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Conselho Editorial

Betina Schuler (UCS/EMEF Rincão/PM-POA)


Dóris Helena de Souza (SMED/POA)
Gláucia Maria Figueiredo (UNIOESTE)
Karen Nodari (UFRGS/Colégio Aplicação)
Luciano Bedin da Costa (UFRGS/SETREM)
Ludmila de Lima Brandão (UFMT)
Maria Amélia Santoro Franco (Universidade Católica de Santos)
Nadja Maria Acioly-Regnier (Université Claude Bernard Lyon1)
Vânia Dutra de Azeredo (PUC/Campinas)

Comitê Editorial
Carla Gonçalves Rodrigues (UFPel)
Ester Maria Dreher Heuser (UNIOESTE)
Silas Borges Monteiro (UFMT)
Editoração por SUPERNOVA EDITORA

Capa por LEONARDO GARBIN

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

B615
Biografemática na educação: Vidarbos/ Organizado por
Sandra Mara Corazza, Marcos da Rocha Oliveira e
Máximo Daniel Lamela Adó. Porto Alegre-RS: UFRGS;
Doisa, 2015.

ISBN 978-85-66308-05-1
Cadernos de Notas 7

1.Educação. 2.Biografemática. 3.Método Biografemático.


I.Corazza, Sandra Mara. II. Olliveira, Marcos da Rocha.
III. Adó, Máximo Daniel Lamela. IV.Título.

CDU 37

Ficha catalográfica elaborada pelo Bibliotecário Douglas Rios (CRB 1/1610)


Sandra Mara Corazza
Marcos da Rocha Oliveira
Máximo Daniel Lamela Adó
Orgs.

2015
11
Texto, obra e vida; vidarbo; vida e obra, texto
Sandra Mara Corazza; Marcos da Rocha Oliveira

17
Máximo Daniel Lamela Adó

25
Discurso do método biografemático
Sandra Mara Corazza

47
Autocomediografia intelectual de um educador
Máximo Daniel Lamela Adó

71
Biografemática do cotidiano
Marcos da Rocha Oliveira

97
Nada além de um rosto na janela que ninguém jamais vê
Cristiano Bedin da Costa

123
O dia em que saí à procura de Henry Miller e não voltei
mais: tentativa biografemática
Luciano Bedin da Costa

145
Tratado fragmentário do biografema – O retorno do eu, com
Barthes, Kerouac e Deleuze
Gabriel Sausen Feil

169
Viagens Guardadas, uma autobiografemática
Betina Frichmann

183
Vida-obra. Obravida. Vid’obra. Obra d’vida. Obr’ida. Vida-obra.
Que diabo. Vidarbo.
Texto, obra e vida; vidarbo; vida e obra, texto
Sandra Mara Corazza; Marcos da Rocha Oliveira
PREFÁCIO
Texto, obra e vida; vidarbo; vida e obra, texto.
Sandra Mara Corazza
Marcos da Rocha Oliveira

Escrevemos “vidarbo” como um programa operatório para


texto, obra, vida – implicadas na escrita e pesquisa em edu-
cação – enquanto noções compostas com a escritura e o neo-
logismo “biografema” de Roland Barthes.

Texto, obra e vida. De Vidarbo.


Vidarbo: Vida + Obra. “Circulação igual dos códigos com os
quais se escrevem ao mesmo tempo nossos livros e nossa vida”.
Viver como quem escreve. Escrever vivendo. Viver escrevendo.
Re-viver. Re-finar. “Pensar a biografia contra a biografia”. Fluido.
Elipse. Mistério. Inteligibilidade do desejo. Metáfora infinita.
“Geologia de escrituras psicológicas”. Fabulação de gostos,
des-gostos, descobertas, sensibilidade, estados d’alma, imagens,
poses, figuras, músicas, afectos. Como é, Para Mim – o que não
fala, sem alegar a si mesmo, condenado ao exílio da Generalidade.
Transliteração: “mudar o livro” é “mudar a vida”. Cenografia
espaço-temporal. Nos passeios da Vida, aparição de Temas. Nos
passeios das Palavras, aparição de Personagens. Ações que se
pode tocar, na retina. Aromas ávidos no ar. Prazeres intensos.

biografemática na educação: vidarbos 11


Pensares apanhados. Quereres guardados. Sentires desovados.
Na Magia de ler, fascínio de limites se rompendo. Voz do Sujeito-
de-Escritura: escrever o que não pôde dizer. Grãos de sentidos,
na pele do Eu-de-Papel, após travessia do deserto, caminhada à
beira-mar. “Nossos mares se molham e espantam as securas que
os dias nos trazem”. Cruel desafio à interpretação. Fundos de
Silêncio. Habitante dos Interstícios. Assombrado. Sem economia
de Bem e Mal. Não-lucro. “Luxo terno e suntuoso de uma
escritura absolutamente livre, em que não há um único átomo
morto, invulnerável de tanta graça”. Pulsão por des-formas.
Breves. “Têm o comprimento e o impulso da linha (essa ideia
vestimentar)”. Non multa, sed multum (pouco em quantidade,
muito em qualidade). Radicalização na preparação. Sem
salvaguarda. Munição impaciente. Anarquicamente debochada.
“Ervinhas frescas”. Atravessar, navegar, saltar: e pronto. Corda
bamba, sem sombrinha, embriagado. Pronto. Cair. Se for o caso.
Pronto. Ver, sentir, amar, odiar, chorar, ter cefaléia, sede, fome,
saudade. Avaliar valor dos largados. Desgarrados. Simulacro de
Romance. Romanesco Anamnésico. “Fresco, simples, sedoso,
leve, sensível, justo, inteligente, desejável, forte, rico”. Hábitos,
manias, vícios: contestados. Paixão por perturbação, motilidade,
leveza. Sem pessoa. Caleidoscópio insólito. Estranho dissonante.
“Profunda amoralidade”. Conta-dor de histórias. Linguaja-dor
de si. Faze-dor de jogo. Gagueja-dor de língua. Bolas de
emoção. Roçadela. Fricção. “Isso granula, isso acaricia, isso
raspa, isso corta: isso frui”. Como se vê, Biografemática inunda
Vidas. Minha. Tua. Nossa. Por isso, Introdução ao Método
Biografemático pode colocar “no topo aqueles capazes da risada
de ouro”: “rir de maneira nova e sobrehumana – e à custa de
todas as coisas sérias”. É que os “deuses gostam de gracejos:
parece que mesmo em cerimônias religiosas não deixam de
rir” (NIETZSCHE, 1992, p.195; BARTHES, 1982, p.22; 2006,

12 • 13
p.19-20; p.78; 2004c, p.283-284; p.292; COSTA, 2008, p.15;
FONSECA, 2009).

Vida e obra, texto. Com “De vidarbo”.

VidArbo Uma Queda (UQ) céu acima. UQ fende vida e


obra. Abismado por UQ o leitor, definido no artigo cômodo,
é fendido na queda. O “A” que liga vidA obrA é o plano
escorrente. Obra inversa, Arbo, obra in-versada. A escrita de
vida, verso vital, reverso do fácil dizer, de blablá contar. Honraria
de ler, com amoroso gesto. Gaguejar a mão do escritor. Mão
Gaguejante, o homo joyciano, HCE, O Homem a Caminho
Está. UQ é inventação. Cria a gagueira do gesto escritural que
quedou numa UQ. Que como kamiquase afirma escrita inventa
vida. Mas quase. Nada antes, nem obra a vida a obra explica. O
“A”, maiusculado na UQ que aqui sobe a grafia marca vidArbo.
Fenda na marca, a marca fenda. O escritor cria o marco quando
lê. Inventa sua fenda no mundo de vida. Aquela da obra a vida
explica. Assim o “A” marca uma reversão da terra e céu: o
mínimo é o ponto superior, as epifanias; a voz da possessão que
é o pleno do sentido mínima. Na terrosa a linha terrorífera para
os fáceis, abertura que UQ cria no sentido. O abismo nas pernas
abertas do “A” maiusculado em vidArbo. Que come é terra, não
divinéia. A divinália toda fica lá, na vida pela obra e na obra
pela vida. Lá. Céu acima dos húmus, no código entre os iguais,
os deuses, dialogantes de generalidades. Só. Lá. As pernas de
vidarbo são de copulagens e fricções. A abertura ao grande aberto,
aquém de sensos, na esteira de toda significação. A abertura na
terrosa linha, na vida de um homem que a caminho está. UQ
nos faz escritores em árias inóspitas, de fáceis só tropeços, de
ferinas gentedeletras que marcham inversadas e inventadas.
Com o vento que corre entre as hastes do A vidarbado, brada
um traço, antes do todo abismo, diz do inventalínguar. Em
vidArbo o povo, HCE, delira uma fantasiação. O traço entre
trastes é concreção biografemática. Em UQ vidarbo se faz e o
reles vai à sina. O insignificante produz o rasgo de significação.
Inventalínguas cria vida. Prolifera a voz vociferante da beliciosa
terraria. No cio humoroso UQ se mostra. O traço entre trastes
que se impede de puro Deus e pura devoração terrificinante é
UQ. Com UQ esmigalha-se as coordenadas. Tempespaço no nó
da linha cortante. Eixos são a verdadeira vida venal. Vidarbo
nada com isso. As hastes do A movem-se como as pinças
mínimas para a catação. O que catado é estraçalha as pontes
entre céu e terra. Céufogoágua. Cenafórica palavra iniciante. No
fechabre do A vira o leitor e sua sina enfática. O grau de UQ.
Vidarbo, literatura de testemunho, estilo bíblico, estilo homérico.
A inversão que inscreve o leitor como quem escreve põe-no
como contador ou inventador. Criador ou testemunhante.
Língua-lábio unificador ou hemilabiante gaguélico. UQ de
vidArbo céu acima é puro pó. De UQ em Finnicius Revém
escritas de vida pós-utópicas. VidArbo UQ num lance galático.
Os trastes meros e indispensáveis formantes. Lance de traços
abismais. De vidArbo névoas de Uma Queda. Luciferino trato.
Cria um Cair um Cria. Com cem letras ribomba a palavra trovão
primeira. (bababadalgaraghtakamminarronnkonntonnerronntuo
nnthunntrovarrhounawnskawntoohoohoordenenthurnuk!)
O Homem a Caminho Está. UQ queremos. Biografólogos: a
caminho estamos – em queda.

14 • 15
Máximo Daniel Lamela Adó
PRÓLOGO
Máximo Adó

Biografemática na educação: vidarbos não é um livro sobre


biografemática ou sobre educação, trata-se de um desliza-
mento de escrituras que tomam vidas e obras por meio de um
paroxismo da linguagem escrita. Paroxismo que quer tomar a
Educação de assalto e repercutir nesse espaço, o educacional, os
efeitos de leituras múltiplas. Um produto, também, das pesquisas
realizadas na linha de pesquisa 09 – Filosofias da Diferença
e Educação vinculada ao PPGEDU da UFRGS e ao DIF –
artistagens, fabulações, variações, Grupo de Pesquisa registrado
no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq. Todos os textos
aqui reunidos resultam, então, de subsídio de bolsas de pesquisa
CAPES e CNPQ em âmbito de mestrado e doutorado.
Gosto de uma imagem anagramática que a palavra
vidarbos pode oferecer. Refiro-me à composição d-víboras
(utilizo-me do hífen para transformá-la em palavra composta
em que a preposição funciona como letra muda — preposição
lipogramática —, condição em que a relação de sentido está
prejudicada graficamente).
Desse modo quando leio vidarbos me vejo diante de uma
das imagens produzidas por Michelangelo Buonarroti, trata-se
da cena do Fruto Proibido na Capela Sistina, nesse díptico uma

biografemática na educação: vidarbos 17


víbora, serpente astuta, enroscada no tronco de uma árvore se
mistura com a mesma dividindo a cena entre a inocência dos que
estão prestes a comer do fruto e o castigo destes já expulsos do
Jardim do Éden. Mas nessa imagem de Michelangelo a árvore,
que se mescla à víbora com dorso feminino masculinizado, não
é figurada como uma macieira com seu fruto a maçã, do latim
medieval malum, sinonímia de mal. A árvore que Michelangelo
pinta é uma figueira, possível referência à tradição judaica em
que a sabedoria rabínica fundamenta a ideia de que a Árvore do
Conhecimento seria uma figueira devido a “[...] um princípio
místico segundo o qual Deus nunca nos apresenta uma difi-
culdade sem ter antes criado uma solução para ela dentro da
própria origem do problema.” (BLECH; DOLINER, 2011,
p.291) Foi com folhas de figueira que, segundo a Bíblia, Adão
e Eva cobriram seus corpos.
A víbora-figueira, serpente-conhecimento é a mesma que
oferece um fruto, discutidamente como malicioso (veneno) e,
também, a folha larga que serve como o remédio para o efeito de
sua malícia? Se assim o for a Árvore do conhecimento pode ser
lida, nessa imagem, como uma árvore-serpente atuando como
phármakon, o veneno e o remédio juntos. Aquilo que mata é,
também, aquilo que cura. Qual é o fruto oferecido pela serpente
a maçã, malum, ou o figo, fícus, esse fruto doce que, na verdade,
antes de ser fruto é uma inflorescência?
O que me interessa é ter essa imagem como intensificada
de mistérios, pois muitas coisas que amamos, às amamos
justamente por serem cheias de mistérios, por fazerem com que
nos deparemos com uma mística sempre desconhecida, mas que
de algum modo se faz presente. Mistérios como os que estão
presentes em detalhes de uma vida.
Detalhes de uma vida transpostos em traçados de uma
obra ou detalhes de uma obra que são, ao mesmo tempo,

18 • 19
atravessamentos de uma vida se entrecruzam assim como as
mitológicas serpentes que lemos, também, nos textos de Paul
Valéry; víbora que nos veste e sorrindo mostra sua língua bífida;
despreza com argúcia o veneno vil da morte douta em favor do
inimitável sabor de si-mesma. Autocriação, ouroboro, serpente
que se come pela cauda (VALÉRY, 2011).
No epílogo de El hacedor, livro de Jorge Luis Borges
publicado em 1960 e que reuniu uma miscelânea de textos seus
escritos de ocasiões e temas diversos podemos ler: “Um homem
se propõe a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos,
povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de
montanhas, de baías, de naus, de ilhas, de peixes, de moradas,
de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes
de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a
imagem de seu rosto.” (BORGES, 2008, p.168) Leio esse trecho
como um espelhamento tradutório da frase valéryana do texto
“Poesia e pensamento abstrato” que diz: “Na verdade, não existe
teoria que não seja um fragmento cuidadosamente preparado
de alguma autobiografia.” (VALÉRY, 1991, p.204). Trata-se de
ver, sempre, que a vida está implicada na obra; vida e obra se
retroalimentam.
Dito isso, podemos afirmar que o que temos neste volume
é uma experimentação num conjunto fragmentário que não
almeja a busca por verdades sobre vidas e obras; não almeja um
conjunto bem juntado que leve o leitor a um núcleo sólido de
sentido. O que se evoca é algo como uma união dispersiva de
singularidades que, como em vidas e obras, algo acontece aqui
e ali, no entanto o conteúdo desses acontecimentos não se dá
a ver por imagens definitivamente bem demarcadas. Há algo
de turvo, linhas escorregadias, limites difusos, mistérios que,
no entanto, mesmo diante desse caos de traços, fazem com que
num movimento de deslizamento entre detalhes se possa ler o
tom de gestos únicos e se desembarace uma mistura de sensações
na figura de um nome, no dizer de uma obra, de seus atos ou
de modos de expressá-los. Traços que acabam por ser, também,
linhas que vão formando o rosto daqueles que as escrevem.
O conjunto começa pelo Discurso do método biografemático,
texto que dá a ver o solo conceitual e operatório da proposta.
Com ele parte-se para uma escrileitura de ordem fantasmática
em que se conjectura certa geometria de um salto que se pode dar
dos textos às vidas que os corporificam e, em reciprocidade, de
vidas que se fazem textos. Em Autocomediografia intelectual de um
Educador, lê-se um traçado autoreferencial que procura colocar
em jogo um pensamento que se constitui como hipertexto.
Tomada pela escrita joyciana Biografemática do cotidiano
apresenta treze poemaepisódios de um dia de um educador. Faz,
assim, do próprio texto um episódio poético da vida desse
mesmo que o escreve; um educador.
“Nada além de um rosto na janela que ninguém jamais vê”: Charles
Bukowski e o isolamento como presente faz suas, imagens textuais e
visuais de Barthes, Alexander Gardner, Nietzsche, Fante, Kafka
e outros para tecer com elas uma trama bukowskiana; como
se pudéssemos, por meio de um fino traçado, sentir o gosto do
último gole de cerveja, o barulho das ruas, a presença de um
rosto amigo e o ritmo de uma chuva contando-nos: Bukowski.
O dia em que saí à procura de Henry Miller e não voltei mais:
tentativa biografemática, arquiteta-se como o processo de uma
busca. Ao procurar por um Henry Miller evocado por uma
leitura comum, ou melhor, por uma leitura que fosse de todos os
seus leitores, faz dessa procura o traçado de uma singularidade
em fuga. À procura de Miller como um retorno a si; em processo.
Em Tratado fragmentário do biografema – O retorno do eu, com
Barthes, Kerouac e Deleuze lemos quarenta e cinco fragmentos de uma
adaptação, trascriadora, de inflexões a respeito do biografema.

20 • 21
Viagens Guardadas, uma autobiografemática, faz ler o forjar
de uma força de distanciamento de si com elementos que lhe
são próprios. Ao coletar e dar a ver traços inventa-se uma vida;
outra. De quem a escreve e de quem a lê.
A educação, assim, entra como um espaço de forças e vontades
de vidas. Espaço jamais derradeiro, mas de inacabamentos que
acorrem a fluxos para uma liberdade de pensar e agir. Espaço
em que aborrecimentos diante da dificuldade iminente de que a
vida tome a forma de valores pré-estabelecidos, normatizações
de pensares, padronizações de todo tipo, encontram ou forçam
rachaduras para que possa devir o novo, para que haja lugar para
o desconhecido, enfim, para que a vida encontre formas de se
manter viva.

Referências
BORGES, Jorge Luis. O fazedor. (Trad. Josely Vianna Baptista.) São
Paulo: Companhia das Letras, 2008.

BLECH, Benjamin; DOLINER, Roy. Os segredos da Capela Sistina:


As mensagens secretas de Michelangelo no coração do Vaticano. (Trad.
Saulo Adriano.) Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.

VALÉRY, Paul. Ébauche d’un Serpent/Esboço de uma Serpente. (Trad.


Augusto de Campos.) In. CAMPOS, Augusto. Paul Valéry: a serpente
e o pensar. São Paulo: Ficções, 2011, p. 26-57.

VALÉRY, Paul. Poesia e pensamento abstrato. (Trad. João Alexandre


Barbosa.) In. VALÉRY, Paul. Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1991,
p. 201-218.
Discurso do método biografemático
Sandra Mara Corazza
DISCURSO DO MÉTODO
BIOGRAFEMÁTICO
Sandra Mara Corazza

I  o discurso, o método, a biografemática

O Discurso do Método Biografemático considera Método distante


de doutrina e de processo técnico; de sistema, como aspecto de
conteúdo, e do próprio método, como aspecto formal; distante,
ainda, de leis científicas e da natureza reta da faculdade de
conhecer superior (DELEUZE, 1994); do modelo matemático,
das regras da lógica formal, de garantias analíticas e sintéticas
sobre o conhecimento da Verdade.
Método é entendido, aqui, como meta + hodós (= por essa
via): “direção definível e regularmente seguida numa ope-
ração do espírito” (LALANDE, 1999, p.679). Direção que se
transforma em procedimento de pesquisa, não determinado
a priori, nem independentemente de sua aplicação, como um
programa de operações, iniciado só após a formulação de regras.
Método realizado em operações efetivas, enquanto percurso
de conhecimento estabelecido “como criação e não como
descoberta”, desde que “o percurso é conhecer; seu método,
a criação, o ensaio”. E, caso produza algum saber, este será
apenas “uma perspectiva entre outras e não, ao estilo metafísico,
o conhecimento único e eterno sobre a realidade” (MONTEIRO

biografemática na educação: vidarbos 25


e BIATO, 2008, p.270; p.267). Logo, trata-se de Método não
ordenado, repetível e autocorrigível.
Guiado conceitualmente por Roland Barthes (1979; 1982;
1984; 1988; 1989a,b; 1991; 2003a,b; 2005a,b; 2008), o Método
tem por objeto a própria linguagem, sendo uma ficção que segue
o método da linguagem e luta para baldar todo discurso que
pega, procurando mantê-lo sem, no entanto, impô-lo. Logo, sua
principal tarefa é obter meios próprios para desprender e aligeirar
o poder discursivo das formas, através das quais é proposto.
O Discurso do Método é apreciado por quem, alguma vez, já
se interessara por vida (biografia) e por obra (bibliografia); só
que, em vez de vida e obra, tomadas em separado, ou uma como
derivada ou causa da outra, trata de Vidarbo. Para pôr vida na
obra, implica atos de mutação, que se engajam no disfarce e no
mascaramento. Ao despersonalizar o sujeito que vive e escreve,
realiza escrita de vida. Cria o narrador da obra, ao fragmentar o
autor da vida. Inventa o autor da vida, ao pulverizar o narrador
da obra. Escritura de vida, risca, inscreve, traça e ocupa “o
terreno do tempo por uma energia de inscrição, inteiramente
perversa” (BARTHES, 2004c, p.287; 2005b, p.156).
Ao encontrar “o real da ficção” ou, “quem sabe, o real da
realidade” (NOLASCO, 2004, p.14), a escritura encontra o prazer
do texto, que transmigra para a vida-obra. Prazer que, ao realizar
a escrita de outrem, como mundo possível (DELEUZE, 1998),
reelabora fragmentos de cotidianidade, considerando que todo
fragmento (acabado no momento em que é escrito) é dotado não
de uma “grandeza da ruína ou da promessa”, mas da “grandeza
do silêncio que acompanha todo acabamento” (BARTHES,
2004c, p.282-283). Na “efetuação de realidade” (RIBEIRO,
1988, p.21), o índice para o prazer expressa-se no viver com um
autor, embora a vida seja “feita a golpes de pequenas solidões”.
Passando para a cotidianidade fragmentos de inteligível, não

26 • 27
narramos o que vemos ou o que sentimos, nem agimos como
psicólogos ou psicanalistas, que se serviriam “de uma linguagem
feliz para enumerar os atributos originais de sua visão”; mas,
como escritores, criando uma metonímia desejante: “escrita
contagiosa que faz recair sobre o leitor o desejo mesmo com que
formou as coisas” (BARTHES, 1984, p.11; 2004c, p.292).
Os textos biografemáticos emitem, assim, ordens fantasís-
ticas (fantasmáticas), desde que a ideia de autor voltou à cena
com algum valor. Mas não se trata de um autor chapado em
documentos de identidade; herói das biografias; o grande nar-
cisista das autobiografias; mortos famosos; mestres imortais;
ícones de sedentos ideais-do-eu; tampouco trata-se de bio-
grafias, que funcionam como autoajuda, modelos, ou janelas
indiscretas para o voyeurismo. O autor, que salta dos textos e
entra na vida do leitor, não tem unidade, mas é plural de
encantos, lugar de pormenores sutis, fonte de vivos clarões,
canto descontínuo. Definitivamente, não se trata de uma pessoa
civil ou moral; mas de um corpo impessoal que lança um
eu, cuja individualidade é dada pela “mão corporal que es-
creve”. A substância que separa as pessoas da narração não é
de identidade, somente de anterioridade: “ele é cada vez aquele
que vai escrever eu; eu é cada vez aquele que, começando
a escrever, vai no entanto entrar na pré-criatura que lhe deu
origem” (BARTHES, 1982, p.23-24).
O Método adota de Nietzsche (1995, p.50) o processamen-
to de uma “casuística do egoísmo”, por intermédio de uma
“Vida Metódica” (BARTHES, 2005b, p.175; p.201; p.205),
encontrando-se, outra vez, com o sujeito, embora desfeito e
deformado, para readequar os planos de vida. Realiza inter-
secções entre vida e escrita, não fazendo a obra parecer-se com
a vida, mas a escrita conduzir a vida. Quanto mais fragmenta
escrita e vida, mais cada fragmento se torna homogêneo: “Um
fragmento de escritura é sempre uma essência de escritura”
(BARTHES, 2004c, p.282). Arquitetando uma tipologia dos eus
que escrevem, Barthes (2005b, p.173-174) ensina a distinguir
entre a persona (pessoa cotidiana); o scriptor (imagem social); o
auctor (fiador do que escreve); e o scribens (que vive escrevendo).
Ao fragmentar e expor a digressão – “ou, para dizê-lo por
uma palavra preciosamente ambígua: a excursão” –, o Método
dissemina traços de textos da cultura: “pertinentes e por isso
mesmo descontínuos”. Através de fórmulas irreconhecíveis,
apaga a falsa eflorescência sociológica, histórica e subjetiva de
determinações, estruturas, visões, projeções dos textos. Ostenta
textos nômades, desligados dos sentidos recebidos, que buscam
recobri-los. Recusa-se a inferir autor da obra e obra do autor.
Descreve a sua própria população, posicionado no mundo do
autor, sem fontes exteriores. Abala os sentidos do mundo, fazendo
uma interrogação indireta, que sofre abstenção de resposta
única. Afirma e substitui respostas que passam, enquanto as
interrogações permanecem, já que não para de responder ao
escrito, fora de qualquer resposta (BARTHES, 1989a, p.43-44;
2003a, p.330; BARTHES, 2008, p.VII-XI).
Dessa maneira, o Discurso afirma: a biografemática é filo-
sofia, ciência e arte, como “um jogo de imagens, de espelhos”
daquilo que é “colhido numa narrativa, num texto” (BARTHES,
2003a, p.212); quem realiza a biografemática é um biogra-
fólogo; o biografólogo coleta e cria biografemas; o biografema
produzido pela biografemática consiste em um traço distintivo,
elemento quase-unitário, que finge que revela; o biografema, a
biografemática e o biografólogo são grandes mentirosos onto-
lógicos, que emitem raios radioativos; sem documentos, não há
biografemática, nenhum biografema, nada de biografólogos;
biografemas montados, em um bastidor biografemático, resultam
numa biodiagramação (PIGNATARI, 1996); a biodiagramação

28 • 29
dá visão do conjunto de uma-vida (DELEUZE, 2007); uma-vida
não é feita com “o ‘vivido’ (o ‘vivido’ é banal e é justamente
ele que o escritor deve combater)”, nem, tampouco, com “a
razão (categoria geral adotada sob diversos artifícios por todas
as literaturas fáceis)” (BARTHES, 2004c, p. 290); por realizar “a
utopia de uma linguagem particular”, a substância de uma-vida
é constituída por espaços vazios, flutuantes, lacunas, incidentes,
punctuns; assim, uma-vida não é veraz, da mesma maneira que
a biografemática não é imaginária: trata-se da biografemática
veraz de uma-vida imaginária.
Por tudo isso, o Discurso do Método Biografemático fica e não
fica na vizinhança de um manual, de uma quimera, do anar-
quismo (FEYERABEND, 1989); não apela à heurística, “que
visaria a produzir deciframentos e apresentar resultados”
(BARTHES, 1989a, p. 42); e terá atingido as fimbrias da perfei-
ção, se fornecer energia vital àquele pensador que o experimentar.

II  a fantasia, a leitura e a escritura

1  Fantasia de origem
Assim como nas origens de uma pesquisa, de um ensino
e de uma cultura, também a biografemática parte da fantasia,
tomando-a como um “Guia Iniciático”, para executar um
“engendramento de formas”, que é engendramento de diferenças
(BARTHES, 1989a, p.44; 2003a, p.8; p.273; 2005a, p.22).
Mesmo que a fantasia seja apenas uma virtualidade, sua
realização, por meio de atos biografemáticos, propicia prazer,
por criar um objeto fantasístico, que “não quer ser assumido
por uma metalinguagem (científica, histórica, sociológica)”
(BARTHES, 2005a, p.117; p.23; p.29; 2003d, p.284). Dotada de
originalidade, a biografemática considera que, ao menos no que
tange à discursividade, costumamos estudar o que desejamos
ou tememos (BARTHES, 2003d, p.430). Há, assim, como no
romance, uma generosidade da biografemática, que nos leva
a amar o mundo, abarcá-lo e abraçá-lo, enquanto uma prática
“para lutar contra a secura do coração, a acídia”.
Uma pulsão amorosa colore a biografemática, porque
esta é fantasiada como ato de amor, não na direção do “Amor
apaixonado = falar de si como apaixonado = lírico”; mas do
“Amor-Agápe: falar dos outros que se ama”, “dizer aqueles que
se ama”. Pela biografemática, ama-se e escreve-se aqueles que
conhecemos, fazendo-lhes justiça, testemunhando “por eles, (no
sentido religioso)”, imortalizando-os (BARTHES, 2005a, p.28).
Escrevendo aqueles que amamos, importa considerar a
biografemática não sob a ótica dialética, “o contrário de seu
contrário racional, lógico”, nem “uma frustração vivida como
avesso”. Se os guias forem fantasias negativas, não se tratará da
oposição entre “uma imagem e uma realidade”; mas da existência
de “duas imagens fantasmáticas”, ou de roteiros imaginários,
desde que a fantasia é um “= enredo breve, enquadrado”,
“absolutamente positivo, que encena o positivo do desejo, que
só conhece positivos”. Um roteiro, como “vislumbre narrativo
do desejo”, que “se entrevê, muito recortado, muito iluminado,
mas imediatamente esvaecido”. Roteiro, pelo qual voltam os
desejos, “que se buscam em nós, por vezes durante uma vida
toda, e frequentemente só se cristalizam através de uma palavra”.
Palavra-roteiro que “induz da fantasia à sua exploração”, “por
diferentes bocados de saber = a pesquisa”, sendo a fantasia “um
filme com tomadas fixas”, explorada “como uma mina a céu
aberto” (BARTHES, 2005b, p.117; p.177; 2003a, p.9-10; p.12;
p.35).
Para haver biografemática, “é preciso haver cenário, portanto
lugar”, e a fantasia funciona como “projetor incerto”, que varre,
mesmo que de modo entrecortado, “fragmentos de mundo, de
ciência, de história – de experiências” e recorta “a cena iluminada

30 • 31
onde o desejo se instala e deixa na sombra os dois lados da cena”
(BARTHES, 2003a, p.14; p.17; p.35).
Para movimentar-se, a fantasia se liga “a uma imagem
grosseira, codificada”, como o Poema, o Romance, a Biografia,
etc. Energia, ela “põe em marcha”; mas, aquilo que, a seguir,
é por ela produzido “não depende mais do Código”. Ao lutar
e se chocar com o Real – que “é o Tempo (a Duração) como
potência de atraso, de freagem, e portanto de modificação, de
infidelidade” –, a fantasia perde-se, abandona a sua “rigidez”,
“ingenuidade” e “virtualidade” (BARTHES, 2005a, p.277; p.22;
p.25; p.117), para atingir o ineditismo.
Já se vê como o querer-escrever (scripturire) da fantasia
relaciona o texto biografemático com a verdade: principia “não
pelo falso, mas quando se misturam, sem prevenir, o verdadeiro e
o falso”, vindos “da ordem do Desejo e do Imaginário”. Compõe
uma “tela pintada de ilusões, de logros, de coisas inventadas,
de ‘falsidades’: tela brilhante, colorida”. Um “véu da Maia”:
“poikilos, estampado, variado, mosqueado, sarapintado, coberto
de pinturas, de quadros, vestimenta bordada, complicada,
complexa; raiz pingo [pintar], bordar com fios diversos, tatuar”;
“um heterogêneo, um heterológico de Verdadeiro e de Falso”
(BARTHES, ib., p.224).

