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Um corpo nao ” no sentido que se costuma supor que uma coisa ou um conceito “é” ~ posto, delimitado, estabilizado em algum lugar, Um corpo sé é fazendo ¢ se fazendo ~ sempre fora de tudo que poderia conté-lo. Veja 0 corpo da crianca, do adulto ou do velho; aquele do broto e da arvore; aquele do regato e do rio; aquele da nuvem nesse instante e naquele outro. O corpo, a corporeidade do corpo ~ quer dizer, a sua extensio, a sua expansao, a sua expressio ~ comporta a verdade de que nada se reine numa intimidade ctimplice de si mas de que tudo se langa para mais longe, mais para o dentro porque mais fora do que qualquer recolhimento. Aduey an -uea VuOd ‘Oduoo i 3 a 3 é g : fora mun sancalat JEAN-LUC NANCY corpo, fora Tradugdo e organizapao | Marcia Sa Cavalcante Schuback Bvernas] Um dos mais importantes e influentes filésofos da atualidade, Jean-Luc Nancy jé tratou do corpo em diversas obras ~ do singular a0 plural, do individuo a comunidade. Nesta coletinea inédita de ensaios onganizada e traduzida por Marcia ‘4 Cavalcante Schuback, o tema vem a baila sob novas perspectivas e nuances ~ do corpo nu a0 corpo como extensdo da alma -, abrangendo o que de mais intimo ede exposto temos a oferecer a0 mundo (ea nés mesmos, narcisos sob o espelho alheio), ¢ apresentando um olhar fascinante € original sobre este que é talvez 0 aspecto mais bésico da existéncia, € sobre o jogo de pulsdes, repulsées, batimentos ¢ (im- ¢ ex-) posigées entre 0s corpos ~ em si, entre si, € fora: preenchendo 0 vazio, o espaco, © tempo, o lugar. A descoberto, aqui: em descoberta. CORPO, FORA JEAN-LUC NANCY corpo, fora Tradugao e organizagto | Mi cavalcante Schuback Blecrnas] (©2013 by Jean-Luc NANCY Diretos desta edgdo reservados Viveios de Castro Bditora Lida. Este livo segue at normas do Acordo Ortogréfico ‘da Lingua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009. Coordenagdo editorial Isadora Travassor Producto editorial Eduardo Sissekind Rodrigo Fontoura Vietoria Rabello Revisdo ‘Amanda Bastos Carolina Lopes Jamas 94: ety fen ene Nancy uadugto Mira Sk Cavalcante Schoback -Led.- lowe anc yizinn 2016 “Tradugto de: Corps dhors sen 978 85431-03672 1. Corpo « mente 2. Corpo humsno (Faso). 1. Til. asaa6a coment 2015, Viveiros de Castro Eaitora Lida. Rua Visconde de Piajé, 580 st, 320 ~ Ipanema io de Janeiro n)~ ceP 22410-902 ‘Teh. (21) 2540-0078 ‘editora@7letras.com.br | wwe. Tletras.combr Sumario Prefacio Corpo nudo Nu enumerado Corpo de prazer Corpo sob o olhar Accamaraescura Corpos estranhos estrangeiros Corpo morto Pele essencial Dentro fora ‘amor que se faz Corpo-teatro 58 indicios sobre 0 corpo Extenséo da alma n 35 2 7 3 35 6% 6 8% Prefacio Um corpo Ii fora. Um corpo ao lado e frente outros corpos. “Corpo” diz inicialmente a distingao frente ao outro: 0 contorno onde comeca e ter- ‘mina uma existéncia, quer dizer, aquilo que vem para fora (ex) do ndo-ser. Um corpo expe uma existéncia. Dizendo-se propriamente, nenhuma forma de ser tiéo corpérea existe, mas consiste ou insiste entre o que existe: assim 0 vazio, 0 espago, 0 tempo, o sentido, a relagio (cinco termos cuja conexio pode ser vista sem dificuldades: eles sao quintupla determinacio do entre-corpo) ‘Um corpo nao esta somente fora: ele mesmo ¢ um fora. Dessa vez no © fora-nada mas o fora-dentro, Ha um dentro do corpo: os drgios com as suas fungdes. Mas esse dentro nao é o que se apresenta como corpo. Para apresenta-lo, € preciso violentar as vezes mais, is vezes menos, 0 corpo. O dentro nao se apresenta, Ao contririo, retira-se para que o fora possa se sustentar e agir. © dentro do corpo é sobretudo um fora do fora: 0 que se retira do fora para ficar fora, Existéncias que seriam sem um fora ou dotadas de foras imprecisos ou Precirios — um pouco como as sombras do Hades ~ haveriam de se mistu- rar entre si, mal se distinguindo, Dizendo-se propriamente, nao existiriam, como de outras a Pois nao poderia se expor ao fora e nem enquanto um fora. Por isso, o ser supremo é algo morto: por nunca ter existido. Se, enquanto ser supremo, Deus tivesse existido, ele o faria num mundo por ele nao criado. Assim, ele se negaria, Nunca hi portanto um corpo sem outros corpos. A diferenga dos cor- os os distingue, expondo-os uns aos outros. Ela os impde também uns aos ‘outros. De fato, nao ha uma “posi¢éo na existéncia” (segundo a expressio de Kant) que nio seja ex- e im-posigio miitua no seio de uma dis-posigao. ‘A dis-posigdo original ou elementar é estritamente contemporanea € solidaria aos corpos. Ela estabelece as suas relagdes. A relagio ou razio comum dos incorpéreos nasce da disposi¢io como seu ato: separar, apro- ximar, confrontar, juntar, rejeitar etc. Tudo jogos, batimentos, pulsdes € repuls6es entre os corpos se ex-im-pondo eles mesmos. {A dis-posigio nao dis-pée dos corpos dados previamente ou de algum ‘outro modo. Ela é a condicéo mesma do corpo, a sua condigao singular-plu- ral. Um corpo esté posto, dis-posto entre os outros. Ele esté ex-posto ¢ im-posto aos outros, de maneira a s6 se “por” pro-pondo-se. Um corpo uma pro-posicéo, uma chegada que se adianta ¢ se pe adiante, no fora, como um fora. Pro-posto é que 0 corpo nio se confunda com nenhum outro, que nao recubra nenhum outro e nem seja por nenhum outro reco- berto ~ nunca, a néo ser quando estiver em jogo uma descoberta, 0 por-se a descoberto de cada corpo. Isso quer dizer: nudez, decerto. Mas nao “nudez” como uma catego- ria 4 qual o corpo pudesse ver-se reduzido ou ao que se poderia chegar como se chega a uma esséncia ou a um limite derradeiro. Ao contrério: como aquilo que no pudor faz aparecer o impudor, a indecéncia & qual nada saberia convir a nio ser 0 movimento interminavel de precisamente desnudar-se e desnudar 0 outro em face de si. ‘Anudez seria o nome do fora de si enquanto ex-pressio de si, impeto de si para fora de si, 1é onde nenhum “ser-si-mesmo” poderia reconduzir a uma identidade a pulsio, a pressio, o eld, esse onde nada subsiste e tudo sobrevém. ‘Um corpo é esse pelo qué, como qué e em qué tudo acontece: tudo sobrevém, tudo se produz num gesto, numa inflexio, numa emogio ou erup¢ao da pele, o sentido de um outro corpo rogado ou melindrado. Um corpo nao “é” no sentido que se costuma supor que uma coisa ‘ou um conceito “é” — posto, delimitado, estabilizado em algum lugar. Um ‘corpo s6 é fazendo e se fazendo - sempre fora de tudo que poderia conté-lo. ‘Veja o corpo da crianga, do adulto ou do velho; aquele do broto e da érvore; aquele do regato e do rio; aquele da nuvem nesse instante ¢ naquele outro. © corpo, a corporeidade do corpo ~ quer dizer, a sua extensio, a sua expan- séo, a sua expressio ~ comporta a verdade de que nada se reine numa intimidade ciimplice de si mas de que tudo se langa para mais longe, mais para o dentro porque mais fora do que qualquer recolhimento, Como as ‘vezes tiramos a roupa para um outro, como as vezes tocamos a sua méo ou 0 seu sexo, como &s vezes pousamos o olhar sobre o seu. As vezes também amassamos uma folha ou tocamos a tangente de um teclado para formar corptisculos que se debatem numa tela, numa folha impress, num fora aventureiro do que pensamos ser um pensamento se fazendo mas que nao passa de um modo delicioso e dificil de nos entretocarmos. Agradeco vivamente Marcia Sé Cavalcante Schuback que concebeu, compése traduziu esse livro: que modelou o corpo e propulsouaexisténcia, Jean-Luc Nancy, 13 de julho de 2013 Corpo nudo Apés ter designado uma espécie de religiao da natureza ou ainda um recurso exclusivo para as medicagdes naturais, a palavra naturismo tornou- se, em tempos jé antigos, esses anteriores & metade do século XX, 0 nome de uma doutrina que preconizava um modo de vida conforme a natureza: ar livre, alimentacao especial, ete. O que, na mesma época, se chamou de nudismo apresentava uma op¢do particular, s6 que de tamanha importincia que os dois termos acabaram se confundindo no uso. Mais do que consumir produtos organicos, ser naturista hoje em dia é antes de tudo ser nudista. Encaixados um no outro, naturism e nudismo, esses dois nomes de doutrina, 56 conseguem contentar os seus adeptos, ao menos aqueles que insistem em referir 0 seu comportamento & dignidade e a autoridade atri- buidas a uma doutrina. Nao ha nenhuma razio para se criticar 0 gosto pela vida desnudada ao ar livre. Mas ha sempre sérios motivos para se descon- fiar dos nomes de doutrina. Estes evocam necessariamente uma construgio assentada sobre fundamentos ou ajustada a principios cujas consequéncias tensionam toda a estrutura, ditam as regeas e proclamam a exceléncia de uma adesio convicta. Nada disso convém ao exercicio do pensamento e, como se sabe, em St OHOS OS ADIOS, BF GOULET UAE OW CaPCaUPERTT UC, © VO OT ainda o Nome que pretendem constituir o desdobramento, O que se chama de “marxista” esta em geral bem longe de Marx, 0 “idealismo” dificilmente pode ser diferenciado do “materialismo’, etc. A histéria do pensamento esté cheia de renovadas retificagdes sobre a questio dos “empirismos’, que pouco devem a experiencia, ou dos “platonismos’, bem distantes de Platdo. Em numerosos casos, 0 sufixo ismo representa uma méquina de enrijecer, de deformar, enfim, de trair uma nogao, um nome ou um espirito. Esse exagero parece de todo modo particularmente criticdvel no caso de termos como naturismo e nudismo. Como fazer da natureza e da nudez 05 principios ou os sitios de uma doutrina’ Para tanto seria preciso deter- ‘minar com suficiente clareza o que sio de uma parte a natureza e de outra ‘o nu, Ademais, para dar-se conta do entrelagamento entre ambos, seria preciso tanto atestar o caréter “natural” da nudez como, reciprocamente, 0 cardter “desnudado” da natureza. Podemos nos aproximar um pouco desse iltimo problema, antes de retornarmos ao primeiro, pensando na palavra naturalismo. Essa palavra se formou a partir de naturalis, adjetivo significando “o que pertence a natureza’. O naturalista era inicialmente quem estudava os fatos naturais. antes do naturalismo tornar-se a filosofia para a qual no hé nenhum outro ‘mundo a no ser o mundo natural e, posteriormente, a tendéncia estética de representar a realidade segundo 0 seu aspecto “natural’, ou seja, des- vencilhado de artificios estéticos ou de visées idealizantes. Nao obstante em todos esses usos a ideia do natural permanecer algo a ser interrogado, © natural designa, grosso modo, uma categoria de objetos que podemos admitir a titulo provisério. Todavia, tdo logo nos voltamos para a natu- reza ela mesma, ficamos bem préximos de entrever algo como um sujeito, ‘uma forca aut6noma e autoconstituinte, a saber, autofinalizada - em grego, uma phusis. £ uma metafisica, no pior sentido da palavra, que recobre a ideia de naturismo: a natureza seria um principio uma poténcia autossu- ficiente, propiciadora de toda vida si ¢ boa. Sua legitimidade nao poderia ser buscada em nenhum outro lugar sendo no fato de ser... natureza, pre- cisamente, o que no fim das contas ndo designa outra coisa do que Deus ou ‘mais exatamente uma providencia divina. De tudo que essa ideologia metafisica apressada esquece ~ coisa de que, felizmente, ao menos no essencial, a ecologia consciente e responsivel escapou - um certo esquecimento & digno de nota, esse de que o animal hhumano saiu ele mesmo da natureza. Esse que se coloca face & natureza, seja para lhe dedicar um culto, seja para exploré-la ou desordend-la, ele, 0 produtor de ideias e de procedimentos, de fins ¢ de meios ~ numa palavra de técnicas -, ele vem da natureza ¢ ndo cessa de a ela retornar, mesmo correndo o risco de retornar a uma natureza inteiramente desnaturada. (© homem é o grande desnaturador da natureza. B o, elemento em que a natureza se desfaz, passando para além ¢ aquém dela mesma. Mas, repito, é ‘propria natureza que o engendra, © homem nao é somente o animal dotado de linguagem, de razio, de vida politica. £ também o animal