabe que são verdadeiras. No
nou. E então eu acrescentaria: Como? primeiro destes três casos, ou crê, ou
Se eu dissesse que vi um homem voan opina, ou duvida; no segundo, nega; no
do, as minhas palavras dar-te-iam terceiro, afirma: em nenhum dos três
tanta certeza como se me ouvisses aprende. Seja quem, depois das minhas
dizer que os homens sábios são melho palavras, ignora a coisa, seja quem
res que os tolos? Tu, sem dúvida, de conhece que ouviu coisas falsas e
pois de negar, responderias não acredi quem, interrogado, poderia responder
tar na primeira destas duas coisas, ou, as mesmas coisas que foram ditas,
mesmo que acreditasses, que ela é para demonstra que nada aprendeu pelas
ti completamente desconhecida, e no minhas palavras.
Capítulo XIII
A força das palavras não consegue mostrar nem sequer
o pensamento de quem fala
quem não sabe? E, no entanto, serve-se pensa, mas apenas para si e para
das mesmas palavras que também alguns, e não para aquele com quem
poderia usar quem sabe. está falando e para os demais. Por
42 Por este motivo, nem sequer resta às exemplo, se alguém em nossa presença
palavras o ofício de, ao menos, mani dissesse que o homem é superado em
festarem o pensamento de quem fala, valor por alguns animais, não pode
pois é incerto se- este sabe ou não o que riamos tolerá-lo e imediatamente refu
diz. Acrescenta o caso dos mentirosos taríamos com grande energia esta tão
é enganadores e facilmente compreen falsa e perniciosa afirmação; e talvez
derás que, com as palavras, eles não só por' valor ele entenda as forças do
não revelam, mas até ocultam o pensa corpo e com este nome enuncie mesmo
mento. De maneira alguma duvido que o que pensava, sem que minta, sem que
as palavras das pessoas sinceras se se engane no fato, sem que oculte as
esforcem e, por assim dizer, façam palavras gravadas na memória, agi
questão de manifestar o espírito de tando na mente alguma outra coisa,
quem fala, o que conseguiríam, com sem que por um lapso da língua emita
aprovação de todos, se não fosse per um som diverso do que corresponde ao
mitido aos mentirosos falarem. Entre seu pensamento; mas apena chama
tanto, várias vezes experimentamos em com um nome diverso do nosso a coisa
nós mesmos e nos outros que as pala que pensa: nós teríamos concordado
vras não expressam o que se pensa; e imediatamente com ele, se nos tivesse
vejo que isto pode acontecer de duas sido possível intuir o seu pensamento,
maneiras: ou quando as palavras que que não conseguiu explicar-nos com as
gravamos e muitas vezes repetimos palavras pronunciadas e com sua afir
saem da boca de quem pensa em algo mação. Dizem que a um tal erro pode
diferente, o que acontece volta e meia remediar a definição; assim, se nesta
quando cantamos um hino; ou quando, questão se define o que é valor (virtus),
ao contrário, nos escapam umas pala tomar-se-ia claro, dizem, que a contro
vras, em vez de outras, contra a nossa vérsia gira não em tomo da coisa,
vontade, por um lapso da própria lín senão da palavra: mas, mesmo conce
gua; também aqui não são ouvidos os dendo isto, quantos bons definidores
sinais das coisas que temos na mente. poderemos encontrar? E, no entanto,
Os mentirosos, sem dúvida, pensam tem-se discutido bastante sobre a arte
também as coisas que dizem, de forma de definir, o que não é oportuno tratar
que, embora não saibamos se falam a neste lugar, nem merece sempre a
verdade, sabemos porém que, eles têm minha aprovação.