2. Leitura por cima do ombro


A leitura, requerida pelo Método Biografemático, não consiste
em um gesto parasita, mas trata-se de um trabalho, como “ato
lexiológico, lexiográfico”; desde que escrevemos aquilo que
lemos e “cujo método é topológico”, deslocando “sistemas cujo
percurso não para no texto nem no ‘eu’” (BARTHES, 1992,
p.44).
Ocorrendo em “três campos de diferenças”, a leitura apre-
senta três ordens: ordem individual (corporal), no qual os textos
são lidos – “em picada”, isto é, sobrevoando a página e reco-
lhendo “um sintagma saboroso, ou chocante, ou problemático,
enfim, “digno de nota”; “em prise”: apreendendo, com delica-
deza, uma página inteira do texto e saboreando-a; “em rolo”:
desenrolando o texto, do início ao fim, e avançando, sem ligar
para prazer ou tédio; “em aplainador”: lendo, em detalhe, cada
palavra, sem economizar tempo; “em céu aberto”: vendo o
texto, como “um objeto distante, pretexto para uma reflexão”,
recolocando-o na “paisagem histórica”; ordem sociológica de
leitura, na qual não se distingue o texto de sua acolhida crítica,
como se esta o compusesse; ordem histórica, na qual se lê como
“leitores que não vivem no mesmo tempo de leitura (mesmo
se biograficamente são contemporâneos)”, correndo o risco da
“pulverização na História” (BARTHES, 1982, p.69-72).
Há, também, três tipos de relações para uma tipologia dos
prazeres da leitura biografemática: fetichista, que “tira prazer das
palavras” (“prática oral e sonora oferecida à pulsão”) e necessita
de “vasta cultura linguística”; de desgaste, em que o leitor é
puxado para frente, por uma força, “mais ou menos disfarçada,
da ordem do suspense” – “quero surpreender, não aguento
esperar: pura imagem do gozo”; aventura de escritura, cuja
leitura conduz o desejo de escrever e que não deseja “escrever
como o autor cuja leitura nos agrada”, mas “apenas o desejo que
o escritor teve de escrever” – “desejamos o ame-me que está em
toda escritura” (BARTHES, 2004c, p.38-40).
Liberando-nos de uma falsa ideia objetiva, para incluir, na
leitura de um texto, “o conhecimento que podemos ter de seu
autor”, a leitura defende a posição de quem age o texto é o leitor.
Há, para um mesmo texto, “uma multidão de leitores”, que
não são apenas indivíduos diversos, mas, em cada corpo que lê,
“ritmos diferentes de inteligência, conforme o dia, conforme a
página”.

32 • 33
Decididamente, essa leitura acontece “por cima do ombro
daquele que escreve, como se nós escrevêssemos ao mesmo
tempo que ele”. Ao realizá-la, levantamos “a cabeça o tempo
todo para devanear ou refletir” e reencontrar, “no nível do
corpo, e não do da consciência”, como aquilo foi possível de ser
escrito. A cabeça levantada implica nos colocar “na produção,
não no produto” e ler, “senão voluptuosamente, pelo menos
‘apetitosamente’”, “fora de qualquer responsabilidade crítica”.
Encontramos, assim, um “prazer de leitura livre, feliz, guloso”,
como escrever, isto é, re-escrever o texto lido, às vezes, “melhor e
mais adiante do que o seu autor o fez” (BARTHES, 1982, p.72;
2004a, p.268-269; 1984, p.84).

3. Escritura nebulosa de teia


Já a escritura, feita com o Método Biografemático, arma sua teia
interpretante (aleatória, arbitrária, inconsciente) para ler-escrever
uma Vidarbo, tal como a aranha às moscas (PIGNATARI, 1996).
Para tanto, escapa aos riscos e codificações da tradição
biográfica, tais como: estagnação dos vínculos entre vida
e obra, através de conexões lineares, causais, axiológicas,
psicologistas, historicistas; fetichização da descendência, do
fatalismo, da extraordinariedade, da verdade, da transparên-
cia, do tempo (VILAS BOAS, 2008); execução de biografias
bisbilhoteiras, moralistas, institucionais, logocêntricas, meca-
nicistas, apocalípticas, militantes, aliciantes (Noronha, 2001;
Lejeune, 1986); impregnação de pobreza intelectual, por
meio de postulados teleológicos “do sentido da existência, da
ilusão de coerência e da construção ex post de uma necessidade
dos acontecimentos”; criação de ilusões, retrospectivamente
coerentes, pela “coagulação das imagens”, “condensação
do legendário em ‘traços’, ‘anedotas’, ‘idiotias’” (BOYER-
WEINMANN, 2005, p.56; p.52); trabalho em prol da “ilusão
biográfica”, considerando uma-vida como “um todo, um
conjunto coerente e orientado”, a ser apreendido enquanto
“expressão unitária de uma ‘intenção’ subjetiva e objetiva,
de um projeto”; preocupação “de tornar razoável, de extrair
uma lógica ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva, uma
consistência e uma constância” a uma-vida, pela descrição de
relações inteligíveis, “como a do efeito à causa eficiente ou final,
entre os estados sucessivos, assim constituídos em etapas de
um desenvolvimento necessário” (BOURDIEU, 1996, p.184);
operação por meio de “modelos que associam uma cronologia
ordenada, uma personalidade coerente e estável, ações sem
inércia e decisões sem incertezas” (LEVI, 1989, p.169).
A nebulosa dessa escritura é cultivada através da seleção,
recolhimento e revalorização de resíduos difusos, excertos,
cortes, hiatos, esgarçamentos miúdos, imagens inacabadas,
fluidos pulsantes, que povoam o que é (e o que não é) mostrado
nas formas da anotação do presente, em sua proliferação
densa: documentos pessoais, diários, depoimentos, entrevis-
tas, memórias, confissões, correspondência, álbuns, cader-
netas, fotografias, autorretratos, testamentos, hieróglifos, etc.
(BARTHES, 2005a; CHAIA, 1996).
A escritura biografemática efetiva, assim, uma “anamnese
factícia”, como “recordação errática, caótica”, atribuída ao
autor que amamos; ou seja, mistura gozo e esforço e nos faz
“reencontrar, sem o ampliar nem o fazer vibrar, uma tenuidade
de lembrança”. Anameses que, quanto mais forem foscas,
insignificantes, isentas de sentido, impedindo qualquer indução,
mais chances terão de escapar ao imaginário (BARTHES, 2003d,
p.126; 2004c, p.288; MARTIN-ACHARD, 2007).
Nas vidas-obras, interessa “os buracos que elas comportam,
as lacunas”, as “catalepsias ou uma espécie de sonambulismo”,
pois é neles que o movimento se processa. Agora, como fazer

34 • 35
esses movimentos? Talvez, responde Deleuze (1992, p.172), “não
se mexendo demais, não falando demais” e residindo “onde não
há mais memória”; ou, responde Barthes (1979, p.14), optando
pelos “espaços vazios”, que contém alguns pormenores, gostos,
inflexões, os quais deambulam “fora de qualquer destino” e
contagiam, “como átomos voluptuosos”, “algum corpo futuro,
destinado à mesma dispersão”.
Escritura que, para substituir as crônicas das identidades
pela “biotópica de um Eu disperso e volátil” (BOYER-
WEINMANN, 2005, p.52), segue o princípio da vacilação do
tempo: abre as comportas de abalo da cronologia, subtraindo
“o tempo rememorado à falsa permanência da biografia”;
desorganiza, não o inteligível do tempo, mas “a lógica ilusória
da biografia, na medida em que segue tradicionalmente a ordem
puramente matemática dos anos”; preserva a biografia, visto
que “numerosos elementos da vida pessoal são conservados”,
embora deformados (BARTHES, 2004c, p.354).
Por isso, a escritura biografemática desvia-se de: um
enunciador: “o eu que escreve o texto nunca é mais do que um
eu de papel”; pois quem enuncia põe “em cena – ou em escritura
– um ‘eu’ (o Narrador)”, não mais “exatamente um ‘eu’ (sujeito
e objeto da autobiografia tradicional)”, civil e patronímico,
senão “um eu de escritura, cujas ligações com o ‘eu’ civil são
incertas, deslocadas”; narrativa, já que a escritura consiste em
um desejo de escrever “uma vida desorientada”, enquanto
a biografemática “não é a de uma vida”; vida mesma, pois a
escritura faz “biografia simbólica” ou “história simbólica da
vida”, que requer a escrita não de um curriculum vitae, mas de
“uma constelação de circunstâncias e de figuras” (BARTHES,
2004c, p. 72; p.354-356).
A natureza dessa escritura é feita com lembranças frag-
mentárias de linguagem que pululam. O fragmento consiste
em elevada condensação, “não de pensamento, ou de sabe-
doria, ou de verdade (como na Máxima), mas de música”,
como “a idéia musical de um ciclo”, intermezzo. Coletamos,
portanto: traços biográficos, que são aqueles que, em uma-vida,
nos “encantam tanto quanto certas fotografias” – “a Fotografia
tem com a História a mesma relação que o biografema com
a biografia”; punctuns, que consistem em detalhes, objetos
parciais vistos, registrados; pontos de referência, “chamadas
de atualidade, sintagmas prontos, pequenas ‘condensações de
saber’”, “lufadas de legibilidade, breves coágulos surgidos do
discurso dos outros”. Nessas coletas, a memória social surge,
vagueia, não fica no lugar, eclipsa-se. Produzimos, então, uma
“nova língua na língua, um grund, uma tela móvel, eletrificada”
(BARTHES, 2003d, p.109-110; 1984, p.51).
A unidade dessas experimentações de escritura é o Inci-
dente – “menos contundente que o acidente, mas mais in-
quietante” –: “minitextos, recados, haicais, anotações, jogos de
sentido, tudo o que cai, como uma folha, etc.” (BARTHES,
2003d, p.167). Incidente feito com aquilo que tomba, sem
choque, num movimento infinito, mas também que sobrevive:
“pequenas cenas, estilhaços de romance”, de linguagem, “nem
esboços, nem anotações, nem materiais, nem exercícios”. Com
esse “contínuo descontínuo do fluxo de neve”, promovemos,
amorosamente, aquilo que é tomado por um pormenor
insignificante. Tomamos pormenores precisos, descontínuos
irregulares, interrompidos, intermitentes (BARTHES, 2004c,
p.282-284; p.372) – frutos do Satori (Zen), da Kairós (céticos),
da Epifania (Joyce), do Momento de Verdade (Proust), do Ins-
tante Pleno (Diderot) – para captar “um fragmento de presen-
te”, ao vivo, “o cume do particular”, uma “picada essencial”,
“com-presença”, “ligação instantânea”, que indica “retorno da
letra”.

36 • 37
Cada incidente de uma-vida pode “dar azo ou a um
comentário (uma interpretação), ou a uma fabulação que lhe
dá ou lhe imagina um antes e um depois narrativos”. Ao ligar
e desenvolver os incidentes, tecemos “uma narrativa, ainda
que frouxa”, com os seguintes traços estilísticos: aventuras
infinitesimais; incongruência mínima; rápido deslocamento
na apreensão do cotidiano; detalhe que toca; acontecimento
minúsculo; impressão breve; diálogos descontínuos e rápidos;
dobra sutil no tecido dos dias; modo menor de enunciações não
argumentativas, mas toques, diante dos acontecimentos fortes
(midiáticos, políticos); indiferenciação temporal, que abole a
noção de duração e introduz uma temporalidade cíclica, ritual;
sobredeterminação espacial, que elimina a distância entre
enunciação e enunciado, criando efeito de simultaneidade entre
incidente e anotação; forma de escrita do presente absoluto, em
notação grau zero, necessária para escrever: “faz da linguagem
a frágil salvação de certo sofrimento” (BARTHES, 1988; 2004c,
p.350; p.289; p.66; p.283).
Contrária às histórias de vida, narrativas autobiográficas,
totalidade, fidelidade, autocontrole (BARTHES, 1982, p.78), a
escritura biografemática persegue “a arte do retrato em pintura”,
executando “retratos mentais, conceituais”, por meios diferentes,
nos quais a semelhança é produzida e não “um meio para
reproduzir” – “aí nos contentaríamos em redizer o que o filósofo
disse” (DELEUZE, 1992, p.169). Para realizar esses retratos
em movimento, a escritura vivifica corpos, introduzindo neles
a “dimensão carnavalesca”, qual seja: usa antes o imaginário
do que os fatos; incide o desconhecido, suspeito, lacunar,
ausente, sub-reptício, negado, interditado; surpreende estados
intervalares; evidencia nuances contra formas de pensamento
pronto, que repetem “falsas evidências” (PIERRE, 2006, p.48);
trabalha com enigmas latentes, entre os pólos da vida e da obra;
desvincula e transfere componentes de zonas e instâncias de
pertencimento.
Através de “erotografia”, “autobiografema”, “autobiogra-
ficção” e “cartografemática”, a escritura faz uma “antibiografia”,
na qual o biografematizado é visto como uma “estrutura
estelar repleta de desvãos que escondem as faces perdidas e
na qual os signos equivalentes estão soltos para pontilharem
outros rostos” (NORONHA, 2001, p.10; p.11). Em diálogo
escritural de montagem e composição, recolhe pedaços, feito
molas propulsoras, refeitas no ato ficcional. Desenha máscaras
trocadas. Identifica ardis romanescos, que jazem ocultos nas
franjas do vivido. Constrói uma imagem cambiante de pulsões
desejantes: “falo de mim como se estivesse um pouco morto,
preso numa leve bruma de ênfase paranóica” (BARTHES, 1979;
1984; 1988; COSTA, 2008; EIRÓ, 2008; BARTHES, 2003d).
Escritura sensual, a biografemática exercita ausência de
palavras e força “a passagem dos objetos sensuais dentro do
discurso”, de modo que “a substância sensual das coisas” leva
a linguagem a dispor alguns efeitos físicos, lembranças táteis,
voluptuosas, saborosas; integra passagens, que são sempre
legíveis (“se você quiser ser lido escreva de maneira sensual”),
tais como: em Chautebriand, “as laranjeiras da Vida de Rancé”;
em Bataille, “o prato de leite da História do olho”; em Hegel,
“a plumagem da coruja” de Minerva, a qual, “só no início do
crepúsculo”, “alça seu vôo”; em Marx, “a silhueta do tecelão e
do entalhador” (BARTHES, 1982, p.62-63; FEIL, 2009).
Escrevendo uma “rapsódia de vida”, sem respeitar o todo
e reduzindo o universo a “sistemas de instantes”, essa escritura
compõe uma “arte original, como é a da costureira: peças,
pedaços são submetidos a cruzamentos, a arranjos, a ajustes”;
e cujos “fragmentos intelectuais ou narrativos” formam “uma
seqüência que se subtrai à lei ancestral da Narrativa ou do

38 • 39
Raciocínio”, produzindo “a terceira forma, nem Ensaio, nem
Romance” (BARTHES, 2004c, p.353-355).

III  vidarbo
Vida-obra. Obravida. Vid’obra. Obra d’vida. Obr’ida. Vida-obra.
Que diabo. Vidarbo. Viver como quem escreve. Escrever vivendo.
Viver escrevendo. Reviver. Fabulação de gostos, des-gostos,
descobertas, sensibilidade, estados d’alma, imagens, poses,
figuras, músicas, afectos. Como é, para mim – o que não fala,
sem alegar a si mesmo, condenado ao exílio da generalidade.
Transliteração: mudar o livro é mudar a vida. Cenografia
espaço-temporal. Nos passeios de uma-vida, aparição de
personagens. Na retina, ações que podem ser tocada. Aromas
ávidos no ar. Pensares apanhados. Quereres guardados. Sentires
desovados. Na magia de ler, fascínio por limites. Voz do sujeito-
de-escritura: escrever o que não pôde dizer. Grãos de sentidos,
na pele do eu-de-papel, após travessia do deserto. Cruel desafio
à interpretação. Fundos de silêncio. Habitantes dos interstícios.
Sem economia de bem e mal. Não-lucro. Luxo de escritura livre.
Pulsão por des-formas. Radicalização na preparação. Munição
impaciente. Anarquicamente debochada. Atravessar, navegar,
saltar: e pronto. Corda bamba, sem sombrinha, embriagado.
Pronto. Cair. Se for o caso. Pronto. Avaliar valor dos largados.
Simulacro romanesco anamnésico. Paixão por perturbação,
motilidade, leveza. Sem pessoa. Caleidoscópio insólito. Estranho
dissonante. Bolas de emoção. Roçadela. Fricção. Como se vê,
a biografemática inunda vidas. Minha. Tua. Nossa. Por isso, o
Discurso do Método Biografemático põe “no topo aqueles capazes
da risada de ouro”: “rir de maneira nova e sobre-humana – e
à custa de todas as coisas sérias”. É porque os “deuses gostam
de gracejos: parece que mesmo em cerimônias religiosas não
deixam de rir” (NIETZSCHE, 1992, p.195).
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BARTHES, Roland. O neutro: anotações de aulas e seminários


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VILAS BOAS, Sergio. Biografismo: reflexões sobre as escritas de vida.


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44 • 45
Autocomediografia intelectual de um educador
Máximo Daniel Lamela Adó
AUTOCOMEDIOGRAFIA
INTELECTUAL DE UM EDUCADOR
Máximo Adó

Trata-se de uma grafia constituída com os fatos ordinários


do próprio pensamento; no entanto, eis que se concebe que
todo pensamento se singulariza por meio de quem o expressa
e na própria expressão, mas não é seu no sentido de pertencer
determinantemente somente a si. Confabulando por essa linha
a escrita, vista como uma operação que age como inscrição e
constituição de um fato do próprio pensamento, atua como
deformação textual. Pois, a ideia é de que todo texto se vale de
outros textos para se constituir como tal e nisso os deforma;
doa-lhes outra forma. O pensamento próprio passa a funcionar
como um mosaico de citações, como se fosse atacado por uma
fraqueza mnemônica, uma deficiência em atuar por outro meio
que não seja o de um conjunto de interações inventivas, uma vez
que essas interações não seriam cópias ou repetições do mesmo,
mas apropriações construtivas.
O tema de uma autocomediografia intelectual me obriga a
relatar um fato que se não serviu para me impulsionar ao assunto
que eu queria desenvolver em uma escrita, surgiu do assunto
mesmo como um fragmento relacionado com o todo de onde

biografemática na educação: vidarbos 47


estaria incluído. Tal fato, como se estivesse em câmera lenta ou
sofrendo algum tipo de deslocamento pouco evidente poderia
ser observado em destaque, ou, ao menos oferecia tal impressão.
Sofria uma espécie de simultaneidade em retardo. Para facilitar
o entendimento aparentemente absurdo e confuso do mesmo,
procurarei exemplificar:

Suponhamos que, diante de um espelho você comece a gesticular,


fazer caretas, mostrar a língua, abrir e fechar os olhos; tente mexer
as orelhas (sem utilizar as mãos, é claro); suponhamos, então, que
algo como um gênio, um anjo mau ou ainda um Daimon comece
a divertir-se com a cena e diminua incessantemente a velocidade
da luz. Se tudo ocorrer como imagino estarás posicionado
confortavelmente diante de um espelho, numa distância de quarenta
centímetros e recebes, primeiramente, a tua imagem depois de
2,666... milésimos de segundo. O deus maligno, além de diminuir
a velocidade da luz divertiu-se, também, e simultaneamente,
concentrando o éter; então te vês depois de um minuto, um dia,
um século, a escolher. Estás vendo-te obedecer com atraso, como
num fenômeno óptico parecido com os princípios da fotografia,
no entanto, por ocorrer simultaneamente e atrasado se parece
mais com uma imagem de vídeo com delay. Agora compare
esse exemplo com o que acontece quando estás procurando uma
palavra ou um nome esquecido. Esse atraso é toda uma psicologia,
que poderíamos definir como paradoxal, que ocorre entre uma
coisa e ela mesma1.

Guardemos o exemplo e vamos ao fato. Tudo aconteceu


devido à pesquisa referente a esta escrita, ou seja, a respeito
de uma noção que acate registros não como representações do
pensamento, mas como o próprio pensamento.

O exemplo citado é baseado no trecho de uma carta de Paul Valéry a Pierre Louÿs,
1

correspondência mantida entre 1915 e 1917 (GIDE, LOUYS; VALÉRY, 2004). Também
citada por Agamben (2007).

48 • 49
Numa tarde confortável de primavera comecei a ler um
livro, a folheá-lo para ser mais exato. Poderia dizer que estava
caminhando pela Rua Ramiro Barcelos e passava página a
página sem me deter em alguma em específico, lia parágrafos,
frases, palavras soltas, fazia isso pela ansiedade em verificar,
mesmo que por alto, o que ali poderia conter de interessante para
a pesquisa, algo como uma tentativa de predizer o que seria lido
lendo. Nesse ínterim encontrei o Prof. Dumoulin, que é francês
e especialista em Balzac, e devido a isso esteve um período
oferecendo uma cátedra na Universidade de Westmounth nos
Estados Unidos, onde conheceu os experimentos do Prof.
Hickey, um inglês discípulo de Thomson e de Rutherford
(MAUROIS, 1939). Para ser mais claro: os experimentos com
a máquina de ler pensamentos. Era isso que importava no
momento, procurar dados a respeito dessa máquina. O professor
Hickey, físico de formação e prêmio Nobel aos trinta e oito anos
devido a suas pesquisas sobre a constituição do átomo, havia
questionado: “Não perguntou jamais a si mesmo, Dumoulin, o
que se passa com o senhor quando pensa em objetos, em seres ou
em acontecimentos na ausência deles? Não me dê uma resposta
de professor que cita fontes e textos. Tome um caso concreto.
Pense em um acontecimento de seu passado, não importa qual”
(IBIDEM, p.39). Essa questão não era mais que a enunciação
de uma pergunta inicial, a constituição de um problema para
a formulação de algumas hipóteses a respeito da natureza
do pensamento e que, uma delas, levara Hickey a intuir a
possibilidade de construir a máquina.
Ao pensar no questionamento do professor Hickey o
professor Dumoulin, sem recorrer diretamente a Balzac que
era sua especialidade, afirmou que a imagem que escolhera
de um acontecimento de seu passado era fugidia e de traços
demasiadamente confusos, e ao pensar onde estaria essa imagem,
respondeu com segurança que não estava ante seus olhos, como
os objetos que via apoiados à mesa, mas, parecia estar situada
como se fosse detrás de um olho interior; “sob minha abóboda
craniana” (IBIDEM, p.40), dizia Dumoulin.
No decorrer da conversa, entre perguntas e respostas, o
professor Hickey induziu a que chegassem à conclusão de que no
pensamento se misturam palavras às imagens e que as palavras
seriam mais nítidas que as imagens, essa razão propiciava que
lembrassem frases inteiras e que por mais que se lembrasse de
pessoas, os traços de seus rostos eram fugidios e confusos, o que
não parecia acontecer às palavras, aos nomes dessas pessoas, por
exemplo. O consentimento do professor Dumoulin a respeito
da nitidez das palavras no pensamento serviu para que Hickey
explicasse os princípios de funcionamento de sua máquina. A
explicação rezava assim:

Há muito tempo, disse de mim para mim que o pensamento,


de vez que seus elementos primários são fenômenos físicos,
imagens e sons deveria poder ser captado pelos métodos
ordinários físicos... Note bem que não sustento absolutamente
que o pensamento seja apenas um fenômeno físico... Mas o
papel do sábio é estudar os sinais observáveis e as variações
de fenômenos cuja natureza essencial lhe escapará sempre...
Ora, que cada função do corpo, inclusive o pensamento, se
acompanha de fenômenos físicos, há muito tempo que os
fisiólogos observaram. O Prof. Bergner, da Universidade
de Iena, estudou o que chama as ondas cerebrais... Um Dr.
Máx, colocando os pacientes numa espécie de caixão isolante,
pôde captar emissões cerebrais... Durante dois ou três anos,
eu próprio pesquisei neste sentido e perguntei a mim mesmo
se a imagem cerebral, aquela da qual o Sr. disse há pouco:
“Vejo-a sob a abóboda craniana”, poderia ser captada por
algum aparelho análogo ao belinógrafo, que é um sistema

50 • 51
fototelegráfico, aparelho que precedeu o fax e, sem dúvida
também os princípios que levaram a intuir a possibilidade
de existência da internet, e que o inventor Edouard Belin
confessou ter sido inspirado pelas leituras fabulatórias que
fez de Júlio Verne. Eu queria fazer algo dessa natureza, como
fotografar ou filmar pensamentos, mas não foi possível, pois,
tais imagens são confusas, móveis e se compenetram umas
com as outras. No entanto, para mim, a linguagem interior
do homem é um fenômeno físico muito definido... Traduz-
se pelos movimentos da língua e da laringe, movimentos
imperceptíveis, mas suficientes para dar passagem a ondas
sonoras. Semelhante à relação que tem com a imagem, quando
pensa numa frase parece sentir que a ouve, como se fosse em
sua boca, no alto da abóbada palatina, na base do nariz. Pode
perceber que não consegue pensar numa nota demasiado alta
para a sua voz, pois, as palavras e as notas pensadas acham-
se realmente formadas na laringe do individuo que pensa. E
isso é verdadeiro, tão verdadeiro que se cair numa meditação
profunda, e esquecer a existência dos entes ao seu redor, falará
sozinho. Perceba que as vezes uma frase escapa a um pensador
preocupado. Desta hipótese surgiu a ideia de construir a
máquina de ler pensamentos, que funciona de modo bastante
simples; por meio de microfones muito sensíveis e tubos de
borracha transportam-se, por fios de cobre, as vibrações da
laringe que codificadas em ondas sonoras chegam até um disco
que as registra e logo, num gramofone comum, podemos ouvir
os pensamentos. Podemos instalar o aparelho, por exemplo,
nessa poltrona de veludo verde — tão cara a Cortázar — onde
um homem pode apoiar confortavelmente a cabeça e ler uma
novela, enquanto nós poderemos, em seguida, ler, ou melhor,
ouvir seus pensamentos, e descobrir, nessa leitura auditiva,
uma compenetração entre o que é pensamento e o que é
leitura, e neste momento vemos que se embaralham os códigos
e temos um só texto que, de modo geral, seria um amálgama
de realidade e ficção. Caberia a nós, especialistas, quero dizer,
sábios especializados, destacar qual seria o tom da realidade e,
dentre o caos desse pensar, classificar o que seria ficção2.

Esse encontro com La machine à lire des pensées [A máquina


de ler pensamentos] fez recordar Paul Valéry, que se dedicou a
diagramar os movimentos do pensar e em um dos fragmentos
de Tel Quel I, certamente encontrado na página 67 da edição de
1941 da Gallimard, havia dito algo como: o pensamento não
pode prescrever-se a si, mesmo que possa prever suas voltas e
seu desenvolvimento. A máquina de Hickey, então, somente
serviria de apoio para observar uma ideia a respeito do pensa-
mento como no exemplo do anjo maligno brincando com
nossa imagem diante do espelho, uma vez que ela [a máquina]
poderia dar-nos um produto no qual conseguiríamos ouvir
nossas cismas em retardo, desde que o pensamento fosse, como
na afirmação do professor inglês, feito mais precisamente
de palavras e pudesse ser captado por essa máquina como
ele havia explicado. No entanto, mesmo que assim o fosse, o
próprio pensamento escapa a uma definição mais ou menos
clara ou definitiva e, voltando à frase de Paul Valéry, não
pode prescrever a si mesmo. Ou seja, mesmo que pudéssemos
observar uma gravação de nossos próprios pensamentos não
estaríamos observando, de fato, o pensamento e tampouco o seu
movimento, pois, inclusive essa ordem, mesmo que expressa — a
do movimento do pensar, ou, do mesmo modo, o seu processo
— não seria ele, e sim algo como um penso pensar o pensamento
pensado. O objeto limpo único e perpétuo do pensamento seria:
o que não existe de modo finito, algo como um finito passado

O exemplo citado é baseado, principalmente, no livro La machine à lire des pensées de André
2

Maurois, publicado em 1937. A versão brasileira teve o título A máquina de ler pensamentos
traduzida por Elias Davidovich e publicado pela Vecchi-Editor, do Rio de Janeiro em 1939.

