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a estreita

artéria das coisas

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rafael zacca

a estreita
artéria das coisas

2018

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sumário

em pleno atlântico 13

crianças

não é tão tarde 17


criança que brinca com uma chapinha de garrafa 19
criança que dirige um mustang 21
criança que dorme 23
criança que olha uma fruta 25
criança que come e assiste o pai chorar após um telefonema 27
criança que calcula 31
duas garrafas de heineken que olham crianças 33

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jogo do porco

estou cercado de amigos que se quebraram feio


quando eram crianças 39
tropecei enquanto corria e quase beijei o chão 41
jogo do porco 45
hava nagila khallil 47
com a gente não vai dar tudo certo 49
eu tô com muita saudade de tu, não podia ser
mais cuidadoso 51
fred me deu um beijo na boca mlq 53
não sei como vai ser a melhor forma de pagamento 55
pode ligar pras crianças 57
tô pensando na rua general andrade 59
você vai mais uma vez pra longe depois de sonha
de novo que eu morava contigo 61

2kg de acém nas mãos

john cage 66
e mary bird 67
depois que nos mudamos 69
teu corpo numa paisagem diferente em tudo,
exceto nas nuvens 71
agora que voltei pro méier e tento pensar 73
relógio normal 75
naipe 77
um sonho 79

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pequeno manual

1. instruções importantes de segurança 83


2. instalação 85
3. instruções de uso 87
4. conectando o suprimento de água 89
5. controles disponíveis 91
6. recursos de armazenamento 93
7. gelo automático e dispensador de água 95
8. cuidado e limpeza 97
9. antes de ligar, procure saber 99
10. termos de garantia 101

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para o Antônio e para a Fátima

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an eye between two white lids that will not shut

que a terra há de comer


mas não coma já

sylvia plath & drummond

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em pleno atlântico

tudo naufraga
na janela
do meu quarto árvores
dobram a tarde

os bichos fogem
todo mundo nos mercados
compra margarina

amarela

a chuva lambuza os velhos os velhos caem


o méier se fabrica de gordura

(na enchente
vai alguém só água
o âmbar da tarde
no dia arqueado
de céu amarelo manteiga
o céu amarelo ovo o céu
tempo venoso
estrangula a artéria das coisas)

13

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todo ovo é podre
dentro de mim
acúmulo do verme


um pote qualy
em pleno atlântico
(não foi feito para viver como bruto
mas para buscar virtude e sapiência)
resiste

– posso considerar o que em mim é industrial


antes que o mar seja sobre nós fechado?

todos os dias os bichos chupam gordura


se enfiam debaixo da terra
comem os ossos que encontram
bombeiam a noite

14

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crianças

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Não é tão tarde
que não se possa
selar o céu

com o marulho
das conchas, grave
escavação

motor carvão
acumulando
branco segredo –

a mão
que encontra antenas
se rasga na

areia assim
se abrem as
crianças: sangue

e brinquedo um
bater de dente
(um sonho sólido)

17

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obra um clarão
de sol secando
os grãos, castelos

mas não tem volta

dos que não têm


casa, se nos
tocam os dedos

dobramos os
joelhos, um
desterro. É

por isso que


bastam crianças
(se podem ir

à praia): salvam
o mundo, cavam
fundo e articulam

a marina das coisas

os bichos inexplicáveis

o tumulto do nácar.

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criança que brinca com uma chapinha de garrafa

hermética e aberta a tampa


do caixão espera

o faz de contas
é um lento abridor de garrafas

19

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criança que dirige um mustang

e por dirigir
longe da rua
perto das ondas

onde é bege
o sangue
da água
(dá de cabeça
no asfalto)

onde é bege
a morte
do peixe

do tatuí da água-viva

onde a mãe
fantasia um pássaro
que levasse o filho
sempre de volta
ao ninho

21

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onde é bege o ninho
das cegonhas
bege o útero vivo
das fábulas

a criança
feliz e azul
perto das ondas

amadurece na pele
sem filtro uma mancha
um mustang
cor de sangue

22

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criança que dorme

e sonha que sonha


mais bem sonhada
a pedra portuguesa
debaixo da boca
e baba mas sonha
que sonha não sabe
que sonha embaixo
a pedra e a baba
o verme da mosca
(outro sonho,
de doença incolor
que não dói
fronha rasgada
de ventre solto)
a camisa cobre
metade do corpo
enruga com
suor dos outros
os outros saem
vão para a rua
para o emprego
a solidão

23

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de uma vaca
nos jornais
rumina um pouco
mas sonha são
quatro estômagos
o dia acontece
a criança não
nem acontecerá
meu deus, mas sonha

