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Minha vida depois

de Lola Arias

Tradução: Carolina Virgüez

À direita, uma mesa comprida. Sobre ela, uma câmera num tripé e vários objetos
pessoais (fotos, mapas, carros em miniatura, um santo negro, etc.). Ao longo da peça, os
atores colocarão na frente da câmera os objetos que serão projetados numa tela grande
que descerá no meio do palco, dividindo-o em dois planos: frente e trás.
À esquerda, uma fileira longa de cadeiras de todas as épocas e uma guitarra com um
amplificador.
No fundo do palco, uma bateria e um praticável alto de onde se jogam os atores.

PRÓLOGO:

Caem roupas do teto sobre o palco vazio. No meio de um monte de roupa, cai também
Liza. Levanta-se no meio da montanha de roupa, pega uma calça jeans e caminha para
frente com as mãos nos bolsos.

Liza:
Quando eu tinha sete anos, vestia a roupa da minha mãe e caminhava pela casa pisando
no vestido, como se fosse uma rainha em miniatura. Vinte anos depois acho uma calça
jeans anos setenta da minha mãe que é exatamente do meu tamanho. Visto a calça e
começo a caminhar em direção ao passado.
Numa avenida, encontro meus pais quando eram jovens. Eu jovem e eles jovens vamos
dar um passeio de moto por Buenos Aires. Meu pai na frente, minha mãe atrás e logo
depois eu, com o vento batendo tão forte no meu rosto como se quisesse apagá-lo.

Um ventilador é ligado e emaranha o cabelo de Liza. Liza toca guitarra. Entram todos os
demais e começam a misturar e experimentar as roupas. Aos poucos começam a jogá-las
pro ar.

Capítulo 1. O DIA EM QUE NASCI.

Blas sai da confusão com um pedaço de giz na mão e faz uma linha histórica no chão do
palco. Escreve 1972, 1974, 1975, 1976, 1981, 1983. Todos os atores se aproximam, e
cada um se posiciona no ano em que nasceu.

Mariano:
1972. Um avião bate nos Andes com jogadores de rúgbi uruguaios que, para sobreviver,
comem os companheiros de voo que morreram. Três dias depois eu nasço. Meu pai ama
os carros e a política.

Vanina:
1974. Morre Perón e eu nasço após um parto de 14 horas. Sou um bebê em miniatura
com uns olhos enormes. Meu avô era guarda-costas de Perón e meu pai policial de
inteligência.

Blas:
1975. A nave Viking é lançada a Marte e eu nasço na cidade de La Plata. Meu pai tinha
sido padre e dizia que no seminário não era permitido pertencer a nenhum partido político,
com exceção ao de Deus.

Carla:
1976. É declarado o Golpe militar e, um mês depois, eu nasço. Sou um bebê muito
rebelde. Minha mãe decide me chamar de Carla, por causa do meu pai, Carlos, que era
sargento do Exército Revolucionário do Povo.

Liza:
1981. Quase nasci num elevador, na Cidade do México. Naquela época, meus pais
estavam morando lá, trabalhando como jornalistas. Sete anos antes tiveram de exilar-se,
porque a Aliança Anticomunista Argentina os perseguia.

Pablo:
1983. A democracia está de volta. Nasce meu irmão gêmeo e, dez minutos depois, eu
nasço. Minha mãe, para poder diferenciar a gente, põe num uma fitinha vermelha, e no
outro uma azul: azul peronista e vermelho radical. Mas meus pais não se interessam por
política e trabalham no Banco Municipal de La Plata.

FOTOS DE INFÂNCIA

A tela desce no meio do palco e, da mesa de trabalho, são projetadas fotos de Vanina.
Em cena, Blas manipula as fotos, escreve sobre elas e as corta com uma tesoura.

Vanina:
Esse e o álbum de fotos da minha infância.

1976. Meu tio, meu avô e meu pai. Todos policiais. Têm cara de policiais, bigode de
policiais, atitude de policiais. Meu pai nunca usava uniforme porque era um policial de
inteligência e vivia disfarçado. Lá embaixo estou eu, atrás do meu bolo de aniversário,
com uma linha esquisita que está cortando minha cabeça.

1978. Eu aos três anos olhando para minha mãe dando banho no meu irmão. Na foto dá
para ver que estou feliz, mas confusa. Não entendo bem de onde surgiu meu irmão
porque não me lembro de ter visto a minha mãe grávida.

1980. Eu e meu irmão abraçados. Ele é a pessoa que mais amo da minha família.
Sempre fomos muito parecidos: olhos verdes, cabelos castanhos, e até o mesmo sorriso,
mas faz cinco anos que ficamos sabendo que não somos irmãos de sangue.

1982. Eu fantasiada de mulher maravilha. A ideia dessa fantasia foi do meu pai, e com ela
ganhei o concurso de fantasias. Estou com a tiara, o cinto e a capa com estrelas. Mas
como não tínhamos dinheiro para as botas vermelhas de super-herói, me colocaram umas
meias vermelhas feitas de toalha.
1983. Meu pai e eu num trampolim. Sempre que olho para essa foto me pergunto por que
ele fica do lado mais seguro e me deixa na beirinha. Parece que eu estava quase caindo.

AS COISAS DO MEU PAI.

Entra Mariano e Blas manipula objetos e fotos na frente da câmera.

Mariano.
Carros em miniatura.
Esse é o Bugatti Type 35C que meu pai me deu de presente quando eu tinha três anos.
Meu pai consertava e colecionava carros antigos em sua oficina.
Nos anos setenta meus pais começam a militar na Juventude Peronista. Minha mãe deixa
a militância quando fica grávida de mim e meu pai colabora com ações armadas. Esconde
armas dentro dos carros na oficina. Quando a polícia revistava os carros, procurava
debaixo dos bancos, dentro da mala ou no porta-luvas, mas não achavam nada porque as
armas estavam escondidas embaixo do carro, no chassi.

Revista Adán. Outubro de 1967. Nessa revista tinha propagandas de TV, homens de estilo
greco-latino de pijama, arte contemporânea de reminiscência protoafricana, Raquel Welch
em roupa de baixo e artigos como esse que meu pai escreveu. Chama-se
AUTOBIOGRÁFICA, e nele meu pai escreve sobre sua vida e sobre os automóveis. Por
isso é AUTO... BIOGRÁFICA.

Meu pai na redação da revista Parabrisas, onde trabalhava escrevendo sobre carros. Ele
sempre usou uns óculos enormes porque enxergava muito mal, como eu. Nessa foto ele
está com a mesma idade que eu tenho agora, e quando olho para ele parece que estou
me vendo num espelho.

1970. Acampamento na Patagônia. Quatro anos depois dessa foto. Na foto parece mais
jovem por causa da militância. Não é mais o mesmo homem da redação.
Deixa crescer o cabelo, troca os óculos por uns de lentes escuras, deixa crescer a barba,
não usa mais gravata, começa a usar roupa menos formal. Mas a postura é sempre a
mesma, sempre muito relaxado, como se não se preocupasse com nada.