52 • 53
como o que já não está, já não está, já não está, já não está diante
mim. O impossível.
Cada pensamento, diz-nos Valéry, é uma exceção a uma
regra que é não pensar (VALÉRY, 1947, p.8); talvez, de modo
deliberadamente anacrônico, Valéry retire essa ideia da voz de
Emílio Renzi, traçada por Ricardo Piglia, que nos diz: “Pensar
não é lembrar, é possível pensar mesmo quando se perde a
memória” (PIGLIA, 2104, p.42). Gilles Deleuze coloca a ques-
tão afirmando que “em Proust, por exemplo, encontramos a
ideia de que todo pensamento é uma agressão, de que ele surge
sob a coação de um signo, de que não se pensa a não ser coagido
e forçado. E, consequentemente, que o pensamento não é mais
conduzido por um eu voluntário, mas por forças involuntárias,
por ‘efeitos’ de máquinas... É preciso também ser capaz de
amar o insignificante, de amar o que ultrapassa as pessoas e
os indivíduos, é preciso também abrir aos encontros e achar
uma linguagem nas singularidades que excedem os indivíduos,
nas individuações que ultrapassam as pessoas. Sim, uma nova
imagem do ato de pensar, de seu funcionamento, de sua gênese
no próprio pensamento, é precisamente isso que buscamos”
(DELEUZE, 2006, p.180). E eu, é claro, continuava com o livro
entre as mãos.
Havia lido algumas páginas e feito com que se cruzassem
a outras que, naquele momento, ausentavam-se da minha
presença; foi quando ouvi de minha voz: gestimmt-sein 3 e comecei
a rir. Ri, primeiramente, pela expressão em alemão — eis que
não está provado que sei alemão — e, além disso, ri, pois parecia

O termo alemão gestimmt-sein significa algo como dizer em português: estou de acordo.
3

No entanto, segundo Leo Spitzer (1967, p. 9-10), o termo implica certa solidariedade e
consentimento com algo maior, mais vasto, distinguindo o termo de um simples estado de
ânimo. Interessa-nos associá-lo a ideia de que “estar de acordo” é estar disposto, de corpo
inteiro, e aos corpos que nos rodeiam em certa atmosfera. Estar sintonizado àquilo que possa
ser uma linguagem nas singularidades e nas individuações que nos ultrapassam.
personificar o exemplo de Hickey, deixando minha meditação
escapar por uma voz aparentemente distraída. No entanto, sei,
ou penso saber, que meu riso não se deu por essa associação à
explicação de Hickey e sua máquina, mas, por ela ter evocado
em mim que, ao pensar, pensamos de corpo inteiro e para além
desse corpo. Se há um cérebro que pensa o que ele é, é a própria
faculdade de pensar. Então, a pergunta: o que é o cérebro que
pensa?, foi reformulada para: quem é o cérebro que pensa?, e
ele disse: Eu, “mas Eu é um outro”4. “E eu próprio só existo
quando me evado de mim para outrem” (TOURNIER, 1987,
p.99). Esse eu-ele não está sozinho, e não apenas concebe o
pensamento como também sente a criação. O Eu, aqui, passa a
ser uma função ficcional, uma fabulação de vida pré-individual
que se agencia como coletividade. Uma literatura. O cérebro
que pensa, ou algo como um cérebro-pensamento é o que pode
tornar um impossível sensível e, ainda, criar impossíveis. “O
cérebro é o espírito mesmo”, (DELEUZE; GUATTARI, 2004,
p.270). E, quem sabe, o termo espírito deva ser entendido como
uma significação particular. Significação na qual o espírito não
passa de uma atividade pessoal, mas universal; atividade interior
e exterior e que dá à vida às forças mesmas da vida. Que dá ao
mundo e às reações que o mundo suscita em nós, um sentido e
um uso. Uma expansão do esforço e da ação.
O termo espírito associado à atividade daqueles que não só
estão adaptados ao funcionamento normal da vida ordinária que
funciona, apenas, para a mera conservação da mesma, mas que
se organizam para a transformação. O termo espírito associado
a uma aventura sem limites de objetivos claros e que ultrapassam
a simples necessidade de conservação, criando os pretextos e
ilusões que necessitam para essa ação-transformação. Variando,

Deleuze e Guattari (2004, p. 271) mencionando a frase de Arthur Rimbaud.


4

54 • 55
de época em época, a perspectiva dessa aventura intelectual
(VALÉRY, 2000). A aventura do espírito — vista como a
aventura do pensamento e do intelecto — é sempre perpassada
pelo estado de humor de sua época, assim como para a filosofia
da Grécia arcaica podemos associar a ideia do espanto à arché,
ou seja, ao princípio que impulsionou os espíritos a uma ação-
transformação do espírito grego arcaico, a arché do pensamento
da modernidade pode estar associada à dúvida, em positivo
acordo com a certeza e associada, certamente, ao pensamento
cartesiano. Nesse processo de ação-transformação o espírito
cria, inventa e essa criação e invenção não apenas faz-se dele,
mas, faz-se nele. É ele próprio sua própria invenção. “O espírito
é sempre visto em circunstância, em situação num dado tempo
e espaço, em sua fragilidade real, condicionado a si mesmo, aos
outros e ao mundo” (PIMENTEL, 2008, p.33).
Então, pensar consiste numa espécie de separação de si e a
linguagem interior cria um outro no mesmo. “Na enunciação
filosófica, não se faz algo dizendo-o, mas, faz-se o movimento
pensando-o por intermédio de um personagem conceitual.
Assim, os personagens conceituais são verdadeiros agentes
de anunciação. Quem é Eu? É sempre uma terceira pessoa”
(IBIDEM, p.87), um eu-ele em uma espécie de comunicabilidade
recíproca e autoformadora de outrem si-mesmo.
E eu continuava com o livro entre as mãos, mas agora estava
na praça, a poucos metros do Berna. Nesta época não é só o
clima que me é agradável, sinto que toda a atmosfera me recria,
sinto-me feito dos odores das flores. A brisa fresca me torna
peripatético [mais para cavaleiro andante do que para aristotélico]
e o pensamento parece fluir melhor no movimento, ele me refaz
com o vento, não se fixa, não estende alguma circunstância
em que possa estabelecer-se qualquer generalidade. Diria que
esta é a época das conexões, das combinações de qualidades
incompatíveis, das acomodações que se excluem (VALÉRY,
1998, p.43). O caminhar e o vento são, de certo modo, um
carinho para com a violência do pensar.
O encontro com o professor Dumoulin e A máquina de ler
pensamentos, servia-me como figuração, mais ou menos inte-
ligível, para dialogar com a afirmação de Descartes de que
todo ato da visão é, em realidade, um juízo intelectual do sujei-
to pensante. No discurso quinto, da Dióptrica, [“Des images que
se forment sur le fond de l’œil”] “Das imagens que se formam no
fundo do olho” (DESCARTES, 2010, p.35), Descartes, apresenta
uma figura que ilustra o seu experimento. Não haveria de fato,
segundo esse experimento, uma visão concreta, e sim, um eu
penso ver, [ego cogito me videre]. Lembrando que Hickey fracassou
em seu experimento com respeito a captar uma imagem do
pensamento e obteve relativo sucesso ao associar o pensamento
diretamente a linguagem falada, afirmando que os movimentos
que se formariam na laringe do sujeito pensante seriam mais
precisos por serem compostos por movimentos físicos associados
à fonética. Seu intuito inicial, o de querer captar as imagens do
pensamento e a hipótese com respeito à relação do fenômeno
físico e o pensamento, poderiam certamente combinar a história
dessa máquina e sua construção à dióptrica cartesiana.
Nesse sentido A máquina de ler pensamentos servia-nos como
um acidente exterior que excitaria um acontecimento íntimo,
que, neste caso, seria o de conspirar na reunião de dados que
me fossem relevantes para formular este escrito como uma
autocomédiografia intelectual de um Educador. O que me fazia
concordar, assim como concordara Paul Valéry à maneira de
Leibniz ou Pangloss, que tudo acontece pelo melhor, ainda
mesmo no pior dos mundos (VALÉRY, 1955, p.33). Está pro-
vado, dizia certa vez o metafísico-teólogo-cosmolonigologo Sr.
Pangloss, que as coisas não podem ser de outra maneira, porque,

56 • 57
sendo tudo feito para um fim, tudo existe necessariamente para
o melhor dos fins. Observai que os narizes foram feitos para
apoio dos óculos; por isso temos óculos. Os olhos foram feitos
para a leitura; por isso temos livros. A máquina de ler pensamentos
foi feita para conspirar a favor deste texto; por isso ele se dá a ler.
No discurso quinto da Dióptrica, Descartes faz um
experimento que visa demostrar, por meio de uma aplicação
direta, as leis físicas à visão e, deste modo, compara, por uma
relação de semelhança, o olho a uma lente. Procurarei resumir o
experimento buscando ser fiel ao dito de Descartes:

Ao tomarmos o olho de um homem que morreu recentemente,


ou ainda, no defeito deste, o de um boi ou de algum animal
de grande porte, cortamos cuidadosamente até o fundo as
peles que o recobrem, de modo que grande parte do humor
que ali encontramos fique a descoberto, sem que nenhuma
parte fique voltada para fora. Em seguida recobrimos o olho
de algum corpo branco,
tão transparente que a luz
possa passar por ali, como
por exemplo, um pedaço
de papel ou uma casca de
ovo, como em RST, coloca-
se este olho no buraco de
uma janela aberta para este
propósito, de acordo com Z,
considerando com cuidadosa
atenção que a parte anterior,
ver BCD, esteja voltada
para um lugar onde estejam
expostos vários objetos,
indicado em VXY, e estes
estarão iluminados pelo sol;
a outra parte, que podemos
chamar de posterior, a mesma na qual colocamos o corpo
branco RST, estará voltada para o interior da habitação, P,
[observem que a inscrição P está defronte ao nariz do barbudo
e representa o local onde nós, como observadores diretos do
experimento ilustrado, também estamos]. Em P, esse lugar
onde nós estamos, não deve penetrar outra luz que aquela que
pode ser filtrada pelo olho. Todas as partes, como se sabe, de
C a S são transparentes. Tudo isto feito, ao olharmos para o
corpo branco RST, veremos, ou verão aqueles que participam
do experimento, quem sabe com admiração e prazer, uma
pintura que representará, muito ingenuamente em perspectiva,
todos os objetos que estão no exterior5.

Pode-se perceber, pela ilustração e descrição do experimento


cartesiano, que o homem barbudo está em P — esse lugar escuro
onde só entra luz pelo olho de um cadáver — como um ator que
representaria o verdadeiro sujeito da visão. O barbudo é, neste
caso, o Eu pensante [não podemos confundir essa afirmação
com a ideia de que todo barbudo seria um sujeito pensante].
Mas, sabemos, e Descartes também o sabe, que o Eu pensante
[ego cogito], é inextenso e imaterial, o que não permite configurar,
de fato, uma união desse Eu pensante com o corpo daquele que
olha, como se o EU pensante fosse um sujeito barbudo por detrás
da sua abóbada craniana. No discurso sexto da Dióptrica, [“De
la vision”] “Da visão” (DESCARTES, 2010, p.42), podemos
observar que Descartes não se engana quanto a imagem do
barbudo como uma função ficcional que lhe serve para figurar a
relação do Eu pensante com a sensação da visão. Ele afirma que
o barbudo está em P como se houvessem outros olhos em nosso

A figura do quadro está de acordo com a figura apresentada por Descartes no discurso quinto de La
5

Dioptrique, com pequenas alterações nas letras da legenda [aumentadas e com fundo branco] para
facilitar a leitura e identificação das mesmas de acordo com a explicitação textual (DESCARTES,
2010, p.35).

58 • 59
cérebro6. É mais ou menos assim que Descartes, mesmo sabendo
que o barbudo é inextenso e imaterial, funda um sujeito da visão
por meio de um sujeito do pensamento, fazendo com que uma
determinação como o eu penso implique em algo indeterminado
como o eu sou, sem dizer como esse indeterminado eu sou é
determinável pelo eu penso (DELEUZE, 1988, p.150-151).
Deleuze lembra que:

A resposta de Kant [a esse respeito] é célebre: a forma sob a


qual a existência indeterminada é determinável pelo Eu penso
é a forma do tempo... As consequências disto são extremas:
minha existência indeterminada só pode ser determinada
no tempo como a existência de um fenômeno, de um sujeito
fenomênico, passivo ou receptivo, aparecendo no tempo. Deste
modo, a espontaneidade, da qual tenho consciência no EU
penso, não pode ser compreendida como o atributo de um ser
substancial e espontâneo, mas somente como a afecção de
um eu passivo que sente seu próprio pensamento, sua própria
inteligência, aquilo pelo qual ele diz EU exercer-se nele e sobre
ele, mas não por ele. Começa, então, uma longa história,
inesgotável: EU é um outro ou o paradoxo do sentido íntimo.
(IBIDEM, p.151)

Temos aqui, a potencialização do falso. Se o eu é um outro


ao contrastar-se com ele mesmo não consegue constatar a
proposição Eu = Eu, ou seja, uma verdade unificante para o
pensamento e o pensamento passa a ser criação e não vontade
de verdade. E quando não há vontade de verdade o pensamento
passa a ser uma simples possibilidade de pensar (DELEUZE;
GUATTARI, 2004, p.73). Temos, então, que a imagem desse
eu representado pelo barbudo na experiência cartesiana, opera

“[...] comme s’il y avait derechef d’autres yeux en notre cerveau, [...]”. (IBIDEM).
6
através de uma espécie de desdobramento irônico. O olho que
olha se converte no olho olhado e a visão transforma-se em um
ver-se ver, uma operação especular como uma representação, no
sentido filosófico e teatral do termo (AGAMBEN, 2007, p. 119).
O barbudo e a abóbada craniana são como um encenador, a cena
e o seu cenário. Eis que assim podemos restabelecer o discurso
da dióptrica a partir de uma mise en scène do Eu.
Eu continuava na praça, andando pelos sendeiros sob a
sombra dos plátanos e os odores dos jasmins, que agora, com
suas flores murchas e podres exalavam repugnância. Os canteiros
juntavam, em suas obliquidades, vestígios de acrimonia e
putrefata decomposição floral. Olhando o vestígio das flores que
haviam sido brancas, pensei: “...sofrer é dar a algo uma atenção
suprema, e eu sou um pouco o homem da atenção...” (VALÉRY,
1997, p.31). A frase não era minha e tampouco de Descartes.
Naquele momento, eu dava a meu corpo um ritmo de ansiedade,
uma espécie de vigília angustiosa, pensando a angústia como
um nada. O nada, neste caso, apontava para a possibilidade
permanente da liberdade que estaria na aquisição daquele que
volta a atenção a si mesmo. Apreendia que dizia EU como um
habito num campo de imanência. Procurei sentir o meu poder
até a extremidade dos membros e com isso sofrer, dando a mim
mesmo, uma atenção suprema. Eis que, nessa procura, via-me
diante do cenário cartesiano da dióptrica repetindo a frase: “Sou
sendo, e me vendo; vendo-me ver-me, e assim por diante...”
(VALÉRY, 1997, p. 32). Estava a repetir uma das últimas
frases de Uma noite com Monsieur Teste (IBIDEM, p. 13-32). A
frase poderia ter sido pronunciada pelo barbudo de Descartes,
repetindo a cena um tanto teatral da dióptrica.
No entanto, a cena de Monsieur Teste não mais fundamenta
um sujeito da visão [ou da Razão, se o relacionamos ao ego cogito
do Discurso do Método (DESCARTES, 1955, p.63-176)]. Aquilo

60 • 61
que em Descartes seria uma íntima revelação de uma presença
originária e imediata, surge, em Monsieur Teste, como um espaço
de ficção que poderíamos denominar: teatro do espírito, ou, do
mesmo modo, comédia do intelecto.
O mundo moderno, na esteira da filosofia cartesiana,
parece inaugurar o mundo da representação com relação ao
cogito. As categorias de sujeito e objeto se constituem como
categorias indissociáveis e complementares da representação.
A categoria de representação se converte em uma relação
privilegiada para o conhecimento. De esse modo o pensar
é representar e obedece a relação da representação com o
representado: sujeito e objeto, idea como perceptio. O olho
percebe-se a si imediatamente diante do espelho e esse olho é de
um sujeito que pensa, e, por meio de sua voz, traz à presença o
eu de sua consciência. Essa é a máquina cartesiana da relação
sujeito-objeto. Voltemos ao exemplo do anjo mau que faz
com que o olho diante do espelho se veja com atraso, essa é a
máquina valéryana. O anjo mau insere um intervalo entre o eu e
o olho que olha, esse intervalo provoca um atraso, e nesse atraso
a consciência não está no lugar de uma presença, mas, sim, de
uma ausência. Diante dessa cena há um outro olhar que olha o
eu para além do eu. É o olhar impessoal de um anjo como “um
observador ‘eterno’ cujo papel se limitasse a repetir e a remontar
o sistema do qual o Eu é essa parte instantânea que acredita ser
o Todo. O Eu nunca poderia se engajar se não acreditasse — ser
tudo”. (VALÉRY, 1997, p.109)
Monsieur Teste funciona como esse anjo mau, “Monsieur
Teste é a testemunha. Conscious — Teste, Testis”. (IBIDEM, grifos
meus) E a testemunha, nunca é uma pessoa, mas o relato de
um processo de dessubjetivação (ANTELO, 2008). Lembro, ter
lido em Guayaquil de Borges, algo como: confessar um fato é
deixar de ser ator do mesmo, para se tornar testemunha; para ser
alguém que olha para o fato e o narra, e, assim, já não é o mesmo
que o executou. Testis é também tertius, ou seja, o terceiro, aquele
que se distancia para narrar, ou ainda tertius, como aquele que
pertence ao terceiro reino, isto quer dizer que pertence ao inferno.
Seria esse o reino do Anjo mau que brinca com o tempo diante
do espelho, doando àquele que olha o sentido paradoxal de toda
linguagem? Eis que estamos diante de um drama que funciona
como a dissolução de uma implicação imediata do olho como
fundação de um sujeito vidente, e, também, da dissolução de
fundação de um sujeito consciente vislumbrado pelo discurso
por meio dos indicadores de enunciação, em especial pelo uso
do pronome Eu.
Poder-se-ia dizer que toda a obra de Valéry está permeada
pela fascinação pelo pronome Eu, uma reflexão sobre o Eu e
uma luta com o Eu. Verificando uma consistência puramente
linguística do Eu, Valéry dissolve com facilidade toda ilusão de
realidade pessoal e substancial do sujeito (AGAMBEM, 2007,
p.129). Não seria esta, “a busca de Monsieur Teste: retirar-se do
eu — do eu comum tentando constantemente diminuir, com-
bater, compensar a desigualdade, a anisotropia da consciên-
cia?” (VALÉRY, 1997, p.112).
Como já foi dito, tudo aconteceu devido à pesquisa refe-
rente a este texto. Numa tarde confortável de primavera come-
cei a ler um livro, a folheá-lo para ser mais exato. O livro foi-
me emprestado durante uma conversa no Berna. Essa tarde —
após uma manhã de leituras — resolvi passar pelo Berna, bar
ou cervecería-berna, para ser mais exato. Lugar este que não
frequentava já há algum tempo, mas, que havia sido trivial numa
época em que costumava passar as tardes com Junta-Larsen e o
pessoal onettiano. Eis que, el viejo Lanza, ao pensar ter pensado
ouvir nosso diálogo, ou, melhor dito, ao tomar a voz narrativa,
aproximou-se e disse:

62 • 63
— Justamente tenho este livro aqui comigo, foi publicado
mais ou menos na mesma época que El pozo, que você já
conhece. Este foi publicado em 1937 e El pozo em 1939. Vocês
podem desconfiar do que vou dizer, já que sou o tipógrafo de El
liberal e, tanto eu como El Liberal, somos, também, uma criação
onettiana. Não importa, mesmo que eu tenha surgido muito
depois disso [considerando certa cronologia literária], sou meio
borgeano — que Onetti não me ouça, e se bem o conheço deve
estar conversando atentamente com Menipo7. Desde que fui
escrito fui também, de certa forma, destituído dessa possibilidade.
Na minha condição serei, para mim, sempre o mesmo, um
personagem entre os livros. Estou sempre nas mesmas cenas;
se bem que elas se repetem com diferença, uma leitura jamais
é a mesma leitura mesmo quando as palavras lidas coincidam
palavra por palavra e linha por linha com a leitura anterior; mas,
existem possibilidades como esta, quem sabe um dia poderei
cumprimentar Cérbero na entrada do Hades e, mais que entrar
vivo na morte, poderei ainda, manter um diálogo entre sombras,
afinal Valéry já nos demostrou que isso é mais que possível e
que as criaturas, como eu, são infiéis a seus criadores e acabam,
quando são criaturas de gênio, por reencarnar. Quanto mais se
fazem vivas, tanto mais se fazem livres (VALÉRY, 2011, p.43).
No entanto, há tanto cuidado e preocupação a respeito de não
profanar certo tipo de escritura que é mais provável que eu esteja
sempre morto/vivo e repetindo, de algum modo trágico e como
uma representação, sempre as mesmas frases em Juntacadáveres
—, ah, ao dizer borgeano eu quis dizer menardiano8, ou seja,
adepto à técnica do anacronismo deliberado e das atribuições
errôneas. A aplicação dessa técnica consiste em povoar de

Lanza faz referência ao Menipo de Luciano de Samósata.


7

Relativo ao escritor Pierre Menard ou estudioso de sua obra. Sobre Pierre Menard ver:
8

(BORGES, 2007).
aventura os livros mais tranquilos. Essa técnica de aplicação
infinita nos solicita recorrer à Odisséia como se fosse posterior à
Eneida [Virgílio precedendo a Homero] (BORGES, 1995, p.54).
Voltando ao que nos interessa, minha tendência é escolher —
por requinte estético e bom gosto de minha parte — ao El pozo
[O poço], e não este livro que tenho nas mãos, apesar de ter-me
intrigado o título: A máquina de ler pensamentos. E vou dizer o
porquê. Tenho uma inclinação a classificar as narrativas em duas
vertentes, aquela de quem escreve o que conhece e aquela de
quem escreve para conhecer. Eu prefiro El pozo exatamente por
enquadrar-se, segundo o meu diagnóstico, na segunda vertente.
Em El pozo, o narrador, Eládio Linacero diz: “Es cierto que no sé
escribir, pero escribo de mi mismo” (ONETTI, 1967, p.8) [É certo
que não sei escrever, mas escrevo de mim mesmo], ele discute a
narrativa na medida em que ela é narrada, e essa estrutura, a
de uma história que se conta na medida que é contada, ou seja,
que se conhece na medida que é escrita, é o procedimento da
narrativa onettiana inaugurada em El pozo. Em La vida breve [A
vida breve] isso se torna mais evidente. Mas sabemos que não foi
Onetti que inventou essa estrutura, ela pode ser lida no Quixote
de Cervantes. No entanto, na literatura onettiana, toda história é
inoperante, o texto se faz na impossibilidade de contar-se, o tema
é a própria inoperância da história que ele pretende desenvolver.
Esse é o inferno, há sempre um terceiro que testemunha e furta o
presente ao narrar. Quem narra afinal, o narrador é aquele que é
narrado ou quem é narrado narra por ser narrado pelo narrador?
Se quem é narrado também narra é por servir de intercessor
ao narrador. Esse terceiro, o testis, testemunha, passa a ocupar
um não-lugar da articulação da linguagem e acaba por ser
regulado pelos paradoxos da mesma, regulando a realidade a
partir de um ponto inextenso, onde ser testemunha, em todo
caso narrador, não é pertencer ao mundo, mas, ser o seu limite.

64 • 65
O Monsieur Teste de Valéry, por exemplo, “não é outro senão o
próprio demônio da possibilidade. A preocupação do conjunto do que ele
pode o domina. Ele observa a si mesmo, manobra a si mesmo, não quer
ser manobrado” (VALÉRY, 1997, p.11). Em todo o Cycle Teste 9 o
que há é sempre um conjunto de hipóteses pessoais que tem o
trabalho do espírito como tarefa infindável. O que importa “é
antes a intensidade especulativa do que o resultado tranquilo
de uma obra” (BARBOSA, 1997, p.166). Terminei de beber o
expresso, agradeci a Lanza pelo livro e saí do Berna folhando
aquelas páginas e pensando em que medida poderia relacionar
A máquina de ler pensamento a este texto, na medida em que,
paradoxalmente, o que aqui é escrito ocorre entre ele e nele
mesmo. E Lanza?, certamente continuou a sua fala no Berna,
acredito que voltou a sua posição na, digamos assim: história
da literatura, e sentado à mesa com Jorge Malabia, o irmão de
Federico, diz-lhe rindo: a poesia está feita com o que nos falta
com o que não temos, é interminável, jamais existirá um livro
único e decisivo (ONETTI, 1984).
E eu voltava a fazer relações com aquilo que me interessa
no momento, pensava que se existe alguma fraqueza na
educação, ela está, justamente, em se entregar aos domínios do
conhecimento, no qual impera o evidente, o repouso de sistemas
definidos, as cartilhas dos fazeres, a verdade dos dados e fatos
imediatamente associados à presença; aos automatismos do
intelecto. A educação como numa narrativa de quem conhece
o que escreve, balizada pela concepção de que o pensar é
representar pela perceptio. Tudo bem, mas isso não é a educação,
ela não pode ser definida com uma essência e sim como forças
e vontades, e se concebo a educação como aquilo que se faz

Conjunto de 10 textos que compõem Monsieur Teste (VALÉRY, 1997); (BARBOSA, 1997,
9

p.133-166).
para conhecer o que se faz no próprio ato do que é feito, ela
passa a se erguer na desordem vital que se insinua como processo
e, como processo, não se efetua como modelo ou a partir de
modelos, automatismos, facilidades do já dado, repetições
do mesmo. Mas, pela rigorosa análise do processo de criação
de si mesma. Assim como o estudo da linguagem a educação
do mesmo modo que a escritura, passa a ser uma passagem de
vida. Estuda-se para si, para nada operante, nenhuma execução,
senão a própria execução executante na ação vital de abandonar
a facilidade de qualquer esquematismo. Ao ter um currículo em
mãos, lê-lo sublinhando suas potências e com elas fazer devir um
currículo-especulativo, utilizar a técnica do anacronismo deliberado
e povoá-lo de aventuras e lembrar a famosa frase de Paul Valéry
em Tel Quel I: É preciso ser leve como um pássaro e não com
uma pluma (VALÉRY, 1941, p.32).

Referências
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68 • 69
Biografemática do cotidiano
Marcos da Rocha Oliveira
BIOGRAFEMÁTICA DO COTIDIANO
Marcos da Rocha Oliveira

<09:57>
ulular: o mundo inteiro 1.1
na sobrevida ao pó de giz – ele, 1.2
vívido no tinteiro, um espirro, 1.3

um barulho na rua – ensinou dedalus 1.4


a queda subsubida corre ao inverso (the 1.5
fall) street com os pés curupirados 1.6

(bababadalgaraghtakamminarronnkonnbronntonner - 1.7
ronntuonnthunntrovarrhounawnskawntoohoohoordenenthur - 1.8
nuk!) o educador habita a quaseterra 1.9

terá lugar, nada, se 1.10


não o – soçobra, êxito estelar 1.11
nas estalactites da unânime dobra – 1.12

pó? nada crepita estela? qued’a bruma 1.13

I – Procedimentos metodológicos

O presente texto é o gesto de “escrever sobre o escrever”


(CAMPOS, 2004a), tendo à mão os procedimentos metodoló-

biografemática na educação: vidarbos 71


gicos utilizados na pesquisa “Biografemática do homo quotidianus:
O Senhor Educador” (OLIVEIRA, 2010). E enquanto “futuro do
escrever” (CAMPOS, 2004a), repristina treze “poemepisódios”
sobre o dia de um educador qualquer (tratado apenas por Senhor,
indistintivamente), e retoma alguns princípios conceituais e
operatórios de sua realização – em um reordenamento que sustém
uma escritura do presente. A biografemática e o cotidiano, o dia
de um educador, o texto: como se escrito em um dia preciso de
um precioso qualquer. É ao texto que escrevo e escrevi que me
reporto, para com isso, talvez, continuar escrevendo. E só. E se
proponho-me a dizer as vias de um texto só o posso, claro, em
sua fantasia, pois ao escritor cabe apenas desejar certo texto, e
escrevendo-o prolongar sua fantasia na escritura de um leitor. A
fantasia do texto desejado aqui, então, se se presta a um exercício
pretensamente meta-textual só o faz por sua incapacidade de
encerrar tal escritura. A fantasia do escritor e a fantasia do leitor
são luxuriosos corpos que todavia não se beijam.
Mas se encontro, no texto, corpos comprometidos com sua
potência dispersiva, é certa tanatografia que tento praticar: se
para explodir algum sujeito da cotidianidade (homem médio,
insuportavelmente cheio de opiniões) é preciso um outro para
amar, tal amado deve ser disperso, “um pouco como as cinzas
que se atiram ao vento após a morte” (BARTHES, 2005c,
p.XVII): esta escritura do homem cotidiano é, para mim,
encarnada fantasisticamente no Senhor Educador (em seus
companheiros fantasmagóricos) – inflexionando certo abandono
cuidadoso, escolhendo as rajadas mais preciosas para levá-lo
fora de qualquer destino. Não é, portanto, a especificação de
um Educador ou a tomada deste em sua definição conceitual (o
que seria próprio a uma observação da cotidianidade docente, a
um debruçar-se sobre uma certa essência do sujeito Educador)
que pesquisei, mas sim a individuação da vida cotidiana deste

72 • 73
Senhor Educador que busquei biografematizar o Educador
que toca o cotidiano em seu distanciamento do referente –
respondendo as questões “o que faz deste docente um docente?,
o que faz de um docente este docente?, onde está o docente,
neste momento?” (CORAZZA, 2008).

<10:01>
eludir a queda com o arqueio 2.1
ereto e leve das costas – as risadas 2.2
na sineta confundida 2.3

perfilam num a classe lá- 2.4


biodegiz; ele-o comentador na 2.5
porta pé pós pé ladalado: 2.6

pátio à sala, tud’igual amanhãontem! o 2.7


educador quase ouvê – enquanto o dia 2.8
num caderno de chamadas 2.9

que cai, a fala, dobram os 2.10


joelhos, que sobe, a fala; e, vidência 2.11
da soma por pouco una, uma 2.12

caneta à meia carga, um toco de lápis, e 2.13

II – Escrita de vida, texto e pesquisa.

A pesquisa (OLIVEIRA, 2010) pratica a Escrita de


Vida (BARTHES, 2005a) ou certo método biografemático
(CORAZZA, 2010; 2013) implicando-a numa não-relação
com a já triste metodologia de pesquisa Histórias de Vida –
maltratada pela estereotipia da escrita em Educação, pelo
pesadume do sentido. Nela o cotidiano lido com Maurice
Blanchot (2001), James Joyce (2007), Haroldo de Campos
(2004b), encontra as condições operatórias para a implicação
da noção de biografema, de Roland Barthes (2005a; e outras
tantas referências que podes encontrar facilmente neste volume).
Este cenário, tempespaço de escrileitura, é posto à prova na
composição fragmentária de um personagem que dá movimento
às qualidades fantasmáticas do homo quotidianus: O Senhor
Educador, que mostra, em pormenores exacerbados e traços
recolhidos de um amplo inventário sócio-cultural – uma literatura
necessária, uma Educação amada – a insignificância, a vida
fugidia, a abertura, o desfazimento operado por sua escritura
nos Estudos do Cotidiano e nas narrativas de ênfase biográfica e
autobiográfica. Ao longo da pesquisa o personagem “O Senhor
Educador” faz, a um só tempo, uma extensa crítica educacional
e uma intensa fantasiação de “vidarbo” (vida + obra), mantendo-
se numa composição aberta, recriando em cada um dos treze
episódios (e meio) que estruturam sua escritura a afirmação do
cotidiano como cenário escapante, fugidio.