24

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criança que olha uma fruta

com João Cabral de Melo Neto

o que olha
incomoda de olho
o silêncio, o sono, o corpo
que fechou-se sem nuvens
roupas de faca
o que olha choca
tem ninho, coacla, é espesso
o que olha é espesso
como um brinquedo, uma criança,
como uma galinha

como toda polpa


é espessa
aquela galinha
é espessa e gorda
como uma laranja
é espessa
como um brinquedo
é mais espesso do que uma laranja
como é mais espesso
o defeito do brinquedo
do que o próprio brinquedo

25

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como é mais espessa
uma criança
do que o defeito de um brinquedo
como é muito mais espesso
o defeito de uma criança
do que o sonho de uma criança

espesso
como uma laranja é espessa
como uma laranja
é muito mais espessa
se uma criança a come
do que se uma criança a vê

26

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criança que come e assiste o pai chorar após um
telefonema

Até que o açúcar


conquistasse a garganta,
como um general vence
antes o pescoço que a planície,

até que o indicador e o dedo médio


mergulhassem no leite,
com a calma dos cães
antitanques,
e fossem à boca,
porque mais condensada
é a fome de açúcar
que os filhos bastardos
e líquidos da mama e da cana
quando vão a fogo baixo
(pois a fome se condensa
em fogo alto
no calor das redações
que justificam as guerras),

e até que os cristais


se instalassem às portas do esôfago,

27

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como pequenas minas
esperam pelos pés
de meninos como o açúcar
os espera e os tem mal pagos
para que cortem cana
e para que a cana magoada
deixe pequenos mapas
rasgadinhos em suas peles,

até aí não sentira ainda


a carne sem fibras
de fevereiro, que agora
escorria pela garganta,
à maneira dos desertores,
e era o ano que assim desertava
pela primeira vez
secando a faringe,
e as águas daquela pequena geografia,
menino de década incompleta,
mais novo e menor que a guerra dos sete anos,
desertando,

mas agora
o pai,
que não tinha a voz que dissesse
“meu amigo morreu”,
(vai chorar, não quer chorar)
dizia, como quem segura uma granada
sem pino, não quer atirar
contra iguais
(vai matar, não quer matar),
“meu amigo morreu”

28

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agora o menino, contra a natureza
de homem, deita, e espera
a noite, o pescoço ardendo,
(não sabe ainda que a memória
arma uma bomba-relógio
com fios delicados
de desejo e sacarose)
e como tudo o mais não desiste,
mas fevereiro desce
pela garganta feito um pai
sem fibras, sem água, sem choro,
sem granada, desertando,
vai morrer, não quer morrer.

29

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criança que calcula

cabe muito num pedaço de pau

quantas farpas?
quantos entalhos?
quantas casas?
cabem guimbas de cigarro?
se esmagadas, em dobro
cabem formigas?
se esmagadas, em dobro
cabe muito sangue
com certeza cabe
eu & vc vc & eu

juntinho

31

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duas garrafas de heineken que olham crianças

duas garrafas de vidro na areia


as bocas esperam
pés

ou talvez não esperem pés
talvez esperem a maresia
avançar

como um cão
no quintal
se bem que talvez nem tão alegre

avançar, então, como um rabo


de cão sem quintais

a maresia com seu focinho


triste

são dois
focinhos

ou talvez não sejam duas


garrafas talvez sejam duas
pessoas

33

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amaram-se e é isto
agora assistem
a praia engolir
os assuntos

tudo é feito de vidro e serve para ser quebrado

como engolissem
os próprios filhos
como deixassem
de pagar contas

a multidão dos códigos


de barra a multidão de barras
com o casal

atrás de grades
sem assuntos
um casal só grades

esperam o aluguel
são duas garrafas
na areia

esperam o aluguel baixar


querem morar
num minúsculo

pezinho de criança
onde não cabem
nem 600ml
de heineken

34

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como quem dorme
de coração apertado
numa quitinete

mas talvez não seja isso


talvez tudo se passe
como se acordassem
de coração distendido

crescido e preguiçoso
como criança que furasse
a sola do pé na praia
areia e sangue
aquela crescida este preguiçoso

duas garrafas de heineken na areia ficam sem assunto


mas ninguém saberá

35

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jogo do porco

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estou cercado de amigos que se quebraram feio
quando eram crianças