RELÍQUIAS DO MEU PAI.

Blas fala e Liza coloca na frente da câmera os objetos que estão em cima da mesa de
trabalho.

Blas:
São Benedito, um dos poucos santos negros. Meu pai decidiu que queria ser padre
quando tinha 13 anos. Ele gostava muito de ir à igreja porque o padre Pedro tinha um
projetor enorme e aos domingos, depois da missa, passava filmes de cowboys. Quando
meu pai entrou no seminário era muito menino ainda, e toda noite, quando tinha medo,
ficava abraçado a essa estatueta até conseguir dormir.

Esse é o santinho que meu pai recebeu no dia em que entrou no seminário.
Meu pai conta que os padres do seminário eram muito rígidos com ele e com seus
colegas. Colocavam pedras na boca deles para que aprendessem a falar alto nos
sermões, e tinham os joelhos em carne viva porque ficavam muitas horas ajoelhados
rezando.

Esse é o missal de meu pai. Meu pai nunca foi jovem, desde bebê tinha cara de adulto.
Nunca ficou bêbado, não teve namoradas, não foi rebelde. Passou a juventude estudando
as sagradas escrituras e rezando com esse missal.

Em primeiro plano uma menina com a mão na boca, e atrás meu pai quando era padre,
em meio de muitas colegiais correndo. Sempre que olho para essa foto me pergunto:
quem é aquele homem que usa chapéu preto? Para mim esse homem é a morte que veio
buscá-lo, mas que no último momento se arrependeu.

ARVORE GENEALÓGICA

Enquanto Pablo lê sua arvore genealógica, Blas, Mariano e Carla realizam uma
coreografia estranha que representa, inclusive na forma, uma árvore genealógica.

Pablo:
Francisco Lugones
Ano 1580. Chega à Argentina entrando pelo Vice-reinado do Alto Peru. Conquistador e
proprietário de terras tinha oito famílias de índios yanacones a seu serviço.
Francisco Lugones se casa com Isabel Guzman e desse casamento nasce:
Juan Lugones que se radica em Santiago del Estero e se casa com Catalina Sandoval.
Deste casal nasce:
Bárbara Lugones, que se casa com Juan Vazquez de Tovar. Pouco tempo depois nasce:
Juan Vazques Lugones, que se casa com Rosa Saavedra, e deste casamento nasce:
José Lugones.
José Lugones se casa com Maria Cristina Borja e nasce:
Francisco Borja Lugones
Francisco se casa com Norma de la Cruz e desta união nasce:
Juan de la Cruz Lugones, que viaja e se radica em Tucumán
Juan de la Cruz Lugones se casa com Francisca Lopez de Guzman e nascem dois
homens: Francisco Lugones e Fernando Lugones.
Francisco Lugones se casa com Hilaria Martinez e nasce:
Germán Lugones,
que se radica em Buenos Aires, se casa com Maria Petrona Trejo e têm 8 filhos:
Hilário
Ambrosio
Julian
Manuel
Pedro Nolasco
Josefa Margarita
Toribia Ursula
Lorenzo
Julian Lugones se casa com Mercedez Arganaraz e deste casal nasce: Nicanor Lugones
Nicanor se casa com Sofia Aguilera e têm 8 filhos. Nascem:
Antonio
Arturo
Ismael
Saul
Clara
Eleodoro
e mais duas mulheres, das quais não temos os nomes.
Eleodoro era o Diretor Geral da Ferrovia. Morava na cidade de La Plata numa mansão
cujos empregados eram chineses.
Eleodoro se casa com Elena Victoria Serrantes e têm 14 filhos:
Alberto Nicanor
Ismael Eleodoro
Eduardo
Elena Teofila
Raul
Maria Laura
Dora Teofila
Alicia Marina
Raul Mario
Delia Clara
Nelly Raquel
Noemi Estella
Jose Maria
Elvira Ester
Jose Maria se casa com Corina Juana Carrara e têm 5 filhos:
Alberto Jose
Stella Maris
Ricardo German
José Maria
Guillermo Santiago
Jose Maria se casa com Liliana Haydee Luna e nascem:
Julian
Jose Martin
Andres
e eu.

Na minha árvore genealógica há generais, conquistadores, proprietários de terras, poetas,


policiais. Mas a história que sempre me impressionou foi a de Leopoldo. Leopoldo
Lugones, o poeta que se suicidou em El Tigre, teve um filho que era um policial torturador
que também se suicidou e cuja filha, assassinada na última ditadura por ser militante dos
Montoneros, teve um filho roqueiro que se suicidou em El Tigre, como seu bisavô.
Minha rama dos Lugones é a dos homens invisíveis, que não eram nem heróis, nem ricos,
nem revolucionários, nem suicidas, nem nada.

FOTOS DA JUVENTUDE.
Fotos de meus pais (quando eram jovens)

Vanina põe na frente da câmera as fotos de Liza, que serão projetadas na tela.

Liza:

1981. Minha mãe, meu pai e eu, dentro da barriga da minha mãe, na beira de uma piscina
no México. Na boca da minha mãe, grávida, um cigarro, e na sua mão esquerda um maço
de cigarros amassado e vazio.

1978. Três anos antes. Meus pais no México festejam a vitória da Argentina na Copa do
Mundo. Eu não sei por que comemoravam se sabiam que os militares tinham usado a
copa do mundo para ocultar seus crimes.
1974. Sete anos antes. Meu pai no aeroporto de Ezeiza partindo para o exílio em Cuba.
Na sua mão, uma maletinha com uma máquina de escrever. À esquerda da foto, o avião,
o futuro. À direita, a Argentina, o passado, e minha mãe, que está tirando a foto. Ele olha
para trás pela última vez.

1974. Uma semana antes de partir para o exílio meus pais se casam. Nesse momento
têm muitos companheiros militantes da guerrilha dos Montoneros ao redor, que não
querem aparecer na foto com medo de se comprometer. Meu pai, com um bigode
enorme, beija minha mãe. Como deve ser beijar alguém com um bigode tão grande?

1972. Dois anos antes. Minha mãe antes de ir ao ar no telejornal Telenoche. Seu colega,
César Masetti, está tranquilo, imperturbável. Mas nela podemos ver um gesto de dúvida,
como se não soubesse bem o que dizer. Quando era jovem, minha mãe tinha duas caras.
Por um lado, militava nos Montoneros, e por outro, era a menina bonita que dava as
notícias atrás de uma bancada.
No telejornal, muitas vezes tinha de dar as notícias distorcidas por causa da censura. Não
sei quais notícias teve de dar assim, mas quando quero pensar nisso, procuro nos jornais
da época e leio as manchetes.

Entram Carla e Pablo, vestem Liza com roupas de apresentadora de TV e a sentam numa
cadeira na frente da tela. O rosto da mãe de Liza é projetado sobre o rosto de Liza. Liza
fala como uma apresentadora de telejornal.

Boa noite, César. Boa noite, país.