<11:47>
subir a voz no burbúrio aca- 3.1
lenta a cara; sob a ordenaria de 3.2
unhas pintadas e batons cintilantes 3.3

rosa é a cor, sob a linha cata 3.4


riscos; bocados e sobras: 3.5
osso e sob, medula, traça 3.6

– das pernas cruzadas 3.7


das caras cinturas salsichadas 3.8
a ordem de bocarra: eis plena ária! pin 3.9

pinpinga, relâmpago de aqui e presente e 3.10


não veio, e f e – a constelação reclinada 3.11
que é a assinatura de sua inicial entre as 3.12

estrelas – pontos, tudo em dia, fremência, fome 3.13

74 • 75
III – Transcriar uma pesquisa

Assim, ao passo que as fundações narrativas da pesquisa


tornam-se implicadas em um princípio de permanente invenção,
utilizo aqui o revolver de sua produção, enfatizando as escolhas
estilísticas que a compuseram, para mostrar a necessidade
encontrada de aumentar as ressonâncias de exterioridade da
literatura – em especial Haroldo de Campos (2004) e James Joyce
(2007) – em sua expressão. Poesia e prosa aliam-se a uma fantasia
racional (BENSE, 2003) resolvendo-se numa intensa polifonia:
ora as vozes valem-se de uma locução dissertativa, ora a escritura
torna-se pulsão bioescritural. É aqui, então, que o texto que
apresento se afasta do relato imediato dos pretensos resultados
obtidos por uma pesquisa específica e se aproxima da noção
haroldiana de transcriação (TÁPIA; NÓBREGA, 2013) que
pressupõe, para funcionar, uma constante reinvenção escritural
daquilo que parece dado. O processo criativo e expressivo de
uma pesquisa, sua invenção em uma nova forma, acaba por
mostrar como a noção de biografema – que exige certo trabalho
na língua, certo entendimento anti-naturalista da expressão
– favorece uma escritura em diferenciação, o que certamente
configura uma alternativa ao entendimento de uma biografia
ou história de vida que se estabeleça a partir de um processo
de identificação ou de desvelamento de uma realidade essencial.

<12:04>
rói, come caga cata, eco 4.1
dog, rói, bica bico, pico 4.2
pica, rói, cata eco lata, pita 4.3

já, fuma fareja farela; paga 4.4


velheja merdeja, já; (pin- 4.5
ga do saco, secreta do saco, 4.6
sumo vômito, saco) escorre num 4.7
roto percurso: jôrrito eco-cô seco 4.8
pic pombas bic póem saco pin 4.9

mói, rói, se, na ce- 4.10


na mói rói-se, morre na 4.11
cena-se; naisre móina rei se 4.12

come caga come caga como cá 4.13

IV – Escrever o cotidiano e trabalhar na língua.

O texto é uma crítica obsessiva, imanente – que parece não


ser possível nas pesquisas com Histórias de Vida – possuindo
um princípio de individuação, uma irresoluta prática de pôr-se
em jogo, que exacerba sua tarefa crítica a cada palavra: pôr em
crise as estruturas referenciais. De outro modo, as ressalvas a
uma tomada do autor, a um procedimento de pesquisar e de
estabelecer o escritor de um certo gênero literário (que versa
sobre a vida), através de generalizações, é feita por um trabalho
na língua, por uma metodologia de pesquisa, a biografemática,
que tenta não estabelecer as categorias que usará para tomar seu
pretenso objeto (reserva de traços referencias a serem variados), e
a própria determinação deste objeto, sem que para isso o próprio
objeto (inventário de traços insignificantes) esteja implicado.
Neste sentido, a pesquisa seria igualmente implicada pelos
códigos de uma época, como também por aquilo de atemporal
e de fugidio presentificado no objeto em questão; de modo que
se, por um lado, passa-se a considerar o indeterminado de um
objeto, a própria tomada deste objeto acaba por constituí-lo,
construindo um corpo que já não pode mais ser separado em
elementos estanques e distintos: um objeto para uma análise,
uma pesquisa para tantos resultados – não mais. As equações
tornam-se torpes: isso + isso não é igual.

76 • 77
<13:31>
mar amarelo ruivoso, farol trinado em 5.1
badalos mínimos, contra, contra, contra 5.2
contra; relincho metálico de ludicosas 5.3

ordenarias; clamar a pátria perdida 5.4


– dois ou três companheiros presos mas que 5.5
nunca tiveram pêlos laranja-azuis; 5.6

brada barba e cacetes, bandeirola 5.7


e baioneta, hoste: palavra e paulada de 5.8
ordem: glória: escarro e cicatriz sob o brado 5.9

e as sinetas cebadas em 5.10


nada liberam, cada pé uma pedra 5.11
uma boca uma sala; nas orelhas 5.12

palaciadas chegam: a rasa 5.13

V – Biografia, vida escrita.

A falta de correspondência que aponto se dá, de acordo com


essa suspeita, por uma questão que até aqui pareceu margear
o que eu dizia. De qualquer maneira, tentarei deixá-la um
pouco mais próxima. A pesquisa com Histórias de Vida toma o
escritor, o sujeito, numa dimensão em que este é “especificável”,
determinável por uma série de dispositivos, podendo, inclusive,
ser projetado dentro das possibilidades deste sistema – a vida em
sua cotidianidade. A relação entre uma vida biográfica (com as
devidas licenças e desculpas pela redundância na sobreposição
de sentidos), histórica, marcada por fatos “civis”, e uma vida
escrita, entendidas dentro de um sistema de significações, de
uma certa realidade comum, é estabelecida de modo que haja,
realmente, uma correspondência entre a vida ordinária e a
vida escrita – certo paralelismo entre real (no sentido comum,
ligado à verdade) e linguagem. Acredita-se, e para confirmar
isso faz-se uso de todas as funções disponibilizadas por este
sistema de análise, que se sabe da vida daquele sujeito e que,
sendo assim, pode-se criar formas para que ele planeje e realize
sua vida de acordo com a cotidianidade que se cria, e na qual
se está, igualmente, grudado pela força de sua consistência
estereotípica, de sua Tópica (aristotélica: dos lugares-comuns
confrontados com as condições de possibilidade dadas por um
tempo cronológico) – pode a coisa ter sido feita ou não, poderá
ser ou não?

<15:13>
pedra pau pedra pau pedra pau 6.1
lada lado, braçosunidos; a sirene sinéta: 6.2
contra os contra, contra; pedra pau 6.3

pedras estalam os relinchos gretados, 6.4


estala a raça; concreto um ai, pau 6.5
a dar o ritmo da marcha numa concisão 6.6

de ditado; a raça das bestas é borracha 6.7


de botinas, tacos negros a gizar – 6.8
a sineta pára, correria: hora do receio 6.9

e cada um por si, mas do outro; la- 6.10


béu dos liberados aos berros, lá- 6.11
bil a desagrimensura na etmologia dos 6.12

galés: deserdar o gueto dos sem-saída 6.13

VI – Histórias de Vida e cotidianidade

A cotidianidade, a existência média de uma época, é o objeto


criado e analisado pelo gênero Histórias de Vida (gênero criado
pela própria tópica da cotidianidade). O que foge a essas pré-

78 • 79
determinações, o que por elas não é animado, é a fisicalidade
da vida, o irrecusável e irrecuperável do cotidiano – e não a
cotidianidade expressiva e executável de uma existência comum,
particularizada. A História de Vida toma um homem geral, mas
“pessoalizado” (o homem da cotidianidade: “e eu te batizo...”);
a aventura da escrita de vida é tomar o homem cotidiano, aquele
que escapa aos lugares comuns, impossível de ser estabelecido
numa rede biográfica (antropológica, histórica, psicológica,
social), fantasiado na escrita dos traços de sua nulidade, na
perdição de seu rosto médio e fala grudenta.

<15:19>
eis que aqui aporta, sereno; pó 7.1
e pés aquosos pela lenda lida, en- 7.2
ceno; renhe por não ser existindo, por 7.3

não ter vindo foi vindo e veio; sem 7.4


ter porto, finhulisses, urbano torto, 7.5
sua porta é pó de povoeiro; (foi e nos 7.6

criou, assim ensina,cito e leio) obscuro 7.7


é o mar negro revolto, que do sub 7.8
sob humo foi erguido, no teatro porta 7.9

à fora, seu mito indistinto, no as- 7.10


falto compressivo, urina caboteiro; 7.11
ou vê, a baixura, quem sabe, está- 7.12

tua de nada, o farol, marcidade 7.13

VII – Vida ordinária e escritura de vida

O princípio que move a escrita de vida, a biografemática,


sua pesquisa, conjuga, de certa maneira, aspectos das diferentes
“voltas do autor” (BARTHES, 2005b). Este princípio postula
que, na impossibilidade de fazer coincidir a vida ordinária
e a escritura de vida, o que se descobre é a possibilidade de
pulverizar a existência de um sujeito, tomando-o na existência
insignificante do cotidiano, em detrimento de qualquer unidade
elementar ou funcional imposta pela cotidianidade. Este princípio
indeterminado, por sua vez, não recalca o sujeito, mas utiliza-
se de sua existência enquanto referente, local do sentido, para
com ela compor outra dispersividade, distanciar o tão límpido
referente, de maneira que a pesquisa (o texto) não se projete
mais sobre a “verdadeira vida” (LEFEBVFRE, 1991a, p.116).

<15:28>
brando, o ar, tal que a si mesmo re- 8.1
cita e recita, tendo à boca o sumo, pro- 8.2
mo, do cafeteiro; sem alvo, cravos bem 8.3

pregados, eclesia, tateia coleções que 8.4


entristecem a carne; mãos quietas... (cafute!) 8.5
palavras de uma escorpia aguilhada, em 8.6

volutas um cafetã, para citar os fios cor- 8.7


dados na língua dedálica: cítara arabesca; 8.8
o gosto e a escrita justa, sopro, o pó 8.9

vagueia, a flor descontornada, aspira 8.10


laranjaluzente na exata finura dos fios do 8.11
sol – mesmo, não cita – borra cor de barro; só 8.12

elohim a obra toda julgará – seguir o pó, só 8.13

VIII – Transcriar a vida

Não se propondo a assumir as astúcias das verdades, do


naturalismo – do entendimento e dos usos da linguagem – aquilo

80 • 81
que o texto inscreve é a proliferação de existências e de mundos,
implicando na pesquisa biografemática a potencialidade de
criação, de fabulação, de transcriação de vidas novas. Desta
cisão (não mais escrever uma existência apaziguadora por meio
de uma linguagem apaziguadora, mas escrever de modo dis-
perso vidas figidias), Barthes diz ser “o desvio, a volta necessá-
ria para reencontrar uma adequação, não da escrita com a vida
(simples biografia), mas das escritas e dos fragmentos, dos
planos de vida” (2005b, p.172); isto é, uma implicação da in-
determinação do homem cotidiano e da escritura dessas exis-
tências múltiplas, numa aventura de vida, de escritura.

<15:58>
sidéreo chuveiro pinga o 9.1
éterazul ultramundo, medonho 9.2
sanhaço claramostrando as ja- 9.3

nelas sombrosas de ar- 9.4


rojos de finos entrefólios ver- 9.5
des cascados; dentro e fora 9.6

no pó, nó no ar, condicionado 9.7


no claustro dia desolarado 9.8
com tábuas isopórficas sobre cai- 9.9

xas de papelão; sombroso ar- 9.10


ruar, brancontrastando o céu do chão; 9.11
do tropeço empíreo esplendoroso 9.12

soçobra erguido mil corpos vagos 9.13

IX – Cotidiano e cotidianidade

O calendário: o mínimo corpóreo exigido pelo bulício de


todos os dias para marcar seu descontínuo. “Toda a vida são
muitos dias, dia após dia” (JOYCE, 2007, p.256) seguindo a
arbitrariedade esquecida de um sistema, os algarismos avançam
em marcha sem saber das diferenças diárias que um simples “16
de junho” possa tentar calar – silêncio calado que não é senão
aquilo que o anima. É designado pelo mesmo algarismo, pelo
mesmo mês, o dia que irrompe e desforra a força do cotidiano,
seu peso e sua leveza.
O cotidiano: “o que há de mais difícil a descobrir”
(BLANCHOT, 2007, p.235). Na invariabilidade do passar
dos dias a cotidianidade apaga qualquer possibilidade de pôr-
se à prova; num primeiro vislumbre o cotidiano é eu sendo eu
mesmo – todos os dias. Por certo os dias do calendário ganham
peso com toda a marcha rotineira, inflam-se e são marcados
pelo trabalho, pela condição social e econômica de vida,
pelo constrangimento histórico – por tudo aquilo que, enfim,
vive-se sem nem sequer pestanejar. Eu sendo eu mesmo: todos
os dias, nos lares, escritórios, salas de aula, sites de relaciona-
mento – em todos os lugares onde a vida individual não
é estranhada. Mas, seria possível negligenciar o peso da
pessoalidade nos mais solenes momentos do dia-a-dia, quando,
justamente, o que está em jogo é uma existência histórica?
Não, nestes não.
O cotidiano: movimento pelo qual o homem se mantém à
revelia no anonimato humano. No deserto das grandes aglo-
merações urbanas, nas vias entupidas de rostos inalcançáveis,
vive-se uma existência nula; a massa amorfa da multidão
que movimenta os grandes centros é o espaço onde se perde
a designação nominal, onde a história de uma vida se esvai
sem poder sustentar ou constranger – segue-se o dia sem a
determinação dos códigos sociais, quase sem contorno: no
despercebido do cotidiano, quando “eu” é ninguém, não
respondo por uma identidade, não sou, assim, operário,

82 • 83
professor, estudante, analfabeto, diabético, cético, apostólico,
cibernético, romano. É deste movimento que algumas narra-
tivas de testemunho retêm os acontecimentos mais pesados,
ignorando aquilo que, na vida ordinária, possui o atributo
da leveza; a história de (qualquer) vida é o pesadume do sen-
tido.
Um e outro pouco apreensíveis: o cotidiano vacila na
ambigüidade do seu movimento; há, certamente, perigos em
privilegiar um ou outro (o inacessível ao qual sempre se tem
acesso) – posso acabar esmagado pelo tédio e pela inércia, se
torno manifesta toda cotidianidade, toda vida ligada a uma
pessoalidade (minha vida é só isso mesmo?); posso – outro risco
– se distraído de “eu mesmo”, por meio de força alguma (po-
tência desta mesma distração), ser vaporizado pela im-
possibilidade de reivindicação, seja ela de qualquer ordem (o
inacessível do cotidiano decorre de que toda forma de acesso
lhe é alheia). Se em um de seus espectros o cotidiano fomenta
os objetos e as vidas tipificadas, as formas e as estruturas, em
outro, é sua distração destas que as fazem ruir; o cotidiano
em seu traço operatório – não se deixar nunca apanhar – ao
mesmo tempo conjuga o insignificante e toda possibilidade de
significação.
O conceito de cotidianidade não se liga, como seria de
esperar, ao significado comum da palavra cotidiano (adjetivo que
se refere a todos os dias); ele designa o não-filosófico para e pela
“filosofia clássica” (LEFEBVRE, 1991b, p.28). A cotidianidade
mostra o quanto a filosofia (que definiu a cotidianidade en-
quanto conceito) funciona como um sistema de funções
determinadas com o potencial de sobrescrever a materialidade
da vida ordinária. Neste sentido, a cotidianidade exprime a
possibilidade de transformação do cotidiano, da vida prática,
em nome de um conjunto de idealizações com o poder de
circunscrever, criar, nomear e determinar o funcionamento
de um mundo, de uma vida, em detrimento das forças imanentes
e da fisicalidade da vida cotidiana.
Nesta primeira abordagem, o cotidiano não seria, por outro
lado, o lugar de fundição entre duas formas de experiência dis-
tintas, o lugar de encontro entre dois planos diferentes – sendo
que um possuiria a atribuição de modificar o outro sem ser
interferido pelas próprias mudanças que determinara ante-
riormente. O que Lefebvre mostra é que a somatória desses
determinismos e opressões planificados não é admitida, em sua
totalidade, como a expressão de um mundo material, mas como
uma metafísica deste. Tomando a cotidianidade num plano
separado do físico, em sua capacidade de organizar as bases
materiais da vida ordinária, acabamos por devolvê-la a um plano
idealista onde a vida comum não se efetua sem perder seu caráter
singular: particulariza-se a vida como variação de uma lei geral
e abstrata que permite organizar toda matéria baixa, imanente,
em uma sucessão de passado-presente-futuro. A cotidianidade
servindo para designar, por meio das idéias, aquilo que não
pertencia ao plano ideal. É, ainda hoje, este entendimento
que permite pensar o cotidiano em seu caráter mais comum,
como o lugar onde todas as generalizações e as consistências
estereotípicas se propagam – o local da força da linguagem, de
seus naturalismos e pronto-entendimentos.
Mas, certamente, não é sem razão que Maurice Blanchot
busca em Lefebvre as bases para criar a sua noção de cotidiano,
pois se Henri privilegia a cotidianidade como objeto de luta
e lugar de disputa, Maurice vê, a partir desta definição, no
cotidiano, todo um campo revolucionário – mas onde é preciso,
para combater, impedir qualquer impulso já codificado como
“de revolução”. Lefebvre sabe muito bem ler os signos de sua
época, que em uma confusa profusão acabam por efetivar a

84 • 85
cotidianidade em seus termos mais altos, em sua capacidade
de sistematizar os modos de todos aqueles que vivem e ainda
viverão. É a capacidade excessiva de planejar e organizar que
acaba por entupir e acelerar todos os homens. Nas palavras de
Lefebvre, o cotidiano é o insignificante, que “não tem necessi-
dade de ser dito, é uma ética subjacente ao emprego do tempo,
uma estética da decoração desse tempo empregado”; indo
mais longe, o autor o define como “o que se une à moder-
nidade, entendendo por modernidade o que traz o signo do
novo e da novidade: o brilho, o paradoxal, marcado pela
tecnicidade ou pelo mundano” (1991b, p.31), pelo desapego
aos sentidos. Para Henri, leitor e criador de materialidades, o
cotidiano funciona como um plano passível de ser gerido pela
cotidianidade, podendo este ser transformado por esta – com
Maurice é a distância entre ambos, suas espacialidades, que
permitem os pequenos desvios, as corrigendas que impedem
o sistema cotidiano-cotidianidade de Lefebvre de brecar seu
movimento regido por uma oposição material-ideal, de modo
que a relação sobre-determinante cotidianidade/cotidiano
nunca se realiza completamente, a não ser no interior da pró-
pria cotidianidade – o que mostra o cotidiano erradio, enfa-
tizado na distância infinita produzida enquanto efeito escritural
nas vozes narrativas blanchotianas. Não sem grande esforço,
Lefebvre admite seu mundo como insuportável, pois não é
possível que haja nele nenhum lugar de linguagem exterior a
uma ideologia burguesa (BARTHES, 2005c), e com suas armas,
táticas e estratégias, parte para a guerra: tomar a cotidianidade
para mudar o cotidiano, eis a única astúcia que se apresenta
como possibilidade de revolução. Os estudos de Henri operam
uma mudança que possibilita pensar o cotidiano como o
lugar efetivo da troca de consciência, mas esta só é possível
através da cotidianidade; pois, se antes dessa relação, todos
os dias eram essencialmente imutáveis e circunscritos às suas
possibilidades de realização, agora, é a prática material da vida
que dá consistência às leis formais da cotidianidade, de modo
que as variações do cotidiano, ao passo que continuam sendo
possíveis pela cotidianidade, abrem-se para certa utopia: superar
a neutralidade do cotidiano, sua tragicidade. Se os sentidos se
esvaem, novos referentes devem triunfar.
O cotidiano já conheceu o seu discurso revolucionário:
Lefebvre, o grande comandante.

<16:34>
risca sete ruas, piróvagos 10.1
um cemitério de fósforos linhados 10.2
entrefiguram o transetrânsito; 10.3

cita h c diavolino enquanto um 10.4


vinil remoinha a ladainha under- 10.5
ground das 169 cítaras para covers 10.6

divos; asfódelos mortomestíveis 10.7


pululam o ar no portal ornado da 10.8
pública patente – o sino baleiro, 10.9

baixo, uma moeda, uma por 10.10


tara e coroa: lúcifers portáteis no 10.11
chão dedilham o marurbano: 10.12

pedras prensadas em púlmeo ar 10.13

X – Maurice Blanchot e Henri Lefebvre


Embora tome os estudos de Lefebvre sobre a cotidianidade
e o cotidiano, Blanchot opera certas torções no conceito de
cotidiano, amplificando seus aspectos ligados à exterioridade da
significação e dos códigos, à rarefação do sentido, construindo

86 • 87
uma verdadeira reserva de criação para a vida do homem
cotidiano. A cotidianidade é o que permite planejar e realizar
a vida com determinações ideais, generalizações científicas,
clivagens filosóficas, mudanças astutas. Amplificar a imanência
de uma vida, a positividade criativa de sua existência desvairada
e neutra: eis os ensinamentos blanchotianos para rasgar a
cotidianidade e mostrar como a vida cotidiana não cessa de rachar
a dureza dos códigos de uma época. Pois se Henri não reduz
o cotidiano à existência média, estatisticamente comprovável,
e faz da cotidianidade “uma categoria, uma utopia e uma
Idéia” (BLANCHOT, 2007, p.236), por sua vez tenta superar a
imanência do cotidiano que não se relaciona com nenhuma Lei
– donde o cotidiano como plano de suspeição e o esforço para
que o homem cotidiano erga um rosto e alce uma voz num “eu”
culpável, que se volta à Lei seja para cumpri-la, seja para negá-la:
o homem qualquer, quase fugindo, inclusive, à certa designação
antropomórfica – para Henri (1991b, p.204), o homo quotidianus
perde sua qualidade de homo, porém, mantém-se suspeito: “será
o quotidianus ainda um homem?”. Pois se a cotidianidade não
se liga ao sentido comum de cotidiano, volto, por sua origem,
mas sobrescreve este sentido primeiro “eu mesmo, todos os
dias”, homem-rua, homem-via, que se mantém amorfo na
distração coletiva, de outra forma o cotidiano, substantivado,
não diz nem de uma essência, a vida “total”, nem de uma
modalidade de vida, de tipos, de variações que são próprias à
cotidianidade. O cotidiano não funciona, para Blanchot, como
funcionam a lei e sua variabilidade, a essência e os modos. Ele
opera na curvatura de uma distância infinita, que não dispensa
a pretensa metavitalidade da cotidianidade, pois sabe, de pronto,
num estranho saber que é distração, que ambos os movimentos
não podem ser separados, embora mantenham-se distintos:
o que Maurice mostra é, enfim, que a ênfase num ou noutro
movimento não o isola do preterido, mas mantém que a escolha,
à qual eu estou mergulhado e privado – “o homem qualquer,
culpado de não poder ser culpado” (BLANCHOT, 2007, p.236)
– possui riscos e efeitos de ordens diferentes. A cotidianidade
toma o homem cotidiano para recobri-lo de sentido. O cotidiano
toma o homem escapando de sua condição, numa relação
interruptiva, múltipla, pois, não se submete a uma totalidade
imutável e não se diversifica com base em qualquer unidade. O
cotidiano pressentido como “uma outra forma de palavra e uma
outra espécie de relação onde o Outro, a presença do outro, não
nos remeteria nem a nós-mesmos, nem ao Uno” (BLANCHOT,
2001, p.120). Instante de interrupção que não é, simplesmente,
o absoluto nada, mas, talvez, somente a inanidade impassível de
ser recolhida pela cotidianidade ou por um cotidiano tomado
como essencial: um vazio radicalmente distante de qualquer
alcance, quer mediado pelo horizonte último do Uno, quer
por intermédio do horizonte contínuo da unidade.
Nota-se que é Lefebvre quem primeiro admite a ênfase
do cotidiano no “discurso informal”, na linguagem enquanto
corpo isento de um conteúdo cultural e histórico determinante
para sua composição: não é, por certo, a desvinculação de es-
truturas sociais e lingüísticas, muito antes o contrário: é o sin-
gular distanciamento entre ambas as estruturas que provoca em
Henri o desejo de criar os novos referentes para o discurso de
sua época – se antes desses fenômenos, os objetos e os discursos
eram reunidos por um “estilo de vida” (como por exemplo a vida
religiosa e seus lugares), agora tudo parece encaminhar-se para
as ruínas definitivas do sentido, com o perigo de perpetuação
de uma topografia da consciência burguesa – uma oportunidade
imperdível para mudar a vida cotidiana tomando a cotidianidade.
Onde Blanchot afirma a vida, Lefebvre enxerga um posto
avançado para um futuro perdido.

88 • 89
<17:02>
mais árdua que floresta, floreia 11.1
uma árvore sentinela, côvados ar- 11.2
dósios setam o caminho; lutar 11.3

também é educar!, opinam dois 11.4


joelhos – dos passos contados da rua 11.5
certa aos contabilodedos apres- 11.6

sados; contemplo empíreo 11.7


e cultivo de dados – certos, todos 11.8
eles, mesmo que já se saiba 11.9

vero; hipótese: a tese previsível 11.10


se prefere – frutificai diversificai cu- 11.11
mulai: a trota toda elevada já 11.12

desce, apraza e cumpre o prazo 11.13

XI – Basta!
Blanchot apropria-se de Lefebvre no exato momento em
que este não suporta mais o seu mundo, em que diz: os dias
sufocam, não há como fugir de uma economia dos desejos
pegajosos, conhecida e impotente, os dias sufocam, não há
mais como viver. O exato toque acontece quando, em um sus-
piro anterior à reversão conceitual que vai acabar por operar,
Henri tem, nítido como um espirro, a epifânica certeza de que
a vida cotidiana não é somente aquilo que é possível contar,
que suas possibilidades não se esgotam em sua capacidade
de planejamento e execução, no acúmulo de objetos e
funcionalidades que permitem o acesso a possibilidades outras
de vida: basta! – suspira extenuado e com os pés na salmoura, o
cotidiano escapa incessantemente à potência de capitalização da
cotidianidade.
No breve instante em que Lefebvre burla certo paradigma,
Blanchot encontra toda uma potência de insuportabilidade, tão
cara e próxima a seus movimentos essencialmente negligentes,
mortíferos, desejosos de nulidade: não importa o que Henri
passou a fazer: por um instante ele não teve esperanças, não
rendeu-se à cotidianidade e a suas tentações de mudança, de
variações legais, de planejamento e organização (mesmo às mais
tentadoras tentações: organizar a Revolução da Vida Cotidiana).
Suspendeu-se, assim, a exigência de dois planos (material/ideal)
para animar o cotidiano.
Esta brevidade, este bolsão de ar bastou a Blanchot.

<18:06>
eu mesmo lá, diz o primeiro teste- 12.1
munho, linssado cada qual com 12.2
suas publicações; quatro pares de 12.3

cotovelos ordenatórios – hoje é mais 12.4


barato, cateclímax intragável; agrados 12.5
descidos, todos, as e os, graçados na 12.6

fala colada: faltai precisai salvai: 12.7


assim, como é – não como se, pois é; 12.8
verbos venais ventam viciosos 12.9

e vasado no bloco riscado, umbroso 12.10


corpo em jogos de nanquim preludial, 12.11
(vívido no tinteiro, um espirro – risca: 12.12

o senhor educador) se dispersa e vai 12.13

XII – Da biografemáticca.

É, suspeito, na distração da vida cotidiana que se esvaecem


os constrangimentos dos “sistemas fortes” (BARTHES, 2004a,

90 • 91
p.436); e para pesquisar neste cenário, somente uma biogra-
femática.

<23:43>
sem vir torna o ir via; motim 13.1
lhe espera no passo em curso – o 13.2
oídio, ronca tripas, ouvê mouco 13.3

o canto piscapiscante rubro – azucrim, 13.4


o farol, enche o pé-vela do escolho 13.5
soproso que venta: rasgo; cair à de- 13.6

riva ruvinhosa no negro sol, eis só 13.7


com mil vozes circunsoando do abismo, 13.8
o olhimanco a caminho está – o 13.9

senhor educador tormenta no qua- 13.10


se mar; o desígnio enturvo, chão do as- 13.11
somo em brumas foscas, e pinga em 13.12

pó o vão – homem nenhum – que cai e 13.13

Referências
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(Trad. Leyla Perrone-Moisés.) São Paulo: Martins Fontes, 2005a.

BARTHES, Roland. A Preparação do Romance II: a obra como


vontade. (Trad. Leyla Perrone-Moisés.) São Paulo: Martins Fontes,
2005b.

BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. (Trad. Mário Laranjeira.)


São Paulo: Martins Fontes, 2005c.

BARTHES, Roland. O Prazer do Texto. (Trad. J. Guinsburg.) São


Paulo: Perspectiva, 2006.
BARTHES, Roland. O Rumor da Língua. (Trad. Mário Laranjeira.)
São Paulo: Martins Fontes, 2004.

BENSE, Max. A Fantasia Racional (Entrevista a Haroldo de Campos).


In: BENSE, M. Pequena Estética. (Trad. J. Guinsburg e I. D. Koudela.)
São Paulo: Perspectiva, 2003, p.227-233.

BLANCHOT, Maurice. A Conversa Infinita: a palavra plural. (Trad.


Aurélio Guerra Neto.) São Paulo: Escuta, 2001. V.1.

BLANCHOT, Maurice. A Conversa Infinita: a experiência limite.


(Trad. João Moura Jr.) São Paulo: Escuta, 2007. V. 2.

CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de.


Mallarmé. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.

CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de. Panaroma do


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CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem & Outras Metas: ensaios de


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CERTEAU, Michel de. A invenção do Cotidiano: 1. artes de fazer. 2.


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CERTEAU, Michel de; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre. A Invenção


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Petrópolis: Vozes, 1996.

92 • 93
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CORAZZA, S. M. O que se transcria em educação? Porto Alegre:
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digitado).

CORAZZA, Sandra Mara. Introdução ao método biografemático.


In: FONSECA, T. M. G.; COSTA, L. B. Vidas do fora: habitantes do
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JOYCE, James. Ulisses. (Trad. Bernardina da Silveira Pinheiro.) Rio


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Frias.) São Paulo: Editora Moraes, 1991a.

LEFEBVRE, Henri. Manifiesto Diferencialista. (Trad. Julio Moguel e


Saúl Escobar.) México: Siglo Veintiuno Editores SA, 1972.

LEFEBVRE, Henri. A Vida Cotidiana no Mundo Moderno. (Trad.


Alcides João de Barros.) São Paulo: Editora Ática, 1991b.

OLIVEIRA, Inês Barbosa de; SGARBI, Paulo. Estudos do Cotidiano


& Educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.