que conhece a nudez. Se a nudez & 0 préprio do animal desnaturante, seré possivel encaixar no naturismo um znudismo que seria uma espécie de consumagao ou exaltagao? Estabelegamos de inicio o seguinte fato: 0 homem é 0 animal que conhece a nudez. Dos animais pode-se dizer tanto que eles estdo e séo sem- pre nus ou entio que eles nunca estdo ou séo nus. Todos eles tém peles que também sio as suas vestes e por vezes mais do que isso: so seus instrumen- tos e suas armas. Mesmo a minhoca, “nua como viemos’, por assim dizer, possui uma pele, frégil decerto, que ¢ 0 seu drgio respiratério, e ainda uma cuticula que serve para o seu deslocamento. Essa pele esté bem adaptada para os deslizamentos da reptago subterranea. Jé a pele do homem, adap- tada as trocas térmicas e higrométricas do corpo com o exterior, no pode proteger nada além de limites bem estreitos, 0 que torna indispensavel a ‘vestimenta na maior parte das condigdes climaticas. ‘Nao se pode dizer propriamente que a minhoca esteja “nua” (por opo- sigo a “vestida” ou “protegida”) a nio ser que se diga em contrapartida que ohomem é essencialmente nu, ou seja, despido ¢ exposto. Dizer que por ele mesmo 0 corpo humano € despido é dizer que a veste é contemporénea da humanidade, nao sendo algo que a ela se acrescenta. E dizer que & exposto nao significa dizer somente que é fragil e vulnerével, mas que a sua expo- sigdo, seu modo de se por a descoberto, expor-se ao perigo, aventurar-se, langar-se ao acaso, arriscar-se, & constitutivo do seu ser. Ao intitular o iltimo volume de suas Mythologiques “O homem nu’, Lévi-Strauss pretendia “antecipar o crepisculo dos homens, depois daquele dos deuses’, como ele mesmo escreve.' Nesse crepisculo, apaga-seohomem dos humanismos, tanto 0 homem cuja origem e destino, cujo sentido dignidade estdo assegurados por algum ato de “complacéncia metafisica’* 2 Didp.srn 3 como 0 homem depurado da “consisténcia do eu” e referenciado & sua existéncia comum, no duplo sentido da palavra: coletiva e banal. Interpretando livremente Lévi-Strauss, eu diria: o homem nu é ini- cialmente 0 homem dentre os homens € 0 homem em seu sentido mais ordinario. Ora, esse sentido ordindrio nao é outra coisa do quea circulacao, a troca e a partilha da diversidade e da identidade dessa coexisténcia cla mesma ¢, mais amplamente, da coexisténcia dos humanos com todas as outras formas de ser através do mundo. 4 Nu, ew estou e sou com os outros. Nu, estou exposto partilha do sentido. Mas nesses dois registros, o corpo nu introduz uma forma de sub- tragdo: 0 “com” eo “sentido” se encontram desprovidos do que lhes confere e pode conferir um caréter positivo na cena dos corpos vestidos. Nao se deve entender cena dos corpos vestidos somente como aquela de corpos revestidos com o que chamamos de “vestimentas’: Em certas cul- turas, um fiapinho na altura dos rins, uma tatuagem, ornamentos diversos podem ser suficientes para marear uma situagio social, mesmo que em certos casos essa situacao nao se distinga visivelmente de uma situacao de retraimento na intimidade. De todo modo, tanto os atos sexuais como 0 da excregio e, como é frequente, tanto 0s atos ligados ao parto como os de cardter rituais, exigem, via de regra, um afastamento da cena social, mesmo onde nao se dé uma distingao entre puiblico e privado como a conhecemos. Assim, aparece uma questio do intimo como heterogénea & homogenei- dade da esfera comum. Voltaremos a isso. ‘Acena dos corpos vestidos ou providos de marcas significantes forma 6 que chamamos de sociedade. Assim entendida, a sociedade nao deve Bla deve ser entendida, ao contrario, como o regime pri condi¢ao humana, ou seja, como o regime de uma simbolicidade* geral, Por “simbolicidade” deve-se entender a capacidade de comunicar outra coisa do que uma indicagao ou uma informagao, ou seja, a capacidade de comunicar inicialmente a troca ou a partilha da prépria comunicagio. Nao eiro e original da J TRVESTRAURS 97 P59. 4 Simbolicidadetradus 0 neologismo symbolicié no original. (8-7) 14 se diz apenas “eis aqui o Norte” ou “eu vou te bater’, mas fazemos passar ao mesmo tempo uma remissio a possibilidade geral ~ coletiva, afetiva ~ de comunicar. F.0 que faz.a diferenca entre os dois enunciados tomados como exemplo e 0 uso da bissola, no primeiro caso, ou bem um golpe de punho no segundo. ‘A cena social é por ela mesma cena do simbdlico. Relacionando-se uns 20s outros, 0s seus atores se relacionam todos juntos com a prépria cena, Fles agem, ademais, exatamente como os atores de teatro cuja atuacio néo . Acesso em 8.2035 (N.7). 3 £ isso mesmo que 0 corpo sabe: ele se sabe linha, trago, tragado, perfil, sustento, porte e assim, jeito, maneira, tom, aspecto. O corpo ¢ aspectus nos dois sentidos que a palavra pode assumir: o ato de olhar ou o fato de ser olhado. Esses dois sentidos estéo ademais entrelacados em nossa palavra “aspecto’, que nomeia o modo em que qualquer coisa ou qualquer um se apresenta para o olhar e, ainda mais precisamente, a tal ou tal olhar deter- minado (alguém se mostra ou ¢ olhado “sob” tal ou tal aspecto).. Aspecto: como isso se apresenta — isso que implica 20 mesmo tempo a visio pelo outro eo ter em vista do que se propde ao outro - um ter em vista consciente ou inconsciente, e, deve-se dizer ainda mais,o ter em vista or mim daquilo que o outro tem em vista de mim, sobre mim, esse sentido de meu ser exposto ao outro e de ser visto, olhado, de um modo que tanto permanece sempre estranho para mim como também se volta para mim, atraindo-me ou bem para ela ou contra ela, atracdo e repulsio, esse ter em ‘vista que constitul justamente 0 “inconsciente”: o corpo 0 inconsciente, ou seja, a relagdo com o mundo. ‘Todas as imagens provém dai, dessa imagem anterior a toda imagem ‘que é imagem impossivel de mim mesmo. Dito de outro modo, a imagem de uma forma ~ figura, estatura, porte - que para mim serd sempre letra morta. Literalmente, aquilo que s6 a minha morte poderé propiciar, uma semelhanga acabada, tornando-se semelhanga do que logo ndo se asseme- Ihard a mais nada. Se imago é para os romanos a imagem do morto, efigie sacra conservada no altar familiar, entéo toda imagem é primeiramente imagem prépria do corpo morto, do corpo por detrés dele mesmo ¢ tal como ele aparece, tal como ele se dé a ver ~ no sabendo nada, nao vendo nada do que dé a ver mas vendo, ele, que é visto pelos outros, nao vendo nada além disso. O espelho, o reflexo nao é de modo algum um substituto dessa figu- ragdo ou “imaginacao” pelos outros olhares, jé que o espelho me mostra ‘apenas como eu me mostro a mim-mesmo, ou seja, ndo somente invertido no espayo mas distanciado de mim e igualmente voltado para mim, © que precisamente constitui a condico impossivel do corpo. O espelho mostra como uma espécie de esfolado devolvido a vida mas logo perdido, mais, ‘morto que morto: vitrificado na menor espessura inconsistente do reflexo.* 2 JL Nancy peasou agul na obra de Michelangelo Pstolett, I! dsegno dello spechio (1979) Disponivel em: chtpe//wonepstoletiaiivcronotshtme>. AcESSO em: 8 set 2035 (N-T). 32 i ‘A imagem, ao contrario, desenho, pintura, escultura, fotografia, me ‘mostra a mim mesmo tal como sei de mim, ou seja, tal como me sinto, tal ‘como em mim um outro se sente, visto, mirado, olhado por um outro, um ‘outro homem ou um outro ser. Os animais pintados nas paredes das caver- nas e entre 0s quais quase nio se vé homem algum nao so outra coisa do que outros olhares que o homem pintando sentia pousados sobre ele: esse iso ao mesmo tempo me olhando, pois, como eu, ele é também um “eu” que olha e me vé bisio, pois nele eu me vejo sendo visto. ‘A imagem, a pulsao imaginante dos homens, responde a isso: somos ¢ estamos sempre sob o olhar. Essa expresso que significa “face a” ou “vis-d- vis" e todas as expresses formadas sobre o viso € a visio devem indicar que somos e estamos sempre num duplo olhar, em parte “nosso” € em parte outro, aquele que nos olha e para o qual o nosso olhar destina tanto 0 seu desnudamento como a sua acuidade. Sou visto visionério, quero me ver visto, quero me tornar um visionério de meu ser-visto. ‘Aimagem é 0 vestigio de uma vista que tem em vista e vislumbra a cada vez 0 impossivel: 0 inacessivel “sob 0 olhar do mundo’, onde o mundo me olha olhar. £ sempre o olhar que se embaga de si mesmo. O olhar que se recompée do inacessivel fora, onde foi se perder. Meu olhar retorna para mim como a minha visio de um outro que sustenta, na verdade, a visio de fora da minha prépria vista: como ela se abre, se escancara, se ofusca, Se cega” Os corpos humanos nio se veem como “humanos” no sentido que lhe atribuimos - ou seja, de confirmagao e anatomia da espécie animal homo sapiens sapiens ~ a nao ser nas culturas onde se tem em vista corpo desse modo. Como se sabe, hé culturas inteiras onde sdo outras as miradas que conformam as imagens: outras fungdes ou pulsdes de corpos, outras ima- gens onde os corpos so primeiro forcas, signos, pensamentos, operagbes. ‘Nas culturas, porém, onde se tem em vista 0 corpo como corpo da ‘espécie, a representacio dessa morfologia — rosto, busto, ventre, membros — ‘std inteiramente comprometida e mesmo confundida com as exigéncias de tum ter em vista distinto do que se tem em vista numa zoologia. A mimesis se opera desde a busca de outra coisa do que a conformidade de um qua dro representativo. Nem os corpos da estatuaria grega, nem os da pintura chinesa ulterior & dinastia Han sio representacdes: formam imagens oriun- das de miradas proprias a uma cultura onde 0 corpo do vivente humano é 3) FL Nancy pensou aqui na obra de Picasso. (N.1). 33 mirado ~ se sente mirado, se deseja mirado, de acordo com tal ou tal aspecto: © corpo é graca ~ e tal graca é cada vez diferente, um tal perfil grego, uma tal ondulagio chinesa ~ ou bem forga, destinagio, desejo, presenca. Ele se faz “modelo” daquilo mesmo que se poderia acreditar querer “representar”, Bem mais tarde, quando a civilizacao den a impressio de ter retor- nado & representagio com a invengio da fotografia ~ que de inicio se deixa pensar como reprodugao fiel da impressio luminosa e portanto visivel ~ a mirada dos fotégrafos nao é, em seu todo, menos mirada do que essa sob a qual o corpo é apreendido, tocado, sentido, aproximado; a “tomada” fotografica até mesmo acentua a relagao do que se dé a ver ~ a foto ~ com a mirada que a produziu, pois exibe de algum modo 0 piscar de olhos, 0 _gesto-instante do clique pelo qual a objetiva se abre e se fecha, Nesse clique, se sou fotdgrafo, meu olho se vé, se experimenta e até se comove com esse fato mesmo que é 0 meu olhar se reduplicando e se expondo como apare- Iho, camera, caixa negra onde fica a vista o olhar do outro (seu olhar ou 0 desvio ou mesmo a auséncia do seu olhar).* O corpo em pintura é assim sempre o corpo revirado sobre si mesmo, rumo a si mesmo. E sempre 0 corpo que se tem em vista, que se pro- cura, se deseja e se teme como esse absolutamente desconhecido, invi- sivel. Esconde-se ndo apenas por detrés de uma cémera ou dos pinceis € lapis, mas por detrés de si mesmo, sendo inacessivel na profundidade sem dimensao da qual o corpo é 0 por em vista. Por isso, 0 corpo em pintura é sempre pintura de uma intensidade do olhar: nao apenas a intensidade dos olhos que ora se perdem no infinito fora da moldura da imagem, ora querem vir se fixar bem dentro dos nossos que os olham, mas também a intensidade de todo 0 corpo, tal como ele se sabe ou se sente dando-se a ver. Ele pode se experimentar sem rosto, ou enti ‘como um rosto que nada pintor que faz surgira imagem, ou seja, a presenga verdadeira desse ausente que se projeta para si, ao retornar para oferecer um espeticulo, jogo de tracos ou de manchas, disposicio do que esta verdadeiramente incorpo- rado no corpo que pinta: de modo algum trata-se de um corpo figurado; de 3 FENancy pensou aqui nas fotografias de Anna Magnani etas por Federico Patellan, (8.7). 