AS FORÇAS ARMADAS ASSUMEM O PODER, A PRESIDENTE FOI DETIDA.
HAVERÁ PENA DE MORTE POR DELITOS DE ORDEM PÚBLICA
NUM OUTRO PLANO DE INFORMAÇÃO:
REABERTOS TEATROS E CINEMAS. TODA A FAMÍLIA PODERÁ DESFRUTAR
NOVAMENTE DOS ESPETÁCULOS PARA ADULTOS E CRIANÇAS.
UM NOVO PROGRESSO DA HUMANIDADE:
A NAVE VIKING 1 POUSOU EM MARTE E ENVIOU FOTOGRAFIAS.
O DIREITO DE GREVE FICA TEMPORARIAMENTE SUSPENSO.
UM JORNAL FOI FECHADO POR FAZER CARICATURA DE UM MILITAR.
GALINDEZ NOCAUTEOU NORIEGA NUMA LUTA CINEMATOGRÁFICA NO LUNA PARK.
ANUNCIAM O NOVO PLANO ECONÔMICO. EXPLODEM BOMBAS NO CENTRO.
SEQUESTRO DO GERENTE DA FIAT. OS SEQUESTRADORES PEDEM 3 MILHÕES DE
PESOS.
OS ESTADOS UNIDOS APOIAM A GESTÃO ARGENTINA.
UMA MULTIDÃO DE FIÉIS VENEROU SÃO CAETANO NO FIM DE SEMANA.
FORAM ENCONTRADOS 30 CADÁVERES EM PILAR.

Enquanto Liza apresenta as notícias, uma chuva de roupa cai sobre sua cabeça até cobri-
la totalmente.

MEU PAI E A GUERRILHA

Vaninha põe na frente da câmera a foto do pai da Carla.

Carla: Meu pai estudava num colégio de padres, mas mesmo assim desenhava a estrela
vermelha do Che Guevara por toda parte. Nos cadernos dele, no quadro negro, na
carteira com a ponta do compasso. Aos 19 anos começou a estudar matemática e a
militar no PRT. Depois de um tempo passou a fazer parte do Exército Revolucionário do
Povo, que era o braço armado do partido. Ali recebeu um cargo e um nome de guerra:
Sargento Beto.
Meu pai não tinha formação militar. No começo ele pegava um ônibus que o levava aos
arredores da cidade para praticar tiro nas árvores.
Mas depois foi transferido para uma das unidades que o ERP tinha em todo o país.

Liza põe na frente da câmera um mapa político da Argentina e marca com uma estrela as
unidades do ERP.

Uma unidade muito importante era a de Santa Fé. Tinha também a da Capital Federal
“Companhia Heróis de Trelew”, a de Córdoba “Os decididos de Córdoba”, e a de Tucumán
“Companhia Rosa Jimenez”, para onde ele tinha sido transferido.

Nesse momento minha mãe não pode acompanhá-lo porque estava grávida de mim, mas
mesmo assim ficou fazendo trabalhos muito importantes para o partido; principalmente,
de contrainteligência. Ela era a encarregada de manter um arquivo de todos os militantes
em microfilmes, guardados numa geladeira.

Foi ela que me contou que nas unidades o treinamento dado era tanto físico quanto
intelectual.

Os demais atores entram em cena e recebem os livros.

9h. Discussão teórica


Marx, Revolução Cubana, Revolução Vietnamita, Lênin.

Blas, Mariano, Pablo e Vanina falam, sobrepondo-se uns aos outros, os textos a seguir:

Blas: “A mercadoria é a forma elementar da riqueza nas sociedades onde impera o modo
de produção capitalista.”

Mariano: “Alguns países do mundo estão imersos na pobreza porque carecem de


recursos naturais. Não é o caso dos países latino-americanos, que possuem em
abundância os recursos para fazer rica uma nação.”

Pablo: “Segundo o Che, a guerra das guerrilhas é uma guerra do povo, uma luta de
massas.”

Vanina: “A guerra é a continuação da política por outros meios.”

Carla:
Trotar em círculos fazendo movimentos de boxe, por meia hora.

Carla dá ordens pelo megafone, e os atores fazem o treinamento físico.

Carla:
Perguntei para um companheiro do meu pai daquela época como ele descreveria meu pai
fisicamente. Ele disse que sua característica principal era “ser magro”; de fato o
chamavam de “o magro”.

150 flexões de braços


150 dorsais
150 abdominais

Ao que parece meu pai usava sapatos com as solas furadas, porque dizia que queria se
proletarizar. Minha mãe ficava muito chateada com isso porque achava que cada um tem
de servir à revolução a partir da sua própria classe social.

Corrida suicida
Corrida com obstáculo

Minha mãe vestia minissaia e usava salto alto para transportar armas porque achava que
desse jeito ninguém iria revistá-la.

150 agachamentos
150 alongamentos de quadríceps

Uma vez perguntei a minha mãe se ela tinha certeza de que meu pai havia matado
alguém. Ela respondeu que eles preferiam não falar dessas coisas.

Armado e desarmado com fuzil, escopeta Itaka, metralhadora, FAL


Tiro ao alvo
Corpo ao chão. Lento. 500 metros.

Quando meus pais casaram não foram morar numa casa própria, sempre moraram em
aparelhos do partido, com outros membros. Eram lugares de passagem. De fato, a atual
casa da minha mãe tem um ar de algo provisório, como se ela estivesse disposta a
abandoná-la a qualquer momento.

FICÇÃO CIENTIFICA

Todos ficam esgotados no chão após o treinamento. Liza começa a tocar guitarra e
cantar.

Liza:

Como num filme de ficção científica


subo numa moto, em direção ao passado
Numa cidade que não existe mais
encontro meus pais
que são tão jovens quanto eu.

Meu pai de cabelo comprido


Minha mãe rindo
E eu

Jovens se beijam
na porta de um bar,
leio revolução ou morte
escrito numa parede,
passam meninas e soldados,
há cartazes erguidos
late um cachorro,
uma multidão vai avançando

Enquanto a moto aumenta a velocidade


Enquanto a moto aumenta a velocidade

Meu pai de cabelo comprido


Minha mãe rindo
E eu

Enquanto isso os atores vão subindo a tela, movem objetos, limpam o cenário, trocam de
roupa.

Capítulo 2. REMAKES

Carla: Meu pai e seus companheiros do ERP não tinham uniforme. Usavam calça verde,
uma camisa verde, e no lugar de botinas ou tênis Adidas.

Vanina: Meu pai também não usava uniforme de policial, mas tinha um guarda-roupa
lotado de ternos azuis.

Liza: Na TV arrumavam minha mãe da cintura para cima, faziam maquiagem e penteado.
Mas na parte de baixo, como não dava para ver, contou para mim que usava sempre a
mesma calça jeans.

Mariano: Esse é o macacão original que meu pai usava nas corridas. Meu pai era mais
baixo do que eu, por isso ficou um pouco pequeno. Tem o nome dele bordado no bolso:
Horácio Speratti.

Blas: A batina do meu pai sumiu, e no teatro me deram essa, que ficou um pouco grande.

Pablo: Meu pai vestia todos os dias um terno como este. Acho que o original deve estar
tão gasto que não existe mais.

