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Revista

Brasileira fa s e i x
• A B R I L - M AI O - J U N H O 2 0 2 1 •

a no i V • n . ° 1 0 7
A c a d e m i a B ra s i l e i ra R e v i s ta B ra s i l e i ra
d e L e t ra s 2 0 2 1
Diretoria Diretor
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Os artigos refletem exclusivamente a opinião dos autores, sendo eles também responsáveis
pela exatidão das citações e das referências bibliográficas de seus textos.
Transcrições feitas pela Secretaria Geral da ABL.

Esta Revista está disponível, em formato digital, no site www.academia.org.br/revistabrasileira.


Sumário
Cicero Sandroni
Apresentação 7

EN S AIO
Joaquim Falcão
Academia Paulista de Letras – O direito de não ter liberdade 9
Marco Lucchesi
América Latina: Marca de Encontro 15
Maria Theresa Abelha Alves
Sobre o universo em metamorfose e devastação: Uma leitura de A Terra em pandemia, de Aleilton
Fonseca 19
Viviana Bosi
Vive! E lembra-te de mim 31
Sonia Regina Albano de Lima
A racionalidade sensível e inteligível na criação e interpretação da obra musical 43
Clóvis Da Rolt
Oscar Bertholdo: poesia como um sopro inaugural 51
Manuel Tavares
Pedagogias decoloniais: uma proposta educativa para uma cidadania global 59
Carminda Mendes André
Por uma utopia pedagógica antropofágica 67
Lucia Santaella
Sopros de pensamento na pandemia 77
Edson Soares Martins
Cocos: poesia cantada e dançada no Nordeste 87
Maurício Silva
Literatura de fora: quando a arte literária encontra a rua 99
Faustino Teixeira
Florescer na complexidade do real 107

R E S ENHA
Arnaldo Saraiva
Folgando com a morte 115

FI CÇÃO
Edgard Telles Ribeiro
Infância: 3 atos 119
Jeová Santana
Refugo 123
Esta a glória que fica, eleva, honra e consola.
Machado de Assis
Apresentação

Cicero Sandroni
Ocupante da Cadeira 6 na Academia Brasileira de Letras.

A
Revista Brasileira assume nesta, e sincrônico, na veias do presente, na dinâmi-
nas anteriores edições, uma voca- ca intensa da criação, nas multifaces da cul-
ção plural. Aportam para um ho- tura brasileira. Aberta, para o diálogo com
rizonte de muitas vozes, destinos, adesões o mundo, especialmente Portugal e Améri-
ao sistema literário. Trata-se de um corte ca Latina, nas páginas que seguem.
ENSAIO

Academia Paulista de Letras –


O direito de não ter liberdade

Joaquim Falcão
Ocupante da Cadeira 3 na Academia Brasileira de Letras.

C
aros amigos, amigas, colegas, Confesso que gostei imensamente do
Muito contente, honra demais, tema... É um dos meus preferidos. Mas pon-
estar aqui com vocês hoje. derei-me, a mim mesmo. Como pernambu-
Agradecimento especial a José Renato Na- cano, o tema seria interminável. Lembrei-
lini, nosso presidente, pelo generoso convite. -me de outro pernambucano, Cícero Dias:
Colega de várias batalhas em favor de um “Eu vi o mundo... ele começava no Recife”.
melhor direito e melhor justiça para o Brasil. Para mim, não. Eu diria que o mundo come-
Abraço fraterno a todos em nome de ça em Olinda. E não terminaria nunca. Seria
colegas de vida: Eros Grau, Tercio Sampaio outra Guerra dos Mascates?
Ferraz, Miguel Reale, José Gregori, Rubens Resolvi, então, homenagear o Brasil que
Barbosa, Bolívar Lamounier, Ives Gandra e hoje muito precisamos. Mas como? Home-
nosso Raul Cutait. nageando vocês, acadêmicos, São Paulo e a
Saudação especial aos três colegas de ABL Academia Paulista de Letras. Contando ex-
que aqui estão, Ignácio Loyola, Celso Lafer e periência vivida aqui mesmo em São Paulo
também Lygia Fagundes Telles, escritora nos- por um pernambucano. De tão verdadeira,
sa maior. Saúdo, por antecipação, outros fu- esta experiência é quase um conto.
turos colegas daqui que estarão lá um dia! Ou melhor, um conto com pitangas de
Também deixo uma palavra de tristeza pelo reflexão. Com maracujás de humor também.
falecimento da Acadêmica Renata Pallottini. Que título daria a este conto-experiên-
Trago saudação especial de nosso colega cia? Pensei juntar duas características minhas:
presidente da ABL, Marco Lucchesi. uma expansiva e gostosa hipocondria com
José Renato ofereceu-me quinze minutos um crescentemente pouco saber jurídico. O
para falar. Assunto livre. Supremo? Ativismo? título seria então: “O direito de não ter li-
Democracia? Ensino jurídico? Fiquei em dúvi- berdade”. As pessoas em geral lutam pelo
da. Liguei para o Eros e perguntei: O que falo? direito de liberdade. De ir e vir. De escolher.
Ele respondeu na hora: “Ué, fala sobre Mas, neste conto, preferi o direito de não ter
você, tchê!” liberdade. Por quê? Explico.
Discurso proferido na Academia Paulista de Letras.
10 • Joaquim Falcão

Tinha dias, contou-me Regina Lúcia, sua


filha, que Evaristo acordava, vestia-se de ter-
O café da manhã chegou. Eram 6:30, no, paletó, camisa branca e gravata, deita-
mais ou menos. Eu, sonolento, perguntei: va-se na cama em pânico. Cruzava as mãos
“A senhora pode trazer às 8 horas? Gosto e dizia: “Vou morrer”. Não morria. Chegou
de dormir até mais tarde.” A moça logo res- aos cento e dois anos.
pondeu: “Posso não, posso não. O protocolo Quando, então, eu me dei conta. Abri
não permite. Tem que ser agora.” mão de minha liberdade quando passei pela
Tomei. catraca de entrada do Sírio. Ali troquei o di-
“Inspire, expire, inspire, expire. Mais for- reito à liberdade pelo direito à vida. Perdi
te. É bom para o senhor.” – “Mas já estou aquele na esperança de reconquistar este.
cansado.” – “O protocolo manda o senhor
repetir dez vezes seguidas. Vamos lá.”
Repeti.
“Um copo d’água, por favor.” – “Não, Tudo começou assim.
não pode. O protocolo só permite umede- Eu ia passar uma semana trabalhando em
cer os lábios com este algodão.” São Paulo. Depois, iria para Viena e Veneza,
Logo percebi que eu não tinha mais a li- onde talvez fosse encontrar Eros e Tania Re-
berdade de comer, de respirar, nem de be- gina, Tercio e Sonia Regina. Não saem de lá.
ber. Fiquei meio confuso. Jantei na terça-feira com Nelson Jobim e
Quando perdi a liberdade? Para quem? resolvi fazer, totalmente assintomático, um
Por quê? Por quanto tempo? Como vou re- check-up no Sírio ou no Einstein. Fui para o
cuperá-la? Sírio. Cutait me decidiu. Foi este o meu úl-
Eu estava em um hospital paulista! timo desejo, diria o samba de Noel Rosa?
Logo me dei conta que tinha perdido mi- Fazer um check-up no Sírio é hoje sinal
nha liberdade para o “protocolo” hospitalar. de status global. É curriculum vitae. Literal-
Meu último ato de liberdade, meu último ato mente. E foi o que eu fiz. Mas antes consul-
de livre vontade, de livre-arbítrio, tinha sido tei amigos médicos.
me inserir no sistema normativo dos protoco- “Olha, Joaquim, existem mais de 5.000
los do Sírio-Libanês. Agora sou um paciente. doenças catalogadas. Não vá fazer check-up
Não é à toa que juízes e advogados às coisa nenhuma. Eles são muito bons. Vão
vezes chamam as partes, especialmente em encontrar alguma doença. É matemático.”
habeas corpus, de “paciente”. Foi. Encontraram.
Fiquei meio preocupado com minha nova Mas até hoje não sei precisamente qual
situação. O fracasso de todo hipocondríaco, foi a doença. Hipocondríaco não ouve, teme.
como eu, é ficar doente. Embora eu nunca Na verdade, hipocondríaco não teme mui-
tenha ultrapassado, no ranking dos hipo- to a doença, pois ele desconfia dela. Gosta
condríacos imortais, o meu querido mestre mesmo é de audiência. É um megalomaníaco.
da ABL e de todos nós juristas, Evaristo de No fundo, quer controlar a própria natureza.
Moraes Filho, o jurista sociólogo de direito Sei que foi algo cardíaco. Abriram meu tó-
do trabalho. rax. Distribuiu-se um bom número de pontes
A c ademia P aulista de L etras – O direito de não ter liberdade •  11

de safena e mamárias. Quem bem sabe de- nem o próprio pudor. Fiquei logo nu com mi-
las é o incrível Dr. Fabio Jatene, com o incrí- nhas vergonhas de fora.
vel Dr. Marcello Barduco, ambos sob o olhar Inclusive, o que primeiro você perde é o
fraterno do Raul Cutait. pudor. Na esperança de poder, por último,
Não sei bem o que houve, porque não recuperá-lo. Com vida e vestido.
perguntei. E também porque a segunda de- Fui percebendo pouco a pouco, e muito,
cisão, ainda livre, que tomei foi a de cons- que o protocolo hospitalar tem mais ambições
tituir um comitê de gestão da minha não do que uma Constituição. É lei maior. Tem maior
liberdade hospitalar. Gestores da minha ig- força de implementação. De onde vem tanto?
norância e da minha vida. Além de Dr. Jate- Quem é a norma fundamental do sistema
ne e Dr. Marcello, chamei meu médico do normativo do protocolo hospitalar? A Cons-
Rio, Dr. Ênio Duarte, pois ele conhece todos tituição, o sistema normativo constitucional,
meus pânicos. Além de Vivianne, minha mu- diria Frei Caneca, pernambucano, baseia-se
lher, e meu filho Manuel. Quando começa- no pacto social. E não em Deus, ou em D.
ram a conversar, logo disse: “Decidam!”. Pedro I, como queriam alguns. Pobre Frei,
Entreguei-me. Saí da sala. pagou caro por isto.
E fui comer uma excelente esfiha na lan- Mas, no fundo, a Constituição, diante da
chonete. obstrução coronariana, delegou sua força
implementativa, o seu não-saber-garantir-a-
-vida, não ao pacto social. Nem a Deus ou a
D. Pedro I. Mas a algo maior: ao saber téc-
Estava agora, sem volta, inserido em um nico-científico. É a nova norma fundamental
sistema normativo privativo. O “sistema de dos nossos dias. Universal. Igualitária. Glo-
protocolos” do Sírio. Protocolo é um conjun- bal. É o que ocorre nestes dias de pandemia.
to de regras que governam a sintaxe, a se- Ocorre também, que, como ensina outro
mântica e a sincronização da comunicação pernambucano, Cláudio Souto, o saber técni-
e da conduta humana. co-científico é um saber provisório, consensual
É um sistema mais amplo, poderoso e e acumulativo. Ou seja, todo protocolo é ver-
implementável do que o sistema legal. Do dadeiro e efêmero ao mesmo tempo. Dúvida.
que a própria Constituição. Tem a legitimi- Teria eu trocado o direito de viver por um pro-
dade, eficiência, eficácia e avaliação men- tocolo efêmero que se intitula de “científico”?
surável que tanto nos falta em nosso direito Vou fazer um intervalo ilustrativo.
positivo estatal.
Invade, prende, amordaça, tira do ar,
anestesia, regula a liberdade física e espi-
ritual do paciente. Faz do sonho o pesade- Carl von Clausewitz, em seu clássico “Da
lo. E vice-versa. Não respeita limites como a Guerra”, alertou que a educação de mas-
Constituição respeita. sa, como a entendemos, hoje nasce da ne-
Não respeita privacidade, intimidade, ins- cessidade de se vencer a guerra. É uma tá-
pirar, expirar, nem mesmo o batimento car- tica. Treinável.
díaco ou fluxo sanguíneo. Aliás, não respeita
12 • Joaquim Falcão

Paulo Chapchap uma vez me disse que Existe um certo silencioso sabor de guerra
o moderno hospital hoje em dia é um siste- em alguns momentos de um hospital. Sen-
ma de comunicação. Acrescento que precisa te-se bem quando se está numa unidade de
vencer a guerra contra a doença dupla. Ou emergência. Enquanto não se é atendido e
seja, um hospital hoje é um triplo sistema: não existe um diagnóstico, sente-se que há
normativo, educacional e de comunicação. uma pressa no ar, um frenesi, uma serieda-
O desafio maior de seu sucesso, para ven- de circunspecta, uma sobreatenção aos fa-
cer a guerra, é o seguinte. Como fazer com tos quase militar.
que a ordem, a norma, a tática e a estraté- Respeitar protocolos científicos é neces-
gia que um general estabelece, lá bem lon- sidade de coletividade unida, e não de in-
ge, bem protegido em seu gabinete prussia- dividualismos separatistas. Sobretudo es-
no de barrocos e dourados – hoje, diríamos timulados por negacionismos de agentes
em seu situation room –, sejam transmitidas, psicopatológicos e ditatoriais.
entendidas, cumpridas e cheguem intactas Numa UTI chamada Brasil, onde estamos
na ponta? Ao soldado ou ao internauta, no todos hoje, necessitamos, como no Sírio, de
campo de batalha? Cheguem precisas na es- união em torno da ciência, mesmo que efê-
pada ou no bisturi? mera e experimental. É o que melhor temos.
Como evitar ruídos, interpretações, desin- É como se momentaneamente vaidades,
terpretações e mal-interpretações do soldado emoções, gritos, ambições e ignorâncias ti-
ou do enfermeiro e do médico? As mensa- vessem que desparecer em nome da vida.
gens, as ordens, vindo lá de cima, são todas Em nome da precisão. Em nome da ciência
vulneráveis. Transmitidas por textos cifra- e consciência.
dos, escritos, orais. Gritos, rufar dos tambo- Paira no hospital, no protocolo, uma gran-
res. Cornetas. Receitas médicas. Fórmulas. de tentativa de impor cálculo, previsão, ra-
Na guerra, todos têm que se comportar cionalidade sobre qualquer emoção indivi-
como previsto. A ordem tem que ser unívo- dualizada e anárquica. Seja do paciente, dos
ca. O protocolo hospitalar é uma ordem uní- médicos ou das enfermeiras.
voca. Por todos entendida. Vinda, como lem- E se esta veia ou artéria não forem lógicas,
bra Raul Cutait, de um só comando. racionais, às vezes se pergunta um médico,
Como se existisse um artigo da Consti- na sala, ao vivo e na hora que está passan-
tuição inviolável pela vaidade e interesses, do. Agora. Neste preciso instante. Já passou?
conspirações e malformações ministeriais. Ao contrário da Constituição, cujo efeito
Foi necessário inventar um sistema de é dificilmente mensurável, somente de quatro
transmissão com o mínimo de probabilidade em quatro anos, os protocolos são normas
de imprevisto, ruídos ou erro. Todos deveriam pragmáticas. Voltadas para a ação.
se comportar da mesma maneira, no mesmo Curar é um ato de consciência aplicada
tempo, com os mesmos objetivos. De forma a partir do qual a saúde da democracia pre-
unívoca. Surge, então, a educação de massa. cisa para florescer.
O protocolo é um instrumento de edu- Termino.
cação de massa. Partilha um conhecimento
que se faz coletivo.
A c ademia P aulista de L etras – O direito de não ter liberdade •  13

Comecei dizendo que escolhi homena- Meu conto é político. É defesa da de-
gear a APL, São Paulo e o Brasil. Foi o que mocracia.
fiz através deste conto de experiência feita
no Sírio-Libanês.
Porque o Sírio-Libanês, que este ano com-
pletou seu centenário de existência e de ex- “A senhora pode me dar meu casaco?”
celência, simboliza o aperfeiçoamento institu- “Faz muito frio aqui em São Paulo es-
cional que tanto nossa democracia precisa no tes dias.”
Brasil de hoje. A continuidade institucional. “Obrigado. Vamos por onde?”
Porque o Sírio, como a APL, foram criados “Vamos pelo térreo, desceremos no térreo.”
pela iniciativa da sociedade, dos paulistas, ini- “No primeiro, no corredor, à direita, está
ciativas civis que tanto precisamos para con- escrito: Saída.”
ter o onipresente Estado ditatorial de hoje. “Pode deixar a cadeira de rodas aqui
Porque o Sírio foi criado por senhoras, mesmo.”
mulheres brasileiras e imigrantes, de quem Deixei. Passei pela catraca. Passei de pé.
tanto esperamos hoje para uma mais iguali- Recuperei meu pudor e minha liberdade. Va-
tária convivência e o progresso. leu ter tido o direito de perdê-la.
Porque o Sírio e a APL simbolizam o di- Estou livre e vivo para continuar a defen-
reito à liberdade de expressão, de pesquisa, der a prática e os valores da liberdade cons-
de educação, que tanto precisamos defen- titucional.
der no Brasil de hoje. É o que faço agora. Obrigado.
América Latina: Marca de Encontro

Marco Lucchesi
Ocupante da Cadeira 15 na Academia Brasileira de Letras.

D
iante da espessa distopia que define preservam os recursos naturais, inspiram a
a época atual, eis-nos aqui reunidos economia circular e designam o bem comum.
para celebrar os valores fundamen- Seria penoso imaginar a Terra como um
tais da cultura. Nosso encontro faz história. grafite solitário na Via Láctea, deserta de hu-
Abrimos nossas casas ao diálogo com a Amé- manidade. Perderia o melhor de si, a cintila-
rica Latina. Quem sabe a consciência de um ção da noosfera, auge da escala evolutiva:
destino comum não institua um fórum per- a esfera do pensamento, como assevera Tei-
manente? A defesa da cultura e da diversi- lhard de Chardin. Não podemos perder a di-
dade desconhece fronteiras: une o Atlânti- mensão comunitária.
co ao Pacífico, floresta, cordilheiras, ilhas e A agenda intercultural da América Lati-
arquipélagos. Somos embaixadores da dife- na, na era do pós-regionalismo, procura o
rença. O azul de Rubén Darío e os arautos descentramento. Uma proposta multilíngue
de Vallejo. A cosmologia de Cardenal e o pa- que se incline à cultura do encontro. Como
raíso de Lezama. Os signos de Octavio Paz e quem procura recolher as pedras de Babel,
a língua de Huidobro. Ventos de Benedetti, pedras imateriais que Antônio Vieira encon-
amores de Roque Dalton. Nosso continente trou ao longo do Amazonas, Rio-Babel, ecu-
repousa na trama de Bioy Casares, no sertão mênico e profundo, em diálogo com seus
de Guimarães Rosa. afluentes e tributários. Não há outra forma
Celebramos o patrimônio comum: a ri- de equacionar a relação língua/terra, tão im-
queza dos povos originários e as tantas lín- bricadas se mostram, senão dentro da cultu-
guas, de que não podemos abrir mão: cama- ra da hospitalidade.
das profundas que infundem outra espessura Se não dispomos de uma gramática des-
a nossas vozes: no coração do Logos, o fun- critiva da língua do paraíso, intuímos suas vir-
damento da linguagem, o ayvú rapyta. tudes poéticas, no plano das essências, na
Defendemos a alteridade, os direitos lin- primeira aurora do mundo, pondo-se em mar-
guísticos, as terras indígenas e quilombolas cha a nomeação adâmica, quando o curso do
no Brasil. Para dizer não ao mesmo, e porque rio e das estrelas formavam um só destino.
16 • Marco Lucchesi

Essa língua impensável requer uma pro- de que ambos os conjuntos saem ilumina-
jeção utópica, mediante poetas e tradutores dos. Babel invertida, com fios de ouro, com
que digam adeus às névoas do Uno e abra- uma etimologia que olha escandalosamen-
cem vigorosamente o Múltiplo, vibrátil por te para o futuro.
definição, marcado pela beleza do Rosto. Assim, dentro desse programa, sempre
O plurilinguismo nas Américas deve ser por reiniciar, volto ao ensaio de Auerbach,
reativo à ontologia do Mesmo, que se espalha quando afirma que a casa da filologia é a
em escala planetária, nas imposições gaso- Terra. Eis um gesto propício à defesa multi-
sas da economia global. O célebre ensaio de língue de nosso continente, entre a filologia
Erich Auerbach, “Filologia da Weltliteratur”, do planeta e a sintaxe da diversidade.
permanece atual, ao destacar a insolvência Promover a língua e a literatura é a missão
da diversidade, que se faz maior, desde as de nossas academias. Assim, favorecemos a
ruínas do Pós-Guerra: cultura da paz e da justiça social. Liberdade e
é chegada a hora de perguntar que significa- igualdade integram nossa agenda. Mas não
do possui a palavra Weltliteratur no sentido podemos esquecer a fraternidade, traço de
proposto por Goethe. Nosso planeta, campo união que avaliza as duas pontas. Eis por que
da Weltliteratur, está se tornando menor e não acatamos a intolerância, as formas de ex-
perdendo a sua diversidade [...] a suposição clusão, autorreferentes. Não existem duas hu-
de que a Weltliteratur é a felix culpa: da divi- manidades. É o que repito ao visitar os presídios.
são da humanidade em muitas culturas. Hoje A barbárie da razão nasce de um ensino
entretanto a vida humana está se tornando sem compromisso ético. Impõe o sotaque do
uniforme. O processo de uniformidade [...] ressentimento, a entropia da agressão, pro-
está minando todas as tradições individuais. messas de saídas ilusórias. A barbárie é o ata-
lho para o abismo. O continente segue em
A América Latina responde ao ensaio de chamas, com o aquecimento global, o nega-
Auerbach com a inteligência da coruja de cionismo e a teologia do mercado.
Minerva, de olhos acesos, a partir de políti- Nossa vocação repousa na conversão do
cas que promovam as línguas fundamentais. belo e do bom. O conhecimento exige um
Comecemos com o legado ibérico enriqueci- compromisso inapelável. Cria responsabilida-
do com as línguas que o renovam. Ampliar de, obriga a uma deontologia. O dever kan-
o espaço do castelhano em terras brasileiras tiano. Uma hierarquia de valores.
e a língua portuguesa nos países da Améri- A Academia Brasileira de Letras redobrou
ca Latina, para saber melhor quem somos e esforços durante a pandemia, com ênfase na
para onde vamos. formação de leitores. Levou livros a todos os
As virtudes do bilinguismo promovem rincões do país: terras indígenas e quilombo-
uma ética entre conjuntos de fricção (a lín- las, lares de longa permanência, bibliotecas
gua um e a dois), conjuntos incompletos, bem prisionais e hospitalares, escolas de favelas
entendido, que se movem instados por uma e comunidades ribeirinhas do Amazonas.
espécie de completude incompleta, ou pela Voltamos infelizmente à geografia da
tradução entre dois conjuntos, abrindo ca- fome. Defendemos a inclusão do livro na
minho para uma terceira via, terceiro rosto, cesta básica. Assinamos protocolos para a
A méric a L atina : M arc a de E ncontro •  17

difusão cultural com a Câmara dos Deputa- Cumprimento a todos com efusão. Agra-
dos, a Marinha do Brasil e as ONGs. deço os primeiros passos e a generosa respos-
No meio do caos, optamos pelo diálo- ta ao nosso apelo. Não mais estrela segrega-
go da boa vizinhança. Princípio de luz em da, mas constelação. Permaneçamos juntos
meio às trevas. com os sonhos da origem de Oscar Cerruto:
Comovidos com a pandemia, transmutamos
a dor com a adesão da esperança. Impagável tal vez un viento de esmeralda
a dívida com os que morreram e suas famílias. un río un agua atronadora
Devemos apostar na sinergia. Buscar sem- una cascada de pájaros
pre, e em toda a parte, um sentimento de un apogeo de augurios copioso
paz e de igualdade. y de poderío
Abrimos hoje um capítulo inédito em nos- como los himnos del origen
sa história. As academias encontram-se mutu- como las lluvias
amente implicadas na busca do bem comum. como los sueños del origen.
Sobre o universo em metamorfose
e devastação: Uma leitura de A Terra
em pandemia, de Aleilton Fonseca
Maria Theresa Abelha Alves
Ensaísta, pesquisadora e docente aposentada da UFRJ e ex-professora titular de Literatura
Portuguesa da UEFS; tem mestrado e doutorado em Letras (UFRJ) e pós-doutorado, com uma
pesquisa sobre a obra do escritor português Mário Cláudio, pela Universidade Nova de Lisboa.

U
ma epígrafe, ao encabeçar um texto, linguísticas e culturais nunca foram suficien-
inaugura um modo de penetrar no tes para aprisioná-las em seus respectivos
reino das palavras criadas no e pelo tempos e espaços, pois são dirigidas à hu-
texto. Ela funciona, simultaneamente, como manidade em geral, de qualquer tempo, de
bússola que aponta uma direção e como ins- qualquer lugar. O que um poema de 3067
trumento de bordo através de que a viagem a.C., o que um poema latino do oitavo ano
da leitura se processa. O poema A Terra em da era cristã e o que um poema modernis-
pandemia, de Aleilton Fonseca (2020), é en- ta norte-americano, publicado em 1922, te-
cimado por três epígrafes, a primeira retirada riam para iluminar o poema brasileiro do sé-
da Bhagavad-G t (2015), texto místico-filo- culo XXI? Quais os ecos que daqueles ainda
sófico incrustado na antiga epopeia Maha- ressoam neste? Como os três clássicos nos
bharata, a segunda provém das Metamor- olham e interpelam, agora, como ícones or-
foses, de Ovídio, e a terceira de The Waste todoxos, por meio do poema contemporâ-
Land, de T. S. Eliot (1922). Sabemos, com neo? São questionamentos a que se obrigam
Ítalo Calvino (2007), que as grandes obras os leitores do poema que o poeta e ficcionis-
nunca acabam de dizer o que vieram dizer ta Aleilton Fonseca nos apresenta.
e que de fato disseram. Continuam a apre- Bhagavad-G t , desde sua primeira tra-
goar suas mensagens e a desafiar seus lei- dução para línguas ocidentais, tem seduzi-
tores, continuam, sobretudo, a falar através do os poetas. Goethe, Schlegel, T. S. Eliot
deles, numa corrente infinita. As três obras abriram o desfile dos escritores que se dei-
são consideradas clássicos de suas respectivas xaram influenciar pela obra que continua a
épocas. Com o filósofo Slavoj Žižek (2012), cativar poetas contemporâneos, formando
aprendemos que as obras clássicas se asse- um curto-circuito de dizeres e saberes, que
melham aos ícones ortodoxos, porque, tais direcionam os leitores a uma simultaneidade
como estes, elas também de qualquer ân- com o antigo, num exercício eficaz e produ-
gulo que são consideradas olham para nós tivo. Nos seus dezoito cantos e setecentos
e nos interrogam. As distâncias temporais, versos, esta obra védica propõe uma série de
Este artigo constitui o posfácio do livro A Terra em pandemia, de Aleilton Fonseca (2020).
20 • Maria Theresa Abelha Alves

ensinamentos, em forma de aforismos, para Em Bhagavad-G t , o guerreiro se quei-


que o ser humano atinja o grau mais alto de xa: “Mal me tenho de pé... confusos estão
sua evolução, possível apenas pela supera- meus pensamentos...a própria vida parece
ção das vicissitudes inerentes à vida: sofri- fugir de mim. Nada enxergo diante de mim,
mento, velhice, morte, mediante aceitação, senão dores e ais...”. Mudam-se os tempos,
desapego e autocontrole. Os ensinamentos mas o vazio da morte é o mesmo e seu abso-
são transmitidos por Krishna, um avatar su- luto nada só se verbaliza com o tudo outro:
perior, a um guerreiro humano, Arjuna, em desequilíbrio, confusão mental, dores, ais,
diálogos sobre os caminhos que levam à ver- reticências. A morte será sempre o inefável,
dade, à iluminação, ao conhecimento con- o silêncio do mistério, o que impossibilita o
forme a filosofia bramânica, que, como toda dizer. Aleilton Fonseca parece ter compreen-
filosofia, tem como tema a vida, o tempo e dido o mal-estar do guerreiro diante dessa
a morte. A conversa entre os dois se trava impossibilidade, ao deixar vazia de vocábulos
num momento traumático, antes de uma parte de uma estrofe (II, 4:1-6). Nessa epo-
terrível batalha fratricida, quando o guer- peia há a previsão de tempos infaustos: “Vejo
reiro se encontra perdido, desprovido das presságios funestos [...] e não vejo nada de
certezas e assustado. As questões cruciais bom”, o que ecoa na observação da viden-
que sempre se fizeram sobre o significado te do poema contemporâneo que, ao virar
da vida humana tornam-se mais evidentes as cartas do tarô, diz “vejo dias vazios, ruas
em momentos de desespero e de ameaça de sujas, multidões aflitas. / Pessoas andam a
morte, por isso tematizam os diálogos que, esmo. Medo da morte. Enterros. Emoção. /
ontológica, intelectual, metafísica e etica- Há algo muito grave no ar” (II, 2:7-9). As pre-
mente, buscam o sentido do existir, interes- visões letais causam angústia, perplexidade,
sando-se pelo relacionamento do humano temor no guerreiro do passado, metonímia
com o divino, consigo mesmo, com outros da humanidade que assim se sente em conse-
humanos e com toda a criação. quência da adversidade do tempo “que traz
Uma característica inerente aos livros sa- o desespero ao mundo e que aniquila todas
grados é a possibilidade de corresponderem as pessoas”. Igualmente, tais desconfortan-
às necessidades de tempos diferentes e atua- tes sensações estão presentes hoje, quando
lizarem seus conteúdos em sucessivas épocas, meses se sucedem deixando todos “pálidos
segundo os mais diversos interesses, pois eles e abatidos, cabisbaixos e assustados” (II,3:2).
gozam das mesmas propriedades dos mitos. Bhagavad-G t articula as contradições en-
As muitas traduções da obra, bem como as tre o bem e o mal alicerçadas na dupla face
citações que dela se fazem, denotam as in- do sagrado: Deus e Diabo. Algumas passa-
terferências religiosas e ideológicas de leito- gens que no poema antigo se atribuem ao
res e tradutores que buscam nos versículos bem podem também caracterizar o mal no
védicos respostas às crises de seus respecti- poema contemporâneo. Assim os versículos
vos tempos. Hoje a humanidade experimen- que denotam a imparcialidade do bem, ou
ta o susto do incompreensível, o medo do aqueles que focalizam sua onipresença: “Sou
amanhã. O “Canto Divino” da epopeia an- imparcial com todos os seres”, “Ele habita
tiga então volta a ser entoado. no mundo abraçando tudo”, ressoam em A
Sobre o u ni v e r s o em me tamo r fose e deva stação •   21

Terra em pandemia, pois a imparcialidade num dado tempo e espaço, e a voz atempo-
do mal se constata na escolha aleatória das ral e atópica do I Ching (2006). A estrofe se
vítimas: “Dos clientes aos funcionários, dos insere num canto que privilegia o ludismo:
filhos aos pais, dos netos aos avós,/ De vi- jogos de cartas que brincam com os arcanos
zinho a vizinho” (III,7:8-9), e sua onipresen- do tarô e com as pranchas dos hexagramas
ça na contaminação de toda a Terra. “É do do I Ching. Mas ainda jogos que regressam
mundo, em todo lugar” (III,1:10). O poema a um primitivo sentido para o vocábulo, em
antigo enumera os atributos demoníacos: “a que “cartas” se traduzem como “mensagem”
falsidade, a arrogância, o orgulho, a irascibi- e, por conseguinte, como lettera. O autor do
lidade, a grosseria e a ignorância”, dizendo poema é dadivoso e explica, em nota, que
que “pertencem àquele que possui qualida- aquelas linhas inteiras e partidas formam o
des demoníacas” e acrescenta: “As pessoas hexagrama 54 do milenar ludus chinês, abrin-
demoníacas não conhecem o poder verda- do um novo jogo com seu leitor, fornecendo-
deiro”. De igual modo, o poeta baiano con- -lhe nova chave de acesso ao texto. O I Ching
ceitua os diferentes tipos de demônios bem procura preencher de sentidos o que para os
como os representantes do poder america- homens é desprovido de sentido, procura
no e brasileiro. preencher de palavras o inefável de todas as
No poema contemporâneo não há, além horas, vocalizando o inexprimível de todos
da epígrafe, citações explícitas da Bhaga- os dias. Ele é um jogo oracular de adivinhas,
vad-G t , porém há o mesmo desassossego que faz a nulidade significar, sugerindo cami-
e perplexidade que se exprimem pelas excla- nhos bifurcados de luz que se traduzem ou
mações e reticências e o mesmo desejo de por permitir que o incompreensível a si mes-
compreender expresso este pelas interroga- mo se resolva; ou por buscar, sem descanso
ções que pontuam o texto. Há, portanto, em e sem trégua, a resolução do que incomo-
alguns pontos de ambos, uma sintonia im- da; ou por deixar de lado, temporariamen-
plícita quanto à semântica, que permite tra- te, o que não se verbaliza e aguardar a epi-
çar analogias. fania. Todos esses caminhos se encontram e
Porém as histórias sagradas, os mitos e os se dispersam nas entrelinhas do poema, po-
símbolos com que o homem procurou e ain- rém a resposta lustral e esperada é, simbo-
da procura interpretar o existir, tais como os licamente, indiciada pelos versos finais da
jogos, inventados para reproduzirem e ultra- mesma estrofe (II, 4: 7-10) que articulam os
passarem nossas situações de agon, são in- opostos significativos espaciais, alto e baixo
tercambiáveis em suas polaridades, admitem (trovão e lago); genéricos (homem e jovem);
a troca de sinais. E é com tais polaridades, e temporais (transitório e eterno). Um trovão
mutuamente excludentes e complementares, (e é de lembrar que em muitas mitologias,
que se formam os poemas. Voltemos àquela tanto ocidentais quanto orientais, ele repre-
estrofe de versos não ditos (II, 4: 1-6). O es- senta a voz da superioridade criadora) res-
paço afásico, parcialmente mudo da estrofe, soa agitando as águas lacustres, associadas
é também um jogo com os jogos: jogo entre à fertilização, numa simbólica cópula, ima-
o sentido literal e o metafórico, entre o texto gem do erotismo que abraça todo o infini-
e o intertexto, entre a voz lírica, enquadrada to universo terrestre e sideral. Há também a
22 • Maria Theresa Abelha Alves

erótica dos corpos enquanto physis, no hime- alguns desses textos são facilmente identi-
neu da jovem. Uma e outra são imagens de ficados (tais como versos do Hino Nacional
conjunção, esperança e renovo, imagens de Brasileiro e do Britânico, músicas do maestro
um pan-erotismo criador (é de lembrar que Tom Jobim e de Carlos Gardel, provérbios e
um dos epítetos dados pela sabedoria gre- aforismos populares, versos de Gregório de
ga à deusa do amor foi Afrodite Pandemos, Matos, Castro Alves, Mário de Andrade e de
para, através dela, significar a força de atra- Carlos Drummond de Andrade, entre os bra-
ção que a todos e tudo une), em confronto sileiros, e Dante Alighieri, Camões, Shakes-
com a destruidora pandemia. peare, Charles Baudelaire, Fernando Pessoa,
Ovídio escreveu sobre corpos em trans- Thomas Mann, Lewis Carroll, entre os euro-
formação – humanos ou deuses transmuta- peus, além da Bíblia Sagrada e de filósofos
dos em animais ou em vegetais – compondo como Platão e Descartes, criando significati-
com tais corpos um corpus textual múltiplo vos contrapontos temporais. Por exemplo, a
e entrelaçado por inúmeros relatos extraídos referência à “Bossa Nova” remete aos chama-
de um substrato mítico, para que as lendas dos “Anos Dourados” brasileiros, em oposi-
etiológicas de um passado remoto não se ção aos tempos doentes de hoje, e também
olvidassem. Com elas pretendeu interpretar em oposição aos males sociais descritos pe-
o mundo desde a criação até a coroação e los versos de Gregório de Matos e de Cas-
deificação do imperador Júlio César, costu- tro Alves. Implicitamente, abarca textos ou-
rando, assim, mito e história. O poema que tros que se dão a ler nas entrelinhas, como
aqui se analisa também encena metamorfo- aqueles textos medievais que se conheceram
ses (no espaço, no tempo, na voz enunciati- por “danças macabras”, que apregoavam
va e nos corpos físicos enunciados) dando a ser a morte ceifadora de ricos e pobres, do-
ler um mapa-múndi desolado, enquanto os tada de onipresença em palácios e em case-
tempos se sucedem e se imbricam, seguin- bres: “Dos condomínios para as favelas; das
do um calendário de desesperança, e os cor- mansões para os barracos, / Das madames
pos que antes eram “felizes”, “inocentes” às domésticas; dos patrões aos empregados”
e livres para viagens e diversões (I, 3: 5-7) (III, 7: 6-7), e que, por meio de um “realis-
já agora são “mortos, enfermos, curados, mo criatural”, punham em cena, grotesca e
convalescentes”(III, 17: 3). caricaturalmente, a putrefação dos corpos.
Em Aleilton Fonseca, o processo meta- As citações explícitas ou subentendidas e as
mórfico se atualiza mediante um engenhoso transcrições do referencial passado ou pre-
apelo à citação que, no novo contexto, firma sente criam paralelismos e antíteses entre
ou infirma, reproduz ou subverte, amplia ou os tempos e os espaços a que se referem e,
rebaixa seus originais sentidos: metamorfo- ao mesmo tempo, problematizam o ato de
ses do significante e do significado. O leque ler/escrever como um inadiável pacto entre
intertextual abarca, explicitamente, fontes a estética e a ética.
eruditas ou não, de várias épocas e de várias Ovídio, em seu longo poema, surpreendeu
categorias – fragmentos de obras líricas, fic- a mutação das coisas, mas não foi apenas isso
cionais e dramáticas, trechos jornalísticos, le- que ele surpreendeu. Ele, como poeta fecun-
tras de músicas populares e hinos nacionais, do, soube explorar a natureza metamórfica
Sobre o u ni v e r s o em me tamo r fose e deva stação •   23

da linguagem, sobretudo pela plasticidade de tempo, enquanto cenas se organizam,


das imagens. O poeta brasileiro também se condensam-se e se metamorfoseiam no tex-
inventa, nesta sua longa reflexão, como um to poético, ora oferecendo-se como um clo-
colecionador de imagens que se dão a ver/ se-up sobre um qualquer agente social: “eis
ler para que não sejam esquecidas. Para tan- um homem no chão, sob o joelho da lei. /
to, organiza seu poema estilizando um dos I can’t breathe, ele apelou...e gemeu: Não
procedimentos poéticos de Ovídio: a elabo- consigo respirar.”(III, 21:4-5), ora como uma
ração das imagens que partem do presente longa panorâmica que abarca movimentos
da enunciação para o passado e para o futu- de massa como o da turba ignara indiferente
ro. No enfrentamento poético – agon da le- à doença e ao contágio que “Sob a neblina
tra e da língua – a voz lírica que, num aqui e fria de uma estação chuvosa, cinza e doen-
num agora, se refugia na escrita se faz ouvir tia, / [...] fluía nas ruas, no Viaduto do Chá,
ora como lamento, ora como saudosa remi- na rua 25 de Março”(I,8:2-3).
niscência, ora como indignação, mas sempre Ovídio, exibindo a comédia mitológica,
num clamor desassossegado. Ovídio procu- por diversas vezes rebaixou os deuses tornan-
ra o mito, Aleilton, a história. Naquele, ima- do-lhes claras as perfídias. Similar processo foi
gens míticas e retalhos históricos se costuram utilizado na caracterização de personagens
de modo a dar a ilusão de um contínuo, en- históricos da atualidade, tais como o “Arro-
gendrado como metamorfose de linguagem. gante” de “yellow tuft” (III, 8:2) e “o indigi-
Neste, as circunstâncias alarmantes do pre- tado” (III,17:6; e IV,2:3), respectivamente o
sente, de um lado a doença que se espalhou presidente dos Estados Unidos e o do Bra-
pelo mundo e, de outro, males sociais anti- sil, este último representado também como
gos que persistem insolúveis, determinam as “passageiro das trevas”(IV, 6:1), o que, no
mortes literal e metafórica que engendram e plano metafórico, o torna equivalente ao ví-
habitam o poema comprovando o que Wal- rus macabro, também ele um tenebroso via-
ter Benjamim (1994) um dia sublinhara: “a jor. O procedimento metamórfico de Aleilton
morte é a sanção de tudo o que o narrador Fonseca, ao evidenciar camadas temporais,
pode contar”. Os versos que dizem a morte revela conexões aparentes ou não, claras ou
se organizam como recolhas de cenas con- misteriosas entre seres e fatos, entre mitos
comitantes de aqui e de alhures, provenien- e ritos, de modo que, no lugar textual, tudo
tes de flashes de documentários televisivos e possa convergir para a metamorfose supre-
jornalísticos em diálogo com a tradição cul- ma e trágica, da vida para a morte.
tural e o passado histórico. T. S. Eliot, tanto na crítica como na práti-
O farto e diversificado material que o su- ca poética, procurou um paralelismo entre o
jeito da enunciação traz à cena textual para presente e o passado para refletir sobre seu
dizer o hoje, o ontem e vaticinar o amanhã, tempo, num processo de mão dupla: visita-
ao dialogar com a tradição, desvenda um con- ção e revisão das matrizes culturais e históri-
tínuo: a presença das mazelas históricas do cas. O longo poema The Waste Land se de-
país desde os primórdios coloniais. Um mal senha, simultânea e sucessivamente, através
em outro se transforma simultânea e suces- de duas atitudes do sujeito em face do mun-
sivamente, deixando transparecer camadas do inóspito, estéril, corrupto e devastado.
24 • Maria Theresa Abelha Alves