34 modo algum uma pequena representagio do corpo. O corpo nio se repre- senta asi mesmo. Ele apresenta que se apresenta para fora, como ele se volta para fora, como ele é esse fora de “mim” que nao possui um “dentro” a nio ser para fazé-lo vir & imagem, no como, de que maneira, em que tom, em que nuanga, esse & 0 afazer da pintura. ‘Ao pintar My fair Lady ~ titulo que sem divida remete & comédia musi- cal criada no mesmo ano e que retoma a estéria do Pigmalio de Bernard Shaw -, Fautrier possivelmente incorpora tanto as lembrangas visuals da cena como us elementos da fabula que conta como uma mulher se transfor~ ‘mou ¢ se modelou numa intengao precisa. Mas o que forma na realidade a imagem é toda uma outra cena e uma outra modelagem: a da espessura de rmatérias pesadas (branco de Espana, 6leo) cujas camadas visivelmente apli- cadas umas sobre as outras empenham a visio de um corpo que 20 mesmo tempo em que flutua num espago césmico, semelhante a uma galixia, se deposita em sedimentos que a sua densidade faz. tocar, fazendo pressio sobre ‘0s nossos olhos como um ventre modelado sobre um olhar bem préximo, debrugado sobre esse corpo, um olhar que se vé assim tal como um ventre pode vé-lo pousado, literalmente pousado sobre ele € tornando-sea sua pele Dai o quadro “representar” tanto um corpo de mulher como um olho ou ainda uma pura impressio colorida, Pode-se compreender o porque de uma histéria da representacio do corpo no interior da histéria da arte europeia. No movimento que parte da época da representacdo ou da figuragdo ¢ ultrapassa todas as posturas de ‘um olhar orientado pela retragio dos esquemas dessa figuragao ~ as cenas religiosas, mitol6gicas, legendirias ou histéricas -, o corpo deixa de querer ser visto como corpo de heréi, de deus ou de principe. O corpo passa a se buscar como corpo anterior a essas figuras, visando-se mais imediatamente como corpo de pintor, como fonte de imagens. Jé Rembrandt faz sentir resse para as transformagoes do que nao esta contido em nenhuma figura. Com Goya, inicia-se 0 aproximar-se da desfigurasdo. Pode-se dizer que, no século XIX, 0 corpo se busca cada vez mais como ele se sabe e sente visto, mirado, recebido ou recusado por um mundo que ado dispSe mais de figuras ou esquemas mas que, a0 contrario, se inquieta com a fragilidade dos corpos, com as suas instabilidades, enfim, com seus esvanecimentes. Lé onde poderia ter havido uma espécie de transfiguragao geral nos cor- pos canénicos da boa figura, da santidade ou sensualidade, trata-se, 20 35 contririo, de escavar um olhar que inicialmente se pensa nu e cru, exposto ‘a uma crueza de visio que no mais se encobre com essas formas canénicas. ‘Nao é “mais realista” como estariamos inclinados a dizer: é mais intima- ‘mente imerso numa inquietagdo, numa curiosidade ¢ interrogagio. Nao se pede mais tanto para ver como algo se torna visivel. Pede-se bem mais para saber como € possivel aparecer, tornar-se visivel, através de que, para quem © como. O invisivel - que decerto sempre estava em jogo nessa visibilidade de si - atravessa a figura e chega a superficie, esquece, deforma ou dissemina ‘no apenas a figura e 0 rosto, mas o préprio ter em vista, o mirar e 0 ver’ Oqueéapresentar-se, virao mundo, expor-se, sere fazer signo de exis- téncia, o que é fazer nascer imagens: deixé-las vir do mais longe, do mais, retraido para o fundo do olhar que se busca ele mesmo sabendo-se olhado por todo um mundo provido de milhées de aparelhos de mirada, de visio, de video prescrutando, todos, desesperadamente talvez ~ essa profundi- dade, cuja intimidade excede a si mesma até abrir nela mesma a noite de ‘um universo sem imagens. Nao mais imagens do mundo, decerto, nao mais vvisBes do mundo, nao mais configuracées disponiveis para se compreender ‘que quer dizer vere, consequentemente, o que ser visto empenha. Sobram, no entanto, obstinadamente, os corpos que de sua prépria noite fazem aparecer vislumbres de passagem, tais como eles se percebem a simesmos, incessantes passageiros, oferecidos aos olhares das estrelas e dos buracos negros, corpos sob o olhar do cosmo. 5 FL Naney pensou aqul eno pardgrafoa seguir na obra de Annette Messager (8-7). 36 L A camara escura ‘Um casal se acasala e desacasala: eis ai todo o seu ser ou todo 0 seu ato, por surgir mais da ago do que da substéncia. O é nao faz 0 casal mas sim o e: Tristdo e Isolda, Filémon e Baucis, Sansao ¢ Dalila, Romeu e Julieta. Um casal no existe como um sujeito, nao esté referido a si. Existe como acasalamento de dois sujeitos, onde cada um se refere asi, a0 menos em parte, passando por esse acasalamento. As forcas de cada um se recur- ‘vam respectivamente uma contra a outra, 4 maneira de duas partes de uma abébada. Rejeitando uma a outra, resistindo uma a outra, elas determinam um equilibrio mesmo que tempordrio. Em favor desse equilibrio, as duas colunas de onde se eleva a abbada aparecem como pilares, como pesas de uma arquitetura. Essa arquitetura tem no entanto a propriedade de sé integrar seus elementos na prépria abébada, no em suspenso que a cinzela ¢ define. A cada instante a abébada pode ceder pelo seu préprio peso. O risco disso acontecer surge particularmente quando a abébada, ou o casal, procura recurvar-se sobre si para se conhecer melhor, para tentar estabele- cer as razées suficientes ou as finalidades de sua edificagio. ‘Nio se deve chegar até o edificio. E preciso permanecer minimamente na mecinica da abébada e na sua partilha de esforgos. Somente duas colu- nas bem distintas, cada uma com suas diversas propriedades de material, entalhes, supednco ¢ capitel - dues colunes co arco que vai de umaa outra. Isso forma algo como uma entrada, um balcdo, um convite para se visitar. $6 que, precisamente, ndo se visita. A abébada cerca 0 quarto, a camara. Kamara grega, camera latina, a alcova ou o quarto é, antes de tudo, ‘© espaco abobadado, curvado da curva prépria do casal. Nao sé 0 casal se acasala no quarto: é mais o quarto que se determina, cria ¢ curva em torno do acasalamento. No quarto esté a cama e a cama tem dois lados. Cada um se deita de uum lado e 0 casal comega quando dois, que se uniram (misturaram, enlaga- am, beijaram, acoplaram), se desatam a fim de dormir cada um num dos lados. O desacasalamento funda, assim, o casal e sua possibilidade de entrar 37 num ritmo de acasalamento e desacasalamento, 0 ritmo de sua duracao. 0 casal como tal, nem exatamente acasalado e nem exatamente desacasalado, mas simplesmente casalado: co-ligado (cum-apio). Essa ligadura, distinta do enlagamento (que pode acontecer somente por um instante, a primeira vista, bruscamente, misturando e impregnando um no outro sem ligar um, 40 outro), melhor se manifesta no desenlace onde o espago da cama per- fura a amplitude, respondendo assim ao arco da abobada que o abriga. Os dois dormem juntos, o que s6 é possivel quando se é um casal, mas esse dis- positivo bem particular de dormir-junto se distancia igualmente do “deitar junto” como se entende em francés comum, no sentido de distanciar-se para “ter quartos separados’, o que hoje, na maior parte das vezes, indica uma distancia voluntéria onde o casal foi suspenso ou deslocado (perma- necendo casal somente em sentido social, juridico ou econémico). (E pos- sivel, sem divida, interpretar 0s quartos separados na tonalidade do casal e ‘0 modo, em suma, de dois lados de um leito).. © edo casal, sua cépula, esse que coloca Tristéo com Isolda, tem sua substincia e sua virtude conjugante (conjugal, convivencial, companhcira) de um dormir-junto.O momento proprio do casal éa comunidade do sono em que nada, nem mesmo uma palavra ou um olhar, é comum a nio ser © quarto. O casal dorme junto, assegurando assim sua propria continui: dade no equilibrio dos avangos de sua abdbada, entre os acoplamentos € desacoplamentos que, na verdade, so menos o ordinério do casal do que a dupla possibilidade que o mantém simultaneamente assegurado ¢ distante. Dormir junto & sem divida 0 que confere a abébada o seu arco melhor Proporcionado, o mais firme ¢ robusto na leveza de sua curva. E preciso quase um milagre para autorizar essa partilha do sono que nao poderia ter éxito a nin ser entre criangas ou entre pestoas cuja confianga e paz mutuas, ‘afastam, numa espécie de indiferenga, tudo o que na presenga de um outro Dormir junto é por fim, sustentar uma abébada na noite-iris do leito, sob esses dois que dormem inteiramente isolados, cada um no seu abandono, cada um imerso em si mesmo a ponto de nao haver mais nem outro, nem mundo. O sono é 0 mundo inteiramente fechado para o outro (mesmo que narrado ao acordar). Mas o casal acopla, estranhamente, dois, fechos sem reuni-los de modo nenhum. 38 ‘Uma cangio diz: “no meio do leito/ © rio é profundo/todes os cavalos do rei poderiam dai beber’: [Dans le mitan du lit/ la riviére est profonde! tous le chevaux du roi/ pourraient y boire ensemble." Essa conjungao singular que o quarto envolve, acoberta e retém exige todo um aparelhamento, um dispositive ¢ mesmo um ritual. Tudo deve concorrer para uma distribuigao de lugares que torne possivel tanto a sua tangéncia permanente como a sua seguranga mutua. Tudo se roga ¢ passa mais perto do outro ~ & excecio, ainda uma vez, das pontuagdes ocasio- nais do acasalamento € do desacasalamento, que s6 tem lugar nos limites do dispositive. Hé lados do leito, como ha lados do corpo. Um dorme a direita e 0 outro & esquerda. Ha roupas da noite que, presentes ou ausen- tes, cobrindo ou nao o corpo inteiro, compdem uma sintaxe precisa de aproximag6es, contatos, evocagbes ou declaragdes, sob 0 signo dos quais se ocupa 0 espaco de uma noite. Sao varios os mecanismos encarregades de assegurara cada um a possibilidade de ler, de se levantar durante 0 sor0 do outro, de se levantar pela manha, de olhar as horas na escurido, por vezes de ouvir discretamente uma fonte sonora. E preciso que tudo isso seja agenciado de maneira a esposar 0 duplo avanco ea garantir a cada um a possibilidade de um retraimento, de uma distincia sem isolamento mas também sem confusio, (Bem diferente é 0 sono dos amantes que acabam de se amar: sono esgotado, mistura de peles, comunhio estranha e breve de uma sincope) De um certo modo, a intimidade retrai seu sopro ¢ sua perturbacio para deixar repousar o casal, pois repouso € o que Ihe pertence mais pro- Priamente. A agitagio dos acasalamentos ¢ desecasalamentos pertence & yer mesmo o quarto énecessério € outros ‘outros lugares ea outros tempos: _— Petturbaria o abandono 20.8020. $ $$} espagos podemsser tomados emprestados owserenr investidos: Comtuda; 35 ‘© quarto recobre com sua abébada a inconsciéncia em que o casal se perde a fim de se subtrair a tudo que ele ndo é: tanto ao mundo publico como aos universos particulares de cada um. O casal éum sono, um sono ¢ uma noite. 