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VIM PARA FICAR

DEDICATÓRIA
Dedico o presente trabaho a três pessoas inesque­
cíveis que, de uma forma ou de outra, contribuíram
notavelmente para o meu progresso: Darras Noya (de
saudosa memória), Fabíola Abreu Carvalho e D. Hél-
der Câmara, Arcebispo de Recife. (1-A)
O TEMPO, Mário Linhares
A velhice de manso se aproxima,
Já vou galgando o píncaro da vida
E, olhando para trás, vejo de cima
Como foi tão penosa essa subida..
O tempo as minhas ilusões dizima
E tudo leva de vencida;
Mas o sonho, a toda hora, reanima
E a fé da esperança consolida.
Envelhecer sorrindo, com a consciência
Tranqüila de quem nunca na existência
Fez mal — é a maior glória para mim.
Por que agitar-nos em blasfemo grito
Se, de alma atenta, às vozes do Infinito
Todos marchamos para o mesmo fim?

(Extraído de “A Influência do Nordeste nas Letras


Brasileiras”, Luiz Pinto, 1961, pp. 146-147).
Quem passou pela vida em branca nuvem,
E em plácido repouso adormeceu;
Quem não sentiu o frio da desgraça,
Quem passou pela vida e não sofreu;
Foi espectro de homem — não foi homem,
Só passou pela vida — não viveu.
(Francisco Otaviano in “Memórias para a História da
Academia de São Paulo” — Spencer Vampré — Vol. I
— 2a ed. — 1977 — MEC).
AGRADECIMENTO
— A Wilson de Araújo Melo, meu filho, que me
orientou na ordenação do material coligido por mim
ao longo dos anos, a quem devo a revisão dos origi­
nais desta obra.
— Dr. Hélio Rocha Cabral de Vasconcelos, meu
ex-aluno do Ginásio Santanense e atualmente Desem­
bargador do Tribunal de Justiça de Alagoas.
— Dona Alayde Bezerra Brandão, meu ex-chefe
da antiga Previdência Social, no MTPS — 109 andar, a
quem devo minha formação na F.N.D.
— Dr. Roseny Leite Coutinho, meu ex-colega na
F.N.D. e atualmente Cel. Reformado do Exército Bra­
sileiro.
— Dr. Chrockatt de Sá, ex-Procurador da Justiça
do Trabalho, a quem devo meu ingresso como profes­
sor no Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial
(SENAC).
— Dr. Agripino Nazareth, ex-Procurador do Tra­
balho, a quem devo meu ingresso no Jornalismo (Ga-
zeta de Notícias).
— Dra. Lourdes Farias, minha colega Procuradora
da Justiça do Trabalho, em Belo-Horizonte, com quem
privei por mais de uma década.
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LEMBRANÇAS DE CARINHO E AFETO
— A Meus Pais: Manuel de Aquino Melo e Alsina
de Araújo Melo (de saudosa memória).
— A Meus Irmãos: Flávio, Aderbal, Hipólito, Ma­
ria Augusta, João Baptista (Tenente da Aeronáutica) e
José Melo (homenagem póstuma) e Darci de Araújo
Melo (major reformado do Exército, ex-pracinha e,
atualmente, fazendeiro em nossa querida Santana do
Ipanema).
— Aos Amigos: Agnelo Ferreira de Araújo, meu
ex-aluno do Ginásio Santanense e, atualmente, Presi­
dente da Associação Federal de Polícia aqui no Rio, e
Albino Ferreira de Araújo, seu irmão, e meu ex-aluno
e oficial reformado da Marinha.
— Meus Primos: Margarida, Enéas, Norma, Rosal-
vo, Lêda, Núbia, Rubens, Carlos (falecido), Vera, Ân­
gela, Maria do Perpétuo Socorro, Rosalva (filhos de
nosso tio Rosalvo e Rita Murta de Araújo); Floracy,
Laura, Nair, Manuel, Dulce (filhos de nosso tio Bene­
dito Melo); Marinalva Lins (falecida), filha de Benigno
Lins e Laura de Aquino Melo: ele já falecido e ela já
com 90 anos completados agora em junho do corrente
ano; Amália (Santinha), Jacy (Maherbal), Aracy, Mar-
celina.
— Primos e cunhados: Francisco (ex-pracinha e
capitão do Exército, de saudosa memória), José, Igná-
cia, Laura, Carmen, Celina, Renato, Menita (de saudosa
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iiinniririii), Verinha e Irene — filhos de Zacarias e Etel-
vlna, as duas últimas de Zacarias e Izabel Assumpção
de Melo.
— Meus Sobrinhos: Norma, Núbia, Nagib (filhos
do mano Flávio e Matilde, de saudosa memória);
Marcus, Hamilton, Wilson, Iracy, Núbia, Maria de
Lourdes, Goret (filhos do mano Hipólito e Isaura, de
saudosa memória); Ben-Hur e Maria da Conceição
(filhos de Pancrácio Rocha e Maria Augusta, ambos
falecidos); Tânia, Rubson, Ben-Hur, Sócrates, Rosân­
gela e Lígia (filhos do mano Darci e Maria); Roberto,
Ronaldo, João e Rogério (filhos do mano João e Igná-
cia, de saudosa memória).
— Meus Netos: Luís Augusto, Júlio César e Marcos
Vinícius (filhos de Wilson e Vilma); Mônica e Marga-
reth (filhas de Sérgio e Maria Elizabeth); Renata e
Roberta (filhas de José Carlos e Lúcia).

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MENSAGEM
"Há certas coisas que não se aprendem rapida­
mente, e pelas quais temos de pagar caro com a nossa
única moeda: o tempo. São as coisas mais simples e,
como um homem leva a vida inteira para as aprender,
o pouco de novo que cada homem tira da vida é muito
caro e é a única herança que tem para deixar” (Ex­
traído de “Death in Afternoon”, do livro “Papá He-
mingway” de A. E. Hotchner, 1955-1956).
“Para ele (Hemingway), disse A. E. Hotchner, só
havia uma maneira de tratar as coisas: dizer toda a
verdade, sem omitir fosse o que fosse, contar ao leitor
o que tenha realmente acontecido, o êxtase e a dor, o
remorso e o estado do tempo; e, com alguma sorte, o
leitor encontrará o caminho para o fundo da questão”.
As páginas que se vão ler são fruto do esforço de
minha parte em querer tomar conhecidos de todos os
fatos relevantes de minha existência.
Não é fácil, em assunto dessa natureza, registrar
os acontecimentos com absoluta fidelidade, ainda mais
que alguns deles podem causar a outrem vexame ou
desagrado.
É meu propósito não fugir à verdade, orientação
que sempre mantive em toda a vida.
Assim, este relato singelo conterá momentos ale­
gres e momentos tristes, realizações e sacrifícios, exem-
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pios de grandeza e de pequenez moral, mas será, aci­
ma de tudo — pelo menos, é o que me proponho —
um relato verdadeiro, calcado numa caminhada de
mais de meio século por essa estrada espinhosa, agres­
te e enriquecedora, a estrada que, vontade de Deus,
me coube trilhar...

U
APRESENTAÇÃO
Ao escrever o presente livro, tive em mira legar
aos parentes, aos amigos e ao leitor em geral, um re­
trato fiel do que foi a minha vida e, portanto, a luta
que travei para alcançar a posição que ocupo nos dias
que correm.
Foi uma luta, como se verá, árdua e espinhosa.
Somente a duras penas é que pude "chegar ao topo
da montanha.”
Devo muito a Deus, NOSSO PAI, a algumas pes­
soas que me estenderam a mão em determinados pon­
tos da penosa caminhada, e a mim próprio, pois ja­
mais recuei diante dos obstáculos, sempre alimentado
por uma forte dose de resignação, de pertinácia e de
coragem.
Minha trajetória, de certa forma, confirma as pa­
lavras do notável Euclides da Cunha: “O sertanejo é,
antes de tudo, um forte”.
Rio, 8 de outubro de 1981.
Floro de Araújo Melo

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CAPÍTULO I
MEUS ANTEPASSADOS E MEUS PAIS
“Os povos têm dois jazigos de relíquias: um no
espaço, o cemitério; o outro no tempo, a tradição.
O espaço é precário e tudo que tem nele assento pe­
rece; o tempo é perene e eterniza o que recolhe” —
Sílvio Romero.
Nem sempre é possível contar com fontes escritas,
e a solução, nesses casos, é recorrer à tradição oral.
Poi o que fiz para reconstituir o passado de minha fa­
mília. Vali-me do precioso depoimento de minha tia
Laura de Aquino Melo, que dia 19-06-81 fez 90 anos e
vive em Maceió. Rememorando a pouco e pouco o pas­
sado, disse-me o seguinte:
a) que meus bisavós paternos foram João Soares
de Melo e Maria Luísa Soares de Melo;
b) que meus avós paternos foram Francisco Ro-
zendo Soares de Melo e Laura de Aquino Melo;
c) que meus bisavós matemos foram Methódio
Rodrigues de Araújo Gaia e Virgolina de Araújo Gaia;
d) que meus avós maternos foram Enéas Augus­
to Rodrigues de Araújo e Maria Joaquina de Araújo.
Reza a tradição que meus avós paternos eram ri­
cos fazendeiros, respeitados e estimados por todos da
região de minha querida Santana do Ipanema, interior
de Alagoas. Eram donos de uma propriedade rural de
grande extensão chamada simplesmente de “Aldeia”.
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Ao longo do tempo, a “Aldeia” vem passando de mão
em mão para os sucessivos herdeiros, mantendo-se vi­
va a chama da família,
Se meus avós paternos possuíam grandes posses,
meus avós maternos destacaram-se no campo das Le­
tras e da Política. Minha avó materna, Maria Joaquina
de Araújo, dedicou toda a sua vida ao ensino. Conhe­
cia-a já com idade avançada, professora aposentada de
minha cidade natal, paciente, bondosa e amiga, mas
enérgica quando necessário.
Entretanto, de todos os meus antepassados, o que
mais se destacou como figura pública foi meu avô
materno Enéas Augusto Rodrigues. Foi pioneiro no Ma­
gistério Primário em Santana do Ipanema, chefe polí­
tico, deputado e senador, sempre reeleito, ocupando
por dezoito vezes estes cargos. Se não morresse aos
56 anos de idade, provavelmente se faria governador
do Estado.
Seguindo o nobre exemplo de meus avós, de acen-
drado amor à terra natal, meus pais, Manuel de Aqui-
no Melo e Alsina de Araújo Melo, sempre a amaram,
nela viveram e nela morreram.
Meu irmão Darci de Araújo Melo, expedicionário
da FEB e major reformado de nosso glorioso Exército,
de há muito vem residindo na mesma casa onde todos
nascemos e nos criamos. Essa casa de taipa, situada
no centro da cidade, é para nós uma relíquia. Por
pouco, não foi vendida, quando o “velho” ainda era
vivo. É nela que costumo descansar quando posso pas­
sar dias no sertão, sentindo espiritualmente a presença
de meus antepassados. Reporto-me à infância, e quan­
tos fatos me acorrem à mente que julgava totalmente
esquecidos!
Meus pais tiveram dezesseis filhos. Só conheci oi­
to: Flávio, Hipólito, Aderbal, Maria Augusta, Darci,
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João, José e eu, naturalmente. Hoje, apenas dois ain­
da são vivos: eu e Darci.
Falar de meu pal não é difícil para qualquer san-
tanense de bem. Durante toda a sua existência de 87
anos, jamais deixou a cidade, onde sempre trabalhou
com honra e dedicação. Era um homem extremamente
correto e estimado por todos. Exerceu, como os ante­
passados, várias funções públicas, tais como coletor
federal, intendente, prefeito, fazendeiro, negociante.
Cultivou por décadas a agricultura e a pecuária na tro-
dicional “Aldeia”.
Há muitas histórias a respeito de meu pai, umas
verdadeiras, outras fantasiosas. Uma me ficou gravada
na memória, pois fui dela testemunha. Estávamos em
Santana, em nossa casa, quando chegou o vaqueiro Pe­
dro Bento. Vinha da “Aldeia” e trazia uma triste no­
tícia: uma das vacas tinha sido mordida por cobra,
morrendo pouco depois. Não era a primeira vez que
Pedro Bento nos trazia tal novidade e, coincidência ou
não, as cobras só mordiam o gado quando meu pai
não se encontrava na fazenda. O “velho” ficou em si­
lêncio por alguns momentos. Depois dirigiu-se ao va­
queiro:
— Ora, seu Bento, eu quero o couro da vaca, me
traga o couro da pretinha!
Pedro Bento ficou inteiramente desconcertado.
Nunca mais tive notícia da repetição do fato...
A segunda história é contada pelos amigos mais
chegados e dela não posso dar certeza. Certa vez, o
velho Manuel precisou de dinheiro para obras na “Al­
deia”. Foi ao banco, sendo recebido com todas as hon­
ras. Explicou rapidamente a situação, e logo seu pedi­
do foi aprovado. Faltava apenas uma formalidade:
— Sr. Manuel, assine este recibo.
— Recibo? Para que recibo?
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— O senhor entende, é uma exigência do banco.
Precisamos comprovar que o senhor recebeu o di­
nheiro ...
— E não basta a minha palavra de homem de
bem? Pois fique com o seu dinheiro!
Virou as costas ao gerente e nunca mais voltou...
Façamos o perfil de minha mãe, Alsina de Araújo,
de quem já falamos. Moça inteligente, simpática e ca­
tólica fervorosa, tinha um coração generoso. Mantinha
uma espécie de serviço de assistência social, amparan­
do as famílias pobres de Santana. Às sextas-feiras, dis­
tribuía gêneros alimentícios e remédios, além de so­
correr com dinheiro as pessoas vítimas de problemas
mais urgentes. A não ser quando se hospedava em casa
de meu tio Rosalvo, em Maceió, jamais se afastava de
seu torrão natal.
Parece que a estou vendo a praticar a caridade,
sempre com um sorriso bondoso nos lábios. Muita
gente batia no portão, por trás da casa, para falar com
ela e pedir-lhe uma vasilha de farinha, de açúcar, etc.
Ela nunca dizia não a quem quer que fosse. Pratica­
mente sustentava grande parte dos pobres da cidade.
Meu pai, muitas vezes com dificuldades financeiras,
não aprovava: muitas discussões aconteceram por cau­
sa disso, ele lembrando as dificuldades para manter a
propriedade rural, ela respondendo com os deveres cris­
tãos de amor e de solidariedade.
Quando de seu falecimento, eu me encontrava no
Rio de Janeiro, e não pude estar presente para o últi­
mo adeus. Entretanto, reza a crônica da cidade que
o enterro foi uma das cerimônias públicas mais con­
corridas de todos os tempos. Além dos parentes e dos
amigos íntimos, uma procissão interminável de pes­
soas humildes — os seus “filhos” sem voz e sem teto
— ali estavam, comovidos até as lágrimas, para pedir
a bênção à protetora de tantos anos...
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Assim, com muito esforço, consegui reconstituir a
árvore genealógica de minha família, cujo esquema se­
ria mais ou menos este:

1. Bisavós Paternos: 1. Bisavós Maternos:


João Soares de Melo Methódio Rodrigues A. Gaia
Maria Luísa S. Melo Virgolina A. de Araújo Gaia
2. Avós Paternos: 2. Avós Maternos:
Francisco Rezende S. de Melo Enéas Augusto Rodrigues
Laura de Aquino Melo Araújo
Maria Joaquina de Araújo
3. Meus Pais: 3. Meus T ios:
Manuel de Aquino Melo Rosalvo Araújo (falecido)
Alsina de Araújo Melo Laura de Aquino Melo
(falecidos) Etelvina de Aquino Melo
Benedito Melo
falecidos)
Maria Jorge de Melo (mãe
Yáyá)

