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adALMANAQUE

LOBISOMEM
ediçaounica

1
O Phantópera da Asma, Antonin mente livre, à chuva & a todos
OsFabiano
lobisomens publishers
Calixto
Artaud, Carlos Imperial, Reed
Richards, Vincent van Gogh, Pac-
os colaboradores & amigos, pela
ajuda, gentileza & camaradagem de
Flávio Rodrigo Penteado Man, Tom Warrior, Paulo Prado, sempre.
Renan Nuernberger Tonho, Johnny Cash, Henfil,
Sócrates Brasileiro Sampaio
de Souza Correia de Oliveira, Contato
Conselho licantropicalista Mussum, Darcy Ribeiro, Hans Arp,
Bob Esponja, Lima Barreto, João
fabianocalixto@yahoo.com.br
flaviorodrigo.pc@hotmail.com
Macunaíma, Chacrinha, Capitão
Klutz, Alfred Jarry, Sherlock Bafo-de-Onça, Kid Morengueira, renannuernberger@gmail.com
Holmes, Oswald de Andrade, Brigite Bardal, Pinto Calçudo,
Woody Woodpecker, Goober, Lady Wolverine, Bartolomeo Vanzetti,
Bathory, O Coringa, François Andy Warhol, Mano Orkut, Bela
Villon, Ed Wood, Wolfgang Amadeus Lugosi, Machado de Assis, Urso do Recomenda-se a leitura deste Almanaque Lobisomem
Mozart, Sid Vicious, Homer Cabelo Duro, Frank Zappa, Máicon ao som de: Dirty (1992) – Sonic Youth
Simpson, John Dilinger, Borat, M. Divelchro, O Gigante Adamastor, http://www.4shared.com/file/97535282/8ef283cb/sonic_youth_dirty.html?s=l
Buster Keaton, Tristan Corbière, Bezerra da Silva, Allen Ginsberg,
Peninha Paperoga, Adam Worth, Fantomas, Nhá Barbina, Mad
Orlando Tacapau, Gregório de Max, Os Três Estarolas, Rodion
Matos e Guerra, Zé Paçoca dos Românovitch Raskólnikov, Bento
Teclados, Conde Drácula, Arthur Carneiro, Ludwig van Beethoven,
Rimbaud, Rony Cócegas, Jim Mefistófeles & Zacarias
Morrison, Chupa-Cabra, Groucho
Marx, Mestre dos Magos, John
Lennon, João Saldanha, Júlio Capa
Barroso, Nicola Sacco, Didi Mocó Juliana Marks
Sonrisal Nevalgino Mufungo, Lemmy sobre desenho de Diego de Sousa
Kilmister, Hélio Oiticica, Jack
– The Ripper, Paulo Francis,
Montezuma, Ezra Pound, Evil Design
Angelica, Joey Ramone, Lon Chaney Gabriel Pedrosa & Lobisomens
Jr., James Joyce, Lula Lelé,
Ed Gein, Barros de Alencar,
Waly Salomão, Dedé, Mr. Hyde, Thanx 2
Torquato Neto, Betty Boop, Dicró, Ao Gabriel Pedrosa pela
Rogério Duprat, Mazzaropi, Paulo camaradiagramadagem, à Santa
Leminski, Costinha, Julien Paciência, à Santa Visão, à Turma
Sorel, O Lobisomem Americano de da Maré Mansa, ao Bar do Seu Jão,
Londres, Ana C., Krusty, Grande ao Sítio do Pica-pau Amarelo, aos
Otelo, Dave Mustaine, Bocage, Rabos-de-Galo, à Nossa Senhora
Clara Crocodilo, Cantinflas, Lima Aparecida, ao Estudando o samba,
Barreto, Subcomandante Marcos, às Devassas, à saúde de ferro, à

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sumArio
editorial 4 juliana amato 87 patricia augusta correa 227
christian morgenstern 9 andre fernandes 88 fabio camarneiro 231
ledusha 10 nicollas ranieri 90 5 receitas da culinaria licantropica 235
marilia garcia 11 renan nuernberger 91 | 211 are you shakespearienced? 240
alberto martins 12 roberto bolano 93 beatles 243
andrea catropa 13 r. ponts 95 juliana marks 248
jim morrison 15 zho bertholini 97 paulo rodrigues 250
sylvia beirute 22 tom waits 98 heinrich boll 253
mariano marovatto 25 laura wittner 99 alfred doblin 255
fabricio marques 28 marcelo ferreira de oliveira 101 | 313 leandro rodrigues 256
thais monteiro 30 mario sagayama 102 marcello vitorino 259
ricardo domeneck 31 | 56 marcelo sahea 104 qorpo-santo 265
anne sexton 33 nick drake 105 o almanaque entrevista dirceu villa 270
gabriel pedrosa 38 mario bortolotto 106 o almanaque entrevista marco buti 278
e e cummings 39 ricardo silveira 107 banksy 287
fabiano calixto 48 julio barroso 109 o almanaque entrevista arnaldo antunes 292
dirceu villa 50 | 173 | 229 | 319 diniz goncalves junior 114 eduardo galeano 310
avelino de araujo 52 sergio raimondi 115 jean starobinski 311
marcio-andre 53 coringa 118 fernanda serra azul 314
lilian aquino 55 carlos marighella 120 tiago pinheiro 316
leonardo martinelli 59 paulo stocker 127 krusty 322
john ashbery 66 heriberto yepez 130 classificados 326
nicolas behr 68 leticia costa 146 licantropia worldwide 328
laurie anderson 70 rogerio sganzerla 168 licantropicalistas utubeiras! 331
arnaldo antunes 73 pedro gale 177
marcelo montenegro 81 rodrigo lobo damasceno 183
erica zingano 82 john zerzan 192
helio neri 86 pablo ortellado 215

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Bico calado, muito cuidado que o Lobisomem chegou!
I got something to say O Almanaque Lobisomem desce, fast as a shark, as Roberto Carlos, Paulo Silvino, The Ramones, Jean-
I killed your baby today
And it doesn’t matter much to me
cataratas do Niágara num barril porque navegar é Luc Godard, Amy Winehouse, Hélio Oiticica,
As long as it’s dead preciso & viver não é preciso. Sérgio Sampaio, Joana D’Arc, O Coringa, Nicola
Glenn Danzig Sacco, Les Girlschool, Antonio Candido, Phil
O Almanaque Lobisomem quer a poesia Lynott, Bartolomeo Vanzetti, Lúcio Flávio, Ronald
O Almanaque Lobisomem é um avacalho. sanguínea, pulsante, cheia de vida, pois sabe que Golias, Joan Jett, Enrico Malatesta & Woody
Mas com hamor & umor. É um avacalho de pés as palavras de ordem art pour l’art & business is Woodpecker.
descalços & mente aberta (& ligada). De tênis, business são dois lados da mesmíssima moeda.
pois quando o Terceiro Mundo explodir quem O Almanaque Lobisomem is a punk rocker.
estiver de sapato não sobra. Um uivo no centro O Almanaque Lobisomem faz coro com Walter
da cidade para acabar com a obra. Malandragem Benjamin: Não há melhor ponto de partida para O Almanaque Lobisomem é orgasmo & sarcasmo.
canis lupus como crítica à linguagem & à sociedade o pensamento que o riso. Cabe lembrar que esse
siamesma. Quando a gente não pode fazer nada, riso de que fala o grande filósofo alemão não tem O Almanaque Lobisomem sabe que tem gente que
a gente avacalha! – alguém uiva, de dentro do que ver com o riso dos contentes, riso das revistas confunde domingo com segunda. Tem gente que
ônibus lotado, com o salário apertado, com o eletrônicas de fim de semana, com o riso dos filhos- confunde cu com bunda. Tem gente que confunde
grito encravado, com a morte pra daqui a pouco, da-puta na cara daqueles que nem sequer sonham efeito estufa com poesia de pantufa.
mês que vem. A situação está preta... & peluda. O em poder rir. Nada disso, ok, caros leitores? É um
Terceiro Mundo vai acabar em raiva ou em rima? riso assim, esplêndido, corajoso & libertário. É Ah, meu!
Que tal os dois? Não pode? Ah, claro que pode! um riso que não se vende, sacou, leitor? É um riso Ah, meu, chupa que é de uva!!
crítico. Riso cínico. Um riso molotov.
O Almanaque Lobisomem está pronto para o O Almanaque lobisomem é uma bufa na ópera.
que der & vier. Uma boa & bem-vinda maldição Os patronos do Almanaque Lobisomem são, 1

para iluminar os caminhos neste território deixemos que seus nomes tinjam as tintas desta O Almanaque lobisomem informa:
cheio de “gênios”, de chatos, de literratos, pálida página, Pagu, Mikhail Bakunin, Anäis Nin, -- Barack Obama (via twitter): O Schopenhauer é o
de sabichões, de truculentos coronéis, de 1 Haverá um baile de pós-lançamento (i.é.: (beeeem) depois do ancestral mais famoso de Logan, o Wolverine.
burrocratas, de universotários cabeças-de-bagos, de dia 3 de maio de 2010 – dia que descobrimos com nosso filho
empreendedores culturais com o bolso cheio & a de dez anos que a poesia é a descoberta das coisas que a gente -- Nhá Barbina escreveu, em sua coluna na revista A
cabeça vazia, de filhos-da-puta em geral etc. & tal.
nunca viu) com a presença de todos os patronos e comandado Lesma Lerda, que o amor é uma bobagem inventada
pelo mestre de cerimônia Herschel Pinkus Yerucham Krustof- pelos poetas provençais & ressignifacada pela obra
De gente sem folclore, enfim. É tudo fake! – grita ski, que dissertará sobre as configurações do sujeito lírico no
alguém molhando o bico com um rabo-de-galo no contexto da catástrofe enquanto um tango argentino será to- de Odair José.
cado no modo repeat de usar. E distribuiremos Halls ou pastil- -- Já o grande Bombadú diz que a Ypióca é o
boteco do Everaldo, enquanto o jogo da seleça nem has Valda pra todos que lerem o Fausto de Goethe de trás pra
começa. frente. Em alemão! Hein? É! lobisomem engarrafado.

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-- E Goethe pergunta: Que espécie de época é que sempre está aí. & a nojenta realidade – que O Almanaque Lobisomem: é preciso muita
aquela em que o homem pode invejar os que estão no sempre está aí & a galhéra finge que não está. coragem.
sepultura?, & o querido Ronald “Bronco” Golias Vamos amarrar tudo, não só o tênis? (um oferecimento d’O
responde: Ah, isso foi no final dos 80 & comecinho Almanaque Lobisomem). Junto a isso, O Almanaque Lobisomem está com
dos 90, ali quando eles [Sepultura] lançaram o nojo da vasta imundície vinda do baixo meretrício
Beneath the Remains & o Arise. Todo músico O Almanaque Lobisomem convida todo mundo político-cultural-intelectual.
brasileiro os invejava, afinal eles eram os mais sujos, pra colocar as flores escondidas do riacho entre as
pesados & legais do mundo! coisas que foram feitas para o que der & o que vier. Mas, o Almanaque Lobisomem não deixa barato.
-- Wim Wenders & aprendenders... Entre as notícias dos filhos-da-puta. Nas páginas
das revistas sem assunto. Vamos, nossos amores? O Almanaque Lobisomem deixa uma saudação
O Almanaque Lobisomem é um antídoto a isso tudo: vão tomar seu Biotônico Fontoura &
antiotário. O Almanaque Lobisomem sabe que quem não se não nos encham o saco, porra! (Por amor à rima,
concentra vai se arrebentar. A invenção contra a senhoras & senhores, por amor à rima!).
invasão da velha trupe repetitiva. A invenção contra
N’O Almanaque Lobisomem o leitor pode fruir
o grupo da mesmice, dos novos ricos da arte, os File ton rêve jusqu’au bout...
dos mais vastos & variados sabores licores de
empregados públicos da literatura, acadêmicos de Mon Pauvre!... la fumée est tout.
dores & amores do planeta. Pode sentir o olor de
fardão, “gênios” provincianos da megalópole, poetas – S’il est vrai que tout est fumée...
noigandres & um gosto amargo de Fernet. Pode
do Diário Oficial. Para o glu-glu desses perus de
amar, odiar, não ler, reler, repassar, apagar, curtir, Tristan Corbière
roda, só há uma resposta: a sanguínea & anárquica
transar etc. & tudo no vasco! Porque é preciso
combatividade dos moços licantropos.
dividir os bens culturais. So don’t be sad cause I’ll be there
O Almanaque Lobisomem crê haver uma gota Don’t be sad at all
O Almanaque Lobisomem sabe, & muito bem!, d’água em cada sentença. Um rio preso na garganta. Life’s a gas, Life’s a gas, Life’s a gas, a gas, a gas, oh yea
que a coisa está crítica na crítica, & na crítica que Uma lagoa de quem não se espanta. Um oceano The Ramones
critica a crítica & na crítica que desacredita a crítica que vale dez trilhões. O Rei está vivo! & é preciso
que critica a crítica, sem nenhuma crítica. cyber viver! O Almanaque Lobisomem é um delirium tremens
do coração. É uma paisagem com figuras no
O poema é uma crítica da linguagem, & da sociedade. O Almanaque Lobisomem não perderá mais que solilóquio antiloki.
Essa crítica não se encontra na crítica dita literária. parcas linhas para falar dos porcos2. O que nos faz
Esta é apenas literária, não crítica. Foi isso que nos bem é bem mais importante. Escute, ó hypocrite O Almanaque Lobisomem saca, como o truta
disse, ali na Augusta, tirando uma chinfra no french, leitor, escute. Vale a pena. & a pane. Total! Derrida, que é preciso comer bem os outros.
o mano Henri Meschonnic. 2 Falamos aqui dos cáftens engravatados fedorentos & em-
bolorados, funcionários públicos da arte, filhos-da-puta que,
sob a égide do populismo do cifrão, parasitam & mamam nas
O Almanaque Lobisomem sabe que até um
O Almanaque Lobisomem convoca todos a um tetas do poder público (que lhes adestram, lhes curram, lhes homem puro de coração, que faz suas orações ao
banho no imenso rio. & ousar sair de casa. & estropiam os cus e lhes pagam os sujos honorários), fazendo a anoitecer, pode virar um lobisomem quando o
molhar os pés na água. Olhar o lindo céu azul – manutenção do monopólio do atraso misturado a novidades acônito florescer & a lua cheia aparecer.
postiças.

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& muitos têm medo de lobisomem... Muito mais movimento anarquista, do sampler, do copyleft, Lobisomem da Amazônia, & toda a matilha que
do que se imagina! Assim como aqueles que têm da universidade livre & de olhos & mentes bem partilha da defesa de causa perdida nesta terra de
medo de Virginia Woolf. Ou aqueles que têm medo abertos, da gigolagem de bibelôs, dos movimentos selvagens, nesta sociedade de náufragos eruditos &
de barata, mas não têm sangue de barata – o que é de proteção & liberdade aos animais, do filhos-da-puta diplomados.
um diferencial importantíssimo! movimento da catraca livre, da liberdade de Mumia
Abu-Jamal, dos aqualoucos, do cinema digital, da O Almanaque Lobisomem, entretanto, é contra a
O Almanaque Lobisomem é terrível contra os lua cheia, do cinema marginal, do underground, lobotomia.
insetos. Contra os insetos! do Ivan Cardoso, da chapeuzinho de maiô, do Wu
Ming, do Thoureau, da vida. O Almanaque Lobisomem recita & receita:
O Almanaque Lobisomem é a favor da saída dos
parasitas não apenas da vida pública, mas também O Almanaque Lobisomem é contra o A Felicidade do Homem é uma Felicidade Guerreira.
da vida neste planeta. Respirar no mesmo planeta nazifascismo, contra o coronelismo na poesia, Viva a rapaziada! O Gênio é uma grande Besteira.
de rats como os tais é altamente insalubre &, só pra contra o xaropismo literário, contra o racismo, Oswald de Andrade
variar, nenhum plano de saúde cobre. contra a corrupção (em qualquer escala e/
ou medida), contra o xenofobismo, contra o O almanaque lobisomem receita algumas
O Almanaque Lobisomem não suporta quem ufanismo, contra a velhacaria da falácia, contra os formas de licantropia: assassinato de tiranos,
quer pôr braços na Vênus de Milo, nem caboclos partidos políticos, contra a truculência, contra o destituição do poder dominante, restabelecimento
querendo ser ingleses. “gênio”, contra o ódio, contra a violência, contra a da espiritualidade, rompimento com os velhos
homofobia, contra qualquer coisa que atente contra quadros, aperfeiçoar o Dizer, a criação, a destruição,
O Almanaque Lobisomem sabe que o Michael a vida ou a liberdade. a criação, a destruição (pois todo desejo destruidor
Jackson ficou branco & o Nick Fury ficou preto. & é um desejo criador), o ato sexual.
que isso são coisas da vida. Ou da ficção. Tanto faz. O Almanaque Lobisomem é remédio infalível
contra o tédio que facilmente prospera sob o olhar A vida & só a vida! mas a vida tumultuosa, férvida,
O Almanaque Lobisomem está para o cinismo de basilisco de um momento reacionário saturado anelante, às vezes sangrenta – eis O Almanaque
experimental assim como a queixa está pro amor com o obtuso espírito dogmático. Lobisomem, porque as nódoas de sangue quando
assim delicado que você pega e despreza. caem no chão não têm forma geométrica.
O Almanaque Lobisomem é a favor do lobo
O Almanaque Lobisomem tem todos os discos frontal, do lobo parietal, do lobo occipital, do O Almanaque Lobisomem caiu na rede & quem
do Sonic Youth, do Radiohead, do Tom Zé, do lobo temporal, do Edu Lobo, do lobo mau, não gosta de samba não pode ouvir o apito da
Paulinho da Viola, do ac/dc, dos Ramones, do do lobo-guará, do Lobo (da dc), do Lobão, do fábrica de tecidos, nem pode sentir a alma cantar
Vassourinha, do Motörhead, do Jards Macalé, Lobo da Estepe, do António Lobo Antunes, vendo o Rio de Janeiro, ou mesmo namorar as
do Paulo Sérgio & do Slayer em sua navilouca do Lon “Werewolf ” Chaney Jr., do Bicudo (O pernas de louça da moça que passa & não se pode
editorial. Lobisomem), do Tom Wolfe, dos Los Lobos, do pegar.
lobo da montanha, do Rodrigo Lobo Damasceno,
O Almanaque Lobisomem é a favor da do Lobisomem Americano em Londres, do O Almanaque Lobisomem adora ouvir os poemas
dignidade, do freeganismo, do veganismo, do de Baba O’Riley, de Shandi, de Sheena, de Johnny
6
– O desordeiro, de Silvia, de Judy, de Jude, de Mary – lugares habitados por parlamentares que vivem a instância. A última instância é a criação, a arte: ou,
Christ; & tantos & tantos amigos canoros. discutir nomes de rua & panetones & dentaduras antes, a arte representa a ausência & a impossibilidade
postiças & esvaziar os cofres públicos. Lamentável, de uma última instância. Esteje dito & conversado.
O Almanaque Lobisomem sabe que os e$critore$ não?
$ó pen$am em dinheiro. &, parafraseando nosso O Almanaque Lobisomem inaugura o
mais genial conselheiro, o Coringa, este país merece A direita não merece nenhum comentário – por anarquismo zen, o licantropismo estético & o
uma classe melhor de escritores. razões, que O Almanaque Lobisomem crê, óbvias. cinismo experimental. Uivando sob o luar de
prata, estraçalhando coraçõezinhos de pobres &
O Almanaque Lobisomem toma um café amargo Já a esquerda, que por não pouco tempo pareceu lindas jovens indefesas, vestindo o bem & o mal
& recomenda: faça um samba enquanto o bicho ostentar em suas legendas a salvação do povo, – a poética do presente. Portanto, contra os(as)
não vem. Saia um pouco. Ligue o rádio, meu bem. parece estar condenada, no Ocidente, a uma covartes: lasciate ogni speranza voi ch’entrate, levantai
Mas, ó, escuta só: não ligue que a morte é certa; política medíocre, &, destarte, ao insucesso vossas saias, protegei vossos caríssimos celulares de
não chore que a morte é certa; não brigue que a periódico – a realizar uma política medrosa & última geração, fazei o sinal da cruz, não ligai que
morte é certa. Não ligue... Let it be. Nevermind. frustante para os próprios militantes, tímida, &, a morte é certa e preparai-vos para chamar Jesus
Xapralá. contudo, irritante para as forças que lhes são hostis de Genésio, pois agora havei todos de tomar uma
(a direita & os vermes em geral) & que conseguem geladíssima & devassa cerveja no inferno.
Bombadú rides again: (pasmem!) periodicamente roubar-lhe, defrutando
– Fiquem de olho na vida que o sinal vai abrir! de sua escassa combatividade, o seu próprio Os Editores
eleitorado “natural”. A bordo na nau Abelardo Barbosa
As pedras do caminho, deixemos para trás. 13 de agosto de 2099
Esqueçamos os mortos que eles não levantam mais. O Almanaque Lobisomem sabe que o sândalo não
A juventude é uma terra devastada – nos escreve perfuma a serra elétrica.
O’Riley, por e-mail. A juventude é uma terra
devastada, sim. Mas, felizmente, não é lugar para Qual a saída? O Almanaque Lobisomem: não
covardes. escolher quem vai nos escravizar: não permitir que
vermes continuem no poder: ter em mente que
Nóis é noise! Cum on feel tha noize!! We’ll get wild, a história é marcha, não círculo: derrubar dos
wild wild!!! pedestais os boçais que fazem a manutenção do
imenso viveiro do desespero humano: parar de falar,
O Almanaque Lobisomem ‘tá ligado no fazer: construir um novo modelo de anarquismo:
deslocamento progressivo dos locais de decisão para libertar-se.
fora dos parlamentos, quer dizer, escutem só, trutas,
as decisões cruciais sobre a política econômica Em última instância: nenhuma última instância.
provêm dos organismos técnicos & do poder Ou, como diria Gilles Deleuze: Para Nietzsche
financeiro, deixando de fora, claro, os parlamentos é evidente que a sociedade não pode ser a última

7
Paris, setembro de 1871
Tenho como que uma suspeita de sua licantropia. (...) Você está prodigiosamente armado para a guerra.

(Carta de Paul Verlaine a Arthur Rimbaud)

8
Christian Morgenstern
Tradução de Tom Violence

Quem não ri do próprio chulé,


homem sério é que não é.

Wer sich nicht selbst verspotten kann,


der ist fürwahr kein ernster Mann.

9
Ledusha

De leve

feminista sábado domingo segunda terça quarta quinta e na sexta lobiswoman

10
Marilia Garcia
 
o mundo é redondo 2.

sempre que aperta um a aparece o q aprende a dizer que não entende


quando aperta o m entra a vírgula. vírgula ou bem ou então que dia é hoje.
pausa para um café. disse que o mundo era redondo mas nunca serve saber certas coisas
mas se o tempo também fosse poderia ir ou nunca serve saber as coisas
encontrá-la neste breve momento certas. (talvez não acerte a hora
na sala oval do boulevard j. em que deve escapar da bolha
− mas não quer roubar vermelha e dizer:
o presente de ninguém, pensa, I saw how the planets
conta as portas coloridas gathered.)
diferenciando o tipo no subsolo encontra
de maçaneta. aqui um parêntese timoteo que carrega sob o braço
para o sentimento dos o romance de b.
personagens. ele diz:
  é sobre a aventura, que é sempre inesperada.
[o problema não era esse é sobre a beleza que dura pouco
mas todos os dias, dizia por e cujo final costuma ser desastroso.
detrás de sua bolha  
transparente, abrindo a boca em que você está pensando
para espantar quem se aproximasse. agora?, pergunta. na mesma coisa
me enamoré de alguién se apaixonou, que você. o mundo redondo desta janela.
mas nesta língua não consegue pode se perder alguém por duas vezes
explicar o que acontece quando a atriz seguidas? não era algo que estivesse no modo
principal toma um tiro no peito de usar para saber
e cai junto com os o que fazer.
créditos.]

11
Alberto Martins

[R no Harrar]

Li que a cidade de Harrar, situada entre vales extensos, cercados por cadeias de montanhas secas, transmite ao viajante a sensação de estar
aprisionado em meio a muito espaço. Assim deve ter se sentido r em suas noites de febre em Charleville, em Paris, em Roche, em Bruxelas,
em Marselha – enquanto as hienas passeiam do lado de fora.

[R]

O Filho de Deus não tem onde pousar a cabeça. Mas este não tem onde pousar a cabeça nem o resto do corpo. Ao contrário dos animais
que cavam o chão, cheiram a grama ou sobem no galho mais alto – ele se deita onde o cansaço o alcança. O negociante Armand Savouré,
que esteve um mês hospedado em sua casa, nunca descobriu onde ficava sua cama. A inquietude do homem não tem igual em reino algum.

[no comércio de peles]

Conversando com Fabrício a propósito de r, compreendi que a vidência foi apenas a primeira transformação, a primeira máscara a vestir
e despir. A segunda, definitiva, foi tornar-se para sempre estrangeiro. Creio que ele tinha plena consciência disso quando escreveu para
casa em 15 de fevereiro de 1881: “aqui o principal comércio é o de peles: os animais são explorados a vida toda e, depois, esfolados”. Ele se
referia aos animais e a muitas outras coisas.