as coisas se acumulam sobre a pele


como o mamão e distendem o ventre

mas não se pode expulsar


crianças com frutas
nem suspender as coisas com gangorras

querem nascer de novo as coisas


e se nascem não brincam
ficam mudas
como as frutas

a mãe de um amigo perdeu três filhos


antes que ele viesse
desciam todas ensaboadas
para o chão do hospital

suspende-se no entanto um bairro


em são gonçalo o boassú
debaixo de chuva, por exemplo

39

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não pode nascer de novo
anjo do mangue arremessado
tem o rosto voltado pro lixo
quer deter a retroescavadeira etc. –

dentro um vermelhaço
criança ferruginosa

vem magra, começa a fumar cedo


guia um fiat uno branco
foge de casa

e repara como, no fim da tarde,


tudo é triste e quer nascer de novo

40

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tropecei enquanto corria e quase beijei o chão

pro Italo Diblasi

como quem ama no ábaco


mais as cores que as contas
mais a cólica que o cálculo
méier
deixa eu te amar
faz de conta que sou

o primeiro preso
nas catracas sem moedas
e suado com cheiro
de uniforme ponto
de encontro entre o expediente
e o percevejo

contigo todos estão


sozinhos e se atrapalham
mesmo os insetos
no baldio esquecem
o fora estão muito
imersos em suas patas
pequenos desastres
uma manga que apodrece

41

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antes de chegar ao formigueiro
um café sem açúcar
em que mergulham

assim se vive no méier


bairro de pequenos
acidentes nenhum rapaz
sabe brigar os garotos
perdem sempre
para os de outros bairros
e assim se ama
quando perdemos a briga
deixa eu te amar faz de conta

que sou o primeiro


que compra nas suas mercearias
pastilhas que aliviam
o gosto de engenho
de ruas que nasceram
de engenho sem engenho algum

por isso os seus burgueses


não são filhos de senhores
não têm classe, parecem até
bonitos, não sabem
o que fazer nos mercados
nas padarias parece
que estão sempre procurando
a carteira esqueceram
no carro na perfurmaria
nas calçadas vestem
tênis camisas sempre
bem passadas mas não conhecem
o fulgor da moda investem mal

42

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o dinheiro nenhum negócio
vinga apenas os árabes
vendedores de arak
nem a subliteratura pega
aquela única livraria
pegou fogo no terceiro mês
esses burgueses quase bonitos

por isso posso quase amá-los


porque se pode quase amar
o que não chegou a ser inteiro
(de resto o amor vive
mesmo é com os insetos
cheios de pilhagem e antes
do esmagamento,
e com tudo também)

no carnaval todos têm


os cabelos alisados
vestem-se com roupas
quase de prestígio
os ricos vão para bairros
quase nobres e os pobres
são quase aceitos
e quase escapam da polícia
são quase felizes quase
mais felizes que furiosos
e têm a cabeça quente
quase como um computador
que quer armar a ventoinha
e quebra

e se orgulham de seu sexo


inseguro pele na pele

43

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tremor e mágoa
tremor e cores
boletos e cólica
tremor e mágoa

deixa eu te amar
por que é que suas esquinas
estão cheias de farmácias
quem se machuca tanto
por que é que você
nunca perdeu o juízo
por que é que você
colocou os seus óculos
o seu chapéu a sua bengala
e você nem manca

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jogo do porco

ana inventou um jogo


se você não está sujo
não pode comer coração
tem os pés amarrados
a beira-mangue
mangas caem
no quintal dos sujos
é passar
alguns dias sem
lavar as mãos
os pés é mantê-los
sujos cheios de calos
fruta e precipício
ana inventou um jogo
o jogo do porco
se você sabe
o que está fazendo
perde pontos
volta casas
como dois e dois são
porcos muito pesados
dão as cartas

45

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e levitam o corpo
couro lento
no charque do dia
saco de gordura
entre nuvens
você pode brincar
basta não ter
mais nada pra sujar.

46

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hava nagila khalil

todas as tardes os pássaros estacionam o dia


mas justo agora que somos vizinhos não há mais a sua hava nagila
para lembrar que muitos cantaram conosco
e agora você ocupa toda a tarde com temperos
enquanto eu esqueço os nomes das cores
e agora é difícil ter o coração tranquilo
se você não ensina a casca da noite na berinjela
se eu deveria costurar as suas camisas, lavar as suas mãos
e mostrar os trilhos abandonados na estação de maria da graça
cuidar que atravessasse as ruas em segurança
que não vertesse púrpura o mundo no sangue das pernas
livrar as suas costas no fim dos tempos
defendê-lo contra a sua vontade no dia do juízo
agora que somos vizinhos você vai empoeirado pelos engenhos
e a areia atravessa o seu nome
como um falsário vendesse-lhe uma cara vermelha
com a qual pudéssemos brincar no deserto
Uru, uru achim! Uru achim b’lev sameach!
e então não houvesse a injusta distribuição
os amores cruéis não houvesse então a guerra
nem a fome das gentes nem a das coisas
e os homens retrocedessem às suas primeiras fotografias
mas agora que somos vizinhos tenho de passar os dias

47

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pendurando a sua cara magra que suspende um pássaro
nos postes do engenho novo
procura-se muito vivo um sol lascando a treva
os seus brinquedos, khalil, que são tão velhos.

