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Vítor Aguiar e Silva:

A POÉTICA CINTILAÇÃO
DA PALAVRA, DA SABEDORIA E DO EXEMPLO

GOVERNO CIVIL DO DISTRITO DE VISEU


Vítor Aguiar e Silva:
A POÉTICA CINTILAÇÃO
DA PALAVRA, DA SABEDORIA E DO EXEMPLO
FICHA TÉCNICA:

Título: Vítor Aguiar e Silva: a poética cintilação


da palavra, da sabedoria e do exemplo

Autor: Vários

Organizador: Fernando Paulo Baptista

Edição: Governo Civil do Distrito de Viseu

Depósito Legal: 254806/07

EDEN GRÁFICO, S.A.


Montagem, Gravuras, Impressão e Acabamentos:
Rua dos Casimiros, 21 - Telefs. 232425032 / 232425048
Fax 232422617
Apartado 2047
3501-909 VISEU

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ÍNDICE

I. ABERTURA

Decisão Paradigmática
(Fernando Paulo Baptista) ..................................................... 17

Vítor Aguiar e Silva:


Cidadão e Pensador do ser e do devir poético-cultural do Homem
(Acácio Pinto) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

Um Verdadeiro Universitário
(Maria Helena da Rocha Pereira) ............................................ 25

II. A HOMENAGEM EM PENALVA DO CASTELO

Uma Carreira Ímpar


(Leonídio Monteiro) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

Celebrar o Mérito
(Fernando Paulo Baptista) ..................................................... 35

Reencontro da Discípula com o seu Mestre


(Ana Maria Albuquerque) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41

“Aulas Magistrais” ou “Ensino Centrado no Aluno”?


(Álvaro Iriarte Sanromán) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45

«Lições de Mestre»
(Rosa Maria Goulart) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49

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Altiora Quaerere...
(Aníbal Pinto de Castro) ....................................................... 55

Vítor Manuel de Aguiar e Silva:


um clerc numa hora histórica de amortecimento do espírito
(Manuel Patrício) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59

Decisão Feliz...
(Lúcio Craveiro) ................................................................ 65

Palavras de Vítor Aguiar e Silva em Penalva do Castelo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67

III. A HOMENAGEM EM VISEU — PAÇOS DO CONCELHO

Vítor Aguiar e Silva: um percurso verdadeiramente notável!


(Fernando Ruas) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75

A «Lição» do Professor
(Fernando Paulo Baptista) ..................................................... 79

Aquele nosso Liceu!...


(João Lima) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101

Um Exemplo para todos os Académicos


(Aires do Couto) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105

Grande e Inteiro, Porque Alto Vive...


(José Carlos Seabra Pereira) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109

A Cintilante Sabedoria de um Mestre


(Helena Carvalhão Buescu) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115

Um «role model» do verdadeiro sentido de Universidade...


(Sérgio Machado dos Santos) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119

Palavras de Vítor Aguiar e Silva em Viseu .................................. 123

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IV. A HOMENAGEM EM VISEU — SOLAR DO VINHO DÃO

«... Nunca louvarei / o Capitão que diga: “Não cuidei”»


(Fernando Figueiredo) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131

Momento de Poesia
(Graça Magalhães) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135

Testemunho epistolar
(Aurélio Corbal / Fernando Paulo) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139

BREVE ANTOLOGIA DE ESTUDOS E ENSAIOS DE VÍTOR AGUIAR


E SILVA

A Minha Língua é Portugal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145

Língua materna e sucesso educativo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155

A ‘leitura’ de Deus e as leituras dos homens . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163

Teses sobre o ensino do texto literário na aula de Português .............. 169

As Humanidades e a Cultura Pós-Moderna .................................. 179

Da Língua na Política à Política da Língua .................................. 195

A hora de Elsenor no canto de Manuel Alegre .............................. 207

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I. COMISSÃO DE HONRA

Presidente: Maria Helena da Rocha Pereira (U. de Coimbra)

Abel Barros Baptista (U. Nova de Lisboa)


Acácio Santos da Fonseca Pinto (Governador Civil de Viseu)
Acílio Estanqueiro Rocha (U. do Minho)
Adelino Pereira do Aido (CAE de Viseu)
Adriano Duarte Rodrigues (U. Nova de Lisboa)
Aida Fernanda Dias (U. de Coimbra)
Aires do Couto (U. Católica – Viseu)
Alberto Correia (ProViseu)
Alberto Filipe Araújo (U. do Minho)
Alexandre Pessoa de Lucena e Vale (Colega dos tempos do Liceu)
Alexandre Ribeiro (Hospital de S. Teotónio – Viseu)
Álvaro Iriarte Sanroman (U. do Minho)
Ana Gabriela Macedo (U. do Minho)
Ana Maria Silva Ribeiro (U. do Minho)
Ana Paula Abrantes (Museu Grão Vasco)
Aníbal Pinto de Castro (U. de Coimbra)
Anselmo G. A. Sales (Banda Musical e Recr. de P. do Castelo)
António Joaquim de Almeida Henriques (Pres. da AM de Viseu)
António José Fonte Rabaça (Comandante do RI 14)
António Oliveira Cruz (Instituto Piaget)
António Pereira Bica (Colega dos tempos do Liceu)
António Pereira Felisberto (Reitor do Seminário Maior de Viseu)
Armando Amadeu Ferreira (Pres. da Junta de Freguesia de Real)
Arnaldo Saraiva (U. do Porto)
Artur Antunes (antigo Prof. do Seminário Maior de Viseu)
Aurélio B. Aleixo Corbal (General da Força Aérea)
Carlos Alberto Mendes de Sousa (U. do Minho)

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Carlos Ferreira dos Santos (Ver. da Cultura – CM de Penalva do Castelo)
Carlos Jorge Gomes (Direcção Regional de Educação do Centro – DREC)
Carlos Manuel Ferreira Cunha (U. do Minho)
Constantino de Azevedo Ramos (Comandante da PSP)
Cristina Robalo Cordeiro (U. de Coimbra)
Delfim Cardoso (Pároco de Real)
Eduardo Marçal Grilo (IST; ex-Ministro da Educação; F. C. Gulbenkian)
Emília Amaral (Jornal do Centro)
Felisberto de Figueiredo Marques (Folha de Tondela)
Fernanda Irene Fonseca (U. do Porto)
Fernando Augusto Machado (U. do Minho)
Fernando de Carvalho Ruas (Pres. da CM de Viseu)
Fernando J. Fraga de Azevedo (U. do Minho)
Fernando P. Santos Aguda (General do Exército)
Fernando Pinto do Amaral (U. de Lisboa)
Francisco Soares (U. de Évora)
Graça Magalhães (Poeta)
Gualter Jorge L. Mirandez (AC do Distrito de Viseu)
Helena Carvalhão Buescu (U. de Lisboa)
Henrique de Almeida (CEAR)
Henriqueta Maria de Almeida Gonçalves (UTAD)
Ilídio Leandro (Bispo de Viseu)
Isabel Cristina B. P. Mateus (U. do Minho)
Isabel Cristina C. Alves Ermida (U. do Minho)
Joanne Paisana (U. do Minho)
João A. F. Vieira Lima (Colega dos tempos do Liceu)
João Cotta (AIRV)
João Pedro de Barros (Instituto Politécnico de Viseu)
Joaquim Carmo da Fonseca (RR – Viseu)
Joaquim Fonseca (U. do Porto)
Jorge Fragoso (editor e escritor)
Jorge Morais Barbosa (U. de Coimbra)
José Amado Mendes (U. de Coimbra)
José Amaral Dias (Comandante da GNR)
José Augusto Cardoso Bernardes (U. de Coimbra)

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José Brito e Castro (CE da ES Alves Martins [antigo Liceu Nac. de Viseu])
José Carlos Seabra Pereira (U. de Coimbra)
José Luís de A. S. Cardoso Menezes (Pres. da AM de Penalva do Castelo)
José Manuel A. Mendes (U. do Minho)
José Manuel R. Curado (U. do Minho)
José Mariano Gago (IST; Ministro da CTES)
José Moreira do Amaral (Ver. da Cultura – CM de Viseu)
José Ribeiro Ferreira (U. de Coimbra)
José V. Pina Martins (U. de Lisboa; Ac. das Ciências)
José Vieira (Jornal da Beira)
Júlio Pedrosa (U. de Aveiro; CN de Educação)
Leonídio de F. Gomes Monteiro (Pres. da CM de Penalva do Castelo)
Lino Vinhal (Notícias de Vouzela)
Lúcio Craveiro da Silva (U. Católica / U. do Minho)
Luís Filipe de Almeida Mendes (GICAV)
Luís Miguel Sebastião (U. de Évora)
Luísa Álvares Pereira (U. de Aveiro)
Manuel Alberto Pereira de Matos (Curso de CR da U. Católica – Viseu)
Manuel Carlos G. Marques (Agrupto. Básico da Ínsua – P. do Castelo)
Manuel Ferreira Patrício (U. de Évora)
Manuel Rosa Gonçalves Gama (U. do Minho)
Maria Aldina Bessa R. Marques (U. do Minho)
Maria da Assunção Fernandes Morais Monteiro (UTAD)
Maria de Fátima Sousa e Silva (U. de Coimbra)
Maria de Lourdes Ferraz (U. de Lisboa)
Maria de Lurdes Rodrigues (ISCTE; Ministra da Educação)
Maria Eduarda Keating (U. do Minho
Maria Filomena P. Rodrigues Louro (U. do Minho)
Maria Isabel Pires de Lima (U. do Porto; Ministra da Cultura)
Maria Isabel S. Serra (CE da EB 2-3/S – P. do Castelo)
Maria Manuela Gouveia Delille (U. de Coimbra)
Maria Rute Vilhena Costa (U. Nova de Lisboa)
Moisés A. Lemos Martins (U. do Minho)
Ofélia Paiva Monteiro (U. de Coimbra)
Orlando A. Arnold Grossegesse (U. do Minho)

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Rita R. Gameiro Patrício Teixeira (U. do Minho)
Rosa Maria Baptista Goulart (U. dos Açores)
Rui Vieira de Castro (U. do Minho)
Sérgio Machado dos Santos (U. do Minho)
Telmo Verdelho (U. de Aveiro)
Teresa Almeida (Biblioteca D. Miguel da Silva)
Valdemar Gomes de Freitas (CV da Região do Dão)
Virgínia Soares Pereira (U. do Minho)

II. COMISSÃO ORGANIZADORA

Fernando Paulo Baptista (Coordenador)

Ana Maria Albuquerque Sousa (antiga aluna)


Fernando Figueiredo (2.º Comandante do RI 14)
Maria Armanda Albino Carvalho (antiga aluna)
Maria Lúcia Chaves Vasconcelos (antiga aluna)

Alcídio Martins Faustino (GA – Gov. Civil de Viseu)


Mónica Patrícia P. da Costa (Secret. do GA – Gov. Civil de Viseu)
Maria Leonor de Campos R. Poças (CM de Penalva do Castelo)
Dora Mariano (CM de Viseu)

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I Abertura
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DECISÃO PARADIGMÁTICA...

Com a naturalidade e a serena clarividência que caracterizam a sua acção de


homem estreitamente ligado às causas da educação e da cultura e de cidadão com
específicas responsabilidades no domínio da política, tomou o Governador Civil do
Distrito de Viseu, Dr. Acácio Pinto, a decisão que considero «paradigmática» de se
fazer registar, sob a forma memorial de um livro, aquilo que de mais relevante e
significativo aconteceu na homenagem pública prestada a Vítor Aguiar e Silva, em
11 de Novembro de 2006, em Penalva do Castelo e em Viseu.
Decisão «paradigmática», antes de mais, pela sua coerência intrínseca,
porquanto a figura incomparável do nosso homenageado («estudioso,
investigador, professor, pensador, teorizador e ensaísta fora de série e de craveira
verdadeiramente planetária» na área magna das Belas Letras e das Humanidades, tal
como ficou sobejamente demonstrado pelos diferentes Académicos e Universitários
que, com a sua palavra autorizada e sábia, tomaram parte nesta celebração...)
constitui para todos nós (por força e mérito de seu fulgurante potencial estésico,
teorético e de sonho, de capacidade crítica, hermenêutica e poética, de reflexão
profunda e visão alargada, de concepção coerente, consistente e projectiva e de
realização inspirada, inventiva, criativa e inovadora, por força e mérito, em suma, de
«sua indústria e engenho raro» [Camões: Lus., VIII, 71]), um alumiante e
inexaurível «paradigma», suscitador e orientador daquela postura ético-axiológica
e cívica marcada pela desassossegada e irrenunciável busca permanente da
sabedoria (sophia, phronesis, sagesse) e por aquele «honesto estudo» que alimenta
globalmente a vida do espírito e, mais especificamente, a vida do intelecto (nous) no
labor aturado, exigente, rigoroso e perfectivo da construção e da partilha do saber e
da cultura, na perspectiva de uma paideia superior, direccionada para o exercício
consciente, livre e responsável dos direitos e deveres da cidadania (politeia).
Mas decisão «paradigmática», também, pelo próprio facto de constituir
um «exemplo» digno de ser seguido nos actos celebratórios e consagratórios de

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todos os grandes vultos do passado e do presente onde quer que eles se
encontrem, dando-lhes voz para que se façam escutar, em seminal e replasmante
movimento ascensivo, na ágora da Pólis, face à onda de silêncio anestésico e
letal ou de gritaria insolente e balofa, rasteira e bárbara que se vem abatendo
avassaladoramente por sobre o legado fundacional e sacral da nossa história e
dos arquétipos que modelam pluralmente a nossa identidade de povo e de país
aberto ao mundo...
Na verdade, com este gesto aretaico (o mesmo é dizer: promotor do
sentido da excelência e do valor da aretê) e profundamente pedagógico e
paidêutico, ficou mais consistentemente conseguido e salvaguardado o desígnio
da celebração do mérito e da consagração das grandes referências do saber, da
cultura, da educação e da cidadania, desígnio esse que nos orientou, desde a
primeira hora, e que se consubstanciou na polifonia de uma cooperação inter-
institucional modelarmente protagonizada pelo Governo Civil do Distrito e
pelas Autarquias de Penalva do Castelo e de Viseu.
Assim sendo, não posso deixar de lavrar aqui, ex corde, a expressão do
indizível orgulho que sinto em ter nascido nesta antiquíssima e nobilíssima
capital da Beira Alta, da tão honrosa distinção que constitui o facto de me haver
sido cometida a incumbência de gizar e coordenar esta edição e do prazer
intelectual que daí pude fruir, bem como do raro privilégio que foi para mim o
ter podido partilhar tão intensamente a concepção e a organização da
HOMENAGEM PÚBLICA A VÍTOR AGUIAR E SILVA, com a «convocação» (não isenta
de circunstanciais lacunas ou omissões, ainda que involuntárias1...) e a imediata

1 São inúmeros, por exemplo, os professores universitários (entre outros...) que, com inteira e mais que justificada
pertinência, deviam (mereciam) ter integrado a Comissão de Honra desta homenagem... Todavia, as frequentes e
insuperadas anomalias e bloqueamentos funcionais a nível do correio electrónico (e-mails), os horários, as
ausências, as reservas de confidencialidade e dificuldades congéneres em obter os contactos pessoais junto dos
serviços institucionais de atendimento, os inevitáveis desencontros na mediação e circulação da informação e as
próprias falhas ocorridas na informatização e formatação final dos textos no processo de edição (tudo isso, sob a
pressão da urgência no aprontamento inter-institucional de programas e convites...) não permitiram que se fizesse
melhor... Assim, na qualidade de coordenador da Comissão Organizadora, cabe-me assumir também, em todo o
caso, a responsabilidade pelas mágoas ou desgostos causados e que, solidariamente, não posso deixar de sentir
como próprios... Resta-me formular, aqui, um sincero e penitente pedido de desculpas, ao mesmo tempo que
expresso a todos o mais cordial respeito e estima, com o pedido de que nem pelo que aconteceu deixem de
considerar, também como pertença sua, o presente testemunho bibliográfico...

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adesão de figuras tão notáveis e de instituições tão prestigiadas como as que
integram a Comissão de Honra, com o estimulante empenhamento e solidário
afecto dos meus Colegas da Comissão Organizadora e com aquele inexcedível
apoio de terem estado sempre connosco, o nosso Governador e os nossos
Presidentes das Câmaras do histórico, laborioso e cada vez mais moderno e
progressivo concelho de Penalva do Castelo e desta fascinante e sortílega
Cidade de Viriato e de Grão Vasco, essa cantada e encantadora «Senhora da
Beira, / Eternamente bonita / Fidalga e sempre romeira, / De uma beleza
infinita»...

Fernando Paulo Baptista


Coord. da Comissão Organizadora

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VÍTOR AGUIAR E SILVA: CIDADÃO
E PENSADOR DO SER E DO DEVIR
POÉTICO-CULTURAL DO HOMEM

Reputo a ideia, e a decisão, de homenagear o Professor Doutor Vítor


Aguiar e Silva, de um profundo alcance simbólico-alegórico mas, sobretudo, de
uma inquestionável relevância e projecção nas áreas da Educação, da Cultura e
da Cidadania. Merecem, pois, e desde já, uma especial palavra de elevado
apreço todos aqueles que idealizaram esta iniciativa, com particular destaque
para o Dr. Fernando Paulo Baptista, ilustre académico, homem da cultura e do
pensamento. Nele germinou e nele corporizou, ao agregar a si um vasto
conjunto de vontades pessoais e institucionais que decidiram entregar-se e dar-
se à sua concretização.
Foi neste contexto que o Governo Civil do Distrito de Viseu, desde a
primeira hora, se decidiu associar a esta homenagem pública, sendo para mim
uma grande honra e um orgulho indizível poder ficar ligado a ela tão
estreitamente. Em primeiro lugar, porque o homenageado é uma figura nada e
criada no concelho de Penalva do Castelo, no Distrito de Viseu; em segundo
lugar, porque se trata efectivamente de um académico brilhante, de dimensão
verdadeiramente internacional; e em terceiro lugar, porque estamos perante um
interpelante cidadão e pensador do ser e do devir poético-cultural do homem,
neste mundo em que a tentacular globalização tenta pré-determinar e
uniformizar os nossos comportamentos.
É meu entendimento que o Governador Civil, enquanto representante
do Governo, tem o dever, tem a missão, não só de não se poder alhear destes
eventos, mas, sobretudo e essencialmente, de os acarinhar, de os apoiar e de

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lhes criar as condições para que eles possam acontecer e se possam
perpetuar.
Mas merecem também, aqui e agora, para além da Comissão Organizadora,
uma saudação muito especial as Câmaras Municipais de Penalva do Castelo e de
Viseu, pelo seu empenhamento nesta homenagem e, precipuamente, pela parceria
relevante e de equilibrada horizontalidade e reciprocidade que foi estabelecida
entre as duas Autarquias e o Governo Civil. Desde o início que os seus Autarcas
acarinharam esta ideia e tudo fizeram para que ela ganhasse corpo e se
concretizasse: a Câmara de Penalva do Castelo, por ser o concelho onde nasceu
Vítor Aguiar e Silva; e a Câmara de Viseu, pelo facto de esta ter sido a cidade onde,
ainda jovem, o nosso homenageado frequentou o então Liceu Nacional e, podemos
dizer, despontou e começou a perspectivar a sua brilhante carreira académica.
Feitas estas referências, cumpre-me ser breve. Não devo alongar-me
muito mais, neste meu depoimento, sobretudo não devo falar-vos no âmbito da
Teoria da Literatura, a menina dos olhos do Professor Doutor Vítor Aguiar e
Silva. Isso ficará para outros: desde logo, para os Ilustres Académicos que, em
tão grande número, quiseram associar-se e marcar presença nesta homenagem
pública. Mas mesmo dentro desta linha de síntese e brevidade discursiva, não
posso, apesar de tudo, deixar de vos dizer que, com esta homenagem no Distrito
de Viseu, estamos a contribuir, contribuímos seguramente, para a rememoração
dos espaços e das pessoas, dos locais e das gentes, que forjaram muito da sua
personalidade e da sua vida.
Há quem diga, até, que o homem e os seus espaços formam um conjunto
único e um só sistema. E se aqui vou partilhar dessa opinião, é no pressuposto
de que esses espaços não são apenas espaços físicos, não são só espaços
geográficos: são muito mais do que isso! Eles entranham-se-nos na fundura da
alma e acabam por se transformar nos nossos espaços psicológicos, filosóficos,
estéticos, criativos... Raramente deixam de ser o incontornável espaço simbólico
de todas as viagens, de todos os regressos...
E é por isso que acredito que esta homenagem constituiu, foi para o
Professor Doutor Vítor Aguiar e Silva, uma visita a um espaço, ao espaço que
lhe deu uma matriz fundacional, o seu eixo identitário.
Viu, reviu o Professor Vítor Aguiar e Silva, na sua terra, na sua Penalva e
na «sua» Viseu modernas, reabrir-se o seu território, a sua espacialidade de
outrora, e saboreou o reencontro consigo próprio, através de rostos de ontem,

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pessoas de hoje, e descobriu, sob palavras antigas, cenas adormecidas de
reverências e de irreverências passadas...
Espero, esperamos todos, que continue o Professor a dar, a dar-nos, o seu
pensamento, a sua inquietação, a sua obra. Estamos, estaremos sempre, todos,
ávidos das suas palavras feitas texto, dos seus pensamentos feitos discurso.
Termino este breve apontamento, dizendo que, à semelhança da poesia,
que tanto o tem apaixonado e apaixona, a minha presença, a nossa presença na
homenagem não se explica na totalidade, porquanto ela me implica, ela nos
implicou... Tenha a certeza (e tem-na decerto!...) que estamos todos implicados
consigo! Com o Académico, com o Homem de Cultura, com o Cidadão.
Muitas felicidades ao Professor Vítor Aguiar e Silva, ao cidadão Vítor
Aguiar e Silva!

Acácio Pinto
Governador Civil do Distrito de Viseu

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UM VERDADEIRO
UNIVERSITÁRIO

Em Outubro de 1962, um jovem estudante


defendia tese de licenciatura de Filologia
Românica na Faculdade de Letras de Coimbra,
apresentando o trabalho Para uma interpretação
do Classicismo. Tema difícil, como se deduz do
título, desenvolvido com grande riqueza de conhecimentos e, o que é mais
importante ainda, com espírito crítico e reflexão própria. O júri, a que tive o
gosto de pertencer, atribuiu-lhe a classificação de 20 valores, que, naquela época
de austeridade, dificilmente encontraria precedentes.
No mês seguinte, Vítor Manuel Aguiar e Silva entrava para assistente,
com o encargo de reger as disciplinas de Teoria da Literatura e de Literatura
Portuguesa III. Se, nesta última, se estreou logo com a novidade de ensinar,
entre outros autores, Fernando Pessoa (sobre o qual não recaíra ainda a
avalanche bibliográfica dos últimos decénios), em teoria literária a sua acção foi
ainda mais notável, por se tratar de uma área que entre nós estava nos seus
primórdios e que flutuava entre correntes adversas, como o formalismo, o
estruturalismo, o “new criticism”, a semiótica e outras ainda.
Poucos anos depois, em 1967, Aguiar e Silva publicava o seu manual
Teoria da Literatura, que foi sempre remodelando e actualizando. Do seu
extraordinário e merecido êxito dizem suficientemente as edições que tem
conhecido (a do ano em curso é a 15ª reimpressão, a partir da 8ª), e não menos
a tradução espanhola em 1972, também ela com diversas reimpressões.
Acrescente-se a esta obra uma versão mais acentuadamente didáctica, Teoria e
Metodologia Literárias, no âmbito das publicações da Universidade Aberta, em
1990.
É ainda na área da Teoria da Literatura que se situa outro livro seu
fundamental, Competência Linguística e Competência Literária. Sobre a

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possibilidade de uma poética gerativa, a ser apreciado nas provas de concurso
para professor extraordinário, realizadas em 1977. Tomando como tema uma
questão candente — a possível compatibilização entre as teorias linguísticas de
Chomsky e uma poética gerativa — analisa-a e discute-a com a sua habitual
riqueza de informação e objectividade. Não admira que um trabalho assim
concebido tenha conhecido, três anos depois, uma tradução para espanhol e —
o que é mais surpreendente ainda — outra para japonês.
De resto, a internacionalização do seu nome viu-se confirmada pelos
sucessivos convites para leccionar em Universidades estrangeiras de prestígio,
como a de Indiana, nos Estados Unidos, onde foi professor visitante no ano
lectivo de 1981-1982, e de novo no segundo semestre de 1984; e ainda para
reger cursos breves, ou fazer conferências nas do Brasil ou de Espanha.
Mas é altura de falar na relevância dos seus estudos teóricos para o
esclarecimento de questões de Literatura Portuguesa. É o caso da sua tese de
doutoramento, Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa (1972), em
que aplica esses conceitos periodológicos a um considerável número de poemas
dispersos ou mesmo esquecidos, em cancioneiros de mão e miscelâneas, que
pesquisou nos fundos de diversas bibliotecas portuguesas e espanholas. Nessa
obra se confirma e alarga a sua excepcional preparação em crítica textual e
ecdótica, que aplica em especial aos estudos camonianos — preparação essa já
bem perceptível em artigos publicados na Revista de História Literária de
Portugal, que mais tarde seriam recolhidos com muitos outros que se lhes
juntaram, no livro com o aliciante título Camões. Labirintos e Fascínios (1994).
Essa actividade, aplicada à Lírica, e bem patente no estudo anteposto à edição
fac-simile da de 1598, atinge um dos seus mais altos cumes no prefácio à de Os
Lusíadas, em 2004.
Estas duas últimas obras enquadram-se numa iniciativa inovadora, uma
das muitas que ficaram a dever-se àquele que foi o fundador do Centro de
Estudos Humanísticos da Universidade do Minho e da revista Diacrítica e vice-
reitor dessa mesma instituição de Ensino Superior (para a qual se transferira em
1989, não obstante o reiterado apelo do Conselho Científico da Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra para que permanecesse nesta Escola) —
iniciativa essa que era destinada a assinalar datas marcantes, não por meio de
efémeras realizações, mas pela via de publicação fac-simile, devidamente
enquadrada por estudos prévios, das grandes obras da nossa literatura

26
quinhentista. É assim que, após a já referida edição das Rimas de Camões, em
1980, para comemorar o quarto centenário da morte do Poeta, se editam outras
para celebrar periodicamente a existência e desenvolvimento da própria
Universidade do Minho: Poesias de Sá de Miranda, no vigésimo aniversário;
Poemas Lusitanos de António Ferreira (estes com ensaios de mais dois grandes
especialistas, Thomas F. Earle e Aníbal Pinto de Castro), no vigésimo quinto; Os
Lusíadas, já mencionados, no trigésimo.
Do primeiro destes empreendimentos, permitimo-nos citar, pela sua
pertinência e também, infelizmente, pela sua acutilante actualidade, o parágrafo
final do prefácio de Aguiar e Silva:
“Como instituições que conservam, transmitem e criam cultura e ciência,
as Universidades, sem nunca se alhearem da problemática global das
comunidades nacionais e regionais a que pertencem e a cujo serviço estão,
devem transcender as querelas, as dissensões e os afrontamentos de natureza
ideológico-partidária que, conjunturalmente, podem agitar aquelas mesmas
comunidades. Foi dentro de tal espírito, e com a intenção de bem servir a
cultura portuguesa, que a Universidade do Minho decidiu realizar esta edição
fac-simile da 2ª edição das Rimas de Luís de Camões, assinalando assim a
passagem do IV centenário da morte do Poeta — um Poeta que, sendo o mais
português e o mais universal dos portugueses de todos os tempos, não pode
nem deve ser utilizado como bandeira de divisão entre os Portugueses, segundo
os cálculos, as conveniências e até as frustrações de quaisquer grupos, seitas ou
partidos. Ler e amar Camões, estudar a sua obra, honrar a sua memória, de
diversos, desencontrados e até opostos modos, tem de ser, deve ser “privilégio”
de todos os Portugueses e de quantos, por esse mundo além, falam a língua
portuguesa.”
Pela língua portuguesa muitas têm sido também as suas iniciativas, quer
no âmbito da Didáctica, quer na participação na Comissão de Reforma do
Sistema Educativo, quer na elaboração da proposta que deu origem à criação do
Instituto Camões. Mencione-se ainda o seu papel, seja como membro, seja como
coordenador, da Comissão de Avaliação dos Cursos de Línguas, Literaturas e
Culturas Clássicas e Modernas das Universidades Portuguesas, cuja acção, ao
contrário do que se tem lido na comunicação social, só não teve a desejada
eficácia por não lhe terem sido facultados pela hierarquia os meios de actuação
para tal necessários.

27
Nestas múltiplas actividades, de que estamos longe de referir a totalidade,
avulta sempre a figura do professor, do investigador, ou seja, do mestre
completo. De passagem, ter-se-á entrevisto o papel exercido como autoridade
académica, que não é de mais salientar. Da sua acção como Vice-Reitor pode
dizer-se sem exagero que ela constituiu uma pedra angular para a Universidade
do Minho alcançar o prestígio que actualmente atingiu.

Maria Helena da Rocha Pereira


Presidente da Comissão de Honra
Universidade de Coimbra

28
II A Homenagem em Penalva do Castelo
29
UMA CARREIRA ÍMPAR*...

Quero saudar todos quantos se dignaram


deslocar a Penalva do Castelo, nesta homenagem
pública ao Prof. Doutor Vítor Aguiar e Silva,
oriundo da localidade e freguesia de Real (uma
das 13 deste concelho). Sejam bem-vindos!
Permitam-me que cumprimente, em primeiro lugar, o Prof. Doutor Vítor
Aguiar e Silva, ilustre filho desta terra, o homem e o académico brilhante, que
está na génese desta efeméride, deste dia de particular e especial relevância
cultural para o concelho de Penalva do Castelo.
Saúdo os membros da mesa e todas as figuras ilustres provenientes de
diversas universidades e instituições do ensino superior de Portugal. Saúdo
todos vós aqui presentes, em Penalva do Castelo, para “celebrar o mérito,
consagrar as grandes referências do saber, da cultura, da educação e da
cidadania”.
Na Comissão de Honra desta homenagem, e, hoje, em Penalva do Castelo,
temos alguns dos mais ilustres especialistas e académicos, na área de Letras e
Ciências Sociais, das Universidades Portuguesas. Obrigado pela presença de
todos e de cada um de vós!

Penalva do Castelo é um concelho, com 140 km2, com potencialidades,


alicerçadas na beleza da paisagem natural e na riqueza do património histórico-
cultural e com potencialidades decorrentes da especificidade dos produtos
endógenos, que constituem a “trilogia de excelência produtiva” de Penalva do

* Título da responsabilidade da coordenação editorial.

31
Castelo: o vinho “Dão de Penalva”, o queijo “Serra da Estrela” e a maçã “Bravo
de Esmolfe” (originária de Esmolfe, uma freguesia e povoação a pouco mais de
1 Km deste local).
Quando, há algum tempo atrás, um grupo de antigos alunos,
impulsionados pelo entusiasmo do Dr. Fernando Paulo Baptista, propôs a
realização deste evento, considerei que o Município de Penalva do Castelo
deveria estar na primeira linha, porque se trata de um acto de justiça e do público
reconhecimento a um penalvense que “… por obras valerosas se vai da lei da
morte libertando” (para citarmos Luís de Camões, autor predilecto do
homenageado…).
Penalva do Castelo tem a honra de participar nesta homenagem pública ao
Prof. Doutor Vítor Aguiar e Silva, um dos mais relevantes estudiosos da
Literatura Portuguesa e o maior especialista no domínio da Teoria da Literatura,
com uma produção científica traduzida em diversas línguas e de reconhecido
mérito internacional.
O Prof. Vítor Aguiar e Silva, na década de 50, foi obrigado a deslocar-se para
a cidade de Viseu, para frequentar o antigo Liceu Nacional, a actual Escola
Secundária Alves Martins. O concelho de Penalva do Castelo só há cerca de 20
anos teve a possibilidade de oferecer aos jovens a oportunidade de aqui
completarem o ensino Secundário, na Escola Básica 2,3/S de Penalva do Castelo.
Nas últimas décadas, foi efectuado um enorme esforço no
desenvolvimento das mais diversas infra-estruturas; continuamos hoje a
trabalhar, de forma a que Penalva do Castelo seja um concelho onde dê cada vez
mais gosto viver e onde exista uma crescente qualidade de vida. Depois da
prioridade dada aos investimentos no saneamento básico e na remodelação da
rede viária, nos últimos tempos temos direccionado a nossa acção para as infra-
estruturas sociais, desportivas e culturais.
A Biblioteca Municipal, que acabámos de visitar, é um exemplo das novas
condições que pretendemos dar às gentes e, especialmente, aos jovens do
concelho de Penalva do Castelo.
O edifício, que está em fase de conclusão, na sua estética arquitectónica
simboliza aquilo que deve ser uma Biblioteca Municipal no século XXI: os
cubos que emergem do solo da Avenida Castendo, na sua robustez granítica,
sintetizam a função de fiel repositório do saber e cultura de um povo, de que a
Literatura é uma pedra basilar; a fachada principal, toda em vidro, permitindo a

32
entrada de raios de luz, simboliza a abertura a novos e múltiplos horizontes de
um saber e de uma ciência à escala global, que os suportes digitais e as
Tecnologias de Informação podem proporcionar.
O Prof. Doutor Vítor Aguiar e Silva, em recentes declarações a um jornal,
confessou ser “um leitor compulsivo” e um frequentador assíduo de Bibliotecas,
desde a juventude. Tendo edificado, de forma brilhante, uma carreira ímpar no
domínio universitário e construído, no domínio da análise e reflexão sobre a
literatura, um edifício tão sólido e perene como o granito da sua terra natal, o
Prof. Doutor Vítor Aguiar e Silva esteve sempre aberto aos novos desafios e
tendências no domínio da ciência literária e da teorização sobre a literatura.
Constitui, por isso, um excelente modelo para os jovens, na cada vez mais
necessária conciliação com a leitura e a descoberta de novos horizontes,
propiciada pela Literatura!
Termino, citando o homenageado: «Toda a grande poesia … é reflexão e
meditação sobre o homem, a vida, a morte, a história, Deus, o mistério da
própria poesia…» (Prefácio à obra de Manuel Alegre, Senhora das
Tempestades, 1998).
Penalva do Castelo está, assim, também hoje a viver um “momento de
Poesia”, porque estamos a recordar e a consagrar os feitos de um homem e a
reiterar o mérito de uma obra, brilhantemente edificada ao longo de uma vida,
que a história vai perpetuar.

Leonídio Monteiro
Presidente da Câmara Municipal

33
CELEBRAR O MÉRITO

Há ideias que, vindas das lunações que


vierem, trazem dentro de si a feliz e auspiciosa
lucilação das estrelas...
Foi assim que esta ideia de uma homenagem pública a Vítor Aguiar e
Silva veio a merecer imediatamente o entusiástico acolhimento das instâncias
políticas mais directamente ligadas à nossa terra e às nossas raízes (as
Autarquias de Penalva do Castelo e de Viseu, na pessoa de seus Presidentes,
respectivamente, o Dr. Leonídio Monteiro e o Dr. Fernando Ruas e, desde a
primeira hora, o Governo Civil do Distrito, na pessoa do seu titular, Dr.
Acácio Pinto) que possibilitaram as condições indispensáveis à sua
concretização.
Foi assim, igualmente, que ela suscitou o inequívoco e solidário
empenhamento, afectivo e efectivante, não só dos meus Colegas e Amigos
que integram a Comissão Organizadora, mas também e sobretudo a pronta
adesão, legitimante corroboração e motivador aplauso dos Professores e
Académicos da área dos Estudos Linguísticos, Literários e Humanísticos (e
não só...) da generalidade das nossas Universidades (desde a do Minho à dos
Açores), bem como das demais individualidades, instituições e organismos
que integram (como se pode verificar através dos documentos
programáticos...) tão representativa como prestigiante Comissão de Honra, a
que preside a figura consagrada e carismática da Prof. Doutora Maria Helena
da Rocha Pereira, da Universidade de Coimbra, por tudo quanto ela muito
especialmente significa no percurso académico e universitário do nosso
Homenageado.
Para todos, portanto e desde já, o nosso afecto e a nossa gratidão!...

35
Mas é meu entendimento que só se deve celebrar gratulatória e
jubilativamente o mérito na ágora da pólis, quando, como é o caso, ele é
construído na criatividade e na solidez de uma acção e de uma conduta exemplar
e constante, plasmada num projecto de vida e consubstanciada numa obra, cuja
singularidade marca intemporalmente a própria História e que, por isso mesmo,
a transcende, ao configurar uma incontornável e inquestionável referência para
todos, no exercício responsável da cidadania e na afirmação e na defesa de seus
valores cimeiros...
É por isso que tentar retribuir, de algum modo, ao Prof. Doutor Vítor
Manuel de Aguiar e Silva, cidadão nativo do lugar de Real, do progressivo e
ancestral concelho de Castendo (também dito Castelo de Pena Alva e Vila do
Santo Sepulcro...), a grandeza ímpar do que tem sido a sua dádiva sapiencial,
total e inteira, à Comunidade Académica das Belas Letras e das Humanidades,
ao universo englobante da Paideia e da Cultura e, através dele, à Cidade
Educativa não cabe nos parâmetros de uma lógica da reciprocidade ou da
similitude (similia similibus), em razão da abissal distância que medeia entre o
mérito ou éretÆ a celebrar e o ritual da própria celebração: uma singularidade
não tem comparação!...
Assim sendo, só no orbe transcendental dos “olímpicos” isso seria
possível, sobretudo quando pensamos na §n°rgeia [energeia] que tão
portentoso como magistral legado projecta na estratégica causa da educação
linguística e literária, depois de sabermos como sabemos que, sem a mediação
de uma língua (em primeira instância, a língua materna...), nenhum processo de
ensino e aprendizagem é concebível e realizável, nenhum problema é
interpretável e equacionável, em suma, nenhuma criação ou construção nos
diversos territórios do saber é susceptível de ser protagonizada por aquele que,
segundo o já milenar e ainda não refutado entendimento de Aristóteles na sua
Política, «é o único ser vivo dotado de palavra»: o homem, ı ênyrvpow [o
anthropos]!...
Efectivamente, a superioridade do diferencial qualitativo e distintivo da
personalidade daquele que é um dos nossos Concidadãos e Académicos mais
Ilustres na poliedria das suas dimensões de professor, pensador, investigador,
teorizador, ensaísta e homem-cidadão não deixaria de levar o próprio velho
Sócrates (se lhe fosse dado voltar a andar por aí, examinador atento e exigente

36
(§jetastikÒw [exetastikos]) e questionador irónico e maiêutico...) a proclamar
contra todos os oráculos e pitonisas que, na Atenas Universitária da nossa
globalizada Deméter, Vítor Aguiar e Silva conquistou, por mérito próprio, um
lugar indelével no Panteão dos Maiores...
Não foi, pois, sem fundamento ou apenas por um simpático gesto de
cortesia, que o reputadíssimo Garcia Bérrio, num colóquio sobre «A Teoria da
Literatura contemporânea: Tradição e Modernidade», organizado por Aguiar e
Silva, em 1990, na Universidade do Minho, disse constituir para ele raro
privilégio e subida honra poder estar perante «EL ARISTÓTELES DE LA POÉTICA
DEL SIGLO XX»!
Na verdade, quem é que ousará ignorar, ainda, o colossal esforço de
inteligibilidade, expresso na investigação e na reflexão por si levadas a cabo e
corporizado numa construção discursiva que alguém, de saudosa memória, com
a auctoritas que se lhe reconhecia e reconhece, denominou de «monumental»!
Refiro-me ao ajuizamento de Jacinto do Prado Coelho formulado na revista
Colóquio/Letras1, ajuizamento este, sintonicamente corroborado por Maria de
Lourdes Ferraz2, quando, em recensão contrastiva com outras importantes obras
do campo da Teoria da Literatura, considera a de Vítor Aguiar e Silva «um dos
mais invulgares monumentos de esforço científico da actualidade».
Trata-se efectivamente (como o pude sublinhar na Universidade do
Minho, no já distante 31 de Outubro de 19863...) de uma construção que, pelo
rigor e consistência dos seus pressupostos teoréticos, pelo vigor axiomático da
sua fundamentação, pelo coerente desenvolvimento e harmonização orquestral
do seu discurso, pelo altamente credível e impressionante caudal da
especializadíssima e actualizadíssima informação em que crítica e
criteriosamente se suporta, pela meticulosa probidade com que mobiliza a
«biblioteca» ímpar dos seus constituintes intertextuais, pela gigantesca
«enciclopédia» sapiencial que lhe serve de matriz e pela própria científica e
sedutora beleza da sua modelização textual, constitui, em qualquer parte do

1 Cf. a revista Colóquio/Letras, n.º 80/1984, pág. 27.


2 Cf. a revista Colóquio/Letras, n.º 86/1985, pág. 81.
3 Cf. a revista Diacrítica (Centro de Estudos Portugueses – Universidade do Minho), n.º 3-4, 1988-89, pp. 141-142
e Fernando Paulo Baptista: Tributo à Madre Língua, Coimbra, Pé de Página Editores, 2003, 245.

37
mundo, uma das mais fecundas e lúcidas sínteses no campo da Teoria da
Literatura.
Mas a actividade intelectual e ensaística e o magistério de Vítor Aguiar e
Silva estão bem longe de se confinar ao campo da teorização literária... Bastará
recordar, para o efeito, o que tem sido a sua multímoda acção inovadora e
propulsora, com o paradigmático e polifónico investimento sapiencial em
disciplinas como a Filosofia, a Epistemologia, a Linguística, a Semiótica, a
Teoria do Texto, a(s) Pragmática(s), a Poética, a Estética, a Narratologia, a
Hermenêutica e a Crítica Literárias, a Retórica, a Estilística, a Metodologia e
a Didáctica da Literatura, a Investigação e o Ensino da Literatura Portuguesa
Clássica, Maneirista e Barroca, da Literatura Portuguesa Moderna e
Contemporânea, tudo isso, acrescido da sua afincada e alumiante paixão pelos
Estudos Camonianos, materializada no seu incontornável Camões: Labirintos e
Fascínios!...
Por outro lado, quem é que não ficará deslumbrado ou encantado perante
a acutilância teorética desse fulgurante ensaio que dá pelo nome de «A “leitura”
de Deus e as leituras dos homens»4, perante a fina analítica, a sortílega estesia e
a fantástica e espectral revelação hermenêutica (de inspiração hamletiana...),
plasmadas em «A hora de Elsenor no canto de Manuel Alegre»5, perante a
argonáutica, cerrada e ariádnica indagação ecdótica em torno de «O problema
textológico da edição princeps de Os Lusíadas»6 ou perante a solar desvelação
e irradiante dilucidação dos tão complexos e intricados conceitos (e suas
correlações...) de modernidade, modernismo, pós-modernidade e pós-
modernismo, nesse fabuloso, estelar e semafórico estudo intitulado «As
Humanidades e a cultura pós-moderna»7?...
Já nem falo na unanimidade do sentir e do ajuizar de seus pares aquando
do convite que lhes formulei, de que são eloquente exemplo as palavras

4 Cf. a revista Colóquio/Letras, n.º 100/87, págs. 19-23.


5 Cf. Prefácio a Manuel Alegre: Senhora das Tempestades, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1997, 11-22.
6 Cf. Prefácio a Os Lusíadas de Luís de Camões, fac-simile da edição princeps de 1572, Universidade do Minho,
Braga, 2004, págs. VII-XLV.
7 Cf. Vítor Aguiar e Silva: «As Humanidades e a Cultura Pós-Moderna», separata do livro de ACTAS do Colóquio
de Estudos Clássicos A Antiguidade Clássica e nós: Herança e identidade cultural, Braga, Centro de Estudos
Humanísticos da Universidade do Minho, 2006, págs. 619-630.

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espontâneas e autênticas de Eduardo Marçal Grilo, quando (com mágoa de não
poder estar aqui presente, por motivos de serviço no estrangeiro...) me disse:
«Meu caro Fernando Paulo, agradeço-lhe profundamente reconhecido o
convite que me fez e que aceito com muita honra. O Prof. Aguiar e Silva, de
quem sou amigo e admirador, é, para além de um académico eminente, uma
grande personalidade e uma referência para o País e, sobretudo, para as novas
gerações que deveriam olhar para uma figura como esta, com respeito e com o
sentido da emulação»; ou, então, o autorizado testemunho de Maria Helena da
Rocha Pereira, quando (depois de também lamentar, num misto de pena e
nostalgia, o seu impedimento presencial por força de um inadiável compromisso
que já havia assumido...) confessa com jubilosa naturalidade e convicção:
«Vítor Aguiar e Silva foi simplesmente o aluno mais brilhante de entre os
milhares de que tive a sorte de ser professora e é indiscutivelmente um dos mais
notáveis académicos da Universidade Portuguesa»...
Tudo isto, a validar categoricamente aquele que veio a ser o trajecto
curricular do aluno excepcional que já se desenhava premonitoriamente na sua
instrução primária, em Casal das Donas (1946) e na Castendo de então, e que se
confirmou e consolidou sob o magistério dos saudosos e competentíssimos Luís
Simões Gomes e Augusto Saraiva (entre outros prestigiados mestres do velho
Liceu Nacional de Viseu, na década de cinquenta...), aluno que obteve, como é
sabido, as mais altas classificações de que há memória...
Mas para vos dizer mais acabadamente dessa figura portentosa e
fulgurante (não sei mesmo se predestinada...) a quem também «não falta na vida
honesto estudo, com longa experiência misturado, nem engenho...», está aí, na
polifonia de perspectivas e de registos vivenciais e expressionais, o credenciado
elenco das intervenções previstas no programa, aproveitando o ensejo para
saudar com especial afecto e estima os seus Insignes Autores.

Fernando Paulo Baptista


Coord. da Comissão Organizadora

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REENCONTRO DA DISCÍPULA
COM O SEU MESTRE

Meus Senhores:

Penalva do Castelo é, hoje, o espaço das


emoções, do regresso sentimental às “nossas raízes beirãs”1, ao tempo da
infância, ao berço das nossas primeiras letras, à nossa primeira casa, às
memórias que ficam…
Quiseram os deuses, pela mão amiga do Dr. Fernando Paulo, que este
encontro (reencontro) da discípula e do seu Mestre se desse na terra que a ambos
viu nascer, embora dela fisicamente afastados pelos desencontros e pelos
desafios da vida.
É para mim uma grande honra integrar a Comissão Organizadora desta
feliz homenagem, como Penalvense e como Aluna.
O Senhor Professor Doutor Vítor Manuel de Aguiar e Silva foi meu
Professor de Teoria da Literatura na Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra. Uma disciplina imponente, fulcral, no nosso percurso académico,
direi mesmo, no nosso percurso existencial.
Senhor Professor, é com muito orgulho que refiro o seu nome nas minhas
aulas, na Escola Secundária de Sátão, o concelho do seu avô paterno, dizendo,
com vaidade, que fui sua aluna. É com grande entusiasmo que continuo a seguir
os livros que publica, as entrevistas que dá, os artigos que escreve em jornais e
revistas dedicados à literatura e ao seu ensino. Confesso que me inscrevi,
algumas vezes, em Jornadas de Formação só para o ouvir falar.

1 Palavras de Vítor Manuel Aguiar e Silva (correspondência com a autora deste texto)

41
Continuo a vê-lo como o Professor que se impunha pela sua competência
científica, pela sua erudição vastíssima e pelo seu amor à Literatura, que
transparecia no olhar, na voz e nos gestos largos que nos enlevavam.
Foi pelo fascínio das suas palavras que aprendi a ler muitos textos e a
querer ler muitos outros, tomando consciência da profundidade do acto de ler.
Em 1984, o Anfiteatro IV da Faculdade de Letras, “virado para a Igreja de
S. Salvador”2, ficava repleto de alunos finalistas dos Cursos de Línguas e
Literaturas e de outros que frequentavam a cadeira como opção. O silêncio era
sagrado. Seguíamos atentamente as lições que preparava “cuidadosa e
amorosamente”3. Chegava com vários livros e recomeçava exactamente, no
mesmo lugar, na mesma linha, onde nos tinha deixado na semana anterior. Não
ditava, não tinha caderno de apontamentos, dizia de cor, com o coração, a vasta
sabedoria que nos iluminava naquelas tardes de Coimbra, a cidade mítica.
Nunca faltei às suas aulas, eu que até faltava a muitas, e tentava escrever tudo o
que dizia, mas perdia-me nas linhas que as suas reflexões desencadeavam em
mim…
A Teoria da Literatura, da Almedina, foi um dos poucos livros que
comprei com a minha mesada de bolseira. É um dos livros que mais sublinhei
(e sublinho), reconhecendo a dificuldade em encontrar as ideias essenciais,
porque nada nele é acessório. Há, indubitavelmente, um antes e um após a
Teoria de Aguiar e Silva, no âmbito dos Estudos Literários em Portugal e no
mundo.
O sistema modelizante primário, a nossa Língua, no qual se institui o
sistema modelizante secundário, a Literatura Portuguesa e de Expressão
Portuguesa, muito lhe devem pelo contributo inigualável da sua profunda e
reconhecida investigação.
Para os alunos, os grandes Professores ficam num pedestal e lá
permanecem. Parafraseando Jacques Derrida, pela mão do meu Mestre, o que
fica da Universidade, o que fica da Escola, o que verdadeiramente conta é o que
fica e perdura nos olhos e aos olhos dos seus alunos.