UM DIA NA VIDA DO MEU PAI

Mariano veste uma roupa de piloto de corrida e está com um carro com controle remoto;
Blas veste uma batina; e Pablo, vestido com terno, está numa escrivaninha própria de um
banco. Os três estão no centro do palco.

Mariano:
5 de abril de 1972. 7h. Levanto-me e visto o macacão de corrida. Vou à oficina para
pegar meu Bugatti. Vou para a rua.

8h. Acordo num quarto com outros trinta jovens que estudam para serem padres.
Lavamos o rosto e caminhamos todos em fila e em silêncio até a capela para rezar o
rosário da manhã.

9h. Levanto-me e visto o terno marrom. A caminho do banco compro o jornal, dou uma
folheada no caderno de política e fico lendo o caderno de esportes. Chego ao escritório e
começo a fazer o balanço diário.
11h. Todos os carros estão na linha de largada. Observo os outros corredores dentro dos
seus carros. Preparados, prontos... Foi dada a largada!

12h Na aula de filosofia, o padre nos instrui contra os perigos do comunismo. Depois
vamos todos em fila indiana para o pátio e em silêncio. É hora das atividades esportivas.

13h Termino o relatório e desço até o refeitório do banco. Meus colegas organizam uma
assembleia e eu fico pensando na casa que quero construir.

15h. Chego em terceiro lugar. Entregam-me uma taça de madeira com uma plaquinha
onde está escrito “3”.

17h Descanso. Fica suspensa a aula de teologia; mandaram embora o padre Potestad
porque ele colabora com os operários e tem namorada.

18h Volto do trabalho para casa de ônibus. As ruas estão interditadas por causa de uma
manifestação, então decido saltar e caminhar os 20 quarteirões que me separam da
minha casa.

20h Volto à oficina e deixo o carro. Reúno-me com uns companheiros da Juventude
Peronista para realizar uma ação com panfletos e pichações.

23h Somos levantados da cama porque o padre achou um jornal no meio das nossas
coisas. No seminário é proibido ler o jornal e falar de política. Como castigo, temos de
caminhar de joelhos até a capela.

Pablo:
Meu pai me contou que 4 anos depois, em 1976, houve uma intervenção no banco por
parte dos militares, e a partir desse momento transformou-se num quartel: mandaram
embora todos os funcionários que militavam politicamente, fizeram empréstimos para
seus amigos juízes e padres, que nunca foram pagos. O chefe direto do meu pai era um
militar também. Uma manhã aproximou-se da escrivaninha do meu pai e disse: “Lugones,
por que você usa barba? Meu pai disse que sempre tinha usado barba, que fazia parte da
personalidade dele; o militar então disse a ele que quem usava barba eram os terroristas,
e que se queria continuar trabalhando no banco teria de tirar a barba.
Na manhã seguinte meu pai se levantou, olhou-se por um longo tempo na frente do
espelho e tirou a barba.

O EXÍLIO

Liza:
Agora meu filme. O EXÍLIO.

Enquanto Liza está falando, os outros atores manipulam a câmera, a luz e atuam nas
cenas. Pablo segura, no meio do palco, um cartaz onde o filme é projetado.

Cena 1. 1974
Interior. Apartamento da minha mãe.

Luz de cabeceira. Minha mãe em primeiro plano, de perfil. Ao fundo meu pai, fora de foco,
com um livro na mão.
Blas:
Temos de ir embora do país.

Carla:
Por quê?

Blas:
Recebi um bilhete com uma ameaça de morte.

Liza:
Minha mãe pestaneja.

Carla pestaneja.

Blas:
Quer casar comigo?

Liza:
Ela faz cara de robô. Ele se aproxima e os dois ficam em primeiro plano, beijando-se
durante sete minutos e meio.

No ano de 1974 meu pai chega um dia à sua casa, encontra o apartamento revirado e um
bilhete assinado pela Triple A, Aliança Anticomunista Argentina, ameaçando-os de morte.
Então, meus pais decidem se casar e ir embora da Argentina.

Cena 2. 1976
Interior. Apartamento na Cidade do México.

Minha mãe e meu pai sentados numa poltrona escutam uma carta gravada em fita
cassete enviada pela família da minha mãe de Santiago del Estero.
Ação.

(Áudio da Fita I) “Turca... Olá... é muito bom poder falar com você através desta fita...
Ouvi atentamente o que você me disse, o que você me conta, suas experiências... e
sobretudo a gravidez. Pô! finalmente te emprenharam, que nem a minha porquinha...”

Durante os oito anos de exílio meus pais mandavam e recebiam cartas gravadas em fita
cassete. Como as fitas eram muito caras, gravavam a resposta na mesma fita que
escutavam e, dessa maneira, a mesma fita ia e voltava muitas vezes.

Dez minutos depois meus pais escutam uma fita cassete que meu avô paterno enviou de
Buenos Aires.

(Áudio da Fita II) “A situação do país não está normalizada... continuam armando ciladas
na sombra, matando... por outro lado, no aspecto econômico, me parece que os
prognósticos de Martinez de Hoz, ministro da Economia, não se concretizaram... a
concorrência é livre, mas os preços não baixam, sobem... as frutas estão caríssimas, a
maçã está a 10 mil pesos o quilo, as bananas também, uma dúzia de ovos está a 13 mil,
sei lá, está tudo assim, o tomate estava a 35, 40 mil pesos o quilo, (tosse) enfim, a batata
está a 8 mil pesos o quilo! E olha que a batata é um alimento de pobre, não é?, é... as
coisas estão assim”
Liza:
Agora eu!

Primeiro plano de Liza olhando para a câmera.

Cena 3. 1984
Interior. Apartamento em Once. Buenos Aires.

Eu aos três anos, em pé, na frente de uma persiana, olho através das frestas, pela
primeira vez, a cidade dos meus pais. Minha orelha em super close. Ouvem-se algumas
palavras soltas: umidade, ônibus, democracia, Avenida Córdoba, retorno.

AS MORTES DO MEU PAI

Carla:
Durante a minha vida escutei tantas versões sobre a morte do meu pai, como se meu pai
tivesse morrido várias vezes, ou não tivesse morrido nunca. Se a vida do meu pai fosse
um filme, gostaria de ser seu dublê de risco.

Os atores representam as mortes do pai de Carla de um jeito muito cru e simples.


Improvisam um carro com cadeiras e simulam armas com as próprias mãos. Caem no
chão.

Morte número 1.
Aos seis anos, minha mãe me diz que meu pai morreu num acidente de carro.

Os atores arrumam as cadeiras para representar um carro, ligam um ventilador e um


rádio. Enquanto o rádio toca, agem como se estivessem dentro de um carro. Depois
deixam cair a cabeça.

Morte número 2.
Aos 14 anos, numa reunião familiar, minha avó diz na minha frente que na verdade meu
pai morreu em 1975, em Monte Chingolo, num enfrentamento entre o ERP, Exército
Revolucionário do Povo, e os militares. O ERP queria tomar o Regimento não só para se
abastecer de armas, como também para demonstrar ao povo a força que tinha.