12
Andrea Catropa
Círculo literário esta arte de elite. Futuro do presente
Vamos lá? (verbo: debutar)
Pretérito imperfeito
(verbo: suicidar-se) A jovem promessa
Futuro do pretérito arma sua tática,
O harakiri de um poeta (verbo: disseminar) o livro de estreia
com sua caneta, será como uma
nada extraordinário, Ah, as elites revista de fofocas
só um pouco incomum não leem com o perfil
alguém destruir também? em versos
um eu ricamente Bom, talvez de célebres e babacas.
nutrido por belas morto
imagens, e manchar nosso (verbo: mitificar)
de azul, nos últimos poeta
estertores, um sangue conquiste Silvio Santos
que era tão vermelho. o feito é um mito.
interdito Não se deixa
em vida poemar. São
Presente e não tantas facetas,
(verbo: ampliar) encontre e todas igualmente
empecilhos planas. Seria uma
Poeta morto, poeta para assombrar miragem no deserto,
posto. Vamos ouvir mansões com seu riso de
o que está na boca barracos camelo? Seria
do povo, ver se dá e até mesmo possível para um
para aproveitar. Já os sagrados reles, imitar o
passamos da hora escritórios acaju de seu
de democratizar das multinacionais. cabelo?

13
Sinceramente verdade que, com tanta teme se lançar
não quero ironizar carne amputada, dei uma para o mosh.
alguém que embalou broxada. Logo eu, que
tantas de minhas tenho tanto tesão pelo (verbo: aproveitar)
tardes. que faço.
E eis que a
(verbo: circular) (verbo: esvaziar) insistência
se transforma
Talvez um cubismo A última onda em coerência.
com bundas e peitos é algo que logo E a crítica com
da playboy seja viável passa. Como seus dedos
e, sobretudo, artístico. mesclar o curvos de fada,
Primeiro separamos efêmero com pinça minhas
tudo em uma linha o imperativo qualidades.
do tempo. Pré e pós universal desta Com esta
a popularização arte? Como não reputação,
do silicone, pular da categoria finalmente
pré e pós de jovem promessa posso
photoshop. para legítima farsa? escrever
Meu deus, o poema
assim, tão (verbo: recolher) em que
fácil, finamente
chegamos A melancolia descrevo
à Pré-História. da idade já um vaso
embota esta de mármore.
busca. A ousadia
Presente é necessária, mas,
(verbo: murchar) clichê dos clichês,
me sinto como o
Os caminhos da arte pobre metaleiro
são excitantes, mas é que no palco

14
Jim Morrison
Tradução de Fabiano Calixto

Uma oração americana Sacam que somos governados pela tv? (Apalpei-lhe a bunda
A lua é um animal de sangue seco & a morte sorriu)
I Guerrilheiros lançam os dados
Vocês sabem do progresso infernal na vizinhança de verdes vinhas Nós no centro deste teatro
sob as estrelas? preparando-se para a batalha contra senil e insano
Sabem que nós existimos? inocentes pastores em frangalhos A propagar nosso tesão pela vida
Teriam esquecido as chaves & fugir da sabedoria fervilhante
do Reino? Ó Grande Criador da existência das ruas
Nasceram? nos conceda um momento mais para Os celeiros foram destruídos
Estão vivos? mostrarmos nossa arte As janelas preservadas
& aperfeiçoarmos a vida & somente um entre tantos
Reinventemos os deuses Pra dançar & nos salvar
& os mitos dos tempos As traças & os ateus são duplamente divinos C/ o divino deboche das
Celebremos os símbolos & moribundos palavras
das profundas florestas ancestrais Vivemos, morremos & música inflamando o espírito
(Esqueceram as lições & a morte não é o fim
da velha guerra?) Viajamos mais e mais para dentro (Quando os assassinos do verdadeiro Rei
do pesadelo possuem a liberdade
Precisamos de grandes trepadas douradas Agarre-se à vida 1000 mágicos surgem
Essa nossa flor apaixonada sobre a Terra)
Os pais gargalham nas árvores da floresta
Agarre-se às bucetas & caralhos
& nossa mãe está morta no mar
do desespero Onde as farras
Sacam que somos levados Nossa última visão nos deu que nos prometeram?
ao massacre por calmos almirantes a gonorreia Onde o vinho?
& flácidos generais lerdos têm Os ovos de Colombo – O Vinho Novo –
o obsceno vício por sangue jovem? incharam de morte verde (morrendo na uva)

15
O deboche residente E hoje apenas nos sobra Uma colagem de revistas velhas
Cede uma hora à magia um sorriso engarrafado Postadas nos muros da fé
& nós da rubra luva Esta é a justa prisão daqueles que devem
& nós do voo maligno As Coisas Delicadas levantar cedo & suar, por repugnantes
& da hora de veludo & a face terna inúteis valores
Nós saídos dos deleites árabes esquecem & consentem enquanto virgens em pranto
Da cúpula do sol & das miluma noites exibem miséria
Sabem que a liberdade só existe & beicinhos diante da insana
Dê-nos algo nos livros escolares? sociedade
Sabem que os loucos
em que crer
comandam as cadeias?
Noite de Luxúria Porra, estou de saco cheio das dúvidas!
Numa cela, numa gaiola,
Dê-nos a bênção Quero viver ao sol de um certo
Num Maelstrom ianque
de sua Noite Norte
Como pêndulos de cabeça para baixo
Dê-nos da cor à beira do tédio Cruéis ligações
cem matizes Buscamos a morte Os servos têm o poder
uma rica mandala na treva de uma vela cabeças-de-porco & suas reles mulheres
para mim & para você Procuramos algo cobrindo com míseros mantos
que nos já encontrou nossos marujos
& para a sua casa (& onde você estava nessa hora difícil?)
exagerada de seda Podemos criar nossos Reinos Ordenhando seu bigode?
uma cabeça, sabedoria grandes tronos rubros, sofás de luxúria, ou esmagando uma flor?
& uma cama & devemos nos amar numa cama de fúria Estou cheio dessas caras feias
Que me olham da torre de
Decrépito decreto, Portas de aço asfixiam os gritos tv. Eu quero rosas no
o deboche decerto da prisão rosto do meu jardim,
clama seu crédito & música am engata os seus sonhos sacou?
Não temos o ímpeto negro Bebês reis, rubis
Costumávamos crer da força & da irão tomar o lugar de
libertação
nos bons velhos tempos estranhos abortados na lama
& os anjos loucos separam o joio do trigo
16
Esses mutantes, adubo sanguíneo Maria-sem-vergonha, madrugará Por favor, não assuste as nuvens,
para o cultivo da planta numa manhã de domingo? os ritos, os templos

Estão à espreita para nos levar aos “O filme começa em cinco minutos” A xota dela prendeu-o
jardins segregados uma voz idiota anunciou como uma morna e amigável
Sabem da palidez & da lascívia aguda “Todos os de pé esperarão mão.
da morte quando, às horas insólitas, pela próxima sessão”
sem aviso, sem escolta, “Tudo bem.
como um tenebroso conhecido, Lentamente entramos Todos os seus amigos estão aqui.”
nos leva pra cama? na sala. O auditório era
A morte faz de todos nós anjos vasto & silencioso. Quando vou vê-los?
& nos põe asas Estávamos sentados & escurecia “Depois de ter comido”
onde antes havia ombros A voz prosseguia: Estou sem fome
macios como as garras “Quer dizer, depois de ser espancado”
dos corvos “A programação desta noite
não é novidade. Vocês Riacho de prata, grito prateado,
Chega de grana! Chega de luxo! já viram esse filme. impossível concentração
Este outro Reino parece ser de longe o Viram seu nascimento,
melhor vida & morte; devem se lembrar Aí vêm os comediantes
até que outra mandíbula revele incesto do resto – (você encontrou Veja como eles riem
& perca o respeito à lei vegetal um mundo bom quando Como eles dançam
morreu?) – entraria uma dança estranha
Não num filme?”
Eu não vou Olhe seus gestos
Prefiro a Farra de Amigos Uma gargalhada de ferro arrebentou nossa Quanto aprumo
à família do Gigante mente Ao público!
como uma porrada.
II Palavras veladas
Vou sair daqui Palavras rápidas
Grande Cristo que grita Onde você vai?
Margarida excitada Palavras-bengalas
Pro outro lado da manhã
17
Plante-as Prosa arrogante Grande e inesquecível
Elas crescerão Amarrada numa rede de busca rápida lisonja
Observe como tremem Daí a obsessão
IV
Prefiro ser um Rápido se admite A lava doente e quente fluiu
homem-palavra o ritmo roubado Enferrujando & borbulhando
a um homem-pássaro a mulher perdida A face do papel.
Máscara-espelho, amo seu reflexo
Cobrarei Mulheres do mundo, uni-vos!
Ninguém se manda Fazei do mundo um helldorado Sofreu lavagem cerebral durante 4 hrs.
s/ morrer com uma grana Para a vasta vida libertina O Ten. se confundiu de novo
“Pronto pra falar?”
Vou ter que repetir? Ha! Ha!! Ha!!! “Não senhor” – foi tudo que disse
Vou ter que gritar? Você se ligou? Corte a garganta Volte à ginástica
S/ grana: nada de comida! A vida é uma pândega Pacífica
Meditação
Serei o irlandês baderneiro Sua esposa num canal!
metendo, na boa, meu bico A mesma nau!! Na base aérea do deserto
no pico dos poderes Aí vem o cabrual!!! olhando pelas persianas
um avião
Oh, garota, desmanche Sangue Sangue Sangue Sangue uma flor do deserto
esse penteado cafona! Estão fazendo piada um gibi bacana
do nosso universo
Ah, mas que mente careta! O resto do Mundo
é imprudente & perigoso
Pecados nas moitas III Veja os
Vistos pelas persianas Caixa de fósforos bordéis
Você é mais real que eu Filmes de foda
Ela fareja o prejuízo Vou queimá-la & libertá-la Classe z
no meu colarinho novo Lágrimas amargas derramadas

18
V We need great golden copulations & only one of all the rest
To dance & save us
Um navio deixa o porto The fathers are cackling in trees of the forest W/the divine mockery
Our mother is dead in the sea of words
cavalo selvagem de outra floresta Music inflames temperament
osso do desejo Do you know we are being led to
slaughters by placid admirals (When the true King’s murderers
avilta a raposa de metal & that fat slow generals are getting are allowed to roam free
obscene on young blood a 1000 Magicians arise
in the land)
Do you know we are ruled by t.v.
The moon is dry blood beast Where are the feasts
Guerrilla bands are rolling numbers we were promised
in the next block of green vine Where is the wine
amassing for warfare on innocent herdsmen The New Wine
who are just dying (dying on the vine)

O great creator of being resident mockery


grant us one more hour to give us an hour for magic
perform our art We of the purple glove
& perfect our lives We of the starling flight
& velvet hour
The moths & atheists are doubly divine We of arabic pleasure’s breed
& dying We of sundome & the night
We live, we die
& death not ends it Give us a creed
Journey we more into the To believe
Nightmare A night of Lust
Cling to life Give us trust in The Night
our passion’d flower
Cling to Cunts & cocks Give of color
An American Prayer of despair hundred hues
We got our final vision a rich mandala
I by clap for me & you
Do you know the warm progress Columbus groin got
under the stars? filled w/green death & for your silky
Do you know we exist? (I touched her thigh pillowed house
Have you forgotten the keys & death smiled) a head, wisdom
to the Kingdom & a bed
Have you been borne yet We have assembled inside this ancient
& are you alive? & insane theatre Troubled decree
Let’s reinvent the gods, all the myths To propagate our lust for life Resident mockery
of the ages & flee the swarming wisdom has claimed thee
Celebrate symbols from deep elder forests of the streets
(Have you forgotten the lessons The barns are stormed We used to believe
of the ancient war) The windows kept in the good old days

19
We still receive dog-men & their mean women “The movie will begin in 5 moments”
In little ways pulling poor blankets over The mindless Voice announced
our sailors “All those unseated, will await
The Things of Kindness (& where were you in our The next show”
& unsporting brow lean hour)
Forget & allow Milking your mustache? We filed slowly, languidly
Did you know freedom exists or grinding a flower? into the hall. The auditorium
in school book I’m sick of dour faces was vast, & silent.
Did you know madmen are Staring at me from the t.v. As we seated & were darkened
running our prisons Tower. I want roses in The Voice continued:
w/in a jail, w/in a gaol my garden bower; dig?
w/in a white free protestant Royal babies, rubies “The program for this evening
Maelstrom must now replace aborted is not new. You have seen
Strangers in the mud This entertainment thru & thru.
We’re perched headlong These mutants, blood-meal You’ve seen your birth, your
on the edge of boredom for the plant that’s plowed life & death; you might recall
We’re reaching for death all of the rest – (did you
on the end of a candle They are waiting to take us into have a good world when you
We’re trying for something the severed garden died?) – enough to base
That’s already, found us Do you know how pale & wanton thrillful a movie on?”
comes death on a stranger hour An iron chuckle rapped our
We can invent Kingdoms of our own unannounced, unplanned for minds like a fist.
grand purple thrones, those chairs of lust like a scaring over-friendly guest you’ve
& love we must, in beds of rust brought to bed I’m getting out of there
Death makes angels of us all Where’re you going?
Steel doors lock in prisoner’s screams & gives us wings To the other side of morning
& muzak, am, rocks their dreams where we had shoulders Please don’t chase the clouds
No black men’s pride to hoist the beams smooth as raven’s pagodas, temples
while mocking angels sift what seems claws
Her cunt gripped him
To be a collage of magazine dust No more money, no more fancy dress like a warm friendly
Scratched on foreheads of walls of trust This other kingdom seems by far the best hand.
This is just jail for those who must until its other jaw reveals incest
get up in the morning & fight for such “It’s all right.
& loose obedience to a vegetable law All your friends are here.”
unusable standards I will not go
while weeping maidens Prefer a feast of friends When can I meet then?
show-off penury & pout ravings for a mad To the Giant family “After you’ve eaten”
staff I’m not hungry “O, we meant beaten”
Silver stream, silvery scream,
Wow, I’m sick of doubt II impossible concentration
Live in the light of certain Great screaming Christ
South Upsy-daisy Here come the comedians
Lazy Mary will you get up look at them smile
Cruel bindings upon a Sunday morning Watch them dance
The servants have the power an indian mile

20
Look at them gesture Women of the world unite is reckless & dangerous
How aplomb Make the world safe Look at the/ brothels
So to gesture everyone For a scandalous life Stag films
Exploration
Words dissemble Hee Heee
Words be quick Cut your throat
Words resemble walking sticks Life is a joke V
A ship leaves port
Plant them Your wife’s in a moat mean horse of another thicket
They will grow The same boat wishbone of desire
Watch them waver so Here comes the goat decry the metal fox

I’ll always be Blood Blood Blood Blood


a word-man They’re making a joke
Better than a birdman of our universe Do livro An American Night: The Writings of Jim Morrison.
But I’ll charge Volume 2. Vintage Books: New York, 1991
Won’t get away
w/ out lodging a dollar III
Matchbox
Shall I say it again Are you more real than me
aloud, you get the point I’ll burn you, & set you free
No food w/ out fuel’s gain Wept bitter tears
I’ll be, the irish loud Excessive courtesy
unleashed my beak I won’t forget
at peak of powers

O girl, unleash IV
your worried comb A hot sick lava flowed up,
Rustling & bubbling.
O worried mind The paper face.
Mirror-mask, I love your mirror.
Sin in the fallen
Backwoods by the blind He had been brainwashed for 4 hrs.
The lt. puzzled in again
She smells debt “ready to talk”
on my new collar “No sir” – was all he’d say.
Go back to the gym.
Arrogant prose Very peaceful
Tied in a network Meditation
of fast quest
Hence the obsession Air base in the desert
looking out venetian blinds
Its quick to admit a plane
Fast borrowed rhythm a desert flower
Woman came cool cartoon
between them The rest of the World

21
Sylvia Beirute
Cidade-ponto Premissa de tempo

não escrevi um livro em miniatura sob uma lupa falsa. começo onde acabas, ou onde estás quase a terminar, ou ainda
não pedi qualidade aos clássicos. onde já acabaste mas tens uma palavra a dizer.
não pretendi reparar a eficácia de qualquer sistema humano. começo onde acabas e acabo onde acabas ou numa
não endossei poemas porque os poemas não são cartas. das outras hipóteses. sou exígua e o meu tamanho
não tenho um cativeiro de poetas. varia consoante as tuas premissas de tempo.
não visitei cidades-poema. neste lugar a respiração é imaginada e assim queimada
não segui preceitos que se vejam. pelo sol, o meu corpo assim apaziguado ouve uma
não azuleci por pertencer ao céu. sombra exaustiva e perpétua como o outono caótico
não tive ilusão e coragem para crer na desistência. dentro de um sonho infinito. um dia, quando atingirmos
não escrevi que o fingimento pode ser um ódio com casca. o ponto zero, começaremos de novo a existir, sem que ninguém
não tenho maneiras puramente estéticas. comece ou acabe onde o outro comece ou acabe,
não tenho processos literários. e, sobretudo, sem que haja palavras que falem.
não tenho dois corações.
não li masaoka shiki ou matsuo bashô.
não li a crítica para não perder a liberdade e o meu
dom impreparado.
não peguei no tempo e o atirei para dentro do corpo
como células estaminais.
não escrevi sobre a revolução industrial.
não respeitei o meu passado enquanto índice temático.
não estimulei diagnósticos de subtileza grosseira.
não recuperei emoções com a cabeça.
não coloquei questões delicadas no campo da poesia suprema.
não transferi permissões de mim para mim.
não imaginei versos paralelos para prender significados.

22
Conoscenza Alma mater

{o teu reconhecimento é a tua dependência}, a arte relevante


não o deixes passar da fase da costura. não tem como efeito
surge. insurge. inespera. o de tornar o artista imortal,
adquire expressões através do mas sim
eco difuso dos vegetais, coloca-te o de lhe dilatar
nas ranhuras da madeira. a ideia de morte.
há uma vida imprópria algures.
pode não ser como aquela que espera
na plumagem de uma memória
por antecipação, mas protege o silêncio
e não deixa coagular o sangue.
{o teu reconhecimento é a tua dependência},
e quanto mais o memorizares
mais afastado estarás
dos lados obtusos de quem te deseja habitar
e da semântica temporal
das pessoas que te pedirão um
poema bonito,
e nada pior do que escrever
um poema bonito.

23
O beijo de Rodin No dia da morte de José Saramago

não quero fazer filhos agora, livre da coadjuvância das afectações: os


sobre desejos adicionais deuses se escondem nas artérias do teu
e tardios, desejos sobre a tela tardia da tarde, silêncio, na tua fraqueza perfeita porque
desejos sobre o azul infindável sem o hábito de se auto-observar.
de boas razões indesejáveis. voltaste a ti: numa outra intermitência da morte, com
não quero desejos de desejos, o sublime que é tudo aquilo que ignora um todo e
desejos que retiram desejo a desejos de conduz uma perspectiva até ao quociente interno
tempo raso de uma invisibilidade que fala através
e de feitio de autopertença e do teu questionário incicatrizável.
leves contradições sem alarme e gafanhotos. e daí tudo vês: vês-me faltar de propósito à
conclusão do meu poema, vês o peso
não é em vão que da omnipresença do abstracto, da hora antiga,
o beijo de rodin é de pedra. vês as minhas infâncias e urgências juntas e tar-
dando hoje em se converterem, devolvendo-me
ao que eu era: ao início do dia.

Bohérase

os ninguéns deste lugar imitam o mundo


porque sobrevivem às suas personagens.

24
Mariano Marovatto

Banho de sol e suco de laranja

Quando criança na Califórnia, John Cage


era obrigado a duas coisas na vida:
banho de sol e suquinho de laranja.

Mesmo nascido no Golden State,


pequeno John desmaiava de tanto sol no fim da tarde.
Procurava o amparo da sombrinha de uma barraca de hambúrguer.

Mas por algum motivo Cage –


que ainda não era John Cage –
não optou por comer hambúrgueres simplesmente,
não preferiu estes ao mar que
se estendia pela enorme faixa de areia de Santa Mônica.

Talvez
todas as possibilidades sonoras da paisagem marítima
as peças de Grieg que ele amorosamente tocava todos os dias

provocou nele outras coisas


mais interessantes.

25
(Como bom americano que era, foi a Nova York mostrar ao velho continente como deveria ser o século xx.
Mas antes de ir a Nova York, foi ao velho continente mostrar para Santa Mônica como não deveria ser o século xx)

Mas aconteceu alguma coisa na Califórnia de John Cage. Ele largou a pintura.
Ele largou a pintura porque havia mais gente interessada em música.

Antes do xadrez da ausência


do silêncio da descoberta
do nada como prazer

havia tudo aquilo que ele não queria toda aquela não-utopia onde
men were men and mountains were mountains

Depois do Du
champ da câmara an
ecoica e d
e Lao Tzu

veio novamente toda aquela não-utopia onde


men were men and mountains were mountains

e o sol ainda brilhava sobre a areia quente da praia


e o suco de laranja ainda era a dieta obrigatória das crianças
e a sombrinha da barraca de hambúrguer ainda era a salvação mais frequente

26
Mas aí
aí Cage
aí é que tá
Cage já
respondia as
cartas de Boulez enviadas
da Rua Senador Dantas, 25 ou
Avenida São João, 1173

e a Califórnia já era tão horizontal


que a América que já existia em Cage
era de uma realidade provada em Musicircus

e sua regência seria e será ausente e infinita


e tudo aquilo de
Joyce Thoreau Wittgenstein McLuhan
estaria presente
em Santa Mônica
até mesmo
nesta gravação feita
oitenta anos depois de sua primeira insolação.

faça o download para a leitura em


www.marovatto.org/sucodelaranja.mp3

27
Fabricio Marques

O professor corrige provas do vestibular


Suíte ouroboros I
Devemos a Charles Sanders Pierce a invenção do piercing.
jamais irão encontrar algo que desonre o meu mandato,
Ou seja, Se fosse vivo, Mozart teria 243 anos
Levei para a Câmara a austeridade da minha vida familiar,
Ou seja, As cruzadas foram um movimento muito importante que visava
São quase quarenta anos de vida pública, /conquistar a Terra Santa e, entre tantos benefícios, contribuiu
Ou seja, /para o surgimento das Palavras Cruzadas.
Pássaros devoram as tardes de maio,
Ou seja, O gerúndio até que não faz mal, o problema é o gerundismo.
podemos negociar uma saída honrosa /Um gerúndio aceitável é o marlonbrando.

A onda de corrupção que assola o país é resultado da confusão entre


/o púbis e o privado.

28
Os afazeres de Enrico Marco

1. Um homem acorda um dia e resolve publicar sua autobiografia na qual conta os horrores que sofreu num campo de concentração.
2. O homem é espanhol e se chama Enric Marco.
3. Enric Marco fica conhecido como o deportado número 6.448, tornando-se o mais famoso de 7 mil compatriotas que sobreviveram aos nazistas.
4. Enric Marco é escolhido como porta-voz e representantes de todos os espanhóis que viveram nos campos de concentração.
5. Enric Marco ministra 120 palestras e conferências nos colégios anualmente.
6. Enric Marco recebe a Cruz de Sant Jordi por toda uma vida dedicada à luta antifranquista.
7. Enric Marco é recebido pelo Congresso Nacional da Espanha.
8. O testemunho de Enric Marco causa profunda impressão nos parlamentares.
9. Enric Marco está na Áustria para participar das cerimônias comemorativas dos 60 anos do fim do nazismo.
10. Enric Marco leva no bolso o discurso preparado para ler naquela ocasião.
11. Eis que o Historiador Benito Bermejo descobre que o nome de enric Marco não figurava nos arquivos de extermínio nazista.
12. O discurso de Enric Marco é foi lido por outro deportado.
13. Pressionado, Enric Marco confessa que era um impostor e nunca estivera em um campo de concentração.
14. Enric Marco enganara a todos durante 30 anos.

29
Thais Monteiro

Borboletinha da capital no transporte público


algumas apostilas
angelita compôs a introdução aspirada a planar alta
no bandolim no concurso público
escolheu entre dois refrões da monarca
um que falava de e ter em qualquer jardim
botânica uma mosaicultura
libertária e colocar na merenda da segunda
e outro de e última crisálida
amor um ensopadinho de margaridas
romântico pra depois costurar
mandou o e-mail passionnée o paraquedas em seda forte
para papillon da banda cover
insectusuicide
tomou banho com óleo de néctar
natura da vizinha
e foi trabalhar no atendimento
produto: redinhas
na volta ainda pensou
em bordar no jeans
sobre a mancha da caneta
uma ópera rock 90’s
pra abafar o som
histeriofônico
das mariposas industriais

30
Ricardo Domeneck
Poetry Police com auréolas Inquérito E –
de Aurélio.
Inquérito A – Poetry Police:
Inquérito C – veste teu vestuário,
Poetry Police: sacerdote xamãpoo,
apreenda os sujeitos Poetry Police: tua peruca de aura,
a perturbar protege nossas raparigas começou a intifada
minha floricultura que adornam as páginas pois já se hibridam
de metáforas luzidias, como biólogas marinhas cowboys & indians
situada à rua em Atlântida, na confusão
Nenúfares de Bulhufas, arranjando vasos sublimes entre ética e Ática.
invade seus dicionários de versos em misticercose,
feito matilha de Moglis com suas polaroids Inquérito F –
em caça de tigres de jade de aplicadas discípulas
no Himalaia imaginário. de Amy Lowell. Poetry Police:
aponta os canhões
Inquérito B – Inquérito D – do cânone,
defende-nos,
Poetry Police: Poetry Police: nós, poor trans-histéricos,
detenha o pogrom midiático acompanha a procissão de todo o malévolo
de nossas pseudohiroshimas da fila dos noviços, pau écran mafioso
de proxenetas de paulcelana, de joelhos à minha benção, do Barulho Adversário
nossos holocaustos de bolso Eu, a Besta Difásica, e dos patos de borracha
& pretty posters in neon estou ocupadíssima do bad böse villain,
a berrar make it neo a construir em castellano um tal de Mr. Quotidian.
soniferam-lhes, bobos, meus castelos
más allá de Tenerife de cartas e castas.
enquanto xiito
31
Texto em que o poeta percebe a
impossibilidade de obedecer à segunda
pessoa do singular do imperativo do
verbo relaxar

Como nadar no Mediterrâneo Homenagem às amigas


pensando nos muitos ossos
que esconde, até que os mares Senhores Mário de Andrade
devolvam seus mortos. & Frank O´Hara,
eis-me a honra
Na cicatriz ver a causa do fogo de agraciá-los com o brinde
e andando nas ruas de Ouro dos Cosméticos In Memoriam.
Preto, conhecer beleza e preço, 
pago com o sangue dos negros.