2 Idem, ibidem.
3 Idem, ibidem.

42
Nestas palavras de gratidão ao Senhor Professor Vítor Manuel de Aguiar
e Silva, estendo o meu afecto a todos os professores que me ajudaram a
percorrer o caminho árduo, mas fértil de “Labirintos e Fascínios”, da Língua e
da Literatura Portuguesa, a de Camões e do Mundo.

Com muita estima e ternura, a sua aluna:

Ana Maria Albuquerque Sousa

43
“AULAS MAGISTRAIS”
OU “ENSINO CENTRADO
NO ALUNO”?

Excelentíssimo Sr. Presidente da


Câmara de Penalva do Castelo,
Ilustres membros da mesa.
Caro Professor Vítor Aguiar e Silva,

Saíamos “estafados” das aulas do Professor Aguiar e Silva, eu e os meus


colegas do Mestrado em Língua e Literatura Portuguesas. Exaustos. Mas era
uma sensação de cansaço particularmente agradável.
As aulas magistrais do Professor Aguiar e Silva eram outra coisa. E não
apenas pelos seus conteúdos. Era surpreendente a sua capacidade de prender a
atenção dos que estávamos na sala. De nos cativar. Tanto foi assim que,
pessoalmente, me levou a duvidar sobre a minha clara orientação para a
linguística. Mas, voltei a enveredar pelos caminhos da linguística. E, mesmo
nestes caminhos, o Professor Aguiar e Silva foi também o responsável pelo
empurrão definitivo que me levou ao mundo da lexicografia, como já referi
numa colaboração para o livro Largo mundo alumiado. Estudos em homenagem
a Vítor Aguiar e Silva1, publicado pelo Centro de Estudos Humanísticos, da
Universidade do Minho, Centro que o professor fundou em 1980, então com o
nome de Centro de Estudos Portugueses.
Há muito tempo que defendo que o principal papel do professor
universitário é “orientar” as pesquisas, as descobertas, as leituras dos alunos.

1 Sousa, Carlos Mendes de e Rita Patrício (eds.) (2004) Largo Mundo Alumiado. Estudos em Homenagem a Vítor
Aguiar e Silva. Braga: Centro de Estudos Humanísticos — Universidade do Minho.

45
Não é isto o que hoje, no modelo de Bolonha, conhecemos como “ensino
centrado no aluno”? Mas, o que aconteceria neste modelo de Bolonha com as
magistrais “aulas magistrais” de professores como Aguiar e Silva?
O processo de Bolonha não deverá alimentar uma retórica fácil do
“aprender fazendo”, que entende a aquisição de conhecimentos como um
“elemento limitador”. Não é assim que entendemos o “ensino centrado no
aluno”.
Fico surpreendido com a quantidade de vezes que encontro alusões à
questão da aquisição de conhecimentos como um “elemento limitador” no
ensino universitário. Será que agora só se pode falar em “resultados de
aprendizagem, destrezas, competências, habilidades, etc.”? É apenas isto o que
um aluno universitário necessita? E o que se passa com a aquisição de
conhecimentos? Já não faz falta adquirir/transmitir (e, principalmente, gerar)
conhecimentos na Universidade? Passaremos a formar na Universidade apenas
“gestores do conhecimento”? Deveremos formar apenas licenciados orientados
para uma actividade profissional? Deverá ser o mercado, os empregadores, as
leis da oferta e da procura, a ditar-nos que conhecimentos, que formação
deverão ter os nossos licenciados?2
Surgem, então, perguntas como: Para que servem as Humanidades? Qual
é a sua utilidade? Mas, “lamentavelmente”, não me parece que as Humanidades
sirvam para produzir muito “lucro” e, portanto, terão pouco interesse para
eventuais financiadores. Neste contexto, as letras podem parecer um “luxo” de
que deveremos prescindir.
Até agora, as Humanidades tinham uma “função coesionadora das
comunidades”3. As Humanidades tinham uma utilidade: o que podemos chamar
a construção do discurso nacional, que justificava a reserva de uma fatia do
orçamento dos Estados para o estudo da Literatura, da Língua, da Cultura, etc.
Mas hoje há outros meios para alimentar este sentimento de pertença a uma
comunidade nacional: a TV, a Selecção Nacional, etc. Por outro lado, quando os

2 “Profesores por el Conocimiento”:


Sobre el proceso de convergencia europea” (http://firgoa.usc.es/drupal/node/21989) [Novembro de 2006].
3 Torres Feijó, Elias (2004): “Sobre objectivos do ensino e da investigaçom da literatura”, em Sousa, C. M. de e
R. Patrício (2004), Largo Mundo Alumiado. Estudos em Homenagem a Vítor Aguiar e Silva. Braga: Centro de
Estudos Humanísticos - Universidade do Minho; págs. 221-249.

46
discursos parecem ser outros (a construção europeia, a globalização), cabe
perguntarmo-nos: para que serve alimentar este discurso da construção
nacional?
Isto para não dizer que Bolonha, por vezes, parece ser mais um pretexto
para que alguns “expertos” transformem o nosso trabalho num inferno de
burocracias, com muitos “cronogramas”, “mapas”, “fichas”, “guias”, “créditos
ECTS”, “resultados de aprendizagem”, etc.4.
Experto (expert) aqui oposto, seguindo Beatriz Sarlo5, a intelectual:
“[Expertos que] na continuidade técnico-administrativa de um Estado que
estabelece alianças com grupos que procuram poder e expansão económicos,
põem o conhecimento técnico ao serviço dos fins pragmáticos do Mercado”6
Apesar de tudo, sou optimista quanto ao Processo de Bolonha e à
implementação de novas metodologias de ensino-aprendizagem. Porque
acredito que a Universidade tem bons profissionais.
Mas: que saudades das magistrais “aulas magistrais” do Professor Aguiar
e Silva!

Muito Obrigado.

Álvaro Iriarte Sanromán


Universidade do Minho

4 Vd. Manifesto de Professores e Investigadores Universitários:


¿Qué Educación Superior Europea? (http://firgoa.usc.es/drupal/node/16133) [Novembro de 2006].
5 Sarlo Sabajanes, Beatriz (1993) “¿Arcaicos o marginales? Situación de los intelectuales en el fin de siglo”, em
Punto de Vista, 47.
6 Celada, Maite (2006) “De prisa, de prisa, oye, Brasil”, em Unidad en la diversidad. Portal informativo sobre la
lengua castellana (http://www.unidadenladiversidad.com/opinion/default.htm) [Novembro de 2006].

47
«LIÇÕES DE MESTRE»

Começo por recordar dois textos que nos


deixam algum consolo, em tempo de viva defesa
da auto-aprendizagem e de desprestígio dos
professores, de enfraquecimento da noção (e,
certamente, da missão) de mestre. Consolo
talvez por serem a «contra-corrente», à revelia
de uma certa doxa pedagógica circulante, mas que vem ao encontro das nossas
melhores experiências como alunos ou, gostaria de poder dizer, como
discípulos. Falo de As Lições dos Mestres, de George Steiner1, e de Pourquoi des
Professeurs?, de Georges Gusdorf 2.
Trata-se de dois livros preciosos e estimulantes, tanto pelo que nos dão a
pensar como pelo ânimo que nos trazem, ao arrastarem-nos para a crença de que a
nossa sociedade, dominada pela tecnologia e pela realidade virtual, não prescinde
de mestres que ensinem com paixão e de discípulos que, tomados pela paixão do
conhecimento (a libido sciendi, escreve Steiner), estejam dispostos a aprender.
Georges Gusdorf fala mesmo de uma «metafísica da pedagogia», ou,
como também assinala, uma «pedagogia da pedagogia», assente no pressuposto
de que «la constitution d’une vie personnelle ne saurait bien évidemment
coïncider avec le certificat d’études, le baccalauréat, un diplôme d’ingénieur, ou
encore tel ou tel rite de passage, si humble ou si élevé soit-il, sous le contrôle du
Ministère de L’Éducation Nationale»3. Isto significa, ainda no dizer de Gusdorf,
que a pedagogia do mestre se desenvolve numa espécie de contrapeso da
pedagogia do professor, que ensina a todos o mesmo, enquanto aquele dirige
uma mensagem particular a cada um.

1 George Steiner, As Lições dos Mestres, Lisboa, Gradiva, 2005.


2 Georges Gusdorf, Pourquoi des Professeurs?, Paris, Payot, 1963.
3 Idem, ibidem, p. 22.

49
E é, sobretudo, a esses — que umas vezes temos a felicidade de vir a
conhecer e que outras nos são apenas «companheiros de viagem» através dos
livros — que devemos o melhor do nosso percurso ou o mais gratificante do
nosso trabalho. Foi assim que pensei na mestria do Senhor Professor Vítor
Manuel de Aguiar e Silva, a quem a Universidade dos Açores muito deve, a
quem eu pessoalmente muito devo.
Evoco em especial a sua presença magistral, de sabedoria e transmissora de
confiança (atitude tão cara e tão necessária a quem começa uma carreira), numa
altura em que a recém-criada Universidade dava os primeiros passos e que ele
acompanhou no seu processo de amadurecimento institucional e afirmação no
domínio científico. Distante de nós pelo saber; próximo de nós pela cordialidade,
pela colaboração, pelos sábios e prudentes conselhos e recomendações. A sua
figura tutelar foi-se estendendo, ao longo dos anos, a todo o Departamento de
Línguas e Literaturas Modernas: com a orientação de dissertações de
doutoramento; com o saber que nos transmitia nas suas conferências; com a sua
participação em provas académicas (onde também se colhia excelente informação
a anotar) e, de um modo geral, pelo próprio facto de lá estar e de estarmos
confiantes em que, se precisássemos de um conselho ou, às vezes, tão-só de um
apoio moral, bem saberíamos que poderíamos contar com ele.
Apesar do indiscutível valor do seu trabalho teórico, não posso esquecer
o gozo que me proporcionaram as qualidades da sua obra de pendor mais
ensaístico, a começar por Maneirismo e Barroco na poesia lírica portuguesa,
por onde, imediatamente a seguir à Teoria da Literatura, a minha leitura de
Aguiar e Silva começou. E, se dantes eram o manancial de informação, o
sentido de rigor da teoria, o discernimento das escolhas, que me
impressionavam, mais tarde foi o fulgor do ensaísta que não perde a sólida
fundamentação teorética a chamar-me a atenção. No fundo, rigor teórico,
sagacidade hermenêutica, paixão pelo ensino conjugam-se para nos dar a
imagem do completo investigador e do exímio professor.
Sem inoportunas ilações de carácter biografista (embora nesta hora
estejam, efectivamente, em causa «a Obra e o Homem» (arrisco a tradicional
expressão), atrevo-me a dizer que o discurso ensaístico ou didáctico-ensaístico
constituem os lugares em que a sua personalidade intelectual mais se revela. O
que se compreende por estes serem espaços de liberdade onde o racionalismo
(que em Aguiar e Silva nunca o é exclusivamente) da teoria se desloca

50
temporariamente para a retaguarda, deixando vir ao de cima o júbilo da leitura,
o «prazer do texto», a assunção do risco por conta própria na busca dos sentidos.
Onde melhor esplende, enfim, a originalidade do pensamento e a criatividade da
escrita. Características estas que fazem com que esse discurso moderadamente
retórico (no bom sentido em que o melhor ensaio o é) seja atravessado por uma
visível estética da sedução. As pessoanas emoções da inteligência? Talvez.
Um discurso valorativo quantas vezes sustentado por uma difícil, mas
sempre tão equilibrada, relação entre emoção e razão, entre rigor teórico e
argúcia crítica, um inegável amor dos textos (amor da literatura, amor da língua,
filologia), uma elegante e tão sugestiva metaforização, a sábia amenização de
peso teórico, que nunca se deseja rebarbativo ou tirânico, mostram, com efeito,
que discurso da teoria, discurso do ensaio e discurso didáctico se interfecundam
e se complementam, deixando perceber uma personalidade que os unifica e
neles deixa a sua indelével marca autoral.
Por tudo isso, o ensaio do Professor e do conceituado especialista de Teoria
da Literatura constitui uma modalidade a merecer aprofundado estudo, na medida
em que desfaz aquelas posições teóricas que rejeitam que este género discursivo
possa ser um estudo académico servido por aturada investigação científica e o
situam antes do lado de uma escrita meramente intuitiva e assistemática.
De teor ensaístico são também os seus textos sobre didáctica da literatura,
porquanto igualmente revelam, na cientificidade e no rigor da argumentação, a
originalidade das interpretações, uma construção estilística muito própria e o
permanente ensaio de um pensamento que, ávido de saber, não cessa de se
ultrapassar a si próprio em cada nova etapa reflexiva.
Ainda no campo da didáctica — ou, como ele preferia, do ensino —,
parece-nos que todo o seu labor científico, de investigador, se desenvolveu para
desembocar no excelente Professor que sempre foi. Recordo, entre tantas outras,
a sua participação no «Congresso de Didáctica da língua e da literatura»,
realizado na Universidade de Coimbra em 1998, onde, com o brilho de sempre,
foi desmontando, ponto por ponto, as metáforas que lhe deram o subtítulo,
«Filtros, máscaras e torniquetes»4, as duas últimas como modo de dizer o

4 Cf. «As relações entre a teoria da literatura e a didáctica da literatura: filtros, máscaras e torniquetes», in
Didáctica da língua e da literatura, vol. I, Coimbra, Almedina, 2000.

51
entrave ao bom exercício pedagógico-didáctico na relação da teoria com a
leitura dos textos literários.
Lembro ainda o ensaio publicado em O Escritor (nº 1, 1993) intitulado «A
teoria da desconstrução, a hermenêutica literária e a ética da leitura», onde
defende a fundamentação teorética como base de sustentação das operações
hermenêuticas. Em qualquer dos casos, deixa como saldo a ideia, noutros locais
expressa implícita ou explicitamente, de que a teoria serve acima de tudo como
um «guia de leitura» para fecundar a prática e que da análise propiciada pela
mesma fica sempre um mais além a que só a hermenêutica pode responder,
resposta que depende da sensibilidade e da enciclopédia cultural do leitor.
Acrescentaria, segundo a capacidade de expressão escrita do crítico que elabora
a partir dela as metáforas (ou outros recursos retórico-estilísticos) que melhor
exprimam o seu entendimento dos textos. Aguiar e Silva não só o afirma ou
insinua como, através desse dizer, pratica as recomendações que teórica,
ensaística e didacticamente enuncia. Com recurso à metaforização, fascinado,
assim parece, como os escritos de imaginação, com a capacidade inventiva da
língua5.
Nalgumas ocasiões surgem essas originais construções figurativas nos
momentos em que, de forma muito convicta, traça uma espécie de programa de
vida, intelectual e humano, tanto mais afirmativo e melancolicamente (que é
ainda uma forma de dizer: «com paixão») assumido quanto mais avança em
extensão e maturidade a sua experiência de professor e de investigador6.
Porque perfilho a concepção de que a aprendizagem e a, hoje tão
proclamada, aquisição de competências, não dispensam a transmissão de
conhecimentos de alguém mais sábio e mais bem informado para alguém menos

5 Apenas dois exemplos, retirados de cada um dos textos mencionados, e ambos respeitantes ao problema da leitura
e da interpretação: «Os significantes textuais são, em parte, veículos vazios que podem ser anfitriões de inúmeros
passageiros, hóspedes e parasitas» (O Escritor, nº1, 1993, p. 78); ««Proporciona [o discurso da teoria da literatura]
utensilagem terminológica, conceptual e metodológica para a análise e a interpretação do texto literário individual
e concreto, mas, perante este texto, o leitor, o intérprete e o crítico têm de empreender uma viagem em última
instância solitária, com a experiência vital de cada um, com a memória literária própria e intransferível, com as
emoções, os sonhos e os fantasmas de cada um.» (Didáctica da língua e da literatura, vol. I, p. 8).
6 Comprovam-no a abertura do texto apresentado no Congresso de didáctica da língua e da literatura (cf. op. cit.,
p. 3) e mais ainda o sugestivo e esclarecedor ensaio autobiográfico intitulado «Retrato do Camonista quando
Jovem», Santa Barbara Portuguese Studies, Vol. VII (2003), pp. 369-378.

52
sábio e menos bem informado, é que acho salutar e enriquecedor amealhar,
como tesouro, com amor e admiração, as «lições dos mestres». Entre as
melhores colocaria as do Senhor Professor Aguiar e Silva. Por tudo isso, a nossa
infinita gratidão. Incluem-se neste possessivo os meus colegas do Departamento
de Línguas e Literaturas Modernas, nomeadamente Fernando Jorge Vieira
Pimentel, seu aluno em Coimbra, Paulo Meneses e Maria do Céu Fraga, que
foram seus orientandos de doutoramento, António Manuel Bettencourt
Machado Pires, ex-Reitor e ex-Director do Departamento, que me solicitaram os
associasse a esta homenagem e a este público reconhecimento.

Rosa Maria Baptista Goulart


Universidade dos Açores

53
ALTIORA QUARERE...

Senhor Governador Civil de Viseu


Senhor Presidente da Câmara Municipal
de Penalva do Castelo
Senhores Promotores deste Preito de Amizades
Queridos Familiares do Doutor Aguiar e Silva
Prezados Colegas
Senhoras e Senhores
Caríssimo Vítor:

É com profunda emoção que agradeço esta oportunidade de dar voz


pública, neste seu torrão natal, aos sentimentos de fraterno afecto e profunda
admiração intelectual que, há mais de 40 anos, me ligam a Vítor Manuel de
Aguiar e Silva, e cuja força me envolveu, desde a veneração a seus Pais, à
empatia com seus irmãos (cuja memória aqui evoco comovidamente), à
gratíssima devoção por sua esposa, à carinhosa atenção com que lhe vi
nascer e crescer os filhos e já vejo desabrochar e florir nos seus netos!
No final de um dos mais belos poemas através dos quais Camões a
ambos nos fascinou e continua a fascinar, afirma o altíssimo Poeta que “não
pode ser limitada / a água do mar em tão pequeno vaso”. É essa mesma a
imensa dificuldade que sinto para traçar, em escassos minutos, um perfil
sequer fugidio da multímoda e sempre tão rica personalidade de Aguiar e
Silva!...
Preferi por isso falar ex abundantia cordis, recorrendo mais à minha
memória afectiva do que e ao conhecimento mais ponderado que os anos

55
trazem do que a uma análise que ele por certo merece, mas que, para não sair
distorcida, precisaria de extensas páginas estiradas por horas. E assim
farei!...
Para além da tua lucidíssima e poderosa inteligência, encontro em ti
uma insaciável sede de conhecer melhor e de saber mais, para, a partir dessas
qualidades, exerceres e apurares a construção de um conhecimento que tudo
procura esquadrinhar para melhor compreender; uma sede que a mais
recheada das bibliotecas jamais logrou apagar. Era curioso ver a voracidade
com que, naqueles nossos tempos de jovens assistentes, abrias os pacotes de
livros das compras que fazíamos para o Instituto D. Carolina Michaëlis de
Vasconcelos ou para o Centro de Estudos Românicos da nossa Faculdade de
Letras de Coimbra, e os mal velados ciúmes que despertavas no nosso
saudoso Mestre Doutor Costa Pimpão por não ter sido ele o primeiro a
desvelar aqueles novos saberes!...
E depois, a tua agudíssima sensibilidade na utilização desse saber
adquirido, para melhor penetrares o texto poético, assim colocado perante a
teoria e a interpretação.
Sensibilidade, onde à maneira de Valéry, um dos fascínios
paradigmáticos da tua juventude, uma aparente impassibilidade estética
porventura tingida de uma visível tendência para um narcisismo de raízes
gregas, que te preparou para a busca de uma inefável poesia pura de que
Camões viria a ser porventura a tua expressão preferida.
Não se julgue, porém, que essa concepção da literatura, do seu estudo e
do seu ensino havia de transformar Aguiar e Siva num nefelibata, acastelado
na sua torre de marfim, cujas escadas franqueasse a raros apenas. A impedi-
lo disso estava a sua humanidade bem portuguesa, onde a sedução do
concreto se exerce, cada vez com maior força. E daí o seu gosto pelos
períodos poéticos de transição e de luta, em especial pelo que, partindo do
classicismo renascentista, atinge o barroco, em que tanto inovou entre nós, à
maneira de um Dâmaso Alonso nas cátedras das Universidades espanholas,
inaugurando desassombradamente um novo período na história dos estudos
literários em Portugal, em que a Teoria da Literatura, como outras disciplinas,
desde a História Literária à Crítica Textual, ganhou um verdadeiro direito de

56
cidade, mas sem nunca deixar a sua função ancilar, ou propedêutica, porque
posta ao serviço do conhecimento e da fruição da poesia.
Quando ainda adolescente, dava os seus primeiros passos por estes
caminhos de incessante busca da beleza, costumava escrever nas páginas de
guarda daqueles voluminhos dos Clássicos da Editora Teixeira ou da Seara
Nova, uma espécie de ex libris, que desde cedo me deu dele uma ideia muito
exacta e creio que justa — ALTIORA QUAERO!
Interpretei-a sempre como um lema da saudável ambição que iria,
durante o resto da vida, presidir ao seu trabalho de Professor e de
Investigador. Queríamos subir para atingirmos o melhor e para contribuir
que outros o atingissem!...
Agora, quando, como disse o nosso Camões, “Vão os anos decendo, e
já do Estio / Há pouco que passar até o Outono”, que balanço poderemos nós
fazer, meu querido amigo, da via crucis que percorremos? Onde estão os
sonhos que sonhámos, as alegrias que vivemos, as dores que suportámos, as
cicatrizes que, quer queiramos quer não, nos fazem ainda doer a alma?
Resta-nos por certo a satisfação do dever cumprido e a esperança,
embora dia a dia mais ténue, de que não tenha sido em vão a nossa passagem
pela vida e pela Universidade.
Tantos desses caminhos percorremos juntos...
Umas vezes em sintonia, outras em discordância. Lembras-te de
quando, na tua casa de Braga, começávamos a embirrar um com o outro a
meio do jantar, a Eugénia Maria nos mandava ir embirrar para os sofás da sala
e nós aí continuávamos, até que eu me ia deitar na cama que o Miguel me
cedia, para depois tu apareceres a bater à porta a perguntar se eu tinha frio,
respondendo com um berro a dizer que não enquanto sorria comigo mesmo,
por me lembrar da Tia Doroteia, da Quinta de Alvapenha, no Morgadinha dos
Canaviais, a perguntar ao sobrinho — “Tu já dormes, Henriquinho?” — com
medo de que a chama da vela lhe deitasse fogo à casa?
Mas nunca nos zangámos.
Quantas vezes, no mais aceso dessas nossas discordâncias, mais
quanto às aparências do que quanto às essências, não sentíamos estarmos
mais próximos do que nunca?!

57
Na nossa travessia de tantos desertos, a chegada aos oásis, de pés
doridos e almas em sangue, fazia das dores a alegria de um reencontro...
Como se a distância fosse o crisol onde se apurava, a grau de fino oiro, a
essência dessa nossa amizade!
É certo que não atingimos os altiora. Mas, moldados no barro da res
universitaria pela mão exigente do nosso Mestre Costa Pimpão, cuja
memória me é grato (e te é grato!) evocar neste momento, algo semeámos —
tu muito mais do que eu... — nesse campo fecundo que para sempre
deixámos, ainda que amargurados, por não vermos nele condições
adequadas à abundância e fartura da messe que almejávamos. E que dessa
sementeira me diz a esperança “que tudo dará talho”, hão-de ainda frutificar
espigas ricas e loiras.
Mas mesmo que tivéssemos vivido a nossa Universidade, só para
podermos estar hoje aqui, já teria valido a pena! Que Deus esteja contigo e
com os teus por muitos e dilatados tempos!
Vemo-nos agora menos, mas talvez sintamos ainda melhor. Sobretudo
quando resolveres pagar-me um almoço que me vens prometendo em
Moledo, há pelo menos uma década e que não vejo maneira de comer...

Aníbal Pinto de Castro


Universidade de Coimbra

58
VÍTOR MANUEL DE AGUIAR
E SILVA:
UM CLERC
NUMA HORA HISTÓRICA
DE AMORTECIMENTO DO ESPÍRITO

Reflectindo sobre a estrutura de valores que encontramos na obra


filosófica de Max Scheler e que José Ortega y Gasset acolheu e difundiu em
ensaios de análise e divulgação, construí eu próprio um poliedro axiológico
aplicável à vida e em particular à educação a que dei o nome de pirâmide
axiológica. Dois são os corpos constitutivos dessa pirâmide: o dos valores
materiais e o dos valores espirituais. Aquele é composto por três secções: na
base, os valores vitais ou de sobrevivência; por sobre a base, os valores práticos;
por sobre os valores práticos, os valores hedonísticos relacionados com o corpo.
Em todo o bloco, ou tronco de pirâmide, dos valores materiais assenta a
estrutura piramidal dos valores espirituais, cujos planos são os seguintes: o dos
valores lógicos, de verdade, ou cognitivos; o dos valores estéticos ou da beleza;
o dos valores éticos, ou do bem; o dos valores religiosos, ou do santo, ou da
ordem das ultimidades, ou de sentido.
Acreditando que o sujeito axiológico é uno — é a pessoa de cada um na
sua singularidade radical e intransaccionável —, sou de opinião que não há —
não pode haver — incompatibilidade entre qualquer ordem ou plano de valores.
Por exemplo: entre os valores de verdade e os de beleza, ou entre os de beleza
e os de bem, ou entre qualquer valor de natureza espiritual e qualquer valor de
natureza material, com realce para os valores hedonísticos. E isto em virtude do
que designei por princípio de ressonância: há na pirâmide axiológica, como no
teclado do piano, uma lei da ressonância, com harmónicos superiores e
harmónicos inferiores. Premida a tecla de um valor, todos os harmónicos vibram

59
nas respectivas cordas. Há, além disso, o que também designei por princípio da
hierarquia axiológica, com valores subordinantes e valores subordinados. O
valor de um plano superior é sempre subordinante; o valor de um plano inferior
é sempre subordinado. A pirâmide axiológica é uma estrutura rigorosamente
hierárquica. O topo rege a totalidade da pirâmide, entendamo-lo como Deus, o
Santo, a Razão Última ou o Sentido.
A que propósito vem esta inesperada arremetida inicial de cariz
filosófico? Já me explicarei. A vida humana é toda ela um confronto com os
valores. Para o homem, ser não basta. É necessário, é imperativo, valer. O
verdadeiro mundo em que se desenrola, e assume, a vida humana é o mundo
onto-axiológico, em que o que somos vale, realiza-se em valor, e o que valemos
é, concretiza-se, plasma-se em ser.
E assim pode ser avaliada a vida de um homem. Que valores assumiu?
Que valores cumpriu? Que obra axiológica realizou? Nenhuma destas perguntas
pode ser feita a propósito de qualquer bicho. Só pode ser feita — e tem de ser
feita — a propósito do homem, do bicho humano. Quanto mais força se
manifestar na resposta tanto mais esse homem é humano, realiza a sua
humanitas, potencia evangelicamente os seus talentos. Tanto mais esse homem
é humano, e menos bicho. Tanto mais na sua fronte resplende a estrela do
sentido e menos a treva do absurdo.
Na boca daquele que desperdiçou a vida, que na crueza da verdade final
não viveu, coloca Raul Brandão estas palavras trágicas: «Eu não vivi! Eu não
vivi!». E a garganta hiante da tragédia é mostrada no seu horror até ao fim. Diz,
clama, grita, esse homem: «O que eu quero é tornar a viver. A minha saudade é
esta. O que eu quero é recomeçar a vida gota a gota, até nas mais pequenas
coisas. Não reparei que vivia e agora é tarde.» (Raul Brandão, Húmus, Lisboa,
Vega, 3.ª edição, 1991, p. 38.)
Entre o que viveu e o que não viveu separa-os o fio da lâmina, o fio da
navalha de Somerset Maugham: de um lado o sentido, do outro lado o
absurdo.
Vítor Manuel de Aguiar e Silva, que desejamos e esperamos tenha ainda
à sua frente uma longa vida aberta ao florescimento e frutificação de muitas e
valiosas realizações, tem a cabeça coroada pela pirâmide axiológica, luminosa e
resplandecente, da base ao topo. Ele pode dizer, como Terêncio, que nada do que
é humano até agora lhe foi alheio. A ele aplico, na intimidade de mim, seu amigo

60
e grato admirador, o retrato do homem perfeito, do aristotélico spoudaios, da
pequena ode de Ricardo Reis, do genial Pessoa:

Para ser grande, sê inteiro: nada


Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Conheci de perto Vítor Manuel de Aguiar e Silva em 1986, no seio da


Comissão de Reforma do Sistema Educativo. Quero dizer: conheci-o na
proximidade do trabalho em comum. Porque já o conhecia e admirava antes,
como colega ilustre e autor daquela bíblia que é a sua Teoria da Literatura,
fonte cristalina em que bebi muita água fresca, e como figura pública que se
tornou cedo e útil me foi sempre pela altitude do seu pensamento e nobreza da
sua postura cívica. Mas este conhecimento diríamos hoje que era virtual.
Conhecimento real, real, foi o iniciado em 1986. Na Comissão, e nas inúmeras
ocasiões de convivência pessoal e até de trabalho a dois — a quatro mãos,
como se diz em linguagem pianística… —, eu pude fruir o fulgor da sua
inteligência, a vivacidade — por vezes direi que ardente — do seu espírito
crítico, a lâmina do seu rigor, a cornucópia da sua informação transbordante e
sempre fresca, a exigência inconcessiva da sua ética, o apelo e o apego
apaixonados à qualidade, a afectividade quente do amigo e companheiro, a
lealdade frontal e a frontalidade leal no relacionamento, o amor pátrio —
imaculado, mas moderado e controlado por uma inteligência sempre atenta
aos estremecimentos do coração — a tudo alimentar naquele sonho que foi o
projecto de uma educação redentora para Portugal, para um Portugal a redimir.
Foi um privilégio o meu encontro com Vítor Aguiar e Silva na Comissão de
Reforma do Sistema Educativo, onde desempenhámos bem o nosso papel —
todos!... — , não sendo da nossa responsabilidade o desprezo vanidoso e
irresponsável que foi votado à Proposta Global de Reforma que entregámos
ao Governo, pelas mãos do Ministro da Educação, no dia 14 de Julho de 1988.

61
Os resultados das políticas educativas entretanto sucessivamente seguidas por
equipas políticas de auto-supostos iluminados estão à vista. A degradação
qualitativa é tanta que já o nariz a sente. O genuíno humanismo de Vítor
Aguiar e Silva desde sempre pugnou por outras orientações, desde sempre
percebeu a que abismos ignaros de incultura o País ia inevitavelmente
desembocar. Fomos companheiros e concidadãos fraternos nesse duro
combate, em que tudo fizemos para que a educação não fosse desqualificada
em mera formação profissional, sob o disfarce do termo «formação», a que
insidiosamente se retirou o adjectivo.
Em outro palco me foi dado cooperar academicamente com Vítor Aguiar
e Silva, aquando do desempenho das suas funções de Vice-Reitor da
Universidade do Minho. Um Vice-Reitor de luxo, evidentemente. Transparecia
na sua actuação nos júris académicos, a que presidia, o alto sentido da dignidade
e nobreza da instituição universitária. Estávamos ali perante o universitário
autêntico. Carregava nos seus ombros o milénio, o quase-milénio, que a
Universidade europeia leva de existência. Com a leveza da simplicidade,
apanágio dos grandes, sentíamo-nos a celebrar um sacramento, quais sacerdotes
do saber e do intelecto e do espírito. Onde estava e pontificava Vítor Aguiar e
Silva estava e pontificava a Universidade.
Ora não há Universidade sem investigação científica, sem criação de
conhecimento. Foi honra para mim o convite que Aguiar e Silva me dirigiu, a
certa altura, para integrar o Centro de Estudos Lusíadas, mais tarde rebaptizado
de Centro de Estudos Portugueses. Aí me pude aperceber do que era essa
essencial dimensão do académico. Era notável o seu sentido estratégico, a noção
dos campos de investigação que importava explorar, os projectos que importava
realizar, as equipas que se impunha constituir, as publicações que iam
corporizando a actividade desenvolvida, o desenho dinâmico convergente de
toda a actividade do Centro para que ele pudesse alcançar os objectivos
definidos e a missão que lhe estava estatutariamente consignada. Pude apenas
participar em algumas reuniões, as reuniões anuais do Conselho. Mas de cada
vez que ali nos reuníamos eu sentia a satisfação que sentem as crianças (ou
sentiam…) na Escola. Eu estava na Escola, numa Alta Escola.
A vida é difícil. É também exaltante. Nela sofremos, nela saboreamos
grandes satisfações íntimas. Quando cheguei à Reitoria da minha Universidade,
coube-me a alegria de ver que o Prémio Vergílio Ferreira foi atribuído a Vítor

62
Manuel de Aguiar e Silva e a felicidade de presidir à Sessão Solene de entrega
do respectivo prémio. Tão feliz evento entendi-o eu como um prémio que me foi
atribuído e entregue a mim próprio. Disse para comigo mesmo: — Rapaz, a vida
não te tem tratado mal.
O mesmo digo hoje, ao poder trazer aqui perante o próprio — e perante
esta ilustre assembleia de amigos e admiradores seus, e perante a sua
companheira de amor e de existência a dois que é a sua mulher, e ainda os seus
filhos e genros — o meu testemunho de admiração e gratidão a este homem, a
este universitário, a este intelectual, a este clerc, que é honra de Real, de Penalva
do Castelo, de Viseu, de Coimbra, de Braga, de Portugal, da Humanidade.
Escreveu Frederico Nietzsche, e Heidegger longamente o glosou em Was heißt
Denken?: O deserto cresce. Oh! Como tem crescido! Como o niilismo tem
progredido! Mas também na maior aridez é verdade que a vida rompe com
imparável força. O deserto floresce, também. Com o seu olhinho brilhante, e
húmido de tensão interior, com o vermelho da sua determinação em ser a afluir-
lhe à superfície do rosto, Vítor Manuel de Aguiar e Silva surge inopinadamente
frente ao criador de Zaratustra e diz-lhe: — No deserto que cresce, eu sou uma
flor da humanidade persistente. E resistente.
Obrigado, querido amigo e irmão humano — bela expressão do poeta
quatrocentista francês, François Villon!... — por tudo o que lhe devemos e pelo
muito que ainda tem para nos dar e aumentar a nossa dívida. Tem o último
capítulo do romance Nome de Guerra — Judite, de José de Almada Negreiros,
este título: «Finalmente, o protagonista toma o partido das estrelas». Tem aqui
consigo um largo friso de amigos que querem testemunhar-lhe que também nós
tomámos, a seu respeito, desde sempre, o partido das estrelas.

Manuel Ferreira Patrício


Ex-Reitor da Universidade de Évora

63
DECISÃO FELIZ... *

É evidente que esta homenagem que


oficialmente prestamos ao Prof. Aguiar e Silva, o
honrado não é tanto ele quanto somos sobretudo
nós. Foi um privilégio conviver e aprender com
quem na Universidade caminhava à nossa frente,
a perder de vista, no campo sobretudo das
Humanidades não só na Crítica e na História da Literatura pois nesse campo
brilha para além da fronteira portuguesa mas no rico perfil humano, no sentido
superior do ideal universitário, no rigor e fertilidade das suas iniciativas e
realizações modelares de modo tão raro entre nós que até parece que estou
exagerando!
Mas isto tudo já foi dito de muitas maneiras e eu não queria agora repeti-
lo. Vou antes referir-me a um facto concreto e expressivo em que eu andei
envolvido pessoalmente.
O Prof. Aguiar e Silva veio para a Universidade do Minho por ocasião
daqueles dias também agrestes do 25 de Abril. Veio da Universidade de
Coimbra onde se formou e principiou a ensinar e onde, portanto, nasceu e
floresceu a sua vida e o seu ideal universitário. Todos ficamos muito ligados à
universidade onde nos formamos, mas no Prof. Aguiar e Silva essa ligação era
mais estreita e diferente.
Jovem professor de literatura o seu nome surgia já entre os melhores
docentes daquela Universidade. Por outro lado, o Prof. Aguiar e Silva
identificava-se de tal maneira com a sua Universidade nas suas exigências
científicas, no valioso nível crescente dos seus professores no século XX, na sua
presença singular e preponderante na cultura portuguesa que dificilmente

* Título da responsabilidade da coordenação editorial.

65
julgava possível trocar a Universidade de Coimbra por outra universidade e
portanto também pela jovem Universidade do Minho.
Mas o problema punha-se e a Universidade do Minho tentava convencê-lo a
permanecer connosco pois a sua presença e exemplo era indispensável ao
crescimento da jovem Escola que também pretendia ser rigorosa e já
universariamente pujante desde o seu nascimento. Precisamente na Comissão
Instaladora eu era o único vogal de Humanidades, o que fazia de mim, por isso,
um dos mais interessados na sua vinda definitiva para Braga. A luta foi lenta e
difícil. Felizmente a Senhora Professora Maria Eugénia Madeira Aguiar e Silva
deu-nos uma ajuda preciosa e decisiva, pois tendo sido muito bem acolhida pela
sociedade cultural de Braga, desde o princípio, inclinava-se para Braga e a
decisão finalmente tomada pelo Prof. Aguiar e Silva de permanecer nesta
Universidade creio que muito lhe deve. Por isso, temo-la muito presente neste
dia e a homenagem que prestamos ao Prof. Aguiar e Silva também lhe pertence
de modo muito particular.
A riqueza cultural e humana que o Prof. Aguiar e Silva prestou a esta
Universidade que muito lhe fica a dever não só no campo das Humanidades e
no notável desenvolvimento das Letras mas também na influência decisiva no
seu governo de modo que ela, desde o princípio, procurasse realizar, o melhor
possível, o ideal de Universidade que o Prof. Aguiar e Silva lhe trouxe de
Coimbra de modo tão excelente e decisivo.
Por isso, em nome especialmente dos primeiros timoneiros, sinto-me feliz
por lhe poder dizer, hoje, publicamente, com toda a justiça, um muito obrigado
muito sincero.

Lúcio Craveiro da Silva


Ex-Reitor da Universidade do Minho

66
Ex.mo Senhor Governador Civil de Viseu
Ex.mo Senhor Presidente da Câmara Municipal
de Penalva do Castelo
Ex.mos Membros da Mesa
Ex.mas Autoridades Civis, Académicas,
Militares e Religiosas
Minhas Senhoras e meus Senhores,

Não quis escrever um discurso, só registei neste papel algumas notas


sumárias, porque hoje, aqui, nesta Casa representativa do Concelho onde estão
as minhas raízes, o meu sangue, a minha memória, os meus afectos e os meus
sonhos da infância, quero que fale sobretudo o meu coração.
Em primeiro lugar, agradeço aos promotores e aos organizadores desta
homenagem, nas pessoas do Dr. Fernando Paulo Baptista, um amigo
fraterno, um professor incomum pela sua competência científica e pelo seu
saber pedagógico, e da Dra. Ana Maria Albuquerque, minha antiga aluna da
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, que teve a generosidade
de me escrever uma belíssima carta após ter lido no Jornal de Letras um
testemunho meu sobre os Professores do ensino liceal e do ensino
universitário que mais profundamente me influenciaram — carta de que o
conteúdo substancial foi publicado no jornal Sacola, de Junho de 2006, da
Escola Secundária do Sátão. Soube, então, que a Dra. Ana Maria
Albuquerque e Sousa tinha elaborado, em 2001, uma dissertação de
Mestrado no Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro
sobre o tema “Exílios no Universo Poético de Manuel Alegre”, um grande
poeta que muito admiro, sob a orientação da Doutora Maria Saraiva de
Jesus, que foi minha aluna de Mestrado na Faculdade de Letras de Coimbra,
cuja tese de doutoramento orientei, e que teve uma morte trágica há algum
tempo.

67
Agradeço ao Senhor Presidente da Câmara Municipal de Penalva do
Castelo, Dr. Leonídio Monteiro, e ao Senhor Governador Civil de Viseu, Dr.
Acácio Pinto, o apoio que generosamente entenderam e quiseram conceder a
esta homenagem e que, pela sua representatividade, muito me honra e
desvanece.
Agradeço, com funda emoção, aos oradores que intervieram nesta
sessão e aos quais quero exprimir pessoalmente a minha gratidão. Agradeço à
Dra. Ana Albuquerque o seu testemunho tão sentido e tão belo sobre a sua
memória das minhas aulas de Teoria da Literatura, na Faculdade de Letras de
Coimbra, naquele para mim inesquecível auditório IV, com vistas para a Igreja
de São Salvador, onde vivi as horas mais felizes e exaltantes da minha vida de
professor. Agradeço ao Doutor Álvaro Iriarte Sanroman, meu antigo aluno de
Mestrado na Universidade do Minho, instituição de que é distinto professor,
que eu encaminhei para a área dos estudos lexicográficos, de que hoje é um
competentíssimo especialista, e que é, como eu costumo dizer, o galego mais
português que conheço. Agradeço à Doutora Rosa Maria Goulart, cuja carreira
académica acompanhei desveladamente, com grande admiração intelectual e
grande estima pessoal, porque sempre reconheci nela um espírito de rigor,
uma lucidez crítica e uma honestidade mental que a tornam num dos nomes
grandes dos estudos literários em Portugal. Agradeço ao meu fraterno Amigo
e Colega Doutor Aníbal Pinto de Castro, companheiro inexcedível no afecto e
na generosidade tanto nas horas jubilosas como nas horas más que a nossa
vida universitária comportou, nome cimeiro da Cultura Portuguesa,
competentíssimo e devotado Director, durante cerca de vinte anos, dessa jóia
do nosso património bibliográfico que é a Biblioteca Geral da Universidade de
Coimbra, o testemunho tão afectivo, tão inteligente e tão bem humorado que
aqui deixou. Agradeço ao meu admirado Amigo, Professor Manuel Ferreira
Patrício, uma das mentes mais cintilantes que tive a sorte de conhecer, um
espírito superior a quem tanto devem a Escola e a Cultura Portuguesas, as
palavras tão sábias e amigas que pronunciou. Finalmente, ao Professor Lúcio
Craveiro da Silva, Mestre dos estudos sobre a Filosofia em Portugal e sobre o
pensamento social da Igreja Católica, Reitor da Universidade do Minho — o
primeiro Reitor eleito das Universidades Portuguesas — num período ainda
incerto da sua história e um dos mais convictos advogados da minha
transferência para a Universidade do Minho, uma das vozes de maior

68
sabedoria de cujo conselho toda a comunidade universitária muito beneficiou,
agradeço a sua presença nesta sessão e o depoimento autorizado que acabámos
de lhe escutar.
Como comecei por dizer, as minhas raízes vitais, o meu sangue, a minha
memória, os meus afectos e os meus sonhos de infância pertencem a estas terras
de Penalva do Castelo.
Hoje, há exactamente oitenta e oito anos, nasceu a minha Mãe na aldeia
da Campina, da freguesia de Sesures. Recordo com imensa saudade a visita que
todos os anos fazíamos à Campina, no dia de São João, orago da capela da
aldeia, participando nas festividades religiosas e deliciando-nos com o almoço
da Avó Delmira. A minha Mãe era uma autêntica matriarca, a cuja inteligência,
sagacidade e inteireza moral os filhos muito ficaram a dever.
Da família dos Aguiares e dos Almeidas da Campina herdei, como os
meus queridos irmãos Maria Manuela e João Carlos, os olhos verdes, ou azuis-
esverdeados, e o cabelo claro. Uma herança genética de alguma estirpe
germânica que ficou ali escondida, ao longo de séculos, entre o rio Carapito e o
rio Dão e que reemerge com frequência, como se vê nos olhos do meu neto mais
pequenino, o Nuno, que por aí anda a saltar.
A minha Avó paterna, também ela uma matriarca inteligentíssima por
quem nutri um profundo afecto, era do lugar de Pousadouros, da freguesia de
Castelo de Penalva.
O meu Avô paterno, o Avô Júlio, não era do concelho de Penalva. Nascera
em Rio de Moinhos, do vizinho concelho do Sátão, mas viveu sempre, após o
casamento, em Real. Era um homem justo, recto e bom e um imaginoso
contador de histórias, sobretudo histórias que envolviam as lutas entre
monárquicos e republicanos nas primeiras décadas do século XX. Foram
qualidades que o meu Pai herdou: um homem justo, recto e bom e um admirável
contador de histórias.
Nasci num período histórico difícil (15.09.39), poucos dias após a eclosão
da 2.ª guerra mundial. À pobreza do país rural de então vieram juntar-se as
dificuldades e as incertezas do maior conflito bélico da história da Europa.
As doenças — e falo nisto, porque fui uma criança enfermiça — eram um
drama para toda a gente. Não havia telefones em Real e era necessário, em
certas circunstâncias, ir alguém a Penalva, de dia ou de noite, chamar o Dr.
Afonso Cabral Pinto, que vivia numa bela vivenda recoberta de azulejos azuis

69
que ainda existe, para ele se deslocar a Real. O pior era quando a estrada de
macadame se transformava com o inverno num lamaçal medonho e o automóvel
do médico ficava atolado, à espera que uma junta de bois o libertasse da lama.
Ao Dr. Cabral Pinto, que era amigo da minha família paterna, fiquei a dever a
vida em duas situações críticas e por isso guardo pela sua memória uma gratidão
especial.
Aprendi a ler, a escrever e a fazer contas com a minha Mãe, com cerca
de quatro anos de idade. Quando entrei na escola do Casal das Donas, uma
pequena aldeia vizinha de Real, estava alfabetizado e por isso fui admitido na
2ª. classe.
A aprendizagem escolar obrigava-me a deslocações diárias de Real para
Casal das Donas, a pé, já se vê, fizesse sol ou caísse chuva ou neve. Nos dias
curtos de inverno, quando a claridade escasseava, tanto de manhã como ao
entardecer, as idas e vindas metiam-me medo, com os cães das quintas a
ladrarem ameaçadoramente. Na escola do Casal das Donas, porém, aguardava-
me o carinho, mas também a severidade amiga, de uma grande Mulher e de
uma grande Professora, a minha Madrinha, D.ª Adélia Augusta Pinto de
Magalhães, que durante mais de quarenta anos escolarizou gerações e gerações
de crianças das aldeias circunvizinhas. Bem mais dura foi a aprendizagem
escolar do meu Pai e dos meus Tios Jaime e Luís, que tinham de ir de Real a
Sandiães, por não haver então escola no Casal, andando por dia, por caminhos
inóspitos, alongados quilómetros, para aprenderem a ler e a escrever com o
Senhor Padre Zé, que ainda conheci como pároco de Castelo de Penalva, com
o rosto mordido pela varíola e um ar matreiro (e que, segundo contava o meu
Pai, quando se zangava com os rapazes, os punha a puxarem ao arado para
lavrar o quintal...).
Por motivos de ordem familiar, vim terminar a 4.ª classe na Escola de
Castendo, com o Professor Elias, que era um professor competente e um exímio
futebolista. É com alegria que vejo aqui, nesta sala, alguns colegas de então,
como o Ilídio e o Pedro Pina.
Recordo a emoção com que realizei, em Castendo, em 1950, o exame da
4.ª classe, perante um júri presidido pelo Professor Morais, de Esmolfe, um
homem corpulento e de voz tonitruante, que infundia respeito e receio. Como já
acontecera no exame da 3.ª classe, fui aprovado com distinção. Logo a seguir ao
exame da 4.ª classe, foi a aventura, a emoção e o medo de ir realizar o exame de

70
admissão ao Liceu Nacional de Viseu, um exame particularmente exigente no
que dizia respeito à língua portuguesa. Tudo correu bem e no mês de Outubro
de 1950 era aluno do 1.º ano do meu amado Liceu Nacional de Viseu. Nesse
ano, fui a única criança do concelho de Penalva do Castelo a matricular-se no
Liceu. Eram obviamente outros tempos...
A vida académica e universitária levou-me para outras terras, que muito
amei e amo, como Coimbra e Braga, para não falar de outras longes terras, dos
Estados Unidos ao Brasil. No mais fundo de mim, porém, floresceu sempre um
arreigado amor às terras de Penalva do Castelo e em especial a Real, onde estão,
como disse, as minhas memórias, os meus afectos e os meus sonhos de criança
e os meus mortos mais queridos.
Esta homenagem, promovida por alguns Amigos e a que se associaram
tantas ilustres individualidades, às quais agradeço comovido, só pode ter um
significado simbólico. O significado do exemplum: a criança humilde, tímida e
receosa que daqui partiu, em 1950, pôde, graças à Escola, ao estudo e ao
trabalho, ascender à cátedra, primeiro na Universidade de Coimbra e depois na
Universidade do Minho. As crianças e os jovens de hoje destas terras de
Penalva, usufruindo já felizmente de outras condições e de outros benefícios
educacionais, saberão retirar do exemplum esta lição incontroversa: só na Escola
e com a Escola, com estudo e com trabalho, é que podem construir o seu futuro
e contribuir para a construção do futuro de Portugal.