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CAPÍTULO II
MINHA INFÂNCIA
Nasci na tranqüila madrugada de 11 de março de
1914. O mu»do estava conflagrado: era a Primeira
Guerra Mundial, que duraria até 1918. Mamãe é quem
conta:
— Você não era uma criança muito sadia. Apare­
cera em seu pescoço um tumor, felizmente, benigno,
de origem sifilítica. Devido a isso, era freqüente a sín­
cope que o prostrava no leito.
Naqueles idos distantes, era raro aparecer um mé­
dico. O jeito foi apelar para curandeiros, que utiliza­
vam mezinhas, rezas e até garrafadas, cuja aplicação,
se não curasse, matava de uma vez! Mamãe, devota de
Nossa Senhora de Santana, fazia suas promessas e per­
manecia horas ajoelhada diante do oratório que pos­
suíamos em nossa casa e que ficava num quarto bem
ornado de flores trazidas pelas comadres-rezadeiras.
Ali tinham lugar ladainhas intermináveis, acompa­
nhadas não só pela família como também por pessoas
amigas que nos visitavam. O “velho”, meio a contra­
gosto, tolerava aquela romaria.
Duas rezadeiras, muito conhecidas na cidade, fize­
ram parte de meu mundo infantil. Uma morava nos
fundos de nossa casa, era só abrir o portão e cha­
má-la :
— Isabé Brincão!
A outra instalara-se em seu casebre lá na parte
alta da cidade, o Monumento, e, devido a trazer sem-
pre a cabeça envolvida por um pano, era conhecida por
“Maria Cabeça Amarrada”. Vivia na igreja, invariavel­
mente com um ramo na mão. Rezava e benzia-se tan­
to que até dava agonia na gente. Essas duas não me
deixavam sossegar, porque me queriam como a um
filho. Mais tarde, já crescidinho, dei-lhes imenso tra­
balho.
Peralta e arisco, vivia em permanente conflito com
outros garotos da mesma idade, e o cenário de nossas
lutas ficava próximo às casas delas. Cá embaixo, de­
fronte à casa da Brincão, existia um pequeno lajedo,
onde eu me entrincheirava e, utilizando-me de pedras,
revidava o ataque de meus desafetos; e a coitada da
Brincão a gritar, pois seu telhado não suportava o ro­
jão dos projéteis que sobre ele caíam... e, lá em ci­
ma, a Maria Cabeça Amarrada não tinha sossego: in­
vadíamos a toda hora o seu cercado, à cata de frutas
que ela cultiva com tanto cuidado, jaboti, laranja, man­
ga, etc. E não era só isso: ao pular a frágil cerca, mui­
tas vezes, as derrubávamos, e os porcos e galinhas
ganhavam a liberdade...
Os vizinhos viviam aterrorizados com os gritos da
Maria — e os nomes, e as pragas que ela nos rogava!?
Meus pais, não sabendo como controlar-me, apelavam
para toda sorte de castigos e de bolos de tamanco nas
mãos já inchadas e doridas. Muitas das vezes, as re­
clamações eram infundadas, mas eu apanhava do mes­
mo jeito. Um belo dia — sempre acontece um belo dia
na vida da gente — estava eu na sala de visitas ao
lado de meu pai quando a “Cabeça Amarrada” en­
trou furiosa, não me viu e “largou o verbo”, reclaman­
do de mim em altos brados. Meu pai, muito paciente,
queria dizer-lhe que não podia ser eu dessa vez, pois
estava sentado do outro lado da sala, mas ela não lhe
deu tempo, saindo adoidamente assim que concluiu o
“sermão”.
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Desde esse dia, meus pais não acreditaram mais
em reclamações: era outro que fazia a traquinagem e
queria pôr a culpa em mim. Diante disso, fui à forra,
infernizando a vida de meus inimigos mirins e pondo
em polvorosa as redondezas, assumindo a liderança in­
contestada do grupo dos moleques do bairro.
Posso dizer que dei trabalho a meus pais, e desde
o início! É novamente minha mãe quem relata:
— Numa das síncopes de que era acometido, você
demorou tanto a vir a si que mandamos fazer o caixão
e tratamos o enterro. A cidade, comovida, tomou co­
nhecimento do fato; eu chorava e chorava e chorava,
acompanhada pelo coro das comadres. Você foi colo­
cado no caixão, bem no centro da sala. A casa encheu-
se de crianças e de adultos: uns choravam, outros re­
zavam, e todos elevavam seus pensamentos para Deüs.
A narrativa prossegue:
— Aproximava-se a hora de conduzir o anjinho à
sua última morada. Então fez-se o milagre: você des­
pertou daquele sono tão longo, assustando e comoven­
do a todos. Uma só voz se fez ouvir: “Ele está vivo!”.
E, entre sorrisos e vivas a Nossa Senhora de Santana,
você foi tirado do caixão e colocado no berço, num
corre-corre que serviu para comentários em toda a ci­
dade por muitas semanas!
Minha maior travessura talvez tenha sido a perse­
guição de um gato. Ocorreu mais ou menos o seguin­
te: avistando um belo gato, resolvi pegá-lo para mim e
pus-me em seu encalço. Depois de atravessar ruas, vie­
las e cercados, o bichano penetrou num bueiro. Era
sujo, escuro e aterrador, embora não muito comprido,
terminando a cerca de vinte metros do rio Ipanema.
Alguém me viu entrar, atrás do gato, e deu o alarma.
Muita gente foi mobilizada e, tanto na entrada como
na saída, havia pessoas de guarda para ver por onde
eu sairia. Acontece que saí pelo mesmo lado por onde
U
entrei ,todo sujo e rasgado, e como dei a volta, nin­
guém sabe...
As brincadeiras de meu tempo de menino eram
primitivas e rudes. Mas que fazer, se não tínhamos
brinquedos elétricos nem diversões sofisticadas? Con­
tudo, pensando bem, éramos felizes, pois vivíamos num
mundo de sonhos e de ilusões, construindo castelos,
criando seres imaginários, inventando mil aventuras. A
luz da cidade vinha de um velho motor de uma em­
presa que jamais pensou em melhoramentos. À meia-
noite menos quinze minutos, ela emitia três sinais,
anunciando que, às 24 horas, desligaria. Daí até o ama­
nhecer ficávamos nas trevas ou, se fosse preciso, acen­
díamos uma vela. Tudo era silêncio e escuridão.
Durante o dia, nós, os meninos da cidade, ganhá­
vamos o mato à cata de passarinhos, armados de ati-
radeira. Brincávamos também de “pegar cabras de
Lampião”. Por esse tempo, o cangaço dominava o ser­
tão de vários Estados. Adotávamos a mesma tática
dos grupos de Lampião e de Antônio Silvino. Organi­
závamo-nos e atacávamos de surpresa uns aos outros,
e o resultado era chegarmos a casa com a cabeça que­
brada, a perna sangrando, o nariz arranhado. Nossas
armas eram de madeira, de galhos das árvores do ma­
to. Nossos bornais serviam para levar pedras e até
alimentos, que comíamos durante as longas caminha­
das pelas redondezas da cidade.
À noite, brincávamos de esconde-esconde, tendo à
mão um tição aceso com que iluminávamos o matagal
do Monumento. Quando os grupos se encontravam, a
batalha recomeçava e a luta era renhida: de parte a
parte havia feridos, choro e arrependimento. Foi nu­
ma dessas investidas que o mundo pegou fogo. O grupo
de “tio Pompo” era contra nõs.
Meu irmão Darci foi queimado na perna, e a coisa
engrossou. Fomos à carga, numa luta de vida ou de
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morte. Vingamo-nos deles, mas “tio Pompo” armou-
me uma cilada. Foi logo cedo, quando eu saía de casa,
pelos fundos. Recebi uma série de pedradas que, feliz­
mente, não me machucaram muito. Escondido atrás
de uma pedreira, para onde recuara, passei ao ataque
e consegui atingi-lo, quase a destelhar a casa que lhe
servia de abrigo. Com bandeira branca, veio até mim
e, para alívio da vizinhança, selamos um pacto de não-
agressão.
Outra de nossas diversões favoritas eram as corri­
das em carros de rodas de madeira ladeira abaixo, uti­
lizando as calçadas e pondo em risco a segurança dos
transeuntes. Minha vida era fabricar e vender esses
carrinhos. Comprava — ou apanhava de graça — a
madeira do velho marceneiro José Vermelho, que gos­
tava muito de mim e me ajudava. Apreciava meu tra­
balho manual e me auxiliava em alguma dificuldade.
Nossa sociedade, ainda patriarcal, discriminava as
meninas. Elas brincavam com bonecas de pano, reza­
vam muito, freqüentavam a igreja e dormiam cedo.
Para elas, a vida do interior devia ser arrastada e acen-
tuadamente monótona...
Chegara a hora de freqüentar a escola. Conheci
então a professora Zefínha Leite, tida por bastante
enérgica e excelente disciplinadora, enfim, a mais in­
dicada para lidar com garotos levados como eu. O cas­
tigo fazia parte de sua didática, a palmatória funcio­
nava mesmo!
A escola ficava perto do rio Ipanema e, atrás dela,
havia o mato, onde os garotos satisfaziam suas neces­
sidades, uma vez que só as meninas tinham um ba­
nheiro à sua disposição. Sentávamo-nos separados por
sexo. Quando um dos meninos precisava “ir lá fora”,
apanhava uma pedrinha, que a professora deixava so­
bre sua mesa. Ora, nem sempre ela podia controlar a
saída e a entrada de todos nós. Assim, combinamos
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que cada um traria de casa uma pedrinha e, sem que
ela notasse, saíamos em pequenos grupos. Fora, podía­
mos ver o rio em suas enchentes periódicas, caçar pas­
sarinhos e brincar. Até banho se tomava, com muito
cuidado, é claro. Só raramente é que a professora se
dava ao trabalho de olhar pelo buraco do portão...
Às sextas-feiras, era dia da tabuada cantada. Uma
vez, descuidamo-nos, a maioria dos garotos estava no
mato. A mestra percebeu que muitos não estavam pre­
sentes e, contra seus hábitos, iniciou a chamada. Cada
um que chegava era separado dos outros, e todos os
infratores entraram na palmatória. Para completar, os
que erraram na tabuada apanharam novamente. Nos­
sos pais vibraram com o corretivo.
Aos onze anos, fui matriculado na escola mais adi­
antada do professor Zezinho Limeira. Era enérgico
também, mas muito competente e estimado por todos.
Tinha uma perna mais curta do que a outra e, por
isso, usava muleta. É incontável o número de adoles­
centes que passaram por suas mãos.
A alguns dos leitores causará espécie meu nome
de batismo: Floro. Vamos explicar-lhe rapidamente a
origem. Trata-se de uma homenagem a Floro Barto-
lomeu da Costa que, médico e mineralogista baiano,
fora a Juazeiro, no Ceará, estudar as potencialidades
da região. Ali conheceu o Padre Cícero Romão Batista,
figura venerada pelos nordestinos, tido por santo e
fazedor de milagres. Floro ficou ao lado do sacerdote,
assistindo-o e orientando-o. Homem de rara coragem,
tornou-se chefe político temido e respeitado, influen­
ciando o Padre Cícero e muito lucrando com o pres­
tígio do beato cearense.
Sua justiça fez época no sertão do Cariri: manda­
va liquidar sumariamente ladrões de cavalo e bandidos
de um modo geral.
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CAPÍTULO III
MINHA ADOLESCÊNCIA
Terminara com grande aproveitamento o Curso
Primário. Que rumo tomar? Meu pai achou por bem
encaminhar-me à Escola de Aprendizes de Marinheiro,
localizada na capital do Estado, Maceió. Meu entusias­
mo era grande: as fotos estampadas em revistas da
época me encheram os ohos. Eu queria pertencer à
nossa gloriosa Marinha! As imagens dos vistosos uni­
formes e os belos cenários da propaganda — tendo o
mar como pano de fundo — agiram em meu ser como
a semente plantada em terra fértil. Eu fervia de sonho
e de desejo...
Havia, contudo, o reverso da medalha. Dizia-se a
boca pequena que a Marinha era o destino de todos os
rapazes de comportamento incontrolável. Em outras
palavras: em vez de encaminhar para uma carreira glo­
riosa, a Marinha servia como uma espécie de “colônia
correcional”. Por aí, vê-se o que me aguardava!
Minha avó materna, Maria Joaquina de Araújo, re­
sidente em Maceió, prontificou-se a conduzir-me à ca­
pital do Estado e a encaminhar-me... eu mal comple­
tara doze anos. Era um garoto sadio, esperto e dese­
joso de desbravar um mundo novo, ampliando os ho­
rizontes de quem vivia numa cidadezinha do interior,
em pleno sertão alagoano.
Chegara a hora do adeus. Para trás, ficariam anos
e anos de folguedos e de descobertas maravilhosas de
uma infância livre e feliz. As lágrimas vieram-me aos
olhos enquanto o caminhão, em cuja boleia viajávamos,
se afastava de minha adorada Santana. Que aperto no
coração! Mal sabia eu que, muito mais do que uma
despedida de minha cidade natal, estava eu deixando
para trás um mundo de sonhos e de alegrias e ingres­
sando num outro, mais escuro, mais espinhoso e muito
mais cruel.
No ano anterior à minha partida, nascia meu ma­
no João Batista, com quem, por muitas e muitas ve­
zes, meu caminho iria cruzar daí para a frente. Ao dei­
xar a terra natal, via nele uma espécie de meu substi­
tuto natural nas caçadas aos passarinhos, nas brigas
com os bandos adversários, nas mil travessuras das
quais, por tantos anos, eu fora o personagem principal.
E, realmente, pelo que sei, o João não me decepcionou
— que o digam os moradores da cidade, cujos telhados
e cercas conheceram também a sua fúria!
A viagem foi extremamente cansativa. Fomos de
caminhão até Palmeira dos índios, ponto terminal da
Estrada de Ferro. Não havia asfalto, a poeira era su­
focante, levamos quase um dia inteiro ao sabor de bu­
racos e de depressões medonhas do terreno. Ao atin­
gir o destino, ninguém tinha forças para embarcar. Ti­
vemos que pernoitar no hotel, ou melhor, numa esta­
lagem sem conforto e sem muita higiene.
O trem partia de madrugada. Saímos do “hotel”
sonolentos e com muito cuidado, devido aos buracos
das ruas e à má iluminação da cidade. Eu, entretanto,
exultava: garoto do sertão, tudo para mim era novi­
dade e descoberta. Imagine o leitor que jamais ouvira
um apito de trem! Com grande estardalhaço, a máqui­
na partiu. Levamos horas intermináveis sentados na­
queles duros bancos de madeira, ouvindo os ruídos rit­
mados das rodas em contacto com os trilhos desgasta­
dos pelo tempo de uso. Para quebrar a monotonia, eu
29
olhava pela janela e divisava a paisagem que ia fican­
do para trás, as serras, as casas das cidades por onde
o trem passava, as paradas ao longo da estrada e, nes­
sas, uma imagem triste que me ficou para sempre na
memória: crianças sujas e maltrapilhas que pediam
moedas ou vendiam banana, manga, jaca, etc., tudo
num vozerio que mais parecia uma dolorosa e sofrida
ladainha. Ah, meu Nordeste querido, quando tais ce­
nas deixarão de acontecer em seu seio?! Minha avó, já
conhecedora da melancólica procissão, nem sequer
abria a janela, sempre a segurar-me pelo braço. Feliz­
mente, a demora era pequena, o trem apitava estriden­
te e altivo e se punha em marcha.
Finalmente, Maceió! Pode o leitor imaginar o que
representa, para um menino do interior, o primeiro
contacto com a capital? Parecia-me estar num outro
mundo, talvez num outro planeta. Não conhecia o
trem, o bonde, os veículos motorizados em grande mo­
vimentação, a fartura do comércio, a pressa das pes­
soas, num vaivém interminável e nervoso, os altos edi­
fícios públicos, a praia... tudo era diferente, tudo era
maravilhosamente diferente!
À proporção que o automóvel de meu tio ia rodan­
do pela cidade, eu ia descobrindo e fixando em minha
memória juvenil, campo fértil para o sonho e para a
fantasia, mil imagens que me pareciam compor um
quadro inesquecível.
No dia seguinte, meu tio procurou-me para comu­
nicar-me seu desejo de empregar-me na loja de ferra­
gens que possuía.
— Mas, e a Marinha?
— Que Marinha, menino! Lá você não terá futuro,
apenas maus tratos. Nunca ouviu falar que para lá são
encaminhados os desordeiros, os moleques sem corre­
ção? Aqui você estará entre amigos e terá uma car-
30
reira promissora no comércio. Hoje mesmo escreverei
a seu pai, está bem?
Sua esposa, pessoa culta e generosa e minha avó
concordaram com ele e, com olhares bondosos, espera­
vam que eu dissesse sim.
Por momentos, fiquei atônito e sem fala. Então
aquele sonho tão acalentado chegara ao fim? As lágri­
mas vieram-me aos olhos, o coração pulsou mais forte,
as idéias embaralharam-se em meu cécebro. Estava
confuso, não sabia se estava sendo conduzido no cami­
nho certo. Pobre menino de doze anos, longe dos pais,
sozinho numa terra estranha, eu não sabia como agir.
Senti-me como o escritor pernambucano Ulisses
Lins de Albuquerque ao deixar seu torrão natal: “Me­
nino de treze anos incompletos, senti-me torturado an­
te a revelação da minha amarga realidade: deixar a
minha terra natal, onde nascera e vivera até então,
afastando-me assim do “meu mundo”, onde tudo para
mim era poesia e encanto... tudo iria deixar dali por
diante para morar na cidade-grande, capital de meu Es­
tado, como um pequeno índio arrancado da caatinga"
— “Um Sertanejo e o Sertão”, pp. 4-5.
Houve a concordância de meus pais, e iniciei-me no
comércio de louças e ferragens de meu tio. Era um
trabalhar ininterrupto, das 8 da manhã às 18 horas,
com uma hora para almoço — no próprio estabeleci­
mento, num reservado onde comíamos os dois. Fazia
de tudo: atendia a freguesia no balcão, subia às prate­
leiras pela manhã e à noite para colocar ou retirar mer­
cadorias, não parava um minuto sequer. A filosofia de
meu tio era: jamais vender fiado, só a dinheiro e à
vista, mas sempre pelo menor preço da praça.
Era grande a freguesia. Comigo trabalhavam mais
dois empregados, um no balcão e outro no armazém,
no serviço pesado. Quando ele faltava ou entrava de
31
férias, dobravam os encantos: eu também tinha de dar
duro, mesmo criança franzina e ainda em formação.
— Você só é meu sobrinho em casa; aqui, tem que
dar duro!
E assim os anos foram-se passando. A “Casa La­
vor” ia de vento em popa, proporcionando lucros cada
vez maiores a meu tio. Quanto a mim, com um salário
irrisório, possuía a roupa do corpo e alguns trocados
para o sorvete e para o cinema.
— Para que uma criança como você precisaria de
dinheiro? Afinal, não lhe dou tudo nesta casa, alimen­
tação, dormida, amizade?
Completara quinze anos, e nem sequer concluíra o
Curso Ginasial (com a Reforma de Ensino de 1971, pas­
sou a ser o Curso de 1? Grau). Minha avó e minha tia
insurgiram-se contra a tirania de meu tio e, com muito
custo, conseguimos convencê-lo a permitir que eu fre-
qüentasse um curso noturno, como fazia grande parte
dos jovens que, como eu, trabalhavam no comércio.
Contudo, impôs uma condição desumana: eu tinha que
estar em casa às 22 horas. Se chegasse um minuto
depois, dormiria na rua!
Ora, minha última aula terminava exatamente às
22 horas, e o colégio era relativamente distante. A ca­
sa de meu tio era situada ao fim de uma ladeira que
me parecia interminável. Como poderia estar, ao mes­
mo tempo, em dois lugares? O jeito era perder siste­
maticamente a última aula de cada noite e, mesmo as­
sim, só chegava a tempo porque subia aquela terrível
ladeira — meu Deus, lembro-me dela em detalhes, co­
mo se a tivesse agora diante dos olhos! — a largas
passadas ou correndo, o coração opresso, a respiração
faltando, cada metro vencido parecendo-me quilôme­
tros de uma longa estrada.
E o esperado um dia aconteceu: minutos depois
das 22 horas, chegava eu a casa, e as portas se me
32
fecharam. Toda a família, sabedora da situação — mi­
nha avó, minha tia, meus primos — rezava pedindo a
Deus que amolecesse a dureza de coração de meu tio,
mas ele (cujas decisões eram lei naquela casa) foi in­
flexível. E o filho de sua irmã, que viera de longe para
sua guarda, pobre adolescente indefeso, suportou cala­
do mais uma humilhação.
Não tenho palavras para descrever o que passei
nessa noite fria, com fome, cansado do trabalho de to­
do o dia. Não pude dormir, nem chorar também. Pa­
rece-me que as lágrimas ficaram retidas lá no mais ín­
timo de meu ser e, naquelas horas terríveis de solidão
e abandono, veio-me à mente tudo que me era sagra­
do: meus pais, a minha vida livre em minha cidade
natal, as imagens inolvidáveis de minha Santana de
Ipanema... Foi uma noite comprida. Encolhido num
canto do jardim, esperei que amanhecesse.
Às seis horas da manhã do dia seguinte, minha avó
e os demais me receberam entre lágrimas e abraços
fraternos — dele, nem um gesto de cortesia. Entrei, to­
mei café às pressas, mudei de roupa e desci de novo a
célebre ladeira. Às sete e meia, a “Casa Lavor” recebia
os primeiros fregueses, e era eu quem deveria estar
lá. Afinal de contas, mais um dia de trabalho estava
começando...
Compreendi que não poderia continuar residindo
com meu tio. E assim, depois de insistentes pedidos e
muita discussão, fui autorizado a alugar um quarto.
Por sorte, perto dali, arranjei um, me instalei. Agora,
poderia freqüentar o curso, a boate ou o que me desse
na telha. Resolvi, porém, estudar sozinho. Assim, em­
pregava a maior parte de minhas noites a ler e a pes­
quisar. Mais tarde, quando decidi deixar a casa de
meu tio, já dominava todo o currículo do antigo Arti­
go 91 (hoje denominado Supletivo de 19 Grau). De
meu parco ordenado, reservava uma modesta quantia
33
para a compra de livros, revistas e publicações didáti­
cas. Em meu retiro, longe de tudo e de todos, meus
dezenove anos não conheceram noitadas, jogos nem
farras, mas um estudo sério e persistente, que varava
madrugadas e namorava a aurora.
Cabe aqui um pequeno recuo. Ao completar dezoi­
to anos, matriculei-me no chamado “Tiro de Guerra”,
criado para evitar que os jovens, por servir o Exército,
tivessem que abandonar o emprego. Largava do traba­
lho às 18 horas, e já, às 20 horas começavam os exer­
cícios militares, que se arrastavam até às 22 horas. Vol­
tava a meu quarto cansado, muitas vezes, sujo de lama
dos rastreamentos realizados num terreno baldio perto
do centro da cidade. Vez por outra, a chuva aumentava
o nosso sofrimento, impiedosa chuva que não parava
de cair. Não tínhamos onde trocar de roupa. Quem
morava perto podia ir a pé e mudar-se; e quem, como
eu, morava longe?...
Dia seguinte, acordava antes das seis horas, para
ter tempo de tomar café, vestir-me e chegar pontual­
mente às sete e meia à “Casa Lavor”, onde me aguar­
dava mais uma jornada de horror.
Estávamos em 1935, atingira a maioridade, estava
cansado, doente, excessivamente magro, e só tinha de
meu alguns livros e uns trocados para o pagamento da
passagem de volta.
Minha chegada a Santana foi um espetáculo triste:
o filho que retomava à casa paterna parecia um morto-
vivo. Minha mãe chorava desconsoladamente, meu pai
mantinha a cabeça baixa de vergonha, de revolta e de
remorso, as mãos nas têmporas. Ali estava o resultado
da incompreensão de quem não quis dar ouvidos aos
que denunciavam os maus tratos de que eu fora vítima
durante tanto tempo. O vaqueiro Pedro Bento, na sua
rude linguagem de sertanejo sem segundas intenções,
exclamou perplexo:
— Esse é o seu Fulório? Mas só voltou a grade!...
Iniciou-se então um período de recuperação das
forças combalidas. Necessitava urgentemente de três
coisas: boa alimentação, descanso e amor. Tive-as to­
das em abundância e, em pouco tempo, era outro, no­
vamente forte, saudável, bem disposto. A alimentação,
farta, consistia de leite, manteiga, pão, queijo, carne,
coalhada, ovos, arroz, feijão, frutas de diversa natu­
reza, e tudo colhido e feito ali mesmo, na “Aldeia”, à
vista dos olhos vigilantes de meu pai e da proteção
carinhosa de minha mãe.
Além de tudo isso, o contacto ínitmo com a natu­
reza, mensageira de Deus, cuja presença sentimos des­
de o clarear do dia até o cair da noite. O reencontro
fez-me bem por inteiro ao espírito: o nascer do Sol
nas quebradas da montanha, o vozerio da passarada na
tamarineira alta e frondosa, o ronco agudo do jumento
no cercado distante, e o ruído, sempre igual e ritmado,
do velho carro-de-boi lá longe, na estrada. Todas estas
imagens, cores e sons enchiam-me de paz, de alegria, de
conforto interior, e são recordações que a gente jamais
esquece.
Antes de o sol aparecer, já o encarregado se acha
no curral com o balde, o caneco e a corda, para a
tiragem do leite espumante e fresquinho, extraído na
hora — como é reconfortante saboreá-lo sem as impu­
rezas e os produtos químicos que lhe são acrescenta­
dos nos grandes centros! Quando o sol desponta no
horizonte, já a gadaria ganhou o mato, e a gente só
ouve o chocalhar da rês-madrinha. Acostumei-me a
acordar cedo, hábito que adquiri por causa de meu pai,
que nos acordava bem cedo para irmos ao curral, ain­
da garotos, e ainda hoje mantenho.
Ao cair da tarde, já o gado havia voltado do mato,
e o vaqueiro fazia a conferência. Se faltasse alguma ca­
beça, ia buscá-la, embrenhando-se na mataria e seguin-
35