De um lado o sujeito da enunciação experi- Assim como no poema norte-americano, no


menta desencanto e frustração com o espe- brasileiro os elementos antagônicos também
táculo do mundo. A enumeração caótica de se esgarçam numa aparente concórdia discor-
imagens e a fragmentação de cenas refletem de, numa riqueza imagística que vai da an-
a degradação da época e a impotência do títese à metáfora, da perífrase ao paradoxo
sujeito para enfrentar os dramas pessoais e e ao oxímoro, num rico trabalho com as vir-
coletivos de seu tempo, sintetizados no ad- tualidades da língua, quer por deslocamen-
jetivo “waste”. É de lembrar que o poeta to do sentido literal, quer por aglutinação de
escreveu o poema logo depois da Primeira sentidos, o que vem a ser uma aposta salutar
Guerra Mundial, para, alegoricamente, fo- na força simbólica do significante em jogo de
calizar todo o desalento e desesperança da arte e artifício com o significado. Em dinâmi-
hora. De outro, com erudição e sensibilida- ca e contínua oscilação, tal jogo impõe tam-
de, apropria-se de textos canônicos e erudi- bém dinamismo à função cognitiva dos leito-
tos, mas também populares, de diversas na- res. Ambos os poemas insistem, mediante a
cionalidades e de diversos períodos históricos repetição de um verso de Les fleurs du mal,
e artísticos, transcrevendo-os nas línguas de de Charles Baudelaire (1985), na recepção
origem para ilustrar uma verdadeira euforia da obra como produtora de sentidos. A Ter-
dialógica e intertextual como preservação e ra em pandemia ilustra um tempo e um es-
encomion cultural, quiçá um saldo positivo paço em que a esperança se aniquilou, abre-
diante de tanta devastação. Ao longo dos -se, entretanto, uma hipótese de salvação na
cinco cantos de que é composto, o poema possibilidade de surgir uma nova deusa no
organiza-se pela coexistência de opostos que panteão das desgraças: a vacina.
não se dissipam, por uma secura e por um O mesmo deslocamento imagístico que
vazio que não deixam espaço para a esperan- se verifica no corpo textual alicerça também
ça, muito embora no último canto, um tro- a relação intertextual que A Terra em pan-
vão possa, talvez, anunciar o fim da aridez. demia mantém com The Waste Land. Versos
O poema de Aleilton Fonseca dialoga de do poema modernista migram para o poema
perto com o de T. S. Eliot, num exercício de contemporâneo de várias formas: ou o poe-
adaptação, atualização, tradução e transcul- ta brasileiro verte do inglês alguns sintagmas
turação, “fricção textual”, como diria Antoi- retirados do poema de T. S. Eliot, obedecen-
ne Compagnon (2010). Tal como o poema do à mesma disposição e ao mesmo senti-
matriz, o do brasileiro apresenta cinco can- do em que figuravam na origem, por exem-
tos, conformados por inúmeras citações de plo, o primeiro canto é intitulado do mesmo
cariz erudito ou popular, abarcando literatu- modo: “The Burial of the Dead” / “O enter-
ra, música, mitologia e história, numa escrita ro dos mortos”, variando apenas o código
plural. Tal como aquele, este apresenta notas linguístico; ou o verso e a disposição de um
ao final do poema que procuram elucidar as se mantém no outro sem qualquer tradu-
citações do corpo do poema. Ambos discur- ção. Assim o último verso do primeiro canto
sam sobre um presente degradado, em que é, para ambos os poetas, citação, no original
a morte se instaura em tudo, através de sig- francês, de um verso de Charles Baudelaire,
nos de aridez, destruição, incomunicabilidade. ou, ainda, os sintagmas do poema matriz se
Sobre o u ni v e r s o em me tamo r fose e deva stação •   25

aproveitam com alteração de lugar. Assim No poema de origem, no primeiro canto,


o verso 22 do primeiro canto de The Waste surge uma “Madame Sosostris, famous clair-
Land – “A heap of broken images, where the voyante [...] Is known to be the wisest woman
sun beats” – foi adaptado para o oitavo ver- in Europe”. Ela possui um “wicked” baralho
so da terceira estrofe do segundo canto de por meio de que aconselha: “One must be
A Terra em pandemia, com leves variações: so careful these days”. O segundo canto, in-
“São feixes de imagens fraturadas, batidas titulado “A Game of Chess”, é estruturado,
pelo sol caolho”. Muitas vezes as modifica- como o título indica, como um jogo de xa-
ções se fazem por necessidades geográficas, drez cujas pedras atualizam cenas quotidianas
históricas ou culturais. Em T. S. Eliot os lilases marcadas pela violência, indiferença e banali-
saíam da terra morta misturando memória e dade entre as relações humanas. Secura, va-
desejo: “Lilacs out of the dead land, mixing zio e incomunicabilidade definem os contatos
/ memory and desire”, porém esta flor não interpessoais desgastados e inúteis que estão
condiz com a flora brasileira e por isso são em xeque. Mitos antigos ligados ao amor – o
“malmequeres” (I, 1:2) que aparecem no mito de Cupido e o de Filomela – tornam-se
poema de Aleilton Fonseca. Marie, uma das meros simulacros, uma vez que o primeiro se
muitas vozes líricas do poema norte-ameri- ergue como estátua e o segundo como pin-
cano, recorda um passeio de trenó que um tura. O assunto do segundo canto do poema
dia fizera com o primo e, mais tarde, dirigin- norte-americano é a ficção mítica do amor que
do-se a um tu, lembra-se de um ramo de ja- contracena com a história da vida privada de
cintos que este lhe dera, quando passeavam casais onde o silêncio impera e os interesses
pelo “Jardim dos Jacintos”. Toda esta cena se desencontram. Eros desgastado. O segun-
idílica, que simboliza um passado feliz, é re- do canto do poema brasileiro também ence-
tomada com as variações necessárias, cau- na jogos, e a Madame Sosostris migra para o
sadas pelas diferenças climáticas, geográfi- novo contexto como uma “famosa vidente”
cas e urbanísticas de um lugar e de outro, (II,1:1) que vê o futuro no tarô e, à medida
mantendo-se, entretanto, o mesmo simbo- que as cartas são viradas, o simbolismo que
lismo de um passado venturoso, lembrado, encerram desvenda um futuro tenebroso tal-
num desditoso agora, com saudosismo. Em vez imutável, posto que a Roda da Fortuna
vez de um passeio de trenó, o passeio se faz está travada. Não se encenam desajustes fa-
a pé, “pela orla”, sentindo o ofuscante odor miliares, as previsões anunciam um desajuste
da “maresia” (I, 5:2). Como o eu lírico do maior, uma ameaça letal que tudo comanda.
poema brasileiro é masculino, é “uma mu- Se, no poema norte-americano, o jogo de xa-
lher” que lhe dá flores e o casal volta tarde drez apresentava, metaforicamente, amor e
do “Jardim de Alah” (I, 5:7), referência ex- morte como jogadores, simbolizando nesta as
plícita não a um jardim propriamente dito, relações carcomidas e naquele o malogro afe-
mas a uma assim nomeada localidade da ci- tivo, no poema brasileiro Eros e Tânatos con-
dade de Salvador, num processo de adapta- tinuam seu infindável xadrez, num jogo em
ção da cena e condensação imagética entre que a morte logra, sem culpa e sem perdão,
o jardim, a estação do ano e as condições um imperioso xeque-mate. Da vidente diz-se
atmosféricas e o topônimo. que ela poderia ser uma aprendiz de Tirésias,
26 • Maria Theresa Abelha Alves

que é personagem do canto III da matriz, “se a articulação de várias línguas, de vários tex-
alcançasse o sentido do mito” (II, 1:4). Tiré- tos, de vários alfabetos, cria o processo rui-
sias, no poema de T. S. Eliot, com seus olhos doso que se sintetiza no último verso do ter-
cegos, vê a cena sexual entre a datilógrafa e o ceiro canto do poema: “BABEL!!!! bABEL!!!
empregado como uma cena banal, sem com- baBEL!! babEL. babeL. babel...” (III, 34:10),
prometimento, sem emoção, sem paixão. Ele, em que os símbolos gráficos (caixa-alta/cai-
ao contrário da cartomante, tem o sentido do xa-baixa) ilustram um chamamento inaudível
mito, pois embora a cena vista por ele de al- (Abel, Bel, El) que ecoa sem possibilidade de
guma forma retome a personagem Filome- resposta. A pontuação exclamativa vai sendo
la, é desprovida do pathos presente naquele progressivamente diminuída, barateada, até
antigo mito. A vidente não consegue ler nas reticências finais, que, tal como a vida nes-
cartas o verdadeiro sentido do mito, isto é, a ses tempos pandêmicos, evolui do espanto
realidade degradada do espaço sob o coman- ao incerto, ao suspenso.
do do “indigitado”, denominado “mito” (IV, O poema que retoma e desenvolve, na sua
6:5) por seus adeptos. Os jogos inseridos nos prática, as epígrafes que o encabeçam, organi-
poemas lembram que a literatura é um jogo za-se como interrogação desassossegada face
entre o real e a representação, e que os vo- tanto ao que Freud (1974) denominou “mal-
cábulos são as cartas ou os peões desse jogo. -estar da civilização”: o lado desarmônico do
Daí a ressignificação do vocábulo mito nas li- social que desestabiliza as mentes, quanto,
nhas e entrelinhas do poema brasileiro. Daí por outro ângulo, ao que Slavoj Žižek (2012)
a demonização do Poder, neste mesmo poe- denominou “mal-estar metafísico”, porque
ma, por um recurso meramente linguístico: a os dramas pessoais e coletivos já não encon-
etimologia da palavra “diabolos” (IV, 4:4-6) tram remédio nas crenças apaziguadoras. É
e o significado dos diversos signos que a en- com esse duplo mal-estar que a subjetivida-
globam (IV, 3:4-10) ratificando o que Roland de lírica, que no poema de Aleilton Fonse-
Barthes (1978) já dissera: o “Poder é legião”. ca é plural (notar a insistência de verbos na
Tanto o poema norte-americano como o primeira pessoa do plural, pois toda a socie-
brasileiro se redigem pela profusão de figu- dade se iguala num nós de medos e incerte-
ras sonoras (aliterações, assonâncias, ecos, zas), explora sentimentos e impressões cole-
onomatopeias) e de figuras semânticas (me- tivas, almejando a condição de testemunha
táforas, antíteses, símiles, sinédoques) e pela que precisa contar o que testemunhou a fim
combinação de várias línguas, além, respec- de dar a ver os fatos e a fatalidade. Já que
tivamente, do inglês e do português, e em os acontecimentos hodiernos exigem a não
registro ora culto, ora popular, muitas vezes inocência e o comprometimento, é urgente
em tom aforístico e proverbial, o que confe- a reflexão ontológica, ética e política sobre os
re aos poemas multiplicidade de vozes dia- seres, os tempos, os lugares e o Poder que,
logantes ou não, contemporâneas ou não. onipresente, se encontra nos eventos, como
Apesar de serem múltiplas, incomunicabili- gestor direto ou indireto dos mesmos, poder-
dade, ruído ou silêncio é o que tais falas ar- -legião que é em si mesmo um mal.
ticulam, num processo de atualização da Ba- Os fenômenos sócio-históricos deixam
bel bíblica. No poema A Terra em pandemia, indeléveis cicatrizes no corpo da linguagem
Sobre o u ni v e r s o em me tamo r fose e deva stação •   27

e dúvidas quanto a arbitrariedade do signo, Os Lusíadas, de Luís de Camões. Ao mesmo


daí que seja tão eficaz volver às significações tempo irônica e judicativa, a opção de Aleil-
etimológicas. No passado, o vocábulo testis ton Fonseca questiona a nossa civilização. A
(testemunha) denominava aquele que presen- palavra latina histor designava aquele que
ciara um acontecimento e por isso era capaz viu. Assim como testis, histor exigia a pre-
de relatá-lo com fidelidade. Testis era a teste- cedência do olhar, porém não era um olhar
munha ocular. Hoje os medias colocam tudo passivo, era um olhar judicativo. História é o
e todos no epicentro dos fatos, multiplican- produto do olhar interrogativo sobre os even-
do as potencialidades do ver. Já não há dis- tos. Mediante o indiscutível valor documental
tância: tudo é aqui. Já não há tempo: tudo do poema, de testis o sujeito poético se faz
é agora. Ubiquidade e onipresença são privi- histor, passando de testemunha a historia-
légios do homem contemporâneo diante de dor. O poema, em todo o canto III, ilustra a
um écran televisivo ou fílmico, neste plane- viagem não épica da partícula letal: o óbito
ta transformado em “aldeia global”. Teste- da primeira vítima, o fechamento de portos
munha-se tudo. Por isso mesmo o sujeito lí- e templos, a queda das Bolsas de Valores, as
rico se encontra em sua própria casa, como cidades desertas e afastadas das marcas que
precaução emparedado em “LOCKDOWN” as identificam, os agentes de saúde sucum-
(III,19:5-6), e, concomitantemente, em todo bindo no front contra o mal, o aumento de
lugar, experimentando-se companheiro da contaminados e de covas, “holocausto sem
viagem daquele passageiro clandestino cujo fronteiras, sem regras, sem dó” (III, 2:10);
“destino é o mundo inteiro” (III, 1:4) e que mas também o negro sob os pés do racismo
não perdoa nenhum país. Despertado pelas da polícia e as “explosões da insensatez”
imagens dos documentários, o sujeito da (III, 24:4) que deixaram sob escombros a ci-
enunciação, como testis, aporta também nos dade de Beirute. Sobre as imagens que, das
lugares visitados pelo indesejado viajor. Tes- várias terras contaminadas, vítimas da viru-
temunhando, presencia as reações à chega- lência e da violência, se sucedem em ritmo
da daquele que, sem o green card (III, 8:4), acelerado, paira uma voz crítica que localiza
ousa invadir, como “viajante ilegal” (III, 2:7), a gestação maléfica na inércia, negação e im-
as terras de Tio Sam e as de todo o planeta. prudência das elites governamentais no en-
É interessante a utilização da metáfora da frentamento do perigo: um, traindo o povo,
viagem para focalizar a expansão do mortí- “negou três vezes” (III, 8:1) o mal; outro,
fero vírus, que parte da China para o mun- num arrogante “E daí?” (III, 17:6), externou
do. Igualmente interessante é a utilização de sua indiferença. Com perplexidade, exibe-se
estrofes em décimas, tipo estrófico com que o desfile de ódio dos “Caricatos cavaleiros
outrora se cantaram as viagens épicas dos sé- da discórdia, da balbúrdia, da dissolução”
culos XV e XVI, para ilustrar esta nova viagem (IV, 2:9), que conspurcam a bandeira verde-
feita na contramão daquelas que, em busca -amarela com que, insanamente, cultuam a
das especiarias chinesas, levaram a civiliza- besta apocalíptica, o “passageiro das trevas,
ção ocidental para todo o mundo. A de ago- homiziado no Palácio da insânia” (IV, 6:1). Se
ra não é civilizacional, é destruidora. Quanto da seleção e combinação dos fatos, origina-
a isso, não é inocente a citação de versos de -se um trabalho historiográfico, da seleção
28 • Maria Theresa Abelha Alves

vocabular, da sintaxe e da semântica, criati- expressão bíblica muitas vezes presente tanto
vamente trabalhadas, gesta-se um surpreen- no Antigo como no Novo Testamento: “Son
dente labor poético, por exemplo, o enge- of man”, alude ao Salmo 136, Super Flumina
nhoso emprego dos signos identificadores Babylonis, ao dizer: “By the Waters of Leman
de Paris que, por leve modificação, adqui- I sat down and wept...”, termina o terceiro
rem novo significado: “A cidade perdeu a canto como uma prece “O Lord Thou Pluckest
luz; em seu Arco não há Triunfo” (III, 11:8). me out / O Lord Thou pluckest”, retoma mi-
O poema de T. S. Eliot e o de Aleilton Fon- tos da religião grega clássica e conceitos da
seca articulam eixos semânticos que imbricam primitiva religião da Índia ao citar, ao fim do
três vocábulos provenientes do mesmo éti- poema, no sânscrito original, os Upanixades.
mo latino, o verbo colo, cujos tempos primi- Já em A Terra em pandemia, recolhem-se ex-
tivos colo, cultus, culturus geraram, respecti- pressões que lembram várias práticas religio-
vamente, cultivo, culto e cultura. Os poemas sas: “Améns”, “Missas e cultos”, “altares”,
evidenciam a complexa aliança que há entre “anjo”, “salvação”, “templos”, “martírio”,
tais signos. No primeiro eixo, em The Waste “mesquitas”, “Zeus”, “Baal”,“Alah”, “Cris-
Land, há uma gama de signos retirados do to”, “profetas”, “rosário”, “holocausto”, mas
mundo vegetal: “rots”, “tubers”, “branches”, também o discurso bíblico, através da citação
“tree”, “hyacinths”, “vines”, “leaf”, “vegeta- de versículos do Eclesiastes e do Apocalipse.
tion”, “grass”, “pine”, e das práticas de ama- O que permanece, num e noutro poema, é a
nho da terra: “planted”, “garden”, “sprout”, incapacidade das crenças para responder às
“bloom”. Igualmente, em A Terra em pande- inquietações humanas em tempos de devasta-
mia: “malmequeres”, “flores”, “florestas”, ção e morte. Carência e silêncio que emanam
“jardins”, “relvados”, “canteiros”, “planta- de tudo contaminam o sagrado, fomentan-
mos”, “germinar”, “semeamos”, “plantio”, do o mal-estar metafísico. No poema de T. S.
“grãos”, “germinem”. Se a tradição literária Eliot, tal vazio se ilustra pela “empty chapel,
associou o mundo verde à “paisagem ideal”, only the wind’s home”, pelo candelabro judai-
amena e aprazível, os poemas em questão co cuja chama é efeito do espelho. As religi-
rompem com a tradição criando um “locus ões são apenas camadas superpostas da cul-
horribilis”. No poema norte-americano, as tura armazenada pelos povos. A citação dos
raízes são inertes (dull), os tubérculos, resse- Upanixades insinua que perguntas e respostas
quidos (dried), a árvore, morta (dead), uma estão menos nas crenças que na compaixão
secura total impede a germinação e metafo- (dayadhvan) e no autocontrole (damyata) dos
riza a morte. No poema brasileiro, as semen- homens. No poema brasileiro, o deus de to-
tes não germinam, os canteiros se fazem de das as crenças também está de portas fecha-
corpos mortos, plantam-se cadáveres que se das e em silêncio: “A Arábia Saudita fechou
semeiam em terra infértil, os silos armaze- a sagrada Meca, o santuário de Ka’Bah / Na
nam mortos. A mesma desolação, a mesma Basílica do Vaticano um Papa triste e só, ora
esterilidade, a mesma secura. Os poemas en- e pede clemência / Nos terreiros de candom-
cenam uma peregrinação “ad loca infecta”. blé, os atabaques ressoam o silêncio” (III, 9:1-
No segundo eixo, os signos se retiram do 3) e só no homem está a solução: “Em cada
discurso religioso. The Waste Land retoma uma um de nós sua única salvação”(V, 2:10). Os
Sobre o u ni v e r s o em me tamo r fose e deva stação •   29

poemas descreem da palavra bíblica que diz Todo trabalho de preparo da terra, de se-
que a fé faz a água, com todos os sentidos meadura e de colheita é um trabalho cultural
simbólicos vitais e salvadores, brotar da pedra. que envolve relações de poder subjugadas
A fé não esconjura a seca física ou psicológi- às esferas econômicas e políticas. O poeta
ca, real ou alegórica: em ambos os poemas, brasileiro dispõe os recursos da língua por-
o inferno é aqui e “A grande fábula do céu tuguesa e da tradição cultural para confron-
cedeu” (III, 34:8). tar os percalços e os poderes e o faz, dei-
O terceiro eixo, o da cultura, perpassa uma xando claras suas concepções existenciais,
e outra obra, atrelando o cultivo, o culto e o estéticas e políticas, compreendendo a his-
arsenal de símbolos inventariados pelos sabe- tória como progressão dessas mesmas esfe-
res, pela intertextualidade, pela memória dos ras, daí buscar a origem das maleitas atuais
fatos, das práticas e dos valores. Alfredo Bosi nas do passado. Se no hoje o vírus maldito
(1992) nos ensina que colo implica ocupar a mata, um outro maldito vírus tem contami-
terra e lavrá-la. Todo processo civilizacional se nado a realidade: o descaso com as mino-
fez no sentido dessa ocupação e desse traba- rias tem exacerbado “A má arte de assassi-
lho. O domínio do espaço e, consequentemen- nar mulheres, índios, negros, quilombolas”
te, do semelhante visto como outro é o que (III, 20:8) e vem aprimorando, “Desde sem-
a história das Américas tão bem exemplifica. pre, a epidemia que vem de tempos, em
A Antropologia diz que o enterro dos mortos longa lista” (III, 20:9). Assim, o negro as-
precedia ao ato de lavrar a terra, de cultivá- sassinado em Minneapolis culmina um pro-
-la. O pensamento mágico que preenchia uma cesso racista iniciado com a escravidão, o
causalidade deficiente – o chão que guarda- que torna atuais os versos de “O navio ne-
va os corpos falecidos era o mesmo que trazia greiro”, de Castro Alves. O índio dizimado
o alimento – foi a primeira forma de religião, pelo vírus na Amazônia representa todos os
englobando o sentido agrário e o sentido sa- que foram dizimados no processo da colo-
cro. Tanto o poema de T. S. Eliot quanto o de nização que se fez por apropriação de ter-
Aleilton Fonseca trançam o cultivo e o culto: ras para o cultivo e de braços para as culti-
“That corpse you planted last year in your gar- var. O mesmo princípio econômico-político
den. / Has it begun to sprout? Will it bloom da época colonial continua hoje no agrone-
this year?”, lê-se no primeiro e, no segundo, gócio responsável pelo desmatamento das
lê-se: “Os cadáveres que plantamos nos jazi- terras amazonenses e destruição das vidas
gos urgentes, mal-acabados, / Já começaram e das culturas nativas. Como tudo se amal-
a germinar?” (I, 8:7-8). Se o enterro dos mor- gama no complexo do Poder, “As nascentes
tos foi a primeira espécie de culto, para que silenciam o canto” (I,7:7) e geram a falta de
eles fossem lembrados através dos brotos que água que impõe a secura e a esterilidade,
nasciam da terra, num e noutro poema enter- metáforas da morte. A aridez encontra sua
rar os mortos é não permitir que sejam esque- raiz nesse mesmo interesseiro desmatamen-
cidos. Daí a nomeação do médico chinês que to: “Se possuíam densas florestas, por que
quis avisar o mundo sobre o perigo iminen- as devastaram para vender?” (I, 7:5). Con-
te e morreu. Dizer “Doutor Li Wenliang” (III, jugação indesejada de colo, cultus, cultu-
5:7) é culto à sua memória, é não o esquecer. ra. Conjugação aplaudida de testis e histor.
30 • Maria Theresa Abelha Alves

Sabe-se, com Calvino, que a literatura re- Referências


quer empatia e contiguidade universal. É nes- BARTHES, Roland. Aula. Tradução e posfácio de Leyla
se duplo vetor que transita o modus operandi Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1978.
BAUDELAIRE, Charles. Les Fleurs du mal /As flores do
dos poetas e também o dos leitores. Os poe- mal. Tradução de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro:
mas não aconteceriam sem uma subjetivida- Nova Fronteira, 1985.
BENJAMIN, Walter. “O narrador”. In: Magia e técnica,
de mergulhada no tempo histórico e reativa a arte e política: ensaios sobre literatura e história da
esse tempo, subjetividade que, pela metamor- cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed.
São Paulo: Brasiliense, 1994, v. 1 (Obras escolhidas).
fose, transforma em arte o real, e fertiliza o BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Com-
texto unindo memória individual e repertório panhia das Letras, 1992.
CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Tradução de Nil-
cultural. Há obras que interpelam, intrigam, son Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
desconcertam e ficam. São as que no sigilo da COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Tradu-
ção de Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: Edi-
produção e da leitura desvelam o sentido do
tora UFMG, 2010.
corpo (in)consciente do poético. São as que, ELIOT, T. S. The Waste Land. New York: Boni and Live-
barthesianamente, obrigam o leitor a levantar right, 1922.
FREUD, Sigmund. Mal-estar na civilização. In: Obras Com-
a cabeça. Aleilton Fonseca leu Bhagavad-G t , pletas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
Ovídio e T. S. Eliot levantando a cabeça. Neles 1974. Vol. 21.
FEUERSTEIN, George. O Bhagavad-G t : uma nova tra-
buscou o manifesto e o latente, o racional e o dução. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São
emocional, o local e o universal e reescreveu- Paulo: Pensamento, 2015.
FONSECA, Aleilton. A Terra em pandemia. Itabuna: Mon-
-os, permitindo que prosseguissem a dizer o drongo, 2020.
que de fato disseram e continuassem a olhar WILHELM, Richard. I Ching. O livro das mutações. Tra-
dução de Alayde Mutzenbecher e Gustavo Alberto
para nós, leitores, e a nos interpelar como se Corrêa. São Paulo: Pensamento, 2006.
fossem ícones ortodoxos. A Terra em pande- OVIDIO. Metamorfoses, livro XV.
ŽIŽEK, Slavoj. O ano em que sonhamos perigosamen-
mia, metamorfose plena do mal em poesia, te. Tradução de Rogério Bettoni. São Paulo: Boi-
fez-me ler levantando a cabeça. tempo, 2012.
Vive! E lembra-te de mim

Viviana Bosi
Professora do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP.
Autora de Poesia em risco. Itinerários para aportar nos anos 1970 e além (2021),
sobre diversos poetas brasileiros contemporâneos, dentre outros livros e estudos.

Resumo: Este ensaio tem como foco principal artistic composition. It manifests a doubt in re-
a análise interpretativa do poema “Visitante”, gard to the welcoming and understanding of
de Cecília Meireles, incluído no volume Vaga poetry in the world today. The poem obli-
música (1939). Alguns traços de sua poética quely refers to a time hostile to the author’s
se delineiam nestes versos, tais como a inda- desire to accomplish a “reinvented life”
gação sobre possibilidade de comunicação through imagination.
entre o sujeito e o seu interlocutor, ou entre
o poeta e seu leitor, assim como a reflexão Keywords: Cecília Meireles; Brazilian poe­
sobre o trabalho de composição artística. O try; lyrical subject.
poema manifesta uma dúvida em relação ao
acolhimento e à compreensão da poesia no Conservo-te o meu sorriso
mundo atual, referindo-se, obliquamente, a para, quando me encontrares,
um tempo hostil ao desejo de realização de veres que ainda tenho uns ares
uma “vida reinventada” pela imaginação. de aluna do paraíso...

Palavras-chave: Cecília Meireles; poesia bra- Leva sempre a minha imagem


sileira; sujeito lírico. a submissa rebeldia
dos que estudam todo o dia
Abstract: This paper focuses especially on sem chegar à aprendizagem...
the interpretative analysis of the poem “Vi-
sitante” (“The visitor”), by Cecília Meireles, (Cecília Meireles. “Aluna”, Vaga música, 1942)
included in Vaga música (1939). Some of
her poetic traits are expressed in these ver- Há mais de trinta anos, numa sala do
ses, such as the questioning of the possibi- curso de Letras, uma aluna ouvia a leitura
lity of communication between the subject de um poema que o professor de Literatu-
and his/her listener or between the poet and ra Brasileira distribuíra para a classe. Esta-
his/her reader. The poem also reflects upon vam todos concentrados, acompanhando a
Este artigo foi originalmente escrito para um número sobre a leitura de poesia em sala de aula para a Revista Literatura
e Sociedade (DTLLC, USP), a ser publicado. Pedimos autorização para a sua comissão editorial para republicá-lo aqui.
32 • Viviana Bosi

voz do professor. Então, houve uma ligeira com uma lâmina de aurora,
pausa na leitura, que fez a aluna levantar a e escreve-me, indo-se embora:
cabeça da página e ver, de relance, que ele “Vive! e lembra-te de mim”?
chorava. Discretamente, num átimo, a lágri-
ma desapareceu. Quem, do mar do esquecimento,
Às anotações no caderno, que reprodu- busca areias de lembrança,
zem de forma sumária, certamente incomple- mas tão sem força e esperança
ta, o que o professor dissera à época, foram que outra vez volve ao seu fim,
se acrescentando inquietações que o poema mira seu rosto, um momento,
originou ao ser relido ao longo dos anos. As- à luz do meu sonho triste,
sim, esta aluna se propõe a retomar, ainda compreende que não existe,
que parcialmente, a análise feita em classe e pergunta: “Por que vim?”
naquele dia e a escavar um pouco mais as
evocações que o poema lhe suscitou. (Cecília Meireles, Vaga música, 1942)
A intenção é corresponder à dupla soli-
citação que lhe foi feita: que escrevesse um Provavelmente composto durante o perío-
artigo no qual exporia uma análise interpre- do da Segunda Grande Guerra, “Visitante” in-
tativa adequada aos nossos cursos de gradua- tegra o volume considerado o segundo livro da
ção e, ainda, que convidasse aquele profes- voz madura de Cecília Meireles. Este fora pre-
sor para que ele também participasse deste cedido por Viagem (1939), livro premiado que
número especial dedicado à leitura de poe- lançara a autora para um público mais amplo,
sia. De modo que, estimulada pelos dois pe- no qual já nos deparamos com características
didos, decidiu uni-los e reformular a análise que se repropõem em grande parte de sua obra
a partir das lembranças daquele dia. posterior. Voltaremos a isso, mas, por ora, prin-
Rarefeitas e esparsas serão nossas cita- cipiemos por uma leitura mais estrita às confi-
ções da fortuna crítica, tendo em vista que gurações formais do poema em tela.
se trata sobretudo de uma “aula”. Se men- Nota-se bastante simetria entre a primei-
cionamos uns poucos estudos e alguns ou- ra e a segunda estrofes, oitavas de tradição
tros poemas, tudo será carreado para uma lusitana, que se abrem com o pronome inde-
possível melhor compreensão do centro de finido e interrogativo “Quem”, uma vez que
imantação. ambas terminam na forma de perguntas. Con-
O poema pede leitura em voz alta: tribui com a impressão de ressonância o espe-
lhamento engenhoso das rimas (ora paralelas
ora a se repropor: ABBCADDC e AEECAFFC),
Visitante assim como a métrica regular da redondilha
maior.1 O padrão sonoro do poema sugere
Quem desce ao adormecimento
1 Com a exceção do primeiro verso, no qual tendemos a
que me envolve e em que me perco, contar oito sílabas poéticas – espraiamento compreensível
feito um vento abrindo um cerco pelo próprio sentido deste –, ou então, apertamos o com-
passo com uma sinérese forçada (des-ce ao a) mas não
de penumbras, num jardim,
impossível. Como o octossílabo é medida de verso bem
e toca o meu pensamento comum na obra de Cecília, não surpreende esta abertura.
V ive ! E lembra - te de mim •  33

que cada estrofe de oito versos poderia ser O paralelismo das imagens acrescenta
dividida em dois quartetos, já que o acento um tipo de balanço simétrico ao poema: na
rímico enfatiza a reverberação, alternando-se primeira estrofe, vento e aurora vêm se so-
as terminações ditas francesas (de palavras mar, enquanto na segunda, mar e areia se
paroxítonas): adormecimento, pensamento, defrontam, como se, de forma transfigurada,
esquecimento, momento; e as chamadas ri- comparecessem, de modo indicial, os quatro
mas espanholas, consideradas mais enfáti- elementos primordiais (ar, fogo, água e terra)
cas (palavras de acentuação oxítona): jardim, em uma gangorra de alternâncias.
mim, fim, vim... Um ser misterioso, que vem de cima, pos-
A pulsação rítmica marcadamente terná- sivelmente de esfera superior e transcenden-
ria e os ecos sonoros lembram os embalos te, irá, portanto, descer em busca do sujeito
da maré, quando ocorre o breve encontro adormecido, como se este estivesse em lo-
que logo se esvai... Chama a atenção do lei- cal protegido, rodeado por um invólucro de
tor tantas reverberações, seja as propiciadas névoa entorpecedora, no qual houvesse ol-
pelas muitas nasais, seja pela oclusiva velar vidado de si.
/k/, a começar por esse “quem” conjugando A princípio, apresenta-se a comparação
ambas, que vai rebatendo para todos os la- entre o visitante desconhecido e o vento que
dos no começo das estrofes (quem/ que me, penetra um “cerco de penumbras”, como se
perco, cerco, esquecimento, toca) como in- o eu lírico fosse uma bela adormecida em
dagação e procura pela identidade – sujeito um jardin clos, lugar fechado e obscurecido,
indefinido dessa longa primeira sentença em e o vento viesse despertá-lo com o impulso
que um eu vai acordando, como se estives- de seu sopro – palavra nomeadora e espíri-
se a se espreguiçar. De um lado, essa sono- to fecundante.
ridade mais dura do /k/ pode ser associada à O vento estimula, aviva: ser animador que
concretude da pergunta, mas logo a sibilante “toca com uma lâmina de aurora”. Perfura
/s/ ao lado da amiga dental /d/ (desce, ador- e abre com ímpeto que instiga a sair desse
mecimento), unida às nasais e à fricção sua- adormecimento pelo fio agudo e luminoso
ve do /v/, vem se espraiar por todo o poema. a romper o ambiente recluso.
A repetição é ainda reiterada pela cons- Mas é muito rápida essa epifania, pois
trução encadeada, paratática, em que os logo o visitante se retira. Insufla algum vigor,
acréscimos coordenados parecem ondas num instante que quebra a modorra, e se vai.
que vão e vem.2 Cada estrofe se constitui Fica inscrito na memória pois, ao partir, deixa
numa grande frase, em que as pausas do fi- uma frase, um emblema: “Vive! e lembra-te
nal de cada verso são sucedidas por alguns de mim”. Este “quem” indeterminado (cria-
enjambements, a criar uma impressão de dor, pneuma, amante fugaz, divindade, alter
continuidade de bloco. ego, memória, inspiração, inconsciente?) es-
creve algo fundamental. Para que o sujeito (e
2 Mário de Andrade, em resenha de Viagem publica-
da em 1939, louvava essa facilidade de Cecília Mei-
o próprio poema) exista, ele precisa recordar
reles para o uso das formas tradicionais, as quais sua marca de batismo.
proporcionavam aos seus poemas um equilíbrio en-
tre espontaneidade e construção, assegurando pre-
O visitante deixa registrada uma frase,
cisão expressiva. como um mandamento, para que, a partir
34 • Viviana Bosi

dela, a voz poética acorde e renasça. Ora, Seria uma reminiscência subconsciente
também nós, transformados em sujeitos pela ou transcendental que tenta emergir, como
lei da poesia, em que o eu lírico inclui o lei- um afogado a buscar a terra firme? O nasci-
tor, recebemos o mesmo imperativo. Assim, mento do sujeito e do poema poderia ocor-
é estabelecido um diálogo nestes versos, em rer agora, ao adensar-se sua figura corpórea?
que um outro, daimon sobrenatural ou parte Que as musas, divindades do canto, se-
do inconsciente, é o responsável pela origem jam filhas da memória, este poema vem cor-
do sujeito. Como um Janus de duas faces, roborar, uma vez que a consciência da ver-
ele parece ordenar que o seu interlocutor se dade parece coincidir com a fonte grega,
volte tanto para a frente quanto, em certa na qual o inspirado, antes envolto em am-
medida, para trás. Este “e” entre a primei- nésia, quando tomado pelo entusiasmo, re-
ra e a segunda frases sugere tanto um tom cebe de potências superiores o desvelamen-
de coordenação quanto de adversativa. Po- to do esquecido.
rém, no contexto, recordar é sobretudo ser: Mas, tão logo desponta – cintilação pas-
embora a inscrição seja curta, a resistência, sageira –, o visitante volve em seguida ao
precária, há um reconhecimento. seu amortecimento. Essa “outra vez” emu-
Na segunda estrofe, o “mar do esque- la o movimento de uma segunda tentativa
cimento” ecoa “adormecimento”. “Esque- de aproximação – como uma nova onda/es-
cer” deriva do latim cadere, cair, descer, trofe. Desta feita, porém, parece ter perdi-
como alguém submerso que deseja aflorar. do a energia assertiva do sopro e da luz que
Estamos em um ambiente informe, mergu- o caracterizara antes. Agora é “tão sem for-
lhados no líquido embrionário da indefini- ça e esperança”, que logo reflui para o “seu
ção onírica. O visitante poderia, desta vez, fim”. Apareceu célere para o sujeito lírico
vir até de dentro do visitado. Enquanto o ainda adormecido, como se este figurasse
oceano é escuro, infinito, e nele o sujeito no sonho a imagem da realização do desejo
encontra-se praticamente fundido às águas, em que o visitante pôde, por um instante,
por oposição, alcança cristais minúsculos se enxergar refletido.
(as areias), grãos de ínfima mas consisten- Ora, ao “mirar seu rosto” no sonho, su-
te matéria. Algo que advém das profun- gere-se a imagem do espelho, considerado,
dezas quer definir-se, através de mínimas desde Platão, o próprio símbolo da mimese
lembranças, ao menos como vestígios de poética. Para o filósofo, a representação ar-
autoconsciência. A areia parece represen- tística não continha substância concreta. En-
tar essa orla de esperança, metonímia da tão, há uma distância entre o visitante e a
praia, quando se atinge a possibilidade de realidade, como se o mundo não o pudesse
estar diante de: presença. acolher – o sonho de uma sombra. Já antes
No entanto, como já apontamos, tra- se insinuara o intervalo, quase intransponí-
ta-se de um elemento próximo do pó, o vel, entre o plano elevado de onde proveio
qual não se pode de fato considerar como o ser misterioso e este lugar de oblívio e se-
algo consistente: as “areias de lembran- miconsciência em que se acha o sujeito. Se
ça” compõem evocações escassas, qua- o visitante veio do alto, seria ele um envia-
se dissolvidas. do do reino das ideias, talvez, que traria vida
V ive ! E lembra - te de mim •  35

e ânimo ao sujeito que apenas o vislumbra, desconhece? Ou seja, um estado de ânimo


num átimo?3 especial que emerge do fundo do eu para ati-
Outra faceta da imagem do espelho re- çar vigor na voz poética, mas não consegue
ponta frequentemente na poesia de Cecília: se firmar e permanecer, e logo se dissipa?
são numerosos os versos em que o sujeito Talvez, como na lenda de Eros e Psiquê,
lírico olha para o próprio rosto e não se re- este forasteiro pudesse ser interpretado como
conhece. Sua face está perdida ou diferente alma divina que vem amorosamente procu-
do que supunha aparentar, como constata- rar o sujeito, na tentativa de conduzi-lo a seu
mos nesta estrofe da “Canção quase inquie- reino?4 No entanto, ao descobrir que “não
ta” (Vaga música): existe”, desaponta a expectativa de elevação
e de companhia do eu lírico?
(Mas, neste espelho, no fundo Seja como for, a voz poética anseia pela
desta fria luz marinha, chegada do visitante, que virá finalmente
como dois baços peixes, despertá-lo, fazê-lo viver em plenitude. Mas
nadam meus olhos à minha procura... este, quando finalmente emerge e se mani-
Ando contigo – e sozinha. festa, “compreende que não existe.” Como
Vivo longe – e acham-me aqui...) o “Ulisses” de Pessoa,

E em outro poema, ainda: Este, que aqui aportou,


Foi por não ser existindo.
Entre o desenho do meu rosto Sem existir nos bastou.
e o seu reflexo, Por não ter vindo foi vindo
meu sonho agoniza, perplexo. E nos criou.
(Mensagem, 1934)
(“Epigrama do espelho infiel”, Vaga música)
O incerto visitante, ao mirar-se à luz do
Em ambos, o sujeito estranha a própria sonho, se reconhece como um provável fru-
face, sinédoque possível da identidade. (Per- to da imaginação do sujeito adormecido.
guntemos aos lacanianos o que significaria Como se trata de um “quem” interrogativo,
esse estágio do espelho assim fluido e im- poderia ser apenas um apelo íntimo da voz
preciso). lírica solitária que aspira pela chegada desse
Eventualmente se poderia considerar o vi- alguém único, absolutamente especial, que
sitante como uma parte de si mesmo que se nunca virá, a não ser no devaneio do desejo.
3 Em seu brilhante estudo da poesia de Cecília Meireles,
O “sonho triste” no qual o visitante, por
Leila Gouvêa (2008) desenvolve pesquisa sobre a influên- um “momento”, “mira seu rosto” evoca
cia da filosofia grega, especialmente de Pitágoras e Pla-
tão, ao lado da mística oriental, sobretudo no que am-
bas contêm de comum, como a crença na efemeridade 4 A possível reminiscência a esta lenda faz-nos lembrar
passageira das coisas deste mundo, meras aparências, do poema de Fernando Pessoa, “Eros e Psique”, no qual,
em contraposição à eternidade de uma realidade supe- afinal, Eros descobre que ele e Psique são a mesma pes-
rior. Igualmente, a importância fundamental da reme- soa. Quem sabe aqui em nosso poema, o visitante, ao
moração (anamnese) para alcançar o desvendamento buscar acordar o sujeito lírico, também não se transfor-
de verdades soterradas pelo esquecimento provenien- ma na coisa amada, desvanecendo-se tão logo o poe-
te da reencarnação. ma seja afinal gerado?
36 • Viviana Bosi

o isolamento do poeta moderno, que nos te como uma peregrina, isolada, à busca de
acompanha ao menos desde a figura do le- si mesma ou de alguém impossível e ausen-
que que desce do céu de Mallarmé: beijo te, que apenas no sonho poderia se revelar e,
proveniente do espaço que quer se aproxi- quem sabe, acolher sua sede por compreen-
mar, mas não encontra guarida entre os ho- são intensa, em um universo em que tudo é
mens, como asa que não se consegue con- inescrutável e por vezes adverso:
ter na mão.
De forma análoga, Mário de Andrade, ao Quem viu aquele que se inclinou sobre
analisar “Eco” (Viagem) no ensaio “Cecília palavras trêmulas,
e a poesia”, escrito em 1939, se pergunta- de relevo partido e de contorno perturbado,
va se um cão que late à noite, figura princi- querendo achar lá dentro o rosto que dirige
pal daquele poema, jamais acharia resposta os sonhos,
para o sentido de sua vida, uma vez que pos- para ver se era o seu que lhe tivessem
sivelmente estava a escutar apenas o ressoar arrancado?
do próprio som que produzia.
O último verso contempla um desdobrar- (“Estrela”, Viagem)
-se, quando se sobrepõem duas interroga-
ções: enquanto o eu lírico continua a se inda- Quem me leva adormecida
gar sobre quem é esse visitante, ele mesmo, pelas dunas, pelas nuvens,
de sua parte, também faz uma pergunta, com este som inesquecível
seja para si mesmo, seja para o sujeito, seja, do pensamento no escuro?
por fim, para o leitor: “Por que vim?”. Se, (“Passeio”, Viagem)
na primeira estrofe desta pequena fábula, a
questão partira da voz poética, nesta segunda Perguntei quem era,
ela foi emitida pelo seu duplo – quem sabe, Mas não respondia.
ambos habitam a mesma pessoa, como ins- Sumiam-se as falas.
tâncias divididas do sujeito. Não temos cer- Cruzava por muros
teza se seriam duas personagens que se de- de sombra e desgosto,
frontam em um diálogo ou apenas um ser
(como a importância do espelho, do nome, do corpo,
desdobrado. da transitoriedade, e em tantos outros), à volta do que
Versos e estrofes que terminam de forma seria a defesa do feminino numa poesia reputada como
universalista e praticamente andrógina. Assim, conven-
interrogativa são comuns na obra de Cecília, ceu-nos em relação ao reconhecimento inequívoco da
na qual a poeta5 é apresentada frequentemen- porção mulher nas imagens que ela convoca. (Recomen-
damos fortemente a leitura do ensaio de Dal Farra, poeta
5 Poetaou poetisa? Carpeaux se insurge contra uma fal- e poetisa que vai a fundo em sua reflexão sobre Cecília
sa poesia feminina, sentimental, por vezes escrita por Meireles). Mas, por não querer de forma alguma dimi-
homens, e, para distinguir Cecília Meireles deste apo- nuir essa grande poesia com os preconceitos existen-
do “pejorativo”, prefere chamá-la de “poeta” (1999: tes à volta de um termo estigmatizado, permanecemos,
874). Também por isso, apesar da argumentação extra- por ora, empregando a definição mais consensual. He-
ordinariamente bem articulada de Maria Lúcia Dal Farra loísa Buarque de Hollanda organizou uma antologia de
(2006), que nos inclinaria a empregar sem medo o ter- poesia contemporânea escrita por mulheres à qual deu
mo “poetisa”, vamos continuar a utilizar “poeta”, esta o título de As 29 poetas hoje (2021). A diferença entre
palavra hoje considerada de gênero uniforme. O estudo o estilo de Cecília e a poesia feminina atual não poderia
desenvolvido por Dal Farra perscruta a obra de Cecília ser mais estridente, o que (quase) nos tenta a chamá-la
Meireles como um todo, ao deter-se em temas centrais de poetisa, por contraste...
V ive ! E lembra - te de mim •  37

por salas e salas e encolhida no sonho, desconfiada até mes-


de melancolia. mo da própria realidade.
Ressoa, neste passo, a reflexão de Agam-
Perguntei: “Quem és?” ben sobre o fim do poema – o momento em
Mas não respondia. que, reunidos o sentido completo e os ecos
De nuvens, de espuma, sonoros, ambas as correntes, semântica e se-
de espuma, de areia, miótica, confluem para o ponto em que se
me achava enrolada, “destruiria a máquina poética, precipitan-
da cabeça aos pés. do-a no silêncio”, pois “o que resta do poe-
Pelos corredores ma depois da sua ruína?” (2002: 146-147).
sem luz e sem porta, E ainda, o que resta do sujeito lírico na mo-
sem porta e sem termo, dernidade, agora confinado ao espaço da
não se via nada. intimidade e da imaginação?
Pois, afinal, quem poderia ser o visitante?
(“Alucinação”, Vaga música) Um deus momentâneo que quer se ma-
nifestar? um sentimento do transcendente
Enquanto todos os verbos estão no pre- que sobrevive nesse mar infinito e inexplicá-
sente em “Visitante” (pois desenrola-se um vel do inconsciente? ou uma inspiração que
aqui e agora instantâneo, característico da aspira a materializar-se em palavras escritas?
recordação lírica), a pergunta “Por que vim?” seria a expressão do poético que não encon-
já acontece no passado, a evidenciar o fim tra lugar no mundo real, apenas no imaginá-
da visita e do poema. Na primeira parte, os rio, no sonho que é triste porque não pode
verbos denotam atividade, ao passo que os realizar-se, não tem lugar ou sentido e logo
últimos, em sua maioria, tendem à introspec- recua para o nada? ou, quem sabe, o anseio
ção (mirar, compreender, perguntar). Esta in- pela companhia do Eleito para o sujeito líri-
dagação final parece resultar de um indício co, solitário como a harpista na estação de
súbito de consciência (em meio ao sonho) águas? ou, por fim, o instinto vital do poeta
decorrente do ato de refletir-se: o visitante, a irromper por um instante em meio à sua
ao reconhecer o próprio rosto-poema, con- infindável melancolia?
clui tanto pela sua inutilidade quanto pela Esse “quem”, ao que se pode inferir, pare-
sua inexistência no mundo real. Sua tentati- ce ser uma voz que tenta entender o sentido
va de encarnar-se perdeu o sentido no mo- do trajeto vital ao buscar o poeta no poema,
mento mesmo do encerramento do poema. todavia a já se despedir no último verso. Teria
O trajeto esgotou-se ali mesmo, como se ele essa rápida existência entre duas águas nos
admitisse a própria insignificância para quem alcançado antes de refluir? “O Tu, em última
o poderia tê-lo recebido. Per-feito, dissolveu- instância, é enigma, porque a sua perenida-
-se, incompreendido e ignoto. de na memória corresponde à sua transito-
É acentuada a discrepância entre o tom riedade no tempo”, por isso “A construção
exclamativo da primeira afirmação do visitan- da presença é uma alegria difícil porque fun-
te, que se dirige certeiro ao seu interlocutor, dada na dor da ausência”, percebe Alfredo
no imperativo, e sua segunda fala, dubitativa Bosi (2003:126).
38 • Viviana Bosi

