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a estreita
artéria das coisas
2018
em pleno atlântico 13
crianças
john cage 66
e mary bird 67
depois que nos mudamos 69
teu corpo numa paisagem diferente em tudo,
exceto nas nuvens 71
agora que voltei pro méier e tento pensar 73
relógio normal 75
naipe 77
um sonho 79
tudo naufraga
na janela
do meu quarto árvores
dobram a tarde
os bichos fogem
todo mundo nos mercados
compra margarina
amarela
(na enchente
vai alguém só água
o âmbar da tarde
no dia arqueado
de céu amarelo manteiga
o céu amarelo ovo o céu
tempo venoso
estrangula a artéria das coisas)
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só
um pote qualy
em pleno atlântico
(não foi feito para viver como bruto
mas para buscar virtude e sapiência)
resiste
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com o marulho
das conchas, grave
escavação
motor carvão
acumulando
branco segredo –
a mão
que encontra antenas
se rasga na
areia assim
se abrem as
crianças: sangue
e brinquedo um
bater de dente
(um sonho sólido)
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dobramos os
joelhos, um
desterro. É
à praia): salvam
o mundo, cavam
fundo e articulam
os bichos inexplicáveis
o tumulto do nácar.
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o faz de contas
é um lento abridor de garrafas
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e por dirigir
longe da rua
perto das ondas
onde é bege
o sangue
da água
(dá de cabeça
no asfalto)
onde é bege
a morte
do peixe
do tatuí da água-viva
onde a mãe
fantasia um pássaro
que levasse o filho
sempre de volta
ao ninho
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a criança
feliz e azul
perto das ondas
amadurece na pele
sem filtro uma mancha
um mustang
cor de sangue
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o que olha
incomoda de olho
o silêncio, o sono, o corpo
que fechou-se sem nuvens
roupas de faca
o que olha choca
tem ninho, coacla, é espesso
o que olha é espesso
como um brinquedo, uma criança,
como uma galinha
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espesso
como uma laranja é espessa
como uma laranja
é muito mais espessa
se uma criança a come
do que se uma criança a vê
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mas agora
o pai,
que não tinha a voz que dissesse
“meu amigo morreu”,
(vai chorar, não quer chorar)
dizia, como quem segura uma granada
sem pino, não quer atirar
contra iguais
(vai matar, não quer matar),
“meu amigo morreu”
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quantas farpas?
quantos entalhos?
quantas casas?
cabem guimbas de cigarro?
se esmagadas, em dobro
cabem formigas?
se esmagadas, em dobro
cabe muito sangue
com certeza cabe
eu & vc vc & eu
juntinho
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como um cão
no quintal
se bem que talvez nem tão alegre
são dois
focinhos
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como engolissem
os próprios filhos
como deixassem
de pagar contas
atrás de grades
sem assuntos
um casal só grades
esperam o aluguel
são duas garrafas
na areia
pezinho de criança
onde não cabem
nem 600ml
de heineken
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crescido e preguiçoso
como criança que furasse
a sola do pé na praia
areia e sangue
aquela crescida este preguiçoso
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dentro um vermelhaço
criança ferruginosa
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o primeiro preso
nas catracas sem moedas
e suado com cheiro
de uniforme ponto
de encontro entre o expediente
e o percevejo
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deixa eu te amar
por que é que suas esquinas
estão cheias de farmácias
quem se machuca tanto
por que é que você
nunca perdeu o juízo
por que é que você
colocou os seus óculos
o seu chapéu a sua bengala
e você nem manca
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todos os dias
alguém nos bancos
mesmo sem ter como pagar
é convencido a fazer
mais um empréstimo
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língua estranha
que se desgarra das tripas
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não senhorx
eu vou chegar guiando um cadillac 52
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as pessoas, arrastamos
sua carcaça de cenoura,
fôssemos raladores
as pessoas, como são
duras, não quebram
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cresce, bicho,
a pedreira
na varanda de casa,
é o teu amigo
de frente pra boca
do mato enquanto vc
cresce, bicho,
a pedreira, e os operários
estão suando a cor
dos morros, e como
brilham da varanda
cinza, sem pelos
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cocuruto repousando
na colcha que chamamos
grajaú-jacarépaguá,
sem camisa
carregando caixa
pro carrefour
tirando 2,50 a hora
e o corpo contrito
craquelado com o calor
os laticínios sobrevivem
– por que não nós?)