*
do seu rastro. Certa vez, assisti ao balé gracioso de
uma rês em fuga desabalada sendo seguida pelo va­
queiro em seu cavalo magricela e veloz, logo depois
sendo ultrapassada e, finalmente, sendo laçada e tra­
zida de volta, toda esta movimentação musicada pelos
latidos solidários e disciplinados do cão, companheiro
de todas as horas de quem lida com o gado.
“O que é bom dura pouco”, diz a sabedoria popu­
lar. Refeito, tinha que tomar um rumo. Resolvi voltar
a Maceió e submeter-me aos exames do Artigo 91. Ini­
cialmente, faria as provas correspondentes à 3^ série e
depois, obteria o certificado da 4^ e da 5$ séries, sepa­
radamente.
Mas o imprevisto, mais uma vez, alterou o meu
destino. Ocorre que, no ano anterior à minha volta,
meu mano Flávio, sentindo que a cidade não poderia
continuar sem uma escola de nível secundário, fundou
o “Ginásio Santanense”, instituição que oferecia o Cur­
so Primário, o Curso Especial de Admissão e, à noite,
o Curso Comercial. Flávio não possuía diploma algum,
uma vez que, por essa época, a legislação não exigia
que uma escola fosse registrada, nem que seu diretor
fosse diplomado.
O Educandário, fundado a 24 de maio de 1934, re­
cebeu o apoio de toda a comunidade. Vinham jovens
até mesmo de cidades circunvizinhas para matricular-
se. Meu irmão acumulava as funções de diretor e de
professor de praticamente todos os cursos, além de cui­
dar da parte recreativa! Se me não falha a memória,
somente nos idos de 1938 é que a municipalidade inau­
gurou o “Grupo Escolar Padre Francisco Correia”, ho­
menagem muito merecida a este que foi um dos fun­
dadores da cidade. Em sua luta hercúlea, Flávio con­
tava com a ajuda de nossa prima Fabíola, mulher de
extraordinário dinamismo.
36
Embora ninguém o pressionasse, Flávio desejava
diplomar-se e, para tanto, precisava ir a Maceió. Como
nossas ambições coincidiam, no período de férias do
ano de 1936, partimos. Reprovados em Maceió, corre­
mos para Recife, onde logramos êxito completo, eu con­
seguindo o certificado de conclusão da 3^ série e ele, o
da 4á. Sem perder tempo, Flávio inscreveu-se num con­
curso para coletor federal, sendo aprovado com distin­
ção e imediatamente nomeado para Salgueiro, no inte­
rior de Pernambuco.
— Floro, o “Ginásio Santanense” não pode acabar,
e eu só vejo um homem capaz de continuar meu tra­
balho : você...
Era um desafio, uma como proposta do destino,
e eu não poderia fugir. Flávio apresentou-me aos pais
como continuador de sua obra e pediu a todos um voto
de confiança para mim. De repente — que voltas dá
o mundo, santo Deus! — vi-me sozinho, sobre os om­
bros a responsabilidade de administrar o “Ginásio”.
Trablhava dia e noite, vivendo uma vida de ermi­
tão. Para aprimorar os conhecimentos, costumava —
após a ceia — trancar-me no quarto e, sob a fraca luz
da lâmpada, avançar na leitura até de madrugada.
Ocorre que — como disse antes — a luz elétrica era
desligada a partir de 24 horas. Acendia uma vela, uma
pálida e frágil vela, e sob este arremedo de luz, pros­
seguia, prosseguia sempre, como se uma força estra­
nha e irresistível me empurrasse para a frente, sempre
para a frente, sem conhecer cansaço, desânimo ou es-
morecimento.
Lia tudo: as matérias que lecionava, revistas que
assinava, obras de Literatura, de Psicologia, de Socio­
logia. Se não possuía o livro, comprava-o pelo reem­
bolso postal. Os catálogos das famosas livrarias Gar-
nier e Francisco Alves, ambas do Rio de Janeiro, rece­
37
bia-os pontualmente. Hoje, decorridos tantos anos, mo­
rando na “Cidade Maravilhosa”, visito essas casas que
me são tão caras vez que outra, e sinto' no coração uma
saudade imensa daquela fase. Lia um livro após outro,
devorando-os insaciavelmente. Nem sempre era fácil
encontrar o exemplar desejado: muitos recebi amare­
lecidos e quase devorados pelas traças...
Com o certificado da 3á série obtido, o domínio
perfeito dos currículos e a ordem reinante no estabe­
lecimento, estava isento de quaisquer críticas. A con­
fiança em mim depositada não sofreu decepções, pelo
contrário, aumentou de muito. Mantive a mesma es­
trutura administrativa e didática do mano Flávio. Con­
tudo, decidi aperfeiçoar as atividades esportivas. Por
essa época, travei conhecimento com um jovem da ci­
dade de Pão de Açúcar de nome Darras Noya, um dos
homenageados por mim neste livro.
Darras Noya — como explicá-lo em poucas pala­
vras? — foi o meu braço direito no “Ginásio Santa-
nense”. Incansável, dinâmico, criativo, organizou nossa
banda escolar, promoveu excursões aos recantos pito­
rescos da região, orientou os alunos nas marchas e pa­
radas por ocasião das grandes datas cívicas, dirigiu tor­
neios internos de futebol, de vôlei e de basquete, enfim,
deu vida, cor e alegria ao “Ginásio Santanense” duran­
te todos os anos em que, lado a lado, ombro a ombro,
prestamos nossa colaboração ao progresso de minha
Santana.
Amigo Darras, mais uma vez, esteja onde estiver
— e certamente você estará no Alto, em companhia de
Deus, que acolhe as almas nobres como a sua — aceite
mais um aperto de mão e mais um abraço comovido.
Ainda não falei no regime disciplinar. Vamos a ele.
Há pouco tempo, tomei conhecimento de um projeto
em discussão no Parlamento inglês que propunha a vol­
ta da palmatória às escolas. No meu tempo de aluno
38
e ainda no de diretor, ela era permitida, e os próprios
pais ficavam satisfeitos quando sabiam que seu filho
fora castigado. Diziam que, se apanhara, era porque
era levado, não estudara convenientemente, e que o
mestre sabia o que estava fazendo.
O “bolo” de palmatória era instituição universali­
zada, admitindo-se também outros castigos, tais como
colocar a criança em quarto escuro, fazê-la ajoelhar so­
bre caroço de milho, obrigá-la a ficar em pé no portal
da escola, de braços abertos, fazê-la encher uma página
de caderno com uma frase, e assim por diante. Era
uma pedagogia repressiva, reconheço, mas com alguns
méritos — peio menos, para a época. Sob minha dire­
ção, o único castigo aplicado era a palmatória.
Confesso que dava bolos nos que não cumpriam
seus deveres escolares, mas tenho em minha defesa
que ensinava pacientemente, repetindo quantas vezes
se fizesse necessário. O êxito está comprovado pelo su­
cesso que meus alunos alcançavam nos exames de Ad­
missão realizados em Maceió.
Fato curioso ocorreu em 1975, quando de mais
uma de minhas viagens à terra natal. Do churrasco que
me foi oferecido, participava um ex-aluno, eleito verea­
dor. O prefeito Adeildo Marques (ex-aluno de meu ir­
mão Flávio) usou da palavra e franqueou-a. O verea­
dor levantou-se:
— Prof. Floro, não repare ser eu um homem rús­
tico e de pouca fala. Gostaria de que o senhor ficasse
certo de uma coisa: se o senhor me tivesse dado mais
bolos em meu tempo de menino, eu agora estaria mais
rico, porque mais sabido. Obrigado.
Os anos se passaram rapidamente. Estamos no li­
miar de 1939. Aqui talvez caiba uma pergunta: existe
o Destino? Repare bem o leitor: eu vivia em minha
terra natal cercado de amigos e de admiradores. O
39
“Ginásio Santanense” era uma instituição sólida e mui­
to bem sucedida, nem de longe abalada pela inaugura­
ção, no ano anterior, do “Grupo Escolar Padre Fran­
cisco Correia de Albuquerque”. As famílias de prestí­
gio e até mesmo aquelas que lutavam com alguma di­
ficuldade continuaram a matricular seus filhos comigo,
numa tradição que se renovava a cada ano.
Entretanto, apesar do sucesso como educador, sen­
tia que chegada era a hora de emigrar. Havia dentro
de mim uma força estranha, um chamado irresistível,
como se eu fosse um pássaro engaiolado sonhando com
altos vôos.
Tendo chegado a meu conhecimento que, em Ma­
ceió, fora aberto um concurso para auxiliar de tráfego
do Departamento dos Correios e Telégrafos, e que os
aprovados seriam imediatamente nomeados para qual­
quer parte do Brasil, submeti-me aos exames. Aprova­
do que fui, legalizei os papéis e fiquei na expectativa.
A promessa não foi cumprida, a nomeação não
saiu. Voltei a Santana mas, desta vez, com o firme pro­
pósito de viajar para o Rio de Janeiro no final do ano.
No dia 7 de fevereiro de 1940, divulguei a minha deci­
são de deixar a direção do “Ginásio” ao término da­
quele ano letivo. A cidade recebeu comovida a notícia.
No dia 10 de novembro de 1940, tudo estava encerrado.
Fiz uma proclamação a todas as famílias santanenses,
agradecendo o apoio recebido e despedindo-me de
todos.
Preparei-me para partir. Não tinha muita coisa
para levar: algumas peças de roupa, algum dinheiro e a
velha e espaçosa mala onde, mais uma vez, acomodara
minha modesta biblioteca, tesouro do qual jamais me
separaria. No ardor de meus 26 anos, três valores me
eram inseparáveis: a coragem de tentar, a decisão de
“vir para ficar” e a convicção de que, um dia, atingiria
o topo da montanha. Meus pais e parentes mais che­
gados tudo fizeram para que eu desistisse, mas uma
força mais poderosa me arrastava, a correnteza era in-
controlável...
Aluguei a boléia do caminhão do sr. Antônio Au­
gusto e dirigi-me a Palmeira dos índios, numa reedição
daquela primeira viagem. Sabia que, a 15 de dezembro,
um navio zarpava de Maceió com destino ao Rio de
Janeiro, tocando nalgumas capitais do Nordeste.
Dinheiro pouco, minhas economias não bastavam
para comprar uma passagem de primeira, nem de se­
gunda classe. O jeito foi adquirir uma de terceira mes­
mo! De certa forma, foi bom, pois uma grande leva de
nordestinos estava na mesma situação que eu, e termi­
namos por alegrar-nos e apoiar-nos moralmente uns
aos outros. Contávamos piadas, cantávamos e ouvía­
mos a sanfona varando a noite e embalando nossa sau­
dade. A marujada gostava e, vez por outra, juntava-se
a nós, dançando e xaxando ao som alegre e ritmado.
Como a confraternização era gostosa, os demais
passageiros vinham “acompanhar de longe”, e muitos
acabavam por entrar na brincadeira. O comandante
apreciava a alegria contagiante do pessoal. A comida
não era muito boa, mas dava para alimentar o corpo.
O maior problema era a dormida, devido ao frio,
cortante e intermitente. Mas não nos apertávamos: ar­
madores não faltavam e cada um armava sua rede, to­
dos irmanados no mesmo desconforto. Pela manhã, po­
díamos subir ao convés e apreciar a imensidão do mar,
avistar os golfinhos em seu gracioso balé e tomar ba­
nho de sol.
Quantos sonhos, quantos projetos, quantas ilusões»
Cada um de nós era um desbravador do desconhecido,
um guerreiro da esperança, um “Dom Quixote” a com­
bater moinhos de vento. Sentíamo-nos capazes de cons-
U
trair um novo mundo, de realizar um novo caminho.
Desânimo, desespero e pessimismo eram palavras ine­
xistentes naquela pequena comunidade reunida ao aca­
so pelas mãos do Senhor. Onde estarão meus compa­
nheiros de viagem agora? Terão vencido os obstáculos?
Terão concretizado seus sonhos de sucesso?
Enfrentando o frio e o desconforto, os cá de baixo
tomavam xaropes e mezinhas; os de cima, os passagei­
ros elegantes e afortunados, bebiam seus vinhos e uís­
ques ... O eterno contraste, a cada passo presente. Mas
ninguém causava problemas ou tumultos.
Quando tocava em algum porto, o navio fazia uma
parada de uma hora: quem quisesse podia saltar e dar
uma vista rápida; mas que tomasse cuidado, pois, ao
terceiro apito, ele zarpava. Desse modo, conheci por
alto, parte da cidade de Salvador. Viajei no famoso
“Elevador Lacerda”, que liga as partes baixa e alta da
metrópole baiana. Lá em cima, muita coisa para ver
e provar, mas o tempo era curto. Visitamos algumas
igrejas, corremos por ladeiras e becos, vimos os bon­
des, a movimentação incessante de pedestres para lá e
para cá, e as alegres baianas com seus vestidos de chi­
ta e seus tabuleiros de comidas típicas regadas a óleo
de dendê e a pimenta. Provamos um pouco, e o resul­
tado, alta madrugada, foi uma diarréia generalizada...
E os seis dias da viagem passaram-se depressa. A
21 de dezembro de 1940, emocionados e esperançosos,
avistamos a Baía de Guanabara. Para mim, era mais
um encontro com meu destino . ..
CAPÍTULO IV
O INÍCIO DA LUTA NA CAPITAL FEDERAL
O espetáculo é inigualável; o panorama, indescrití­
vel. De longe, avistam-se os grandes e altaneiros mor­
ros do Pão-de-Açúcar e Cara-de-Cão. À proporção que
o navio adentra a barra, descortinam-se as fortalezas de
São João e de Lajes, que guarnecem a cidade. Não mui­
to além, surge o perfil majestoso dos altos edifícios,
sendo o mais elevado o que abrigava a Rádio Nacional,
na Praça Mauá. Nele fez sucesso gente famosa de nos­
sa história artístico-musical, como Mário Lago (ainda
em evidência), César de Alencar, Emilinha Borba, Mar-
Iene, Renato Murce e toda uma geração de cantores,
músicos, animadores de auditório, locutores, repórte­
res, etc.
Sol forte, radiosa manhã, o navio dirigiu-se a pou­
co e pouco para o Cais do Porto. O calendário — pa­
rece que o tenho diante de meus olhos — marcava 21
de dezembro de 1940. Atracamos no Armazém 13 —
você é supersticioso, leitor? De minha parte, pouco me
importavam números, o que valia era minha convicção
de que seria vitorioso, custasse o que custasse.
A primeira pessoa conhecida que avistei foi meu
mano João Batista, àquela época com 17 anos, que vie­
ra para o Rio três anos antes. Segundos podem valer
por dias, por meses, até por anos: em poucos momen­
tos, emocionado e agradecido, revi o bebê que deixara
para trás quando deixara a casa paterna para tentar a
vida em Maceió; reencontrei, no retorno, um menino
forte e esperto, terror das famílias santanenses, o con-
tinuador de meus folguedos; recordei com especial or­
gulho o estudante alegre e peralta, em quem — por ve­
zes, com o coração pequenino — eu aplicara “bolos”
de palmatória; como num filme retrospectivo, vi-o des­
filar com a banda do “Ginásio Santanense”, tocando
com garbo um ruidoso tam bor...
E agora ali estava ele, a mão estendida, preparan­
do um abraço forte como só as pessoas generosas são
capazes de dar.
Mas o João não estava só: acompanhavam-no a Fa-
bíola, minha prima e antiga colaboradora do “Ginásio
Santanense” no período de administração do mano Flá-
vio, e seu esposo, sr. Antônio Carvalho Leite, de sau­
dosa memória.
Fabíola Abreu Carvalho é a outra pessoa homena­
geada nesta obra, ao lado de Darras Noya, professor de
Educação Física no “Ginásio Santanense”. Tentarei —
tarefa difícil, espinhosa — explicar o que esta senhora
fez por mim. Primeiramente, abrigou-me de coração
aberto em sua casa, alimentou-me, orientou-me no
trânsito e nos costumes do Rio. Além disso, foi sempre
uma palavra de fé, de coragem e de esperança. Quan­
tas vezes, após um dia de tentativas frustradas, cabeça
baixa, lágrimas furtivas, não lhe ouvia a voz sempre
meiga e maternal, mas sempre enérgica e altaneira,
chamando-me aos brios, lembrando-me exemplos de
grandeza, construindo uma ponte para um amanhã de
realizações e de vitórias! Hoje, viúva, visito-a vez que
outra em sua casa de Piratininga, subúrbio de Niterói,
região que abriga uma bela praia, de tantas recorda­
ções para mim...
Desembarcamos às 9 horas da manhã. Tudo fora
preparado em detalhes por meus parentes. Dois carre­
gadores subiram ao convés, e mostrei-lhes a mala. Seu
U
peso causou-lhes espanto: perguntaram-me se trazia
pedras.
— Trouxe comigo metais da “Serra dos Cariris,”
respondi-lhes sorridente.
Rumamos para a rua Senador Alencar, 192, apto.
103, São Cristóvão. Estava em casa! O apartamento
não era grande, maior do que ele era o coração dessa
família maravilhosa a que devo tanto: Fabíola, sua mãe,
dona Santinha, seu Carvalho e as filhas Fabíola e Dio-
ne. O problema maior era a dormida. Dispondo de
dois quartos, tinham que se acomodar sete pessoas.
Mas, quando há boa-vontade e amor, tudo se ajeita.
Sinto saudade daqueles meses de aprendizado, de diá­
logo, de descobertas. Ao Sr. Carvalho e d. Santinha
minhas saudades eternas.
Chegou o dia de Natal. Comemoramo-lo festiva­
mente, com mesa de doces, com frutas e uma grande
variedade de guloseimas. Minha emoção foi grande, vez
que estava longe de meus pais e de minha querida ter­
ra. A Capital Federal vibrava nessa ocasião. Ouvia-se
a buzina dos automóveis, o bimbalhar dos sinos nas
igrejas, o vozerio nas ruas. . . A Guerra era uma reali­
dade distante, escondia-se na velha Europa, estávamos
no Brasil e tudo era festa.
Elevei o pensamento a Deus, pedindo-Lhe que me
amparasse e me guiasse nessa terra dadivosa sim, mas
para mim, desconhecida e amedrontadora. Veio-me à
lembrança a “Lapinha” do seu Firmino, de minha San­
tana, ponto de atração para os devotos. Sua casa en­
chia-se de gente não só de Santana, mas também das
redondezas, que vinham até ali apreciar o nascimento
de Nosso Senhor Jesus Cristo. Sua lapinha — que a
gente do Rio conhece por “presépio” — era especial.
Dedicado à arte de inspiração religiosa, seu Firmino
esculpia as imagens a mão, utilizando para isso um
simples canivete. Era um artista nato, estimado por to­
15
dos. A maior alegria de minha vida era ver tudo aquilo
se movimentando: o burro, o cavalo, o porco, a vaca,
a olaria. A única coisa que o Firmino esperava de to­
dos era que não esquecessem de colocar o vintém no
pratínho, posto estrategicamente à entrada do quarto.
E eu cumpria religiosamente o trato.
Com o mesmo espírito de fé e de amor, vimos ter­
minar o ano e ter início 1941. Chegara a hora de sair
do casulo e enfrentar os desafios da cidade-grande. Mi­
nha prima fez-me uma longa exposição sobre como
proceder no Rio de Janeiro :
— Primeiro, você tem que acordar bem cedinho e
comprar o “Jornal do Brasil”, que traz anúncios de
toda espécie. Após um café reforçado, examine os bol­
sos, verifique se leva dinheiro para a passagem, obser­
ve se leva a carteira de identidade, além do jornal. Pro­
cure saber o início e o fim do itinerário de cada bonde;
não dê atenção a quem não conhece; trate a todos com
delicadeza, mas não se deixe levar por conversa bonita.
A princípio, passava da hora de levantar e me dei­
xava ficar na cama, desanimado. Fabíola achava graça
— jamais me tratou com rudeza ou grosseria. Dona
Santinha apelidara-me de “maestro”, porque sempre
me via com guarda-chuva e chapéu. O guarda-chuva,
dizia ela, era a batuta do maestro. Pois bem; sempre
que me descobria atrasado ou que sabia de um insu­
cesso em minha procura de emprego, repetia a mesma
e invariável ladainha:
— Maestro, volte para sua terra, lá você é re i...
Certo dia, saiu um anúncio da “General Electric”,
sediada na Avenida Atlântica. Precisava de jovens para
formar uma equipe de vendedores de eletrodomésticos.
E agora, como chegar lá, na Zona Sul da cidade, que
condução tomar? Instruções recebidas, fui em frente.
Ao chegar, encontrei uma fila de jovens como eu,
esperançosos de firmar-se na cidade-grande. Reconheci
entre estes alguns que vieram comigo na terceira clas­
se do navio. Às oito horas, fomos introduzidos numa
grande sala, onde nos aguardava o relações-públicas.
— A Companhia pretende contratar todos vocês
para seus agentes de venda. Vou dividi-los em duas
turmas. Cada turma será assistida por um de nossos
agentes, que explicará como proceder para com o pú­
blico. O ordenado compõe-se de uma parte fixa, para
o café e para a condução diária, e uma parte variável,
dependendo do que conseguirem vender...
E, dia após dia, à hora determinada, lá estávamos
para receber as instruções. Cada agente levava dez can­
didatos a vendedor para percorrer o populoso bairro
de Copacabana. Enquanto ele dirigia a palavra à dona
de casa, nós observávamos tudo: o tom da voz, a expo­
sição de como funcionava o aparelho, as condições à
vista e a prazo, etc. Depois de Copacabana, chegamos
a Ipanema e, mais tarde, ao Leblon.
Estávamos já com dois meses de trabalho, e prati­
camente ninguém vendia o que quer que fosse. Chegou
afinal a minha vez de agir. O agente e os colegas fica­
ram à margem, e eu avancei, batendo à porta do apar­
tamento térreo. A única coisa que me aborrecia era
o par de sapatos que usava, muito maior do que meus
pés — que fazer, não tinha outro!?
A empregada veio atender-me e, seguindo rigorosa­
mente as instruções recebidas, coloquei um dos pés no
espaço aberto. Compreendendo quem eu era, pergun­
tou à patroa se queria comprar algum aparelho elé­
trico.
— Não quero não, já tenho tudo...
Diante desta resposta, a empregada tentou fechar
a porta, mas foi impedida pela posição de meu sapato.
Começou então uma silenciosa e torturante luta, que
terminou com a porta fechada e com meu sapato do
lado de dentro! Derrotado e nervoso, vi-me com um pé
calçado e o outro, não. Os quo mo acompanhavam caí­
ram na gargalhada, deixando mo ainda mais embaraça­
do. Tive que voltar lá para apanhar o outro pé: levei
tudo na esportiva, mas compreendi que não dava para
vendedor ou anunciante. Foi a primeira e a última
vez...
Nunca deixei de comprar jornal. E foi assim que,
no domingo da primeira semana de março de 1941, saiu
o seguinte anúncio: “Precisa-se de um jovem que en­
tenda um pouco de Contabilidade e que queira realmen­
te trabalhar numa pequena oficina. Paga-se bem. Tra­
tar na Praça das Nações, Bonsucesso”.
Apanhei o bonde para a Penha, pois aquele bairro
fazia parte do ramal. Fui o primeiro a chegar. O por­
tuguês simpatizou comigo e, após pequenos acertos,
estava empregado. Era a minha segunda oportunidade,
eu não podia decepcionar. Dentro de alguns dias, já
dominava tudo; entusiasmado, o dono da oficina deci­
diu que eu deveria trabalhar também no balcão de sua
loja de fogões, de movimento regular, mas contínuo.
Vibrei com a possibilidade de aumentar meus ga­
nhos, visto que trabalharia no escritório e no balcão.
Findo o mês, chegou a hora do pagamento e, pela pri­
meira vez na vida, senti na carne o que é ser explorado
por um patrão desonesto, sem ter como protestar se­
quer. O miserável pagou-me apenas metade do valor
que me devia, alegando que eu era funcionário de sua
empresa e, como tal, tinha a obrigação de servi-lo sem
escolher função.
Ah! Vida ingrata a de quem se inicia na cidade-
grande sem padrinhos e sem um belo diploma! Senti
vontade de avançar contra ele, de gritar a injustiça,
d e... Botei no bolso a quantia insignificante e nunca
mais apareci por lá.
Por essa época, o mano João Batista soubera de
um padre que ajudava, de uma forma ou de outra, a
(M em órias) — Para o álbum do livro “V im para Ficar ”

Minha avó materna Prof.a Maria Joaguina de Araújo — pioneira


da educação dós pobres em nossa Santana do Ipanema
Meu avô materno — Cel. Eneas Au­
gusto Rodrigues de Araujo (Senador.
Deputado, Intendente, Prefeito, Chefe
Político e Professor-pioneiro da educa­
ção em nossa Santana do Ipanema
(Alagoas)
Meus pais: Manuel de Aquino Meto e Alsina de Araujo Melo

/
Na foto acima eles estão assinalados pelas setas. Estão na mesma
foto pessoas amigas e parentes: Maria da Glória Rocha, Judith
Rocha, Hélio Colul, Joanita, Ulisses Silva, Joel Marques,
José Peteca
Meus irmãos