Haveria, no fundo, talvez, certo tom ele- da personagem Raimundo em “Os três mal-
gíaco de reminiscência biográfica, tendo em -amados” (1943):
vista seja o perecimento precoce de tantos Maria era também a folha em branco, bar-
membros da família de Cecília e, ainda re- reira oposta ao rio impreciso que corre em re-
cente, a morte trágica do primeiro marido? giões de alguma parte de nós mesmos. Nessa
Miguel Sanches Neto descreveu esta poesia folha eu construirei um objeto sólido que de-
como de “lirismo orfânico” (2001: xxiii), dado pois imitarei, o qual depois me definirá. Penso
o alto número de perdas que a autora sofreu. para escolher: um poema, um desenho, um
Nesse caso, o visitante se reportaria a um ser cimento armado – presenças precisas e inal-
amado, infelizmente transitório, que inten- teráveis, opostas à minha fuga. (1995: 63)6
taria insuflar alento vital no sujeito lírico, an-
tes de dissolver-se como miragem fantasiosa. É como se, de propósito, Cabral resolvesse
O âmago existencial de tanta dor possivel- dela diferir em tudo em seu programa estéti-
mente se converteu em sublimação artística. co. Nada mais distante da “graça aérea” de
Fios de melancolia, no sentido de saudade Cecília Meireles (com bem definiu-a Bandeira,
de um objeto ideal perdido, irradiam-se por 1997: 452). Sem dúvida, se esta poesia ten-
esta poética, como “gritos transfigurados”. de a ser tanto musical quanto pictórica, suas
Em versos nos quais Cecília se refere à fa- imagens e mesmo sua sonoridade costumam
mília pregressa, tão longínqua que sua exis- ser mais suaves do que as cabralinas. Uma
tência parece até fruto da imaginação, os vez que a voz lírica se define como “pasto-
antepassados mortos a exortam: ra de nuvens”, Sanches ressalta “o inefável
e fugidio”, o “viver em suspensão”, “o ele-
Vive! – clamam os que se foram, mento móvel, mutável, inapreensível”, em
ou cedo ou irrealizados. que ela se contrapõe aos “pastores da ter-
Vive por nós! – murmuram suplicantes. ra”, que creem em firmeza e limites: “Nu-
vens versus pedras. O informe em perma-
(“Compromisso”, Mar absoluto, 1945) nente mutação versus a matéria repousada
em sua forma eterna”, pois “Um está fixado
a um espaço e faz dele a sua identidade. O
outro leva uma existência imprecisa.” (San-
Especular sobre quem fala, de onde fala, ches, 2001: xxiv-xxvi). O próprio título do vo-
ou de que tipo são as vozes líricas, é ques- lume em que se localiza “Visitante” remete
tão em aberto, especialmente na poesia mo- a essa melodia indefinida e nebulosa: Vaga
derna. Pressupõe-se que o sujeito lírico vá se música. Embora, na obra de Cecília, as ima-
constituindo através da criação do poema, gens sejam delineadas com clareza e preci-
entre a matéria biográfica e o trabalho de são, o encontro epifânico supõe um contato
composição. algo ligeiro: “Coisa que passas, como é teu
Assim, João Cabral, para exemplo de 6 Há pequenas diferenças na escolha do vocabulário entre

contraste com Cecília Meireles, apresenta a edição original de Os três mal-amados e esta que cons-
ta do volume revisto por Cabral em sua Obra completa,
seu eu poético em construção, numa fala da qual extraí a citação. São algumas substituições por
sinônimos que não alteram substancialmente o sentido.
V ive ! E lembra - te de mim •  39

nome?”, diz um verso emblemático – qua- canção, cujo maior propósito é ser “flor do
se como se a poeta quisesse alcançar um espírito”, sem utilidade a não ser tornar “o
objeto que se dissipa antes que ela pudes- mundo mais belo”. Canto no deserto, sem
se apreendê-lo. Em “Descrição” (Viagem, saber se alguém o escutará.
1939), Cecília se refere a uma água que re- Essa lucidez sobre o exílio do poeta é reco-
flete as estrelas, as folhas, o céu, mas quan- nhecida como infelicidade em vários títulos de
do nela se mergulha a mão, o contorno das Viagem (1939), livro imediatamente anterior
coisas refletidas se desvanece. A água flui e a Vaga música, os quais se referem à orfan-
desliza sem que se possa apanhar coisa al- dade, ao desamparo, à renúncia. Dentre eles,
guma. Apesar da desolação que acompanha distinguimos “Estirpe”, em que a voz lírica se
o gesto, algo permanece, pois resta “um es- identifica com os mendigos mais desprovidos
plendor sobre a sua passagem” e uma “inú- de tudo – aqueles que já nem pedem nada,
til beleza/ nessas mãos que desenham dentro excluídos do convívio humano. Como aven-
da água sua viagem/ para fora da natureza”, tamos, quem sabe o visitante não represen-
mesmo que nunca se possa extrair nada de taria a própria poesia sem lugar, apenas visí-
sólido desse elemento líquido. A poeta, ain- vel à luz do sonho? Mas ela não desiste de se
da assim, continua sua atividade, como um interrogar sobre a sua possibilidade de habi-
“peixe bebendo o mar”, tentando abraçar tar este mundo, ou mesmo de indagar se de
o céu, as estrelas, as folhas espelhadas, para fato existe para o seu interlocutor, uma vez
tentar segurá-las transformando-as em pala- que sua vinda a ninguém interessa. Ainda que
vras, enquanto tudo prossegue em seu devir a tentativa de acordar o leitor adormecido seja
fugidio de “Inscrição na areia”. Como bem vã, o poema insiste até sua (quase) derrota.
formulou Leila Gouvêa, haveria, na obra de Em busca deste horizonte utópico, in-
Cecília, uma tendência dominante ao “he- cessantes imagens de caminhada, viagem e
raclitiano fluxo permanente e irreversível do navegação se repropõem em sua obra, por
tempo e das coisas” (2008:34). vezes terminadas em naufrágios e outros
Quando se afirma que ela era moderna insucessos. Acontece de as andanças ocor-
sem ser modernista, em parte está se refe- rerem durante o sonho, quando mesmo a
rindo a isto: de um lado, tanto o manejo de esperança do diálogo com esse ente ideal
formas tradicionais de composição quanto parece improvável:
a utilização de imagens aparentadas com
o lirismo simbolista (flor, estrela, mar, pás- Procurei-te em vão pela terra,
saro...); de outro, a percepção da profunda perto do céu, por sobre o mar.
solidão causada pelo desajustamento em re- Se não chegas nem pelo sonho,
lação aos demais seres humanos, acentuada por que insisto em te imaginar?
ainda pela consciência do hiato entre a vida
presente e o sonho, sobre o qual o poema (de “Canção quase melancólica”, Vaga música)
intenta saltar, lançando-se como visitante
imaginário. Outro traço de sua modernida- Ai! por mais que se ande, é certo:
de “kantiana”, por assim dizer, afirma-se na – não se encontra o bem perfeito.
atitude “desinteressada e efêmera” da sua Vai nascendo só deserto
40 • Viviana Bosi

pelo peito. observa que, na sua “condição de andarilha


E entre o desejado e o aceito solitária”, a poeta encontra apenas no can-
dorme um horizonte encoberto. to o seu espaço de vida plena, como quem
caminha em direção a longínquos horizon-
(de “História”, Viagem) tes, mas ressalva:
Cecilia Meireles não pode ser entendida
A paisagem percorrida pela poeta nestas como representante da estética torre de mar-
deambulações é, sobretudo, mental e ima- fim, que permanece indiferente aos aconte-
ginária, assim como a sua temporalidade. cimentos. As suas conhecidas atividades pe-
Os herdeiros do simbolismo, entre os quais dagógicas e jornalísticas desfazem a imagem
a crítica coloca, com razão, Cecília Meireles, de uma pessoa isolada numa individualidade
habitam esse “cronotopo” de aparência in- cavilosa.” (2001: xliv)
temporal (na expressão de Carpeaux, 1999),
e tendem a se valer de figurações extraídas São vários os trechos de poemas e crôni-
da natureza para dar corpo aos cenários do cas que aludem à guerra, como se reconhe-
devaneio poético. A ausência de factualida- ce especialmente em Mar absoluto (1945).
de propriamente cotidiana e histórica em De Vaga música, livro que ora destacamos,
época tão brutal deve corresponder a algu- identificam-se referências diretas:
ma razão fundada. Em “Visitante”, isso se
explicita, em nosso parecer, quando o sujei- Amanheceu pela terra
to descreve seu sonho como “triste” – pro- um vento de estranha sombra,
vavelmente porque ele reconhece que não que a tudo declarou guerra.
pode realizar-se na vida.
Leila Gouvêa comenta as múltiplas vezes Paredes ficaram tortas,
em que a poeta retoma o tema da inutilida- animais enlouqueceram
de da poesia em um tempo de barbárie, no e as plantas caíram mortas.
qual sua aspiração seria viajar para uma rea-
lidade transfigurada. Para o “pássaro da lua” (“Descrição”)
que quer cantar, este é um período comple-
tamente desfavorável, no qual ele não tem No estrondo das guerras, que valem meus
como pousar em parte alguma. Sua procu- pulsos?
ra por acolhimento é baldada pois ninguém No mundo em desordem, meu corpo que
conseguirá sequer escutá-lo. O sujeito lírico adianta?
reconhece que agora as cigarras não têm A quem fazem falta, nos campos convulsos,
vez, pois um “sopro de fim de mundo” ame- meus olhos que pensam, meu lábio que canta?
dronta a todos.
Os críticos são unânimes em afirmar cer- (“Partida”)
to tom nostálgico, como quem paira acima
da temporalidade presente, proclamando, Intitulando-se paradoxalmente como
por suas imagens de nuvens e águas, um “SERENA DESESPERADA”, seu maior inten-
ideal de transitoriedade permanente. Sanches to é ser apenas “essa que sofreu de beleza/ e
V ive ! E lembra - te de mim •  41

nunca desejou mais nada” (“Epitáfio da na- a canção a mantém, por efêmeros instantes,
vegadora”, Vaga música). Busca sem cessar resguardada e livre (libérrima...).
outra terra, um povo que não há: “Porque a A pergunta final do nosso poema, sobre
vida, a vida, a vida,/ a vida só é possível/ rein- o sentido da visita, pode dar a impressão da
ventada.” (“Reinvenção”, Vaga música). Partir ineficácia desse fantasma. Por que vim, por
para longe quando se desconfia que o lugar que vim, por que vim? é a frustrante inda-
almejado sequer existe... Cito Leila Gouvêa: gação do poema, semelhante à do profes-
o sujeito poético bate, também recorrente- sor lendo poesia na sala de aula e a do estu-
mente, com a inviabilidade da transcendên- dante sendo despertado por essa voz. Una
cia e imerge na dúvida – a qual, tanto quan- furtiva lagrima... Quantas vezes fomos ora
to a procura do Absoluto, atravessa toda sua professores ora alunos e nos identificamos
lírica (2008: 98). com essa sensação que nos desdobra entre
visitante e visitado?
O visitante, representando a intuição de
um mundo superior, inclina-se sobre o sujei- Como os poetas que já cantaram,
to poético para despertar seu espírito para e que já ninguém mais escuta,
uma vida mais intensa, e, ao mesmo tempo, eu sou também a sombra vaga
não pode de fato fixar-se na realidade: du- de alguma interminável música!
plo movimento, central para a compreensão
desta poética. Para em meu coração deserto!
Se mágoa, sombra e solidão avultam em Deixa que te ame, ó alheia, ó esquiva...
tantos versos amargos, este não é o único Sobre a torrente do universo,
tom de obra tão complexa. Há momentos nas pontes frágeis da poesia.
de remanso e serenidade, há até alguma ale-
gria, ainda que rara. Seu canto por vezes bus- é o apelo de “Comunicação” (Retrato natu-
ca infiltrar-se no horizonte escuro, como um ral, 1949) a uma... lagartixa!
broto trazendo a primavera para um solo de
areia e de gelo (“Epitafio da navegadora”, No entanto, o poema se fez e nadou até
Vaga música) ou como “finos deltas de feli- a nossa praia. Nós o miramos em nosso so-
cidade/ abrindo os braços num oceano tris- nho. Então, talvez, Cecília Meireles estives-
te” (“Mar em redor”, Vaga música). No en- se se perguntando de onde vem e como se
tanto, a felicidade é precária e veloz, assim constitui esse ente misterioso que com tan-
como o encontro, num átimo, com este mo- ta dificuldade e insegurança, em um mundo
mento de enlevo proporcionado pelo visitan- surdo e indiferente, tenta descobrir quem o
te inspirador. receba para se fazer poema.
No elemento líquido e movente do sonho, Não deixa de ser a própria contradição
em que o mar representa a inconstância en- performativa que se exprime neste visitante,
quanto a estrela parece traduzir o anseio por uma vez que sendo um, ou dois, ou ninguém,
luminosidade e certeza, o poema é seu sal- ele gerou vida e poesia, enquanto durou, no
vo-conduto, o seu barco em que rema ritma- sujeito antes inerte. “Like a wave breaking
da. Mesmo que “como que pra ninguém”, on a rock, giving up/ Its shape in a gesture
42 • Viviana Bosi

which expresses that shape.” (John Ashbery, Referências bibliográficas


Self-portrait in a convex mirror, 1975). Agamben, G. “O fim do poema”. Trad. Sergio Alcides.
Se dele nos lembramos, a última indaga­ Cacto 1, agosto 2002.
Andrade, M. de. “Cecília e a poesia”, “Viagem”. O empalha-
ção, “Por que vim?”, poderia quem sabe ob- dor de passarinho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
ter uma resposta, assegurada que foi não Bandeira, M. “Estudos literários”. Seleta de prosa. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
apenas a existência do poeta e do poema, Bosi, A. “Em torno da poesia de Cecília Meireles”. Céu,
inferno. São Paulo: Duas cidades e Ed. 34, 2003.
mas seu eco infindo de onda sempre reto-
Carpeaux, O.M. “Poesia intemporal”. Ensaios escolhi-
mada. O acolhimento foi tênue e logo se dos 1942-1978. vol. I. Rio de Janeiro: Topbooks e
UniverCidade, 1999.
esvaiu, mas, ao menos por um instante fu- Dal Farra, M.L. “Cecília Meireles: imagens femininas”. Ca-
gaz, ocorreu o encontro sensível entre aque- dernos Pagu, n. 27, jul-dez., Campinas: Unicamp, 2006.
Gouvêa, L.V.B. Pensamento e “lirismo puro” na poesia de
le eu adormecido e esse vento e essa lâmina Cecília Meireles. São Paulo: Edusp, 2008.
aguda que traz aurora, toca o pensamento Meireles, C. Poesia completa. vols. I e II. Org. A.C. Sec-
chin. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
e nele inscreve a geração do sujeito lírico no Melo Neto, J. C. “Os três mal-amados”. Obra completa.
poema, que nos visita por poucos segundos Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
Sanches Neto, M. “Cecília Meireles e o tempo inteiriço”.
antes de desvanecer-se e, como a fênix, re- In: Meireles, C. Poesia completa. vol I. Org. A.C. Sec-
nasce, asa ritmada. chin. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
A racionalidade sensível
e inteligível na criação e
interpretação da obra musical
Sonia Regina Albano de Lima
Doutorado em Comunicação e Semiótica Artes pela PUCSP. Pós-doutorado em Música
pelo IA-UNESP. Bacharelado em Direito pela USP. Bacharelado em instrumento (piano)
pela Faculdade de Música Carlos Gomes. Foi diretora e professora da Escola Municipal de
Música de São Paulo e da Faculdade de Música Carlos Gomes.

Não há nenhuma obra de arte ou de bem como entender o caráter intuitivo en-
literatura que tenha sido resultado do acaso, volto nessa produção.
da pura inspiração ou da entrega total à Ainda que o autor J. Paviani tenha se deti-
emoção. Todos esses fenômenos dependem do mais na compreensão dos processos cog-
da reflexão, de um certo ordenamento, nitivos e sensibilizadores que acercam a obra
de normas estéticas e de procedimentos literária, sua fala a respeito dos procedimen-
técnicos. O âmbito, portanto, da tos artísticos é bastante adequada, quando
racionalidade sensível é mais largo do que o relata a natureza diferenciada da produção
da razão lógica (PAVIANI, 1991, p. 11). artística: “ela é intelectualização dos meios
sensíveis e sensibilização dos meios inteligí-

A
produção musical, tanto no que diz veis, porém sem a formalização e a abstra-
respeito ao ato de criar como no ção exigidas pela linguagem científica” (PA-
processo interpretativo, tem a par- VIANI, 1991, p. 9). Para este autor nenhuma
ticipação integrada de padrões cognitivos obra de arte é a simples reprodução do real,
que expressam a sua estrutura enquanto no sentido empírico, nem representação in-
linguagem, como também aqueles advin- telectualizada da realidade, no sentido idea-
dos da sensibilidade do compositor ou do lista – a obra artística diferencia-se como mo-
intérprete, tornando falso o conflito que per- dalidade específica de produção, pois supõe
meia as ciências naturais entre o que é sen- um saber fazer.
sível e o que é inteligível. Os procedimentos O físico Amit Goswami (2012) admite que
lógicos adotados pelas ciências não se apli- a criatividade artística tem evidência de des-
cam à produção musical e às artes em ge- continuidade, de causação descendente e de
ral; o sensível e o inteligível convivem lado processamento inconsciente no uso de esta-
a lado, tanto no sentido de compreender dos alterados de consciência na descoberta.
quais os procedimentos, os recursos técni- Ela se processa a partir de insights criativos que
cos e as metas que fundamentam a estru- atuam enquanto germe diante da totalidade
tura e a forma dessas linguagens artísticas, que se seguirá. De certa forma, a criatividade
44 • Sonia Regina Albano de Lima

contempla um processamento inconsciente do contexto abarcado. Goswami também re-


que a precede. Para ele, a ciência é progres- conhece que nem tudo na produção artística
siva no sentido de que novas leis substituem manifesta-se com um insight, subentende-se
as antigas, contudo, nas artes, a validade do que além desse fenômeno está implícito o do-
antigo jamais é posta em questão; os para- mínio intelectual que o artista deve ter da lin-
digmas antigo e novo coexistem pacifica- guagem artística desenvolvida.
mente, cada qual tendo o seu próprio direito: Marc Jimenez (1999, p.10-20), ao se de-
o antigo pode ensinar técnicas, mas o modo dicar ao estudo da estética, classifica a Arte
como a técnica é aplicada para captar o sig- como um campo à parte, um tanto ambíguo.
nificado de um tema arquetípico é tema que Enquanto prática ela cria objetos palpáveis
depende inteiramente da sensibilidade do ar- ou produz manifestações concretas que ocu-
tista à temática do ambiente sociocultural de pam um lugar dentro da realidade, contudo
seu tempo (IBID, p. 223). ela não se contenta em apenas estar presen-
te, ela se manifesta enquanto maneira de
Goswami vê a ciência com um compo- representar o mundo e figurar um universo
nente amplamente objetivo que se perpetua simbólico ligado à nossa sensibilidade, à nos-
em trabalhos anteriores, em virtude de sua sa intuição, ao nosso imaginário, aos nossos
natureza de ciência experimental. A arte, di- fantasmas. Esse é seu lado abstrato, contu-
versamente, é subjetiva, criada para possibi- do ela também comporta uma ação racional,
litar uma conexão com experiências subjeti- que supõe materiais, instrumentos, um pro-
vas das pessoas. A originalidade dos artistas jeto de elaboração, entre outros atributos.
não reside na originalidade da verdade ou Para Jimenez a arte é uma prática que ope-
dos temas que elas expressam, mas nos te- ra com procedimentos específicos aplicados
mas transcendentes que elas abordam. Para a materiais determinados que dão origem às
que o artista possa explorar uma nova ver- obras. Seu discurso está mais voltado a de-
dade ele deve construir uma ponte entre os cifrar o significado estético que os símbolos
temas eternos e o contexto específico de lu- artísticos adquiriram no transcorrer da histó-
gar e tempo particulares: “a criatividade nas ria, bem como as relações que as obras es-
artes é manifesta sempre que é construída tabelecem com o mundo, com a história e
uma ponte entre a verdade atemporal e um com a atividade de uma determinada época.
dado contexto histórico” (IBID, p. 225). O testemunho do pesquisador Rudolf
Este físico admite que os artistas estão Arnheim, ao abordar o significado da música
sempre à frente de seu tempo, pois antecipam sob uma perspectiva epistemológica, deixa cla-
uma mudança sociocultural que ainda não foi ra a importância de não se conferir à música
rompida em razão da inércia do velho para- um sentido puramente emocional separado
digma, e, por vezes, como o novo paradigma de uma estrutura gramatical que se coaduna
ainda não se encontra claramente manifesta- com a representação simbólica que o com-
do, as pessoas não conseguem reconhecer o positor quer expressar. Ele admite que o fato
novo contexto sociocultural a fim de julgar da música expressar um sentimento qualquer,
uma obra. Isso por vezes está presente na arte como relatam alguns pesquisadores, deixa de
contemporânea, de difícil compreensão diante ser um problema, quando compreendemos
A racionalidade sensível e inteligível na criação e interpretação da obra musical •  45

que a expressão musical não se baseia numa capazes de fazer o ouvinte intuir o relato a
comparação de dois meios díspares, ou seja, o que ele se propôs narrar, sem se reportar a
mundo do som e o mundo dos estados men- nenhum discurso narrativo. O discurso musi-
tais, mas numa única estrutura dinâmica ine- cal fala por si só e dá conta de fazer o ouvin-
rente a ambas as esferas de experiência que te compreender a aflição do pequeno frente
se comunicam continuadamente: ao acontecido.
[...] as emoções, como comumente se com- Essa leitura musical expõe uma forma de
preende o termo, são uma categoria de es- representação da história retratada, contu-
tado mental limitado demais para explicar a do outras representações simbólicas pode-
expressão musical. [...] O fato de o significado rão ser idealizadas, sem que nenhuma de-
da música não poder ser limitado a estados las seja melhor ou pior do que aquela que
mentais parece-nos ainda mais importante. foi exposta. É nesse sentido que muitos pes-
As estruturas dinâmicas, tais como as expres- quisadores consideram a música uma arte
sas nas percepções auditivas da música, são não representativa, já que não produz uma
muito mais abrangentes. Elas se referem a representação única e precisa do objeto re-
padrões de comportamento que podem ocor- presentado. Mesmo assim, é possível atri-
rer em qualquer domínio da realidade, quer buir ao discurso musical um sentido simbó-
mental ou físico. [...] Embora nós, seres hu- lico que pode estar apoiado em um texto
manos, admitamos um interesse particular literário, em um conto, ou mesmo em uma
pelas atividades da alma, a música, em prin- situação emocional determinada. Nesse con-
cípio, não se compromete com tais aplicações texto, conforme relatado por R. Arnheim, a
específicas (ARNHEIM, 1989, p. 238-239). música funde-se na representação simbólica
que o compositor quer expressar, unifican-
O presente relato fundamentou a análise do os dois discursos (IN: ALBANO DE LIMA,
musical realizada no ano de 2019, da obra 2019, p. 215 – 231). Esse mesmo procedi-
Petit Poucet, de Maurice Ravel. A composi- mento está presente nas óperas, nos lieder,
ção é parte integrante de um ciclo de 5 pe- nos poemas sinfônicos, na musicalização de
ças infantis, inspiradas nos contos de fada de fábulas e contos e demais gêneros musicais
Ch. Perrault, dedicadas a duas crianças afe- que se servem de um texto literário, de um
tas ao compositor – Mimie e Jean Godebski. poema, ou de uma determinada narrativa,
Em cada uma delas, Ravel procura represen- até mesmo de uma gravura, como uma for-
tar musicalmente um momento importante ma de representá-los musicalmente.
dos contos eleitos a partir de um pequeno No que se reporta aos processos de inter-
preâmbulo narrativo. Embora a composição pretação de uma obra musical há que se rela-
tenha sido criada com o propósito de apon- tar o quanto a mesma produção musical pode
tar a surpresa do jovem polegar ao perceber conter inúmeras e diversas interpretações, si-
que os pássaros comeram todas as migalhas tuação que impede a validação de uma única
de pão que ele havia jogado ao longo do ca- e definitiva execução. Isso faz com que deter-
minho percorrido, para que pudesse retornar minada obra detenha em sua essência uma
ao início de sua caminhada com segurança, ressignificação contínua, em cada execução
este compositor utilizou padrões musicais realizada. Toda execução musical é passível de
46 • Sonia Regina Albano de Lima

revisão, integração, aprofundamento. O pro- estilística deve estar presente no ato de inter-
cesso interpretativo não se apresenta como pretar e se configura como um procedimen-
um procedimento fechado, acabado, ele se to musical que não está expresso na partitu-
reabre toda vez que uma obra musical é exe- ra, mas que precisa ser realizado.
cutada, ainda que seja executada pelo mes- Há uma dinâmica histórica e cultural per-
mo intérprete. Esse procedimento tem difi- meando a produção musical e, ainda que a
cultado em muito a veiculação de pesquisas música detenha um tipo diferenciado de se-
voltadas para a performance, mas ao mesmo manticidade que diverge da literatura, valo-
tempo permite aos músicos estender cada res atinentes à sua estrutura devem ser con-
processo interpretativo sob uma perspecti- siderados para que a produção musical se
va inovadora e diferenciada. estenda no decorrer dos tempos.
A obra musical não se traduz como uma O mesmo há de ser dito com relação à téc-
modalidade de saber capaz de construir co- nica instrumental. O domínio técnico do ins-
nhecimentos validados e devidamente reco- trumentista é mais do que providencial. Difi-
nhecidos como científicos, tendo em vista cilmente o ouvinte musical deseja participar
que tanto a produção musical como os pro- de uma apresentação musical na qual o ins-
cessos interpretativos não estão alicerçados trumentista não tem domínio técnico. É im-
na objetividade, na generalização, na regu- portante ao performer realizar um estudo diá-
laridade, constância, frequência, repetição e rio da técnica no seu instrumento, seja ele de
quantificação, como acontece nas ciências qualquer natureza. Antes mesmo da execução,
exatas. Na análise dos processos de execu- ele deve saber como conduzir sua interpreta-
ção e criação artística, as variáveis históricas, ção, executar os diferentes estilos e gêneros
culturais e subjetivas estão sempre presentes. musicais, desenvolver uma boa sonoridade,
É notório na análise das diversas interpre- decifrar os símbolos usados pelo compositor
tações musicais observarmos o quanto as in- e saber o que significavam na época em que
terpretações estão subjugadas a um deter- foi escrita a partitura. No caso dos pianistas,
minado estilo advindo de fatores históricos os dedos devem correr no piano sem maiores
e até mesmo geográficos bastante especí- atropelos, com clareza e desenvoltura. O artis-
ficos. As interpretações musicais sofrem as ta deve saber como respirar entre uma frase e
influências do tempo, da mesma forma, os outra, em que momento as modulações e as
intérpretes. Executar uma obra barroca não progressões harmônicas permitirão a flexibi-
é o mesmo que executar uma peça românti- lização do andamento indicado na partitura,
ca, e o intérprete deve ter isso bem presente quando uma frase musical pode crescer ou
em suas execuções. Os estilos musicais devem decrescer, quando o silêncio entre uma frase
ser preservados. Executar uma peça de Mo- e outra pode ser mais valorizado e a manei-
zart não é o mesmo que executar uma peça ra como devem ser interpretadas as obras de
de Beethoven ou de Chopin. Os estilos, os cada um dos compositores.
gêneros e as formas musicais são bem dife- A partitura traz uma concepção de in-
renciados entre si, e não cumprir essas dife- terpretação em que o contexto histórico-
renças configura-se um dos erros mais graves -cultural se faz presente. Como nos rela-
na cadeia interpretativa. Essa compreensão ta Maria Teresa de Oliveira Fonseca (2003,
A racionalidade sensível e inteligível na criação e interpretação da obra musical •  47

p. 129/131), a obra musical evolui no decor- transforma a execução musical em um aglo-


rer de sua trajetória para além do seu tem- merado de notas, desprovido de qualquer
po, e a interpretação, de modo similar, mo- sentido. Um estudo harmônico e contrapon-
vimenta-se de uma maneira fluente sob este tístico efetivo traz para a execução musical a
contexto. Portanto, a interpretação de uma possibilidade de o intérprete trabalhar as fra-
obra musical deve se situar entre o contex- ses musicais, a dinâmica, a maneira de articu-
to da criação, na personalidade do compo- lar um determinado som, um determinado rit-
sitor, na sua evolução, nos acontecimentos mo, como vivificar o andamento indicado na
que inspiraram a obra e no meio histórico- partitura, como desenvolver uma sequência
-cultural em que ela foi inserida. rítmica ou melódica, como trabalhar os signos
Isso implica que entre o criador e o intér- musicais indicados na partitura. Essa realida-
prete deve haver uma cumplicidade imanente. de faz intuir que a notação musical impressa
Nesse processo interagem tanto a subjetivida- na partitura embute, de uma forma bastante
de do intérprete que, a partir de suas escolhas, abstrata, conhecimentos técnicos que, se fo-
busca dar vida à partitura, como a vertente ob- rem deixados de lado pelo performer, dificil-
jetiva que está contida na obra. Conhecimen- mente atrairão a atenção de um ouvinte mu-
to teórico, instrumental, histórico-social, esti- sical, ainda que estes conhecimentos possam
lístico e analítico interagem em igualdade de ser manuseados de acordo com a subjetivida-
condições objetivando uma boa interpretação. de do intérprete no momento da execução.
Sob outra ordem, um procedimento ade- Esse enunciado é corroborado pelo regen-
quado para avaliar a produção musical está te e pianista D. Baremboim (2008), em publi-
concentrado na utilização de um pensamen- cação de 2008, quando afirma que para se
to analógico, em substituição ao pensamen- fazer música não basta adotar um ponto de
to analítico perpetuado pelas ciências exatas. vista puramente subjetivo, mas se pautar em
Acompanhando o raciocínio do matemáti- um respeito total às informações contidas na
co e pesquisador Abdounur, esta modalida- partitura, uma compreensão das manifesta-
de de pensamento não só reconstrói signifi- ções físicas do som e uma compreensão da
cados, como também interage e integra os interdependência de todos os elementos da
domínios cognitivos aos domínios afetivos e música. Ou seja, devemos respeitar conjun-
insemina a mente com estruturas dinâmicas tamente a harmonia, a melodia, o ritmo, o
complementares àquelas, subjacentes ao ra- volume e a velocidade:
ciocínio lógico-matemático, propiciando re- Las tres preguntas que debe formular-
configurações contínuas na maneira de pen- se siempre un músico son: por qué, cómo y
sar a humanidade (ALBANO DE LIMA, 2016). con qué propósito. La incapacidad o escasa
Embora as atividades artísticas compor- disposición a formularse estas preguntas es
tem atitudes e ações mentais que privilegiam sintomática de una fidelidad irreflexiva a la
a intuição, a subjetividade humana e a lin- letra y de una infidelidad inevitable al espíri-
guagem do inconsciente, a interpretação de tu (BARENBOIM, 2008, p. 27-28).
obras musicais abriga um conhecimento téc-
nico da linguagem musical que se não estiver Mesmo assim, no momento da execução,
bem consolidado na mente do instrumentista ele considera que tanto o intérprete como a
48 • Sonia Regina Albano de Lima

peça são objetos inseparáveis, já que a escri- contrapontísticos e rítmicos da música a ser
ta contida na partitura é insuficiente para re- orquestrada e, a partir desse conhecimento,
velar o potencial sonoro que uma obra musi- ele faz valer a sua concepção da obra com
cal abriga, portanto ela exige do intérprete o qualidade artística e perfeição técnica. O re-
conhecimento e a sensibilidade musical, que gente deve possuir o domínio da representa-
lhe permitam, de forma instintiva ou até in- ção mental da partitura, recriar diante desse
tuitivamente, transformar o som ali transcri- domínio a imagem ideal da obra musical e
to em um meio de expressão. preparar, nos ensaios realizados, os músicos
O maestro Sergio Magnani, apesar de de acordo com sua concepção artística. No
admitir ferrenhamente que a obra musical dizer de Sylvio Lago Junior (2002, p. 146), o
tem uma condução epistemológica própria, regente deve possuir um ouvido seguro e de-
carente de qualquer conceito da lógica que licado, saber penetrar no sentido e nos deta-
não seja os de tempo e espaço, não ignora lhes da obra que vai dirigir, além de conhe-
que a música é uma arte essencialmente sim- cer a técnica de cada instrumento.
bólica, estruturada em formas puras, porta- Até mesmo o gestual adotado pelo re-
dora de significados abstratos, traduzidos na gente na condução da orquestra poderá me-
consciência do fruidor em categoria de emo- lhor conduzir os instrumentistas. A partir do
ções estéticas, sugestão ou impressão de sen- domínio e aplicação prática desse gestual,
timentos contemplados na sublimação lírica. o regente obtém um desenvolvimento per-
Esta autonomia abstrata da música é a sua formático dos músicos de melhor qualida-
grande virtude, veículo de comunicação com de, considerando-se que a orquestra, a par-
o inexprimível e o eterno, e comunicável ao tir dele, é capaz de captar o discurso musical
mundo conforme idealização de seu fruidor, e interpretá-lo de forma satisfatória. Não se
contudo essa comunicação só pode ser ob- trata de uma simples marcação do tempo;
tida a partir do emprego adequado dos sig- os gestos adotados pelo regente pontuam
nos musicais e a devida compreensão desta a expressividade que ele pretende atribuir a
linguagem (MAGNANI, 1999). cada frase musical, a dinâmica a ser adota-
Diante dessa realidade, a ação de compor da no transcorrer da obra, os momentos de
ou reger uma obra musical passa pelo mes- silêncio que devem ser mais valorizados, a
mo crivo. Não é possível pensar que qual- intensidade dramática do discurso musical,
quer indivíduo que não detenha o conhe- o lirismo e o movimento estético no qual a
cimento técnico musical necessário possa obra está alicerçada. Eles são capazes de ex-
criar alguma obra musical de importância pressar as emoções, a sensibilidade e o do-
ou mesmo regê-la. A criação musical não é mínio técnico e estrutural do regente dian-
um atributo divino, ela se compõe de insi- te da peça a ser executada. Nesse sentido
ghts oriundos de um conhecimento prévio e a música traz dentro de si uma sensibilida-
substancial da linguagem musical. Do mesmo de própria e uma intelectualidade estrutu-
modo, um regente de orquestra desenvolve ral que se manifesta em qualquer de suas
atributos técnicos que envolvem tanto o co- produções.
nhecimento do instrumental que compõe a Não se ignora a articulação que a música
obra, como dos procedimentos harmônicos, tem com as demais áreas de conhecimento.
A racionalidade sensível e inteligível na criação e interpretação da obra musical •  49

Na música vocal, por exemplo, é importante do material contido na obra executada. No


um estudo profundo da dicção, o domínio ato de executar, o intérprete explora a obra
de mecanismos e princípios ligados à foné- para além de sua textualidade, conferindo-
tica, para que os cantores possam pronun- -lhe novos significados e trazendo para o tex-
ciar com exatidão e clareza o texto cantado, to escrito uma ressignificação que se perpe-
além de um domínio razoável das diversas tua quanto mais inovadora e criativa é a sua
línguas estrangeiras. Também estudos vol- performance.
tados para a respiração devem ser bastante A partir deste relato fica evidente o quan-
desenvolvidos tanto pelos instrumentistas de to instrumentistas, cantores, compositores
sopro como pelos cantores. e regentes devem se aprofundar no estudo
Cada vez mais estão sendo elaboradas desta linguagem, seja sob o ponto de vista
pesquisas envolvendo a saúde dos músicos da execução propriamente dita, seja na arte
e os processos cognitivos aplicados à músi- de compor, a fim de que a produção mu-
ca. Essa atitude não só estabelece a conexão sical tenha cada vez mais qualidade, inde-
da música com outras áreas de conhecimen- pendentemente da função emotiva e sen-
to e um considerável avanço em suas investi- sível que ela detém. Não seria irrelevante
gações, como também maior utilização des- mencionar em que medida os professores
sa arte na sociedade e na cultura. Também de música devem ser responsáveis e ter a
não deve ser menosprezada a ligação que devida competência para repassar aos seus
ela mantém com as demais linguagens ar- alunos os ensinamentos musicais necessá-
tísticas, entre elas, a literatura, o cinema, o rios para um bom desempenho performá-
teatro e os movimentos pictóricos – a exem- tico. A performance musical tem um signi-
plo, o pontilhismo, o impressionismo e o ex- ficado prático – o de fazer música. Isso traz
pressionismo, que influenciaram muitas das ao performer a responsabilidade de não co-
obras musicais, inclusive alguns composito- meter erros durante o processo executório,
res, como, Debussy e Ravel. dominar a linguagem, buscar o seu sentido
Muito haveria a ser dito com relação à li- estético, agregando a este fazer um valor
gação que a linguagem musical estabelece espiritual que se incorpora à função a ser
entre sua racionalidade sensível e inteligí- desempenhada. O patamar mais desejável a
vel. A música não produz significações cog- um instrumentista seria, a partir do conhe-
nitivas concretas como a linguagem verbal, cimento musical obtido, comunicar-se com
suas significações são bastante abstratas. o sagrado contido na obra musical e parti-
Em uma obra musical sempre está presente lhar dessa experiência com a plateia ou o
o conflito entre a intuição e a razão, a emo- público ouvinte. É uma realidade de difícil
ção e o intelecto, a subjetividade e a objeti- aplicabilidade, mas que tem sido adotada
vidade, a expressão e a forma. Embora isso por inúmeros intérpretes, regentes e com-
pareça contraditório, essa dicotomia entre a positores. Esse conhecimento não é obtido
reflexão e a ação nesta área encontra fun- de um dia para outro, ele segue por toda a
damento na arte do intérprete, que, ao mes- vida e, de certa maneira, funde-se a ela de
mo tempo que realiza a ação de interpretar, tal modo, que se torna impossível separar
traz a público a conscientização que ele tem um do outro.
50 • Sonia Regina Albano de Lima

Referências bibliográficas BARENBOIM, Daniel. El sonido es vida: el poder de la mú-


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Oscar Bertholdo: poesia como
um sopro inaugural
Clóvis Da Rolt
Professor, pesquisador e poeta. Docente da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) – Campus
Jaguarão-RS. Licenciado em Artes Plásticas (UCS), Mestre e Doutor em Ciências Sociais (UNISINOS).
Entre outros livros, é autor de O martírio da santa feia (2019) e Mínimo fôlego (2020).

O autor dedica este ensaio à memória do desvendamento e exposição de conteúdos


poeta Oscar Bertholdo, cujo falecimento com­ dos quais tomamos consciência pela media-
pleta 30 anos em 2021. ção da pulsação poética.
Vicente Huidobro (1991, p. 213) diz que
O poema é linguagem erguida. o poeta faz mudar de vida as coisas da natu-
O ctavio P az reza, recolhe com sua rede tudo aquilo que
se move no caos do inominado, estende fios

S
ão muitas as formas através das quais o elétricos entre as palavras e ilumina subita-
fazer poético se realiza. Em cada poe- mente rincões desconhecidos.
ta, sempre num solo distinto, a palavra
germina para reinaugurar o mundo. Não há Seguindo a intuição de Huidobro, há poe-
céu, pedra, bicho, fogo ou pessoa que não tas cujo trabalho com a palavra se aproxima
precisem ser refundados. Gastamos as coi- de modo mais íntimo de um sentido de re-
sas. Distendemos os sentidos. Corroemos as velação. Como se tocassem num núcleo de
relações. Um único nascimento não basta significação essencial, são capazes de pene-
para os homens. Assim, é próprio da pala- trar o reino da linguagem a fim de nos mos-
vra poética o senso de desacomodação, re- trar o mundo, a natureza, o homem, a vida
visão e recomposição de um estado de coi- sem disfarces. Ávidos por uma compreensão
sas, fenômenos e eventos que vemos quase profunda do real, tais poetas localizam os su-
sempre de forma distorcida. Quem busca a tis estratagemas que o desfiguram e o lan-
poesia instaura uma aproximação com um çam na sala de espelhos da existência. Dessa
tipo de experiência sui generis: a experiência plêiade faz parte o poeta gaúcho Oscar Ber-
sensível da palavra convertida em revelação. tholdo, cuja obra, longe de dar sinais de se
Tal experiência não se inscreve num quadro evanescer após passados trinta anos de seu
de parâmetros lógicos, denotativos ou fun- falecimento (um acontecimento trágico devi-
cionais – no sentido de proporcionar o do- do à brutalidade com que foi assassinado, em
mínio de uma técnica –, mas num plano de 22/02/1991, num assalto à sua residência),
52 • Clóvis Da Rolt

mostra-se alicerçada em rigor, sensibilidade em sua produção lírica com a publicação de


e beleza à espera de novos leitores. diversos livros: As cordas (1968), Corpobre
Oscar Bertholdo nasceu em Nova Roma (1969), O guardião das vinhas (1970), A co-
do Sul, cidade do interior do Rio Grande do lheita comum (1971), Poemimprovisos (1973),
Sul, em 1935. Em 1960, ao ser ordenado sa- Lugar (1974), Vinte e quatro poemas (1977),
cerdote católico, iniciou sua atuação religio- Ave, árvore & tempo de assoalho (1980), In-
sa junto ao Santuário de Nossa Senhora de formes de ofício e outras novidades (1982),
Caravaggio, em Farroupilha, onde também Canto de amor a Farroupilha (1984) e C’antigas
lecionou em algumas escolas. Posteriormen- (1986). São póstumas as obras Amadas raízes
te, deslocou-se para Bento Gonçalves, cida- (1992), Boca chiusa (1992), Molho de chaves
de na qual continuou a desenvolver ativida- (2001) e O fazedor de lonjuras (2011), todas
de sacerdotal, além de atuar como docente coletâneas que percorrem diferentes momen-
na Fundação Educacional da Região dos Vi- tos da produção do poeta, acompanhadas de
nhedos em cursos de graduação. De volta a apreciações críticas.
Farroupilha, onde se fixou permanentemen- Cabe destacar que tanto a coletânea Ma-
te após pedir dispensa do sacerdócio, passou trícula quanto a poesia de Bertholdo, espe-
a lecionar na Universidade de Caxias do Sul cialmente, vêm sendo referenciadas em diver-
e a intensificar sua atuação em rádios e jor- sos estudos no campo da literatura em cursos
nais da região da Serra Gaúcha, contribuin- de pós-graduação de universidades gaúchas.
do para o desenvolvimento da cultura comu- Talvez esse interesse se justifique, ao menos
nicacional num contexto regional. em parte, devido ao distanciamento temporal
Voz singular da poesia contemporânea que, atualmente, permite olhar para o grupo
gaúcha e poeta de maior destaque da região como um referente de qualidade e compro-
serrana do Rio Grande do Sul, Bertholdo es- misso com o fazer literário. Convém lembrar
treou na poesia em 1967 com a publicação que seus integrantes se mantiveram ativos e
da coletânea Matrícula, em parceria com os intelectualmente produtivos não apenas no
poetas Ary Trentin, Delmino Gritti, Jayme Pa- campo da literatura, mas, também na área da
viani e José Clemente Pozenato. Juntos, os docência e da pesquisa acadêmica, além de
poetas formavam o Grupo Reunião (que ficou outras inserções no terreno cultural. Como
conhecido como Grupo Matrícula), o qual, no exemplos dos estudos mencionados anterior-
entendimento de Cecchin (2014), atuou para mente, é possível citar: Sobre a poesia de Os-
a conformação de um sistema literário e para car Bertholdo, de Suzana Maria Pagot (UCS,
a renovação de aspectos da produção poética 2004); Matrícula: um grupo (in)suspeito, de
no âmbito da Serra Gaúcha. Bertholdo con- Antônio Carlos Mousquer (PUCRS, 2004);
tava, então, com trinta e dois anos de idade A sedução do sonhar: os caminhos do de-
e dava início à construção de uma obra que vaneio poético em dois poetas sul-rio-gran-
deixaria marcas na paisagem cultural serrana. denses, de Marcela Wanglon Richter (PUCRS,
A partir da publicação dos primeiros poe- 2013); Poetas em “reunião”: o Grupo Matrí-
mas na coletânea Matrícula, obra cuja impor- cula e a consolidação de um sistema literário
tância continua sendo revisitada por estudiosos regional na Serra Gaúcha, de Aline Brustulin
da literatura, Bertholdo se manteve prolífico Cecchim (UCS, 2014).
O sc ar B ertholdo : poesia como um sopro inaugural •  53