Bem hajam!

Vítor Aguiar e Silva

71
III A Homenagem em Viseu
Paços do Concelho
73
VÍTOR AGUIAR E SILVA:
UM PERCURSO
VERDADEIRAMENTE NOTÁVEL!*
(improviso de circunstância)

Muito boa tarde a todos!

Gostaria naturalmente, e antes de mais,


de dirigir uma saudação muito especial ao Senhor Prof. Doutor Vítor Aguiar
e Silva, cumprimentar os elementos da mesa, saudar o Senhor D. Ilídio,
nosso Bispo, Bispo de Viseu, saudar também todos os convidados e
expressar, na pessoa do Prof. Fernando Paulo, um particular agradecimento
aos promotores desta homenagem.
Direi apenas duas ou três palavras para deixar falar quem, melhor do
que eu, conhece o trajecto do Senhor. Prof. Doutor Aguiar e Silva e que, com
outros fundamentos e argumentos, irá evidenciar as virtudes e as
virtualidades da sua personalidade. Devia limitar-me, de facto, a dar as boas
vindas: dizer, no fundo, aquilo que, nestas circunstâncias, é normal ser dito
pelo anfitrião autárquico neste Salão Nobre, o sítio mais importante que
temos no Concelho e onde tem pleno cabimento esta homenagem de
consagração e de distinção. Mas gostaria de acrescentar algo mais.
Eu já conhecia o Prof. Doutor Aguiar e Silva de forma esporádica,
julgo que no contexto de uma das iniciativas do Prof. Fernando Paulo, e
também já tinha tido oportunidade de o encontrar noutras situações. Mas
confesso que não tinha lido ainda o que foi o seu percurso, pelo que gostaria
de enfatizar dois ou três aspectos que achei efectivamente curiosos.

* Título da responsabilidade da coordenação editorial.

75
O que desde logo me chamou a atenção foi o facto, de também ser
oriundo de uma aldeia como a minha. Somos de concelhos diferentes, do
mesmo Distrito, mas a aldeia onde nasci também se chama Real. Eu já
conhecia Real de Penalva, mas penso que esta coincidência é única no nosso
Distrito...
Mas há, na sua biografia, outro tipo de curiosidades que me
despertaram a atenção: nomeadamente a de, tal como eu, ter nascido no final
de uma década e de também fazer anos num dia 15. Há, porém, uma
curiosidade que não posso deixar de sublinhar de um modo muito especial:
foi o facto de ter frequentado o Liceu Nacional de Viseu e, para quem como
eu também ali estudou, constitui um orgulho encontrar alguém que veio
daquela escola...
Depois, um outro facto me tocou e de imediato retive: foi o ter tido
dois Professores que eu igualmente vim a ter, dez anos depois, e que também
me marcaram muito... De um, ainda guardo muito viva a recordação, porque
me escreveu não há muito tempo, depois de ter estado aqui neste mesmo
Salão Nobre: refiro-me ao Professor Luís Simões Gomes, uma referência
incontornável do nosso Liceu de Viseu, de tal maneira que ainda hoje
dizemos, quando alguém dá um erro em Português: «Vê-se logo que não
foste aluno do Dr. Simões Gomes!». Foi na realidade uma personalidade
ímpar, de par com outra personalidade que eu também recordo com muito
carinho: o Professor Augusto Saraiva de quem fui aluno na disciplina de
Filosofia, já na fase final da sua carreira. Saliento, pois, estas duas para mim
muito especialmente significativas coincidências que retive da biografia do
Senhor Prof. Doutor Aguiar e Silva.
Mas não pude deixar de anotar também outros sinais que são
indiciadores do que veio a ser o seu tão notável percurso.... Nós
“marcávamos” sempre quem se formava com notas elevadas... Imagine-se o
que não acontecia com quem acabou o liceu com a média de 19 (dezanove)
valores, numa época, como costumo dizer, de “notas magras”!... Então, as
notas não estavam inflacionadas como agora e a média de 12 (doze) já dava
direito a «Quadro de Honra». O que significa que quem tinha uma média
final de 19 (dezanove) ultrapassava todas as honras possíveis. Na verdade,

76
terminar o curso com uma nota destas constitui um feito que a todos nos deve
encher de orgulho e que merece ser olhado com a devida admiração e
apreço...
Depois, é a importância de se tratar de alguém natural do nosso Distrito
e que nós podemos tomar como referência, o que, nos tempos que correm,
não é muito normal nem habitual... Nós atravessamos uma época em que as
referências, normalmente, são outras, são referências de outra índole, são
referências nada abonatórias... Vamos perdendo as que temos, sobretudo
aquelas referências endógenas, válidas e sólidas, aquelas referências que são
mesmo nossas e que, como no caso de Vítor Aguiar e Silva, podemos depois
apresentar como sendo um dos nossos que fez um percurso verdadeiramente
notável.
São, portanto, razões muito significativas que dizem bem desta minha
alegria de os poder receber aqui, no Salão Nobre, na qualidade de Presidente
da Câmara Municipal. Coube-me esta distinção e esta honra que,
naturalmente, já couberam também ao meu Colega de Penalva, aqui
presente, reforçadas, no caso dele, pelo facto de ser do mesmo concelho de
onde o Senhor Professor é natural.
Cabe-me referir, a propósito, que ultimamente, temos vindo a fazer
uma incursão, na forma de revisita evocativa, pelas nossas referências,
plasmando-as na toponímia da cidade e do concelho, o que desde logo dá a
entender que queremos honrar a memória do tempo. Estamos, assim, a
redescobri-las, porque, de facto, é muito complicado e custa a compreender
que alguém, pelo seu mérito, seja reconhecido no exterior e depois,
internamente, não se lhe faça, também, a devida menção...
Senhor Professor, associo-me a esta homenagem com todo o gosto e a
Câmara de Viseu sente-se, também, honrada por ter sido abordada pelos
promotores para se associar a este tributo. Digo-lhe que é uma homenagem
justíssima e nós esperamos, sinceramente, que esta referência possa servir
para os nossos jovens, possa servir, sobretudo, para que as gerações actuais
tenham da cidadania uma outra noção.
Para terminar, queria desejar-lhe muitas felicidades pessoais. O seu
trajecto é de topo: pelo menos que o mantenha nesse nível, o que é

77
naturalmente bom para si; mas isso, se calhar, será secundário... É bom,
sobretudo, para quem pode usufruir da sua sabedoria e, digamos, para os
seus conterrâneos deste Distrito de Viseu.
Eu acho que há uma marca em todos nós que costumo referir noutras
situações, mas que, também, não resisto a evocar aqui. Nascemos numa terra
que, em termos espaciais, é o Coração do País. É essa marca que molda de
forma singular a nossa personalidade... Não é só o granito e esta paisagem
agreste que plasmam o nosso modo de ser... Nós nascemos, de facto, no
Coração do País. Costumo dizer que é importante que todas as pessoas
façam coisas com a razão... Mas, se lhe juntarem o coração, não se perde
nada... Bem pelo contrário! Portanto, eu penso que os beirões têm esta
particularidade de fazerem muitas coisas com o coração e tenho a certeza
absoluta de que este percurso que o Senhor Professor fez também tem muito
de coração.
As maiores felicidades e desejo-lhe, sinceramente, que tudo de bom
lhe aconteça, para bem de si, mas também para bem de todos nós.

Bem-Haja.

Fernando Ruas
Presidente da Câmara Municipal de Viseu

78
A «LIÇÃO» DO PROFESSOR

À medida que a ideia desta homenagem a


Vítor Aguiar e Silva foi tomando corpo, um
simétrico e intenso movimento foi rasgando um
horizonte de desígnios muito mais vasto,
impulsionado por um t°low [telos] que
transcende, em muito, esta mais do que merecida
e, por isso mesmo, justíssima expressão gratulatória e jubilativa...
Na verdade, e em simultâneo, um seminal desassossego que irrompe do
exercício de reflexão e meditação sobre o mundo, sobre a vida e sobre o homem
e, mais focadamente, sobre a fenomenologia e a patotologia da crise do nosso
tempo, foi percorrendo ondulatoriamente a alma, conduzindo ao
questionamento do que poderia haver, ou não, nas regiões genotextuais e mesmo
subliminais, de onde eclodiu, afinal, o impulso para esta celebração e
consagração, em suas mais fundas e alargadas implicações trans-rituais...
Assim e pelo menos, da rede de análises e reflexões como as que vêm sendo
levadas a cabo, entre outros, por Gilles Lipovetsky sobre «a era do vazio», «o

Nota prévia: O presente texto reproduz, no essencial, a intervenção feita na sessão que teve lugar no Salão Nobre
da Câmara Municipal de Viseu; foram-lhe introduzidos, porém, pontuais retoques (labor limae) bem como as
indispensáveis notas de rodapé e referências bibliográficas, de modo a que ficasse, fenotextualmente, mais em
conformidade com a natureza intrínseca das razões constitutivas e conformadoras da sua genotextualidade... Devo
confessar, por outro lado (e, agora, já mais liberto e serenado da inevitável carga emocional e tensional...), que a
reflexão nele plasmada e assim epigrafada não teria sido possível sem a «lição» (a todos os títulos memorável, mais
do que inesquecível, porque radial, modelar e modelante...) de doação, total e inteira, à vida académica e
universitária, na investigação rigorosa, vitalizante, morfogénica e «cosmogónica», no ensaio singularmente
fulgurante, criativo e inovador e no magistério incomparavelmente sábio, seminal, arquitector e alumiante de Vítor
Aguiar e Silva... Mas não teria sido possível, também, sem o contexto e a geratriz (sem a «deep structure»...) da
tão fraterna e tão autêntica partilha de vivências e de afectos que (em clave e em registo como se «de família»... e
sob o influxo transcendente da saudosa memória d’Aqueles que já partiram...) coenvolveu sempre a nossa muito
«irmã» Eugénia Maria e a magnífica Progénie de seus extremosos Filhos (a Alexandra, o Miguel e a Joana e seus
estimados Cônjuges...) e de seus encantadores Netinhos...

79
império do efémero» e «o crepúsculo do dever», por George Steiner sobre «a pós-
cultura» e a «barbárie da ignorância», por Ulrich Beck sobre «a sociedade do risco»
e «o risco invisível», por Anthony Giddens sobre o globalizado Runway World,
marcado pela vertigem das mutações e pela angústia das incertezas, sob o comando
do poderoso «quadrimotor louco» de que fala Edgar Morin1, ressalta a insofismável
conclusão de que se torna urgente e inevitável uma mais lúcida, mais aguda e mais
inquieta tomada de consciência acerca do preocupante estado-de-coisas a que o
mundo chegou e que caracteriza este nosso tempo histórico2...
Em consequência da acção desencadeada por certos movimentos pós-
modernistas3 que se caracterizam pela sua iconoclastia desenfreada, vertiginosa e
dissolvente, monádica, nomádica, fracturante, descentrante e caotizante e pelo seu

1 Quadrimotor que congloba, em descontrolada e devastadora sinergia, a ciência, a técnica e a tecnologia, a


indústria e o capitalismo selvagem. Cf. Edgar Morin: O Método V. — A Humanidade da Humanidade, Lisboa,
Publicações Europa-América, 2003, 236.
2 Cf. José María García Gómez-Hera: Teorías de la Moralidad — Introducción a la Ética Comparada, Madrid,
Editorial Síntesis, 2003, 292 ss; Bruno Forte: A la Escucha del Otro, Salamanca, Ediciones Sígueme, 2005, 155-173;
Martin Buber: Eclipse de Dios – Estudios sobre las relaciones entre religión y filosofía, Salamanca, Ediciones
Sígueme, 2003, sobretudo o denso ensaio «Religión y pensamiento moderno», em que se estabelece um fecundo
«diálogo» entre as posições de Nietzshe, Heidegger, Jung, Kant e Sartre em torno do problema de Deus, pp. 91-120;
cf. também Fernando Paulo Baptista: Tributo à Madre Língua, Coimbra, Pé de Página Editores, 2003, 169-174, 545
ss e a bibliografia aí indicada, especificamente a que se reporta aos autores acabados de referir no corpo do texto.
3 Movimentos marcados pelo exacerbamento que deflui daqueles vectores semiogénicos mais «radicais» que
atravessam as análises e as posições, entre outras, de Lyotard, Baudrillard, Foucault, Roland Barthes, Derrida,
Deleuze, Guattari, Venturi, Vattimo, Rovatti, Harvey, Fredric Jameson, Paul Feyerabend, Rorty, Terry Eagleton...
Esses vectores consubstanciam o núcleo do pensamento potenciador, se não mesmo fomentador, das dinâmicas de
contestação, laceração e dissolução, não raramente decisivas (importa sublinhá-lo!) sob o ponto de vista das
acelerações e reacções enzimático-catalíticas desencadeadas nos processos e na dialéctica da cultura... Trata-se, em
todo o caso, de movimentos significativamente «distantes» e distintos (embora sempre nela implicados...) daquela
«pós-modernidade» de intencionalidade crítico-construtiva ou crítico-poiética (também dita «segunda
modernidade», «modernidade reflexiva», «modernidade líquida», «alta modernidade», «modernidade pós-
moderna»..., configurável nas inelidíveis e substantes marcas de complexidade, multiplicidade, pluralidade,
polilogia, poliglotia, intertextualidade, intercomplementaridade e transversalidade) que é constituída pelo núcleo
do pensamento propulsor das dinâmicas de sustentabilidade radicada, multipolar, reticular, evolutora e
transformadora («aprofunde-se crítico-perfectivamente, mas não se «proscreva», o legado fundamental da grande
modernidade»!...) e que decorre de contributos tão diferenciados como, por exemplo, os de Karl Popper, Thomas
Kuhn, Zigmund Bauman, Jürgen Habermas, Karl Otto-Apel, Hans-Gerorg Gadamer, Anthony Giddens, Ulrich
Beck, Wolfgang Welsch... Esta «pós-modernidade» (crítica, poiética e polifónica, e lúcida e motivadamente
metamorfósica, comunicante, imbricante, includente, transitiva e superadora) que, por um lado, reconhece, na
«modernidade», «o ensaio do plural» e que, pelo outro, conquista definitivamente «o transversal» (Welsch), não é,
em sentido estrito, nem pós-moderna nem anti-moderna nem trans-moderna, não está fora da modernidade, nem
a rejeita in toto: ela é modernidade auto-reflexiva, transformada e transformante; ela é, na paradoxal expressão de

80
egocentrismo narcisista4, dogmático, intolerante e exclusor, tem lugar a
desqualificação indiscriminada das «grandes narrativas» (filosófico-doutrinais,
ideológico-políticas, teórico-científicas, histórico-culturais, artístico-literárias...) e
o ataque aos princípios, fundamentos, finalidades e valores que as conformavam e
legitimavam.
Ao mesmo tempo e por outro lado, em sinérgica interacção com a
apologia acrítica e desbragada do consumismo hedonista e em consonância

Wolfgang Welsch, «modernidade pós-moderna», ou seja, o modo criativo, inovador e actual de realizar os conteúdos
mais nobres do «projecto da modernidade» (cf. Diego Bermejo: Posmodernidad: pluralidad y transversalidad, Madrid,
Anthropos Editorial, 2005, 143 ss), denunciando assim, e bem, as anormalidades do totalitarismo unidimensional e
monofónico da «Razão», entendida como a mathesis universalis ou como a instância suprema e última da orientação do
ser humano em seu conhecer e em seu agir existenciais (cf. Antonio Staglianò: artigo «Ragione», apud Giuseppe
Tanzella-Nitti e Alberto Strumia (cur.): Dizionario Interdisciplinare di Scienza e Fede, Roma, Urbaniana University
Press, Città Nuova Editrice, 2002, vol. 2, 1167-1181), pelo que constitui um inderrogável libelo acusatório das
manipulações e desvios operados, sobretudo, pela «razão instrumental» e pela «razão funcional», calculatória,
tecnoburocratizante e administrativístico-gestionária... Pela «razão instrumental», na medida em que ela, no pressuposto
de que conhecer é dominar, controlar e explorar a natureza e o homem, desemboca avassaladoramente numa «lógica de
domínio» («ídolo a que tudo se sacrifica»...); pela «razão funcional», porquanto esta tem as suas raízes no pensamento
«técnico-pragmático», «estruturalístico», «parametrizante», «orçamentante», heteronómico e unidireccionante (gerador
de relações de implicação e de subordinação lógico-necessitária, orgânico-institucional, actancial e «mecânica») e a sua
finalidade, na acção operativo-produtiva, eficaz e lucrativa... Mas, tanto de um lado como do outro, ao operar-se a
«perversa» metamorfose hegemónica e manipuladora do poder-capacidade em poder-dominação, tudo acaba por
convergir no «esquecimento» ou obliteração do que há de mais essencial e profundo quer no homem quer na natureza,
chegando-se mesmo ao ponto de «a máquina prescindir do piloto» (teses da «morte do homem», da «morte do sujeito»,
da «morte do autor»...), com a consequente promoção daquela «ignorância programada» (atrofiadora da faculdade de
auto-reflexão crítica, do desenvolvimento da fundura paidêutico-cultural, da imaginação criadora e do sentido da
autonomia, da liberdade e da responsabilidade...) que vem atravessando, burocrática e economicisticamente, os sistemas
educativos, com a crescente desqualificação humanística, filosófica, literária e artística e a homóloga, acrítica e
instrumentificante tecnologização desumanizadora do processo de ensino e aprendizagem e da acção educativa e
formativa, a todos os níveis do desenvolvimento e da organização curricular. É assim que, no certeiro diagnóstico de
Aguiar e Silva, «os tempos da pós-modernidade são tempos inóspitos para as humanidades, saberes enraizados em
seculares tradições linguísticas, culturais, literárias, filosóficas e historiográficas — enraizados em primeiro lugar na
matriz primordial da Antiguidade Clássica — e fundados na escrita e na leitura de textos (...), ou seja, fundados na
preeminência da palavra, do discurso verbal» (cf. Vítor Aguiar e Silva no seu estelar e acutilante ensaio: «As
Humanidades e a Cultura Pós-Moderna», separata do livro de ACTAS do Colóquio de Estudos Clássicos A Antiguidade
Clássica e nós: Herança e identidade cultural, Braga, Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, 2006,
622). Bem consciente das «insuficiências» e das «limitações» deste meu abreviado «apontamento» suscitado pelas
posturas «pós-modernistas» mais radicais e tendo em vista um mais aprofundado entendimento dos já referidos «modos»
da razão (os modos instrumental e funcional) e suas «perversões», bem como a indispensável dilucidação conceptual
implicada na problemática da «modernidade» e da «pós-modernidade, ver, no fim, em I. ANOTAÇÕES (1.1.), as
referências bibliográficas para o efeito especificamente indicadas.
4 Cf. Gilles Lipovetsky: A era do vazio [trad. de Miguel Serras Pereira e Ana Luísa Faria], Lisboa, Relógio d’Água,
1989, 11 ss e Fernando Paulo Baptista: Tributo..., já cit., 550-551.

81
com a industrialização da cultura e da arte e a objectificação, mercatorização
e idolização das suas ficções, criações e contrafacções, verdadeiros
«simulacros» (na famosa e insubstancial metáfora de Baudrillard 5),
amnesicamente desvinculados das placentas genealógicas e genológicas
respectivas e dos processos histórico-diacrónicos desenvolvidos a partir das
matrizes da tradição e dos paradigmas e modelos clássicos...), o marketing
mitificador e hiperbolizador dos poderes e da eficácia da revolução científico-
tecnológica e electrónica opera, massivamente, o quase silenciamento,
anestesia ou cancelamento do sistema de valores («o dia da técnica... é a noite
do mundo», no crepuscular agoiro de Heidegger6!...), de tal modo que se tem
vindo a impor larvarmente nas sociedades contemporâneas, sob o signo
tumular do «Gott ist tot» da turbulenta rosa dos ventos de Nietzsche7, de par
com a sombra neutra e fatídica de um relativismo e de um pragmatismo
esvaziados da carga do transcendente e do axiológico, um generalizado
padrão de conduta, assente num «grau zero ético» ou numa «ética minimal e
indolor», para usar conhecidos registos paramétricos e expressionais do já
citado sociólogo francês8...
É assim que, atingida a memória cultural e ferida, com ela, a alma
profunda da Cidade, tem vindo a ter lugar (sob o influxo de uma espécie de

5 Cf. Jean Baudrillard: Simulacre et simulation, Paris, Galilée, 1981. Já no seu L’Échange symbolique et la
mort (Paris, Gallimard, 1976), Jean Baudrillard sustenta a tese de que as sociedades ocidentais sofreram
uma «precessão», de tal modo que «o simulacro» (termo afim do ídolo bíblico) passou a ser «a verdade
ocultadora da facticidade». O conceito físico (cinético-óptico) de «precessão» traduz o efeito observado
num corpo que executa um movimento de rotação em torno de um eixo, quando se lhe aplica um binário,
de tal modo que tende a modificar a direcção do eixo de rotação. Segundo Baudrillard, a precessão toma a
forma de «arranjo de simulacros», sendo que, vivemos numa época em que «a cópia passou a substituir o
original».
Ver, com a devida reserva crítica: http://fr.wikipedia.org/wiki/Jean_Baudrillard#Simulacres_et_simulation.
6 Cf. Martin Heidegger: Holzwege, aqui citado na versão francesa de Wolfgang Brokmeier: Chemins qui mènent
nulle part, Paris, Gallimard, 1968 (ensaio «Pourquoi des poètes?»), 241: «L’essence de la tecnique ne vient que
lentement au jour. Et ce jour est la nuit du monde, revue et corrigée en jour technique».
7 Friedrich Nietzsche: A Gaia Ciência, §125; cf. Martin Heidegger: op. cit., ensaio «Le mot de Nietzsche “Dieu
est mort”», 173 ss.
8 Cf. Gilles Lipovetsky: A era do vazio [trad. de Miguel Serras Pereira e Ana Luísa Faria], Lisboa, Relógio
d’Água, 1989; O Império do Efémero, São Paulo, Companhia das Letras, 2001; O crepúsculo do dever — a ética
indolor dos novos tempos democráticos, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1994; Métamorphoses de la culture
libérale. Éthique, médias, entreprise, Montréal, Liber, 2002 (este último, uma espécie de «abrégé» do
pensamento do autor).

82
«utopia negra»9 e no contexto de uma práxis em que o nihilismo se configura e
afirma cada vez mais como «processo histórico»...) uma exponencial e
generalizada degradação, patologicamente complexa, que afecta transversalmente
as comunidades humanas, com fenómenos como os do analfabetismo e da
iliteracia, da fome e da exclusão social, das pandemias incontroladas, dos
fundamentalismos, do ódio e da violência cega (na forma de misopedia, pedofilia,
plexiginia10, terrorismo, genocídio, guerras locais e regionais...), da corrupção, do
narcotráfego, do comércio de armas, da redução drástica do mercado de trabalho,
da deslocalização arbitrária das empresas, da poluição, dos incêndios criminosos e
da desflorestação indiscriminada, com a nossa Deméter a ficar galopantemente
reduzida a uma privada e senhorial herdade ou coutada, letalmente explorada, a
nível dos recursos naturais e dos recursos humanos, por cada vez mais poderosas e
apátridas oligarquias internacionais, sem escrúpulo, sem critério e sem medida11...
Num tal contexto, a sociedade globalmente considerada e, em seu cerne
vital, a cidade educativa (co-envolvendo a família e a escola, com os respectivos
entornos sociais...), a cidade jurídica, a cidade política e a cidade mediática,
com a perda dos sentidos angulares (ou axiais) e na ausência de uma busca forte
de fundamento e de um novo sentido para a vida, parecem não se dar conta das

9 Sobre os conceitos de «utopia», «distopia» («utopia branca», «utopia negra»)..., cf. o importante estudo de María
Nieves Alonso (coord.) et alii: «“Donde nadie ha estado todavia”: Utopía, Retórica, Esperanza», in revista Atenea,
n.º 491, I Sem. de 2005, pp. 29-56; cf. também: Christian Retamal: «La utopia después del nihilismo», in revista
Estudios Públicos, Universidade de Santiago de Chile, n.º 71/1998.
10 Neologismo por mim criado, com que pretendo significar «a agressão, o espancamento causador de
ferimentos à mulher»: do grego pl∞jiw, evw [pleksis, -eos = pancada, golpe, ferimento, espancamento] + gunÆ,
-aikÒw [gyne, -aikos = mulher]; de notar que o nome pl∞jiw [pleksis] é da mesma família do verbo plÆssv
[plesso], morfo-semanticamente próximo do francês blesser (pless > bless = ferir), e apresenta a mesma raiz
pleg- / plag- do verbo latino plango (presente formado com infixação nasal: pla(n)g-o = ferir, golpear) e do nome
plaga, de onde provêm os lexemas portugueses chaga e praga [= maldição, imprecação, palavrão que fere] bem
como os espanhóis llaga e plaga, o italiano piaga, o inglês plague, o alemão plage... O bater golpeante, o
espancar causador de ferimento (em francês: blessure) produz chagas físicas e/ou morais ou psicológicas...
Homologamente, a recorrência de casos de «agressão ou espancamento violento» ao homem «ândrico», não
deixa de justificar também a criação de um neologismo isomórfico — plexiandria — (< igualmente do grego
pl∞jiw, evw [pleksis, -eos = pancada, golpe, ferimento, espancamento] + énÆr, éndrÒw [aner, andros = homem,
por oposição a mulher, ou seja, o homem varonil e viril, o homem considerado em sua masculinidade: em latim:
vir, viri]). Cabe recordar, neste contexto, que do grego énÆr, éndrÒw provém o nome próprio André, além de um
vasto conjunto de outros lexemas de uso mais erudito e/ou mais especializado: androceu, androcéfalo,
androfagia, andróforo, androgenia, androgénio, androginia, andrógino, andróide, androlepsia, andrologia,
andronímia, andrónimo, androsterona, sinandria...
11 Cf. Fernando Paulo Baptista: Tributo..., já cit., 548.

83
graves patologias que as afectam, parecem não querer ou não saber entender e
perspectivar que a sua terapia e a sua cura muito dificilmente serão possíveis
fora da acção formativa e replasmante das Belas Artes, das Belas Letras e das
Humanidades12, estas últimas, hoje praticamente silenciadas e marginalizadas,
porque quase desterradas dos planos curriculares do sistema educativo, desde a
escola básica e secundária até à universidade, inclusive...
Desse modo, a «geórgica do espírito» que (na densa e telúrica metáfora de
Francis Bacon13...) é a cultura, entendida em sua máxima fundura e amplitude
antropológica, corre o risco de ver drasticamente reduzido o seu estratégico campo
de acção e de influência e o papel criador e arquitector de seus mais diligentes e
qualificados «lavradores» (artistas em geral, escritores [poetas, dramaturgos,
ficcionistas...], pensadores, ensaístas, cientistas, investigadores, professores...),
com o consequente e avassalador avanço da incultura e da barbárie14...

12 Sobre o valor do Humanismo e das Humanidades, face ao actual «olvido y descenso del hombre», considerar as
pertinentes e oportunas reflexões avançadas em Rafael Alvira e Kurt Sprang (eds.): Humanidades para el siglo XXI,
Pamplona, Ediciones Universidad de Navarra, S.A., 2006; considerar, também, o empenhado «combate» de Francisco
Rodríguez Adrados: Humanidades y Enseñanza – Una Larga Lucha, Madrid, Santillana (Taurus), 2002.
13 Cf. Francis Bacon: De dignitate et augmentis scientiae, VII, 1; metáfora inspirada em Cícero e em Vergílio e na
esteira do próprio Hesíodo: cf. Maria Helena da Rocha Pereira: Estudos de História da Cultura Clássica – II vol.
Cultura Romana, Lisboa, Fundação Callouste Gulbenkian, 21990, 417-430; Romana – Antologia da Cultura
Latina, Coimbra, Instituto de Estudos Clássicos, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1986, 50-51,
54-55, 59, 66-68 (para Cícero) e 128-130 (para Vergílio); Hélade – Antologia da Cultura Grega, Coimbra, Instituto
de Estudos Clássicos, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 71998, 97-98 (para Hesíodo); cf. também
(para Hesíodo...) Frederico Lourenço: Grécia Revisitada: Lisboa, Edições Cotovia, 2004, 31-35: ensaio «Hesíodo:
A Enxada das Musas».
14 Cf. George Steiner: No Castelo do Barba Azul. Algumas Notas para a Redefinição da Cultura [trad. port. de Miguel
Serras Pereira], Lisboa, Relógio d’Água, 1992, pp. 14-17, 112-130, 128-141, sobretudo quando se refere ao
«enfraquecimento de uma efectiva cultura literária», às «transformações de uma cultura triunfante numa pós ou
subcultura», no generalizado «recuo da palavra» e homólogo «declínio dos ideais tradicionais da linguagem instruída»
de par com o crescente fenómeno, entre os jovens, da “pop-musicalização” da cultura e quando, pelo outro, evoca
nostalgicamente «o latim nas salas de aula e a subtileza apostólica dos anfiteatros universitários; as livrarias autênticas e
os debates parlamentares inteligíveis», sublinhando que «os homens de cultura ‘sabem’, num sentido peculiar, e
simbolicamente definido da palavra, que houve um tempo em que uma produção universitária e literária séria,
economicamente acessível, era sinónimo da descoberta de um público extenso e dotado de competência crítica». Cf.
também, no mesmo e fundamental sentido, o precioso livrinho de bolso, ainda de George Steiner: La barbarie de la
ignorancia, Madrid, Taller de Mario Muchnik, 2000, 65-66, quando, ao «sudor del alma» das aprendizagens
estruturantes, se contrapõe a triste verificação de que «en este planeta el noventa y nueve por ciento de los seres humanos
prefieren (...) la televisión más idiota, la lotería, el Tour de Francia, el fútbol, el bingo antes que Esquilo o Platón»; sobre
a importância da «cultura» no contexto da crise do nosso tempo, ver Thomas De Koninck: A Nova Ignorância e o
Problema da Cultura, Lisboa, Edições 70, 2003, cap. III («A cultura do espírito») pp. 69-96.

84
Face, pois, ao sombrio panorama e ao desequilibrado dinamismo gerado
pelo fascínio do poder e da mítica eficácia dos usos e aplicações (tantas vezes
«selvagens»...) da Ciência, da Técnica e da Tecnologia, sob o comando
parasitário dos altos interesses de natureza meramente economicista, mas com
directa repercussão destrutiva e desorganizadora nos ecossistemas da natureza e
nos sistemas e diassistemas sociais e culturais, a pilotagem estratégica da vida
em geral e da vida em sociedade em particular tem de voltar a fazer-se, a meu
ver, sob o signo de Homero, Educador da Grécia e Educador do Mundo, e ao
som da lira dos Poetas, o mesmo é dizer, sob o energizante influxo da Poesia,
essa fabulosa «música do pensamento», na expressão lapidar e sábia de George
Steiner15...
Na verdade, sempre que a cultura, a sensibilidade, a imaginação e a
criação poéticas (l.s.) estiveram adormecidas ou anestesiadas, andaram arredias
ou foram escorraçadas da Cidade, as superadoras saídas para os fundamentais
problemas do homem e da humanidade ficaram irremediavelmente
comprometidas16…
Por isso é que, tal como nas problemáticas da superação dos saberes
instituídos já obsoletos e caducos (ou mesmo daqueles saberes que, tantas
vezes ilusoriamente, se consideram ainda válidos ou inquestionáveis...) bem
como das verdades dogmatizadas e já cristalizadas se não pode dispensar a
postura bachelardiana da «filosofia do não»17 no alternativo desencadear das
dinâmicas da criação e da inovação científica, conducentes à formulação de
novos problemas e de novas conjecturas e à instituição de novos saberes, de
novas verdades consistentemente testadas e validadas e de novos paradigmas,
assim também, na análise e ponderação das patologias do social, se torna
imperioso o assumir, com Adorno18, da atitude dialéctica da negação, seja
através da resistência, da recusa e da indignação, seja através da denúncia
frontal, por forma a daí poder decorrer o revitalizador surgimento e

15 Cf. George Steiner: La idea de Europa, Madrid, Ediciones Siruela, 2005, 53.
16 Cf. Fernando Paulo Baptista: Polifonia, Poiese & Antropoiese, Lisboa, Edições Piaget, 2006, 32.
17 Cf. Gaston Bachelard: La philosophie du non, Paris, PUF, 2002.
18 Cf. Marta Tafalla: Theodor W. Adorno – Una filosofía de la memoria, Barcelona, Herder, 2003, 67 ss;
José António Zamora: Theodor W. Adorno – Pensar contra la barbarie, Madrid, Editorial Trotta, 2004,
11-19, 21 ss.

85
desenvolvimento de uma Física Quálica do Humano, de uma Antropopaideia
qualitativa que potencie uma nova Ars Gubernatoria ou Arte da Timonagem
(≤ kubernhtikÆ t°xnh [e kybernetike techne]), ao serviço dessa náutica
maior que é a condução ético-política dos destinos da Terra e das
comunidades que a povoam e, assim, de um PROJECTO DE CIDADANIA LOCAL,
REGIONAL, NACIONAL E PLANETÁRIA, a ser concebido, planeado e realizado
orquestralmente por todos, no respeito pelas singularidades e com a
consagração paritária e polifónica do pluralismo, a inclusão da diversidade e
a integração da multiculturalidade, e vivificado pela criatividade, pela
inventiva, pela inovação e pela articulação pléctica, mestiçada e de sentido
holístico dos diferentes saberes...
Num tal horizonte e perspectiva e porque a navegação é agora a dos mares
da informação, do conhecimento, do saber e da sabedoria, seja-me permitido
abrir, aqui, um parêntesis para revelar que essa vai ser a missão estratégica da
futura ACADEMIA HENRIQUE O NAVEGADOR (instituição autónoma, a ser criada e
sedeada nesta cada vez mais bela cidade Viseu, berço simbólico da «Ínclita
Geração... Altos Infantes» [Camões: Lus., IV, 50]...), e erigida e desenvolvida a
partir de seus dois pilares alicerçantes, em constante interacção e implicação
dialéctico-dialógica: o CENTRO VÍTOR AGUIAR E SILVA para a Área das
Humanidades, das Belas Letras e das Belas Artes e o CENTRO JOSÉ DIOGO
MENDES VEZINHO19 para a Área da Ciência, da Técnica e da Tecnologia.
Essa Academia mover-se-á por uma das mais sedutoras e irradiantes
utopias: vir a constituir-se, neste centro-interior de Portugal, numa das
instâncias criativas e propulsoras da esperançosa CIDADE PLANETÁRIA DOS
POETAS (l.s.) E DOS SÁBIOS, sonho, afinal, de todos quantos vêm desenvolvendo

19 José Diogo Mendes Vezinho (1450-1520) é um cidadão português de origem judaica, nascido em Viseu (daí, o
seu apelido: Vezinho ou Vizinho, isto é, Viseense) e um dos vultos mais notáveis do seu tempo. Na qualidade de
lente de medicina da Universidade de Coimbra e de matemático, astrónomo e cosmógrafo, terá presidido a uma
comissão de sábios e especialistas em assuntos náuticos, conjuntamente com D. Diogo Ortiz, que foi bispo de Ceuta
e, mais tarde, de Viseu e com Mestre Rodrigo (tal como ele, médico e astrónomo de origem judaica), comissão essa,
incumbida de analisar o plano de Cristóvão Colombo para chegar à Índia, tendo-lhe dado parecer desfavorável.
Nesta incumbência que lhe foi cometida por D. João II, Mendes Vezinho, depois de traduzir o Almanach Perpetuum
de Abraão Zacuto, ajudou a desenvolver e a testar um novo calendário astronómico, elaborou novas tábuas estelares
e outros instrumentos náuticos mais fiáveis, tendo sido altamente relevante o seu contributo na determinação das
rotas náuticas, no estabelecimento da topologia dos mares, em suma, no suporte sapiencial à Gesta dos
Descobrimentos.

86
em si os potenciais maiores daquele imaginar que é capaz de gerar tudo o que
de mais humano e divino houver para a inadiável humanização modeladora do
homem-cidadão do mundo inteiro, em suma, para a gestação de um «homem
novo», sem o qual, pouco ou nada adianta falar de «novas políticas» ou de
«outra política»...
Acredito, convictamente, que o Prof. Aguiar e Silva vai aceitar o desafio
aqui lançado e nos vai dar, conjuntamente com os seus pares, a imprescindível
e sábia ajuda e orientação na concretização deste sonho, para o que contamos,
naturalmente também, com o diferenciado e valorizador contributo de todos:
pessoas e instituições... Em momento oportuno, apresentarei mais
desenvolvidamente este projecto aos meus concidadãos20...
O livre e responsável exercício da cidadania deverá alicerçar-se sempre
no sonhar, no pensar, no querer e no agir interventivos, de tal modo que a
humana condição e o estatuto de «ser cidadão» se possam consubstanciar, com
Hannah Arendt21, no constante, vivo e agonal empenhamento na afirmação, na
defesa e na realização do direito ao(s) direito(s)22 — direito à saúde, direito ao
trabalho, direito à justiça, direito à educação, direito à cultura, direito à
informação, direito à segurança, direito à intimidade e assim por diante... — e,
homologamente, no dever generoso e solidário de assumir obrigações,
compromissos e projectos.

20 Mas adianto, desde já, que a primeira grande iniciativa a levar a cabo pelo CENTRO VÍTOR AGUIAR E SILVA,
após a sua institucionalização, será um Grande Congresso Internacional sobre a Educação Humanístico-
Literária e a Educação Científico-Tecnológica, subordinado ao tema: O papel das Humanidades e, mais
especificamente, da Teoria da Literatura e dos Estudos Literários na Humanização dos usos da Ciência e da
Tecnologia.
21 Hannah Arendt: The Human Condition, Chicago, University of Chicago Press, 1958; On Revolution, New
York, Viking Press, 21963; Crises of the Republic, New York, Harcourt Brace Jovanovich, 1972; The Life of the
Mind, New York, Harcourt Brace Jovanovich, 1978 (ver tradução portuguesa: A Vida do Espírito (vol. I – Pensar;
vol. II – Querer); Lisboa, Edições Piaget, 2000); P. Hansen: Hannah Arendt: Politics, History and Citizenship,
Cambridge, Polity Press, 1993; C. Calhoun and J. McGowan (eds.): Hannah Arendt and the Meaning of Politics,
Minneapolis, University of Minnesota Press, 1997; Simona Forti: Vida del espíritu y tiempo de la polis – Hannah
Arendt entre filosofía y política, Madrid, Ediciones Cátedra, 2001, sobretudo o cap. IX, «Volver a pensar la
política», 319-385.
22 Considerar, neste contexto, o importante estudo de Celso Lafer «A reconstrução dos direitos humanos: a
contribuição de Hannah Arendt», publicado na revista Estudos Avançados do Instituto de Estudos Avançados (IEA)
da Universidade de São Paulo, n.º 11 (30) de 1997, pp. 55-65.

87
Por outro lado, a dignidade jurídica do ser humano deverá configurar
uma construção a ser conduzida sempre em acto ético-poiético, no âmbito
daquela quotidiana convivência colectiva que postula o acesso a um espaço
público comum: a ágora, o fórum. Ora se o direito emerge genesicamente da
esfera do agórico, jamais deveria ser, no plano executório-decisional (este,
inquestionavelmente, o verdadeiro e real plano da concreta e encarnada
realização da justiça!...), transferido para a esfera do alegórico! Na verdade,
quando dele apenas resta uma kafkiana alegoria, é porque foi compelido a
migrar ou foi expulso do mundo real da vida e da cidade para os mundos
possíveis da ficção23, é porque a pessoa humana deixou de ser realmente
perspectivada e assumida como o valor matricial de toda a práxis axiológica
e, assim, da experiência ético-jurídica. Em tais circunstâncias, o direito já não
é (ou nunca chegou a ser...) a superior construção cultural fundada e centrada
no valor da justiça que corporiza em si, na síntese luminosa de Castanheira
Neves24, a suprema axiologia da existência humana em comunidade!... Ou seja:
exilado o direito, tornar-se-á impossível evitar o trágico advento do estado
totalitário25...

23 Não significa isto que, no domínio da criação literária, as narrativas de ficção, os dramas, as tragédias... não
possam proporcionar «exemplares» casos e situações de análise e reflexão (sejam eles eutópicos ou distópicos,
eufóricos ou disfóricos), orientáveis, em última instância, para a salvaguarda e o constante aperfeiçoamento da
realização do direito e da justiça: basta pensar no potencial de paideia jurídica suscitada e proporcionada, por
exemplo, pelo estudo de obras como a Antígona e o Rei Édipo de Sófocles, Crime e Castigo de Fëdor Dostoevksij,
O Processo de Franz Kafka, O Homem sem Qualidades [Der Mann ohne Eigenschaften] de Robert Musil, ou
Quando os Lobos Uivam de Aquilino Ribeiro!... Considerem-se, a propósito e neste contexto, as estreitas relações
entre «Direito e Literatura» [«Law and Literature»], no quadro criativo e inovador do «Law-and-Literature
Movement», quando se reconhece, explicitamente, que «literary studies may frequently bring a greater
understanding to the legal process than the “proper” texts of law or jurisprudence» [Douzinas / Warrington] e que
«we can read literature to better understand concrete human elements of law that conventional legal texts obscure,
and thus can use literature to educate lawyers to deabstract and “humanize” them» [R. Weisberg] (cf. José Manuel
Aroso Linhares: Entre a reescrita pós-moderna da modernidade e o tratamento narrativo da diferença ou a prova
como um exercício de «passagem» nos limites da juridicidade — (Imagens e reflexos pré-metodológicos deste
percurso), Coimbra, Coimbra Editora, 2001, 667, nota 222). Considerar, no mesmo sentido, a sugestiva proposta
de um diálogo alargado com o movimento Law and Literature formulada por Joana Aguiar e Silva: A prática
judiciária entre direito e literatura, Coimbra, Almedina, 2001, 71-75, 80-100. De notar, colateralmente, que a
complexa e densa dissertação doutoral de Aroso Linhares configura, ao mesmo tempo, um fundamentado e muito
bem informado contributo no contexto da dialéctica entre «Modernidade» e «Pós-modernidade».
24 Cf. A. Castanheira Neves: O Direito hoje e com Que Sentido? — O problema actual da autonomia do direito,
Lisboa, Edições Piaget, 2002, 70.
25 Cf. Hannah Arendt: As origens do totalitarismo, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2004, especialmente, 405 ss.

88
É assim que, tal como foi importante dizer não a Auschvitz, assim
importa, também, inverter agora o sentido nihilista da deriva catódica e
depressiva para os não-valores e os contra-valores (anti-valores), sentido esse,
prenunciador de toda a espécie de catástrofes, chamem-se elas Inquisição,
Holocausto, Hiroshima ou Gulag («Se Deus não existe, tudo é permitido»26!...),
e imprimir à dinâmica da História um rumo decididamente anabático ou
ascensivo, de tal maneira que o próprio imperativo categórico de Kant e o seu
fascinante projecto filosófico-antropológico («o céu estrelado por sobre mim e
a lei moral [o dever] dentro de mim»27) sairão reforçados com a constante
activação, na ágora, daquela consciência anamnética28 (consciência ética
compassiva e solidária, auscultante, empenhada e relembrante...) que combate a
indiferença, a acomodação ou a tentação do esquecimento ocultador, cúmplice
e desresponsabilizante...
Daí, a razão crucial da preventiva e imunológica necessidade quer da
celebração memorial e perenizadora das figuras maiores do nosso passado
histórico, quer da sagração dos vultos mais notáveis do presente, contra a
ameaça liquidatária, desradicante e anonimante da amnésia, da agnosia ou do

26 Evocação do famoso intertexto dostoievskiano-sartriano (cf. Jean-Paul Sartre: O Existencialismo é um


Humanismo (tradução, prefácio e notas de Vergílio Ferreira), Lisboa, Editorial Presença, 1962, 193-194:
«Dostoiewsky escreveu: «Se Deus não existisse, tudo seria permitido». Aí se situa o ponto de partida do
existencialismo. Com efeito, tudo é permitido se Deus não existe, fica o homem, por conseguinte, abandonado, já
que não encontra em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue. Antes de mais nada, não há desculpas
para ele. Se, com efeito, a existência precede a essência, não será nunca possível referir uma explicação a uma
natureza dada e imutável; por outras palavras, não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Se,
por outro lado, Deus não existe, não encontramos diante de nós valores ou imposições que nos legitimem o
comportamento. Assim, não temos nem atrás de nós, nem diante de nós, no domínio luminoso dos valores,
justificações ou desculpas. Estamos sós e sem desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado
a ser livre. Condenado, porque não se criou a si próprio; e no entanto livre, porque uma vez lançado ao mundo, é
responsável por tudo quanto fizer.» (os sublinhados são meus).
27 Cf. Immanuel Kant: Crítica de la Razón Práctica, Salamanca, Ediciones Sígueme, 2002, 197.
28 Isto é, uma consciência que acciona a faculdade reconstitutiva e mobilizadora da memória; Adorno e Metz
chamam-lhe simplesmente «razão anamnética» (cf. Marta Tafalla: Theodor W. Adorno – Una filosofía de la
memoria, Barcelona, Herder, 2003, 202 ss; Johan Baptist Metz: Por una cultura de la memoria, Barcelona,
Anthropos, 1999; Johan Baptist Metz: Dios y tiempo — Nueva teología política, Madrid, Editorial Trotta, 2002,
109 ss; Juan José Tamayo-Acosta: Nuevo Paradigma Teológico, Madrid, Editorial Trotta, 22004, 155 ss; José A.
Zamora: «El Dios bíblico y las víctimas de la historia» in revista Éxodo, no 61 (Diciembre) 2001, pp. 32-39; Marta
Tafalla: «Primo Levi y la razón anamnética», in revista Enrahonar: Quaderns de Filosofia, Departement de
Filosofia, Universitat Autònoma de Barcelona, n.º 30, 1999, pp. 89-97.

89
coma geral que faz perder a consciência da nossa identidade e das referências
arquetípicas que a fundam e modelam... Porque, em boa verdade, a morte mais
letal e mais mortífera, a morte que inapelavelmente arrasa, pulveriza e nadifica
não é a do universal e nivelador cessar da vida que, na esfera do biológico, a
todos nos toca indistintamente, com o exalar do derradeiro suspiro: a morte mais
letal e mais mortífera é a do silêncio perpétuo e sem memória, é a do
esquecimento que ignora ou despreza, oculta ou rasura, expunge ou
proscreve29...
Mas a formação de uma consciência memorante e lúcida do que seja a
cidadania (≤ polite€a [e politeia]) e o seu exercício empenhado e responsável,
não pode dispensar os momentos de ensino estruturante e orientador (didaskal€a
[didaskalia]), de aprendizagem exigente e rigorosa (mãyhsiw [mathesis]) e de
exercitação prática aturada e sofrida (êskhsiw [askesis]), momentos esses,
implicados na acção paidêutica (pa€deusiw [paideusis]) e na palavra desveladora
e reveladora, biogénica e culturopoiésica, uma e outra, protagonizadas pelos
professores na Ágora-e-Aula-Magna da Cidade Educativa...
Assim sendo, os professores (em coerente sintonia com a semântica
arcaica e nuclear que se liberta da matriz etimológica do lexema que os nomeia
e identifica30), pela singularidade da sua condição de «especialistas em
humanidade», de protagonistas da palavra fundadora e estruturante, da palavra
iluminante e sedutora, porque sábia, artística e criativa, de «engenheiros-
arquitectos-poetas» dos horizontes vitais e venturos, pela nobreza incomparável
da sua missão essencial e essenciante, formadora e transformadora, enquanto
acurados «intérpretes dos deuses» e esperançosos «mensageiros do futuro», em
circunstância alguma, deverão assumir para com aqueles que transportam em si
o divino-humano em sua expressão mais pura e mais sagrada — as crianças e
os jovens — práticas educacionais e comunicacionais que não sejam dignas
deles e de si próprios; em circunstância alguma, deverão conceber e desenvolver
um tão alto projecto e processo, na base de um «discurso» que, pela falta de
preparação científico-pedagógica, elevação cultural, autenticidade humana e

29 Cf. Fernando Paulo Baptista: Polifonia..., já cit., 37.


30 Sobre a etimologia e a semântica profunda da palavra ‘professor’ (e da palavra ‘profeta’), ver, no fim, I.
ANOTAÇÕES, 1.2.