Não são correntes nossos dias,


mas um entrelaçado de teias
múltiplas, onde a aranha tesa
não perdoa espera ou paralisia.

Conte seus minutos em ordem


decrescente, saiba que eterno
nem mesmo esse planeta onde
trinca seu salto-alto esquerdo.

Melhor contentar-se com pouco


do que esperar charme de porco
ou agachar-se diante de esfíncter
como boquiaberto face à esfinge.

32
Anne Sexton
Traduções de Priscila Manhães

5 Poemas Traga um copo-de-leite e me deixe ouvir nele. Anna Who Was Mad
Me ponha nos estribos e traga os turistas. Anna who was mad,
Anna que era louca Enumere meus desejos na lista do mercado I have a knife in my armpit.
When I stand on tiptoe I tap out messages.
Anna que era louca /e me deixe comprar. Am I some sort of infection?
Guardo uma faca embaixo do braço Eu fiz você enlouquecer? Did I make you go insane?
Did I make the sounds go sour?
Quando fico na ponta dos pés eu sapateiro Liguei seu fone de ouvido e deixei a sirene tocar? Did I tell you to climb out the window?
/mensagens. Abri a porta para o psiquiatra bigodudo Forgive. Forgive.
Say not I did.
Eu sou algum tipo de infecção? que manipulou você como uma carta dourada? Say not.
Eu fiz você enlouquecer? Eu fiz você enlouquecer? Say.

Eu fiz os sons azedarem? Da sepultura me escreva, Anna! Speak Mary-words into our pillow.
Falei pra você pular da janela? Você não é nada além de cinzas mas apesar Take me the gangling twelve-year-old
into your sunken lap.
Perdão. Perdão. /de tudo Whisper like a buttercup.
Não quis dizer isso. levante a caneta Parker que lhe dei Eat me. Eat me up like cream pudding.
Take me in.
Não quis. Me escreva. Take me.
Escreva. Take.
Dizer.
Give me a report on the condition of my soul.
Give me a complete statement of my actions.
Recite ave-marias dentro no nosso travesseiro. Hand me a jack-in-the-pulpit and let me listen in.
Me toma os deselegantes doze anos Put me in the stirrups and bring a tour group through.
Number my sins on the grocery list and let me buy.
Sussurre como uma margarida Did I make you go insane?
Me come. Me come como um pudim. Did I turn up your earphone and let a siren drive through?
Did I open the door for the mustached psychiatrist
Me leve para dentro. who dragged you out like a gold cart?
Did I make you go insane?
Me leve. From the grave write me, Anna!
Leve. You are nothing but ashes but nevertheless
pick up the Parker Pen I gave you.
Write me.
Me dê notícia da condição da minha alma. Write.
Me dê um relatório completo de minhas ações.
33
A assassina

A morte correta está inscrita. Me dê sua dura armadura, seu lábio.


Saciarei a ânsia. Ele é minha desgraça e minha maçã
Meu arco está teso. e o acompanharei à sua casa.
Meu arco está em prontidão.
Sou a bala e o gancho.
Estou devidamente registrada e pronta.
Na minha mira o entalho
The assassin
como uma escultora. Eu
modelo seu último olhar a todos. The correct death is written in.
I will fill the need.
Carrego seus olhos e seu My bow is stiff.
crânio a todo lugar. My bow is in readiness.
I am the bullet and the hook.
Conheço seu sexo masculino e I am cocket and held ready.
e recorro-o com meu dedo indicador. In my sights I carve him
like a sculptor. I mold out
Sua boca e anus são um. his last look at everyone.
Estou no centro da sensibilidade. I carry his eyes and his
brain bone at every position.
I know his male sex and I do
Um trem subterrâneo march over him with my index finger.
His mouth and his anus are one.
viaja através da minha balestra. I am at the center of feeling.
Tenho um ferrolho de sangue
A subway train is
e tenho feito que seja meu. traveling across my crossbow
Com este homem tomo em mãos I have a blood bolt
and I have made it mine.
seu destino e com esta arma With this man I take in hand
tomo em mãos os jornais e his destiny and with this gun
I take in hand the newspapers and
com meu ardor eu o tomarei. with my heat I will take him.
He will bend down toward me
Ele se inclinará ante mim and his veins will tumble out
e suas veias saltarão like children... Give me
his flag and his eye.
feito crianças... Me dê Give me his hard shell and his lip.
sua bandeira e seu olho. He is my evil and my apple
and I´ll see him home

34
Depois de Auschwitz

A ira Que o homem nunca mais erga sua xícara de chá. After Auschwitz
negra como um gancho, Que o homem nunca mais escreva um livro. Anger,
me atinge. Que o homem nunca mais calce seu sapato. as black as a hook,
overtakes me.
Cada dia, Que o homem nunca mais erga seus olhos, Each day,
cada Nazi na noite macia de Julho. each Nazi
took, at 8:00 a.m., a baby
fisgava, às 8:00, um bebê Nunca. Nunca. Nunca. Nunca. Nunca. and sauteed him for breakfast
e dourava-o para o café da manhã Digo essas coisas em voz alta. in his frying pan.
em sua frigideira. Imploro ao Senhor que não ouça. And death looks on with a casual eye
and picks at the dirt under his fingernail.
E a morte observa com olhar casual Man is evil,
e esgaravata a sujeira sob as unhas. I say aloud.
Man is a flower
that should be burnt,
O homem é perverso, I say aloud.
Man
digo em voz alta. is a bird full of mud,
O homem é uma flor I say aloud.

que deve ser incinerada, And death looks on with a casual eye
digo em voz alta. and scratches his anus.

O homem Man with his small pink toes,


é um pássaro cheio de lama, with his miraculous fingers
is not a temple
digo em voz alta. but an outhouse,
I say aloud.
Let man never again raise his teacup.
E a morte observa com olhar casual Let man never again write a book.
e coça seu ânus. Let man never again put on his shoe.
Let man never again raise his eyes,
on a soft July night.
O homem com seus róseos artelhos, Never. Never. Never. Never. Never.
I say those things aloud.
com seus miraculosos dedos
não é um templo,
mas um casebre,
digo em voz alta.
35
O beijo The Kiss

My mouth blooms like a cut.


Minha boca floresce como uma ferida. I’ve been wronged all year, tedious
nights, nothing but rough elbows in them
Todo o ano estive equivocada, tediosas and delicate boxes of Kleenex calling crybabay
noites, nada senão ásperos cotovelos crybaby, you fool!
e delicadas caixas de Kleenex, chamando chora menina Before today my body was useless.
chora menina, sua tola! Now it’s tearing at its square corners.
It’s tearing old Mary’s garments off, knot by knot
and see – Now it’s shot full of these electric bolts.
Antes de hoje meu corpo estava inútil. Zing! A resurrection!
Agora está desgarrando-se em seus cantos quadrados Once it was a boat, quite wooden
Está rasgando as roupas da velha Mary, nó a nó. and with no business, no salt water under it
and in need of some paint. It was no more
Zing! Uma ressurreição! than a group of boards. But you hoisted her, rigged her.
She’s been elected.

Uma vez foi um barco, bastante rígido My nerves are turned on. I hear them like
e sem trabalho, sem água salgada embaixo musical instruments. Where there was silence
the drums, the strings are incurably playing. You did this.
e precisando um pouco de pintura. Não havia mais Pure genius at work. Darling, the composer has stepped
que um conjunto de tábuas. Mas você içou-a, equipou-a. into fire.

Ela foi eleita.

Meus nervos estão acesos. Ouço-os como


instrumentos musicais. Onde havia silêncio;
tambores e cordas tocam irremediavelmente
Puro gênio trabalhando. Querido, o compositor tem pisado
em fogo.

36
Roupas
Como roupa íntima escolherei de algodão branco,
Vista uma camisa limpa as calcinhas que usava na minha infância,
antes de morrer, disse algum homem russo. por ordem da minha mãe;
Que não tenha baba, por favor, as boas meninas só usavam algodão branco.
sem manchas de ovo, sangue Se minha mãe tivesse vivido para o ver,
suor, esperma. ela teria posto anúncio de “Procura-se” nos correios
Quer-me limpa, Deus, para o preto, o vermelho, o azul que eu usava.
assim tentarei obedecer. Assim, seria perfeito para mim
O chapéu que me casei ao morrer como uma menina boa
servirá? cheirando a Clorox e a Duz.
Branco, largo e com um buquezinho de flores falsas. Tendo dezesseis anos nas calças
É antiquado, tão elegante como um percevejo, eu morreria cheia de perguntas.
Mas serve bem ao morrer em algo nostálgico.

E vestirei Clothes
a camiseta de pintar Put on a clean shirt the padded black one that my lover demeaned
tantas vezes lavada, é claro before you die, some Russian said. when I took it off.
Nothing with drool, please, He said, “Where’d it all go?”
com as manchas de cada cozinha amarela que pintei. no egg spots, no blood,
Deus, não se importa de eu levar todas as minhas cozinhas? no sweat, no sperm. And I’ll take
Elas conservam o riso da família e a sopa. You want me clean, God, the maternity skirt of my ninth month,
so I’ll try to comply. a window for the love-belly
Como um sutiã that let each baby pop out like and apple,
(precisamos mencioná-lo?) The hat I was married in, the water breaking in the restaurant,
will it do? making a noisy house I’d like to die in.
Aquele preto com enchimento que meu amante desdenhou White, broad, fake flowers in a tiny array.
quando o tirei. It’s old-fashioned, as stylish as a bedbug, For underpants I’ll pick white cotton,
Ele disse: “Pra onde foi tudo?” but is suits to die in something nostalgic. the briefs of my childhood,
for it was my mother’s dictum
And I’ll take that nice girls wore only white cotton.
E vestirei my painting shirt If my mother had lived to see it
washed over and over of course she would have put a wanted sign up in the post office
a saia de grávida do meu novo mês, spotted with every yellow kitchen I’ve painted. for the black, the red, the blue I’ve worn.
uma janela para a barriga amorosa God, you don’t mind if I bring all my kitchens? Still, it would be perfectly fine with me
They hold the family laughter and the soup. to die like a nice girl
que permitiu cada bebê brotar feito uma maçã, smelling of Clorox and Duz.
as águas romper no restaurante, For a bra Being sixteen-in-the-pants
tornando-o um lugar barulhento onde eu gostaria de morrer. (need we mention it?), I would die full of questions.

37
Gabriel Pedrosa

canto e contracanto as cidades são shoppings sem paredes palavras machas pelos
contrapondo os shoppings são cidades sem pobres coisas
ponto a ponto os pobres são paredes sem shoppings juntadas ao acaso
ao discurso-desencanto as paredes são pobres sem cidades na estranha ordem deste encontro
um lugar de encontro quando nos fazemos
cidade (como se um céu
vida a contrabando acima do céu houvesse
e um sol queimasse
em nossas costas
a sombra de estrelas
cartas
os dias escritos por sob os dias
tecidos
entre os cheiros da vida transbordada)
um novo sentido

38
E.E. Cummings
Traduções de R. Ponts

15 poemas
ac fl ou- lis-
h a ça ten
at tt
ada ene você sabe o que quero dizer quando you know what i mean when
o primeiro cara cai você sabe the first guy drops you know
ss dd todo mundo se sente mal ou everybody feels sick or
em reaml quando eles lançam algum gás when they throw in a few gas
sonhi essn e ah cara a metralhada and the oh baby shrapnel
dad esse
ou meus pés amortecendo congelando ou or my feet getting dim freezing or
es es s wa água até o seu você sabe o que ou up to your you know what in water or
peram it com os insetos subindo fervilhando with the bugs crawling right all up
escarr sp por todo você todinho eu cada um all everywhere over you all me everyone
a i
que esteve lá sabe o que that’s been there knows what
m)(m t)(t quero dizer uma porrada de i mean a god damned lot of
uit he gente não sabe e nunca people don’t and never
a s nunca never
s e
vai saber, will know,
f f eles nem ao menos ques- they don’t want
orma ooli
ss sh sh tio- to
uperficiais apes
não no
ttotostosstossi ccocoucougcoughcoughi
ndo com os home ng with me
ns menos de n more o
ntro deles que nele n than in the
s m
39
se eu creio e quando of seatides
i trusted not,
na morte esteja certa eu tiver entregado cada fragrante one night
disto noite, quando todos os meus dias when in my fingers
creio hão de ter ante uma certa drooped your shining body
when my heart
porque você me amou, face tornado-se um sang between your perfect
breasts
lua e ocaso branco
estrelas e flores perfume darkness and beauty of stars
áureo crescendo e prata emudecer apenas, was on my mouth petals danced
against my eyes
das cinzas and down
de marés então
the singing reaches of
neles não confiava, tu te erguerás e tu my soul
uma noite virás a ela e afastarás spoke
quando em meus dedos the green-
a maldade de seus olhos e envolverás greeting pale-
esmorecia seu corpo brilhante sua departing irrevocable
sea
quando meu coração boca a nova i knew thee death.
cantava entre seus seios flor com
perfeitos and when
i have offered up each fragrant
tuas inimagináveis night, when all my days
a escuridão e a beleza de estrelas asas, onde mora o sopro shall have before a certain
estavam em minha boca pétalas dançavam de todas as estrelas que persistem face become
batendo em meus olhos white
e caindo perfume
only,
from the ashes
os cantantes alcances de then
thou wilt rise and thou
minha alma wilt come to her and brush
falavam if i believe
ao que verde- in death be sure the mischief from her eyes and fold
of this her
it is mouth the new
vem pálido- flower with
because you have loved me,
parte irrevogável moon and sunset thy unimaginable
mar stars and flowers wings, where dwells the breath
eu conheci tua morte. gold crescendo and silver muting of all persisting stars

40
quem sabe não é a lua vo falah pru mundouvi ieo djigu
um balão que flutua,assomando de pungente cidade ussetah mintendenu elidjiz inrrolanu ubi godji, eo
ao céu – cheio de gente gentil? to qaganu pruce eo djigu. Tom
(e se você e eu entrássemos eonum qeru, maezvoteqi
tchidjispençah, éu qeli midjiz. (Góreo tchiprguntu
nele, se eles içunhuia dexah ucediqu
aceitassem a mim e a você no balão deles que flutua, vradu? Eo axu qia.) –Qeim éqi
ora então miarranjumlãqui? Brigadupiá. Merssi.
nós subiríamos acima com toda a gente gentil Meo djinheru jaéra. Pelu amordji Deoz
das casas e campanários e nuvens: jaxegaqara numteimaiznadpfazê?
velejando EIA
além e além velejando rumo a uma pungente
cidade que ninguém jamais visitou, onde ucequitahdjipermanentchi i quuquelelêoumtrequdecis
toqalgumaqoizaprajitaheçaporrah
sempre
é
Primavera)e todo mundo vive
apaixonado e as flores mesmas se colhem a si

who knows if the moon’s


a balloon,coming out of a keen city
in the sky – filled with pretty people?
(and if you and i should

get into it, if they oil tel duh woil doi sez
should take me and take you into their balloon, dooyuh unnurs tanmih eesez pullih nizmus tash,oi
why then dough un giv uh shid oi sez. Tom
we’d go up higher with all the pretty people oidoughwuntuh doot,butoiguttuh
braikyooz,datswut eesez tuhmih. (Nowoi askyuh
than houses and steeples and clouds: woodundat maik yourarstoin
go sailing green? Oilsaisough.) -Hool
away and away sailing into a keen spairruh luckih? Thangzkeed. Mairsee.
city which nobody’s ever visited, where Muh jax awl gawn. Fur Croi saik
ainnoughbudih gutnutntuhplai?
always HAI
it’s
Spring)and everyone’s yoozwidduhpoimnuntwaiv un duhyookuhsumpnruddur
in love and flowers pick themselves givusuhtoonunduhphugnting

41
você you
no in in win
verno que sentado ter who sit
morrendo pensando dying thinking
embaraçado atrás de uma ví huddled behind dir
trea e confusa mente embaçada ty glass mind muddled
e abraçada por sonhos(ou às and cuddled by dreams(or some
vezes vagamente fitando através de des times vacantly gazing through un
lavadas vidraças um monte de washed panes into a crisp todo of
assassinas faces anônimas que passam rap murdering uncouth faces which pass rap
idamente com seus sopros.)“as pessoas são mortes que vagam idly with their breaths.)“people are walking deaths
nesta estação” pensa “a finalidade vive in this season” think “finality lives up
nelas um pouco mais abertamente que o usual on them a little more openly than usual
pra cá, pra lá que com prazo e pressa carregam a as hither,thither who briskly busily carry the as
sombrosa & espontânea & difícil feiura tonishing & spontaneous & difficult ugliness
de si mesmas com uma mais incisiva simplicidade uma of themselves with a more incisive simplicity a
mais intensivamente brutal finalidade” e sentado se more intensively brutal futilit” And sit
embaraçando burramente atrás de três ou duas parcialmente tran huddling dumbly behind trhee or two partly tran
sparentes vidraças que por algum truque desamorado sepa sparent panes which by some loveless trick sepa
ram uma paralisada mente imóvel de uma cen rate one stilled unmoving mind from a hun
tena de acelerantes cérebros condenados(por uns dois dred doomed hurrying brains(by twos
ou três que forçosa e rapidamente or threes which fiercely rapidly
passam com seus sopros)no in pass with their breaths)in win
verno você pensa,morre lenta ter you think,die slow
mente “toc tic” ao que ly “toc tic” as i
eu vejo árvores(em have seen trees(in
cujos corpos pre whose black bod
tos folhas ies leaves
somem hide

42
pequeno homem estes pequenos noiva & noivo
(numa pressa ficam) em um tipo
imersa em de coroa ele trajando
preocupação imensa) preto açúcar ela
alto pare esqueça relaxe
com véu de açúcar branco
espere carregando um buquê de
pretensas flores esta
(pequena criança coroa de açúcar com esta pequena
que tem tentado
que tem falhado noiva & pequeno noivo
que tem chorado) de açúcar em si tipo que fica sobre
deite-se bravamente uma fina camada que fica sobre uma muito
menos fina e ainda muito mais this little bride & groom are
durma little man standing)in a kind
(in a hurry of crown he dressed
full of an
grande & tipaço de camada & que in black candy she
grande neve important worry) tipaço que fica sobre uma
halt stop forget relax veiled with candy white
grande chuva muito mais que ainda mais carrying a bouquet of
grande sol wait grandíssima & espessíssima & tipíssimo pretend flowers this
grande lua candy crown with this candy
(little child
(adentre- who have tried de camada & todas uma duas três camadas little bride & little
who have failed
who have cried) são bolo & tudo é protegido por groom in it kind of stands on
a thin ring which stands on a much
nos) lie bravely down celofane contra qualquercoisa (porque less thin very much more
sleep nada realmente existe
big & kinder of ring & which
big rain kinder of stands on a
big snow much more than very much
big sun biggest & thickest & kindest
big moon
(enter of ring & all one two three rings
are cake & everything is protected by
us)
cellophane against anything (because
nothing really exists

43
Se não dá pra comer ‘cê tem que à boca pequena
(e surge tão lento
fumar e não temos não se não por que
nada pra fumar:ora garoto sem conhecimento

vamos dormir saídos de cena


se não dá pra fumar ‘cê tem que (não com e não sem
não eu não você)
Cantar e não temos e surge tão quem

nada pra cantar:ora garoto


vamos dormir

se não dá pra cantar ‘cê tem que If you can’t eat you got to
morrer e não temos smoke and we aint got
nothing to smoke:come on kid
Nada pra morrer,ora garoto let's go to sleep
if you can't smoke you got to
vamos dormir Sing and we aint got
se não dá pra morrer ‘cê tem que
nothing to sing;come on kid
let's go to sleep
sonhar e não temos if you can't sing you got to
nada pra sonhar(ora garoto die and we aint got

Nothing to die,come on kid neither could say


Vamos dormir) (it comes so slow
let's go to sleep not since not why
if you can't die you got to both didn’t know

dream and we aint got exeunt they


nothing to dream(come on kid (not false not true
not you not i)
Let’s go to sleep) it comes so who

44
Belo Gri Cri
L C
o k
éo
s et
insigni in in
ficado -visíveis em todos os -visible every
da(sil cantosos;tênue.mente estridulam Mais whereish;faint.ly shrill Most
(agudo) (keen)
ente)neve sino Do,susto um de bell Of,shy a
rachar spirit
em fl(em :a alma :twisting
chio!ex cry!ex
to transparente transparent
di or
do
espaço) -ária- -din-
mentoso;veloz- arywish;quick-
Oco issimamente universal suss liest universal whis
urro(Coi per(Wis
s p
Inha de Like un
nada thing
)audível )hearble
remo em um tão tre oar in a such tre
Beautiful
men men
is the do Mar dous Sea
unmea que who
ning
of(sil nossos our
p r ó p r i o s ser s e l v e s be
ently)fal es,Chamam “ ing,Call “
ling(e t t
ver E I
yw M M
here)s po e
Now ” ÀsvezeS ” SometimeS
45
se você gosta de meus poemas permita-lhes Hokku
andar ao anoitecer,um pouco atrás de você
Não me importo muito
então pessoas dirão Se se lembrarão de mim
“Por esta estrada eu vi passar uma princesa Em algum futuro.
em seu caminho para encontrar seu amado(aproximávamos
do ocaso)com criados altos e ignorantes” Existe a jornada,
E quem está para a estrada
Ama não tardar.

A noite o convoca,
Fora da aurora e crepúsculo
O que fez poemas.

Hokku

I care not greatly


Should the world remember me
In some tomorrow.

if you like my poems let them There is a journey,


walk in the evening,a little behind you And who is for the long road
Loves not to linger.
then people will say
“Along this road i saw a princess pass For him the night calls,
on her way to meet her lover(it was Out of the dawn and sunset
toward nightfall)with tall and ignorant servents” Who has made poems.

46
Você está cansada, Eu tentarei as insurpreendentes estepes de sonho,
(Eu acho) Até que encontre a Flor Única,
Do sempre enigma da vida e lida A qual há de manter (eu acho) seu coraçãozinho
E eu também. Enquanto a lua nasce do mar.

Venha comigo, então,


E nós o deixaremos longe e longe bem –
(Só você e eu, entenda!)

Você brincou, You are tired,


(I think)
(Eu acho) Of the always puzzle of living and doing;
And so am I.
E quebrou os brinquedos de que mais gostava,
E está um pouco cansada agora; Come with me, then,
And we’ll leave it far and far away –
Cansada de coisas que quebram, e – (Only you and I, understand!)
Cansada apenas.
You have played,
Eu também. (I think)
And broke the you were fondest of,
And are a little tired now;
Mas eu venho com um brilho em meus olhos nesta noite, Tired of things that brake, and –
E bato com uma rosa nos portais sem-esperança de seu coração – Just tired.
So am I.
Abra pra mim!
Pois eu lhe mostrarei os lugares que Ninguém conhece, But I come with a dream in my eyes tonight,
And I knock with a rose at the hopeless gate of your heart –
E, se você quiser, Open to me!
Os perfeitos lugares do Sono. For I will show you the places Nobody knows,
And, if you like,
The perfect places of Sleep.
Ah, venha comigo!
Ah, come with me!
Eu soprarei pra você aquela maravilhosa bolha, a lua, I’ll blow you that wonderful bubble, the moon,
Que flutua eterna e um dia; That floats forever and a day;
I’ll sing you the jacinth song
Eu lhe cantarei o jacinto canto Of the probable starsç
I will attempt the unstartled steppes of dream,
Das prováveis estrelas; Until I find the Only Flower,
Which shall keep (I think) your little heart
While the moon comes out of the sea.

