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Filme Flor do Deserto

Data de lançamento: 24 de junho de 2010 (Portugal)


Diretora: Sherry Hormann
Autoras: Waris Dirie, Cathleen Miller
Roteiro: Sherry Hormann, Smita Bhide, Wüstenblume
Produção: Waris Dirie, Peter Herrmann, Ulrike Ladenbauer, Susann Willmore
Atores: Liya Kebede, Sally Hawkins, Anthony Mackie; Timothy Spall

O filme retrata a história verídica da super-modelo Waris Dirie (Liya Kebede). Nascida
na Somália em 1965, no seio de uma tribo de pastores nómadas foi, aos 13 anos de
idade, vendida pela família para casar com um homem de 60. Nessa mesma altura foge
e, percorrendo sozinha o deserto somali durante vários dias, chega a Mogadíscio onde
uns parentes a acolhem e a enviam para Londres. Já em Inglaterra, foi empregada de
mesa até ao dia em que foi descoberta pelo fotógrafo Terry Donaldson (Timothy Spall).
A partir daí, a vida de Waris mudaria radicalmente, sendo transformada numa modelo
internacional. E foi no auge da sua carreira que, ao revelar ao mundo que fora vítima
de excisão feminina aos cinco anos, inicia uma luta contra a esta tradição, tornando-se
embaixadora da ONU.
Realizado por Sherry Horman, é baseado na autobiografia de Waris Dirie que se
tornou, em 1998, num best-seller em todo o mundo.

PÚBLICO

Resumo: À luz do tradicional debate na seara dos Direitos


Humanos entre universalismo e relativismo cultural, o trabalho aborda a
questão da mutilação genital feminina conforme explorada no filme Flor do
Deserto, de Sherry Hormann.

O filme Flor do deserto, dirigido por Sherry Hormann, conta a história


real de Waris Dirie (interpretada pela etíope Liya Kebede), somali nascida
numa tribo de nômades que veio a tornar-se uma famosa supermodelo, após
uma trajetória repleta de percalços. Baseado no livro autobiográfico escrito por
Dirie, o enredo desenvolve-se a partir da perspetiva da protagonista. Marcada
aos cinco anos de idade pela chaga física e psicológica decorrente do corte
genital, Waris foge de sua comunidade aos treze, ao descobrir estar prometida
em casamento a um homem bem mais velho. Depois da penosa travessia pelo
deserto, a jovem chega a Mogadíscio, capital da Somália, onde passa a viver
com a avó. Mais tarde parte para Londres, e aí perambula entre múltiplos
empregos, até que o fotógrafo Terry Donaldson (Timothy Spall) a descobre,
abrindo caminho para que ela decidisse ingressar na carreira de modelo. A
escolha não a isenta de preocupações, pois não só a polícia migratória inglesa
a persegue, mas tampouco a abandona o trauma e as dores da
operação/violência que sofrera quando criança. Direta ou indiretamente, o filme
aborda uma miríade de temas – tais como o debate sobre o que significa ser
mulher, entre outros –, porém o foco sem dúvida recai sobre a questão da
mutilação genital. Pelo prisma dos Direitos Humanos, a temática bem se
enquadra no clássico confronto entre universalismo e relativismo cultural.

A discussão acerca da própria nomenclatura da prática revela matizes


ora universalistas, ora relativistas, ora ecléticas. De início, empregou-se a
expressão técnica “circuncisão feminina”. Todavia, a patente similaridade entre
essa terminologia e a da “circuncisão masculina” suscitou críticas, pois
ensejava que se traçassem paralelos entre o que se considerava uma clara
violação de direitos humanos, de um lado, e um procedimento médico provedor
de benefícios higiênicos e à saúde, de outro. Em especial no meio acadêmico,
é evidente que controvérsias remanescem. Não obstante, em 1970 cunhou-se
a locução “mutilação genital” (female genital mutilation – FGM), que em 1990
seria adotada pelo Comitê Interafricano sobre Práticas Tradicionais Prejudiciais
à Saúde de Mulheres e Crianças, de Adis Abeba. Subsequentemente, a
Organização das Nações Unidas (ONU) acolheria a expressão em vários de
seus documentos, por recomendação da Organização Mundial da Saúde
(OMS). Tratar o ato em tela como “mutilação” permite que se saliente sua
gravidade, imputando-lhe uma conotação negativa, de violência ou agressão, e
legitimando sua condenação. Em 1999, em contrapartida, a utilização do termo
“corte” (female genital cutting – FGC), mais neutro, veio a ser defendida pelo
Relator Especial da ONU sobre Práticas Tradicionais, que chamou a atenção
para o risco de se demonizar culturas, religiões e comunidades ao privilegiar-se
a terminologia FGM (UNICEF, 2005, p. 1-2). Por mostrar-se concernido com
semelhante problemática, parece-nos que o relator das Nações Unidas
enunciou, em alguma medida, o espírito da doutrina do relativismo cultural.