Enraizada, alojada numa sensibilidade telú- “O vale não passa de um caminho de exílio.”
rica, nutrida pelo vigor de uma linguagem que (Corpobre, 1969)
se esmerou em ser como o vento que serpen-
teia os vales da Serra Gaúcha, a obra berthol- “O vale é um mundo que nasce devagar.”
diana é fruto de um profundo senso de per- (O guardião das vinhas, 1970)
tencimento a um lugar. O trabalho na terra, os
vinhedos, o cotidiano da região de colonização “O vale é hóspede que se demora.”
italiana, as paisagens, as amplitudes humanas (A colheita comum, 1971)
refletidas no particularismo da cultura. Eis o hú-
mus simbólico a partir do qual Bertholdo trama “O vale não foi dado ao homem para ignorar
uma poética que, ao ecoar os versos do poema o horizonte.”
A ilusão do migrante, de Drummond (2015, p. (Lugar, 1974)
898), pressagia que “[...] tudo é consequência
/ de um certo nascer ali”. “O vale está debruçado no instante do poema.”
Dizer que a obra do poeta é profunda- (Ave, árvore, 1981)
mente conectada a um sentido de lugar não
significa que deva ficar circunscrita a um qua- A região da Serra Gaúcha – o lugar onde
dro de referências restritivo, passível de ser eclode a pangeia lírica de Bertholdo – duran-
assimilado apenas como curiosidade folclóri- te muito tempo olhou para si mesma a partir
ca ou mitologia contextualizada. A presença de um espelho distorcido. A imagem que ali
da imagem do vale (como lugar, topos, am- se formava dizia que os colonos imigrantes
bientação) na poesia de Bertholdo tem co- oriundos da Itália, bem como seus descen-
notações cosmogônicas que ultrapassam o dentes, ocupavam uma posição inferior na
interesse paisagístico e o bucolismo inofensi- formação da geografia humana gaúcha. Ser
vo. Ali acontece um genuíno auto dramático colono era vergonhoso, uma espécie de es-
que absorve, indissociavelmente, o poeta e tigma que alojava a vida na insignificância de
o homem. Como diz Pagot (2007, p. 53), “é um cenário rural, interiorano, ligado à terra
nesse vale que o poeta reencontra sua ori- e ao trabalho braçal, enfim, subordinado às
gem, delimita e expande seu universo poé- perspectivas estreitas. Estigma que se refletiu
tico, transcendendo a região”. sobejamente em várias práticas culturais dos
De certa forma, lugar é a noção que ins- imigrantes e que atuou na formação de ima-
taura a posição concreta da existência situa- gens que os representavam por vias distintas,
da, o que pode sugerir, às vezes, certa imobi- variando da curiosidade exótica à galhofa.
lidade. Mas, em Bertholdo, lugar é também Dall’Alba, ao olhar para um âmbito re-
um eixo de emanações estéticas, significações gional, registra com perspicácia o momen-
culturais e singularidades humanas. Lugar de to sócio-histórico em que Bertholdo inicia
abrangências. Lugar transfigurado. Múltiplos sua produção poética – primeiramente com
lugares num só. Nesse sentido, o vale, ope- a coletânea Matrícula e, em seguida, num
rador de uma conexão íntima do poeta com voo solo.
o lugar, cria arcos de significado que se des- Após o lançamento de Matrícula, esse
dobram na produção do autor. grupo de poetas continuou a pesquisa do
54 • Clóvis Da Rolt

universo ainda desconhecido da literatura Uma, a presença do entrecruzamento dos


sul-rio-grandense, que se fundamentava em motivos e códigos da poesia latina, dos ritos
uma cultura recente e que, no momento da e símbolos da liturgia cristã, da temática da
publicação [da coletânea Matrícula], ainda grande poesia ocidental, desde Dante até os
sentia os efeitos da disseminação cultural mais significativos poetas da modernidade.
das capitais e de anteriores injunções políti- Outra, a vida, os costumes, as tradições, as
co-governamentais, que sitiou a língua dos vivências e a paisagem da terra e da cultura
colonos, ao tempo de Getúlio Vargas, isolan- do imigrante italiano do Rio Grande do Sul.
do ainda mais uma região que já era isola-
da, desde a colonização, pela sua geografia Bertholdo é um poeta consciente de que a
(DALL’ALBA, 2007, p. 206). reverência à palavra é a razão última do poe-
ma, além de constituir um elo fundamental
Num cenário que condicionava o inte- que conecta todos os homens. Em entrevis-
rior a ser um coadjuvante (inclusive no que ta concedida ao jornal Correio do Povo, em
tange à produção literária), imbuído de um 1973, o poeta (citado por Mousquer, 2007,
profundo sentimento de pertença, Berthol- p. 87) esclarece: “O que sinto é uma ne-
do viu o mundo, explorou seus amplos ho- cessidade de procurar propor possibilidades
rizontes humanos e dilatou as significações de comunicação através da palavra, e, atra-
estéticas da região. Sua poética, lastreada vés dela, alcançar uma chance de viver.” O
por um permanente jogo de escalas (o eu poeta, então, se apresenta como um arauto
lírico tomado por um redemoinho de ima- que diz que as coisas não são o que pare-
gens que ora remetem ao local, ora ressoam cem ser, pois delata a insuficiência da vida –
no universal), é como um bosque de pala- via de regra calcada na incomunicabilidade
vras que cresce sem preocupações com limi- e na afonia – quando condicionada à ima-
tes e fronteiras. Ninguém sairá de seus poe- nência de um plano material. Paz (2012, p.
mas sem experimentar a sensação de que o 55), ao deslindar o alcance da palavra poé-
mais elementar e o mais ordinário necessi- tica, diz que o poeta não se serve de pala-
tam de uma decifração – o que vale, tam- vras, já que é um servo delas. “Ao servi-las,
bém, para a noção de região, essa esfera ele as devolve à sua plena natureza, recupe-
que julgamos plenamente assimilada quan- rando seu ser. Graças à poesia, a linguagem
do nela estamos inseridos. reconquista seu estado original.”
Poeta de dicção nobre, reverencial, Ber- Na lírica de Bertholdo, a solenidade en-
tholdo circunscreve a palavra numa atmosfera volve o fazer poético a partir de uma sensi-
solene, talhando-a por meio de um misticis- bilidade zelosa derivada da experiência de
mo particular e de um forte apelo sacrifical. quem amadurece com a própria palavra. Tal
No contexto de sua poética, permeada igual- característica elabora o plano poético como
mente por uma aguda qualidade trágica, tais algo a ser anunciado por um campo imagé-
elementos desalojam os sentidos usualmente tico-lexical de colorido cerimonial. Já a mís-
mecânicos e funcionais atribuídos à realida- tica realiza a conexão espiritual que o autor
de. Paviani (2001, p. 13) entende que a poé- tanto almeja instaurar com o mundo concre-
tica de Bertholdo tem duas fontes principais: to e seu cotidiano de reiterações e rotinas, a
O sc ar B ertholdo : poesia como um sopro inaugural •  55

fim de superá-lo. Por fim, o sacrifício evoca para o homicídio da poesia.


um combate que o poeta trava com a totali- É preciso debruar o pudor
dade fenomênica da vida, numa atitude que dos braços arrastando estrelas,
afirma o valor do humano – frágil, finito, dra- reunir em torno da casa
mático, paradoxal – diante das situações-li- as confidências sem avesso.
mite: a poesia como forma de autoimolação. Em vão os velhos retratos
Hohlfeldt (1979, p. 170) vê na poesia de domésticos procuram
Bertholdo “um verdadeiro universo poético reter o vento, erva
estruturado”, além de destacar a facilida- amarga do abandono.
de com que o poeta se movimenta no do- Como ontem o medo assiste
mínio das metáforas. Ainda de acordo com às núpcias do exílio, por instinto
Hohlfeldt, mediante a morte empurra a noite.
uma forte criação metafórica, Bertholdo uti- Soa sem perspectiva um clarim
liza as sugestões mais imediatas do mundo com ânsia de acordar a raiz,
que o rodeia – isto é, a paisagem de mon- faço-me o princípio.
tanhas e vales – e sobre este tema tece suas (A colheita comum, 1971)
considerações, elevando-as à categoria sim-
bólica da vida e das vicissitudes humanas. Não é tarefa simples extrair um sentido
de unidade ou elaborar um quadro sinóptico
Mediante um rito de ascese, como quem diante do conjunto da obra de um autor. Es-
se purifica da agitação ensandecida e do ba- pecialmente, no que tange à poesia, tal exer-
rulho narcótico de um mundo cansado, o lei- cício costuma se revelar furtivo e, às vezes,
tor de Bertholdo, a partir do advento meta- pouco efetivo. Para Trevisan (1995, p. 128-
fórico de sua poesia, é chamado a calibrar 129), no que concerne à lírica, “a força mais
suas percepções e a perscrutar o volume to- alta do poeta é esse dom de apagar louvores
tal de sua sinestesia com vistas a uma expe- e críticas, para brilhar ainda mais em seu brilho
riência de reinauguração de si. Diante de um próprio, como as moedas que o uso bruniu”.
mundo autofágico, Bertholdo nos mostra Como produto humano indissociável de uma
por onde recomeçar. Eis o sentido revelador moldura temporal e de um contexto cultural,
de sua poesia. Que nos fale, então, o poeta. a obra poética elaborada por um autor é um
fato suscetível às modulações e aos desníveis
DO QUASE AMPARO que marcam a condição humana, sempre en-
trelaçada a eventos dinâmicos cujo sentido de
Os ventos não são feitos de barro, totalidade é difícil de ser avaliado.
é de fogo umedecido o corpo Como enquadrar um conjunto de cria-
dos que nascem sentados ções poéticas – como a obra de Bertholdo,
à soleira do dia da cólera por exemplo – diante do jogo de refrações
só um barco suicida para soltar. e ampliações que o tempo nelas introduz?
Para o começo de todas as cantigas Sempre tão íntimas e inerentes a um autor,
um manto solto sobre o sofrimento como manejar as flutuações emocionais e psí-
guarda consentidas magnólias quicas que colorem as significações internas
56 • Clóvis Da Rolt

de sua produção? Como proceder à herme- um alcance geral que explica a persistência
nêutica de uma poiesis íntima, esse even- do interesse que se dispensa a ela.
to que, a despeito de poder ser localizado
num indivíduo, expressa conteúdos vivos e São muitos os interesses que a obra do
imemoriais da história humana? Embora as “poeta do vale” – como ficou conhecido Ber-
questões suscitem reflexões mais profundas tholdo – poderia suscitar. Fiquemos, neste
do que aquelas que poderiam ser realizadas ensaio, com os lampejos impressionistas que
neste momento, há que se buscar recorrên- nela identificam algumas linhas mestras, as
cias, pontos de ancoragem e idiossincrasias quais podem confrontar o leitor diante das
que nos aproximem dos autores e de suas “grandes questões” a que Jouve faz referên-
obras, pois todos eles carregam um magne- cia: o vale como metáfora de um movimento
tismo próprio. cósmico que não pode prescindir do humano
Em Bertholdo, há um magnetismo asso- (o lugar, o ethos, a communitas); o sagrado
ciado à qualidade de sua lírica testemunhal, como a ambiência necessária à recomposi-
decorrente de quem não passou incólume ção da vida (a oração, o transcendente); o
pelo mundo, sem ser afetado, sem deixar cotidiano como ofício diligente e reiterativo
uma marca. Seus versos agônicos, por vezes, que insere o homem na história (o trabalho,
aproximam planos e experiências aparente- o tempo, o trágico).
mente inconciliáveis, o que lhes confere uma Os eixos estruturantes que movem a obra
índole que pode soar disruptiva – mas que, de Bertholdo produzem a sensação de que o
nas camadas mais profundas de sua poéti- mundo necessita de um projeto de refunda-
ca, está impregnada de um desejo de recom- ção. Calcada na ânsia de quem não pode es-
posição e restituição. Bertholdo é uma poeta perar que o homem um dia alcance um estado
das origens, das gêneses, das fecundações. de consciência profunda acerca de seus atos
Seu projeto poético é um contínuo retornar (isso acontecerá?), sua escrita urgente almeja
às fontes, ao sopro inaugural do qual o ho- recompor uma realidade que se encontra dis-
mem se afastou. O gesto mais comezinho, solvida nas agruras do excesso, do superlati-
a palavra mais banal e a situação mais roti- vo e da desatenção. Por vezes melancólica e
neira podem conter, em seus poemas, uma cética, a poesia bertholdiana é um alerta para
epifania que introduz a realidade na esfera a necessidade de reconduzir a um estado em-
do mistério. Trata-se, enfim, de uma lírica brionário tudo aquilo que envolve o humano.
testemunhal decorrente de quem viu mais e Exatamente porque somos criaturas em que-
melhor. Não seria essa uma justificativa cabal da. Talvez isso justifique a avaliação de Rosa
para darmos mais atenção ao que escrevem (1984, p. 02), que percebe na poesia de Ber-
os poetas? Apropriadamente, Jouve (2012, tholdo “expressões de angústia, de incomu-
p. 124) diz que, nicação, de solidão e de cansaço”.
para além das variáveis históricas e subjeti- Numa carta datada de 10 de setembro de
vas, os seres humanos têm realmente certo 1958, endereçada ao amigo Goulart, Berthol-
número de coisas em comum. Toda vez que do (citado por Richter, 2012, p. 178), então
uma obra aborda uma das grandes questões com vinte e três anos de idade, reflete so-
com as quais somos confrontados, adquire bre o quadro sintomático de uma época que
O sc ar B ertholdo : poesia como um sopro inaugural •  57

transformou o homem num animal acua­do, que a configura. Entretanto, em Bertholdo, per-
combalido, em estado glacial. manece o tom melancólico, a tensão entre as
O homem do século XX é um pássaro esferas terrena e divina, o jugo da rotina des-
ferido – uma reedição atualizada da clássica gastando o corpo e a alma, o irresoluto pro-
frase de Victor Hugo: o homem é um deus blema do “ser”. A poesia bertholdiana é feita
caído. Caímos, Goulart, de nossas mãos, de de uma permanente busca, de um sentido de
nossos olhos, de nosso coração e, sobretu- superação do abandono cósmico do homem,
do, de nossa vontade. E não há impaciência de uma ânsia de chegar. Uma poesia, enfim,
maior do que conhecer-se causa e produto que confronta o devir e a espera.
deste desastre e não dirigir-se apressadamen-
te ao encontro do infinito, jogar-se como so- [...]
mos para a Luz. Não há outra novidade: a palavra
existe. Não proponho nenhuma definição
Das palavras do jovem Bertholdo se des- para o conceito de poesia, reúno o sol
prendem notas pessimistas que posicionam e a contínua adoção de ter amigos.
o homem num cenário de sombras e imobi- Confesso que em bíblica alegria
lidade, o qual, em última instância, o impe- ponho os sonhos em ordem, tudo se passa
de de voar. Seu sugestivo apelo de jogar-se como se o poema fosse ícone, ajoelho-me
para a Luz, de certa forma, se realizou numa para rezar, detenho a intenção de propor
poesia que faz da palavra um farol luminoso um sol a partir da própria visibilidade.
frente ao quadro soturno das relações huma- Invento uma porta, abro a contingência
nas, sempre tão periclitantes. Antes de Ber- e Deus permanece além do advérbio popular.
tholdo, Mounier já havia localizado no mun- Sem afetação, os detalhes tão nossos
do moderno uma sensibilidade apocalíptica, são velozes, é praticamente impossível
de fundo pessimista, à qual interpelou com dissociar a surpresa e o heráclito devir.
os tons esperançosos de sua filosofia. (Lugar, 1974)
Nossas estruturas econômicas e nossos
marcos sociológicos denunciam todos os dias Numa época de rendição ao império das
seu anacronismo, sua impotência e o absurdo aparências, aos comportamentos enfeitados
de sua pertinência, diz Mounier (1957, p. 22). pelo excesso, aos produtos culturais consa-
Desorientado neste campo, sem apoios, o ho- grados pela fama duvidosa e à paranoia ver-
mem do século XX se sente perdido, no du- borrágica que se alastra por tudo, a poesia
plo sentido da palavra, em um universo que se de Oscar Bertholdo se apresenta como um
torna cada vez mais fatigado e insignificante. convite à restauração e um chamado à be-
leza. Nas entranhas de seus versos, nos sul-
De forma semelhante ao pensador católico cos abertos por sua sensibilidade e nos veios
Mounier, que inseriu sua filosofia no quadro do descerrados por suas palavras, poderemos
cristianismo e dela fez um programa voltado encontrar o fôlego novo diante de um mun-
à esperança e ao despertar otimista da pessoa do exausto. Eis uma obra – verdadeiramente
humana diante de um século nihilista, a poesia poética – a ser descoberta. Obra que o tempo
de Bertholdo é inseparável da adesão religiosa fortalece para o regozijo de novos leitores.
58 • Clóvis Da Rolt

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Pedagogias decoloniais: uma proposta
educativa para uma cidadania global

Manuel Tavares
Doutor em Filosofia pela Universidade de Sevilha. Professor permanente do Programa de
Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Nove de Julho (UNINOVE), São Paulo.

Entrando no problema colonialidade das estruturas de dominação,


da colonialidade epistêmica, ontológica, de
Pensar na possibilidade de modelos pe- gênero e das subjetividades (Quijano, Mig-
dagógicos decoloniais implica, do nosso nolo) constitui um pressuposto incontornável
ponto de vista, uma compreensão crítica para a afirmação de uma educação decolo-
da história e o reposicionamento das prá- nial e para a cidadania global. Esta continua-
ticas educativas de caráter emancipatório, rá comprometida enquanto culturas, saberes
bem como uma crítica e afastamento da e povos forem subalternizados.
perspectiva epistêmica colonial/eurocên-
trica que moldou todas as áreas e saberes 2. Uma compreensão problematizante e crí-
disciplinares e também as representações tica da história que implica o desvelamento
sobre o mundo e o sentido da vida. Con- do lado oculto da história, o lado dos opri-
sideramos, por isso, a necessidade de re- midos e vencidos pelos processos coloniais,
fletir sobre os seguintes aspectos: e que foi silenciado e apagado da memória
histórica; a visão história eurocêntrica impos-
1. A possibilidade de diálogo entre os sabe- ta a todos os povos afirmou-se como a úni-
res pedagógicos e os pressupostos teóricos ca verdade histórica, quando, afinal, consti-
do grupo Modernidade/Colonialidade (M/C) tui uma mistificação da história.
pela apropriação da sua matriz conceitual.
Este diálogo supõe, previamente, um com- 3. Abertura a novas práticas educativas a
promisso com uma educação intercultural e partir de modelos pedagógicos decoloniais
decolonial. Uma educação para a cidadania que promovam a justiça cognitiva e a eman-
global implica o resgate de todas as formas cipação social; e um posicionamento críti­
de saber que foram subalternizadas ou silen- co em relação às perspectivas epistêmi-
ciadas ao longo da história, conferindo às di- cas eurocêntricas de caráter colonial. Estas
versas culturas e saberes a dignidade episte- dimensões serão aprofundadas ao longo
mológica a que têm direito. A dissolução da do texto.
60 • Manuel Tavares

Refletir a partir destes aspectos abre a pos- Desvelando lógicas coloniais


sibilidade de construir uma agenda reflexiva
que, por sua vez, abre horizontes de proble- No final dos anos 90 (1998) um grupo de
matização e discussão sobre a colonialidade1 intelectuais sul-americanos (W. Mignolo, A.
do poder e do saber no âmbito da educação. Quijano, E. Dussel, E. Lander, S. Castro-Gó-
Estas reflexões e discussões só têm sentido se mez, R. Grosfoguel a que se uniram outros
envolverem os professores de todos os graus autores, como Catherine Walsh e Maldona-
educativos, aqueles que traduzem as políticas do-Torres) criou uma rede multidisciplinar e
educacionais e que enfrentam cotidianamen- intergeracional de estudos críticos, relativos
te os desafios do ensino-aprendizagem. Que- à relação entre o capitalismo e a modernida-
remos dizer, em primeiro lugar, que os profes- de europeia e ao modo como essa relação se
sores deverão tomar consciência de que são “instalou” na América Latina, manifestando,
reprodutores de modelos de conhecimento desde logo, a sua face oculta e obscura – a
de caráter colonial, quando optam por uma colonialidade. As relações de poder insta-
“educação bancária”; em segundo lugar, que lam-se a partir de 1492, com a “conquista”
reproduzem as relações e hierarquias sociais América, referência cronológica para ques-
de poder; em terceiro lugar, que a conscien- tionar os processos históricos que originaram
tização relativamente ao caráter colonial das a colonialidade como lógica da dominação,
mentes, do conhecimento e das próprias prá- da exclusão, hierarquização, imposição e le-
ticas constitui um pressuposto fundamental gitimação de determinados sujeitos, práticas
para a afirmação de práticas pedagógicas de- e saberes sobre outros cuja natureza foi his-
coloniais e de uma educação emancipatória e toricamente diminuída, subalternizada, se-
humanizadora, que crie condições para a afir- gregada e excluída.
mação de uma cidadania crítica global. Uma Seguindo os percursos de Frantz Fanon,
educação de caráter colonial, reprodutora das Paulo Freire, Anibal Quijano, Walter Mignolo
desigualdades sociais e cognitivas e promo- e Catherine Walsh, consideramos necessário
tora da cultura dominante e das relações de e urgente pensar sobre novos modos de ver
opressão, será sempre um obstáculo à pro- e interpretar o mundo a partir de outras epis-
moção do direito dos povos, subalternizados temologias de caráter não eurocêntrico. Pro-
historicamente, à emancipação e libertação. por pedagogias decoloniais significa desvelar
as profundidades do problema colonial e da
1 Na perspectiva de Quijano (2007, p. 285), “colonialidade

é um conceito diferente de colonialismo, ainda que com colonialidade e intervir na reivenção da es-
ele relacionado. Colonialismo refere-se, estritamente, a cola, da educação e da sociedade, tendo em
uma estrutura de dominação e exploração cujo contro-
lo da autoridade política, dos recursos da produção e do
vista a construção de condições radicalmente
trabalho de uma determinada população está nas mãos diferentes de humanidade, conhecimento e
de outra identidade e cujas sedes centrais estão, inclusive,
noutra jurisdição territorial. Nem sempre nem necessaria-
existência. A matriz colonial de poder revela-
mente implica relações racistas de poder. O colonialismo -se, nas instituições sociais, por meio do mul-
é, obviamente, mais antigo, enquanto a colonialidade
provou ser, nos últimos quinhentos anos, mais profun-
ticulturalismo retórico (SANTOS, 2004) e do
da e duradoura que o colonialismo. Mas, sem dúvida, interculturalismo funcional.2 Ambos trabalham
foi engendrada dentro do colonialismo e, mais ainda,
sem ele não poderia ter sido imposta na intersubjetivi- 2 Originalmente, o conceito de multiculturalismo de-
dade do mundo de modo tão enraizado e prolongado”. signa a coexistência de formas culturais ou de grupos
P edagogias decoloniais : uma proposta educ ativa para uma cidadania global •  61

para reproduzir e perpetuar as relações colo- sistemática do ser humano, do trabalho, das
niais de poder. Aprender com o Sul, com as riquezas dos povos, assim como da exclusão
experiências de resistência e insurgência dos e ocultação do outro diferente e das suas
povos originários e com as suas propostas in- possibilidades de expansão, realização e re-
terculturais e pedagógicas, significa promover conhecimento histórico. A lógica da colo-
um projeto decolonial em todas as dimensões nialidade é sustentada na violência exercida
sociais, tendo como núcleo central a dimen- em diversas dimensões pelos colonizadores
são pedagógica. As propostas teóricas do gru- sobre os povos colonizados. A violência ori-
po M/C constituem, do nosso ponto de vista, ginária consistiu na substituição dos seus
uma alternativa de pensamento e fornecem- imagi­nários culturais e simbólicos por um
-nos outros instrumentos teóricos para cons- imaginário europeu.
truir alternativas no âmbito educacional. De acordo com os desenvolvimentos teó-
Partindo do conceito de colonialidade do ricos do grupo M/C, a colonialidade é um fe-
poder, proposto por Anibal Quijano, e já de- nômeno que se refere a um padrão de poder
finido anteriormente, este projeto intelectual que opera por intermédio da naturalização
evidencia as articulações, estratégias, meca- de hierarquias territoriais, raciais, culturais e
nismos e categorias, próprios do eurocen- epistêmicas, que possibilitam a reprodução
trismo, como a raça, controlo do trabalho, de relações de dominação que não só garan-
negação do trabalho como princípio educa- tem a continuidade da exploração do capital
tivo, modelo de Estado e produção do co- como também de uns seres humanos sobre
nhecimento, construídos na modernidade e outros à escala planetária.
sedimentados ao longo de pelo menos três Numa relação com o conceito de colo-
séculos, como padrão civilizatório e que per- nialidade surgem outras dimensões concei-
meiam os diversos domínios da vida humana, tuais que assumem grande relevância nesta
a partir da dominação, controlo e exploração matriz de pensamento crítico: a colonialida-
de do ser (ontológica) e do saber (epistêmi-
caracterizados por culturas diferentes no seio das socieda- ca), colonialidade de gênero, da sexualidade
des capitalistas contemporâneas. No entanto, esse conceito
rapidamente se tornou um modo de descrever as diferen- e das subjetividades. O primeiro, entendido
ças culturais num contexto transnacional e global. Existem como a experiência vivida da colonização e
diferentes noções de multiculturalismo e nem todas têm
um caráter emancipatório. Designamos “multiculturalis- seu impacto na linguagem, na construção
mo retórico” aquele que reconhece a diversidade cultu- de narrativas que negam estatuto histórico
ral que existe no seio dos Estados-nação, sobretudo do
Norte, e que é decorrente de processos migratórios dos a determinados povos: não fazem parte da
povos do Sul para o Norte. É um multiculturalismo que história, não são seres humanos, são selva-
exprime a lógica cultural do capitalismo multinacional ou
global e uma nova forma de racismo. É, de acordo com
gens, primitivos, não têm escrita, não têm
Boaventura Santos (2004, p. 23) “um multiculturalismo história; o segundo, como o estabelecimen-
descritivo e ‘apolítico’, elidindo o problema das relações
de poder, da exploração, das desigualdades e exclusões
to do eurocentrismo como única perspectiva
[...] reforça o sentimento de superioridade de quem fala de conhecimento e suas consequentes exclu-
de um autodesignado lugar de universalidade”. Por sua
vez, o conceito de interculturalidade funcional não pro-
sões relativamente a outros saberes, outras
move o diálogo entre culturas, mas “serve-se” da diver- representações, outras visões do mundo, da
sidade para o funcionamento da sociedade, sustentada
na divisão social do trabalho e na exploração da mão de
história, da economia, da existência, das re-
obra daqueles que são culturalmente diferentes. lações sociais e das relações do ser humano
62 • Manuel Tavares

com a natureza e com a transcendência. A se deixa manipular pela lógica da colonialida-


colonialidade epistêmica tem como conse- de nem acredita nos contos de fadas e nas
quência a colonialidade ontológica e ética, narrativas da retórica moderna.
ou seja, o não reconhecimento do outro não Do que foi dito anteriormente, se depre-
apenas como produtor de cultura e de conhe- ende o que alguns autores da M/C chamam
cimento, mas também como pessoa, como giro decolonial: uma mudança de perspecti-
dignidade humana. A colonialidade de gê- va e atitude que se encontra nas práticas e
nero revela-se na continuidade da socieda- formas de conhecimento dos sujeitos colo-
de patriarcal, machista e misógina, que tei- nizados desde o início da colonização; e um
ma em subalternizar a mulher e a não lhe projeto de transformação sistemática e glo-
reconhecer os direitos em plena igualdade bal dos pressupostos e implicações da mo-
com o homem. É esta realidade negativa que dernidade assumido por uma variedade de
constitui o fundamento de todas as violên- sujeitos em diálogo. O giro decolonial impli-
cias perpetradas contra a mulher até seu ani- ca uma posição crítica e de resistência pe-
quilamento ontológico (feminicídio). A cul- rante a colonialidade, questionando as lógi-
tura colonial, euro e etnocêntrica, imposta a cas, práticas e significados que se instalam
todos os povos colonizados constituiu uma nos quatro domínios da experiência huma-
forma de violência simbólica ao substituir o na: econômico, político, social e epistêmi-
imaginário originário desses povos por um co/subjetivo, propondo a abertura de outros
imaginário europeu. A colonialidade revela- pensamentos e práticas alternativos, focali-
-se, assim, na destruição das subjetividades zados no interesse em reconhecer as feridas
originárias e na construção de subjetividades provocadas pelo colonialismo, reivindicando
adaptadas e ajustadas aos valores e princí- saberes e tradições, identidades, memórias
pios da cultura europeia. e posicionamentos ontológicos dos que fo-
ram vulnerabilizados e silenciados pelos pro-
Resistir para existir cessos coloniais.
É a partir do marco compreensivo do pro-
O programa M/C propõe a decoloniali- grama M/C e do seu posicionamento em tor-
dade como forma de resistência e oposição no do giro decolonial, que surgem algumas
à colonialidade que se originou na moder- interrogações que tentam produzir um olhar
nidade como pensamento e prática e pas- reflexivo sobre os seus dispositivos, práticas
sou a fazer parte de todas as dimensões da e significados, tendo em vista estabelecer
vida dos povos. Apesar da “descolonização” a possibilidade de uma pedagogia decolo-
e “emancipação” dos povos, o colonialismo nial que possa dialogar com as contribuições
sobreviveu com todos os seus instrumentos teóricas deste horizonte de pensamento e,
de opressão, pela sua extensão de colonia- a partir dele, possa aferir a sua pertinência
lidade, no seu imaginário, nas estruturas de e possibilidade.
poder e micropoderes, nas subjetividades e Questionamos, então, se neste importan-
nas relações intersubjetivas. (TAVARES; GO- te debate de ideias é possível uma pedago-
MES, 2018) Sendo assim, a decolonialidade gia decolonial como correlato da crítica pro-
surge como uma espécie de energia que não duzida por este grupo de intelectuais, numa
P edagogias decoloniais : uma proposta educ ativa para uma cidadania global •  63

estreita relação com as reflexões de caráter transmitidos, mas também as metodologias


pedagógico e suas relações com as redes de e apostas didáticas.
poder que operaram na modernidade por Se partirmos do princípio de que a moder-
meio da colonialidade, sem esquecer que a nidade se estabeleceu nos vários domínios da
escola foi a instituição responsável pela for- existência humana e também na existência da-
mação do sujeito moderno. queles que foram colonizados e a quem foi
imposto um padrão de poder e que sofreram
O avesso da história as suas consequências, inferimos que este fe-
nômeno teve lugar através de diferentes arti-
O que significa, afinal, uma pedagogia culações, tecnologias e dispositivos de poder
decolonial? Em primeiro lugar, é necessário que o materializaram nos diversos contextos
que se tenha uma compreensão crítica da da existência dos seres humanos e da sua vida
história; em segundo lugar, uma capacida- cotidiana. Um destes dispositivos foi a escola,
de para reposicionar práticas educativas de instituição moderna por excelência que veicu-
natureza emancipatória; finalmente, a cons- lou noções e práticas formativas que permiti-
ciência crítica e afastamento das perspecti- ram a interiorização e a circulação dos ideais
vas epistêmicas coloniais. da razão, como progresso e capital, como
Neste sentido, uma proposta pedagógica horizontes de realização do sujeito moderno.
decolonial, ainda emergente, é uma propos- À escola, como instituição formativa, ao seu
ta que requer ser consolidada pela reflexão, sentido, às suas práticas e seus saberes, sub-
debate crítico e diálogo com os diversos sa- jaz uma concepção de história ancorada nos
beres, ou seja, pela promoção da Intercultu- critérios da colonialidade, que marginaliza as
ralidade. Argumentamos, por isso, que uma visões dos povos originários, legitimando e
pedagogia decolonial deve assumir como ho- validando uma única forma de representação
rizonte de trabalho as categorias propostas e do mundo, da história, da sociedade, das re-
desenvolvidas pelo giro decolonial, seus sig- lações sociais, do modelo econômico e políti-
nificados e propósitos, tendo como eixo cen- co. A concepção da história transmitida pela
tral a dimensão pedagógica que será, afinal, visão colonial e eurocêntrica é a história dos
o horizonte e dispositivo para a sua prática. vencedores – ocultando e silenciando o outro
Por outras palavras, a pedagogia decolonial lado da história, o avesso da história, o lado
pode ser um esforço de viabilização das pro- dos vencidos e oprimidos. É deste modo que
postas do programa M/C na perspectiva de a história assume matizes de uma construção
uma reflexão crítica em torno da dimensão social e cultural alimentada pelas diferenças
educativa e dos conceitos que lhe estão as- de etnia, gênero e hierarquias múltiplas, que
sociados. Uma pedagogia concebida neste naturalizam relações desiguais, menosprezam
sentido assume uma posição crítica da his- outras visões do mundo e impõem apenas
tória, reposiciona práticas educativas de ca- uma perspectiva epistêmica. (TAVARES, 2014)
ráter emancipatório e se afasta das posições Considerar a necessidade de uma com-
coloniais eurocêntricas, abrindo-se a outras preensão crítica da história a partir de uma
perspectivas de saber que podem influenciar, pedagogia decolonial pressupõe desestabili-
não apenas os conteúdos que são ensinados/ zar e debilitar a visão eurocêntrica, abrindo a
64 • Manuel Tavares

possibilidade de ver a história a partir de ou- como pivots sobre os quais a história é pen-
tras perspectivas. Por ex., a verdade histórica sada, construída e transmitida socialmente e,
do colonialismo só é possível a partir do con- sobretudo, nas práticas educativas. Uma visão
fronto entre a visão dos colonizados e dos arrogante da história que exclui outros povos
colonizadores. Uma compreensão crítica da como sujeitos da história e inclui, apenas, os
história significa desmantelar todo o apare- povos ocidentais como únicos protagonistas.
lho conceitual, epistêmico que sustenta a ex- É uma visão arrogante, mas também uma vi-
clusão, a segregação racial, a discriminação, são míope, distorcida do próprio percurso his-
assim como a imposição de um sistema eco- tórico. (TAVARES, 2014)
nômico globalizante, como um fenômeno Por outro lado, e não muito diferente do
natural que decorre do próprio devir históri- que foi apontado até aqui, para além da con-
co. Por outro lado, uma compreensão crítica cepção de história incorporada pela escola
da história a partir de uma pedagogia deco- moderna, surge para o campo pedagógico
lonial nega a ideia, muito proclamada no sé- e educativo um questionamento que reve-
culo XIX e em determinado período do sécu- la como a sua história (das ideias pedagó-
lo XX, de morte da história e fim da história. gicas, da escola, da docência e da própria
(TAVARES, 2014) pedagogia) aparece construída a partir do
A história moderna privilegiou e afirmou pensamento e categorias da modernidade.
um sentido neutro, objetivo, linear e homogê- Basta que lembremos o dualismo como ca-
neo do percurso e construção históricos, limi- racterística de todo o pensamento ocidental
tando-se a recontar os fatos numa perspectiva e como ele foi incorporado nos modelos pe-
dos chamados “povos civilizados e vencedo- dagógicos e na relação professor-aluno, re-
res”. Não se preocupou em vincular a histó- lação de poder e de dominação. Ao dualis-
ria ao presente e em descobrir criticamente mo filosófico, epistemológico, corresponde
que esta se produz também a partir das ex- um dualismo pedagógico que, por sua vez,
periências, memórias e relatos daqueles que gera outros dualismos e maniqueísmos. A re-
têm outros códigos culturais, outras identida- lação professor-aluno foi, em grande parte
des e que foram silenciados pelas práticas co- da história da pedagogia, uma consequência
loniais e dominantes do Ocidente. Uma histó- e incorporação do dualismo sujeito-objeto.
ria concebida e construída nesta perspectiva Sob os mesmos padrões da colonialidade,
é aquela que desconhece a pluralidade e a a história da educação é a história dos gran-
participação ativa de outros povos com ou- des pedagogos, habitualmente europeus, e a
tras visões do mundo e outros imaginários. história dos sistemas de ensino corresponde às
Uma história assim concebida é aquela que etapas progressivas das nações que se encami-
oculta a verdade histórica, só possível a partir nharam rumo à conquista do ideal civilizató-
do confronto entre posições rivais. Uma falsa rio, procurando articular-se com os critérios da
história é aquela que teve a preocupação de modernidade. Os modelos pedagógicos ado-
consolidar imaginários nacionalistas fundados tados na América Latina e, particularmente,
nas representações da modernidade. Tais re- no Brasil, são modelos importados, que não
presentações mantêm as categorias de domi- levam em consideração a diversidade cultural
nação, exploração e marginalização/exclusão existente e as origens do povo brasileiro. São
P edagogias decoloniais : uma proposta educ ativa para uma cidadania global •  65

modelos ajustados ao monoculturalismo, que constituir uma verdadeira interpelação


não propiciam a interculturalidade. A possibili- ao pensamento ocidental, a qual
dade de um pensamento crítico ou categorial revele a falsidade e a incompletude do
que confronte as diversas visões pedagógicas pensamento eurocêntrico?
da história da educação e submeta a uma re- •• Que apostas metodológicas, epistêmicas,
visão os seus conteúdos e postulados, crian- pedagógicas e didáticas podem incluir a
do diálogos interculturais entre tradições de perspectiva do sujeito, sua orientação
pensamento, não parece ser uma opção ha- ética, axiológica e histórica como variantes
bitual. Não é de estranhar, por isso, que, ha- de ativação de processos formativos?
bitualmente, se siga um modelo pedagógico •• Como produzir, potenciar e divulgar
que incorpora as ideias de um pedagogo de saberes que não estão circunscritos aos
renome e que se apresenta como um mode- mecanismos convencionais de produção
lo que deve ser imitado. As pedagogias tradi- de conhecimento da modernidade?
cionais persistem em ajustar a realidade a um •• Como o fenômeno da interculturalidade
modelo, mesmo que fique apertada, quando, pode revelar os mecanismos mentais da
de fato, ela não se ajusta. Não sigo, aqui, um colonialidade do saber como obstáculo à
pensamento negativista em relação à tradição afirmação de outros saberes, experiências
pedagógica, mas uma visão crítica pelo fato e memórias dos povos?
de todos os modelos adotados não terem sido
capazes de incorporar identidades emergen- A inclusão do sujeito como produtor do
tes e a riqueza da diversidade cultural e epis- conhecimento, numa relação dialética com a
têmica. Utilizar o mesmo modelo pedagógi- realidade, natural, social ou histórica, confe-
co para educar uma criança europeia e uma re historicidade ao conhecimento, retirando
criança africana ou indígena é uma forma de todo o caráter abstrato e universal das po-
colonização, de colonialidade, de violência e sições epistemológicas dominantes. Todo o
continuidade da dominação, para além de conhecimento tem um lugar de enunciação
constituir um ataque e um menosprezo pe- – e esse lugar manifesta-se no conhecimen-
las tradições e memórias dos povos. to contextualmente produzido, tal como os
sujeitos que o produziram.
Considerações finais Ao considerar uma relação do conheci-
mento a partir da incorporação do sujeito
intempestivas
histórico no processo de conhecimento, a
Nenhum texto é conclusivo. Todos os tex- pedagogia decolonial introduz nos cenários
tos abrem horizontes. Daí que, para a abertura educativos e nas práticas cotidianas a neces-
de horizontes, seja (im)pertinente colocar algu- sidade de refletir criticamente sobre o que é a
mas questões que podem ser sugestões para aprendizagem como processo criativo e cria-
um trabalho reflexivo de caráter decolonial: dor de sentidos. O processo de aprendizagem
envolve sujeitos concretos, que vivem em de-
•• Do lado da diferença colonial, quais os terminadas condições sociais e que, por isso,
saberes que podem ser objeto de reflexão transportam toda essa realidade para confe-
e de ensino? Que saberes poderão rir sentido e objetivos às aprendizagens. As
66 • Manuel Tavares

formas de produção e comunicação de co- dos que foram impostos pela colonialidade
nhecimentos que têm lugar nas práticas edu- do poder; mobiliza didáticas e metodologias
cativas deverão permitir abrir novos horizon- que permitam a decolonialidade das mentes
tes de sentido, como alternativa aos sentidos e do saber – que possibilitem um espírito crí-
instituídos pelas práticas educativas hegemô- tico e a emancipação social; desconstrói ou
nicas acríticas e, geralmente, conservadoras “despensa” as categorias de raça, gênero,
e reacionárias. patriarcado e consumo – indissociavelmente
A crítica à perspectiva epistêmica colonial ligadas a uma matriz de dominação, exclu-
estabelece uma ruptura com a ideia de que são e marginalização; enfrenta os desafios
só existe uma maneira de pensar e produzir colocados pela desigualdade e injustiça so-
conhecimento, uma única lógica e uma úni- ciais, pelos silenciamentos epistêmicos, his-
ca racionalidade. Uma pedagogia decolonial tóricos e culturais provocados pela coloni-
abre a possibilidade de afirmação e discussão zação e pela colonialidade; é uma abertura
sobre outras racionalidades e outras lógicas, a novas possibilidades, sendo a mais impor-
propicia espaços formativos onde a consciên- tante o desmantelamento de todo o edifício
cia histórica e a capacidade crítica sejam eixos da colonialidade do poder que se manifesta
impulsionadores de novas formas de conhe- nas várias dimensões: nas estruturas educa-
cimento, de novas formas de aprender e no- tivas, nas relações de ensino-aprendizagem,
vas maneiras de produzir, recriar e transfor- nos diversos dualismos, nos saberes transmi-
mar a cultura. Trata-se, afinal, de promover tidos e nas mentes domesticadas.
uma ação reflexiva, ética e política que seja
capaz de problematizar os valores, princípios Referências bibliográficas
e normas da perspectiva epistêmica colonial, GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. El giro deco-
tendo em vista provocar inéditos, viáveis (Frei- lonial: reflexiones para una diversidad epistémica
más allá del capitalismo global (285-327). Bogotá:
re) e particulares processos de construção do Siglo del Hombre, 2007.
saber e potenciação dos sujeitos cuja expe- MIGNOLO, Walter. Histórias locais, projetos globais. Belo
Horizonte: UFMG, 2003.
riência e existência estão prisioneiras do he-
QUIJANO, Anibal. Colonialidad del poder y clasificación
gemonicamente instituído (colonialidade/do- social. In CASTRO-
mesticação das mentes). SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Reconhecer para
libertar. Os caminhos do cosmopolitismo multicul-
As pedagogias decoloniais, nas quais inse- tural. Porto: Edições Afrontamento, 2004.
rimos a freiriana, são propostas de resistência TAVARES, Manuel. História, memória e esquecimento:
identidades silenciadas. In BAPTISTA, Ana Maria Ha-
aos modelos pedagógicos tradicionais e aos ddad; TAVARES, Manuel. Culturas, identidades e nar-
seus fundamentos epistemológicos: trata-se rativas (73-114). São Paulo: BT Acadêmica, 2014.
TAVARES, Manuel; GOMES, Sandra. Multiculturalismo,
de desmontar a trama conceitual e operativa interculturalismo e decolonialidade: prolegômenos
de uma pedagogia colonial cujo objetivo é a a uma pedagogia decolonial. Dialogia, n.º 29, p. 47-
68, mai-ago, 2018.
reprodução das subalternidades pela domi- WALSH, Catherine. Interculturalidade e decolonialidade
nação cultural e epistêmica; uma pedagogia do poder: um pensamento e posicionamento “outro”
a partir da diferença colonial. Revista Eletrônica da
decolonial exige um trabalho de reflexão per- Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pe-
manente, ligado à ideia de que é possível criar lotas (UFPel), Vol. 5, n.º 1, jan.-julho, 2019, p. 1-34.
WALSH, Catherine. Pedagogías decoloniales. Prácticas
outros caminhos para a educação e formação insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir. Tomo I.
humanas, fundadas em critérios diferentes Quito: Catherine Walsh Editora, 2013.
Por uma utopia pedagógica
antropofágica
Carminda Mendes André
Bacharela em Teatro pela USP (1989), mestra em Filosofia pela USP (1997), doutora em Educação pela
USP (2007); pós-doutora pelo Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (2010).
Pesquisadora e docente colaboradora do Programa de Pós-graduação em Arte do Instituto de Artes da
UNESP. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Performatividades e Pedagogias Cnpq.