47
Fabiano Calixto
Apollo Is a Girl afiadas a persiana, cruzar os pães sobre a aquele velhinho, cujo azul salgado do
mesa. Terrível o planeta que criamos... Sim, mar ardia-lhe a pele, e não pescava peixe
Ela lê sobre os ataques corsários no golfo mas também sintomático, como aquele algum há 84 dias, até entrar num violento
de Aden, costa da Somália. Os somalis não sonho que você teve por dias seguidos, onde combate com o enorme espadarte que,
querem viver de cheirar fumaça de óleo diesel. um artista cego repetia infinitamente a vencido, negou-lhe a carne e esparramou
Fisgaram iates de luxo, pesqueiros, veleiros. mesma oração: “Não se tira leite de tanques apenas seu imenso esqueleto à orla. E nós
Agora, o superpetroleiro saudita Sirius Star. de guerra”. “Não se tira leite de tanques também gostamos de biscoitos de gengibre,
Para libertar o navio e a tripulação, exigem de guerra”. “Não se tira leite de tanques de música vienense, de fumar e de beber
US$ 25 milhões – no abominável estômago de guerra”. Até que a oração perdesse o licores fortes como metal fundido. Mas não
de aço do superpetroleiro, dois milhões de sentido por completo. Ele tinha sempre somos mesquinhos, não posamos de subversivos
barris de petróleo avaliados em US$ 100 as mãos ensanguentadas e sua obra era doentes de esnobismo burguês. O tiro de
milhões. Não queremos que as negociações uma reprodução hiper-realista em Lego de fuzil aceso na semântica de um poderoso
se eternizem, afirmou o comandante corso. Eduardo Collen Leite após ser torturado por verso pode alterar alguma frase na prosa da
O príncipe saudita decidiu desembolsar a 109 dias consecutivos. A precisão do artista história? Pode derrubar um caça israelense
nota preta. A Blackwater logo aportará por em esculpir o corpo repleto de queimaduras, momentos antes de descarregar sua diarreia
ali com setenta mercenários cuspindo coca- as orelhas decepadas, olhos vazados, dentes sobre os civis na Palestina? Poderia, naquele
cola e chumbo. O jornal diz que a Somália arrancados, escoriações, hematomas e 16 de setembro de 1982, conter as milícias
é o país mais falido do mundo e que depende centenas de rasgos, a impressionou. Tanto cristãs libanesas que invadiram os campos
de ajuda humanitária internacional para que a vida também perdeu por completo de refugiados palestinos de Sabra e Chatila
sobreviver. Aqueles olhos, antes castanhos, o sentido para você, lembra? Sempre há e massacraram a população? Poderia ter
abusavam um azeviche sem alavanca de quem tente mudar as coisas. Como aquele evitado o assassinato dos ativistas Michael
reparo, como se o jornal lhes houvesse homenzinho que dedicara sua vida a olhar Schwerner, Andrew Goodman e James
imprimido o imundo carvão de suas tralhas. demoradamente pinturas dos grandes Chaney cometido pela Ku Klux Klan no
Às vezes imagino que minhas palavras são mestres franceses e derrubar o governo dia 21 de junho de 1964? Poderia nos
como chips de silício afundando num pântano, da Rússia. Sim, exato, mas o que fazem os salvar de nossa inevitável desolação? Uma
disse, antes mesmo que a magra luz do jovens inteligentes das famílias abonadas, rima pode algo contra uma carnificina?
sol de inverno pudesse, com suas lâminas senão falar de literatura e de pintura? Ou Jamais! Somos, todos nós, editores de discursos

48
perversos, desembrulhando bombons e vendo com a qual sempre caminhava pelo St.
ouro onde não há. Eu poderia cantar uma James Park refletindo sobre as questões
canção para descansar a menina dos seus de impasse e espera nas peças de Beckett.
olhos. Estamos sempre prontos, vestidos Os torturadores caminham de fraque pelo
com nossas camisas, quase sempre claras, anfiteatro de cúmulos da inconsciência
de tecido barato. Esvaziamos os copos, coletiva. Quem na verdade morresse
tentamos riscar um sorriso no rosto um do tuberculoso e molambento, antes dos dezesseis
outro. Tentamos pensar que, mesmo sob a anos, seria o único talvez a ter razão. Os
manta de peste desta miséria terrível, ainda outros se dilaceram entre si. Eles se vendem,
vale a pena continuar respirando por este são vendidos, eles se venderão para todo o
planeta. Como o casal que caminha de mãos sempre. Vivemos momentos nulos. Ainda
dadas e cujas camisetas azul e vermelha assim, meu coração teima em bater. É a
machucam o cinza esquizofrênico da cidade teima que preciso para continuar a construir
bombardeada. É preciso que diga como vejo locomotivas e acrobatas. Essa lua vermelha,
esta maçã, a rua, as pessoas, meu cinzeiro debaixo de nuvens encardidas, essa
de cerâmica, aquela garota na janela, já que eternidade que nos foge e que a tudo deita
foi isso que escolhi como referência neste cor: você pega minha mão e diz: imagina
momento em que a astrofísica se centraliza se o mundo fosse uma cama e a gente pudesse
novamente na história do cosmo. São as andar de meia o tempo todo.
linhas da minha mão que me levam ao
centro do mundo ou o centro do mundo
que me leva às linhas da minha mão? Viver
é a profanação do improvável. I have become
so depressed by the fact of my mortality that I
have decided to commit suicide. Na verdade,
queremos apenas alguma serenidade. Já
passamos dos trinta e sabemos que ela
realmente se matou. Enforcou-se com um
cadarço que arrancara de sua bota preta

49
Dirceu Villa
o silêncio, o exílio, a astúcia
Shem, the penman
 
eles estão todos velhos sobretudo o antônimo da vida que quer eles guardam os outros em caixas
  seus pequenos prazeres e dores garantidos para sair no dia de presentes ou para encantar
eu, sobretudo que errei nos dois sentidos de errar uma noite especialmente morta
  e que não obstante agora sei ou um amor já murcho, em forma de mero
eles estão velhos,   /calor de cobertores
comem sua comida ancestral, ouvem & eles estão desde já todos  
falsas notícias que acabam de sair na tv velhos e querem cortar a grama do meu jardim, sentam-se sobre a vida e olham as folhas
dos velhos comunicadores em conserva trazer-me as cartas à cama com o café amarelando, essas folhas tolas de vida curta
  e comentar as trivialidades do jornal que amarelam e caem: por que se mover?
adoecem com o trabalho /em pantufas ou por que em nome de deus não ficar quieto
acreditam no amor medieval da igreja sentir que deus não punirá seus deslizes e sossegar de uma vez por todas?
e dos trovadores, sem ter lido /inocentes ou cruéis te perguntam
a bíblia ou os trovadores mas eles mesmos estão prontos para bater  
  /o martelo e eu antes respondia na boa-vontade da partilha
encomendam filhos à cegonha da condenação alheia e eu agora dou uma piscadela
ou à lebre e nascem mais e mais crianças   e que entendam como quiserem
para a interrogação velhos, e precipitados, eles temem já que o exemplo é como a fábula,
  criam corvos, e confortos presos em correntes só acaba no verso final
estão velhos e sorrindo para não fugir, e deixam minhas palavras  
da piedade que o mundo benevolente /para fora – velhos demais para permitir
lhes concedeu de agasalho, dinheiro junto com os cachorros, as plantas que algo novo lhes comova.
comida e companhia ladrões, loucos e prostitutas
   
há os medrosos um brinquedo que acionem
  e lhes faça a todos as vontades
eu, sobretudo indigno
 

50
cefalópode finezas que se foram

leio que o polvo gigante é silencioso, mordomos furtivos acendem ideias na mansão
fluindo sem ossos em noite profunda; longas pernas saltitantes de criados-mudos
sem corpo: cabeça e tentáculos só. nós engomamos brumas para fora
hectocótilo, o seu sexo imóvel; gravatas borboleta ainda nos casulos
& comer, um plano de lentas ventosas:
alcança, então prende, consome e se move. & há bem menos luvas de pelica no mercado
produz uma tinta e escreve com ela desde que baniram os duelos.
arabescos ilegíveis no oceano,
água que os esquece quando estão impressos
[se diz: rapida scribere oportet aqua]
na melancólica tinta que o camufla.
também os zoólogos comem sua carne?
– imenso, mas sem corpo, o mole covarde
escreve apenas quando foge ao que não sabe.
pegajoso, e o que expele suja o azul.

51
Avelino de Araujo
Apartheid soneto

Minimal Art

52
Marcio-Andre
Poema de sete faces3 Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
Quando nasci, um anjo torto seria uma rima, não seria uma solução.
desses que vivem na sombra Mundo mundo vasto mundo,
disse: Vai, André! ser gauche na vida. mais vasto é meu coração.

As casas espiam os homens Eu não devia te dizer


que correm atrás de mulheres. mas essa lua
A tarde talvez fosse azul, mas esse conhaque
não houvesse tantos desejos. botam a gente comovido como o diabo.

O bonde passa cheio de pernas:


pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode


é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode,

Meu Deus, por que me abandonaste


se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

3 Poema inédito em livro. Publicado pelo autor anteriormente na revista de poesia Be My Mafia
Family!, janeiro de 2010.

53
por um animal um salmão penetra a tarde em quietude de peixe
todo-feito de tetra-pak metaleve o lume
que se devora enquanto se move
phlox ou o flúor de mil flores –
esse animal-caligrama
que transpassa o alfabeto através do corpo da janela a fábrica estacionada como um trem

e a imundície da rua através do tempo falha única no coração do homem


ou o negativo de um homem
usina de merda contra
as mil falhas tectônicas do céu e a raça natimorta das roupas nos varais

mesmo a morte faz mais sentido quando para ordenar os livros é preciso desarrumar a cidade
fodemos e todas as coisas que não têm deus
usina de força gerando forças contrárias
as pipas no fim da tarde ancoram as casas no céu
uma pedra sobre a mesa tem mais alma q e vislumbramos:
um buracos negros são rebarbas de universo
rinoceronte a lograr-se
no ladrilho das placas

ou ainda
esse ordinário que vive das coisas complexas:
o dia a dia alternando suave
os terrenos baldios a ordem das casas os
vagões de trem

54
Lilian Aquino
Último botão Acesso
Para Diego Jock
Porque a rua
Esperava estava vazia na madrugada
sacudida por soluços o asfalto molhado,
mas não adiantava nenhuma tratei logo de abrir
simpatia ou tomar água, as portas procurando
nada. não amolecer
as fibras da madeira
Na sala dos passos perdidos a textura do seu corpo
eram renovadas, a todo momento, trama de pele e osso
as pessoas em volta já que o aguaceiro
: um breve som do roçar de saias da chuva recém-caída
e os sapatos conhecendo escoava pela sarjeta
aquele não-lugar, furiosamente
um ar em redemoinho Atrás de mim, você
impossível pegar com e certos tons vermelhos
as mãos. me davam
coragem de ser tímida
Já ele, inventava essências e eu ventava
nos corredores curtos, mas largos balançando os quadris
só tentando não bater as pernas As janelas, então,
E do seu casaco aberto apenas certas de que você
no último botão tira um punhado de me roubaria
folhas, atravessa até ela e diz: traços do meu rosto
das minhas coxas,
– Alfazema, toma. Coloca no bolso. deixavam amanhecer o dia
enquanto a chave balançava na
fechadura.

55
Ricardo Domeneck
Garage Days ideia de ter seu trabalho enquadrado no discurso das carreiras
: promissoras, discurso que ele próprio combateu como poeta-crítico.
Se a sua poesia pode hoje, infelizmente, integrar a triste lista dos
Uma homenagem a Leonardo Martinelli
poetas brasileiros de morte prematura, como Augusto dos Anjos,
Pedro Kilkerry, Mario Faustino, Torquato Neto e a própria Ana
Pensando em Leonardo Martinelli Cristina Cesar que ele homenagearia, com exasperação, no poema
“Elegia/acc”, com os versos “Não, / Ana, nem / vem que não / tem:
O poeta Leonardo Martinelli morreu aos 37 anos, no Rio de Janeiro que / há para celebrar? / Teu salto / descalço na piscina / vazia? / As
onde nasceu, com um único livro publicado, Dedo no ventilador vinte e poucas / edições de tuas / obras / incompletas?”, chegando
(2005), além de inúmeros ensaios, resenhas e poemas esparsos, à asserção franca de “Foda-se, / Ana C., // você exaspera / qualquer
espalhados por publicações impressas e digitais. Se a sua morte um / com dúvidas, dívidas / filhos e culhões / com esses ares /
acaba por dar à sua obra o caráter inevitável de incompletude e de sereia pré-rafaelita / perdida / no Baixo Gávea”, seu trabalho
interrupção, creio que poucas coisas o irritariam tanto quanto a merece, como o destes poetas, ser avaliado por suas contribuições
e conquistas específicas, acima do discurso que Flora Süssekind
já chamou de hagiográfico, dedicado com frequência e certo
oportunismo crítico a jovens poetas mortos.

Conheci o trabalho de Leonardo Martinelli (1971-2008) na


revista carioca Inimigo Rumor, com a qual ele viria a colaborar
regularmente, chegando a fazer parte de seu comitê editorial. Na
revista ele estrearia com poemas, além de ensaios, como o texto
importante que dedicou, ainda muito jovem, ao trabalho de Ferreira
Gullar. Formado na década de 90, período em que vigorava, como
parâmetro de qualidade, a poética construtivista que se depreendia
da obra de João Cabral de Melo Neto (1920-1999) e Augusto de
Campos (n. 1931), privilegiando uma composição minimalista e
concisa em concretude, com um trabalho marcado pela consciência
da materialidade substantiva e visual da linguagem, o que também

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marcou as traduções de maior influência Dorian Creio que seus melhores textos estão entre
no período, como as do norte-americano aqueles que foram produzidos e divulgados
Então fitei nos últimos dois anos de sua vida, quando
Robert Creeley (1926-2005), parte do
a tela – meus Martinelli elide a camuflagem do eu-
trabalho de Leonardo Martinelli poderia olhos impressos
ser agrupado à estética que comandou a ventríloquo que passou a se flagrar cada
no espelho
atenção de muitos poetas jovens daquele (leitor-irmão vez mais em alguns casos desta poética da
momento, pelo menos ao sul e sudeste do de sangue e tinta objetividade, no fim do século xx e início do
país, no fim do século passado, tal qual a ausente) xxi, retornando, creio poder dizer, à lição de
Cupins e traças Ezra Pound, a que predicava o tratamento
vemos em livros tão diversos entre si quanto
se encarreguem direto da coisa, seja objetiva ou subjetiva,
Solo (1996), de Ronald Polito; O marciano da moldura:
(1997), de Felipe Nepomuceno; Fábrica além do importante conselho de que only
quem sabe de mim
(2000), de Fabiano Calixto; Prosa (2001), emotion endures, entregando-nos alguns
sou ele
de Eduardo Sterzi; Carbono (2002), de Tarso de seus poemas mais bonitos. Sua ligação,
de Melo; Geografia íntima do deserto (2003), no Rio de Janeiro, à música popular viria
Em seus poemas posteriores, Leonardo
de Micheliny Verunschk; ou Crivo, de a trazer ao seu trabalho uma aproximação
Martinelli parece introjetar a tática do
Danilo Bueno, e Primeiro as coisas morrem, escritural à mímica dos enunciados orais,
conciso, para então transformá-la em
de Diego Vinhas, ambos de 2004. Essa sem, no entanto, recorrer a um discurso do
uma espécie de estratégia do pontiagudo,
poética pode ser ainda ligada a Sebastião espontâneo falsificado, outro aspecto que o
passando a evitar o descritivo neutro de
Uchoa Leite (1935-2003) e encontra raízes, aproxima à simplicidade da dicção do poeta
paisagens urbanas e máscaras mortuárias (cf.
no Brasil, em modernistas como Oswald de português João Apolinário, injustamente
“Nietzsche: máscara mortuária”), assumindo
Andrade (1898-1954) e Joaquim Cardozo esquecido.
também um desejo de intervenção histórico-
(1897-1978), sem mencionarmos poetas textual, o que marca sua participação
portugueses como João Apolinário (1924- Não compete ao crítico a veleidade
no afastamento que temos sentido, nos
1988), António Ramos Rosa (n. 1924) futurológica. Poemas provam sua força,
últimos tempos, da ideologia ligada a um
ou mesmo Ana Hatherly (n. 1929), com alguns diriam, por sua longevidade
conceito questionável como o de “trans-
conexões variadas ao trabalho dos poetas canônica, outros, por sua flexibilidade
historicidade”. Como exemplos, poderíamos
brasileiros mencionados. Alguns destes histórica, mostrando-se capazes de prover
mencionar os poemas “Três torres, dois
poemas, como “Anular” ou “Dorian”, viriam aquilo que necessitam as gerações sucessivas,
séculos, um dia” e “Dois fogos”, que
a integrar seu único volume editado. adaptando-se aos novos parâmetros de
integram esta seleção.
qualidade e às novas funções históricas dos

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poetas, em cada um de seus contextos. Se pensarmos em poetas
de morte prematura, como Sylvia Plath, cuja obra tanto lucrou
como foi prejudicada pelo discurso hagiográfico que a envolveu
por muitos anos, encontraremos um exemplo de trabalho poético
que, se se fragilizou com o tempo em suas manifestações iniciais,
segue mostrando-se vigoroso em seus textos finais, escritos sob a
pressão do terror que estreita (na estonteante etimologia da palavra
angústia), como é o caso de uma das séries de poemas finais de
Plath, conhecida como “poemas das abelhas”. Acima de quaisquer
discursos de perfeição formal, são textos que perduram pelo choque
intenso entre o veículo e o que veicula. Uma avaliação mais clara
e completa sobre o seu trabalho poético e crítico só será possível
quando todos os textos dispersos forem reunidos em um volume
futuro. Minha crença e aposta, por ora, torna-se aqui pública em
favor de alguns dos poemas finais de Leonardo Martinelli, como
o bonito “Receita para curar e engolir o fracasso”, um dos poemas
memoráveis (outro parâmetro crítico de Pound, o memorável) e
também um de meus poemas favoritos nesta década que se encerra,
entre alguns outros poemas do carioca. Textos que, eu creio, serão
capazes de manter pontiagudas suas quinas, para perfurar cérebros e
miocárdios futuros, em seus terrores privados e públicos, ou talvez
ajudando-os a cavar, cavar até encontrar do estreito o escape.

Berlim, 30 de março de 2010

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Leonardo Martinelli

Uns Riffs: 2. Embrulhe o fracasso gentis suburbanas


Miniantologia com jornal de ontem à mesa

3. Afogue duas postas numa Rende


Receitas para engolir e curar o fracasso panela de barro contendo para uma duas três
dois litros de vinho barato mil pessoas
Origem, compra, preparo e sabor
Salgue e asse Posologia
1. Ave sertaneja em fogo alto
de porte médio Uma vez
fibrosa, rija Enfeite o prato hiperdosada
de vida noturna com uma dúzia de vai-se a bula ao
mar de bile
Preços: vinte e amóreas secas + 100g
sete contos o quilo de fios de óvulos
no Mercadão de
Madureira ou 4. Aí vai ele
numa baixela dourada
trinta e sete ridícula – duas
(ágio de dez paus) palavras
nos açougues febris em francês fajuto
da rede Mundial farão sorrir amarelo

O jeito é pegar o rapaz de


um 254 na madruga meia-idade e enrubescer
ou encarar de frente as bochechas
o trem da Central
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Três torres, dois séculos, um dia Her Majesty Inferno dos Amantes

A primeira tornou-se mito Mulher dormindo, Impiedosamente


ao servir de suporte à loucura aquém do espectro
de um poeta farto dos homens luminoso de anúncios Pernas e ancas recusam-se ao
a não ser por certa Susette e automóveis lassos moto-contínuo (lençóis bocejam)
falecida quatro anos antes ao relento – seu corpo nenhuma litania à lua exceto
dele abrir seu prontuário exausto nada pede o olhar rasante, kamikaze – sono
no manicômio de Tübingen içado por anzóis de luz
em 11 de setembro de 1806 senão que o deixemos
em paz, no silêncio Impiedosamente
As outras chamavam-se Gêmeas de um quarto, entregue
cravadas no centro de Manhattan à calmaria do sono. Dígitos febris alteram a senha
bombeando usura aos quatro cantos enquanto nebulosas se contorcem
da Terra – ainda estariam lá sob o filtro ácido das horas
não fora um tresloucado além do horizonte em pó solúvel
do Extremo Oriente Médio onde pisca vermelho um semáforo
explodir ambas de uma vez
em 11 de setembro de 2001 Impiedosamente

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Nietzsche: máscara mortuária Eau de toillette A César...
Para c.l.
Um tufo robusto acima Atingido em fuga
dos lábios, inchando a couraça Se por apego ao credo (tiro certeiro no crânio)
do gesso mortuário – os pelos à prova de tinta e dúvida o imberbe marginal
teimavam em seguir crescendo, onde vontade e ideal caído no meio da turba
sapateiam ao som de um de inúteis linchadores
refluindo ao menor sinal “ah isso sim era bom uma enxuga com dedos barrocos
de vida do nariz à boca pena nem sempre é a gosma rubra da cabeça
(como parasitas em fuga assim” alguém surgir fazendo-a respingar
das tripas do velho hospedeiro) portando um secador nas botas do policial
de cabelos e uma frase que chama a ambulância
– tufo não: tufão de Sartre tatuada no de olho na van
revoada cóccix (com quem atirasse do repórter local
de pavios castanhos prestes um naco de beleza às
a acender no meio do rosto concubinas da verdade)
explosão similar à relva atenção redobrada às
menores incisões da tv
que se alastra em torno da cripta, sob os cascos da insônia
ao limo que germina em cada remoendo o hálito da
pedra – errata esquiva da obra incômoda malícia que o
erguida a golpes de martelo. sonho trama em segredo
ofertado aos tentáculos
da medusa da preguiça

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Dois fogos Museu Cotidiano Pequena paisagem

1. O primeiro deseja Esquecer para lembrar: centelha inglória Face em foco


atacar sob o crivo desses da renúncia, palavras turvas, membros inertes sobre o rio – a mão
catres luminosos que ladeiam – muletas de causa/efeito para maior afaga o seixo
cada flanco da avenida segurança dos instintos – o corpo, fábrica antes de atirá-lo
sitiada entre dois morros de flertes, quer abrigo, pares e poros, ao reflexo móvel
pelos comandos em guerra um pouco de atrito – este nó que de tão do último gesto
cego não desata nem sacia (tarde de maio
2. O segundo planeja ou joy forever?) – exilados da carne a
evadir-se em vias de sinais envenenar-se de espírito, fardos mutuamente
opostos sobre a tela inúteis – agora deixa sangrar: uma
de asfalto e lama onde a fina, milenar garoa, salpicando carbono
chuva e os faróis desenham em flores fósseis (voltem sempre)
torrentes de alta voltagem

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Sweet Lou Reed Zoo tv, cantando do sorriso
Sattelite’s gone up to the skies “Sattelite of Love” – infantil às margens
things like that drive me out of my mind Bono Vox ao centro da Lagoa
I watched for a little while
I like to watch things on tv do palco, Lou Reed após uma palavra
(“Sattelite of Love”, 1972) afiada
num telão acima, da última vez etc. –
I. Wild Intro 6:6 ao vivo e a cores –
Fora de si: Lou Reed para milhões de então
no tranco da heroína telespectadores. o telefone
há dias sem comer público
remoendo a visão
explode em cacos
da planície lunar
oito meses
diante da tv
de idas sem volta –
Retrato Cubista (para cdcl)
II. Portrait of the Artist as a Young Fan 2:5:7
Na década de setenta esperas
Não há remédio
enquanto Lou patinava tão banais
para cólicas e abismos
pelas ruas de Manhattan quanto um arco
afetivos:
torrando pacos de dólares e flecha
você ali sentindo as
em seringas e michês de brinquedo
dores dentro e
um beijo sem retorno
o poeta era um garoto ou dez mil pixels
o amor através –
forçado a ler e escrever de Picasso
enquanto engolia a escória
além das
da América, via satélite (não esqueceremos
expectativas
sentado, em frente à tv nada disso
mofadas ao
querida,
III. Cyber Code 3:4:5 sol, eternas
e no entanto queremos
Em noventa e dois cativas dos
dormir em paz)
(vinte anos depois) malefícios fiscais
Lou aparecia sem retorno –
num show da turnê
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Elegia/ACC bem, mandou pra quê
um beijo caralho! – tudo
inclusive – se esvai
Não, disse que lamenta, num brinde inútil
Ana, nem infelizmente ao Vazio.
vem que não Você não merece nem
tem: que não um poema frio.
há para celebrar? pretende Nem flores de outubro
Teu salto comparecer ao a teus pés.
descalço na piscina enterro
vazia? de tua última quimera. Tudo bem, deixa
As vinte e poucas Isso é meio quieto. Mantenha contato,
edições de tuas cruel. o povo daqui
obras E daí? Foda-se, ainda gosta muito
incompletas? Ana C., de ti.
Vê se muda de ares –
Os poemas você exaspera abraço,
em qualquer um
tua homenagem, com dúvidas, dívidas Leo
as mil e filhos e culhões
uma teses de mestrado com esses ares
calcadas de sereia pré-rafaelita
nas entrelinhas perdida
do teu no Baixo Gávea –
desespero? tanto
tesão, meu deus
Não, Ana. Esqueça.
Sabe das novas? Armando tanto ardor e
vai bem, Eudoro catecismo sex, drugs
também, Angela lhe quer and rock’n’roll

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A quem interessar possa Last Poem (to c.l.)
(Quarta-feira, 17 de setembro de 2008)
Poeira da bondade
1. Odeio a ponte Rio-Niterói é meu nome:
2. Ressuscitei numa varanda macaense, às 9 da manhã do dia o dela? Ask the dust,
/12 de outubro de 2008 my dearest –
3. Tenho o dever de escrever sobre tudo que me aconteceu
/nos últimos nove anos sim, pergunte a Bandini,
4. Preparo um livro sobre a soberba poesia de Ricardo Domeneck a John Fante
5. Procuro um quarto e sala próximo ao centro do Rio
6. Dependo da delicadeza dos estranhos (e de sua paciência também) e a mais
7. Pretendo em breve rir disso tudo, tomando Coca Zero ninguém
8. Afirmo categoricamente a superioridade do jazz sobre qualquer sob o limbo
/outro estilo de música ocidental (embora no duro prefira
/folk rock dos anos 60/70) de olhos fixos
9. Li Ulisses, Rayuela, O Camponês de Paris, A Montanha mágica, na filha do deserto:
/Crime e castigo, Malone morre, Pergunte ao pó e isso basta
10. Não desisto facilmente de nada que me faça feliz cativa saudade
muda miragem
do incerto

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John Ashbery
Tradução & comentário de Mario Sagayama

Obrigado por Não Cooperar Los à costa se nos é dado


Circular lá “no futuro próximo” o porquê de nossa vinda
Rua abaixo há sorveterias para se ir E por que nunca estivemos aqui antes? As contrapropostas
E o pavimento é um agradável, azulado cinza-ardósia. Pessoas riem Do convidado-estranho impedem a interpretação de nós mesmos como
/de montão. Pessoas-objetos, aquelas que sabíamos que chegariam aqui
Aqui você pode ver as estrelas. Dois amantes cantam De algum modo, mas podemos nos lembrar tão facilmente como
Separadamente, do mesmo telhado: “Deixe seu troco pra trás, /no dia em que nascemos
Deixe suas roupas, e vá. Agora é hora. As larvas pelas quais passamos no caminho e como o dia sangrou
Outrora também era hora, mas agora realmente é hora. E também a noite ao nos ouvir, embora tenhamos falado só sobre
Você nunca apreciou tanto tempestades /nossas ideias
Quanto nestas tardes quentes e úmidas, que estão mais pra Agosto Infantis e nunca tentado impressionar ninguém, mesmo quando
Que Setembro.Fique. Um falso vento deseja que você parta /ligeiramente mais velho.
E lá fora no rio tempestuoso testemunha ônibus rumo a São Paulo,
E vendas de árvores, e tudo isso em que pensamos quando paramos
/de pensar.
O clima está perfeito, a estação indistinta. Chore por sua partida
Thank You for Not Cooperating
Mas também espere encontrar-me no futuro próximo, quando
/eu desvelar Down in the street there are ice-cream parlors to go to
And the pavement is a nice, bluish slate-gray. People laugh a lot.
Novas aventuras, e então você continuará a pensar em mim.” Here you can see the stars. Two lovers are singing
Separetely, from the same rooftop: “Leave your change behind,
Leave your clothes, and go. It is time now.
O vento cessou, e os amantes It was time before too, but now it is really time.
Não mais cantaram, comunicando-se entre si no tédio You will never have enjoyed storms so much
As on these hot sticky evenings that are more like August
Da auto-expressão, e a costa se aconchegou e se tornou líquida Than September. Stay. A fake wind wills you to go
E então o celebrado lamento começou. E como podemos, pessoas And out there on the stormy river witness buses bound for Connecticut,
And tree-business, and all that we think about when we stop thinking.
Completamente desusadas umas das outras e de nossos próprios The weather is perfect, the season unclear. Weep for your going
/problemas, explicá- But also expect to meet me in the near future, when i shall disclose
New further adventures, and that you shall continue to think of me.”