OLIVEIRA, Marcos da Rocha. Biografemática do homo quotidianus:


O Senhor Educador. Porto Alegre, 2010. Dissertação (Mestrado em
Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de
Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
2010.
Nada além de um rosto na
janela que ninguém jamais vê
Cristiano Bedin da Costa
“NADA ALÉM DE UM ROSTO NA
JANELA QUE NINGUÉM JAMAIS VÊ”:
CHARLES BUKOWSKI E O ISOLAMENTO
COMO PRESENTE
Cristiano Bedin da Costa

I.
“[...] de manhã
eles estão lá fora
ganhando dinheiro:
juízes, carpinteiros,
encanadores, médicos,
jornaleiros, guardas,
barbeiros, lavadores de carros,
dentistas, floristas,
garçonetes, cozinheiras,
motoristas de taxis...
e você se vira
para o lado esquerdo
pra pegar o sol
nas costas
e não
direto nos olhos”1.

Para uma metodologia de bolso,


biografemática pulp.

Charles Bukowski. “Poema nos meus 43 anos”. Presente em Os 25 melhores poemas de Charles
1

Bukowski (2003a).

biografemática na educação: vidarbos 97


II.
Los Angeles, primavera de 1946. Um jovem escritor e mosca
de bar de 26 anos recebe uma carta de Caresse Crosby, socialite,
patrocinadora das artes e coproprietária da Black Sun Press,
editora responsável pela publicação de importantes nomes da
filosofia e da literatura modernas, tais como James Joyce, Francis
Ponge, René Char e Albert Camus2. O destinatário, que meses
antes enviara o conto “20 Tanks from Kasseldown” à revista
Portfolio, responde de forma incerta ao interesse de Crosby pelo
desconhecido autor da história de um apenado que aguarda a
própria execução bebendo uísque e esmagando baratas entre
quatro paredes de bordas ásperas, cinzentas e molhadas:

Prezada Senhora Crosby,


Não sei quem sou.
Atenciosamente, Charles Bukowski.

III.
“20 Tanks from Kasseldown” foi aceito e publicado na ter-
ceira edição da Portfolio, ao lado de trabalhos de Jean Genet,
Federico García Lorca, Henry Miller e Jean-Paul Sartre. No
espaço reservado aos colaboradores, uma breve nota autobio-
gráfica tratava de apresentar o estranho escritor:

Trabalho lixando, emassando e embalando molduras de


quadros em um armazém.
Não é tão bizarro quanto parece, mas é quase isso.

A maior parte das informações sobre a vida de Bukowski foi retirada do livro Charles Bukowski:
2

vida e loucura de um velho safado, de Howard Sounes (2000), e do documentário Bukowski: born
into this, de John Dullaghan (2003).

98 • 99
IV.
Sexta-feira, noite de 14 de abril de 1865. John Wilkes Booth
adentra no camarote presidencial do Teatro Ford, em Washington
DC, e atira contra Abraham Lincoln, atingindo-o pelas costas. O
presidente norte-americano, que no momento do disparo assiste
a peça Our american cousin sentado ao lado da esposa, morre
cerca de nove horas mais tarde. Segundo os registros médicos,
a bala teria entrado pela parte posterior da orelha esquerda e
se alojado atrás do olho direito. No mesmo momento em que
Lincoln é alvejado, o secretário de estado William H. Seward é
esfaqueado em seu quarto por Lewis Payne, um ex-combatente
da guerra civil americana3. Três meses mais tarde, na manhã
de 7 de julho, Payne é fotografado em sua cela por Alexander
Gardner. Poucas horas depois, à tarde, ele será enforcado. A
bela foto, reproduzida por Roland Barthes (1984, p.143) em A
câmera clara, punge por nela podermos ler, ao mesmo tempo, o
isso será e o isso foi: ele irá morrer e no entanto já está morto. Para
além desse punctum de intensidade (o que nos captura não é o
detalhe, mas sim a ênfase dilaceradora de um esmagamento do
tempo), compartilho com Barthes a beleza do jovem, que, no
entanto, não deixo de dramatizar na cela bukowskiana retratada
nas páginas da Portfolio: não seriam essas mesmas mãos agora
presas que já não podem mais segurar garrafa alguma? Não é de
Payne “uma dignidade que fazia pensar em reis, em príncipes,
em coisas protegidas e arruinadas”, de modo que se você não
o conhecesse pensaria de fato “que a vida não lhe provocara
qualquer marca”? Não deixo de ler a história de um pelos olhos
de outro, através de seu rosto “a um só tempo jovem e idoso”4.

3
Os dados sobre o assassinato de Abraham Lincoln são retirados do livro Lincoln, de Allen C.
Guelzo (2010).
4
As citações entre aspas são retiradas do conto “20 Tanks from Kasseldown”, tal como foi traduzido
e publicado em Pedaços de um caderno manchado de vinho (2010).
E penso que talvez seja isso, afinal, a textualidade: um encontro
em que se tornam indiscerníveis linguagens até então distintas,
ou simplesmente a constituição intensiva da menor distância
entre dois ou mais pontos. É nesse estranho relevo que podemos
escutar os rumores do corpo.

V.
Desde a frase inicial de Misto quente, romance ambientando
na infância (“A primeira coisa de que me lembro é de estar
debaixo de alguma coisa”), até a velocidade mortal de my first
FAX POEM (“Tarde demais: eu fui abatido”), enviado ao editor
John Martin dias antes de morrer, a ordem arquitetônica através
da qual é construído o universo bukowskiano parece ter as linhas
orientadas por aquilo que Nietzsche (2001) denominava “grande
saúde”: um desejo de vida que não encara o sofrimento como
uma objeção à existência, uma vontade de mais vida que não
diz respeito a um mais além, mas sim a um é isto, a um aqui e
agora de uma vida pequena, mundana, da vida resumida a estar
debaixo de alguma coisa ou a um cotovelo no balcão. Atletismo
semelhante ao praticado pelo jejuador de Franz Kafka (1998), o
artista da fome cuja arte não interessa mais a ninguém, mas cujo
corpo permanece insistentemente preso a uma jaula esquecida
no fundo do circo. O que ambos insistem em recusar, cada um
a seu modo, é aquilo que Deleuze (1997, p.14), em “A literatura
e a vida”, chama de gorda saúde dominante: o ideal de uma
obturação inteiriça, a pregnância plena de um mundo por demais
categórico (Pelbart, 2009, p.44), a mandíbula cheia de dentes
e forte o bastante para devorar tudo aquilo que é necessário à
sua liberdade. Em tal meio, a imobilidade extensiva é páthos,
o testemunho literário dos gestos de uma vida à esquerda dos
movimentos da razão orientada por imperativos morais, de uma

100 • 101
fragilidade e de uma transitoriedade que já são indícios de uma
vitalidade distinta, onde nenhum esteio tende a ser duradouro.

VI.
Caro Sr. Bukowski:

De fato, trata-se de uma reunião de ideias ótimas,


mas também de outras coisas tão cheias de prostitutas
idolatradas, manhãs de ressaca e vômito, misantropia,
elogio ao suicídio etc. que não creio que qualquer revista
em circulação possa aceitar o conto. Há, no entanto, uma
espécie de saga de um certo tipo de pessoa no que o senhor
escreve, um trabalho feito com honestidade. É possível que
publiquemos alguma coisa sua em breve, só não podemos
precisar quando. Depende do senhor.

Atenciosamente,
Whit Burnett

“As consequências de uma longa carta de rejeição” é a


estreia literária de Bukowski. Publicada em 1944 na revista
Story, editada por Martha Foley e Whit Burnett, conhecido
patrocinador de novos escritores, a história, de cunho fortemente
autobiográfico, é em parte o relato de uma negativa recebida
pelo conto “Minhas aventuras em meia centena de pensões”,
que Bukowski havia enviado meses antes à mesma revista.
(“eu conhecia aquela assinatura: o longo ‘h’ que se curvava em
direção à extremidade do ‘W’, e o começo do ‘B’ que descia
página abaixo”5). Aos 24 anos de idade, a medida estipulada

A citação é retirada de “As consequências de uma longa carta de rejeição”, tal como foi traduzido
5

e publicado em Pedaços de um caderno manchado de vinho (2010).


como sendo capaz de representar de forma mais ou menos
exata a natureza das matérias de escrita por ele utilizadas já
parecia estar sendo considerada: noventa e três por cento
sobre a própria vida, sete por cento restantes sobre a própria
vida melhorada. No entanto, melhorar a vida nunca significou
mudança de cenário ou de comportamento, tal como fica claro
em entrevista concedida ao cineasta francês Barbet Schroeder6:
sentado no banco traseiro de um conversível azul, Bukowski
percorre seu território, em um rápido passeio que não engloba
mais do que quatro quarteirões em Los Angeles. Cartomantes,
bancos de cimentos onde pessoas insanas costumam sentar,
prostitutas, traficantes, lojas de bebida, sex shops e hotéis
baratos, estão todos ali e isso é tudo, este é o lugar. “Eles não me
deixariam ir além”, sorri. “Eles nunca me deixariam ir além”.

VII.
“houve momentos,
faíscas de esperança,
mas eles dissolveram rápido
voltando à velha e mesma
fórmula:
o fedor da realidade”7.

VIII.
Dirigido por Barbet Schroeder, The Charles Bukowski Tapes
é uma coleção de 52 pequenas entrevistas realizadas com
Bukowski durante o período de produção do filme Barfly, por ele

Entrevista #9 de The Charles Bukowski Tapes (1987).


6

Charles Bukowski. “Nós, dinossauros”. Presente em Amor é tudo que nós dissemos que não era
7

(2012).

102 • 103
roteirizado e lançado em 1987. Em close, a câmera geral-
mente fixa em nenhum momento deixa desaparecer o rosto,
que por vezes sangra para além dos limites da tela. Bukowski
tem mais de sessenta anos, um queixo comprido, lábios finos,
olhos tristes, apertados e encovados. A fala é suave, movendo-
se lentamente, por vezes caindo ou mesmo desistindo, conse-
quência provável de uma infância atormentada pela solidão e
a violência paterna. São monólogos de dois, cinco, não mais
que dez minutos, sobre sua vida e obra, ideias, lembranças
e relatos que não parecem deixar de fora nada daquilo que se
pode encontrar nos livros. Durante a entrevista #27, sentado
no sofá de sua casa, falando sobre os primeiros anos como
escritor, Bukowski estabelece um paralelo entre o seu projeto
poético e o de Jack Kerouac, referência maior dentro do movi-
mento Beat (ao qual Bukowski não deixa de ser associado): a
beleza que se enxerga em Kerouac não é possível de ser visua-
lizada em sua obra, uma vez que de um lado temos alguém
que vai para a estrada satisfeito, e de outro alguém que vai
para a estrada simplesmente porque não há lugar para onde
ir ou onde ficar. “Para mim”, sentencia, “nunca houve chance
de ajuda”. De fato, o universo bukowskiano comporta um
atletismo diferente, tal como se lê no poema “O que precisamos”8,
onde a verborragia, a impaciência e a pressa do poeta Beatnik
são deixadas de lado em favor do silêncio suave da geladeira.
Em Bukowski, não se trata de uma simples recusa, de uma
opção por não integrar, não fazer parte, mas sim de um traço
profundo de estrangeiridade. “Tudo é feio e tudo sempre foi
feio”, tal como se lê em Misto quente. Não há, assim, razão
para negar coisa alguma e tampouco esperar por ajuda.

Presente em Tempo de vôo para lugar algum (2004).


8
IX.
O obsceno da literatura bukowskiana eu não encontro no
sexo. O isolamento e a linha marginal que a define são antes
um traço estrangeiro, a afirmação de um discurso deslocado,
de uma existência sem papel, sem funcionalidade, relegada
à deriva de todo contrato social. Sem chance de ajuda, sem
deixas, sem lugar em cena. (Neste sentido, a figura do imi-
grante, capaz de personificar esse choque entre dois mundos,
é central9). Se acaso quisermos defender a existência de
uma língua singular em Bukowski, e se pudermos dizer, com
Barthes (1979, p.7-10), que essa obra participa de uma
logothesis, ou seja, se nela há criação de uma língua nova, não
comunicativa, isso se dá por uma espécie de insistência obscena:
mesmo compreendendo a representação de um certo tipo de
vida, de um certo tipo de mundo, de um certo tipo de amor, de
um certo tipo de escrita, a obra mostra-se capaz de ilimitar os
signos que articula. Nela, o excesso não é apenas lido. A sujeira
e a desesperança não são tão somente bem descritas. A matéria
baixa que a compõe não está limitada a um ordenamento
específico: ela ressoa, excede ao estilo sujo e à obra, torna-se
texto, escalona-se ao infinito.

“você não está lendo isto


numa página.
a página é que está lendo
você.
sacou?”10.

9
O livro Vida desalmada, lançado no Brasil pela Spectro Editora (2006), traz uma interessante
discussão a respeito do necessário distanciamento de Bukowski do movimento Beat, abordando a
questão pelo viés do traço estrangeiro característico de sua obra.
10
Charles Bukowski. “Splash”. Presente em Essa loucura roubada que não desejo a ninguém a não
ser a mim mesmo amém (2005).

104 • 105
Uma tessitura obscena, e não a afirmação de uma identi-
dade outsider: o texto é sempre tecido (BARTHES, 2006, p.74),
véu epidérmico de entrelaçamento contínuo, onde o sujeito se
desfaz ao mesmo tempo em que constitui sua teia, o seu terri-
tório, o seu próprio modo de dizer eu. No texto, esse vinco que
rebenta, escorre e faz sangrar a obra, o destino do autor não
pode ser outro que não o de ser ele próprio a vítima de um des-
gaste, de um decaimento do nome, da falência de uma função
(BARTHES, 2009, p.299). Em suma, se a obscenidade existe, é
sempre no momento em que o autor está à deriva, tornado es-
trangeiro em sua própria morada. É ela a garantia da fuga, é por
ela, pela constituição de um corpo obsceno, que o autor se parte.

X.
Em 1979, no prefácio que escreve para a reedição de Pergunte
ao pó, Bukowski faz apenas uma referência à vida de Fante,
definindo-a como “a história de uma terrível sorte e um terrível
destino e de uma rara coragem natural”. Mantendo em suspenso
os pormenores desses três traços e deixando de lado o autor,
descrito simplesmente como “um homem que não tinha medo
da emoção”, a seguinte escolha é feita: ao invés da vida de Fante
e das minúcias da obra, o que é dito é o efeito que a última tem
naquele que a apresenta. Um testemunho é o que é oferecido. Um
testemunho ao autor, um testemunho ao livro. Nenhuma análise,
nenhuma interpretação. A premissa bukowskiana é simples:
Fante foi seu deus, e os deuses devem ser deixados em paz. Você
não bate em suas portas. O olhar, então, permanece detido não em
Fante, mas no jovem leitor passando fome e bebendo e tentando
ser escritor, fazendo suas leituras na Biblioteca Pública de Los
Angeles, dando voltas na grande sala, tirando livros das estantes,
lendo algumas linhas, algumas páginas, e depois os colocando
de volta, pois nada do que diziam tinha a ver com ele ou com
as ruas ou com as pessoas que o cercavam. É esse Bukowski que
encontra e é arrebatado por Pergunte ao pó. É esse Bukowski que
grita e afirma der Arturo Bandini. É esse Bukowski que gosta de
perambular por Bunker Hill e tentar adivinhar onde Fante teria
morado em Angel’s Flight, se era aquela porta de hotel, se era
aquela a janela pela qual Camilla se arrastou, aquela palmeira,
aquele saguão. Seus movimentos, suas confissões e seus trajetos
– que são os trajetos de Arturo e também os de Fante – acabam
por traçar, mesmo que de maneira tênue, os limites de um espaço
biográfico: Prefácio-Micro-Bio-Fante-Bukowski-Bandini-Grafia,
justificado por uma figura central – um estrangeiro que sonha em
ser escritor em Los Angeles –, que é quem garante a possibilidade
da escrita. Tal como refere Barthes (1979, p.10), não há nada
mais deprimente do que considerar o texto como um objeto
intelectual – seja de reflexão, de análise, de comparação etc. O
texto é um objeto de prazer, e este prazer se realiza de maneira
profunda nos momentos em que o livro transmigra para dentro
de nossa vida, quando a escritura do outro escreve fragmentos de
nossa própria cotidianidade. É essa coexistência, esse viver com
Fante, o que é experimentado por Bukowski. Por sua vez, deixar
um deus em paz, não bater em suas portas, garante ao autor uma
dispersão e um deslocamento que acabam por impossibilitar a
unidade de um sujeito que só pode então se configurar como um
plural de encantos, o lugar de alguns pormenores tênues capazes
de tocar e ocupar algum espaço na vida que os encontra. Fante,
para Bukowski, é um efeito de leitura.

XI.
Inspirado em Na pior em Paris e Londres, relato autobiográfico
de George Orwell sobre o miserável período entre guerras por ele

106 • 107
vivido na Inglaterra e na França, Factotum é o testemunho de um
Bukowski nas décadas de 1940 e 1950, anos em que a inaptidão
para o serviço militar norte-americano e a ausência de publicações
fazem companhia a uma série de trabalhos braçais que têm como
objetivo manter a escrita enquanto um ato possível. De certo
modo, tudo o que daí emana será investido de algo semelhante
ao que Julio Cortázar (2008, p.34), ao falar a respeito do signo da
excentricidade sob o qual podem ser classificados muitos de seus
escritos, defendia ser um temperamento capaz de não renunciar
à visão pueril como preço da visão adulta, justaposição esta
que é manifesta por uma participação não mais que parcial em
qualquer estrutura ou circunstância. Se no exercício de viver tal
descolocação pode ser disfarçada, não se pode negá-la no que se
escreve, uma vez que se escreve precisamente por não estar ou
por só estar pela metade, por um estar sempre um pouco mais
à esquerda ou mais ao fundo do lugar onde deveria estar para
que tudo encaixasse satisfatoriamente em mais um dia de vida
sem conflitos. Para Bukowski, a literatura é sempre o índice de
uma lateralidade, de uma paralaxe verdadeiramente eficaz na
construção de seus interstícios (“Escrevo para ter uma função”,
ele declara em “Pedaços de um caderno manchado de vinho”
(2009, p.48). “Sem isso cairei doente e morrerei. É tanto parte
de alguém quanto o fígado ou o intestino, e quase tão glamoroso
quanto”). É apenas no interior dessas fissuras que se faz possível
não aderir completamente ao próprio tempo.

XII.
Na rapidez de “Treinamento básico”11, breve e derradeiro
ensaio a respeito da escrita, uma vez mais a defesa do isolamento
e da simplicidade, dois dos deuses pessoais mais caros à poiesis

Presente em Pedaços de um caderno manchado de vinho (2010).


11
bukowskiana, como valores indispensáveis ao seu “longo e
fodido processo de aprendizado” literário. Frases “duras, que-
bradas, agitadas, estígias”. Frases trabalhadas com “fé inabalável
em cavernas abafadas”. Frases que querem “resistir a todas as
armadilhas, para morrer junto à máquina de escrever”: uma
garrafa de vinho à esquerda e o rádio tocando, quem sabe,
Mozart, à direita. Para Bukowski, “a linguagem da escrita de um
homem vem de onde ele vive e de como vive”. Tendo sido “um
vagabundo e um trabalhador comum” por quase toda sua vida;
tendo andado à margem, “enfiado em poços fétidos”; tendo tido
a solidão como um ás de espadas necessário para “engrandecer
a realidade”; tendo feito do estar sozinho um santuário a ser
cuidadosamente cultivado; tendo sacrificado “qualquer coisa em
nome do tempo” e da distância de qualquer tendência, é então
compreensível que a escrita de Bukowski funcione como uma
força ligada a uma errância discursiva desprovida de qualquer
papel ou missão, um pouco como o nomadismo e a ambulação
relatados por Bukowski em “Eu conheço o mestre”12, comovente
testemunho literário oferecido a John Fante:

“Quando eu era jovem, era um escritor e passava fome.


O fato de que a fome poderia me levar à morte não me
incomodava muito, uma vez que a vida não me parecia
interessante, e morrer não parecia uma má perspectiva
– talvez uma nova embaralhada nas cartas? Laborei, de
tempos em tempos, como um trabalhador comum, mas por
curtos períodos. Um ou dois contracheques e eu pulava fora,
mantendo-me afastado de empregos o quanto possível. Tudo
o que eu precisava era de dinheiro para o aluguel e para
comprar bebidas, e também para os selos, os envelopes e uma
máquina de escrever”.

Presente em Pedaços de um caderno manchado de vinho (2010).


12

108 • 109
Se não há nada a temer e nada a ser lamentado na morte,
é porque – é nisso que insiste Bukowski (2003b, p.15) – o eixo
pobre ao redor do qual se costuma fazer girar a vida faz com
que não nos sobre muita coisa para morrer no final do percurso.
O que é terrível, então, não é a morte, mas sim a vida que se
leva ou não se leva até ela. Frente a isso, trata-se de operar uma
espécie de recuo: não mais as grandes avenidas; não mais o
esforço militante; não mais o olhar morno com o qual estamos
acostumados. Em uma direção contrária, trata-se de uma
afirmação daquilo que Agamben (2002) denominou “vida nua”:
a vida enquanto fato não qualificado, não formatado, e que por
isso mesmo é capaz de se insinuar em sua plena potência, para
além de bem e mal. Tal como refere Deleuze (1998, p.113), os
marginais sempre nos causaram medo e um pouco de horror,
simplesmente por não serem clandestinos o bastante. Ocorre
que há em cada movimento errático, em cada desistência, em
cada ressaca e em cada gole de mais uma cerveja, a inscrição de
uma pequena fissura no cinza chumbo do concreto com o qual
estruturamos as nossas certezas e os nossos valores cotidianos.

XIII.
“Uma coisa que a morte não suporta é que você ria dela”,
escreve Bukowski (2003b) em seu diário, no final da noite de 12
de setembro de 1991. O verdadeiro riso, insiste ele, é capaz de
ganhar a maior das apostas.

XIV.
A sequência final de Factotum, filme de Bent Hamer, é
definitiva. Do banco da praça à agência de empregos; do
formulário preenchido com dados mínimos à garrafa de vinho
envolvida por insetos e papel pardo; do soco na cara à expulsão;
do lado de fora e a calçada a outro bar, à outra garrafa, à
convicção expressa em “Jogue os dados”:

“Se você for tentar, vá até o


fim.
Caso contrário, nem comece.
Se você for tentar, vá até o
fim.
isso pode significar perder namoradas,
esposas, parentes, empregos e
talvez sua sanidade.
vá até o fim.
isso pode significar não comer por 3 ou
4 dias.
isso pode significar congelar num
banco de parque.
isso pode significar prisão,
isso pode significar descaso,
gozação,
solidão.
solidão é uma dádiva.
todo o resto é uma prova de sua
perseverança, do
quanto você realmente quer
fazer isso.
e você irá fazer
apesar da rejeição e das
piores probabilidades
e será melhor do que
qualquer outra coisa
que você possa imaginar.

110 • 111
se você for tentar,
vá até o fim.
não existe nenhuma sensação
parecida.
você ficará a sós com os
deuses
e as noites se farão em chamas com o
fogo.
faça, faça, faça.
faça.
até o fim
até o fim.
você conduzirá a vida direto à
risada perfeita, é
a única batalha
pela qual vale a pena lutar.13

XV.
A literatura, ou simplesmente: a vida, como valor maior.
A escritura com o corpo, com o sangue, com o excesso que a
distancia da moralidade vigente e dos modos de existência nela
implicados: tímido esboço de uma ética, à maneira de Michel
Foucault (2006): uma prática de liberdade, uma condução
da própria vida enquanto definição de um estilo de existência
capaz de resistir às tecnologias de assujeitamento. Tal arte
de viver, contrária a todas as formas de dominação, parece
até mesmo capaz de orientar um certo número de princípios
essenciais, como que compondo um pequeno manual da vida
cotidiana:

Presente em Amor é tudo que nós dissemos que não era (2012).
13
1. Isolar-se;
2. Não esquecer dos detalhes em favor de nenhuma totalidade;
3. Não abraçar nenhuma noção em detrimento às sensações;
4. Jamais condenar a vida, jogando os dados outra vez e não
virando as costas a um espetáculo estimulante na esquina (por
menor que ele possa parecer);
5. Não permitir que nenhum conceito faça esquecer o múl-
tiplo, o primeiro dia de primavera e o último e a primeira
linha deste texto e uma lua alta sobre a impossibilidade;
6. Ter em mente o valor do pequeno, assim como a utilidade do
inútil: uma outra dose; aquele brinco sobre a cômoda; o papel
higiênico com a ponta delicadamente dobrada no banheiro
do hotel; o obtuso do sentido; o sentimento de não estar
totalmente e o gesto que consiste em pôr o dedo indicador na
têmpora e movê-lo como quem aparafusa e desparafusa; um
pequeno livro azul de Cortázar; a cidade esperando; o frio e a
chuva e o vinho e as flores; ainda mais dias, outros dias, outras
noites
etc
etc
etc.

XVI.
O isolamento é sabidamente uma operação central em
Bukowski. Escolha seu próprio piano e espanque-o com força,
como em um luta de pesos pesados, saiba como fazê-lo: lição
número um de escrita. No entanto, o isolamento pode também
ser pensado enquanto um pressuposto idiorrítmico, e não apenas
espacial: nesse sentido, ele é sempre o de um ritmo em relação
aos outros, a garantia de seu movimento, de sua permanência,
ao mesmo tempo em que, para ele próprio, funciona como

112 • 113
um imperativo ético: não subjugar, não sobrepor-se, garantir a
insistência do outro, por mais terrível que seja. Ser um estran-
geiro em seu meio: eis aí a lição segunda.

Interlúdio breve para um bar em beira de


estrada por uma cerveja e três cadeiras vazias

Ele vai encher o copo e irá engoli-lo de uma só vez. Vai lhe
perguntar se você está mal e você vai responder que nunca esteve
melhor. E então provavelmente ele irá dizer que tem dormido
mais que você tem vivido. E isso, para todo o mundo, terá
grandiosas chances de ser verdade. E você não fará nada. Não
mudará nada. Não dirá uma única palavra. Você sempre soube
que está apenas seguindo em frente. E que não há mesmo nada
mais a fazer quando se está disposto a tentar. E você sempre
esteve disposto a tentar. Pois se não estivesse nem mesmo teria
começado. E é justamente por isso que você permanecerá imóvel.
Silente. A primavera nos dentes. Se fosse dizer algo, diria que já
nem lembra mais quando morreu. Que até poderia ter vivido tudo
de uma só vez. Mas não o quis. Mas não o pôde. Mas não o fez.
Diria que vive aos poucos. Aos pedaços. Beberia mais um gole e
diria que nunca está à altura do presente. Que o presente sempre
lhe ultrapassa um pouco, deixando-lhe apenas pedacinhos de
vida recobertos em um véu de melancolia. Você não lamentaria
um dia sequer. Uma dose sequer. Diria apenas que mais um
ano se foi e você não perdeu nenhum dia disso. Mas não. Não
dirá isso. Não dirá nada. O coração de Tróia. Nenhum lírio aos
anjos. Nem agora nem mesmo no final. Quando irá até o final.
E quando se aproximar do fim. E então quando souber que é o
fim. Às favas com tudo isso. Quando ele encher mais um copo.
E você ainda estiver trabalhando no seu. Quando estiver enojado
disso. Quando irá vomitar e ele irá descobrir que é isso. Você
vomita. Não escreve. Alguém que simplesmente vomita. Jamais
alguém que escreve. Dê a ele isso. Hão de implorar-lhe que dê a
ele isso. Um pedaço apenas. Um minuto ou menos em meio a
isso. Não seria necessário mais. Um minuto ou menos envolto
em seu pequeno e melancólico véu de poeira do presente. Você
bem que poderia compartilhar um pouco disso. Deixe-lhe um
minuto apenas. Um instante que seja com todo o pouco. Dose.
Linha. Dose. O dia seguinte. Dose. A grama tão verde e a vida
tão morrendo de sede. Faça-o implorar por um pouco disso. E
então lhe dê. E então tome de volta. Certamente, sua música irá
mudar de tom.

XVII.
Os últimos anos de vida de Bukowski, junto à esposa Linda
Lee, foram confortáveis, ao contrário da quase totalidade restante
de sua vida. Tal como refere Howard Sounes, em Charles Bukowski:
vida e loucuras de um velho safado, diversas foram as ocasiões em
que não havia crença no futuro, e que a morte parecia mesmo ser
a melhor das opções. Mesmo a luta contra a leucemia, segundo
Linda, soava como apenas outra época difícil: “a começar pela
infância, ele estava acostumado a ter uma vida dura, e não era
diferente em certos aspectos. Era só outra porrada. Veio a ser a
mais dura, eu acho, mas não o fez mudar”.

XVIII.
Na manhã de 18 de fevereiro de 1994, Bukowski instalou uma
máquina de fax em sua casa. Nesse mesmo dia, às 14h14min,
enviou ao editor John Martin uma mensagem intitulada #1.
Nela, aquele que acabaria sendo o seu último poema. Após a

114 • 115
morte do amigo, poucos dias depois, Martin copiou e numerou
10 cópias de #1, para então distribui-las a colecionadores e
clientes regulares da editora Black Sparrow. O poema jamais foi
publicado em outro formato.

XIX.
Bukowski não escreveu uma única linha em seus 19 últimos
dias de vida. “A mente estava lá”, relata Linda, “mas ele não
conseguia fazer nada, porque o corpo não aguentava”. O corpo
parara. Às 11h55min da manhã da quarta-feira, 9 de março de
1994, Bukowski morreu. Nesta mesma noite, no Musso & Frank,
seu restaurante preferido em Hollywood, o barman Ruben Rueda
cancelou o pedido dos vinhos brancos doces alemães, Rieslings
e Liebfraumilch, estocados especialmente para Bukowski, que
costumava sentar-se ao bar para beber uma garrafa de cada um
antes do jantar. Linda, que na hora da morte estava ao lado do
marido, abraçou seu rosto, sussurrou algumas palavras em seu
ouvido e beijou lentamente sua testa. Havia uma transparência
e uma serenidade no ar, e Bukowski tinha o rosto suave como o
de um recém-nascido.