em mente o que dizem, a não ser que Deixo de lado o caso de não ouvirmos 44
lhes aconteça uma das duas coisas que bem muitas coisas e disputarmos de-
disse acima: e se alguém objetar que, moradamente e muito sobre elas como
às vezes, podem acontecer, e que, se as tivéssemos ouvido. Assim como
quando acontecem, aparecem, ainda há pouco, quando quis dizer “miseri
que possam freqüentemente ficar ocul córdia” com uma certa palavra púnica,
tas e que eu, ao ouvi-las, às vezes tam sustentavas ter ouvido, daqueles aos
bém fique enganado, não me oponho. quais esta língua era mais conhecida,
43 Mas a este se acrescenta outro caso, que aquela palavra significa “pieda
bastante frequente e origem de inúme de”. Eu opunha-me, afirmando que
ros dissentimentos e disputas: quando saíra completamente da tua memória o
quem fala exprime, na Vterdade, o que que tinhas ouvido, porque me parecia
DE MAGISTRO 355
não “piedade” teres dito, mas “fé” e, o mesmo vocábulo “piedade” e “mise
no entanto, estávamos sentados bem ricórdia”. Estas coisas acontecem com
perto, e de maneira alguma estas duas freqüência, mas, como disse, vamos
palavras podiam levar a um engano deixá-las de lado, para que não pareça
pela semelhança do som. Por um longo que quero atribuir culpa às palavras
espaço de tempo pensei, todavia, que pela negligência de quem ouve ou tam
não soubesses aquilo que te fora dito, e bém pela surdez dos homens. O que
aflige mais é aquilo que disse acima,
no entanto era eu que não sabia o que
isto é, quando não conseguimos conhe
havias dito; pois, se tivesse eu ouvido cer o pensamento de quem fala, embo
bem as tuas palavras, não teria rece ra percebendo claramente pelo ouvido
bido a impressão por nada absurda de as palavras, e palavras latinas, e sendo
que em língua púnica se indicasse com nós da mesma língua.
Capítulo XIV
Cristo ensina interiormente,
o homem avisa exteriormente pelas palavras
Agostinho verdadeiras, louvam os mestres sem
45 — Mas eis que agora admito e con saber que elogiam mais homens doutri
cedo que, quando as palavras tenham nados que doutos: se é que aqueles
sido recebidas pelo ouvido daquele por também sabem o que dizem. Erram,
quem são conhecidas, a este possa pois, os homens ao chamarem de mes
também parecer que quem fala tenha tres os que não o são, porque a maioria
realmente pensado no seu significado; . das vezes entre o tempo da audição e o
mas daí decorre, por acaso, que tam tempo da cognição nenhum intervalo
bém aprendeu o que agora estamos se interpõe; e porque, como depois da
indagando, isto é, que aquele tenha fa admoestação do professor, logo apren
lado a verdade? E, porventura, os mes dem interiormente, julgam que apren
tres pretendem que se conheçam e rete deram pelo mestre exterior, que nada
nham os seus próprios conceitos e não mais faz do que admoestar.
as disciplinas mesmas, que pensam Mas sobre a utilidade das palavras, 46
ensinar quando falam? Mas quem é que, bem considerada no seu conjunto,
tão tolamente curioso que mande o seu não é pequena, falaremos, se Deus per
filho à escola para que aprenda o que mitir, em outra parte. Agora, avisei-te,
pensa o mestre? Mas quando tivera simplesmente, que não lhes atribuas
explicado com as palavras todas as importância maior do que é necessário,
disciplinas que dizem professar, inclu para que não apenas se creia, mas tam
sive as que concernem à própria virtu bém se comece a compreender com
de e à sabedoria, então é que os discí quanta verdade está escrito nos livros
pulos vão considerar consigo mesmos sagrados que não se chame a ninguém
se as coisas ditas são verdadeiras, de mestre na terra, pois o verdadeiro e
contemplando segundo as suas forças único Mestre de todos está no céu1 7 .
a verdade interior. Então é que, final Mas o que depois haja nos céus, no-lo
mente, aprendem; e, quando dentro de
si descobrirem que as coisas ditas são 17 Mt 23, 8-10.
356 SANTO AGOSTINHO