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The wind dropped, and the lovers
Sang no more, communicating each to each in the tedium
Of self-expression, and the shore curled up and became liquid
And so the celebrated lament began. And how shall we, people
All unused to each other and to our own business, explain
It to the shore if it is given to us
To circulate there “in the near future” the why of our coming
And why we were never here before? The counterproposals
Of the guest-stranger impede our construing of ourselves as
Person-objects, the ones we knew would get here
Somehow, but we can remember as easily as the day we were born
The maggots we passed on the way and how the day bled
And the night too on hearing us, though we spoke only our childish
Ideas and never tried to impress anybody even when somewhat older.

Estava em casa quando mandou o e-mail de aniversário. Ficou A configuração do poema foi então repaginada, pois havia traduzido
por horas sem fazer nada que demandasse muita atenção: faxina ao “construing” por “construindo”. O deslize foi corrigido por um
som de Kraftwerk e ajudou sua mãe com a máquina de costura. Isso tradutor de confiança da professora Viviana, que pensou Mas nossa!
tudo porque o que você lê não é o que ali reverberou: Aposto que Esse tradutor especialista em língua inglesa deve ter lido minha
está muito feliz por passá-lo com amigas tão queridas, num lugar tese de doutorado defendida no departamento de teoria literária
novo. Talvez possa vê-lo como anúncio de novas mudanças, uma e literatura comparada da Universidade de São Paulo se notou a
expansão do horizonte que depois ressignifica seu antigo mundo. presença de várias vozes no poema, o que é comum em Ashbery
Antes, tinha dito nosso antigo mundo, o que o fez tirar pó de seus no embate entre eu e mundo escalando a montanha de inúmeros
livros pensando em pronomes, como sempre pensa quando tenta particulares. Ele quer viver o tempo inexplorado, transbordar pelas
traduzir Ashbery, que bem nota você pode ser eu mesmo ou outra portas e pelas janelas, deslizar entre mapa-múndi, expandir para
pessoa porque nós somos todos, de alguma forma, aspectos de uma retrair. Terminou, e disse a seu irmãozinho, desculpe, estou num
consciência que faz nascer o poema. Você nem pensa tanto em momento pós-poema,
pronomes ao romper embrulhos para presente, mas o que as caixas não consigo dizer
contêm não é o que ele desvela em sua lembrança: dizer é o tédio nada como deve ser dito.
da auto-expressão, devemos fazer como amantes, separadamente,
do mesmo telhado: cantar. O único modo de estar no jogo sem nos
interpretarmos como pessoas-objetos.

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Nicolas Behr
Quando minha veia poética
Quem teve a mão decepada
estourou ela virou pra mim
levante o dedo
e disse “deixa sangrar”

Os três poderes são um só:


o deles

Ano que vem eu me caso


Aumente o volume
ano que vem eu compro um fusca
do teu grito
ano que vem eu termino a faculdade
Deus está morto
ano que vem eu vou mudar de vida
Marx está morto
e morar no andar de cima
eu estou morto

vou enterrar os três


depois de amanhã
Poesia F. C.

aos 23 anos do primeiro tempo


a vida falha
numa jogada sensacional

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Receita

Ingredientes

2 conflitos de gerações Alô? eu queria falar com


4 esperanças perdidas a substituta da assistente da
3 litros de sangue fervido secretária da coordenadoria
5 sonhos eróticos da secretária da assessoria
2 canções do beatles
da chefia da procuradoria da
Modo de preparar defensoria da corregedoria
da ouvidoria da dona maria
dissolva os sonhos eróticos que está na portaria.
nos 2 litros de sangue fervido ah, saiu? não volta mais hoje...
e deixe gelar seu coração

leve a mistura ao fogo


adicionando dois conflitos
de gerações às esperanças
perdidas

corte tudo em pedacinhos


e repita com as canções dos
beatles o mesmo processo usado
com os sonhos eróticos mas desta
vez deixe ferver um pouco mais e
mexa até dissolver

parte do sangue pode ser


substituído por suco de
groselha mas os resultados
não serão os mesmos

sirva o poema simples


ou com ilusões
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Laurie Anderson
Tradução de Fabiano Calixto

Os peritos Aí você resolve inventar um problema. Mas se você não for um


perito em problemas, provavelmente seu problema não será um
Hoje em dia, só um perito pode resolver um problema. problema plausível. Então é provável que o desmascarem. Você
Porque metade do problema é perceber o problema. ficará exposto e terá que se ajoelhar, se redimir e implorar o perdão
E só um perito pode resolver um problema. público. Porque só um perito sabe onde há um problema.
Só um perito pode resolver um problema.
E só um perito pode resolver um problema.
Então, se não houver um perito para resolver o problema Só um perito pode resolver um problema.
De fato e realmente é um duplo problema.
Porque só um perito pode resolver um problema. E nesses programas que tentam resolver seus problemas, a grande
Só um perito pode resolver um problema. questão é: como manter o controle? Como posso ter o controle?
Mas, jamais esqueça, essa é uma pergunta ao telespectador mediano,
Agora, na América, nós gostamos é de soluções. Gostamos de o sujeito comum, em série, ingênuo, que apenas se defende. Um
soluções para problemas. E há tantas empresas que oferecem sujeito que vê programas sobre gente com problemas, um sujeito
soluções. Empresas com nomes como: A Solução Animal, A Solução que é um dos 60% da população da América, que está meio-cheque
Capilar, A Solução Corda-no-Pescoço, A Solução Mundial, A da completa indigência. Em outras palavras...
Solução Corrupção, A Solução Sushi. uma pessoa com problemas.

A Solução Corda-no-Pescoço... Não há dúvida, só um perito Então, quando os peritos dizem vamos direto à raiz do problema,
percebe: há um problema. que tomemos as rédeas da situação, porque se você tomar as rédeas
E estas empresas são experts a postos, prontos para resolver da situação, você até pode resolver o problema. A maioria das vezes,
problemas. entretanto, isso não funciona, porque a situação está completamente
Porque só um perito pode resolver um problema. fora do controle.
Só um perito pode resolver um problema.
Porque só um perito pode resolver um problema.
Veja só: digamos que convidam você para o programa da Oprah, e Só um perito pode resolver um problema.
você não tem um problema, mas você quer ir ao programa, então E só um perito pode resolver um problema.
você precisa urgentemente de um problema!

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Então, mas quem são estes peritos? Veja lá, os peritos são pessoas dizem que não é um problema, e outros peritos afirmam que não
autonomeadas, ou eleitas, ou especialistas em vendas, pós- há problema ou explicam o porquê de não ser um problema, então
doutoradas ou autodidatas, centradas em coisas que podem ser simplesmente não é um problema.
infalivelmente diagnosticadas como problemas.
Mas o perito é alguém que estuda o problema e tenta resolvê-lo. O Mas quando um perito diz que é um problema e faz um filme sobre
perito é alguém que contrata um seguro contra a imperícia. Porque o problema e ganha um Oscar© com seu filme sobre o problema,
muitas vezes a solução torna-se... então todos os outros peritos têm que concordar que é, muito
o problema. provavelmente, um problema.

Pois: só um perito pode resolver um problema. Porque só um perito pode resolver um problema.
Só um perito pode resolver um problema. Só um perito pode resolver um problema.
E só um perito pode resolver um problema. E só um perito pode resolver um problema.

Às vezes os peritos buscam armas. E, às vezes, peritos procuram por E mesmo que um país possa invadir outro país e trucidá-lo e
armas em toda parte. Às vezes, quando o perito não encontra arma arruiná-lo e fomentar a barbárie e a guerra civil e famintos, mortos e
alguma, pode acontecer de um outro perito dizer: não encontrar refugiados, e se os peritos dizem que não é um problema e se todos
arma nenhuma não significa que não existem armas. E outros peritos concordam que eles são peritos e são bons em resolver problemas,
que procuram armas encontram coisas como fluidos de limpeza e a destruição desses países e sua população simplesmente não é um
imãs de geladeira. E dizem: essas coisas podem ser simples objetos para problema.
vocês, mas, em nossa opinião, podem ser armas. Ou podem ser usadas
para fazer armas. Ou poderiam ser usados para transportar armas. Ou E se um país tortura pessoas e prende os cidadãos sem acusação ou
para armazenar armas. julgamento e cria tribunais militares, isto tampouco é um problema.
A menos que haja um perito que diga que é o começo...
Porque... de um problema.

só um perito pode lidar com armas. Porque só um perito pode resolver um problema.
Só um perito pode resolver um problema. E só um perito pode resolver um problema.
E só um perito pode resolver um problema. E só um perito pode resolver um problema.

Você sabe que às vezes está muito muito muito quente, e é julho
em janeiro, e não há mais neve, e tempestades afogam as cidades,
e todo mundo sabe que isso é um problema. Me se alguns peritos
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Only An Expert

Now only an expert can deal with a problem. So when experts say let’s get to the root of the problem, let’s no problem or explain why it’s no problem, then it’s simply
Cos half of the problem is seeing the problem. take control of the problem, cos if you take control of the not a problem.
And only an expert can deal with the problem. problem, you can solve the problem. Often this doesn’t work
Only an expert can deal with the problem. at all because the situation is completely out of control. But, when an expert says it’s a problem and makes a movie
about the problem and wins an Oscar about the problem
So if there’s no expert dealing with a problem, Cos only an expert can deal with the problem. then all the other experts have to agree that it is, most likely, a
then really it’s actually twice the problem. And only an expert can deal with the problem. problem.
Cos only an expert can deal with the problem. And only an expert can deal with the problem.
Only an expert can deal with the problem. Cos only an expert can deal with the problem.
So, who are these experts? Now, experts are usually self- And only an expert can deal with the problem.
Now in America, we like solutions. We like solutions to appointed people or elected officials or people skilled in sales Only an expert can deal with the problem.
problems. And there’s so many companies that offer solutions. techniques, trained or self-taught to focus on things that
Companies with names like: The Pet Solution, The Hair might be identified as problems. But the expert is someone And even though a country can invade another country,
Solution, The Debt Solution, The World Solution, The Sushi who studies the problem and tries to solve the problem. The and flatten it, and ruin it, and create havoc and civil war
Solution. expert is someone who carries malpractice insurance. Because and refugees in that country, and if the experts say it’s not a
often the solution becomes… the problem. problem and if everyone agrees that they’re experts and good
The debt solution… Now, only an expert can see there’s a at solving problems, then invading these countries is simply –
problem. And only an expert can deal with the problem. not – a problem.
And these companies are experts ready to solve these And only an expert can deal with the problem.
problems. Only an expert can deal with the problem. And if a country tortures people, and holds citizens without
cause or trial, and sets up military tribunals, this is also
Cos only an expert can deal with the problem. Now sometimes experts look for weapons. And sometimes not a problem. Unless there’s an expert who says it is the
Only an expert can deal with the problem. experts look everywhere for weapons. And sometimes when beginning… of a problem.
they don’t find any weapons, sometimes other experts say: if
Now, let’s say you’re invited to be on Oprah, and you don’t you haven’t found any weapons, it doesn’t mean there are no Cos only an expert can deal with the problem.
have a problem, but you wanna go on the show, and so you weapons. And other experts looking for weapons find things And only an expert can deal with the problem.
need a problem. And so you invent a problem. But if you’re like cleaning fluids and refrigerator rods and small magnets. And only an expert can deal with the problem.
not an expert in problems, you’re probably not going to make And they say: these may look like common objects to you,
up a very plausible problem. And so you’re probably gonna but in our opinion, they could be weapons. Or they could
get nailed. You’re gonna get exposed, you’re gonna have to be used to make weapons. Or they could be used to ship
bow down and apologise and beg for the public’s forgiveness. weapons. Or to store weapons. Cos only an expert can see
Because only an expert can see there’s a problem. And only an they might be weapons. And only an expert can deal with
expert can deal with a problem. Only an expert can deal with weapons. And only an expert can deal with problems.
a problem.
Cos only an expert can deal with the problem.
And on these shows that try to solve your problems, the big And only an expert can deal with the problem.
question’s always: how can I get control. How can I take Only an expert can deal with the problem.
control. But, don’t forget, this is a question for the regular
viewer, the person who is barely getting by. The person who is You know, and sometimes, if it’s really really really really
watching shows about people with problems, the person who really hot, and it’s July in January, and there’s no more snow,
is one of the 60 percent of the US population 1.3 weeks away, and huge waves are wiping out cities, and hurricanes are
1.3 paychecks away from homelessness. In other words… a everywhere, and everyone knows it’s a problem. But if some of
person with problems. the experts say it’s no problem, and if other experts claim it’s From Homeland
http://www.youtube.com/watch?v=XwzYtdA6y_U

72
Arnaldo Antunes

73
74
o olho enxerga o que deseja e o que não
ouvido ouve o que deseja e o que não
o pinto duro pulsa forte como um coração
trepar é o melhor remédio pra tesão
um terço é muita penitência pra masturbação
a grávida não tem saudades da menstruação
se não consegue fazer sexo vê televisão
manteiga não se usa apenas pra passar no pão
boceta não é cu mas ambos são palavrão
gozo não significa ejaculação
o tato mais experiente é a palma da mão

o olho enxerga o que deseja e o que não


ouvido ouve o que deseja e o que não
depois de ejacular espera por outra ereção
o ânus precisa de mais lubrificação
por mais que se reprima nunca seca a secreção
o corpo não é templo, casa nem prisão
uns comem outros fodem uns cometem outros dão
por graça por esporte ou tara por amor ou não
velocidade se controla com respiração
o pau se aprofunda mais conforma a posição
o tato mais experiente é a palma da mão

o pinto duro pulsa forte como um coração


gozo não significa ejaculação
o ânus precisa de mais lubrificação
por graça por amor por tara ou pra reprodução
ouvido ouve o que deseja e o que não
velocidade se controla com respiração
trepar é o melhor remédio pra tesão
o tato mais experiente é a palma da mão
se não consegue fazer sexo vê televisão
o olho enxerga o que deseja e o que não
uns comem outros fodem uns cometem outros dão
75
As pedras são muito mais lentas do que os animais. As
plantas exalam mais cheiro quando a chuva cai. As andorinhas
quando chega o Inverno voam até o Verão. Os pombos gostam
de milho e de migalhas de pão. As chuvas vêm da água que o
Sol evapora. Os homens quando vêm de longe trazem malas. Os
peixes quando nadam juntos formam um cardume. As larvas viram
borboletas dentro dos casulos. Os dedos dos pés evitam que se caia.
Os sábios ficam em silêncio quando os outros falam. As máquinas
de fazer nada estão quebradas. Os rabos dos macacos servem
como braços. Os rabos dos cachorros servem como risos. As vacas
comem duas vezes a mesma comida. As páginas foram escritas
para serem lidas. As árvores podem viver mais tempo do que as
pessoas. Os elefantes e os golfinhos têm boa memória. Palavras
podem ser usadas de muitas maneiras. Os fósforos só podem
ser usados uma vez. Os vidros quando estão bem limpos quase
não se vê. Chicletes são para mastigar mas não para engolir. Os
dromedários têm uma corcova e os camelos duas. As meia-noites
duram menos que os meio-dias. As tartatugas nascem em ovos
mas não são aves. As baleias vivem na água mas não são peixes. Os
dentes quando a gente escova ficam mais brancos. Cabelos quando
ficam velhos ficam mais brancos. As músicas dos índios fazem cair
chuva. Os corpos dos mortos enterrados adubam a terra. Os carros
fazem muitas curvas para subir a serra. Crianças gostam de fazer
perguntas sobre tudo. Nem todas as respostas cabem num adulto.

76
O corpo existe e pode ser pego. É
suficientemente opaco para que se
possa vê-lo. Se ficar olhando anos Para onde vãos os covardes quando fogem?

você pode ver crescer o cabelo. O 1) espelho


corpo existe porque foi feito. Por 2) travesseiro
3) escuro
isso tem um buraco no meio. O 4) braços do inimigo

corpo existe, dado que exala cheiro.


E em cada extremidade existe um
dedo. O corpo se cortado espirra
um líquido vermelho. O corpo tem
alguém como recheio.

77
78
o seu

olhar melhora

o meu

79
80
Marcelo Montenegro

Crônicas

um dois três

Uma linha de água gelada O que segue é um silêncio amantes espatifados pra dentro do sono,
que a contragosto escorre habitado pela tentativa a alma é a goteira do corpo,
pela manga da blusa. Brisa de caçar uma brecha que seja rabiscos de luz ondulando no lago,
que por um segundo infla entre o matagal caber na canção uma dor
a cortina do quarto – que virou o terreno que não cabe no mundo,
Restos da fogueira do tumulto – Iguarias onde antes havia um cachorro mancando na aurora,
num horóscopo de vidro – Riso a grama aparada a beleza fugiu do assunto.
que escapa do choro – da simplicidade.
Morder o pássaro do pensamento
sem apaziguar seu voo.

81
Erica Zingano
Leque pode ser uma maneira de dizer faca pode ser
Para Flávia Memória

I. todas as pessoas sabem a imagem como ideia


o que é uma faca: é invariável:
o que significa a definição do termo – o próprio todas as pessoas têm uma ideia de faca
conceito de faca o que equivaleria dizer que têm, portanto,
todas as pessoas sabem uma faca em ideia, e isso pode ser
como é uma faca: entendido como uma lei geral para se tratar das facas
a forma que desenha no espaço à lâmina conforme o tratado anônimo do século xvi
sua anima de metal – traduzido, naturalmente, do latim –
“Sobre a natureza das facas”
se eu falo faca,
todas as pessoas são, portanto, hoje,
plenamente capazes de imaginar uma faca se eu falo faca,
quer dizer, são dotadas de uma faculdade interior desconfio
uma espécie de qualidade que a primeira imagem a se formar
constitutiva, inerente a cada ser humano em sua cabeça
que proporciona seja a de uma faca vista anteriormente
em sua própria cabeça na televisão
melhor, em sua imaginação porque a televisão, aliada à publicidade
a possibilidade de projetar uma grande variedade – como bem sabemos –
de imagens, onde cada imagem – de origem e matéria tornou-se responsável pela padronização
particulares, de acordo com o provérbio cada cabeça da nossa memória visual mais imediata, interferindo
uma sentença – poderia sim diferir nos tamanhos nas cores, na formação do nosso repertório
mesmo os materiais, mas o substrato cotidiano de imagens
como o abstrato de uma imagem então

82
se hoje eu falo faca, que venha à sua cabeça
é muito provável se eu falo faca,
que a primeira imagem a se formar uma faca de rua
em sua cabeça e eu falo faca
seja a de uma Guinzo ou mesmo uma outra qualquer e é o muleque segurando o troço quando enfiô
da Tramontina, pra dentro do teu corpo e a faca furô
por isso nua
é também muito provável abriu pra dentro
que a própria palavra faca comece a desaparecer e o buraco não fechô
– por metonímia – a rua pra dentro até hoje tá aberta
quando ficará conhecida apenas por Guinzo ou no sangue na blusa furô um furo
Tramontina – isso no Brasil não de raspão
é claro, porque na França nem de leve
já não posso dizer o mesmo não fechô pro teu corpo
na França buraco aberto do mundo
devem ser outras as facas e a cicatriz não fechô
distintas e de uma nobreza tal porque é também é capaz
que não fazemos ideia que porque levô uma faca
mesmo se fabricadas em Taiwan com selo de Made in China essa facada seja mesmo capaz
porque nobre é o som de não lembrar de nada
que ressoa da palavra coutêau de absolutamente não
– vocábulo em francês para repetir faca – nem da faca muito menos da sua lâmina) corte
que nos lembra o nosso para qualquer lado:
bom e velho cutelo um vazio para lembrar de não lembrar
praticamente – os tempos mudaram, os tempos
em desuso absoluto são outros – é tempo de uma violência
branca e a faca abre espaço para
mas sempre há outras possibilidades as metáforas
é claro (é bem capaz
que a primeira imagem

83
já que pela literatura contemporânea elas não param: reta e algumas continuidades
se eu falo faca, entre causas e efeitos”
não há páreo para ninguém “ – sim, sem dúvida, este poeta,
elas estão em toda parte, aí está, a mesma questão,
afiadíssimas retrabalhada, aí está, até porque
cortando as páginas ele volta, paradigma e força
atuais de linguagem”, “já que o texto
ao mesmo tempo em que aproximam é um documento social, um pensamento
– estranho paradoxo – vivo sobre o mundo”, “um espelho côncavo
as mais antigas – ou seria convexo? –
por uma “circunstância histórica” para se ver a realidade
diriam uns refletida
“na verdade de ambos os lados”, “da mesma
uma questão de conjuntura” forma que ele veio antes,
diriam outros insistindo os outros, que vieram depois,
que “os livros devem lidos em cadeia continuam”, “mas não,
desafiando o fio da tradição não necessariamente, ele, na posteridade,
ao esticar uma referência por uma cronologia de proximidades
em diferentes continuidades”, poderia não partilhar”, “velocidade
“uma citação mais imediata, e ritmo, um mesmo ponto de vista
por exemplo, inscreve talvez”, “e a partir daí, a geração imediatamente
uma faca só lâmina posterior à sua e na literatura de um modo
do poeta João Cabral de Melo Neto” geral”, “essa questão pode então
“– sim, é intencional, apontar para alguma solução ou mesmo
chamar o João Cabral dissolução, se preferirem,
é dizer peso, é dizer da subjetividade do eu-lírico”
uma tradição, ainda
que recente, é dizer – eu?
um traço, de lâmina, se eu falo faca,
para o texto”, “uma linha abre-se um outro
mundo
84
(e poderíamos nos perguntar e nisso,
de que matéria se faz não há mal nenhum
o real) – é o nosso pacto,
que eu entro implícito
dizendo (silêncio)
se eu falo faca de possibilidades
um sem fundo na linguagem
um buraco fundo cúmplice
de linguagem de vertigem
– de longe, o que eu repito
quase sistematicamente – entre tuas mãos
é porque treino onde o futuro se desdobra
como manejo em leque, voo aberto
um instrumento de corte das palavras
quando eu falo faca eu corto (hélice
o mundo em movimento
em mais de um de dois eu falo faca

II. precisamente
onde eu escrevo
faca
você lê _____________

onde eu escrevo
corte
você lê _____________

onde eu escrevo
eu
veja o poema também aqui:
você lê _____________ http://www.youtube.com/watch?v=LLFNBHE3sXw

85
Helio Neri
Poeta

sempre me equipei
e equipei minha estante
com alfarrábios de
antiexemplos
os mocinhos nunca
me convenceram,
suas verdades,
para mim é uma piada,
o que se diz para
tentar tornar tudo
melhor, não
acredito
não sou artista, nem
sou culto, cultura é
uma espécie de segregação:
de um lado os
sensíveis, intelectuais,
agraciados,
do outro, os outros
estou à margem, não
porque me coloquei,
porque sou
tudo que se impõem
como forma de
bem comum, ou tentar
manter alguma harmonia
é um engodo
86
Juliana Amato
Elementos da carta
   
Peter e a doçura concluir e falar do filho
(retomar – e contrariar – o interlocutor) defeituoso que nasceria
e o tempo  
(confluência versus influência) implorar
  (implicitamente)
o fato de uma resposta
eu já ter  
vivido com um homem gentil dizer adeus, mandar abraços
o modo como e data, e local
ele foi embora pra sempre
(e o motivo)
 
voltar ao assunto tempo
1)      não é possível
2)      se a visão
3)      não é a mesma
 
então entender
que ele (interlocutor) não vai
entender mesmo
pois bem e por fim
relacionar isso tudo ao motivo:
ao fim

87
Andre Fernandes

– desculpem-me. – Era para ser uma fala. Todos aqui. É estranho ele apenas concretizou”. Ainda reclamando a idoneidade de seu
encontrar a todos sem a mediação de uma ideia. Sem outra palavra, cliente, o advogado disse ser aquele homem de muita importância
os saúdo. Não passo a idade adulta porque não há mais. Tampouco para a sociedade. E todos indistintamente o reconheceram em seu ato.
esta fala é história de amor. Ou trama policial, como queria Borges
em algum ensaio a respeito de tramas serem essencialmente policiais. – Muitos poderiam ser os motivos. Ainda que o juiz não imputasse
É, antes, um gesto. sentença a tal homem. Muitas outras poderiam ser as alegações. Não
sabemos o quão imbricadas são as relações; nestas se percebe que
– Não vale para a memória. Nem é outrem. Parece que a experiência não há lei, nem memória, sequer alguma experiência. Um corpo só
deixou o corpo. Pernas e estômago guardam uma multidão. Um sensações.
coração castanho. É isto que lhes apresento. Mesmo que lhes
atravesse o sentido. – A amizade se cria numa biblioteca.