A Recomendação Geral n. 14 do Comitê sobre a Eliminação da


Discriminação contra a Mulher (CEDAW), que explicitamente se remete aos
artigos 10 e 12 da Convenção sobre Eliminação de todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher (1979), fala em “circuncisão feminina” (CEDAW,
2011). Ao longo deste trabalho, usaremos como intercambiáveis as locuções
“circuncisão feminina”, “corte genital” e “mutilação genital”, e assim
procederemos mais por motivos estilísticos – arranjar sinônimos – do que por
qualquer afinidade normativa.

Conforme apontamos acima, a nossa preocupação primará pelo


embate entre universalismo e relativismo cultural. Contudo, posto que serão os
insights de Jack Donnelly que nos fornecerão suporte teórico, talvez “embate”
não consista na melhor palavra. Para além da mera dicotomia envolvendo o
pensamento universalista e o relativista, o autor encara-os como extremos de
um continuum, cujo centro apresenta uma área cinzenta que admite uma
miríade de meio-termos. Se o relativismo radical sustenta que a cultura é a
única fonte de normas, o universalismo radical postula a validade universal e
incontestável de regras morais e direitos. Embora conceba outras posturas,
Donnelly advoga pelo universalismo robusto (strong universalism), que
reconhece a existência de um núcleo duro de direitos humanos universais,
sujeitos, no entanto, a variações de acordo com os contextos locais, no que
tange a sua interpretação e às formas de implementação (Donnelly, 2003, p.
89-90).

Em outra obra, International Human Rights (2006), o autor enumera


três fundamentos para seu universalismo, ao passo que rejeita
explicações de teor histórico-antropológico ou ontológico (p. 39-48). O
primeiro argumento é o da universalidade funcional: os direitos humanos
representam, por enquanto, a resposta mais efetiva às ameaças que mercados
capitalistas e Estados soberanos – modelos que se difundiram mundo afora –
impõem à dignidade humana (Donnelly, 2006, p. 43). Ora, no caso estudado,
as pressões à integridade de Waris não advêm de fenômenos modernos, mas,
ao contrário, de costumes (tido como) tradicionais. O segundo fundamento
refere-se à universalidade legal atribuída à Declaração Universal dos Direitos
Humanos (DUDH). Ainda que verdadeira, a alegação complica-se quando
aplicada à situação da mutilação genital na Somália. O compromisso do
governo e instituições sólidas constituem fatores essenciais à efetividade dos
direitos humanos, entretanto o Estado somali vem experimentando desde 1991
uma guerra civil intermitente. Além disso, Mogadíscio não participa da
Convenção sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a
Mulher de 1979 (UNTC, 2011). Como terceiro baluarte ao universalismo,
Donnelly cita um profundo consenso internacional quanto ao conteúdo da
Declaração Universal, que “largely reflects its cross-cultural substantive
attractions. People, when given a chance, usually (in the contemporary world)
choose human rights, irrespective of region, religion or culture.” (Donnelly,
2006, p. 47) Veremos a seguir que nem sempre, particularmente em
comunidades demasiado fechadas em si mesmas, tal qual a tribo de Waris, a
opção pelos direitos humanos – isto é, a opção em prol da extinção da prática
da circuncisão feminina – é assim tão cabal quanto o autor propõe.

A despeito de tomarmos essas precauções, concordamos com


Donnelly em muitos pontos. Todavia, não cremos que pura e simplesmente
abraçar o universalismo robusto resolva o dilema que o filme Flor do deserto
ostenta. Isso porque não conseguimos entrever nenhuma interpretação que,
buscando ajustar os direitos humanos às demandas culturais locais – de sorte
a, por exemplo, justificar o corte genital –, não chegue a desnaturá-los por
completo. “Not all ‘interpretations’ are equally plausible or defensible.”
(Donnelly, 2003, p. 96) Além disso, não cabe aqui sugerir que há um choque
entre dois ou mais direitos humanos, entre, digamos, a equidade de gênero e a
liberdade religiosa – e note-se que a prevalência desta consagra, por vezes,
um argumento a favor da circuncisão masculina –, pois
nenhuma religião prescreve (nem como recomendável, nem como obrigatória)
a circuncisão feminina, embora não raramente os praticantes a compreendem
nesses termos (Althaus, 1997; WHO, 2010).

Estamos conscientes dos vícios inerentes à assunção de uma posição


categórica. Ao agirmos assim, talvez acabemos por julgar o Outro com base
em nossos pré-conceitos e preconceitos, e talvez involuntária e implicitamente
ergamos uma hierarquia “civilizado x não-civilizado”. Por outro lado, pautar-nos
por um distanciamento crítico exacerbado, apesar de consignar uma exigência
importante ao intelectual, pode desembocar, no limite, em irresponsabilidade,
em renúncia a nossos valores morais. Por conseguinte, defendemos: a
mutilação genital não é justificável, pois viola direitos humanos – o direito à
igualdade de gênero (arts. 2º e 3º da DUDH) e direitos da criança[2], já que a
grande maioria das circuncisões se dá em meninas e jovens com menos de 18
anos.