23 de dezembro, um dia antes da noite de natal. Meu pai e seus companheiros num carro
atrás de um caminhão com a missão de entrar no quartel. Meu pai é o copiloto. O
caminhão bate no portão e o carro avança para dentro do quartel uns 100 metros.
Descem do carro. Meu pai e seu companheiro dão dois passos. Percebe então que
centenas de militares estão esperando por eles. Pensa: um infiltrado. Alguém nos delatou.
E justo nesse momento ferem meu pai na barriga, e a seu companheiro na perna. Caem
no chão. Os demais companheiros tentam ajudá-los, mas ele, no chão, ordena que eles
se retirem dali. Pouco tempo depois morrem dessangrados.

Os atores deslocam-se no carro de cadeiras, levantam-se, apontam armas, que são seus
dedos, e se deixam cair no chão.

Morte número 3
Aos vinte anos, leio uma carta que o partido tinha enviado para minha mãe, onde dizia
que todos os feridos de Chingolo tinham sido presos e fuzilados três dias depois.

Os atores se dirigem para o fundo e se deixam cair na montanha de roupa.

As mãos dos mortos de Monte Chingolo foram cortadas para poder identificar os corpos.
Mas como era verão, fazia muito calor, mais de 35 graus, as mãos apodreceram e os
militares não puderam saber quem eram os guerrilheiros.
Se ficassem sabendo, teriam procurado minha mãe, que estava grávida de mim. Ou seja,
graças às mãos de meu pai que apodreceram, minha mãe e eu estamos vivas.

Os mais de cinquenta corpos sem mãos foram enterrados numa fossa comum no
cemitério de Avellaneda. É um retângulo de grama de 4.50 m por 5 m.

Liza marca o espaço com os pés. Mariano, com giz, marca no palco o local onde seria a
fossa comum. Carla olha para o quadrado.

Faz três anos que fiz um teste de DNA para saber se meu pai está enterrado aí. Faz uma
semana recebi o resultado e agora sei que ele está aí.

AS MIL CARAS DO MEU PAI

VANINA:
Meu pai tinha no seu armário embutido uma coleção de ternos parecidos com este, todos
azuis. Azul-elétrico, azul-frança, azul-marinho, azul-céu, azul-policial.

Vanina desloca uma arara repleta de ternos azuis e dá um terno azul para cada um dos
atores, que saem de cena.

Todas as manhãs meu pai vestia o terno e ia trabalhar com uma maletinha com remédios
e um revólver. Ele dizia para nós que vendia remédios para um laboratório.
Durante toda a minha infância, eu era a preferida do meu pai. Era a melhor aluna, a
melhor nadadora, a que o acompanhava a toda parte. Mas, quando completei 21 anos, fui
embora de casa com um olho roxo porque meu pai ficou sabendo que eu estava
apaixonada por uma menina.
E quando tinha 28 anos, meu irmão me chamou e disse que tinha muitas dúvidas se ele
pertencia ou não à família. Foi então que descobrimos que meu pai não era um vendedor
de remédios, e sim um oficial que trabalhava a serviço da inteligência, que meu irmão não
era meu irmão, e sim um bebê nascido no CENTRO CLANDESTINO DE DETENÇÃO DA
ESCOLA MECÂNICA DA ARMADA, a ESMA, filho de um casal de desaparecidos que
tinham 17 e 19 anos. Meu pai tinha roubado esse bebê porque minha mãe não podia mais
ter filhos.
A minha vida toda se transformou numa ficção. Minha mãe não é a mãe do meu irmão,
meu irmão não é meu irmão, e meu pai mostra para mim suas diferentes caras.

Luis 1, o homem que vendia remédios e que me curava da febre quando eu estava
doente.

Os atores vestidos com ternos surgem, um de cada vez, num praticável alto no fundo do
palco.

Luis 2, o policial que trabalhava no serviço de inteligência.


Luis 3, o esportista que me chamava de golfinho e que gostava de nadar comigo até
perder a praia de vista.

Luis 4, o homem que posava como um playboy em todas as fotos.

Luis 5, o homem que gostava de quebrar copos, móveis e ossos quando estava furioso.

E meu pai tinha um estranho senso de humor.


Cai a bomba nuclear. Quais são os únicos seres que conseguem sair à superfície?

Mariano: As toupeiras.

Blas: Os tatuzinhos de jardim.

Liza: As minhocas...

Vanina: As baratas e os idiotas

Silêncio

Liza: Não entendi

Vanina: Porque as baratas e os idiotas sobrevivem a tudo. Esse é o tipo de piada que
meu pai gostava de contar.

SONHOS COM MEU PAI:

Todos colocam uma longuíssima fileira de cadeiras na frente do palco e sentam-se com o
olhar perdido.

Blas: Meu pai me diz que tem que ir embora, pega um monte de balões e amarra no
corpo. Eu pergunto para onde vai e ele responde: “não vá atrás de mim, filho” e começa a
correr e eu penso que ele vai se encontrar com Deus...

Vanina: Entro no quarto do meu pai e ele está em pé no meio de muitos bebês que estão
engatinhando no chão, na mesinha de cabeceira, na cama. São 20 ou 30 bebês ruivos,
louros, morenos...

Pablo: Estou no campo, mas no lugar de grama, crescem notas de dinheiro da terra. Olho
para o meu pai e ele diz: “vem, vem, vem...” eu não sei por que, nos meus sonhos, meu
pai tem voz fininha. Eu tento ir até onde ele está, mas uma cratera profunda se abre na
terra...

Liza: É. Isso. Fundo. Vão nadando até bem fundo. Meu pai e minha mãe vão ficando
pequenininhos no mar e eu fico na praia, olhando eles nadarem. De um momento para
outro começa a se formar um redemoinho na água, que vai puxando eles para dentro.

Mariano: Estou num circo e vejo o número de um homem muito magro que está a ponto
de se jogar de um lugar muito alto para dentro de um balde com água. Quando olho bem,
percebo que esse homem é meu pai e então, lá da plateia, aceno para ele, mas ele não
me vê...
Carla: E eu vejo meu pai atravessando a rua. Ele não me vê. Tem aproximadamente 60
anos e caminha do lado de uma menina de cabelo comprido cujo rosto não consigo ver.
Estamos numa cidade estrangeira, acho que na Europa.

Blas: Então eu corro atrás do meu pai e fico pendurado na orelha dele e lhe digo para não
ir embora sem mim, para me levar junto com ele para ver Deus.

Pablo: Meu pai começa a pegar as notas do chão e coloca no bolso. Diz de novo: vem,
vem. Mas a terra se abre cada vez mais, e uma corrente começa a sair dos meus pés.
Puxo a corrente e tiro uma âncora enorme.

Liza: Estou vendo minha mãe afundar cada vez mais. Ela continua nadando e nadando
contra o redemoinho, mas no final fica muito cansada, quase não consegue mais respirar
e começa a fechar os olhos...