– Do homem mais velho e ilustre desta comunidade, não digo,


todos o conhecem. Mas um amigo não é grande general. Homens,
não se percam em exórdio. Amizade é gesto. Poesia adia a vida.
Poeta coloca as pedras lado a lado. Dante salvou sua alma, e se
colocou o sexto após Homero. Ninguém duvida depois do xix.
(Perdi uma moeda, alguém a encontrou? Tinha estima por ela.
Trinta e quatro anos. Um presente.)

– Não sabemos por que um senhor muito pequeno, bigodes e


chapéu, muito bem afamado, assassinou o melhor amigo. Não foi
por defesa da honra. Por ódio simplesmente. Havia dito ao juiz, “por
ódio”. O juiz aceitou e disse: “Quem não sentiu isso, não é homem;

88
Conversa – feliz aniversário Decálogo de um escritor

Sem outra frase, aí está. O ano já não ia bem quando o inverno Um. Pode-se escrever o que quiser, na ordem que quiser, do modo
entrou, tudo soava estranho. Depois de um verão insuportável /que quiser.
nos trópicos, restava acostumar a temperaturas mais baixas. Era Dois. Querer não basta, é preciso transformar o querer em texto.
invariável. Acordar cedo, ler o jornal, dar uma volta. Depois, sentar Três. O sentido é o acúmulo, não a história.
no sofá à tarde, entre a vigília e o sono. Aos 74 anos, às voltas com Quatro. Texto de história é mau texto.
o Parkinson, não há muito o que ser feito que tomar remédio nas Cinco. O texto deve atingir os sentidos, não a cabeça.
horas cheias. Assim os sintomas estão suspensos até que amanhã, Seis. O fracasso ocorre todo dia, algum dia a mão é feliz.
quando voltam mais fortes. Aos poucos, o organismo acostuma ao Sete. Apenas alguns são autores – a maioria morre ou desiste
estado de estrangeiro no próprio corpo. Qualquer distância é longa. /de escrever.
A profundidade engana. O paladar não dá mais prazer e os dias são Oito. Escrever é ir ao outro.
quase os mesmos, exceto por aqueles que é preciso fazer exames ou Nove. A palavra impressa é o som que deve atrair o silêncio.
ter audição dos resultados. Dez. Não é preciso regra, escrever apenas porque é necessário.

89
Nicollas Ranieri
Resposta

Talvez seja preciso perguntar ao ar:


o mesmo que respiram duas bocas unidas.
Porque minha garganta
carrega um rochedo,
fósseis
sedimentados
sob uma cicatriz e
todas as flores do enterro.
Sim, acabou o enredo.
Não tenho o fôlego que transforma
o verbo em carne,
em fogo
ou em ouro.

Veja, há um Pollock
de saliva e lágrima
desenhado sobre o passeio,
assim como há também passageiros
que sujam
o quadro
dos meus dias.
E mesmo conhecendo
toda a tragédia, a minha e a sua,
a Esfinge insiste com a
pergunta.

90
Renan Nuernberger

Patrícia Poeta e o tempo hoje

são lírios (p. ex.) as dos olhos, *


que na alvorada,
quereriam uma outra amanhã (nova alvorada?)
luz, uma outra são lírios, por exemplo,
história toda: flores brancas. as flores dos meus olhos:
símbolos, flores brancas,
(copos de leite, dentes de uma outra história toda.
de leão, crisântemos,
margaridas, rosas, tulipas etc.)

contra a noite, coisa fria,


esta, definitiva,
de néon e fluorescência,
uma previsão, el niño,
nas máximas de ar quente
todo sol, solto, torrente.

pólen, pétalas, epístolas:


um arranjo-jorro mu-
do (palavras lavradas
nas folhas) e no entanto
uma haste, promessa

¿haverá, tevê, primavera?

91
Soneto-relâmpago Sol, slogan

branco branco, o medo Que symbolo fecundo


Vem na aurora anciosa?
de súbito, branco branco Fernando Pessoa
sem sangue suor rosto
olhos vazados, não fato gostaria de comprar
uma Coca para
não fato, o medo, recalque o mundo. primeiro
engole-se a seco, o medo estranha-se mas é
o medo o medo o medo isso aí, uma
minutos, de súbito, branco Coca-cola como
phármakos: uma pausa
branco, sequência, branco que refresca a mera
o medo dois zero três meia metade de nada que
branco, um clique de en- chamamos vida.

gate, gatilho, segundo over-doce, urso polar,


a seco, engasga-se, instante santa claus, cherry
(atiro)(acerta-me): sangue coke. depois
entranha-se mais e
essa é a real,
Coca-cola como
phármakos: viva o que
é bom, poeta só
porrada, o sol doura
sem literatura.

92
Roberto Bolano
Traduções de Fabrício Corsaletti

Dentro de mil anos não restará nada Para Antonio García Porta Entre as moscas
de quanto se escreveu neste século.
Lerão frases soltas, rastros Teus presentes me comoveram Poetas troianos
de mulheres perdidas, São úteis e contêm vitaminas Já nada do que podia ser vosso
fragmentos de crianças imóveis, (Envelopes para mandar cartas, Existe
teus olhos lentos e verdes papel para escrever,
simplesmente não existirão. a agenda do vinho que Ana Nem templos nem jardins
Será como a Antologia Grega, enviou para mim, Nem poesia
ainda mais distante, ocasionalmente queijo,
como uma praia no inverno iogurte, pão doce, Sois livres
para outro assombro e outra indiferença. aquelas manhãs de primavera Admiráveis poetas troianos
em que chegavas para me acordar
e eu estava tão mal,
maçãs, laranjas,
às vezes um maço de
Gauloises, que luxo, canetas bic,
boas notícias.)
Escrevo isto para
te agradecer.
Dentro de mil años no quedará nada
de cuanto se ha escrito en este siglo. Entre las moscas
Leerán frases sueltas, huellas Poetas troyanos
de mujeres perdidas, Para Antonio García Porta Ya nada de lo que podía ser vuestro
fragmentos de niños inmóviles, Me han conmovido tus regalos/ Son útiles y contienen Existe
tus ojos lentos y verdes vitaminas/ (Sobres para mandar cartas,/ papel para escribir,/
simplemente no existirán. la agenda del vino que Ana/ envió para mí,/ ocasionalmente Ni templos ni jardines
Será como la Antología Griega, queso,/ yogurt, pan dulce,/ aquellas mañanas de primaveraen Ni poesía
aún más distante, que llegabas a despertarme/ y yo estaba tan mal,/ manzanas,
como una playa en invierno naranjas,/ a veces una cajetilla de/ Gauloises, qué lujo, bolígrafos Sois libres
para otro asombro y otra indiferencia. bic,/ buenas noticias.)/ Escribo esto para/ darte las gracias. Admirables poetas troyanos

93
Dois poemas para Lautaro Bolaño

Leia os velhos poetas Biblioteca


Dos poemas para Lautaro Bolaño
Leia os velhos poetas, meu filho Livros que compro
e não se arrependerá Entre as estranhas chuvas Lee a los viejos poetas
Lee a los viejos poetas, hijo mío
Entre as teias de aranha e as madeiras podres E o calor y no te arrepentirás
de barcos encalhados no Purgatório De 1992 Entre las telarañas y las maderas podridas
de barcos varados en el Purgatorio
lá estão eles E que já li allí están ellos
cantando! Ou que nunca lerei ¡cantando!
¡ridículos y heroicos!
ridículos e heroicos! Livros para que leia meu filho Los viejos poetas
Os velhos poetas A biblioteca de Lautaro Palpitantes en sus ofrendas
Nómades abiertos en canal y ofrecidos
Palpitantes em suas oferendas Que deverá resistir a la Nada
Nômades abertos ao meio e oferecidos A outras chuvas (pero ellos no viven en la Nada
sino en los Sueños)
ao Nada E outros calores infernais Lee a los viejos poetas
(mas eles não vivem no Nada – Assim, a missão é esta: y cuida sus libros
Es uno de los pocos consejos
e sim nos Sonhos) Resisti queridos livrinhos que te puede dar tu padre
Leia os velhos poetas Atravessai os dias como cavaleiros medievais
e guarde seus livros E cuidai de meu filho Biblioteca
É um dos poucos conselhos Nos anos vindouros Libros que compro
Entre las extrañas lluvias
que pode lhe dar seu pai Y el calor
De 1992
Y que ya he leído
O que nunca leeré
Libros para que lea mi hijo
La biblioteca de Lautaro
Que deberá resistir
Otras lluvias
Y otros calores infernales
– Así pues, la consigna es ésta:
Resistid queridos libritos
Atravesad los días como caballeros medievales
Y cuidad de mi hijo
En los años venideros

94
r. ponts
Que nem leminski Incompl

quem sabe nem tanto disso tudo o que tão somente começou
nem bem surgindo o feto abortado
já em sumiço o amor só de um lado
a gaga garganta de fala inconclusa
sabe lá deus se esse tanto o som que cessa no meio da música
um pouco tardio cedo os choros engolidos
outro, centro de um canto os livros meio lidos
desistências
vai saber quem é que foi suicídios
que foi um dia tudo isso que acaba sem
tchau que nem oi não vale a

talvez nem seja


ou seja menos
que estar estando

deve de ser
que nem um quase
como que um quando

95
Borboletas

duas mil e duas bilhões


borboletas
todas azuis de relances-
lampejos
só uma vermelha chovendo

planam plenas em meio a todos


derramando
poeira líquida das asas ela
a vermelha
fluidas partículas: e sua ideia

tantas azuis
e quase alguma
vermelha

em chuva de tinta

cada ponto cadente


é o pensamento
azul

da asa

movente
de uma
borboleta

96
Zho Bertholini

97
Alice
Tom Waits It’s dreamy weather we’re on
Tradução de Fabiano Calixto You waved your crooked wand
Along an icy pond with a frozen moon
A murder of silhouette crows I saw
And the tears on my face
Alice Os únicos laços a me prender aqui And the skates on the pond
They spell Alice
Estão atados ao píer
I disappear in your name
É dia de sonhar But you must wait for me
Acenas tua varinha torta E então um beijo em segredo Somewhere across the sea
There’s a wreck of a ship
No lago gélido sob o gélido luar Traz tanta loucura e glória Your hair is like meadow grass on the tide
Vejo o risco dos corvos mortos Eu vou pensar nessa história And the raindrops on my window
And the ice in my drink
E as lágrimas em meu rosto Quando estiver no túmulo Baby all I can think of is Alice
Os patins na lagoa Desate-me e serei o cúmulo
Arithmetic arithmetock
Escrevem Alice – Devo estar maluco Turn the hands back on the clock
Patinando em teu nome How does the ocean rock the boat?
How did the razor find my throat?
Desapareço nas letras do teu nome Repetindo-o, pedindo-o The only strings that hold me here
Acho que devias me esperar Sentindo o que o gelo ali se disse Are tangled up around the pier

Em algum lugar do alto mar Alice And so a secret kiss


Brings madness with the bliss
Há destroços de um navio And I will think of this
Teus cabelos são como a erva dos prados Como se tudo que ali When I’m dead in my grave
Set me adrift and I’m lost over there
Na carne azul da água Existisse And I must be insane
Há gotas de chuva na janela Como se tudo que To go skating on your name
And by tracing it twice
E o gelo no meu uísque Ali se visse I fell through the ice
Mas tudo tudo que me alicia Fosse Alice Of Alice

É Alice And so a secret kiss


Brings madness with the bliss
And I will think of this
Quero quebrar os ponteiros When I’m dead in my grave
Set me adrift and I’m lost over there
O aritmétic-tac-tic-tac And I must be insane
Como o oceano balança o bote? To go skating on your name
And by tracing it twice
Como a navalha alcança o corte? I fell through the ice
Of Alice
There’s only Alice

98
Laura Wittner
Traduções de Diego Vinhas

Perspectiva de uma banheira


 
Depois haverá uma discussão.
Por ora tudo é fechar os olhos,
mantê-los fechados ao nível da água,
respirar, voltar ao mergulho.
A fronteira entre a água e o ar
coincide com a linha de pensamento
que funde e refunde
numa ordem qualquer Perspectiva desde una bañera
um par de cenas ou sequências, fotografias Después habrá una discusión.
tiradas com uma câmera automática, Por ahora todo es cerrar los ojos,
mantenerlos cerrados a la altura del agua,
sempre mais ou menos o mesmo material, respirar, volver a sumergirse.
– é o que se pôde juntar – El límite entre el agua y el aire
animais selvagens avançando coincide con la línea de pensamiento
que lo que hace es fundir y refundir
até ficarem em primeiro plano, en cualquier orden
alguém que ensina uma menina un par de escenas o secuencias, fotografías
tomadas con una cámara automática,
a usar uma pistola no deserto, siempre más o menos el mismo material,
ou feito uma pessoa na banheira – es lo que se ha podido reunir –
animales salvajes avanzando
– e aqui virá a discussão: hasta quedar en primer plano,
quem é a pessoa, alguien que le enseña a una chica
a usar una pistola en el desierto,
quem sustenta o igual una persona en una bañera
a linha de pensamento, ou quem – y aquí vendrá la discusión:
quién es la persona,
apertou o gatilho, quién soporta
tirou a foto, quem indicou a posição la línea de pensamiento, o quién
onde teria que ficar apretó el gatillo,
tomó la foto, quién señaló la posición
para conseguir uma boa vista aérea donde habría que ubicarse
da banheira. para obtener una buena vista aérea
de la bañera.

99
Verão puro que primeiro desembocam mas depois
caem. A pele está úmida
O calor trouxe um zumbido permanente: de múltiplas formas.
um rumor de edifícios eletrificados Impossível desenredar
mantém em equilíbrio o detalhe da citação do propósito da teoria.
tanta imobilidade. Evidente que não há nada a entender.
Janela após janela
exibe uma pessoa estendida lendo
à luz insetívora dos abajures. Verano puro
Umas poucas cenas iluminadas   El calor trajo un zumbido permanente:
un rumor de edificios electrizados
pelo televisor. Dois que se ofertam mantiene en equilibrio
partes de corpos tanta inmovilidad.
Ventana tras ventana
recém-banhados. exhibe una persona estendida leyendo
a la  luz insectívora de veladores.
Unas pocas escenas iluminadas
À meia-noite o céu ronca como um mar. por el televisor. Dos que ofrecen
Abaixo o vento arrasta coisas ligeiras partes de cuerpos
recién duchados.
contra superfícies duras.  
Lança formas A medianoche el cielo ronca como un mar.
Abajo el viento arrastra cosas ligeras
vários metros acima contra superficies duras.
Lanza formas
que aterrissam segundos depois. Espreguiçadeiras varios metros hacia arriba
em varandas que aterrizan segundos después. Reposeras
em balcones
                  ainda dobradas                     aun plegadas
                                            caem de barriga.  
Alguien avanza sobre el patio con linterna
  pensando cómo prevenir la inundación.
Alguém avança sobre a varanda com uma lanterna  
Hay un punto
pensando em como prevenir a inundação. titilando en la memoria
  y varias líneas de pensamiento
que primero se desbocan pero después
Há um ponto decaen. La piel está húmeda
tilintando na memória de múltiples maneras.
Se hace impossible desenredar
e várias linhas de pensamento el detalle de la cita de la intención de teoria.
Se hace evidente que no hay nada que entender.

100
Marcelo Ferreira de Oliveira
Ladeiras iii súbita escadaria
i na primeira ladeira em folia à morada Veridiana
as pálpebras cobriam estilhaços abandonei-a
vidros carro no muro lágrimas torrentes v

girassol oferto tronco rasgando pudores noutras ladeiras


nosso último beijo eu carregava marchinhas e crianças
foi tanta gargalhada Mariana órgãos se acreditavam
cartas rasgo em corais arremessamos piscinas no vizinho palavras se criam
mesmo se atravessassem menina tridente me espetava melodias
distância faceira nos paralelepípedos
palavras não desatariam eu sorria, sorria fungos corroíam ossos
rios o índio Xaoli desvelou-se
amor natural eu cantava toquei-lhe a mão mineral
camisas ingênuas despidas dormindo em meio-fio bebi-lhe as ervas
à prova de mortes meio-dia procurei-o no leito antes que
na repartição telefonei-lhe embolado em irmãos manhã
para atar-me aos seus grilhões Saturno surrasse-me na ponte
sabíamos alcovas da rua direita
tirei-lhe as vestes quantas surpresas nas saias
vi
contra sua vontade que escalavam paredes
nunca mais rinoceronte
a lancha em que navegávamos javali serpente urso
iv
corsários vingativos em corredores de escritório
meu dente partiu-se na manhã atravessada
se tornou navio obtuso nem operário construção
nudezas
tambores blocos palhaços mão jorro confiança
ii as pálpebras me cobrem embolias
meu avô viveu em Ouro Preto aplaudiam-nos à porta do Mondego
Sete-Sóis e o carnaval e a saudade álcoois
fizeram-se em mim me perdia
em Ouro Preto
101
Mario Sagayama

Construir torres abstratas As soon as/ I speak


porém a luta é real. The pattern, Robert Creeley
Orides Fontela

Escute, a neve está caindo entre nossas cidades, nossas camas: Edifícios abandonados não se ocupam
deslocar nos faz compreender com pronomes.
que espécie de segurança encontramos nos significados, São Paulo,
o que se torna claro quando imigramos e aqui, seus volumes táticos e
justapostos aos monumentos locais, todos tentam escapar
reconstruímos os nossos. num determinado ponto,
sem atalhos pela
trilha sonora. A direção
de suas palavras pretende
ordenar o caos que constitui
essa infinita informe variação:
você?

102
C’est comme un faux billet
Jim em Jules et Jim

Você está aqui Eu falava sobre você,


eu procurava você,
então venha, agora
percorrer um mapa,
abandonar os entornos,
o mesmo.
Mas o que você quer, afinal?
Leveza ou a curiosidade de explorar
renunciada,
é como uma passagem falsa.

Encontrei
num romance que você me emprestou
uma passagem marcada:
uma mulher num barco
pensa num passageiro,
não o conhece.
Gostaria de percorrer um trilho
sem fim em vista,
sem seus limites,
sem dizer como seria.

103
Marcelo Sahea

104
Nick Drake
Tradução de Fabiano Calixto

Uma dessas coisas

Eu poderia ter sido um marinheiro, um altivo


Cozinheiro, um amante vivo, poderia ter sido um livro
Eu poderia ter sido um semáforo, um relógio
Rude como uma rocha, um animal bucólico One of these Things First
Eu poderia I could have been a sailor, could have been a cook
Aqui e agora A real live lover, could have been a book
I could have been a signpost, could have been a clock
Seria e deveria ser As simples as a kettle, steady as a rock
Poderia ter sido I could be
Here and now
Uma dessas coisas I would be, I should be
Eu poderia ter sido seu pilar, seu caminho But how?
I could have been
Poderia ter ficado ao seu lado, ter permanecido One of these things first
Poderia ter sido sua estátua, seu amigo I could have been
One of these things first
Uma vida farta só me daria o suicídio I could have been your pillar, could have been your door
Poderia ter sido apenas seu I could have stayed beside you, could have stayed for more
Could have been your statue, could have been your friend
Eu seria e deveria ser A whole long lifetime could have been the end
Assim antes I could be yours so true
I would be, I should be through and through
Poderia ter sido um apito, uma flauta I could have been
Um bom samaritano, uma bota alta One of these things first
I could have been
Poderia ter sido um semáforo, um relógio One of these things first
Rude como uma rocha, um animal bucólico I could have been a whistle, could have been a flute
Poderia estar sempre aqui A real live giver, could have been a boot
I could have been a signpost, could have been a clock
Poderia estar sempre bem perto As simple as a kettle, steady as a rock
Poderia ter sido I could be even here
I would be, I should be so near
Uma dessas coisas I could have been
Antes de mais One of these things first
I could have been
Nada One of these things first

105
Mario Bortolotto
Sonhei que um grande cachorro me atacava. Ele era enorme e
babava muito. Aquele tipo de baba que os cachorros grandes costumam ter. Como
aquele cachorro do Turner & Hooch. Sua bocarra parou a poucos centímetros do
meu nariz. Ele ia arrancar o meu nariz. De repente ele começou a lamber minha
cara. Em poucos segundos nos tornamos grandes amigos. O cachorro e eu. Nos
tornamos inseparáveis. Ele entrava no bar comigo. Tinha um banco reservado pra
ele perto do balcão. Ele se sentava lá do meu lado e bebia sua grande caneca de
chopp. Escuro. Chopp escuro. Era o que ele sempre bebia. Algumas pessoas no bar
não gostavam do meu cachorro. Ele tava se lixando pra todos eles. E eu também.
Nós éramos verdadeiros amigos. Do tipo de amigo que não se encontra mais. A
gente se bastava. Por isso a gente sentava lá no bar e bebia em silêncio. Eu bebia o
meu whisky com duas pedras e ele o seu chopp. Escuro. Depois a gente saía pela
porta do bar. Dava pra perceber o alívio que a gente causava quando atravessava
a porta do bar em direção à rua. As pessoas têm medo do que não conseguem
explicar. O cachorro e eu. A gente se sentava perto de um lugar que parecia um
estaleiro ou algo assim. E a gente testemunhava o por do sol. Eu não me contentava
em apenas ver o por do sol. E o cachorro também não. Por isso que eu digo que
a gente testemunhava o por do sol. Dois grandes amigos no fim de tarde. Muitos
anos depois, o cachorro morreu. Ele gania de dor nos últimos dias. Eu já não me
sentia tão jovem assim. E naqueles dias envelheci dez anos em um. Dois velhos
amigos morrendo juntos. Mas eu não morri. Me tornei uma lembrança pálida do
que eu era. Um fantasma desolado. Uma espécie de sujeito sem destino. E não há
nada pior do que não ter destino. Isso nos condena à imobilidade. Jamais tive outro
amigo. E nos anos seguintes eu me sentei lá todos os dias e bebi o meu whisky
com duas pedras. Mas sempre pedia uma caneca de chopp. Escuro. Foi o jeito que
encontrei pra me imaginar ainda vivo. Mas é claro que eu tava me enganando.