XX.
Segundo Howard Sounes, a literatura bukowskiana talvez
não precise ser classificada sob o signo do cinismo, tal como
costumeiramente é feito. Para ele, é possível que Bukowski “só
tivesse uma visão realista de como as pessoas se comportam, e
não julgasse necessário dar-lhes o benefício da dúvida”. O editor
John Martin, responsável pela publicação da quase totalidade da
obra de Bukowski, é direto: “ele não é um autor de peso, e nunca
terá um público de peso”.
XXI.
O funeral de Bukowski foi realizado em 14 de março de 1994,
em uma tarde quente e enevoada em Los Angeles. Conforme
se lê na biografia escrita por Sounes, “tinham-no vestido com
uma camisa, uma jaqueta e posto canetas no bolso da frente,
como se estivesse a caminho do Hollywood Park, e encerrado-o
em um caixão feito de álamo”. Dentro da capela, “um prédio
comum que parecia um bangalô de bairros de classe média, com
diferença de ter vitrais na porta” os poucos amigos e familiares
presentes perceberam um forte e insistente cheiro de queimado.
“Lembro de ter pensado que era apropriado”, confessou mais
tarde o amigo John Tomas, que estava lá com sua esposa.

“e pensar que, depois que eu me for,


haverá mais dias para os outros, outros dias, outras noites.
cães andando, árvores balançando ao
vento.

não deixarei tanto.


algo por ler, talvez.
um rebelde na estrada
devastada.

Paris às escuras”14.

XXII.
Em seu Nietzsche, Deleuze (2009) defende a ideia de que a
morte, assim como a doença, deve ser pensada como parada

Charles Bukowski. “A new war”, presente em Charles Bukowski: vida e loucuras de um velho
14

safado, de Howard Sounes (2000).

116 • 117
em um processo vital, este feito essencialmente de conexão
e expansão, experimentação e fuga. O lamentável, portanto,
é sempre o corte definitivo. Em Bukowski, a morte mostra-se
tão inevitável e ordinária quanto um dia comum: sob muitos
aspectos, não é nada demais. “Não é minha morte que me
preocupa, é minha mulher deixada sozinha com esse monte
de coisa nenhuma”, escreve ele no poema “Confissão”15. Seja
como for, a morte é sempre uma impossibilidade, e a dor só é dor
quando é o choque daí proveniente: não mais fazer as mesmas
coisas. Não mais a persistência dos tantos e mesmos dias.

XXIII.
“tudo se resume à chuva, à luz do sol,
ao trânsito, às noite e dias dos
anos, aos rostos.
deixar isso será mais fácil do que
viver”16.

Dedicado à subliteratura, Pulp é tão rápido quanto uma


corrida com a morte pode ser. Nele, o decadente detetive de
Bukowski precisa de seu refrão sóbrio e direcional, repetidas e
repetidas vezes: “eu era Nick Belane, detetive particular”. Ou ao
menos ainda era. Um pouco ainda lhe restava. Não muito. Sair
de seu escritório imundo, fugir de credores, atender ao chamado
da senhora Morte, e sob suas ordens partir em busca daquilo que
desde o primeiro instante considerou ser impossível: encontrar
Céline. Talvez necessidade estilística de um Bukowski doente e

15
Presente em Essa loucura roubada que não desejo a ninguém a não ser a mim mesmo amém
(2005).
16
Charles Bukowski. “Assim que os poemas vão”. Presente em Essa loucura roubada que não desejo
a ninguém a não ser a mim mesmo amém (2005).
dançado à beira do abismo. Em Pulp, não se trata mais de entrar
em algum lugar, mas sim de sair de todos os outros. Não existem
outros casos, outros interesses, apenas o ritmo que o leva ao sul
de lugar nenhum, a uma viagem ao fim da noite, uma viagem
que vai da vida à morte, uma morte a crédito, aos poucos, até o
outro lado da vida. Encontrar Céline, o clamor de sua obra, com
seu próprio refrão. O ritmo sufocante de Belane já é outro que
não os de seus predecessores, todos eles personagens malditos
e errantes, que precisavam necessariamente se reterritorializar
em mais uma garrafa, em um outro gole, em outro balcão.
Tudo por desde sempre terem ficado de fora do grande sonho
americano, e por só assim conseguirem seguir respirando, em
busca da penúltima dose, aquela com a qual possam ainda voltar
na próxima página. As territorialidades vagabundas, baratas,
pequenas organizações esfarrapadas em ponto de apoio, agora
estão todas desfeitas. No final, trata-se de um velho puro-sangue
correndo ao lado da morte, de uma forma mais intensa, mas
nem por isso menos sutil, pelas sonoridades existentes entre um
outro gole e outro, entre uma ressaca mal curada e uma outra
ordem, um outro perdão. O pardal vermelho abre seu enorme
bico, o caso está encerrado.

Referências
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120 • 121
O dia em que saí à procura de
Henry Miller e não voltei mais:
tentativa biografemtica
Luciano Bedin da Costa
O DIA EM QUE SAÍ À PROCURA DE
HENRY MILLER E NÃO VOLTEI MAIS:
TENTATIVA BIOGRAFEMÁTICA1
Luciano Bedin da Costa

Que diferença faz, perguntam elas, saber


quando alguma coisa aconteceu, ou onde?
Muito bem, então, meia-volta!
Henry Miller, Nexus

Como acredito ser comum aos que, como eu, se colocam


a escrever sobre escritores que não se envergonham de si, saí à
procura do homem que assinava Henry Miller nos seus escritos.
Gostaria de dar todos testemunhos acerca da obstinação com
que levei esse trabalho de busca, tomado, talvez, por alguma
coisa que não quisesse se deixar morrer. Quis buscar o Henry
Miller de todos, e suspeito que tenha tão somente encontrado

Este Texto – devidamente sacudido, aspirado – é uma transleitura da Parte II do Projeto de Tese
1

“A vida em escrileituras: biografemas e o problema da biografia”, qualificado em 2008 e sob


orientação de Sandra Mara Corazza. Optei em manter a sintaxe e formatação originais de modo
a respeitar o fluxo e a ambiência de escrileitura operada naqueles anos millerianos. O leitor logo
perceberá a supressão das páginas nas citações e alguns outros movimentos textuais operados.
Naquela época entendia que tais estratégias facilitavam o fluxo de leitura, impressão ainda vigente
em se tratando deste texto.

biografemática na educação: vidarbos 123


o Henry Miller de alguém. Na realidade, desconfio que eu seja
esse alguém sobre o qual me refiro, e que aquele Henry Miller de
todos não passe de um Henry Miller para mim. Também suspeito
que eu nem mesmo o tenha encontrado. Sobre a grandeza do sol,
sua largura é a de um pé humano, escreve Heráclito. Ao buscar a
hipotética grandeza desse homem, deparei-me com uma dezena
de biografias, julgando estar fazendo mais uma. Acontece que
acabei vendo meu projeto se evadir logo no primeiro ou no
segundo passo, e que toda a metodologia por mim traçada não
passava de uma metodologia de fuga. Anotações, páginas e mais
páginas escritas, algumas dezenas de livros lidos e um punhado
de rabiscos que, em seu acúmulo, ofereciam-me um retrato
esquisito e de difícil decifração.
Dos autores com os quais cultivo afinidade, Miller talvez
seja o mais importante. É claro que a importância a que me
refiro parte de uma outra qualidade. Primeiramente, porque
ela é de turva mensuração. Não sei ao certo o que produzo no
contato com o escritor, o que se produz quando minha vida toca
alguma aspecto da sua. Nas diversas vidas vividas e contadas por
Miller há uma com a qual você certamente se debaterá. Miller,
o pornógrafo. Miller, o guru. Miller, o amante. Miller, o pai.
Miller, o viajante. Miller, o filho bastardo. Miller, o cruel. Miller,
o misógeno. Miller, o sublime. Miller, o mendigo. Miller, o bon
vivant. Miller, o filósofo. Miller, o romancista. Miller, o ensaista.
Miller, o profeta. Miller, o embusteiro.
Um segundo aspecto da importância da obra milleriana
<para mim> é que ela nos devolve o tempo em seu aspecto
mais fascinante, a saber, em sua força retrátil e expansiva.
Com Miller insistentemente retornamos. Sua literatura nos faz
experimentar a violência da memória, esta capaz de evocar,
sem que ao menos possamos nos preparar, o acontecimento
deixado de lado, a lembrança sepultada e agora presente, aquilo

124 • 125
que se perdeu ou que foi mesmo deixado de lado. Miller então
nos conta novamente como se fosse desprovido de memória. É
a um homem-sem-memória que somos apresentados quando nos
deparamos com algo sendo dito pela segunda ou terceira ou
quarta vez. Sua escritura, nitidamente autobiográfica, joga-nos,
todavia, às nossas próprias memórias do subsolo, lembrando-nos
de que somos feitos de matéria dostoievskiana antes mesmo
de qualquer psicanálise. Não há espaço para recalcamento em
seu retornar. Se os acontecimentos retornam é para que possam
ser colocados em trânsito. Do recalcado passa-se ao transitável,
transitório. Transit (1977) é o título de uma peça de teatro assinada
por Miller e que me parece dizer exatamente isso. Georges
Belmont, o tradutor e editor do livro para o francês, escreve
na contracapa do mesmo: “A primeira virtude de Miller, como
bem se sabe, é a liberdade. Ela comanda toda sua obra, toda sua
vida. A liberdade é, para ele, um ato de amor – amor pela vida,
por tudo”. Em função desta liberdade, deste amor incondicional a
tudo que flui2, os retornos de Miller, infindáveis que são, também
nos colocam diante do tempo enquanto matéria expansiva, um
tempo anárquico que desorganiza a coisas, que troca os nomes,
os fatos e as datas em função, não do recalcamento, mas da
fabulação. Alguns personagens mudam de nome e de ambiência
de romance para romance. Um leitor mais interessado em seus
dados biográficos com certeza irá identificar alguns destes na
vida do escritor.
O terceiro ponto que me parece ser significativo na obra de
Miller é a força de tornar potencialmente pensável qualquer

Uma das passagens mais lindas de Miller está em Trópico de Câncer (1987, p. 243 - 244), a qual
2

reproduzo de forma bastante resumida: “ (…) eu amo tudo o que flui: rios, esgotos, lava, sêmem,
sangue, palavras, sentenças. Amo o líquido amniótico quando escorre da bolsa. Amo o rim com
seus cálculos dolorosos, suas pedras e não sei o que mais: amo a urina que escorre escaldante e
a gonorréia que corre sem parar (…) Amo tudo o que flui, até mesmo o fluxo menstrual que leva
embora a semente não fecundada (...)”.
matéria sensível que se atravesse na vida. Sua literatura, sobretudo
os romances, são habitados por longas divagações, por devagar/
ações que suspendem o sensório-motor da narrativa fazendo-nos
entrar num regime onírico-onto-filosófico. Uma cena como a
que dá início a Sexus (2004), de uma longa e excitante trepada
num táxi, é imediatamente cortada. Somos então jogados para
uma outra ação de pensamento, esta lenta e calma e certeira,
acerca do ato de escrever. Lindas páginas nos são oferecidas,
de um potente e rebuscado entendimento acerca do que é a
escritura e seu processo de criação. Em Primavera Negra (1966),
a alfaiataria do pai, com seus clientes ordinários e achatados
pela vida comum, cede lugar a uma longa narrativa surrealista e
aparentemente esquisita, ao melhor sabor bretoniano.
Espinosa, o filósofo, falava do conatus como a força capaz
de manter uma coisa em seu estado de existência. Para mim,
o conatus milleriano é essa força de tornar grafável as vidas que
nos acometem, de realizar bio/grafias tornarndo plural e mesmo
impossível o exercício de uma única biografia. Neste sentido,
o conatus milleriano é isso que torna miserável o trabalho de
um biógrafo. Talvez por isso eu tenha também me enveredado
tanto na leitura das diversas biografias dedicadas ao escritor, ora
deliciando-me com os fatos, ora me divertindo com a estratégia
do biógrafo para fugir ou aceitar os afetos produzidos.
De certa forma, aceitando que a biografia é impossível,
acredito ter realizado alguma coisa próxima disso lá em meados
de 2008. Neste breve texto darei conta de apresentá-la. Uma
correção: aquilo que me refiro como a sua biografia é, na
realidade, a grafia de uma vida que nos atravessou por inteiro.
Talvez eu tenha mesmo partido de Henry Miller, mas é ela, a
vida, que nos parte sempre que tentamos mais uma vez grafá-la.
Se saí desta intacto ou se tracei uma bela ou tola biografia, não
tenho ciência. Sei apenas que lá fora o mundo está explodindo,

126 • 127
derretendo, e todos reclamam do barulho da água fervendo na
chaleira. Mas isso me parece ser uma outra coisa, um outro tipo
de vida. Talvez algum outro biógrafo venha um dia a escrevê-la.

Nas linhas do rosto milleriano, coup de foudre

Aperte toda cor para fora dos tubos


Henry Miller, From your capricorn friend

Em sua biografia dedicada ao escritor, J. Temple (1968)


escreve algo que me soa tocante, ou seja, passível de ser tocado
quando me ponho a imaginá-lo:

Miller tem 39 anos. Fisicamente tinha um tipo bem marcado


de mongol; em repouso, seus traços eram os de um mandarim.
Excetuando uma franja de cabelos grisalhos que formava
uma espécie de auréola, era completamente calvo; seu crânio
luzia como se fosse de mica. Seus olhos, duas fendas oblíquas,
eram os de um chinês, verdes, cor do mar, penetrantes, nos
examinavam através de grandes óculos de tartaruga.

Por muito tempo fiquei fascinado pelos olhos de Henry


Miller – experimento algo disso também com Nietzsche,
sobretudo o terceiro Nietzsche, este já míope e em estado de
errância pela Europa mediterrânea. Para mim, escrever sobre
Miller, como escrever sobre qualquer outra pessoa, passa por um
excercício do olhar, por um entre-olhares, ali onde, mesmo que
de forma efêmera, os olhares se cruzam. É algo semelhante a
estar caminhando distraidamente pela rua, onde rostos e mais
rostos circulam como em uma grande parede branca e sem
significação. Por alguma razão a que não se tem acesso imediato,
por um destes rostos somos interceptados. Na realidade, o rosto
parece ser o que chega depois, o que será montado a partir deste
primeiro encontro. O que se tem, neste primeiro entre-olhares,
é o encontro com algo deste rosto, com um fragmento que se
desprende da brancura deste comum oferecendo-se ao outro,
fragmento selvagem, tão errático quanto o olhar com o qual ele
se encontra. Neste sentido, o encontro entre-olhares é sempre um
tanto trágico, da ordem de um acaso, de uma imprevisibilidade
capaz de nos retirar do prumo, de nos desconcertar. Há uma
expressão em francês que me parece boa para dizer disto que
nos interpela violentamente: coup de foudre. Se em português a
traduzimos para “amor à primeira vista”, em francês a tradução
literal é “golpe de relâmpago”. Talvez eu comece falando de
Henry Miller por este coup de foudre, ali onde meu olhar encontra
a vida do escritor, isto que chega antes mesmo da linguagem e
que me obriga a fazer algo. Alguma coisa me leva a rabiscá-lo tal
como ele se apresenta a mim. E então me pergunto quem é este
Miller que não o meu? Do que ele é feito? De fatos? De verdade?
De crítica literária? De saber histórico? E o que do meu há neste
de todo mundo? Haverá mesmo um Miller de todos? O que me
parece certo é que os acasos dos encontros que temos com as
vidas dos outros, seus golpes de relâmpagos, é o que torna a
vida da gente possível, ainda outra vez. Do contrário, estaríamos
sucumbidos. Eles, lá. Nós, aqui.

128 • 129
Pelas diagonais

Em Primavera Negra, Miller (1966) escreve: por força das


circunstâncias tornei-me um chinês, um chinês em minha própria
terra. Em minhas andanças por suas biografias, encontrei muitas
imagens e fotografias <talvez eu as negligencie e prefira rabiscá-
las>. O certo é que busco em Miller essa vida chinesa, essa vida
silenciosa que naturalmente corre, “como uma varinha boiando
na corrente de um rio japonês”, escreve em Sexus (2004). É
desse Miller que parto, do homem que sai do curso de sua vida
americana para se tornar potencialmente um nada. Um pouco
antes de completar quarenta anos, após uma dezena de trabalhos
fracassados e burocráticos na América, Henry Miller parte para
sua vida parisiense. Dez foram os anos ali vividos, de onde
passa do sentimento de se sentir um nada ao nada enquanto
potência realizável.Trópico de Câncer, o seu livro talvez mais
conhecido, é um testemunho desta transmutação. Publicado
em 1934, narra os acontecimentos de sua chegada em Paris, os
encontros que fazem de sua vida uma potência fragmentária,
vida ex/cêntrica, caleidoscópia, sempre à mercê de um novo
giro, uma nova transmutação. É nessa vida expatriada que o
leio, e que me força a fazer algo com isso. Outro leitor terá, ao
certo, alguma outra impressão. A mim, apenas as diagonais de
meu encontro <a diagonal é a linha dos quase-lugares, é sempre
um encontro de dois pontos em desacordo horizontal>. Com
essa diagonal milleriana rabisco algo <creio que essa diagonal
é o nosso encontro, de um Miller – o meu? – com aquilo que,
no encontro, acredito ser ele>. Num dossiê da revista Planète
Plus (1970) percorro um belo artigo de Georges Belmont e que
intuitivamente dá nome ao rabisco abaixo apresentado: Comment
devenir vivant. Esta parece ser a questão quando se escreve uma
biografia, uma estratégia para sair dela e <com ela> se tornar vivo.
Mas um desenho não é somente um desenho; ele me interessa
por aquilo que nele se coloca a arrancar. Não só o arranque que
se dá na partida mas <e sobretudo> aquilo que arranca e que
fere a própria tentativa de dizer algo, de fazer uso exclusivamente
de uma linguagem escrita. O gesto do desenho é um gesto bélico,
resistente e resistência ao império dos signos linguageiros.
Então decido partir por deslizamentos, uma estratégia
de arrancar esse Miller que me arranca do óbvio. A diagonal
é também um encontro com o tempo. Um dia fiquei me
perguntando por que gosto de desenhá-lo velho? Algumas
pessoas ficam tão mais lindas com o passar do tempo. Miller é
um caso disso.

130 • 131
A biografia é um ato de rostidade. Mas do rosto que se produz
quando a cabeça deixa de fazer parte do corpo e quando as
rugas e os pés-de-galinha não somente ciscam o solo sagrado do
vivido. Se vida é sempre o que ultrapassa o comunicável, então
biografar será necessariamente um ato de impossibilidade. Mas
o impossível é apenas uma dentre as linhas de mundos possíveis.
O biógrafo inscreve a impossibilidade no seu escrito. Ele dá
uma forma escrita à vida <uma grafia ou um rosto> tratando de
operar com a própria vida que range a partir desta forma. “Se há
um destino no homem, será o de tornar-se clandestino do rosto”,
escrevem Deleuze & Guattari (1996), nem que para isso se tenha
que “tirar um olho para não ficar assim tão humano” – Henry
Miller (1966). O rosto não é mais aquilo com o qual se olha mas
isso que escoa ao se escrevê-lo.

Busco então o chinês, o mandarim no homem chamado Henry


Miller, e não consigo me desfazer do seu rosto. Há algo no seu
olho direito que diz dessa diagonal à qual me refiro. Sempre que
me deparo com um retrato do escritor acabo por localizar toda a
China que há naquele leve despencar de pupila e nos acessos que
a pele do rosto oferece àquela geografia facial. Tudo se concentra
neste olho direito, toda a vaga idéia do que seja esse chinês me soa
sóbria e perfeita quando ingenuamente me ponho a desenhá-lo
<tudo está no olho direito que escorre diagonalmente, nisto que
me insinua o mapa de um olhar oriental>.

Sair à procura e se perder

Até então um leitor casual de Henry Miller <e continuando


a sê-lo>, saí à procura do escritor sentindo-me em permanente
débito. Muitas são suas biografias, isso sem falar de sua obra,
assumidamente autobiográfica e intimamente conectada aos
acontecimentos do século XX. De certa forma, estudar Miller é
também entrar em uma das turbinas da História, ser levado por
alguma de suas hélices, escutar o rumor de seu motor e perder-se
por entre sua complexa maquinaria. Com o intuito de escrever
algo a partir de Miller joguei-me, então, no mosaico de sua vida,
achando ser possível escrever uma biografia que pudesse dizer
dos golpes de relâmpago produzidos em um leitor <como eu>.
Mas o fato de buscar uma fantasia de biografia não quer dizer
que eu a realize. Quando me sinto à vontade de dizer aí ele está, a
sua grafia já me soa falsa, morta, tanathográfica. Estou tentado
a dizer que a biografia, ao menos a escrita deste tipo de vida,
é algo que simplesmente acontece quando você se coloca em

132 • 133
estado de disponibilidade <e tenta dizer alguma coisa a partir
disso>. Lembro das palavras de Miller no início de seu Opus
Pistorum (1985), as quais me soam como uma perfeita indicação
metodológica:

DEUS SABE QUE JÁ VIVI em Paris o tempo suficiente para


não me sentir surpreendido com coisa alguma. Aqui não é
necessário procurar deliberadamente aventuras, tal como
acontece em Nova Iorque... só é preciso ter um pouco de
paciência e aguardar; a vida virá ao nosso encontro nos locais
mais incríveis e obscuros e as coisas passam-se-aí.

Em minha convivência com Miller, nesse viver/com,


tornei-me um pouco milleriano, ao que equivale dizer <estar
à espreita de Miller>. Fui então obrigado a manter um certo
pathos da distância em relação aos apelos dos gêneros literários,
às biografias majoritárias e a certos estudos filosóficos, porque
as pequenas tolices dessa vida à espreita caíam tão bem quanto
às definições técnicas da literatura específica. Haveria de ter uma
consistência nisso tudo, e não seria justo <com nossas vidas>
deixar todas essas coisas miúdas de lado. Afinal, “as coisas
preciosas são as pequenas e ordinárias coisas. O que é adorável é
mignon”, escreve Miller (1988).

Justo com quem se ama

Haverei <eu> de ser justo com aquele que amo? – é o rumor


que escuto nas orelhas e nos prefácios de grandes biografias, o
temor daqueles que se põem a escrever ou mesmo ler uma vida
– em outras palavras, um apaixonado thorubos3 vibra sempre

Sobre o conceito de thorubos proponho a leitura do capítulo “Thorubos da Palavra”, o qual faz
3

parte do meu livro Estratégias Biográficas: biografema com Barthes, Deleuze, Nietzsche e Henry
Miller, publicado 2011 (Editora Sulina).
que me deparo com um escrito que se anuncia biográfico.
Seja por uma obsessão, por um amor ou até mesmo por uma
fria encomenda, penso no biógrafo como aquele que mergulha
naquilo que poderia ter sido a vida de seu biografado. Ele
percorre manuscritos, escuta relatos, esmiuça a história pregressa
em busca dos vestígios mais confiáveis. Até que uma hora ele
diz, chega, está pronta a biografia! E o seu biografado é jogado ao
mundo. Finda-se a biografia <alguém haverá de escrever outra
mas a sua é finalizada>. Sempre haverá algo a ser dito, uma outra
palavra depois da última – neste sentido, penso que a biografia é
sempre uma frase inconclusa. Sobre este ingrato trabalho de um
biógrafo, Philippe Sollers (1994) escreve:

Os biógrafos de Miller ficam um tanto perdidos na selva dessa


existência efervescente que é sua vida. Mary Dearborn o segue
passo a passo, com fichas nas mãos, mas julga que não há nada
a ser compreendido se repetirmos sem parar seus amores pelas
mulheres. O problema não está aí, ela escreve. Se o problema não
está ali, onde ele estará?

Quando me ponho a pensar nisso, as biografias <mesmo as


mais grandiosas> me soam noir, um tanto misteriosas. É com
essa imprecisa sensação que me ponho a escrever com Miller. De
repente, uma ideia vaga mas logo a abandono. Penso que talvez o
outro não irá entendê-la. Leio em voz alta o que havia começado.
É preciso ser justo com ele, com isso que chamo de meu escritor.
Parto dele. Quanto ao escritor Henry Miller, pouco posso fazer
com aquilo que sei. Deixo que as grandes biografias continuem
a falar. E eu continuarei a lê-las, provavelmente assediado pelo
fantasma que me faz pensar que <com elas> saberei mais. No
entanto, passional que sou, eu as lerei com lábios trêmulos e
ruborizado, como aquele que ansiosamente espera o amante

134 • 135
contando os segundos para que definitivamente ele <não>
venha. Quanto ao que escrevo, o procedimento é outro. Abro
livros ao acaso, detendo-me nas inúmeras e coloridas marcações
que faço. Na realidade, acho que busco o golpe, um pequeno
golpe de relâmpago que seja <na realidade, não acredito que
relâmpagos ofereceçam pequenos golpes – fracos ou fortes, eles
são sempre letais>.

Em busca de um primeiro encontro

Nosso primeiro encontro! Pareço ainda vê-lo de pé na beira da


calçada junto ao Dôme, na esquina da rua Delambre com a
boulevard Montparnasse. Tinha um jornal na mão. Começava
a tirar fotografias. Isso podia ser 1931. Veio-me nitidamente o
lugar onde ele se apoiava, no qual poderia ainda hoje desenhar
um círculo ao redor. Cada coisa que dizia parecia uma
brincadeira. Seus olhos me hipnotizaram como os de Picasso.
Este encontro permaneceu fortemente inscrito na minha
memória <Carta de Henry Miller a Brassaï, 25 de novembro
de 1964>.

Na abertura da biografia dos anos de Henry Miller em Paris,


Brassaï (2002) nos oferece o relato do primeiro contato com o
escritor. Os olhos hipnotizam o futuro biógrafo, inscrevendo
na memória a efemeridade da cena. Sou forçado a imaginar
os olhos de mandarim de Miller retendo o olhar de seu futuro
biógrafo, nenhum dos dois sequer imaginando o que daquele
primeiro golpe ainda estaria por vir. Com meu olhar <ainda
que imaginativo> sinto-me um intruso na cena descrita por
Brassaï. Eu não estou lá mas faço parto disso aqui. E isto me
autoriza a também grafar o encontro que agora atravessa nós
três, um novo vivido para o já vivido entre os dois. Todavia, desta
novidade nenhum de nós três haveria de falar antes de sermos
apresentados. Muito prazer, eu me chamo Bedin.

Leitura com frescor de menta

Além de J. Temple e Brassaï, há de se considerar alguns outros


que se puseram a escrever suas biografias do escritor. My Friend
Henry Miller (1962) é a tentativa de Alfred Perlès em retratar seu
grande amigo dos tempos de Paris. É Miller <entretanto> que
trata de apresentar a sua biografia, assinando o próprio prefácio
do livro: “vista sob os olhos de um amigo, minha vida assumida
deixa uma outra característica”. Novamente os olhos <sinto que
eles me provocam>. Este breve enunciado de Miller oferece algo
que me parece imprescindível a um exercício biográfico: assumere.
Ou seja, tomar para si a matéria de uma vida, assumi-la. Há, em
assumere, aquilo que neste prefácio Miller chama de “leitura com
frescor de menta”. Trata-se do hálito refrescante de quem se vê
efetivamente perto do outro. “(...) este livro foi praticamente
escrito sob o meu nariz (...) Será, então, uma obra de não-ficção
ou um fragmento autobiográfico de uma vida desconhecida?”,
escreve Miller.. Ao assumir a vida do biografado, ao tomar para
si os relatos e suspeitas de um vivido, o biógrafo não escreverá
sobre este biografado. Impossível escrita. Será, pois, sempre
uma escrita-sob. Sob o nariz daquele sobre o qual se acredita
estar escrevendo, a refrescante indeterminação do hálito <de
menta> que se desprende. Será o frescor da vida que se assume?
O certo é que o hálito de menta é também o hálito daquele que a
mastiga. Tarefa ingrata <e ineficaz> à escrita de uma biografia,
pois assumere será a política daquele que toma para si os signos
de uma outra vida sendo-lhe, também, um signo dentre todos os
que assume. A história de uma biografia será a história dessas
ocupações provisórias, de escrituras tecidas também pela frescura

136 • 137
daquele que a lê. Talvez seja isso que Alfred Perlès escreve no
epílogo de sua biografia: “Esta é sua história, caro leitor”. Isto
faz um enorme sentido para mim. E se aquela biografia de
Miller não conta a minha história, ao menos sinto-me parte dela,
aspirado, refrescado.

Não exigir da História mais do que ela pode nos dar

“Quando um escritor escreve um livro, na verdade ele está


escrevendo três ou quatro, multilateralmente”, é Henry Miller
(1997) quem apresenta o aspecto desviante de uma escrita <e
de uma leitura>. O seu leitor é constantemente invadido pela
sensação de um eu já li isso aqui em algum outro livro seu. São
retornos de um viver com, de um leitor que busca no repertório
das coisas já lidas, algo que confirme a sensação de já ter passado
por aquele relato antes. Os livros de Miller estão impregnados de
outros tantos livros seus e de seus intercessores. Eles se cruzam, se
diferem, e por vezes se complementam. O leitor forma imagens,
arrisca uma cronologia que possa dar conta da multilateralidade
dos seus escritos. Porém, essa sua história é também invadida por
tudo isso que corre, por todas as certezas desviantes que estão no
texto de Miller e por toda a imprecisão que envolve o viver com
o escritor. “Não exijamos da História mais do que ela pode nos
dar” – é o que Barthes (1991) me aconselha sempre que sinto
vontade de escrever alguma coisa sobre Miller. O espaço literário
inicia pelas falências e falésias da História.

Não envergonhar a vida

Com Henry Miller (1997) encontro o que <para mim> é o


princípio de uma biografia: “não envergonhar a vida”. E toda
a vez que a vida se reduz a uma só forma ou matéria há de se
produzir um certo enrubescimento. Mas a vida enquanto desvio
ilimitado só é possível porque há do que se desviar. Porque
forma rosto. Porque há rosto e forma. A forma, qualquer que
seja, não deixa de ser uma espécie de morte. Uma pequena ou
grande morte na medida em que envergonha <mais ou menos>
a vida. Há sempre algo que escorre na canalização necessária, e
isto que escorre diagonalmente é o que dá a escrever. Para Henry
Miller, o escritor dos Trópicos 4, isto que escorre é sua matéria
obsessiva. Um certo fascínio pelos mictórios de Paris <por sua
proustiana Paris> e pela enxurrada de sangue descartado a cada
menstruação. Biografar Henry Miller é matar Henry Miller,
fazer escorrê-lo por entre as sendas cavocadas por sua própria
literatura. Cada um tem sua Hora dos Assassinos 5 Ele a teve com
Rimbaud e tantos outros. Mas o assassinato inevitável da forma
é a própria condição para que a vida trespasse o escritor por
todos os lados. Biografar Henry Miller é descartar Henry Miller.
Um caso de vida <e> morte. Walt Whitman (1996), o maior
poeta americado segundo Miller, diz que é “bom estar vivo e é
bom também morrer”. E o assassino então sorri e o assassinado
<por suposição> também agradece.