ou serra tiroteio
que o que deus fez
pode a bala romper
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eu subia pra
escutar
o som dos
parques pobres armando
o amor entre
pobres, na
praia, de
pedra, só
ombros, cresce,
bicho, na kaissara,
vai pra porto alegre
não volta
de celular
em mãos
dadas com
o medo
vc
acordando fraco
sem pressão
prepara a mensagem
digita o nome do teu amigo
perde a bateria
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1951
sábado
as crianças
brincando, só john
cage decide
entrar numa
câmara
anecoica
isto é, à prova de som
contém as reflexões das ondas
o barulho pode vir de fora ou de dentro
não se propaga
john ouvia
o sistema
nervoso o coração
batendo
66
no dia anterior
sexta
as crianças
na escola, só uma vassoura
na mão de mary
bird raspando
uma câmara
suja
isto é, pequenos fios
de cabelos e pó prensado
a cena de um crime de sapatos
sem sangue
mary sabia
o cadeado
exposto da piaçava
assalariada
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a terra é amarela
e sem delegacias
você disse
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Penso em você
e as ferrovias brilhantes e áridas
e a minha parte do salário exíguo que repartimos com pão francês
enquanto os pulmões que eu deixei esvaziarem pegajosos
[suavemente acolhem ácaro
e os seus cachos pretos vibram escondendo duas auroras
[perfeitas tingidas de
são gonçalo
73
Aguardo
teu acidente
& aceno das ferragens
anéis de metal rebentam
minhas costelas
te erguem soberba.
Aguardo
tua chegada
& ardo vivo nas turbinas
o avião corta nuvens
você (além-céu)
desvia chamadas.
Aguardo
tua velhice
& já estou velho
ossos quebrados
e livros antiquados
contam o futuro.
Aguardo
teu filho
& meu cordão umbilical
se parte, o filho
que não fizemos nasce
todas as manhãs.
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Aguardo
a grama
decomposta
pela vida
minúscula
dos vermes
que sabem
a demora
eles comem
tudo aquilo
que aguardei.
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e contra as cartas
um chumaço de penas
quer se fazer passar
por ases.
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e anunciar
um jogo de cinco ases
copas
espadas
paus
ouros
curiós.
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[autorretrato]
Um pinguim amanheceu
a febre dos turistas
na praia de copacabana.
um acumulado
de noites. Nasceria
já velho
calculando aviões
fracassados
no Atlântico.
O superfilho de todas
as noites em que não fizemos amor.
Salvando o mundo, limpando o lixão.
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as abelhas caídas
tateiam o escuro
duro de cera
e inflamam a fome
como a bomba multiplica
o dinheiro
entre os poucos
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como a pornografia
dos bichos assim
na primeira chuva
da estação
as aleluias
os siriris
os ararás
educam
na revoada invertebrada
a distribuição de areia seca
nas coisas
longamente depois
os cupins temperam
a paranoia
conspiram um cupinzeiro
cuja elevação sobre a terra
se equiparasse à corcova do camelo
ao tentáculo do polvo
e fabulam uma arruaça frígida
como tática de pilhagem
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abortam as caudas
podem assim
mergulhar olímpicas
nos esgotos
onde dessecam
e celebram
o corpo
mascando
aquelas outras frutas
que desperdiçamos
pelo cu
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mora na glande
escura das lagunas
uma espécie estranha
de tatuí-foguete
que na libertação
branquejante, uma vez
na década
(iodo suspenso no ar
luminescência crustrácea
paralisando a noite)
estanca do sono
e se lança
agora tatuí
-satélite-lama
para comer
mercúrio
orbitante planeta
diluído nos mares
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os caranguejos e as palavras
apartam-se como os filhos dos pais
como os turistas das cidades
como os fotografados das fotografias
como os tristes do sol
e as palavras inflam alérgicas à casa
empolam as coisas
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do corpo
que nós chamamos
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as formigas
não demoram
esquecem-se depressa da polícia
trabalham duro
no edifício dos séculos
uma vingança
não choram
por detrás dos azulejos
nem aguardam o dilúvio
99
desde então
as que apanharam
e as que assistiram
desde então
as carpinteiras as acrobatas
as cortadeiras
as tributadas
e as que venderam sua força
desde então
as formigas costuram
o livro
o livro armado
de 6 patas
e carapaça vermelha
inventam um deus
todo antenas
e escavação furiosa
e o mobilizam
100
no coração
dos pinguins
armam-se
os nomes
como um trinco
uma boca cerrada
como um cubo de gelo
e não os diz
o pinguim
aprendeu
que o nome
desfaz a coisa
aprendeu, o pinguim
que se desfaz a coisa
que não tem nome
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como a fissura
abre os lábios
como a gota
precipita a água
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assistência editorial
thadeu c santos
revisão
daniel dargains
capa
lucas travassos
diagramação
juliana travassos
Zacca, Rafael
A estreita artéria das coisas / Rafael Zacca – 1 ed. – Rio de
Janeiro: Garupa, 2018.
ISBN: 978-85-5986-010-8
CDD 869-1