Maria Augusta de Araujo Melo

:
Meus oito irmãos (só vivos
o autor deste trabalho e o
major Darci)

Darci
de Araujo Melo

João Batista
de Araujo Meio

José
de Araujo Melo
O primogênito, Prof. Flá-
vio de Aquino Meio

A dherbal Flávio
de Araujo Meto de Araujo Melo
Hipólito de Araujo Melo
O autor do livro
A missa de Formatura do autor na Candelária
O autor

O autor
Floro de Araujo Melo e a esposa Maria de
Lourdes Melo
Minha única lia viva já com
91 anos (l.°/6/81). Laura de
A quino Lins
Meus filhos

Wilson
de Araujo Melo

Maria
de Lourdes Melo

Maria Elizabeth
de Araujo Melo

1
quem lhe batesse à porta. Possuía, diziam, um carinho
especial pelos nordestinos, que nordestino ele também
o era, do Ceará. Deu-me o endereço: “Edifício Rex”, 149
andar, sala 1407, situado na rua Alcindo Guanabara, no
Centro. Corria o mês de março de 1941.
Sempre de posse de minha pasta de documentos
debaixo do braço, lá fui ter. Apanho o elevador. En­
tro numa fila de cerca de dez desempregados como eu.
Chega a minha vez. Sou introduzido no escritório bem
montado do Diretor do Ensino Secundário do MEC, pa­
dre Hélder Câmara.
Falar da figura humana de Dom Hélder Câmara
— hoje Bispo de Pernambuco — é tarefa temerária,
porque há sempre o perigo de sermos injustos ao omi­
tir alguma de suas inúmeras virtudes. Vejo-o agora di­
ante de mim, naquela manhã ensolarada de quarenta
anos atrás (estamos em março de 1981), a voz suave
mas vibrante, o sorriso paternal, os gestos largos e sin­
ceros, os traços marcantes de quem muito sofreu e de
quem muito aprendeu com a dor.
Expus-lhe rapidamente minha situação.
— Jovem, vou dar-lhe uma carta de apresentação
para o Dr. Dioclécio Duarte, que se diz meu amigo e
pode ajudar-nos.
Concluída a missiva, pôs a mão no bolso, num ges­
to característico de quem procura dinheiro. Recusei a
oferta generosa: afinal, apesar das dificuldades, ainda
não chegara àquele ponto! Jamais esquecerei as pala­
vras de Dom Hélder:
— Aceite, jovem, tenho a maior satisfação de aju­
dar os que necessitam de um pequeno empurrão. Tam­
bém sou nordestino e sei o quanto é difícil vencer nu­
ma cidade como o Rio de Janeiro, tão longe de sua
terra...
Embora comovido, mantive-me firme na recusa.
Dia seguinte, bati à porta do Dr. Dioclécio, o coração
explodindo de esperança. Era uma casa bonita, situa­
da na Zona Sul, com um acolhedor caramanchão. De­
pois de uma longa espera, pudemos conversar. Rece­
beu-me friamente, leu com quase indiferença a carta e
disse-me que nada poderia fazer por mim.
Apanho o bonde de volta. Absorto que estava em
meus pensamentos, quase não percebo que acabava de
chegar ao fim da linha. Salto e dirijo-me ao escritório
do bondoso vigário. Conto-lhe o sucedido e ele, quase
em lágrimas:
— Esse homem deve-me favores, é gente da im­
prensa e podia muito bem ajudá-lo!
Foi aí que despertei. De repente, lembrei-me do
Certificado do Concurso para Auxiliar de Tráfego dos
Correios e Telégrafos que conseguira em Maceió. Dom
Hélder exclamou emocionado:
— Meu jovem, foi Deus Nosso Pai que veio em
nosso auxílio! Louvado seja Seu Santo Nome!
Ocorria que nada mais nada menos do que o Di­
retor de Pessoal dos Correios e Telégrafos do Rio de
Janeiro era amigo íntimo de Dom Hélder.
— Esse, pode estar certo, não se recusará a aju­
dar-nos!
Realmente, ele não nos decepcionou. Quando o pro­
curei — morava na rua Raul Pompéia, em Copacabana
— recebeu-me cordialmente, afirmando que logo me
escreveria marcando uma entrevista. Isso aconteceu
numa quarta-feira. Meus parentes não acreditaram nos
bons propósitos do homem.
— No Rio de Janeiro, quando alguém diz que vai
escrever depois, pode contar que não quer nada com
você...
O fato é que, na segunda-feira seguinte, recebi sua
carta! Pedia-me encontrá-lo debaixo do relógio da Ga­
leria Cruzeiro (hoje Edifício Central), na Avenida Rio
Branco, 165, ao meio-dia. Dez minutos antes da hora,
50
encontrei-o à minha espera, tratando-me com atenção
e cavalheirismo.
Era uma manhã ensolarada e aprazível, inesquecí­
vel manhã que marcou o início de uma longa e árdua
caminhada pelo Serviço Público Federal. Tal como
Ulisses, que levaria vinte anos para poder regressar à
sua ítaca e rever a querida Penélope, estava eu às por­
tas do funcionalismo público, do qual somente agora,
quarenta anos depois, estou conseguindo aposentar-me.
Pegou-me no braço e levou-me ali perto, ao Edifí­
cio Comecial onde, no quarto andar, funcionava o Ser­
viço de Pessoal. Fomos cumprimentados respeitosa­
mente por todos quantos ali se achavam. Seu secretá­
rio informou-o de que existia uma vaga para praticante
de tráfego. Como estávamos na expectativa de uma no­
meação para auxiliar de tráfego, de padrão bem supe­
rior, o diretor perguntou-me se aceitaria ser nomeado
com vencimento de 200 mil réis em vez de 400 mil réis.
Leitor, um náufrago pode recusar um pequeno tronco
que lhe atiram, se esperava uma bela e confortável lan­
cha? Era mais ou menos como me sentia: era um náu­
frago, perdido na imensidão do Rio de Janeiro; ofere­
ciam-me um tronco, pequeno e feio, mas sempre um
tronco, sólido, firme, com o qual poderia vencer as
ondas.
Aceitei, é claro, comovido e grato. O dedo de Deus
esteve presente em toda a minha luta através de Dom
Hélder Câmara. Há uma dívida de gratidão a pagar
para com este homem, símbolo da luta em favor do po­
bre, do esquecido, do explorado. Foi assim que, a 21 de
junho de 1941, me iniciei na carreira pública federal,
sendo nomeado pelo então Presidente da República Dr.
Getúlio Dorneles Vargas.
Passei a servir nos Correios Gerais da rua 19 de
Março. Durante mais de seis meses, trabalhei de dia em
51
vários setores: serviço de expedição aérea, serviço de
correspondência expressa, serviço de venda de selos,
serviço de posta restante. Depois, passei para o horá­
rio noturno, entrando às 18 horas e saindo quando aca­
basse o serviço de mala postal para o Nordeste. Mani­
pulávamos toda a correspondência, separando as car­
tas aéreas das comuns, registradas, jornais, revistas e
registro de dinheiro. Era atividade estafante e de mui­
ta responsabilidade. O grupo era pequeno, mas muito
unido. A única vantagem que tínhamos era a possibili­
dade de arranjar outro emprego, de dia.
Muitos colegas fizeram isso. Largavam entre meia-
noite e uma hora da manhã, iam para casa, tiravam
uma cochilada e, às oito horas, emendavam numa ou­
tra ocupação.
Minha opção foi diferente. Aproveitava a folga
para percorrer as livrarias, passear pela cidade, ler e
estudar. Aquele “demônio interior” que me tirou de
Santana do Ipanema e me lançou no Rio jamais me
abandonou. Sentia uma força irresistível chamando-me
para os bancos escolares, acenando-me com o prazer
de novos conhecimentos e de novas descobertas.
Mudeí-me para uma pensão que ficava na rua São
José, local bem próximo dos Correios, (hoje não mais
existe). O mano Darci chegou do Nordeste e foi morar,
por sua vez, com o João Batista numa pensão da rua
do Matoso, na Praça da Bandeira.
Até esse momento, não possuía nenhum certificado
de conclusão do curso ginasial — recorda o leitor que
parara na 3à série, em Alagoas. Sendo assim, matri­
culei-me no Curso Propedêutico da Escola de Comér­
cio da Faculdade de Ciências Econômicas e Atuárias da
Cândido Mendes, na Praça 15. Tencionava conseguir
um diploma correspondente ao ginásio. Entretanto, a
“roda-viva” dos Correios continuou: pouco depois, fui
52
mudado novamente de turno, sendo obrigado a aban­
donar o curso.
Em dezembro desse ano, fui reconduzido e melho­
rado, alcançando os 400 mil réis. Na tentativa de fazer
carreira, passei a freqüentar os Cursos de Aperfeiçoa­
mento do Servidor Público, no DASP que, além de gra­
tuitos, eram de grande valia. Em março de 1942, foi
aberto concurso para postalista, posto que correspon­
dia ao de oficial administrativo e cujos vencimentos
eram compensadores. Tentei a sorte, mas fui reprova­
do. Voltaria à carga noutra oportunidade; parar, ja­
mais!
Um fato novo mudou o curso de meu destino. Es­
távamos em 1942. O Brasil até então não possuía o seu
Ministério da Aeronáutica. A Segunda Guerra Mundial
estava no auge, o mundo quase todo conflagrado, a de­
vastação era enorme. Não podíamos ficar alheios ao
movimento. Diante da necessidade imperiosa, começou
a ser organizado o Ministério da Aeronáutica, sendo
aberto o voluntariado por dois anos, com promessas
de salários tentadores.
O mano João Batista trabalhava no Instituto dos
Industriários, recebendo vencimentos suficientes ape­
nas para comer. Eu, nos Correios, não estava muito
longe disso. Desse modo, resolvemos atender ao cha­
mado da Pátria — e, cá entre nós, de nosso bolso tam­
bém! Era uma questão de sobrevivência!...
Quem chegava escolhia uma de três especialidades:
mecânico de rádio, mecânico de avião e mecânico em
armamento. Serviria por dois anos e perceberia 800 mil
réis, exatamente o dobro de meu salário dos correios.
Pomos incorporados em pouco tempo. Exoneramo-nos
de nossos cargos e ... vida nova! Seis meses depois, já
formado o Ministério, o Brasil dava sua contribuição na
luta contra o Nazi-Fascismo, enviando o primeiro gru-
58
po de combate aéreo, que se juntou às tropas do Exér­
cito e da Marinha, já presentes no campo de batalha.
Mas nós ficamos. Nos primeiros meses de incor­
poração, o que tínhamos a fazer era limpar o quartel,
empurrar os aviões para a pista, abastecê-los e dar
guarda. O curso propriamente dito só veio a funcio­
nar muito depois. E nossa desilusão foi enorme no fim
do mês: recebemos muito menos do que nos fora pro­
metido, e tudo era pago — a roupa, o fardamento, a
comida, a dormida, etc. O Regulamento era rígido; a
disciplina, prussiana.
O sargento de minha unidade chamava-se Brito.
Pelo que posso recordar, era um sádico, rigoroso e in­
flexível em suas ordens. Diga-se, porém, a seu favor
que possuía uma grande capacidade de organizar e de
empreender. O quartel vivia um brinco, e todo o ser­
viço funcionava cem por cento. A maior alegria do
pessoal era quando o Brito faltava, o que era bastante
raro — todos se aproveitavam disso para “tirar umas
férias”.
No ano seguinte, seguiu para a Itália o nosso pri­
meiro “Grupo de Caça”. Mais tarde, seguiria o segun­
do, do qual eu fazia parte. Contudo, a guerra já cami­
nhava para seu término, o que seria apressado com a
entrada na luta dos Estados Unidos da América do
Norte. Desse modo, o segundo grupo não seguiu, e eu
me livrei do frio e dos inimigos do outro lado.
Quando não estava de serviço, estava noutros mis­
teres: ordem unida, carregando às costas sacos de 60
quilos de areia, subindo pelas cordas até a barra, lá
em cima, ou limpando as dependências do quartel. Is­
so todo dia, sem contar o mergulho no mar, pulando
de uma altura que me infundia verdadeiro terror. É
bem verdade que, lá embaixo, havia dois praças bem
treinados com a missão de ajudar quem não soubesse
nadar, mas tal providência não era suficiente para
acalmar meu coração, que batia descontroladamente
toda vez que me aproximava do local do mergulho.
Naquela época, a vida na caserna era bem dura,
diferente do que acontece agora. Hoje o soldado é bem
considerado, é o pracinha bem alimentado, bem vestido
e bem remunerado. Mas, no meu tempo, o contrário
era o que se dava.
Em meados de 1943, os Cursos de Especialização
chegaram ao fim. Ninguém foi reprovado, contudo, eu
passei um grande susto quando fiz a prova de tiro-ao-
alvo. Era míope e nervoso. Saí-me muito mal no teste.
O examinador, que também dirigia todo o curso, gos­
tava de mim, apreciando meu comportamento, meus
conhecimentos e, principalmente, minha força de cará­
ter. No dia dos resultados, reuniu toda a tropa e deu
a nota de cada um. Fez uma pausa ao falar de meu
nome:
— Considerando que vocês não seguirão mais para
o campo de batalha; considerando que o praça em
questão demonstrou grande conhecimento em todas as
demais disciplinas, resolvo considerá-lo aprovado.
E depois, com um sorriso generoso, concluiu:
— Além do mais, eu sou o chefe aqui dentro, tenho
carta branca e não preciso dar satisfação de meus atos!
Se houver alguém inconformado com esta decisão, que
vá queixar-se ao bispo!
A reação da rapaziada foi comovente: bateram pal­
mas e, “indisciplinadamente”, saíram de formação e
carregaram-me nas costas, numa demonstração de so­
lidariedade.
O tenente Serra — por onde andará este senhor?
— informou-nos que seria aberto um Curso para Sar­
gento (nós concluímos o curso no posto de cabo). E,
particularmente, convidou-me, dizendo-me que, se eu
continuasse na Aeronáutica, me faria oficial. Mas eu
55
não me adaptei àquela vida de sacrifício e de disciplina
quase sobre-humana. Exemplifico com três passagens:
— Eu estava de serviço na ponte de Bonsucesso,
onde o batalhão atracava para carregar e descarregar
pessoas e mercadorias. Diz o Regulamento (que ea sa­
bia de cor e salteado, pois era cabo recém-formado)
que o militar é obrigado a prestar continência (ou
apresentar armas) às autoridades de sua unidade, far­
dadas ou não, e a quem, mesmo a paisana, se identi­
ficasse.
Certo dia, chegaram várias pessoas em trajos civis
e dirigiram-se ao batelão. Perguntei quem eram. Para
minha surpresa, um homem veio até mim, indagou meu
nome, posto, etc., argumentando que era um coronel.
Imediatamente, apresentei armas e tentei justificar-me,
mas ele nem sequer me ouviu. Quando fui rendido, re­
cebi voz de prisão e fui trancado na cadeia. O Boletim
de Dia rezava minha prisão.
Após o cumprimento da pena, fui levado à presen­
ça do capitão que, sorridente, me perguntou:
— O senhor se esqueceu de apresentar armas a
uma autoridade que nos visitava?
Respondi-lhe mansamente:
— O senhor sabe que não tive culpa do que ocor­
reu. Por isso, espero que, no próximo boletim, haja
uma retificação dos motivos de minha prisão!
Bati continência e saí, afogueado e dominado pela
revolta. Fiquei esperando até hoje a reparação...
— Outro fato amargo marcou minha passagem pe­
las Forças Armadas. Eu dormia no quartel por me­
dida de economia. Estava namorando aquela que se­
ria, mais tarde, minha esposa — Maria de Lourdes
Melo. Marcamos um encontro no cinema, onde assis­
tiríamos ao inesquecível filme “Sempre Em Meu Co­
ração”. Um dia antes, comuniquei ao sargento que
faltaria.
56
— Amigo, o Capitão só pensa em trabalho e não
dispensa ninguém, em hipótese alguma. Se faltar, será
novamente preso!
Fui ao Capitão, inventei uma história, dramatizei
os fatos, mas não consegui licença. Deste modo, faltei
e fomos ao cinema. Ao chegar a Bonsucesso, na ma­
nhã seguinte, já havia uma escolta para prender-me.
E foi assim que conheci pela segunda vez a solidão do
cárcere. Aos poucos, compreendi que, nas Forças Ar­
madas, a detenção praticamente faz parte da rotina
diária.
Contudo, a gota d’água que fez transbordar o copo
de minha paciência aconteceu numa certa madrugada.
Eu estivera de serviço na noite anterior e mal conse­
guia pôr-me de pé. Aguardava a noite para recuperar
as energias. Dormia a sono solto. De repente, o sar­
gento da ronda penetra em nosso alojamento e acorda-
nos um por um, ordenando-nos que fôssemos descarre­
gar um batelão carregado de mantimentos. Eram sacos
de mais de 60 quilos, latas de banha, de bacalhau, etc.
Felizmente, o depósito era próximo. Tiramos tudo a
duras penas e fomos, lá pelas duas da madrugada, des­
cansar um pouco, já que começaríamos um novo dia de
trabalho às 5,30 horas!
Não sei como sobrevivi a tamanho desgaste físico!
O cansaço, a revolta e a lembrança da injustiça — que
não me deixava sequer um minuto — contribuíram
para que eu tomasse a decisão de deixar a unidade tão
logo completasse o tempo de serviço. Uma providên­
cia foi imediata: nunca mais voltei a dormir no quar­
tel. Razão tem a sabedoria do povo:
— “Quem mora em quartel ou quer serviço ou
quer prisão. . . ”
Corria o ano de 1944. Inscrevi-me em vários con­
cursos do DASP: para Postalista, para Inspetor de Alu­
nos e para Escriturário, todos de igual padrão de ven­
57
cimentos, ou seja, 700 cruzeiros novos mensais. Com­
prava as apostilas e estudava-as sempre que podia, na
condução, à noite, no quarto que eu e o mano João
alugáramos em Bonsucesso, e até mesmo no quartel,
nas horas vagas.
Dispensado do serviço nos dias de prova, logrei
aprovação para inspetor de alunos do Colégio Pedro II.
As vagas eram poucas, sendo rapidamente preenchidas.
Quando parecia que as portas da vida civil se fecha­
riam todas para mim, surgiu uma oportunidade ines­
perada: o SAM (Serviço de Assistência ao Menor) pre­
cisava de inspetores, e eu consegui a nomeação. Dei
baixa poucos dias antes de assumir as novas funções.
Teve início então uma verdadeira odisséia de hor­
rores. A verdade é que o SAM não era uma escola, mas
sim, uma prisão camuflada; não possuía alunos, mas
detentos. É uma longa e pungente história, um drama
terrível e chocante, cujas maiores vítimas são crianças
de ambos os sexos, recolhidas nas ruas por uma insti­
tuição que se proclamava sua defensora e que, em ver­
dade, era sua implacável algoz e corruptora!
O funcionário público, segundo estipulava o Esta­
tuto, devia trabalhar 6 horas por dia. Impuseram-nos
uma escala de 12 horas (de 18 às 6 do dia seguinte),
com folga de 24 horas. Os mais velhos, guardas pró­
ximos da aposentadoria, gostavam do esquema. Nós,
jovens e coneursados, o abominávamos.
O SAM funcionava num pardieiro da rua Francisco
Eugênio que, diziam, já abrigara um quartel de polícia.
Era um velho casarão sem conforto, cujas instalações
remontavam ao tempo do Império. Os portões eram
de ferro e o prédio, de dois andares, possuía um sótão
de madeiras velhas e sujas. A única enfermaria era
uma lástima, mal aparelhada e de péssima conserva­
ção. O único enfermeiro fazia milagres para atender
àquelas crianças enfermiças e mal alimentadas. Gras­
58
savam a tuberculose, a sífilis, o sarampo, problemas
respiratórios e toda uma relação de doenças causadas
pela assistência criminosamente desleixada e indiferen­
te. A comida, pouca e de má qualidade, cheirava mal.
Denuncio o que poderíamos chamar de “conspira­
ção do silêncio”. O diretor era médico de renome. Nun­
ca aparecia no pátio da prisão, com medo de ser apu­
nhalado ou de se contaminar no contato com os in­
ternos. O médico da casa era idoso e raramente apa­
recia. Quando vinha, não atendia aos apelos desespe­
rados do enfermeiro, homem de bem, muito sacrifica­
do e um dos poucos que — real e sinceramente —
sentiam amor por aqueles infelizes. Muitos dos inspe­
tores, se submetidos a um simples exame mental, se­
riam dispensados. Entre eles, tenho plena convicção,
havia alguns sádicos no mais alto grau, além de pe­
derastas ativos e passivos.
Pobres internos! Todos eles — suas idades varia­
vam entre 7 e 18 anos — usavam o mesmo macacão
durante uma semana. Como tudo ali era regrado e ra­
cionado, o banho não era diário. O pátio era grande,
sujo e, nos dias de chuva, enlameado. O enorme salão
das refeições não oferecia a menor condição de higiene.
O café da manhã era às 7 horas. Os internos, em fila
indiana, eram conduzidos pelos inspetores e por alguns
empregados da casa até o salão.
Era proibido usar armas ou bater nos internos.
Contudo, à noite, os rebeldes — aqueles que infringiam
as determinações ou desobedeciam às ordens — eram
justiçados sem piedade. Certo dia, a escola-prisão acor­
dou com a notícia de que um guarda, conhecido por
sua severidade para com os internos, fora assassinado.
O SAM proclamava-se uma “escola de recupera­
ção”. Entretanto, exceto uns poucos que eram enca­
minhados para escolas agrícolas, a esmagadora maio­
ria dos internos passava o dia na mais completa e
59
neurotizante ociosidade, espalhados pelo pátio, onde lu­
tavam capoeira, conversavam obscenidades ou simples­
mente se deixavam ficar pelos cantos. Evidentemente,
tal sistema era um convite à corrupção dos mais no­
vos, condenados à pederastia e a outros vícios. Que se
poderia esperar desses pobres infelizes quando, anos
mais tarde, já “exemplarmente recuperados”, fossem
atirados às ruas?
A princípio, eu vivia temeroso de que algo me acon­
tecesse. Havia um clima latente de revolta entre os
internos e nós, guardas e inspetores, éramos o alvo
mais próximo de tanta cólera reprimida. Por fim, en­
contrei a solução. Havia um interno chamado Damião,
um dos mais antigos da casa que, inclusive, já estou­
rara o tempo limite de permanência ali. Não sei por
quais motivos, ele continuava, sempre solícito e pres­
tativo mas, acima de tudo, respeitado e até mesmo te­
mido pelos outros internos.
Chamei-o certo dia para uma conversa reservada.
Em troca de algumas concessões — permissão para fu­
mar escondido, ir lá fora fazer compras, alguns troca­
dos para o cigarro de vez em quando —, Damião pro­
tegia-me das “surpresas desagradáveis”. Em outras pa­
lavras: quem se metesse comigo, compraria briga com
ele. O resultado é que pude trabalhar em paz.
Além desta aliança secreta, tinha a meu favor o
interesse sincero que sentia por aquela gente sofrida.
Quando entrava de serviço, quase não tinha preocupa­
ções, pois a maioria gostava de mim e não pensava em
fugir no meu turno de trabalho. Logo ao entrar, pro­
videnciava-lhes um banho e também a mudança daque­
les macacões infectos. Muita vez, a rouparia não tinha
condições de atender a todos, mas fazia o possível. Co­
mo tratava a todos com urbanidade e respeito, os fun­
cionários me tinham em grande apreço. A pouco e pou-
60
r.o, fui me adaptando ao ambiente, mas nunca perdi a
esperança de progredir.
Na verdade, o SAM deveria afixar em sua porta de
(entrada os versos com que Dante inicia o relato das
torturas do Inferno:
“Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança!”.
Dentre os colegas que comigo entraram para a
instituição através de concurso, um destacava-se por
sua sinceridade e por seu bom relacionamento cá fora,
na Imprensa e na Câmara dos Vereadores. Chamava-se
Quadros. Éramos muito amigos. Sabíamos que estáva­
mos sendo ludibriados e decidimos lutar contra a ex­
ploração de que éramos vítimas. Certa feita, nós dois
e mais alguns concursados — os guardas antigos eram
ignorantes e medrosos — fomos à presença do diretor
que, em seu bem instalado gabinete, nos atendeu fria­
mente.
Tentamos conscientizá-lo da injustiça de nossa si­
tuação e das deploráveis condições de funcionamento
de uma instituição onde tudo faltava e o que existia
tinha que ser mudado: colchões infectos e poucos, re­
médios insuficientes, alimentação estragada, etc. Com
um sorriso amarelo e distante, recebeu o memorial que
eu e o Quadros preparáramos:
— Vou estudar o caso. Agora, se me dão licença. . .
Os meses sucederam-se, e o diretor ainda estava
“estudando o caso”. Resolvemos colocar um pouco de
lenha numa fogueira que deveria estar cada vez mais
forte e, no entanto, caminhava para transformar-se ape­
nas em cinzas. O Quadros acionou seus conhecimentos
na Imprensa e na Câmara. Foi combinada uma visita-
surpresa ao SAM...
Certa manhã, o portão principal, ao ser aberto
para a entrada do caminhão de mantimentos, deu pas­
sagem também a um grupo de vereadores, repórteres
e fotógrafos. Rapidamente, tudo foi visto e documen­
61
tado: o pátio, que estava em petição de miséria; os
dormitórios, repletos de colchões imundos, infestados
de insetos e cheirando mal pela urina acumulada; as
crianças, assustadas e andrajosas...
O diretor apareceu, contrariando seus hábitos de
só chegar depois das 10 horas da manhã. Abriu seu
luxuoso gabinete e recebeu ali a comitiva da Câmara.
Mas era tarde demais: à tarde, todos os jornais do Rio
estampavam o escândalo. O Presidente da República,
General Eurico Gaspar Dutra, ordenou a abertura de
inquérito. O diretor foi sumariamente demitido, a ali­
mentação foi melhorada, assim como a dormida e o
vestuário. Pelo menos por algum tempo, os internos
do SAM receberam um tratamento mais humanizado e
cristão...
Dizem que a perseverança é sempre recompensa­
da. No meu caso, posso confirmá-lo, pois minha traje­
tória é uma sucessão de conquistas efetuadas à base de
muita perseverança e de muita paciência. Como disse,
freqüentava os cursos do DASP, e foi assim que tomei
conhecimento da possibilidade de obter transferência
do Ministério do Interior, ao qual o SAM estava subor­
dinado, para o Ministério do Trabalho, caso lograsse
aprovação numa prova de Direito Administrativo. Não
descansei enquanto não vi meu nome na lista dos apro­
vados. E foi assim que, a 9 de dezembro de 1946, in­
gressei no Quadro de Escriturários do Ministério do
Trabalho, sendo designado para servir na Procuradoria
Geral da Justiça do Trabalho, onde permaneço até ho­
je (1981)! Pelo visto sou um dos fundadores desse ór­
gão. Após 39 anos, 5 meses e... dias me aposento no
cargo de Procurador da Justiça do Trabalho.