Sobre/posições
“Henry Miller sempre volta. Sempre fez o mesmo: regressar,
voltar, olhar, encontrar”, escreve o biógrafo Vignati (1976). A
eterna viagem de retorno aos lugares e fatos, compõe aquilo
que Alejandro Vignati chama de alegria do retorno. Neste

4
Henry Miller é também conhecido como o escritor dos Trópicos em virtude de sua primeira trilogia,
Trópico de Câncer, Primavera Negra e Trópico de Capricórnio, publicados na década de 30 e por
muito tempo censurados nos Estados Unidos.
5
A Hora dos Assassinos é um livro publicado em 1956, onde Henry Miller se propõe a fazer um
estudo <à sua maneira> sobre Rimbaud a partir da frustrada tentativa de traduzir um dos seus
poemas.

138 • 139
jogo de sobreposição de reminiscências a obra milleriana se
sustenta, cada qual funcionando como simulacro de outra, uma
composição que ao invés de complementar, amplia a superfície,
propondo novas entradas e saídas. A missão do homem sobre a
terra é recordar para recordar, escreve Henry Miller (1998). Nunca

para tão somente representar o vivido, mas para sobre/por, para


atiçar a vidência, para ver duas, três, quatro vezes e para retornar
a ver novamente o ainda não visto.

Miller sobre Miller sobre Miller sobre Miller sobre Miller


sobre Miller sobre Miller sobre Miller sobre Miller sobre
Miller sobre Miller sobre Miller sobre Miller sobre Miller
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Recomendações a meu biógrafo

No livro dedicado ao autor, o biógrafo Alejandro Vignati


(1976) escreve o que me parece um tiro certeiro: “Henry Miller
pinta a vida e escreve coisas”. E se um dia, por sorte ou desgraça

140 • 141
do destino, alguém for escrever minha biografia, a recomendação
que faço <em vida> é seguinte: tudo o que for passível de caber
numa só frase. Na realidade, é o que eu gostaria de ter feito com
Miller neste texto. Pois bem, mais uma vez falhei. E a vida segue,
escorregando. Que bom.

Porto Alegre, 2008/2014

Referências
ASSOCIATION, Henry Miller. Les Cahiers Henry Miller, v.1 France:
Éditons William Blake and Co. Juin, 1994.

BARTHES, Roland. Michelet. (Trad. Paulo Neves.) São Paulo:


Companhia das Letras, 1991.

BELMONT, Georges. Comment devenir vivant. In: Planète Plus 16.


Henry Miller, l´homme et son message. Juin 1970 (p. 21-27).

BRASSAÏ. Henry Miller: Los Años en Paris. (Trad. Miguel Hernández


Sola.) México: Turner Publicaciones, 2002.

COSTA, Luciano Bedin. Estratégias biográficas: biografema com


Barthes, Deleuze, Nietzsche e Henry Miller. Porto Alegre: Editora
Sulina, 2011.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo


e esquizofrenia vol.3. (Trad. Aurélio Guerra. Neto, Ana Lúcia de
Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik.) Rio de Janeiro: Editora
34, 1996.

MILLER, Henry. A Hora dos Assassinos. (Trad. Milton Persson.)


Porto Alegre: P&PM, 1983.

MILLER, Henry. Cartas a Anaïs Nin. (Trad. Manuel João Gomes.)


Portugal: Difel, 1997.

MILLER, Henry. From your capricorn friend. New York: A New


Directions Paperbook, 1984.
MILLER, Henry. Nexus. (Trad.Sérgio Flaksman.) São Paulo:
Companhia das Letras, 2005.

MILLER, Henry. Opus Pistorum (Trad. José Jacinto da Silva Pereira.)


Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1985.

MILLER, Henry. Primavera Negra. (Trad. Aydano Arruda.) São


Paulo: IBRASA, 1966.

MILLER, Henry. Sexteto. (Trad. Aydano Arruda.) São Paulo: Ágora,


1985.

MILLER, Henry. Sexus. (Trad. Sérgio Flaksman.) São Paulo:


Companhia das Letras, 2004.

MILLER, Henry. Souvenir, souvenirs. Paris: Éditions Gallimar, 1988.

142 • 143
Tratado fragmentário do
biografema – O retorno do eu,
com Barthes, Kerouac e Deleuze
Gabriel Sausen Feil
TRATADO FRAGMENTÁRIO DO
BIOGRAFEMA – O RETORNO DO EU,
COM BARTHES, KEROUAC E DELEUZE
Gabriel Sausen Feil

1 Quando a escritura biografemática se apropria de sua matéria


escritural, não se atém aos elementos já significados; não se atém
aos elementos responsáveis pelo reconhecimento e/ou pela
identificação de tal matéria – por isso Barthes (2005a) não se
atém à pornografia de Sade, ao socialismo utópico de Fourier e
à mística da obediência de Loyola. É uma questão constitutiva
dessa forma de escrita: é por preferir aquilo que ainda não foi
percebido (e que, portanto, ainda não foi significado) que uma
escrita pode vir a funcionar como uma escritura biografemática.
Procede assim não por ter a intenção ou a pretensão do ineditismo
(não é o escritor que procura ser inédito, mas é o ineditismo que
assalta o escritor), mas porque o que lhe faz existir, o que lhe
coloca a funcionar é, justamente, algo que lhe provoca por ainda
não ter sentido.

2 O que ainda não tem sentido e que passa a ser percebido


apenas agora, no momento escritural, chama-se traços bio-
grafemáticos. Não que esses traços estivessem escondidos,
mas que se eles são agora percebidos é porque são agora

biografemática na educação: vidarbos 145


inventados (apesar de preexistirem, passaram a existir somente
agora no âmbito do sentido). Esses traços são detalhes ainda não
significados que funcionam disparando (instigando) escrituras,
e encantando o leitor-escritor. São casos de inflexões: aquilo
que passa despercebido pelas interpretações diversas acaba por
singularizar a nova escritura.

3 Os traços biografemáticos instigam o leitor-escritor, justa-


mente, porque ainda não estão cristalizados no âmbito do
sentido. É que o humano é um dependente dos sentidos para
viver (é na ausência de sentidos que o tipo fraco nietzschiano
sente todo o peso da existência), de modo que quando se depara
com o vazio de sentidos, sente-se positivamente incomodado,
estranhado, sendo violentado a fazer alguma coisa diante disso.
Em geral, usa o pensamento representacional para, rapidamente,
associar essa nova situação a algum significado já articulado a
sua grade perceptiva; mas, no caso biografemático, lança mão de
inventividade para criar novos sentidos no movimento escritural.

4 A escritura biografemática nada tem contra o sentido; o seu


problema é com o sentido já estabelecido, já articulado às grades
perceptivas. Na tarefa de criar sentido para as coisas, geralmente
se age de maneira coletiva – parece somente ter legitimidade
aquilo que é compartilhado. Mas no caso biografemático se trata
de criar sentido de maneira quase solitária, para as nuances.

5 Criar novos sentidos, com a escritura biografemática, não é o


mesmo que mentir (no sentido de se afastar, propositadamente,
do fato); pelo contrário, é uma escritura de verdades, ainda que
sejam de verdades dos instantes, que dizem respeito somente a
estes mesmos. Pois é verdade que o humano precisa de sentidos
para viver, mas não é verdade que precisa realizar tal tarefa em

146 • 147
rebanho! Então, Barthes não mente sobre Sade, mas se apropria
desse escritor a partir de detalhes que até então eram foscos e
desprovidos de sentidos, tais como o seu regalo branco (ou como
os vasos de flores de Fourier ou os olhos espanhóis de Loyola).
Acaba inventando um novo Sade (no sentido de um Sade que
ainda não era dito e nem escrito), um novo Fourier e um novo
Loyola não porque mente, mas porque se apropria de algo que
ainda não havia sido percebido e significado: “o que me vem
da vida de Sade não é o espetáculo, embora grandioso, de um
homem oprimido por uma sociedade em razão do fogo que ele
carrega (...). É seu regalo branco quando abordou Rose Keller
(...); o que me vem da vida de Fourier é seu gosto pelos ‘mirlitons’
(bolinhos parisienses aromatizantes), sua simpatia tardia pelas
lésbicas, sua morte entre os vasos de flores; o que me vem de
Loyola não são as peregrinações, as visões, as macerações e as
constituições do santo, mas somente ‘os seus belos olhos, sempre
um pouco marejados de lágrimas’” (p.XVI). Os detalhes não são
simplesmente identificados, mas são inventariados, pois inéditos.

6 O modo que Barthes (2005a) se apropria de Sade, Fourier


e Loyola é um exemplo de modo biografemático: em vez
de se deter nos elementos em que cada um desses autores é
reconhecido (pornografia: Sade; socialismo utópico: Fourier;
mística da obediência: Loyola), Barthes se detém em algo novo.
Identifica o que faz deles escritores, ou melhor, o que faz de suas
escritas, escrituras. Sade, por exemplo, faz escritura, segundo o
autor francês, porque inventa a língua do crime (p.18), a qual
faz com que o seu texto valha por si mesmo, independentemente
dos seus conteúdos (ditos obscenos, violentos, perversos).

7 O novo da escritura biografemática não implica uma


revolução ou uma mudança paradigmática; pelo contrário, é
sempre da ordem dos pormenores, das nuances, das sutilezas,
das pequenas coisas, da distinção.

8 Embora a escritura biografemática esteja envolvida com o


novo, isso não quer dizer que esteja relacionada a uma mudança
de conteúdos. Ela passa por uma mudança metodológica, que
diz respeito ao modo como o escritor se apropria da vida (pode
ser de traços de sua própria vida, da vida de outros, da vida
de personagens de livros ou ainda de lugares). Comumente, o
escritor se apropria de um autor escrevendo sobre ele (sua história
de vida), sobre o que ele quis dizer (seus argumentos teóricos),
sobre o que ele quis negar (seus inimigos) etc. Em suma,
tradicionalmente, apropria-se de um autor escrevendo sobre, o que
faz com que permaneça submetido à escrita transitiva. É que não
tem conseguido se desviar dos significados contidos nas obras e
nas histórias de vidas dos autores (parece que, para que algo seja
concebido como real, precisa estar significado). Isso faz com que
o escritor sempre se aproprie de um autor do mesmo modo; as
variações se devendo apenas às particularidades de cada linha
de pesquisa. Em outras palavras, interpreta um mesmo autor de
diversas maneiras, porém, não se permite reinventá-lo. A escritura
biografemática tende a produzir nova escritura reinventando um
autor, uma obra ou a própria vida, a partir de detalhes até então
irrelevantes (não por não terem importância, mas por passarem
despercebidos). Ela é um modo de garantir que toda vez que uma
vida seja tomada como objeto de escritura, que ela seja tomada
sempre de modo inédito. Segundo Leyla Perrone-Moisés (2007,
p.50, 51), a escritura funciona como um “ensino escritural”: um
“ensino artístico” na medida em que implica o ensino de uma
postura e não de um know-how; na medida em que não envolve
a transmissão de um saber, e sim a exibição de uma postura que
tende a produzir ao invés de sistematizar. O que permanece não

148 • 149
é o que foi dito, mas sim a tendência em querer produzir uma
nova escritura.

9 A noção de biografema se diferencia da de biografia: enquanto


a “grafia” (da biografia) pressupõe significados, o “grafema”
(do biografema) não. Tanto a “grafia” quanto o “grafema” são
traços, sinais; porém, enquanto a primeira implica um traço em
associação análoga a um sentido (o sinal “a” se associa ao som
convencionado de “a”), o segundo é somente um traço (como
um desenho, numa caverna, que não representa nada que o
homem moderno já tenha digerido) que passa a receber sentido
apenas na escritura que ele mesmo motivou.

10 A potência de um biografema (ou de um traço biografemático)


é a sua proliferação em novas escrituras; a potência da biografia é
a de estabelecer a vida última, verdadeira, plena de significação.
O procedimento biografemático pode ser entendido como
um modo de lidar com a biografia sem se limitar à história
referenciada, o que, em outras palavras, quer dizer história de
vida do Sujeito. O biografólogo (entendido como aquele que faz
biografema) não narra, de maneira linear, cronológica e coerente
a sua própria vida (nem a de ninguém), mas produz vidas, inventa
vidas. Segundo Barthes (2005b, p.170-172), o biógrafo é aquele
que faz história de vida; o biografólogo é aquele que faz escrita
de vida.

11 A escritura biografemática não escreve os momentos


significativos da vida (aqueles que constituem as biografias),
até porque os sentidos desses momentos já estão dados – a
escrita viria apenas depois para, simplesmente, registrá-los. Ela
escreve ali os pequenos momentos que lhe instigam a escrever,
e que fazem isso, justamente, por estarem subtraídos de sentidos
prévios, ou por terem os seus sentidos colados ao texto; ou seja,
os sentidos se fazendo ali, na escritura.

12 A intenção do biografólogo é distinta da do biógrafo: ao se


apropriar de pormenores da vida de um sujeito, a sua intenção
não é fazer com que o seu trabalho escritural coincida com os
“verdadeiros fatos” da vida desse sujeito. Ele faz ficção! Não por
escolha própria e voluntária, mas por ser só o que ele pode fazer,
pois os pretensos verdadeiros fatos do biógrafo são igualmente
ficções. Isso significa que cada versão da vida desse sujeito,
incluindo a “verdadeira”, é uma obra autônoma. Quem inventa
não são apenas aqueles que fazem ficção voluntária, tal como o
escritor de literatura ou de peça de teatro, mas também aquele
do conhecimento científico, da moral, da filosofia. A diferença é
que os escritores dos pretensos verdadeiros fatos dizem não fazer
ficção por conservarem o referente, que nada mais é do que um
empreendimento que foi inventivo até cristalizar-se, recebendo
legitimidade por passar a ser reconhecível. Diante disso, a dita
escritura ficcional não é menos verdadeira do que aquela que
vive para a verdade, ou: aquela que vive para a verdade não é,
nesse sentido, menos fantasiosa do que a ficcional.

13 A escritura biografemática não ignora a biografia; biografia


e biografema não estão em oposição. É verdade que a escritura
biografemática se ocupa dos procedimentos de reinvenção de
uma vida, e a escrita biográfica se ocupa do levantamento de
informações históricas de um sujeito, mas, apesar dessa diferença,
a biografia pode se tornar ou disponibilizar matéria para uma
escritura biografemática. O biografólogo faz biografema a partir
daquilo que sobra da biografia. “Sobra” num sentido positivo,
num sentido de Acontecimento (terminologia deleuziana): o
biografema como o Acontecimento da biografia. Sobras como

150 • 151
as cabeças erguidas nos romances de Kafka, inventariadas
por Deleuze e Guattari (1977): são sobras na medida em que
se constituem em detalhes que somente adquirem sentido no
registro da escritura em questão.

14 Nas palavras de Barthes: “se eu fosse escritor, já morto,


como gostaria que a minha vida se reduzisse, pelos cuidados
de um biógrafo amigo e desenvolto, a alguns pormenores, a
alguns gostos, a algumas inflexões, digamos: ‘biografemas’, cuja
distinção e mobilidade poderiam viajar fora de qualquer destino e
vir tocar, à maneira dos átomos epicurianos, algum corpo futuro,
prometido à mesma dispersão; uma vida esburacada, em suma,
como Proust soube escrever a sua na sua obra” (BARTHES,
2005a, p. XVII). Os traços biografemáticos surgem de uma zona
indiscernível onde não há a distinção entre realidade e ficção.
O que passa para a obra de um autor (de Proust, por exemplo)
pode ser entendido como a sua vida, porém, trata-se de uma
vida desorientada, que não coincide com a vida das biografias
convencionais, justamente por ser constituída por detalhes
que se encontram fora dos fatos comumente consideráveis: a
vida de Proust sendo reinventada (redescoberta), pelo próprio
protagonista de Em busca do tempo perdido (1967), a partir da
sensação provocada pela degustação de um simples bolinho
mergulhado em uma xícara de chá. O biografema, como diz
Haroldo de Campos (2006), acontece quando a vida e a obra
encontram-se, tornam-se indiscerníveis. Trata-se do encontro
entre a ficção e o real, entre o imaginário e a história. E já que
ficção e real confundem-se, os traços biografemáticos podem ser
extraídos tanto da vida do autor, como de figuras, personagens,
conceitos que movimentam as obras. Tanto as figuras, os
personagens, os conceitos são percebidos como reais, como os
autores são percebidos como ficções.
15 Na perspectiva biografemática, não há nada depois da
máscara, a não ser outra máscara! O rosto é uma máscara
também, e não há como ser diferente (ou seja, não se trata de
uma questão de falsidade). É como na história indiana contada
por Geertz (2008, p.20): “(...) sobre um inglês a quem contaram
que o mundo repousava sobre uma plataforma apoiada nas
costas de um elefante, o qual, por sua vez, apoiava-se nas costas
de uma tartaruga, e que indagou (...), e onde se apoia a tartaruga?
Em outra tartaruga. E essa tartaruga? ‘Ah, Sahib; depois dessa
são só tartarugas até o fim’”. A ideia de original (a primeira
máscara, a mais pesada, o elefante) somente se torna proveitosa
ao biografólogo na medida em que for tomada como matéria a
ser dissimulada; na medida em que servir como ponto de partida
de sua própria dissolução.

16 Eis o funcionamento biografemático: a) Os traços biogra-


femáticos são detalhes que passam despercebidos pelos bió-
grafos e escritores/pesquisadores em geral (o regalo branco de
Sade, os vasos de flor de Fourier, os olhos de Loyola), justamente
porque são vazios de significação prévia. Esses traços, numa
perspectiva barthesiana, podem tornar-se disparadores de
escrituras (afinal, quando algo que toca o escritor ainda não
tem sentido – ou se tem não lhe é interessante – o escritor é
tentado a escrever um sentido para esse algo). b) Escritura
biografemática é, precisamente, o texto que foi disparado
por traços biografemáticos; portanto, um corpo futuro. c) E
biografema, por sua vez, é o traço biografemático produzido
na escritura. O desenho, então, fica sendo o seguinte: (a) traços
biografemáticos (algo que toca o biografólogo, mas que não
tem sentido prévio, e que pode vir tanto de uma obra quanto
da própria vida, já que aqui não há distinções entre a ficção
e o real) => (b) escritura biografemática (texto não apenas

152 • 153
disparado pelos traços, mas também repleto de biografe-
mas) => (c) biografema (pormenores deixados por uma escritura
do tipo biografemática, os quais passam a funcionar, na ótica
no leitor, como os traços; afinal, são eles que passam a disparar
novas escrituras). Traços biografemáticos e biografemas se
confundem e até fundem-se, sendo que a distinção é meramente
didática: a primeira expressão se refere ao início do procedimento
biografemático, e a segunda se refere ao final. Do ponto de vista
daquele que produz uma escritura biografemática, o biografema
é o seu resultado (é o final); mas do ponto de vista daquele que lê
tal escritura e que, por ela, deseja escrever, o biografema é o seu
início, pois funciona como o traço biografemático que o coloca
a produzir uma nova escritura. Ainda existe a possibilidade de
um traço biografemático não ter sido nunca um biografema,
visto que pode não ter sido percebido numa escritura, mas,
simplesmente, inventariado na vida.

17 Traços biografemáticos são inventariados. Ter a intenção de


identificar traços biografemáticos é sempre uma tarefa legítima,
porém, não existe identificação sem invenção, e a invenção não
se dá apenas após a identificação dos traços, mas ocorre desde o
início do processo.

18 Ainda que se possa querer escrever biografemas, não há


como se assegurar de que o texto produzido seja, de fato, uma
escritura biografemática. A questão é se instalar – na condição
de leitor-escritor – no como se barthesiano: instala-se no como se
fosse escrever biografemas.

19 Há o aspecto sensual nos biografemas, sinalizado por


Barthes (2005b). É que são os biografemas que convidam e
mesmo seduzem o leitor a produzir um novo texto. Assim como
no jogo de passar anel, o mais importante (o que sustenta o jogo)
não é o conteúdo (adivinhar com que está o anel), mas é o ato
sutil de esfregar as mãos em mãos alheias. O leitor percebe algo
nunca percebido antes, e passa a desejar escrever um novo texto,
passando de leitor a escritor.

20 Sem dúvida, O gato por dentro, de William Burroughs (2010)


pode ser entendido como um livro biográfico; porém, nesse caso,
é um livro ruim, pois não consegue alcançar aquilo que se espera
de uma biografia: a oportunidade de o leitor vir a conhecer
melhor o sujeito biografado. Ainda que o biografema não tenha
nada a ver com confundir o leitor, o que nele se revela não é o
sujeito, mas é a escritura. Nesse sentido, esse livro é uma escritura
biografemática porque, apesar de ser disparado por situações
supostamente vividas pelo autor, não se reduz a elas; pelo
contrário, esgotam as suas importâncias a partir do momento
em que disparam o texto. A relação com os gatos seduz o biogra-
fólogo Burroughs, fazendo com que este, simplesmente, escreva.

21 Willer (2009, p.82) diz que Kerouac recupera o sujeito, no


sentido em que, após o estruturalismo mostrar que o sujeito é,
em verdade, múltiplo, descentrado e flexível, usá-lo havia se
tornado proibido, de modo que passava a ser difícil falar em “eu”
e não parecer ingênuo intelectualmente. Porém, Kerouac e os
demais autores beats conseguem, na maioria das vezes, operá-lo
sem com que isso se constitua numa valorização da identidade
pessoal. Se os beats conseguem isso é porque fazem, justamente,
escritura biografemática, em que já não se trata de um Sujeito,
mesmo quando o “eu” permanece lá.

22 O eu da escritura biografemática existe, mas é fragmentário:


apropriar-se de um autor é o mesmo que amá-lo (BARTHES,

154 • 155
2005a, p. XVI, XVII); e se existe a possibilidade de se amar um
sujeito do texto, é somente o tomando de modo dispersivo: pode-
se amar traços biografemáticos desse suposto sujeito.

23 Se Deleuze deixa os pensadores da Diferença com um pé


atrás em relação ao sujeito, é ele também que os libera: quando
o escritor escreve sobre si mesmo, já se encontra em outro plano,
desde que não se limite às qualidades representadas. (E mesmo
que se limite a elas, em verdade, já está, na pior das hipóteses,
criando um novo sujeito, ainda que previsível). A impressão de
reconciliação entre a escrita e o suposto fato original é sempre
uma possibilidade, mas apenas no âmbito representacional.

24 A questão não é tão ordinária. Não é, simplesmente, que a


escritura se diferencia dos fatos, ou que a escritura se diferencia
da outra que a disparou. A questão é que a escrita biográfica
também se diferencia dos seus fatos, querendo ou não, mas faz
isso mantendo o vínculo referencial, como se estivesse tratando
de uma mesma coisa. Se há uma semelhança (entre os supostos
fatos e a biografia), esta é apenas efeito do funcionamento da
lógica representativa. Sem dúvida, é dessa lógica e desse ponto
de vista que parte o biógrafo convencional, que se interessa por
ter a impressão (ilusão) de semelhança entre duas escritas ou por
submeter a produção atual a um suposto fato original.

25 “Há movimentos que somente o embrião pode suportar”


(DELEUZE, 2006, p.133). O sujeito já formado, o cogito, não
suporta o dinamismo de intensidades. É isto! O sujeito do
biografema só pode ser larval: o biografema lida com o sujeito,
mas ele em estado larval. O biografema como regressão; porém,
não no sentido cronológico, mas no de regressão ao estado puro,
isento de qualidades e organizações. A escritura biografemática
ativa um sujeito larval: o procedimento biografemático substitui
o sujeito histórico, constituído e dependente de qualidades sub-
jetivas, por um sujeito que só pode ser esquartejado, fragmen-
tado, esboçado, larval.

26 Satori em Paris (KEROUAC, 2010a) não é um livro sobre


uma viagem realizada pelo próprio autor, mas é um livro escrito
por conta de uma viagem. No fim, não interessa o que Kerouac foi
fazer em Paris, o que ficam são as “capas de chuva românticas”
(p.36), o chapéu para usar em saídas de teatros, o olho de
Spinoza (p.93): são biografemas que necessitam de um pretexto
para emergir. A busca de Kerouac por registros de sua família
é apenas um modo de criar condições para a emergência de
acontecimentos biografemáticos.

27 Logo no início de Satori em Paris, Kerouac (2010a, p.08)


afirma: esta história “é contada por nenhum outro motivo a não
ser companheirismo, que é outra definição (e a minha favorita)
de literatura, (...) e para ensinar algo religioso, ou reverência
religiosa, sobre a vida real, nesse mundo real que a literatura
deveria refletir (e aqui o faz)”. Isso, justamente, porque não
se trata da história da descrição de um satori (para tanto, seria
necessário outro empreendimento para descrever o inexplicável),
mas da história da descrição dos ocorridos que, de um modo ou
de outro, possibilitaram pequenas ou grandes sacadas. E se tais
sacadas são biografemas é porque são constituídas por elementos
fornecidos nos acontecimentos da vida (por isso, “bio”), e porque
não se apresentam como fatos significados e significativos (como
seria no caso da escrita biográfica), mas como pormenores
apenas esboçados, esburacados, suspensos (por isso, “grafema”).
Ainda Kerouac (p.38): “este livro é para provar que não importa
como você viaje, quão ‘bem sucedida’ seja sua jornada, ou

156 • 157
abreviada, você sempre aprende alguma coisa e aprende a mudar
seus pensamentos”.

28 Dean Moriarty, o grande protagonista de On the road, é um


antenador de biografemas. Além disso, a noção expressada com
a palavra “AQUILO” (grifada em letras maiúsculas mesmo)
serve à noção de biografema: “cara, o saxofonista de ontem à
noite tinha AQUILO (...). O tempo para. Ele preenche o espaço
vazio com a substância de nossas vidas (...), porque o que conta
não é a melodia daquele momento, que todos conhecem, mas
AQUILO” (KEROUAC, 2010b, p.254, 255). Se Dean, logo no
início, sai atrás das gírias dos intelectuais nova-iorquinos, é
somente porque acredita que dali pode sacar aquilo que ainda
não experimentou. E Sal Paradise (personagem/narrador) cria
os seus próprios biografemas para tomar os demais personagens:
Dean, “o santo vagabundo de mente reluzente” (p.24); Carlo
Marx, “o angustiado poeta vagabundo de mente sombria”
(p.24); “a cara ossuda e bem talhada” de Dean (p. 206), “com o
louco rosto ossudo coberto de suor; as veias dilatadas, repetindo
‘sim, sim sim’, sem parar” (p.241). Trata-se de desenhos, e não
de descrições representacionais.

29 Um biografema conserva sensações: diz Sal: “‘Eu brincava


de rolar argola bem aqui neste beco’, me dissera Chad. Queria
tê-lo visto fazer isso; queria ter conhecido Denver dez anos
antes, quando todos eles eram crianças cheias de promessas,
rolando suas argolas em becos ruidosos numa ensolarada manhã
primaveril com as cerejeiras das Rochosas em flor – a turma
inteira. E Dean, sujo e esfarrapado, vagando solitário num transe
absorto” (KEROUAC, 2010b, p.83). Sensação de chegar a uma
turma após esta já ter vivido a sua Era romântica, e de sofrer
com uma espécie de memória de algo que jamais se viveu; e se
há a oportunidade, ao ler esse fragmento, de se ter uma sensação,
é porque tal fragmento fornece uma imagem (“grafema”) de
uma vida (“bio”). E se tal sensação já foi experimentada de
fato, não interessa, importa apenas que a sensação de já tê-la
experimentada se torna um fato, uma verdade inquestionável.
Ainda Sal (em outro exemplo de conservação de uma sensação):
“um lar da Califórnia; escondido nos vinhedos, eu sacava tudo.
Me senti um milionário; estava me aventurando na louca noite
americana” (p.132). Sensação experimentada quando, após
alguns dias ou algumas semanas de monotonia ou de tensão,
volta-se, inesperadamente e sem nenhum motivo considerável,
a se sentir bem.

30 Uma espécie de biografema frequente em On the road é aquela


que aqui se chama “geografema”, que diz respeito a biografemas
de lugares: “há algo cinzento e sagrado no Leste, enquanto a
Califórnia é clara como roupa no varal e tem a mente vazia”
(KEROUAC, 2010b, p.107); “em Nova York fica frio pra cacete
durante o inverno, mas nas ruas, em algum lugar, existe um
doido sentimento de camaradagem” (p.115); “em Frisco, todo
mundo sopra um instrumento. Era o fim-de-linha do continente,
ninguém estava ligando pra nada” (p.221); “uau, as noites de
Frisco, o limite do continente e o fim de todas as dúvidas, adeus
dúvidas estúpidas e tolas!” (p.249). Guarda-se, nos geografemas,
aquilo que fica de um lugar!

31 Viajante solitário é fecundo em geografemas: “Paris é uma


mulher, mas Londres é um homem independente fumando
seu cachimbo em um pub” (KEROUAC, 2011, p.204); “pal-
pável ponto de encontro de toda a cultura corriqueira e
verdadeiramente sinistra da Califórnia, com interiores sombrios
onde se viam rapazes fortes e bronzeados de camisa havaiana

158 • 159
floreada e relógio no pulso, levando à boca copos de cervejas
altos e estreitos” (p.28). De modo recorrente, Kerouac usa a
estratégia do uso da palavra “que”, logo após uma vírgula, para
singularizar o lugar em questão, ainda que muito singelamente:
“quando chegamos ao hotel, que tinha palmeiras dentro de
vasos” (p.26, grifo nosso).

32 Um biografema é absolutamente singular; mas, justamente


por isso, tem um efeito axiomático de universalidade: “o velho
berrava. Mas a opinião da mãe, morena, gorda e melancólica,
prevaleceu mais uma vez, como sempre acontece entre os
grandes povos do mundo” (KEROUAC, 2010b, p.130). Não se
trata de se concordar ou não com isso; não se está no âmbito
da opinião e nem mesmo no da reflexão, mas no da escritura.
No registro desta escritura, tal fragmento acomete a sensação do
“é isto!”, tão valorizada em formatos como o do haicai. Outro
exemplo: “todo mundo vai para casa em outubro” (p.135). Sem
dúvida, uma sensação que tange apenas o personagem, mas que
assume a posição de uma verdade inquestionável e soberana:
“era uma noite chuvosa. Era o mito da noite chuvosa” (p.164).
E em Viajante solitário: “os homens amam os bares, e os bons
bares merecem ser amados” (2011, p.131).