90
seriedade deontológica, viesse a merecer o epíteto de «blasfemo» (blãsfhmow
[blasphemos])31, na acepção que este adjectivo tem em grego, ou seja, um
discurso maculador dessa pureza e ofensor dessa antrópica divindade genuína
e prístina...
Pelo contrário, impõe-se-lhes escutar (auscultar...) as vozes proféticas e
sábias que irrompem do passado, nascidas da pureza e dos abismos do ser;
impõe-se-lhes seguir novamente a «lição» ética e culturalmente forte dos
«Grandes Mestres», daqueles «mestres de estofo e de estatura» de que nos fala
George Steiner nas suas Lessons of the Masters32, com a consequente recusa do
que não presta, do que não tem elevação, nem sentido, nem grandeza e a
permanente assunção de uma inconformada libido sciendi, de uma aturada e
sofrida ascese melhorativa e de uma inextinguível, porque sempre jovem,
paixão pelo intranscendido legado dos Studia Humanitatis, das Litterae
Humaniores, numa palavra, da Magna Charta Sapientiae et Humanitatum...
Na verdade, quando um Professor digno desse nome consegue tocar com
a sua postura ética auto-exigente e alumiante e com o seu agir sapiencial e

31 Não falando já naqueles anomalíssimos casos (chocantemente indignos e, por isso mesmo, severamente
condenáveis...) do recurso à agressão física e a registos de linguagem insultuosa e ofensiva, não pode deixar de se
considerar «blasfemo» o «discurso» pedagógico-didáctico marcado pela impreparação, pela inconsistência, pela
incongruência, pela insegurança, pelo atabalhoamento, pela inanidade, em suma, pela «falta de nível»... Na verdade,
que elevação e que dignidade poderá haver naquele tipo de aulas ou de seminários em que, por exemplo, em pleno
ensino universitário (que, pela especial responsabilidade formativa que lhe é cometida, deveria constituir uma
referência, um modelo, um paradigma... para os demais níveis de ensino...), o professor (?) passa o tempo a projectar
(em acetato ou em PowerPoint...) profusos, confusos e inestéticos diagramas e desconexos excertos textuais,
desrespeitadores dos elementares princípios da coerência, da clareza e da inteligibilidade, ou a ditar do seu caderno
(em jeito de muleta...) para o caderno dos alunos insípidos, anedóticos e massacrantes apontamentos, desprovidos de
qualquer conteúdo sapiencial relevante?... Não será de repensar o significado (desde logo etimológico...) e a atribuição
do título e grau académico de «doutor»?... Que irá acontecer com o «processo de Bolonha»?... Será que a
«mercatorização» de «mestres» e «doutores» do tipo «fabrico em série» configura uma hipótese de todo em todo
absurda e improvável ou uma conjectura meramente «académica»?... Por outro lado, pressupondo sempre a imparável
complexidade crescente que marca, de modo incontornável, o processo do conhecimento fundamentado e rigoroso,
actualizado e actualizador, e o dinamismo da construção da ciência e da cultura, à luz dos já conhecidos cronogramas
«bolonheses» para a obtenção de graus académicos, que valor se vai dar, efectivamente, ao tempo e ao ritmo da
reflexão crítica e criteriosa e da meditação profunda e alargada que subjazem (deveriam subjazer!...) à investigação,
à elaboração (produção/criação) e à comunicação do saber?... Numa formação verdadeiramente superior, o que é que
importará mais: o quantum ou o quale?...
32 Cf. George Steiner: Lessons of the Masters, Cambridge/Massachusetts, Harvard University Press, 2003 (segui
a tradução espanhola: Lecciones de los Maestros, Madrid, Ediciones Siruela, 2004, especialmente, 169 ss, e a
tradução portuguesa: As Lições dos Mestres, Lisboa, Gradiva, 2005, especialmente, 145 ss).

91
poiético (poihtikÒw [poietikos]) as raízes do ser e o coração da alma dos seus
discípulos, desenhando e rasgando aquela largueza de horizontes e de oceanos
que lhes garante a autonómica aventura de todas as navegações, pode, depois,
quedar-se só, recolhido na serena discrição do seu silêncio, porque ficará
gravado, para sempre, na gratidão, na memória e no afecto daqueles a quem ele
ajudou a crescer...
A «lição» dos Grandes Mestres, tal como a palavra dos Grandes Poetas,
porque é fundadora, é imperecível… E essa tem sido a lição imorredoura desse
Mestre incomparavelmente sábio, fulgurante e encantador que é e vai continuar
a ser, para benefício de todos nós, o nosso muito querido Professor Doutor Vítor
Manuel de Aguiar e Silva...

Fernando Paulo Baptista

I. ANOTAÇÕES:

1.1. Para um mais aprofundado entendimento dos referidos «modos» da razão


(instrumental, funcional) e suas «perversões», considerar, entre outras, as esclarecedoras e
bem elaboradas «introduções» de Juan José Sánchez a Max Horkheimer: Crítica de la
Razón Instrumental, Madrid, Editorial Trotta, 2002, 9-38 e a Max Horkheimer e Theodor
Adorno: Dialéctica de la Ilustración — Fragmentos Filosóficos, Madrid, Editorial Trotta,
4
2001, 9-46). Para a indispensável dilucidação conceptual implicada na problemática da
«modernidade» e da «pós-modernidade», considerar, entre outros: Nicola Abbagnano e
Giovanni Fornero: Dizionario di Filosofia, Torino, UTET, 1998: entradas «Moderno» (págs.
723-724), «Modernismo» (págs. 722-723), «Postmoderno» (págs. 841-842); Mariano
Moreno Villa (dir.): Diccionario de Pensamiento Contemporáneo, Madrid, San Pablo, 1997:
entradas «Modernidad» (págs. 796-802) e «Posmodernidad» (págs. 967-973); Michela
Nacci: artigo «Postmoderno», apud: Paolo Rossi (dir.): La Filosofia — IV Stili e modelli
teorici del Novecento, Torino, UTET, 1995, 361-397; Victor E. Taylor – Charles E. Winquist
(eds.): Enciclopedia del Posmodernismo, Madrid, Editorial Síntesis, 2002; Thomas
Docherty (ed.): Postmodernism. A Reader, New York, Columbia University Press, 1993;
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Dictionary of the History of Ideas, Thomson Gale, New York – London, 2005, vol. 5, 1867-

92
1870; José Antonio Pérez Tapias: Filosofía y Crítica de la Cultura, Madrid, Editorial Trotta,
2
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2001: «Crisis de la Modernidad y Pensamiento de la Diferencia», 411-490; Mariano Fazio
e Francisco Fernández Labastida: Historia de la Filosofía — IV. Filosofía Contemporánea,
Madrid, Ediciones Palabra, 2004, 383 ss; Jürgen Habermas: O Discurso Filosófico da
Modernidade, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1990; Anthony Giddens: Le Conseguenze
della Modernità, Bologna, Il Mulino, 1994; Anthony Giddens: Modernidad e identidad del
yo — el yo y la sociedad en la época contemporánea, Barcelona, Ediciones Península, 1995;
Miguel Baptista Pereira: Modernidade e Tempo, Coimbra, Livraria Minerva, 1990; Miguel
Baptista Pereira: Modernidade e Secularização, Coimbra, Almedina, 1990; Alain Touraine:
Crítica da Modernidade, Lisboa, Edições Piaget, 1994; Fernando Cabral Pinto: A Formação
Humana no Projecto da Modernidade, Lisboa, Edições Piaget, 1996; Philippe Engelhard: O
Homem Mundial – Poderão as Sociedades Humanas Sobreviver?, Lisboa, Edições Piaget,
1998; Remo Ceserani: Raccontare il postmoderno, Torino, Bollati Boringhieri, 1997;
Michele Pellerey: L’agire educativo. La pratica pedagogica tra modernità e postmodernità,
Roma, LAS, 1998; Fredric Jameson: Teoría de la postmodernidad, Madrid, Editorial Trotta,
2
1998; Fredric Jameson: Las semillas del tiempo, Madrid, Editorial Trotta, 2000; Hans-
Georg Gadamer: Hermenéutica de la Modernidad – Conversaciones con Silvio Vietta,
Madrid, Editorial Trotta, 2004; Rosa María Rodríguez Magda: Transmodernidad,
Barcelona, Anthropos Editorial, 2004; Diego Bermejo: Postmodernidad: pluralidad y
transversalidad, Barcelona, Anthropos Editorial, 2005 (importante e clarificador ensaio,
muito centrado sobre o pensamento e a obra de Wolfgang Welsch em torno desta
problemática). Nota: não será de estranhar, por certo, a significativa presença, aqui, de
referências bibliográficas da Editorial Trotta, uma vez que se trata, reconhecidamente, de
uma das mais importantes instâncias de divulgação do pensamento contemporâneo, em
língua espanhola.
1.2. A palavra ‘professor’ (proveniente do latim professor, -oris), apresenta a mesma
raiz indo-europeia * bha- / bhe- (com a variante greco-latina pha- / phe- > fa- / fe- = falar,
declarar, manifestar em público, tornar evidente através da palavra...) do nome grego fÆmh,
-hw [pheme, -es] e do seu homólogo latino fama, -ae (= fama, revelação e publicitação pela
palavra, oráculo, augúrio, presságio ou advertência vinda dos deuses, reputação, favorável
ou desfavorável, boa ou má, posta a circular em público acerca de alguém), dos verbos for,
fari, fatus sum (= falar, dizer, proferir), fateor, fateris, fateri, fassus sum (= declarar, falar) e
seus derivados confiteor (= confessar), profiteor (= professar, declarar publicamente) e,
ainda, de um significativo conjunto de outros lexemas da mesma família: fandus, infandus,
nefandus, infans, fatum, fatalis, fatidicus, facundia, facundus, fabula, fabulosus, fabulo, -as,
-are, fabulatio, fabulator, affabilis, affabilitas, confabulor, infamia, infamis, famigerator,
ineffabilis…
Esta raiz *bha-/bhe- / pha-/phe- [> fa-/fe-] está também presente no verbo grego
fhm€ (phe-mi = falar, tornar manifesto o pensamento através da palavra, revelar, anunciar

93
em público…), no verbo seu derivado blasfhm°v (blasphemeo = maldizer, blasfemar,
praguejar, ofender com palavras), sendo de notar que este lexema é formado na base da
combinação da raiz blas- [blas-] do verbo blãptv (blapto = ferir, magoar, ofender, lesar...)
com a raiz fh- [phe-] do já referido verbo fhm€ e, no contexto de práticas sacrificiais de
natureza religiosa, assumia o significado específico de «fazer afirmações de mau agoiro,
proferir expressões ofensivas da divindade»; está igualmente presente no nome blasfhm€a
(blasphemia = impropério, insulto, palavra ou expressão injuriosa ou desrespeitosa do
sagrado e do divino, blasfémia...), nos nomes fvnÆ (phone = som vocal, forte e nítido,
voz...), f≈nhma (phonema = som vocal, palavra, discurso, fonema, este último, em sentido
“técnico” especializado...), no verbo fvn°v (phoneo = emitir sons vocais, audíveis e claros,
falar alto, dar voz de comando...), no nome profÆthw (pro-phetes = profeta, aquele que
interpreta a vontade dos deuses e que fala em seu nome, aquele que anuncia o futuro...) e
em vários lexemas portugueses de origem grega ou latina: abandonar33, abandono,
afabilidade, afasia, afável, afonia, afónico, antífona, banal34, banalidade, banalizar, banir,

33 Ver nota seguinte.


34 Nota: Tal como os lexemas profeta e professor e demais vocábulos da respectiva família lexical acabados de
inventariar, também os lexemas banal, banir, abandonar, abandono e seus derivados apresentam, em seu núcleo
morfogénico, a mesma e já referida raiz fundadora — * bha- / bhe- // pha- / phe- [ > fa- / fe-] —, cujo «ADN
semântico» é constituído pela ideia de «falar em público», de «assumir publicamente a palavra». Mas importa
referir, desde já, que a variante bha- desta raiz tem uma significativa presença no léxico de várias línguas de
matriz indo-europeia (como, por exemplo, o gótico, o frâncico, o germânico, o francês, o norueguês e o inglês,
estas três últimas, sobretudo em suas variantes diacrónicas «old»: old french, old norse, old english...),
assumindo especial relevância em certas práticas comunicacionais inerentes à organização social e às dinâmicas
institucionais daí decorrentes, nos domínios religioso, político e militar do pré-feudalismo e do feudalismo e no
quadro da dialéctica «palavra VS poder». Assim, por exemplo, tanto as autoridades religiosas como as civis e
militares tinham, entre outras, a prerrogativa de fazer convocações, intimações e proclamações públicas,
práticas estas, marcadas por uma clara centralidade e preeminência da palavra. De tal modo que aquele que,
simultaneamente, tinha o poder da palavra e a palavra do poder configurada em actos linguísticos institucionais
e públicos como os já mencionados (actos de convocação, de intimação e de proclamação...) se designava e
identificava, em francês antigo, pelo nome ban (lexema constituído pela raiz bha-, com adjunção do sufixo -n)
que, por isso mesmo, também significava (numa relação metonímica de «dominador <> dominado», «soberano
<> vassalo», «subordinante <> subordinado», «causante <> causado»...) autoridade, senhor, chefe,
comandante... Ainda na mesma linha de sentido e tomando sempre como base a já citada e comum raiz
fundacional bha- / bhe-, no que diz respeito especificamente às proclamações, cabe sublinhar que os lexemas
que as nomeiam apresentam o mesmo designador ban [< bha- + -n], com ligeiras ampliações sufixais.
Exemplificando: em germânico, proclamar dizia-se banwan [< ban + -wan]; em gótico, proibir ou impedir,
dizia-se bannan [< ban- + -nan]; em norueguês antigo, banna [< ban- + -na] significava anunciar publicamente
a proibição (proibir) ou proclamar a maldição (amaldiçoar); em inglês antigo, gebann [< ge- + ban- + -n]
significava proclamação; em frâncico, o verbo bannjan [< ban- + njan] tinha o significado de banir, ou seja,
proclamar a exclusão, declarar publicamente a condição de proscrito e, daí, expulsar, desterrar, proibir,
silenciar, suprimir... De facto, todo aquele que praticasse crimes graves como, por exemplo, os materializados
em actos de traição ou deserção, de dissídio ou heterodoxia, de contestação ou oposição ao poder instituído, era
publicamente denunciado e declarado pelo ban (pelo «senhor do poder da palavra» e, ao mesmo tempo, «titular

94
blasfemar, blasfémia, blasfemo, brasfemar, brasmar, difamar, disfasia, disfemismo,
enfabulação, enfabular, eufemia, Eufémia, eufemismo, eufemístico, eufonia, fábula, fabular,
fabuloso, fada, fado, fala, fama, famigerado, famoso, fandango, fone, fonema, fonética,
inefável, infame, infâmia, infância, infantaria, infante, infantil, nefando, polifonia, prefácio,
profecia, profético, profetizar, sinfonia, telefone, telefonia...
Por outro lado, a raiz *bha-/bhe- / pha-/phe- [> fa-/fe-] que temos vindo a considerar
e que, como vimos, é portadora da ideia geral de falar, de se manifestar em público e com
clareza, através da palavra, apresenta a mesma estrutura formal da raiz *bha-/bhe- > ba-
/bo-/fa-/fo- que significa brilhar, fazer sinais, acenar e que está na base, entre outros, do
lexema grego f«w, fotÒw (= luz do sol, luz do dia, luz proveniente das regiões habitadas
pelos deuses, designadamente por Zeus [< Djeu+s], nome da mesma família dos nomes
latinos deus, -ei [= deus, divindade], dies, -ei (= dia, luz solar) e Iupiter [< Iu+Piter = <
Djeu+Pater = Deus Pai], divindade que, segundo a Mitologia35, é o supremo habitante do

da palavra do poder»...) como alguém outlaw [out law] e que, portanto, era imperioso proscrever, exilar ou
marginalizar, retirando-lhe inclusivamente a liberdade de expressão, através da censura ou da excomunhão,
banindo-o ou proibindo-o de intervir ou de se manifestar na ágora ou no fórum, ficando, desse modo, votado ao
ostracismo e ao abandono [< a + bha + n + don], excluído da sua comunidade de pertença, em consequência
daquela proclamação exclusora, o mesmo é dizer, por efeito do exercício e da acção da palavra banidora, a palavra
poderosa do ban, publicamente proclamada... Dito de modo esquemático: o senhor (o ban), detentor, enquanto
anthropos, do «poder da palavra» e detentor também, enquanto auctoritas, da «palavra do poder», bania, isto é,
proferia a palavra exclusora e esta determinava e instituía, de imediato, a situação de exclusão e de abandono que
afectava quem fosse banido (performatividade e efeito ilocutório-directivo dos actos de linguagem [speech acts])...
Por outro lado, a palavra proferida em público por quem detinha a autoridade ou o poder de comando, ao ser
difundida ou propagada, ao distanciar-se ou afastar-se da sua fonte originária e do seu emissor «autorizado», sofria
os efeitos erosivos, desgastantes e descaracterizadores da desmultiplicação, da divulgação, da recorrência e da
usura: numa palavra, vulgarizava-se, deixando de ser própria para se tornar comum e, portanto, banal [< bha- + n
+ -al], isto é, banalizava-se ou trivializava-se, à semelhança, aliás, do que acontecia com aquele tipo de mulheres
que, numa postura duvidosa, circulavam diariamente pela zona de confluência de três das principais vias da antiga
Roma (via Appia, via Aurelia, via Flaminia) e que, por isso mesmo, se diziam (por metonímia) mulheres triviais...
Mulheres, todavia, que não deixavam de ser, em certa medida, também elas mulheres banidas e mulheres banais,
pelo facto de serem alvo de ajuizamentos sociais depreciativos, desqualificantes, estigmatizantes e excludentes...
Daí, por extensão e com o reforço da enfatização do sentido minimalista decorrente dos conteúdos considerados
estritamente elementares na aprendizagem das disciplinas constitutivas do velho trivium curricular (ainda aqui, três
vias [tri + vium < tres viae]: gramática, retórica e dialéctica...), passou a considerar-se trivial não só tudo quanto
se depreciou com a perda do seu valor primigénio e próprio mas também tudo quando social e culturalmente
representava tão simplificada e banalizada elementaridade... Parece ter ficado, assim, dilucidada, a partir da raiz *
bha- / bhe- // pha- / phe- [ > fa- / fe-], a aparente «estranheza» da relação semântico-etimológica e lexical entre as
palavras professor, profeta, banal, banir e abandono, no fundo, todas elas transversalmente percorridas (e
percutidas) pelo fio identitário do mesmo «ADN semântico»: a palavra que se profere em público (*bha- / bhe- //
pha- / phe-) e que tanto pode rasgar e iluminar os horizontes da vida, da utopia e da esperança e anunciar a
redenção, como pode agoirar o negrume da noite, do desespero e do nada e lavrar e proclamar a sentença
irrevogável e irrecorrível da condenação e da morte...
35 Cf. Pierre Grimal: Dicionário da Mitologia Grega e Romana, Lisboa, DIFEL, 1992, entradas «Júpiter» e «Zeus».

95
reino da luz, senhor do raio e do trovão, deus da luz e pai do dia...). Esta segunda raiz
(*bha-/bhe-), que traduz as ideias de ‘brilhar’, ‘fazer sinais’, está na origem de diversos
vocábulos portugueses — desde bandeira, passando por fantasia, fenómeno, farol,
fosforescência, fotão e epifania36... —, sendo naturalmente conjecturável a ocorrência de
interacções semânticas por via tropológica entre a ideia de «falar com clareza» (por forma
a tornar “visíveis” ou entendíveis as coisas…) e a ideia de “brilho”, de “lucidez”...
Em resumo: o nome ‘professor’ é, como se viu, um lexema da mesma família do
verbo profiteor [< pro + fateor, com evolução apofónica: fa > fi], -eris, -eri, fessus sum] que
significa professar, falar em público e abertamente, proclamar diante de e em favor de algo
(por exemplo: de causas como as da justiça, da verdade, do bem, do belo, da solidariedade...)
ou em favor de alguém, falar para a frente, antecipando o futuro…
Assim, em sintonia com a semântica fundamental que deflui da sua própria
etimologia e das aludidas interacções com a ideia de «luz», o professor (tal como os
profetas… e os poetas…) é o protagonista da palavra inspirada pelos deuses, da palavra
iluminante, projectante, criativa e empenhada a favor (pro-[fessor]) das grandes causas, em
suma, o alumiante mensageiro-poeta da humana construção do futuro... (cf. Fernando Paulo
Baptista: «Educar para a cidadania! — Palavra de Professores», apud João Paraskeva [org.]:
Currículo e Multiculturalismo, Mangualde, Edições Pedago, 2006, 225-227).

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36 Bandalho, bandarilha, bandeirola, bandido, bando, bandoleiro, bóia, contrabando, debandar, diáfano,
fantástico, fase, ênfase, fosfeno, fósforo, fosfóreo, fosforescente, fótico, fanerogâmico, hierofanta, sicofanta...

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TAYLOR, Victor E. – WINQUIST, Charles E. (eds.): Enciclopedia del Posmodernismo, Madrid, Editorial
Síntesis, 2002.
TOURAINE, Alain: Crítica da Modernidade, Lisboa, Edições Piaget, 1994.
ZAMORA, José António: Theodor W. Adorno – Pensar contra la barbarie, Madrid, Editorial Trotta,
2004.

99
AQUELE NOSSO LICEU!...
(improviso-evocação)

Senhor Vereador, em representação do Senhor


Presidente da Câmara,
Senhor Representante do
Senhor Governador Civil,
Senhores Vereadores,
Excelência Reverendíssima, Senhor Bispo de Viseu,
Senhores Membros da Comissão Organizadora desta Homenagem,
Senhores Professores,
Excelências,
Minhas Senhoras e meus Senhores,

Professor Aguiar e Silva:

Eu não venho fazer um discurso. Nem papel tenho!... E para erudição (e


temos aqui muita, muita erudição...), entendo dever confinar-me à que nos é
transmitida por tantos e tão brilhantes intelectuais e académicos.
Venho aqui prestar publicamente a minha homenagem sincera a um
Homem, a um Viseense, a um Colega — Vítor Aguiar e Silva — e dar-lhe o meu
abraço muito amigo.
Quero começar por dizer que já este ano se cumpriram 50 anos (cinquenta
anos é uma vida!...) que tu e eu (está ali o Alexandre; não sei se o Bica já está aí
também... Ah! Já o vejo ali!...) fizemos a última matrícula no Liceu Nacional de
Viseu, no então 7.º ano, que era o último ano do curso de complemento do ensino
liceal. Cinquenta anos!... E tivemos sorte em o fazer. É bom recordar, para o
transmitir principalmente aos mais novos, que esta cidade já teve um liceu, o tal

101
Liceu Nacional de Viseu, que era uma instância de ensino, de pedagogia e de
cultura que não era vulgar naquela época!... Os alunos gostavam de estudar por
uma razão muito simples: tinham professores que gostavam de ensinar!...
O Senhor Presidente da Câmara de Viseu evocou já aqui os nomes de dois
desses professores: o Dr. Luís Simões Gomes e o Dr. Augusto Saraiva. Na
verdade, estes dois homens tiveram uma influência enorme no futuro dos seus
alunos, nomeadamente do Aguiar e Silva que está aqui sentado. E porquê?... O
primeiro, porque nos ensinou a ler; o segundo, porque nos ensinou a pensar...
Mas porque, nos tempos que correm, escasseiam, entre os nossos jovens
estudantes, os bons hábitos de leitura, deixem-me que me refira mais
pormenorizadamente à figura do Dr. Simões Gomes... Ele era capaz, ele foi
capaz de criar em todos nós (e a turma era grande e nós tínhamos 17 anos
incompletos...) o prazer de ler... Nesse tempo, não se liam resumos das crónicas
de Fernão Lopes: liam-se as crónicas de Fernão Lopes; não se lia um bocadinho
do Auto da Alma de Gil Vicente: liam-se as obras completas de Gil Vicente;
liam-se Os Lusíadas todos e a lírica camoniana toda... E assim por diante... E,
lá mais para a frente, os Sermões do Padre António Vieira, os sonetos de Bocage
e, mais tarde, Garrett, Herculano, Camilo, Eça de Queirós (a obra completa
dele), Fernando Pessoa... Enfim, nós líamos tudo.
Já nessa altura (lembro-me como se fosse hoje!...), alguns de nós (de entre
os quais sobressaía o Vítor que era o «comandante» no bom sentido do termo...),
à noite (porque só à noite é que abria...), vínhamos aqui para a parte que fica ali
ao lado, no andar de baixo deste edifício da Câmara: era aí que então estava
instalada a Biblioteca Municipal que continha preciosos livros, cronicões e tudo
isso... À noite, sim, à noite, vínhamos para aqui estudar por gosto!...
O Dr. Simões Gomes era um homem que tinha algumas manhas. E a
maior manha que ele tinha era fazer o calendário das aulas. As aulas de literatura
eram sempre às 11 da manhã. E sabem porquê?... Porque, chegado o meio dia,
tocava a campainha para irmos almoçar... Mas não íamos!... Ficávamos lá, na
sala de aulas, até à uma da tarde!... E ele não fazia isso para receber horas
extraordinárias! Não fazia isso para, como se diz agora, progredir mais
rapidamente na carreira: fazia isso, porque o ensino para ele era um
sacerdócio!... E todos nós tínhamos prazer em estar naquelas aulas, de discutir
e debater as ideias e de as enriquecer, à custa da análise, da pesquisa, da
hermenêutica dos textos e da criatividade dos mesmos. O que significava a

102
independência do espírito, a iluminação do pensamento, numa palavra, o
perípato da cultura...
Os alunos tinham de sair do liceu, cultos: não podiam ser apenas
despejadores de conhecimentos que fossem ministrados de qualquer maneira.
Por isso — devo confessá-lo! —, quando nós terminámos o nosso sétimo
ano, já era previsível estarmos hoje aqui, porque o Aguiar e Silva distinguia-se
nitidamente dos seus colegas e via-se perfeitamente que a sua carreira ia ser a
carreira universitária. Como foi. De Investigador, de Académico, de Professor...
Portanto, naquele tempo, dizia-se: «o Vítor vai lá chegar acima!». E do nosso
curso houve dois que realmente foram universitários: foi o Aguiar e Silva e
permitam-me que evoque, também aqui, outro Viseense, nosso colega, que
infelizmente já morreu: o José Alberto Osório Mateus...
Pronto. Fomos para a Universidade. Cada um de nós seguiu o seu rumo,
mas nunca perdemos de vista o Vítor Aguiar e Silva. Não era preciso dizer-lhe
ou perguntar-lhe essas coisas... Mas nós, as pessoas que eram mais próximas
dele, sabíamos o brilhantismo que ele tinha como aluno e tínhamos a certeza de
que, mais um anito ou dois ou três, lá estaria ele a subir e a iniciar a sua carreira
universitária... Como fez!
Também sou dos que defendem que temos de ter orgulho, como diz o
Fernando Paulo, dos nossos sábios, dos nossos cientistas, dos cidadãos que, ao
fim ao cabo, dão alicerce a este país que é Portugal. Eles têm de ser
homenageados publicamente. É uma lição de pedagogia e de cidadania perante
os mais novos: é um acto público de justiça! Mas isso nem sempre se faz...
E muito embora eu esteja aqui muito feliz e muito contente por participar
numa homenagem que Viseu e Penalva do Castelo muito justamente estão a
fazer ao meu querido amigo Vítor Aguiar e Silva, eu penso que o que se lhe
deveria prestar era uma homenagem nacional, porque, hoje, ele integra, com
todo o direito e com todo o mérito, o escol da Intelectualidade Portuguesa. E isto
tem que ver com a recordação histórica e com o papel da própria cultura
literária: através da História e da Literatura, nós aprendemos imenso acerca das
sociedades e dos cidadãos que as compõem.
Era esta a minha mensagem, foi este o meu gosto... Deixa-me dar-te um
abraço!...
João Lima
antigo colega de turma, no Liceu

103
UM EXEMPLO PARA TODOS OS
ACADÉMICOS...

Gostaria de começar por dizer que é, para


mim, uma honra e uma enorme satisfação poder,
em representação do Pólo de Viseu da
Universidade Católica Portuguesa, participar
nesta merecidíssima homenagem ao senhor
Professor Doutor Vítor Aguiar e Silva, um dos mais notáveis e prestigiados
académicos da área das Letras da Universidade Portuguesa.
Embora nunca tenha leccionado no Pólo de Viseu da UCP, a marca do
Professor Vítor Aguiar e Silva como académico de excelência ficou, contudo,
bem patente nas várias conferências e palestras que, ao longo dos anos, foi
proferindo na Universidade Católica de Viseu. A primeira, de enorme
simbolismo, coincidiu precisamente com as origens do ensino superior
universitário na nossa cidade e remonta a 1980, quando, em 16 de Novembro
desse ano, pronunciou, no dia da inauguração oficial da Universidade Católica
Portuguesa em Viseu, uma magnífica oração de sapiência intitulada
“Autobiografia e Petrarquismo na Lírica de Camões”. O convite que a UCP lhe
dirigiu, no sentido de proferir a oração de sapiência naquele momento tão
especial, é, por si só, revelador do elevado prestígio que, já então, o Prof. Vítor
Aguiar e Silva detinha no meio universitário. A sua participação neste acto
académico tão significativo fez com que ficasse, para sempre, associado às
origens do ensino superior universitário em Viseu.
Alguns anos depois, regressou à nossa cidade para participar, como
conferencista, nas II Jornadas de Formação de Professores, organizadas pela
Universidade Católica, e que decorreram nos dias 2 e 3 de Maio de 1991 no
cinema de S. Mateus, um dos poucos espaços então capazes de acolher as
centenas de professores do ensino básico e secundário que, naquela época,
procuravam avidamente ouvir prestigiados mestres como o Prof. Vítor Aguiar e

105
Silva. Aí falou sobre “O neo-historicismo nos estudos literários”. O êxito da sua
conferência foi tal que, no ano seguinte, voltou a ser convidado para participar
nas III Jornadas de Formação de Professores que decorreram no Auditório da
Igreja Nova nos dias 12 e 13 de Março de 1992. O Prof. Vítor Aguiar e Silva
acedeu uma vez mais ao convite que a Universidade Católica lhe dirigiu e
participou, juntamente com os professores Óscar Lopes e José Carlos Seabra
Pereira, numa interessantíssima mesa redonda subordinada ao tema “O que é a
Literatura”.
Passados quatro anos voltou à Universidade Católica para participar nas
VII Jornadas de Formação de Professores, que decorreram nos dias 2 e 3 de
Maio de 1996, no auditório Eng. Engrácia Carrilho, onde, perante uma
audiência de mais de 300 professores, participou, juntamente com os
professores José Ribeiro Ferreira e Clara Crabée Rocha, e com o Dr. José
Manuel Mendes, que declamou poemas, numa tarde de reflexão sobre a obra
poética de Manuel Alegre, com a presença do poeta. Viveram-se, então,
momentos de “verdadeira magia”, como reconheceu o próprio poeta Manuel
Alegre quando, tomando a palavra para agradecer as reflexões feitas pelos três
ilustres professores universitários sobre a sua obra poética, se mostrou
particularmente emocionado, dizendo que acreditava estar a viver-se “um
momento de viragem histórica” na apreciação crítica da sua obra literária. A
empatia poeta/críticos foi tal que o próprio Manuel Alegre surpreendeu todos os
presentes, ao decidir declamar um poema, até então inédito, intitulado “Senhora
das Tempestades”, uma criação poética que resultara de uma experiência
pessoal, acabada de viver, de confronto com a efemeridade da vida. Esta quarta
passagem do Professor Aguiar e Silva pela Universidade Católica ficou
indelevelmente associada a um dos momentos literários mais emotivos de entre
todos aqueles que aconteceram na Universidade Católica ao longo de mais de
25 anos, de tal forma que o Prof. Vítor Aguiar e Silva viria mesmo a prefaciar a
colectânea de poemas que Manuel Alegre publicou em 1998, precisamente com
o título Senhora das Tempestades, uma obra poética distinguida com vários
prémios literários. Aliás, o próprio Prof. Vítor Aguiar e Silva, no estudo
“Senhora das Tempestades poesia e libertação do homem”, evoca a comoção
que sentiu ao ouvir o poema, dito pelo próprio Manuel Alegre, perante um
auditório de professores entusiastas. Recordo aqui, com a devida vénia, as
expressivas palavras do Prof. Vítor Aguiar e Silva: “A sua voz grave, profunda

106
e harmoniosa, ganhou modulações, subtilezas e ressonâncias extraordinárias.
Falou do espanto e do pavor de viver e de morrer, de navegações e naufrágios,
de sombras e fulgurações de esperanças, ternuras e desejos, de epifanias
deslumbrantes das sílabas, palavras e versos...”
Estas quatro passagens do Professor Vítor Aguiar e Silva pelo Pólo de
Viseu da Universidade Católica, na qualidade de conferencista, bastaram para
que deixasse a sua marca nesta Instituição Universitária, e todos aqueles que
tiveram o privilégio de o ouvir — e foram muitos — recordarão sempre o alto
nível científico, cultural e estético-comunicacional das suas intervenções.
Como académico e admirador da obra do Professor Vítor Aguiar e Silva,
não poderia terminar esta minha breve alocução sem salientar o importantíssimo
papel que, como autor de várias obras de referência, o Prof. Vítor Aguiar e Silva
tem tido na formação de inúmeros estudantes da área das Letras. De entre essas
obras, destacaria a incontornável Teoria da Literatura, uma obra científico-
didáctica de referência, dirigida para o ensino e com edições sucessivas.
Publicada pela primeira vez em 1967, vai já na 8ª edição e 15ª reimpressão,
tendo sido sempre actualizada e reescrita, pois, como sabiamente diz o próprio
Professor Vítor Aguiar e Silva num prefácio de uma das edições da Teoria da
Literatura: “um livro científico-didáctico que não se renove, com o espírito de
rigor que deve caracterizar a docência e a investigação universitárias, é um livro
condenado a morte breve.”
Em suma, o senhor Professor Vítor Aguiar e Silva é, indubitavelmente,
um dos vultos mais marcantes da Universidade Portuguesa das últimas décadas,
pertence ao número restrito daqueles que, pelo ideal universitário que os orienta,
podem, justificadamente, rever-se na sua obra, nos seus discípulos e nos seus
alunos.
Por tudo isto, o Pólo de Viseu da Universidade Católica Portuguesa não
poderia, de modo algum, dissociar-se desta justíssima homenagem.
Bem haja, Senhor Professor, pelo seu exemplo para todos os académicos.

Aires do Couto
Universidade Católica Portuguesa – Viseu

107
GRANDE E INTEIRO, PORQUE
ALTO VIVE...

(Contributo para um retrato do meu Mestre)

Querido Mestre:

Há quarenta anos, mais dia menos dia, tomei a palavra pela primeira vez
perante o Senhor Doutor. Era também uma destas tardes nostálgicas de Outono,
embora a luz decerto nos parecesse então menos declinante e melancólica.
Singrava o Senhor Doutor nos inícios fulgurantes da sua carreira universitária,
e eu era um deslumbrado e confiante caloiro de “Românicas”…
No Anfiteatro II da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em
plena aula de Teoria da Literatura, tendo detectado certo foco de turbulência em
surdina entre o reduzido núcleo masculino da turma numerosa, o Senhor Doutor
atalhara o desatino com uma interpelação sobre a matéria em causa, calhando-me
a mim ser visado: «Já que lhe puxa para a conversa, diga lá o que é a catarse!...».
Lá respondi como pude; e creio, querido Mestre, que me terei saído
melhor nesses dias derradeiros de 1966 do que hoje mo permitirá a emoção
contida — inevitável, ao cabo de longo trajecto, para aquele que, cinco anos
depois, se tornou o seu primeiro Assistente, encarregado das aulas práticas de
Teoria da Literatura, e sobretudo para aquele que nunca esquece a
responsabilizante conversa com que me privilegiou no final do ano lectivo de
1966-67, após exame oral na cadeira — exame empolgante, mas para o qual
entrara com tensa concentração («Noblesse oblige!», lembra-se?...).
É desde esse horizonte que eu queria aqui, na sequência das eloquentes
evocações que esta jornada nos tem proporcionado, convocar a experiência
grata — minha e de sucessivas gerações de universitários, intelectuais e
professores — de alguns traços relevantes do seu perfil de Mestre.

109
Por conformação genuína do seu espírito, corroborada pelas opções no
campo das grandes amitiés intelectuais, Aguiar e Silva cedo se distinguiu por
um tipo de intelectualismo estético que, em seus alvores, parecia cativado pelo
modelo de Paul Valéry. Mais do que aferir tal afinidade electiva, importa
sublinhar que essa atitude de inteligência actuante não se confundia, nem se veio
a confundir, com o culto de um cerebralismo assente no desinvestimento
emocional e volitivo, não conduzia nem conduz a um virtuosismo de
inteligência axiologicamente asséptica, não se traduzia nem se traduz no
magistério de um aristarco imune às inquietações do seu tempo e alheado dos
anseios humanos que pulsa(va)m na sua circunstância.
O que verdadeiramente seduzia e fazia crescer os seus alunos, o que
soberanamente sempre imperou na sua brilhante trajectória, é esse
inconfundível acerto de lúcido intelectualismo e de sedutor poiein, inspirado na
inquirição solerte e no rigor analítico, conducente à proposta aberta e ao
colóquio fecundo, revestido de pudor afectivo mas propício à partilha convivial.
Desse autêntico intelectualismo poiético, uma primeira lição desde sempre
recebemos: a orientação de mentalidade anti-provinciana. Provincial nas raízes que
preza, isto é, nado e criado na província profunda, nas matriciais terras da Beira,
Aguiar e Silva sempre irradiou um espírito anti-provinciano, de que tão carecidos
estavam e estão os nossos meios culturais. À imagem do Fernando Pessoa que
enfrenta «O caso mental português» e escalpeliza «O provincianismo português»,
Aguiar e Silva — como Pessoa, aliás, um «patriota cosmopolita» — não só nos
ajudava e nos tem ajudado a combater a estreiteza de horizontes (na problemática
e na estesia) e a anquilose dos convencionalismos (nas concepções e no gosto), mas
sobretudo sempre nos conduziu a cultivar as virtudes da ironia profunda no
pensamento e no discurso. Esse exemplo e esse magistério de ironia nunca
mereceram ser desentendidos como altivos exercícios de superioridade intelectual
e verbal, humanamente descomprometida. Implicam, sem dúvida, o indispensável
detachement (que F. Pessoa enaltecia) perante a subtil complexidade do real e o
versátil prisma da nossa percepção das coisas. Mas, em vez de dimanar aquela
sombria suspeita da inanidade existencial, da ausência de sentido ou da irrealidade
de tudo, com que inelutavelmente nos enreda o génio pessoano, a virtude irónica
de Aguiar e Silva transmite discretamente aquela alegria, um pouco melancólica,
de descoberta de uma mais rica pluralidade da nossa presença ao mundo (em que
V. Jankélévitch fazia consistir justamente o essencial da ironia).

110
Todos os que como eu tiveram a fortuna de ser alunos de Aguiar e Silva
puderam fruir ao vivo o que a muitos mais o Mestre oferece nos seus livros e
escritos vários em termos de rara confluência de altos dotes de erudição
multifacetada, de fina sensibilidade estética, de arguta e criteriosa ponderação
crítica, de inacomodado gosto em busca da inovação artística.
Nas aulas dos anos ’60, já Aguiar e Silva deslumbrava com a amplitude
do seu saber, a vastidão das fontes de estudo e dos escritores de referência. Mas
sobretudo nos formava na estruturação teleonómica dos conhecimentos e na
despreconceituada sondagem de pensadores, teóricos e ensaístas – levando-nos,
então, ao encontro tanto de Maritain como de Sartre, de Eliot como de Lukács,
de Xavier Zubiri como de Lucien Goldmann, tal como de muitos outros nas
décadas seguintes.
Desde os anos ’60, veio Aguiar e Silva prodigalizando preciosos dons de
sensibilidade estética e crítica em oportunas digressões das suas aulas e em
pertinentes incisos dos seus trabalhos teoréticos, tal como ex professo em
estudos prefaciais a obras de autores bem diversos e em periódicas conferências
— que a minha memória logo baliza com dois momentos mágicos: certa
palestra dos anos ’60 sobre Guimarães Rosa na Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra e, décadas depois, certa intervenção sobre a poesia de
Manuel Alegre a propósito de Senhora das Tempestades, na viseense Faculdade
de Letras da Universidade Católica Portuguesa.
Desde os anos ’60, quantos tiveram a fortuna de ser seus alunos, ou
ouvintes, ou leitores, acompanham-me sem dúvida na percepção grata de que
Aguiar e Silva com coerência a cada momento nos podia surpreender por
valorações insólitas de obras e escritores, sobretudo por justificada e estimulante
valorização de textos desconcertantes… a que a paz ronceira da vulgata
académica de bom grado nos pouparia (O Som e a Fúria de W. Faulkner, por
exemplo), ou de textos com potencial até aí inadvertido… de que a paz ronceira
do gosto académico de bom grado nos afastava (por exemplo, a ficção narrativa
de Almada Negreiros).
Mas toda essa extraordinária conjugação operativa de dotes e de dons foi
resplandecendo, como é sabido, em sucessivos grandes estudos de literatura
portuguesa em que o labor do Mestre da Teoria Literária se foi desdobrando –
culminantemente na tese doutoral sobre Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica
Portuguesa e na clarividente paixão dos estudos camonianos. Sobre a solidez

111
originária e a permanente renovação dos pressupostos teórico-metodológicos,
da formação filológica e da especulação epistemológica, uma e outra vez Aguiar
e Silva promove magníficos vínculos de ecdótica, análise da estruturação
temático-formal dos textos e hermenêutica valorativa.
Todos esses fulgores não ofuscaram nem ofuscam, evidentemente, o
ímpar empreendimento teorético de Aguiar e Silva – na antonomásica Teoria da
Literatura e em tantos ensaios que têm vindo a marginar a estrada real da sua
insuspensa actualização. A novidade assombrosa de que, no contexto epocal, se
revestia a edição princeps dessa Teoria da Literatura, sofregamente explorada
ao ritmo da saída dos fascículos dos prelos da Livraria Almedina, não pode
talvez ser hoje devidamente concebida por quantos, em contrapartida, constatam
a consistente actualização da obra e se podem render – tendo em vista quer a
amplitude do projecto originário, quer especialmente a alteração introduzida
entre a 3.ª edição e as seguintes –— à lição de coragem moral e de auto-
exigência científica que o Prof. Aguiar e Silva assim dá.
Porém, essa lição e aquela capacidade de operar sempre na vanguarda
dos estudos teórico-metodológicos não surpreendem quem seguiu com
atenção e proveito certos lances de trajectória do Prof. Aguiar e Silva. Lembro
apenas, no dealbar dos anos ’70, a comunicação sobre «Os programas de
Literatura Portuguesa no Ensino Secundário» como relator no I Encontro dos
Professores do Ensino Superior e Secundário de Língua e Literatura
Portuguesas (Faculdade de Letras de Coimbra) – e a clamorosa intervenção do
Prof. Alberto Machado da Rosa, confessando com júbilo, e ao arrepio do seu
severo preconceito em relação à Universidade Portuguesa e à tradição
conimbricense, o espanto que Aguiar e Silva lhe provocara pela actualidade
dos problemas considerados e das perspectivas abertas, com tão seguro
domínio das tendências emergentes e da melhor produção bibliográfica
publicada em livro e em revista por todo o mundo. Lembro, ainda, a
impressionante conferência proferida nos anos ’80, na Fundação Calouste
Gulbenkian, no quadro do I Colóquio de Professores Universitários de
Literaturas de Expressão Portuguesa: aí, Aguiar e Silva dava conta, num rasgo
matizadamente khuniano e entre nós pioneiro, do colapso do paradigma
imanentista às mãos do paradigma semiótico-comunicacional e, com
meridiana clareza, nos instruía sobre as motivações, implicações e
consequências dessa «revolução científica»; do mesmo passo, deixava-nos

112
exemplar lição de discernimento e escrutínio das doutrinas e propostas, em
ordem à coerência orgânica das novas construções sistémicas (por vezes
exigindo a integração superadora de elementos oriundos de paradigmas
postergados, em lugar da radical segregação por «incomensurabilidade» dos
paradigmas).
Sei que não posso alongar-me nesta evidenciação de traços maiores do
perfil do meu Mestre, cuja singularidade se dá, aliás, a conhecer também através
dos seus espaçados trechos de autobiografia intelectual — desde o prefácio à
dissertação de Doutoramento até ao recente «Retrato do Camonista quando
Jovem (Com alguns pingos de melancolia)», nos Santa Barbara Portuguese
Studies — e de reequacionação científica, numa cada vez mais elegante
adequação de fundo e forma (como no modelar opúsculo Sobre o regresso da
Filologia, de 2005, que de novo ilustra um caso de ponderada adesão, em
justificado contraste com as reservas que ao longo do seu magistério lhe têm
merecido outras orientações como os «cultural studies»…).
Mas não posso deixar de pedir-vos ainda breves momentos para
testemunhar que a faceta de intelectual civicamente responsável que o Prof.
Aguiar e Silva manifestou, num trajecto com verdadeira estrutura de
horizonte, em múltiplas e conhecidas intervenções no espaço público (com
particular relevo no domínio das políticas da Educação), é um traço de
personalidade e um propósito de compromisso de clerc sem trahison que
desde os anos ’60 se concretizavam em palestras, escritos e debates — por
vezes correspondendo a solicitações de grupos de estudantes, sem a prévia
condição de plena coincidência de ideário, mas com a firme postulação do
espírito anti-dogmático.
Ora, essa nobre predisposição construtiva do talent de bien faire, que
Deus concedeu ao Prof. Aguiar e Silva e com que este extraordinariamente se
destacou, alicerçava a sua eficiência na invulgar conciliação da sua indisputável
especialização no âmbito das Humanidades com o ávido interesse — próprio do
vero humanista! — pelos contributos dos mais diversos ramos do saber. O
prazer intelectual com que, confessadamente, presidia a provas académicas de
áreas das ciências físico-naturais, como Vice-Reitor da Universidade do Minho,
decorria da mesma forma mentis que já nos seus tempos de Assistente do Prof.
Costa Pimpão dava ao seu ensino uma feição inédita — pois em certa aula sobre
Sá de Miranda, por exemplo, os «passeios inferenciais» em torno da

113
argumentação da «Carta a el-Rei D. João nosso senhor» podiam trazer ao nosso
encontro a etologia de Konrad Lorenz e as contraposições humanistas de
Norbert Wiener, fundador da cibernética!...

Querido Mestre:

Um dos grandes profetas líricos do Romantismo alemão, que o Senhor


Doutor tão bem nos levou a ler e me ensinou a ensinar, disse que «o que há de
perene, os Poetas o fundam». Assim o cremos; e todavia, perante uma pessoa,
uma vida e uma obra como as do Senhor Doutor, tenho de, com igual convicção,
afirmar que o que há de perene — fundam-no os Professores da craveira do meu
Mestre!