1 MONTAND, Yes. Aus marches de polais. Disponivel em: . Aeesso emis out 2083 Corpos estranhos estrangeiros Chama-se “corpo estranho” toda espécie de objeto, peca, pedago ou substincia introduzida de maneira mais ou menos fortuita no interior de um conjunto ou de um meio que, mesmo nao sendo propriamente orga- nico, se considera ao menos homogeneo e dotado de uma regulagao pré- pria A qual o “corpo estranho” ndo se deixa submeter. Na floresta, uma viga de cimento é um corpo estranho, assim como um tamboril de ferro num rio. O exemplo canénico é, no entanto, a espinha ou o pedaco de vidro ingerido acidentalmente ou ainda o instrumento de cirurgia esquecido sob a inciséo costurada, Nesse tltimo caso, a intervencao invasiva - como se diz no jargio médico - vé efetivamente sua finalidade terapéutica tornar-se agressio, sobretudo porque se trata de um descuido que mancha a imagem do médico, a sua especialidade e a sua deontologia. A “pinga” assim esque- ida (€ esse objeto que serve de esterestipo) torna-se duas vezes corpo cestranho: relativamente ao corpo proprio do paciente e ao corpo moral da medicina. O caso mais exemplar é, porém, indubitavelmente, valendo-nos de mais um exemplo médico, o tumor maligno: héspede hostil 20 orga- nismo que pretende minar a célula cancerosa guarda ainda para nés 0 segredo acerca de sua exata proveniéncia. Seré que vem do préprio corpo ou de outro lugar? E mesmo quando a sua proveniéncia externa parece clara, o seu desenvolvimento permanece bastante obscuro (nem todos os famantes desenvolvem um cincer na garganta ou no pulmo). (© “corpo estranho” - tanto por sua expresso como pela imagem imprecisa que induz - rene a violencia de uma intrusio com a maligni- dade sendo de uma intengio, ao menos de uma disposigao. Nela mesma, a intruséo é porém portadora de uma malignidade potencial. De maneira mais ampla, mesmo a penetragio € ou pode tornar-se suspeita: dificilmente a fala-se de penetrar num corpo, num territério ou num pensamento sem que um ar de ameaca ou de agressiio emane dessas palavras. Que o estranho seja ameacador, ou a0 menos inquietante, é uma ques- ‘io antiga, tio antiga como a propria nocio de estranho, que, antes mesmo daquela de humanidade, remonta ao primeiro cla, a primeiro grupo, a toda espécie de vida comum, de afinidade dada ou eletiva e assim a quase toda espécie de vida, pois 56 muito raramente se vive a vida sem que ela se repartilhe em relagdes, correlagdes, linhagens, divisdes e partilhas. A expressio “corpo estranho” faz sentir a consisténcia prépria do estranho. Nao somente a sua diferenga, mas também e sobretudo que essa diferenga € feita por um corpo ~ onde essa palavra adquire todo o seu valor de concretude resistente, de dureza autonoma e até mesmo reduzida a uma suficiéncia que, cedo ou tarde, acaba tendo que se declarar hostil a todo outro corpo. “Corpo” ressoa ao mesmo tempo como “fora” e “forte”: nele se experiencia forca da exterioridade real, tisica, essa cuja tinica medida é a impenetrabilidade material. Um corpo s6 é penetravel segundo uma das duas Iogicas opostas, que sio a da assimilagao e a da destruicio. Ou bem a matéria estranha é assimilada pelo corpo - ingerida, absorvida, metaboli- zada ~ ou bem, ao contrario, fere a integridade do corpo: machucando-o, cortando-0, ou mesmo mutilando-o ou dilacerando-o. (Falar de penetra- io sem designar a ameaga invasiva, militar ou médica, é falar de amor. No amor, hé mistura sem assimilagio ou laceragio. Ha corpo um no outro & ‘um para o outro sem incorporagio ou decorporacio. “Amor” quer dizer mistura de dois que deixa fora de jogo todas as armadilhas do um). No corpo estranho, 0 corpo - em geral ~ assume seu pleno valor de exclusio: um corpo é 0 que se separa. Um corpo é 0 que vis-a-vis do fora nada possui a nao ser relagdes de exterioridade, distingdo ¢ isolamento, quaisquer que sejam as trocas nas quais ele possa ver-se implicado. Tao logo se mostre corpo estranho, ele precisamente em nenhuma rela: ‘sua propriedade nua: esse de fazer corpo consigo mesmo. Um corpo faz corpo: isso nao é uma tautologia. E a atribuigio a0 sujeito de seu atributo essencial. Sea alma éa forma do corpo (de um corpo orgenizado, diz, Aristételes ~ mas devemos sustentar que o inorginico = a res extensa ~ € coessencial ao organico: todo corpo é, inicialmente, mineral, liquido, gasoso, cartilaginoso etc.), entio 0 corpo ¢ igualmente a impene- trabilidade da alma. Ele € a dureza, a consisténcia, a excisio da alma. Uma alma sem excisio, sem protegao, se esvanece inanimada. 2 ‘Assim, estranho é 0 corpo ele mesmo, aquele que se diz ‘proprio’ “meu” corpo. Todo corpo é estranho para 03 outros corpos: ser-estranho é inerente & corporeidade. Antes de qualquer coisa, um corpo se estende e essa extensio 0 subtrai a condigao irreal de ponto. Ele nao pode ser dito sem dimensées. A sua dimensio, no entanto, todas as suas dimensées, constituem assim distanciamentos: os outros corpos devem afastar-se. Esse afastamento abre as condigSes de suas relagdes - de seus contatos, de suas, confrontagées, de seus olhares, escutas, gostos e atraies. ‘Minhas mios se tocam, meu corpo se reconhece ele mesmo vindo a side um fora que ele mesmo é, retomando em si o mundo fora dele, Esse quiasma da carne, tio bem descrito pelo fenomenslogo mais perspicaz do corpo, esse quiasma ~ que uma ressonancia anagramatica das palavras carne (chair) e quiasma (chiasme) nos torna sensivel para o quanto somos trangados ao mundo ~ nao deve nos deixar esquecer que nosso entrelaga- ‘mento com o fora ja sempre nos tornou inteiramente expostos até no mais intimo. 0 “dentro” ndo esté em nenhum lugar a ndo ser entre 0 fora e 0 fora, e esse entre 0 entre de seu antro, de sua caverna de mitos e fantasmas da interioridade ~ nio esté por fim em si mesmo, mas num outro fora. Distanciado de todos os foras sem no entanto jamais retornar ao ponto sem dimensio (pois sua psyche € extensa: 6 0 analista dessa vez que se acredita saber disso), “dlentro” ou “em si” s6 podem se dar fora, fora interno € nao ‘oro interno. © corpo nao é continente de nada, nem sequer de um espirito que nada saberia conter ja que nao possui lugar, dimensio, consisténcia ou nada de uma interioridade propria do corpo, por nio ser outra coisa do que a superficie de miltiplas dobras dae En cra exposta, sem verso ou Feverso, sem mas exposta em todas as partes como as entidades topolégicas que nao admitem a oposigao de um avesso e um direito. Bem no fundo de suas entranhas, entre as fibras de seus masculos e ao longo de seus canais de irrigagao, 0 corpo se expe. Ele expde fora 0 dentro que nao para de sempre escapar para mais longe, para 0 mais fundo do abismo que ele & Ora, essa é bem a verdade do mundo: saido do nada, criado, ou seja, nao produzido, nao formado, nao construido, mas alteragao e espasmo do nihil, o mundo ¢ a explosio e a expansio de uma exposigio e (que pode ser chamada “a verdade” ou ainda “o sentido”). © quiasma do ‘corpo e do mundo expée a exposi¢ao a si mesma - ¢ com ela, a impossibili- dade de reconduzir 0 mundo para um espirito e 0 sentido para uma signifi- cacio, O mundo éa estranheza que néo precedeu a nenhuma familiaridade. Estranhos sio 0s corpos: eles sio feitos do fora, da extraneitas que forma a estranhice do estranho. O fora parece sempre vir depois do den- tro, como um meio, um elemento no seio do qual o dentro preexistiria, desligado, recolhido sobre si. Mas esse recolhimento, esse envolvimento de dentro s6 pode acontecer pelo desprendimento que desenvolve o fora, fora nao se reduz & figura de um “nio-si-mesmo”; forma, a0 contrario, a possibilidade da exposico sem a qual o “si-mesmo” simplesmente nao saberia ser, isto &, ser em relagdo a si mesmo. Evidentemente, fora e dentro sio condicéo um do outro, e o dentro nao pode se definir a nio ser de duas maneiras: ou bem como pura concentra¢do em si - chamada espirito = ou bem como relacio a si, chamada entio alma. Estranho a toda dimen- a toda extensio e a toda forma, o espirito ndo possui porém nenhum fora. £ 0 englobante absoluto ou o autoenvolvente por suprimir de si toda distingdo, até mesmo aquela de avesso e reverso de um envelope. O espi- Tito é nesse sentido o estranho absoluto, a estranhice frente ao mundo de uma negacio radical de toda exterioridade. Extraneus extremus, interior intimo meo ~ 0 estranho igual a intimidade insondavel, o outro enquanto ‘0 mesmo mais que mesmo, a mesmidade fundida no idéntico eo idéntico aldo no abismo de si-mesmo. ‘Também por isso o espirito ~ que tudo permeia com sua extremidade ‘aguda, que tudo atravessa com seu sopro ou chama ¢ se trans-reverbera inicialmente a si mesmo, pura igni¢do, pura combustio, exalagio perdendo {folego, inspiracéo de uma expiracio, espirito que s6 se iguala a morte - se reduz, na concentragio e contrago tiltimas que o amarra, ao desejo irrom- ante de sair de si. Esse desejo torna posstvel a alma. O espirito se lanca como desejo do fora a que a alma responde se for- ‘mando: corpo voltado para fora, expondo 0 desejo. Ora, esse desejo nio pro- cede de outra coisa do que da absoluta estranheza do espirito. No mundo, hi ‘uma estraneidade do mundo. © sentido do mundo ¢ fora do mundo e esse ele mesmo fora de tudo, privado de lugar, um fora sem dentro. Eis por- ‘que 0 espirito - 0 sentido, o sentido enquanto sopro - salta fora da auséncia “4 de lugar, fazendo brilhar 0 ponto que ele é (a sua nulidade essencial), abrindo a dimensio, o espacamento das forgas, o afastamento dos corpos. 4 (Os corpos sio estranhos uns aos outros pela estranhice do espirito que os anima. Essa estraneidade constitui também a sua estranheza: 0s corpos sio nio apenas estranhos. $6 dificilmente é que se reconhecem ¢ se apro- ximam, obrigando-se a superar uma desconfianga, por vezes um temor ou ‘mesmo uma repulsa. Um corpo nao toca facilmente um outro corpo por saber que essa proximidade ameaca a ambos com a possibilidade de explo- direm juntos numa nova chama do desejo do espirito. De um certo modo, todos os corpos se tocam: 0 mundo ¢ tecido pela. contiguidade de todos os corpos, entre os quais o af, 0 som, os sensores ¢ aromas, ¢ todas as outras modulagées da matéria que tecem incessan- temente 0 tecido cerrado ¢ fino do universo. Esse ultimo deve seu nome to somente a unidade desse tecido, unidade da extenséo enlacada em si mesma, unidade que nio se resolve, seja numa unificagio, seja numa uni- formidade, unidade essencialmente afastada de si mesma ¢ exposta a si ‘mesma: corpos entre si, partilhando 0 seu entre, 0 seu com, o seu contra ~ uns contra 0s outros, préximos e misturados sem resolugdo, Nada resolve 0 mundo em espirito: isso néo é nem defeito, nem falta, mas bem 0 contrério, pois o Um nao é 0 bem do qual os seres se ressentiriam ou estariam sepa- rados (pobre l6gica e pobre moral da mutilagio, da castracdo necesséria, da resignagio de se estar separado). © Um ¢ ele mesmo a falta, a falta de si por exceléncia; O Um colapsa na sua solidao, privado de tudo, mesmo de posicio, privado de unidade e de subsisténcia. ‘$6 subsistem os corpos distintos ¢ a variado indefinida, sempre de novo relancada, de sua distingdo. Almas voltadas umas em direcio as outras, a se tocar, lado a lado e face a face, costas contra Costas € vez apés vez. Formas que se rocam e se evitam, que se conformam umas as outras ou se deformam, que se dobram, se esposam e se descolam. Nunca se fun- dindo nem se confundindo, mesmo quando desaparecem ao tomarem a forma de moléculas ou fermentos, sempre reanimando contornos distin- tos, distanciando ou dilatando as manchas ¢ of vestigios, as beiras, as fran- jas, as extremidades trémulas sobre as quais os corpos alcangam o cimulo de sua exposicao: peliculas frégels, ios ou abas, cicatrizes de nascimentos ¢ outras distingbes, emudecimento de substancias. 