106
Ricardo Silveira

Noite passada eu esqueci de rezar “agradeço à santa ignorância Dois ou um


ontem que era dia de rezar em iorubá pela graça alcançada de graça”
será que algum orixá se zangou? corro e colo um adesivo no carro Primeiro Ato
mas por que se zangariam “eu sou feliz por ser caótico” a gente se conhece e somos dois
se no meu altar num instante somos sós
tem lugar pra todo santo? no seguinte somos nós
pro seu deus, pros meus e mais nada
sem titanomaquia
pode-se crer em tudo somos tão que queremos mais
mas também pode-se crer em nada somos ambos tais e quais
o que talvez seja a maior das profissões de fé cada descoberta só nos aproxima
eu li do mesmo
a teoria da relatividade
e as dez pragas do egito e cada vez mais iguais
eu li a autobiografia e cada vez mais
do dono das casas bahia outros sóis já não iluminam
se tá escrito a luz de mil megatons se desfaz
já é verdade
hoje a noite eu rezo pra darwin chegamos perto
amanhã eu rezo pra mim pra quase sermos
depois pra um bife no prato me olho em você
também não esquecerei: pra pentear o cabelo
quem apertou o botão
do big bang
bem que merece
alguma coisa também
então imprimo um milheiro de santinhos
107
Segundo Ato e é ruim Terceiro Ato
nossas semelhanças somem mas como nos tornamos um aí
enfim somos um não se separa separados nos veremos de novo
e como todo um a não ser com cirurgia como separados que somos
há dias em que me odeio desde o nascimento
arriscada
como todo eu que se preze onde é possível que um morra nesse momento
há coisas que não me tolero e geralmente dói se restar alguma vontade de juntar
e as vezes acordo ai não junte por completo
me achando meio gordo faça que junte mas não

mas também há dias em que me amo finja que não mas sim
e sou feliz contigo mesmo junte sem contar pra mim
nesses dias que eu juro que junto em segredo
é quando te sinto no entanto

é quando não minto pra nós se não restar nada


quer dizer pra mim adeus
quer dizer pra você não nunca vá embora
quer dizer sabendo que vai fazer falta

quer dizer diga, oras por quanto tempo eu não sei


quer pedir peça fará falta
não queira que eu adivinhe mas não merecerá volta
eu sou um só, porra! fará falta talvez pra sempre

e o dito fica pelo não dito como eu mesmo faço falta a mim
e o não dito apodrece na garganta em domingos de chuva
e na garganta não deixa que
saia palavra alguma

108
Julio Barroso
Dá vontade de saber
Em que rua você mora
Vou desligar a tv
Vou me ligar em você

Ela não morreu


Ela
arranhou seus pulsos
com gilete g ii
Representando
O seu drama tão particular
Me disseram
Na entrada do elevador
Sobe na cobertura
Tua nega deu um troço
Queimou os restos da palavra amor
Vida animal Billie
Holiday na vitrola
Dá vontade de gritar Jatos de sangue
Verão t-shirts griffes Nos ladrilos brancos
Desenhando a palavra amor
Dá vontade de chorar E o pintor
Tanta gente assassinada por nada Totalmente alucinado
Inventando a arte
Dá vontade de te ver Colocou no mercado
Dançar no lado escuro da lua Esse drama tão particular
109
Noite e dia Telefone Nosso louco amor

Nos lençóis da cama São três horas da manhã, você me liga Nosso louco amor
Bela manhã Pra falar coisas que só a gente entende Está em seu olhar
No jeito de acordar São três horas da manhã, você me chama Quando o adeus vem nos acompanhar
A pele branca Com seu papo poesia me transcende
Gata garota Sem perdão não há
O peito a ronronar Oh meu amor Como aprender e errar
O seu fingir dormindo Isso é amor Meu amor
Lindo É amor Vem me abandonar
Você está me convidando
Menina quer brincar de amar Sua voz está tão longe ao telefone Já foi assim, mares do sul
No escuro do quarto Fale alto mesmo grite não se importe Entre jatos de luz, beleza sem dor
Bela na noite Pra quem ama a distância não é lance A vida sexual dos selvagens
Nas ondas do luar Nossa onda de amor não há quem corte
Os seus olhos negros Agora que passou a dor
Pantera nua Pode ser de São Paulo a Nova York Na rua a luz da cidade ilumina
Quer me hipnotizar Ou tão lindo flutuando em nosso Rio O nosso louco amor
Eu olho sorrindo Ou tão longe mambeando o mar Caribe É bom saber, voltou a ser
Lindo A nossa onde de amor não há quem corte Na rua uma estrela ilumina
Você está me convidando Nosso louco amor
Menina quer brincar de amar Oh meu amor
Isso é amor Nosso louco amor é mais que um lance de dados
É amor não abolirá nosso caso

No youtube No youtube No youtube


http://www.youtube.com/watch?v=PsBaNn2JXzY http://www.youtube.com/watch?v=LUbOQRhLdso http://www.youtube.com/watch?v=K_CttRoWeaA

110
Corações psicodélicos Jack Kerouac

Ainda me lembro Ontem à noite eu sonhei que eu era Jack


Daquele beijo Kerouac mandando brasa nas estradas do
Espanque punk violento mundo subi num terraço: rua Houston e vi
Iluminando o céu cinzento as duas torres gêmeas brilhando o pelo louro
Eu quero você inteira da menina as tranças negras do crioulo sua
Gosto muito do seu jeito guitarra sua angústia calma peguei a minha
Qualquer nota bossa nova lata de spray desci pra rua e pintei dois olhos
Eu quero você na veia verdes nas paredes ontem à noite eu sonhei
E a vida passa na tv que conversava com Jack Kerouac ele me
E o meu caso é com você disse que renascia negro tocador de piston
Fico louco sem saber e seu sopro som era tão alto que despertava
Eu ainda lembro o som do chicote Sim pro sol todo mundo eu acordei mandando brasa nas
Eu ainda sinto que sou um escravo Sim pra lua estradas do mundo.
Eu quero você toda nua
Sim pra tudo que você quiser
Gosto muito do seu jeito
Rock’n’roll meio nonsense
Pra acabar com essa inocência
E o complexo de decência
No meio do salão
Hoje é festa na floresta
Toda tribo ateia som
Toda taba ateia sol
Só tomando água de coco
Infeliz de quem tá triste
No meio dessa confusão

111
Românticos a gô-gô Perdidos na selva Sonhos que dinheiro
nenhum compra
Donga, Cartola, Guevara, Sinhô Perdidos na selva, mas que tremenda aventura
Você até jura, nunca sentiu tamanha emoção Ao som de sol
Jimi, Caymmi, Roberto, Melo Meu uniforme brim cáqui, não resistiu ao ataque Swing, sex e sax
Das suas unhas vermelhas, meu bem você O sol do sexo espalha
Rita, Lolita, Del Fuego, Bardot Rasgou meu coração Espumas de paz
Hipermagia de selvagens galáxias
Gato, Coltrane, Picasso, Cocteau Eu e minha gata Nuvem morena menina
Rolando na relva Flutuando à beira-mar
Zeca, Zé Kéti, Gigante, Waly Rolava de tudo Natureza do surfista a deslizar
Num covil de piratas pirados Samba do sonho de estar
Jorge, Lonita, Sarita, Ceci Perdidos na selva Neste planeta feliz
E ser um anjo louco a lambusar
Cummings, John Done, Augusto, Pagu Orango tango de tanga no tango O mel do bom do bem
Tigres em pele botando a mesa E ser um anjo torto a explodir
Yoko, Rodchenko and B’52 É papagaio, bem-te-vis e araras Ruas,cidades, jardins
Revoando flores, folhas e varas Num show de raios
Nietzsche, Nijinski, Kandinski, Alan Poe Ah que calor tropical Vídeos e cometas
Mas que folhagem maneira E derrubar as prateleiras, sim
Sheena, Marilda, Tzara, Seraut É sururu carnaval E deflagrar uma bandeira a mil
Deu febre na floresta inteira Pôr fim a esse domínio de bárbaros
Arto, Ornette, Isadora, Monroe Quando o avião deu a pane Ao som de um sol
Eu já previa tudinho Senha do sonho do planeta feliz
Marley, Duchamp, Oiticica, Xangô Me Tarzan you Jane
Incendiando mundos nesse matinho

No youtube:
http://www.youtube.com/watch?v=mnr1h6_SK6M

112
113
Diniz Goncalves Junior

No parque Um dia em Santo Amaro Paranapiacaba

maresia descasca os desenhos , goteira nas amarela Cabanas nas serranias que fraturam o
engrenagens do carrossel, espelho deforma a casa adormece tempo, nervos de ferro dos comboios,
a paisagem mofada de céu e silêncio, o muro menor do que ferrorama em tamanho natural, dos campos
mar avança, domar o medo, membrana da o invento dos dias de Charles Miller aos trilhos que rangem
memória embalsamando atos e canções. data de validade longe das gerais
do jardim que beirava
a fumaça e o mar de
gentes distraídas
galeria borba gato
ou a seta para o largo
extrair um dente
no papel amassado
telefone da vidente
vídeos descartados
no museu de eletrônicos
a luz que atravessa
a foto e ela que dobra
a possibilidade do tempo

114
Sergio Raimondi
Traduções de Diego Vinhas

Sonho e reparação assemelha-se, na distância, à máquina


que faz o mesmo com maior rapidez
Como certos motores a gasolina, o operário e em maior quantidade. O sol, a chuva
alimenta-se de sopa, uma porção de batatas e a ação constante também debilitam
fervidas, um sanduíche de empanado e duas o artefato e imprimem marcas evidentes
frutas que podem ser laranjas ou maçãs. não só na carroceria como no sistema
Tudo isto sobre uma bandeja de isopor de transmissão e mesmo no motor;
envolta em nylon. Além de um vaso plástico sua sempre iminente caducidade, contudo,
e uma série de jarras com suco ou água mede-se menos pelas progressivas deficiências
em forma regular dispostas sobre a mesa. do que pela aparição de um novo modelo
Ainda que o menu não se repita de forma exata de funcionamento mais amplo e a custo mais baixo.
dia a dia, semana a semana, mês a mês,
certas vitaminas dominam a composição.
O paladar de cada um dos comensais
adapta-se a um sistema de sabores e pesos Sueño y reparación somnolencia (usualmente modorra o fiaca),
que variam segundo o grau de importância aunque es posible que un sueño limitado
Como ciertos motores de nafta, el operario de entre veinte o treinta minutos, la cabeza
da empresa e a qualidade da licitação. se alimenta de sopa, una porción de papas caída sobre el respaldar, sueltos los brazos
hervidas, un sangúche de milanesa y dos a ambos lados de la silla, permita renovar
Quem se dedica a prover as rações frutas que pueden ser naranjas o manzanas. las fuerzas del cuerpo con un plus de eficacia.
sabe que sem dúvida não convém gerar Todo esto sobre una bandeja de telgopor Con una pala en la mano a punto de ser
envuelto en nylon. Además un vaso plástico hundida en el montón de tierra, el operario
sonolência (normalmente modorra ou letargia), y una serie de jarras con jugo o agua se asemeja desde muy lejos a la máquina
ainda que seja possível que um sono limitado en forma regular dispersas sobre la mesa. que hace lo mismo aunque con rapidez
Si bien el menú no se repite en forma exacta mayor y en mayor cantidad. El sol, la lluvia
entre vinte e trinta minutos, a cabeça día a día, semana a semana, mes a mes, y la acción constante también debilitan
caída sobre o espaldar, braços soltos ciertas vitaminas dominan la composición. el artefacto e imprimen marcas notables
El paladar de cada uno de los comensales no sólo en la carrocería sino en el sistema
em ambos os lados da cadeira, permita renovar se adapta a un sistema de sabores y pesos de transmisión y aún en el motor mismo;
as forças do corpo com um plus de eficácia. que varía según el grado de importancia su siempre inminente vejez, sin embargo,
de la empresa y la calidad de la licitación. se mide menos por progresivas deficiencias
Com uma pá na mão prestes a ser Quienes se dedican a proveer las raciones que por la aparición de un nuevo modelo
afundada no monte de terra, o operário saben sin duda que no conviene generar de funcionalidad más amplia y costo más bajo.

115
O poeta menor ante o nascimento de seu filho

Logo depois de achar, após dias de busca, o lápis


na cabine do caminhãozinho de bombeiros,
e de comprovar a independência da vontade
do herdeiro, que rasga as páginas prediletas e
mantém intactas as indiferentes, o poeta menor
decide dialogar com sua mulher sobre um tema-chave:
a organização espacial e temporal de seu labor,
em casa, logo após o nascimento do filho.
Ao longo da conversa tocam em vários assuntos:
compra de mantimentos e artigos de limpeza,
pagamento de impostos, turnos para o cuidado,
diversão, alimentação e higiene do menino, El poeta menor ante el nacimiento de su hijo

ausência de cuidado, diversão, alimentação Luego de hallar, tras días de búsqueda, el lápiz
en la cabina del camioncito de los bomberos,
e higiene do casal, necessidade de registrar y de comprobar la independencia de juicio
seus primeiros passos, a frequência do uso da del heredero, que rompe las páginas predilectas
e intactas deja las indiferentes, el poeta menor
– vulgarmente chamada – chupeta, decide dialogar con su mujer sobre un tema clave:
formas amáveis de impor distâncias aos avós. la organización espacial y temporal de su labor,
en la casa, luego del nacimiento del hijo.
Quando uma mútua mudez evidencia o fim, A lo largo de la conversación se tocan varios temas:
o poeta menor comprova que sua quietude compra de comestibles y artículos de limpieza,
pago de impuestos, turno para el cuidado,
foi deslocada em face de outras urgências. diversión, alimentación e higiene del niño,
Esta noite, como um romântico inspirado, ausencia de cuidado, diversión, alimentación
e higiene de la pareja, necesidad de registrar
que aproveita o silêncio dos mortais sus primeros pasos, frecuencia de uso del
para deixar fluir o caráter alado de seus versos, –vulgarmente denominado– chupete,
amables formas de imponer distancia a los abuelos.
canta durante horas uma canção de ninar. Cuando una mutua mudez evidencia el final,
  el poeta menor comprueba que su inquietud
ha sido desplazada en vista de otras urgencias.
  Esa noche, como un inspirado romántico
que aprovecha el silencio de los mortales
para dejar fluir el carácter alado de sus versos,
canta durante horas una canción de cuna.

116
Glosa a “Ode to a Nightingale” de John Keats

A dor no coração está. A modorra zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz


também, ali no jardim, embaixo da ameixeira, zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz
sentado na cadeira que pegou da mesa zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz.
do café da manhã. Mas não houve chá. Amanhece. Não há música no mundo.
Tragos fortes às três da manhã, O jardineiro levanta-se, dispõe-se a buscar
uns tantos copos depois, boca molhada suas ferramentas e vê, ao se aproximar da casa,
e fuga entre a espessura de maio, fuga, o jovenzinho apagado na cadeira, ao sol.
como se isso fosse desejável, até o nada: Estará acordado ou dormindo o poeta?
amnésia, queixas entre os reflexos emprestados Que descanse, shhh, que descanse agora.
do céu, essas coisas. Levanta-se e se move
até a fronde: o mais delicado não se vê,
ouve-se apenas ou, melhor, só pelo aroma
distingue-se: e entre espinhos e frutas,
entre a acácia, a violeta e a rosa silvestre
persegue entre as sombras a sombra
Glosa a “Ode to a Nightingale” de John Keats
de quem canta pelos séculos a todos.
Bem, não para todos. O jardineiro dorme. El dolor en el corazón está. La modorra podó árvoles y cercas, amontonó ramas
también, ahí en el jardín, bajo el ciruelo, en la honguera, frutos podridos, una o dos
Houve cedo a tempestade que virá sentado em la silla que tomo de la mesa alondras em el tanque caídas y fue
e o homem, dizem, teve bastante trabalho: del desayuno. Pero no ha habido té. el unico en toda la casa que se acostó
Tragos fuertes a las tres de la mañana, con el pelo compacto de briznas e húmus.
podou árvores e cercas, amontoou ramos unas cuantas copas encima, boca mojada Dejó la naturaleza parecida a un poema
na fogueira, frutos apodrecidos, uma ou duas y fuga entrel a espesura de mayo, fuga, y se cansó, claro. Ahora nada siente, nada,
como si eso fuera deseable, havia la nada: nada oye ni oirá hasta el sol: melodía ninguna.
cotovias caídas no tanque e foi amnesia, quejas entre los reflejos prestados Es que está muerto y literal e, encima, ronca:
o único em toda a casa que se deitou del cielo, esas cosas. Se levanta y se mueve zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz
hacia la fronda: lo más delicado no se ve, zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz
com o cabelo compacto de folhas e húmus. se oye apenas o, mejor, sólo por el aroma zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz.
Deixou a natureza parecida com um poema se distingue: y entre espinos y frutales, Amanece. No hay música em el mundo.
entre el aromo, la violeta y la eglantina El jardinero se levanta, se dispone a buscar
e se cansou, claro. Agora nada sente, nada, persigue entre las sombras la sombra sus ferramientas y ve, al acercarse a la casa,
nada ouve nem ouvirá até o sol: melodia nenhuma. de quien canta por los siglos para todos. derrumbado al jovencito en la silla al sol.
Bueno, no para todos. El jardinero duerme. Estará despierto o dormido el poeta?
É que está morto e literal e, ainda, ronca: Hubo temprano la tormenta que vendrá Que descanse, shhh, que descanse ahora.
y el hombre, dicen, tuvo bastante trabajo:

117
Coringa
20 epigramas
I believe whatever doesn’t kill you simply makes you stranger.
Eu acredito que tudo que não te mata, te deixa mais estranho.
*
Why so serious?
Por que tão sério?
*
A little fight in you. I like that.
Um pouco de conflito em você. Eu gosto disso!
*
Introduce a little anarchy!
Introduza um pouco de anarquia!
*
This is what happens when an unstoppable force meets
an immovable object.
Isso é o que acontece quando uma força incontrolável encontra
um parasita.
*
I don’t wanna kill you. You complete me.
Eu não quero matá-lo. Você me completa.
*
I am an agent of chaos.
Eu sou um agente do caos.
118
Madness is like gravity. All it takes is a little push. Faced with the inescaple fact that the human existence is mad,
A loucura é como a gravidade. Só precisa de um empurrãozinho. random and pointless, one in eight of them crack up and go
* stark slavering buggo! Who can blame them? In a world as
psychotic as this, any other response would be crazy!
Do I look like someone who has a plan? Frente ao inegável fato de que a existência humana é louca, casual e
Eu pareço alguém que tem um plano? sem finalidade, um em cada oito humanos fica chapadão! E quem
* pode culpá-los? Num mundo psicótico como este, qualquer outra
reação seria... loucura!
The only sensible way to live in this world is without rules!
O único modo razoável de se viver neste mundo é sem regras! *
* It´s not about money. It´s about sending a message.
Não é pelo dinheiro. É pela mensagem.
I’m not a monster. I’m just ahead of the curve.
Eu não sou um monstro. Só estou na vanguarda. *
* All you care about is money. This town deserves a better class
I’m a dog chasing cars. I wouldn’t know what to do if I caught one. of criminal.
Sou apenas um cachorro perseguindo os carros. E não saberia o que Vocês só pensam em dinheiro. Esta cidade merece uma classe
fazer se alcançasse um. melhor de criminosos.
* *

If you’re good at something, never do it for free. You see, their morals, their code it´s a bad joke. Dropped at the
Se você é bom em alguma coisa, jamais faça de graça. first sign of trouble. They´re only as good as the world allows
them to be.
* Sabe, a moral deles, a honra deles é uma piada de mau gosto. Eles
Madness is the emergency exit. a jogam fora ao primeiro sinal de problema. Eles só são bons sob o
A loucura é a saída de emergência. manto blue-pink de um mundo pré-edipiano.
* *
All it takes is one bad day to reduce the sanest man alive to lunacy. Rats!
That´s how far the world is from where I am. Just one bad day. Filhos-da-puta!
Só é preciso um dia ruim pra reduzir o mais são dos homens a um
lunático. Essa é a distância entre o mundo e eu. Apenas um dia ruim.

119
Carlos Marighella

Liberdade Sapataria Hodierna


11 Poemas de Sapateiro Silva
Não ficarei tão só no campo da arte,
e, ânimo firme, sobranceiro e forte, Eu queria, mas eu tenho vergonha
tudo farei por ti para exaltar-te, De dar e conhecer a minha tolice;
serenamente, alheio à própria sorte. Deixamos de fazer a parvoíce,
Que havia de feder mais do que a peçonha.
Para que eu possa um dia contemplar-te
dominadora, em férvido transporte, Mas que importa que outro se me oponha
direi que és bela e pura em toda parte, Por querer ser pateta, ou ser felice,
por maior risco em que essa audácia importe. Se comigo assentei por fontorrice
Ser hoje o grande Duque de Borgonha?
Queira-te eu tanto, e de tal modo em suma,
que não exista força humana alguma Já contente no meu gaudério estado
que esta paixão embriagadora dome. Tenho fardas, palácios, e dinheiro:
Já não peço a ninguém nada emprestado.
E que eu por ti, se torturado for,
possa feliz, indiferente à dor, Porém leve o diabo o meu roteiro,
morrer sorrindo a murmurar teu nome. Que apesar das farófias do Ducado, 
Todos me leem nas costas – sapateiro.

São Paulo, Presídio Especial, 1939

120
As Rimas de João Xavier de Matos Senhor Mestre Alfaiate, este calção Se quiser tomar lá o seu cordório,
São obras de um gênio bem completo; Está como os sapatos, que eu lhe fiz? Os desencaixes meus afoito leia,
Mas melhor não faz ele um bom Soneto, De que serve o dedal, tesoura e giz, Que gostará mais deles que da ceia,
Do que eu faço alguns sapatos. Se não sabe pagar-lhe com a mão? Que onte à noite comeu no Refeitório.

Se ele só procura gênios gratos, Você não é alfaiate, é remendão, Não nego que meu Padre Frei Honório
Eu quero Cordovão do mais seleto; Eu bem podia crer o que se diz; Goste mais do molinho da lampreia,
Queixa-se ele do seu ingrato afeto, Porém como por asno nunca quis,  Porém a frigideira cá da veia 
Eu me alegro de ver gênios ingratos. Justo é sinta o mal sem remissão. Causa a todos melhor consolatório.

Bem sei que toda corte de Lisboa Já outro que ali mora junto à Sé Ao menos o bom Rio de Janeiro
Aplausos mil lhe dá com bizarria: Bem conhecido, Antônio Marroquim, Não possui um gênio desta casta,
Que a fama do seu verso o mundo atroa; Me deitou a perder um guarda-pé. Por mais e mais que corra seu roteiro.

Porém eu tenho cá outra valia, Se eu daqui a dez anos, para mim, Tem possuído alguns de afasta-afasta:
Porque todo o Brasil já me apregoa Não fizer um calção de sufulié, Porém nunca um Poeta sapateiro,
Primaz de Parnasal sapataria. Não me chamem jamais Mestre Joaquim. Que tenha um tal humor; adeus, que basta