I
nicio dizendo que escrevi esse texto mo- A Utopia é sempre um sinal de
vida pelo desejo de abordar um tema que inconformação e um prenúncio de revolta.
me movimentasse para o presente, es- (Oswald, A marcha das utopias)
tudar autores e teorias que poderiam ser-
vir como “cartas na manga” para repensar Pensar as artes e o ensino a partir da an-
a vida dentro das universidades, dos cursos tropofagia oswaldiana é trabalhar na afir-
de licenciatura em teatro em especial, re- mação da Utopia como elemento filosófico
pensar minha vida também. Por isso tentei e didático; pensar uma “pedagogia antropo-
aproximar autores que me são muito ca- fágica” é delirar com a construção de uto-
ros: Oswald de Andrade, Mikhail Bakhtin pias com os estudantes; é aliar inconformis-
e Lev Vigotski. mo e revolta com sonhos de mudanças e
Com a metodologia emprestada de Be- transformações.
nedito Nunes, começo a imaginar uma “pe- Para Oswald, a antropofagia nasceu do
dagogia antropofágica” que possa fazer inconformismo e da revolta à falta de aber-
diagnósticos e que seja terapêutica. De tura e absorção de diferentes formas estéti-
Oswald trago a ideia de antropofagia em cas, diferentes modos de existências, que aca-
contraste à filosofia messiânica estudada baram vetando muitos poetas ao “direito à
por ele também; de Bakhtin trago o con- pesquisa estética” aqui no Brasil em meados
ceito de carnavalização estudado a partir do século XX.
da obra de François Rabelais aproximan­ Cético e inconformado com o modelo
do-o da ideia de devoração oswaldiana; de educativo hegemônico repressor do que cha-
Lev Vigotski trago a função da catarse com mou de filosofia messiânica trazida pelos eu-
seus possíveis efeitos de devoração antro- ropeus em terras de cultura antropofágica,
pofágica. Não tenho pretensões de defen- Oswald, em tom de troça e denúncia, em seus
der alguma teoria, é só cosquinha no pen- manifestos, propõe que “abramos os olhos”
samento. Por isso considero tal texto um para a força da diversidade cultural brasileira.
ensaio inconcluso. A antropofagia, sob essa perspectiva, poderia
68 • Carminda Mendes André

ser considerada como operação cultural de que “sem a ideia de uma vida futura, seria
competência de indivíduos ou grupos sociais difícil ao homem suportar a sua condição de
culturalmente em ação de resistência, mes- escravo”; legitima o preconceito e a intolerân-
mo que silenciados à força. cia cultural na medida em que o não conver-
Qual é a tese? Enquanto alguns procuram tido é visto como uma criatura sem alma, ne-
apagar o que há de reminiscência antropofá- cessitado da catequese para sua “salvação”.
gica nos costumes das gentes, substituindo-a O saber da doutrina é, portanto, absoluto e
pela cultura da metrópole através da filoso- inquestionável. Da mesma maneira o sacer-
fia messiânica (escola disciplinar), os grupos dote, um educador inquestionável, possui-
sociais subjugados camuflam seus valores na dor do saber e único capaz de transmiti-lo.
lógica da carnavalização. Assim foi na Ida- Centrada a aprendizagem na figura do sa-
de Média de Rabelais, assim é no Brasil de cerdote, único possuidor do enigma das escri-
agora. Duas vozes discursivas aparecem no turas, podemos entender que uma “arte mes-
horizonte conceitual de Oswald, que deslo- siânica” teria, como propósito, transformar o
camos para a área das artes e do ensino: o homem comum em “cordeiro de Deus”, crian-
messiânismo e a antropofágica. Dois modos ça de Deus (inocência) e a vítima para o sacri-
de se posicionar. fício, alimento para o Deus. O Tabu, que é o
Ser Supremo intocável, inatingível, incomen-
O discuso messiânico e o surável, continua como tal. Ele é quem devo-
ra o humano terreno (transitório, temporal,
discurso antropofágico
limitado). A catarse daquele que crê é ser pre-
Na concepção de Oswald, a filosofia mes- enchido e devorado por Deus para tornar-se
siânica é composta por religiões que acredi- seu eleito, alcançar a graça com a promessa
tam na transitoriedade da vida terrena como da imortalidade posterior. Ser devorado pelo
negativa e que, por isso, transferem a felici- Ser Supremo é transmutar o transitório, o ina-
dade do crente para um paraíso pós-morte. cabado da realidade humana em eterno, aca-
É característico do messianismo colocar nas bado, absoluto. O múltiplo se apresenta como
mãos de Deus Supremo o destino dos ho- “falso” e transforma-se em Um.
mens. Este modo de pensamento engendra Oswald aponta outra possibilidade para
uma relação pedagógica entre sujeitos de fé a trajetória do Ocidente: a desinterdição do
e Deus: a de total submissão daqueles. Isso princípio da cultura antropofágica. Nesta, o
não seria nenhum motivo de revolta se não ritual se inverte: Deus é devorado como víti-
fosse a doutrina das Igrejas, patronas do en- ma-ritual. Para nosso pensador, a cultura an-
sino da época, as manjedouras de tal ensina- tropofágica compreende a vida como “devo-
mento. Este fato, por sua vez, não teria nada ração que ameaça a cada minuto a existência
de revoltoso se não fossem as doutrinas mes- humana”. A fonte do saber é múltipla, a pa-
siânicas fincadas sob as bases do patriarcado. ternidade é coletivizada.
No messianismo expresso na tese de Na antropofagia o mundo é um dinamis-
Oswald, o Ser Supremo se faz representado mo, a vida é multiplicidade. A relação entre
por eleitos seus. O patriarcado messiânico le- os Deuses e o homem é a da transmutação
gitima a vida como escravidão na medida em do Tabu em totem, do uno em ambivalência.
P or uma utopia pedagógic a antropofágic a •  69

Fases para uma pedagogia processo de devoração dos tabus (desinter-


dição de conteúdos traumáticos da coloni-
antropofágica
zação), alcançar a autonomia intelectual no
Ao estudar o ato antropofágico dos mo- sentido moderno de descolonizar não só o
dernistas, Benedito Nunes classifica o “sim- pensamento mas também a sensibilidade.
bolo da devoração” como metáfora orgâni- Para isso, seria preciso apontar para uma
ca, diagnóstico e terapêutica. relação educador/educando mais horizontal
[Como] metáfora orgânica [a devoração] é e, no campo estético, vencer bloqueios e di-
inspirada na cerimônia guerreira da imolação ficuldades de expressão do inconsciente. O
pelos tupis do inimigo valente apresado em caminho didático seguiria os propósitos de
combate, englobando tudo quanto devería- devorar tudo o que poderia nos fortalecer da
mos repudiar, assimilar e superar para a con- cultura do outro sob o signo da alteridade.
quista de nossa autonomia intelectual. [Como] E, por fim, a terapêutica interpretada por
diagnóstico [a] sociedade [brasileira apresenta- Nunes aponta a catarse como método para
-se] traumatizada pela repressão colonizado- o exercício da aprendizagem, aproximando o
ra que lhe condicionou o crescimento, e cujo ensino da arte a processos terapêuticos que
modelo terá sido a repressão da própria an- objetivem a individuação (processos de au-
tropofagia ritual pelos Jesuítas; e terapêutica, toconhecimento).
por meio dessa reação violenta e sistemática,
contra os mecanismos sociais e políticos, os Diagnóstico antropofágico
hábitos intelectuais, as manifestações literá-
rias e artísticas, que, até a primeira década do “Contra a realidade social, vestida e
século XX, fizeram do trauma repressivo, de opressora, cadastrada por Freud – a
que a Catequese constituiria a causa exemplar, realidade sem complexos, sem loucura,
uma instância censora, um Superrego coleti- sem prostituições e sem penitenciárias do
vo. (ANDRADE, 1995, p. 15-6) matriarcado de Pindorama.” (Manifesto
Antropofágico)
A metáfora orgânica da devoração tam-
bém é encontrada em várias culturas, inclusive Estava eu entre os 13 e14 anos de idade
na eucaristia cristã, pode funcionar como ob- quando li O Guarani de José de Alencar. Nes-
jetivos a alcançar de nossa pedagogia antropo- ta época já sonhava com meus professores e
fágica, essa que tentamos inventar aqui. Inge- sentia desejo de namorar. O romance desper-
rir a carne e o sague de Cristo também pode tou minha “imaginação hormonal”… cons-
ser interpretado como uma reminiscência de truí um Peri guerreiro, musculoso, de pele
rituais antropofágicos mais antigos, ou seja, morena e curtida pelo sol… uma aspereza
voltar-se ao que Carl Jung chamou de incons- quente! Cheguei a sentir o cheiro de ma-
ciente coletivo saldando nossa ancestralidade. deira exalando do corpo de meu índio. Fui a
Com a classificação de Nunes a pedago- branquinha Ceci que, tímida, frágil e cheia
gia antropofágica poderia ganhar um levan- de pudores cristãos, silenciosamente acorda-
tamento dos campos interditos, sejam eles va um vulcão que me fazia suar por inteira.
teóricos ou práticos. Por intermédio de um Esperei o “grande momento” do encontro:
70 • Carminda Mendes André

o beijo e tudo que eu ainda não sabia, mas pudesse estar doente, porque sentia e pen-
que estava louca para conhecer. As páginas sava aquelas coisas de Peri. Sem o ser, eu era!
chegaram ao fim e o índio não rompeu mi- Ao menos meu superego agiu como tal. Se-
nha timidez. Ao final ele, cheio também de ria eu filha de uma das “meninas do gari”,
pudores cristãos, se deixou perder pela cor- índia vestida: prostituta integrada ao conví-
renteza. Minha pré-adolescência não per- vio familiar? Uma, para usar a palavra em
doou. Frustração era o sentimento. moda, incluída socialmente que ainda carre-
Ela era uma hipócrita! Castradora de mim! gava “maus costumes” na gibeira? Sem essas
Ele não era o tipo de namorado de que eu citações e reflexões, senti na adolescência o
precisava! Um panaca! Um bocó! que aqui está posto. Fui então fazer Teatro,
E, por aí, minha mente desfechou contra atividade considerada suspeita moralmente.
o pobre Peri, Alencar e Ceci toda a vingança Minha mãe nunca soube explicar, mas nunca
de meu instinto dionisíaco. A partir daquele suportou me ver atuando. Preferiu presen-
momento passei a “olhar” Alencar com to- tiar-me com o livro Segundo sexo de Simo-
tal suspeita. E assim talvez tenha sido tam- ne de Beauvoir.
bém o começo da iniciação sexual de outras
meninas-moças dos anos 70.
Trinta anos depois, lendo Oswald de An-
drade, essa figura masculina esquecida em Tanto a criação como a fruição da arte
minhas memórias sentimentais é regojitada. são, em meu entender, vivências (aqui, for-
Hoje sei, Peri é o “índio de tocheiro”, “filho malizada pelo diálogo entre o romance e a
de Maria, afilhado de Catarina de Médisce e menina) muitas vezes prolongadas em nosso
genro de D. António de Mariz”. É “o índio psiquismo. Por meio dessas vivências formu-
cheio de bons sentimentos portugueses”. Mas lamos nossas representações sobre as coisas.
a fêmea-em-mim, sem o saber, ladrou NÃO Por meio delas também construímos nosso
NÃO! O cheiro das portas das igrejas sempre imaginário. Aprender, portanto, não é somen-
me enojou! Queria ser levada com ele para te uma função intelectual, mas também sen-
a floresta. E se tivesse maturidade talvez dis- sível ou, dizendo de outro modo, aprender é
sesse com Oswald: “Contra a realidade social, um acontecimento composto por emoções
vestida e opressora, cadastrada por Freud”. que despertam polêmica. Se a arte pode ser
Peri e Ceci não me parecem dois, parecem uma fonte de conhecimentos, minha histo-
ser o mesmo em versão feminina e masculi- rinha poderia servir de ilustração? O que eu
na. E talvez esteja aí o interessante e o per- teria aprendido ali?
verso do romance de Alencar. O outro, o in- Quis mostrar que a mente da menina
terdito, o tabu, estava presente somente no praticava o dialogismo: havia dois discursos
leitor. É duvidosa esta interpretação, mas foi em contraponto. Quis demonstrar o que en-
o que aconteceu comigo: o outro parecia es- tendo da experiencia antropofágica. Percebo
tar somente em mim! Alencar despertou-me que há sempre dois discursos em paralelo e
o desejo e o castrou. simultâneos na mesma “consciência crítica”:
Confesso que, mesmo não tendo for- o primitivo corporal (que estaria nos desejos
mação religiosa alguma, pensei que talvez trazidos pela leitura) e o civilizado castrador
P or uma utopia pedagógic a antropofágic a •  71

(nos preceitos moralizantes no discurso dos transformando-a em consciência social. Cria


personagens). um campo dialógico entre culturas nativas (a
Mas há ainda o “outro” primitivo apon- floresta) e cultura europeia (a escola) causan-
tado por Oswald de Andrade em sua teoria do a desterritorialização da hegemonia da
sobre a cultura, este “outro” pode ser asso- “cultura culta” ou “regional”. Desta maneira,
ciado a diversas significações: “instinto dioni- constroi uma teoria crítica e um pensamento
síaco” ativador da “imaginação” e dos “hor- filosófico constituídos por duas vozes anta-
mônios”, tudo o que se relaciona ao corpo gônicas: a dita civilizada e a antropofágica.
físico: necessidades fisiológicas (comer, be-
ber, defecar, urinar, transar, chorar, sorrir e
mais algum ato que o leitor lembrar), tudo
o que é invenção, todo projeto pessoal. O O desejo de “assimilação entre as cultu-
“outro” é constituído também por diversas ras” explicitadas no Manifesto Pau-Brasil e
vozes sociais que estavam ausentes atrás do no Antropofágico, quando aproximado ao
discurso hegemônico. pensamento crítico de Mikhail Bakhtin, ga-
A vivência de nossa leitura de O Gua- nha uma especial significação pedagógica.
rani, depois dos escritos antropofágicos de Um dos pontos relevantes de tal teoria diz
Oswald, nos pareceu o resultado típico do respeito ao dialogismo que – em nosso en-
processo de ensino catequético, o qual, mes- tender está concorde com o conceito de alte-
mo sem passar pelo rito, nos educa por meio ridade antropofágica – compreende que só o
das práticas sociais. O despertar daquela mu- “outro” pode dar acabamento ao eu e vice-
lher-fêmea criou uma expectativa de prazer -versa. Estudando a natureza do romance de
que não foi satisfeita. O censor foi causado Dostoiévski, Bakhtin nos aponta a consciência
pelos pudores cristãos dos personagens. Va- de um autor (artista) que engloba vários dis-
lores que funcionaram como “educadores” cursos (o “outro”, o “exterior constitutivo”,
da “boa conduta” por um lado e castradores o “já dito”), discursos que se defrontam, se
por outro. O discurso hegemônico é mantido entrechocam manifestando diferentes pon-
na medida em que, sem um contraponto crí- tos de vistas sociais, formando, enfim, uma
tico, a menina se sentiu como uma doente. polifonia de vozes. Este autor dialógico, ape-
O primitivo ganha mais uma significação: o sar de estar presente na obra, constrói sua
conteúdo reprovado socialmente, algo que obra a partir do respeito ao posicionamento
deveria ser extinto ou transformado nas mo- de seus personagens.
tivações básicas da moça. Desta maneira a O discurso (as obras de arte) e a vida são,
“educação catequética” impõe uma hege- para Bakhtin, inacabamento, processo que
monia do discurso moralizador, calando o se faz no campo da comunicação dialogada
“outro”, interpretado como “doentio” ou entre as consciências, que, por sua vez, é um
“não domesticado”. fenômeno vivo, um acontecimento. Este fe-
Oswald, constatando o discurso interdi- nômeno não trata apenas da obra em si, mas
to, força-o a “subir” à consciência. Ao criar o se estende para a relação entre artista e es-
mito de origem do Brasil pré-colonial, o crítico pectador. É dessa maneira que compreendo a
atribui voz discursiva à cultura antropofágica aproximação da cultura nativa com a cultura
72 • Carminda Mendes André

intelectual no pensamento de Oswald, apro- natureza). Os maiores erros que se proces-


ximação “[do] melhor de nossa tradição líri- sam no correr da vida resultam desse con-
ca” com “o melhor de nossa demonstração flito entre o que ela de fato é e o que quer
moderna”. O bárbaro tecnicizado nos parece, ser. (ANDRADE, 1992. p. 276)
à luz do pensamento de Bakhtin, a metáfora
do dialogismo, metáfora portanto de uma vi- Há, portanto, uma “necessidade de com-
são de mundo constituída de múltiplas pater- pensação” que se concretiza no modo de
nidades sem ignorar as tensões entre elas. O viver das sociedades e que cria “esquemas
bárbaro tecnicizado é a própria dualidade, é idealistas” para transformar a natureza. Ao
uma “consciência que engloba duas”. A dia- focalizar esta discussão para os conceitos de
lética proposta não é a da negação da nega- “inato” e “adquirido”, podemos dizer que
ção, é a “dialética da ambivalência”. Oswald admite o “inato” (a natureza hu-
mana) como também aceita a possibilidade
Terapêutica de esta natureza adquirir novos conteúdos
a ponto de ser transformada por meio da
“Temos a base dupla e presente – a floresta intervenção externa (costumes, educação).
e a escola. A raça crédula e dualista e a Ao fazer a crítica à cultura ocidental, afir-
geometria, a álgebra e a química logo depois ma que, desde os gregos (Sócrates/Platão),
da mamadeira e do chá de erva-doce. Um os homens de filosofia visualizaram o con-
misto de ‘dorme nenê que o bicho vem pegá’ flito entre “natureza” e “ideal de natureza”
e de equações.” (Manifesto Pau-Brasil) como falso, ignorando a dualidade, da reali-
dade humana. Ignorando esta dualidade ne-
Em meu entender, Oswald justificou os garam a face negativa da existência. Vivemos,
propósitos da “devoração antropofágica” não desde o platonismo, na “credulidade de que
como uma assimilação apenas “do bem”, “do só o bem existe e que tudo, tende ao bem.”
correto”, mas também de tudo que é destrui- Princípio também tomado pelos sacerdotes
ção, obstáculo, negação. Oswald desenvolve cristãos para “afirmar que Deus era o supre-
uma teoria particular sobre o psiquismo huma- mo bem e que tudo tendendo a ele, tendia a
no. Defende a ideia de que sofremos de um supremo bem”. (Idem, p. 277) O caminho di-
“déficit essencial”, ou seja, uma incompletu- dático deste pensar nos parece o seguinte: o
de que nos torna incapazes de mecanismos de saber adquirido é sempre um bem, uma po-
defesa e ataque, tal como os programas gené- sitividade, uma construtividade, posto que
ticos dos animais, para sobreviver aos perigos quem o professa é um sujeito de bem, quem
do meio externo. Como compensação, preci- o professa estaria embasado nas escrituras.
samos desenvolver técnicas de defesa e ataque Do outro lado está Oswald atualizando
com a invenção da técnica (artefatos de defesa). uma forma de compreensão da ambiguida-
Para nosso pensador, de existencial. Sem negar a natureza (que
o engano do homem é esquematizar sua ele é) ou o idealismo (o que ele deseja ser) a
própria natureza e criar necessariamente um cultura antropofágica já tecnicizada se cons-
conflito entre o que ele é (natureza) e o que tituiria como um dinamismo ambivalente.
deseja ser (esquema para idealizar a própria Oscilaria entre natureza e cultura. Com isso,
P or uma utopia pedagógic a antropofágic a •  73

Oswald traz de volta, para o processo cultu- Assim, convivia-se com duas visões de mun-
ral, a necessidade do yin-yang do conheci- do: a oficial séria e a popular cômica.
mento: bem-mau, positividade-negatividade. Bakhtin defende a ideia do riso carnava-
O “outro”, que para a filosofia messiâni- lesco como visão de uma totalidade dialógi-
ca torna-se alvo de preconceito e intolerân- ca em que o tema do nascimento, do novo,
cia, é recebido pela cultura antropofágica da renovação associava-se organicamente ao
como necessidade para o crescimento (espi- da morte do antigo, tratado num plano de-
ritual, material). gradante e alegre, às imagens do destrona-
mento bufo e carnavalesco. Coincidindo com
a visão antropofágica oswaldiana, o riso car-
navalesco totemizava o interdito. Nas pala-
Em minha perspectiva, a terapêutica da vras de Bahktin, no carnaval “brinca-se com
antropofagia interpretada por Nunes poderia o que é temível, faz-se pouco dele: o terrível
ser contextualizada a partir do “terror ances- transforma-se num ‘alegre espantalho’”. O
tral”, defendido por Oswald, diante da con- medo e a intimidação exercidos pela cultura
cepção da vida como devoração. E aí voltamos oficial (séria) teriam sido vencidos pelo riso.
novamente ao pensamento de M. Bakhtin. O homem medieval sentia no riso, com
Sobre a vida como devoração, encontramos uma acuidade particular, a vitória sobre o
referências no trabalho de Bakhtin quando medo, não somente como uma vitória sobre
analisa a cultura popular da Idade Média e o terror místico (“terror divino”) e o medo que
do Renascimento por intermédio da obra inspiravam as forças da natureza, mas antes
de Rabelais. Ao buscar historiografia do riso de tudo como uma vitória sobre o medo mo-
popular, Bakhtin remonta a origem das ima- ral que acorrentava, oprimia e obscurecia a
gens carnavalescas encontradas na obra de consciência do homem, o medo de tudo que
Rabelais como reminiscências de elementos- era sagrado e interdito (“tabu” e “maná”), o
-rituais pagãos ligados às festas de fertilida- medo do poder divino e humano, dos man-
de. Essas imagens carregam na representa- damentos e proibições autoritárias, da morte
ção da vida do corpo material (comer, beber, e dos castigos de além-túmulo, do inferno,
copular, etc.) e são construídas de tal manei- de tudo que era mais temível que a terra. Ao
ra que engendram a ambivalência: mistura derrotar esse medo, o riso esclarecia a cons-
dos reinos animal-vegetal, humano-animal, ciência do homem, revelava-lhe um novo
humano-vegetal; céu e inferno, mundo e in- mundo. (BAKHTIN, 1987, p.78).
ferno, mundo e céu, etc.
Para o estudioso, o riso ambivalente não O carnaval torna-se a representação do
funciona como divertimento. Seu alcançe é inferno materializado. Nesta imagem do car-
místico, psicológico e político. As obras de naval, mais uma afinidade podemos intersec-
Rabelais, Cervantes ou Dante (só para citar tar entre Bakhtin e Oswald:
alguns) seriam o resultado do sincretismo O inferno do carnaval é a terra que devo-
entre cultura culta (cristã) e cultura popular ra e procria; ele se transforma frequentemen-
(pagã). Porém ainda vivia dentro das gentes te em cornucópia, e o espantalho – a morte
daquele período uma espécie de primitivismo. – é uma mulher grávida. (…) todas as coisas
74 • Carminda Mendes André

terríveis, não terrestres, converteram-se em Rabelais foi antropofágico na medida em que


terra, isto é, em mãe nutriz que devora para desreprimiu a visão primitiva internalizada e
de novo procurar outra coisa, que será maior assimilou-a em sua formação acadêmica. Da
e melhor. Nada sobre a terra pode ser terrí- mesma maneira Oswald engoliu a cultura es-
vel, da mesma forma que nada pode sê-lo trangeira e a anexou à sua alma macunaímica.
no corpo da mãe, com suas mamas nutriti- No entanto, para Oswald, o medo an-
vas, sua matriz, seu sangue quente. O terrível cestral permanece. Convicto da ausência de
terrestre: os órgãos genitais, o túmulo cor- qualquer socorro supraterreno, diante da
poral, dissolve-se em voluptuosidades e em vida como devoração, o homem solitário en-
novos nascimentos. O riso da Idade Média tra em pânico, diz nosso autor. Para superar
não é a sensação subjetiva, individual, bioló- este estado de destruição, o homem primi-
gica da continuidade da vida, é uma sensa- tivo oswaldiano, por meio do ritual antropo-
ção social, universal. (BAKHTIN, 1987, p. 79) fágico, produziu a solidariedade social. Esta
solidariedade só foi possível quando o ritual
No carnaval também Deus é devorado. De conseguiu manifestar o “sentimento órfico”,
maneira surpreendente percebemos a mes- sentimento de religiosidade, uma “vontade
ma ideia de “devoração” em ambos os au- para crer” que aparece em qualquer cultura.
tores. Devoração que é um comportamen- Bakhtin também reforça a dimensão religio-
to reminiscente de um “passado primitivo” sa do carnaval, ou seja, sua dimensão ritual
ou, ainda, de um “ser primitivo” interioriza- que poderíamos chamar de “antropofágico”.
do que os homens do Renascimento com- O elemento da catarse entra neste contex-
preendiam como uma segunda natureza (a to religioso para não perder sua significação
vida do corpo) e que se manifestou, na inter- carnavalizante e antropofágica. A catarse para
pretação de Bakhtin, como resistência à cas- Aristóteles cumpria a função de expurgar o
tração imposta pela cultura oficial. terror e a compaixão dos presente. A tragédia
Para Oswald a antropofagia revela que “a grega pelos olhos de Aristóteles, como a Litur-
periculosidade do mundo, a convicção da au- gia para Oswald, se torna o espaço-tempo da
sência de qualquer socorro supraterreno, pro- “exteriorização de um sentimento pelas cor-
duz o ‘Homem cordial’, que é o primitivo, bem das do social”, “um ato fundamental de so-
como as suas derivações no Brasil”. (Oswald, lidariedade humana”. Domina-se o terror da
1990, p.159) Diferentemente da civilização cal- devoração da vida pela compaixão, que, longe
cada na concepção messiânica que faz do in- do sentimento de “pena” interpretado pos-
divíduo objeto de graça, dissocia o social, pro- teriormente pelos críticos influenciados pelo
duz o individualismo contemporâneo. Oswald pensamento cristão, a compaixão é a expe-
como Rabelais esforçaram-se por aproximar riência da auteridade oswaldiana, do “viver
o “primitivo” (cômico) e o “civilizado” (sério) no outro”, da identificação sem a perda de si.
sem negar ou privilegiar qualquer das partes.
A dialética da ambivalência foi para eles o ca-
minho didático para a superação da visão ma-
niqueísta do mundo oficial cristão, caminho Por fim, para apontar para uma pedagogia
que poderia encontrar a liberdade (a utopia). antropofágica, nos voltamos para Vigotski.
P or uma utopia pedagógic a antropofágic a •  75

Este autor aproxima a arte da psicologia e um ser social, que vive e produz para a co-
atualiza o tão desgastado conceito da catar- munidade. Sua peculiaridade, diz Vigotski,
se. A arte é para ele fonte de conhecimento diferentemente do animal, consiste em que
do psiquismo do homem social, pois entende ele introduz e separa do seu corpo tanto o
não haver artista que tenha inventado sozi- dispositivo da técnica quanto o dispositivo do
nho sua maneira de criar, esta estaria condi- conhecimento científico, que se tornam ins-
cionada a valores e procedimentos históri- trumentos da sociedade. De igual maneira,
co-sociais. Com isso desenvolve uma teoria a arte é uma técnica social do sentimento,
para a arte como “técnica de sentimentos”. um instrumento da sociedade através do qual
Nesta concepção, a arte possibilitaria su- incorpora ao ciclo da vida social os aspectos
perar as paixões que não encontram vazão mais íntimos e pessoais do nosso ser (Idem).
na vida normal (Vigotski, 2001). Essas pai-
xões seriam coletivas, Desta maneira o autor russo recontextua-
[seria o] social em nós, e, se o seu efeito se liza a arte na vida social, desvanecendo qual-
processa em um indivíduo isolado, isto não quer vestígio da concepção de arte separada
significa, de maneria nenhuma, que as suas da vida. A arte não só é parte da vida, como
raízes e essência sejam individuais. É muito torna-se elemento dinâmico, capaz de, com
ingênuo interpretar o social apenas como sua presença, criar fatos e transformar o so-
coletivo, como existência de uma multipli- cial em que foi produzida.
cidade de pessoas. O social existe até onde Vigotski, partindo do teórico grego (do
há apenas um homem e as suas emoções conceito de catarse aristotélico) mas também
pessoais. Por isso, quando a arte realiza a aliado aos estudos modernos da psicologia
catarse e arrasta para esse fogo purificador social, define o termo como sendo a “reação
as comoções mais íntimas e mais vitalmen- estética, de que as emoções angustiantes e
te importantes de uma alma individual, o desagradáveis são submetidas a certa descar-
seu efeito é um efeito social. (VIGOTSKI, ga, [e] à sua destruição e transformação em
2001, p. 315). contrários” (VIGOTSKI, 2001, p. 270). Na in-
terpretação do pedagogo, a arte é dialética
A função da arte, em uma perspectiva exatamente porque mostra o duplo contra-
utópica antropofágia, tornar-se-ia reguladora ditório das coisas do mundo. Como catarse,
dos sentimentos não superados no dia a dia; a arte traz, em sua manifestação e compo-
tornar-se-ia produtora de conhecimentos que sição, a contraposição de sentimentos, cau-
possibilitariam aos indivíduos transformarem sando uma fantástica descarga emocional.
as relações sociais, tais como os instrumentos E se há alguma terapêutica na antropo-
técnicos transformam as relações de traba- fagia oswaldiana, ela passa pelo mesmo pro-
lho e, por conseguinte, a sociedade em que cesso: destruição e construção; aproximação
é gerado. O exercício da arte seria o espaço- de realidades muito distintas; agressão vin-
-tempo da experimentação de novas formas gativa e comunhão.
de relacionamentos humanos: se quisermos, Tal como Oswald, Vigotski compreende
o espaço da utopia da solidariedade. Nesta que para a percepção e vivência de uma con-
perspectiva, o homem seria definido como tradição, um paradoxo ou uma ambivalência,
76 • Carminda Mendes André

é preciso preparo. A pedagogia Pau-Brasil in- própria possibilidade do happening ter acon-
terpretada por Benedito Nunes, já citada por tecido apesar de todo o aparato de seguran-
nós, mostrou o esforço dos modernistas em ça do maior país bélico do mundo deste pe-
transformar o comportamento do especta- ríodo, mostrava a atuação invisível de uma
dor diante da obra. Para Vigotski, para al- inteligência incapaz de ser detida por qual-
cançar a percepção artística, como fenôme- quer aparato tecnológico fabricado pelo ho-
no catártico, mem. Stockhausen talvez tenha compreen-
é necessário observar ao mesmo tempo o dido-vivenciado este duplo da vida e da arte:
verdadeiro estado de coisas, o desvio des- o belo e o terrível ocupando o mesmo lugar.
se estado de coisas e como dessa contra- Isso contando que tal espetáculo não tenha
ditória percepção surge o efeito... da arte.” sido obra dos próprios estadunidenses, como
(Idem, p. 328) alguns alegam.
Assumir novamente o lado “devorador”
Perceber e criar obras de arte seria uma da arte, transformá-la em agente de mudan-
sofisticada atividade psicológica e cognitiva. ça é a utopia que poderia sonhar uma peda-
Quando Stockhausen manifestou, por gogia antropofágica.
meio de palavras, o impacto do atentado de
11 de setembro nas torres gêmeas como “a Bibliografia
maior obra de arte produzida pela humani- ANDRADE, Oswald de. Estética e política. São Paulo: Glo-
dade”, lamentando não serem seus músi- bo, 1992 (Obras completas de Oswald de Andrade).
ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica. São Pau-
cos como terroristas que doam suas vidas lo: Globo, 1994 (Obras Completas de Oswald de
para realizar o “espetáculo”, o músico mos- Andrade).
ANDRADE, Oswald de. Pau Brasil. São Paulo: Globo, 2003
trou ter contemplado o “rosto de um deus” (Obras completas de Oswald de Andrade).
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e
ao mesmo tempo terrível e belo. A precisão
no Renascimento: o contexto de François Rabelais.
dos aviões, as câmeras viradas para o acon- Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Huci-
tec; Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.
tecimento, a própria imagem-cena criada VIGOTSKI, L. S. Psicologia da arte. Tradução de P. Bezer-
pelo fogo e desmoronamento posterior e a ra. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
Sopros de pensamento
na pandemia
Lucia Santaella
Coordenadora da Pós-graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital, Diretora do CIMID, Centro
de Investigação em Mídias Digitais, e Coordenadora do Centro de Estudos Peirceanos, na PUCSP. Presidente
honorária da Federação Latino-Americana de Semiótica e Membro executivo da asociación Mundial de
Semiótica Massmediática y Comunicación Global, México, desde 2004. Possui mais de 40 livros publicados.

O inimigo invisível os atributos e ser também socius, faber, lo-


quens, mas também demens. Como leitora
O coronavírus não é um micro-organis- de Morin, de Freud-Lacan e do falibilismo
mo. É micro, mas não passa de um para- de Peirce, portanto, em afastamento cabal
sita. O planeta revirado, a humanidade no do conforto das certezas, defendo a tese
fio de uma navalha, por um inimigo mortal de que o Sapiens, por fatalidade congênita,
que é tão só e apenas um parasita. Dada a é uma espécie ambivalente, contraditória
ambiguidade biológica do vírus, nos últimos e paradoxal. De fato, há algo mais contra-
100 anos, a comunidade científica mudou ditório e paradoxal do que, na era da in-
repetidamente seu entendimento sobre o teligência artificial, da internet das coisas,
que são vírus. Antes eram vistos como ve- do big data e das explorações interestela-
nenos, depois como formas de vida e, en- res, a humanidade posta de joelhos, ata-
tão, produtos químicos biológicos. Por fim, cada e humilhada por um micro ser, que
os vírus hoje são vistos como estando em nem organismo é, um mero microparasita
uma área cinzenta entre vivos e não vivos: invisível?
eles não podem se replicar por si próprios,
mas podem fazê-lo em células realmente Cada dia é um dia
vivas e também podem afetar o comporta-
mento de seus anfitriões profundamente. O O discurso em primeira pessoa sempre
fato de serem categorizados como não vi- me constrange. Mas a reclusão forçada nos
vos levou a maioria dos pesquisadores a ig- torna introspectivos. Todavia, em vez de
norar o vírus no estudo da evolução. Hoje, olhar para dentro, algo que só interessa-
no entanto, os cientistas já estão aprecian- ria a mim e a um possível psicanalista, pas-
do os vírus como atores fundamentais na so os olhos para os efeitos da reclusão: a
rede da vida. imensa reviravolta na rotina e as mudanças
No livro O enigma do homem, uma obra- de hábito que provoca e que torna cada
-prima, de Edgar Morin, o Sapiens recebe dia um dia.
78 • Lucia Santaella

Hoje é dia da saudade não faltam na vida: nossas pedras no meio


do caminho.
Para mim, hoje é o dia de sentir sauda- Saudade dos almoços e jantares com fa-
des… Saudade da pipoca metade salgada, miliares e amigos. Trazer para a vivência a ex-
metade doce, enquanto as luzes se apagam plosão lúdica de uma alegria serena, expres-
e a tela descortina o filme. A tela ampla, o sa na canção de minhas origens, do medievo
som no fundo, visões multicoloridas em des- espanhol, de Juan del Encina: “Hoy coma-
locamento contínuo, diálogos, close-ups, o mos y bebamos y cantemos y holguemos.
fascínio da fotogenia, planos de aproxima- Que mañana ayunaremos”. Saudade tem a
ção e distanciamento, a câmera por trás de ver com nostalgia, retorno, mesmo que nas
tudo sob a regência do diretor e de outros névoas da memória, daquilo que foi vivido
artistas que lhe dão sustentação. Aí está uma e que o tempo não pode corroer. Nostalgia,
situação geradora de encantamento extáti- quietude e solidão são irmãs siamesas.
co, entre outras muito especiais: um roman- Saudade da família, dos irmãos e do ir-
ce que nos pega e não nos larga mais, seguir mão a quem dedico muito mais que um sen-
um pensamento sábio que eleva nossa men- timento fraterno, condensado no puro sen-
te para plagas que ainda não habitávamos… tir. Saudade dos meus filhos que me dedicam
Mas a tela, ah, a tela grande, reminiscências um amor implicante. Seus olhares e sorrisos,
do cinemascope, é, para mim, um meio de o tom de suas faces, tudo vem no contrapelo
transporte e aproximação de um sentimento de suas imagens de infância, de adolescên-
que deve se parecer com a felicidade. cia, dos momentos de lágrimas e de alegria
Saudade das minhas aulas presenciais. no comum do sentimento de amor. Nesses
Os rostos, os olhares dos jovens me apai- momentos, a transmissão por voz e por ima-
xonam. A fala escorrega, sem entraves ou gem, os Whatsapps, os vídeos, os e-mails vi-
tropeços, ensinando-me meus próprios pen- ram um nada perto do aquecimento que a
samentos. As aulas transcorrem na atmos- presença traz ao coração.
fera que só a potência da presença é capaz Saudade aguda, agudíssima dos meus
de criar. Algo no ar, um bem-estar comum netos, esses que são responsáveis pela ação
na esfera do compartilhamento de egos em vulcânica do afeto em nossas vidas para lá
uníssono. Todos integrados na sabedoria que de maduras. A força da vida renasce neles,
trago do outro e que transmito pela via da na maneira com que nos olham, seus sorri-
fruição e do prazer. sos na plenitude da beleza espontânea, sor-
Saudade das andanças no parque. O sol- risos felizes e inocentes daquilo que o exis-
zinho e os passos céleres aquecendo nosso tir, de fato, é. “Existirmos, a que será que
corpo e ritmando a sístole e a diástole. A som- se destina?”… Seus sorrisos e agitações
bra do verde, o vento balançando as folhas, nos envolvem em um círculo de sentimen-
pássaros soando em algum lugar não visível, tos enigmáticos, cifras em que se encerram
tudo em uma tal apreensível harmonia que os mistérios da vida. Tenho as mãos vazias
se torna capaz de abrandar, atenuar, sere- na espera entre paciente e impaciente do
nar preocupações e, até mesmo, suavizar, no toque de suas mãozinhas que cabem bem
passo a passo do caminhar, as agruras que dentro da minha.
S opros de pensamento na pandemia •  79

Hoje é dia do desprezo pelo ódio Hoje é dia da frustração

Que a perversidade é parte da constitui- Preparo com gosto, inclusive com algu-
ção humana já foi bem tematizada por Freud ma estética e preocupação com a garantia
na pulsão de morte e também por Bataille: o da transmissão eficaz. Não obstante, ao final
prazer que se extrai do horror que atinge o de três horas, desligo o computador, plin, e
outro. Portanto, que o ódio não se aplaque fico mergulhada em um inevitável sentimen-
nem em tempos de pandemia, não é de se to de frustração. As aulas remotas me frus-
estranhar. Só vem dar munição para a des- tram. Dou aulas desde quando ainda cursava
confiança que tenho de que o ser humano o segundo ano da faculdade. Não precisa-
não deve passar de um erro da evolução. va, mas a vocação me empurrava, inclusive
O que ainda deixa uma ponta de surpresa para me pendurar em ônibus lotado no tra-
é que, no que me resta de ingenuidade, acre- jeto. Comecei esse caminho com aulas para
ditei que a reclusão provocasse mudanças de o jardim de infância. Logo percebi que não
hábito. Mas, na verdade, em meio a hábitos tinha nenhum jeito, faltava paciência para li-
mais superficiais, fáceis de deslocar, parece dar com a fogosidade infantil. Passei para o
que cada um está se defrontando com seus ginásio e colégio.
hábitos interiores inamovíveis. Alguns bons, Quando fazia minha pós-graduação che-
outros maléficos por natureza e, no meio, guei a dar mais de 60 aulas por semana, de
muitos hábitos oscilantes entre bons e maus. manhã, à tarde, à noite e até nos sábados à
Se há hábitos de sentir que se instalam tarde, até às 18 horas. Nada disso me pesa-
como um fungo no fundo do poço da alma va, adorava. Diminuí o número de aulas para
de alguns são os hábitos de mal-sentir, um cer- 52 para poder escrever o doutorado, quase
to mal-estar consigo mesmo, com aquilo que sempre madrugada adentro. Lia em ônibus,
se é, uma verdade escondida que se potencia- nos intervalos de aulas, filas de banco, em
liza na reclusão forçada. Uma espécie de cobra qualquer brecha. Até hoje, não saio de casa
comendo o próprio rabo, um oroboros despido sem um livro na bolsa. Às vezes, eles só pe-
de eternidade, só maldade intempestiva que, sam. Mas, sem essa garantia do livro à mão,
ao fim e ao cabo, se volta contra si mesmo. não sei ficar.
É só esperar, o mundo dá voltas, enquanto o Defendi meu doutorado grávida. Só des-
mau sentimento paralisado acaba por parali- cobri a gravidez porque comecei a dormir em
sar a própria vida. Isso explica o ódio, uma ex- cima dos livros. Nunca tirei férias de mater-
plicação muito mais eficaz do que aquela de nidade. Uma semana depois de dar à luz à
colocar a culpa na desinformação. segunda gravidez, me disseram: “Vá descan-
Apesar de ter perdido a ingenuidade, sar”, a PUC não precisa de você! Respondi:
ainda não perdi a esperança de que, se há “Mas eu preciso da PUC”.
algo a extrair da desgraça que se abateu so- Em suma: aonde essa trajetória me le-
bre a humanidade, aqueles capazes de re- vou? À segurança de entrar em uma sala
sistir nos bons sentimentos chegarão ao fi- de aula de mestrandos, doutorandos, pós-
nal da jornada melhores do que eram na -doutorandos, sem papel na mão, nenhuma
linha de partida. anotação, nenhum PPT e, livre, leve e solta,
80 • Lucia Santaella

simplesmente deixar jorrar as décadas de ex- profundidade exata, e derramar sementes.


periência e de amor pelo saber que o tem- Se não chove, pede-se um pouco de água
po me levou a acumular. As aulas costumam para livrar a terra da secura, nem muito, nem
transcorrer sem que veja um simples olhar de pouco – aliás, duas regras que também fun-
tédio no rosto intensamente interessado dos cionam no amor, onde se pode pecar ou so-
educandos, presos ao fio de minha voz. Pura frer por excesso ou por carência. A cada dia,
experimentação do prazer que a transmissão vem o pensamento: será que vai brotar? An-
honesta e sincera do conhecimento pode dar. tecipações esperançosas do florescimento.
Por isso, nunca senti vontade de abrir As folhinhas, então, começam a se esboçar.
um canal no YouTube. Agora, as aulas re- Quanta alegria em congratulações com a vida
motas me frustram. Sinto-me presa, amar- que dá continuidade externa à sua gestação
rada. Sem a âncora da atenção expressa no interna. Mais um tempo de espera, sempre
olhar dos que me ouvem. O rosto e o olhar variado, dependente do que se plantou, até
do outro nessa interação são dadivosos. Isso que a esperança, em algum momento, tor-
faz uma falta que é sentida até no corpo. As na-se flor. Não é por acaso que, na sua sa-
aulas remotas são à noite. Ao acordar no dia bedoria, para Freud, quando não se dispõe
seguinte, vem um sentimento similar àquele de algum dom do espírito, cuidar das flores
que temos, muito vago, meio sem eira nem nos premia com a sublimação, sempre depen-
beira, de ter tido um sonho desagradável, dente da capacidade maior ou menor de se
cujo conteúdo nos escapa. objetivar criativamente a subjetividade, algo
que o artista, por potência congênita, leva
Hoje é dia do inconformismo às últimas consequências.
Cozinhar ganha em complexidade, por-
Aprendi com C. S. Peirce que o passa- que é mais exigente no passo a passo cria-
do é fait accompli. Se você disser ao passa- tivo. O ato de entrega tem início na escolha
do que não se conforma com ele, ele só vai atenta dos ingredientes. A arte já começa
rir de você. Mas como tudo anda muito re- aí. A receita é um algoritmo. Sua execução
virado, vejo-me no direito de não me con- é uma prática amorosamente repetida até o
formar com o que deixei de fazer ao longo ponto exato da perfeição. Olhos e mãos co-
do tempo. Vejo pessoas talentosas postarem ordenadas desenham coreografias no cor-
seus vídeos com tutoriais do passo a passo de po a corpo com o cozimento, cada uma a
receitas até que, por fim, é chegada a hora seu tempo, das substâncias palatáveis. Não
da celebração de belíssimos pratos em que pode haver erro, nisto o ato assemelha-se à
a distribuição das cores e a textura pressen- água na planta e ao amor, nem mais, nem
tida dos alimentos fazem brilhar os olhos e menos. Qualquer deslize pode pôr muito a
acionar as glândulas salivares. Por que não perder. Mas a amorosidade dispõe do seu
desenvolvi essa admirável e generosa arte de ofício para terminar no triunfo ofertado do
se ver a si no que se faz, um fazer muito mais resultado. Adoro observar todos esses ges-
dirigido para o outro do que para si mesmo? tos com o mesmo encantamento com que
Cozinhar lembra um pouco o ato de se podem adivinhar os mistérios interiores de
plantar flores. Abrir a terra com as mãos, na um músico enquanto escuta música.
S opros de pensamento na pandemia •  81