62
CAPÍTULO V
A CONSTITUIÇÃO DE UMA FAMÍLIA
Antes de prosseguir no relato de minha luta pela
sobrevivência, cabe-me fazer uma pausa, um intervalo
para falar de amor. E aqui outra vez me volta a per­
gunta: “Existe o Destino?”. Perceberá a procedência
dela o leitor que atentar para a série de coincidências
que se sucederam.
Uma vez chegado ao Rio de Janeiro, no final de
1940, fui visitar minha tia e madrinha Etelvina de Aqui-
no Melo, que residia no bairro de Vila Isabel. Titia
casara com Zacarias Serafim de Melo, e desse casa­
mento nasceram nove crianças. Fui recebido com gran­
de festa: após tantos anos, num lugar tão distante de
nossa terra natal, nós nos reencontrávamos!
Passou o tempo. Certa manhã, passava — como
sempre, apressado — pelo Largo da Carioca quando
avistei minha madrinha, que terminara de assistir à
missa no Convento de Santo Antônio. Aproximei-me
para cumprimentá-la, e foi aí que conheci aquela que
seria a mulher de minha vida — Maria de Lourdes, fi­
lha de titia e minha prima em primeiro grau.
Tantas terras visitadas, tantos lugares conhecidos,
tantas pessoas vistas, e eu fui apaixonar-me por minha
prima, que jamais vira antes e que só viria a conhecer
no Rio de Janeiro, pouco antes dos trinta anos de ida­
de! Veja, leitor, o que é a vida: um alagoano e uma
pernambucana vêm conhecer-se — apesar de primos
63
em primeiro grau — na distante e heróica cidade de
São Sebastião do Rio de Janeiro!
A partir do momento em que a vi, Lnão mais a tirei
do pensamento. Falei de meus sentimentos a pessoas
amigas, e todas aprovaram uma possível ligação. Só
havia um empecilho: sendo nós primos em primeiro
grau, nossa descendência não poderia ser afetada por
alguma doença causada por essa proximidade sangüí-
nea? Muitos comentavam que seria um risco muito
grande.
Não quis basear-me no disse-me-disse. Comprei vá­
rios livros e publicações sobre o assunto, consultei au­
toridades médicas, assisti a palestras e a conferências
sobre o tema. Por fim, cheguei à conclusão de que tu­
do não passava de boatos e de preconceitos enraizados
absurdamente.
Santinha, mãe de Fabíola, era grande defensora das
qualidades de Maria de Lourdes, sua afilhada:
— Vá em frente, Maestro, a Lourdes é uma moça
muito prendada, sabe tudo que uma dona de casa tem
que saber...
Contudo, naquela época, as coisas não eram como
agora. O relacionamento entre homem e mulher era
moroso e todo cercado de receios e de pudores. Em­
bora gostasse dela desde o primeiro momento, e apesar
de ela ter simpatizado comigo desde o início, o namoro
levou meses para ser iniciado. E, mais uma vez, a Fa­
bíola teve participação decisiva...
Ainda estava na Aeronáutica quando fui acometido
por uma crise de fígado, baixando ao hospital. Sabe­
dora de meus sentimentos, a Fabíola “arranjou uma
visita”, levando consigo a Lourdes. Qual não foi minha
surpresa quando as vi entrar pela enfermaria! Quase fi­
quei sem fala, e foi com dificuldade que consegui con­
versar, tentando aparentar naturalidade.
Uma vez restabelecido, "fui retribuir a visita”. E
desta forma, muito a medo e com muito tato, estabele­
ceram-se os primeiroes contactos.
Maria José, outra de nossas primas, aniversariava.
Comparecemos todos, que família de nordestino é mui­
to unida, principalmente, no “exílio”. Na volta, Fabíola
praticamente obrigou a Lourdes a aceitar que eu a le­
vasse até em casa. E foi assim que, finalmente, pude
declarar-me e propor-lhe namoro.
— Bem, se papai deixar, para mim, está tudo
bem . ..
Felizmente, o papai deixou! Por essa época, acon­
teceu aquele episódio de minha prisão por ter faltado
ao quartel para assistir a um filme romântico, o pri­
meiro de nosso namoro. O tempo correu célere e, ao
ser nomeado para o SAM, marquei casamento. E as­
sim, a 14 de julho de 1945, entrei para o “rol dos ho­
mens sérios”. Minha sogra e madrinha, que tanto dese­
jara nossa união, não estava presente, pois falecera
em 1942.
Minha responsabilidade aumentara — agora, tinha
uma família para sustentar, família que cresceu em
pouco tempo: em 1946, nascia o primogênito, a quem
demos o nome de Wilson; em 1947, chegava nossa pri­
meira filha, Maria de Lourdes. E não ficamos nisso:
em 1950, recebemos Maria Elizabeth; em 1953, apre­
sentava-se José Carlos; em 1955, tivemos a companhia
de Maria Helena; e finalmente, em 1962, era a vez da
caçula, Maria Inês.
Como o tempo passa rápido, Deus meu! De uma
hora para outro, o jovem recém-chegado do Nordeste
era o chefe de uma numerosa prole, que tinha que ser
vestida, alimentada, educada, divertida. Os proventos
do Ministério do Trabalho eram insuficientes, mesmo
acrescidos do ordenado de minha esposa. Era neeessá-
B5
rio conseguir nova ocupação que me permitisse propor­
cionar aos meus conforto e dignidade.
Como disse, ao saltar nesta mui leal cidade de São
Sebastião do Rio de Janeiro, pelos idos de 1940, trazia
comigo três coisas: um certificado do Concurso para
Auxiliar de Tráfego, a juventude de meus vinte e pou­
cos anos e a certeza de que venceria os desafios da
jornada. Era bem verdade que meus conhecimentos já
eram de nível superior; contudo, eu não dispunha de
nenhum diploma que atestasse tal coisa. Lembra-se o
leitor de que, em minha Santana do Ipanema, não pu­
dera fazer as provas da 4^ e da 5á séries do antigo
ginásio. Assim, que me restava? Desistir definitivamen­
te de meus sonhos ou começar tudo de novo, humilde,
paciente e corajosamente. Minha maneira de ser des­
conhecia o cansaço e o desânimo, de modo que optei
pela luta.
A conselho de amigos bem informados, em setem­
bro de 1951, viajei de trem para Itaguaí, cidade do Es­
tado do Rio de Janeiro distante cerca de 110 km da
cidade do Rio de Janeiro. Ali me inscrevi num con­
curso para o Artigo 91 (atual Supletivo de 19 Grau).
O trem, tive de apanhá-lo em Mangaratiba às 14 horas
de uma tarde cinzenta e fria. Éramos um grupo de jo­
vens e de velhos, todos dispostos a tudo.
A cidade acolheu número considerável de candida­
tos, que chegavam das mais diversas e distantes re­
giões do Estado. A primeira prova foi de Português.
Lembro-me perfeitamente do tema da Redação: “A Vi­
da no Campo”. Ora, sendo natural de uma cidadezinha
do interior de Alagoas, vivido e curtido na fazenda de
meu pai, possuía grande vivência no assunto, e pude
escrever com facilidade cerca de 35 linhas. No dia se­
guinte, foi a vez de Matemática. O exame acabou tar­
de; mesmo assim, voltei ao Rio através de uma bal­
deação em Santa Cruz.
66
Não preciso dizer que, após cada prova, era obri­
gado a regressar ao Rio a qualquer hora do dia ou da
noite. Depois da prova de Matemática, fui chegar a
Santa Cruz lá pelas 23 horas. Somente à 1 hora da
madrugada do dia seguinte, cansado e sonolento — mas
Interiormente feliz — é que consegui retornar a minha
casa.
A terceira prova foi de Latim. Fi-la sofrivelmente.
Caiu um verso de Ovídio para tradução, além de ques­
tões de Análise Sintática. Desta vez, o regresso foi um
pouco mais demorado: cheguei às 2 horas da manhã!
A 4$ prova foi de Francês, e me fui regularmente. O
regresso foi por Itaguaí mesmo, no trem das 19,30 ho­
ras. No dia seguinte, ainda cansado pelo esforço da
véspera, lá estava eu de novo para fazer duas provas
escritas: Desenho e Inglês. Saí-me regularmente em
ambas.
No dia seguinte — veja o leitor o pequeno espaço
entre as provas, o que praticamente eliminava a pos­
sibilidade de uma última revisão e também o repouso,
sempre necessário após grande dispêndio de energias
— começaram as provas orais, que se estenderam por
quase um mês de lutas, viagens de ida e de volta, ten­
sões, expectativa cada vez maior e mais angustiante.
Algumas vezes, diante da extensão dos obstáculos,
cheguei a pensar em desistir. Contudo, a lembrança da
família que necessitava de meu progresso profissional
impulsionava-me mais e mais, e eu prosseguia, apesar
das pedras do caminho...
Por fim, tudo terminara. Houve uma interessante
mesa de doces oferecida pelo Sr. Prefeito. Usou da pa­
lavra o diretor do Ginásio de Itaguaí, Dr. Lira. Em
nosso nome, agradeceu um colega de Teresópolis e, em
nome do Prefeito, falou o professor Sinésio, que em­
polgou a todos nós. Em seguida, uma aluna declamou
67
o “Navio Negreiro” de Castro Alves. Como encerra­
mento, apresentou-se o Coro Orfeônico de Itaguaí.
Minha turma era composta de 200 candidatos, e eu
consegui classificar-me em 49*? lugar. Regressei alta
madrugada, somente chegando a casa às seis horas da
manhã do dia seguinte.
No dia 15 de novembro de 1951, numa tocante so­
lenidade, experimentei uma das maiores alegrias de mi­
nha vida: recebi o Certificado de Conclusão do Giná­
sio; galgava assim o primeiro degrau de uma longa e
árdua caminhada que — prometia a mim mesmo — só
terminaria nos bancos da Universidade!
Morando com meu sogro até então, decidi comprar
minha casa própria. Com muita luta, obtive um finan­
ciamento do IPASE: Dei como entrada CrS 20.000,00
(vinte mil cruzeiros) e fiquei pagando um interminável
plano de amortização. O antigo dono, a pretexto de
estar procurando casa, não se mudava. O tempo pas­
sando, eu pagando pontualmente as prestações do fi­
nanciamento, e nada do prazer de estar em minha casa.
Até que um dia meu sogro, fiscal do Ministério do Tra­
balho, interveio. Combinou com um colega seu, que
intimou o ex-proprietário a mudar-se imediatamente.
Aquilo que o bom-senso e as doces palavras não obti­
veram, o medo conseguiu: a 21 de novembro de 1951,
recebi finalmente as chaves!
Fazia-se imperioso alterar a pintura. A esposa do
antigo dono criava seis enormes cachorros, o que cau­
sou inúmeros estragos. Toda a casa era pintada de
preto. Sem esmorecer, consegui levantar a quantia ne­
cessária e, finalmente, mudamos.
A luta era cada vez mais espinhosa. Somente com
os proventos do Ministério do Trabalho não era mais
possível viver. Comecei nova peregrinação à cata de
outro emprego. Conversei com um dos procuradores
68
de minha repartição, Dr. Agripino Nazareth (de saudo­
sa memória). Muito humano e muito bem relacionado
cá fora, ele procurou ajudar-me, recomendando-me ao
Dr. José Borgéa, então diretor do jornal “Gazeta de No
tícias”. Fui admitido como redator. Entrava às 18 ho­
ras e saía quando Deus fosse servido. Largava do Mi­
nistério às 17 horas, fazia um lanche rápido e vinha
para a Redação, na rua Teófilo Ottoni n<? ...
Era um ambiente de intenso trabalho, sempre à
cata de notícias, as máquinas rodando sem parar. Re­
cebi uma Carteira de Identidade, que guardo comigo
como recordação. Ao largar, à hora que fosse, pegava
o velho bonde e ia para casa dormir. Lembro-me da
reportagem que fiz na Praça Mauá, entrevistando os
motoristas de ônibus e de lotações, descontentes com
uma portaria que os obrigava a usar taxômetro (con­
trolador de velocidade). Curioso: há uns dois ou três
anos atrás, o mesmo problema voltou à tona, e nova­
mente os motoristas conseguiram impor o seu ponto
de vista. No dia seguinte, a “Gazeta de Notícias” publi­
cou minha matéria, ilustrada por fotos — guardo um
exemplar do jornal comigo.
Os Drs. Dorval Lacerda (de saudosa memória) e
Crockatt de Sá, também procuradores de minha repar­
tição do Ministério do Trabaho, inteirados de minha
luta pela manutenção da família, intercederam por
mim junto ao Dr. Waldemar Ferreira Marques, então
presidente do SENAC (Serviço Nacional de Aprendiza­
gem Comercial). Pouco antes, em minhas andanças pe­
lo DASP, obtivera o Registro de Professor de Matérias
Comerciais, concedido pela Secretaria Geral de Educa­
ção e Cultura.
O Dr. Waldemar, depois de inúmeras entrevistas,
enviou-me à sede da entidade, na rua Santa Luzia. De­
pois de muita luta, de muita espera e de muita buro­
69
cracia, fui finalmente contratado como professor, ser­
vindo na Escola Chile, situada no distante bairro de
Olaria. Ao fim de um ano de trabalho, meu contrato
seria ou não renovado, de acordo com o que eu produ­
zisse e de acordo também com os interesses e as neces­
sidades do SENAC.
Começou para mim uma existência de lutas sem
trégua. Trabalhava até às 17 horas no Ministério do
Trabalho, no centro da cidade. Ao largar, tomava às
pressas o bonde no Largo de S. Francisco e dirigia-me
ao subúrbio de Olaria, onde passava as noites lecionan­
do, lecionando, lecionando. Chegava a casa extenuado,
tomava banho, jantava (a que horas, Deus meu!) e
procurava dormir, o que nem sempre conseguia, em
função do cansaço e das preocupações com o sustento
da família.
Dia seguinte, começava tudo de novo...
No final do ano — que alívio! — meu contrato foi
renovado. Finalmente, em março de 1954, fui efetivado
como professor da instituição. O curioso é que tudo
parecia repetir-se: tal como em minha Santana do Ipa­
nema, eu era um “professor sem diploma”, pois pos­
suía somente o certificado de conclusão do ginásio
(atual 1<? grau).
Tratei de mudar, mais uma vez, os rumos de mi­
nha existência.
A situação financeira, apesar de tantos esforços,
éra delicada. Nós, funcionários públicos, vivíamos em
dificuldade. Em abril de 1958, entramos com uma Ação
Administrativa contra a União. Vitoriosos, fomos pro­
movidos — eu passei da letra “G” para “L”.
Tratei de comprar os objetos com que sempre so­
nháramos e que até então nos eram inacessíveis: má­
quina de lavar, liquidificador, ferro de engomar, gela­
deira, etc. Foi uma festa!
70
Em minha consciência, soou novamente aquela ve­
lha e estranha voz, convocando-me para novas batalhas.
"Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”, dizem
os versos da famosa e controvertida canção de Geraldo
Vandré. Era preciso “fazer a minha hora”, era neces­
sário lutar mais ainda por um lugar ao sol...