48

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com a gente não vai dar tudo certo

fui comprar coca-cola pra duda


enquanto a julya e a ana
seguravam o seu corpo mole

eu pensei que ia desmontar


boneco de ação que a maresia
quebra antes da criança

o corpo amigo é sempre frágil


desarticula com coisas ditas sem propósito
com álcool com mínimos acidentes
é leve feito um saco plástico
de supermercado no vento à noite

faz barulho se a cidade se esvazia


e serve de cinema corujão
aos melancólicos

você não precisa fazer muito esforço


basta que a amiga tenha desistido
mesmo, isto é, que esteja
troncha e bêbada

49

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no contorno da baía
pombos preenchiam a noite
e a duda só fazia
balbucio

talvez eu esteja exagerando, é que

a julya tava desempregada


eu todo dia contava dinheiro pra feira
a ana tinha caído de cara do trapézio
o heyk eu não lembro, mas acho que tava grávido já e sem grana
da duda eu não falo porque ela não gosta
eu sei que a gente deveria ter dito

com a gente não vai dar tudo certo

mas não disse

todos os dias
alguém nos bancos
mesmo sem ter como pagar
é convencido a fazer
mais um empréstimo

50

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eu tô com muita saudade de tu, não podia ser mais
cuidadoso

a julya coça o rosto com os dedos


dobrados, a mão arqueada
é uma máquina de caçar
bichos, você coloca a ficha
e sabe que não vai conseguir
seu bichinho favorito
a girafa, a mão se enraíza no vento
a boca contrai, e os olhos
de peixe procuram qualquer coisa
fora do aquário

é preciso dar um jeito, julya,


eu acho que a galera pode ser um coletivo
de girafas, nosso lance favorito
é o seguinte a gente vai precisar
das suas mãos arqueadas
e sem ferrugem prontas pra pegar
a carne magra que rejeitamos
porque somos todos um pouco mais medrosos
e porque somos todos um pouco mais medrosos
vamos precisar de um pouco
mais de força

51

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fred me deu um beijo na boca mlq

fred achou mesmo a boca no lixo


está tagarelando sobre
máquinas de roldanas tristes
que se esqueceram de suas funções
motrizes ou então de bichos

sem pelos nem couro nem patas


que não sabem voar, que não
latem, que não revidam

o guto me disse outro dia


como é estranho que as horas
cresçam como torre de segredo
na vida de um amigo

língua estranha
que se desgarra das tripas

outro dia li o livro do fred


de novo, acho que semeamos o lixão
agora nosso filho encarnado
alça voo lentamente

o fred me beijou na boca, mlq

53

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não sei como vai ser a melhor forma de pagamento

assim eu quereria no dia do juízo


ostentar aquele teu shortinho, gutx,

estrela golden shower


cortando a passarela de petróleo
ao largo da rio-niterói

só que eu não vou chegar como eu sempre faço


bermuda chinelo camisa amarrotada
arrotando uma coca cola e batendo cartão

não senhorx
eu vou chegar guiando um cadillac 52

55

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pode ligar pras crianças

pode ligar pras crianças, luizgui


e avisa que estamos virando latas
de doce e que a garganta arde, enquanto
os adultos reprimem, dançamos
você e eu
conforme as trufas do desejo e não
importa se a fina poeira
da satisfação cobre as ruas
nossos pés não têm maturidade, gui
você e eu
estamos quebrados mesmo
foda-se o mundo não é um moinho
o mundo é o fim do mundo
e devagar paga todas as contas
você e eu
estamos sujos como os vira-latas
e endividados até o talo

57

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tô pensando na rua general andrade

talvez porque esteja na serra gaúcha


em uma casa que não conhece
a aceleração do trabalho

enquanto meu pai corta


frutas e ana clara dança
qualquer canção sobre
machucados e a vizinha
chora ao telefone

tô pensando na rua general andrade e em você,


duda, e em todas as pessoas que amamos
e detestamos flutuando pesadas sobre o centro
de porto alegre entre batatas
e carnes do clube espanhol

as pessoas, arrastamos
sua carcaça de cenoura,
fôssemos raladores
as pessoas, como são
duras, não quebram