A potência da presença contrário, o meio é quente, isto é, concen-


trado em um único canal sensório, ou seja,
Potência-1 o visual. Felizmente o visual é acompanhado
pelo som da voz, o que salva um pouco essa
Ver a diferença entre o presencial e o on- semiose. Mas, ao fim e ao cabo, o que se-
line pelo prisma da oposição entre verbal ria de nós agora sem esse meio quente que
e não verbal empobrece a questão. A divi- não nos aquece em nada, mas dá socorro ao
são entre verbal e não verbal não passa de nosso psiquismo tanto quanto permite que
um resíduo linguocêntrico, pois, entre am- processos de ensino-aprendizagem, sempre
bos, existem hoje miríades de tipos de sig- sagrados para a continuidade da vida inteli-
nos que acabam ficando ocultos na cortina gente, não caiam no vazio.
de fumaça desse termo generalizante “não
verbal”. Mas, para ficarmos na questão da Potência-2
diferença entre presença e online, na comu-
nicação presencial, face a face, mesmo que O sentido do tato e o contato em presen-
a uma distância de dois ou três metros, vá- ça nunca se fizeram tão ansiados. Embora
rios canais perceptivos entram em ação, pois onipresente, a tatilidade ficou relativamen-
estão também em ação vários sistemas de te esquecida e mesmo despercebida frente
signos: olhar, paisagens do rosto, tensão ou à proeminência, à hiperdimensão do senti-
distensão da postura corporal, gestualidade, do da visão. Haja vista o grande número de
timbre, entonação e volume da voz, ritmo e equipamentos técnicos, ou seja, mídias me-
cadência da fala em sincronia com a corpo- diadoras da visualidade, esta seguida pelo
ralidade, prontidão ou lentidão reativa etc. sentido da escuta, também privilegiado por
Enfim, o que se tem aí é um concentra- mídias de gravação, agora em streaming. O
do turbilhão de signos e sinais que, inclusi- sentido háptico foi bastante lembrado por
ve, acionam reações afetivas e emocionais. McLuhan, quando demonstrou que nossos
Na situação online, tudo isso fica reduzido à olhos e nossos ouvidos são também táteis.
imagem enquadrada em um caixote visual Pesquisas em neurociência revelam que o
e à voz maquinal, às vezes ou uma ou ou- tato se esparrama pelo corpo inteiro. Assim,
tra. Isso aumenta a tensão comunicacional nossas mãos não foram feitas apenas para
porque a naturalidade do enxame semióti- apalpar, manipular, agir no mundo em uma
co que funciona de modo intuitivo e sincrô- pluralidade de funções, inclusive cognitivas,
nico fica, até certo ponto, perdida. Passan- nossas mãos foram feitas também para aca-
do para McLuhan, que era um semioticista, riciar. Demonstram ainda que nossos braços
sem saber que era, a comunicação presen- não foram feitos apenas para trabalhar, mas,
cial é caracterizada como um meio frio, ou sobretudo, onde os afetos falam, foram fei-
seja (é bom não confundir), é frio porque vá- tos para abraçar. Nossos pés não foram fei-
rios estímulos estão em ação, o que implica tos somente para palmilhar o chão, mas para
maior mútuo-participação. o caminhar passo a passo com aqueles que
Quanto mais frio é o meio, mais a comu- amamos. Nossas pernas não foram feitas
nicação é participativa. Na situação online, ao apenas para nos colocar de pé, nas labutas
82 • Lucia Santaella

da vida, mas para se enrolarem entre pernas filigranas, que se fixam nas delicadas granu-
amadas. Nossos corpos não foram feitos tão lações da memória.
só e apenas para nos carregar em nossa exis- Embora todos se unam na saudade, des-
tência, mas para realizar a miragem sonhada, de as crianças até os mais idosos, há um sen-
insaciavelmente desejada de que, no lampe- timento que só pertence a estes últimos: a
jo de uma impossível completude, dois cor- nostalgia, bem mais vaga, indefinível e mis-
pos possam se transmutar em um só corpo. teriosa do que a saudade. São visitações em
sonho de situações longínquas, enigmáticas;
Da saudade e da nostalgia fragmentos supostamente esquecidos do pas-
sado que afloram, de súbito, enquanto dis-
Com os botões de nossa maturidade, só traidamente se enche uma xícara de café; a
podemos imaginar, apenas imaginar, não mais sofrida tendência de passar a vida a limpo
que isso, o que estão sentindo os jovens sub- e a impossível luta por evitá-la, pois o isola-
metidos ao isolamento. A juventude é feita mento trabalha a favor dela. São reescritu-
de explosões de alegria grupal, de sentimen- ras imaginárias do destino, tão imaginárias
tos que brotam em encontros no aberto da quanto vãs, pois o passado é inamovível. Mas
vida, de prismas que se expandem do pre- teima por retornar em fragmentos de memó-
sente ao futuro. A reclusão forçada deve es- ria com exigências de se reescrever: apagar
tar ferindo, apunhalando essas perspectivas as dores para o relevo daquilo que na vida
semeadas na continuidade do viver. Golfadas mereceu ser vivido. Esse é o tecido de que é
de saudade provavelmente estão assaltando feita a nostalgia, malha fina de sentimentos
o coração dos jovens, saudades de tudo que que mais machucam do que aliviam, porque
entra na composição de seus apegos, afetos só se tem nostalgia daquilo que não tem re-
e ideais. Mas isso são suposições para aque- torno. Portas do presente e do futuro que se
les a quem a energia juvenil se tornou pura cerram sem clemência.
reminiscência tanto corporal quanto psíquica.
Isolar-se, na maturidade, entregar-se a De interiores e janelas
uma vida mais comedida, nos interiores que,
como uma segunda pele, funcionam como Interiores
casulos de proteção contra possíveis fragili-
dades, é um hábito que, conforme o tempo Ontem gastei alguns minutos fotografan-
passa, vai se tornando cada vez mais presen- do uma parte da casa, a sala e o home the-
te. Neste caso, o isolamento, com igual cer- ater, pois os ambientes de estudo já tinham
teza, machuca, mas ao modo distintivo que passado por isso. Guardei para mim no ce-
é próprio da maturidade. Assomos emer- lular e passei por poucos minutos pelo sen-
gem, com mais ou menos força, de sauda- timento do “para quê?”. Hoje de manhã,
de da liberdade de transpor portões afora, ao abrir um site norte-americano do qual
das perambulações pelas andanças e labo- me chegam artigos breves sobre temas de
res do cotidiano, saudades dos seres amados, meu interesse, algo que as redes instanta-
que a passagem do tempo vai fazendo ainda neamente descobrem, havia um texto com a
mais amados. Esses são tipos de saudade em pergunta: “Você anda observando a estética
S opros de pensamento na pandemia •  83

dos interiores onde vive?”. seguido por al- de espaços vazios, rastros de como se em-
gumas obras de artistas que tematizam isso. prega o tempo, amor ou desamor pela har-
Não gostei de nenhuma das obras, mas me monia, enfim, são variações que não cabem
vieram imediatamente algumas reflexões. em enumerações descritivas. Assim entendo
Como entender estética nesse contexto? a estética dos espaços em que se habita, es-
Certamente não a entendo como beleza ou paços capazes de tornar visível a invisibilida-
luxo, embora isso exista, e muito, nos interio- de de nossa vida interior.
res dos abonados, algo que lembra a crítica De repente, nas reuniões remotas que vi-
de Walter Benjamin aos interiores burgueses raram praxe, os vídeos têm exposto indiscre-
de Paris, capital do século XIX. Aí Benjamin tamente espaços do habitar nos quais pistas
tematiza a separação entre o público e o in- e fragmentos de nossa interioridade estão
dividualismo da privacidade como manuten- sendo compartilhados coletivamente. Na re-
ção das ilusões e fantasmagorias da interio- clusão e na distância, estamos aprendendo
ridade sustentadas pelo espaço do habitar. novas maneiras de ver e viver com o outro.
Esse texto de Benjamin marcou meu
pensamento, mas, como diz Riobaldo, a Janelas
memória faz balancê no vivido. Se já ba-
lança aquilo que ficou impregnado de vida, Tomando a mim mesma como evidência
imagine o que pode provocar nas leituras empírica, creio que nunca havíamos olhado
mais longínquas. De todo modo, o que reti- tanto pelas janelas quanto agora. Imagino,
ve é que habitar significa deixar pistas. Sem inclusive, engolfada no sentimento de té-
negar os restos que ainda hoje sobrevivem dio, uma criança, naquela idade em que é
em interiores burgueses nostálgicos, depois regra correr, brincar, pular, gritar a céu aber-
de mais de um século, muitas águas rola- to, olhando pelo quadrado da janela e sendo
ram. Classes sociais se definem sobretudo assombrada, pela primeira vez, pelas sombras
pelo montante da conta bancária, uma va- furtivas de saturno: a melancolia.
riável que se materializa na multiplicidade O tédio é o avesso da curiosidade. Contu-
diferenciada de espaços interiores, intimi- do, nestes tempos de pandemia, o olhar en-
dades muito distintas, inclusive daqueles quadrado (“eu vejo tudo em quadrado”…)
que as agruras da luta pela vida marcam a tornou-se uma fuga furtiva do tédio em tro-
interioridade e a exterioridade com a mes- ca da curiosidade vazia.
ma precariedade. Moro há tanto tempo por aqui, apenas
Todavia, na base fundante dessa varia- interrompido por uns poucos anos marca-
bilidade, algo se mantém: o espaço habita- dos, então, pela necessidade do retorno. Só
do é povoado pela vida secreta dos objetos, agora, incrível, dou-me conta de que minhas
prenhe de vestígios da memória e de pis- janelas, da direita e da esquerda, abrem-se
tas reveladoras do mundo interior daqueles para dois mundos aparentemente distin-
que lá vivem. Hábitos cotidianos, modos de tos, mas, no fundo, idênticos. De um lado,
ser e de estar, apego pela ordem ou então a vista do vale verdejante, respirando para
pela desordem criativa ou confusa, atração a verticalidade do céu e para a horizontali-
pela acumulação ou pela limpeza ascética dade recortada bem ao fundo pelo perfil de
84 • Lucia Santaella

edifícios nos quais circulam agitados os me- Nossa vida é uma narrativa
tais sonantes da abastança. Do outro lado,
que se reescreve
o pôr do sol outonal, uma festa de brilhos
avermelhados, infelizmente mantém ocul- Não costumo praticar a covardia moral.
tado o seu esplendor por trás de arranha- Ao contrário, tenho como guia o lema fou-
-céus, testemunhas da cegueira urbanísti- caultiano da honestidade e responsabilidade
ca promovida pela ganância imobiliária. De por minhas asserções, inclusive neste caso em
um lado e do outro, quem ganha é o capi- que, diferentemente dos hábitos de pesqui-
tal. Alguma novidade? sadora de só asseverar a partir da paciência
de leituras cuidadosas, tomo como princípio
A lentidão da escritura o fato de que a política é a arte da menti-
ra (H. Arendt) e da prática do oportunismo
Tenho escrito pouco, tem faltado a con- (Peirce). Estou bem acompanhada. E mais,
centração para a pilha de livros que tenho ambos afirmam isso independentemente de
à frente para dar continuidade à escrita do qualquer apreço a ideologias partidaristas.
livro que me espera. Sofro da obsessão dos São, portanto, julgamentos gerais.
arquivos. Cotidianamente, o coronavírus Na sua filosofia da história, Benjamin apre-
tem propiciado uma avalanche de respeitá- senta a visão de que o presente se constitui
veis textos para arquivar. Isso tem tirado o em mirante privilegiado do passado. O pas-
meu tempo de uma escrita trabalhosa, feita sado surge quando o presente relampeja em
de buscas e reflexões demoradas, alimenta- um instante de perigo. Trazendo isso para a
das pelo espírito foucaultiano da responsa- vida. Quem é o santo que habita o imutável
bilidade ética pelas nossas asserções. Uma mundo platônico do belo, bom e verdadei-
escrita que, por vezes, toma horas do nos- ro? Quem jamais mudou seu pensamento
so dia na busca de uma simples referência e atitude diante de novas conjunturas que
que parece ter ficado na memória e da qual nos põem à prova? Quem nunca errou e dis-
perdemos o rastro. so se arrependeu? Enfim, é preciso ter mais
Em um dos dias desta semana, cobrada compaixão por aqueles e por nós mesmos,
pela editora por uma referência da qual me quando a conjuntura nos coloca em um vór-
descuidei, tive que folhear, ao longo da tar- tice sem salva-vidas. Só a experiência, quan-
de, as Obras Completas de J. L. Borges. Em do pungente, nos transforma. Nossa vida é
um dado momento, imersa naquelas ma- uma narrativa de rascunhos e reescrituras.
ravilhas, nem sabia mais o que estava pro-
curando. Como saldo dessa tarde, voltou à Do poder e suas perversões
flor da memória a magnífica humildade da
declaração de Borges: “Escrevo para mim, Breve genealogia da tirania
para os amigos e para atenuar a passagem
do tempo.” É impressionante o quanto essa Embora deva haver algo no DNA, nin-
passagem se adequa hoje àqueles que, pre- guém já nasce tirano. Portanto é preciso aten-
miados pelo dom do espírito e da escrita, es- tar para as fases de sua ascensão. Tudo come-
tão povoando nossos dias com seus escritos. ça com a síndrome do pequeno poder. Mas
S opros de pensamento na pandemia •  85

essa síndrome é tão absorvente que ela acio- das ideologias estava no seu apogeu. Gennie
na estratégias para a expansão desse poder. Luccione nos diz que o desejo de saber, que
Se não houver um contrapoder para lhe fazer é próprio do mito, perverte-se facilmente e
frente, o pequeno poder vai se alastrando até com violência descamba para a ilusão, mãe
chegar à sua segunda fase: o gozo do poder. da ideologia e da idolatria. Quando o mito
Um gozo extasiante, cegante. Nada mais im- despenca para a ideologia, ele se degrada,
porta a não ser que esse poder se expanda mas, quando se enrijece em teoria científica
até chegar à fase da onipotência. Quando se ou em sistema metafísico, ele morre.
atinge esse ápice, é difícil se livrar dele, tanto Trazendo esse pensamento de 40 anos
para quem o agencia quanto para aqueles atrás para os dias de hoje, vemos que a ideo-
que a ele se submetem: a tirania atingiu sua logia se perverteu ainda mais, na sua maligna
meta. E por medo, insegurança, desamparo conversão em Fake News. Quanto à ciência,
ou oportunismo, os subalternos silenciosa- ela nunca nos foi tão imperiosamente valiosa
mente, com caras e posturas de burrinhos de quanto agora. Isso também vale para a me-
carga, ficam submetidos à implacável lógi- tafísica, sedentos que estamos de escrituras
ca da tirania. Que a carapuça seja vestida a de mundo que aplaquem nossa angústia.
quem couber e que se cuidem aqueles que Este texto é outro modo de dizer que tenho
alienadamente se submetem a essa lógica. agudo desprezo pela idolatria e o fanatismo.

O vício do poder Mentiras absolutas e


verdades em devir
Por que o poder vicia? Pelas benesses?
Não só. Pelas portas abertas à corrupção? A semiótica nos diz que, embora haja a
Não só. Pela ilusão de onipotência que ele mentira absoluta, não há a verdade absolu-
alimenta? Não só. Pelo falso prestígio, inclu- ta. Enquanto a mentira se refere a um ponto
sive planetário? Não só. Pela satisfação inte- a ponto desencontrado entre texto e fato, a
rior que ele promove? Não só. Além de tudo verdade só existe no devir, pois ela tem sem-
isso, existe, lá no fundo da miséria humana, pre que ser colocada à prova, nem que seja
um segredinho: ao assumir o poder, perde-se a prova dos discursos que se autocorrigem.
a identidade própria para vestir a identidade Também não há o mal absoluto, mas sim o
que o poder concede. Perdida essa identida- mal que se espraia a ponto de se tornar um
de, não resta amparo a não ser vagar como grande mal. A mentira é um mal, ninguém
uma alma penada. duvida, mas existem também meias mentiras,
quase mentiras, mentiras piedosas, mentiras
Mitos pervertidos risíveis, oportunismo disfarçado de verdade,
emoções vendidas como verdade, enfim, o
Vem bem a calhar a pesquisa que estou rol é ilimitado.
fazendo justamente nestes dias sobre a de- Moral da história. É muito pedagógico
gradação do mito nas sociedades capitalis- abandonar a preguiçosa ideia de que o mun-
tas. Muitos estudiosos dedicaram-se a esse do se divide, de um lado, em indubitáveis ver-
tema nos anos 1970-80, quando a teoria dades e, de outro, em odiáveis mentiras. Entre
86 • Lucia Santaella

um e outro, há uma miríade de gradações enormes para abocanhar e entregues à mais


que deveríamos estar atentos para detectar. desembestada agressividade reptílica. Vejo-
-me relendo o conto de E. A. Poe “A desci-
Humanos que regridem da no Maelstrom”. Como sobreviver no meio
de um redemoinho.
aos répteis
Não obstante os milhares de óbitos, ou- Reinvenção do humano
vem-se fogos de artifício. O que celebram?
Há o que celebrar? Tenho repetidamente Não haverá reinvenção do humano en-
pensado na teoria dos três cérebros: rep- quanto continuarmos enclausurados na ideia
tílico, límbico e neocórtex. Pouco importa egoica de um eu no espelho do outro, pura
que ela não seja comprovada, pois funcio- intersubjetividade. A reinvenção do huma-
na como uma metáfora esclarecedora. Te- no implica o abandono desse eu cartesiano,
mos três cérebros interconectados: o reptí- tão robusto, na busca, agora inevitável, de
lico, que compartilhamos com os crocodilos expansão para o não humano, para o nosso
etc.; o límbico, que compartilhamos com os lugar, como espécie, na biosfera inteira, em
mamíferos superiores, esse é o cérebro dos interfaces com o macro e microcosmo. Afi-
afetos, daqueles que mamaram no seio da nal, não é essa a magna lição que a pandemia
mãe; por fim, o neocórtex, cujo desenvolvi- está trazendo? A humanidade de joelhos pe-
mento máximo deveria encontrar-se no cére- rante o ataque de um microparasita invisível?
bro humano. Com os caminhos que esse país Palavras, palavras, palavras, são elas que
anda tomando, há certas situações que me não nos podem faltar e que vêm ao nosso
dão a certeza de que estão sendo abando- socorro quando as ameaças do imponderá-
nados o cérebro límbico e o neocórtex. Com vel, do imprevisível e da impotência batem
cara de humanos, mas na verdade reduzidos e arrombam as nossas portas, forçando a
ao seu parentesco com os crocodilos: bocas sua entrada.
Cocos: poesia cantada e dançada
no Nordeste
Edson Soares Martins
Possui graduação (1996), mestrado (2001) e doutorado (2010) em Letras pela Universidade Federal
da Paraíba (PPGL). Atualmente é professor associado (Referência O) de Literatura Brasileira, na
Universidade Regional do Cariri (URCA) e professor permanente no Programa de Pós-Graduação em
Letras, na mesma IES. Tem atuado na área de Literatura, com ênfase em Literatura Brasileira.

Introdução uma cantiga. Também é chamado de toa-


da ou toeira. Na mesma tradição, chama-se
“Quem imagina cria medo. E quem tem coco ao evento, reunião coletiva de sujeitos
medo não vai lá.” Esses são versos muito re- que cantam e dançam as toadas. Pode-se,
correntes nos repertórios das formas poéticas assim, cantar ou ouvir um coco, dançar um
orais do sul do Ceará, na região do Cariri. Os coco ou ir a um coco.
agrupamentos artísticos que dominam tais No Cariri cearense, em especial, ir a um
repertórios são ali, principalmente no caso coco era uma expressão de uso muito cor-
dos cocos, predominantemente formados rente. O coco era um momento comunitá-
por mulheres agricultoras. Ao ouvir a voz des- rio corriqueiro, em que se ia festejar datas de
sas mulheres fazer vibrar no ar uma senten- destaque, como o aniversário de nascimen-
ça tão hostil aos devaneios criativos da arte, to ou de casamento, a festa de batizado, a
o ouvinte deve ter a cautela de não tomar festa de inauguração de uma morada nova.
um caminho sem volta, que seria aquele que Sua dimensão comunitária também se mis-
nega às poéticas orais o parentesco com as turava às formas da devoção, já que era a
linhagens da palavra imaginativa, nas quais diversão nos festejos das datas em que são
temos, costumeiramente, reconhecido formas cultuados santos e santas queridos na co-
canônicas da poesia. A poesia dos cocos, de munidade, assim como em inúmeras datas
que trataremos nas linhas que se seguem, é do catolicismo popular. Ainda no plano dos
alimentada, de forma inequívoca, pela capa- laços comunitários, corrigia o tédio e o ócio
cidade criativa de mobilizar e de pôr em cir- dos serões noturnos, vivido como diversão
culação ricos conjuntos de imagens. para os jovens, que, antes do momento de
O coco é poesia dançada. No mundo das todos se recolherem, brincavam nos terrei-
tradições poéticas orais nordestinas, coco ros de suas casas, debaixo do olhar atento
pode ser a unidade poética relativamente dos mais velhos.
estável, por vezes reconhecível por um títu- Não se deve, inadvertidamente, con-
lo ou refrão e relativamente assemelhável a cluir que o coco era apenas diversão,
88 • Edson Soares Martins

como autorizam crer os relatos de coquistas autoproclamada responsabilidade de contro-


caririenses mais idosos (ou mesmo daqueles lar as políticas de cultura no Sul do Ceará. Tais
espalhados por uma área de dispersão que instâncias são as universidades, prefeituras,
equivale, na prática, a quase todo o Nordes- secretarias de cultura do Estado e dos muni-
te). Na assim chamada tapação das paredes cípios, organismos como o SESC e o Centro
das casas de taipa, ocorria o adjunto (que Cultural Banco do Nordeste, por exemplo.
é como se chamava ali o trabalho feito em Ouvindo as mulheres reconhecidas como
regime de mutirão), durante o qual os pés as legítimas guardiãs dos cocos, é digno de
dos brincadores pisavam o barro até confe- nota que suas memórias reponham o coco
rir-lhe homogeneidade. A comunidade reu- como um artefato artístico, no qual se reú-
nida no adjunto, convocada para pisar o bar- nem as artes da palavra e dos corpos dan-
ro, dividia-se em orquestradíssima azáfama: çantes, cuja origem estaria situada entre dois
encarregavam-se alguns de trazer a água a arranjos: o coco teria nascido como a brinca-
ser deitada sobre a terra argilosa, enquanto deira de origem ancestral familiar (no Cariri,
uma multidão de pés laboriosos dançava o não é comum ouvir quem lhe atribua origem
coco por cima da terra assim umedecida, de africana, como é possível em outras partes)
modo a homogeneizar o barro cuja finalida- ou teria nascido como face festiva do traba-
de seria tapar os espaços na grade de ma- lho: tapação das casas e bateção dos chãos.
deira, previamente preenchida com pedras e
pedregulhos, para que servisse como susten- Os cocos no Cariri hoje
tação da parede. Derivada dessa explicação,
há outra, em que se fala de “bater o chão A microrregião do Cariri cearense é com-
da casa”, expressão usada para se referir às posta por 8 municípios: Juazeiro do Norte,
situações em que o coco era dançado den- Barbalha, Jardim, Missão Velha, Nova Olinda,
tro da residência para compactar o chão, de Porteiras, Santana do Cariri e Crato. A área to-
terra previamente batida. Alguma velhinha tal do Cariri é de 4.115,83 km², somada aos
sempre dirá que, depois de bater o chão se- outros 13 municípios de outras 4 microrre-
ria preciso usar muita força se alguém resol- giões constitui a mesorregião do Sul Cearen-
vesse fixar nele um prego. se, com 14.800,19 km². O Sul Cearense faz
Hoje em dia, tudo está muito diferente. limites com o sertão e o centro-sul do Ceará,
O coco é, quase invariavelmente, um evento o sertão paraibano e pernambucano e o su-
performado por grupos de mulheres artistas, deste piauiense. A região abriga importantes
as dançadeiras de coco. Como acontecimen- cidades como Crato e Juazeiro do Norte, que
to, o coco ficou, na prática, restrito a espa- se destacam pela atividade econômica. Soma-
ços institucionalizados, compondo a progra- das a Barbalha, as três cidades concentram a
mação de eventos que reúnem os “grupos maior densidade populacional da microrregião.
da tradição” ou “artistas da cultura popu- Outras cidades como Nova Olinda, Santana
lar”. Essas duas denominações são sintomas, do Cariri, Farias Brito, Caririaçu e Missão Ve-
aliás, da problemática relação que se esta- lha constituem uma influente zona de entor-
beleceu entre mestres das formas poéticas no. Em muitas dessas cidades, o coco ainda
orais e instâncias institucionais, imbuídas da é uma referência cultural vigorosa.
C ocos : poesia c antada e dançada no N ordeste •  89

O coco é dançado em grupos nos municí- Elói Teles que metade delas passou a vestir
pios de Crato e Juazeiro do Norte. Em Crato calça comprida e camisa de botão, que na
encontram-se o Grupo Cultural Amigas do maioria das vezes é feita com o mesmo teci-
Saber, A gente do coco e o Coco da SCAN. do das saias das parceiras. As mulheres pas-
Em Juazeiro do Norte encontra-se o coco saram a se dividir em cavalheiros e damas
Frei Damião. A constituição desses grupos e decidiram não admitir mais homens para
remonta a iniciativas culturais de natureza dançar no grupo. Os outros grupos em ativi-
heterogênea e que serão descritas adiante. dade no Cariri cearense adotam indumentá-
A organização das pessoas em grupo sob a ria semelhante, provavelmente para solucio-
liderança de um mestre estabelece contor- nar o mesmo problema com que depararam
nos peculiares no cenário cultural na região. as mulheres das Batateiras, como é mais co-
Não é despropositado lembrar que a ocor- nhecido o grupo liderado por Dona Edite.
rência do coco era acontecimento relativa- Esse episódio revela a dinâmica de trocas e
mente espontâneo e que a ideia de um gru- empréstimos que atesta o vigor das práticas
po com número de participantes delimitado culturais tradicionais, ao mesmo tempo em
é relativamente nova. que expõe sua vulnerabilidade.
O grupo A gente do coco foi fundado em Costumeiramente, a mestra é quem tira
agosto de 1979 e é liderado, desde então, por o coco, cantando as toadas, num solo que é
Dona Edite Dias. Seu surgimento ocorreu por respondido pelo coro formado pelos partici-
iniciativa de alunas do curso MOBRAL, incen- pantes da roda. Não é o caso de Dona Edi-
tivadas por uma instrutora que era auxiliada te, que participa sempre da roda e jamais
por Dona Edite. A empreitada pretendia en- puxa as toadas. Raimunda Queiroz Vitori-
volver as alunas na semana do folclore. Foi no, Dona Raimunda, costuma tirar o coco
assim que conheceram Elói Teles. O folclorista entre as mulheres das Batateiras. Natural de
e agitador cultural, frequentemente chama- Várzea Alegre, Dona Raimunda aprendeu a
do de Mestre Elói, foi responsável pela visi- cantar coco ainda menina e já foi mestra de
bilidade do grupo em seus primeiros passos um grupo mirim de Maneiro-Pau. Também
e pelo agenciamento de convites para apre- cantam no grupo, Dona Zenaide e Dona Val-
sentações públicas. Essas apresentações, ge- quíria. O grupo A gente do coco reúne pes-
ralmente, se davam em função de eventos soas com experiências de vida assemelhadas,
do calendário cívico local, o que parece ter em que boa parte conheceu o coco quan-
instaurado no Crato as origens de uma rela- do ainda eram crianças. Também é comum
ção, nem sempre harmônica, entre artistas terem, entre seus antepassados, migrantes,
e poder público. com destaque para os alagoanos.
A influência de Elói Teles pode ter sido res- Perto dali, no Sítio Quebra, experiências
ponsável pela adoção de um traço ainda hoje se repetem.
visível na indumentária das participantes dos Maria Luciê Nogueira, mais conhecida
grupos na região. As alunas do MOBRAL e, como Dona Maria da Santa, é mulher de mui-
agora, dançadeiras de coco não conseguiam tas atividades, quase todas de teor comunitá-
convencer seus maridos a participarem das rio: associação de moradores, coral da igreja e
atividades do grupo e foi por sugestão de grupo de coco. Lidera um grupo constituído
90 • Edson Soares Martins

de parentes e vizinhos, fortemente unidos sob comunitário. Uma tentativa anterior, envol-
sua direção. O marido, Expedito Sebastião da vendo a mesma turma e as mesmas partici-
Silva, acompanha a esposa, sendo o pandei- pantes, pretendia realizar uma apresentação
rista do grupo. Ao violão, contavam sempre de Reisado, mas os obstáculos encontrados
com a colaboração de Seu Chico, recentemen- selaram a sorte do Reisado: a coreografia tra-
te falecido. A aprendizagem do coco no Gru- balhosa e a complexidade da execução em
po Cultural Amigas do Saber tem também um si fizeram com que, rapidamente, o Reisado
viés familiar. Os pais aprenderam cocos com fosse preterido pelo coco, mais dinâmico,
parentes de Alagoas, que também é a terra aberto às improvisações e com movimentos
natal de Seu Expedito. Nos serões na serra, já aprendidos desde a infância. O espaço es-
na infância de Maria da Santa e dos irmãos colar e o grande valor dado na época, sob o
e irmãs, o coco preenchia o vazio das noites. regime militar, aos temperamentos discipli-
Também era cantado e dançado nos adjuntos. nados favoreceram, pelo ensaio e pelo cons-
Bastante ciosa de seus afazeres e de sua tante reforço positivo, a afirmação do coco
responsabilidade, Maria da Santa é rigorosa na comunidade do Sítio Quebra como mo-
ao distinguir os cocos de seu repertório da- mento da tradição a ser revivificado.
queles aprendidos posteriormente, no con- A dinâmica de apresentações foi sendo
tato com os outros cantadores. Estes cocos, determinada pelo calendário litúrgico, na co-
de autoria ou proveniência reconhecidamente munidade, e pelo calendário cívico, na sede
externa ao grupo, ela chama de “animação do município do Crato. Nomes como o do
de palco”. A noção de palco, aliás, é bem folclorista Elói Teles e do radialista Ademar
viva na execução das Amigas do Saber: o Moraes não podem ser dissociados do apoio
grupo ensaia regularmente, prima pela cor- dado ao grupo, que hoje transita com desta-
reção na execução dos passos e movimen- que em programações do Serviço Cultural do
tos e no enunciar das toadas. SESC, do Centro Cultural do Banco do Nor-
Essas características fazem do grupo um deste, das universidades e das secretarias mu-
caso típico de manifestação que, sendo oriun- nicipais de cultura da região. O grupo gravou
da do conhecimento tradicional, assume feitio um CD, Flor do liro, produzido em 2013 pela
institucionalizado, com repertório fixo, com equipe do Behetçoho/URCA. Um documen-
cocos que não variam de uma apresentação tário de curta duração já havia sido produzi-
a outra, cuidado com a indumentária, entre do em 2009, com a participação de membros
outros aspectos. Também chama a atenção do Behetçoho e de pesquisadores sem vincu-
a familiaridade da líder com o microfone e a lações institucionais na equipe de produção.
organização cênica das apresentações. O Coco da SCAN (Sociedade Cratense de
Desde suas origens, também em uma Apoio aos Necessitados) é um grupo mais re-
turma do MOBRAL, o grupo tem uma mes- cente, formado no âmbito das atividades da
tra e uma contramestra, Dona Antônia Ma- Sociedade, voltadas para a benemerência ao
ria. Surgido sob o incentivo da professora idoso. A composição aqui rompe a estrutura
que conduzia a turma, o grupo de coco foi comunitária no que diz respeito aos vínculos
a alternativa bem-sucedida e que se estabe- de parentesco e vizinhança, embora man-
leceu, rapidamente, como empreendimento tenha a dimensão comunitária no plano da
C ocos : poesia c antada e dançada no N ordeste •  91

semelhança entre as experiências vivenciadas, Viveu os serões durante a juventude, fre-


o que demonstra que o coco, sendo comuni- quentando os cocos nos terreiros dos vizi-
tário em sua eventicidade, torna comunitá- nhos. Se não era essa a diversão, sobravam
rio o exercício social de cantá-lo, dançá-lo e, os velórios, que, “felizmente”, eram frequen-
mesmo, rememorá-lo. Na SCAN, alternam- tes e lhe permitiam apreciar e aprender ou-
-se as tiradeiras, gozando de mais destaque tra grande paixão: as sentinelas, que é como
D. Lalá e D. Naninha, de quem trataremos são chamadas as excelências, cantos de en-
isoladamente adiante. comendação dos mortos. O casamento, que
O coco da SCAN surge como iniciativa do veio muito cedo, pôs fim à alegria dos cocos.
cantor e animador cultural João do Crato, O parceiro, Seu João, já conheceu Dona Na-
responsável pela arregimentação das partici- ninha no meio de uma faina extraordinaria-
pantes, ensaios regulares e apresentações na mente pesada. A mocinha havia assumido
cena cultural local. O grupo carrega o nome o sustento da mãe e dos irmãos. Muito uni-
do coco, por ser a experiência que mais uni- dos, os dois octogenários recordam os anos
fica seus componentes, mas a apresentação difíceis e ainda estranham o interesse reno-
revela sempre um aspecto variegado: decla- vado pelos cocos. Dona Naninha agora pas-
mação de poesias, peças de reisado, cocos e seia muito, indo se apresentar em ocasiões
cirandas se revezam, sendo, frequentemente, as mais variadas. Do contato com os pesqui-
intercaladas por sucessos de Roberto Carlos sadores do Behetçoho/URCA, nasceu um CD,
e clássicos da seresta. Lagoano Mar, que reúne uma seleção de co-
Descoberta na SCAN por Ridalvo Félix, cos que se destacam pela sua beleza própria
Dona Naninha (Ana Gouveia) é um caso à e pela execução vigorosa de Dona Naninha.
parte. Detentora de uma memória excepcio- No município de Farias Brito, dois coquis-
nal, que ela insiste em classificar como fraca, tas foram identificados pela equipe de pes-
D. Naninha, no contato continuado com os quisadores do Behetçoho/URCA: Chico de
pesquisadores que reuniu à sua volta, recu- Carmina e Ciro Tatu. Com Seu Ciro Tatu, os
perou dezenas de cocos que eram cantados resultados foram bem consistentes e esta-
em sua juventude. A experiência da mestra beleceu-se um convívio mais próximo. Ciro
solitária (pois não reúne um grupo em torno aprendeu o coco com uma tia, Maria Joana
de si, mas é reunida nele) é definitivamente (assim como a coquista ouvida por Mário
diferente daquelas vivenciadas nos grupos de Andrade em Recife), que era cantadei-
como A gente do coco ou Amigas do Sa- ra de coco em uma localidade afastada da
ber. Dona Naninha aprendeu a dançar “di- sede do município. A tia, segundo os sobri-
ferente”, e as toadas que ela canta cadên- nhos, aprendera o coco com alagoanos que
cia e ritmo mais lentos e mais solenes, o que foram seus vizinhos. Toda a infância de Seu
é realçado pela voz singular e profunda da Ciro e de sua irmã mais nova, Dona Peranga
cantadeira. Aprendeu com paraibanos, em- (na verdade, Expedita), é marcada por essas
bora seja exímia no trupé, que reconhece ser brincadeiras de coco lideradas pela tia. Seu
ensinamento de uns alagoanos que cruza- Ciro dança um coco mais rápido, que requer
ram os caminhos de Seu Chico Carnaúba, o grande vigor. Traço característico de sua exe-
mestre de sua infância, vizinho de seus pais. cução é a explosão vigorosa do trupé, com
92 • Edson Soares Martins

que calca o chão com grande força e em festivo, a cena viva do coco em sua eventici-
grande velocidade, o que surpreende quem dade coletiva, quanto as audições propicia-
desconhece o coquista e conhece apenas o das por seus anfitriões. Da cena ampla, em
velhinho simpático, de boa sombra, em cima sua dimensão coreográfica, Mário recorta
de seus 90 anos. muito pouco: está sempre movido pela força
O repertório de Seu Ciro se distancia mui- de atração do pensamento dedicado à me-
to dos grupos do Crato (Amigas do Saber, lodia e à letra. Dos encontros e audiências
A gente do coco e Coco da SCAN), além mais privados, ele nos entrega bem mais: a
de guardar poucas semelhanças com aque- construção biográfica dos cantadores que o
le cantado e dançado por Dona Naninha. encantaram, os processos composicionais da
As referências geográficas são mais vagas e literatura dos cocos, a descrição cuidadosa
certa inclinação celebratória se percebe nos do desempenho vocal dos indivíduos, de sua
textos-cantados: situações e lugares do pas- desenvoltura ou timidez, de sua psicologia e
sado são o tema central dos cocos cantados de seus humores…
por Seu Ciro. Acompanhado e auxiliado por O cenário dos anos 1920-1929 era, con-
um diligente professor do município, o agita- tudo, diferente do atual, mesmo naquilo que
dor cultural Prof. Mundinho, Seu Ciro já fez se afigura como núcleo da tradição: a sua ori-
apresentações nas escolas locais e em cida- gem. Mário especula que o coco teria “ascen-
des vizinhas. Um livro-CD, Ciro Tatu: os cocos dência aproximada das rodas coreográficas
de Farias Brito, foi produzido em 2013 pela portuguesas pra adultos” (ANDRADE, 2002,
equipe do Behetçoho/URCA e reúne pouco p. 347). Sua impressão se baseia na disper-
mais de duas dezenas de cocos do cantador. são de temas e de versos portugueses em nos-
sa música popular, sobretudo no Nordeste.
Os cocos de Mário de A tendência atual, entre estudiosos mais jo-
vens, enxerga o coco como parente dos cantos
Andrade
responsoriais africanos, destacando a dança
A primeira constatação que nos salta aos da roda, a girar sempre em sentido anti-ho-
olhos, ao compararmos as considerações que rário, como na Umbanda e no Candomblé
acabamos de tecer com os estudos e anota- (ARAUJO, 2013). Que não sejamos julgados
ções feitos por Mário de Andrade sobre suas por convidar a uma leitura que parece elemen-
coletas e observações de campo, é a com- tar, mas o mais provável é que o coco tenha
plexificação do coco como atividade artísti- assimilado, a seu modo, as duas influências,
ca. Mário, autor do “primeiro registro sobre sendo amálgama de imperativos estéticos por-
os cocos feito com o rigor do método cientí- tugueses, com bantos e iorubanos.
fico” (AYALA, 2000, p. 24), fez muitos e di- É curioso notar o apagamento da influên-
versificados registros dos cocos a que assistiu cia negra na poética oral estudada por Má-
na Paraíba, em Pernambuco e no Rio Gran- rio. No ensaio chamado “A literatura dos co-
de do Norte em sua excursão entre 1928 e cos” (que teve, provisoriamente, o subtítulo,
1929. Ele testemunhou, como se compro- posteriormente rejeitado, de “A técnica nos
va pela leitura de Os cocos e As melodias cocos do Nordeste”), o pesquisador capta as
do boi, tanto o agrupamento circunstancial influências ameríndias no populário poético
C ocos : poesia c antada e dançada no N ordeste •  93

nordestino. Escapam-lhe, nas muitas consi- simultaneidade do canto puxado pelo tirador
derações que faz dos processos linguísticos, e do que é ao mesmo tempo respondido pela
as influências dos falares africanos no por- roda (C). A emergência do trupé ou pisada
tuguês rural do Brasil, que nos deu, inclusi- pressupõe uma mudança drástica no ritmo e
ve, a palavra ganzá (do quimbundo nganza, o aparecimento de arranjos rítmicos distintos,
chocalho), a mesma que Mário de Andrade mas que se harmoniza com o que vem sen-
pretendeu utilizar no título de seu estudo do cantado (D). Ocorre frequentemente, de
mais geral sobre a música popular nordesti- forma relevante, a ordem ou comando (E).
na (o jamais concluído “Na pancada do gan- A forma da quadra não se revelou estável
zá). O léxico africano, mais frequente, não é como imaginávamos e foi preciso desenvol-
apontado em seus estudos, enquanto, por ver uma atenção especial guiada pela apre-
exemplo, nota em “curica” (do tupi ku’ruca, ensão do ritmo e não do sentido (F).
papagaio) a origem ligada ao tronco tupi. Partimos de um campo de estudos em
Essas observações, naturalmente, não que a atividade de reflexão se apoia em con-
pretendem apontar insuficiências no estu- ceitos como gênero, responsividade, ato éti-
do feito por Mário de Andrade. Seu traba- co, dialogismo, entre outros. Tal abordagem
lho ainda é o mais consistente esforço de bakhtiniana nos obriga a considerar um con-
entendimento da poética oral dos cocos e o junto de elementos bem mais amplo que
interesse que sua leitura desperta é evidên- aquele atingido pela transcrição conven-
cia dos grandes e preciosos acertos que sua cional. O papel dos sujeitos que se alter-
observação apurada foi capaz de extrair do nam no ato dialógico, que é o coco, man-
volume gigantesco de documentação por ele tém relação com o espaço em que a ação
produzida e organizada. transcorre e é afetado por expectativas de
desempenho já conhecidas pelo grupo, pela
Pequeno repertório dos comunidade e aquelas próprias do gênero.
O próprio gênero, sendo portador de uma
cocos do Cariri cearense
poética, é histórico e, portanto, requer o
Apresentaremos, nesta seção final, uma confronto frequente das formas atuais com
amostragem das riquezas composicionais do as formas anteriores.
gênero, tal como ele circula no Cariri cearen- Um rápido mas significativo exemplo é
se. O coco é canto dançado e, como tal, a aquele em que o coquista inicia o coco pela
mera transcrição dos versos não satisfaz o ar- resposta, transgredindo a expectativa da exe-
ranjo peculiar desta poética da oralidade. Foi cução. Somente se esclarece a transgressão ao
preciso destacar a resposta, que não é neces- entendermos que as rodas de coco se consti-
sariamente refrão (A). Também julgamos in- tuíam de maneira espontânea, também com
dispensável destacar a antecipação da respos- pessoas que, às vezes, estavam em trânsito
ta, que interpretamos como vestígio da forma ou não pertenciam à comunidade reunida
comunitária em que o coco acontecia no pas- e, por isso, as respostas precisavam ser en-
sado, o que gerava a necessidade de ensinar sinadas antes, para garantir o desempenho
à roda a resposta a ser cantada (B). Foi preciso de costume dos sujeitos que se alternavam:
descrever, na limitação do suporte gráfico, a cantador e roda.
94 • Edson Soares Martins

Exemplares das premissas que elencamos RESPOSTA:


no início desta seção são os cocos que trans- A bola do meio do mundo
crevemos a seguir nesta ordem: Corta mais do que navalha
Corta pau que se esbandalha
A. cocos com refrão e resposta; Mariposo, maribundo
B. cocos com resposta antecipada;
C. cocos com enunciação simultânea do can- Minha mãe não quer que eu vá (Ô Seu Zé, Seu Zé)
tador e da roda; Na casa do meu amor (Ô Seu Zé, Seu Zé)
D. cocos com trupé ou pisada; Inda tando correntada (Seu Zé, Seu Zé)
E. cocos com enunciados de comando; Quebro a corrente mas vou (Seu Zé, Seu Zé)
F. cocos com variantes estróficas.
Já te quis num quero mais (Seu Zé, Seu Zé)
Eu já te dei o desengano (Seu Zé, Seu Zé)
SITUAÇÃO (A): cocos com refrão e E não me importa que tu morra (Seu Zé, Seu Zé)
resposta No sereno cochilando (Seu Zé, Seu Zé)

O coco que Dona Naninha conhece pelo Ô Seu Zé, Seu Zé


título de Seu Zé permite perceber que a trans- Ô Seu Zé, Seu Zé
crição seria infiel caso ignorasse a ocorrência, Ô Seu Zé, Seu Zé
no mesmo texto-melodia, de um refrão e de Ô Seu Zé, Seu Zé
uma resposta. Frequentemente o refrão ca-
racteriza uma repetição intercalada entre as Já subi no mamoeiro (Ô Seu Zé, Seu Zé)
estrofes, que por mera convenção chamare- Fui comer mamão maduro (Ô Seu Zé, Seu Zé)
mos de estrofes principais. É nelas que se pode Tava amando um amarelo (Ô Seu Zé, Seu Zé)
manter alguma expectativa de continuidade Eu já vi coisa sem futuro (Ô Seu Zé, Seu Zé)
semântica ou temática, embora na maioria das
vezes a continuidade seja mais propriamen- O coco inicia pelo refrão e pela resposta
te mnemônica que de qualquer outra ordem, (marcados em itálico). A partir da primeira
de modo que nem sempre haverá continuida- estrofe, cantada pela mestra, temos a ocor-
de discursiva explícita entre a estrofe principal rência simultânea de uma segunda respos-
e o refrão ou mesmo entre as estrofes prin- ta, que indicamos na mesma linha do verso
cipais. A resposta, por sua vez, é executada da estrofe principal, entre as quais o refrão
com exclusividade quase absoluta pela roda ou refrão-resposta são cantados pela roda.
e guarda uma relação de continuidade, que
pode ser semântica, temática ou melódica. SITUAÇÃO (B): cocos com resposta
antecipada
REFRÃO:
Eu não vou na sua casa (Seu Zé, Seu Zé) O coquista, antes de cantar a primeira
E nem você vai na minha (Seu Zé, Seu Zé) estrofe que dá início ao jogo responsorial,
Você tem a boca grande (Seu Zé, Seu Zé) canta, e por vezes repete indefinidas vezes,
Vai comer minha farinha (Seu Zé, Seu Zé) a estrofe ou o verso que deve ser respondido.
C ocos : poesia c antada e dançada no N ordeste •  95

A repetição parece favorecer a apropriação representação gráfica, dada a insuficiência


dos versos pela memória dos componentes em demonstrar como o cantador e a roda se
da roda, que saberão cantá no momento alternam. O que propomos, ao usar a barra
oportuno. Cumpre observar que nem sem- vertical na transcrição, é uma forma de dar
pre a resposta se insere como componente acesso ao conteúdo verbal acrescentando a
de uma cotinuidade temática ou semântica, isto a indicação extraverbal de que sujeitos
gozando sempre de relativa independência. diferentes enunciam conteúdos verbais, se-
É isso que permite a sua antecipação. melhantes ou diferentes, a um só tempo. A
Nos grupos que assumem um caráter ins- transcrição convencional é necessariamente
titucional, essa antecipação da resposta qua- progressiva, não contendo formas de repre-
se nunca ocorre, seja por falta de necessida- sentar eventos simultâneos. A simultaneida-
de, seja por estabilização do texto-melodia de se dá pela aproximação do verso da estro-
do coco, que, nesse caso, se aproxima da es- fe com o verso da resposta, que por vezes se
tabilidade de uma letra de canção. Situação sobrepõem, independentemente da ordem
como esta era impensável nas feições comu- em que são cantados.
nitárias em que o coco acontecia no passado,
quando a permanente diversidade dos par- REFRÃO:
ticipantes exigia a antecipação às respostas Ô, marinheiro, marinheiro | (Marinheiro, tá)
a serem cantadas. Quem te ensinou a remá? | (Marinheiro, tá)
Foi o tombo do navio? | (Marinheiro, tá)
RESPOSTA: Foi o balanço do mar? | (Marinheiro, tá)
A baleia deu um estouro
que o mar estremeceu Menina das três meninas | (Marinheiro, tá)
baleia corpo santo Todas três eu quero bem | (Marinheiro, tá)
que a fortaleza gemeu Uma mais do que a outra | (Marinheiro, tá)
Outra mais do que ninguém | (Marinheiro, tá)
Forga, meu boi, num forga
forga mas num forga Você diz que me quer bem | (Marinheiro, tá)
forga, meu boi, num forga Mais bem eu quero a você | (Marinheiro, tá)
forga mas num forga Te quero por toda vida | (Marinheiro, tá)
Você só quando me vê | (Marinheiro, tá)
Tararará,
que eu tando numa serra boa Ô, marinheiro, marinheiro | (Marinheiro, tá)
não há pau que dê canoa Quem te ensinou a remá? | (Marinheiro, tá)
é jiquiri, jacarandá Foi o tombo do navio? | (Marinheiro, tá)
Foi o balanço do mar? | (Marinheiro, tá)
SITUAÇÃO (C): cocos com enunciação
simultânea do cantador e da roda Menina dos olhos verdes (Marinheiro, tá)
Me dá água pr’eu beber (Marinheiro, tá)
A estrofe que caracterizamos como atí- Não é sede, não é nada (Marinheiro, tá)
pica, em casos desse tipo, consiste em pura é vontade de te ver (Marinheiro, tá)
96 • Edson Soares Martins