33 Há biografemas que, aparentemente, provacam a sensação


de identificação: “gosto de muitas coisas ao mesmo tempo e me
confundo inteiro e fico todo enrolado correndo de uma estrela
cadente para outra até desisitir. Assim é a noite, e é isso o que
ela faz com você” (KEROUAC, 2010b, p.160, 161). Naquela
noite em que se está embriagado e, ao mesmo tempo em que
se começa a ter ideias, passa-se a sofrer de uma fissura aguda:
muitas promessas, raros resultados. Entretanto, o processo
de identificação é apenas ilusório, visto que há sempre uma
dissonância entre aquilo que o escritor escreve e aquilo que o
leitor lê. O biografema tem o poder de fazer criar, justamente
porque não se constitui de pontos significados, mas de consti-
tuição esburacada. Apesar de parecer que o fragmento apenas
faz ver aquilo que já se pensava e não se dizia, a verdade é que
jamais se pensaria nisso se não fosse a experiência de sua leitura.
O biografema faz com que o sujeito refaça a sua composição, a
partir da conexão com um novo traço.

34 Considerado que um biografema pode até partir de signi-


ficados prontos, mas que o que o caracteriza tange outra ordem
(a ordem, justamente, da criação do sentido), jamais se constitui
apenas de metáforas ou de outras figuras de linguagem: “quando
a destruição chegar ao mundo da ‘história’ e o Apocalispse
indígena retornar, como tantas vezes já fez, estas pessoas vão
continuar olhando para o mundo dessa mesma maneira, de
dentro de suas grutas, no México ou em Bali” (KEROUAC,
2010b, p.240). Dean e Sal, mas sobretudo o primeiro, vêem a
coisa mesma, a concretude, a literariedade. Olhar puro que nada
tem a ver com a pureza angelical, mas com um processo de
desconotação: “eu estava curtindo uma temporada fantástica e
o mundo inteiro abria-se à minha frente porque eu não tinha
sonhos” (p.314). É por conta dessa diluição dos sentidos que,
por exemplo, a criança mexicana, simplesmente ali parada, pode
ser concebida, por eles, como a mais maravilhosa do mundo!

35 Na escritura biografemática o eu retorna (o escritor


pode falar de si mesmo), mas o eu que aparece é em forma
esquartejada. Não se trata de uma escrita sobre a vida de um
sujeito, mas de uma escrita que comporta vidas esquartejadas em
fragmentos escriturais. Fragmentos fazem o sujeito-autor vacilar,
precisamente porque o que consagra a ideia de sujeito é o seu

160 • 161
caráter de integralidade, de soberania histórico-cronológica.
Então, o escritor da escritura biografemática não precisa negar o
eu, já que este não passa de uma fazeção de conta, de um efeito, de
um vício de linguagem; uma questão de conveniência adquirida.

36 Escritores como os da geração beat mostram que, mesmo


que o escritor não seja um rei ou um homem importante, pode,
ainda assim, parecer interessante; bastando, para isso, estar
suficientemente antenado nas pequenas coisas do mundo.

37 Ainda que a escrita produza um novo real (no sentido de que


não apenas representa a realidade, mas cria-a), a geração beat
rompe com a distinção entre aquilo que se fala para os amigos,
na mesa da pastelaria ou na roda de charuto na sacada de um
pequeno apartamento, e aquilo que se escreve, cuidadosamente,
em termos literários, para todo mundo ler. Isso, justamente,
porque a escritura biografemática (exercitada por esses escritores)
rompe com a distinção entre a vida e a literatura.

38 Kerouac é um homem que cata arames em armazéns


abandonados para fazê-los de grelha para as suas torradas,
e faz desjejuns em lanchonetes que o cozinheiro chinês usa a
água da fervura dos panos de prato. Isso, exclusivamente, para
poupar alguns centavos. Mas, por outro lado, compra um sorvete
toda vez que está a fim de curtir, e oferece alguns dólares para
vagabundos sedentos divertirem-se.

39 Nos dias de hoje, alguém andando na rua e cantando só


pode mesmo ser um mendigo; mas na França de Kerouac, esse
alguém pode facilmente ser um militar longe de sua família, um
escritor embriagado ou um alguém que pode ser abordado para
conversar sobre música e literatura.
40 Admite-se que, em Incidentes, Barthes (2004) escreva sobre
a sua vida, ou que Kerouac, em seus diferentes livros, também
faça isso; e que ao fazê-las atualizam as suas memórias em
palavras. Mas, ao mesmo tempo, concorda-se com Deleuze
(2006, p.136) que “atualizar-se é diferenciar-se”: ao atualizar
as suas memórias, Barthes ou Kerouac diferenciam os fatos
vividos dos acontecimentos descritos. Ao atualizar, Barthes e
Kerouac diferenciam-se de si mesmos; Barthes reinventa um
novo Barthes, Kerouac reinventa um novo Kerouac. Em outros
termos, a escritura é sempre criadora em relação à sua matéria.

41 Conforme Deleuze (2006, p.69), todo platonismo “é do-


minado pela ideia de uma distinção a ser feita entre ‘a
coisa mesma’ [o original] e os simulacros”. Trata-se de um
empreendimento filosófico que tende a subordinar os segundos
à primeira. O sistema envolve um original (a Ideia) e as suas
variações (simples opiniões que apenas expressam maneiras
confusas de pensar o original). Para reverter o platonismo,
Deleuze (p.69) dá a dica: reverter o platonismo implica em
“recusar o primado de um original sobre a cópia, de um
modelo sobre a imagem”. Para que isso aconteça, é preciso
“que as diferenças de intensidade entrem em comunicação. É
preciso como que um ‘diferenciador’ da diferença, que reporta
o diferente ao diferente. Cabe esse papel ao que denominamos
precursor sombrio” (p.132, 133). O sistema escritural seria este:
1) a vida de um autor é uma série (séries de séries ao infinito);
2) o sombrio é o biografólogo trazendo uma série outra; 3) a
nova série que transborda dessa comunicação é o biografema.

42 Modelo e cópia na lógica platônica: o modelo goza de uma


identidade originária superior; a cópia é julgada segundo uma
semelhança interior derivada. A diferença acaba aparecendo

162 • 163
apenas depois, somente podendo ser pensada a partir da
identidade e da semelhança. Segundo Deleuze (2006, p.121),
“a distinção modelo-cópia existe apenas para fundar e aplicar
a distinção cópia-simulacro, pois as cópias são justificadas,
salvas, selecionadas em nome da identidade do modelo e graças
a sua semelhança interior com este modelo ideal”. A noção
de modelo (os fatos da “vida real”) seleciona as boas imagens,
aquelas que se assemelham a ela (as biografias), e elimina as
más, os simulacros (biografemas). É por conta dessa lógica que o
empreendimento biografemático fica marginalizado e concebido
como imponderado, aloucado e irresponsável.

43 A representação não basta à escritura biografemática,


a criação é necessária: a diferença não se dá em função de
diferentes sujeitos que vêem a coisa. É a própria coisa que não
existe como coisa; ela somente existe como puro simulacro. Não
é uma questão de representação infinita: a representação infinita
apenas multiplica os pontos de vista, mas ainda assim conserva
o objeto estático e sagrado. É por isso que o perspectivismo não
pode se reduzir à multiplicação de pontos de vista; é preciso que
cada perspectiva seja uma obra autônoma (DELEUZE, 2006,
p.71), no sentido de valer por si mesma.

44 Pode-se dizer que Nietzsche, personagem conceitual de


Deleuze, é aquilo que permaneceu, em Deleuze, da obra
produzida em nome do sujeito alemão que morreu em 1900.
Quando se faz anedotas envolvendo a liga das meias de Kant,
o gosto de Spinoza pelos combates de aranhas, não se está
remetendo “simplesmente a um tipo social ou mesmo psicológico
de um filósofo (...). Elas manifestam, antes, os personagens
conceituais que o habitam” (DELEUZE; GUATTARI, 1992,
p.96). Em outros termos, quando o escritor inventaria traços
biografemáticos de um autor ou de elementos de sua obra, não
está se remetendo ao sujeito, ao autor, mas, no caso da filosofia,
aos personagens conceituais que o habitam.

45 Os tipos psicossociais são os únicos que testemunham, de


fato, uma terceira pessoa (DELEUZE; GUATTARI, 1992,
p.86). Tipos psicossociais são criados quando territórios são
estabelecidos: gêneros, identidades, raças; patologias etc. O
sentido dos tipos psicossociais é, justamente, tornar perceptíveis
essas formações. O filósofo, o artista, o cientista, mas também
o advogado, o médico, o professor, são tipos psicossociais.
Eles são os sujeitos das biografias, que levam em consideração
apenas aquilo que remete à vida reduzida do tipo psicossocial.
A biografia, nesse sentido, não é uma escrita da vida, mas é
a escrita da história de um tipo psicossocial. Tudo aquilo que
não tem significado já estabelecido é desconsiderado; tudo
aquilo que transcende às percepções do vivido (conceitos, per-
ceptos, afectos) é ignorado. Entretanto, é preciso notar que
o tipo psicossocial também não se reduz ao autor, ao sujeito.
Ao mesmo tempo em que todo mundo é constituído por traços
psicossociais, ninguém, absolutamente ninguém, é um tipo
psicossocial. Talvez o maior problema das biografias esteja
na sua ingenuidade: ela escreve sobre um tipo psicossocial como
se estivesse escrevendo, de fato, sobre um verdadeiro autor.

Referências
BARTHES, Roland. Incidentes. (Trad. Júlio Castañon Guimarães.)
São Paulo: Martins Fontes, 2004.

BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. (Trad. Mário Laranjeira.)


São Paulo: Martins Fontes, 2005a.

164 • 165
BARTHES, Roland. Preparação do Romance vol II. (Trad. Leyla-
Perrone Moysés.) São Paulo: Martins Fontes, 2005b.

BURROUGHS, William. O gato por dentro. (Trad. Edmundo


Barreiros.) Porto Alegre: L&PM, 2010.

CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem & Outras Metas. São Paulo:


Perspectiva, 2006.

DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. (Trad. Luiz Orlandi e


Roberto Machado.) Rio de Janeiro: Graal, 2006.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura


menor. (Trad. Júlio Castañon Guimarães.) Rio de Janeiro: Imago, 1977.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? (Trad.


Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz.) Rio de Janeiro: 34, 1992.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC,


2008.

KEROUAC, Jack. Satori em Paris. (Trad. Lúcia Brito.) Porto Alegre:


L&PM, 2010a.

KEROUAC, Jack. On the road. (Trad. Eduardo Bueno.) Porto Alegre:


L&PM, 2010b.

KEROUAC, Jack. Viajante solitário. (Trad. Eduardo Bueno.) Porto


Alegre: L&PM, 2011.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Lição de casa. In: BARTHES, Roland.


Aula. São Paulo: Cultrix, 2007, p. 49-95.

PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido vol I. No caminho de


Swann. (Trad. Mário Quintana.) Rio de Janeiro: Globo, 1967.

WILLER, Claudio. Geração beat. Porto Alegre: L&PM, 2009.


Viagens Guardadas,
uma autobiografemática
Betina Frichmann
VIAGENS GUARDADAS, UMA
AUTOBIOGRAFEMÁTICA
Betina Frichmann

A SENSAÇÃO TEM LÓGICA?

Biografia, biografemática, autobiografemática. Um choque


no encontro entre vidas minúsculas e pontos secretos revirados
em gavetas fechadas. Uma escrita do eu sobre eu com dados
coletados na não rotina de emoções, no espaço entre fronteiras,
história e ficção. Um texto que se propõe inventar uma perspectiva
a partir da observação da vida e esta como criação. Assuntos
foscos tomam outra dimensão. Vida e arte em simbiose. Procura
por um tempo acronológico que desacomoda e pulsa o pensar.
Um tempoarte. Um temposensação.

PROCEDIMENTOS PARA
FORJAR AUTOBIOGRAFEMAS
personagemautortextoimagem

CRIAÇÃO DO ESPAÇO BIOGRAFEMÁTICO. Bio,


autobio. Grafema. Amor, se deixar afetar. Querer ser outro,
experimentar outro, ser outro. Distanciar, silenciar. Então
anuncie, desdobre. Quem pode criar tipo? Quem quer ser outro?

biografemática na educação: vidarbos 169


– O autor de autobiografemas! “Na ponta de tudo isso o EU,
pronome universal, nome daquilo que não tem relação com um
rosto. Personagem de fantasia.” (VALÉRY, 1998, p.7). Pintar
biografemas exige do personagem mais que um personagem de
história, tem que ser concebido. O caráter é plástico, também
pode ser lírico, romântico, realista, sentimental. Para o autor
de autobiografemas, o olhar pode exceder visão e conhecimento
se visto com os olhos dos outros. Ele tenta a troca de pele
repetidas vezes. A vida é arte. Nada de confissões. É escrita.
Um ato de consciência. Na fronteira entre o autor e a expressão
do personagem, entre o autor e o herói. Necessita de uma
linguagem descentralizada da vida, em quatro movimentos:
interação, sintonia, apropriação e afecção e este último como a
força motriz .
PARA A COLETA DE DADOS, encontrar nas vidas clarões
de emoções, aquilo que dissolve vínculos de rotina. Sair do
pensamento como pensamento de verdade. Delirar com o louco,
com o maldito e transpor o tempo além do vivido e ao mesmo
tempo aquém da autocriação. Analogias, a humanidade é
condenada a analogias. Quem está salvo da cópia? Anamorfose,
autonímia. “A cópia enigmática reproduz e envolve, ela perturba
o encadeamento infinito das réplicas” (BARTHES, 2003, p.56).
Acumular resumo sobre resumo.
Escrever sobre si, escrever autobiografemas não é
necessariamente uma escrita da verdade, uma imitação, mas
uma expressão de vidas anteriores. “Escrever sobre si pode
parecer uma ideia pretensiosa, mas é também uma ideia simples:
simples como uma ideia de suicídio” (BARTHES, 2003, p.72).
Construir, destruir, criar e escrevo. Escrever, reescrever, escrever,
viver. Um modo e viver. Linhas, círculos, voltas, revoltas,
retornos. A ficção em outra volta da espiral da criação. Doxa
e paradoxo; estereótipo e inovação; cansaço e frescor; gosto e

170 • 171
desgosto. Quebra, partida, sacudida, deslocamento, forjar um
espaço no racionalismo para a semente do desejo, é então que
surge o texto.
ESCRITURA, ESCRITOR, ESCRIATURA. A escritura
começa pelo estilo. Estilo é, de certa maneira, o começo da
escritura: mesmo timidamente, oferecendo-se a grandes riscos
de recuperação, ele prepara o reino do significante. O escritor
é um doador de sentidos: sua tarefa, seu gozo consiste em dar
sentidos, nomes, e ele só pode se houver paradigma. Ele quer
fazer imagem. Fazer imagem de quando em quando. O texto é
uma utopia; função semântica é fazer significar a literatura, arte,
linguagem.
PROCEDIMENTO, PROCESSO. IMAGEM, ESPAÇO,
TEMPO. O método não é determinado a priori, nem inde-
pendentemente da sua aplicação. Pode ser desenvolvido em
operações efetivas, que o fazem à medida que se fazem. Enquanto
percurso de conhecimento é criação e não descoberta; se produz
algum saber, este nada mais é do que uma perspectiva entre
outras e não o conhecimento único sobre a realidade. Opera
então, a disseminação dos textos da cultura, por meio de fórmulas
irreconhecíveis, bem como a ostentação de textos nômades, para
desligá-los dos sentidos biográficos e bibliográficos já recebidos.
Como se esgota o possível? A combinatória entre nome e
objeto construiria a metalinguagem. Uma língua tão especial
que as palavras dão ao possível uma realidade. Uma realidade
própria, menor. Uma língua dos nomes. Que passa por uma
metalinguagem. E não é mais a dos nomes, mas uma língua das
vozes, fluxos misturáveis. Os outros. Imagens sonantes. Silêncio.
Imagens visuais e imagens sonoras. A imagem como processo,
o espaço. A imagem não é mais objeto, é processo, imagens
sonantes, colorantes. Imagem depende da sensação. Imagem é
aquilo que não vemos. É necessário abrir os poros.
AUTOBIOGRAFEMAS
CONFISSÕES DE DENTRO
Gosto por sabores. Desejo por amores. Atração por diferen-
ças.
“Tudo isso deve ser considerado dito por uma personagem
de romance” (BARTHES, 2003, p.13).

1. A festa

Os anfitriões se preparam para a recepção.


As flores: Ah! Que maravilha pensar na sensação de vestir o que
se quer usar. Quando tu colocas o vestido de florzinhas, o que
queres dizer com isso? Já és uma moça, vestidos de florzinhas
não combinam contigo. Vamos colocar as flores nos vasos.
As flores do teu vestido parecem cheirar como lírios.
Eu não gosto de lírios, me lembram fatos que quero esquecer.

2. Semmelknoedel (Bolinhos de semolina)


O sol aquece e tudo é muito diferente. As cores vibram, a sombra
aparece e fora dela tudo reluz. Observar as sombras, perceber a
luz, Kafka.
Fazia frio de rachar a pele quando chegou ao seu destino no fim
da tarde.
A ponte Karluv Most escorregava pelo tempo.
Pensava em Kafka, sentia Kafka.
Queria comer, tinha dificuldades com a língua.
Desejava sopa de legumes com Semmelknoedel.
Para comer não era preciso se entender com as palavras, bastavam
alguns gemidos e olhares de digestão.

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3. Sopa de lentilhas

Costurar caminhos, emendar histórias.


Viagem de carro, silêncio.
Hora do almoço: sopa de lentilhas.
É tempo.
Tem hora para acabar, por isso acelerar. Passado, presente,
história-memória.
África, Índia?
O que interessa?
Eu sofro de saudade.

4. Sobremesa: WAFFLES da Eugênia


Cheiros e sabores, fragmentos de memória.
Fases do tempo, conexões sem nexo, convexo.
Lembranças captadas em flashes, luzes se destacam na escuridão.
Esquecimento.
Fotografia.
Refazer, recortar e reencontrar Eugênia.
Waffles.
A lembrança tem imagens que alimentam a imaginação na
realidade.
É hora de fazer escolhas, agrupar palavras, compor fragmentos.
É hora de aquecer o creme de frutas vermelhas.
Os convivas esperam pela sobremesa.

5. Café. Cointreau.
Paginas em branco.
Vida rabiscada.
Fotos reproduzem espelhos com as moscas, rondando.
Cálice de licor.
É cedo.
Olhares vizinhos.
Atenção ao amor, paixão.
Surpresa, poder.
Casos perdidos.
Cointreau às 22h é tarde.
Vazio, ruminação.
Delírios da realidade.
Vida a dois.
Anos a fio.
Envelhecer, crescer, maturar.
Que ordem é essa?
Depois é que se envelhece ou se envelhece no crescimento?

6. Lanche com Platão


Tramezzini, sanduíche italiano.
Pan de miga,sanduíche uruguaio.
Tramezzini soa como trampolim.
Saber separar o profissional do pessoal.
Isto quase...
Isto é, quase.
Quase o quê? Quase sempre? Quase não adianta.
Chegar e ficar resolve.
Velocidade nas palavras.
Irracional. Azul. Céu nublado, cheiro suado.
Pele vermelha.
Saco dependurado.
Ar fresco.
Pé no gesso.
Se desmanchar no amor, na ilusão de Platão.
De novo: immer wieder, immer weiter – sempre de novo, sempre
adiante.

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Sr Yldiz veio, Sr Yildiz foi.
Sr Rossi veio, Sr Rossi foi.
E eu fico, fico na espera da troca de amor.

7. Registro, fotografia. Café turco.

Aqui estou a me olhar através da janela.


Bem enquadrada na fotografia encontrada em caixotes de
viagem.
Vejo uma mesa encostada na parede.
Vejo para além da imagem registrada.
Vejo-me escrevendo saudade.
Vejo no registro sentimentos escondidos.
Preciso de café turco para aquecer o corpo.
O vento invade o ambiente ambivalente.

8. De manhã –O sonho acordado.

Só o olhar da experiência vê o olhar da experiência que passa.


Exercício da manhã. Extenuante.
Aula. Exercício de manhã.
Dia bom. Bom para comer peras ao rio Elba.
Sinal de primavera.
Flor de primavera.
Na praça a lembrança das peras.
Do albergue pra Chemnitz, 9h52min.
Perdi no minuto.
A cidade se desfaz pra mim.
Telefone para o mundo, para o meu outro mundo.
Acordo, chega de albergue.
Quero errar por aí.
Vender o trabalho, servir frutas vermelhas.
Tomar banho de sol.
Romântico?

9. Pré-pintura
O sol esquenta e tudo é muito diferente. Inverno.
As árvores peladas são desenhos no firmamento disforme.
Marrom, cinza, verde inferno.
O que é preciso fazer antes de desenhar?
Descobrir, raspar.
Castelos perdidos, ruínas.
Torres com relógios.
Ponta aguda que aponta para o momento do recorte.
Do corte, da direção, do sentido que se sentiu atraído por uma
sensação anterior.
Mensagem do além. Mensagem do aqui.
Inspiração que baixa, o clichê que conta.
Uma piscina afunda.
A tela em branco esvazia.

10. Café passado.

Vagão-café.
A paisagem roda como ventania.
O tempo corre, paro para tomar café com balanço.
Sento de revés.
As folhas voltam. O tempo volta.
É tirada a poeira do esquecido.
Fantasias murchas de carnaval.
Chove, as crianças atuam. Ilusão real, ilusão na realidade.
Isso pode, isso é clichê.
Ser feliz e mais nada, como pode?

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Clichê.
É preciso agradar.
Retórica.

11. De tarde. A mala da falecida

Objetos de infância.
Não escolho quais quero amar.
Sou atraída por eles.
Vão surgindo, mas na hora de segurá-los no papel, escorregam
como sabão.
Sinto meu corpo à milhão.
Anágua ou Manágua. Como?
Hoje é continuação de ontem, simples assim.
É hora de descansar, mas o relógio ainda não chegou.
Sofrimento, persistência, errância, acertância.
Brincadeira de mau gosto.

A FESTA DA IDEIA! CRIAÇÃO?


VIDACRIAÇÃO. O ARTISTA.
ANTES E DEPOIS DA IDEIA.
ATO DE CRIAÇÃO.
Escolher, engolir, digerir e quem sabe, criar. Tempo, espaço,
superfície. Meio do caminho. Fragmentos de criação. Formas
disformes. Dar nome às coisas. Imprevisível. Há direção, previsão
imprevisível, possível. Um cardápio novo, totalmente novo? Não
daria certo, não é possível. O novo precisa do velho, da mistura
tradicional para os waffles da vovó, por exemplo. O exercício da
criação exige trabalho efetivo, porque existe a criação de uma
obra, um objeto. Fazer da vida uma obra de arte não é balela.
Como criar, qual posição tomar? Neste caso, o mais importante
é se colocar atento para um processo que intenta levar à criação,
redirecionar a energia para raspar da cabeça a decisão de ter
uma ideia digna da arte da deformação. O processo faz parte
do procedimento que pode dar condições de ter uma ideia. O
processo está ligado ao desejo, necessidade de exercitar a arte,
inventar procedimentos artísticos. O artista não trabalha por
prazer, mas por força, por repetição, por desejo, por necessidade.
A arte exige tempo, preparação, ensaio. Tudo isso para que se
tenha um momento de criação, de atenção, pois a percepção ou
intuição, ou presença, ou, ou, ou seja, o que for o instante da
ideia, pois ao mesmo tempo em que aparece se esvai. Antes
da ideia, o ato de ter uma ideia independe do eu, é um anti-
Eu. Precisamos de tensão vaga, errância, concentração partida,
distração que desloca o foco. Depois da ideia vem o fazer de um
trabalho de composição, contato com a matéria em criação e
encontrar a sua virtualidade intrínseca. Trabalhar a ideia para
dar corpo, para dar consistência de expressão à ideia. O ato de
criação acontece antes e vai até depois da festa de ter uma ideia.
Insisto na composição autobiografemática como uma prática
artística, que possibilita processos de individuação e modos de
pensamento atentos aos devires deste método imanente. Vejo
a arte como produtora de vários processos e é no plano da
composição artística que se conserva a sensação. “O pintor não
pinta sobre uma tela virgem, nem o escritor escreve sobre uma
página em branco, mas a página ou a tela estão de tal maneira
coberta de clichês preexistentes, preestabelecidos que é preciso,
de início, apagar, limpar, laminar, mesmo estraçalhar para fazer
passar uma corrente de ar, saída do caos, que nos traga a visão”.
(DELEUZE, 1992 p.261). Furar a estrutura e deixar pingar a
tinta.

178 • 179
Referências
BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. (Trad. Leyla
Perrone-Moisés.) São Paulo: Estação Liberdade, 2003.

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. O que é filosofia? (Trad.


Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz.) Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

VALÉRY, Paul. Introdução ao método de Leonardo da Vinci. (Trad.


Geraldo Gérson de Souza.) São Paulo: Ed. 34, 1998.
Vida-obra. Obravida. Vid’obra. Obra d’vida.
Obr’ida. Vida-obra. Que diabo. Vidarbo.
POSFÁCIO
VIDA-OBRA. OBRAVIDA. VID’OBRA. OBRA
D’VIDA. OBR’IDA. VIDA-OBRA. QUE DIABO.
VIDARBO.

Circulação igual dos códigos com os quais se escrevem ao


mesmo tempo nossos livros e nossa vida.
Viver como quem escreve.
Escrever vivendo.
Viver escrevendo.
Re-viver.
Re-finar.
Pensar a biografia contra a biografia.
Fluido.
Elipse.
Mistério.
Inteligibilidade do desejo.
Metáfora infinita.
Geologia de escrituras psicológicas.
Fabulação de gostos, des-gostos, descobertas, sensibilidade,
estados d’alma, imagens, poses, figuras, músicas, afectos.
Como é, Para Mim – o que não fala, sem alegar a si
mesmo, condenado ao exílio da Generalidade.
Transliteração: mudar o livro é mudar a vida.
Cenografia espaço-temporal.

biografemática na educação: vidarbos 183


Nos passeios da Vida, aparição de Temas.
Nos passeios das Palavras, aparição de Personagens.
Ações que se pode tocar, na retina.
Aromas ávidos no ar.
Prazeres intensos.
Pensares apanhados.
Quereres guardados.
Sentires desovados.
Na Magia de ler, fascínio de limites se rompendo.
Voz do Sujeito-de-Escritura: escrever o que não pôde dizer.
Grãos de sentidos, na pele do Eu-de-Papel, após travessia
do deserto, caminhada à beira-mar.
Nossos mares se molham e espantam as securas que os dias
nos trazem.
Cruel desafio à interpretação.
Fundos de Silêncio.
Habitante dos Interstícios.
Assombrado.
Sem economia de Bem e Mal.
Não-lucro.
Luxo terno e suntuoso de uma escritura absolutamente
livre, em que não há um único átomo morto, invulnerável de
tanta graça.
Pulsão por des-formas.
Breves.
Têm o comprimento e o impulso da linha (essa idéia
vestimentar).
Non multa, sed multum (pouco em quantidade, muito em
qualidade).
Radicalização na preparação.
Sem salvaguarda.

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Munição impaciente.
Anarquicamente debochada.
Ervinhas frescas.
Atravessar, navegar, saltar: e pronto.
Corda bamba, sem sombrinha, embriagado.
Pronto.
Cair.
Se for o caso.
Pronto.
Ver, sentir, amar, odiar, chorar, ter cefaléia, sede, fome,
saudade.
Avaliar valor dos largados.
Desgarrados.
Simulacro de Romance.
Romanesco Anamnésico.
Fresco, simples, sedoso, leve, sensível, justo, inteligente,
desejável, forte, rico.
Hábitos, manias, vícios: contestados.
Paixão por perturbação, motilidade, leveza.
Sem pessoa.
Caleidoscópio insólito.
Estranho dissonante.
Profunda amoralidade.
Conta-dor de histórias.
Linguaja-dor de si.
Faze-dor de jogo.
Gagueja-dor de língua.
Bolas de emoção.
Roçadela.
Fricção.
Isso granula, isso acaricia, isso raspa, isso corta: isso frui.
Como se vê, a Biografemática inunda vidas. Minha. Tua.
Deles. Nossas.
Fundos de interstícios. Estranhas dissonantes vidas e obras.

Por tudo isso, este livro colocou no topo justamente aquelas


vidarbos que são capazes da risada de ouro: rir de maneira nova
e sobre-humana – e à custa de todas as coisas sérias. É porque
os deuses gostam de gracejos. Parece que, mesmo em textos
acadêmico-científicos, os deuses não deixam de rir.

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SOBRE OS AUTORES

SANDRA MARA CORAZZA


Biografias
Licenciada em Filosofia. Professora da Faculdade de Educação da UFRGS. Pesquisadora do
CNPq, CAPES e FAPERGS.
Biografemas
Considera bizarra a espécie humana. Intriga-se que bípedes criem. Mas, pensa: poderia ser pior...

MARCOS DA ROCHA OLIVEIRA


Biografias
Licenciado em Pedagogia, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS.
Biografemas
Dizem mudar de cor, a cada vez. Ao certo, apenas, que de um pequeno bloco roubou seu traço.
Restam-lhe dois cotovelos.

MÁXIMO DANIEL LAMELA ADÓ


Biografias
Licenciado em Ciências Sociais e Mestre em Literatuta (UFSC). Doutor em Educação (UFRGS)
Pós-Doutorando em Educação na UFRGS, Bolsista PDJ do CNPq.
Biografemas
Como um Senhor Teste às avessas, acredita que a melhor frase para começar um livro
autobiográfico seria: A tolice é meu forte.

BETINA FRICHMANN
Biografias
Bacharel em Artes Visuais (UFRGS). Mestra em Educação (UFRGS).
Biografemas
Sensação. Abro a gaveta, os anjos tocam seus sinos. procuro um som para ser. Eu. Nem morte,
nem vida. Nem lua. Sobre a terra, eu, carne.

CRISTIANO BEDIN DA COSTA


Biografias
Graduado em Psicologia (UFSM). Doutor em Educação (UFRGS). Docente no Centro
Universitário Univates.
Biografemas
Palimpséstico, ele é Bukowski gritando eu sou Bandini, Arturo Bandini.

GABRIEL SAUSEN FEIL


Biografias
Graduado em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda. Mestre e doutor em Educação.
Professor do Campus São Borja da UNIPAMPA.
Biografemas
Quando criança costumava cheirar panos. Quando jovem, em seu quarto de estudante, inventava
procedimentos para quase todas as atividades cotidianas. Hoje passa a vida fazendo listas.

LUCIANO BEDIN DA COSTA


Biografias
Professor de Psicologia na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 
Biografemas
Verdadeiramente perdido no escravizante êxtase. Cheio de costelas, coração, corpo, esqueleto,
pernas, cabeça, espaço. Um homem protegido por pombos, aço e frescor.
supernovaedit@gmail.com
Porto Alegre/RS – Fone: (51) 3386 1984

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