45 Folha contra folha e grao entre gros, fios d’igua que dividem algumas colinas de terra, gémeos de um mesmo ovo, massas rochosas € vos de abu- tres, mao direita mao esquerda, fumaca refletida no lago, peixe-lanterna de grandes fossas-oceano, quadris requebrados de catadoras de arroz, e vocé, e voce ainda, eeu, vocé que diz. “eu” eeu que diz, “voce” € nossos labios largos ou finos, ¢ as composigdes contrastadas de nossos rostos, assim sem pausa, salientando o desafio da atribuicdo de esséncias individuais. Mais longe ainda, mais singularmente, de um momento a outro, a estranheza de ‘um suposto sujeito, os calos e as rugas, os estigmas, as veias protuberantes, as manchas, as linhas de fuga. As esséncias singulares sio esséncias méveis, voldteis, sempre diferen- tes delas mesmas e diferindo sua essencialidade ~ sem no entanto deixar de prometer uma mesmidade, uma propriedade derradeira, dotada do brilho de uma Ideia: esta peda, esta samambaia, esta mulher. Esta Ideia deve seu brilho a afirmagao sempre retomada da sua neces- sidade segundo 0 espirito ~ mas, como dissemos, 0 espirito nao deixa de fazer brilhar seu desejo do fora: que essa pedra, essa samambaia, essa mulher s6 surjam saindo de si, oferecendo-se aos ventos, aos fogos, aos encontros. Nessa exposi¢io, um corpo nio é somente estranho para os outros. Ele s6 0 é sendo igualmente estranho para si mesmo. Um corpo se estranefa, se estranha. E a estrangeirice e a estranheza para si de uma alma jorrada, expelida, do ndo lugar do espirit. Um corpo é 0 retraimento de si que relaciona um si-mesmo consigo mesmo, expondo-o a0 mundo. Meu corpo nio é somente minha pele virada para 0 fora: ele jé é ele mesmo 0 fora em relacio a mim, o fora em guir da por mim mesmo, por me di me torno gragas a ele. Onde sou em meu pé, em minha mao, em meu sexo, em minha orelha? Onde sou nesse rosto, nesses seus tragos, vestigios, vieses € estremecimentos? Quem sou sobre os contornos dessa boca que diz “eu”? Corpo préprio ~ se diz. para distingui-lo do corpo estranho: mas pré- prio de que propriedade? Ele nao é um atributo de minha substancia, nao 6 uma possessio de meu direito, mesmo que, sob alguns aspectos, eu possa identificé-lo com algum desses papéis. Ele ¢ prdprio por ser eu nao sendo meu. Se fosse meu como um atributo ou uma possessio, eu poderia dele 46 abusar até suprimi-lo, Suprimindo-me entdo a mim mesmo, eu mostraria que cle eve ndo meu. Ele €eu mesmo, sim, ego extraneus. Eu mesmo de fora, eu mesmo fora, enquanto fora de mim, eu-mesmo enquanto divisio de um dentro e um fora, o dentro em si mesmo obscurecido ao ponto de uma concentragio obscura, opaca ¢ abissal em que o espirito se dilacera entre um “eu” abstrato “que deve acompanhar todas as minhas representacies” como exige Kant, sujeito logico-gramatical desprovido de consisténcia, e um “eu” proferido, um ego grande aberto entre dois lébios se arredondando em torno dacoluna de ar que incha, palato ¢ lingua empregando-se para ressoar segundo as fre- quéncias exigidas pela fisica singular de minha lingua. Dentro, portanto, voltado para si mesmo, extravasado, exogistrico, exclamado, expresso € jogado ~ nao “para fora’, mas “enquanto fora’ Sim, eu-fora. Nao “fora de mim” pois, na verdade, dentro nao hi “eu” mas a lacuna onde todo meu corposse recolhe e pressiona para fazer voz ¢ declarar-"se’ se reclamar e chamar, se desejar desejando 0 eco que talvez ‘outros corpos emitirdo em torno dele. Estranho estrangeiro para si mesmo em seu apelo de si mesmo; sendo, ele nao poderia chamar-se, ele nio pode ria exprimir em toda sua extensio 0 pedido de encontrar esse estranho estrangeiro. 6 Fazendo corpo, ele se estranh - ele, a ponta do espirito. Ele toma forma, toma alma, se anima estranhedo para si mesmo. Ou melhor: 0 que o anima é essa estrangeirice, essa estrangeirice que lhe sobrevém do fundo de sa alma, Sem ela, ee ficaria sem alma, espirito puro explodido em pedacos de 05508, em fibras, humores, espumas. Corpo em maré alta e baixa, fuxo ¢ reflux, cavidade e vazante, mar pois de uma profundi rior primeira divisao celular desse corpo mesmo, anterior @ toda multipli- cago dos corpos a partir do espesso nihil O estranho que o ocupa ¢ pressiona sustenta suas palmas e labios, sua fronte e pupilas, todos os nascimentos todas as quedas de seus membros, seus genes ¢ scus agrados, seus jeitos, suas crinas, suas beiras e arestas, seus angulos e suas unhas. Fle avanca e se propée, ele se aventura rumo as luzes e aos sensores, rumo aos grios, As rugosidades, aos tecidos firmes € flécidos, ele se arrisca nas estridénsias e nos murmiirios, nos golpes, nas saparecido, surgido a7 vibragdes. Ele se incorpora, corpo cavernoso visitado pelas sombras ¢ se torna ele mesmo odor de rosa ou la de tapete, rangido de giz, ravinas de rnuvem ou de lava. Ele entdo se retira e se descasca, esboco imaterial cujas ‘guas embalam um reflexo. Ele volta para o mar e para a areia, incerto de seus contornos distendidos pelo esforgo ou pelo tédio, deslizando para fora de si mesmo como de uma pele morta. ‘Sempre mais estranho e estrangeiro para si mesmo, tatuado pela idade pelas paixdes, dobrado e manchado pelo remexer de seus gostos, desgos- tos, impetos e recusas toda essa maquinaria de atragGes ¢ retragdes que 0 expée, galéxia entre galaxias, na explosio ou na implosio de forgas que 0 retinem ¢ o agitam - ele se conhece enfim por aquilo que é: visitante vindo de muitos longes, réptil e rangedor, péssaro, inseto enxertado no embriéo nervoso, subitamente surgido de um solavanco do nada. ‘Seu solavanco, seu espasmo, € ele mesmo: nada além de um sobressalto ‘amais num abrago de dois corpos, tornando-se corpo do entre que abre um. novo espaco, um novo fora dele para os outros e inicialmente dele para ele ‘mesmo, nada além de um afastamento a mais, nada além de um estranha- ‘mento a mais entre todos os corpos, todos jogados estranhos estrangeiros no mundo e neles mesmo, multitude febrile cintilacéo de nossas poeiras. 7 Corpo que nada é nadadeira, barbatana e escama brilhando, fazendo-se ccorrente e massa liquide, fazendo-se alga e claridade esverdeada. Corpo que come se torna sabor e sumo, um mastigado de fibras ¢ temperos, sucos espremidos, expansio saborosa. Corpo que frui se exaspera em seu ‘espasmo, transformando-se em gemido rijo, é corpo que parte num escor- rere num romper. A cada vez 0 corpo é outro e um outro do que o mesmo que em todos os seus avatares, em todas as suas metamorfoses divinas plas quais ele se visita asi mesmo, anjo ou deménio vindo dos longes mais distantes. Corpo é vinda a si do desconhecido, irrupgio e intrusio de um ‘outro corpo, ingestdes, intussuscepcdes, encarnagées, reconhecimentos gratidées, repulsas e rejeigdes. Corpo é um grande batimento de corpos estranhos, inspirados ¢ expirados, arquejados, engolidos e cuspidos. Ele é cinturéo apertado ou punho aberto, massa escondida de sono, palma contra a fronte, eco de sua voz na sua cabega, embriaguez, largura ¢ transpiragdo, infima escoriacdo, endurecimentos e cdimbras, irritagdes, ‘genes, extra-sistoles, espirros, toda uma maquinaria demasiado sensivel, 8 Tr demasiado susceptivel ao que nao € outra coisa do que novamente 0 excesso de todas as coisas ~ e de si mesmo - sobre o simples entretenimento de sua ‘miquina. $6 que nao hé maquina. O que hd é desejo e espera, temor efome, necessidade, anelo, impeto, abatimento. $6 hé desmembramentos ¢ cons- “trigbes entre as forgas que puxam e pressionam de todos os lados, de todas as extremidades da pele e do mundo. Corpo sé é ele mesmo na sua integridade quando dissecado, anatomi- zado, mas nao quando animado, visitado, inspirado, revirado, acariciado. ‘Assim ele é pensamento, desejo, impeto, virtude, inclinacio e declinagao. £ oriente e ocidente, zénite e nadir, partilha e cruzamento, regides do ar, estranho por acabar no mundo do qual ele carrega o segredo - cada corpo redobrado, dilatado no segredo do mundo. 8 Corpo nada mais é do que a estranheza de ser. Corpo s6 ¢ corpo desde o desejo que vai rumo a ele ~ sem 0 qual ele ndo passa de contragao local de forcas, jé que a sua forma rapidamente lhe escapa. A forma de um corpo, essa forma que ele é, responde a um desejo, a uma espera, a uma necessi- dade ou a uma inclinagéo: forma do fruto que quero comer, da mio que espero segurar. ‘Acstranheza de ser sustenta-se portanto nesse desejo. Nada éanndo ser pelo desejo que seja. Esse desejo nao vem de parte alguma, ou vem do ser ele mesmo. Melhor ainda, ele vern de ser, ele € de ser, ele € ser. Sentido do ser, sentido de ser: desejar ser, ser desejo de ser. Estrangeiro, portanto, pois o desejo se estranha a si. Ontologia ou criagio foram os ter- mos cléssicos para dizer isso. Nés o diremos diferentemente, mas seme- Ihantemente, com nossos corpos estrangeiros. 9 1Nés o diremos e sempre o dissemos ainda de outra maneira: 0 desejo de ser traz também o nome de “arte”. Esse nome tardio, moderno, designa no singular a identidade a bem dizer nao situdvel de um conjunto de pré- ticas e/ou disposig6es que, se chamava, ainda ha néo muito tempo atrés, “belas-artes” - denominacio na qual a estranheza se coloca duplamente em jogo. Por um lado, 0 “belo” efetivamente nao designa outra coisa além da qualidade de uma estranheza na inteira ordem das causas ¢ fins, das razées 49. e intengbes, das fungdes e das operagées, dos organismos ¢ mecanismos, O “belo” sempre nomeia a perturbagao de um dado, a intrusio de um excesso, tum desconforto e uma inconformidade, ¢ isso em qualquer que seja a parte de harmonia, exatidio e felicidade do toque nele atuante, Por outro lado, as “artes” ndo designam outra coisa sendo as condutas técnicas (techné, ars, Kunst), modulam, nessas trés linguas, o motivo de uma habilidade em esca- par de um perigo, em resolver uma dificuldade, um problema surgido de ‘uma falta de meios, uma fungio disponivel, uma programagio escrita. As -spondem a fins estranhos aos que nela comportam o que chama- atureza’. E assim que Aristételes diz que “a arte imita a natureza”: téenicas mos de" ‘arte substitui a natureza para fazer como ela ld onde ela nao faz. nada, Ora, a natureza nao faz nada para responder ao desejo de ser. F por definigao @ ordem de ser sem desejo: do ser que no se refere a si mesmo como a uma estranheza Cabe sem diivida precisar que todo ser eo ser como tal que se refere asi como a uma estranheza, pois sem isso nao seria possivel compreender como a “natureza” pode ser tao prédiga em formas supérfluas, em finalida- des inexplicaveis, a comecar pela finalidade do universo, etampouco como 4 natureza produz nos animais superiores tanto uma inferioridade cres- cente de solucGes espontineas, de recursos instintivos, como 0 contrério de ‘uma complexidade crescente em finalidades improvveis, em fragilidade e em desnudamentos que o animal humano expée no grau mais extremo. E bem verdade, porém, que a “natureza” detém a poténcia da desnaturacio, 0 que significa que ela se aliena ou se estranha a si mesma depois do mistério de seu aparecer acidental. ‘A desnaturagao fornece o principio das técnicas ~ ¢ assim o principio que faz com que nao possa haver “técnica” como imaginamos que haveria “natureza’: Nao pode haver uma técnica unitéria capaz de propiciar ao ser © meio de seu proprio ser. A técnica é por definigao multipla ¢ inacabvel. iG ademiais melos para fins Sempr recuados, relangados e remultiplicados. Dentre as técnicas, hd as que se encarregam da desnaturacao como tal, com ela tanto da disseminagao de fins como da estranheza sem fundo do desejo de ser. Esse desejo ¢ de fato estranho, pois nao deseja nada, nenhum objeto; é estranho também por ndo desejar nada a nao ser 0 que conhece, no sendo nem representagdo nem antecipagao de espécie alguma - a nao ser quando se pensa que, no final das contas, esse desejo s6 deseja desejar, ‘0 que significa dizer que deseja sua propria estranheza, 50 CChamamos essas técnicas de arte. Elas consistem em dar forma e valor a essa estranheza do desejo e a esse desejo do estranho estrangeiro. Um homem coloca sua mao sobre uma parede de rocha e sopra ao seu redor tum pé colorido; ele retira sua mao e contempla a impressao clara e definida pelo pé de ocre ou de carvio. Ou entio ele levanta um pé € bate no chao de modo a conferir a0 seu corpo nao o pulso da marcha mas 0 impulso de um suspenso para além do solo, de modo que uma linha envolta e desen- volta por si mesma aparece como nuvem ou cip6. Essa danca e essa imagem ‘carregam a estranheza de um corpo que se sabe - ou que se surpreende — cestranho estrangeiro para si mesmo. Com isso a “arte” néo doma ou reduz.a estranheza desse corpo. Bem a0 contrario: ela a expde ¢ escava, a acentua ¢ exagera segundo a necessidade, ‘exasperando-a e capturando-a somente para melhor deixé-la escapar. Para dizer tudo, ela the abre o espaco de uma expansio ilimitada. {2 Exe texto fol destinado primeiramente para acompanar uma apresentaco dos raballbos — Instaligdes, performances de Philipp Warnell st Corpo morto Em francés chama-se “corpo morto” (ou com um trago de unido cor- po-morto) uma massa pesada - metal, cimento, pecra ~ que repousa no fando do mar ligada a um cabo ao qual se pode amarrar um barco (quando co barco parte além-mar, o cabo fica ligado a uma boi). Diferentemente de ‘uma ancora, ele nio pode deslizar ou derrapar sobre o fundo ¢ nem ¢ feito para ser levado de volta a bordo. Corpo-morto: massa pesada, depositada, inerte, ou seja, inapta, indbil "ars ~ sem arte, sem saber-fazer, sem procedimento. Corpo que ndo ‘mais capaz de nada, nem mesmo de ser 0 corpo que ainda é que jécomesa a abandonar e dele se dissociar. Corpo que se desnuda e separa de si mesmo. Nao é mais um corpo, o que significa dizer, uma coisa reunida, com- pacta, unificada em sua massa. Uma poeira ndo é um corpo mas é corpo ‘um gro dessa poeira. Um escoamento nio é um corpo mas é corpo cada gota do liquido que se espalha. ‘Terra que retorna para a terra, aluvido imundo, enfermo ¢ miserével que retorna A sua origem térrea, recebendo dai seu nome de cadaver, nome que terd de perder para tornar-se coisa sem nome, como disse Tertuliano € que Bossuet traduziu como esse ndo sei o qué sem nome em nenhuma lingua. ‘Corpo morto diante de mim: mais fixo que imével, manifestando com ‘uma forga terrivel uma recusa de mexer, uma rejeicao de todo signo. Nao, ele nao me vé e nem me escuta e no obstante eu 0 vejo, a ele, eu a vejo, a la: sim eu reconheco 0 corpo do morto, mas 0 reconheso como morto € como tal nio poderia reconhecé-lo. Eu nio poderia reconhect-lo porque nem mesmo 0 conhego € nunca © conheci. Nunca teve essa expresso, nunca inteiramente, identicamente essa expresso, Sempre se podia reconhecer sua presenca deslizando fora de seu sono, mas eis que ele no dorme mais, ela ndo dorme mais. Nao éum ‘sono, mesmo que eterno, por ser 0 comeco de seu deslocamento. 