Calango matou um boi (Marinheiro, tá) Quem amagina cria medo


Retaiô, butô na teia (Marinheiro, tá) Quem tem medo não vai lá
Lagartixa foi bulir (Marinheiro, tá)
Calango meteu-lhe a peia (Marinheiro, tá) Lua te dá beleza
E o Sol te dá calor
SITUAÇÃO (D): cocos com trupé ou Grande Deus te dá a vida
pisada, e SITUAÇÃO (E): cocos com Que eu te dou o meu amor
enunciados de comando
Eu queria ser estrela
Nesse exemplo, utilizaremos um coco para Pra viver solta no espaço
comentar duas premissas (D) e (E).O principal Queria ser um relógio
problema que envolve a representação grá- Pra marcá hora em teus braços
fica do trupé consiste no fato de que ele só
é representável por meio de convenções ti- COMANDO: “OLHA A PISADA!”
pográficas, de modo que utilizamos o itálico
com sublinhado para indicá-lo. É um fenôme- Os prato é pouco
no manifestado em dois planos: a perfoman- As colher não dá
ce oral do cantador e a perfomance corporal Não dá, não dá
dos participantes da roda ou do próprio can- Não dá, não dá
tador. Ocorre costumeiramente no meio ou no
fim do coco e pode ser anunciado por um co- A massa é fina
mando, um apito ou uma breve pausa. É in- Pra dá aluá
confundível o ritmo mais acelerado do trupé, E os prato é pouco
e isso requer esforço de quem canta e dança. E as colher não dá
Situação similiar é aquela do comando.
Embora não constitua segmento poético e Não dá, não dá
seja texto falado, incorporou-se às execu- Não dá, não dá
ções, ocorrendo sempre na mesma posição. Não dá, não dá
Optamos por incluí-los nas transcrições, pois Não dá, não dá
permitem enriquecer a representação grá-
fica com vestígios da eventicidade viva do SITUAÇÃO (F): cocos com variantes
ato poético. estróficas

REFRÃO: A poética oral que governa o coco no


Pisa o mi, penera o xerém Cariri do Ceará tem como forma privilegia-
Pisa o mi, penera o xerém da a quadra. É possível, contudo, verificar
A massa é fina, perturbações do privilégio formal da qua-
Pra dá aluá dra, o que leva ao aparecimento de estro-
fes que parecem fundir unidades menores
Menina, se queres, vamo desta unidade básica que é a quadra. Re-
Não se ponha a maginá gistram-se, nas formas menos previsíveis,
C ocos : poesia c antada e dançada no N ordeste •  97

estrofes de dois, três, seis e oito versos nos Eu mando pra Dona Augusta
cocos coletados no Cariri cearense. E eu pergunto quanto custa
Para esta demonstração (e de modo a fa- Um cravo branco na mão
vorecer a variedade), forneceremos ilustra- (Ô,Menininha II, Dona Naninha)
ções dos fragmentos de cocos:
Últimas palavras
SEXTILHAS
Meu amor morreu A poesia, o canto e a dança são flores
Aonde eu vou pará nas mãos da Beleza. Quando elas se entre-
Em barra do coqueiro laçam de forma tão consistente e necessá-
No porto de beira-mar ria, como no coco, seu brilho pode ocultar
Ai, meu Deus, eu caio, eu caio algo que não é rama, mas, isso sim, seiva: a
Vendo o balanço do mar origem e o destino comunitários dessas for-
(Barra do coqueiro, Dona Naninha) mas poéticas orais, fundadas “em vida co-
munitária com fortes laços de solidariedade
TERCETOS que se constrói no dia a dia difícil, no muti-
Pisa negada deixa a poeira cobrir rão coletivo da vida” (AYALA, 2000, p. 38),
Quando eu avisto o meu benzinho se estabelecem como maior e mais impor-
Da vontade de me rir tante referência para quem com elas se pro-
(Vaqueiro novo, Antonia Maria) ponha a dialogar. Seu fundamento comuni-
tário, que poderia ficar mal acomodado na
É cabelo dourado, proximidade com o fundamento confinan-
É os cacho derramado te das práticas centradas na escrita, ensina
É de Iaiá a acolher a experiência do Outro e faz, ao
(Menininha, Dona Naninha) mesmo tempo, subir do chão e vibrar no
ar, sob o impacto compassado dos pés que
DÍSTICOS invocam a vida, a musicalidade da poesia
Tenho fé na mãe de Deus ouvida e lida por ancestrais que se reúnem
Que um bicho feroz não me come em seu berço. Antecipando a sensibilidade
(Tará, Dona Naninha) moderna, tão empenhada na valorização da
diversidade e da diferença, a poesia dos co-
Eu vi avoá besouro cos é pioneira na mescla original de tradi-
Na fulô do manacá ções da escrita e da voz. É esta beleza que
(O besouro, Dona Naninha) enfeixa, enlaça e nutre as suas outras for-
mosuras e é por este motivo que é tão ur-
OITAVAS gente conhecermos e apreciarmos a poesia
Mandei fazer cantada e dançada do Nordeste.
um vestido pra mulher
Sapato pro pé Referências bibliográficas
Quatro carreira de botão ANDRADE, Mário de. Os cocos. Belo Horizonte: Itatiaia,
Colchete, pressão 2002.
98 • Edson Soares Martins

ANDRADE, Mário de. As melodias do boi e outras peças. Letras, 2013. 149 f. Dissertação (mestrado) – Univer-
Belo Horizonte: Itatiaia, 1982. sidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras,
ARAUJO, Ridalvo Felix de. Na batida do corpo, na pisa- 2013.
da do cantá: inscrições poéticas no coco cearense AYALA, Maria Ignez Novais; AYALA, Marcos. Cocos: ale-
e candombe mineiro. Belo Horizonte: Faculdade de gria e devoção. Natal: Editora da UFRN, 2000.
Literatura de fora: quando a arte
literária encontra a rua
Maurício Silva
Doutorado e pós-doutorado em Letras Clássicas e Vernáculas pela USP. É autor de A Hélade e o Subúrbio:
confrontos literários na belle époque carioca (São Paulo, Edusp, 2006), A resignação dos humildes: Estética
e combate na ficção de Lima Barreto (São Paulo, Annablume, 2011), O sorriso da sociedade: Literatura e
academicismo no brasil da virada do século (1890-1920) (São Paulo, Alameda, 2012), entre outros

“la más vulgar cotidianeidad conserva rasgos formas: poemas visuais, grafites e estênceis,
de grandeza y de poesia espontánea” performances e colagens, projeções midiáti-
Henri Lefebvre cas e muitas outras. Nesse tipo de manifes-
tação artística – que tem por princípio afir-
Introdução mar-se como expressão anti-hegemônica e
por objetivo ocupar espaços alternativos das
Observar a cidade é uma experiência úni- cidades –, percebe-se um deliberado projeto
ca, que pode ser vivenciada sob as mais di- “intercultural”, em que linguagens distintas
versas perspectivas e das mais variadas ma- assumem posições igualitárias e não hierar-
neiras, já que o espaço citadino permite uma quizadas, ressignificando não apenas o espa-
gama infinita de interações e vivências, singu- ço citadino, mas, principalmente, a própria
larizadas pelo modo como cada um de seus produção artística, num claro confronto ao
habitantes apreende e pratica a experiência que Néstor Canclini (2012) definiu como uma
urbana. Por isso mesmo, pode-se dizer que sociedad sin relato, constituída por intermé-
a cidade possibilita um inumerável e indes- dio de uma arte contemporânea que, ao ce-
critível conjunto de intersecções, tornando der aos impulsos da globalização e do neoli-
essa experiência não apenas complexa, no beralismo, perde suas referências históricas.
que ela encerra de diversidade e pluralismo, Nesse contexto, o diálogo entre cidade e
mas também profunda, no que ela conser- literatura, mais do que possível, torna-se um
va de densidade e vigor. imperativo, levando à rearticulação da cria-
Semelhantes intersecções podem ser fa- ção literária, que, diante dos novos desafios
cilmente percebidas quando se pensa, para que se lhe impõem, busca saídas por meio
darmos apenas um exemplo, nas incontá- de outras formas de expressão, seja pela re-
veis manifestações artísticas que povoam o configuração de seus suportes de veiculação
espaço urbano, que, configuradas como ex- da mensagem artística, seja pela reestrutu-
pressões do que se convencionou chamar de ração de seus componentes fundamentais,
street art, revelam-se sob as mais variadas seja ainda pela ressemantização dos valores e
100 • Maurício Silva

princípios que fundamentam e definem sua prática de ensino e a cidade como território
própria natureza. Assim, a literatura que se educativo não formal? Em outras palavras:
delineia nesse novo e inesperado contexto como vincular todos esses conceitos, a fim
é, no fim das contas, uma literatura que se de, por meio de práticas extraescolares, ex-
produz na rua, para a rua e pela rua, assu- plorar o espaço citadino como lócus privile-
mindo novos contornos e inusitados modos giado de uma prática docente não formal
de exteriorização figurativa. voltada para o ensino da literatura? Desse
Há, atualmente, um claro movimento modo, busca-se não apenas outro entendi-
no sentido de deslocar o eixo da produção mento da prática de ensino como processo
literária – bem como de seus modos de le- versátil de aprendizagem, mas, sobretudo,
gitimação, suas formas de institucionaliza- uma nova compreensão da própria literatu-
ção e suas práticas de recepção –, que, de ra como ação política – também vinculada à
certo modo, liberta-se das amarras histori- ideia de πóλις/pólis, termo lexicogênico de
camente vinculantes a uma série de estra- cidade –, que não prescinde do papel reser-
tégias e posicionamentos que a definiram vado ao leitor no processo de constituição
a partir de um paradigma restrito de proce- dos sentidos do texto literário, confirman-
dimentos social e culturalmente estabeleci- do a máxima de Umberto Eco (1995), para
dos (grafocentrismo, cultura livresca, recen- quem “ogni testo è una macchina pigra che
sões críticas etc.). Desse modo, a literatura chiede al lettore di fare parte del proprio la-
não apenas sai à rua, como também faz voro” (l. 41).
dos territórios da cidade um espaço visce-
ral de criação e de divulgação de suas pro- A literatura de fora: projetos,
duções, tornando-os elemento integrante
ações e território urbano
de sua conformação estrutural.
Não se pode esquecer, em todo o con- As questões acima expostas não adqui-
texto aqui descrito, o papel fundamental de- rem seu pleno sentido se não considerarmos
sempenhado pela educação, em seus vários a ideia de que a literatura se faz também no
processos de seleção, reprodução, divulga- contexto das ruas das grandes cidades, no
ção, mediação, legitimação e escolarização qual ela assume sua fisionomia, se não mais
do texto literário. Aqui, estamos falando não “popular” e democrática, ao menos mais
propriamente de produção (embora seja pos- acessível e em consonância com a dinâmi-
sível pensar também neste sentido) do texto ca urbana da atualidade. Daí a proliferação
literário, mas, mais especificamente, de sua de manifestações artísticas – especialmente
“didática”, já adentrando o âmbito igual- aquelas voltadas para a produção literária,
mente complexo e polêmico das práticas de no sentido lato do termo – por toda a cida-
ensino de literatura. A pergunta que se faz, de, seja em bairros periféricos, seja em re-
no sentido de demarcar a interface entre con- giões mais centralizadas e culturalmente mais
ceitos aqui propostos de início, seria: como bem equipadas, como comprova a ocorrên-
promover um encontro eficaz – do ponto de cia dos saraus nos centros culturais, nas bi-
vista de se obter resultados práticos, a par- bliotecas, em equipamentos públicos diver-
tir de um objetivo traçado – entre literatura, sos e até mesmo nos bares; dos slams, que
L iteratura de fora : quando a arte literária encontra a rua •  101

acontecem nas praças públicas, nas escolas também, ser empregado no sentido literal,
ou nas estações de metrô; da poesia visual, explicitamente vinculado aos “caminhos da
que povoam os muros das cidades, por meio poesia de rua” (VIANA, 2020, p. 73) –, re-
de pôsteres, pintura, stickers, faixas ou os fa- presentando toda manifestação estética as-
mosos cartazes “lambe-lambes”; das bata- sociada à “escritura” literária, capaz de se
lhas de MCs, que tomam conta das praças exprimir oral ou graficamente. Desse modo,
e ruas; e muitas outras. a cidade escreve e é, ao mesmo tempo, es-
Trata-se, em poucas palavras, de ativi- crita por todos aqueles que a habitam, mas
dades que se expressam sob formas diver- parece só poder ser efetivamente traduzida
sas – tanto se pensarmos num novo código pelos artistas de/da rua, verdadeiros “orácu-
linguístico que se impõe quanto se conside- los” da contemporaneidade.
rarmos os novos suportes alternativos que São muitas, nesse sentido, as experiên-
emergem – e atravessam os limites padroni- cias literárias de fora, que podem ser nar-
zados de sistemas literários canônicos e tra- radas. Cumpre, antes, esclarecermos o que
dicionais, pressupondo não apenas a existên- queremos dizer com esse adjunto qualifica-
cia do modelo triádico, composto por autor, dor: por literatura “de fora” queremos nos
obra e leitor, mas também a contingência referir àquela que é produzida, divulgada e
de coletivos, públicos diversos, instrumentos recepcionada fora dos limites canônicos e
variados de veiculação do “texto” literário, tradicionais das instâncias de legitimação ar-
práticas alternativas de elocução etc. Como tística, como as escolas, as academias, a im-
lembra Ivete Walty (2014), em singular tra- prensa, os veículos de comunicação e midi-
balho sobre produções alternativas no espa- áticos etc., sem demérito do papel que tais
ço urbano, renovados fenômenos estéticos instâncias desempenham na sociedade. Trata-
sugerem a adoção de novas linguagens num -se, contudo, de uma produção literária que
universo de fronteiras deslizantes e difusas, se encontra à margem do hegemônico e nos
compelindo, inclusive, a “outros operadores interstícios dos discursos formalizados, que
de leitura e análise” (p. 237). se constrói como marca divergente dos có-
A considerar a sugestão de Henri Lefe- digos estabelecidos e das escrituras protoco-
bvre (1983), expressa na epígrafe deste ar- lares, enfim, que se revela e se desvela como
tigo, pode-se encontrar poesia espontânea indício de transgressão às estruturas preesta-
na mais vulgar cotidianidade dos espaços belecidas e aos modelos institucionalizados
urbanos, uma vez que, podemos dizer sem de produção estética. Uma literatura de fora
exagero, a poesia está presente em todos os é, essencialmente, uma espécie de antilite-
lugares, em todas as esferas da ação huma- ratura, no sentido lato do termo, na medida
na, enfim em todo signo natural ou motiva- exata em que se manifesta como efeito di-
do com que nos deparamos em nosso dia a latado de ações políticas de resistência e de
dia. Na verdade, basta saber olhar e ler suas antagonismos, infringindo as regras e trans-
marcas, por meio das quais são construídos gredindo as normas, imiscuindo-se nas frin-
universos semânticos que lhe conferem senti- chas, nos veios, nas rugas e rusgas, extra-
do e valor distintos. O termo “poesia”, aqui, viando os sentidos e diluindo as fronteiras.
é tomado como metáfora – embora possa, Buscando a tensão em vez da distensão, o
102 • Maurício Silva

assistemático em vez do regular, e a incom- assinala as incongruências da contempora-


pletude em vez da conclusão... É, em uma neidade, em que literatura e experiência ur-
palavra, a derisão do estatuto da própria li- bana, como sugere Renato Gomes (2000),
teratura, numa poética desviante, curvilínea, aliam-se de modo definitivo, no intuito de
enviesada. Seu lócus por excelência é a pró- autopreservação existencial, por meio de
pria rua, esse espaço anárquico e intransi- trocas reais e simbólicas:
gente, fluido, sinuoso e desconexo, mas, ao o olhar plural que essa literatura [contempo-
mesmo tempo, efervescente e fecundo de rânea] constrói procura representar a expe-
possibilidades enunciativas. riência urbana, já em si substituída, na mo-
Aqui nós buscamos ver a relação entre li- dernidade, pela vivência do choque, e foca a
teratura e cidade numa perspectiva que des- cidade polifônica a partir, portanto, da con-
toa da tendência – bastante comum, nos temporaneidade, considerando o espaço ur-
meios críticos atuais – ao destaque dos mo- bano como o lugar privilegiado de intercâm-
dos de expressão hiper-realistas, que emer- bio material e simbólico, traço que sublinha
gem como manifestações de violência no as contradições e desigualdades internas das
espaço urbano contemporâneo e tem reper- cidades (p. 30).
cussões diretas na produção literária do pre-
sente (GUINZBURG, 2012; SCHOLLHAMMER. A literatura de fora, portanto, por sua pró-
2013). Para nós, a cidade – vinculando-se a pria essência controversa, é, ao mesmo tem-
um amplo projeto literário não formal, de ex- po, múltipla e complexa. Ocupando o espaço
plícita intencionalidade política – pode e deve citadino, desdobra-se numa miríade de vozes
constituir-se num espaço formativo, não no e discurso, posicionamentos políticos, expres-
sentido “pedagógico” do termo, que pres- sões culturais, formas sem fôrmas que se des-
supõe uma visão “funcionalista” da literatu- dobram e se fragmentam pelas ruas da cida-
ra, mas como ambiente propício às manifes- de, por seus muros e edificações, sem pudor
tações libertárias da expressão artística, no algum. Ao dialogar com determinada postu-
sentido baudrillardiano do termo, segundo ra ideológica explícita, essa literatura assume,
o qual, mais do que desobedecer às leis e ainda, um posicionamento geopolítico claro,
às regras morais, a liberdade plena acomete vinculante, tomando a tensão centro-periferia
aqueles que sabem desobedecer a si mesmos (OLIVEIRA, 2020) como ponto de partida de
(BAUDRILLARD, 2002). suas amarras com o espaço urbano. É preci-
Na contemporaneidade, falar dessa re- samente a partir dessa tensão que queremos
lação é, antes de tudo, estabelecer novos tratar, aqui, de duas destas manifestações li-
protocolos de leitura e recepção do tex- terárias de fora, em que o vínculo literatura e
to ficcional, uma vez que a dicção literária cidade – ou, mais objetivamente, literatura e
sofre o impacto direto do que se tem no- rua – estão claramente definidos e colocados,
meado de pós-ficção ou literaturas pós-au- fazendo dessas expressões amostras exempla-
tônomas (LUDMER, 2010), colocando sob res das associações que aqui vimos propondo:
suspeição até mesmo a crítica literária (MI- trata-se da literatura produzida nos saraus e
RANDA, 2018). O próprio presente, com- nos slams das periferias (nem sempre tão pe-
preendido como um tempo pós-utópico, riféricas assim!) da cidade de São Paulo.
L iteratura de fora : quando a arte literária encontra a rua •  103

A voz das ruas: saraus, slams... que somam cada vez mais participantes e que
servem como pontos aglutinadores para ou-
A literatura que se produz na rua, para a rua tras iniciativas políticas e culturais periféricas”
e pela rua sinaliza, de alguma maneira, uma fis- (REYES, 2013, p. 15). Sarau da Cooperifa, Sa-
sura num sistema de códigos e discursos prévia rau do Binho, Sarau Elo da Corrente, Sarau
e tradicionalmente consagrado pela socieda- das Mina, Sarau Poesia na Brasa, Sarau Su-
de letrada, pelas gens de lettres (GOULEMOT burbano Convicto... são muitas as “cenas”
& OSTER, 1992) ou gens de culture (ROCHE, que ocorrem por toda a cidade, ampliando
1988). Interferindo não apenas na literatura, os sentidos da palavra poética e, ao mesmo
mas também em seus processos de “socia- tempo, amplificando vozes outrora silencia-
lização”, trata-se de uma literatura em que das por processos sistemáticos de exclusão.
se pratica o ato poético, em que se elucida a Esse jogo poético-político não prescinde da
consciência crítica e se profere a palavra falada. consideração das categorias de gênero e raça,
Os saraus contemporâneos e periféricos são na medida em que os saraus atuam, também,
um exemplo dessa literatura que se produz à como instrumentos de empoderamento femini-
margem e nas margens de uma certa socie- no – propondo a “desconstrução da figura fe-
dade, resultado de um boom de favelas e pe- minina considerada tradicional” (LAGO-LOUSA
riferias nos grandes centros urbanos da Amé- & CAMARGO, 2017, p. 210) – e valorização
rica Latina na década de 1980. Nascem como étnico-racial (DUARTE, 2014), num delibera-
contraponto de uma cultura literária “centra- do movimento de tensionamento sociocultu-
lizada” – nos vários sentidos que esse termo ral. Assim, dotados de um universo semântico
pode ter –, mas, sobretudo, como afirmação que passa pelos conceitos de resistência, cons-
identitária de uma cultura marginalizada tan- ciência e mudança, os saraus cumprem, ainda,
to em seus processos quanto em seus produ- um papel social relevante, aglutinador, exibin-
tos. Por isso, no entendimento de Lucía Tenni- do uma capilaridade estética incomum entre
na (2017), os saraus elevam a literatura a uma os “movimentos” artísticos mais socialmente
compreensão positivamente pragmática, isto é, reconhecidos e institucionalizados. Seu poder
como um território de culto à autoestima dos estético disruptivo pode ser atestado, por exem-
moradores da periferia, por meio da consciên- plo, pelas antologias – coletivas ou não – que
cia de si mesmos e da valorização do coletivo. produzem, em processo editorial alternativo. É
Isso lhes confere, evidentemente, um o que se pode verificar, a título de ilustração,
sentido político, inserindo, nas palavras de nos prefácios das antologias produzidas pelo
Marcos Sanchez (2013), o político no poéti- Sarau Poesia na Brasa, coletivo que se consti-
co. São espaços de criação literária em que tuiu, formalmente, em 2008, embora o gru-
o ato político se faz presente do início ao po atuasse junto desde 2003 em ações edu-
fim, como forma de resistência, mas tam- cativas e afins, no bairro da Brasilândia, Zona
bém como memória e testemunho, em que Norte da cidade de São Paulo (SOUZA, 2014).
o debate, o diálogo e mesmo as antinomias De 2009 a 2014, o grupo publicou quatro co-
servem como princípio que anima a cena li- letâneas de poesia, além de outros livros e tex-
terária marginal. Em suma, trata-se de “espa- tos, cujos prefácios são sumariamente analisa-
ços de politização, debate e criação artística, dos em seguida.
104 • Maurício Silva

Juliana Balduíno (2009), em prefácio es- reprimidas. Do ponto de vista discursivo, os sa-
crito para a primeira antologia do coletivo, raus abrangem demandas igualmente urgen-
lembra que os saraus literários surgem como tes, expressas em seu entusiasmo por uma lin-
forma de recriar a cultura a partir do olhar guagem literária que se quer, a um só tempo,
da periferia, tendo como um de seus princí- singular e insubordinada, consubstanciada em
pios norteadores os “desafios em nos cons- dois princípios que, juntos, perfazem o que po-
cientizar e conscientizar os demais habitantes demos chamar de um estilo próprio dos saraus
[da periferia]” (p. 26). Para a autora, ainda, literários: a transgressão da norma-padrão da
a literatura marginal/periférica – na qual se linguagem e o enaltecimento da oralidade. Nes-
inserem os saraus – tem responsabilidade se sentido, rasurar o código linguístico-literário
prática, de caráter social. Posicionamento se- passa a ser o mote pelo qual toda a produção
melhante pode ser observado no prefácio es- poética dos saraus se guia, como forma de eli-
crito por Ana Carolina Teixeira Maria (2010), dir, de modo bastante incisivo, rituais discursi-
para o segundo volume da antologia do Sa- vos consagrados. E nisso, como lembra Maria-
rau Poesia na Brasa: nele, a autora, advogan- na Filgueiras (2018), os saraus aproximam-se
do a favor das “experiências de quem vive substancialmente de uma manifestação similar,
a realidade concreta” (p. 128), não deixa de que tem ocupado, cada vez mais, os espaços
salientar o papel desempenhado pelos saraus públicos e citadinos: o poetry slam.
como “instrumentos de mudança” (p. 129), Manifestação literária que surge nos Es-
capazes de levar a uma “ação consciente e tados Unidos na década de 1980, espalhan-
crítica” (p. 129). A apologia do processo de do-se, na sequência, por várias partes do
conscientização, pactuado nos dois primei- mundo, o slam consiste numa espécie de
ros prefácios, parece resultar tanto na ideia “batalha poética”, que envolve performan-
de mudança quanto na de resistência, pre- ce, declamação, linguagem poética e outros
sentes nos dois seguintes. Com efeito, para elementos de natureza “literária”. Esta espé-
José Sorá de Souza Queiroz (2011), prefacia- cie de repente contemporâneo, nas palavras
dor do terceiro volume da antologia, a im- de Márcia Pereira (2017), afirma-se como
portância dos saraus, para as periferias, pode expressão estética assentada, basicamente,
ser assegurada na medida justa em que eles mas não exclusivamente, em três princípios:
se inserem, nas suas palavras, num “movi- um princípio geopolítico, na medida em que
mento de mudanças” (p. 132). Já para Flá- tende a ocorrer em espaços públicos, além
via Bischain Rosa (2014), no quarto e último de promover um deslocamento territorial, ao
prefácio aqui analisado, “o espaço do Sarau incorporar a e se incorporar na periferia; um
é também um foco de resistência” (p. 136). princípio linguístico, no sentido de favorecer
Como se vê, não é possível compreender uma espécie de desconstrução gramatical,
um “movimento” tão complexo e amplo, como por meio da ruptura com o grafocentrismo
é o dos saraus periféricos contemporâneos, sem e a assunção da oralidade; um princípio ide-
ter em conta processos heterogêneos de po- ológico, que faz do tensionamento político
sicionamento político, por meio dos quais se e da enunciação crítica um de seus valores
objetiva uma multifacetada acomodação de mais relevantes. Em conjunto, tais princípios
demandas sociais e culturais historicamente fazem do slam, como já dissemos uma vez
L iteratura de fora : quando a arte literária encontra a rua •  105

(SILVA, 2018), uma espécie de microssiste- criação, divulgação e recepção é sempre


ma divergente, próprio de realidades sociais um inquestionável desafio, sobretudo por
periféricas e marginalizadas. se tratar de uma produção em franca ebu-
É exatamente essa sua vocação para o em- lição e progresso. Como toda manifesta-
bate – afinal, estamos falando de uma bata- ção nova, há uma considerável propensão
lha de poesia – que o torna também, como a mudanças, variações, deslocamentos de
lembra Javon Johnson (2017), um dos canais toda ordem, o que torna sua apreensão crí-
de resistência à violência cotidiana, experien- tica ainda mais custosa, sujeita à natural
ciada por comunidades socialmente vulnerá- instabilidade dos processos em desenvolvi-
veis e/ou discriminadas. Uma expressão, por- mento. É o caso das expressões estéticas a
tanto, visceralmente marcada pelo espírito que aqui nos referimos, todas elas não ape-
libertário da palavra falada: nas relativamente recentes no cenário ar-
O slam é feito pelas e para as pessoas. tístico brasileiro, mas, principalmente, atos
Pessoas que, apropriando-se de um lugar artísticos em construção...
que é seu por direito, comparecem em fren- Esse empenho estético pode ser ilustra-
te a um microfone para dizer quem são, de do pelos versos bem-acabados de Sérgio Vaz
onde vieram e qual o mundo em que acre- (2007), que servem também como profis-
ditam (ou não) [...] É um espaço para que o são de fé de uma espécie de impulso artís-
sagrado direito à liberdade de expressão, o tico coletivo:
livre pensamento e o diálogo entre as dife-
renças sejam exercitados. Um espaço autôno- A minha poesia,
mo onde é celebrada a palavra, a fala e algo apesar de pouca e rala,
mais fundamental num mundo como o que cabe na tua boca
vivemos: a escuta (D’ALVA, 2014, p. 119). dentro da tua fala.

Com efeito, é o poder da palavra, da pa- Apesar de leve e rouca,


lavra poética – divergente, lancinante e inci- chora em silêncio
siva, mas, nem por isso, menos esteticamen- mas nunca se cala.
te sublime – que os poetas do slam (também
chamados de slammers) cultivam com suas E apesar da língua sem roupa,
poesias faladas, proferidas em voz alta pe- não engole papel,
los quatro cantos das cidades. Como lem- cospe bala! (p. 25)
bra um deles, a poeta Ryane Leão, numa de
suas poesias, “não adianta tapar os ouvidos / Expressões ficcionais “da rua”, a poesia
porque cicatriz aberta / não ecoa só por fora visual dos cartazes, a expressão vocal dos sla-
/ mas por dentro” (DUARTE, 2019, p. 203). ms, a récita verbal dos saraus, enfim aquela
literatura que ocupa os loci da cidade e com
Para não concluir ela estabelece um pacto dialogal reverbera a
própria porosidade do espaço urbano, o que
Falar sobre a literatura que se produz faz dessa expressão verdadeiro cântico disso-
fora de seus espaços convencionais de nante em escala bem compassada.
106 • Maurício Silva

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Florescer na complexidade do real

Faustino Teixeira
Teólogo e Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade
Federal de Juiz de Fora (MG), Pesquisador do CNPq e Consultor do ISER Assessoria (RJ).
Dentre suas linhas de pesquisa destacam-se: Teologia das Religiões, Diálogo Interreligioso e
Mística Comparada das Religiões. É autor de vários livros e artigos envolvendo esses temas.

Introdução caminho alternativo em favor da sobrevivên-


cia humana e das “espécies companheiras”
Vivemos um dos momentos mais críticos (HARAWAY, 2019a, p. 36), que nos acom-
no plano global, com tremendas ameaças à panham nessa jornada planetária.
vida terrestre, em razão de vários aconteci-
mentos relacionados à ação predatória do O excepcionalismo humano
ser humano sobre a Terra, incidindo perigo-
em questão
samente no regime climático. Podemos in-
cluir aqui a crescente extinção das espécies, A busca de um novo regime climático
os desastres naturais, o desmatamento ge- suscita, em primeiro lugar, o questionamen-
neralizado, o esgotamento dos solos, a ca- to basal do excepcionalismo humano que
rência de água doce, a acidificação dos ocea- vem se firmando desde a modernidade pós-
nos, a poluição degradante, o deslocamento -cartesiana. Estamos diante de uma imagem
de populações de suas terras e o ódio interé- problemática do ser humano como “senhor
tnico. Estamos diante de um momento deci- do céu e da terra”. O papa Francisco, em
sivo e talvez irreversível, caso não tomemos encíclica pioneira sobre o tema – a Laudato
urgentes providências, em âmbito mundial, Si’ (LS - 2015) –, reconhece o risco antropo-
no sentido de modificar a pegada humana cêntrico, que pode conduzir a humanidade a
no ambiente. O grande risco é o de ficarmos uma situação catastrófica (LS 116 e 161). No
cada vez mais “privados de terra”, ou ter- curso do processo antropocêntrico, a afirma-
mos que aterrar em situação cada vez mais ção da excepcionalidade, numa visão teleo-
precária ou insuportável. Os dados que nos lógica que situa o ser humano no cume da
são apresentados por sérias instâncias cientí- criação, como umbigo do mundo, já mostra
ficas são realmente atemorizadores. O obje- suas garras problemáticas.
tivo desse breve texto é favorecer a reflexão Em reflexão preciosa, Lévi-Strauss fala
sobre o momento atual e abrir algumas pis- das nefastas consequências que provoca-
tas, também no campo espiritual, para um ram “a separação do homem de sua matriz
108 • Faustino Teixeira

natural, bem como sua promoção a um lu- uma nova compreensão do humano como
gar definitivo da verdade” (LOYER, 2018, p. “parte do vivente”, envolvendo a exigência
560). Esta separação acabou fundando his- de uma nova compreensão dos direitos ca-
toricamente um racterísticos nas paisagens do Antropoce-
humanismo pervertido, que, instalando fron- no. Vale igualmente lembrar o trabalho de
teiras entre a humanidade e o resto do vivo Eduardo Kohn, Como pensam as florestas
(reinos animal e vegetal1), inaugurou um “ci- (KOHN, 2017, p. 47-48). Descola foi dos au-
clo maldito”: aquele que, com a ajuda da tores fundamentais para a reflexão sobre as
“mesma fronteira constantemente recuada, origens e limites do nosso modo de presen-
serviria para afastar os homens de outros ho- ça na Terra. Indicou com precisão que natu-
mens” (LOYER, 2018, p. 560). reza e cultura estão amalgamados, fazendo
parte de um campo de integralidade. Tudo
Trata-se, como indica Lévi-Strauss, de um leva ao afirmar-se de uma nova dignidade
“humanismo generalizado”, que se revela não só dos humanos, mas de outros vetores
“sem restrição e sem limite”. que compõem a animalidade, a plantidade,
Já dizia Lévi-Strauss que essa predileção a vegetalidade e a mineralidade. É o desafio
pelo humano com respeito às outras espé- presente e antigo de uma nova cosmologia
cies provocou, na verdade, um processo pro- no confronto do criado.
gressivo de exclusão, acompanhado de mui- Há que “expandir o nosso repertório
ta violência: de ´pessoas` para incluir outros seres vivos”
Nós começamos por nos considerarmos (TSING, 2018, p. 239); ou como diz Viveiros
especiais em relação aos outros seres vivos. de Castro, numa crítica ao antropocentrismo,
Isso foi só o primeiro passo para, em seguida, ampliar o conceito de “nós”, e incluir o ser
alguns de nós começarem a se achar melho- humano na cadeia da vida: dos outros e do
res do que os outros seres humanos. E nisso ambiente. Reconhece com pertinência que a
começou uma história maldita em que você diversidade é “um valor superior para a vida”
vai cada vez excluindo mais (...). É o excepcio- (VIVEIROS DE CASTRO, 2008, p. 256-257).
nalismo humano, depois o excepcionalismo
dos brancos, dos cristãos, dos ocidentais... A nova consciência das
Você vai excluindo, excluindo, excluindo...
interligações
Até acabar sozinho, se olhando no espelho
da sua casa (BRUM, 2014). A crítica ao excepcionalismo humano foi
igualmente desenvolvida pela antropóloga
Uma gama de antropólogos firma-se hoje Anna Tsing, que ensina na Universidade da
na crítica a essa “excepcionalidade” huma- Califórnia, em Santa Cruz (USA) e na Uni-
na. Podemos citar igualmente os preciosos versidade Aarhus, na Dinamarca. Suas refle-
trabalhos de Philippe Descola, que a par- xões, embasadas em rica etnografia, revelam-
tir de uma crítica nodal à separação entre -se para nós de originalidade singular, com
natureza e cultura, enfatiza a prioridade de pistas essenciais para pensar o nosso tempo.
Em sua visão, o excepcionalismo humano é
1 E poderíamos acrescentar hoje também o reino mineral. problemático, e algo que “nos cega”, pois
F lorescer na complexidade do real •  109

nos incapacita de prestar atenção à rica di- companhias, e a acolhida da diversidade,


versidade que nos rodeia (TSING, 2015). Jun- como indicou Ailton Krenak em seu livro:
to com o excepcionalismo, uma visão míope Ideias para adiar o fim do mundo (2019).
da “autonomia” humana, que traduz o re- Isto requer uma nova disposição de cuida-
forço de um controle nocivo, ou um impac- do. E por que esse cuidado? Justamente pelo
to predatório sobre a natureza. É uma visão fato dessa diversidade biológica e social estar
que acaba por bloquear o caminho essencial “camuflada” em “margens despercebidas”
de pensar a interdependência das espécies. de nosso olhar superficial. Anna Tsing subli-
Segundo essa autora, nha que essa diversidade está ali, “oculta”
a maioria das espécies dos dois lados da linha, em selvas urbanas ou nos recantos rurais, e
incluindo os humanos, vivem em complexas ganha, por exemplo, expressão na vida dos
relações de dependência e interdependência. fungos do solo e outros micro-organismos,
Prestar atenção a essa diversidade pode ser o que preferem sempre as “pequenas proprie-
início da apreciação de um modo interespecí- dades”. Ali está exemplificada a grande ri-
fico de ser das espécies (TSING, 2015). queza da diversidade. Anna Tsing chegou
a tal conclusão estudando os cogumelos e
Outra pensadora, Donna Haraway, alerta- fungos. Gosta de dizer que os cogumelos
-nos para levarmos a sério outros modos de são nossos “companheiros”, delineando a
existência, com os quais estamos intimamen- dinâmica de uma simbiose benéfica e vital.
te relacionados. Darmo-nos conta dos mo- Como assinala,
dos de existência “de outros seres (e outros na longa história da Terra, os fungos foram
humanos) em seus próprios termos, fazendo responsáveis por enriquecer os solos e assim
um esforço tradutório para que não se redu- permitir que as plantas evoluíssem. Há árvo-
zam esses modos de existência a metáforas res capazes de crescer em solos pobres por
ou categorias humanas dominantes” (HARA- causa dos fungos que trazem fósforo, mag-
WAY, 2021, p. 180). Não há como isolar uma nésio, cálcio e outros nutrientes às suas raí-
espécie singular das outras e dos ambientes. zes (TSING, 2015).
Estamos todos envolvidos numa mesma teia
inter-relacional, uma “teia multiespécie rami- O que seria das florestas sem os fungos?
ficante”. A autora prefere não falar de pós- Na verdade, seriam “pilhas de madeira mor-
-humanismo, mas de compostagem. A ima- ta”. Os fungos revelam-se “companheiros
gem é mais significativa para falar de “caráter de outras espécies” e traduzem a beleza de
multiespécie e multissituado do movimento”, uma interdependência entre os seres da cria-
de camadas que são criadas e se conectam ção, uma “relacionalidade multiespécies”.
criando uma teia de significados. Indica ain- Em sua obra, Viver nas ruínas (2019), Anna
da a ideia fundamental de regeneração, de Tsing lança-nos um conselho significativo, vi-
forma a que possamos seguir firmes com o sando captar sob os nossos pés uma cidade
problema, habitando na barriga do monstro subterrânea pontuada por relações de cos-
(HARAWAY, 2019c; HARAWAY, 2019d) mopolitismo vivo:
O tempo atual suscita o desafio essen- Na próxima vez que você caminhar por
cial de uma nova reverência com as outras uma floresta, olhe para baixo. Uma cidade
110 • Faustino Teixeira

está sob seus pés. Se você fosse de alguma expressa linhas que se remetem umas às ou-
forma descer sob a terra, você se encontra- tras. São linhas de “desterritorialização”, com
ria cercado ou cercada pela arquitetura de diversas rotas de fuga. Na dinâmica dessa re-
teias e filamentos. Os fungos criam essas flexão, não há centralidade definida, mas co-
teias à medida que interagem com as raízes nexões que espocam em todos os lugares. O
das árvores, formando estruturas conjuntas rizoma “não é feito de unidades, mas de di-
de fungos e raízes chamadas “micorrizas”. mensões, ou antes de direções movediças. Ele
As teias micorrízicas conectam não apenas não tem começo nem fim, mas sempre um
raízes e fungos, mas, através de filamentos meio pelo qual ele cresce e transborda” (DE-
fúngicos, árvores com árvores, conectando a LEUZE; GUATTARI, 2011, p. 43). Tim Ingold
floresta em emaranhados. Essa cidade é uma prefere recorrer à imagem do micélio fúngi-
cena animada de ação e interação (TSING, co. Mediante esse protótipo, Ingold foge do
2019, p. 43). enquadramento da vida em limites formais e
fixos, abrindo um campo inter-relacional ma-
O desafio de nosso tempo é este de am- ravilhoso, marcado pelo fluxo contínuo dos
pliar o olhar e prestar vivamente atenção nes- materiais que formam o tecido da vida (IN-
sa diversidade. A riqueza está ali. Essa aten- GOLD, 2015, p. 140).
ção cuidadosa à especificidade de mundos
de vida abre um campo novo e fundamen- Tempo de perturbação
tal para os estudos em ciências humanas e
humana e de ressurgência
sociais. É o desafio de “repensar o ´huma-
no` após o estouro da bolha antropocêntri- Em agosto de 2021 o Painel Intergover-
ca” (DOOREN; KIRSKEY; MÜNSTER, 2016). namental de Mudanças Climáticas (IPCC) pu-
Novos estudos nos ajudam a quebrar a ne- blicou um relatório atemorizador sobre o re-
fasta dicotomia que se firmou na moderni- gime climático da Terra2. Ficou bem claro no
dade entre natureza e cultura, indicando que documento que o que ocorre se deve à ação
os limites são bem mais “porosos” do que humana, em sua forma doentia de habitar a
se configuraram na reflexão instalada (DES- Terra. Trata-se de um dos maiores riscos de
COLA, 2016, p. 7 e 8). Há que “multiplicar a colapso ecológico que se tem registro. Entre
atenção às diferenças” e “aprender a flores- os principais resultados apontados no rela-
cer na complexidade” (HARAWAY, 2019b). tório citado está o aumento do aquecimen-
Por diversas vezes, na Laudato Si’ (LS), o to do planeta nos próximos anos em pelo
papa Francisco toca na nervura das inter-re- menos 1,5ºC em todos os cenários. Se não
lações. Reitera a convicção de que há uma houver providências urgentes, a temperatura
interligação entre todas as coisas, “visto que média do planeta poderá chegar a 4,4 graus
todas as criaturas são interligadas, deve ser Celsius até o final do século. A concentração
reconhecido com carinho e admiração o va- de gás carbônico (CO2) na atmosfera no ano
lor de cada uma, e todos nós, seres criados, de 2019 “atingiu o seu maior nível dos últi-
precisamos uns dos outros” (LS 42). Para de- mos 2 milhões de anos”.
linear esse significado, Gilles Deleuze e Fé- 2 https://www.youtube.com/watch?v=bwO4j7aRLg4

lix Guattari recorrem à ideia de rizoma, que (acesso em 05/09/2021)