Conforme Donnelly (2003, p. 84) esclarece:

“Our problems arise, it seems to me, because we face competing


institutions. We want to recognize the importance of traditional values and
institutions as well as the rights of modern nations, states, communities, and
individuals to choose their own destiny”
 

De facto, tradição consiste numa das principais razões que sustenta a


prática do corte genital. E se no caso no cinema temos de defrontar uma
escolha entre direitos humanos e tradição, ficamos com os direitos humanos.
Reconhecemos que diferentes culturas devem ser respeitadas. Afinal, dado
que os símbolos, hábitos e regras que compõem uma cultura provêm de
apropriações seletivas de um passado e um presente em que não vigoram
consensos (Donnelly, 2003, p. 102), ela é, em última instância, expressão da
autonomia de seus membros. Qualquer cultura deve ser pensada menos como
um todo homogêneo e estático, e mais como um processo sempre inacabado.
Se uma tradição reflete a autonomia daqueles que a selecionaram,
determinadas tradições podem oprimir as parcelas da comunidade que não
tiveram voz no momento da seleção, e não têm voz para mudar o status quo
desigual em que vivem. Por si só, a tradição não se autolegitima.

Isso em teoria. Na prática a força da tradição não deve ser ignorada,


pois promove pressões bastante tangíveis sobre os indivíduos de uma
sociedade. Se uma criança não é capaz (nem lhe é dada a chance) de escolher
se quer ou não passar pela experiência do corte genital, sua mãe tampouco é
plenamente autónoma quando a submete à mutilação. Salvo exceções muito
específicas, uma mãe jamais permitiria que sua filha fosse sujeita a uma
operação tão nefastamente cruel e dolorosa; se o faz, é porque ou não percebe
como violento o procedimento, ou o encara como necessário e, destarte, o
tolera. É por isso que a afirmação de Donnelly – de que, se tivessem a
oportunidade de optar entre direitos humanos ou mutilação, as pessoas
definitivamente optariam pelos direitos humanos – deve ser lida com cautela.

Podemos especular que, se uma mulher imersa numa comunidade que


tradicionalmente realiza o corte genital não quer extirpá-lo, talvez ela assim
pense porque não se sente violada, porque não dispõe do desejo de não sofrer
a circuncisão. Ou talvez ela apenas não saiba que não precisa ser mutilada,
como Waris quando descobre que sua colega londrina não fora operada – e
logo em seguida lamenta ter sido forçada ao corte. A personagem Waris (e
provavelmente a Waris real) teria escolhido os direitos humanos, se a hipótese
lhe tivesse sido oferecida em tempo.

Outras mulheres, entretanto, talvez respondam igualmente à egípcia


citada em artigo da Anistia Internacional, ao falar a respeito de suas filhas: “Of
course I shall have them circumcised exactly as their parents, grandparents and
sisters were circumcised. This is our custom” (Amnesty International, 1997).
Diante desses casos, não há muito a fazer senão educar, instruir, esclarecer,
mudar a mentalidade. Sim, isso soa bastante como “missão civilizadora”,
parece odioso, e sem dúvida críticas pós-colonialistas razoáveis bem teriam
cabimento. Não obstante, deve-se levar a cabo tal empreitada? Nós
acreditamos que sim, e por duas razões. A primeira: a maneira como tem
ocorrido a implementação de ações em prol da transformação não é impositiva,
conforme se depreende do que está prescrito, por exemplo, no relatório da
UNICEF a respeito da circuncisão feminina, no item Changing the social
convention (2005, p. 23 e seguintes). A segunda: a mutilação contribui para
reproduzir uma hierarquia artificial e perniciosa entre o homem e a mulher e,
além disso, de acordo com a OMS, ela traz “no health benefits, only harm”
(WHO, 2010).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
 

ABU-SAHLIEH. Sami A. Aldeeb. To mutilate in the name of Jehovah or


Allah:legitimization of male and female circumcision. Medicine and Law, v. 13,
n. 7-8, p. 575-622, jul. 1994. Disponível em:
<http://www.cirp.org/library/cultural/aldeeb1/ #n17>. Acesso em: 31 de maio
2011.

ALTHAUS, Frances A.. Female circumcision: rite of passage or violation


of rights?. International Family Planning Perspectives (Guttmacher Institute), v.
23, n. 3, set. 1997. Disponível em:
<https://www.guttmacher.org/pubs/journals/2313097.html>. Acesso em: 31 de
maio 2011.

 
AMNESTY INTERNATIONAL. What is female genital mutilation?.
Library, out. 1997. Disponível em:
<http://web.archive.org/web/20070221013755/http://
web.amnesty.org/library/index/ENGACT770061997>. Acesso em: 31 de maio
2011.

CEDAW. General Recommendation No. 14 (ninth session, 1990).


General recommendations made by the Committee on the Elimination of
Discrimination against Women, 2011. Disponível em:
<http://www.un.org/womenwatch/daw/cedaw/
recommendations/recomm.htm#recom14>. Acesso em: 31 de maio 2011.

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