José Carlos Seabra Pereira


Universidade de Coimbra

114
A CINTILANTE SABEDORIA DE UM
MESTRE

As palavras que aqui irei pronunciar são,


mais ainda do que todas aquelas que sempre
usamos, ao mesmo tempo minhas e não minhas.
Pertencem-me, e são por isso sem dúvida
minhas, na medida em que gostaria que elas
pudessem reflectir toda a intensidade de uma experiência que é,
indubitavelmente, a minha experiência. Mas não me pertencem apenas a mim,
e são também palavras de uma larga comunidade, que sinto aqui representar.
Isso enche-me de uma alegria que não invalida, entretanto, a percepção de uma
natural responsabilidade, que é a responsabilidade de todo aquele que fala
simultaneamente por si e por muitos outros: porque aquilo que eu possa aqui
dizer será sempre uma expressão minguada relativamente a tudo o que
mereceria ser dito. E, no caso presente, essa míngua, que espero me relevem, é
ainda mais intensa: porque a minha vida foi tocada pelo Professor Vítor Aguiar
e Silva como as vidas de tantos, tantos outros o foram. E eles poderiam
acrescentar ao que eu digo a sua própria experiência.
Nunca fui, infelizmente, e no sentido formal da palavra, aluna do
Professor Aguiar e Silva. O meu percurso fez-se todo ele na Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa e, por essa razão, nunca pude usufruir daquilo que
todos quantos foram seus alunos reconhecem e recordam com enorme
intensidade: encontrar na relação entre discípulo e mestre o rasgar de cortinas
que sempre ultrapassava o objecto específico sobre o qual a reflexão no
imediato se fazia — fosse ele Camões ou a poesia maneirista e barroca, que o
olhar do Professor Aguiar e Silva transformou e reviu, para nós que hoje lemos,
de modo indelével; ou a indagação teorética sobre o fenómeno literário, cujas
pontes com saberes outros, como a História, a Filosofia, a Antropologia ou, mais
recentemente, o Direito, se encontram por ele iluminadas; ou ainda as inúmeras

115
considerações, a que às vezes chamou (e com inteira razão) “tempestivas”,
sobre o Ensino do Português e o lugar da Literatura no quadro da educação em
Portugal, em momentos que tão adversos lhe têm sido — como se da Literatura
não nos viesse uma das possibilidades de experiência simbólica e
antropologicamente mais intensas. Esta tem sido uma primeira e a meu ver
decisiva qualidade de Vítor Aguiar e Silva: o recorte de uma personalidade
intelectual brilhante, cuja curiosidade e abertura o impedem, precisamente, de
se alhear daquilo que é “tempestivo” — mesmo quando as posições a tomar
precisam de ser, como sabemos desde Nietzsche, intempestivas. Porque é desse
ir contra um certo espírito da época (e sublinho “certo espírito da época”) que
também se faz o presente e o que imaginamos como futuro.
Por não ter podido ser aluna do Professor Aguiar e Silva, apenas posso
imaginar o que significou, para tantas gerações de alunos, ter o privilégio de o
ter tido como professor e como mestre. Mas sei que há uma qualidade de
professores em que já não é apenas a competência, o saber e a sensibilidade que
entram em jogo e os definem, embora tudo isto lá esteja sempre. É outra coisa:
um fulgor, que subitamente nos faz ver de modo diferente e também nos faz
diferentes, por o termos conhecido como tal. De repente, somos outros. E
podemos ver, sem sombra de dúvida, como a nossa compreensão do mundo se
alterou e se alargou: não só sabemos mais com o que deste professor
aprendemos, mas (e talvez sobretudo) sabemos melhor.
Não, infelizmente nunca fui aluna formal do Professor Vítor Aguiar e
Silva. Mas, de outro ponto de vista, posso dizer que sempre fui sua aluna. E que
a experiência que descrevo é a de muitos, como a minha: porque a ouvi contar
e evocar, e reconheço a unânime intensidade dos relatos; porque ao longo de
mais de 20 anos tive a oportunidade de o ouvir inúmeras vezes — sempre com
a sensação de que algo me estava a ser descoberto e comigo estava a ser
partilhado, e sei por isso intuir o que terá podido ser a qualidade dessa
experiência pedagógica; e muito em especial porque tudo, tudo quanto fiz e por
isso também sou sempre passou por ele, de uma forma ou de outra. As suas
leituras, os seus livros, as suas sugestões, as suas orientações, as suas dúvidas.
Às vezes, uma brevíssima observação, quase de passagem. E o próprio fulgor
do seu saber, que só não desalenta os que depois dele vieram porque a atitude
de generosa partilha fez também sempre parte do modo como tem ensinado e
nos faz aprender. Mas ainda mais: numa academia, como a nossa, com tão forte

116
tradição de fechamento e desconfiança relativamente ao exterior, e uma tão
grande tradição de endogamia, a figura tutelar de Vítor Manuel Aguiar e Silva
representou sempre a força da possibilidade oposta: a certeza de que aquilo que
sabemos, sabemos com outros, e que as fronteiras do nacional são, no campo do
pensamento, justamente aquilo que precisa de ser ultrapassado, até para poder
não ser ignorado; a arguta curiosidade intelectual, capaz de trazer para dentro de
qualquer debate as relações com o que de mais interessante e pertinente na
Europa e nos Estados Unidos estava a ser criticamente pensado; a consciência
de uma versão robusta daquilo que deve ser o lugar da Universidade dentro da
sociedade actual, como lugar por excelência da consciência crítica e da
produção de um conhecimento que não se limita a ser aditivo mas é, sobretudo,
transformador e auto-consciente.
Por todas estas razões, várias gerações de estudantes e professores não
podem deixar de sentir que o Professor Aguiar e Silva tem sido, para eles, bem
mais do que apenas alguém que lhes transmitiu um determinado conjunto de
saberes: porque quando um professor ensina mais do que aquilo que com ele
aprendemos na aula; quando inevitavelmente o seu magistério não só extravasa
para lá da aula, mas se torna ainda mais vibrante fora dela; quando sentimos que
o seu olhar continua a acompanhar-nos naquilo que nós próprios depois vimos
a fazer, é também quando sabemos que estamos diante de uma daquelas raras
figuras a que gostamos de chamar mestres: aqueles que sabiamente realizam a
convergência entre abertura, curiosidade, generosidade e cintilação de
pensamento.
Curiosamente, das três pessoas que mais me marcaram como professores
e pensadores, duas nunca foram, infelizmente, meus professores directos.
Ironicamente, ou eu chegava demasiado tarde para tal, ou surgia em conjuntura
que o tornava impossível. E no entanto foi com eles que eu mais aprendi, e que
eu mais aprendi a aprender. Foi com eles que todos os dias a minha vida foi
sendo modificada: não apenas porque o meu olhar sobre o literário se encontra
vinculado ao que deles recebi, mas porque a meu ver um bom professor de
literatura é sempre mais do que só um excelente professor de literatura. Com o
Professor Vítor Aguiar e Silva aprendi a reconhecer no Classicismo, no
Maneirismo e no Barroco formas poéticas e formas mentais que configuraram
algumas das aquisições fundamentais para aquilo que depois viemos a ser.
Como aprendi a ler Camões como o genial lugar de convergência entre as mais

117
variadas tradições, populares e eruditas, autóctones e estrangeiras, clássicas,
medievais e modernas, que nos permite reescrever o mapa daquilo a que
chamamos Literatura Portuguesa como mapa constelado. E aprendi sobretudo
que querer pensar, e saber pensar, é uma das formas que pode tomar a alegria
humana, mesmo quando nos confronta com as condições e os limites do nosso
próprio conhecimento — porque é também disso que a sua Teoria da Literatura
fala.
Há situações em que, inevitavelmente, tendemos a fazer balanços, sempre
provisórios. Um dos que com alguma regularidade faço diz respeito ao que
significa ser professor: vejo-o como um sábio e difícil equilíbrio entre aquilo
que se recebeu dos mestres e depois, se a felicidade nos acompanha, aquilo que
se pôde dar, oferecer, aos que depois de nós tiverem vindo. Não há para mim
figura como a do Professor Vítor Aguiar e Silva na qual eu veja melhor
cristalizado esse equilíbrio generoso entre aquilo que foi recebido e o que depois
veio a transmitir, tendo-o entretanto acrescentado e modificado. Saber que a
minha vida foi tocada pela dele e que, de cada vez que isso aconteceu, aquilo
que eu sei, sei melhor, é a grata razão por que termino com uma expressão
muito dele, e muito beirã: bem-haja. Reconheço neste bem-haver tudo quanto
dele recebi e gostaria muito, mesmo muito, de aqui poder retribuir.

Helena Carvalhão Buescu


Universidade de Lisboa

118
UM «ROLE MODEL» DO
VERDADEIRO SENTIDO DE
UNIVERSIDADE...

É com uma enorme satisfação pessoal


que me associo a esta iniciativa de homenagem
ao Prof. Vítor Aguiar e Silva, promovida sob o
lema “celebrar o mérito, consagrar as grandes
referências do saber, da cultura, da educação e da cidadania”. Dificilmente a
Comissão Organizadora do evento — coordenada pelo infatigável Prof.
Fernando Paulo Baptista — poderia ter encontrado uma melhor forma de
expressão para caracterizar o perfil do homenageado, ou uma outra
personalidade que tão bem se adequasse ao lema adoptado; porque, ao
homenagear Vítor Aguiar e Silva, estamos indubitavelmente a celebrar o
mérito no seu expoente máximo de uma referência ímpar no mundo
académico e no exercício de uma cidadania activa.
Sinto-me, pois, muito honrado pela oportunidade que me é dada para
trazer aqui um testemunho muito pessoal, baseado numa vivência intensiva da
causa universitária que tivemos oportunidade de partilhar.
Conheci o Prof. Aguiar e Silva nos primórdios da Universidade do
Minho. Lembro-me bem do entusiasmo do Prof. Lloyd Braga, primeiro Reitor
da U.M., por poder levar para aquela jovem Universidade um Professor muito
prestigiado, especialista em Teoria da Literatura, com uma reputação já
internacionalmente reconhecida. Esse entusiasmo enquadrava-se numa
preocupação da Comissão Instaladora, de dotar os diferentes domínios
científicos de intervenção da Universidade com elementos de referência, de
qualidade e prestígio inquestionáveis, capazes de actuarem como catalizadores
— “role models” — para o corpo docente e investigador, contribuindo para o
desenvolvimento científico e para o “fazer Escola” imprescindíveis à afirmação
de uma nova instituição universitária.

119
Constituindo a Universidade do Minho, na altura, uma pequena família
em que todos se conheciam e interactuavam, pude acompanhar o seu percurso
académico brilhante, com uma produção científica de excelência e uma
qualidade de ensino altamente apreciada pelos estudantes, como foi aliás
amplamente relevado ao longo desta sessão por pessoas bem mais qualificadas,
do que eu próprio, para o fazer.
Começamos a trabalhar de forma mais próxima no âmbito do Conselho
Científico da Universidade, órgão que, de forma pioneira, antecedeu o chamado
“Decreto Cardia” que viria a generalizar a constituição de Conselhos Científicos
em todas as Escolas Universitárias. Dessa experiência, retiro um primeiro
elemento da personalidade do Prof. Aguiar e Silva que me impressionou e
marcou: a sua capacidade para assumir uma visão dinâmica e prospectiva da
Universidade, intransigente na defesa dos valores universitários mas liberta das
peias de uma visão muito tradicionalista então ainda preponderante no
panorama universitário nacional.
Foi essa visão que o levou a aderir, por exemplo, à assunção de políticas
de coesão institucional, praticadas na Universidade do Minho, como foi o caso
da definição, pelo Conselho Científico, de uma política para a investigação com
o objectivo de consubstanciar o princípio do direito e do dever de os docentes
universitários praticarem a investigação, dispondo dos meios para tal
necessários. Lembro, a esse respeito, uma situação paradigmática, relacionada
com um conflito surgido no Conselho Científico a propósito da política muito
activa de formação de pessoal docente praticada na Universidade do Minho, que
ia muito para além da garantia do direito da dispensa de serviço docente prevista
no artigo 27º do Estatuto da Carreira Docente Universitária, assumindo a
formação de pessoal como um programa estratégico de desenvolvimento
institucional. Um grupo de pessoas, ligadas a uma cultura universitária mais
tradicional, defendia então o estrito cumprimento do referido artigo 27º, que era
aliás a prática na quase totalidade das Universidades Portuguesas, mas que
representaria para a Universidade do Minho um atraso de vários anos na
qualificação do seu capital humano. O Prof. Aguiar e Silva compreendeu
perfeitamente o problema e apoiou sem reservas a política da Universidade, o
que muito ajudou a ultrapassar o problema.
Um segundo aspecto que gostaria de realçar tem a ver com a sua
vontade e capacidade de realização, associadas a uma insatisfação pela

120
mera rotina académica. Presenciei pessoalmente essa característica do Prof.
Aguiar e Silva por exemplo na participação que tivemos na Comissão de
Reforma do Sistema Educativo, no período de 1985 a 1988, onde
testemunhei o entusiasmo com que se embrenhou na reflexão sobre os
problemas do sistema educativo e na elaboração de propostas de programas
e de medidas para os ultrapassar. Um outro bom exemplo foi o do
lançamento da Revista Diacrítica, em que tive a satisfação de poder ajudar
a desbloquear os meios financeiros necessários, aliás parcos mas que,
incompreensivelmente, não tinham sido anteriormente mobilizados. Esta
prestigiada Revista deve inequivocamente a sua origem e posterior
projecção ao saber, prestígio, empenho e persistência do Prof. Aguiar e
Silva.
É, contudo, do nosso trabalho conjunto na Reitoria da Universidade do
Minho que guardo as mais gratas recordações. Foi com algum
constrangimento pessoal que, em 1990, abordei o Prof. Aguiar e Silva para
integrar a equipa reitoral: tinha plena consciência da estatura académica,
pessoal e moral da pessoa que estava a convidar, e consequentemente a
percepção de estar a haver lugar a uma certa inversão de posições. Ganhei
coragem e expus-lhe o projecto que defendia para a Universidade e a mais-
valia que a sua participação na equipa representava para esse projecto, em
especial na dimensão cultural e humanística da missão que preconizava para
a Universidade do Minho. Foi com grande alegria que recebi o seu
assentimento, que me concedeu o privilégio de contar com o seu precioso
apoio e aconselhamento, num relacionamento pessoal sempre pautado por
grande respeito, compreensão e lealdade mútuos. O ambiente criado na
equipa reitoral, onde se desenvolveu um trabalho partilhado por todos os
membros da equipa, norteado por uma visão estratégica e uma sintonia de
actuação, construídas em memoráveis “retiros académicos” efectuados por
norma em terras de Trás-os-Montes, foi, a meu ver, determinante para o
desenvolvimento da Universidade do Minho. A presença do Prof. Aguiar e
Silva e as suas posições, sempre profundas e fundamentadas, nomeadamente
em termos de contraponto a visões por vezes mais tecnicistas de outros
elementos da equipa, foram cruciais para a construção dos devidos
equilíbrios institucionais e para a eficácia de actuação da reitoria, de que,
creio, nos podemos ainda orgulhar.

121
Caro Prof. Vítor Aguiar e Silva

A terminar estas minhas breves palavras, quero dizer-lhe que tenho pena
de não ter sido capaz de escrever o texto erudito que o Senhor Professor
merecia. Mas sabe que, na minha linguagem chã de Engenheiro, se encontra a
sinceridade de transmontano do Amigo que tem por si a maior das
considerações.
E é com essa sinceridade que lhe quero agradecer o privilégio que me
concedeu da sua amizade e de uma colaboração tão próxima e tão
enriquecedora; que o felicito vivamente por uma carreira tão plena de sucessos;
e que lhe desejo, na continuidade deste percurso fulgurante, que se continue a
sentir verdadeiramente realizado.

Sérgio Machado dos Santos


Ex-Reitor da Universidade do Minho

122
Ex.mo Senhor Presidente da Câmara Municipal
de Viseu
Ex.mos Membros da Mesa
Ex.mo e Rev.mo Senhor Bispo de Viseu
Ex.mas Autoridades Académicas, Civis,
Militares e Religiosas
Minhas Senhoras e meus Senhores,

Nesta hora, de significado tão especial para mim, agradeço em primeiro


lugar aos promotores e organizadores da homenagem que aqui nos congrega, em
particular ao Dr. Fernando Paulo Baptista, um amigo fraterno, um professor de
excepcional competência científica e pedagógica, um intelectual de admirável
qualidade e um cidadão exemplar.
Agradeço ao Senhor Presidente da Câmara Municipal de Viseu, Dr.
Fernando Ruas, o apoio que concedeu a esta iniciativa e a honra de acolher a
realização desta cerimónia no Salão Nobre dos Paços do Concelho.
Agradeço ao Senhor Governador Civil de Viseu, Dr. Acácio Pinto, a sua
generosa intervenção na realização desta homenagem.
Agradeço a todas as personalidades que integram a comissão de honra,
presidida por essa figura cimeira da Universidade e da Cultura portuguesas que é a
Professora Doutora Maria Helena da Rocha Pereira, minha inesquecível Mestra.
Agradeço comovido aos autores dos testemunhos que acabámos de ouvir.
O Fernando Paulo Baptista, como é seu timbre, trouxe-nos não só um
testemunho ditado pela generosidade do seu afecto e pela largueza do seu
coração, mas também uma densa reflexão filosófico-cultural que espelha a
riqueza do seu saber e o rigor analítico da sua inteligência.
O João Lima, meu querido Colega dos tempos do Liceu, evocou de modo
admirável os dias e os trabalhos da nossa vida liceal, os nossos sonhos e anseios
e as lições de saber e de sabedoria que ficámos a dever aos nossos Mestres, em
especial ao Dr. Augusto Saraiva e ao Dr. Luís Simões Gomes.

123
O Prof. Doutor Aires do Couto, numa primorosa e bem documentada
síntese, recordou as minhas relações académicas com a Universidade Católica
de Viseu. Não se apagará da minha memória a oração de sapiência que proferi
na cerimónia fausta que assinalou o início das actividades da Universidade. Foi
o saudoso e insigne Mestre Professor Júlio Fragata que, com a sua delicadeza
incomum, foi à minha casa, em Braga, convidar-me para proferir aquela oração
de sapiência. E considero como uma das horas mais exaltantes da minha vida
universitária a conferência, não escrita, que realizei na Universidade Católica,
ante um auditório multitudinário, sobre a poesia de Manuel Alegre.
O Prof. Doutor José Carlos Seabra Pereira, meu dilecto aluno, discípulo e
assistente da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, cujas qualidades
intelectuais e humanas sempre admirei e estimei, autor de estudos fundamentais
sobre a literatura e a cultura portuguesas do último quartel do século XIX e da
primeira década do século XX, nas suas palavras serenas, reflexivas e
memoriais, fez-me reviver a minha juventude — hélas! — de professor
universitário que teve a sorte de poder lançar algumas sementes em espíritos tão
ricos como o seu.
A presença e o testemunho da Prof.ª Doutora Helena Buescu trouxeram-
me uma grande alegria e uma especial emoção. Acompanhei desveladamente a
sua carreira académica, intervindo em todas as suas provas e concursos
universitários. Admirei sempre nela, desde o seu doutoramento, a sua fina
inteligência, a sua cabeça tão bem feita e bem ordenada, o seu espírito de rigor
e o seu alto sentido do ensino universitário. Ela é hoje um dos nomes grandes
da nossa comunidade dos estudos literários, em particular no domínio da
literatura comparada. Não menor admiração tenho pelas suas qualidades
humanas e pessoais.
Finalmente, agradeço ao Prof. Sérgio Machado dos Santos o testemunho
que teve a gentileza e a generosidade de aqui trazer. Sérgio Machado dos Santos
foi o lúcido, enérgico e incansável arquitecto de uma Universidade moderna,
inovadora e sólida, como a Universidade do Minho. Considero como dos
momentos mais relevantes e enriquecedores do meu curriculum universitário os
anos em que colaborei com o Prof. Machado dos Santos, primeiro no âmbito do
Conselho Científico da Universidade, órgão de que foi Presidente, e depois,
durante oito anos, como seu Vice-Reitor. Sérgio Machado dos Santos foi um
Reitor com uma visão prospectiva riquíssima da Universidade, concebendo-a

124
sempre primordialmente como um centro criador e difusor de cultura e de
conhecimento científico de âmbito universalista, mas sem esquecer ou
prejudicar a sua ligação à comunidade envolvente. Atribuiu sempre às
Humanidades um papel relevante na dinâmica e na valorização da Universidade.
As suas excepcionais qualidades, sob todos os pontos de vista, levaram os
Reitores das Universidades portugueses a elegê-lo e a reelegê-lo Presidente do
Conselho de Reitores e foi durante os seus mandatos que este órgão foi
efectivamente relevante na política do nosso ensino universitário.
Esta homenagem, que muito me honra, tem para mim três linhas de leitura
óbvia.
Em primeiro lugar, é uma homenagem ao Liceu Nacional de Viseu, hoje
Escola Secundária Alves Martins, e à sua altíssima qualidade pedagógica,
científica e cultural, ao longo de décadas. Os seus mais ilustres e influentes
Professores — de que citarei, por sinédoque, alguns dos mais notáveis, como
Augusto Saraiva, Luís Simões Gomes, Ilídio Sardoeira e Augusto Teixeira —
foram grandes mestres nas suas salas de aula, na actividade científica e
pedagógica da sua comunidade escolar, mas foram também presenças e vozes
relevantes na vida cultural e cívica da cidade, dentro das limitações políticas
então existentes. Esta homenagem abarca também a luminosa plêiade de alunos
que, ao longo dos anos, estudaram no Liceu Nacional de Viseu e nele se
formaram cultural, científica e civicamente, tendo vindo a afirmar-se como
personalidades de reconhecida competência e inquestionável brilho em
múltiplos domínios da vida nacional, desde o ensino universitário às forças
armadas e à política, desde a criação literária e artística à actividade empresarial
e ao exercício das diversas profissões liberais. Para além da minha memória
pessoal, ligam-me ao Liceu de Viseu as memórias dos meus Irmãos mais novos
já falecidos: a Maria Manuela, que foi uma distinta farmacêutica e analista, e o
João Carlos, grande piloto e brilhante oficial General da Força Aérea Portuguesa
(e por isso tanto agradeço e tão fundo me comove a presença, nesta cerimónia,
do senhor General Aurélio Aleixo Corbal).
Em segundo lugar, é uma homenagem aos ideais e aos valores do
conhecimento e da cultura que guiaram toda a minha vida universitária: servir e
cultivar as Humanidades, na Universidade e na escola em geral; servir e
defender a Língua e a Cultura portuguesas como valores patrimoniais e
identitários irrenunciáveis, como meios de diálogo e entendimento

125
transnacionais com outros povos e outras culturas e como fontes e pilares
insubstituíveis da educação e da formação integral dos nossos jovens.
Em terceiro lugar, é uma homenagem aos Professores, de todos os níveis
do sistema educativo, que têm sido os grandes obreiros, tantas vezes ignorados,
maltratados e até humilhados, da modernização cultural, científica, técnica,
social e cívica deste Portugal que é nosso amor, nosso remorso, nossa expiação
e nossa esperança. Durante cerca de quarenta anos, eu fui professor, na
Universidade de Coimbra, na Universidade do Minho e em diversas
Universidades estrangeiras, e fui sempre professor, como tantos outros
professores, por dedicação da minha inteligência e do meu afecto, procurando
transmitir um conhecimento rigoroso que fosse também para os meus alunos um
crescimento e um enriquecimento não apenas racionais, mas também
espirituais, éticos e cívicos, evitando, todavia, numa atitude de exigente
probidade intelectual para comigo mesmo e para com os meus alunos, quaisquer
intentos ou laivos de doutrinação ou endoutrinamento. Eu quis sempre ensinar
e educar em liberdade e para a liberdade, que é o valor primordial, penso eu, do
intelectual, do professor e da Escola.
Queria que esta homenagem, enfim, fosse a oportunidade para dizer que
devo a esta cidade de Viseu, ao seu Liceu, à riquíssima e bem-amada biblioteca
desta Escola, à Biblioteca Municipal, à biblioteca do meu tio Tenente Anastácio
José dos Santos, fundador e director do jornal O Trabalho, que foi uma
referência central da cultura em Viseu na década de trinta do século XX, e à
biblioteca do meu tio Cónego Jaime Pires da Silva, secretário do ilustre e sábio
bispo D. José da Cruz Moreira Pinto — duas bibliotecas bem diferentes, a que
já chamei a “biblioteca vermelha” e a “ biblioteca azul”, que muito
contribuíram, no seu diálogo silencioso, para que eu nunca tivesse sido um
espírito dogmático —, e à atmosfera de intensa curiosidade intelectual e
fermentação cultural que aqui se respirava entre a gente nova, o melhor, o mais
rico e o mais perdurável da minha formação cultural e académica.
Deixem-me evocar, com saudade e como exemplo, a admirável polifonia
de ideias, de ideais, da minha geração do 6.º e do 7.º anos liceais. Com o Osório
Mateus, que foi meu dilecto colega do curso de Licenciatura na Faculdade de
Letras de Coimbra e que a morte colheu tão cedo, com o Alexandre Lucena e
Vale, o Sacadura Cabral e alguns outros, alimentava vagas conspirações
monárquicas anti-salazaristas, aos domingos de manhã, depois da missa, na

126
Casa de São Miguel, liberalmente colocada à nossa disposição pelo seu dono;
com o João Lima, lia e discutia os Ensaios de António Sérgio, de que ele
possuía, creio, a colecção completa, falávamos do seu tio, o Professor Sílvio
Lima, que vim a conhecer e de quem fui amigo na Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, e da sua polémica com o Cardeal Cerejeira, e na sua
bela casa nova da Rua 5 de Outubro eu declamava um grande poeta francês que
acabara de descobrir, Léon-Paul Fargue, enquanto ele tocava primorosamente
trechos pianísticos; com o José Augusto Rocha discutia, às vezes
acaloradamente, os filósofos do Iluminismo e os revolucionários de 1789; com
o António Bica, no alto dos telhados da Sé, para onde subíamos não sei bem por
onde e donde se avistava uma paisagem de sonho, meditávamos sobre tudo e
sobre nada, sempre com uma firme e utópica vontade de tornarmos o mundo
menos injusto e menos inóspito (e, por isso, a presença do Bica nesta
homenagem foi para mim tão importante...).
Quando, exactamente há cinquenta anos, os tanques soviéticos
esmagaram a esperança da liberdade do povo húngaro nas ruas de Budapeste, o
nosso 7.º ano entendeu — já não me lembro do modo como foi tomada a decisão
— que não devia ficar silencioso, que devia intervir publicamente, perante a
população da cidade, para condenar tal brutalidade. Obtida a necessária
autorização junto das autoridades competentes e com a anuência dos majores
Monteiro Leite e Engrácia, os homens fortes do regime salazarista em Viseu,
realizou-se o comício. Foi a primeira vez que falei em público, da varanda desta
Câmara Municipal, com o Rossio apinhado de gente. Falei eu e falou o José
Augusto Rocha, o mais revolucionário, ao menos verbalmente, de todos nós.
Suponho que incomodámos bastante os citados majores, porque, se no pico da
“guerra fria”, lhes agradava que os jovens “batessem” na União Soviética, viam
com receio a nossa arrebatada reivindicação da liberdade cívica e política. É
que, mais à direita ou mais à esquerda, todos nós defendíamos e amávamos a
liberdade de pensamento, a liberdade de expressão do pensamento, a liberdade
cívica e a liberdade política. Esta lição fundamental de cultura e de cidadania
ficámo-la a dever, de modo relevante, a mestres do Liceu Nacional de Viseu
como Augusto Saraiva e Luís Simões Gomes.

Meus Amigos, bem hajam!


Vítor Aguiar da Silva

127
IV Homenagem em Viseu
Solar do Vinho Dão
129
«… NUNCA LOUVAREI / O
CAPITÃO QUE DIGA: “NÃO
CUIDEI”»

Quando, em Outubro último, se me


colocou o desafio de associar a vertente militar à
merecida homenagem ao Prof. Doutor Vítor
Aguiar e Silva, através das palavras empenhadas
e afectivas do meu ilustre e prezado amigo Dr. Fernando Paulo Baptista, desde
logo se me afigurou fácil elencar as razões desse envolvimento.
A grandeza ímpar do que tem sido a dádiva sapiencial do homenageado
às Letras e às Humanidades justificava, por si só, à partida, a adesão dos
“Homens da Defesa” a esta causa. Os militares, pelo conjunto de valores que
diariamente cultivam, são homens das Letras, são sobretudo “homens de e da
palavra”. Da palavra, através da qual, lideram, pois «liderar» é, antes de mais,
saber «comunicar» (apresentando, desenvolvendo, definindo, defendendo,
partilhando e pondo vivencialmente em comum, isto é, «comungando»...) de
forma fundamentada, consistente, incisiva, clarificadora, persuasiva,
convincente, criativa e mobilizadora, uma ideia, um desígnio, um projecto, um
plano, uma estratégia, um objectivo, uma decisão... Da palavra, ainda, com que
procuram manter a paz: importa lembrar que a guerra acontece quando a
“palavra” falha ou, no limite, quando falha o homem que «é o único ser vivo
dotado de palavra», como disse Aristóteles na sua Política. E, em tais
circunstâncias, são chamados os militares a repor a ordem, o que acarreta
sempre o risco da própria vida, valor essencial da humanidade que os militares
não podem deixar de prezar como «imperativo categórico», mesmo nas
situações mais agónicas... No fim do conflito, é ainda a palavra que definirá os
termos da Paz, condição sine qua non da segura e serena convivialidade social
entre os homens, e esta será a primeira razão que justifica que os militares se
impliquem na consagração da “Arte da Letra e da Palavra” do Prof. Aguiar e

131
Silva. A instituição militar assenta as suas fundações nos valores mais nobres da
Moral e da Ética e, por isso, a ideia de celebrar publicamente “o mérito e os
valores da cidadania” consubstanciados num projecto de vida tão elevado, tão
denso e tão profundo e, ao mesmo tempo, tão auto-exigente, tão nobre e tão
generoso, como aquele que o Prof. Aguiar e Silva tem sabido protagonizar, com
inexcedível exemplaridade, não pode deixar de encantar qualquer dos seus
membros. Infelizmente não temos em Portugal muitos “scholars” do quilate e
da envergadura de Aguiar e Silva... Não admira, portanto, a ideia desta iniciativa
nem a associação dos militares a ela, ou não tivesse sido a sua Teoria da
Literatura (1967), com sucessivas actualizações a determinarem a reescrita de
capítulos inteiros, o manual de referência nos bancos das Escolas Superiores
Militares, de cujos currículos faz parte o estudo da literatura portuguesa
medieval, clássica, maneirista, barroca, moderna e contemporânea e onde os
estudos camonianos não podem deixar de constituir uma componente
fundamental da sua formação. Na verdade, jamais um militar, sobretudo quando
investido nas responsabilidades de comando, pode esquecer a solene e
advertente orientação plasmada pelo nosso Épico em Os Lusíadas (canto VIII,
estância 8), quando nos diz:

«Tal ha de ser quem quer, co dom de Marte,


Imitar os illustres & igoalalos.
Voar co pensamento a toda parte,
Adivinhar pirigos, & evitallos:
Com militar engenho, & sutil arte
Entender os imigos, & enganalos,
Crer tudo em fim, que nunca louvarey
O Capitão que diga, não cuidey.»1

Outra razão essencial desta associação dos militares à iniciativa, que não a

1 Citado directamente de Luís de Camões: Os Lusíadas, fac-simile da edição princeps, organizada pela
Universidade do Minho, Braga, 2004, com prefácio de Vítor Aguiar e Silva, pág. 288.

132
última, prende-se com o facto de na genealogia de Aguiar e Silva constar, embora
infelizmente já ausente do mundo dos vivos, a figura notável e paradigmática de
seu irmão General João Carlos Aguiar e Silva, militar de craveira invulgar, com
uma carreira brilhante, sendo, por isso mesmo, uma referência inesquecível não só
especificamente para os jovens oficiais da Academia da Força Aérea mas também,
globalmente, para todos os oficiais das Forças Armadas.
Por fim, devo confessar, a título mais estritamente pessoal, que bastava o
desafio ter-me sido feito pelo Dr. Fernando Paulo para que me entregasse de
alma e coração a esta homenagem, ainda que ciente das minhas limitações, pela
estima, admiração e consideração que sinto dever dedicar-lhe, pelo inestimável
apoio e pelas palavras amigas que me empresta sempre que o chamo a orientar-
me num texto, num trabalho académico do meu mestrado ou num conselho do
cidadão mais experiente e mais esclarecido que sabe ser.
Expostas as razões, cabe-me acrescentar que, enquanto membro da
Comissão Organizadora, tive ainda o grato privilégio de, no programa do jantar-
convívio que teve lugar no Solar do Vinho do Dão, em Viseu, apresentar o sarau
poético-musical. Este sarau contou, no início, com a actuação do «Grupo de
Cantares Pena de Alva», da terra natal do homenageado, numa recordação dos
seus tempos de jovem nestas terras beirãs, a que se seguiu um «interlúdio
poético» pela poeta Graça Magalhães, declamando (numa inspiração, motivação
e relação de forte simbolismo com o magistério universitário do
homenageado...) poemas de Camões, de Fernando Pessoa e de si própria.
A fechar este dia memorável, a evocação e a saudade dos tempos de
estudante universitário da velha e sempre jovem Universidade de Coimbra, na
magia encantatória de uma serenata pelo «Grupo de Fados e Canções de
Coimbra» (com os famosos “serenatistas”, também eles muito estimados
académicos da Lusa Atenas: Alcides Freixo e Octávio Sérgio nas guitarras;
Humberto Matias na viola; José Mesquita e Heitor Lopes nas canções)
encheram o salão, servindo de «viático» espiritual para todos os presentes:
«Coimbra tem mais encanto na hora da despedida»...
Ganhei, com esta minha adesão à iniciativa, os agradecimentos do Prof.
Aguiar e Silva que só se justificam pela sua grandeza de alma, simpatia para
comigo, simples aluno e peregrino iniciático no caminho magistral da sua
“Palavra”. Mas tocou-me profundamente o seu dizer-me a ideia lapidar de que
“um País sem Forças Armadas conscientes da sua missão, dignas e coesas, é um

133
País em vias de dissolução…” — o que me deixa a serena consciência do dever
cumprido! A gratidão por tudo o que vivi neste dia fica inteiramente do meu
lado. Todavia, continuarei a “vigiar”, com o olhar atento de Oficial e Soldado de
Portugal, com o respeito que me merece e com um forte sentido de auto-
emulação, os seus iluminantes e exemplares passos de Cidadão e de Académico
estudioso da nossa Língua, da nossa Literatura e da nossa Cultura.
Por esta tão rara, tão bela e tão fecunda oportunidade, fico-lhe grato para
sempre, caro Professor!...

134
Fernando Figueiredo
TCor., 2.º Cmdt do RI 14
MOMENTO DE POESIA

Com a mesma liberdade poética com que


escrevo e me dá a poesia, assim leio nos poemas
de Camões ou de Fernando Pessoa e também nos
meus próprios poemas a extraordinária perso-
nalidade que é o Professor Aguiar e Silva. Assim,
vou ler de Camões, um poeta que o Senhor Professor tanto estudou, um soneto
que foi como que “glosado” por Manuel Alegre, outro poeta que o Senhor
Professor muito aprecia:

“Aquela triste e leda madrugada”

Aquela triste e leda madrugada,


Cheia toda de mágoa e de piedade,
Enquanto houver no mundo saudade
Quero que seja sempre celebrada.

Ela só, quando amena e marchetada


Saía, dando ao mundo claridade,
Viu apartar-se de uma outra vontade,
Que nunca poderá ver-se apartada.

Ela só viu as lágrimas em fio,


Que de uns e de outros olhos derivadas
Se acrescentaram em grande e largo rio.

Ela viu as palavras magoadas


Que puderam tornar o fogo frio,

135
E dar descanso às almas condenadas.
Leio agora, de Fernando Pessoa, “O Quinto Império” e “As Ilhas
Afortunadas”.

“O Quinto Império”

Triste de quem vive em casa,


Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!


Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz –
Ter por vida a sepultura.

Eras sobre eras se somem


No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!

E assim, passados os quatro


Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.

Grécia, Roma, Cristandade,


Europa – os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade

136
Que morreu D. Sebastião?
“As Ilhas Afortunadas”

Que voz vem no som das ondas


Que não é a voz do mar?
É a voz de alguém que nos fala,
Mas que, se escutarmos, cala,
Por ter havido escutar.

E só se, meio dormindo,


Sem saber de ouvir ouvimos,
Que ela nos diz a esperança
A que, como uma criança
Dormente, a dormir sorrimos.

São ilhas afortunadas,


São terra sem ter lugar,
Onde o rei mora esperando.
Mas se vamos despertando,
Cala a voz, e há só o mar.

Por fim, leio do meu mais recente livro “Na Memória dos Pássaros”,
alguns poemas que quero oferecer, com muita admiração, ao Professor Aguiar e
Silva:

Entre as folhas e o tempo


despertam pássaros de silêncio
única fronteira de ventos
a cobrir de olhos salgados
restos de divisão
lábios fechados

depois acendo a boca e o adeus perfeito

137
onde nascem laranjas do peito aves inquietas
***

Há sentimentos de fogo
queimam olhos vindimados
no equador a dividir o corpo

sei que as cabeças pensam vozes


a febre devora as línguas

limito-me a gritar calada


passeando pela luz
onde as vinhas se carregam
onde as curvas entornam
esta ideia de pensar a fuga

***

Era o saber ser todo


na memória dos pássaros
doce quando a esperança se abandona

às vezes o beijo
de trocar palavras
a boca sentida
no estampado de pele

línguas de construir por dentro


a olhar o rio fora do tempo

também o trabalhar a dor


em cada pedaço que dói
misturada nos olhos
junto à raiz dos mortos

138
Graça Magalhães
TESTEMUNHO EPISTOLAR

Meu querido Amigo Fernando Paulo

Deixa-me que manifeste a minha enorme alegria pela honra e privilégio


de me teres incluído na plêiade de figuras notáveis que ontem se
congregaram em tão justa e sentida homenagem ao grande Mestre, ilustre
Beirão e insigne Português e Cidadão do Mundo que é o Professor Doutor
Aguiar e Silva.
Garanto-te, querido Amigo, que foi para mim um dia inolvidável, vivido
com grande intensidade emocional, do qual guardarei para sempre a imagem de
uma ampla clareira iluminada pelos fulgores da Sabedoria, dos Valores, da
Amizade, contrastando com o obscurantismo, a mentira, a barbárie da selva
tenebrosa em que nos querem embrenhar, no dia-a-dia duma Sociedade que
mais parece não estar interessada em encontrar rumo.
Contudo, momentos como estes que ontem tive a felicidade de partilhar
convosco fazem reviver a Esperança: ainda há quem saiba, quem pense, quem
preze e viva pelos Valores, quem seja capaz de encontrar e apontar o Rumo...
Enfim, uma Reserva da Nação capaz de passar um Testemunho válido às novas
gerações.
E as emoções tão intensas que ontem vivi terão mesmo proporcionado que
perpassasse em mim algo do sentimento de orgulho que o meu grande Amigo e
companheiro de Armas — e de Asas — João Carlos teria experimentado ao ver
o seu irmão alcandorado a tais alturas pelos seus ilustres pares e calorosamente

139
admirado e venerado pelos antigos alunos.
E a ti, meu Caro, deixa-me felicitar-te mais uma vez pelo brilhantismo
desta iniciativa tão oportuna e tão bem sucedida e também pela tua sábia
intervenção na sessão de Viseu.

Com a velha e fraterna amizade,


o abraço do
Aurélio Corbal

«Meu» General

(mas, sobretudo, meu muito querido Amigo e “velho” Camarada de


Armas, então Alferes Piloto-Aviador Aurélio Corbal):

Esta tua tão bela como densa e sábia carta (ainda por cima tão generosa
para comigo...) gerou, em minha alma, uma onda de indizível emoção, ou dito
com maior pertinência e propriedade, de comoção e de encantamento... que não
sei como retribuir!...
O que é a riqueza da tua sensibilidade e a grandeza e a nobreza ímpar da
tua personalidade, sempre o guardei dentro de mim como um tesouro
intransaccionável, desde os nossos velhos e comuns tempos de alferes (tu, da
Academia; eu, Miliciano...) da Base Aérea da Ota (BA n.º 2), em que, depois do
cumprimento dos nossos deveres, discutíamos, em «clandestina» tertúlia com o
nosso «aggiornato» e culto capelão Pe. Pires de Campos, a obra de Teilhard de
Chardin (então na berra... mas também no «Índex»: lembras-te?...), acabada de
chegar fresquinha das livrarias de Bruxelas, bem escondida no cockpit dos F 86,

140
no regresso dos voos em missões da NATO...
Para dizer do que é a tua superior formação intelectual, ético-axiológica,
cultural e cívica e, mais especificamente, a tua excepcional craveira militar e
aeronáutica, aí está a insuperável eloquência dos factos, que dispensa, portanto,
quaisquer panegíricos... Foi, na verdade, com o mais jubiloso e admirador dos
orgulhos que acompanhei o trajecto da tua fulgurante carreira, desde a garbosa
e auspiciosa afirmação do jovem alferes que então eras e que pertenceu a uma
das mais famosas gerações de audazes, acrobáticos e artísticos (diria mesmo:
«virtuoses») pilotos de jacto da Força Aérea Portuguesa (FAP) até à tua
consagradora ascensão ao generalato e, com ele, aos patamares mais altos da
chefia e do comando a nível nacional, na senda, aliás, do saudoso General
Manuel Diogo Neto, meu inesquecível Padrinho de casamento e nosso
Comandante nos começos da década de ’60, membro da Junta de Salvação
Nacional, no 25 de Abril, e Chefe do Estado-Maior da Força Aérea (CEMFA)
— tal como tu, depois, vieste a ser, na sequência de igual desempenho
hierárquico do muito querido General Jorge Manuel Brochado Miranda, nosso
2.º Comandante, naqueles tempos aurorais e «épicos»...
A essa talentosa «Geração de Magníficos Nautas dos Céus de Portugal»,
pertencia, igualmente por mérito próprio, a encantadora e paradigmática figura
de Companheiro, igualmente inesquecível, do nosso saudoso João Carlos de
Aguiar e Silva, uma espécie de teu «irmão gémeo» na singularidade de Homem-
Cidadão, de Camarada de Armas e de Piloto Aviador de Excepção e de Oficial
General de Inigualável Estatura Moral e Militar...
Foi por essa identidade profunda na partilha de valores e projectos e na
vivência de afectos e memórias que te convidámos para integrares
conjuntamente com outros Militares de referência a Comissão de Honra1 e
testemunhares com a tua presença, ao mesmo tempo real e simbólica, a mais que
justa homenagem a Vítor Aguiar e Silva, irmão extremoso do João Carlos que
seguramente rejubilou, na transcendência mediada por todos nós, e muito
especialmente por ti, por tudo quanto significas...
A emoção tira-me as palavras, mas há uma coisa que não posso deixar de

1 Cf. a lista respectiva.

141
te pedir, em homenagem também ao João Carlos: é que me autorizes a incluir
este teu tão afectuoso e tão autêntico testemunho no opúsculo que vai ser
editado pelo Governo Civil de Viseu para perpetuar bibliograficamente o que foi
esta tão justa como edificante homenagem; sinto que ele deve ser repartido
também por todos quantos entendem que a Cidadania de modo algum se pode
dissociar do Valor, do Mérito e do Exemplo de Vida destes nossos Concidadãos
Maiores que ficam a irradiar para sempre no horizonte da História como
inconsumptíveis estrelas polares a alumiar esperançosamente os rumos do
Futuro...

O abraço de sempre

142
BREVE ANTOLOGIA DE
ESTUDOS E ENSAIOS
de

VÍTOR AGUIAR E SILVA

143
A MINHA LÍNGUA É PORTUGAL

Desde a primavera esplendorosa da nossa lírica medieval até à pós-


modernidade que porosamente perpassou por nós nos últimos anos, órfã absurda,
em terras lusitanas, de uma modernidade cronicamente adiada, a língua e a cultura
portuguesas enraizaram-se e floriram nesta orla periférica da Europa sempre em
profunda relação com a Europa grega e romana, com a Europa românica, com a
Europa germânica e, mais vaga e difusamente, com a Europa eslava.
Reduzido geograficamente a este rosto ocidental da Europa,
longitudinalmente comprimido entre o enigma do oceano e a energia predadora
de Castela, Portugal, desde os alvores da sua história, recebeu e importou ideias
literárias, teológicas, filosóficas, júridicas, médicas, etc., de regiões e centros
culturalmente dinâmicos da Europa: a Provença, o norte da Itália, a Borgonha,
a Flandres, Paris, Roma, Salamanca... Na literatura, nas artes plásticas, na
teologia, na filosofia, no direito, na medicina, na astronomia, etc., as
manifestações relevantes da cultura em Portugal, desde o século XII até ao
século XX, só fazem sentido se integradas em contextos europeus, com as suas
consonâncias e dissonâncias, as suas resistências, os seus retardamentos, os seus
diversos ritmos de génese e desenvolvimento.
Com a expansão transmarina dos séculos XV e XVI, com o Império
oriental, africano e brasileiro, a língua e a cultura portuguesas crioulizaram-se
topicamente, enriqueceram-se dialogicamente no comércio com outras gentes,
outras línguas e outras culturas, reflectiram o conhecimento de outras terras e
outras estrelas, mas o sistema e a dinâmica duma e doutra continuaram a ter o
seu núcleo e o seu motor em matrizes europeias. Aliás, toda a semiose
colonialista europeia — e o Império português, apesar da ideologia cruzadística
que o inspirou, não contradita esta regra — denega, desqualifica e rasura
impiedosamente os signos, as linguagens e os discursos dos colonizados,
impondo-lhes a autoridade e a lógica dos seus próprios signos e códigos. E não
houve mais radical semiose colonialista do que a do século XIX europeu, com

145
fundamento e legitimação na razão eurocêntrica, mas proclamada universal, das
Luzes setecentistas e dos seus avatares positivistas e cientificistas de Oitocentos.
Penso que um dos grandes dramas da intelligentsia portuguesa, pelo
menos desde o Romantismo, é exactamente a consciência da nossa originária e
radical pertença cultural à Europa e a consciência ressentida da nossa
marginalidade e da nossa insignificância na polifonia da cultura europeia, com
a consequência dolorosa para o nosso orgulho de a Europa “não reparar em nós”
(as contemporâneas lamentações sobre o Nobel da literatura que ainda não
temos*, que por obscuras razões não nos atribuem, são uma metamorfose desta
mágoa e deste ressentimento seculares)...
O Mar, o Império, a História do Futuro, o Espírito Santo, a Saudade, o
Portugal-do-Minho-a-Timor, a Descolonização Exemplar, a Democracia de
Sucesso — uma procissão de símbolos, de mitos, de fantasmas, de maiúsculas...
— foram e têm sido confusamente lenitivos, falsos exutórios, compensações,
justificações, projecções narcisistas e megalómanas, ópios e elixires de um Povo
europeu sem voz na Europa e em branda convalescença, desde o século XVI,
num hospício à beira-mar situado...
Um Povo, uma Nação, um País — a cada família doutrinária o seu altar...
— não podem viver num ajuste de contas perpétuo com a História e consigo
próprios, numa dialéctica interminável, ora cruel ora hipócrita, de
culpabilizações e desculpabilizações políticas, ideológicas e geracionais, com
depressões autoflagelatórias e delírios paranóicos... Quem nos livra do fascínio,
dos fantasmas, das verdades e dos venenos de Oliveira Martins, essa voz
desesperantemente incontornável das misérias, das insânias, dos sonhos e das
esperanças da nossa Babilónia lusitana? Mas não para cairmos nas arrancadas
africanas de Gonçalo Mendes Ramires, nem no estéril idealismo racionalista à
Sérgio, nem na normalidade do viver salazarista, nem em ilusões
anacronicamente revolucionárias, nem no pragmatismo míope dos que apenas
contabilizam cifras e cifrões...
É necessário, é urgente fazer com que quatro séculos de história, quatro
séculos de discursos que em grande parte construíram essa história, não se

* À data da escrita deste texto, ainda não tínhamos o Nobel José Saramago...
(Nota da coord. editorial).