Vanina: Não, os bebês não estão dormindo. É que eles gostam de se mover. Alguns deles
estão esticando os braços, outros tomando mamadeira, outros dão cambalhotas no tapete
do quarto.

Mariano: Meu pai acaba de terminar o número de circo e cai perfeitamente dentro do
balde. Vou em sua direção, e nos cumprimentamos em meio aos aplausos. Então ele tira
do seu bolso um relógio muito velho, parecido com um relógio de carro...

Blas: E meu pai começa a alçar voo, não sei como começa a voar e vou pendurado nele e
estou com medo de cair, mas ao mesmo tempo estou feliz de estar voando por cima da
cidade, pendurado no pescoço do meu pai.

Carla: E começo a pensar que meu pai não morreu em Chingolo, que sempre esteve na
Europa, que tem outra família e nunca nos contou. E não consigo entender se a garota
que está com ele é a namorada ou uma filha...

Vanina: O que não entendo é por que quando tento entrar no quarto todos os bebês
começam a jogar coisas em cima de mim: mamadeiras, tênis, papel higiênico.

Liza: Da praia fico acenando para que venham onde estou. Mas eles olham para a praia e
não sabem para que lado nadar.

Carla: E já estou tão perto, quase tocando o ombro dele, virando o rosto dele, e então
acordo.

Liza: Justo no momento em que parece que meus pais vão se afogar, acordo respirando
fortemente, como se tivesse estado embaixo d’água.

Mariano: E meu pai começa a rir, e então eu acordo.

Vanina: E justo no momento em que um bebê joga um cinzeiro na direção da minha


cabeça, eu acordo...

Blas: Estamos voando a 500 km por hora quando de repente meu pai, que é uma espécie
de tartaruga voadora, atravessa o céu. Na hora em que estou a ponto de explodir de
felicidade, acordo.
Pablo: E no final do sonho, meu pai começa a ficar tão jovem que nem um bebê e me
olha como se pedisse para pegá-lo no colo. Começo a levantá-lo, e então acordo.

Todos os atores fazem um concerto de escaletas. No final, todos saem, com exceção de
Blas que fica tocando sozinho.

MEU AVÔ, MEU PAI E EU:

Pablo aparece no fundo do palco com umas botas na mão.

Meu avô, meu pai e eu tivemos vidas muito diferentes.


Meu avô cuidava de cavalos de corrida
Meu pai trabalhou a vida toda num banco
E eu sou bailarino
Mas há uma coisa que nós três temos em comum: os três gostam de dançar “malambo”.
Essas eram as botas que meu avô usava. Depois meu pai ficou com elas e agora eu.
Quando calço as botas dele para dançar é como se o tempo não tivesse passado e meu
avô, meu pai e eu nos encontrássemos no mesmo corpo.

Pablo dança “malambo” no meio das roupas.

CAPÍTULO 3. O QUE ME RESTA

Mariano: Esse é o gravador de rolo do meu pai.


Vanina: Esse é o processo de julgamento contra meu pai.
Carla: Essa é a última carta do meu pai.
Blas: Essa é a tartaruga que herdei do meu pai.
Liza: Esses são todos os livros que meu pai escreveu.
Pablo: Esse é o super 8 que filmou meu pai.

A ÚLTIMA GRAVAÇÃO DE KRAPP

Mariano pega o gravador de rolo e senta numa cadeira.

Mariano:
Num domingo, meu pai estava na oficina com seu companheiro Pirucho, quando foi
sequestrado numa operação das forças armadas. Depois disso, nunca mais soubemos
dele.
Minha mãe grávida, meu irmão de um ano e eu, que naquele momento tinha três anos,
ficamos escondidos por um tempo num apartamento em Mar del Plata. Eu não lembro se
chorei, porque não tenho muitas lembranças dessa época. Mas me lembro bem que
alguns meses depois chorei muito, quando meu cachorro Kiper morreu.
Meu filho mais velho é um pouco mais velho do que eu era na época em que meu pai
desapareceu.

Moreno!

Entra Moreno, um menino de quatro anos.

Meu pai adorava gravar vozes e música nesse gravador de rolo.


Ouve-se um trecho de A Pantera Cor de Rosa:

“Veja a lua por dez centavos...”

Logo depois, ouve-se a marcha peronista.

“Os rapazes peronistas, unidos todos triunfaremos, e como sempre daremos um grito de
coração! Viva Perón! Viva Perón...!”

Mariano:
Essa é a parte que mais gosto, meu pai dizendo meu nome.

Escuta. Ouve-se a voz do pai, que chama por ele.

Voz na fita: “Mariano... vamos lá... “Papai”, diga “papai”. Por exemplo, se eu mostrar para
você um carro... O que é isso? O que é isso? (responde a voz de Mariano menino) O
quê? Como? Um carro? Não, esse é para falar, não para ouvir. A única coisa que você
sabe é ouvir? Mariano... Mariano... O que é? Vai falar um pouquinho? Diz: Olá, olá. Olá
Mariano. Olá Mariano... Olá Ma... Mariano, tudo bem? Olá. Mariano, você está...?
Desliga... Desliga, desliga. Desliga, desliga. Força! Força! Força!

A TARTARUGA DO MEU PAI

Blas coloca a tartaruga na frente da câmera. Primeiro plano da cara da tartaruga.

Essa tartaruga se chama Pancho e nasceu no mesmo ano que meu pai. Os dois estão
morando em La Plata e têm sessenta anos. Meu pai conheceu minha mãe no altar de
uma igreja e, depois de anos de celibato, teve seis filhos homens. Pancho costuma ficar
todas as tardes embaixo da geladeira e meu pai, que deixou de ser padre e virou um
advogado, fica o dia inteiro nos corredores dos tribunais.

Ás vezes acho que meu pai vai viver cem anos, como as tartarugas. Para chegar aos
sessenta essa tartaruga sobreviveu a muitas catástrofes: em 1982 se salvou de uma
enchente muito grande que aconteceu em Chascomús; meu pai passou por cima dela
dando uma marcha à ré, mas não aconteceu nada com ela; em 2001 uma persiana caiu
em cima dela, mas ela resistiu e, no ano passado, durante os ensaios, caiu do palco, mas
não aconteceu nada com ela.
Minha mãe é astróloga e diz que as tartarugas são seres milenares que podem prever o
futuro.

Carla: Se a gente fizer uma pergunta sobre o futuro ela responde?

Blas: Claro. Faça a pergunta.

Carla: Na Argentina, no futuro, haverá uma revolução?

Blas escreve no chão SIM e NÃO, e a tartaruga caminha em direção à resposta.

Super 8

Pablo projeta o filme super 8 e caminha por trás da tela, como se fosse uma sombra
caminhando pelo seu passado.
Pablo:
A casa da minha infância.
Meus pais se conheceram trabalhando num banco e se apaixonaram.
Construíram esta casa durante mais de dez anos, mas se separaram antes de conseguir
terminá-la.

Carla: Sua mãe.

Pablo: Ela é minha mãe de cabelo curto, acho que ela usava o cabelo assim para se
sentir como um a mais no meio dos seus quatro filhos homens.