71
CAPÍTULO VI
RUMO À UNIVERSIDADE
Ainda em março de 1954, matriculei-me na 1^ série
do Curso Técnico de Contabilidade da Associação Cris­
tã de Moços. Durante três anos de “sangue, suor e
lágrimas”, meu dia estava completo: de manhã, estu­
dando na A.C.M.; de 11 às 17 horas, servindo no Minis­
tério do Trabalho; à noite, lecionando no SENAC!
Só mesmo quem já viveu experiência semelhante
sabe o quanto é penoso trabalhar em dois lugares, aten­
der às necessidade de uma família e, ao mesmo tempo,
encontrar tempo para estudar. Que de vezes chegava
atrasado a uma aula, que de vezes fui obrigado a faltar
a uma prova, que de vezes me saí mal num teste sim­
plesmente porque os olhos se recusavam a continuar
abertos madrugada afora, período durante o qual, mui­
tas vezes, eu conseguia rever pontos e pesquisar con­
teúdos novos!
E à noite, extenuado e mal alimentado, enfrentava
minhas aulas, minhas intermináveis e cansativas aulas
de “professor sem diploma". Não vá o leitor ver nessas
palavras traços de inadaptação ao magistério. Não! Pe­
lo contrário, dar aulas estava em meu sangue, era mi­
nha vocação maior, continuada por três de meus filhos;
acontecia simplesmente que, na situação de cansaço, de
quase estafa em que as ministrava, era-me impossível
produzir bem, realizar-me por inteiro. Nessa época, eu
já contava 43 anos de idade, não era mais o mesmo
jovem sonhador e ingênuo que desembarcara no Rio
em 1940.
Mas o tempo passa depressa. Três anos transcor­
reram sem muitas novidades. Finalmente, a 10 de de­
zembro de 1956, completei o Curso Técnico de Conta­
bilidade. Sabedor do feito, um velho amigo de meu
pai, sr. Benedito Menezes, ofertou-me o anel de forma­
tura. Aproximava-me dos cinqüenta anos, meu filho
mais velho estava com dez anos, possuía família nume­
rosa. .. foi outro momento inesquecível a festa de co­
lação de grau, presentes amigos, companheiros de tra­
balho, parentes próximos e distantes, esposa e filhos.
Vencera a primeira etapa, faltavam ainda muitos
degraus. A conclusão do curso de 29 grau colocava-me
às portas da Universidade: era prosseguir ou acomo­
dar-me. Como já deixei claro, jamais conheci o desâ­
nimo e a apatia diante dos obstáculos. Assim sendo,
mal terminei de registrar meu diploma no MEC e de
dar entrada no SENAC de uma cópia do mesmo, pre­
parei-me para a “batalha do Vestibular”.
A 19 de abril de 1957, iniciaram-se as aulas no Cur­
so Pré-Vestibular Hélio Alonso, considerado na época
o melhor preparatório da cidade, com turmas sempre
repletas. Estudava na rua México, 31. O curso funcio­
nava à base de apostilas. Eram aulas extremamente
dinâmicas, num ritmo alucinante, e quem não tivesse
muita vontade de vencer não conseguiria acompa­
nhá-las.
Como vê o leitor, a luta prosseguia encarniçada.
Eu apenas substituíra as aulas da ACM pelas do Hélio
Alonso. De resto, continuava na mesma "roda-viva” de
sempre: aulas, Ministério, SENAC...
Abramos um parêntese para abordar a realidade
dos “cursinhos preparatórios”. A meu ver, são verda­
deiras feiras, onde se vende Educação a preços avilta-
73
dos. Não há — na quase totalidade deles — a menor
preocupação com o conforto, com o bem-estar nem
mesmo com a higiene dos alunos. A grande maioria de­
les funciona em prédios que não foram construídos pa­
ra esta finalidade. Desta forma, não dispõem de bar
nem de instalações sanitárias decentes.
Como o objetivo único é o lucro fácil, a superpo­
pulação discente é uma triste e constante realidade.
Muitas vezes, cansado, era obrigado a ficar de pé du­
rante horas, simplesmente porque os últimos a chegar
não tinham cadeiras para acomodar-se nem espaço pa­
ra ajeitar-se. Evidentemente, a disciplina ficava a dese­
jar, o falatório atrapalhava as aulas, enfim, por vezes,
tinha impressão de que era personagem de uma co­
média ou — pior do que isso — de uma tragédia grega.
Fico triste porque, passados tantos anos, a realida­
de é a mesma. Penso nos muitos que, como eu, estão
hoje passando pelas mesmas dificuldades, enfrentando
os mesmos problemas de falta de instalações adequa­
das, de indisciplina, de desconforto. Enfim...
Enfim, o momento tão aguardado chegou: inicia­
ram-se as provas do Vestibular. Inscrevera-me na Uni­
versidade Gama Filho e na Faculdade Nacional de Di­
reito. Quantos sonhos, quanta esperança, quantos pro­
jetos! Saíram os resultados: fui reprovado em ambas
as instituições!
Diante do fracasso, há duas maneiras de reagir.
Uma é a dos covardes e dos acomodados: como co­
nheceram o insucesso uma vez, desistem de seus so­
nhos, arrumando mil desculpas que, na verdade, escon­
dem apenas o medo de fracassar novamente. São os
que ficam pelo meio da estrada, sempre com uma quei­
xa nos lábios, sempre com uma crítica na mente, sem­
pre com um protesto nas mãos. O mundo é mau e
cruel, não os compreende, não percebe a sua geniali­
dade, e por isso...
A segunda forma de reagir é a dos persistentes, é
a das pessoas de fibra, de coragem, de vontade de su­
perar quaisquer obstáculos. Para estas, o fracasso é
uma experiência positiva, na medida em que nos pro­
porciona lições a serem extraídas, na medida em que
nos serve como estímulo redobrado para mudar com­
portamentos e rever posições. É a maneira de ser dos
homens e das mulheres vitoriosos, daqueles que com­
pletam a jornada a despeito de qualquer coisa, daque­
les que foram talhados para realizar, para comandar,
para servir de exemplo.
Posso dizer sem medo que pertenço a esta segun­
da espécie de gente. Assim, quando soube que meus
esforços foram temporariamente — apenas temporaria­
mente — infrutíferos, tomei logo a decisão de voltar ao
combate. E, em março de 1958, lá estava eu no mesmo
curso, com a mesma disposição inquebrantável de per­
seguir meu sonho até que o pudesse concretizar!
Durante todo um longo e enervante ano, acompa­
nhei os mesmos professores, que explicavam as mes­
mas matérias, utilizando a mesma didática, fazendo os
mesmos exercícios, as mesmas perguntas, os mesmos
comentários. Esta mesmidade entrava-me pelos nervos
como uma agulha que, persistentemente, me invadisse
as carnes. O que me livrava do desespero completo era
aquele sonho, o mesmo e cada vez mais forte sonho
de cursar uma Universidade, de poder dizer que ven­
cera na cidade grande.
Apesar dos esforços e da dedicação de todo um
ano de privações e de sacrifícios, fui novamente repro­
vado no Vestibular da Faculdade Nacional de Direito!
Nesse dia, chorei, coisa que não me acontecia há tanto
tempo. Por momentos, refiz mentalmente o caminho
percorrido e, como num filme, revi os principais lan­
75
ces de minha vida: a infância em Santana do Ipanema,
a adolescência sob a exploração de meu tio, a época
feliz do “Ginásio Santanense”, a chegada ao Rio, o ca­
samento, o SAM, a ACM, o SENAC e agora... por duas
vezes, o fracasso, a derrota, o dissabor do não ter con­
seguido. Seria tudo isto um aviso de Deus? Será que
a mim nada mais caberia realizar? Será que a estrada
chegara ao fim, e só me restava esperar a aposenta­
doria e a morte silenciosa?
Desci as escadarias da Faculdade com o coração
pequenino, sangrando. Por momentos, pensei em desis­
tir de tudo. Afinal, ganhava o suficiente para uma vida
mediocremente honrada e mediocremente cômoda. Por
que continuar lutando, se o muro que se erguia à mi­
nha frente me parecia excessivamente alto, praticamen­
te intransponível?
Contudo, mais uma vez, fiz do fracasso motivo
para novas lutas. Não, não abandonaria meu sonho de
formar-me advogado, nem que tivesse de repetir a ex­
periência do Vestibular dez ou quinze vezes!
Mudei de curso. A partir de março de 1959, passei
a freqüentar o “Curso Proccaci”, que funcionava na
rua Almirante Barroso. Seria injusto se não reconhe­
cesse a excelente qualidade dos professores do Hélio
Alonso, mas não posso deixar de dizer também que no
Proccaci, numa turma reduzida, pude conhecer um
aproveitamento bem superior.
O ano correu célere. No início de 1960, inscrevi-me
pela terceira vez no Vestibular da Faculdade Nacional
de Direito. Entrar para a Nacional era, para mim, ques­
tão de honra, um compromisso que assumira comigo
mesmo três anos antes. No dia 27 de março de 1960
— data imorredoura e gloriosa para mim! — saiu a re­
lação dos candidatos aprovados, e eu era um deles,
exatamente o 155? de uma lista de 185 vitoriosos!
76
Muito devo ao Dr. Evaristo de Moraes Filho (o
da Justiça do Trabalho), um de nossos mais brilhantes
advogados. Sabendo de minha luta sem trégua por um
lugar ao sol, acompanhando meus esforços ao longo
de cinco penosos anos, jamais me faltou com uma pa­
lavra de estímulo e até mesmo de carinho quase pa­
ternal. Imploro a Deus que lhe dê tudo de bom na
Terra assim como no Céu, que este é o lugar reservado
às pessoas de bom coração que, como ele, se interes­
sam pelo próximo e lhe dão apoio desinteressado e
anônimo.
Na tarde do dia 30 de março de 1960, iniciaram-se
as aulas. Senti-me orgulhoso por freqüentar uma Fa­
culdade tida e havida como a melhor do Rio de Janeiro,
face a seu ensino de primeiríssima qualidade, ministra­
do por mestres de gabarito reconhecido em todo o
Brasil e mesmo além-fronteiras: Santiago Dantas,
Afonso Arinos de Melo Franco, Haroldo Valadão, Eva­
risto de Moraes Filho, Vandick Londres da Nóbrega,
Oscar Stevenson, Francisco Campos, Hélio Gomes, Pe­
dro Calmon e tantos outros...
As dificuldades aumentaram para mim. Fora clas­
sificado para o turno da tarde, ou seja, de 16 às 18
horas. Acontece que meu horário no Ministério do Tra­
balho era de 11 às 17 horas. Como fazer? Como estar
ao mesmo tempo em dois lugares?
Sou obrigado a fazer uma constatação: não teria
chegado aonde cheguei se não me tivessem aparecido as
pessoas certas nos momentos certos. Aliás, penso que
ninguém pode vencer na vida se não contar com "um
empurrãozinho” de vez em quando.
Para mim, o “anjo bom” surgiu na pessoa da chefe
de minha Repartição, Dona Alayde Bezerra Brandão.
Graças à sua imensa bondade e compreensão, pude con­
ciliar as duas coisas. Entrava mais cedo do que os
77
outros, às 10 horas já estava em meu posto — e sem­
pre a encontrava lá, a postos, incansável. Em contra­
partida, saía às 15,30 horas, fazia um lanche às pressas
para, às 16 horas, assistir às aulas da FND. Às 18 ho­
ras, saía da Faculdade, enganava o estômago com um
pobre lanche e dirigia-me a Olaria, onde lecionava até
22 horas.
Diga-se de passagem que o Estatuto do Funcioná­
rio Público só permite faltar ao trabalho em época de
prova, desde que o funcionário comprove esta necessi­
dade. Não faz nenhuma outra concessão a quem estu­
da. Dona Alayde, contudo, com a coragem que só os
bons de coração possuem no momento de ajudar o pró­
ximo, passou por cima das exigências burocráticas e
me deu cobertura durante os cinco anos em que fre-
qüentei a FND. Evidentemente, eu fazia o máximo para
estar à altura: chegava cedo e, além do meu serviço,
muitas vezes, corrigia pequenas falhas dos colegas. Es­
tes me queriam bem e, com exceção de um, todos me
elogiavam o dinamismo e a coragem com que enfrenta­
va os obstáculos.
Este único descontente vivia a criticar-me, dando a
entender que eu sacrificava o Ministério pela Faculda­
de, o que absolutamente não era verdade, pois o ser­
viço estava em ordem e até, sob certos aspectos, adian­
tado. Dona Alayde soube do caso — não por mim, que
não queria aumentar-lhe as preocupações — e certo
dia, indignada, mandou chamar o invejoso:
— Senhor, o funcionário Floro está saindo mais
cedo com autorização minha! O serviço está em dia e
ele entra muito mais cedo do que todos os outros. Ade­
mais, eu assumo a responsabilidade pelo que está acon­
tecendo. Assim, se estiver insatisfeito, queixe-se a meus
superiores ou então cale a boca!
O fofoqueiro nunca mais questionou “meus abu­
sos" ...
78
Um fato muito auspicioso aconteceu neste ano de
1960: Brasília tomou-se a capital do país. Por essa épo­
ca, o mano João Batista era 39 sargento da Aeronáu­
tica e, na qualidade de técnico em teletipo, procedia à
instalação desse sistema no novo Distrito Federal. Dis­
punha, a qualquer hora, de um avião para levá-lo e tra­
zê-lo. Assim, o sangue falou mais alto, e João convi­
dou-me para uma rápida visita a Brasília.
Desta forma, no último sábado de maio de 1960,
embarquei no “Convair” da “Real Aerovias”. Conheci
Brasília ainda no nascedouro, após um vôo rápido, con­
fortável e muito feliz. No aeroporto improvisado, apa­
nhamos uma viatura da FAB e rumamos para o galpão
de trabalho do mano, onde tudo era planejado em mi­
núcia para dotar a cidade do que havia de mais mo­
derno. Algum tempo depois, de carro, percorremos a
metrópole recém-nascida, que lutava para respirar e
para se fazer presente nas grandes decisões da vida
nacional. A obra era imensa; suas estruturas, colos­
sais. Trabalhava-se febrilmente por toda parte, como
se o Brasil, mergulhado até então em profundo sono,
tivesse despertado repentinamente para os desafios do
amanhã. Às 22 horas do mesmo dia, chegamos ao Rio
de Janeiro no mesmo “Convair”.
Voltemos às “lutas universitárias”. Apesar do
grande esforço para escapar da 29 época, não tive su­
cesso em “Introdução à Ciência do Direito”, que, no se­
gundo semestre, estava sob a regência do Prof. Can-
tídio, competente e rigorosíssimo. No primeiro semes­
tre, estudara com o Prof. Hermes Lima, extraordinário
mestre, político de idéias esquerdizantes, que fora per­
seguido no governo de Getúlio Vargas. Em outubro de
1978, indo à Academia Brasileira de Letras para uma
entrevista com Raquel de Queirós, vi o velho mestre, já
alquebrado, passar ao largo, naquela mesma cadência
tranqüila que sempre o caracterizou. Julguei melhor
79
não falar-lhe: andava cabisbaixo, totalmente absorto
em seus pensamentos. Escritor festejado, possuo al­
guns trabalhos seus, sempre claros e objetivos. Gra-
ciliano Ramos, em sua “Memórias do Cárcere”, conta
o que ele e seu colega Hermes Lima sofreram sob o
Estado Novo, a todo momento transferidos de uma pri­
são para outra, muitas vezes, tratados como animais.
Como disse, estava em 2$ época. Foi uma fase ter­
rível para mim: não tinha tempo para estudar, já que
o período era de provas finais no SENAC, provas que
eu aplicava e tinha que corrigir em poucos dias. Apro­
veitava os minutos em que permanecia sentado no ve­
lho bonde, sacrificava sábados, domingos e feriados...
com a mesma disposição de sempre, e contando com a
colaboração inestimável de minha esposa, que me for­
necia a indispensável retaguarda nos cuidados com os
filhos, marchei firme para a batalha, disposto a vencer.
E venci, sendo promovido ao 29 ano do Curso de Di­
reito!
No ano letivo de 1961, o problema repetiu-se, ape­
nas mudando a matéria: desta vez, a “pedra no cami­
nho” foi Direito Romano, ministrado pelo Prof. Van-
dick Londres da Nóbrega. Com muito esforço, conse­
guia superar mais esta barreira, logrando aprova­
ção para a série seguinte.
A 15 de junho de 1961, tomei conhecimento da
morte de meu mano Flávío, ocorrido em Recife. Se­
gundo o relato de Laurinha, minha prima ali residente,
ele havia saído pouco antes de sua casa. Um ônibus
deu marcha-a-ré de súbito, colhendo-o desprevenido.
Deixou esposa e três filhos, duas meninas e um rapaz
de nome José Nagib, hoje advogado em Recife.
Era um pedaço de mim que partia. Era uma par­
cela de meu passado que se desfazia na voragem do
tempo. Não mais os dias da infância longínqua nas
ruas de minha Santana; não mais o sucesso do “Giná-
80
sio Santanense”; não mais as vitórias em tantos e tan­
tos concursos públicos, em que o Flávio sempre se des­
tacava por seu saber e por sua inteligência privilegia­
da. ..
No final de 1962, obtive uma dupla e significativa
vitória: de um lado, fui promovido à 49 série do Curso
de Direito da FND sem ficar em 29 época em matéria
alguma; de outro lado, tendo escolhido para especiali­
zação a área trabalhista, fui designado a 31 de dezem­
bro de 1962 estagiário em minha própria Repartição,
a Procuradoria Geral da Justiça do Trabalho, servindo
no TRT-19 Região, que se localizava na Avenida Almi­
rante Barroso, 54, 9*? andar.
No dia 5 de novembro de 1963, comecei meu pe­
ríodo de estágio. Éramos 18 estudantes de Direito, ori­
undos de diversas Faculdades. Nossa missão era dar
assistência jurídica a menores. Era nosso chefe o ilus­
tre e dinâmico Procurador e, mais tarde Juiz Dr. Carlos
1’lmentel (de saudosa memória). Não posso deixar de
dizer que esse fiel servidor da causa pública se revelou
mn ótimo comandante, trabalhador incansável, defen­
sor da Justiça acima de todos os demais interesses.
Ao final de 1963, fui promovido ao 59 ano de Di­
reito, tendo, entretanto, o dissabor de sofrer uma de­
pendência em Direito Judiciário Civil. Apesar de todas
as lutas e dos inúmeros sacrifícios, podia considerar-
me um homem feliz, pois estava realizando — aos pou­
cos, penosa e morosamente, é certo — o meu grande
sonho.
O que mais me impressionou nesse último ano de
FND foram as aulas práticas ministradas no Instituto
Médico Legal. Ali, aprendi a identificar as diversas re­
giões do corpo humano que podem ser atingidas por
uma bala, por uma facada ou coisa que o valha. Os
cadáveres expostos eram dissecados friamente, como
sc estivéssemos falando de máquinas ou de objetos ina­
81
nimados e não, de seres humanos. A princípio, confes­
so que fiquei atordoado e não pude jantar. Com o pas­
sar dos dias, fui-me adaptando àquele espetáculo quase
macabro.
Por ato do Exmo. Sr. Dr. Rego Monteiro, M. D. Pro­
curador Geral da Justiça do Trabalho do Rio de Janei­
ro, fui designado a 5 de novembro de 1964 estagiário
na 1$ Regional da Justiça do Trabalho. Posteriormente,
ainda voltaria a servir na Procuradoria Geral. Positi­
vamente, não foi nada fácil manter o equilíbrio entre
todos os encargos que pesavam sobre meus ombros.
Mas eu contava com Ele, nosso Pai.
Através de leituras, já a conhecia. A histórica Igre­
ja do Outeiro da Glória fora, no período do 19 Reinado,
o local predileto para as grandes solenidades eclesiásti­
cas da Coroa: casamento, batizado, coroação etc. Dom
Pedro I casou suas filhas aí. Lá fui ter pela primeira
vez no dia 19 de dezembro de 1964, às 17 horas, por
ocasião do enlace matrimonial da srta. Mariana Bran-
drão, neta de minha chefe Alayde Bezerra Brandão, o
“anjo bom” a quem tanto devia. Por dever de gratidão,
não poderia faltar ao evento, apesar da tarde chuvosa
e fria.
O templo é magnífico e a paisagem que lá de cima
se contempla, ao largo da majestosa Baía de Guana-
bara, indescritível. A muralha que circunda a edifica­
ção é de pedra, sólida como a rocha e alta como os
grandes monumentos. Sobe-se a pé, por uma ladeira
calçada e em círculo.
O ano de 1964 chegava a seu término e, para mim,
este final representava a concretização de um grande
sonho: a conclusão de meu Curso de Direito.
De repente, tudo me volta à memória. Era o dia
7 de janeiro de 1965, onze horas de uma bela manhã
de sol. A Igreja da Candelária, uma das mais tradicio­
nais do Rio de Janeiro, estava repleta dos parentes e
82
dos amigos dos formandos. Ergui meu pensamento ao
Cnador, agradecendo-Lhe a suprema feliciade daquele
momento.
As 21 horas, no Teatro Municipal do Rio, houve a
colação de grau em ato solene. As dependências de
nossa mais sofisticada casa de espetáculos tornaram-se
pequenas para abrigar todos os que foram prestigiar-
nos. Na hora marcada, teve início a cerimônia, presi­
dida pelo Magnífico Reitor Pedro Calmon, secundado
pelo Diretor da Faculdade Nacional de Direito do Rio
de Janeiro. Cantamos o Hino Nacional, a voz embar­
gada pela emoção do momento.
O brilhante colega Jader de Albuquerque, orador,
falou por todos nós, traduzindo-nos os sonhos e as es­
peranças de realizações futuras. O paraninfo, o ines­
quecível professor Arnold Wald, ocupou a tribuna por
mais de uma hora, encantando-nos com seu verbo in­
flamado, na última e talvez mais expressiva das aulas
que nos ministrou.
Era como se eu estivesse flutuando no espaço, em­
balado por recordações e por sentimentos que se atro­
pelavam uns aos outros. De relance, voltei às traves­
suras de menino em Santana do Ipanema. Recordei os
tempos do trabalho em Maceió, a tentativa desespe­
rada de conciliar as atividades de comerciário com os
estudos no curso noturno.
Reencontrei-me com o Floro professor do “Ginásio
Santanense”: tantos alunos, tantas alegrias, tantas con­
quistas! Pouco depois, estava na terceira classe de um
navio, em direção ao Rio de Janeiro, o coração povoado
de sonhos e de ideais. Numa outra curva da estrada,
"começando tudo de novo”, fazia o 29 Grau na Associa­
ção Cristã de Moços, ao mesmo tempo que servia no
Ministério do Trabalho e ministrava aulas à noite no
SENAC.
83
O tempo jamais se detém: eis-me no Curso Pré-
Vestibular Hélio Alonso, as duas tentativas fracassadas
e, finalmente, na terceira, o ingresso na Universidade.
Vida que segue, e chego a 1965, estou no Teatro Muni­
cipal do Rio de Janeiro, os cabelos — poucos, é verdade
— encanecidos pelo passar dos anos e pela sucessão
dos obstáculos por vencer, a idade já pesando sobre os
ombros nestes cinqüenta anos de lutas e de sacrifícios,
os seis filhos encaminhados — minha vitória maior!
Pode o leitor imaginar o que passou por minha
mente naqueles momentos de glória? Pode o leitor com­
preender o que representa, para um homem que veio
do nada, que precisou abrir caminho à custa de toda
sorte de privações, formar-se advogado aos 50 anos de
idade e pai de 6 filhos?
Talvez possa. Saberá então o que senti naquela
noite festiva, entre os abraços dos colegas também emo­
cionados, no meio dos afagos dos parentes orgulhosos,
envolvido pelo carinho da esposa e dos filhos, todos do­
minados pela emoção.
Consultei o relógio: meia-noite. Por um momento,
desejei ter poderes mágicos e ser capaz de interromper
o curso das horas. Por instantes, quis ser capaz de pa­
rar o tempo e tomar aqueles instantes repetidos, cons­
tantes, eternos. O Teatro Municipal estava quase vazio.
Poucas vozes se faziam ouvir, poucas pessoas passa­
vam para lá e para cá, nos últimos momentos da ines­
quecível solenidade.
Cabia-me acordar do sonho. No dia seguinte, a rea­
lidade cotidiana se imporia, acordando-me bem cedi-
nho para os desafios de um novo dia. E eu sabia que,
vencida uma batalha, a guerra ainda não terminara.
Sim, eu era um advogado formado, com todos os di­
reitos inerentes ao título. Mas a luta apenas começará:
onde poderia exercer a advocacia? Quem confiaria num
homem de 50 anos que vivia num país de jovens? Como
U
Hiiporar a barreira dos preconceitos e dos favorecimen-
t.oH ilícitos?
Enfim, para quem — partindo de tão longe — che­
gara até ali, a vida era uma permanente fonte de enri­
quecimento, de rejuvenescimento, de descobertas. E,
som sombra de dúvida, eu estava preparado intima­
mente para a batalha final de minha longa, árdua e
penosa caminhada...