146
convertam em fatal herança que, numa espécie de determinismo inconsciente, nos
condena colectivamente ao martírio inútil de Sísifos dessa história inexpiável...
A história não é um destino nem um caos. Os sentimentos, a inteligência,
a liberdade e vontade dos homens contribuem para configurar e reconfigurar,
muitas vezes de forma decisiva, a história em que somos e de que somos actores.
Portugal perdeu, desde há séculos, o sentido da aventura e do risco, esqueceu o
significado profundo da liberdade, enconcha-se gostosamente na rotina
quotidiana, desconfia da inteligência e abdica facilmente da vontade. Como não
relembrar os versos sem esperança de Morte ao meio dia de Ruy Belo? No meu
país não acontece nada... morre-se a ocidente como o sol à tarde... o meu pais
é o que o mar não quer... A liberdade, a inteligência e a vontade dos Portugueses
é que têm de criar continuamente Portugal. A liberdade, a inteligência e a
vontade autênticas não são passadistas, não são revolucionárias, não são
niilistas; são criativas, isto é, são auto-regeneradoras, conservando e
transformando os sistemas de valores que configuram a cultura e com os quais
e pelos quais se constrói a história. Mas só olhando com lucidez — impiedosa,
se assim for necessário — o passado, se pode olhar de frente o futuro.
Portugal sempre foi um país pequeno e pobre, que não soube enriquecer
duradouramente com os Descobrimentos, que não teve capacidade para
assimilar criativamente, para construir a modernidade iluminista e liberal, que
não teve os meios, a energia e a audácia de explorar, com lógica capitalista e no
tempo certo, as suas colónias africanas. A gente de um país pobre é gente
sofrida, com receio da liberdade, vivendo a vida como uma fatalidade,
subserviente e grata a esmolas, aproveitando com calculismo ladino as
oportunidades, empenhada em sobreviver, mas incapaz de sonhar e edificar
grandes projectos. Um país pobre não constrói escolas, não preza a ciência,
considera a literatura, a música e outras artes como um luxo inútil e uma
dissipação — embora admire embasbacado os perdulários Condes de Farrobo...
—, e tem de acabar por acreditar na bem-aventurança da pobreza...
A adesão de Portugal à Comunidade Europeia obrigou — deveria ter
obrigado... — os Portugueses a tomarem consciência da sua pobreza, do arcaísmo
da sua economia, dos atrasos seculares da sua educação, da sua organização dos
serviços de saúde, das suas instituições de cultura e ciência. Este confronto com a
realidade deveria ter sido uma experiência histórica fundamental, civicamente
entendida por todos como significando a necessidade urgente de transformar

147
profundamente o País, de modo a ser possível alcançar, na era pós-industrial e pós-
capitalista doutros países europeus, o estádio da modernidade que falhámos nos
séculos XVIII e XIX. Não tínhamos, na década de oitenta, nem temos hoje
qualquer outra alternativa com um mínimo de credibilidade. Só os milagres de
santos que já não há permitiriam entrever novos caminhos...
Era necessário — é necessário — produzir riqueza, com uma agricultura,
umas pescas, uma indústria e um comércio modernos. Produzir riqueza não é o
mesmo que ter conjunturalmente riqueza proveniente de qualquer lotaria ou de
mega-esmolas — tentação irresistível num povo de crónicos e astuciosos pedintes...
Produzir riqueza é possível, de modo concertado e firme, com transformações
profundas nas escolas, na educação, nas mentalidades, nos comportamentos. Só o
aumento da nossa riqueza e o correlato desenvolvimento social, cultural, científico
e tecnológico, possibilitarão que Portugal deixe de ser a “Africa” da Europa, que
Portugal ganhe peso político e influência na União Europeia e fora da União, que
Portugal, sem renunciar aos valores autênticos e vivos da sua identidade histórica,
deixe de ser o enfermo prisioneiro das teias de uma história fatalisticamente herdada
e assuma, como doutras vezes aconteceu ao longo dos séculos, um diálogo criador
com as outras culturas europeias, com uma voz própria e com uma voz nova, porque
a história é também construída com a liberdade e a vontade do homem, dos grupos
sociais e das comunidades regionais e nacionais.
Em todos os tempos e em todos os lugares, a vida e a importância de uma
língua estiveram ligadas à dinâmica do poder político, ao prestígio cultural, à
riqueza económica da(s) comunidade(s) que a utiliza(m), ao potencial
demográfico das populações que a falam e a escrevem. Os fenómenos da
diglossia são bem reveladores da dependência das línguas em relação aos
factores políticos, sociais e económicos. O francês foi, no século das Luzes, a
língua da Europa culta, desde Lisboa a Moscovo, graças à hegemonia política,
cultural e económica, na cena europeia, da França de Luís XIV e de Luís XV,
tal como na segunda metade do século XX acontece com o inglês, mas agora à
escala mundial, graças ao império norte-americano.
Sob este ponto de vista, a língua portuguesa nunca alcançou na Europa
uma posição de relevo. Portugal, aliás, nunca esteve envolvido, ao contrário da
Espanha, nas grandes questões e nos grandes interesses da política europeia (é
curioso observar, no entanto, que esta presença capital da Espanha na política
europeia, ao longo dos séculos XVI e XVII, dominando grandes áreas da

148
península itálica e da Europa ocidental e central, não originou a difusão
enraizada do castelhano nessas áreas transpirenaicas). A língua portuguesa só
despertou algum interesse em centros universitários europeus, sobretudo
alemães, com a constituição e o desenvolvimento, no início do século XIX, da
Filologia Românica e só passou a ter alguma (pequena...) importância nos
sistemas escolares de alguns países europeus com as ondas emigratórias dos
anos sessenta e setenta deste século. São duas modalidades de presença da
língua portuguesa na Europa que merecem algumas reflexões.
Em termos de prestígio cultural e de afirmação da nossa identidade
nacional, é de importância inequívoca o ensino e o estudo da língua, da literatura
e da cultura portuguesas nas Universidades europeias. Desde os anos trinta, com
o Instituto de Alta Cultura, até à actualidade, com o Instituto Camões, criou-se
uma rede razoável de Leitorados que pode e deve ser, em estreita cooperação
com as Faculdades, os Departamentos e as Universidades em que se integram,
um poderoso agente da nossa presença cultural na Europa e um importante
vector da nossa política externa globalmente considerada. Temos tido muita
dificuldade em compreender, ao contrário de países como a França e a Espanha,
que a difusão da língua e da cultura de um povo, conferindo-lhe prestígio
universitário, social e cultural, pode ter uma forte influência no comércio, no
turismo e no mundo dos negócios. Quando, no âmbito da Comissão de Reforma
do Sistema Educativo, subscrevi a proposta que conduziu à criação do Instituto
Camões, defendendo a integração do Instituto no Ministério dos Negócios
Estrangeiros, pensava exactamente nestas desejáveis sinergias do ensino da
língua portuguesa em Universidades estrangeiras com a política externa e com
os interesses económicos do País.
Torna-se indispensável que o Instituto Camões alcance rapidamente, após
a sua recente transferência para o Ministério dos Negócios Estrangeiros,
estabilidade institucional e capacidade operacional e que venha a dispor dos
meios orçamentais necessários para criar institutos e centros em países como a
França, a Espanha, a Alemanha, a Inglaterra e a Itália. A presença do Instituto
Camões nestes países e o seu diálogo com as respectivas Universidades têm de
obedecer a um programa rigorosamente pensado, com qualidade e dignidade. A
improvisação, a desorganização e a indigência de recursos são os nossos piores
embaixadores. Não se podem enviar Leitores para Universidades estrangeiras
como caixeiros-viajantes desprovidos de “mercadorias” com que trabalhar.

149
Quantos Leitores, ao longo dos anos, não tenho ouvido queixarem-se da falta ou
da precariedade dos apoios em materiais pedagógico-didácticos adequados? E
que vergonha não é, em relação ao ensino da língua e da literatura portuguesas
— em Portugal como no estrangeiro —, a inexistência de uma “Biblioteca de
Clássicos Portugueses”, organizada com rigor científico e com os devidos
cuidados pedagógicos e didácticos? Em Espanha, existem diversas “bibliotecas”
deste tipo, com edições quase sempre exemplares de autores clássicos, tanto
antigos como modernos: os “Clásicos Alhambra”, os “Clásicos Castalia”, a
“Biblioteca Clásica” da Editorial Crítica, os “Autores Hispánicos” da Editorial
Planeta, as “Letras Hispánicas” das Edições Cátedra... Onde estão as edições
análogas de Os Lusíadas e das Rimas de Camões, usando aqui Camões como a
sinédoque de todos os autores clássicos da nossa língua? É necessário, é urgente
que apareça uma nova colecção equiparável aos “Clássicos Sá da Costa” —
monumento, apesar de todas as suas debilidades, dos anos quarenta e cinquenta
do nosso século. Uma nova colecção organizada segundo critérios
filologicamente seguros, incorporando os conhecimentos adquiridos nas últimas
décadas, de modo a proporcionar uma nova leitura, isto é, uma nova vida, a
tantos autores portugueses de que não se encontra hoje no mercado livreiro
qualquer edição de qualidade ou, pura e simplesmente, qualquer edição.
A fixação de uma numerosa população de emigrantes portugueses em
vários países da Europa ocidental, especialmente em França, a partir da década
de sessenta, originou a necessidade de criar esquemas de ensino básico e
secundário do português nalguns desses países, logo desde o início dos anos
setenta. Tratou-se de uma medida politicamente ajustada — um País com mais
de três milhões de portugeses espalhados pelo mundo não pode alhear-se do
ensino da língua e da cultura portuguesas junto das suas comunidades de
emigrantes —, mas a história da sua concretização é uma história de crise quase
permanente. E compreende-se sem dificuldade por que foi assim. Por um lado,
a realização dessa política exigia estruturas de organização e de coordenação de
serviços, professores qualificados, materiais pedagógicos e didácticos e meios
financeiros de que o Ministério da Educação e o Ministério dos Negócios
Estrangeiros não dispunham; por outro lado, verificou-se, em muitos casos, uma
lamentável instrumentalização político-partidária dos serviços e dos agentes de
ensino. Apesar de todos os seus erros, de todas as suas insuficiências e
debilidades, esta política contribuiu e tem contribuído para que muitos milhares

150
de filhos de emigrantes portugueses fossem escolarizados na língua portuguesa,
conhecendo alguma coisa da história e da geografia de Portugal, não cortando
as raízes culturais com a sua pátria de origem. Em termos sociológicos, porém,
este ensino, desenvolvendo-se em regime paralelo e em situação de desfavor
relativamente ao ensino formal dos países de acolhimento, contribuiu
negativamente, por exemplo em França, para o prestígio do ensino da língua
portuguesa, pois que difundiu a imagem pública do português como uma língua
“subalterna” e “desqualificada”.
A herança que o Instituto Camões vai assumir neste domínio é uma
herança complicada e melindrosa. A penúria de recursos financeiros — sempre
o problema da nossa relativa pobreza... — e as dificuldades de organização e
gestão não permitem que Portugal mantenha, em múltiplos países, subsistemas
de ensino dispendiosos e pouco eficientes. Nos países da União Europeia com
vultuosas comunidades de emigrantes portuguesas e luso-descendentes, a
solução adequada, já posta em prática em muitos casos, consiste na integração
— em conformidade, aliás, com directrizes comunitárias — do ensino da língua
portuguesa no sistema educativo desses países, devendo o Instituto Camões,
através dos seus institutos e centros, apoiar na medida do possível essas
actividades de ensino.
Se a língua e a cultura portuguesas não são obviamente entendíveis à
margem das suas matrizes e dos seus contextos europeus, também é verdade que
elas, muito em particular a língua, não podem nunca ser consideradas,
entendidas e avaliadas, à margem da sua existência multissecular em terras do
Oriente, em terras de África e, sobretudo, em terras do Brasil. Do fulgor solar
de Quinhentos, das grandezas e misérias do Império, da aventura lusíada pelos
mares e por três continentes, o que ficou como mais valioso e perdurável
contributo para a humanidade? Sem sombra de dúvida, a língua portuguesa do
Brasil, a língua portuguesa das ex-colónias africanas, a língua portuguesa de
Machado de Assis, de Baltasar Lopes, de José Craveirinha, de Pepetela. Com as
suas variações, as suas diferenças, as suas metamorfoses, em íntima articulação
com as experiências vitais, as tradições, as crenças e as mundividências de cada
um dos povos a que pertence, mas também com uma espantosa unidade da sua
gramática profunda. Uma língua que é um inestimável instrumento de
comunicação nacional e internacional, de circulação da cultura e da ciência, de
entendimento político, de cooperação no ensino e nas áreas económicas.

151
Sem esta dimensão brasileira, cabo-verdiana, angolana, moçambicana,
guineense e são-tomense, a língua portuguesa seria muito mais pobre, enquanto
instrumento de expressão e comunicação, enquanto universo textual que
preserva raízes e memórias comuns e que se projecta para horizontes plurais.
Por tudo isto, uma política consistente e inteligente da língua portuguesa tem de
contemplar, com acurada atenção e generoso empenhamento, uma vertente
brasileira e uma vertente africana. A importância da língua portuguesa no Brasil
e na África projectar-se-ão na importância da língua portuguesa na Europa
comunitária. O prestígio e a difusão da língua portuguesa na Europa comunitária
projectar-se-ão nas nossas relações linguísticas e culturais com o Brasil e os
PALOP. Tudo passa, porém, de modo substantivo e insubstituível por nós
próprios, por Portugal, ou seja, pela nossa capacidade, em termos de vontade
política, de ensino, de investigação científica e de criação cultural, de
valorizarmos o capital slmbólico que é a nossa mais preciosa herança e o nosso
mais importante investimento futuro — a língua portuguesa.
Uma língua, qualquer língua viva, é um sistema aberto, uma instituição ou
um organismo — as metáforas epistemologicamente justificáveis são múltiplas
— indissociáveis de uma comunidade humana, com o seu território, as suas
instituições, a sua memória, a sua cultura, a sua economia. Por outras palavras,
uma língua é indissociável de um passado histórico comum e de uma vontade
partilhada e quotidianamente reafirmada de construir o futuro. É por isso que a
minha concepção da Iíngua portuguesa como Portugal é radicalmente
antagónica da fórmula emblemática do messianismo e do pessimismo niilista de
Fernando Pessoa/Bernardo Soares — minha pátria é a língua portuguesa
(fórmula antecedida por esta afirmação: “Não tenho sentimento nenhum político
ou social”; e seguida por esta outra: “Nada me pesaria que invadissem ou
tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente”). Uma
fórmula que o analfabetismo cultural de muitos políticos trivializou
euforicamente, não se entendendo que ela é o rosto mortuário do Portugal
impossível de Pessoa. Para que a minha língua possa viver, na Europa e no resto
do mundo, como thesaurus comum a diversos povos, como instrumento de
comunicação nacional e internacional, como espaço de diálogo intercultural, é
necessário que Portugal viva. Qual a razão por que não se entende que o
autêntico diálogo pressupõe necessariamente a alteridade e, por conseguinte, a
identidade própria e inalienável dos parceiros do diálogo? Contra a utopia

152
linguística de Pessoa, contra o multilinguismo desenraizado e desumanizado,
contra o imperialismo linguístico de quem quer que seja, contra o nacionalismo
linguístico xenófobo de quem quer que seja, reafirmo, com sonho e realismo,
fiel às minhas raízes históricas e aberto ao grande vento da Europa e do mundo,
que a minha língua, a língua portuguesa, é Portugal.

153
do Fernando Paulo.
LÍNGUA MATERNA E SUCESSO EDUCATIVO *

«Todo lo importante del mundo se resume en palabras, abren o cierran,


atan o libran!», diz uma personagem de La isla de los jacintos cortados de
Gonzalo Torrente Ballester.
O exemplo por excelência deste poder da palavra encontra-se num dos
textos fundacionais da cultura ocidental, o Livro do Génesis, onde se narra como
Deus criou o mundo e o homem, falando. Se o cosmos é assim a linguagem de
Deus, a linguagem possibilita ao homem apreender simbolicamente a divindade.
Nas tradições órficas, que percorrem, ora como rio subterrâneo, ora como
eflorescência fulgurante, toda a historia do Ocidente, a palavra-canto atravessa
o vazio e funda o ser das coisas e do mundo. Como proclama a voz
incandescente de Herberto Helder, as casas são fabulosas, quando digo: / casas.
São fabulosas / as mulheres, se comovidas digo: / as mulheres.
No declinar do Iluminismo e na aurora do Romantismo, essa figura
estranha de sábio e de mago que se chamou Johann Georg Hamann conciliou na
língua a ciência e a metafísica, ao exaltar a língua que é «mãe da razão e da
revelação, o seu alfa e o seu ómega».
Por outro lado, recentemente, a teoria dos actos linguísticos, culminando
uma longa tradição racionalista na filosofia da linguagem, ensina que, com os

* Comunicação apresentada ao Encontro sobre a Promoção do Sucesso Educativo, organizado pela Comissão
de Reforma do Sistema Educativo, em colaboração com a Universidade do Minho, Braga, em 5 e 6 de
Fevereiro de 1987, e publicada na revista Diacrítica (Centro de Estudos Portugueses – Universidade do
Minho), n.º 3-4, 1988-89, pp. 17-24. Sugestão: implicar a sua leitura nomeadamente com: «O texto literário e
o ensino da Língua Materna», in Congresso sobre a Investigação e Ensino do Português, Actas, Lisboa,
ICALP, 1989; «Contributos para uma política da Língua Portuguesa», in AA .VV.: A Língua Portuguesa:
Presente e Futuro, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2005; «Da Língua na Política à Política da Língua»,
apresentada na sessão solene de encerramento do I Congresso Bienal — A Língua Portuguesa na CPLP,
organizado pelo Centro de Investigação em Língua Portuguesa [CILP] do Instituto Piaget, em Viseu, dias 19,
20 e 21 de Abril de 2004 (cf. infra, pp. 195 ss.).

155
chamados actos ilocutivos, se realizam acções, «se fazem coisas com palavras»,
só porque, em circunstâncias apropriadas, se pronunciam determinadas
expressões: «Eu vos declaro marido e mulher», «eu te baptizo», «o réu está
absolvido», «peço-te perdão», etc. No domínio religioso como na esfera
jurídica, na convivência social como na vida íntima, a palavra que se diz, que se
recusa ou que se omite, é a porta que se abre ou se fecha, a salvação ou a
condenação, a paz ou a guerra, o amor ou o ódio. «Que pecado cometi por
ignorância?», pergunta Desdémona a Otelo. E o mouro de Veneza responde:
«Que cometestes! Cometido! (...) Se dissesse o que haveis feito, as minhas faces
ficariam rubras como as forjas e reduziriam a cinzas todo o pudor».
«Os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo»,
escreve Wittgenstein no Tractatus logico-philosophicus (5.6). Na sua linguagem,
com a sua linguagem, um homem pensa o mundo e pensa-se a si, confessa os seus
afectos e emoções, manifesta a sua vontade, narra eventos históricos, argumenta,
constrói teorias, julga, sonha e reza... Como sabe qualquer aprendiz de semiótica
(sobretudo se tiver lido Hjelmslev...), a linguagem verbal é o mais potente,
complexo e refinado sistema semiótico de que o homem dispõe — uma linguagem
com capacidade omniformativa, susceptível de se volver em metalinguagem, sem
a mediação da qual não é possível construir linguagens artificiais, fundamento
insubstituível de qualquer comunidade humana. Fenómeno universal, ela
identifica, porém, um povo ou uma nação, como língua histórica; ela particulariza
uma região, como dialecto; ela caracteriza um grupo social, enquanto sociolecto;
ela, sendo uma instituição, transindividual na sua constituição e no seu
funcionamento, é a marca de uma personalidade, enquanto idiolecto.
Como código que é, a língua é impositiva, obriga a dizer de determinado
modo, é poder e instrumento de poder. Por isso, Roland Barthes, num passo já
famoso da sua Lição, afirma que a língua não é reaccionária nem progressista,
mas que é simplesmente fascista, «porque o fascismo não é impedir de dizer, é
obrigar a dizer».
Sob esta perspectiva, na língua «confundem-se inelutavelmente servidão
e poder» e assim se compreende que, em todos os tempos, as instâncias do poder
religioso, do poder político, do poder social, se tenham esforçado tanto por
controlar o uso da língua, a produção, a circulação, a leitura e a interpretação
dos textos. A cultura dos povos constrói-se, conserva-se e transmite-se
fundamentalmente através de textos verbais, orais ou escritos. As Igrejas, os

156
Estados, as Escolas sabem «o que falar quer dizer», para utilizar o título de uma
conhecida obra de Pierre Bourdieu, e por conseguinte procuram disciplinar,
quando não domesticar, mediante apropriados mecanismos institucionais, o
capital simbólico por excelência que são a língua e os textos nela produzidos.
No pórtico real da catedral de Chartres, erguido no século XII, a Gramática
aparece figurada como uma severa dama armada de uma vara, tendo aos pés
dois pequenos discípulos, de cabeça curvada...
As instâncias do poder religioso, político e social, sabem, desde há
milénios, que uniformizar a língua, uniformizar a produção e a interpretação dos
textos, equivale a assegurar a uniformização dos valores diferentes e das visões
diferentes do mundo. Mesmo sem se aceitar, nos seus fundamentos e nas suas
consequências, a chamada hipótese de Sapir-Whorf, segundo a qual a
representação do mundo e a cultura de uma comunidade são organizadas em
conformidade com a língua dessa comunidade, é indubitável que é sobretudo
através do uso da língua — do discurso interior, do diálogo com o outro, da
audição ou da leitura de textos religiosos, históricos, poéticos, filosóficos,
jurídicos, etc. — que o homem, desde a sua infância, vai construindo o seu
modelo do mundo, vai modelizando, segundo categorias e valores, o real
empírico e o universo social e vai urdindo a teia do imaginário e do sonho.
«Os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo».
Bem o sabia o Chefe, o Big Brother de 1984 de George Orwell, ao instituir como
língua oficial a novilíngua, cuja finalidade era não somente «fornecer um modo
de expressão às ideias gerais e aos hábitos mentais dos devotos do angsoc, mas
também tornar impossível qualquer outro modo de pensamento. [...] O
vocabulário da novilíngua era construído de tal modo que pudesse fornecer uma
expressão exacta, e por vezes bastante matizada, das ideias que um membro do
Partido podia, a justo título, desejar comunicar. Mas excluía todas as outras
ideias e mesmo as possibilidades de chegar a elas por métodos indirectos. A
invenção de palavras novas, a eliminação sobretudo de palavras indesejáveis, a
supressão nas palavras restantes de qualquer significação secundária, qualquer
que fosse, contribuíam para este resultado. [...] Raramente era possível, na
novilíngua, seguir um pensamento não ortodoxo mais longe do que a percepção
de que não era ortodoxo. Para além desse ponto, as palavras não existiam.»
Uniformizar e mineralizar a língua, os seus significados, os sentidos dos
textos e assim impor a «verdade» que não sofra variações e mudanças — eis o

157
projecto lógico e monstruoso de qualquer totalitarismo.
A língua, porém, se é código e coerção — nem doutro modo poderia
funcionar —, é também energeia, capacidade criativa, diferença e disseminação,
porosidade, fractura e transgressão. Sabiam-no bem, na aurora esplendente da
cultura ocidental, na Grécia antiga, os estóicos, ao ensinarem a ler os poemas
homéricos em termos de alegoria, procurando no texto outro significado, um
significado diferente daquele que a letra patenteava, sublinhando a importância
das translações de significados, isto é, das metáforas, dos significados
indirectos, oblíquos e ocultos. E sabiam-no igualmente bem os sofistas que, no
século V antes de Cristo, fundaram e desenvolveram a arte da retórica, isto é, a
arte de usar adequadamente o discurso com o objectivo de persuadir o
interlocutor, fazendo-o mudar de opinião, captando-lhe a benevolência, numa
operação tanto cognoscitiva como estética e prática. A génese da retórica é
indissociável da emergência da democracia grega, da vitória política do demos
e da educação demótica — §leut°riow paide€a —, isto é, da educação de
cidadãos livres e responsáveis que discutem, argumentam, falam ao sentimento,
são sensíveis à beleza da elocução, num confronto poliédrico de ideias que é
guiado pela situação de comunicação e pelos fins a alcançar.
A retórica, uma das grandes criações da cultura europeia, tinha clara
consciência de que o saber falar co-envolve todos os factores que hoje
designamos como competência comunicativa. Saber falar pressupõe
necessariamente conhecer os mecanismos semióticos que configuram o sistema
fonológico, o sistema léxico-gramatical e o sistema semântico de uma
determinada língua, mas pressupõe também indispensavelmente conhecer os
factores pragmáticos — situação de interlocução, os contextos sociais e
culturais, os chamados universos do discurso, as envolventes ideológicas — que
condicionam, orientam e sobredeterminam a produção textual. Saber falar é, em
primeiro lugar, saber constituir ou produzir um texto — e um texto é regulado
por normas e convenções sintácticas e semânticas, mas também por normas,
convenções e estratégias pragmáticas. A dimensão pragmática da textualidade
enraíza o saber falar na espessura de um tempo histórico, na memória de uma
cultura, na polifonia da intertextualidade, nos conflitos de uma sociedade, na
lógica, nos interesses e nas astúcias das ideologias.
A educação linguística, indissociável do estudo dos textos considerados
clássicos — e não é por acaso que uma etimologia inexacta correlaciona

158
clássico e as classes das instituições escolares —, foi sempre, desde a paideia
grega, um dos fundamentos da educação no Ocidente. E essa educação, pelas
razões atrás sumariamente expostas, tem sido sempre um poderosíssimo
instrumento de culturalização e socialização, de desenvolvimento cognitivo, de
capacidade crítica, de apuramento da sensibilidade, de potenciação da fantasia
lúdica e da criatividade. A educação linguística, por isso mesmo, constituiu
também sempre o alicerce e o factor sinergético da aprendizagem de outras
disciplinas e de outros saberes.
É por demais sabido que hoje, em todo o Ocidente, se verifica a existência
de uma grave crise no ensino e na aprendizagem da língua materna — uma crise
de perniciosos efeitos, como é unanimemente reconhecido, em todo o processo
educativo. É assim na Itália, é assim na França, é assim nos Estados Unidos, é
assim em Portugal. Preocupam-se os professores, afligem-se os pais,
interrogam-se os políticos, lamentam-se jeremias nem sempre bem-falantes...
Porquê esta crise generalizada?
Não hesito em apontar a grande razão desta crise: porque, desde há
algumas décadas, a escola dos herdeiros, que foi a escola do século XIX e ainda,
em grande medida, a escola da primeira metade do século XX, se transformou
numa escola de massas, sem que tenham sido introduzidas no sistema educativo
as reformas indispensáveis para evitar distúrbios, disfunções e perdas de
rendimento. Esta transformação, no âmbito da educação linguístico-literária —
herdeira da grande e aristocrática tradição das humanae litterae —, poderá ser
apocalipticamente descrita e designada como a «invasão da catedral» (título de
um livro, publicado em 1983, da Professora Lígia Chiappini Leite, que constitui
uma estimulante reflexão sobre o ensino da literatura). Novos bárbaros,
iletrados e sem respeito pela cultura, conspurcariam agora os lugares sagrados
onde o professor-clerc, noutros tempos, celebrava, to the happy few, o ritual da
sua liturgia ...
As grandes reformas das políticas educativas operadas no Ocidente, após
a guerra de 1939-1945, fizeram afluir às escolas milhões de crianças
verbalmente subdesenvolvidas, procedentes de classes e grupos sociais e de
regiões económica e culturalmente desfavorecidos. Estas crianças, que «a escola
dos herdeiros» excluía, passaram a constituir um escândalo apenas porque a
escola os acolheu. Se, como acontecia ainda no século XIX, labutassem nos
campos e nas fábricas, ninguém se preocuparia com o seu subdesenvolvimento

159
verbal.
Ao contrário das vozes apocalípticas que denunciam e pranteiam a
«invasão da catedral», eu penso que é social, cultural e educativamente
preferível esta situação de crise do que o maltusianismo imposto, como regra,
pela «escola dos herdeiros». O que se torna necessário é conceber e executar
políticas educativas que possibilitem que a escola de massas seja uma escola de
sucesso educativo e que, em particular, permitam compensar o
subdesenvolvimento verbal destas crianças, tendo em consideração que saber
falar e escrever, como ficou dito, é uma competência comunicativa adquirida em
demorados e complexos processos de natureza cognitiva, social e cultural. É
inaceitável fazer desse subdesenvolvimento verbal o garrote que
implacavelmente provocará o insucesso educativo e, muito provavelmente, o
fracasso social e a irrealização pessoal. Robert de Beaugrande, lembrando que a
lei punia, na América sulista, antes da guerra da secessão, quem ensinasse os
escravos a ler e a escrever, afirma justamente que «the denial of literacy is a
denial of freedom»1.
Como a investigação linguística tem demonstrado, são cientificamente
insustentáveis, além de política, social e eticamente perversas, as ideias de que
o subdesenvolvimento verbal significa inteligência inferior ou incapacidade
genética para alcançar padrões elevados de desenvolvimento cognitivo e
cultural (o racismo e a xenofobia alimentam-se gulosamente de «verdades»
deste tipo). Todavia, certas investigações científicas, que muito têm contribuído
para denunciar e desmascarar tais ideias e mitos, podem conduzir a soluções
educacionais inadequadas. Em termos de teoria linguística, poder-se-á aceitar
como exacto que, por exemplo, as crianças dos ghettos negros de Nova Iorque,
que se revelam verbalmente subdesenvolvidas nas situações comunicativas
criadas pela escola ou nas interacções fortemente estruturadas por restrições
sociais, usam uma variedade do inglês perfeitamente adaptada à sua experiência
quotidiana, que satisfaz, com lógica imediata e eficaz, as suas necessidades de
expressão e comunicação. Em nome da chamada teoria da diversidade
linguística, deverá a escola abster-se de realizar uma educação linguística

1 Cf. Robert de Beaugrande: Text production. Toward a science of composition, Norwood, Ablex, 1984, p. 8.

160
compensatória? A resposta, penso eu, não é difícil de dar: dentro e fora da
escola, o mercado linguístico, que se configura e «se impõe como um sistema
de sanções e de censuras específicas», determinará o insucesso social dessas
crianças negras. A lógica do sistema social, e do seu subsistema que é o sistema
educativo, não comporta soluções alternativas. Trata-se de um capital simbólico
fundamental e está em jogo um problema de poder social. A teoria da
diversidade linguística, que conduz a um liberalismo glotopolítico mais ou
menos selvagem, condena a criança do ghetto a sobreviver no ghetto.
A educação pré-escolar reveste-se, assim, de uma importância decisiva
numa educação linguística compensatória em relação as crianças que procedem
de famílias e de comunidades de baixo nível sociocultural. Em Portugal, a crise
do ensino e da aprendizagem do português não terá solução satisfatória
enquanto a educação pré-escolar não atingir um razoável índice de
implementação, com escolas e equipamentos de qualidade aceitável e com
professores devidamente preparados.
Por outro lado, é indispensável que na educação escolar, seja qual for o
nível considerado, o ensino compensatório seja devidamente elaborado,
programado e realizado, isto é, sem ser uma duplicação ou uma repetição em
doses reforçadas do ensino normal; sem ser punitivo; com textos e materiais
inovadores e apropriados; com professores escolhidos, sempre que possível,
com base numa oferta voluntária.
No ensino básico, sobretudo nos seus dois primeiros ciclos, torna-se
urgente uma reestruturação curricular e programática que aumente os tempos
lectivos atribuídos ao ensino da língua materna — na chamada «Reforma
Chevènement» do sistema educativo francês, promulgada em Abril de 1985, o
ensino do francês, na «École élémentaire», ocupa entre 8 e 10 horas semanais,
cabendo à matemática 6 horas e à educação artística 2 horas —, que liberte os
professores e os alunos da enxurrada pseudo-teórica de noções de linguística, de
semiótica, de teoria da comunicação, etc., e que oriente o ensino, sem prejuízo
e sem ofensa de uma fundamentação teórica consistente e esclarecida, para a
prática e para a fruição da língua oral e escrita. Ler e interpretar textos, produzir
textos de diversos tipos, resumir textos, articulando a aprendizagem linguística
com a aprendizagem do mundo e da vida, inserindo essa aprendizagem no
universo cultural português, alargando a capacidade dialógica, heterofónica e
interdiscursiva do aluno — eis o que se deve propor como objectivo no ensino

161
da língua materna ao longo do ensino básico. Transformar o ensino da língua
materna em rebuscadas e estéreis nomenclaturas ou em pretensiosos e vazios
exercícios de formalização equivale a massacrar as crianças e os adolescentes,
ocultando-lhes irremediavelmente a beleza, o sortilégio, a urdidura histórica, a
força pragmática, a maravilha paradoxal de ordem e de caos, que a língua é.
Hoje, infelizmente, temos numerosos alunos que completam o 9.º ano de
escolaridade e que saberão o que é a função fática da linguagem, o que é um
actante, que saberão traçar árvores, mas que não sabem interpretar um artigo do
código da estrada, que não sabem ouvir ou ler criticamente um slogan
publicitário, que não sabem redigir um relatório ou sequer um requerimento,
que não ganharam o gosto da leitura.
Estas mudanças de programa têm obviamente de se correlacionar com a
formação renovada dos professores de português, quer com a sua formação
inicial, quer com a sua formação contínua, e com a elaboração de livros e textos,
de gramáticas e de dicionários com qualidade científica e didáctica.
Apurando os conhecimentos morfossintácticos, enriquecendo o
vocabulário, discriminando os matizes semânticos e as conotações das palavras,
aprofundando as relações entre co-texto e contexto, corrigindo a dicção e a
ortografia, sabendo, em suma, ler e produzir textos, o aluno dominará os
mecanismos linguísticos indispensáveis para o seu desenvolvimento cognitivo e
cultural, para assegurar o seu bom rendimento escolar e para assumir os seus

162
direitos e deveres de cidadania.
A ‘LEITURA’ DE DEUS E AS LEITURAS DOS HOMENS *

No volume 1, n.º 3 (1975), da Critical Inquiry — uma das mais


importantes revistas de teoria e crítica literárias do post-new criticism, herdeira,
em parte, das teorias estéticas e críticas dos neo-aristotélicos de Chicago —,
Edward Wasiolek publicava um artigo de título ressonantemente polémico e
programático: «Wanted: A new contextualism». No new criticism anglo-norte-
americano, escrevia o autor, «the literary work stood alone in a contradictory
and wholly untenable purity, separated from its creator, and if one were to be
consistent, from the reader too» (p. 628).
Quando Wasiolek se referia à necessidade de um novo contextualismo,
tinha decerto em mente o conceito de contextualismo que, em conformidade
com a estética neokantiana do new criticism, Murray Krieger explanara em
diversos ensaios, desde o início da década de 60. Segundo Krieger, o
contextualismo define-se pela aceitação de que «the verbal structure of the
properly literary work itself becomes the autonomous context that generates
meanings which become self-referential»1. Esta concepção contextualista,
levando às suas últimas consequências a metáfora da organicidade do
poema, funda-se no princípio da descontinuidade entre a estrutura
intramuros do texto literário e todos os elementos que, em relação a ela, são
extramurais. A metáfora da muralha exprime a separação entre o que está
dentro — que é intrinsecamente valioso — e o que está fora — que pode e
deve ser ignorado, pois não tem ‘direito de cidade’. A muralha assinala e
afirma que o interior (o poema) não é uma metáfora, uma sinédoque, uma

* Ensaio publicado na revista Colóquio / Letras, n.º 100, Novembro / Dezembro de 1987, pp. 19-23. Sugestão:
implicar a sua leitura nomeadamente com: «Texto e Contexto na História Literária», publicado nas Actas do 1.º
Congresso Internacional de Teoria da Literatura e Literaturas Lusófonas, Coimbra, Almedina, 2005, pp. 21-28.
1 Cf. Murray Krieger: «Contextualism», in Alex Preminger et al. (eds.): Princeton Encyclopedia of poetry and
poetics, London, 21975, p. 929. Sobre a relevância e o significado da obra de Murray Krieger nos estudos literários
contemporâneos, veja-se Bruce Henricksen (ed.): Murray Krieger and contemporary critical theory, New York,
1986.

163
metonímia, uma anastomose ou uma anamorfose do exterior (o mundo). A
delimitação topográfica identifica e salvaguarda uma especificidade
ontológica.
Com efeito, as famosas falácias do new criticism — a falácia da intenção,
a falácia patética ou emotiva, a heresia da paráfrase — defluíam logicamente de
um forte neokantianismo que erigia a obra de arte em entidade ontológica e
semicamente autónoma: um heterocosmo com a sua própria e intransferível
ratio, alheio às convulsões da história, às intenções dos autores e às emoções
dos leitores, Back to the text, o celebrado pregão de new criticism, significou
também — além, obviamente, de significar uma relação contra a história
literária biografista e factualista — a busca de uma stasis da história, a procura
de uma Arcádia em que as tensões, os paradoxos e as ambiguidades se
resolviam, em jogo harmonioso, na organicidade esplendorosa e sem fractura do
«significado textual intrínseco».
No desabar do seu longo reinado, pelos fins da década de 60, e apesar dos
esforços de alguns epígonos brilhantes como Murray Krieger, o new criticism
sofria ataques heterogéneos cujo denominador comum se cifrava no regresso ao
contexto latamente entendido como conjunto de factores ‘extramurais’: a
intenção do autor na hermenêutica recognitiva de Hirsch, a reacção do leitor na
estilística afectiva de Stanley Fish, o ‘mundo’ na crítica sociológica de Edward
Said... Abriam-se as portas e derribavam-se os muros da prisão da linguagem e,
nos conflitos da polaridade dentro / fora, era o exterior que ganhava
preponderância. Com laivos de serena melancolia, Paul de Man reconhecia, em
1973, que, a avaliar por diversas publicações recentes, «the spirit of times is not
blowing in the direction of formalism and intrinsic criticism»2.
Também no crepúsculo dos vários formalismos europeus, sobretudo depois
do grande pânico desencadeado por Maio de 68, se assistiu ao triunfal retorno do
contexto, embora com fundamentos, caminhos e objectivos, incoincidentes: desde
a estética da recepção à teoria do texto, passando pela semiótica soviética e pela
chamada ciência empírica da literatura, texto e contexto, co-texto e con-texto,
converteram-se em termos e conceitos fundamentais e indissociáveis na descrição

2 Cf. Paul de Man: «Semiology and rhetoric», Diacritics, 3:3 (1973), p. 27. Estudo republicado na obra de Paul de
Man: Allegories of reading, New Haven, 1979, p. 3 e ss.

164
e na análise da semiose e da textualidade literárias.
Tal como houve quem pressurosa e consoladamente confundisse o
estudo do fenómeno da intertextualidade com a positivística inventariação de
fontes, assim houve quem jubilosamente saudasse no ‘regresso’ do contexto
não tanto o fim de uma concepção do texto literário como entidade existente,
para usar palavras de Edward Said, «num universo textual alexandrino», mas,
sobretudo, o reconhecimento da necessidade e da pertinência metodológicas
de regular e controlar a proliferação dos significados textuais. Recuperar em
sentido historicista, filologista ou sociologizante, a nova aura do termo
‘contexto’, tem constituído uma obsessiva empresa de muitos leitores,
críticos e investigadores, ansiosos por encontrarem mecanismos
metodológicos que assegurem a interpretação tida como correcta, objectiva e
estável do significado do texto literário. Se o texto é context-bound, a sua
leitura pode ser realizada segundo o rumo certo marcado pelos cartógrafos e
aferido pelos instrumentos-guias da navegação... E assim, filólogos e
historiadores, renovando uma antiga e sólida aliança, intentam alcançar o que
Boeckh designou por compreensão «das condições objectivas da
comunicação»: uma compreensão fundada no significado literal das palavras
e no significado literal considerado na sua articulação com as relações reais3.
Como afirma Schleiermacher, numa das proposições que melhor revelam os
seus receios ante os abismos da imaginação e da criatividade românticas,
«tudo necessita de uma determinação precisa e não a recebe senão num
contexto»4.
Conhecendo o contexto das «relações reais» referidas por Boeckh, isto
é, o conjunto de elementos extratextuais que constituiria a origem, a causa e
a ratio do texto, o leitor pode, nesta perspectiva, delimitar e estabilizar o
sentido do texto. A objectividade textual do new criticism funda-se no
cancelamento de tudo o que, de fora, vem perturbar, ou mesmo dilacerar, a
lógica e a harmonia autotélicas do texto/ícone verbal; a objectividade textual
contextualista de raiz histórico-filológica funda-se no princípio de que o que
está fora do texto — a língua, a situação histórica, o entorno cultural e social,

3 Apud Marco Ravera (ed.): Il pensiero ermeneutico. Testi e materiali, Genova, Marietti, 1986, p. 148.
4 Cf. Friedrich Schleiermacher: Herméneutique, Genève, Editions Labor et Fides, 1987, p. 118.

165
a biografia.... — explica, sem falhas nem resíduos, o que está dentro do texto.
Num e noutro caso, ficam exorcismados os ‘agnósticos’ e os ‘neuróticos’
textuais.
Por conseguinte, a objectividade textual contextualista, pelo menos na
sua versão forte, postula duas ‘verdades’ de natureza ontológica e cognitiva:
em primeiro lugar, que o contexto é delimitável e analiticamente exaurível;
em segundo lugar, que o leitor/ filólogo/ historiador tem a possibilidade de
operar numa sincronia alocêntrica, na qual se inscreverá «através de um
processo (diacrónico) de aquisição de conhecimentos, de ‘estranhamento’
de si mesmo, de reincarnação»5. Na sua lógica convergente, o oxímoro
técnico-científico da «sincronia alocêntrica» e a metáfora metempsicótica
da «reincarnação» ocultam e desvelam um ponto fulcral de blindness
teorética.
Com efeito, se a semiótica soviética, a teoria do texto, a pragmática da
literatura, etc., têm acumulado argumentos fortes no sentido de demonstrar
que o texto é context-bound, isto é, que a semiose textual é sobredeterminada,
na sua produção e na sua recepção, por factores contextuais, não conheço
argumentos pertinentes, ou sequer de mediana razoabilidade, que infirmem a
afirmação de Gadamer, de Derrida, de Paul de Man, de Hillis Miller e outros
‘heresiarcas’ da desconstrução, segundo a qual o conceito de contexto é
context-free: nenhum contexto pode ser cerrado ou rigidamente delimitado,
nenhuma descrição de contexto pode ser saturada. Qualquer factor contextual
remete, em reverberações e difracções intérminas, para outros factores
contextuais (e o mesmo se diga dos factores intertextuais). A grande ilusão do
contextualismo ingénuo e dogmático consiste em conceber o autor e o leitor
como vazios operadores cibernéticos programáveis homogeneamente por
contextos rigidamente configurados, embora com uma diferença capital:
enquanto o autor não se pode libertar do seu contexto — e só assim o
historiador/filólogo encontra fundamento para o seu estudo... —, o leitor/
filólogo/ historiador usufrui da capacidade proteiforme de ‘habitar’ contextos
múltiplos, numa experiência de alteridade radical. Ora, como escreve

5 Cf. Luciana Stegagno Picchio: A Lição do Texto. Filologia e Literatura. I – Idade Média, Lisboa, Edições 70,
1979, pp. 233-234.

166
Herman Parret, «contexts of understanding do not exist as static and highly
finished data»6, não constituem conjuntos, estados ou situações, rigorosa e
imovelmente constituídos antes e para além do uso da linguagem. Os contextos,
semiosicamente, são sempre contextualizações construídas pelos intérpretes, ou
seja, pelo autor e pelo leitor, no âmbito da criatividade dos jogos linguísticos e
da sua interacção com formas de vida. E estas contextualizações só existem e
funcionam para os intérpretes através de interpretantes, isto é, de signos que
nunca são substitutos equipolentes de outros signos, pois que, em relação aos
signos que representam e traduzem, eles são sempre uma diferença.
Os interpretantes de qualquer leitor enraízam-se e constituem-se
necessariamente na sua linguagem, na tradição e na historicidade da sua língua,
no caudal informativo da sua enciclopédia e na sua experiência de leitura(s). Em
relação ao texto lido, o leitor não pode elidir, ou colocar entre parênteses, a sua
exotopia e a sua exocronia, pois que é nelas e mediante elas que existe como
leitor. A compreensão de um texto é sempre um evento histórico e por isso a
iteração de um texto (ou de um fragmento textual) gera forçosamente
significados distintos. Foi por isso que Pierre Ménard, transcrevendo fielmente
o Quijote, escreveu um texto sintáctica, semântica e pragmaticamente novo; e
foi por isso também que, como conta Borges noutra narrativa, Los teólogos, o
mesmo texto — um texto «límpido, universal; não parecia redigido por uma
pessoa concreta, mas por qualquer homem ou, talvez, por todos os homens» —
exprimiu, num contexto, a ortodoxia e, noutro, encarnou a heresia. O ‘mesmo’
texto, num contexto, fez exaltar o seu autor como guardião da fé e, noutro
contexto, condenou-o a morrer na fogueira purificadora. De nada valeu ao autor
do texto apelar, em jeito de filólogo, para o contexto originário do texto, para o
contexto que, em seu entender, objectivava e imobilizava o significado textual:
os seus juízes, leitores constituídos na historicidade de outros jogos de
linguagem, de outro tempo e de outra situação, construíram a sua
contextualização do texto e leram-no como um texto herético. Ao pertencerem
à história, na sua finitude, os juízes não podiam interpretar senão em termos
históricos. No Céu, onde não há tempo — e onde, por conseguinte, não há

6 Cf. Herman Parret: Contexts of understanding, Amsterdam, John Benjamins, 1981, p. 79.

167
contextos —, Deus não distinguiu o autor do texto daquele outro teólogo que,
lendo-o como autor de um texto herético, fora o seu acusador encarniçado e
implacável. Esta confusão do Deus borgesiano, se exprime a unidade profunda
que, para a sua insondável divindade, existe entre os contrários, entre o ortodoxo
e o herege, o acusador e a vítima, significa também que a semiose textual é um
fenómeno histórico. E por isso a palavra de Deus só pode subtrair-se às
mutações e às rupturas interpretativas se for em absoluto descontextualizada,
isto é, se for unívoca, universal e intemporalmente interpretada por uma
autoridade inalterável que se exime à finitude da consciência e da razão
históricas.
Os homens, porém, mesmo os filólogos mais eruditos, de mais alto rigor

168
exegético e de mais acurada acribia, não lêem assim...
TESES SOBRE O ENSINO DO TEXTO LITERÁRIO
NA AULA DE PORTUGUÊS *

Como o tempo de que disponho para realizar esta intervenção é


relativamente curto, não permitindo explanar e dilucidar argumentativamente as
proposições e as propostas que vou apresentar, construirei o meu texto como
uma sequência de teses sobre o tema que, em conformidade com o programa
deste Encontro, me cabe tratar, formulando cada tese de modo conciso, sem
tecnicismos teoréticos e terminológicos e fazendo acompanhar cada tese de
sucintos esclarecimentos e comentários.
E porque a linguagem é número, no sentido originário desta palavra, e
porque os números se inscrevem no mais fundo da sabedoria dos deuses e dos
homens, vou propor e enumerar dez teses, numa espécie de decálogo ou de via-
sacra com dez estações para meditar e ganhar esperança.

TESE I

O texto literário — mais propriamente, o texto poético — desempenhou,


ao longo de toda a história do Ocidente, um papel preeminente na formação

* Comunicação apresentada ao «Encontro de Educação» organizado no Porto e em Lisboa, em 8 e 14 de Maio de 1998,


pela Porto Editora, e publicada na revista Diacrítica (Centro de Estudos Humanísticos – Universidade do Minho), n.º
13-14, 1998-99, pp. 23-31. Sugestão: implicar a sua leitura nomeadamente com: «As relações entre a Teoria da
Literatura e a Didáctica da Literatura: Filtros, Máscaras e Torniquetes» (apresentada ao V CONGRESSO INTERNACIONAL
DE DIDÁCTICA DA LÍNGUA E D LITERATURA, ocorrido em Coimbra de 6 a 8 de Outubro de 1998 e publicada nas Actas
respectivas, Coimbra, Almedina, 2000, vol. I, pp. 3-9); «Teorização literária», in I Colóquio de Professores
Universitários de Literaturas de Expressão Portuguesa, Actas, Lisboa, Instituto de Cultura Brasileira, 1984; «A teoria
da desconstrução, a hermenêutica literária e a ética da leitura», in O Escritor, 1, (1993) [também na versão espanhola:
«La teoría de la deconstrucción, la hermenéutica literaria y la ética de la lectura», apud José Manuel Cuesta Abad e
Julián Jiménez Heffernan (eds.): Teorías literarias del siglo XX, Madrid, Akal, 2005]; «Sobre o Regresso à Filologia»
(publicado na obra Gramática e Humanismo — Actas do Colóquio de Homenagem a Amadeu Torres, I volume,
Publicações da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa, Braga, 2005, pp. 83-92); «A Epopeia, Os
Lusíadas e as leituras antológicas», publicado na revista Ariane, n.ºs 18/19/20, Lisboa, Maio de 2003.

169
escolar, educativa e cultural dos jovens e não existem razões substantivas para
que se altere significativamente, e muito menos para que se abandone, essa
herança multissecular.
Entre a linguagem verbal, entre cada língua histórica, e a poesia existe
uma primordial e permanente relação ontológica, semiótica, social e cultural. Os
textos poéticos orais e escritos foram e são por excelência os espaços e os
organismos da constituição, do desenvolvimento e da ilustração das línguas
históricas. Neles coexistem, em tensão criadora, a exemplaridade e a
normatividade linguísticas e a inovação, a inventividade e a fantasia verbais,
muitas vezes bordejando mesmo a transgressividade e nessa fronteira de
aventura e risco abrindo novos horizontes de expressão e comunicação. Os
textos poéticos — e neles incluo muitos dos textos fundacionais das mitogonias
e das religiões, como é o caso da Bíblia — são os textos mais perduráveis, mais
vivos e mais fecundantes, de todas as culturas.
Não se pode ensinar a língua sem o estudo da poesia, não se pode ensinar a
poesia sem o estudo da língua. A gramática, a retórica e a poética, três artes
fundamentais da cultura e da escola do Ocidente, tem como um dos seus pilares
mais sólidos a indissociabilidade da língua e da poesia. A grande filologia
romântica e pós-romântica conservou e renovou essa tradição, que foi prosseguida
e aprofundada, em quadros teóricos e metodológicos diversos, pela Estilística
idealista, pelo Formalismo russo e pelo Estruturalismo da Escola de Praga.
Infelizmente, grande parte da Linguística contemporânea, em especial a
Linguística gerativa e a Linguística derivada da filosofia analítica, operou uma
cisão terrivelmente empobrecedora entre língua e poesia, reduzindo a língua a uma
esfarrapada manta de retalhos cognitivistas e rasamente semântico-pragmáticos e
perdendo de todo o entendimento da língua como energeia discursiva, como
produtividade textual, como modelação do mundo e do homem e como epifania
das potências, dos voos e das funduras da fantasia e da imaginação.