Mariano: E ela?

Pablo: Ela é a minha avó, sentava-se sempre embaixo dessa árvore de louro e dizia que
podia falar com os pássaros, ela assobiava e os pássaros respondiam.

Julián, minha mãe, Andrés, meu irmão gêmeo, eu... e meu pai por trás da câmera
filmando.

Mariano: Aonde?

Pablo: Lá.

Blas: Corte Romeu!

Pablo: É, corte Romeu, corte Romeu. Meu pai adorava fazer o mesmo corte de cabelo no
meu irmão gêmeo e em mim, corte Romeu, e também adorava vestir-nos igual. Eu odiava
isso.
Aqui está o meu irmão mais novo no carrinho. Meu pai filmou meu irmão naquela tarde
porque ele dizia que estava cantando.
Meu irmão gêmeo e eu, ou eu e o meu irmão gêmeo. Bem, para mim sempre é difícil
reconhecer quem sou eu e quem é ele nos vídeos e nas fotos. Nós nascemos quando os
radicais ganharam as eleições, e assistíamos sempre os atos públicos do presidente
Alfonsín na TV e gostávamos de imitá-lo. Naquela tarde, meu pai pediu que fizéssemos o
gesto que Alfonsín fez quando a democracia voltou.

O PROCESSO CONTRA MEU PAI:

Vanina num sofá com várias pilhas de papel ao seu redor. Tenta organizar os papéis.

Vanina: Quando meu irmão ficou sabendo que meu pai o havia roubado, iniciou um
processo. Esse processo está na justiça há cinco anos e ainda não ficou resolvido. É por
esse motivo que ainda não sabemos como meu pai conseguiu meu irmão, nem quais
eram os trabalhos que realizava como oficial da inteligência.
Faz um mês que o processo foi reaberto e uma testemunha, um ex-policial, disse que
meu pai era chefe de uma seção de Segurança Federal na qual as pessoas eram
torturadas.

Esse aqui é o processo do julgamento, tem várias partes.


Todos se aproximam e se sentam num sofá perto dela.

Mariano: Falsificação de identidade. Falsificação da certidão de nascimento. Teste de


DNA.

Blas: Dossiê de polícia.

Liza: Declaração de Mariano Andrés Falco, seu irmão.

Carla: Declaração de Luis Antônio Falco, seu pai.

Pablo: Declaração de Teresa Perrone Mackinze, sua mãe.

Sempre que falo do processo a mesma cena se repete, com as mesmas perguntas.

Blas: O que disse seu pai com relação à chegada do seu irmão bebê na sua casa?
Carla: (lê a declaração do pai) Aqui na declaração diz: “Tendo transmitido aos médicos a
nossa decisão de adotar um bebê, no dia 4 de abril de 1978 fui informado de que tinha
nascido um menino que estava em condições de ser adotado... Não hesitei em dizer à
minha mulher que nosso tão ansiado filho tinha chegado, e com o objetivo de tornar
menos traumática a situação, de forma deliberada, omiti o requerimento de dados sobre a
sua origem biológica”.

Vanina: É impossível que um oficial de inteligência não soubesse de onde provinha esse
bebê.

Carla: E sua mãe nunca perguntou de onde veio seu irmão?

Vanina: Perguntou. E ele disse que era filho de uma garota que não podia tomar conta
dele.

Pablo: Mas com que idade seu irmão começou a perceber que não era parte da família?

Liza: Aqui diz alguma coisa: Diz que já faz alguns anos que o depoente desconfiava que
não tinha vínculo biológico com Luis Antonio Falco e que também lhe chamou a atenção o
fato de existirem fotos da irmã recém nascida, da gravidez etc., enquanto que do
depoente não existiam.Quantos anos seu irmão tinha em 2003?

Vanina: 25

Liza: No ano de 2003 ele perguntou para sua mãe se era filho dela e ela confessou que
não.

Blas: E se seu pai for declarado culpado, quantos anos de cadeia ele pode pegar?

Vanina: Entre 17 e 25 anos. Há mais de dez anos que decidi não vê-lo mais, mas ele tem
por volta de sessenta.

Blas: Isso quer dizer que se for condenado pode morrer na prisão.

Vanina: O mais triste é que ele vai continuar sendo meu pai, mesmo que não queira vê-lo
nunca mais.
Mariano: E o seu irmão se chama Juan ou Mariano?

Vanina: Sua mãe biológica o chamou de Juan quando nasceu, mas meu pai colocou
Mariano, como você. Mas quando ele ficou sabendo de tudo, voltou a usar Juan. Além
disso, reencontrou sua família de sangue: tem 3 avós, 1 avô, 4 tios e 7 ou 8 primos... Mas
continua dizendo que sou irmã dele.

Blas: Como assim, tem três avós?

A ÚLTIMA CARTA.

Carla:
Meu pai escreveu essa carta para minha mãe antes de ir para Monte Chingolo. Ficou
escondida durante vinte anos dentro de uma boneca de pano. Um dia fiquei com vontade
de ler, e minha tia e eu esquartejamos bonecas até encontrá-la.

“Minha querida companheira: já faz quase um mês que não nos vemos. É a primeira vez
que ficamos separados por tanto tempo. Realmente estou com saudades de você. Como
está o nosso pequeno? O que você está sentindo? Conte para mim se está se
mexendo...”

Estou na barriga da minha mãe.

“Ainda não posso contar nada para você sobre o novo destino porque ainda não estou
nesse lugar. Pelas informações do Partido, a situação das massas é extraordinária e o
Partido está em muito boas condições de poder aproveitar o momento”.

“A situação em todo o país é realmente alentadora no que se refere ao campo popular.


Espero que você, que eu, e que todos saibamos aproveitá-la e empurrá-la para conseguir
o quanto antes o futuro tão esperado do nosso povo”.

“Quando responder, conte-me de você e do gurizinho, você não tem ideia da vontade que
tenho de vê-lo correr, falar. Ainda falta muito para isso, não é?”

O gurizinho sou eu. Acho engraçado porque imagino um gauchinho bebê.

“Por via das dúvidas, nas cartas que você me enviar não coloque nomes, nem dados.
Assim como esta”.

“Pela primeira vez estou à frente de uma pequena Unidade militar, que no momento está
com as atividades restringidas. Você sabe como é difícil. Ser firme, mas não rígido. Dar
ordens mesmo sabendo que tem gente que naquele momento não entende e que faz cara
feia”.

“Minha querida mãezinha, até daqui a alguns dias. Um abraço enorme e beijos para você
e o nosso pequenino.
Com um beijo revolucionário me despeço. Tchau, minha pequena. Saudades. Viva a
guerra do povo!”

Meu pai morreu quatro anos antes de eu nascer. Tinha vinte e seis anos. Quando eu fiz
vinte e sete pensei: agora sou mais velha que meu pai.

A bateria avança do fundo do palco num carrinho. Carla faz um solo.