33 i Bumicomego retendado, um pouco difeiide primélro;por uin retardo Pele essencial queanatureza comega a desorganizar e, depois, pelos artificios dos maquia- dores de eadiveres, dos artesdes de muimias temporarias. Cadéver: vem de cadere, cair; 0 cadaver & aquele que caiu e néo mais haverd de se levantar. £ 0 inlevantavel. A palavra “cadéver” € dificil, nao a suportamos. E uma palavra para os que trabalham com enterros, para os artistas do que em francés (e em portugués) se chama pompas fiinebres, ou seja, ceriménias, solenidades em torno dos mortos. “Lui faire la peau” “querer matar alguém” ou, por metéfora, “executar alguém’, “redu: uma locugio coloquial do francés que significa (© nome “cadaver” nio dura. O corpo cai ainda mais embaixo: ele nao ran tem mais nome, torna-se carne ptitrida mais terra, pocira, cinza, resolugio em particulas, © nome no dura ¢ com ele nem mesmo toda a linguagem. Nao se {to desi, Para isso a pele precisa dar um né e atar sobre sia ligacio rompida pode mais falar. Nao é um drama, pois nao hé mais nada a dizer. Mas é um do cordao umbilical, Esse cordao prolongava a pele na massa nutridora da drama de nao se ter mais nada a dizer. nada’; “ajustar as contas". A pele perfurada, esburacada por uma arma, deixa avida ir embora. A pele intacta guarda a vida, mantendo-a acumulada den- placenta, sem, no entanto, confundir-se com o corpo nutridor da mae. Ele Um corpo morto, é nada a dizer. the penetrava por mintisculas ramificagées embora formado por um érgio. Nada a dizer “independente na interdependéncia’, segundo uma formulagio que jé hé Nao obstante se fala com ele. Se diz: salve, adeus, toca-se e abraga-se slgum tempo vem se arriscando na politica. A placenta abandona tanto a essa pele dura¢ fria que nao é mais uma pele mas um simulacro gelado. Ou mic como a crianga, mas néo posal existincia préprie, desparecendo tio entao nada se diz. quando se toca. Ou bem nio se toca, nio se ousa, tem-se Jogo a sua fungao se veja cumprida (em muitos mamiferos ela 6 comida medo. pela mée, retomada em sua prépria substincia). Todas as antigas estérias dos mortos que se levantam esto em vias ‘O umbigo forma a assinatura ou o selo da propiagdo:* dai em diante, de se perder. Os fantasmas dos mortos vivos, os fantasmas, a férmula juri- di-se um corpo préprio, inteiramente distinto - ¢ que ademais jamais foi dica 0 morto se apodera do vivo que evoca um cadaver erguido fora de seu ‘sem distingdo, tendo se constituido de uma s6 vez, segundo uma autono- timulo, agarrando a forca um passante ou uma carpideira, Nao se acre mis. A ligaglo em né de dois cromossomos refer exva ligasio na pele. Na nisso, sabe-se bem que ele partiu, que ela desapareceu verdade, é « mesma ligegdo em né: 0 umbigo parece um né, mas, na rea- Chora-se, sim. As lagrimas vm como 0 nico modo de se voltar para lidade, é uma sutura, uma solda do tipo que chamamos “cicatriz’. E um os mortos. Um mada de se misturar ans senis corpas em vias de liquefacao, tecido fibroso que se prolonga dentro do corpo por varios ligamentos, ves- que jé se mostram vitreos e cerosos, dessa consisténcia fria cuja rigidez vai tigios de canais que passavam pelo cordao umbilical se prostrar e espalhar, descorada, esmaccida, exangue, livid a, nf N6-de:sip-cicatriz-do-corte>em-sua-complementariedade-e-distingio=———= igor mortis, pallor mortis: toda a morte esté ali, figura dura, esma essas duas mogGes, essas duas pulsdes ¢ essas das emocées ja sempre foram ida, chapada sobre todos aqueles que ela desfigura precedentes Ai pele ae feche sobre allimesma, lnbereversis ec curio acd do outro, visivel de fora e atada ao dentro. Mais exatamente: é aqui onde fora e dentro de fato deixam de se repartir para se compartilhar. Hi duas regides distintas a0 mesmo tempo ¢ elas nao estdo separadas simplesmente almente significa “Ihe fazer a ple 42 Otermo usado por Naney &.0 nealogleme propiation, que traduimnot por propingSo. sa 55 ‘como lugares num espaco, mas se definem uma em relagio a outra; 0 que se fecha sob a cicratriz exclui o resto e assim se define como uma relagio a si, exatamente como o faz toda célula viva; mas essa relagio a siesté ela mesma implicada em si, enquanto relaglo ao outro, ao fora. A pele forma a combi- ago de ambos, o intrincamento de um ao outro ou bem o fato deo “em si” encontrar-se ele mesmo “dentro” de um fora de si para ser “si mesmo” Assim, “faire la peau’, literalmente “fazer a pele’, pode significar “mater” (também se diz “querer tirar a pele de alguém”). “Fazer” adquire ‘um sentido violento e antifréstico: apossar-se de ¢ desfazer, estragar, des- truir a pele enquanto invélucro e prote¢io do outro, enquanto sua demar- cago, Abolira fronteira, abrir o que nao é propriamente uma abertura mas uma ferida, uma chaga, uma fenda, um talho ou uma brecha. © sangue comeca logo a escorrer, circulando na prépria pele, justa- mente sob a iltima camada exposta ao fora. O sangue que jorra de uma ferida traz.em latim um nome especifico, cruor, que o distingue de sanguis, co sangue que circula dentro do corpo. Cruor designava inicialmente a carne sangrando, o que em francés se chama viande e que se distingue de “carne” (Chair) (como em inglés ha meat e flesh). A viande esta morta e pode ser ‘comida crua (dizemos também “vermelha”) ou cozida (a palavra viande vem de “vivenda’; 0 que serve para viver). A carne (chair) pode servir para ‘qualificar a viande (“uma carne macia"), mas a palavra designa primeira- mente a integralidade e integridade do corpo vivo, segundo a tradicéo latina (caro) do hebreu basar (que significa, em primeiro lugar, a substancia mole do corpo es6 depois o corpo das criaturas enquanto tais, na sua fragilidade). O ESFOLADO Apeleesté frequentemente separada da carne (chair) morta que se torna viande. Arrancada, ela se torna pelaria, ou seja, couro, as vezes guarnido de seu forro. O que aparece sob a pele traz em termos anatémicos o nome de “escorchado” (écorché), uma palavra ligada a “folha de cortica” (écorce): arte exterior e separdvel de uma drvore (designamos como cortex acamada superior do cérebro). O inglés técnico retoma o termo “escorchado” mas ligando-o a0 verbo to skin, “pelar’, onde a pele se torna ela mesma a acéo de separar a pele ou bem de dépiauter, despelar como se diz. comumente em frances - assim como o verbo peler, tirar a pele de uma fruta, verbo ligado ao francés antigo pel, pele (do latim pellis), mas que na verdade provém de 56 “poi, pelo (latim pilus, que € uma outra palavra). A pele se torna aqui ela mesma ago de se levantar e desprender (como ademais no inglés to peel). A pele possui portanto uma virtualidade de desprendimento, uma capacidade de se levantar e separar da carne (chair) que ela envolve. Embore oescorchado conserve a forma inteira do corpo e todas as caracteristicas de sua atividade viva, sabemos que ele nao passa de uma espécie de monstro, robé ou mutante inquietante e repulsivo por exibir o que nao foi feito para ser exibido, Exibe o que nao somente se mantém escondido sob a pele mas que sé se esconde porque toda essa maquinaria deve animar a pele sob qual ela se movimenta, palpita, respira e metaboliza. O desprendimento tendencial da pele responde ao seu ser essencial, quendo é simplesmente o de envolver mas de desenvolver 0 que ela envolve: de expé-lo, de colocé-lo para fora e para 0 mundo. O esfolado mitico se chama Marsias, & um sétiro que Apolo esfola como punicdo por ter que- rido rivalizar com ele. Apolo toca a lira; Marsias, a flauta. Ele se apropriou da flauta que Afrodite abandonou porque, ao tocé-la, as suas bochechas se deformavam. Nao se importando com as bochechas inchadas, toca de maneira admirdvel. Segundo certas vers6es do mito, sua pele escorchads continua a ressoar ao menos nas muisicas que ndo provém da lira. ( instrumento de Apolo esté afinado por valores precisos ¢ harmo- niosos; a flauta é apaixonada e vibra sob 0 sopro, como a vor, os ventos € ¢ tempestade: por isso, Plato condena a flauta em beneficio da lira. A flaute €ademais tocada nos banquetes pelas mulheres. Quem renunciow a inflar as suas bochechas foi a Afrodite urdnica. A pandémica ea atbnica decerto dividiram seu instrumento com o sitiro? ‘Apele desenvolveo sopro, o eld, a pulsio ea vibragio do corpo. Seaalma 4a forma de um corpo vivo, entio a pele se conforma a essa forma: com ela, ‘empalidece e enrubesce, se faz. doce ou dspera, estremece e arrepia, modela suas inclinagées, elevacdes e dobras. A pele se estende ¢ distende, faz plis- sado e se faz fibrosa. A pele se modifica, modula sua espessura ¢ sua leveza, tende para o couro ou para o tegumento, para a pelicula (pequena pele) ou para a membrana (invélucro de um membro ou de uma parte do corpo). Ela se umedece e se invagina, torna-se mucosa, labios, ¢ insensivelmente se 5) Stéphane Dumas, um artista e térico da pele na arte, omenta 0 quadro de Ribeira Apols ‘efolando Marsar, na sua anise do mito de Marsias. CE. chitp//www.stephanedumss.ned {index phpToption=com_content&view=arileBld=s88dtemid=79>. sr transforma em garganta e tripa, em via de acesso ou de saida:o esfolado nela se desenvolve pelo seu invélucro, suas narinas respiram, seus poros trans- piram, seus esfincteres se fecham e se abrem, suas palpebras desvelam ou yelam o mundo, as cartilagens das orelhas vibram, os sexos se incham, reve- Jando uma carne (chair) intima, inesfolada, sem crueldade na crueza suave A FLOR DA PELE A flor designa a extremidade da planta e de li toma em latim 0 sen- tido de “parte mais fine’, da farinha, do sal ou do cobre. A flor é espuma, floco, pé ou perfume, efliivio da superficie. leve, terna, pouco palpivel, ao mesmo tempo que oferece o aspecto mais delicado, mais refinado, sutil ¢ sensivel da substéncia da qual ela apresenta a face ou efetua a aparicio. Na flor, chega também a cor, a intensidade da substancia jorrando fora de si. A flor € excitagao; apelo para tora, apelo do tora “A flor da pele” € 0 tocar de leve: a passagem para o mais perto, 0 con- tato mais leve possivel sem que se fique & distancia. Tocando sem apoiar. Tocando menos a pele do que a sua flor: a sua penugem ou até ela mesma, enquanto 0 que est voltado para fora, o filme infimo de sua face exposta, desprovida de espessura ¢ nao obstante signo de uma profundidade infi- nita. Signo ou sinal, pressigio, promessa. A pele promete nunca parar de se estender, nem de se oferecer, nem de se aprofundar. Ela assegura o que © corpo é, ld, inteiramente nela, que ela mesma é esse corpo e, por conse- quéncia, que é sua alma. O corpo floresce, desabrocha na sua pele,a pele éa sua eclosio. Bo que se chama alma ou vida, mistério, presenca, jeito. E também a sua tez, 0 seu semblante, os seus modos, o seu caréter, o seu pensamento, a sua verdade. A flor anuncia 0 fruto, que é a resposta a0 seu apelo, o inchamento de uma carne nova sob uma pele nova, um: a lesigna primeiro a tez da pele) € a licor saido da carne. As associagdes da pele e dos frutos sao frequentes: uma pele de péssego, bochechas (joues) como maga, “teus seios so as uvas da minha vinha’, toda a magia das mascaras de morango, kiwi, abacate ou limio... A pele anuncia e promete fruigao, esse termo desaparecido, que hoje reaparece em inglés e que foi um equivalente de gozar e desfrutar (jouissance).Como esse liltimo, a fruigdo se empresta a ambivaléncia ~ ou simplesmente ao ambitus encia de uw sabor e de um suco, 38 em sentido musical ~ que se joga (joue) entre a posse € 0 desfrute.