59

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duram no tempo livre
das casas flutuantes
que inventam com ternura
e muita raiva também

talvez porque esteja na serra gaúcha


e o desespero desce ambíguo na friagem
tô pensando que merda
tudo dura você e eu não
a gente dura você e eu não

60

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você vai mais uma vez pra longe depois de sonhar de
novo que eu morava contigo

cresce, bicho,
a pedreira
na varanda de casa,
é o teu amigo
de frente pra boca
do mato enquanto vc

mãos dadas com a febre


caminha ileso
inverno amanhecendo
é uma fruta
que os cães
injuriam
no lixão

cresce, bicho,
a pedreira, e os operários
estão suando a cor
dos morros, e como

brilham da varanda
cinza, sem pelos

61

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na cabeça, ar
que escalpela a cor
pra fortificar
o prédio dos ricos a beira-mar,

cocuruto repousando
na colcha que chamamos
grajaú-jacarépaguá,

(você, bicho, sonha


suas costas descascando
depois das longas jornadas

sem camisa
carregando caixa
pro carrefour
tirando 2,50 a hora

e o corpo contrito
craquelado com o calor
os laticínios sobrevivem
– por que não nós?)

ou serra tiroteio
que o que deus fez
pode a bala romper

no homem a serra de homem


cresce, bicho,
esta saudade de
pedra

rompida dos teus ombros

62

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duas conchas perfeitas cabo
frio pedra onde

eu subia pra
escutar

o som dos
parques pobres armando

o amor entre
pobres, na

praia, de
pedra, só

ombros, cresce,
bicho, na kaissara,
vai pra porto alegre
não volta
de celular
em mãos
dadas com
o medo
vc
acordando fraco
sem pressão
prepara a mensagem
digita o nome do teu amigo
perde a bateria

63

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2kg de acém nas mãos

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john cage

1951
sábado
as crianças
brincando, só john
cage decide
entrar numa
câmara

anecoica
isto é, à prova de som
contém as reflexões das ondas
o barulho pode vir de fora ou de dentro
não se propaga

conta john que


por descuido da natureza
ou má criação
seu corpo aconteceu
não ser anecoico

john ouvia
o sistema
nervoso o coração
batendo 

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e mary bird

no dia anterior
sexta
as crianças
na escola, só uma vassoura
na mão de mary
bird raspando
uma câmara

suja
isto é, pequenos fios
de cabelos e pó prensado
a cena de um crime de sapatos
sem sangue

pensa mary que


por incompetência
ou falta de dinheiro
um silêncio cresce dentro
sem vassouras

mary sabia
o cadeado
exposto da piaçava
assalariada

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depois que nos mudamos

você disse os supermercados


eriçam a época como um código
de barras eriça a moleza
da carne distribuída
nos enlatados

eu disse são tão eufóricos


esses amarelos na ferrugem
das latinhas
eu sou azul e sem coragem
você é uma
gema de alumínio
rejuvenescendo o pincel
dos nossos músculos

você disse posso correr


com estas coisas
nas mãos
sem que apite o alarme

e você correu, com um pedaço 2kg de acém nas mãos

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fosse um sputnik
inaugurando um sonho
amarelo convalescente

a terra é amarela
e sem delegacias
você disse

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teu corpo numa paisagem diferente em tudo, exceto
nas nuvens

teu corpo minúsculo treme contra a cama

posso como os outros tentar te equivaler


às coisas humanas
dizer teus seios pequenos
são duas granadas de mão
e na garganta gente entrincheirada
dá adeus à pátria
posso fingir as tuas mãos
são escavadeiras e descobrem
meu peito adentro chacinas
essas coisas humanas
torturas a história da guerra
gente armada
posso como os outros fazer contas
as tuas curvas os acidentes
nas estradas as chuvas
os deslizamentos de terra
os enfartes os golpes pelas costas

mas não sei se acompanho essas imagens


quando chupo as tuas coxas
se o teu corpo não é guerra

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nem seios, nem curvas
nem coxas, nem coisas humanas
não sei se acompanho as imagens
se teu corpo filme mudo
traz gangorras e lamas e nuvens e ondas
coisas que mexem com o juízo das crianças
e veste-se, com o escuro da boca,
da lenta luz de nossos desejos
teu corpo filme da paz contra o livro
da guerra então não sei posso fingir
é claro teu corpo é um tanque militar
mas não posso chupar
tuas coxas como quem morre ou mata