F lorescer na complexidade do real •  111

O futuro reserva-nos um prognóstico de uma onda sempre a ponto de quebrar


aterrador, envolvendo uma “dizimação fan- (INGOLD, 2019, p. 17).
tástica da biodiversidade e uma proliferação
de bactérias e vírus como jamais havidos an- Uma atenção que não se volta exclusiva-
tes” (BOFF, 2021). O papa Francisco, que é mente aos humanos, mas a todas as criatu-
tão positivo e otimista, adverte, em sua en- ras, com seus direitos característicos. E assim
cíclica Laudato Si’, que as previsões para o conseguimos “flagrar o mundo em ação”,
futuro são “catastróficas” (LS 161). O que atendendo ao grito da Terra. O encontro pro-
se vive nesse tempo do Antropoceno é um fundo com o outro envolve essa consciência
desenfreado ritmo de consumo, desperdí- de relação, de interligação, de reciprocida-
cio e transformação necrófila do ambiente, de. Não basta dizer “viva o múltiplo”, como
que supera em muito as possibilidades do sinalizam Deleuze e Guattari, é necessário
planeta. Dizia com razão Eric Hobsbawm, o desvendar as malhas desta viva relação que
eminente historiador marxista inglês, no fi- constitui a tessitura do real, em que cada coi-
nal de sua clássica obra, Era dos extremos sa, cada ser, está referenciado ao outro, en-
(1994), que trelaçado como um dom.
se a humanidade quer ter um futuro reco- As resistências existem, bem como os
nhecível, não pode ser pelo prolongamento “gestos barreira”, capazes de frear ou ra-
do passado ou do presente. Se tentarmos lentar o impulsivo ritmo da globalização (LA-
construir o terceiro milênio nessa base, vamos TOUR, 2020a, p. 131). Trata-se de um apren-
fracassar. E o preço do fracasso, ou seja, a al- dizado importante, que podemos sorver da
ternativa para uma mudança da sociedade, sabedoria dos povos ancestrais ou originá-
é a escuridão (HOBSBAWM, 1995, p. 562). rios, como indica também Latour. Com suas
cosmologias singulares, tais povos denunciam
Muitos indicam, como Bruno Latour, que com propriedade inquietudes com a máquina
“não há nada mais a fazer senão aprender a do mundo, com os descaminhos do homem-
viver com as consequências daquilo que de- -humano no Antropoceno. Tais inquietudes,
sencadeamos” (LATOUR, 2020a, p. 31). Ou- hoje temos plena consciência, não são infun-
tros conseguem vislumbrar, com dificuldades, dadas (LATOUR, 2012, p. 452). Segundo De-
possíveis brechas de resistência. borah Danowski, diante de uma questão de
O ponto de escape para uma perspectiva vida ou morte, há que resistir com todos os
distinta está em deixar-se habitar pelo mun- recursos à disposição:
do da alteridade, rompendo com esse “des- Nos organizar, inventar pequenas saídas
gaste da compaixão” que nos circunda. É políticas, econômicas, desviantes da grande
necessário mudar de postura, sintonizando política, da grande economia, dessa coisa
os sentidos com a melodia da simpatia, da destrutiva que nos apresentaram como se
cortesia e da delicadeza. Como aponta Tim fosse a única realidade possível, uma reali-
Ingold, com pertinência, é essencial dade única e sem saída (DANOWSKI, 2020).
prestar atenção às coisas – observar os seus
movimentos e escutar os seus sons – é fla- A essa atenção ao grito dos povos originá-
grar o mundo em ação, como surfar a crista rios soma-se a resistência que vem ocorrendo
112 • Faustino Teixeira

por todo canto entre os jovens, como Greta trabalho de muitos organismos que, nego-
Thunberg, Hongyi, Joshua Wong e Autumm ciando através de diferenças, forjam assem-
de Winnipeg. Donna Haraway fala de sua bleias de habitabilidade multiespécies em
esperança nesse grito juvenil, nessa aliança meio às perturbações” (TSING, 2019, p. 226).
global de jovens que buscam um mundo di-
ferente. Sublinha que está bem atenta e in- Conclusão
teressada no que eles estão dizendo, e que
seu grito possa chegar “cada vez com mais Como diz Donna Haraway,
força, a públicos cada vez mais amplos, pelo estar apaixonado é estar no mundo, estar
que têm a dizer, porque estão defendendo em conexão com a alteridade significativa e
seus próprios futuros” (HARAWAY, 2019c). com outros que significam, em diversas esca-
É uma luta nobre em favor da continuidade las, em camadas de locais e globais, em teias
das gerações. que se ramificam (HARAWAY, 2021, p. 93).
Na visão de Latour, essa resistência que
ocorre de forma diversificada é essencial, Há, assim, que abrir outros caminhos que
mesmo tendo consciência de que a guerra defendam mais afinidades e não só identida-
entre terranos e humanos está meio perdi- des. Essa é a pista aberta para “gerar comuni-
da, em razão da prepotência, arrogância e dade com outras espécies”. Há que “aprender
necrofilia dos humanos (LATOUR, 2012, p. a florescer na complexidade”, buscar “re-
483): de humanos que vivem na época do generar” o caminho cooperativo e não sim-
Holoceno contra os Terranos do Antropoceno plesmente afirmativo. Trata-se de compreen-
(LATOUR, 2020b, p. 387). Os poetas enten- der o presente de forma mais sutil e densa,
dem bem desse nosso drama, mas deixam- deixando-se habitar por sua complexidade.
-se habitar por uma esperança renovadora. É A percepção de que tudo está interliga-
o que diz Adília Lopes num de seus poemas: do provoca, necessariamente, um novo rit-
“Resta-nos ir chuleando os trapinhos, os pa- mo para se pensar a espiritualidade. O papa
pelinhos, para que o mundo não se desfie de Francisco desenvolveu com pertinência essa
vez” (LOPES, 2016, p. 141). questão na sua carta encíclica Laudato Si’,
Mesmo diante de previsões pessimistas, sobre o cuidado da casa comum (2015). So-
somos movidos pela esperança nas ressur- mos parte deste universo, “somos terra” (LS
gências, para utilizar uma expressão de Ana 2). Todo o universo vem envolvido pelo sopro
Tsing. A antropóloga reconhece que isto vem misericordioso do Mistério, que se revela em
ocorrendo na Terra, em lugares devastados todo lugar: na folha, na vereda, no orvalho
pelas ruínas. Surpreendentemente, reconhe- e no rosto dos pequenos (LS 233).
ce, as “ecologias habitáveis retornam. Depois Habitar espiritualmente a Terra é deixar-se
de um incêndio florestal, as mudas brotam maravilhar por uma “espiritualidade ecoló-
nas cinzas, e, com o passar do tempo, ou- gica”, para usar a expressão de Francisco. O
tra floresta pode crescer após a queimada” ritmo dessa nova espiritualidade é marcado
(TSING, 2019, p. 226). São “mistérios” vitais pelo cuidado, generosidade, cortesia e hos-
que possibilitam a renovação das relações pitalidade. É algo que se processa nos mais
interespécies. A ressurgência, diz Tsing, “é o simples gestos do cotidiano, na concretude
F lorescer na complexidade do real •  113

da vida real, nas veredas da história. Há que Está aí a pista fundamental: mesmo em
cuidar com carinho da Terra, esse eloquen- meio à estranheza da vida, na escuridão ví-
te ser vivo, e “tratá-la com esmero”. E res- trea, pode assomar-se o instante mágico do
peitar exige também louvar e venerar (HAN, maravilhamento, de emergência de uma “tex-
2019, p. 12-13). É uma espiritualidade que tura magnífica”, cintilante... E, de repente, a
vem contagiada pelo cuidado e a preserva- percepção duradoura de partículas de felicida-
ção terna com todo o criado, com todas as de, de mil tons de luz antes desapercebidos.
“espécies companheiras”, no reconhecimen- O essencial, como sublinha tão magnifica-
to de seus direitos característicos. Essa espi- mente Gianni Vattimo, é o exercício da cari-
ritualidade reserva um lugar especial para a dade, do amor, do ágape (VATTIMO, 2021).
“paz interior”, suscitando um estilo de vida
diferenciado, para além da “pressão do de- Referências bibliográficas
sempenho”, tão presente em nosso tempo. BOFF, Leonardo. Temos tempo e sabedoria suficientes para
evitar a catástrofe? Portal do CDDH, 18/08/2021: ht-
Há que resgatar, como sublinhou Byung-
tps://leonardoboff.org/2021/08/18/temos-tempo-e-
-Chul Han, o “primado da vida contempla- -sabedoria-suficiente-para-evitar-a-catastrofe/ (aces-
tiva”, da paciência e o descanso, em função so em 04/09/2021)
BRUM, Eliane. Diálogos sobre o fim do mundo. El país,
de uma atenção mais profunda às nervuras 29/09/2014 (em conversa com Eduardo Viveiros de
do real. Um “olhar demorado e lento”, des- Castro e Déborah Danowski): https://brasil.elpais.com/
brasil/2014/09/29/opinion/1412000283_365191.
perto e acolhedor (HAN, 2015, p. 51). A es- html (acesso em 03/09/2021).
piritualidade é essa capacidade de celebrar a DANOWSKI, Deborah. Não tem mais mundo para todo
mundo. IHU-Notícias, 03/11/2020: http://www.ihu.
vida em profundidade. Ela aciona qualidades unisinos.br/78-noticias/604295-nao-tem-mais-mun-
essenciais e potencialidades de abertura que do-pra-todo-mundo-diz-deborah-danowski (acesso
em 04/09/2021).
procedem do mundo interior e do espírito. É DESCOLA, Philippe. Oltre natura e cultura. Firenze: Seid,
dela, desse fundo maravilhoso, que se irra- 2014.
DESCOLA, Philippe. Outras naturezas, outras culturas.
diam, com uma fragrância única, os toques São Paulo: Editora 34, 2016.
singulares do amor desinteressado, da gra- DOOREN, Thon Van; KIRSKEY, Eben; MÜNSTER, Ursula.
Estudos mustiespécies: cultivando artes de atenti-
tuidade, da atenção, cortesia e hospitalidade. vidade, Climacon, Ano 3, n. 7, 2016: http://clima-
A espiritualidade aciona o movimento com.mudancasclimaticas.net.br/estudos-multiespe-
cies-cultivando-artes-de-atentividade/ (acesso em
desses valores fundamentais que são irradia-
03/09/2021).
dos como perfume por todo canto. O gran- HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis:
de desafio do século XXI é o da “nova reve- Vozes, 2015.
HAN, Byung-Chul. Loa a la Tierra. Un viaje al jardín. Bar-
rência face à vida”, em favor de um outro celona: Herder, 2019.
mundo possível. Não se pode cancelar a es- HARAWAY, Donna. Seguir con el problema. Generar pa-
rentesco en el Chthuluceno. Bilbao: Consonni, 2019a.
perança, pois a Vida está aí, ainda disponí- HARAWAY, Donna. Estamos diante de uma crise do
vel para nós. Um outro mundo possível está modelo de civilização. IHU-Notícias, 18/09/2019b:
http://www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias/78-
aí, diante de nós, basta saber ver e recuperar -noticias/592682-estamos-diante-de-uma-crise-do-
as energias para fazê-lo brilhar para todos. -modelo-de-civilizacao-entrevista-com-donna-hara-
way (acesso em 03/09/2021).
A vida, como diz belamente a iraniana Lila HARAWAY, Donna. Estamos vivendo tempos extrema-
Hazam Zanganeh, é um “labirinto de sinais, mente perigosos. IHU-Notícias, 08/10/2019d: http://
www.ihu.unisinos.br/78-noticias/593253-estamos-
débeis pontos de luz elaborando esquemas -vivendo-tempos-extremamente-perigosos-entre-
ainda desconhecidos” (ZANGANEH, 2013). vista-com-donna-haraway (acesso em 03/09/2021).
114 • Faustino Teixeira

HARAWAY, Donna. O manifesto das espécies companhei- LOPES, Adília. Bandolim. Porto: Assírio & Alvim, 2016.
ras. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021. LOYER, Emmanuel. Lévi-Strauss. São Paulo: Sesc, 2018.
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. O breve século XX – PAPA FRANCISCO. Carta encíclica Laudato Si’, sobre o
1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.
INGOLD, Tim. Estar vivo. Ensaios sobre movimento, co- TSING, Anna Lowenhaupt. Margens indomáveis: co-
nhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015. gumelos como espécies companheiras. Ilha. Re-
KOHN, Eduardo. Comment pensent les forêts. Paris: Zo- vista de Antropologia, v. 17, n. 1, 2015: https://
nes Sensibles, 2017. periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/2175-
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São -8034.2015v17n1p177 (acesso em 04/09/2021).
Paulo: Companhia das Letras, 2019. TSING, Anna L. Viver nas ruínas. Paisagens multiespé-
KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Compa- cies no Antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019.
nhia das Letras, 2020. VATTIMO, Giani. A morte de Deus: uma boa notícia
LATOUR, Bruno. Enquête sur les modes d’existence. Pa- para a fé. IHU-Notícias, 25/06/2021: http://www.
ris: La Découvert, 2012. ihu.unisinos.br/78-noticias/610497-gianni-vattimo-
LATOUR, Bruno. Onde aterrar? Como se orientar politi- -a-morte-de-deus-uma-boa-noticia-para-a-fe (aces-
camente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do so em 05/09/2021)
Tempo, 2020a. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Encontros. Organização
LATOUR, Bruno. Diante de Gaia. Oito conferências so- de Renato Sztutman. Rio de Janeiro: Azougue, 2008.
bre a natureza do Antropoceno. São Paulo: Ubu, ZANGANEH, Lila Hazam. O encantador. Rio de Janeiro:
2020b. Alfaguara, 2013.
RESENHA

Folgando com a morte


(Sobre Memento Mori – Os sonetos da morte,
de Carlos Newton Júnior)
Arnaldo Saraiva
Escritor português. Professor emérito da Universidade do Porto. Autor de livros como Modernismo
brasileiro e Modernismo português, Conversas com escritores brasileiros e Correia Dias – esquecido
e inesquecível artista de Portugal e do Brasil, e de numerosos estudos sobre escritores brasileiros e
portugueses, entre os quais Drummond, João Cabral, Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro.

J
á desde os antigos egípcios e tibetanos em especial os seus 101 sonetos de amor).
dispúnhamos de ”livros dos mortos”; ao Isentos de descuidos rímicos – até dextros na
longo dos séculos foram proliferando os conjugação de rimas consoantes e toantes,
livros que falam dos mortos e da morte, não e eventualmente no recurso à monorrimia
faltando mesmo os que, como o de Hélinand (29), ou na invenção, por sinal num “sone-
de Froidmont, referido num dos “sonetos da to sonetil”(43), do verso que espantaria Júlio
morte”, se dirigem diretamente à morte; são Salusse e Olavo Bilac, “Houvesse, em portu-
incontáveis os “poetas da morte”, alguns guês, rimas em isne”, para rimar com cisne
lembrados no prefácio de Alexei Bueno; e e tisne; e isentos também de descuidos mé-
também há quem, como Michel Picard, con- tricos e rítmicos. Conjugando a clareza dis-
ceba “relações estreitas, quase consubstan- cursiva com a densidade semântica, em sá-
ciais” entre a literatura e a morte. Mas com bia distribuição da ideia principal e das ideias
Memento Mori – Os Sonetos da Morte (Edi- secundárias pelas partes até ao remate, não
tora Nova Fronteira, 2020) passamos a dispor raro com a típica chave de ouro, os sonetos
de um livro inteiro, cem sonetos, que põe a de Memento Mori, tanto os de recorte italia-
morte a escrever ou a falar sobre si mesma, no quanto os (poucos) de recorte inglês, não
sobre os que mata ou matou e sobre os que se afastam das estruturas do soneto clássi-
vão morrer, entre os quais os seus próprios co. Só que, apesar de tratarem do tema da
leitores. A suposta “autora” diz incoerente- morte, eles fogem da gravitas ou da soleni-
mente, suscitando a incerteza ou a descon- dade que encontramos na maior parte dos
fiança que sempre estimula a morte: “Para sonetos clássicos, mesmo nos que não tra-
escrever poemas com destreza, /confesso tam da morte. E também fogem ao maca-
que treinei por muitos anos” (n.º 45) e “em bro do tema medieval da dança da morte, a
versejar não tenho muita prática” (99). Na que uma ou outra vez aludem, assim como
realidade a “autora” é um poeta com obra fogem ao exacerbamento emotivo, ao mór-
publicada desde 1993, e já com larga expe- bido, ao sombrio e ao funéreo típicos da li-
riência na produção de sonetos (lembremos teratura romântica e ultrarromântica.
116 • Arnaldo Saraiva

No seu aparente classicismo eles transpor- a dona, tão sozinha”), individuais ou coleti-
tam uma modernidade que não se vê só no vas (“consigo levar vários de uma vez”, “e
discurso oralizante, dessublimado e desenvol- todos os atores vêm comigo”). Mas também
to, no uso de populismos e de “palavrões” se insurge contra os seus pretensos inimi-
(“chilique”, “chororó”, “fula”, “cagam”, gos, a medicina, a ciência, a religião, a ma-
“caralho”) ou de neologismos e estrangei- gia, a arte, de que zomba, pois as vê como
rismos rimantes como Selfies/Help e de alu- inúteis e derrotadas; também protesta con-
sões a “AVC”, “talidomida”, “Lexapro” e tra os que a representam com ar medonho
“Escitalopram”. Porque se vê sobretudo na ou tintas negras, sejam pintores (que a não
inversão do ponto de vista a que aludi ini- pintam como o mexicano Guadalupe Posa-
cialmente: não são os vivos que escrevem ou da), sejam poetas (“Nenhum poeta soube me
falam com impotência, raiva, tristeza, angús- louvar”; “Que os poetas me vejam como um
tia, terror, horror da morte, mas é a morte anjo”); e também se autodefine: “Não sou
personalizada que escreve ou fala dos vivos. boa nem ruim”, “Sou como sou”, “Eu sou
Na primeira pessoa, em direto, às vezes fi- imparcial”, “sou ubíqua”, “sou iníqua”, “Eu
xando especialmente o “poeta” (“De que sou a noite escura”…).
queres morrer, ó meu poeta?”) – que pode Mas ao longo da centena de sonetos ela
implicar primacialmente o verdadeiro autor pode revelar-se com características que vão
– ou o “leitor” (“Muito em breve, ó leitor, além dos tópicos comuns da sua dissimula-
será você!”, “Se me lês”, “Ó tu”, “Ai de ti”), ção (“e o levei, disfarçada de pastor”, “fin-
outras vezes contemplando uma pluralidade jo não lhe dar tanta importância”), e do seu
(“Parai com vossas frases atrevidas”, “Não poder arbitrário, imprevisível (“Eu gosto é da
queirais”, “Nosso encontro, leitores”, “Tam- surpresa”), inevitável, implacável e universal
bém a vós, ó cónegos da Sé”), a morte, que (“A todos eu domino com meu laço”, “Co-
se diz “ubíqua”, percorre alguns dos seus lu- migo não há choro nem barganha”, “Estou
gares privilegiados (a via pública, o mar, a es- em toda a parte”), ela assinala, por exem-
trada, o hospital, o avião…), indica modali- plo, o seu “bom humor” (“o bom humor me
dades da sua intervenção (homicídio, suicídio faz cantarolar”, “Dos vaidosos eu sou a grã-
– que diz desprezar –, AVC, vírus, bactérias, -mercê”), o seu humor negro, o seu cinismo
colesterol, acidente de trânsito, briga, álcool, e o seu sadismo (o gordo “certamente daria
cigarro…), nomeia genericamente ou seletiva- um bom toucinho”, “eu encontro o prazer
mente as suas vítimas (papa, rei, monge, mi- em o matar”, “e um dia os levarei – ah, que
nistros, deputados, senadores, cónegos, po- delícia!” ), a sua episódica ou cínica bono-
bres, ricos, beatos, noivos, canalhas, velhos, mia e gentileza (“Gentilmente contigo agora
jovens, crianças…), refere algumas mortes vou”, “louvando e me chamando de bendi-
lentas e rápidas (“na velocidade que há no ta”, “Sou seu anjo da guarda, neste instan-
raio”), recentes (“Recolho o sangue quente te”, “pra ti serei repleta de carinhos”), a sua
na calçada”), iminentes ou próximas (“A de- utilidade (“o incentivo que dou à economia”,
mora é contar de um até dez”, “Ah vai ser “Eu sou o que lhes resta, uma esperança”), a
hoje, é hoje que eu o mato”, “Hoje à tarde sua fragilidade (“secreta timidez / diante da
eu levei a cachorrinha/…/ Mês que vem levo beleza”), a sua dependência não de Cristo,
F olgando com a morte •  117

que também morreu, mas de Deus (“d’Ele to- penar”, “jamais vivenciar a dor do luto”…),
dos nós somos cativos”) e, enfim, a sua pró- afinal a pura e total negatividade.
pria condição de mortal: “E mesmo a Morte Mas dos sonetos e do livro, onde com-
há de morrer um dia?”. parecem nomes de pintores (Posada, Bos-
Projetando a imagem da morte como es- ch) e de poetas (Hélinand, Bandeira, Drum-
critora, escritora de sonetos que dão conta mond, Cecília), onde se fala de poesia e de
indelével dos seus segredos, manhas, e arti- arte poética, onde se lê antifrasticamente o
manhas, num dos quais relaciona a lingua- elogio dos principais adversários da morte,
gem, sobretudo a poética, com a vida (“aon- como a ciência e a arte, onde é valorizado o
de tu irás não há linguagem”), Carlos Newton trabalho da imaginação, da linguagem e da
Júnior afirma-se obrigatoriamente como es- ironia, há lições a retirar ou a reter: viver é
crivão ou transcritor do discurso da morte, conviver com a morte ou com a ameaça per-
afinal como íntimo da morte, e incita a essa manente da morte; não se pode viver bem
intimidade – mas para melhor lhe resistir e sem a busca de um sentido para a vida, mes-
para melhor apreciar o “dom da vida”. mo na ignorância do que virá ou não virá de-
Um soneto, dos mais densos e “sérios” do pois dela; o valor maior da vida está na cria-
livro, levanta a questão de saber se o “dom ção, na poética da criação; impõe-se pensar
maior é mesmo o dom da vida”, se o “dom e falar naturalmente da morte, sem a enfa-
da vida” é melhor que o “não existir”. Ques- tização do trágico e sem a recusa do irônico.
tão que só pode ser colocada por quem vive, Num dos primeiros e mais sólidos sonetos
a quem vive, e que Camus definiu como a da morte em língua portuguesa, D. Francis-
questão fundamental da filosofia. No sone- co Manuel de Melo (1608-1666), que por si-
to não há uma resposta clara; embora refi- nal esteve no Brasil, diz que viu a morte “an-
ra a vida como um “dom”, lembra o que há dar folgando / por um campo de vivos, que a
de negativo nela (sofrer, ter preocupações, não viam”. Carlos Newton Júnior vê a morte,
desgostos e esperanças vãs…) e concebe – e é ele que parece andar folgando com ela
só pode conceber – o positivo da não-vida ao longo dos cem sonetos que ironicamen-
(“pairando sob um nada absoluto”, “não te lhe atribui.
FICÇÃO

Infância: 3 atos

Edgard Telles Ribeiro


Escritor, diplomata aposentado, com 13 livros publicados pela Companhia das Letras, Editora Record e
Todavia Livros. Prêmios da ABL e do Pen Clube para Melhor Romance do Ano; duas vezes finalista
do Jabuti (segundo e terceiro lugares). Último romance publicado, O impostor (Todavia Livros).

Primeiro ato: Cinzano vizinho de assento. Na penumbra, o rosto dela


brilha tanto quanto as cores que me apresso
Aos quatro anos, afundado no banco a investigar. É alegre seu olhar.
traseiro do carro de meu pai, não sei muito As duas mãos presas ao encosto do ban-
bem para onde estou sendo levado. Sei que co, fico de pé e me concentro na janela tra-
é noite. O menino que almoçou em nossa seira do carro. Mas o prédio já desaparece
casa e brincou comigo até escurecer vai sen- e, com ele, as luzes coloridas. Em seu lugar,
tado a meu lado. Mas quem é, exatamen- instala-se uma conversa festiva – da qual sou
te, não sei. O filho de um amigo de meus excluído por completo.
pais, talvez. Ele não tira os olhos da jane- Acompanho o que vai sendo dito com di-
la. Eu, de tão pequeno, só vejo as luzes dos ficuldade. Logo deduzo que o menino sabe
postes passar. de algo. Algo que me escapa. E que não te-
O menino é mais velho do que eu. Não nho como imaginar, nem entender. Muito
muito, mas o suficiente para ter uma ascen- menos em um carro em movimento no in-
dência sobre minha pessoa. Ou para impor terior do qual me tornei irrelevante.
sua preferência por um de meus brinquedos – Nosso herói, por seu lado, não deixa seu
em detrimento de outros de que gosto mais. palco. E responde com desenvoltura a todas
Faz uma considerável diferença ter seis as perguntas que lhe são feitas.
anos, quando o ínfimo ser sentado a seu lado Quanto a mim, não tenho como lidar com
conta, por todo patrimônio, quatro. E essa di- a novidade. Pois ela não tem nome, nem fi-
ferença não tarda a dar o ar de sua graça: o gura em meu inventário de coisas conheci-
menino ergue um dedo para a noite e grita: das. Até aqui, ela nem era parte do que sei.
– Cin-za-no! Trata-se de uma intrusa.
Algo ele viu brilhando no alto de um pré- Ainda assim, juntando com vagar o que
dio. Mas o que será? No banco dianteiro, é dito, aproximo-me aos poucos do coração
meus pais se entreolham e sorriem. Minha do mistério. E acabo chegando lá: o meni-
mãe vai além: vira-se para trás e felicita meu no sabe ler. Leu, no alto do prédio, algo que
120 • Edgard Telles Ribeiro

se chama anúncio. É disso que todos falam olho para o alto do prédio e, sem pestane-
no carro. jar, proclamo:
Eu não sei ler. – Cinzano!
A rigor, e para meu desânimo, nem sei o Como antes, meus pais se entreolham.
que significa saber ler. Ignoro, igualmente, o Dessa vez, porém, nada dizem. Sorriem, mas
que a palavra cinzano poderá ter a ver com sem a euforia de antes. O carro se detém no
essa outra, que escuto a cada instante: anún- sinal, as formas e cores no alto do prédio per-
cio. Mais grave: nada sei sobre a relevância do manecem as mesmas. Não fui ouvido, dedu-
que ocorre. Até instantes atrás, um tal assunto zo. Encho de ar os pulmões e insisto:
simplesmente não fazia parte de minha vida. – CIN-ZA-NO!
Em meio à euforia materna e paterna, Mamãe suspira. E é resignada que se vira
no entanto, uma coisa parece certa: o mun- para trás. Seu olhar é a um tempo carinhoso
do que me cerca e protege implode a cada e impotente, na fronteira da tristeza. Perce-
segundo. Em seu lugar, predominam dúvi- bo que, no lugar de orgulho, ela sente pena.
das e incertezas. O que terá acontecido?
Pior: o mundo se desfaz apenas para mim. O dela é um mal-estar sem explicação. E
Para os demais, a vida não apenas continua, que eu não tenho como compartilhar. Só sei
como se enriquece a cada instante. Todos se que bate em mim de forma devastadora. Ma-
mantêm indiferentes a minhas dúvidas. Sinto mãe recorre a palavras que não consigo en-
um desânimo pesado, dominado pela tristeza. tender. Parece interessada em explicar algo.
A conversa, enquanto isso, prossegue cé- Mas sua fala soa como reconforto. No lugar
lere. Não podendo interrompê-la, ou me jun- de me aclamar, ela me consola.
tar a ela, acompanho-a assustado. Busco em Minha mãe... Longe de conquistá-la, aca-
vão brechas que me permitam algum tipo de bo de perdê-la de vez. As distâncias entre nós
acesso. Nem aos risos posso me juntar. Cada se tornam de repente intransponíveis. Sem
frase me leva a um impasse. E cada impasse que eu logre saber por quê. Não há dimen-
desemboca em um labirinto. De concreto, são maior do que essa distância.
um único fato: a glória alheia fere e magoa. É uma batalha desigual, essa que travo
Outra coisa também parece certa: já não por sua conquista. Pensar que, em algum mo-
sou a mesma pessoa. Sinto-me ainda menor mento – do qual só me recordo em sonhos –
do que já era. Posso, no máximo, chutar a ela foi toda minha. E saber que não haverá,
traseira do banco de papai. E é o que faço, pela vida afora, cinzano que dê jeito nisso...
com insistência. Sem que, para minha surpre- Nem que, cedendo ao apelo daquelas co-
sa, ele reclame. res, eu beba todas as garrafas disponíveis em
Nem tudo, no entanto, está perdido. Se todos os bares de cidades pelas quais venha
não sei ler, tenho memória. E, algumas noi- a passar ao longo dos anos.
tes depois, ela me socorre.
Descubro-me, uma vez mais, sentado no Segundo ato 2: A árvore
banco de trás de nosso carro – só que, ago-
ra, sozinho. À certa altura, registro que pas- A cena seguinte é breve mas lancinante.
samos pela arena de meu suplício. Inspirado, A exemplo da primeira, ela também se passa
I nfância : 3 atos •  121

em Berna, onde meu pai trabalha e nossa fa- bem por quê. O rosto vermelho, tomo o rumo
mília vive. Estou ao ar livre, em plena luz do da porta de casa. Não é longe, da janela de
dia, e faz muito frio. Não vejo adultos próxi- meu quarto observo essa árvore todos os
mos, talvez se mantenham à meia distância. dias – para lá se dirigem os cachorros da rua.
Meus pais certamente não se encontram, pa- Na primavera seguinte, papai me sus-
pai saiu, mamãe dorme, fui confiado à babá. penderá até o primeiro galho. E por ali fica-
O chão está recoberto de neve, vários rei eu, sem coragem de prosseguir ou retro-
meninos, quase todos mais velhos, fazem ceder. Papai menciona o canto dos pássaros,
bolas que atiram uns nos outros. Eu igual- eu só ouço os risos da garotada.
mente faço minhas bolas, minúsculas, que Complicada a vida aos quatro anos.
não atiro em ninguém. Mas estou contente
de ser parte de algo maior. E rio, feliz com Terceiro ato: A moleira
meus novos amigos. Até onde sei, moramos
todos nas redondezas. Alguns desses meni- Mais complicada ela fica aos cinco, quan-
nos até conheço de vista, frequentam meu do nasce minha irmã. “Hoje você vai conhe-
jardim de infância. cer sua irmãzinha...”, explica meu pai ao me
À certa altura, a brincadeira muda. Um instalar uma vez mais no banco traseiro de
dos garotos trepa na árvore, os demais olham. nosso fatídico Buick.
Eu acompanho a proeza com atenção, de Minha irmã. Quem será?
olho nos detalhes. Eis aí uma coisa que eu No quarto do hospital, quem vejo primeiro
talvez consiga fazer – ainda penso –, se pa- é mamãe, o rosto tão branco quanto os len-
pai me suspender um dia até o primeiro dos çóis, as paredes e o teto. Vejo também duas
galhos. grandes manchas sombrias debaixo de seus
Chegado ao alto, o menino diz algo que olhos azuis. Ela sorri para mim, mas o sorri-
não entendo. Soa como um aviso e todos se so mal se detém em meu rosto. Em seus bra-
afastam. Eu não me afasto. Ele grita. Conti- ços, embrulhada em uma trouxa, sou apre-
nuo sem ação, não falo a língua deles. Re- sentado à princesinha da casa.
cebo no rosto um jato quente. De espanto, Vou ter de me acostumar ao título, repe-
por pouco caio sentado na neve. Como to- tido para cada visitante. Um novo mistério
dos riem, sei que coisa boa não é. O líqui- nos une e nos separa.
do arde, além do mais, arranha minhas bo- Por mais que puxe por minhas lembran-
chechas congeladas. Enxugo meu rosto no ças, princesinha nunca fui. Da casa ou de lu-
verso da luva. gar algum. E o copo d’água que sempre levo
Decorrido um momento, as crianças se para meu quarto ao ir dormir é sumariamen-
calam, algumas parecem sem graça, um si- te cortado pela enfermeira que agora cuida
lêncio solene se impõe. Minha babá vem em da princesinha. E cuja jurisdição, pelo que
meu socorro. Ao pé da árvore a neve branca noto, se estende a mim também.
ficou amarelada. A babá me tira dali. Trata-se de Frau Binker, uma imponente
O que imagino parece ter acontecido. mulher de branco. E, comigo, ela só fala uma
Estou surpreso demais para chorar ou pro- língua incompreensível. Schwiezzerdutch. Em
testar. Mas me sinto humilhado e sei muito outro gesto inspirado, Frau Binker também
122 • Edgard Telles Ribeiro

apaga a luz de minha cabeceira, que costu- Eu não tenho moleira. Pode ser um bom
ma ficar acesa até eu adormecer. sinal. Ou não. Não está claro.
Esgoelo-me na escuridão como nunca me Mas tenho memória. E sei que não adian-
esgoelei até ali. Por pouco me surpreendo ta gritar CINZANO! Ou tentar evitar o mijo
com a dimensão de meu desespero e, reani- quente em meu rosto. Inútil, então, espe-
mado, berro ainda mais. Alarmado, meu pai rar que algum convidado leve a princesinha
irrompe pelo quarto adentro e acende a luz. para sua casa.
Por milagre ele tudo entende. De imedia- Na manhã seguinte, enquanto todos dor-
to, resgata meu copo e mantém a luz acesa. mem, boto meu casaco, as botas e, sem es-
Depois, enquadra a enfermeira com rispidez, quecer as luvas, abro a porta de entrada. E
o que, no lugar de me acalmar, me leva a so- saio de casa. Para onde, não sei. E isso nem
luçar ainda mais – atracado à minha água. parece importar. Só sei que já não posso fi-
Eu quero mais, eu preciso de muito mais, car. A essa certeza se limita meu horizonte.
minha sede é infinita e não se trata só dela. E, no momento, ela parece bastar.
Como aplacar o desamparo que me domina? Chegado à esquina, bem debaixo de uma
Minha mãe amamenta a princesinha. Meu árvore cujos galhos vergam sob o peso da
horror aumenta a cada gole. Faço festinha neve, vejo um pinho congelado. Tiro a luva
no rosto da figura, passeio meus dedos por para agarrá-lo com firmeza e atirá-lo na di-
sua cabeça. Aprendo uma palavra, que repito reção de minha casa. Em sinal de despedida.
sem entender: moleira. Ela vem cercada de O pinho, de repente aquecido, se desfaz por
cuidados e acompanhada de recomendações inteiro entre meus dedos: trata-se de um cocô
que não deixam dúvidas quanto às priorida- de cachorro. Revela-se pegajoso. Amolecido
des vigentes no reino: no topo da cabeça da por meus dedos, exala um tremendo fedor.
princesinha ninguém pode tocar. Continuo sem sorte.
Dessa moleira claramente depende a fe- Profundamente envergonhado, olho a
licidade geral. A minha, inclusive, por estra- meu redor. Para meu alívio, porém, nada se
nho que pareça. Daí que, à falta de uma ideia move por detrás das cortinas das casas vizi-
melhor, me associo aos cuidados de que ela nhas, ninguém me observa ou ri. Limpo a
é objeto. Cada visitante que se aproxima do mão energicamente na neve e logo a seco
berço, embalado em flores ou ursinhos de na calça. Depois, pé ante pé para não escor-
pelúcia, sons melodiosos e sorrisos enterne- regar e sofrer outro percalço, volto para casa.
cidos, passa pelo crivo de meu dedo em riste. O mundo não perde por esperar.
Refugo

Jeová Santana
Escritor e professor titular da UNEAL – Universidade Estadual de Alagoas.

A
onda que se ergueu do mar atingiu resolvi dar uma geral nas estantes. Três dias
uma altura descomunal e foi bater somente na primeira. Camadas de pó mi-
na varanda, desfeita em pequenos lenar. Há muito tempo sem diarista e nun-
cubos de gelo. Nem vou me dar ao traba- ca mais um aspirador. Trabalho lento, com
lho de contar mais essa para ninguém. Não máscara, luva, pano úmido. A renite alérgica
tenho mais com quem conversar. Nem pela agradece. Só assim posso enfrentar os áca-
internet. Todo mundo migrou para um apli- ros que se ostentam estrelados. Fico a ima-
cativo que privilegia a imagem. Essa opção ginar quantos repousam entre os mais velhi-
já vinha se delineando há um bom tempo, nhos. Sabemos que estes requerem o maior
com aquela famigerada mãozinha jogada cuidado. O peso dos anos, porém, não sig-
a torto e a direito. Só para testar o grau da nifica perda de cintilância, mesmo que deva
indiferença, às vezes metia um absurdo no tocá-los com a maior delicadeza. Posso até
meio da mensagem e não acontecia absolu- colocá-los num grupinho. Jogar fora, nunca.
tamente nada. Lasquei-me. Assim, pobre das Ainda bem que alguns têm costura, tão va-
minhas palavras, mesmo que venham acom- lorizada pelo escritor mais famoso de minha
panhadas de imagens fortíssimas como essa, terra. Sem costura, editora nenhuma publi-
da onda, ou a do cara, sem braços, que an- cava seus escritos. O bicho era brabo. Batia
dava de bicicleta, a cavalo, batia na mulher, na mesa e tudo.
na mãe, e ainda roubava frutas na feira, ou O primeiro da lista, à beira de chegar ao
a dos quatro urubus em cima de um tronco, centenário, As primaveras, Casimiro de Abreu,
a descerem o rio Mundaú abaixo, em feliz numa edição de 1921, ano em que meu pai
confabulância. Doido ou poeta, diziam-me. nasceu. Dois anos depois, A oração dos após-
Agora, nem isso. E olha que ironia: são tolos, Rui Barbosa. Em seguida, Yayá Garcia,
justamente os urubus que se multiplicaram, Machado de Assis, 1953; Uniforme de gala,
caindo em cima de tudo, inclusive nos hos- M. Cavalcante Proença, também de 1953;
pitais. Se derem bobeira, não deixam nem Prima Belinha, Ribeiro Couto, 1957; força da
esfriar. Pelo menos, para passar o tempo, idade, Simone de Beauvoir, 1961; A fonte,
124 • Jeová Santana

Charles Morgan, tradução de Mário Quinta- para colocar alguma ordem: a literatura, pro-
na, 1963. Por fim, Mar morto, Jorge Ama- sa ou poesia, na primeira; teorias, filosofias
do, 1965. Um deles, salvei numa cena sur- e afins, na segunda. Ainda faltam o monte
real. Passeava com um colega de curso pelas Everest das revistas e o batalhão das caixas
ruas da Liberdade quando vimos o monturo de papel. Numa, cartas de amigos e desa-
impressionante na calçada. Um homem ati- mores idos. Noutra, até provas do primário.
rava-os com pazadas precisas para uma car- Imagine! A severa dona Iolanda, se viva, tal-
roça desconjuntada, presa à indiferença de vez ficasse feliz se soubesse disso. A hora é
um rocinante pretíssimo e lefo de fome. O agora, já que não se sabe quando aquilo que
dono do sebo, para aumentar nosso queixo, um dia chamamos de normalidade voltará
passou a jogá-los, um a um, lá de dentro. ao normal. O trocadilho é infame, mas vale.
Até meu pai está entre as surpresas: en- Ainda bem que a nova síndica pôs ordem
contrei sua assinatura, datada de 26 de feve- nessa joça e enquadrou a turma do “escuto
reiro de 1956, num tal Hipnotismo, da coleção essa porra na altura que quiser”. Assim, en-
Ciências Herméticas e Psicologia Experimen- quanto mergulho na papelada, posso ouvir,
tal, sem autor, nona edição, publicado pela em paz, o “Réquiem in D minor”, do velho
O pensamento, São Paulo, em 1954. Minha Mozart. Não há música mais apropriada para
mãe acha que ele usou este livro para con- esses dias. Mas nem só de deprê vive meu
quistá-la. Camisa vermelhona, oclões escuros coração tropical. Às vezes, boto na agulha o
na cara, falando com o chiado carioca de- lendário e esquecido trio baiano, Os Tincoãs,
pois de uma temporada na Maravilhosa. Ela, cantando “Cordeiro de Nanã” ou “Acará”.
nem chite! Só rua abaixo, rua acima com as Nesta, o trecho falado cai como uma uva: “os
amigas. Mas meu avô, duro na queda, de- tempos mudaram, senhor, tudo está confu-
pois de preterir tantos pretendentes, baixou so. Já não se entende o tempo. (...) O mais
a guarda. Afinal, não era todo dia que apa- puro dos homens ainda é pura vaidade. Fala-
recia um mecânico de usina ganhando nada -se em peste e rumores de guerra. O mundo
menos que cinco contos. Na página 16, leio, tornou-se abafado. Dai-nos a resignação do
como proposta de exercício: “Fixar durante samba que perfuma o machado que o corta”.
um quarto de hora um ponto qualquer, por De vez em quando, dou uma sacada em
exemplo um ponto negro feito numa folha algumas sacadas e vejo, qual Macunaíma,
de papel, esforçando-se para olhar o mais coisas de sarapantar, tais como fortões e for-
tempo possível sem pestanejar.” Sei não, viu! tonas, agora confinados em seus cubículos.
Essa é a parte boa da arte de futucar o Deve estar sendo barra sem ninguém para
passado, ainda mais em meio aos livros. Den- contemplar seus volumes feitos à base de
tro deles um mundo paralelo: notas de com- bombas e silicones, a não ser meu olhar anô-
pra, senhas, recibos, bilhetes, prospectos, res- nimo, parceiro deste corpo que não é nem
tinhos de inseto, poemas manuscritos. Nestes, adiposo nem musculoso, e se basta com al-
alguns furores românticos movidos a cora- gumas pernadas semanais. Não é preciso di-
ção magoado & presença da agonia & voar zer que estou com saudade delas. É minha
das ilusões. Restam ainda três estantes, to- forma predileta para criar textos, tirar (e bo-
das abarrotadas, com duas fileiras. Aproveito tar) caraminholas no quengo.
R efugo •  125

No quesito alimentação até que estou mesmo lugar sem nada mover, e não lhe con-
indo bem, aceitando as regras do jogo, só vém ir ora para lá, ora para cá.” Essa refle-
botando a cara lá fora quando é para sacar xão parece ter sido escrita agora, mas é do
uns trocados da pindaíba ou quando a ge- filósofo grego Xenófanes de Colofão, qua-
ladeira vira uma igreja vazia. Falar nisso, foi trocentos e uns quebradinhos a.C., sobre
difícil, mas a turma do dízimo também dan- outro grego, o matemático Simplício. Olho
çou e vai ter que se contentar em enviá-lo para a rua sem um pé de pessoa. Descubro
on-line aos seus abastados, rotundos e pas- uma coloração intensa, dantes nunca vista,
tosos pastores. Sobrou para todo mundo. Va- na nesga de sol que toca no ipê roxo, o que
mos ver o que sairá de tudo isso. Quem sabe, se apaixona uma vez por ano.
lembrando o bardo português, esse bicho da Tinha tudo para estar macambúzio, a des-
terra tão pequeno toma jeito e percebe que tilar a tinta da melancolia neste meu cafofo,
pode ser mais que uma pecinha de reposi- até porque ainda há muita resistência e, de
ção, um mero bípede, sem plumas, acumu- vez em quando, as sirenes da polícia mistu-
lador de tranqueiras. Sem querer ser otimis- ram-se com as das ambulâncias. As autori-
ta e já sendo. dades ainda batem cabeças entre planilhas,
Há muito tempo faço biscates sem preci- prescrições e proscrições. Os noticiários, des-
sar que levante a bunda desta cadeira. Feliz- contada a batalha pela audiência, têm tido
mente, ainda há demanda para revisão, co- sua serventia. O clima é cada vez mais pró-
pidescagem, diagramação etc. Contudo, ver ximo daquilo que a literatura, sempre ela, já
tanto neguinho e branquinho trabalhando em nos antecipou. Basta lembrar Camus e sua
casa é a maior revelação. Tomara que, quan- dolorosa crônica sobre Oran. Entre nós, os
do serenar, os tubarões das empresas levem fatos não são ficção, mas têm tudo para vi-
isso em conta. Afinal, o trabalho faz mal à rar, um dia, matéria para outras narrativas.
saúde, como constataram os ingleses em uma Quem sabe, se estiver vivo, e não perder a
pesquisa. E aquele papo do quem cedo ma- tramontana, poderei dar meu testemunho,
druga só beneficia o dono da mão de obra. pelo viés da memória ou da fabulação, so-
A atmosfera desses dias nos induz a esse bre as alegrias e misérias desse mundo. Aqui
comportamento: “Sempre permanece no está um ínfimo esboço.
Petit Trianon – Doado pelo governo francês em 1923.
Sede da Academia Brasileira de Letras,
Av. Presidente Wilson, 203
Castelo – Rio de Janeiro – RJ
PATRONOS, FUNDADORES E MEMBROS EFETIVOS
DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
(Fundada em 20 de julho de 1897)
As sessões preparatórias para a criação da Academia Brasileira de Letras realizaram-se na sala de redação da
Revista Brasileira, fase III (1895-1899), sob a direção de José Veríssimo. Na primeira sessão, em 15 de dezembro
de 1896, foi aclamado presidente Machado de Assis. Outras sessões realizaram-se na redação da Revista, na
Travessa do Ouvidor, n.o 31, Rio de Janeiro. A primeira sessão plenária da Instituição realizou-se numa sala do
Pedagogium, na Rua do Passeio, em 20 de julho de 1897.
C a d e i r a P at r o n o s Fundadores Membros Efetivos
01 Adelino Fontoura Luís Murat Ana Maria Machado
02 Álvares de Azevedo Coelho Neto Tarcísio Padilha
03 Artur de Oliveira Filinto de Almeida Joaquim Falcão
04 Basílio da Gama Aluísio Azevedo Carlos Nejar
05 Bernardo Guimarães Raimundo Correia José Murilo de Carvalho
06 Casimiro de Abreu Teixeira de Melo Cicero Sandroni
07 Castro Alves Valentim Magalhães Carlos Diegues
08 Cláudio Manuel da Costa Alberto de Oliveira Cleonice Serôa da Motta Berardinelli
09 Domingos Gonçalves de Magalhães Magalhães de Azeredo Alberto da Costa e Silva
10 Evaristo da Veiga Rui Barbosa Rosiska Darcy de Oliveira
11 Fagundes Varela Lúcio de Mendonça Ignácio de Loyola Brandão
12 França Júnior Urbano Duarte Alfredo Bosi
13 Francisco Otaviano Visconde de Taunay Sergio Paulo Rouanet
14 Franklin Távora Clóvis Beviláqua Celso Lafer
15 Gonçalves Dias Olavo Bilac Marco Lucchesi
16 Gregório de Matos Araripe Júnior Lygia Fagundes Telles
17 Hipólito da Costa Sílvio Romero Affonso Arinos de Mello Franco
18 João Francisco Lisboa José Veríssimo Arnaldo Niskier
19 Joaquim Caetano Alcindo Guanabara Antonio Carlos Secchin
20 Joaquim Manuel de Macedo Salvador de Mendonça Murilo Melo Filho
21 Joaquim Serra José do Patrocínio Paulo Coelho
22 José Bonifácio, o Moço Medeiros e Albuquerque João Almino
23 José de Alencar Machado de Assis Antônio Torres
24 Júlio Ribeiro Garcia Redondo Geraldo Carneiro
25 Junqueira Freire Barão de Loreto Alberto Venancio Filho
26 Laurindo Rabelo Guimarães Passos Marcos Vinicios Vilaça
27 Maciel Monteiro Joaquim Nabuco Antonio Cicero
28 Manuel Antônio de Almeida Inglês de Sousa Domício Proença Filho
29 Martins Pena Artur Azevedo Geraldo Holanda Cavalcanti
30 Pardal Mallet Pedro Rabelo Nélida Piñon
31 Pedro Luís Luís Guimarães Júnior Merval Pereira
32 Araújo Porto-Alegre Carlos de Laet Zuenir Ventura
33 Raul Pompeia Domício da Gama Evanildo Bechara
34 Sousa Caldas J.M. Pereira da Silva Evaldo Cabral de Mello
35 Tavares Bastos Rodrigo Octavio Candido Mendes de Almeida
36 Teófilo Dias Afonso Celso Fernando Henrique Cardoso
37 Tomás Antônio Gonzaga Silva Ramos Arno Wehling
38 Tobias Barreto Graça Aranha José Sarney
39 F.A. de Varnhagen Oliveira Lima Marco Maciel
40 Visconde do Rio Branco Eduardo Prado Edmar Lisboa Bacha
C o mp o s t o em Frutiger Light 9,5/13,5 pt; C i ta ç õ e s , 9 / 1 2 pt

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