+ Ora, essa ambivaléncia e esse ambitus também se dio na pele: que se pega, se agarra, e desde que a ela se abandone, dela desfruta. A caricia tangencia e nivela a sua réplica, 0 frémito da pele que res- pondee que vem ao encontro. O simples contato de pele implica jé o acordo de uma proximidade ou a0 menos o asseguramento de uma boa vontade: shake hand, abrazzo, saudagao carinhosa ou honji (o rogar de nariz entre ‘0s maoris), sem excluir as saudacbes onde os corpos nao se tocam entre mas cada um a si mesmo (mo no coracao, inelinagao para o sol). Mi 1 caricia abre mais menos que 0 contato, ela se move comove quando recebida. Por isso, ela mexe e repete seu movimento. Ela toca no sentido em que abala, perturba, agita ou sacode, excita e pacifica tanto a si mesma como a outra pele. TOCAR TABU Nenhum tabu é mais difundido do que o de tocar, desde as miltiplas regras e do complexo de cédigos rituais (tocar os mortos, tocar objetos sagrados, partes do corpo, vestimentas etc.) até as atuais regras de contato (por exemplo, o simples contato fortuito de maos numa multidao). Em sentido amplo, pode-se mesmo dizer que “tabu” significa “proibido tocar” Nao é por acaso que Marcel Duchamp chamou “favor tocar” a imagem em relevo de um seio fixado sobre a capa de um catélogo de exposigios Tocar implica sempre mais e menos do que est evocado na palavra “contato”, Mais? Porque o contato se reduz a estabelecer uma relagio ~ 0 que explica o possivel uso técnico € funcional do termo ~ a0 passo que © tocar esté comprometido com uma intimidade ou ao menos sempre a evoca. Menos, porém, a medida que o contato assegura uma transmissio determinado: ele aproxima, tenta, tateia ou apalpa. Este verbo significa a0 mesmo tempo “tentar pelo toque” e “tocar delicadamente’, ao passo que “tatear” significa o tocar hesitante de alguém que tenta se orientar sem ver. 3 Nangy usa aqui o “imbito" musial do francs joue, Bochecha ou magi do rosto, que reper~ cute tanto em jour, jouieeance, desire, delete, goz0 como em jouer, que signifies ogar Wn Jogo e tocar urs instrument 5 Imagem disponivel em: cep /nga gowat/Fxhibition/soficclptare/Default.cim@TRNe840 Fe © tocar mergulha na obscuridade. Sob meus dedos, a claridade do corpo do outro se transforma na noite que se cria entre nossas duas peles. Essa noite nos é comum, ela nos une € separa ao mesmo tempo. Tocar jamais abole a distancia entre nés, mas a metamorfoseia em aproximagio, ‘Nao em contato mas em uma vinda. Nao em presenca mas em aparicio. ‘Nio em “ser af” mas em modo de “passar por af, de visitar e frequentar ~ palavra estranha esse verbo francés (espanhol, italiano, portugués, as vezes chegando ao ingles), que deslocou o valor de “grande nimero’, multidio, assembleia para aquele de “relagoes repetidas, assiduas” para acabar desi nando (numa lingua um pouco fora de uso) a aproximagio amorosa (entre “fazer a corte” e “sair com’, como se diz hoje em dia). © tocar frequenta.a pele: dela se aproxima, a visita e observa ~ tanto no sentido de “olhar, examinar” como no de “respeitar, se conformar”: O tocar € um olhar que se conforma plenamente a seu objeto. Assim ele o retira da objetividade do visivel, ndo mais o colocando diante de si mas contra si, A pele contra a pele a esposa, a ela se liga, se acorda as suas linhas, as suas modelagens, aos pensamentos leves, voléteis, cujos perfumes flutuam sobre ela. O tabu esté af, no delicado intervalo das peles, no entre-dois onde no cessa de vibrar a frequéncia mais alta do intimo, desse superlativo do interior, eisso de tal modo que nada pode lhe exceder a no ser um compa- rativo por definigo impossivel: interior intimo meo, o Deus de Agostinho, formula que sé pode ter sido encontrada numa caricia. O tabu pronuncia: nao me toque, toca em mim, para bem longe de mim. Assim escreve Proust: Meus olhares pousaram sobre a sua pele ¢ meus labios a rigor podiam acre- ditar que eles haviam seguido os meus olhares. Mas nio era somente 0 seu corpo que eu queria alcangar, era também a pessoa que nele vivia e com a qual havia uma espécle de caricia, que é um modo de chamar-Ihe a atengio, ou uma espécie de penetragdo, o despertar de uma idéia* ZONAS © corpo inteiro - quer dizer, a pela inteira ~ € suscetivel, observa Freud, de converter qualquer lugar de sua superficie em zona erégena. ‘Quer dizer, em zona cuja sensibilidade se abre a0 desejo sexual. Esse desejo, (5 PROUST, Marcel A la recherche du temps perdu, “A Tombre des jeunes files en leurs Pars: Pade v1.71. 60 com efeito, € um desejo que leva o corpo inteiro , de modo singular, 0 corpo enquanto pele, ou seja, um corpo distanciado de seus Srgios € de suas funcdes (mesmo que a funcio reprodutora esteja presente, ela nao é necessariamente buscada a cada vez ~ e talvez por isso nos indica que a reproducio é outra coisa e mais do que uma funcio). Um corpo além das fungdes, um corpo que no é mais para 0 mundo da percepgao e da ago mas que é uma pele para o mundo de uma outra pele, ‘Uma zona néo é um lugar, na verdade. Nem uma regido, nem uma praca, nem um terreno. Seria mais uma deterritorializagéo no préprio ter- ritério, ou ainda um territério enquanto divisio e separacio de si mesmo. A palavra grega zoné se formou no ato de cingir-se # a cintura de muitas vestimentas antigas servia para fazer variar a altura da veste presa acima dela e cujas quedas produziam diversos efeitos de plissado e drapeado. Assim como zonear significa, na gitia francesa contempordnea, “it levando sem meta” e se refere & zona como extensio suburbana mal determinada e mal frequentada, também a pele zoneada é a pele erotizada, nao referida as fangbes dérmicas ou dermatol6gicas, mas a finalidade sem fim do sexo, seja de goz0 ou de reproducio, pois a reproducao nfo comporta um fim a nao ser a chegada de um ser que é ele mesmo abertura para além de todo fim, e é por isso que a ele se associa 0 gozo, sendo o seu préprio fim sem fim. ‘Quando 0 goz0 é 0 de uma concepsio, é 0 gozo do ser por vir, primeiro da sua chegada e depois de seu gozo proprio, que se acha aberto. ‘A zona representa uma distingéo, uma diferenciagéo néo apenas segundo a extensio mas segundo a finalidade e a construcéo do corpo. E ‘uma forma de deconstrucio, ou seja, um acesso & estrugo” - ao amontoa- mento cadtico mais do que a um agrupamento coerente. Cada zona goza por si mesma e segundo uma distribuicdo propria a cada uma. Quando se chega as zonas ditas “genitais’, produz-se um retorno a fungio e ao érgio, a0 mesmo tempo que a excitacdo cresce ¢ se espalha segundo as modifi- cages da pele pelos tecidos chamados “muco-cutineos” na poesia ana- témica. Mesmo permanecendo cutinea ou dérmica, a zona jé empenha a pele numa variagdo do seu modo ou do seu regime. Ela jé no envolve ais (aspecto cutaneo, 0 grego kutos tendo dado cyto -, prefixo celular) € 7 Bstrugio € um termo usado por Nancy para exprimir @ amontomento cabtco da vida se fazendo, s0 que apenas se pode aceder mediante uma “deconstucae" O termo provém do lau stu, sruee, que significa lteralmente“empilhar” e «pari do qual viras palavras se formaram como construeto, destruclo,instrucio e também deconstrurio. (NT) a ji nio protege mais (aspecto dérmico, derma tendo sido primeiro a pele (0 outro esta mergulhado no mais profundo e todo inserido, instilado, desprendida, couro ou pelicula): ela desdobra mais do que expoe. Fala-se espalhado na pele, nela incorporado, vibrante e vivo com ela, como ela. O de “reagio epidérmica” num sentido tanto psicol6gico como fisiolégico, outro penetra como um sonho: sem mediacdo, sem transi¢lo nem tradu- pre io. Sem atraso, instantaneamente, agarrado como um presente que nio do que em outra parte, duas variag5es do mesmo ser. A epiderme é a pele passa, nessa co-presenga que € 0 proprio e a forga dos sonhos. Como as se clevando acima da superficie, se ericando ou se colorindo, gemendo ou cenas e as figuras sonhadas, os seres que temos na pele ~ coisas, plantas, secontraindo, £ onde a pele entra sm mimesis e em methexis: reproduzindo animais, pessoas — so fantasmas, espfritos que nos frequentam e nos vi 9s signos (“arrepio’, por exemplo) e fazendo parte do tumulto. tam, que nos ocupam, nos atormentam, nos possuem. amente porque, em matéria de pele, os dois registros sao, talvez mais Azona constitui uma possibilidade de turbuléncias. E um mar agitado Nao somente objetas an sujeitos que desejamas, nfo somente for- pelos ventos, uma terra pisada porbailarinos, uma nuvem densa, contrafda | ‘mas ou substincias surpreendentes que nos tiram a respiragio ou excitam ‘ou expandida, um vo, um batimento, uma palpitacio. Téo logo se veem rnossos fantasmas, mas também detalhes, futilidades, um grio de café ou abracadas, as peles se desprendem para o mais longe possivel de sua natu- | tum trapo podem entrar na pele, Ihe impor seus aspectos, seus jeitos. Sem reza de invélucto € fronteira: elas assumem sobretudo 0 jeito de massas, notar, nos entram na pele asperezas ou branduras, sacudidas, estrias, furna- colas ou argamassas, ou ainda de fitas, lagos, tras, faixas e cipds, de pendées ‘548, pulsbes € tumultos. A pele apalpa, maneja, recolhe e trata tudo o que também, de véus desdobrados e das cordagens que os deixam cair. As peles se desvanecem ¢ se amontoam, se lustram, se melindram e se molham, 1Nas zonas se fazem cécegas, 2s zonas so titiladas, sio levadas a estre ‘vemos, ouvimos e respiramos. * “O retorno imediato do organismo exterior a si mesmo é a pele, na ‘qual esse organismo se torna uma relagio consigo mesmo?" escreve Hegel, que considera 2 pele como a primeira diferenciagio de tecidos, da qual ‘mecer, a vibrar, a rir também e a se irritar, agitadas como se por inflama {g6es, provocadas como por frutos verdes, impacientes, febris. Sao as peles derivam todas as outras diferenciagSes no interior do organismo. EogSait sioalisiee sora peisena’-chanuarns eoerein’ Ae peleqietrscain (© gue temot:na pele no €0 que clarecobre mar'o que ela & ofteqa: € misturam os suores, os humores, as espumas. Peles excitadas, excedidas, ‘mento cuja textura e gro fazem o que nds somos, fendmenos exfoliados, exasperadas, contentadas: existéncias exorbitadas, nudezes, coisas em si cuja natureza profunda é aparecer e se expor por todos os seus poros, expirar e inspirar, por toda a zona estendida de suas peles, os modos Seon Infisttamente macie,eoliosepenavels de cus sere, Eainda Proust que escreve que os sonhos “realizam o que vulgarmente Hate: se chama colocar uma mulher soba pele”;* Edith Piaf cantava “te tenho na pele’ e Virginia Kell got youeunder my akin ssa mncira de dizer difere IAs pale doatdets meme cn Geptoeecrzal inn enables alee icgucla ose oz os gues cxkca “ha pla asurs percueaeat oct dan pei dase dicen ing ao oat ‘ede um papel. “Ter na pele” signifca como em Virginia Bruce: mentos que a diferenga sexual se faga ainda menos diferente. Existe uma Theo got you deep to the heart of mee porosidade sexual, um jogo de trocas indefinidas entre as superficies, as So deep in my heart, you're really a part of me. é si tograma do filme de Gilles Martinerie, Le Diable dans la peau (201). Disponivel em: [Tenho vocé bem fando no mes coracka 9 GE fotograma do flme de Gilles Mt Le Diable dans te peat (201). Di : : 7 -chupstwwwallocine fefil/fcheflm:-385090 photos/detal/emediaflens040495>. AcsS0 ‘Tao fundo no meu coragao, que realmente voe® faz parte de mim]. pa ais 0 HEGEL, G. W.. “Bnzyllopadie der philosophischen Wisenschafen, I, Werke 9 (Frankfurt —= am Main: Suhrkamp, 1986). Acréscimo to parigrafo 354: "Die unnitteare Ricker des 8 PROUSE, Maree be temps retrouv vp 9 ‘uferen Organisms in sich ist de Haut, worn er ein Verhaltn 2 sch sell wind 4. 