OS LIVROS DO MEU PAI:

Esses aqui são os livros do meu pai. Nos seus 64 anos de vida, escreveu por volta de 20
livros, entre romances, ensaios e livros teóricos. Eu, completo, só li um. O resto gosto de
ler aos pedaços, quando estou no ônibus ou pouco antes de dormir, quando estou
embaixo de uma árvore ou quando topo com um deles por aí.

“As Questões”
Esse foi o último que escreveu. Eu ajudei a escolher a capa.
“A Memória das coisas”
“Peronismo”
Esses são todos os artigos que foram publicados no jornal.
“Sobre a marcha”
“Pensar entre épocas”
“A Cátedra”
Esse aqui é o único livro que li inteiro. É um policial e li de uma tacada só.
“Confins”
Essa é a revista que ele dirigia. Cada vez que estava a ponto de sair brigava pelo telefone
com todos os colaboradores.
“Modernidade e Cultura Crítica”
“Cultura e Crítica”
Esse tem quase o mesmo título, mas é outro.
“Paris 68”
É sobre as pichações do Maio Francês. Quando jovem ele esteve em Paris. Por acaso
estava acontecendo o movimento Maio Francês.
“Itinerário da Modernidade”
Esse ele usava para dar aulas.
“Viena de 900”
“Modernidade-Pós-Modernidade”
Ele gostava de tudo o que se referia à Modernidade-Pós-Modernidade.
“Comunicação: a democracia difícil”
Uma compilação
“O fruteiro dos olhos radiantes”
Esse é outro romance. É sobre a história da minha família e foi dedicado à minha mãe, à
minha irmã e a mim. Colocaram Liza com “s”, eu fiquei muito chateada.
“Antologia de contos sobre tango”
O que foi escrito por ele se chama: “Você não é comunista?”

E esse aqui é o meu favorito: “Para fazer amor nos parques”. É o seu primeiro livro e foi
escrito quando tinha a minha idade. Logo que saiu foi proibido pela ditadura e retirado de
todas as livrarias por ser obsceno e subversivo, ou coisa parecida. Tem uma parte que
gosto especialmente porque fala de uma espécie de revolução futura.

“Coloriram com tinta fosforescente os rostos dos 95.600 portenhos retardados e


amarraram umas lanternas de luz negra nas cinturas deles, que focavam e projetavam
suas caretas mortas que não resistiram.
Assim, foram saindo por turnos, prévia pílula excitante colocada em suas bocas, com
sabor de morango.
Era o momento, o assombro. A revolução permite e legitima tudo em seu sagrado nome
imemorial.
As 12.000 avestruzes trazidas das desérticas pampas estão saindo por debaixo dos
lençóis.
Síncopes e desmaios nas esquinas. Brota a histeria.
Os portenhos retardados iluminados avançam.
Rechonchudas, imensas de quadris se aproximam nuas semidançando, as Gordas
Peitudas.
Mães, tias, mestras, professoras, atrizes.
Surgem agora do fundo da história pátria, de maio, de Tucumán, dos Andes, de Caseros,
o esquadrão inesquecível das Gordas Peitudas! Vitória total então, mas não a última, das
forças revolucionárias. A cidade, enquanto isso escuta os estertores finais de uma época!”

FAST FORWARD/ AUTOBIOGRAFIAS

Os atores, em um praticável alto, gritam por um megafone e se jogam numa montanha de


roupa.

Mariano:
1982. Explode a Guerra das Malvinas. A professora nos faz escrever cartinhas aos
soldados.

Blas:
1989. Hiperinflação. Cai Alfonsín. Menem presidente. Quase me afoguei no mar e quase
me apaixonei pelo salva-vidas.

Carla:
1997. Um peso, um dólar. Graças a isso, viajo três meses como mochileira pela Europa.

Pablo:
2001. “Corralito”. Crise econômica. O presidente foge num helicóptero. Eu caio de um
cavalo e quebro a perna.

Blas:
2003. Depois de 5 presidentes provisórios no período de um ano, Nestor Kirchner assume
a presidência. Com 28 anos consigo aprender andar de bicicleta.

Moreno:
2004. Eu nasço.

Mariano:
2007. Primeira presidente mulher eleita.
Nasce o primeiro dente do meu segundo filho.

Liza:
2008. Os grandes produtores do campo interditam estradas em oposição aos impostos do
governo. Meu pai morre.

Vanina:
2009. Crise econômica mundial.

O DIA DA MINHA MORTE

Moreno atira no rosto dos outros com uma pistola de água.

Carla:
Morro em agosto de 2016 de um derrame cerebral.
A essas alturas, a Argentina faz parte da República Bolivariana, um território autônomo e
independente dos Estados Unidos e da Europa. Meu único filho homem será um soldado
defensor da República.

Pablo:
Morro no dia 03 de outubro de 2030, enforcado numa árvore Bela-Sombra, que nem um
gaúcho melancólico, e sem filhos. A planície estará devastada por causa do monocultivo,
as vacas vão nascer doentes e os cavalos com uma pata só. Apenas ficarão alguns
gaúchos drogados dançando “malambo”.

Vanina:
Morro em 25 de agosto de 2035 num acidente de carro.
Nesse momento a Argentina continua sendo a mesma de agora. Os mesmos presidentes,
as mesmas lutas sociais, o mesmo conflito entre o campo e a cidade.

Liza:
Morro no dia 13 de janeiro de 2038 de overdose no meio de um concerto da minha banda
de rock: Os cachorros sonâmbulos.
A Argentina será um país moderno e tropical.

Mariano:
Morro no dia 17 de maio de 2042. Morro rindo de alguma coisa, não sei ao certo de quê.
Através da janela da minha casa vejo Buenos Aires como num sonho. Vejo cavalos que
cruzam as avenidas, robôs que andam de moto a toda velocidade e milhares de
aparelhos de TV que brilham nas janelas como estrelas na noite.

Blas:
Morro no dia 09 de fevereiro de 2060. Morro afogado, na minha cama, dormindo com o
meu pijama favorito. A água cobrirá toda a planície. Meus filhos adotivos e meus bichos
de estimação se salvarão, fugindo numa lancha.

Liza toca guitarra. Pablo, a bateria. Vanina grita por um megafone. Blas e Mariano vestem
uma fileira de cadeiras. Carla e Moreno correm pelo palco jogando-se em cima das
roupas.

Vanina:

PRT
Partido Revolucionário dos Trabalhadores
ERP
Exército Revolucionário do Povo
Marx
Revolução Cubana
Revolução Vietnamita
Lênin
Montoneros
Guerra do Povo
Métodos de Produção Capitalista
AAA
Aliança Anticomunista Argentina
ESMA
Campo de extermínio da Escola de Mecânica da Armada
JP
Juventude Peronista
PJ
Partido Peronista
UCR
União Cívica Radical
Exílio
Ditadura
Democracia
Viva Perón!
Viva a guerra do povo!
Copa do Mundo
Guerra das Malvinas
Hiperinflação
Um peso = Um dólar
República Bolivariana
Impostos
Teste de DNA…

TRADUÇÃO:
Carolina Virgüez
carolinavirguez@gmail.com
SKYPE: carolinavirguez

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