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agora que voltei pro méier e tento pensar

com Frank O’Hara e Lucas van Hombeeck

Penso em você
e as ferrovias brilhantes e áridas
e a minha parte do salário exíguo que repartimos com pão francês
enquanto os pulmões que eu deixei esvaziarem pegajosos
[suavemente acolhem ácaro
e os seus cachos pretos vibram escondendo duas auroras
[perfeitas tingidas de
são gonçalo

vejo a ponte se esticando até os subúrbios só com você


de pé na ponta amarela como uma só manga

e na tijuca as palmeiras imperiais olham o morro da formiga


seus óculos feito cabelo de uma velhinha
ninguém sabe se o Banco e eu não nos damos bem
é tanta paisagem de ferragens pra mim, viciados fazendo romaria
vistos por você caminhando e chupando latinhas, você é menor

você está séria, você e o mundo e a gente fica só

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relógio normal

Aguardo
teu acidente
& aceno das ferragens
anéis de metal rebentam
minhas costelas
te erguem soberba.

Aguardo
tua chegada
& ardo vivo nas turbinas
o avião corta nuvens
você (além-céu)
desvia chamadas.

Aguardo
tua velhice
& já estou velho
ossos quebrados
e livros antiquados
contam o futuro.

Aguardo
teu filho
& meu cordão umbilical
se parte, o filho
que não fizemos nasce
todas as manhãs.

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Aguardo
as horas
& meu segundo
espeta o coração –
mina que ao toque
palpita o fogo.

Aguardo
a grama
decomposta
pela vida

minúscula
dos vermes
que sabem
a demora

eles comem
tudo aquilo
que aguardei.

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naipe

Era tanta a ferrugem


que o bico de um curió
arrebentou contra a lataria

onde se escondiam as cartas dos homens.

Sobre o capô, um curió cego


canta,
sobre o rei
o valete
a dama de espadas,

os homens têm vermes na barriga


e o curió canta mais alto
os homens caem nos buracos
o curió frequentemente canta mais alto

e contra as cartas
um chumaço de penas
quer se fazer passar
por ases.

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Um curió canta
sobre a lataria azul-borracha
que esconde um royal flush
dos homens que apostaram há muito –

o curió quer os níqueis de volta


um bico todo diamante
para elaborar um canto mineral

e anunciar
um jogo de cinco ases

copas
espadas
paus
ouros
curiós.

Faltam cartas no baralho


de um ferro velho.

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um sonho

[autorretrato]

Um pinguim amanheceu
a febre dos turistas
na praia de copacabana.

Não tinha nado.


Não era frio.
Tinha um peixe podre na boca
enquanto sonhava
o nosso filho

um acumulado
de noites. Nasceria
já velho

calculando aviões
fracassados
no Atlântico.

O superfilho de todas
as noites em que não fizemos amor.
Salvando o mundo, limpando o lixão.

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Mas não tinha filho.
O pinguim, asa de tripa,
fingia o voo.

Todo sem jeito...


O amor doído nas cartilagens...

E as fotos dos turistas.

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pequeno manual

[de zoologia sentimental]

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1. instruções importantes de segurança

[das columbinas quando a angústia


abate suas asas contra o concreto]

nem tudo é navegação


cálculo músculo pedra
ou agiotagem
no estreito coração
das columbinas

quando a fumaça desliza


demolindo os edifícios anelados
onde se mora e negocia

as columbinas não comandam uma garra


contra as fezes no ventre

mas sem a noite na pança


ou memória de profundidade
bicam-se com força

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2. instalação

[da ira entre as abelhas]


quando têm fim os verões


e a febre há muito deixou as colmeias

há sempre uma abelha


ao menos
que leva uma chave
de fenda
para desmontar
as asas das companheiras
e lhes furar os olhos

as abelhas caídas
tateiam o escuro
duro de cera
e inflamam a fome
como a bomba multiplica
o dinheiro
entre os poucos

umas às outras então


mastigam-se
e deusas muito antigas

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vêm lhes visitar
apressando
o outono-apitoxina
na ponta do ferrão

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3. instruções de uso

[dos cupins para invejar livremente]

como a pornografia
dos bichos assim
na primeira chuva
da estação
as aleluias
os siriris
os ararás
educam
na revoada invertebrada
a distribuição de areia seca
nas coisas

longamente depois
os cupins temperam
a paranoia
conspiram um cupinzeiro
cuja elevação sobre a terra
se equiparasse à corcova do camelo
ao tentáculo do polvo
e fabulam uma arruaça frígida
como tática de pilhagem

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4. conectando o suprimento de água