85
CAPÍTULO VII
DA UNIVERSIDADE À PROCURADORIA
Apesar da grande vitória representada pela conclu­
são do Curso de Direito, o ano de 1965 foi marcado por
dois acontecimentos de triste memória para mim. O
primeiro deles foi a morte de Oseir, esposo de Maria,
uma das filhas de nossa grande amiga Sebastiana, que
conviveu intimamente conosco durante décadas. Para
dar idéia do afeto que nos unia, basta dizer que meus
filhos a tratavam carinhosamente por “vovó Sebastia­
na”.
Minha esposa deu à luz a nossos seis filhos em ca­
sa, assistida por Berenice, parteira e grande amiga. Se­
bastiana auxiliou-a nos seis resguardos, tratando de sua
alimentação e ajudando na assistência às crianças.
Oseir era um homem de bem, dava-se com todos e
possuía uma situação financeira razoável. Morreu ele­
trocutado no cumprimento do dever, vez que era ele­
tricista. Compareci ao enterro e, já usando de meu
diploma, legalizei a pensão da viúva junto ao Forum de
Duque de Caxias.
O segundo fato lamentável atingiu-me em cheio no
coração. Faleceu meu querido mano João Batista de
Araújo Melo, vitimado pelo câncer. Durante quatro pe­
nosos anos, ele lutou heroicamente contra a doença im­
placável, submetendo-se resignadamente a dolorosas
aplicações de cobalto e de inúmeras outras drogas. Por
fim, paralítico da cintura para baixo, passou seus últi­
86
mos dias num leito do Hospital da Aeronáutica. Ali
pude vê-lo pela derradeira vez: pálido, abatido, mas em
paz consigo mesmo e com o mundo.
Era mais uma fração de mim mesmo que se apar­
tava. Quantas vezes, garotos ambos, eu bem mais ve­
lho do que ele, nos reuníamos para planejar mil e uma
travessuras! As ruas de Santana conheciam-nos muito
bem. E quando, rapazinho, fui para Maceió, João me
substituiu nas aventuras e nas confusões que coloca­
vam toda a vizinhança em polvorosa.
Deixou viúva e quatro filhos homens. Hoje, passa­
dos tantos anos, é com saudade e com especial orgu­
lho que registro a heróica jornada de sua fiel compa­
nheira, minha prima e irmã de minha esposa, Ignácia
de Aquino Melo. Sozinha, e sem jamais pesar a quem
quer que fosse, esta mulher admirável criou e — pode-
se dizer — formou todos os filhos!
Os dois mais velhos, Roberto e Ronaldo, já se for­
maram respectivamente em Economia e em Adminis­
tração; e os dois mais jovens, Rogério e João Batista,
alcançaram a Universidade agora, em 1981, o primeiro
cursando Direito e o segundo, Ciências Biológicas! Só
quem acompanhou, ao longo do tempo, a luta de minha
prima é que pode saber da grandiosidade de seu cará­
ter, da fibra de seu ânimo e da generosidade de seu
coração.
Um fato que me uniu mais ainda a meu irmão foi
o aparecimento dos primeiros sintomas da terrível do­
ença. Tínhamos ido passar o fim de semana em Pirar
tininga, na casa de nossa inesquecível prima Fabíola.
Ao sair do banho de mar, meu irmão sentiu-se mal,
sem nem de longe suspeitar que estava marcado para
morrer tragicamente.
Na 2?-feira, ao regressar, foi ao médico. Os exa­
mes a que se submeteu foram conclusivos: câncer. Daí
por diante, começou uma penosa e infrutífera luta con-
87
ira o monstro que, a pouco e pouco, ia consumindo
suas entranhas. A princípio, ficava em casa e ia ao ser­
viço médico para tratamento. Depois, verificando cora,-
josamente que ia morrer, decidiu permanecer no Hos­
pital. Visitei-o dia após dia, até o desenlace cruel.
A esposa não o abandonou um só instante, exem­
plo de amor, de dedicação, de coragem, de grandeza
moral, de elevação de espírito. A bomba de cobalto
destruía-lhe as células, o sofrimento era insuportável,
não amenizado nem mais pela morfina. Por fim, às
9,30 horas da manhã de 19 de setembro de 1965, partiu.
Pobre irmão! Logo você, que tanto queria viver,
que tanto lutou para chegar aonde chegou, que amava
cada momento da existência!
Mas a vida continua, célere e imperturbável a des­
peito das dores dos homens...
Inscrevi-me no Curso de Formação de Professores
de Técnicas Comerciais da Fundação Getúlio Vargas.
O esforço foi imenso, pois as aulas eram diárias e es-
tendiam-se das 18,30 às 21,30 horas. Para dar conta do
recado, fui obrigado a tirar licença por um ano sem
vencimentos no SENAC. Além dos numerosos traba­
lhos, fazíamos visitas a vários centros educacionais, co­
mo o de Niterói, dirigido por Myrtes Wenzel, mais tar­
de, secretária estadual de Educação do Rio de Janeiro
no governo de Faria Lima.
No penúltimo dia de 1965, fui alvo de homenagem
por parte do SENAC por haver completado, junto com
outros professores, 15 longos anos de trabalho nessa
instituição. Recebi uma medalha de ouro e um broche,
que ainda guardo como recordação.
Estamos de novo no limiar de um novo ano. Ele
me proporcionou grandes alegrias, a começar pela Car­
teira de Advogado, que recebi a 7 de janeiro de 1966.
Pouco depois, como professor do SENAC, participei dos
famosos “Jogos da Primavera”. O desfile das escolas
88
participantes foi no Estádio do Maracanã. Levei comi­
go meus filhos José Carlos e Maria Helena, que vibra­
ram com a festa de congraçamento e esporte. Para
nossa imensa satisfação, obtivemos o primeiro lugar
da competição!
Em outubro deste ano, organizei uma excursão a
Volta Redonda, onde pudemos conhecer a gigantesca
siderúrgica, orgulho de todos os brasileiros. Levei
meus alunos em dois ônibus cheios — eles só pagaram
a viagem. Preparei tudo sem ajuda de quem quer que
fosse, enfrentando muitas dificuldades. A Companhia
Siderúrgica ofereceu-nos almoço substancioso e farto.
Saímos do Rio às 6,30 h da manhã e, já às 8,30 h, che­
gávamos por lá.
Fomos recebidos por uma comissão de Relações
Públicas da empresa, todos solícitos e amáveis. Todos
recebemos capacetes protetores, ouvimos as instruções
sobre como proceder dentro dos diversos setores de
produção e seguimos sob a supervisão do engenheiro-
cicerone, que nos deliciou com uma exposição vibrante
e objetiva do que representa, para nosso país, uma em­
presa do porte da Siderúrgica de Volta Redonda.
Para minha especial satisfação, todos se comporta­
ram da melhor maneira possível, fazendo anotações e
preparando um relatório que, mais tarde, eu exigiria
numa prova. Às doze horas, em fila e ordeiramente,
dirigimo-nos ao refeitório, muito bem administrado,
com alto índice de higiene e eficiência. Almoçados, vol­
tamos à visita. Durante horas, pudemos ver de perto
o funcionamento deste “monstro de aço” que alimenta
o coração de nossas indústrias.
Concluída a inspeção, demos uma volta pela cida­
de, conhecendo seus pontos turísticos, tirando retratos,
tomando sorvete num ambiente descontraído, mas
respeitoso. Chegamos ao Rio por volta das 19 horas,
cansados mas felizes pelo que tínhamos realizado. Ain­
89
da hoje, esta excursão é uma das melhores lembranças
que tenho de meu tempo de magistério aqui no Rio de
Janeiro.
O mesmo não posso dizer da mentalidade de al­
guns de nossos dirigentes estudantis. Promovendo re­
gularmente excursões a diversos pontos turísticos e a
diversas indústrias do Estado, fui surpreendido certa
feita por uma demonstração de falta de visão e de lar­
gueza de um dos diretores com quem convivi no
SENAC. Transcrevo o requerimento-protesto que en­
treguei à diretoria daquela instituição:
“Floro de Araújo Melo, professor de matérias téc­
nicas, lotado na E-2, turno da noite, vem submeter a
V. Sas. o caso que passa a historiar:
1. Como é do conhecimento de todos, costumo
promover excursões a diversas localidades do Estado,
notadamente Volta Redonda, com o objetivo de com­
plementar as noções teóricas que nossos alunos rece­
bem em sala de aula;
2. Sem falsa modéstia, devo encarecer que, no
turno da noite, e de um certo tempo a esta parte, sou
o único professor que vem realizando tal atividade, re­
curso áudio-visual de grande valia, meio inconteste de
enriquecimento cultural e existencial do educando, for­
ma de elevar o nome do SENAC, instituição querida e
respeitada na Companha Siderúrgica Nacional;
3. Neste ano, quando cogitava pôr em prática este
empreendimento, recebi do colega prof. Alberto Dias,
solicitação no sentido de que organizasse com ele uma
excursão, visto que lhe faltava a necessária prática. De­
cidi acompanhar o colega, sentindo-me feliz por, final­
mente, alguém se juntar a mim nessa iniciativa tão
meritória;
4. No dia 6/10/1972, às 6,30h, saímos da E-2 em
dois ônibus lotados, perfazendo um total de 72 alunos
sorridentes e agradecidos. Fizera apenas uma exigên­
90
cia : que o colega conseguisse abono das aulas que da­
ria à noite. Segundo me garantira, tudo estava com­
binado com o diretor;
5. Precisamente às 19h desse dia, chegávamos à
E-2 cansados, é bem verdade, mas satisfeitos. Fui bater
o ponto e, para minha surpresa, soube que não estava
autorizado a fazê-lo;
6. Meu espanto aumentou quando o Sr. Diretor
de viva voz me informou que as aulas não seriam abo­
nadas por ele porque eu não havia levado meus alunos
e sim, os de outro professor;
7. Permite-me perguntar: alunos meus ou não,
não pertencem todos ao SENAC e não são todos filhos
de Deus? Por que essa discriminação, que contraria
frontalmente os sadios princípios tão apregoados por
esta instituição?
8. Meus colegas professores e os alunos da Casa
estão de sobreaviso e inteiramente desestimulados de
promover outras excursões ou mesmo atividades extra­
dasse, indignados com o tratamento que recebe aquele
que, além de tomar a iniciativa de realizá-las ano após
ano, sempre foi um servidor pontual, competente e as­
síduo — como o demonstra sobejamente minha folha
de serviços prestados;
9. Para mim, a situação é mais séria, visto que,
além do lado moral seriamente comprometido, existe
o aspecto financeiro, que vem afetar meu orçamento
doméstico, já tão minguado;
10. Diante do exposto, espero confiante uma deci­
são que me faça justiça. Termos em que, etc. etc. etc”.
Sabe o leitor qual foi a decisão da diretoria geral
do SENAC? Manter o desconto das aulas que eu dei­
xara de ministrar!
A revolta dos alunos e dos colegas foi grande, as
manifestações de solidariedade acompanharam-me por
algum tempo. Contudo, a inflexibilidade dos “educa-
.9 1
dores dos gabinetes com ar refrigerado” abriu em meu
peito uma ferida que mesmo hoje, após tantos anos,
não cicatrizou de todo.
Não preciso dizer que, a partir de 1972 e até o ano
em que deixei o SENAC, nenhuma outra excursão foi
jamais promovida...
Que é a vida senão um colecionar de emoções e de
lembranças? Dentre as recordações do tempo que pas­
sou, guardo duas relíquias com especial carinho, duais
cartas de pessoas queridas. A primeira delas foi de
meu pai, Manoel de Aquino Melo, carta-tesouro não só
por seu conteúdo como também pelo fato de ter sido
a única que recebi de meu genitor desde que vim para
o Rio de Janeiro. Eis o que me diz:
“Aldeia, 20 de julho de 1967.
“Floro — Boa saúde.
“Há um mês mais ou menos fui chamado pelo
Banco do Brasil para ser informado de que, em 1964,
eu lhe havia remetido cem mil cruzeiros e de que você
nunca recebeu. Foi pedida a devolução, já recebi e vou
lhe remeter novamente, acrescido de cento e cinqüenta
contos, sendo os cento e cinqüenta contos como auxílio
para a compra do anel para minha afilhada e neta que
vai se formar ao fim deste ano. Os cem contos que eu
havia remetido em 1964 eu não me lembro para quê;
assim, torno a remetê-los porque já são seus.
“Aqui pelo rádio fiquei sabendo da morte do Ma­
rechal Castelo Branco. Por aqui tem chovido regular­
mente, todos sofrendo das lavouras porque tem dado
fraco, pior seria se nada desse. Vou entregar a impor­
tância ao Darci para remeter pelo Banco. Recomendo a
todos de nossa família e para todos uma bênção do pai
e amigo Manoel de Aquino Melo”.
A outra missiva é de meu filho mais velho, Wilson,
e de certa forma, vale como uma absolvição de algum
erro que porventura tenha cometido na educação de
92
meus filhos. Afinal, sempre procurei, como pai cum­
pridor de seus deveres, dar o máximo de mim mesmo,
proporcionando-lhes muitas coisas que não tive. Diz a
carta:
“Rio, 12 de julho de 1969.
“Caro pai:
“Acho que lhe devo esta carta há muito tempo. Em
minha adolescência, eu o critiquei duramente, eu só
sabia apontar-lhe erros, defeitos, faltas.
“Mas o tempo passou, e eu cresci. Comecei a tra­
balhar, a conhecer melhor as pessoas, o mundo aí fora.
Compreendi uma série de coisas que não entendia an­
tes. Vi de perto a maldade, a mentira, a ingratidão, o
sofrimento.
“Descobri então o grande homem que o senhor
sempre foi. Quando comparo a minha ascensão com
a sua; quando me lembro das provações e das dificul­
dades por que passou, abrindo sozinho todas as estra­
das, vejo que eu não faria a décima parte do que o se­
nhor fez.
“Enfrentar o que o senhor enfrentou e continuar
honesto e dedicado a família é ser um grande homem.
Sempre o admirei, quero que saiba. Sua capacidade de
administrar e de organizar as coisas; sua força de von­
tade e seu empenho em levar até o fim os empreendi­
mentos, foram exemplos que, desde garoto, aprendi a
valorizar.
“Hoje resolvi escrever-lhe esta carta para demons­
trar-lhe o que sinto. Já era hora de dizer-lhe isto, de
fazê-lo compreender que sua vida, apesar das falhas,
não foi em vão, pois seus filhos continuarão a sua obra.
“Um abraço carinhoso de seu filho Wilson”.
Amenidades à parte, voltemos à luta por um lugar
ao sol.
93
Meu sonho, concluída a Faculdade Nacional de Di­
reito, passou a ser a nomeação como Procurador da
Justiça do Trabalho. Ora, na Procuradoria da Justiça
do Trabalho, havia vagas para Adjunto de Procurador.
Entretanto, o Procurador Geral, mais por timidez do
que por impossibilidade real, não se atrevia a nomear
quem quer que fosse para preenchê-las.
Nesse ínterim, a Procuradoria da República — que,
assim como a do Trabalho, está subordinada ao Poder
Judiciário —, achando-se na mesma situação, resolveu
tomar a iniciativa das nomeações. Seguindo o exemplo,
o Procurador Geral da Justiça do Trabalho encaminhou
ao Ministério da Justiça um projeto de preenchimento
das vagas existentes.
Era a minha grande oportunidade! Havia um dispo­
sitivo legal que rezava: “Tem prioridade para nomea­
ção como Procurador Adjunto o funcionário habilitado
que fizer estágio na Justiça do Trabalho, na lá Regio­
nal, no Rio de Janeiro”. Ora, eu fizera estágio por dois
anos exatamente ali e, por lei, deveria ser nomeado as­
sim que surgissem vagas, o que acontecia agora.
Corria o ano de 1973. Nosso Procurador Geral co­
meçou a nomear pessoas que, como eu, eram advoga­
dos, mas gente de fora. Não preciso dizer que a no­
meação não se fazia por concurso, mas através de sim­
patias, conhecimentos e ... “pistolões”. Como — pobre
de mim! — não possuía estas “indispensáveis habilita­
ções”, ia ficando para trás. Formara-me em fins de
1964, já se haviam passado quase dez anos, eu estava
ainda mais velho do que antes, e continuava na mesma
repartição pública, executando o mesmo serviço buro­
crático de tantos e tantos anos!.. .
Documentação pronta, amparado numa prioridade
absolutamente legal, consultava diariamente o “Diário
Oficial” onde, para meu desapontamento, tomava co­
nhecimento da nomeação de advogados bem mais jo-
H
vens do que eu, alguns em início de carreira no Fun­
cionalismo Público, mas tendo a seu favor a circuns­
tancia de serem filhos de senadores, de deputados, de
procuradores da Justiça, alguns meus conhecidos e que
me juravam sincera amizade.
Vendo que as vagas se esgotavam, iniciei intensa
movimentação. Comecei a enviar cartas para todo mun­
do: procuradores, chefes de departamentos, ex-colegas
da Faculdade Nacional de Direito agora em altos car­
gos — inclusive um alto oficial de nosso Exército —,
políticos, enfim, bati a todas as portas.
Estávamos no final de 1973, dia 12 de dezembro.
Finalmente, depois de anos de uma espera angustiante,
saiu a minha nomeação para o cargo de Substituto de
Procurador da Justiça do Trabalho-Adjunto! Contudo,
ainda uma vez, a alegria não seria completa, pois fui
preterido quanto ao local de trabalho. Explico-me: em­
bora eu estivesse legalmente habilitado e houvesse vaga
para o Rio de Janeiro, fui deslocado para São Paulo,
o que me obrigou a fazer periodicamente cansativas
viagens de ida e volta.
Na madrugada do dia 20 de dezembro de 1973, eu
e minha esposa viajamos de ônibus para a grande São
Paulo, a fim de tomar posse do cargo. Era Procurador-
Chefe da 2^ Região-SP o Br. Vinícius Ferraz Torres, na
oportunidade representado pelo Dr. Paulo Chagas Fe-
lisberto — meu atual chefe, uma vez que, embora jâ
tenha requerido aposentadoria, ainda me encontro na
ativa (julho de 1981, com 39 anos e 8 meses de serviço
público).
Percebendo que não poderia conciliar o árduo e
penoso exercício do magistério com o de Procurador
em São Paulo, fiz um acordo com o SENAC, onde lecio­
nei por 23 anos, na base de 60%, recebendo a quantia
de 46 mil 599 cruzeiros.
95
CAPÍTULO VIII
O REPOUSO DO GUERREIRO
“Sempre a lutar, cheguei ao topo da montanha,
sem o pressentir. E agora eis que, do lado oposto, vou
descendo-lhe a encosta, assim quando, ao sol posto, só,
nem mais minha sombra aos meus passos acompanha.
E ponho-me a enxugar o suor que me banha a fronte.
Ao latejar das têmporas, o rosto comprimido entre as
mãos, vem-me à garganta um gosto acre — e, em meu
ser, a angústia, a colear, se entranha.
“Revejo em pensamento a estrada percorrida...
Longe me acena alguém, do ponto de partida. De lon­
ge ao Mundo atirei-me, incauto peregrino. Cansado, es­
tendo ao chão meu desbotado manto. Sussurra o ven­
to ... Escuto... e o que eu julgava um canto como um
ai, bem longe... É o som de um sino”. (Extraído de
“Sol Poente”, do escritor pernambucano Ulysses de Al­
buquerque, ano de 1962).
Para trás ficaram lutas, sacrifícios, decepções e
conquistas. Para trás, a criação de seis filhos, todos
bem encaminhados na vida; para trás, as pelejas ingló­
rias em prol da realização de meus ideais.
Chegara o momento do descanso, da colheita. Pela
primeira vez na vida, tinha oportunidade de olhar para
o relógio sem experimentar um aperto no coração di­
ante da possibilidadede chegar atrasado — agora, eu
não tinha mais horários rígidos, pois despachava os
processos em minha própria residência. Pela primeira
96
vez na vida, o fantasma do desemprego ou de uma re­
dução do salário não mais me roubava o sono.
Decidi contentar meu coração, que gritava angus­
tiado pelo retomo à terra natal. Assim, no dia 29 de
dezembro de 1978, partimos do Rio: éramos eu, minha
esposa e as filhas Maria Helena e Maria Inês. Embarca­
mos num ônibus da Empresa “São Geraldo” com desti­
no a Maceió, onde fomos recebidos por nossa prima
Margarida. Uma semana depois, seguimos para minha
Inesquecível Santana do Ipanema.
Da emoção que experimentei ao rever o chão que
me serviu de berço dou conta em meu livro “Santana
cio Ipanema Conta A Sua História”, publicado em
1976:
"Santana do Ipanema! Santana da Ribeira do Pa-
nniim! Terra de meus primeiros passos!... Berço de
minhas primeiras descobertas!... Solo de meus pri­
mai i-os deslumbramentos!...
“Santana querida e amada, que um dia deixei cheio
de esperanças e de sonhos! Hoje volto a teus braços
gonerosos, com o coração sangrando de saudade, com
a alma repleta de amor, de ternura e de carinho.
“Cada passo que dou em tuas ruas é uma parte da
infância que retorna... Cada olhar a tuas casas é uma
porção do jovem que volta em m im ... Cada som de
teus habitantes é uma parcela de mim mesmo que, per­
dido e aflito, reencontro em ti.
“Tu foste o meu início... Tu foste o meu come­
ço... E agora descubro que és também o meu prolon­
gamento e o meu fim. Que sou eu sem ti? Como o bom
filho que retorna à casa paterna, aqui estou, como a
procurar aquela paz, aquele encanto, aquela força que
somente em ti posso encontrar.
“Recebe-me, Santana querida, com o calor da mãe
que agasalha o amado filho.
9T
"Aceita-me com a magnanimidade do pai que redes-
cobre o herdeiro afastado do convívio da família.
“Hoje sou de novo o jovem, que te solicita rumos.
“Hoje sou de novo o menino, que te suplica afago.
“Hoje sou de novo o filho, que te pede a bênção!”.
Em tempo: o referido ensaio sociológico foi com­
posto por mim e por meu irmão Darci de Araújo Melo,
oficial reformado de nosso glorioso Exército.
Tudo era festa para meu coração embriagado de
amor. Ou melhor, quase tudo. A cidade crescera a
olhos vistos, alterando todo um panorama que me fi­
cara fixado na memória. Percorrendo suas ruas e pra­
ças, percebi que o grande filho da terra, um dos pio­
neiros da educação por aquelas redondezas, meu mano
Professor Flávio de Aquino Melo, fundador do “Giná­
sio Santanense”, falecido muitos anos antes, não fora
lembrado! Seu nome não figurava em nenhuma rua, em
nenhuma praça, em nenhuma escola ou prédio público.
Tratei de reparar a injustiça. Obtive do vereador
Everaldo Noya (meu ex-aluno) a promessa de apresen­
tar um projeto na Câmara propondo o nome de Flávio
para a próxima escola a ser inaugurada. Pouco tempo
depois de regressar ao Rio de Janeiro, recebi um tele­
grama seu, informando-me que sua proposição fora
aprovada e convidando-me para inaugurar o novo edu-
candário, em oportunidade a ser definida posterior­
mente. É claro que aceitei de pronto o convite.
O ano de 1974 começou muito bem. No início do
mês de fevereiro iniciei meu exercício como Adjunto de
Procurador da Justiça do Trabalho, em São Paulo. No
dia 16, aconteceu o casamento de minha filha Maria
Elizabeth com o Sr. Sérgio Libânio da Silva, união que
tem sido abençoada por Deus e que só nos tem trazido
alegrias, coroadas com o nascimento de duas netas,
Mônica e Margareth.
98
<) tempo passou depressa. Em meados de 1875, fiz
nova visita à minha Santana do Ipanema. Desta vez,
fomos em caravana: eu, minha esposa Lourdes, as fi­
lhas Maria de Lourdes, Maria Helena e Maria Inês, mi­
nha prima Fabíola e sua neta Andreia, e o Diniz, na­
morado da Maria Helena. Fomos de automóvel: o Di­
niz cm seu “Fusca” e a Maria de Lourdes dirigindo um
"Brasília”. A viagem foi maravilhosa, apesar de cansa­
tiva. Dirigimo-nos a Aracaju, onde nos hospedamos na
casa de meu sobrinho Ben-Hur. Ficamos poucos dias
aí, o que não nos impediu de admirar os belos pontos
turísticos.
Seguimos para Maceió e, daí, para Santana de Ipa­
nema. Após alguns dias de descanso, rumamos para a
fazenda “Aldeia”, nosso destino final. Era inverno e
chovia sem parar. Freqüentes se faziam os atolamen-
tos. Muitas vezes, os carros embaraçavam-se no terre­
no alagadiço e somente uma junta de fortes e mus­
culosos bois conseguia arrancá-los da lama. Fomos re­
cebidos com uma buchada oferecida por meu mano
Darci de Araújo Melo. Foi um domingo inesquecível!
Na segunda-feira, para minha surpresa e especial
satisfação, eis que recebemos a visita de meu sogro Za­
carias, que viera de carro, seguindo outro roteiro, tam­
bém do Rio, acompanhado por sua segunda esposa, Ma­
ria Isabel, pelo sogro Felipe, pelas filhas Laura e Celi-
na e pelos netos Cláudio e Fernando! A “Aldeia” quase
explodiu de alegria e de festa!
Contudo, como diz a sabedoria popular “dia de
muito, véspera de pouco”. A tristeza rondava minha
família: sua grande aliada, a Morte, preparava-se para
desfechar contra nós um rude golpe. Na terça-feira, pe­
la manhã, chegou um portador de Santana com a no­
ticia de que meu velho e querido pai estava passando
mal. Arrumamo-nos às pressas e todos, em caravana
nilonclosa e aflita, dirigimo-nos à cidade.
99
Foi uma bela morte a de meu pai — se é que po­
demos considerar “bela” tal passagem. O fato é que o
“velho Mané” como que esperou que todos os filhos
ainda vivos chegassem para dizer o último adeus. Fal­
tava ainda Maria Augusta, que chegou na quarta-feira
à noite, vindo de Recife. Fraco, mas ainda lúcido, meu
pai abençoou-a. Emocionada, ela não teve coragem de
assistir-lhe aos últimos momentos e retirou-se.
Meu pai, como que aliviado de um grande peso,
começou a lamentar-se:
— Meus filhos, eu não prestei em vida, eu não fiz
o que deveria ter feito...
Fabíola, sempre nobre e corajosa, respondeu-lhe:
— Que é isso, Manoel? Ninguém é perfeito. Você
fez muita coisa boa.
— Mas não foi o bastante, não foi o suficiente...
Todos mal continham o pranto. No silêncio do
quarto, ergueu-se mais uma vez a voz de minha prima
Fabíola:
— Gente, seu pai está pedindo perdão a vocês por
algum erro que tenha cometido com algum de vocês.
Por isso, se alguém aqui presente tem alguma mágoa
desse homem, perdoe-o agora...
O silêncio foi a resposta, como numa absolvição
coletiva. Sentindo-se perdoado, meu pai fechou lenta­
mente os olhos...
“Nada como um dia depois do outro”, diz outro
ditado popular. Enterrado meu pai, chegou o dia da
inauguração do "Grupo Escolar Flávio de Aquino Me­
lo”. Muita gente compareceu à cerimônia: o vereador
que propusera a homenagem, o prefeito, o Juiz de Di­
reito, parentes, amigos, ex-alunos do “Ginásio Santa-
nense” e agora cidadãos de ilustre posição, o povo em
geral. Agradecendo em nome da família, proferi o se­
guinte discurso:
ÍÒ O
"Ilmo. Sr. Prefeito de Santana do Ipanema
"limos. Srs. Vereadores
"Ilmo. Sr. Dr. Juiz de Direito
“Senhoras e Senhores:
“Em meu nome e no de minha família, agradeço de
coração às autoridades aqui presentes e a todo o povo
de minha terra esta justa e merecida homenagem a um
vulto sertanejo que foi, em vida, um defensor do ensi­
no em nossa Santana do Ipanema.
“O professor Flávio de Aquino Melo, conhecido por
quase todos que me ouvem, nos idos de 1934 até 1937,
esteve à frente de seu “Ginásio Santanense”, fundado
por ele exclusivamente para atender aos pedidos dos
pais de família daqui de nossa Santana, visto que, por
essa época, a cidade não contava com escolas de gran­
de porte para a educação de seus filhos. O que existia
eram pequenas escolas que não podiam acolher a nu­
merosa população infantil que, de ano para ano, au­
mentava.
“E o nosso pioneiro e destemido educador resolveu
enfrentar sozinho o desafio de legar a Santana uma
instituição grandiosa de ensino. Disse sozinho porque,
naquele momento, não contava o mestre com pessoas
à altura dessa nobre missão. Só mais tarde é que tal
pessoa surgiu e, por feliz coincidência, está aqui pre­
sente. Refiro-me à minha prima Fabíola, que o auxiliou
naqueles primeiros anos e aqui está, vindo rever sua
terra e trazendo consigo sua neta Andréia.
“Essa homenagem que estamos prestando ao bata-
Ihador incansável que foi o professor Flávio, devemos
tomá-la extensiva, se os senhores me permitem, a essa
senhora digna de todos os encómios, e também à espo­
sa do pioneiro, Dona Matilde Jacob de Melo e a seu
filho José Nagib, aqui também presentes.
101
“Anos mais tarde, aprovado num concurso para
Coletor Federal, o mano Flávio foi obrigado a deixar
a direção do “Ginásio Santanense”, não sem antes pas­
sar o bastão a este que fala aos senhores agora. As­
sumi a direção do educandário. A luta foi árdua, e só
pôde ser triunfante devido ao apoio irrestrito do povo
de minha Santana.
“Chegado o ano de 1940, o imperativo do Destino
fez-me cumprir outra missão, desta vez, longe de minha
terra. Por isso, viajei para a Capital da República, fe­
chando as portas de nosso inesquecível “Ginásio”, de
tantas alegrias e de tão gratas recordações, até hoje
indeléveis em meu coração!
“Querido irmão Flávio, onde quer que você esteja
nesta hora, receba de todos nós esta homenagem tão
simples quanto sincera. Nós não o esquecemos, Santa­
na do Ipanema não o esqueceu! E aqui, nesta hora de
tanta emoção e de tão grande alegria, é ainda uma vez
em você que nosso pensamento repousa.
“Autoridades, parentes e amigos desta terra queri­
da, ainda uma vez, obrigado”.
O ano de 1976 foi marcado por intensa atividade
literária. Considerando que, até aquela data, nenhum
conterrâneo tivesse publicado algo sobre a história de
Santana, eu e o mano Darci resolvemos fazer uma esta­
fante pesquisa de natureza histórica e publicá-la por
nossa conta e risco. Não foi nada fácil coletar certos
dados, em função da inexistência de registros confiá­
veis. Muitas das vezes, baseamo-nos na tradição oral,
isto é, no depoimento das pessoas velhas.
Essa parte mais trabalhosa ficou a cargo do Darci,
que ali reside desde muitos anos. Quantas vezes, no
lombo de um cavalo, ele teve que percorrer quilôme­
tros e quilômetros à cata de uma informação, de um
esclarecimento, de uma confirmação! O livro “Santana
do Ipanema Conta A Sua História” não existiria se não
102
fosse o denodo, o desprendimento e a persistência do
Darci.
Pronto o livro — tiragem de 1.000 exemplares —,
decidi lançá-lo na cidade que fora objeto de tanto tra­
balho. E foi assim que, a 5 de maio de 1976, eu e mi­
nha esposa Lourdes saímos do Rio num carro-leito da
Empresa “São Geraldo”, com destino a Maceió. Con­
fesso que não consegui dormir direito nesse tão apre­
goado leito do carro. Contudo, reconheço que a orga­
nização é impecável, tudo é limpo, o ônibus é dirigido
com todo cuidado e somos bem servidos durante a via­
gem com café, sucos variados... de almoço nem se
fala. Diga-se de passagem que o ônibus pára em luga­
res pré-determinados para que possamos fazer as refei­
ções mais substanciosas.
Após 4 dias de viagem por estradas bem asfalta­
das, chegamos mais uma vez a Maceió, de onde ruma­
mos para Santana. Fizemos finalmente o lançamento
do livro, numa noite de autógrafos muito concorrida.
O fato era inédito em Santana, o que aumentou a curio­
sidade e o entusiasmo de todos — afinal, a partir daí
nossa cidade tinha uma história, e história contada por
dois de seus filhos!
O tempo não parou de correr desde então. No fi­
nal de 1979, pude concretizar um velho sonho: com­
prei uma casa de praia na belíssima cidade fluminense
de Saquarema. Para tanto, vali-me da herança deixada
por meu pai. Antes que o leitor estranhe tamanho es­
paço de tempo entre sua morte e o recebimento da
parte que me cabia, devo dizer que o inventário foi
bastante demorado, em vista da questão judicial que
nós, os filhos e descendentes do primeiro casamento,
travamos contra a esposa e os descendentes do segun­
do — coisa de família numerosa...
Em Saquarema, tenho passado as férias e os perío­
dos de repouso. Ali, perto do mar, respirando o ar
los
puro de uma pequena cidade do interior, como que me
reencontro com Santana do Ipanema. Então, penso nas
lutas do passado e chego à conclusão de que... valeu
a pena!
Sim, valeu a pena ter persistido quando tantos te­
riam parado; valeu a pena ter lutado quando tantos te­
riam deposto as armas; valeu a pena permanecer fiel
a meus ideais e a meus sonhos, quando tantos os te­
riam preterido...
De repente, volto a minhas raízes: estou em São
Cristóvão, em torno de cujo Pavilhão funciona aos do­
mingos a Feira Nordestina. É uma promoção já conhe­
cida de todo o povo carioca e de pessoas de outros Es­
tados da Federação. Aqui encontramos praticamente de
tudo do Nordeste: trajes típicos, calçados, roupas de
um modo geral, redes de dormir, comidas característi­
cas da região, música sertaneja, literatura de cordel,
cantadores, poetas populares, doces e guloseimas, ra­
paduras, objetos de uso de vaqueiros, chapéus de pa­
lha, indumentárias de couro, arreios, chicotes, alforjes,
selas, chocalhos, rédeas, etc.
De ano para ano, a Feira de São Cristóvão cresce,
alarga-se, encomprida-se, serpenteando, tomando de as­
salto as ruas das redondezas, numa extensão prodigio­
sa. Voltei a ela em maio de 1980, levado pela saudade
e pela curiosidade que me despertou uma reportagem
publicada pela “Revista de Domingo” do “Jornal do
Brasil”. Confesso que fiquei perplexo diante da magni-
ficiência de seus contornos. Percorrendo-a, recordei-me
de Feira de Santana, situada na Bahia, que visitei
numa de minhas andanças pelo Nordeste querido.
"Funciona somente aos domingos, de 7 da manhã
até fins da tarde. Uma das ruas que tomou de assalto
é a Senador Alencar, onde morei durante alguns anos,
hospedado na casa de minha prima Fabíola — lá pelos
idos de 1940/41. Por essa época, não existia ainda a
Feira de São Cristóvão.
Não é fácil visitá-la por completo, em função de
seu tamanho extraordinário e do número fantástico de
pessoas que se cruzam para lá e para cá, uns compran­
do, outros vendendo, alguns apenas matando as sau­
dades da “terrinha” e, por último, um bom grupo de
turistas, pesquisadores e de curiosos.
Apesar de todo o atropelo, pude rever muitas das
manifestações mais autênticas da cultura nordestina.
Aqui, a gostosa rapadura e, em especial, a rapadura
batida, feita com cravo; ali, perfumes baratos que as
jovens tanto apreciam; um pouco adiante, barracas
com discos de nossos melhores violeiros do Ceará, da
Paraíba, do Rio Grande do Norte, de Alagoas, etc.; a
poucos passos, o milho verde, a batata doce, queijos
de vários tipos, fumo de corda... veio-me à memória
a figura veneranda de minha mãe fumando o seu cigar-
rinho de fumo de corda, que ela própria fazia com a
palha seca do milho envolvendo o fumo, que eu com­
prava em rolos.
Vejam! Ali estão figuras feitas em barro por algum
artista anônimo ou — quem sabe? — pelo próprio mes­
tre Vitalino... o Cordel cantando em versos apaixona­
dos as aventuras, as conquistas, os sonhos e os fracas­
sos de nosso povo tão sofrido: Antônio Silvino, Lam­
pião, Padre Cícero, de mistura com políticos e artistas
de nossa época, todos personagens-símbolo do Nor­
deste ...
Como num passo de mágica, vou e volto, parto e
retorno, viajo e desembarco, estou no passado e me
revejo no presente, terra e asfalto, macaxeira e iogurte,
Santana e Rio de Janeiro, carro de boi e automóvel, o
falar arrastado do caboclo e a linguagem requintada
105
dos meus mestres de Direito» Deus do Céu!, como o
tempo passou depressa!
Um pensamento indiscreto apalpa-me meio timida­
mente, repilo-o, mas ele insiste, e já agora, volta forte
e me domina: quando o Criador decretará a minha ho­
ra? Sou obrigado a reconhecer que ele se justifica dian­
te da jornada percorrida. Afinal, ao longo dos anos,
tantos e tantos entes queridos se foram, e eu fui teimo­
samente ficando, como a desafiar o tempo e as tempes­
tades. Uma voz interior repete-me a pergunta:
— Quando o Criador decretará a minha hora?
Relembro então um episódio — mistura de conto
policial com um quadro humorístico — ocorrido comi­
go em 1976.
Era véspera do feriado de 1? de Maio, eu estava
em São Paulo. Não providenciara com antecedência a
passagem de volta. Para meu desespero, as passagens
estavam esgotadas. Trazia comigo duas malas repletas
de processos. Fui à Estação Ferroviária. Sabedor de
meu cargo de Procurador em serviço, o chefe da Esta­
ção reservou um quarto-leito num trem que partiria
para o Rio de Janeiro às 23 horas.
Na hora certa, chegou a composição silenciosa e
confortável. O encarregado conduziu-me a um dos
quartos. Havia espaço para dois passageiros, acomo­
dados em beliches. Deu-me boa-noite e fechou a porta
a chave. As acomodações eram limpas, arejadas e es­
paçosas, as duas camas forradas com um belo lençol
branco. Por toda parte, botões, cuja utilidade até ali
eu desconhecia. Precisava pendurar o paletó, lavar as
mãos e urinar. Mas onde, meu Deus?
Ocorreu-me examinar os tais botões. Apertando-os,
desvendei o mistério: surgiram dois cabides, uma ba­
cia para lavar o rosto, com torneira e água bem limpa,
106
uma saboneteira, uma toalha de rosto; outro botão for
neceu-me um aparelho sanitário com válvula para des­
carga e tudo; finalmente, deparo-me com uma pequena
farmácia bem equipada. Lavo-me, tiro os sapatos, apa­
go a luz e deito-me.
Quando já estava quase conciliando o sono, ouço
umas batidas na porta que, por precaução, fechara por
dentro no ferrolho. Veio-me à lembrança um assassi­
nato ocorrido dentro de um trem e numa cabine seme­
lhante, contado pela extraordinária Agatha Christie.
Tomado de pavor, ao mesmo tempo que me ponho a
rezar, abro a porta e dou com o encarregado, que me
pede desculpas por introduzir ali outro passageiro. Sai
apressadamente.
O outro passageiro entra e, sem consultar-me, fe­
cha a porta no ferrolho. Era um senhor de meia ida­
de, bem apessoado e que, pelo trajo, concluo tratar-se
de alguém educado e viajado. Sempre alegre, inicia
uma longa conversa, identificando-se e levando-me a fa­
zer o mesmo. Pouco depois, fomos dormir, ou melhor
ele foi dormir, que eu não durmo quando viajo, princi­
palmente, ao lado de estranhos.
Toda sorte de pensamentos me passou pela cabe­
ça, sendo protagonista de uma situação como aquela
pela primeira vez. Ora julgava-o um cavaleiro, um lor­
de, uma pessoa venerável e digna de toda confiança;
ora via-o como um farsante, um criminoso disfarçado
e bem vestido, à espera de um momento de descuido
para eliminar-me do mundo dos vivos.
Finalmente, entre sobressaltos e instantes de cal­
maria, nasceu a manhã de sol. Após a higiene bucal,
o senhor convidou-me para fazermos o desjejum. O sa­
lão-refeitório era igualmente amplo, limpo e arejado e
havia um serviço de bufete muito bem organizado. Ele
pagou tudo, não permitindo que dividisse com ele as
107
despesas. Pouco depois, o trem chegava à Estação D.
Pedro II e nos separamos. Nunca mais o vi.
O episódio ficou gravado em minha memória pelo
susto que levei e por compreender que a hora de cada
um de nós depende da vontade do PAI...