62 6 dobras, os buracos, as elevacdes, as saliéncias e as imersbes. A pele ¢ todas as peles, aquelas dos olhos, das linguas, dos pelos, dos dentes, aquelas que se amassam e aquelas que se erigam, as peles que se farejam e aquelas que se lisonjetam, as peles bem finas dos labios, das bolsas, das orelhas ou das narinas, aquelas robustas dos ombros ou das nédegas, as peles que vibram ‘eaquelas que se abatem, aquelas que secas se levantam e aquelas que suam, todas compartilham uma diferenca que nao é aquela de dois géneros mas ‘bem aquela diferenga em si que por toda parte faz a pele. 4 y Dentro fora © corpo s6 & corpo fora: pele exposta, rede de receptores ¢ emissores sensiveis. Todo de fora e nada como um “eu” envelopado no interior. Nada de fantasma na méquina, nada, 0 ponto sem dimensio onde “eu” sinto € me sinto sentir. O dentro do envelope é também um outro fora desenvolto de outro modo, em dobras, tornos, convolugbes aderéncias, todo invagi- ages, amontoamentos € conglomerados. Ele quase que nao se sente porque af tudo lhe toca, numa espessura continua. Af tudo se toca, tudo af se mistura, tudo af desliza no siléncio dos érgios que nao se oferecem nem em vis6es, nem em gostos, nem em ‘odores, nem em sons e por pouco nem em um tocar jé que esse dentro, tio constante, tio espesso, tio bem acomodado nessa massa compacta e solidé- ria, o corpo interior, é sem Srgdos. Sendo fora de mim como esse dentro no ‘qual nao se coloca em questo penetrar ~ a nao ser para me desentranhar ‘ou me sufocar ~ ele é fora de modo indefinidamente embalado, absorvido, fincado em seu préprio magma, por toda parte bem ajustado a si mesmo perfeitamente estranho ao que preenche, ao que o sustenta ¢ anima: toda essa pele exposta aos seus orificios, mucosas, poros, pelos, todos o$ seus ccontatos e suas comunicacées, todas as suas vibragbes de mundo, de maté- rias e imagens, de timbres e assonancias, todas essas fiumagas e jatos, essas correntes de ar, esses espelhos, esses pedagos de metal, essas outras peles, esses propésitos, essas impresses, essas depressées, essas expresses. ‘Tudo isso portanto que ele sustenta em suas arcadas, colunas, grades, tubos e membros, tudo isso também o impressiona. Tudo isso se exprime nele ¢ nao em alguma outra parte. O fora exposto ndo possui outro lugar a nao ser esse dentro para af forrar tanto as suas sensagdes como 0s seus alimentos, o ar que respira, 0s abragos, o saber que o aspira. Bld que isso se sente e se sente sentir, é dentro do estémago, do intestino, nas palpitacoes do coracio, nas insuflagdes dos pulmées, para nao se falar das infiltraoes surdas que dos nervos aos miisculos percorrem os canais linféticos em 65 massivos hepaticos, em biles e sucos de pancreas. A pele sente sob a pele, 0 olho vé na geleia tomada sob as meninges. Mas assim estou dizendo demais, digo demais dizendo essas palavras gue aprendi de um outro exterior, de uma medicina ou de uma fisiolo- 2g, de uma anatomia para as quais as vesiculas, os tendées, os peristaltis- mos possum um sentido bem determinado, funcional, que tio logo me € apresentado significa para mim uma coisa totalmente diversa do que o meu corpo, fora ou dentro: um dispositivo, um aparelho, um equipamento conectado a sondas, a produtos quimicos, dissociado, dissecado por limi- nas ¢ agulhas. E sempre muito intrigante, dispersivo ¢ perturbante ver a imagem ecografica das préprias artérias ou bem aquela da rede das coro- nairias tornada opaca por um produto de contraste e projetada sobre uma tela apés a sonda introduzida que abre uma veia da virilha, Isso no passa de uma representacio similar aos resultados de uma anélise sanguinea ou a uma medida espirométrica que pertencem ao conjunto da representacio, da computagao ¢ da instrumentagio fisiol6gicas. Trata-se de um outro sujeito do que aquele que se coloca por debaixo ~ sub-jectum, sup -positum, sub-stantia ~ e que nesse por debaixo ingere nio somente 05 alimentos mas os seus gostos ¢ com eles os gostos de todas as, as, 05 choques, as fricgdes, os sinos € as trompas, os humores e pulse- ‘GOes, oar, o espirito, o calor, a ternura, 0 tédio, 0 desejo. Esse sujeito parece assujeitado ao outro, ao personagem que se diz “eu’, ¢ portanto a essa pessoa que ndo passa de uma folha de contato muito ténue, quase nada, um intervalo entre em cima e embaixo, entre esses dois foras que Ihe formam © que ele acredita poder chamar um dentro. Mas esse lé-dentro também se relaciona consigo, isso se sente, rosna ou incomoda, se encrespa ou se solta, Nele ressoam burburinhos, passam assobios, erigam erecdes. A todo momento, por toda parte, a pele imprime ao seu avesso ~ tufSes, fibras, = que me assinalam nada mais, nada menos do que a minha presenca no mundo. Ora, ela, essa presenga, estd também exposta até mesmo as minhas entranhas, mesmo aos meus intestinos que, segundo o nome, sio 0 préprio dentro, nao longe do intimo, nao longe do interior intimo meo augustiniano endo longe das interfeces € urinam da trituragdo, bem perto tanto do deus excelso como do excremento infame. O que sai e o que entra, merda ow. pensamento, palavra ou saliva, excitagdo, escoriaglo, tudo vai de par a par de um fora a outro, murmtirio constante, agitagio do mesmo conjunto ele 65 ‘mesmo inteiramente fora de mim. Bu permaneco 0 ponto nulo intimo de ‘um espirito em parte alguma localizado nessa confuso borrada de pulpas, tecidos, fluidos que em seu todo dé lugar a essa alma que deve ser conce- bida extensa e estendida ao longo dos vasos e tecidos, amarrados por nés linféticos e banhados de plasma. Nao ha representagio desse fora que pulula dentro, ou bem sao gol- pes sobre laminas, imaginarios de ressondncia magnética ou scanners a emitir posigdes. Nao cabe, porém, apressar-se em recusar as anatomias, 35, histiologias ou as fisiologias: sua estranheza técnica nao consegue deixar de nos lembrar que se trata sempre ainda de nés. De qualquer maneira é pre- iso que meu olho seja vitreo, aquoso, irisado; que meu dedo seja ossudo, tendinoso, unhado. Essas coisas nao sio de modo algum coisas ea prancha de anatomia resguarda a perturbagao de um espelho secreto. O esfolado mergulhado em resina, com seus drgios vermelhos, marrons ¢ azuis, ou o esqueleto de plastico, esbranquigado com 0s 367 ossos postos em ordem dizem de mim, me pintam, como ignoré-lo? Como ignorar a que ponto sou longe, a que ponto irreconhecivel, estranhamente inquietante? ____faseiculos nervesos.~ todas essas mensagens ~ imagens,.ramagens, a¥e NS 6 O amor que se faz ‘Tem amor em toda a intermindvel extenséo do termo: o amor sem limites, 0 amor da humanidade, do mundo, da mtsica, do mar ou da montanha, da poesia ou da prépria filosofia, que se diz. amor da sabedoria que ela mesma nio é da sabedoria que, por sua vez, consistiria em amar somente aquilo que nao se pode julgar, conhecer, ou rejeitar, isto é, todo ‘outro enquanto outro, todo o fora enquanto fora, a morte e 0 préprio amor, ‘esse impeto furioso de morrer no outro e fazé-lo morrer em nés. ‘Tem esse amor ilimitado, inexorével, insuportavel, insensato, impos- sivel ¢ aquele que se faz e para 0 qual nao hé outra expresso do que jus- tamente “fazer amor” (ou bem “trepar”, termo sem elegancia ¢ por trés do ‘qual se pressentem todas as palavras vulgares, grosseiras, obscenas, sujas, vergonhosas, impronunciveis ou guardadas para serem pronunciadas, gritadas ou murmuradas no préprio amor, quando se faz). Esse iltimo ‘amor se chama sobretudo eros enquanto que para o primeiro 0 vocabulério hesita entre filia, agapé e caritas. Os dois amores tém em comum 0 eld, o embalo, a precipitagao sem reservas ¢ horizontes, sem meta definida ou finalizacao descrita. Trata-se de um se deixar levar sabendo que chegar ndo é questdo. Sem divida, hé a pretensio de tragar os contornos de uma finalidade possivel: se o todo ‘outro é meu préximo, sua proximidade parece legitimar e mesmo provocar minha predilegdo, a escolha que dele fago ¢ 0 valor insigne que lhe atribuo. Por outro lado, o furor do desejo supde a possibilidade de uma satisfacao capaz de lhe apaziguar. Sbemos porém que nao se dé nenhuma proximi- dade sem que esta se retire para bem longe, para uma estranheza infinita, E sabemos também que nao hé “satisfacéo” - “satis’, nenhum “basta” para aquele que mais do que se saciar prefere desejar ainda e sempre de novo. Contrastados desses dois jeitos, o amor exige 0 mesmo que o infi- nito: nao acabar nunca porque se nutre de nao acabar, de néo se limitar 40 que posso ser, possuir e fazer. Fazé-lo, a ele, o amor, é desfazer meu ser, minha posse, minha obra. £ fazer uma nao obra absoluta. E mesmo onde 69 ele parece mais acabado, nos pensamentos orientais das oposicdes harmo. niosas e das passagens de um ao outro, ele nao é menos infinito ~ a nao ser que por “amor” se entenda uma perturbago, uma agitagio, mas que nem or isso seria menos infinita. A reprodusio figura tanto 20 horizonte de um amor como no do outro, seja sob a forma da conservagao do grupo pela paz.comunitria ou da con. servagio da espécie (e/ou do grupo) pela geracéo de novos individuos. Mas em cada um desses casos se esti além da obra: tanto 0 grupo como o novo Individuo sao mais renovadores do desejo do que o seu produto. O sexo propée talver, uma cifra ~ senio a cifra - dessa renovagao do desejo que ao fim das contas nada mais ¢ do que o proprio desejo. Como se sabe mais e mais, a diversificagao dos caracteres genémicos nao é for- osamente o beneficio mais certo propiciado pela sexualidade, mesmo sendo um cardter marcante. A reprodugio assexuada nao esti isenta de diversificagio. Ela também se diversifica por mutagées, 0 que Ihe confere a vantagem de uma rapidez mais elevada. Pode-se também pensar que a sexualidade contribui amplamente para a restauracio dos genes afetados or acidentes diversos e assim mais para uma conservacio do que para uma diversificagao. Talvez se deva ainda considerar que a importancia do sexo se deve & relarao: diversificagio ou nio, a relagio sexual introduz uma dimensio suplementar ~ e diversificante & sua maneira ~ no interior da espécie ¢, em alguns casos, no limite das espécies. O individuo assexuado que se reproduz por diviséo nao entra em relagdo. A relagdo, na sua dimensio ativa, ja esté presente a titulo de ali- mentagio ~ e até no canibalismo, que para alguns bidlogos poderia ser a origem da sexualidade, a absorcao de uma célula por uma outra faz des- cobrir novos recursos; ademais, sabemos de todos os lacos que podem ser Peragio na construgdo, na caca, na vigilincia, embora se tratem de com. Portamentos determinados pela espécie. Com o sexo, surge uma rela também propria a espécie mas que oferece caracteristicas suficientemente gerais de comportamentos sedutores, ligados a morfologias particulares e diferenciadas, a exaltagoes de cores, aos volumes, odores e gritos. Seria pre iso empenhar-se numa Naturphilosophie da sexualidade vegetal e animal

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