[à vergonha das ratazanas]

o luto foi abolido


entre as ratazanas
depois das filas
nos hospitais
acumulam uma nuvem
preta subterrânea

abortam as caudas

podem assim
mergulhar olímpicas
nos esgotos

onde dessecam
e celebram
o corpo
mascando
aquelas outras frutas

que desperdiçamos
pelo cu

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5. controles disponíveis

[aos tatuís que por mania de


grandeza sonham ter por
dentro um planeta vermelho]

mora na glande
escura das lagunas
uma espécie estranha

de tatuí-foguete

que na libertação
branquejante, uma vez
na década

(iodo suspenso no ar
luminescência crustrácea
paralisando a noite)

estanca do sono
e se lança
agora tatuí
-satélite-lama

para comer
mercúrio

orbitante planeta
diluído nos mares

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6. recursos de armazenamento

[do amor no comprimento da Tênia]

as tênias não conhecem o amor só podem comê-lo e por isso


alojam suas crianças no porco o mais demorado dos eróticos
esparramado na lama o amor invade barroso as narinas
e depois as gentes o comem no porco a tênia faz brincar
os seus filhotes eles perguntam você acha tudo isso nojento?
você tem certeza de que não quer me tocar pela manhã? são
solitárias as crianças de corpos alongadinhos e escuros brincam
tripas na barriga do porco e depois as gentes o comem no porco
a promessa de tênia vive como no boi ela morre a tênia ocupa
sempre a morte no tempo dos bois pois é isto o amor no campo
está o boi infectado e ele devolve à terra os ovinhos como
devolvem os muitos parentes os amantes se vomitam uns sobre
os outros ou se cuidam de suas desgraças se acobertam seus crimes
calçam-lhes os chinelos amor é uma tênia alojada no sistema nervoso
central você pensa que é o inconsciente lá está a tênia decidindo tudo
por você atravessando a rua distraído ou esquecendo de pagar as
contas dizendo o nome da pessoa amada fora de hora interrompendo
o curso das coisas com sua fome homérica o amor é uma tênia
comandando a fome de centenas nos navios de guerra a fome
é a retirada dos heróis as tênias comandam nas trincheiras a poesia
a dança os movimentos precisos as frases bem articuladas
os negócios humanos a tranquilidade dos mamíferos tudo é devorado
e devolvido até que cem mil ovos explodem multiplicam a festa
aniquilam o amante e longo vive um porco doente

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7. gelo automático e dispensador de água

[ou o remorso para os caranguejos]

mas os caranguejos não sabem os sonetos

os caranguejos têm uma moenda


nos intestinos e enlaçam a mama
telúrica dos mangues no amarelo
das rochas enxadas testam suas cascas

se um deles solta na lama a doença


e o engenho secreto come a cana
magoada de vermes e rasgo e guerra
fogem do mangue vivem sem suas casas

assim tão sozinhos os caranguejos


desaprendem a arte de suas pinças
e no engenho já não dominam – brincam

redesenham a terra entre os famintos
os caranguejos pinçam no deserto
um mangue de amor amarelo-zelo

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mas os sonetos não fazem os caranguejos

os caranguejos e as palavras
apartam-se como os filhos dos pais
como os turistas das cidades
como os fotografados das fotografias
como os tristes do sol
e as palavras inflam alérgicas à casa
empolam as coisas

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8. cuidado e limpeza

[da euforia entre as lagartas mais


assanhadas]

o bicho-da-seda por muito roçar


os fios nobres herda
das nuvens brancas
um desejo lento / mas a taturana
porque os bichos
e o veneno
mantém distância conhece o
tempo breve

tão logo a pele fina treme e a taturana


despenca pode estar
dizendo um bebê
puberdade
pode estar
essa lagarta peluda dizendo
enfrenta as turbulências guerras
a resistência do ar brinquedos

do corpo
que nós chamamos

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soma gengivite
artrose croma
ou sexo

e guarda em cada anel
um avião caindo

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9. antes de ligar, procure saber