108
(APÊNDICE) — CURRICULUM VITAE
1. Dados Pessoais:
Nascido em Santana do Ipanema (Alagoas). Ca­
sado.
2. Atividade Escolar:
Primário em escolas particulares de Santana do
Ipanema (vide nosso primeiro livro “Santana do
Ipanema conta sua História”) .
Ginásio-artigo 91, hoje Supletivo, na Cidade de Ita-
guaí — Estado do Rio.
Secundário — hoje 29 grau — Curso Técnico de
Contabilidade na ACM — Rio.
!i. Cursos:
De Especialização de Professor no MEC-Rio de
Janeiro.
4. Funções Sociais:
Registro de Professor da Cadeira de Contabilidade
Bancária do Ensino Comercial da Fundação Getú-
lio Vargas — Rio de Janeiro.
Registro de Professor de Matérias Iniciais às Téc­
nicas Comerciais.
Redator da "Gazeta de Notícias” — Repórter-1952.
Redator da "Revista Guanabara” — Niterói-1952.
109
f>. Funções Públicas:
No Ministério da Justiça, no Serviço de Assistência
a Menores (SAM, hoje Fundação Bem-Estar do Me­
nor, como Inspetor de Alunos — Rio).
No Ministério do Trabalho, na Procuradoria Geral
da Justiça do Trabalho, como Escriturário e, de­
pois Oficial Administrativo e, a partir de 1973, no
Ministério da Justiça como Procurador da Justiça
do Trabalho, lotado na 29 Região, em São Paulo.
6. Cursos de Nível Universitário:
Bacharel em Direito pela Universidade do Brasil
— Rio.
Jornalista com curso de aperfeiçoamento na Escola
Dr. Assis Chateaubriand — Rio.
IX Seminário de Educação e Civismo do “Centro
de Estudos do Real Gabinete Português de Leitu­
ra” — Rio.
19 Congresso Nacional de Comunicação da ABI.
VI Seminário de Problemas Pedagógicos no SENAC.
Curso Panorâmico da História da Cidade do Rio
de Janeiro, no Instituto Histórico e Geográfico da
Guanabara.
Encontro de Professores sobre Problemas Pedagó­
gicos no SENAC.
7. Outras Atividades:
Ex-Professor do SENAC, no Rio de Janeiro a partir
de dez/43.
Autor dos seguintes trabalhos:
a) “Santana do Ipanema conta sua História” —
Ensaio histórico-social;
UO
I») "O Trabalho da Mulher na História” — Ensaio
Jurídico e social;
o) O Comércio Através dos Tempos — Apostila
para os Cursos Comerciais;
d) Treinamento Profissional no Escritório —
idem;
0) As Atividades da Empresa Comercial;
f) Da Atividade Comercial ao Crédito;
lí) Pequena História da Moeda;
h) Treinamento Profissional na Loja;
1) Prática de Comércio;
J) O Vendedor;
1) A Venda a Varejo;
m) O Comércio Brasileiro;
n) Introdução ao Estudo do Mercado;
o) O Ciclo Produção e Consumo;
p) Serviços de Estoque;
q) A Empresa Comercial;
r) A Produção;
s) Exigências Físicas sobre Operações de Com­
pras;
t) Venda;
H. Alto Nível:
Membro da Academia Alagoana de Letras.
Membro do Instituto Histórico de Alagoas.
9. Em Preparo:
O Folclore Nordestino em suas mãos (síntese de
uma região).
O Nordeste Brasileiro em suas mãos (ensaio Geo-
Histórico-Cultural, desde o Maranhão à Bahia).

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Composto e impresso nos
Estab. Gráficos Borsoi S.A.
Indústria e Comércio, à
Rua Francisco Manuel, 55
— ZC-15, Benfica, Rio de
Janeiro, R J.

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