TESE II

Em todos os segmentos do sistema educativo, desde o 1.° ciclo do ensino


básico até ao ensino secundário, o texto literário não deve ser considerado como
uma área apendicular ou como uma área perifericamente aristocrática da
disciplina de Português, como uma espécie de quinta senhorial escondida nos

170
arredores da grande cidade da língua, mas como o núcleo da disciplina de
Português, como a praça maior dessa cidade, como a manifestação por excelência
da memória, do funcionamento e da criatividade da língua portuguesa.
Quando digo «núcleo» e «praça maior», estou a afirmar obviamente a
necessidade de estudar, nos diversos segmentos do sistema educativo, outros
tipos ou outras classes de textos, numa polifonia, consonante e contrastiva, de
vozes, de estratégias e de arquitecturas discursivas. Retomando e afeiçoando ao
meu propósito e argumento um famoso símile de Wittgenstein, direi que, na
cidade da língua, os subúrbios proletários, as vielas dos bairros antigos, as ruas
de azafamada actividade do comércio e dos serviços, as avenidas e os largos
residenciais, as pracetas de elegante e discreto remanso, afluem à «praça
maior», talvez o único lugar possível de encontro, de cruzamento e de mescla,
das variedades diatópicas e diastráticas do tecido linguístico da urbe.

TESE III

Os textos literários lidos e estudados na disciplina de Português do ensino


básico e do ensino secundário devem ser escolhidos tendo em consideração os
estádios de desenvolvimento linguístico, psicológico, cognitivo, cultural e estético
dos alunos, mas devem ser sempre textos de grande qualidade literária, isto é, no
sentido mais lídimo da expressão, textos canónicos: textos modelares pela
utilização da língua portuguesa, pela beleza das formas, pela densidade semântica,
pela originalidade, pela riqueza e pela sedução dos mundos representados.
É urgente recuperar para os livros escolares de Português os significados
originários, tantas vezes esquecidos e desfigurados, das palavras antologia e
florilégio: colheita e colecção de flores, conjunto dos mais belos, gráceis e
esplendorosos textos. Dentro da relatividade e da pluralidade diacrónicas e
sincrónicas dos gostos, há que escolher com gosto os textos a ler e a estudar.
Defendo, em particular, a ideia de que, ao longo dos três anos do ensino
secundário, deviam ser estudados o que denomino núcleos de textualidade
canónica, em número não muito elevado por cada ano. Denomino «núcleos de
textualidade canónica» textos ou corpora de textos cuja qualidade estético-
literária, cuja relevância linguística e cultural e cuja capacidade de irradiação
criadora sejam inequivocamente reconhecidas no campo da literatura
portuguesa, e que sejam adequadamente representativos dos diversos períodos

171
ou estilos epocais e dos diversos modos, géneros e subgéneros literários.
Reconheço que o conceito de cânone literário, presente na expressão e na
ideia de «núcleos de textualidade canónica», pode gerar dificuldades e até
dissensos de vária ordem. Penso, todavia, que no ensino da literatura o conceito
de cânone é fecundo e mesmo indispensável, se não for construído como um
conceito imóvel, fechado, fundamentalista e ideologicamente manipulado.

TESE IV

Ao longo do ensino básico e do ensino secundário, a disciplina de


Português, tendo o texto literário como área nuclear, na perspectiva atrás
delineada, deve desempenhar um papel central na educação das crianças, dos
jovens e dos adolescentes, com o adequado aproveitamento das possíveis
articulações dos textos literários com textos pictóricos, com textos musicais e
com textos fílmicos, por exemplo.
A formação e o desenvolvimento da sensibilidade e do gosto estéticos não
são um luxo, um privilégio ou um adorno supérfluos, aristocráticos ou
burgueses, pois que constituem uma dimensão primordial e constante,
antropológica e socialmente, do homem. A escola de massas, que acolhe nos
nossos dias crianças e jovens de múltiplos estratos sociais, alguns deles
culturalmente muito desfavorecidos, deve desempenhar também neste domínio
um papel emancipatório, proporcionando a todos, a partir das suas diversidades
culturais de origem e sem as humilhar ou rasurar, o acesso a um capital
simbólico que transcende as clivagens das classes e dos grupos sociais. Os
autores clássicos não pertencem, enquanto tais, a nenhuma classe social.
Não se deve cair na tentação de ocultar aos jovens e adolescentes, em nome
de uma pedagogia catequeticamente optimista, os universos sombrios, trágicos,
cruéis e perversos da literatura de todos os tempos. A representação poética dos
sofrimentos, dos horrores e abismos da vida humana, como ensina Aristóteles, tem
um efeito catártico, regulador do equilíbrio das paixões e convulsões da alma. É
este um domínio particularmente complexo e melindroso, com implicações e
consequências psicológicas, éticas e sociais muito importantes. Se são de condenar
um entendimento e um programa angelistas da educação estética, reduzindo esta a
um catecismo beatificamente kitsch de virtudes privadas e públicas, cabe
igualmente rejeitar, no âmbito da escola, uma educação estética dominada pelo

172
negativismo corrosivo, pelo pessimismo antropológico, pelo niilismo desesperado.
TESE V

Uma língua e uma literatura e, por conseguinte, os textos, em geral, e os


textos literários, em particular, constituem-se e desenvolvem-se na
temporalidade histórica de uma comunidade social e de uma cultura, mas o
reconhecimento da sua historicidade não impõe que o estudo do texto literário,
sobretudo no ensino básico, seja dominado pela historia literária.
O texto literário, nas suas estruturas formais, retóricas, estilísticas,
semânticas e pragmáticas, deve ser o fulcro do processo de ensino-
aprendizagem e será a partir da descrição, da análise, da interpretação e da
valorização dessas estruturas que se efectuarão as aconselháveis ou
indispensáveis correlações e articulações com a história da língua e da literatura,
com os períodos literários e com os contextos histórico-sociais.
É urgente, é terapeuticamente urgente, que os programas de Português do
ensino secundário, nas diversas áreas, deixem de impor o ensino abrangente da
história da literatura portuguesa, desde a poesia trovadoresca até ao romance de
Vergílio Ferreira ou a poesia de Manuel Alegre. Não é com o ensino da história
literária — e, sobretudo, não é com o ensino de uma esquelética, esquemática e
dogmática história literária — que se seduzem e formam leitores e que se educa
o gosto estético-literário.
Os programas de Português do ensino secundário devem possuir
portanto uma coluna vertebral, digamos assim, textocêntrica, mas não devem
confinar-se a um textocentrismo extreme ou clausurado sobre si mesmo. A
partir de cada «núcleo de textualidade canónica», com sustentação nas
estruturas verbais, retóricas, estilísticas, sémicas e pragmáticas dos próprios
textos, deverá ser produzida e transmitida a informação transtextual
considerada como indispensável e apropriada para tornar mais rica, mais
fascinante e mais rigorosa também a construção do sentido de cada texto.
Partir do texto e regressar sempre ao texto, mas tendo adquirido, antes e ao
largo do périplo textual, saberes e instrumentos de análise e compreensão que
permitam perfazer com segurança, mas sem destruir o mistério e a emoção da
descoberta, a viagem textual. A hermenêutica do texto literário co-envolve a
inteligência, a intuição, a sensibilidade, a emoção e o desejo, mas não
dispensa os saberes especializados, as regras metodológicas, as técnicas de

173
análise pertinente.
Nos programas de Literatura Portuguesa do ensino secundário, os «núcleos
de textualidade canónica» devem ser equilibradamente representativos dos
diversos estádios da história da língua e da literatura. Quando digo
«equilibradamente representativos», estou a excluir evidentemente hiatos, rasgões
ou vazios, quer em unidades cronológicas relativamente bem delimitadas como os
séculos literários, quer em entidades com fronteiras temporais mais difusas como
as épocas e os períodos literários, visto que tais vazios, rasgões ou hiatos
tornariam opaca ou mesmo impossível a compreensão da dinâmica dos processos
histórico-literários. Todavia, quando digo «equilibradamente representativos»,
também não estou a advogar qualquer critério aritmético de igualitária repartição
diacrónica dos «núcleos de textualidade canónica». A representação equilibrada
deve assegurar a compreensão da mencionada dinâmica, mas deve também, e
principalmente, manter uma relação de proporcionalidade com o valor
reconhecido e atribuído aos autores e aos textos (a referência a cânone implica a
referencia a valor). Nesta perspectiva, não vejo qualquer razão impeditiva de que
tais «núcleos de textualidade canónica» pertençam predominantemente ao século
XVI e à época moderna e contemporânea — desde o Romantismo até aos nossos
dias —, em especial no que diz respeito aos programas destinados aos alunos das
áreas de Ciências Exactas e Naturais e de Tecnologias. Estes últimos programas,
sem descurarem a articulação do estudo dos textos literários com a consolidação
e o apuro do conhecimento da língua portuguesa — este deve constituir um
objectivo primordial e permanente de qualquer programa de Literatura Portuguesa
—, devem conceder sobretudo relevância às dimensões antropológicas, éticas e
sociais da literatura, de modo a enraizar e a fazer florescer nos alunos uma
formação humanista que dialogue, como sabedoria, com a sua formação científica
e tecnológica.
O modelo de programa de Literatura Portuguesa que proponho para o
ensino secundário tem fundamentalmente os seguintes objectivos: reduzir a
extensão dos programas; diminuir a massa de informação histórico-literária a
transmitir e a decorar; formar leitores que leiam com gosto, com emoção e com
discernimento, na escola, fora da escola e para além da escola. Se se quiser, um
modelo de programa com o objectivo de formar leitores para a vida, no sentido
plural desta expressão: leitores para toda a vida e leitores que buscam nos textos
literários um conhecimento, uma sabedoria, um prazer e uma consolação

174
indispensáveis à vida.
TESE VI

É importante que, desde o 3.° ciclo do ensino básico e ao longo do ensino


secundário, se preste a devida atenção às estruturas formais e semânticas que no
texto literário relevam dos modos, dos géneros e dos subgéneros literários, pois
que as determinações e os condicionalismos arquitextuais são factores
relevantes para a didáctica do texto literário. Um texto lírico, por exemplo, não
pode ser estudado à luz de modelos de análise aplicáveis a textos narrativos.
Os modelos de descrição e análise textuais de matriz arquitextual não
podem, todavia, ser utilizados mecanicamente, como se o sentido de um texto
fosse inteiramente subsumível naqueles modelos. Em última instância, o
professor e o aluno têm de ler e interpretar um texto literário concreto e
irredutivelmente individual, num diálogo hermenêutico entre as estruturas
textuais e a memória, a informação, a sensibilidade e a imaginação do leitor-
intérprete. O acto interpretativo deve ser sólida, rigorosa e coerentemente
apoiado na forma do texto, na forma da expressão e na forma do conteúdo, e na
informação linguística, literária e cultural do leitor, mas não é cientificamente
determinável. Ler e interpretar um texto literário é um acto crítico, ou seja, e um
acto que envolve e comporta hipóteses e juízos que não são cientificamente
controláveis. Por isso mesmo, não há uma interpretação ne varietur de um texto
literário, o que não significa que toda e qualquer interpretação seja legítima e
admissível e que não existam critérios para distinguir as interpretações
fundamentadas das interpretações forçadas, arbitrárias ou até aberrantes. O
professor tem de saber traçar cuidadosa e prudentemente a fronteira entre a
legítima e saudável, a todos os títulos, liberdade crítica e hermenêutica e a
confusão e o laxismo interpretativos.

TESE VII

A leitura e a interpretação dos textos literários devem ser para os alunos


uma viagem guiada pelo professor com segurança, mas com delicadeza e com
discrição, de modo que o aluno seja efectivamente um leitor com identidade
própria, isto é, um leitor que lê com a sua memória, a sua imaginação, a sua
experiência vital, as suas expectativas e os seus conhecimentos linguísticos-

175
literários. É necessário que as emoções — a alegria, a tristeza, a angústia, a
piedade, a indignação, a revolta... —, fundamentais nos jovens e nos
adolescentes, não sejam asfixiadas ou esterilizadas no acto de leitura por
impositivas grelhas de leitura ou por modelos analítico-interpretativos de
aplicação mecânica.
Na educação estético-literária, é indispensável alcançar o que alguns
especialistas da ciência cognitiva designam por «conhecimento quente» (hot
cognition), ou seja, um conhecimento que está profundamente ligado às
emoções e aos afectos. As emoções não são um factor de perturbação ou um
resíduo impuro da experiência estético-literária, pois constituem a resposta
natural e insubstituível do leitor às representações do mundo, da vida e do
homem que o texto literário lhe proporciona. Nesta perspectiva, as emoções e os
afectos são indissociáveis do conhecimento do mundo e da vida e do
conhecimento de si próprio que o texto literário possibilita e desenvolve no
leitor. As opiniões, as crenças e os valores do leitor são interpelados pelo texto
literário a nível da inteligência e a nível da sensibilidade e dos afectos, num
diálogo em que a inteligência clarifica e depura as emoções e em que estas
vivificam e fertilizam a inteligência. Este processo interactivo da razão e das
emoções, mediado pelas formas linguístico-textuais, constitui uma das mais
valiosas contribuições das humanidades para a educação da criança, do jovem e
do adolescente.

TESE VIII

Os textos literários, pelo modo como utilizam, reinventam e potenciam,


sob todos os pontos de vista, a língua portuguesa e pela sua ligação memorial ao
destino e à aventura de uma terra, de um povo e de uma cultura, constituem o
thesaurus por excelência da identidade nacional. Desde a poesia trovadoresca,
porém, até à obra de Fernando Pessoa, de Vergílio Ferreira ou de Carlos de
Oliveira, os textos literários têm sido também o lugar de diálogo criativo com
outros textos de outros povos, de outras terras, de outras culturas. A identidade
nacional não é uma ilha, uma cidadela ou uma prisão. Tal como a identidade
individual se constrói no diálogo com o(s) outro(s), assim a identidade de um
povo e de uma nação se vai plasmando, num processo interminável, no diálogo
com as culturas de outros povos e de outras nações. Camões, Garrett, Eça ou

176
Fernando Pessoa não teriam escrito a obra que escreveram sem o diálogo
intertextual que mantiveram com Petrarca, com Sterne, com Flaubert, com Walt
Whitman. Os grandes textos literários nunca nos clausuram num nacionalismo
míope e bafiento: religam-nos à Europa e ao mundo.

TESE IX

Na análise e na interpretação dos textos literários, deve ser utilizada com


parcimónia, com clareza e com rigor, a terminologia das metalinguagens
linguísticas e literárias. Sublinho com parcimónia, porque a inflação de tais
terminologias terá um efeito devastador na relação dos alunos com os textos. No
3.° ciclo do ensino básico e sobretudo no ensino secundário, toma-se
indispensável, porém, fornecer aos alunos termos e conceitos fundamentais da
gramática, da linguística, da retórica e da poética, mostrando, a partir dos textos
e com os textos, a sua utilidade heurística, cognitiva e hermenêutica.

TESE X

Os textos literários no Ocidente são, desde há cerca de vinte e cinco


séculos, predominantemente textos escritos. Nas suas macroestruturas técnico-
compositivas e nas suas microestruturas retóricas e estilísticas, os grandes textos
literários são as mais belas, as mais complexas e as mais rigorosas
manifestações da língua escrita. Por isso mesmo, deve o estudo dos textos
literários ser orientado poieticamente, isto é, a arte de ler e interpretar deve
induzir e incentivar nos alunos o desejo e o gosto de escrever.
O texto literário escrito, se é um objecto percepcionado e apreendido
visualmente, possui uma corporeidade verbal em que o ritmo, a música, o rosto
fónico das vogais, das consoantes, das sílabas, das palavras e dos sintagmas
desempenham uma função nuclear. O corpo do texto só pode ser conhecido e
apreciado em todo o seu esplendor, em todos os seus segredos, mistérios e
fascínios, se for literalmente incorporado pelo leitor, se o leitor dele
amorosamente se apoderar pela leitura em voz alta. Dizer um poema é uma

177
forma soberana de entender um poema.
AS HUMANIDADES
EA CULTURA PÓS-MODERNA *

No limiar desta conferência, convido os meus ouvintes a acompanharem-


me na difícil, mas imprescindível, tarefa de dilucidação dos conceitos de
humanidades e de cultura pós-moderna.
Por humanidades, entendo neste contexto as humanidades académicas,
isto é, o conjunto das disciplinas cultivadas, nos campos da investigação e da
docência, nas instituições do ensino superior contemporâneo e que são
herdeiras, sob os pontos de vista escolar, intelectual e cultural, dos studia
humanitatis e das litterae humaniores; que têm territórios institucionais próprios
— Faculdades, Departamentos, Centros, Programas, etc. — e nas quais se
obtêm graus académicos específicos, que culminam com o grau de
doutoramento.
Os campos disciplinares das humanidades apresentam algumas variações
nos sistemas do ensino superior dos diversos países e até no âmbito do mesmo
sistema de ensino (o que é notório, por exemplo, no sistema universitário norte-
americano, com a ressalva de que é duvidoso que se possa falar de um «sistema»
universitário norte-americano). Todavia, essas variações não afectam de modo
relevante o núcleo desses campos disciplinares, cujas componentes
enumeraremos assim: línguas e literaturas clássicas; línguas e literaturas
modernas; filologia; linguística; retórica, poética (teoria da literatura), crítica
literária e literatura comparada; filosofia e história, em particular a história da
arte, a história da cultura e a história das ideias (algumas orientações da

* Comunicação apresentada ao Colóquio de Estudos Clássicos A Antiguidade Clássica e nós: Herança e identidade
cultural e publicada no livro de ACTAS respectivo, Braga, Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do
Minho, 2006, pp. 619-630. Sugestão: implicar a sua leitura nomeadamente com: «Reflexões tempestivas sobre a
crise das Humanidades», As Letras Humanas/Humanidades: Presente e Futuro (coord. de Manuel Gama e Virgínia
Soares Pereira), Braga, Universidade do Minho, 2004; «A constituição da categoria periodológica de Modernismo
na Literatura Portuguesa», publicado na revista Diacrítica, n.º 10 (1995), pp. 137-164; «Modernismo e Vanguarda
em Fernando Pessoa», in Indiana Journal of Hispanic Literatures, (1996).

179
historiografia contemporânea, como a história económica e a história social,
muitas vezes emigram institucionalmente do território das humanidades para o
território das ciências sociais).
Tarefa bem mais complexa e arriscada, mas indispensável, é dilucidar o
conceito de cultura pós-moderna (e, por conseguinte, os conceitos de pós-
modernidade e de pós-modernismo).
Julgo ter sido, em Portugal, um dos primeiros a reflectir sobre o conceito
de pós-modernidade, numa comunicação intitulada «Crise e inovação na cultura
da pós-modernidade em Portugal», que apresentei a Conferência Internacional
Os Portugueses e o Mundo, que decorreu no Porto entre 4 e 7 de Junho de 1985
e cujo texto está publicado nas respectivas actas1. Pareceu-me que o conceito de
pós-modernidade, que era então um astro em ascensão deslumbrante nos céus
do pensamento europeu e norte-americano, poderia ser fecundo no limiar de um
novo estádio da nossa vida política, social, económica e cultural2. Desde então,
nos anos finais da década de oitenta e ao longo da década de noventa do século
XX, o debate sobre o pós-modernismo e a pós-modernidade ganhou uma
amplitude e intensidade extraordinárias, transvasando dos âmbitos da literatura,
da arquitectura e da estética para os âmbitos da filosofia política, da sociologia
e da economia e tendo a respectiva bibliografia, desde as monografias
académicas e os ensaios em revistas especializadas até aos livros e aos artigos

1 Os Portugueses e o Mundo. Conferência Internacional. I volume. Comunicações introdutórias, Porto, Fundação


Eng. António de Almeida, 1988, pp. 33-39.
2 Na raiz das «teses» da minha comunicação estavam obviamente as ideias de Jean-François Lyotard expostas no
seu livro La condition postmoderne. Rapport sur le savoir (Paris, Les Éditions de Minuit, 1979), mas estavam
também as ideias de Karl Popper sobre o racionalismo crítico e sobre a sociedade aberta e estavam sobretudo as
ideias de Max Horkheimer e de Theodor W. Adorno expressas nessa obra impiedosamente denunciadora do
totalitarismo da Razão que é a Dialektik der Aufklärung (1947), que eu lera na tradução francesa (Paris, Gallimard,
1974), e que interpretei como metáfora acusatória de todas as perversões e manipulações totalitárias da Razão,
desde os totalitarismos ideológicos e políticos até aos seus avatares cientificistas, tecnoburocráticos, economicistas e
culturalistas. Se realcei, no contexto cultural e político de 1985, a relevância das linhas de força da pós-modernidade
enquanto ruptura com as metanarrativas totalitárias e enquanto abertura à diferença e à pluralidade de valores, não
deixei todavia de chamar a atenção para as possíveis consequências desastrosas do relativismo gnosiológico, da
hostilidade à razão e da depreciação da ciência e da tecnologia que caracterizavam algumas das posições
pós-modernistas (cf. p. 38). Hoje, volvidos vinte anos, a minha análise e os meus juízos sobre a cultura da
pós-modernidade são bem mais pessimistas e negativos.
3 Existem, em diversas línguas, cómodos readers sobre o pós-modernismo e a pós-modernidade. Cito aquele que
se me afigura ser o mais bem organizado e o mais informativo: Thomas Docherty (ed.) (1993). Entre as obras de
síntese, aponto as seguintes: Hans Bertens (1995); Remo Ceserani (1997); Perry Anderson (1998).

180
de divulgação, proliferado vertiginosamente3.
Palavras proteiformes, indissociáveis dos vocábulos e dos conceitos de
modernismo e de modernidade4 — o prefixo pós veicula uma semântica
ambiguamente complexa, híbrida, que co-envolve as ideias de posteridade, de
prolongamento, de modificação, de oposição, de diferença e de ruptura —, pós-
modernismo e pós-modernidade passaram a designar estilos de época,
orientações, movimentos e estádios dos fenómenos estéticos e culturais,
manifestações do pensamento, da sensibilidade e dos estilos de vida,
configurações e dinâmicas dos processos sociais e económicos. Talvez só os
conceitos de Renascimento e de Romantismo apresentem uma complexidade
comparável.
As análises levadas a cabo por filósofos, sociólogos, antropólogos,
teorizadores e críticos literários como J.-F. Lyotard, Jean Baudrillard, Fredric
Jameson, David Harvey, Scott Lash, Zygmunt Bauman e Terry Eagleton, entre
outros, conduzem à conclusão de que o pós-modernismo assinala «uma
extensão lógica do poder do mercado a todo o âmbito da produção cultural»5. O
pós-modernismo, como explica o título de uma já célebre obra de Fredric
Jameson, é a lógica cultural do capitalismo tardio6, é a lógica cultural do
capitalismo pós-industrial, pós-fordista, do capitalismo da era da globalização,
servido pela mais refinada tecnologia electrónica e assente em sofisticadas
estratégias de mobilidade incessante e de flexibilidade milimetricamente
calculada dos meios de produção, desde os recursos financeiros e tecnológicos
até aos recursos humanos. A pós-modernidade é o tempo do triunfo das

4 Se pensarmos nos diversos conceitos de modernismo e de modernidade que têm sido formulados,
compreenderemos as dificuldades semânticas e conceptuais que esta dependência lexical comporta. Como sublinha
Charles Jencks (1991: 13), o principal responsável pela introdução e consolidação do conceito de pós-modernismo
no léxico da arquitectura, “[w]hereas modernism in architecture has furthered the ideology of industrialization and
progress, modernism in other fields has either fought these trends or lamented them».
5 Cf. David Harvey (1990: 62). A manifestação mais visível desta extensão do mercado à produção cultural reside
decerto nas relações de estreita dependência existentes entre as artes plásticas, sobretudo a pintura, os museus e os
interesses financeiros das grandes empresas capitalistas (interesses nominalisticamente sublimados sob o
criptónimo mecenatismo).
6 Veja-se Fredric Jameson (1991). O capítulo 1 deste magnum opus de Jameson reproduz o célebre ensaio, com o
título deste livro, publicado alguns anos antes na New Left Review (1984, 146, pp. 53-92). A contribuição de
Jameson para o debate sobre o pós-modernismo é de importância capital. Para além da obra atrás citada, vide
Jameson (1994) e Jameson (1998).

181
indústrias da cultura, é o tempo em que os objectos culturais se transformam em
mercadorias na volatilidade dos mercados, em que a estética se dissolve ao
serviço da publicidade e da sedução fungível dos ícones da moda, é o tempo do
simulacro, desde a experiência da guerra até às experiências erótico-sexuais, é
o tempo do glamour e do kitsch dos centros comerciais, é o tempo do triunfo dos
media audiovisuais sobre o discurso verbal, desde a política até à pedagogia. O
pós-modernismo radicalizou e alargou a todas as esferas da sociedade um
fenómeno que Marx e Engels assinalaram e caracterizaram a propósito do
capitalismo burguês, nas famosas páginas iniciais do Manifesto do Partido
Comunista: «A revolução permanente da produção, a mobilidade incessante de
todas as situações sociais, a insegurança e o movimento eterno distinguem a
época burguesa de todas as outras»7. Tudo o que parecia firme e sólido, nas
relações sociais, políticas, éticas, familiares, económicas e laborais, se dissolve
no ar; na busca incessante de novas mercadorias para produzir e para vender, na
meticulosa programação da obsolescência dessas mesmas mercadorias, na
efemeridade da jouissance de consumir, na precarização dos vínculos afectivos
e familiares. A pós-modernidade, na sua lógica profunda, rasura a tradição —
apenas a recupera e celebra como mercadoria e como adereço nas sucessivas
vagas da mode rétro —, é historicamente amnésica, relativiza todos os valores,
amalgama e confunde, numa porosidade sem filtros, os vários níveis da cultura
e da literatura, os discursos das diferentes artes, os diversos estilos epocais, os
objectos artísticos e os objectos da quotidianidade8.
Os tempos da pós-modernidade são pois tempos inóspitos para as

7 Cito de Karl Marx e Friedrich Engels (2000). Uma análise já clássica deste tema do Manifesto encontra-se em
Marshall Berman (1983). O capítulo central desta obra, o capítulo II, encontra-se revisto e actualizado em M.
Berman (1999).
8 Poder-se-á objectar que o pastiche e o mecanismo citacional pós-modernistas indiciam uma memória histórica,
relevam da presença e da acção do passado no presente. Todavia, como demonstraram, entre outros, Hal Foster
(1996: 123), Fredric Jameson (1998: 5-6) e Vincent B. Leitch (1996: 105-107 e passim), o pastiche e a citação do
pós-modernismo são mecanismos discursivos em que a história aparece reificada, implodida, esgotada, segundo as
palavras de Baudrillard — apud Thomas Docherty (ed.) (1993: 196) —, numa precessão, que é também uma
procissão, de simulacros. Merecem ser recordadas as seguintes palavras de Vincent B. Leitch (1996: 105):
«Postmodernism strips history of its social and political specificity, erasing lived conflicts and contradictions. Lost
is the negative critical force of history, its adversarial underside. (...) [Postmodernism] is less an overcoming of
modernism than a regressive anti-modernism. As such, it is a telling symptom of our fraudulent historical moment,
reconciling us to things as they are».

182
humanidades, saberes enraizados em seculares tradições linguísticas, culturais,
literárias, filosóficas e historiográficas — enraizados em primeiro lugar na
matriz primordial da Antiguidade Clássica — e fundados na escrita e na leitura
de textos — seja-me permitido fazer aqui a economia da produção e da recepção
de textos orais ou seja, fundados na preeminência da palavra, do discurso verbal.
E são por isso mesmo também tempos inóspitos para as Universidades como
instituições que preservam, estudam e enriquecem a memória cultural dos povos
e das nações — uma memória fixada e transmitida em textos, no sentido
semiótico deste termo.
A chamada «crise» das humanidades tem uma história já longa, que
remonta, pelo menos no contexto europeu, ao último quartel do século XIX,
aquando do conflito tão pouco inteligente e tão infeliz entre as chamadas
humanidades clássicas e as ditas humanidades modernas. Como sublinhei num
ensaio publicado há pouco tempo, sob o título «Reflexões tempestivas sobre a
crise das humanidades» (cf. Aguiar e Silva, 2004: 23), a clarividência e realismo
singulares revelou um hoje esquecido professor francês, de seu nome Georges
Gromaire, que no meio do ruído e da fúria que se travou, logo nos primeiros
anos da III República Francesa, entre defensores das humanidades clássicas e
prosélitos das humanidades modernas, advertiu: «il s’agit ici de quelque chose
plus importante que de savoir si l’on étudiera les lettres anciennes ou les lettres
modernes, il s’agit de savoir si l’on étudiera les lettres absolument». Com efeito,
a defesa das humanidades tem de assentar numa lógica e numa estratégia
globais e solidárias e não numa conveniência e numa táctica sectoriais,
disciplinares, corporativistas e centrífugas (nesta perspectiva, a organização das
Universidades em Faculdades pode apresentar óbvios benefícios). O medo e o
estado de necessidade, porém, retiram muitas vezes a lucidez aos indivíduos
como às instituições.
Em nome de uma modernidade míope, de um falso progressismo cultural
e científico e de um utilitarismo rasteiro, os políticos foram reduzindo, ao longo
do século XX, a presença e a relevância das humanidades clássicas no ensino
liceal, com as inevitáveis incidências negativas no ensino universitário. Seja-me
permitido evocar aqui uma memória pessoal. Quando me matriculei, no ano
escolar de 1955-56, no 6.° ano do ensino liceal, foram dois professores meus,
ambos licenciados em Filologia Clássica, que me persuadiram a escolher a
alínea b), que dava acesso ao curso de licenciatura em Filologia Romântica, e

183
não a alínea a), que dava acesso ao curso de licenciatura em Filologia Clássica,
porque assim, asseveraram-me, não teria dificuldades, no final do curso, na
ocupação de vagas. Estava ainda fresca a memória da «machadada» que o
Professor Pires de Lima, Ministro da Educação Nacional, desferira contra o
ensino do latim no ensino liceal (medida que, sabe-se hoje, foi imposta pelo
próprio Salazar). Nesse contexto, a crise emergente das humanidades clássicas
era indissociável da escassez de emprego para os respectivos licenciados no
sistema educativo — e essa escassez era a consequência de decisões, pelo
menos controversas e transviadas, tomadas pelos políticos.
Recentemente, num luminoso ensaio, o Prof. Geoffrey Galt Harpham,
director do «National Humanities Center in Research Triangle Park», referiu-se
à «perene crise nas humanidades», anotando ironicamente que «[a]lmost since
the time of the Hindenburg, it seems, scholars have been crying, «Oh! The
humanities (Geoffrey Galt Harpham, 2005: 21). Esta lamentação elegíaca, este
sentimento de perda são compreensíveis perante o declínio gradual nos
curricula escolares de disciplinas que tinham sido, durante séculos, pedras
angulares na educação dos jovens e que tinham constituído saberes
privilegiados na cartografia do conhecimento aceite pelas Universidade
ocidentais refundadas segundo o modelo da Universidade imperial de Berlim
concebida por W. von Humboldt. Em todos os tempos e em todos os lugares,
aliás, a retórica da crise, quando inteligentemente pensada e levada à prática, é
uma eficaz estratégia de defesa e de ataque que visa preservar determinados
interesses e valores e avançar, se possível, para novos objectivos. O problema
grave é quando à retórica da crise se sobrepõem a consciência da crise e a
percepção quotidiana dos seus efeitos perniciosos.
Ora, à medida que, depois da segunda guerra mundial, os sistemas
educativos ocidentais se foram abrindo a novos públicos linguística, cultural,
social e etnicamente muito heterogéneos, com professores despreparados cultural,
científica e pedagogicamente e gradualmente condenados à proletarização
profissional e social; à medida que, nos diversos países, se foram sucedendo
reformas educativas de pendor utilitarista e tecnocrático — a tecnocracia, na sua
lógica intrínseca, é refractária à cultura humanística; à medida que a Escola deixou
de se preocupar primordialmente com a educação e a formação mental dos seus
alunos, então a crise configurou-se como uma realidade iniludível, com
dimensões de um desastre pedagógico e de um naufrágio civilizacional. Na

184
Europa como nos Estados Unidos, ao longo da segunda metade do século XX,
multiplicaram-se as tanatografias e os epitáfios em torno das humanidades em
geral e não apenas das humanidades clássicas, parecendo apenas escaparem a esta
catástrofe a linguística mais ou menos formalizada, disponível para núpcias de
conveniência com a engenharia informática, e a história contemporânea,
facilmente seduzida por suspeitas ligações com o poder político. A cultura e o
pensamento ocidentais tem segregado, aliás, desde o anúncio hegeliano da morte
da arte, múltiplas diagnoses, prognoses e profecias que relevam de uma ominosa
pulsão tanatológica: a morte da literatura, o fim da poesia, a morte do autor, a
morte do livro, etc. Na incontinente vaga de formações lexemáticas com o prefixo
pós — que inundou o discurso da cultura ocidental no último quartel do séc. XX
—, há duas palavras terríveis que traduzem sombriamente essa pulsão
tanatológica, esse sentimento de perda irreparável, de miséria ontológica e de
parálise existencial: a palavra pós-humano e a palavra pós-história. Espectros de
um mundo póstumo9...
Com o advento da pós-modernidade — relembremos que o manifesto
da pós-modernidade, o já citado livro de Lyotard intitulado La condition
post-moderne, foi publicado em 1979 —, com o triunfo das políticas
neoliberais do tatcherismo e do reaganismo, com o afundamento da última e
mais poderosa metanarrativa do século XX — o comunismo —, a
Universidade do Ocidente — primeiro a Universidade norte-americana,
depois a Universidade europeia, num processo que continua a desenrolar-se
— sofreu uma das mais profundas transformações. O modelo da
Universidade humboldtiana como centro autónomo de construção do
conhecimento e da procura livre da verdade, o modelo da Universidade como
instituição que preserva, estuda e difunde os valores universais e os valores
nacionais da cultura, o modelo da Universidade como Escola que também
educa ética e civicamente os seus alunos, entraram em colapso e o que ficou,
o que resta em seu lugar, é o que Bill Readings, professor de Literatura

9 Sobre o termo e o conceito de pós-humano, cf.: Robert Pepperell: The post-human condition, Oxford, Intellect,
1995; Francis Fukuyama: Our posthuman future, New York, Farrar, Straus and Giroux, 2002. Sobre as origens
filosófico-culturais do conceito de pós-história, veja-se Perry Anderson: «The ends of history», A zone of
engagement, London, Verso, 1992, pp. 279-375.

185
Comparada da Universidade de Montreal, tragicamente desaparecido em
1994 num desastre de aviação, denominou, num livro inteligentíssimo,
irónico e melancólico, A Universidade em ruínas10.
Perante a lógica das sociedades e das economias pós-modernas,
confrontadas com as restrições orçamentais impostas pelos Governos,
hipotecadas às grandes empresas e às grandes fundações, que são, em muitos
casos, a oculta longa manus das grandes empresas, ameaçadas por uma
competitividade feroz, acossadas pela regressão demográfica, as Universidades
empresarializaram-se — perdoe-se este barbarismo fonético e lexical —,
adoptaram e estão a adoptar modelos de gestão empresarial, fornecem e vendem
serviços, fazem investimentos financeiros especulativos, desenvolvem
agressivas campanhas publicitárias para angariar clientes, isto é, alunos,
recorrem cada vez mais a mão-de-obra barata — doutorandos, doutorados
cronicamente desempregados ou subempregados —, flexibilizam — um dos
eufemismos mais típicos da pós-modernidade — cada vez mais os contratos de
trabalho dos seus docentes, cobram propinas cada vez mais elevadas.
Por outro lado, em contradição paradoxal com as normas da gestão
empresarial, aumentam o número dos gestores e dos decisores administrativos,
em geral com salários opulentos, que são os responsáveis pelo funcionamento
correcto da empresa universitária, segundo a chamada lógica dos «três pês» —
produtividade, performance, proficiência —, que negoceiam os contratos
milionários com os grandes laboratórios médico-farmacêuticos, com as
empresas construtoras de armas, com as multinacionais da indústria automóvel,
da biotecnologia, etc., que estabelecem e manipulam os critérios e os processos

10 A «Universidade em ruínas» é uma Universidade dominada pela administração, que avalia e controla a
investigação e o ensino: «The University no longer has a hero for its grand narrative, and a retreat into
«professionalization» has been the consequence. Professionalization deals with the loss of the subject-referent of
the educational experience by integrating teaching and research as aspects of the general administration of a closed
system: teaching is the administration of students by professors; research is the administration of professors by their
peers; administration is the name given to the stratum of bureaucrats who administer the whole. In each case,
administration involves the processing and evaluation of information according to criteria of excellence that are
internal to the system: the value of research depend on what colleagues think of it; the value of teaching depend
upon the grades professors give and the evaluations the students make; the value of administration depends upon
the ranking of a University among its peers. Significantly, the synthesizing evaluation takes place at the level of
administration. (Bill Reading, 1996: 126).

186
de avaliação dos professores, dos departamentos, dos programas, etc., e que
inventaram como conceito nuclear da «certificação da qualidade» (sic) das
Universidade um conceito vazio, a Universidade da Excelência, como Bill
Readings demonstrou de modo corrosivo na obra antes citada. As Universidades
europeias importaram gulosamente este conceito vazio que dá muito jeito para
encher a boca dos políticos.
A lógica empresarial, economicista, utilitarista e tecnoburocrática das
Universidades, que permite, como Stanley Fish denunciou num hilariante e
sarcástico artigo, governar uma Universidade sem ter uma ideia sobre a
Universidade como instituição de cultura e de ciência11, tem de considerar áreas
como as das humanidades, algumas áreas das ciências sociais e até algumas
áreas das chamadas «ciências duras» — a Física é um elucidativo exemplo —
como áreas empresarialmente não rendíveis e, por conseguinte, como áreas a
extinguir ou a desactivar, porque o eufemismo é politicamente mais correcto
(como os bons físicos fazem falta obviamente aos grandes laboratórios e centros
de investigação tecnológica, promove-se a sua importação da União Indiana).
Afinando empresarialmente os critérios de avaliação, flexibilizando os contratos
de trabalho, maximizando a relação custos/benefícios, os presidentes e os
gestores das Universidades norte-americanas extinguem Departamentos e
Programas, fundem Departamentos, reduzem o número de disciplinas e o
número de professores, diminuem o salário dos docentes, subtilizam a
precariedade dos contratos, optimizam a relação dos fluxos de entrada e dos
fluxos de saída dos alunos. Fazem tanto barulho — e ainda bem — os
ecologistas por causa das ameaças à sobrevivência de uma espécie vegetal ou
animal e faz-se silêncio perante a extinção de Departamentos de Humanidades
Clássicas ou de Filosofia — sem os quais, em rigor, uma Universidade, a não ser
que seja técnica, fica imperfeita, ou seja, incompleta —, perante o encerramento
de cursos de Romanística ou de Eslavística, perante a redução, por vezes drástica,

11 Stanley Fish, professor de Literatura Inglesa, de Direito e de Ciência Política nalgumas das mais prestigiosas
Universidades norte-americanas, tem desempenhado cargos de responsabilidade universitária — em especial na
Duke University — que lhe permitiram conhecer por dentro os mecanismos da University of Excellence. A
expressão «a Universidade sem uma ideia» é de Bill Readings (1996: 118) e tem como sujeito a Universidade, mas
Stanley Fish, um astuto e irónico polemista, utiliza-a ambiguamente, tanto podendo referir-se à Universidade-
instituição como à «managerial class» que a governa. Vide Stanley Fish (2005).

187
das disciplinas de um Departamento ou de um Programa!
Há factos tão caricatos que parecem mentira, mas que, infelizmente, são
verdadeiros: à luz da lógica empresarial das Universidades, a
interdisciplinaridade é vista como um mecanismo de economia do número de
disciplinas e de professores e por isso, embora não só por isso, esquecendo ou
postergando o princípio epistemológico e metodológico de que a
interdisciplinaridade se constrói sobre uma disciplinaridade rigorosa e sólida, a
Universidade pós-moderna incentiva e celebra a pós-disciplinaridade, como
princípio legitimador da contenção de custos. Em diversas Universidades norte-
americanas, tem havido projectos para extinguir os vários Departamentos de
Humanidades, substituindo-os por um único e polivalente Departamento de
Cultural Studies. Nas Universidades europeias, os professores dos
Departamentos e das disciplinas de Humanidades ainda não tomaram bem
consciência da ameaça institucional representada pelos Cultural Studies, cuja
lógica programática e ideológica conduz inevitavelmente à fagocitação dos
estudos literários, dos estudos da história da cultura e da história das ideias e de
largas áreas da filosofia (curiosamente, a agenda dos Cultural Studies tem
suscitado as reacções mais adversas e contundentes por parte dos sociólogos e
dos antropólogos). A Universidade pós-moderna não perdeu apenas, como
clamam alguns idealistas que cultivam ainda o rigor intelectual e a probidade
científica, o seu rationale, a sua base racional, a sua fundamentação lógica, o
sentido da sua vocação cultural e científica; eu digo, com profunda apreensão e
melancolia, que perdeu a sua alma. Seduzida ou constrangida, a Universidade
pós-moderna pensa erradamente legitimar-se prestando — vendendo —
serviços às empresas e aos interesses do capital — grande, médio ou pequeno,
conforme as dimensões e a relevância dos países e das próprias Universidades
—, em vez de apostar sem tergiversações na sua legitimação graças à qualidade
da sua investigação fundamental em todas as áreas, graças ao seu contributo
para o conhecimento crítico — não subordinado às conveniências, às injunções
ou, pior ainda, aos aliciamentos do poder político e do poder económico e
financeiro — dos problemas sociais, culturais e económicos e graças à elevada
formação cultural, científica, ética e cívica dos seus diplomados. O melhor, o
mais valioso serviço que uma Universidade pode prestar à comunidade é a
elevada qualidade da sua investigação livre e do seu ensino.
Perante esta crise, como agir? Como reagir? Como resistir? Ou até como

188
subsistir?
Um caminho possível é o do pessimismo catastrofista, do ressentido exílio
intelectual, da execração de todas as mudanças institucionais e de todos os
horizontes teóricos, científicos e disciplinares novos. É o caminho seguido, por
exemplo, por Harold Bloom desde o seu grande e elegíaco livro The western canon
(1994). Em conferências, em entrevistas, em depoimentos, Harold Bloom verte
lágrimas e derrama condenações. Este é, para mim, o caminho errado, o caminho
que reduzirá as humanidades a uma cidadela esterilmente resistencialista. O
pessimismo, porém, de Harold Bloom, como o desse outro excelso espírito do
nosso tempo que é George Steiner, deve ser para nós, professores e cultores das
humanidades, fonte inestimável de reflexão.
Outro caminho possível — e, para mim, o caminho certo, em termos de
responsabilidade intelectual, cultural e universitária — é o caminho percorrido por
Edward W. Said, o admirável intelectual e professor da Columbia University,
nascido em Jerusalém em 1935, de origem palestiniana, defensor estrénuo dos
direitos do povo palestino, mas crítico firme dos privilégios e dos abusos de Arafat,
discípulo de mestres como Leo Spitzer e Erich Auerbach, cujo magistério exaltou
e respeitou profundamente, aberto a novas áreas e orientações das humanidades
contemporâneas, como a área do pós-colonialismo, autor de uma das grandes obras
da investigação filológica, histórico-literária e comparatista do século XX,
Orientalism (1979), e que, no seu derradeiro livro, publicado já depois da sua
morte, ocorrida em 2003, com o título Humanism and democratic criticism
(Columbia University Press, 2004), deixou uma luminosa lição sobre o valor
cultural, intelectual, ético e cívico das humanidades e do humanismo, sobre a
relevância da filologia — a filologia tão maltratada e tão desprezada por nós
próprios, professores de humanidades, ao ponto de a palavra ter sido como que
banida do nosso léxico institucional e disciplinar — e sobre a relevância da leitura,
ou seja, da hermenêutica nos estudos literários. Edward Said, discípulo e admirador
de Auerbach, sabia bem que as humanidades se fundam na leitura, no estudo, na
hermenêutica e na crítica dos universos textuais produzidos no passado — e daí a
sua orientação filológica, histórico-linguística e histórico-literária; se centram na
capacidade de «imaginar, interpretar e representar a experiência humana»
plasmada nesses universos textuais, analisando esses valores na sua
contextualidade epocal, nas suas projecções e recriações diacrónicas e nas suas
permanências transtemporais; e se legitimam cultural e sociologicamente pela sua

189
capacidade de intervir ética e civicamente, em consonância com os exempla das
grandes vozes das humanidades clássicas e modernas, na sociedade e na cultura do
nosso tempo.
As humanidades são disciplinas que pressupõem e postulam a preeminência
da palavra e dos textos — a palavra e os textos com os quais o homem se constitui
como homem, desde a esfera da religião e da moral até à esfera da poesia, desde
a esfera do conhecimento filosófico e científico até à esfera da política e do direito.
A gramática, a retórica e a poética são disciplinas fundamentais que ensinam a
utilizar a palavra e a produzir textos, por um lado, e a interpretar a palavra e os
textos, por outra parte. Embora possa não ser politicamente correcto, neste tempo
de pluralizações obsessivas, falar da natureza humana, temos de ter a coragem de
dizer que as humanidades estudam e iluminam o que é fundamentante e próprio
da natureza humana e que não pode ser explicado nem pelas ciências naturais nem
pelas ciências sociais, embora umas e outras possam dar contributos relevantes. A
dignitas hominis, a liberdade do homem, a sua conduta ética, a sua intervenção
cívica e a sua participação política são impensáveis sem a capacidade de produzir
e interpretar textos e por isso as humanidades não são redutíveis a meras técnicas
instrumentais: são saberes técnicos, no sentido etimológico deste termo, que
desvelam, revelam e activam o que há do mais profundo, complexo e subtil na
razão, nos sentimentos, na imaginação, nos desígnios e nas acções dos homens. É
elucidativo, aliás, observar que algumas das orientações mais inovadoras e
fecundas de ciências como a antropologia, o direito, a sociologia e a psicologia
devem muito a modelos epistemológicos e metodológicos oriundos de disciplinas
das humanidades como a linguística, a retórica e a teoria da literatura (cf. Marjorie
Garber, 2003: 5-8).
Se a dimensão e a projecção universalistas caracterizaram os studia
humanitatis até ao Romantismo, as humanidades modernas, românticas e pós-
românticas, desde à filologia e a história literária até à filosofia política e à
historiografia, construíram e cultivaram objectos de estudo de âmbito nacional, no
quadro das ideias e dos sentimentos nacionalistas dos séculos XIX e XX, tendo-se
ficado a dever em parte à sua instrumentalização pelas ideologias e pelas políticas
do nacionalismo o seu relevante e mesmo hegemónico estatuto nas Universidades
europeias até à segunda guerra mundial. Significativamente, o nacionalismo
romântico encontrou um dos seus mais sólidos fundamentos e uma das suas mais
influentes razões na preeminência da palavra, considerada esta na sua manifestação

190
comunitária como língua nacional. «Todos aqueles que falam a mesma língua»,
escreveu Fichte nos seus Discursos à nação alemã, «estão unidos entre si por uma
série de laços invisíveis, simplesmente por natureza, e muito antes de qualquer
artifício humano». E Mancini, o catedrático de Direito Internacional da
Universidade de Turim que foi o principal teorizador do nacionalismo italiano,
afirmou axiomaticamente que «a unidade da língua manifesta a unidade da
natureza moral duma nação» (apud Alfredo Cruz Prados, 2005: 25, 28).
Compreensivelmente, alguns autores (e.g., Bill Readings, 1996: 44-53 e
passim) explicam a crise das humanidades e a crise da própria Universidade
em virtude do progressivo declínio, desde meados do século XX, da Nação-
Estado. Se as humanidades modernas foram indubitavelmente
instrumentalizadas pelos políticos nacionalistas e se elas próprias
contribuíram para alimentar e exacerbar os ideais nacionalistas, não é menos
verdade que the national turn das humanidades, com o Romantismo,
correspondeu a uma necessidade histórica, social e política que o racionalismo
universalista e atemporal do Classicismo e do Iluminismo não podia continuar
a esconder e a menosprezar: a necessidade de estudar, de ensinar e de valorizar
o património linguístico, cultural, literário, artístico, histórico, jurídico e
político que cada nação europeia, desde os tempos da Idade Média, tinha
constituído e desenvolvido. Se o nacionalismo, como ideologia e como
filosofia política, é filho da Revolução Francesa e do Romantismo, as nações
são o fruto de um plurissecular processo histórico (veja-se Josep R. Llobera,
1994). Na nossa época, quando a Europa se encaminha para a construção de
modelos de integração política, jurídica, financeira e económica em que os
Estados abdicam de boa parte da sua soberania, perdem força e alcance — e
ainda bem — os ideais nacionalistas, mas as línguas, as culturas e as
literaturas nacionais continuam a ser um património vivo irrenunciável, que
não pode ser rasurado e sepultado sob a lava vesuviana de uma koiné
linguística e cultural de tipo imperial, factícia e esterilizante. Intensificar-se-
ão decerto nesta nova Europa os fenómenos de poliglotismo cultural, mas as
culturas das nações europeias foram sempre o fruto de intercâmbios múltiplos,
de importações e exportações de bens simbólicos, da circulação livre ou
clandestina de ideias, de linguagens, de formas artísticas e de estilos de vida.
Os Estados podem abdicar de uma não desprezível quota-parte da sua
soberania, mas as nações não podem renunciar à sua memória linguística e

191
cultural. As humanidades são disciplinas que, na Universidade e em todo o
sistema educativo, têm uma responsabilidade e um papel fundamentais no
conhecimento, no ensino, na defesa e na difusão desse património.
Neste limiar do século XXI, as humanidades, clássicas e modernas,
devem assumir sem ambiguidades ou vacilações a sua memória cultural,
académica, escolar e profissional, sabendo eliminar os resíduos apodrecidos ou
mortos que se depositam com o tempo em todos os campos disciplinares,
abrindo-se às inovações do conhecimento devidamente validadas, dialogando
sem qualquer complexo de inferioridade com outros saberes e domínios do
conhecimento, trazendo os seus contributos próprios à sociedade e à cultura
contemporâneas, mesmo se — eu diria sobretudo se... — para criticar, contestar
e denunciar, em termos de racionalidade e de responsabilidade intelectual,
rumos porventura hegemónicos dessa sociedade e dessa cultura que sejam
ilegítimos, perniciosos e ofensivos da dignidade humana. Servir a Cidade é
decerto uma missão e um dever da Universidade, se a Cidade não for
confundida hipocritamente com os interesses das grandes empresas e dos
poderosos grupos económico-financeiros.
A pós-modernidade não é, não pode ser, uma stasis da história, porque a
pós-modemidade não se poderá eximir à dinâmica imprevisível da história,
miticamente representada por Cronos, devorador das suas criaturas. O limiar da
pós-pós-modernidade deve estar a madrugar, se não madrugou já, tais são as
crises, as injustiças, as contradições, as mentiras e as aporias das sociedades, das
economias e das culturas pós-modernas. E nesse estádio futuro e incerto da
história e dos homens, as humanidades não podem nem devem ser as vozes
subalternas às quais se solicita ou se consente uma cosmética pseudocultural e
pseudo-estética. Os gestores, os economistas e os políticos, com uma ou outra
excepção, desaparecerão no saguão da história, mas Homero, Sófocles, Platão,
Virgílio, Ovídio, Dante, Petrarca, Camões, Cervantes, Shakespeare, Goethe,
Hölderlin, Hegel, Dostoievski, Baudelaire, Borges, Paul Celan, etc., continuam

192
e continuarão a irradiar luz como astros inextinguíveis.
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193
DA LÍNGUA NA POLÍTICA
À POLÍTICA DA LÍNGUA *

É uma evidência, expressa amiúde através de sondagens de opinião e de


inquérito realizados e publicitados por órgãos da comunicação social, que um
elevado número de cidadãos da Europa contemporânea manifesta uma crescente
indiferença e uma forte desafeição, senão mesmo hostilidade e desprezo, em
relação à política e aos políticos.
Este mal-estar é um fenómeno antigo, cujas causas e manifestações variam
ao longo dos tempos, tendo um filósofo político chegado já a afirmar que “a
história poderia escrever-se como a modificação dos motivos deste mal-estar”1.
Se nos ativermos ao âmbito da história política portuguesa durante o
período que podemos denominar, com Oliveira Martins, o “Portugal
contemporâneo”, haveremos de reconhecer que a obra-prima do limiar da nossa
modernidade literária, as Viagens na minha Terra de Almeida Garrett, escrita
por quem contribuiu de modo relevante, tanto no plano da acção militar,
diplomática e parlamentar como no plano das ideias, da cultura e das letras, para
o triunfo da modernidade política, constitui um desencantado requisitório contra
a degeneração dessa mesma modernidade política e sobretudo contra a
oligarquia político-financeira que confiscara em seu benefício os sonhos e os
ideais de uma geração que sofrera e lutara nas prisões, no exílio e nos campos
de batalha. Cerca de uma década somente após a queda do ancien régime, as
Viagens na minha Terra são o epitáfio de um desastre nacional irresgatável que
alanceou os mais belos e altos espíritos da “intelligentsia” portuguesa do século
XIX, de Herculano a Antero de Quental, de Camilo a Eça de Queirós e a Fialho
de Almeida, de Ramalho Ortigão a Oliveira Martins.