[como fazem as formigas


quando se sentem humilhadas]

as formigas
não demoram
esquecem-se depressa da polícia

trabalham duro
no edifício dos séculos
uma vingança

não choram
por detrás dos azulejos
nem aguardam o dilúvio

para suportar os dias


as formigas abrigam-se
na pele dos velhos
e inalam a gordura

por isso os velhos não têm cravos ou espinhas


se se aglutinam tais insetos
formam não só fábricas
mas cidades inteiras
cada velho um conglomerado

por virtude de classe


operária
as formigas

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tomaram há muito
de caronte
o pedágio dos aflitos
desde então
as cabeçudas as lava-pés
as cabeças-de-vidro

desde então
as que apanharam
e as que assistiram

desde então
as carpinteiras as acrobatas
as cortadeiras

as tributadas
e as que venderam sua força

as saúvas e também as mineiras


as que perderam
suas horas mais bonitas

desde então
as formigas costuram
o livro
o livro armado
de 6 patas
e carapaça vermelha

inventam um deus
todo antenas
e escavação furiosa
e o mobilizam

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10. termos de garantia

[de curiosidade entre os pinguins]

no coração
dos pinguins
armam-se
os nomes

como um trinco
uma boca cerrada
como um cubo de gelo

e não os diz
o pinguim

aprendeu
que o nome
desfaz a coisa

e a coisa viaja sem amor


como a bomba arremessa a chave
a polícia, o segredo
como o fogo perde o caldo

aprendeu, o pinguim
que se desfaz a coisa
que não tem nome

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por isso os guarda, no coração
enquanto não a vê

até que a veja



e o nome se desfaz
na coisa amada
impercebido

como a fissura
abre os lábios

como a gota
precipita a água

como alguém que olha


a fechadura

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notas sobre os poemas

Versões de “em pleno atlântico” e “relógio normal” foram


publicadas no volume Kraft (Cozinha Experimental, 2015).

“Conectando o suprimento de água” teve uma versão publicada


no projeto Boca suja do Sesc.

Uma versão de “recursos de armazenamento” e outra de “antes de


ligar, procure saber” foram publicados no primeiro volume dos
Cadernos do CEP, assim como o poema “hava naghila Khalil”.

Com exceção de “não é tão tarde” e “criança que come e assiste


o pai chorar após um telefonema”, toda a seção Crianças integra
um projeto de poesia e materialidade com Lucas van Hombeeck
e Ana Carolina Assis.

“Não é tão tarde” teve uma versão publicada na antologia


Isoporzinho-Arrastão.

“Estou cercado de amigos...” foi publicado pela primeira vez,


em uma versão muito diferente, na antologia A nossos pés
(7letras, 2017).

Lucas van Hombeeck traduziu o poema “now that I am in


Madrid and can think”, de Frank O`Hara, sob o título de “agora
que estou em Madrid e consigo pensar”. Essa tradução foi tratada
como original e foi traduzida (pt-pt) para o poema “agora que
voltei para o méier e tento pensar”.

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a gente e as coisas

Falta a palavra que explique esse sentimento que temos quando,


ao vermos uma coisa, reconhecemos uma multidão interminável
de pessoas amigas que a integram. Se for algo parecido com o
que sentimos diante da morte, talvez se assemelhe àquele filme
que dizem passar diante do moribundo no seu último suspiro.
Se com um nascimento, à potência absurda de uma promessa.
Não é tanto agradecimento quanto filme e promessa isso que
acompanha a lista de centenas de nomes que não escreverei.
Quero mencionar toda essa gente pelos agrupamentos (mesmo
os de uma pessoa). É como a vida me foi dada. Meus pais.
Minhas irmãs. Minha companheira. A rapaziada do Méier.
Meus amigos e amigas. A Oficina Experimental de Poesia.
A Garupa. Meus alunos e alunas. As pessoas com quem dividi
casa. Com quem trabalhei. Com quem respirei gás lacrimogênio.
Fazer uma coisa é um alvoroço. Viva a moçada.

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o autor

Rafael Zacca é poeta e crítico. Nasceu no Méier, Rio de


Janeiro, em 1987. Publicou Kraft (2015), Mini Marx (2017),
Mega Mao (2018) e foi coautor do Almanaque Rebolado (2017).
É coarticulador da Oficina Experimental de Poesia.

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edição
juliana travassos

assistência editorial
thadeu c santos

revisão
daniel dargains

capa
lucas travassos

diagramação
juliana travassos

Zacca, Rafael
A estreita artéria das coisas / Rafael Zacca – 1 ed. – Rio de
Janeiro: Garupa, 2018.

ISBN: 978-85-5986-010-8

CDD 869-1

Rua Acre, 77 – sala 705


20081000 – Centro – Rio de Janeiro, RJ
revistagarupa.com
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medium.com/coletivo-garupa

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A estreita artéria das coisas tem seu miolo composto
pelas famílias tipográficas Cardo e Futura. Dez versões
de jaqueta em papel vegetal foram feitas para abraçar as
capas dos livros. Foi impresso na véspera do segundo
turno das eleições presidenciais em outubro de 2018
na gráfica Psi7 em São Paulo.

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