* Comunicação apresentada na sessão solene de encerramento do I CONGRESSO BIENAL — A LÍNGUA PORTUGUESA


NA CPLP, organizado pelo Centro de Investigação em Língua Portuguesa [CILP] do Instituto Piaget, em Viseu, dias
19, 20 e 21 de Abril de 2004. Sugestão: implicar a sua leitura nomeadamente com: «A Vocação da Retórica»,
publicado na Revista Dedalus, n.º 1 – Dezembro de 1991, pp. 9-16.
1 Cf. Daniel Innerarity: La transformación de la política, Barcelona, Ediciones Península, 2002, p. 11.

195
Se procedermos à anatomia da crise da consciência nacional que percorre
patologicamente o regime parlamentarista português, desde o seu início até à
implantação da República, encontraremos uma multiplicidade de causas, mas,
em relação ao descrédito em que se atolou a classe política, identificaremos uma
causa recorrente: a vacuidade do discurso como espelho da vacuidade do
pensamento, a discordância entre o discurso dos próceres políticos e a realidade
social, cultural e económica do país, a discrepância clamorosa entre as palavras
e os factos, entre as promessas e as acções, entre o dito e o feito.
O Dr. Libório Meireles, personagem de A queda de um anjo de Camilo
Castelo Branco, moldada, segundo o testemunho paratextual do próprio
romancista, à imagem de um conhecido parlamentar e ministro da época, o Dr.
Aires de Gouveia, é o exemplo grotesco do político cujo discurso alienado se
desenvolve numa magniloquência à margem da situação e dos problemas do
país real, carecendo portanto de representatividade e de legitimidade
democráticas. Camilo, como o Eça criador dos Gouvarinhos, Abranhos e
quejandas luminárias políticas, tinha clara consciência da relevância da
linguagem e das práticas discursivas na actividade política, em particular na
actividade política desenvolvida no parlamento, que é a instituição, como a
própria etimologia da palavra ensina, onde se negoceia a solução dos problemas,
onde se conferencia, onde se procura, através da palavra e do diálogo, um
entendimento entre as opiniões e os interesses divergentes ou opostos.
A descoberta da importância fundamental da linguagem, das práticas
discursivas e argumentativas, na política foi uma das mais luminosas e
perduráveis conquistas do génio grego e uma das mais valiosas heranças que
a Europa ficou a dever à Hélade. Há cerca de vinte e seis séculos, na “magna
Grécia”, na cidade de Siracusa, foi inventada a retórica, a arte que ensinava a
organizar, a fundamentar e a desenvolver o discurso argumentativo para se
alcançar, pela convicção e por meios persuasivos, a solução de problemas, de
desavenças e de litígios, tanto nas assembleias políticas como nos tribunais.
Depois, na Atenas democrática, a retórica conheceria um florescimento
admirável que viria a culminar com Aristóteles, que conferiu à retorikê technê
legitimidade filosófica e dignidade sistemática. O génio pragmático, jurídico
e político de Roma haveria de colocar uma esplenderosa abóbada no
imponente edíficio da retórica clássica com as Instituições Oratórias de
Quintiliano.

196
A constituição da retórica, na Sicília, teve uma motivação imediata de
ordem prática: após a morte de um tirano local, que se apoderara das terras de
muitos cidadãos, tornava-se necessário devolver, de modo justificado,
ordenado, consensual e pacífico, as terras espoliadas aos seus legítimos donos.
Foi então que Córax e Tísias, segundo o testemunho de Cícero, elaboraram a
retórica como a technê do discurso argumentativo que regularia o debate
judicial, de modo a alcançar-se uma solução satisfatória entre as partes em
litígio, evitando-se a arbitrariedade e a violência. A retórica, arte do discurso e
da razão — na língua grega, tanto o discurso como a razão se designam com a
mesma palavra, logos —, nasce e desenvolve-se assim em estreita relação com
a justiça e com a política, prestando acurada atenção ao factor da oportunidade
(kairós) e à categoria do prépon, isto é, do que se ajusta perfeitamente à
situação. Os dois géneros discursivos mais importantes de que se ocupa a
retórica são exactamente o genus iudiciale, ou seja, o género judicial ou forense,
e o genus deliberatiuum, isto é, o género deliberativo ou político, sendo que o
terceiro género da retórica, o género demonstrativo ou epidíctico, tem
frequentemente intersecções quer com o género forense, quer com o género
político.
A retórica é uma arte (technê) de cidadãos livres e civilizados, é uma arte
característica e própria de cidades democráticas e de sociedades abertas, inimiga
da violência e da imposição de soluções pela força. No diálogo de Platão
intitulado Filebo (58 a), um interlocutor recorda a Sócrates que Górgias, um dos
sofistas que mais contribuiu para o desenvolvimento da retórica, dizia a cada
momento que a arte de persuadir prevalecia sobre as demais artes, pois que
dominava todas as coisas a bem e não pela força. Assim se compreende que a
retórica tenha sido condenada por Platão, adversário da polis democrática e da
sociedade aberta, e que tenha sido perseguida e proibida pelos tiranos, que não
necessitavam de debater, de argumentar e de persuadir. A retórica desvela as
dimensões relativistas, probabilistas e contingenciais de toda a prática política e
por isso o discurso da retórica é incoadunável com qualquer totalitarismo e
qualquer fundamentalismo ideológico-político.
No seu entendimento eminentemente pragmático do discurso, do discurso
como acção, a retórica presta uma atenção privilegiada ao interlocutor e ao
auditório. A retórica é uma extraordinária máquina de produção do discurso,
desde a inuentio e a dispositio até à elocutio e à pronuntiatio, mas as estratégias

197
e os preceitos retóricos sobre a produção discursiva incorporam como elementos
fundamentais os destinatários, as circunstâncias e os objectivos dos actos
discursivos. A quem se fala? Onde e quando se fala? Quais as finalidades
visadas? A retórica propõe e advoga um discurso político eminentemente
polifónico, no sentido bakhtiniano do termo, porque sabe que os auditórios são
eminentemente poliacroásicos, em função da sua competência linguística e da
sua competência hermenêutica, em função das suas crenças, das suas opiniões,
dos seus interesses, das suas paixões, etc. Por conseguinte, o discurso político
mais eficaz será o discurso que, na sua polifonia, melhor se adequar à
poliacroasis dos seus destinatários e dos seus múltiplo receptores2.
Como arte da argumentação e da persuasão, a retórica sabe que no
discurso político devem confluir elementos cognoscitivos e elementos
emotivos, as razões de ordem lógica e as razões que Pascal viria a denominar as
razões do coração. O discurso político tem de possuir uma base de sustentação
racional, em relação aos fins, aos meios e às estratégias da acção política, mas
só será persuasivo, só influenciará eficazmente a opinião, a doxa, os juízos e as
decisões do auditório, se incorporar e manifestar o ethos do emissor, os
sentimentos e as emoções do próprio orador — se queres comover-me, comove-
te tu primeiro, segundo o famoso preceito de Horácio —, e se se adaptar às
emoções e às paixões dos ouvintes, sabendo falar ao seu coração e à sua alma.
Os efeitos psicagógicos do discurso político pressupõem e requerem, por
conseguinte, argumentos de ordem racional e razões de ordem psicológica, mas
também factores de ordem formal, de ordem estilística e de ordem estética. Se
a gramática é a ars recte dicendi, a retórica é a ars bene dicendi, a arte que na
dispositio, na elocutio e na pronuntiatio ensina a captar a atenção e a seduzir os
ouvintes pela adequação, pela elegância e pela beleza da expressão. A retórica
coligiu, sistematizou e caraterizou um riquíssimo repositório de meios
expressivos, dentre os quais avultam as figuras de dicção e as figuras de
pensamento, em especial os tropos, ou seja, a metáfora, a metonímia e a

2 O termo e o conceito de poliacroasis foram propostos, em diversos estudos, pelo Professor Tomás Albaladejo
Mayordomo, a quem se devem valiosos contributos para o conhecimento da retórica. Veja-se, em especial, o seu
estudo “Polifonía y poliacroasis en la oratoria política. Propuestas para una retórica bajtiniana”, Retórica, política
e ideología: Desde la Antigüedad hasta nuestros días. Actas del II Congresso Internacional de Logo, Salamanca,
Universidad de Salamanca, 2000, vol. III, pp. 11-21.

198
sinédoque, que criam novas relações entre as palavras e entre as palavras e o
mundo, que tornam moventes os significados, que desautomatizam o discurso,
que apelam à fantasia e à imaginação.
Os grandes mestres da retórica — mencionarei em especial Aristóteles,
Cícero e Quintiliano — nunca conceberam, porém, o discurso político como um
exercício de virtuosismo dialéctico e formal dissociável da ética. O orador
político que fala ao auditório de justiça, de bem comum, de interesse público,
deve ser ele próprio um homem justo, um cidadão empenhado e generoso, um
homem que não falta à verdade e, segundo as palavras memoráveis de
Quintiliano, um homem absolutamente honrado. A definição do orador
formulada por Quintiliano, no último dos seus Institutionis oratoriae libri
duodecim, como uir bonus dicendi peritus, demonstra que a retórica e a oratória
política só ganham legitimidade se tiverem fundamentos e objectivos de ordem
ética e social. Não pode haver dissonância entre o que se diz e o que se faz, entre
o que se diz e aquilo que se é. O político deve saber aproveitar a oportunidade,
mas não deve ser oportunista; deve ser flexível e adaptativo para obter acordos
e compromissos, mas não deve ser camaleónico, nem hipócrita, nem mentiroso.
Nesta perspectiva, a retórica integra na política uma dimensão ética
incontornável e converte-se por conseguinte numa paideia tanto dos aspirantes
a políticos como dos cidadãos em geral.
O espírito eminentemente político, dialógico, argumentativo e
democrático da retórica grega e latina obliterou-se e perverteu-se na Europa
pós-renascentista com os regimes monárquicos absolutistas, pois que o fulgor de
qualquer “rei-sol” irradiava soberano sobre súbditos dóceis e fiéis. Foi uma
época de decadência da retórica, que se converteu em instrumento obediente do
poder político e do poder religioso, que se literaturizou, dilapidando e
esgotando as suas virtualidades num ensino formalista que concitou as críticas
severas dos grandes pensadores da modernidade racionalista e científica, desde
Descartes a Kant.
Esse espírito eminentemente político, dialógico e democrático da retórica
renasceu, porém, com a constituição, ao longo do século XVIII, de uma “esfera
pública” de opinião e de pensamento, que se distingue tanto da esfera do Estado
como da esfera da vida privada, na qual participam cidadãos que,
independentemente do seu estatuto social e económico e à margem de quaisquer
privilégios, se congregam para analisarem e discutirem questões de literatura,

199
arte, ciência, história, economia, moral, teorias e práticas políticas. Assim se
institucionalizou e ganhou força a opinião pública, formada nas academias, nos
clubes, nos salões, nos cafés, nas gazetas e nos livros, sem subserviência aos
dogmas das Igrejas nem aos imperativos dos Estados. A existência e o
funcionamento da esfera pública possibilitaram o exame crítico e o debate
argumentativo dos grandes problemas políticos, sociais, morais e culturais e foi
graças à interacção discursiva assim gerada que os cidadãos assumiram e
exprimiram a sua liberdade e se co-responsabilizaram na construção da cidade.
Foi este um dos contributos mais relevantes do Iluminismo para a modernidade
política e social da Europa e esta é uma herança de que a Europa contemporânea
se deve justamente orgulhar e que tem de preservar, defender e aprofundar,
contra as múltiplas ameaças que sobre ela impendem. “A esfera pública”,
escreveu Alexander Kluge, um discípulo de Theodor Adorno que é co-autor de
uma obra fundamental sobre a esfera pública burguesa e proletária3, “é o espaço
onde os conflitos são decididos por outros meios que não a guerra”. Esta tinha
sido a lição proclamada por Górgias há vinte e cinco séculos, este é o legado
autêntico da retórica greco-latina, este é o fundamento antropológico e político-
moral dos studia humanitatis.
Desde as primeiras décadas do século XIX, a retórica sofreu uma espécie
de banimento imposto pela filosofia da linguagem do idealismo alemão e pela
poética expressivista do romantismo. Todavia, a retórica continuou a ser
ensinada nas escolas públicas e nos colégios particulares de toda a Europa
continental até cerca do último quartel do século XIX — a maior parte dos
políticos europeus deste século teve ainda na retórica um dos pilares da sua
educação — e manteve, não por acaso, uma posição de relevância nas escolas
secundárias e nas Universidades do Reino Unido e dos Estados Unidos da
América. Foi exactamente no espaço linguístico, filosófico e científico anglo-
saxónico que a retórica refloresceu desde meados do século XX, em estreita
relação com a filosofia analítica e com o pensamento pragmatista norte-
americano. Perspectivar a linguagem verbal e o sistema linguístico nas relações
com os seus usuários e os contextos da sua utilização, analisar os enunciados

3 Cf. Oskar Negt e Alexander Kluge: Public Sphere and experience. Toward an analysis of the bourgeois and
proletarian public sphere, Minneapolis – London, University of Minnesota Press, 1993.

200
como formas de vida, como modalidades de acção, como instrumentos
performativos e como actos sociais, constituiu uma revolução da filosofia da
linguagem preparada pela semiótica de Charles S. Peirce e de Charles Morris e
levada a cabo, desde meados do século XX, por filósofos como Wittgenstein,
John Austin, John Searle e Herman Paul Grice.
A descoberta por John Austin, nas suas William James Lectures realizadas
em Harvard em 1955 e publicadas em 1962 num pequeno livro póstumo
intitulado How to do things with words, de que, ao lado de enunciados
constatativos que descrevem a realidade, existem enunciados performativos que
realizam na sua proferição uma acção — prometer, ordenar, garantir, etc. —, de
que há acções que só podem ser realizadas com enunciados performativos,
desde que as circunstâncias de enunciação sejam convencional e
institucionalmente apropriadas, de que os enunciados performativos, para além
da sua dimensão locutiva, regulada pelo código linguístico, possuem uma
dimensão ilocutiva e uma dimensão perlocutiva que transcendem a codificação
do sistema linguístico, abriu novos horizontes para o conhecimento da
linguagem verbal, para o conhecimento da língua como uso, para o
conhecimento de fenómenos discursivos não codificados, mas fundamentais na
interacção discursiva, como as pressuposições, os implícitos, as implicaturas, os
actos de fala indirectos, a ironia, etc. A pragmática, termo adoptado por Charles
Morris para designar a subdisciplina da semiótica que analisa as relações dos
signos com os seus intérpretes e com os seus contextos, permite superar no
estudo dos fenómenos discursivos as limitações da linguística estruturalista,
centrada na língua como sistema e como código, e da linguística gerativa,
centrada na língua como competência. Ao contrário do que alguns pensam e
afirmam, a pragmática não veio revelar ou demonstrar quaisquer limitações da
linguagem verbal, bem pelo contrário, veio revelar a existência de
extraordinárias potencialidades e capacidades cognitivas, comunicativas e
performativas da linguagem verbal. Veio revelar, isso sim, as limitações da
linguística como ciência do sistema linguístico e como ciência da competência
linguística.
Ora, como tem sido reconhecido, a retórica recepta, as neo-retóricas
desenvolvidas por Perelman, pelo grupo µ da Universidade de Liège, etc., e a
pragmática são disciplinas profundamente congeniais, mas com uma diferença,
a meu ver, relevante: a retórica é uma arte eminentemente poiética, no sentido

201
etimológico do termo, é uma arte orientada para a produção do discurso e é uma
arte eminentemente política, uma arte da participação cívica, ao passo que a
pragmática é uma disciplina eminentemente técnica, com o rigor conceptual e
terminológico caraterístico da filosofia analítica (o que não significa que os
conhecimentos por ela proporcionados não sejam de alto interesse para a
actividade política em geral e em particular para o marketing político).
Na política das sociedades complexas contemporâneas, adensam-se
preocupantes zonas de opacidade que tornam as relações dos cidadãos com o
poder político marcadas pela suspeita, pela indiferença e pela desilusão. Nestes
tempos de concentração brutal do poder económico — a globalização tem
favorecido uma espécie de feudalização do capitalismo —, os grandes grupos
económico-financeiros, na sua cumplicidade com o Estado, introduzem no
funcionamento do sistema político as tais zonas de opacidade profundamente
antiliberais e antidemocráticas. O mesmo se diga dos grandes grupos de
comunicação social, que capturam e manipulam a opinião pública, também
muitas vezes em cumplicidade com o Estado e com os gigantescos grupos
económico-financeiros de que dependem directa ou indirectamente. As maiorias
políticas adoptam frequentemente comportamentos autoritários e até autistas,
porque reivindicam sistematicamente a posse da verdade e da razão, fechando o
horizonte de um diálogo autêntico não apenas com as oposições, mas com a
sociedade em geral. Os gestores, os técnicos e os experts arrogam-se, sem
legitimidade democrática, o direito de gerir o Estado e até de gerir a história,
confiscando em seu benefício o político. Ora, nestes tempos de “modernidade
reflexiva”, quando o progresso e as catástrofes são indissociáveis, quando a
ciência e a técnica geram continuamente imprevisíveis mudanças económicas,
sociais e culturais, quando nas sociedades do conhecimento se auto-organizam
e se autonomizam cada vez mais sistemas complexos com dinâmicas
centrífugas, configurando sociedades policêntricas e heterárquicas, quando os
Estados perdem, cedem ou delegam considerável parte dos atributos clássicos
da soberania, quando as fronteiras nacionais se tornam porosas ou são apagadas
e elididas, desterritorializando os vários poderes, torna-se urgente que a política
recupere o seu sentido autêntico e específico. Como escreve um filósofo
espanhol contemporâneo, “o especificamente político é aquela dimensão dos
problemas que não podem resolver adequadamente” os cientistas, os militares,
os moralistas ou os economistas; fazer política “é situar as coisas num âmbito

202
de pública discussão, arrebatando-as aos técnicos, aos profetas e aos fanáticos”4.
Argumentar, confrontar ideias e propostas de solução dos problemas, explicar,
persuadir e ser persuadido, buscar a cooperação, a convergência e o acordo, são
os caminhos para construir e manter a racionalidade política. E como pedra de
canto de todo o edifício da política encontram-se a língua e o discurso.
O poder político teve sempre consciência da importância do capital
simbólico por excelência que é a língua. Colocar a língua ao seu serviço,
domesticar a língua, impor a censura à língua são tentações e aspirações do
poder político em todos os tempos.
Em termos de memória histórica, o conceito e a expressão de “política da
língua” podem suscitar justificadas preocupações e acordar velhos demónios.
Lembremos que o “bárbaro” é o que não fala a língua da polis ou do império
que definem a legitimidade, a lei e a norma e que, por isso mesmo, pode ou deve
ser excluído como alienus da polis ou do império. O princípio de que a língua é
companheira do império, tomando-se “império” como metáfora do poder
político, se for entendido como princípio da razão de Estado, pode conduzir à
exclusão político-social e mesmo ao aniquilamento das minorias linguísticas.
Valha, por todos, como exemplo a política linguística jacobina concebida e
executada na Revolução Francesa pelo célebre abbé Grégoire. E recordemos o
papel central da política da língua na formação e na radicalização dos
nacionalismos românticos e pós-românticos e nos conflitos, muitos deles ainda
acesos, desencadeados e alimentados por tais nacionalismos.
Por outro lado, numa perspectiva pós-colonial, à luz da qual tem de ser
analisado o caso da língua portuguesa, o conceito e a expressão de “política da
língua” têm de ser entendidos e manejados com a devida cautela — o que não
significa com intenção reservada e menos ainda com hipocrisia —, a fim de não
introduzir nas sempre complicadas relações pós-coloniais quaisquer ambições
ou assomos neocolonialistas. A potência ex-colonizadora pode ter a tentação,
mesmo se inconscientemente, de se considerar a legítima proprietéria da língua
e até uma espécie de sacrário da autenticidade da língua e de pretender impor
essa língua “autêntica” aos países por ela colonizados. Se tal tentação, do ponto

4 Cf. Daniel Innerarity: op. cit., p. 27.

203
de vista político, seria uma estupidez e um desastre, do ponto de vista
linguístico, seria um desastre e um absurdo, porque a língua, nas palavras do
grande linguista italiano Benvenuto Terracini, é uma “liberdade livre”, não
podendo qualquer legislação ou qualquer acordo diplomático modificar as
visões do mundo, as experiências de vida, as memórias comunitárias, os estilos
de vida que modelam diversamente uma língua, desde o ritmo, verdadeira
respiração corporal da língua, até ao léxico e à semântica.
Como sublinhou o escritor mexicano Carlos Fuentes, numa admirável
crónica publicada no jornal madrileno El País de 17.04.04, o grande segredo da
vitalidade, da criatividade e da irradiação da língua espanhola, nos dias de hoje,
é a mestiçagem, que é o princípio simbiótico e fecundador oposto à “pureza de
sangue” que regulou a semiose colonial, norteada por uma razão eurocêntrica
que a si mesma se proclamou como razão universal. O princípio da mestiçagem
pressupõe uma comunhão de afectos; uma partilha de memórias, de interesses e
de projectos; um diálogo mutuamente enriquecedor; uma solidariedade que
exclui qualquer discriminação; e uma igual dignidade reconhecida a todos os
povos e países que têm como sua a língua espanhola.
Estes são decerto princípios que, no âmbito da CPLP, ninguém discutirá e
ainda menos rejeitará. Torna-se indispensável, porém, corporizar os princípios,
institucionalizar os princípios, operacionalizar os princípios, como tem sabido
fazer a Espanha, nomeadamente através da Real Academia Española e do
Instituto Cervantes. Cito o exemplo espanhol, porque ele tem sido de facto um
êxito indiscutível na difusão, no ensino e no prestígio internacionais da língua e
da cultura espanholas, podendo Portugal retirar dele preciosos ensinamentos. Há
um ensinamento, porém, que quero aqui sublinhar vivamente: a Espanha tem
efectivamente uma política da língua espanhola, uma política que, através de
meios institucionais apropriados, reconhece e atribui à língua espanhola um
papel primordial na construção e na consolidação das relações bilaterais e
multilaterais da comunidade de países hispânicos, seja no plano do ensino, seja
no plano da edição do livro, seja no plano da ciência e da tecnologia, seja no
plano da economia, seja no plano das indústrias da cultura, etc. Quer dizer, a
língua espanhola não é uma mera “bandeira de conveniência” sob a qual se
acolham interesses legítimos e muitas vezes interesses espúrios. Ela é em si
mesma, na sua unidade e na sua diversidade, na sua história, no seu presente e
no seu porvir, um património comum que é necessário conhecer, de que é

204
necessário cuidar, que é necessário enriquecer. Daí que grandes estudos
lexicográficos, gramaticais, histórico-linguísticos e histórico-literários ocupem
um lugar central na política da língua espanhola, porque esta é a galinha dos
ovos de oiro que facilita e potencia o entendimento entre juristas, empresários,
engenheiros, economistas, etc.
Em contraste chocante com o exemplo espanhol, no âmbito da CPLP,
depois da morte anunciada do Instituto Internacional da Língua Portuguesa,
pomposamente apadrinhado em São Luís do Maranhão, no dia 1 de Novembro
de 1989, por sete Chefes de Estado, não existe nenhum organismo, nenhuma
instituição, aos quais incumba a responsabilidade de defender e de ilustrar,
segundo a conhecida fórmula renascentista, a língua portuguesa com que todos
enchem a boca nas horas celebratórias e de que quase todos se esquecem na hora
de a servir.
Uma política da língua, sobretudo se se tratar de uma língua plurinacional,
pelo seu próprio objecto, pelas suas finalidades, pelos interesses envolvidos,
pelos entendimentos que requer, exige uma participação activa do(s) Estado(s),
mas também neste, como noutros domínios, muito pode e deve ser feito por
instituições do sector público que disponham de adequada autonomia como por
instituções do sector privado. A área do ensino, sobretudo do ensino superior, é
uma área-chave em qualquer política da língua e por isso estou certo de que um
dos grandes reptos que se colocam já no presente e se colocarão sobretudo no
futuro aos países da CPLP será o de uma cooperação aprofundada em todos os
sectores do ensino, mas principalmente no sector do ensino superior pós-
graduado. O Instituto Piaget, com a sua presença activa em diversos países da
CPLP, é um exemplo luminoso do que neste domínio pode ser feito, com sonho
e com realismo. Aprender e ensinar em português é uma divisa áurea de
qualquer política da língua portuguesa.

205
A HORA DE ELSENOR
NO CANTO DE MANUEL ALEGRE*

Não há, felizmente, princípios e leis que determinem rigidamente a


cartografia dos mundos possíveis, dos continentes, dos oceanos, das ilhas e dos
rios da criação poética. Todavia, após cerca de trinta séculos de história da
poesia ocidental, desde os alvores da poesia da Grécia arcaica até ao vesperal
crepúsculo deste ponente milénio, o historiador literário que não seja um
escrivão ou um contabilista da res litteraria, o crítico literário que não seja
hóspede na fenomenologia histórica da poesia e o teorizador da literatura que
não seja um tecnocrata de qualquer engenharia da literatura, todos eles sabem
que a energeia criadora dos poetas líricos declina em geral, embora com ritmos
diversos, com o seu envelhecimento biológico. A plêiade esplendorosa e trágica
dos grandes poetas líricos do Romantismo europeu, cuja obra foi escrita na flor
da idade e aos quais os deuses, por muito os amarem, cedo chamaram ao reino
das sombras, é tão-só a manifestação mais significativa de um fenómeno
plurissecular de toda a poesia europeia.
Por muito fundamentada e operatória que se revele a distinção estabelecida
pela teoria da literatura contemporânea entre o autor empírico e o autor textual,
é indispensável reconhecer que a noção de autor textual é um constructo teórico
que reenvia sempre, por entre refracções, anamorfoses, elipses, rasuras, disfarces,
a um homem ou a uma mulher na sua concretude existencial e histórica. A
textualidade literária, mesmo quando metamorfoseia, deforma, inverte e denega a
vida e a história, inscreve-se necessariamente, na sua lógica profunda, na história e
na vida. A persona lírica, se é sempre uma máscara enunciadora, é contudo uma
máscara tão forte e profundamente apegada à pele do autor empírico que, nas suas
vozes, no seu canto e nos seus ritmos, circulam, como em nenhum outro modo
literário, os desejos, as pulsões, os medos, o sangue e os nervos do homem e da
mulher que nela poieticamente se projectam e representam.

* Prefácio a Senhora das Tempestades de Manuel Alegre, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1998, pp. 11-22.

207
Quando Manuel Alegre publicou, em 1995, um volume intitulado 30 Anos
de Poesia. Obra Poética Completa, com todas as características editoriais de
uma summa do seu labor poético, desde o poema «São como Deuses»,
publicado em 1960 no n.º 45 do jornal A Briosa, até aos Sonetos do Obscuro
Quê (1993), a crítica literária e o público leitor em geral terão tido boas e
verosímeis razões para pensar que o Poeta procedia assim, no outono da sua
vida, a um espécie de balanço global da sua produção literária, compondo com
os necessários cuidados e aconselhável antecipação a sua imagem para a
posteridade. E não terá mesmo faltado quem pensasse que este volume
encerrava uma obra conclusa, mesmo se aberto, em eventuais reedições, à
inclusão de apendiculares poemas (e assim de facto aconteceu na segunda
edição, publicada em 1997).
Ora o aparecimento deste novo livro de poesia de Manuel Alegre, com o
título talvez insólito, para muitos dos seus leitores, de Senhora das Tempestades,
vem revelar que 30 Anos de Poesia. Obra Poética Completa não era a obra
conclusa, a obra feita, a obra calculadamente editada a cogitar nos incertos
umbrais da Fama ou, mais pragmática e cautelosamente, a pensar nos presentes
e futuros historiadores literários e no seu poder relativamente discricionário
sobre os cenotáfios do panteão literário. Na verdade, Senhora das Tempestades
constitui, não uma sequência ou um ramo dos tais «apendiculares poemas»,
residuais ou supervenientes, mas um conjunto de poemas que representa uma
nova e fúlgida ilha no arquipélago da obra de Manuel Alegre e contém alguns
dos seus mais belos, densos, comovidos e dramáticos textos.
O poema que confere o título ao livro — Senhora das Tempestades — é
uma longa, esplendorosa, solene e dramática ode na qual a persona lírica se
dirige a essa misteriosa, terrível, formidanda e sortílega Senhora das
Tempestades, cantando o espanto, a assombração, a angústia e o pavor da
visitação da morte. A canónica definição genológica da ode proposta, há já
largos anos, por L. Binyon — «a poem of adress written about a theme of
universal interest» — encontra neste poema uma consubstanciação perfeita. A
Senhora das Tempestades nele invocada é um verdadeiro «tu temático», pois
nesta Senhora se condensam, relampejam e se afundam os enigmas, pavores,
anseios e fascínios do homem como ser destinado à morte.
O canto da ode, nas suas anafóricas invocações de majestoso ritmo
liturgicamente endereçadas à Senhora das Tempestades, é o canto angustiado,

208
indecidivelmente de tragédia e esperança, do homem como navegante
condenado à partida à errância que em cada viagem se arrisca ao encontro
mortal com esta Senhora dos desastres e das catástrofes imprevisíveis. A
Senhora das Tempestades é uma Senhora marinha, é uma Senhora de praias, de
marés vivas, de ventos e relâmpagos oceânicos, de águas transbordantes em cais
subitamente vazios. Esta Senhora das Tempestades faz tremer a terra do lado
esquerdo — belíssima metáfora da topografia do coração do homem, esse
camoniano bicho da terra vil e tão pequeno... — mas não é uma Senhora da
terra, ela é, sim, a «Senhora das Tempestades e dos líquidos caminhos». Esta
Senhora das Tempestades tem algo de divino e genesíaco e algo de diabólico e
letal, pois que nela se fundem Eros e Tânato, Amor e Morte, Vénus
Anadiómene e a sombria Hécate: ela é «rosto de sereia à proa de um navio», é
«Senhora nua deitada sobre o branco / com (sua) rosa-dos-ventos e (seu)
cruzeiro do sul», com faunos lúbricos a nascerem armados de tridentes dos seus
flancos, mas é também a «Senhora dos pés de cabra e dos parágrafos proibidos»,
a Senhora das vozes negras, dos pressagiosos crepúsculos e dos choros dos
naufrágios, a Senhora cujo contacto faz haver «um país que não existe», um país
espectral, de silêncio, frio e nada. Esta Senhora é o paradoxo cósmico em que
se fundem o fogo, as luzes, os crepúsculos e os eclipses, ela é graça e é estigma,
é a Senhora da vida e da morte e por isso mesmo é a Senhora do poema e da
oculta fórmula da escrita, a Senhora dos mistérios e dos arcanos alquímicos
dos quais eflorescem a liturgia, a música e a rosa do poema.
Numa audaciosa e belíssima correlação metafórica, os líquidos caminhos
dos rios, mares e oceanos, dos quais é imperial Senhora a Senhora das
Tempestades, correspondem, no microcosmo humano, às coronárias, às veias,
aos vasos onde circula o sangue da vida e da morte — vasos nos quais a Senhora
das Tempestades é danticamente figurada como a «Senhora da circulação que
mata e ressuscita», como a Senhora que galopa no sangue do poeta com o
cateter chamado Pégaso, como a Senhora da arritmia que vai de vaso em vaso...
As metáforas biológicas e médicas, as metáforas mitológicas e religiosas, as
metáforas da luz e da sombra, as metáforas da vida e da morte fundem-se na
alquimia do poema. Como obscuro e luminoso enigma, como terrível e sagrado
segredo, fala o Poeta de um nome que só Deus sabe, de uma palavra que só Deus
disse... Uma logofania que é uma teofania como horizonte da poesia, o mesmo
é dizer como horizonte do ser, da vida e da morte...

209
O discurso poético desta ode, que fulgirá pelo tempo além — eu, simples
leitor, assim o creio — como uma das mais belas odes escritas na língua
portuguesa, revela a maturidade esplêndida de um grande artífice do verso e das
formas poemáticas. Antes de tudo, exalto neste discurso poético o ritmo, ou seja, a
respiração, o movimento, a musicalidade, do corpo da ode. Manuel Alegre foi
sempre um exímio e apurado arquitecto e construtor de ritmos, de sonoridades e
melodias verbais, cedendo mesmo, por vezes, a alguns efeitismos rítmicos e
musicais de neo-romântica grandiloquência. Nesta ode, a materialidade do ritmo e
da música das consoantes e das vogais é trabalhada com equilíbrio clássico, sem
qualquer excesso ou derrame, numa inconsútil urdidura com as metáforas, as
metonímias e as sinédoques, com as emoções, os sentimentos e as ideias. As
aliterações, as paronomásias, as rimas internas e finais, a força das sílabas tónicas,
a energia, o impulso e a descensão das curvas melódicas são a carne e o sangue,
são o rosto, a voz e o canto do espanto e da assombração de viver e de morrer, de
navegar e naufragar. O leitor comove-se, porque, horacianamente, o Poeta se
comoveu primeiro e transfundiu na beleza corpórea e simbólico-semântica do seu
poema a sua emoção. Senhora da Angústia, Senhora da Agonia, Senhora da
Piedade, Senhora da Esperança, Senhora da Poesia – eis outros tantos nomes da
Senhora das Tempestades, a Senhora «coroada de todos os crepúsculos»...
A segunda parte do livro é constituída por outro longo poema, com dois
módulos textuais, digamos assim, intitulado «Coração Polar». Semântica e
estilisticamente, é um poema com afinidades com a magnificente ode anterior:
uma das faces da Senhora das Tempestades, a face de Vénus Anadiómene, isto
é, a Vénus que se eleva da espuma do Mar, consubstancia-se agora num erótico
corpo feminil, invocado e apostrofado reiterativamente ao longo do poema; os
lexemas, os símbolos e as metáforas com as quais se evoca e rememora o
fascínio e a embriaguez desse corpo são de origem e natureza marinhas
(naufrágios de amor, a ilha perfumada das tuas pernas, o teu ventre de conchas
e corais, os lábios de espuma e de salsugem, o cruzeiro do sul das tuas pernas,
etc.); a angústia e o pressentimento de desastres atravessam como sombras
ominosas o deslumbramento das evocações e das memórias do corpo amado.
Se a navegação é símbolo do amor e da vida, o símbolo do «veleiro que
saiu do quadro», o símbolo do «veleiro desaparecido», introduzido no poema,
no início do segundo módulo textual, através de uma fórmula discursiva típica
da narrativa oral e lendária — «Ouvi dizer que há um veleiro que saiu do

210
quadro» —, ganha o significado trágico do obscuro desastre e do enigma sem
resposta que é o próprio homem: «um veleiro desaparecido que somos todos
nós». É um veleiro irreal e fantasmático, um veleiro visionado e pressentido,
que vem no vento sul e num verso alexandrino de Cesário, é uma metáfora
ambígua de promessas e presságios, uma metonímia ou uma sinédoque do país
onde tudo existe e não existe.
Que país é este, de onde chega o sabor a alga e a despedida? É um lugar
físico, mas não apenas um lugar físico, porque na alquimia geopoética de
Manuel Alegre, esse país é urdido também de palavras: o adjectivo ocidental, o
verbo ocidentir, o advérbio ocidentalmente, o substantivo ocidentimento... Na
heideggeriana mansão do ser que é a poesia, o sortilégio e a espessura
semântico-memorial das palavras sobrepõem-se à materialidade topográfica: «O
Sentimento dum Ocidental» de Cesário Verde é o hipotexto que ilumina e
semantiza esse campo lexical, em particular as formas lexemáticas
gramaticalmente anómalas, mas poeticamente com um semantismo tão denso,
que são o verbo ocidentir, e o substantivo ocidentismo.
Sentir o Ocidente, sentir no Ocidente, sentir como ocidental, é
camonianamente sentir onde a terra acaba e o mar começa; é pessoanamente
sentir situado no rosto da Europa que fita o Ocidente, futuro do passado; é sentir
o apelo do oceano, do Sul e da aventura; mas é também, como em Cesário,
sentir a contradição dolorosa entre o sonho das frotas dos avós, entre o ímpeto
futurante da navegação pelas vastidões aquáticas, e a condição miserável dos
homens emparedados, prisioneiros tristes e sombrios de cidades mortas, paradas
e miasmáticas. «Esse país que existe e não existe», esse país «alegre e triste»,
esse país amorosamente identificado com um corpo de mulher, esse país com
odor de algas e com sabor de lágrimas, esse país talhado pela geografia e
mitogonicamente criado e recriado por poetas, esse país é Portugal.
O impulso épico, o prometeísmo e o titanismo congeniais, a inquietude e
o utopismo constitutivos da Weltanschauung de Manuel Alegre velam-se neste
poema, como em tantos outros seus poemas, de uma enigmática e mortal
melancolia, como se o Poeta soubesse, numa terrificante revelação interior, que
restam tão-só ilusões e espectros. Aos apelos e convites à navegação — brilhos
súbitos de estrelas e bússolas, movimentos no pulso de uma agulha magnética,
a voz do mar por dentro e de dentro... —, quem responde? O herói possível da
aventura e da descoberta sobrevive — e subvive — num dissipativo e memorial

211
«eu errante e mareante» e denega-se num coração polar, oxímoro disfórico do
símbolo por excelência da paixão, da chama e do gozo da aventura vital. O frio,
a brancura e o silêncio do gelo antárctico são metáforas da navegação
impossível, da aventura vedada, do percurso imobilizado...
O ocidentismo é também o sentimento do ocaso, da exaustão da energia
vital, do declínio para o frio, o silêncio e a morte. O veleiro saiu do quadro... Ao
eu lírico — e, por sinédoque, ao país onde tudo existe e não existe —, resta uma
irremediável e espectral navegação interior...
Após esta elegia de amor e espectral melancolia, encontra o leitor neste
novo livro de Manuel Alegre um ciclo de poemas intitulado «Os Dez Poemas do
Pescador». Manuel Alegre, que é um poeta de oficina tão acurada que trabalha
com mão segura, certa e elegante, essa forma prodigiosamente complexa e
idealmente clássica da poesia ocidental que é o soneto, tem também o génio do
poema de fôlego amplo, cultivando com particular gosto e mestria os ciclos ou
sequências de poemas (que podem ser sonetos, como nesse esplendoroso e
perturbante ciclo de sonetos do Português Errante incluído no livro Atlântico).
A arquitectura do ciclo ou da sequência de poemas adequa-se bem quer à
dimensão épico-narrativa quer à dimensão reflexiva e meditativa da poesia de
Manuel Alegre. Estranharão porventura alguns leitores que eu fale assim da
«dimensão reflexiva e meditativa» da poesia de Manuel Alegre, de tal modo a sua
poesia de combate, a sua poesia empenhada em causas cívicas e políticas, a sua
poesia épica e a sua poesia satírica, com o seu voo condoreiro, a sua fremência
passional e o seu arrebatamento verbal, têm ocultado a complexidade simbólica e
ideativa da sua obra poética. Toda a grande poesia — e a poesia de Manuel Alegre
é grande poesia — é reflexo e meditação sobre o homem, a vida, a morte, a história,
Deus, o mistério da própria poesia... A poesia de combate que não se alimentar
desta reflexão e desta meditação esgotar-se-á em espasmos panfletários e em
fanfarras e ouropéis verbais. Em toda a poesia de Manuel Alegre esplendem
múltiplos horizontes de reflexão e de meditação que só leituras superficiais,
enviesadas e ideologicamente instrumentalizadas, podem ignorar ou ocultar.
Os poemas do «Livro do Pescador» são uma reflexão e uma meditação
admiráveis sobre a busca, a intérmina busca, do sentido que o homem, o mundo
e a vida possam ter. Na sua porfia solitária, ante a vastidão marinha e o horizonte
incerto, o pescador de robalos da Foz do Arelho é o pescador metafórico dos
sinais de uma presença ou de uma ausência originárias que se denominam Deus.

212
Eu Pescador... eu pecador — assim anaforicamente, convocando memórias
bíblicas e fragmentos palimpsésticos de preces, se representa e apresenta o
Poeta. Na paisagem marinha da Foz do Arelho, geopoeticamente transfigurada
pelo diálogo intertextual com versos de Camilo Pessanha, a persona lírica
medita heraclitianamente sobre a labilidade e a precariedade de tudo e a si
próprio ansiosamente repete a eterna — e sem resposta — pergunta de Elsenor.
Na polimorfia e na reversibilidade das metáforas, se o pescador é o
homem que, na deserta praia, olha alerta o infinito e o finito, buscando conhecer
o que se esconde e escapa ao homem, assim também o poeta, cuja cana é a
caneta, é o pescador que busca o verso e o «número revelador» — o número que
é o ritmo, a harmonia e a música do verso e que é também, iniciaticamente, a
chave do mistério do universo —, que procura respostas para os enigmas eternos
da vida. E o enigma dos enigmas, na sua positividade e na sua negatividade, na
sua presença e na sua ausência, na sua afirmação e na sua negação, chama-se
Deus. Esse enigma percorre obsessivamente todos os poemas do ciclo, mas
avulta em especial no quarto poema, o poema nuclear dessa pescaria simbólica,
dessa demanda incessante e incerta do tudo e do nada, da presença e da
ausência, do ser e do não ser: chamo-lhe Deus porque não sei como chamar /
ao meu ser e não ser / de noite junto ao mar / quando regulo a amostra e
sua fluorescência / pescando robalos / ou talvez Deus / e sua ausência.
No derradeiro poema do ciclo, a simbologia da demanda encarna-se no
mito central e obsidiante do universo imaginário e da poesia de Manuel Alegre
— o mito do politrópico, êxul, errante e sempre inquieto Ulisses. A pesca e a
navegação não têm termo nem repouso, não há robalo nem Ítaca certos e
definitivos, a pesca e a navegação são a procura de algo incognoscível: o
coração do mundo. Ou de ninguém. Ou quem. Toda a grande poesia acaba
por ter, dum modo ou doutro, a sua visitação a Elsenor...
No políptico poemático que é a Senhora das Tempestades, a quarta parte
ou o quarto volante do retábulo intitula-se «O Puro Som» e ostenta como
epígrafe uma citação de Paul Claudel: «... o verso essencial e primordial, o
elemento primeiro da linguagem, anterior às próprias palavras...» Este elemento
epitextual reenvia ao mito de uma Ur-Dichtung, de uma poesia primordial que
fundamenta, que modeliza e que transfigura, com a sua energia e com o seu
fulgor essenciais, as palavras e os enunciados das línguas históricas. Este mito
fundacional por excelência, em que uma absoluta logofania poética instaura e

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sustenta perduravelmente o ser e a historicidade do homem, manifesta-se com
alguma frequência na anterior obra poética de Manuel Alegre, encontrando-se
na sua mais bela, densa e comovida expressão na colectânea Com Que Pena?
Vinte Poemas para Camões (1992), onde a escrita poética camoniana, numa
admirável mitografia romântica, institui a língua portuguesa e, através desta,
constrói a própria identidade de Portugal.
A palavra genesíaca é uma força elementar e obscura em busca de formas e
de sentido, como revelam, no poema «A Palavra», a metáfora fisiológica da
«música da placenta», a metáfora vegetal da «palavra dentro do caroço» e a
metáfora animal do «puro som / ganido / com / seu chacal / em busca do sentido».
Esta energia e esta pulsão primitivas — puro som, música placentária, gramática
gutural — coagulam misteriosamente em palavras como a «incognoscível palavra
rosa» (a rosa alquímica e esotérica que é um dos símbolos recorrentes da poesia de
Manuel Alegre...), como «a finita infinita palavra ser» (oxímoro de espectrais
ressonâncias hamléticas...), como a «a terrível palavra abracadabra»... Essa energia
e essa pulsão primitivas, já condensadas e configuradas na cintilação de um verso,
são representadas no derradeiro poema do livro, intitulado «Um Verso», como o
elemento central do próprio drama cosmogónico: «para além dos buracos negros e
das linhas interestelares», um verso canta, ecoa e fulgura «na cauda do cometa mais
errante / no coração do espaço e seu avesso». Som estreme, harmonia e ritmo
originários, combinação e depuração alquímicas de signos e sinais, «ponto
luminoso nos fractais», o verso é a imagem espectral «de um sol inverso», isto é,
paronomasicamente, de um sol, em verso.
Com o puro som, com a música e com a energia primigénias, se plasmam
as palavras; com o mistério, o enigma, a assombração e o fulgor das palavras,
se constrói o verso e com os versos é urdido o texto do poema. E com o poema
se diz e se escreve toda a terra, como sabe o Prometeu do poema «Águias»: no
canto esplendoroso e alquímico da língua, na página do livro, na terra escrita
pelos poetas, é que Prometeu sublinha e transcende as suas agonias e os seus
cativeiros e encontra a sua libertação e a libertação dos homens.
O canto poético como redenção e libertação pode ser a última e suprema
resposta às perguntas trágicas de Elsenor...

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