121
Mote III Mote
Amor, busca a tua vida, Inda que vás aos Ciclopes Amei a ingrata mais bela,
Que me resolvo a deixar-te; Pedir temperados ferros, Que o mundo todo em si tem;
Se até agora te sofri, Te hei de largar quatro perros, Eu morri sempre por ela,
Não posso mais aturar-te. Que fugirás aos galopes. Ela nunca me quis bem.
Inda que o cendal ensopes
Glosa Com pranto de frenesi, Glosa
I Zombarei sempre de ti,
Pois não posso sem atalho I
Vai inspirar teu orgulho, Quando eu era mais rapaz,
Ó tu rapaz malfazejo, Aturar-te tão bandalho,
Se até agora te sofri Que jogava o meu pião,
A quem arde no desejo Andava o Centurião
De seguir a teu barulho. Dando a todos sotas e ás.
Longe de ti o engulho IV Nesse tempo aos Sabiás
De trazer-me de corrida: Esse espírito guerreiro Armava a minha esparrela;
E se alguma amante lida Oculta por desafogo, Comia caldo em panela
Acaso fazer-me intentas, Que não deves ter tal fogo, Por ter os pratos quebrados;
Antes que eu te chegue às ventas, Sendo filho de ferreiro. E até por mal de pecados,
Amor busca a tua vida. Outra vez alcoviteiro Amei a ingrata mais bela.
Vai a ser do fero Marte;
II Que eu posto agora de parte II
Das tuas setas pontudas  Pertendo dar de ti cabo: Depois de mais alguns meses 
Meu peito não participa, Não és amor, és diabo, Já por baixo da sobcapa,
Pois que desse arco de pipa Não posso mais aturar-te. Pelas calçadas da Lapa
Se despedem já rombudas. Pernoitava muitas vezes.
Té não temos as mais agudas Não bastaram os arneses,
Que teu pai costuma dar-te: Que herdei de Matusalém;
Bate as asas por descarte, Só sei que querendo bem
Tira a venda, dá um ai, Me achei como Antão no ermo,
Vai queixar-te à tua Mãe, E o mais galante estafermo,
Que eu me resolvo a deixar-te. Que o mundo todo em si tem.
122
III Mote III
Com os anos, com a idade, Sábado fez quinta-feira, O Estreito de Gibraltar
Na festa e s seu oitavário, Domingo fez três semanas, Mora da parte dalém;
Só em passo imaginário, Que pariu a porca um burro, Arroz feito de moquém
Andava pela Cidade. Mas com vinte e cinco mamas. Faz um belo paladar.
Se é mentira, ou se é verdade, Não deixa de admirar
Diga-o a minha mazela, Glosa Quem dá forte um grande murro;
Que não sendo bagatela Qualquer estrondo ou sussurro
Bem mostra de cabo a rabo, I é traste de tabuleta;
Que por artes do diabo Sebo de grilo em cardume Faz bem notório a Gazeta
Eu morri sempre por ela. Dizem de ser de boa medra; Que pariu a porca um burro.
Sabão mole feito em pedra
é um galante perfume.
IV Não é má para betume IV
Depois de velho caduco, A raiz da escorcioneira; Moela de pato macho
Já cheio de barbas brancas, A galinha na popeira É cordial d’esquinência;
Eu bispei-a dando às trancas Põe os ovos na malhada; Não se atura a impertinência
Nos sertões de Pernambuco. Lá na semana passada De quem joga e dá camacho.
Ali trabalho e trabuco Sábado fez quinta-feira. De carapuça e penacho
Por lhe abrandar o desdém; Se representam os Dramas;
Mas o mau modo, que tem,  II Usam hoje as novas damas
Procedido da vil prole, Arroz de nabo e cominhos No Marquesado de Nisa
Faz crer que nem a pão mole Serve de emplastro à espinhela, Um cavalinho de frisa,
Ela nunca me quis bem. Pimenta, cravo, e canela, Mas com vinte e cinco mamas.
De lambedor de carinhos.
Cantochão de Barbadinhos
Faz árias italianas;
Criam misérias humanas
Um, e dous, e argolinha;
Inda há pouco na folhinha
Domingo fez três semanas.
123
Mote X Mote
Empunhou cupido as setas, Qual outro amante mingote
Dirigiu-as a meu peito, Ardendo de amor na calma Ao pé do monte Sião
Obrigou-me a ser amante, Quase dei ai demo a alma Há um pé de Cajuru,
Amei, ficou satisfeito. Na ponta do meu fagote. Onde limpava seu cu
Pôs-me logo andar de trote O Almirante Balão.
Glosa Sem sossegar um instante;
E com furor incessante Glosa
I Em tão terrível cuidado,
Nenhum outro mais que eu Depois de trazer-me a nado, I
Zombou sempre por capricho Obrigou-me a ser amante. Desprezou Matusalém
Desse formidável bicho, Duzentos anos de vida,
Ou gigante pigmeu. Por não ver na amante lida
Do ardente poder seu XIV
Nisto tanto se interessa, O gosto, que o lamba tem.
escarneci às secretas; O Juiz de Santarém
Mas depois bispando as netas E me faz tamanho fogo,
Que fiquei amante logo Quase estala de paixão;
Do mui famoso Plutarco, Das montanhas do Japão
Vibrando mais forte o arco Desde os pés té a cabeça.
Sucedeu com tanta pressa Ungi-lo veio o seu Cura,
Empunhou Cupido as setas. Mas desceu-lhe a quebradura
Esta caso com efeito,
Que sem mover-se mais pleito Ao pé do Monte Sião.
II
Inda assim fugi ao queima, Que o dizer dos Rabolistas,
Me pôs no Rol dos fadistas, II
Pois na verdade não quero, Sem dar acordo de si
Como Leandro por Hero, Amei, ficou satisfeito.
Na dura terra prostrado,
Fazer outra tal toleima, Acudiu-lhe o Deus vendado,
Persisti na minha teima Com a funda de Davi.
Com manha, cômodo e jeito; Uns daqui, outros dali
O que vendo o tal sujeito, Já chegam do Calundu;
Despreza as setas rombudas, Levado de Berzebu
Põe no arco as mais agudas, Confirma o bom Juvenal,
Dirigiu-as a meu peito.
124
Que na nossa Catedral Mote Porque no tempo das águas
Há um pé de Cajuru. Alminhas do purgatório, Inunda mais o Danúbio.
Que estais na beira do rio, Qualquer átomo ou eflúvio
III Virai-vos da outra banda Sempre fede que tresanda;
Esta mentira tamanha Que vos dá o sol nas costas. Renasce o mal de Luanda
Que soou no Oriente, Na cidade de Guiné;
Fez abortar de repente Glosa Se quereis tomar café,
A Imperatriz de Alemanha. virai-vos da outra banda.
Veio a parteira de Espanha Atrás da Porta Otomana
Montada num baiacu: Se conserva um bacamarte, Raia agora a lua cheia,
Faz-se a guerra no Peru Com que Pedro Malasare A nova faz eu eclipse:
Por se saber que Mavorte Defende a cúria romana. É galante parvoíce
Vende a gadanha da morte, Nas margens do Guadiana Deitar-se a gente sem ceia.
Onde limpava o seu cu. Dá Castela o repertório: Junto da Palma Idumeia
Um tal frade frei Gregório Estão as cousas dispostas
IV Nas ventas do seu nariz Para evitar as propostas
No Romano Capitório Tem um letreiro que diz: Em que estão sobre a vindima:
Todas as tradições Alminhas do purgatório. Ponde a barriga pra cima
Se dão a ler às Nações Que vos dá o sol nas costas.
Num grosso livro de fólio. No passar do Helesponto,
Sentado então no seu sólio Esta nossa atmosfera
Sem ter alguma atenção, O seu ambiente altera,
Deu tremendo cachação, Por não achar barco pronto;
No tempo dos três Filipes Em falsete ou contraponto
Em sua filha Floripes O tempo passa de estilo;
O Almirante Balão. O mestre inverno com frio
Manda ascender o farol,
Pois vê de ré-mi-fá-sol
Que estais na beira do rio.
Depois do geral dilúvio,
Inda nos ficaram mágoas,
125
Mote Se tendes sapato justo,
Tenho um galante chinelo E pões as mãos nas ilhargas,
Com que vou a São Mateus, Eu tenho as botas mui largas,
Tenho minha fralda rota, Com que passeio sem custo.
Ninguém me bote quebranto. Se tendes de raios susto
Eu caço da vela a escota;
Glosa Se tendes no frasco a gota
Como mostra das crioulas,
Se vós tendes um baiju Eu por baixo das ceroulas
Com seus babados de chita, Tenho a minha fralda rota.
Eu tenho agora a marmita,
Semirrubra de ourocu. Se tendes novo capote
Se tendes de gorgutu Mais chibante do que o velho,
Um macaquinho amarelo, Eu tenho um torto chavelho,
Eu nas casas do castelo, Que me faz vezes de pote.
Como é público e notório, Se a cavalo andais de trote,
Por baixo do consistório Eu do chão não me levanto,
Tenho um galante chinelo. Não me assusto, nem me espanto,
Serei sempre pé-de-boi,
Se vós tendes de cambraia Ora aí está como foi,
Camisa fina e bordada, Ninguém me bote quebranto.
Eu tenho minha rendada
Que veio da Marambaia:
Se de cetim tendes saia,
Eu só tenho os cações meus;
Se com estes trastes teus
De mim todas te desunes,
Eu tenho os panos de Tunes,
Com que vou a São Mateus.

126
Paulo Stocker

127
128
129
Heriberto Yepez
Tradução de Fabiano Calixto

Por uma poética antes do paleolítico 6. A gravidade da crise da linguagem exige que não só sejamos
e depois da propaganda profundos contemporâneos de todas as épocas anteriores, como
também (talvez pela primeira vez na história humana) indivíduos
1. A noção de “Literatura” caducou por completo. “Literatura” muito a frente de nossa época (tão atrasada espiritualmente, tão
(letras, escritura) é um campo tão reduzido (mas é nesse lodaçal retrógrada axiologicamente). Conservar a poesia antiga e fazer já
onde se dá o deleite do Cânone Ocidental) que alienou a linguagem (mais que vaticinar) a poética do futuro.
humana e a criação, afastando-nos das formas primitivas do Dizer: a
oralidade, a pictografia, todas as gamas de linguagem sem palavras e 7. O que não é visionário é suicida.
o dizer corporal (performance, dança, teatro essencial, ritual) etc.
8. A metade do trabalho poético que enfrentamos deve-se fazer
2. A noção de “Literatura” deve ser abolida e em seu lugar deve ser no terreno da investigação. A investigação ilimitada rumo às (re)
retomado o conceito de “Dizer”. Estudar e prolongar a evolução definições da poesia é mais importante, neste momento, que escrever
do Dizer. (Deixemos o estudo e a disseminação da Literatura para poemários tolos.
as universidades e institutos de cultura paraestatal). Penetrar todas
as formas do dizer, da poesia rupestre à holografia; da etnopoesia à 9. Fazer poesia irracional a partir do âmago da consciência é pensar
cibercultura. acima de toda filosofia grega clássica.

3. A poesia e todo o dizer provêm (e se mantêm) da Natureza, 10. Cada autor (cada mulher e homem) deve formular uma poética
não da Cultura. A linguagem tem origem animal e vegetal. A pessoal. Uma obra que não esteja sustentada em uma ou várias
animalidade e a vegetalidade são a força no interior do Dizer. A poéticas não é mais que um cuspe.
origem da linguagem está nas palavras, mas também na carne do
cervo e nos cogumelos alucinógenos. 11. Perturbemos-nos uns aos outros.

4. O circuito da fala é um dos muitos ciclos naturais. 12. Provavelmente devamos expurgar as arcas do passado poético
humano, pois tudo aponta para o fato de que perdemos o futuro do
5. O Dizer tem sido verbocêntrico por tempo demais. Dizer há muitos séculos atrás. Talvez nos seja conveniente manter
Provavelmente, o terceiro milênio tenha que evoluir a formas de por um tempo uma poética do retrocesso, uma retropoética que nos
linguagem afastadas da palavra, anteriores à palavra. leve de volta ao futuro e dilua a atual crise da linguagem.
130
13. A linguagem atual não é seiva que brota, mas ácido que esquecidos, devem ser reescritos todos os idiomas. A metade da obra
desfigura o que toca. poética necessária para impedir a morte da linguagem é de índole
crítica.
14. A crise da linguagem é uma das fases da transfiguração da
linguagem. A crise da linguagem precede a linguagem. A linguagem 20. Se uma geração não refaz todo o passado (retraduzir,
ainda não foi criada; vivemos até agora no processo de invenção reinterpretar, reescrever etc.), abre-se caminho às idades das trevas.
da linguagem, nos ensaios gerais da gênese da linguagem. Todas as Basta uma geração passiva para entrevar séculos de prática poética.
obras poéticas até agora têm sido unicamente evidências do Dizer
que está por vir. 21. Basta apenas uma prática estúpida, um só texto frouxo, para
matar de vez o trabalho de nossos ancestrais.
15. Somente a poesia dos povos faz parte das audições na busca dos
primeiros falantes, escreventes e cantores da linguagem. Todo o resto 22. Deve-se destruir todas as convenções. O grande trabalho
de nossas falácias e literaturas são meros pigarros, tosses, bocejos negativo (Tzara) é um empreendimento permanente, as novas obras
dos personagens exteriores às audições para a busca dos primeiros são sempre destruidoras. Quando se crê que destruir é uma moda
falantes, escreventes e cantores da linguagem. (uma “vanguarda”), renovar se torna um “fenômeno passageiro” e se
prepara a volta ao estancamento e ao assassinato.
16. O modelo aconselhável para o terceiro milênio não é a
“literatura” das grandes civilizações (o acervo greco-latino ou 23. Quando se escuta que já passou o tempo dos revolucionários, se
europeu, a literatura hindu ou chinesa), mas o Dizer das pequenas faz mais necessária a resistência contra a morte da linguagem.
comunidades. Nas tribos nômades do mundo, nas tradições
indígenas, sobreviventes e resgatadas, estão as ligações perdidas do 24. Se escutarmos detidamente a expressão “já passou o tempo dos
processo do Dizer. rebeldes”, logo se notará que o seu som é idêntico ao afiar do facão
do açougueiro assassino.
17. Na Grande Audição deve-se escutar todo o Dizer dos Povos.
25. O propósito da poética não é o estabelecimento verbal, o
18. Na origem da humanidade existia o “multiculturalismo”. No
aperfeiçoamento dos artifícios literários ou a correta continuação
futuro, nas sociedades do terceiro milênio não faremos senão
dos estilos, mas a defesa da natureza, a transfiguração da realidade
reacender as crises e virtudes de nossos antepassados mais remotos.
imediata, a sobrevivência material e a evolução espiritual do mundo
circundante.
19. Devem ser traduzidas todas as obras do passado. Devem ser
reinterpretados todos os clássicos, devem ser resgatados os nomes
131
26. A força invencível contra as convenções é o Jogo. Caso se 33. O assovio da água e os sons das palavras, são parte do Grande
conclua, no panorama poético, que o Dizer deixou de ser lúdico, Ritmo Universal. Assim como também o são, estranhamente, os
deixou de ser faz muito tempo. Tudo o que não é jogo é “putrefato” facões das aldeias assassinadas e a buzinaria paranoica da cidade.
(García Lorca).
34. O Grande Ritmo Universal poder ser escutado e transcrito tanto
27. O batimento cardíaco humano é uma das modulações num baile, num bate-papo etc., quanto num poema.
originárias do Grande Ritmo Universal, como os mantras. O
batimento cardíaco animal é o mantra primordial. 35. As grandes obras são aquelas que capturam uma parte desse
Grande Ritmo Universal que jamais para de tocar.
28. As noções “formalistas” de métrica, rima e tropo devem ser
definitivamente substituídas pelas de fôlego, batimento cardíaco e 36. Uma palavra é um ato energético drástico.
percepção.
37. Um poema escrito deve ser um objeto visual de meditação.
29. Toda vez que falharem as técnicas para criar um poema ou
descontaminar a “tradição”, deve-se pedir auxílio à voz. A voz é um 38. Nas mãos estão ocultos, e por elas podem ser libertados, alguns
valioso tratamento contra as enfermidades e crises da linguagem. A dos segredos superiores da linguagem.
voz é o batismo e o exorcismo das palavras novas ou demoníacas.
39. Para um escritor, as mãos são mais importantes que a
30. Todas as obras são fragmentos de uma grande partitura “consciência”.
universal, de um processo ritmado no qual todos os seres são
momentos e entonações. A boa obra poética é aquela que se insere, 40. Eu não diferencio minhas mãos de meus pensamentos.
capta e anota parte dessa partitura.
41. Unidade do meio externo (teclado, caneta), as mãos, a voz e o
31. O Grande Ritmo Universal está inteiro em todos os seus pensamento. Sem a dissolução dessas separações/nomes, sem poesia.
fragmentos, um tamborilar sincero tanto quanto um poema
profundo refletem (ainda que dentro de uns poucos segundos) toda 42. Levando em conta que não há Ser, mas Alteridade, o outro, a
a sinfonia completa do Grande Ritmo Universal. criação e a revelação do outro é o objetivo central da linguagem.

32. O rumor das folhas ou o sincronizado rompimento da couraça 43. Entre todos (Lautréamont) escrever o Sutra da Alteridade.
dos crocodilos contêm em um segundo toda a linguagem possível.

132
44. Amor e Humor, Orgasmo e Sarcasmo, são os únicos deuses em 52. Uma poesia que delete esse eu lírico que todos praticamos.
cujos altares vale a pena oferendar e dar-se em sacrifício.
53. Para fazer poesia não se necessita de um eu, mas sim de um
45. O espírito da antipoesia não pode perder-se. Se isso acontecer, outro.
voltamos às idades das trevas.
54. O projeto total da linguagem envolve a reconstituição da
46. A solenidade é um dos sinais do fim da humanidade. indentidade individual e implica na evolução a uma forma de
identidade superior à do eu.
47. É dever da poética inventar outra forma de amor que substitua
este amor “romântico” que tem infestado nosso mundo e nossos 55. O eu é uma sílaba suja que implica a negação de toda a
corpos. A Poética é Erótica. linguagem.

48. A arte intermídia denota imediatamente sua analogia com as 56. O Dizer não pertence nem é protagonizado por uma só “Grande
formas “artísticas” primitivas. A “nova” arte que se faz hoje nas telas Tradição”. Existe uma pluralidade infinita de tradições. Entre elas às
dos computadores se fez também nas paredes das cavernas. Não se vezes há cruzamentos, unificações ou deformações, mas quase todas,
pode negar nenhuma plataforma, nem a intromissão da tecnologia na verdade, são “linhas” paralelas que correm sem jamais se tocar.
nas artes, porque as artes sempre pedem novas mídias. Sem dúvida
alguma, as “novas” técnicas cada vez mais nos ligam aos meios e 57. É necessário colocar-se na ContraTradição, na ConTradição, na
técnicas originais da poesia. Contradicção. Na Contradicção da ContraTradição.

49. Em algum momento a escrita também foi um meio estranho 58. Converter todas a tradições, as “linhas” das muitas tradições
para dizer coisas profundas. do Dizer, numa rede ou num tecido é o objetivo de todo poeta. O
poeta deve servir de trama de toda a história da poesia, o fio que
50. É bom acreditar que não há nada novo sob o sol... mas só se atravessa todos os fios.
você acreditar que o sol que nos ilumina de manhã é diferente do
que nos ilumina no crepúsculo. 59. A poesia de uma época tem inimigos. Esses inimigos quase
sempre são poetas do presente ou do passado imediato.
51. A fala é o alvorecer da poesia. Não deixe que caia a noite sem
que se tenha procurado alguma maneira de se fazer escutar poesia no 60. A tradição é idêntica à sua transformação; não há rupturas
escuro. Vamos até o desconhecido. na tradição, não há continuação da tradição, a transformação é

133
permanente/impermanente. Os únicos atributos seguros da tradição 68. O dizer deve ser visionário. Poesia que não seja visionária não
são que ela é irreal e desconhecida. A única tradição existente é a vale nenhum comentário. O sujeito que não acredita que, ao fazer
incessante transfiguração das tradições. poesia, se converterá em vidente está perdendo seu tempo e nos
fazendo perder o nosso.
61. O terceiro milênio deve estar totalmente inserido na “dialética
alucinante” da “tradição do desconhecido” (Lezama Lima). A única 69. A poesia é um meio para que possamos adentrar o corpo e a
tradição “fixa” e “universal” é a busca, entramado e renovação das consciência e é também a dissolução dessa dicotomia.
tradições.
70. A poesia é o começo e o fim de todas as dualidades.
62. É necessária uma volta à poesia narrativa: histórica e de
miniépicas. Contar é tão importante quanto cantar. A história é 71. Aqueles que encontram defeitos na linguagem vidente, vivem
propriedade natural da poesia. sob uma falácia: ostentam que a linguagem só transmite e cumpre
sua função se é clara, esquecendo-se que a contradição e o paradoxo
63. Se o lírico não é fisiológico não é autêntico. É apenas bijuteria não são sinais de insuficiência da linguagem, mas da lógica.
sentimental.
72. A impotência da linguagem é um fenômeno social, não um
64. As funções elementares do Dizer são cantar e curar. Quando fenômeno mesmo da linguagem (que é puramente natural).
as palavras deixarem de curar, quando a poesia perder sua função
medicinal e não curar a quem a faz e a quem a recebe, então não é 73. Quando a linguagem expressa contradições e paradoxos fala nos
poesia, é falsificação. códigos primitivos do Dizer. Quem não os entende, esqueceu desses
códigos.
65. A poesia como técnica para recobrar o sagrado (Rothenberg).
A poética é o resgate, a formulação e a renovação das técnicas de 74. Safo, “flor e canto” náuatle, cerimônias tribais etc. As origens da
criação, invocação ou manipulação do sagrado. poesia também estão na dança. Poesia que não incite o movimento
corporal é inferior.
66. O sagrado é a própria linguagem, o próprio dizer. A poesia como
técnica do sagrado é, enfim, a coleção de técnicas para manejar a 75. A dança, a poesia e a memória, tudo nos foi ensinado pelas
própria poesia. A poética é a técnica do sagrado. criaturas não-humanas. Os primeiros xamãs da linguagem são os
animais selvagens.
67. A poesia inventará a linguagem; a linguagem sustentará a poesia.

134
76. A poesia é a prova externa da existência de um mundo interior. (epigramas = inscrições). Tão importante quanto o regresso à
oralidade é a fuga da poesia das páginas dos livros para os letreiros de
77. A linguagem é a maçaneta na porta do real. rua, os muros, o grafite. Há mais poesia viva nos grafites de Tijuana
que nos livros de Harold Bloom.
78. A porta do real se abre e nos mostra a imaginação.
86. Não há formas ou espaços poéticos superiores a outros. O que
79. O Grande Ritmo Universal, o Grande Ritmo Universal, o há é que em algumas épocas alguns são mais necessários. Agora,
Grande Ritmo Universal. por exemplo, vivemos em um tempo no qual se faz indispensável
retornar aos espaços que vão além da página do livro. No fundo,
80. A poesia nos emociona não porque “soa bem”, mas porque todas as épocas precisam de todas as formas poéticas.
temos pelos e eles se arrepiam.
87. No projeto do Dizer, a qualquer momento que se deixe de
81. A busca de uma poética a partir de todas as poéticas depende, praticar qualquer uma de todas as infinitas formas de Dizer, significa
em grande parte, do efetivo retorno ao pensamento metafísico. que não se está praticando o Dizer.

82. A poesia é a posse de parte dos poderes dos seres primordiais. 88. Não uma poesia que nomeie, mas uma poesia que atue.

83. Leio alguns epigramas da Antologia grega. Acredito ter 89. A poesia é parte fundamental do wu-wei (a não-ação, o ato
compreendido a simplicidade essencial da poesia. Uma hora depois, espontâneo, o ato natural: resistir contra o assassinato é natural, não
leio poemas de Artaud e acredito compreender a complexidade se deve confundir a não-ação com a inatividade).
essencial da poesia. Essas duas conclusões me parecem tão
impecáveis como claramente opostas, o que me leva a entender que 90. Se não sou claro, se não sou coerente, a poesia o é, pois a poesia
a poesia somente nos fornece compreensões contraditórias. é uma colmeia de contradições. A contradição é a prova do sucesso
da exploração mental. Tudo o que não seja contraditório é fictício e
84. O dizer é Dizer apenas em seu contexto cerimonial. O resto contraproducente.
é literatura.
91. Na verdade, toda a realidade é imaginária. Toda imaginação
85. A poesia “moderna” foi uma poesia acerca da cidade. A irrupção é real. O ser humano se caracteriza pelo uso especializado da
de uma poesia não da cidade, mas na cidade. Não sobre a cidade, imaginação. A poesia depende da cultura e do agigantamento da
mas sobre a cidade (=Poética Contextual). Nas suas origens (Grécia, imaginação.
China etc.) a poesia ocupava os espaços públicos das cidades
135
92. Conseguir se comunicar com os animais e conhecer sua 103. O experimental se opõe ao preestabelecido. A poesia não deve
imaginação é também nosso objetivo. deixar de ser experimental.

93. O poema deve ser manejado como um organismo, não como 104. O melhor literato é o literato morto. O melhor literato morto é
uma máquina. o que foi prolífico e profundo.

94. A escritura do mais mundano poemínimo requer investigações 105. A poesia é o registro do devir da Presença.
enlouquecidas e exaustivas sobre todos os temas imagináveis.
106. A poesia humana é a prova irrefutável de que a Presença
95. O inconcebível é a meta. Os lugares comuns que apodrecem também habita este planeta.
nosso pensamento provêm da nossa sabedoria. É melhor erradicar
nossa sabedoria que pregar, a mais de uma geração, o mesmo 107. Fazer poesia voluntária e explícita é apenas uma das muitas
conhecimento do mundo. maneiras de fazer poesia.

96. Dizer, pensar e agir devem ser a mesma coisa. 108. Escrever poesia voluntária, ótimo. Achar poesia involuntária
nas conversas, escrituras e cantos alheios, melhor.
97. A poesia precede a linguagem. A linguagem precede as palavras.
109. Deve-se registrar toda poesia involuntária que se faz no mundo.
98. As palavras são apenas a manifestação sensível (visível-audível)
da linguagem. 110. Tudo é um. Um, muitos. Muitos, outros.

99. Torno minhas algumas crenças alheias, porque nem sequer 111. A linguagem é onipotente. Não há nada que não possa ser
considero minhas as revelações que exponho. expressado por alguma das formas de linguagem. Não há nada
que não possa ser dito pela linguagem. A tradição religiosa e
100. No interior da mente individual estão todos. filosófica (do budismo tradicional ao positivismo lógico) que nega a
capacidade da linguagem de expressar as “realidades supremas” são
101. Conhecer o mundo através da consciência, sim. Conhecer o
doutrinas tímidas e decadentes.
mundo através do corpo, melhor.
112. Não há nada mais daninho que a mística (= doutrina da
102. A “literatura” só conquista a liberdade em seu contexto e uso
impossibilidade da linguagem).
“extraliterário”. Os poetas têm que ser, por obrigação, extraliterários.
136
113. A sobrevivência da poesia no terceiro milênio depende 122. As virtudes de um grande poema são diferentes daquelas que
diretamente de sua efetiva hibridação com todas as artes, atividades surgem da novidade de suas imagens.
e técnicas.
123. A poesia deve deixar de ser sublimação para tornar-se vivência.
114. Temos que procurar fazer menos coisas na poesia e fazer mais
coisas com a poesia. 124. Quase todas as metáforas criadas e as imagens “poéticas” são
meras combinações hábeis ou inusitadas de palavras. Tudo isso é
115. Não devemos passar a vida aperfeiçoando a poesia, mas usando apenas lixo se não estão respaldadas numa alteração análoga da
a poesia como continuação da imperfeita existência. mente que escreve e lê.

116. Cada vez que alguém escreve, deve intensificar o tema tratado. 125. Numa poética ideal, o “desdobramento” ocuparia um lugar
O superficial não é linguagem, mas interferência. central.

117. Os poetas protagonistas de uma comunidade devem ser os 126. Reformulo tudo que foi e é dito, em muitos lugares e épocas,
mais jovens – quando isso não ocorre, a idade das trevas volta pois cheguei à conclusão de que minha sociedade novamente
prontamente. estimula que estes princípios sejam abandonados ou marginalizados,
inclusive por seus “poetas”. Por isso reitero essas definições sobre a
118. Seria ótimo recrutar ladrões de ataúdes e desenterradores natureza da poesia.
profissionais, pois quase todas as palavras estão mortas.
127. A absoluta sinceridade dessas anotações não provêm de leituras
119. Fazer respiração boca a boca nas palavras, ou seja, dizer a poesia ou do domínio que posso ter delas, mas do fato de que são, também
em voz alta. para mim, revelações do inexplicável.

120. O poeta, evidentemente, deve ser um ser extraordinário pelo 128. O indizível não existe.
que pensa e faz. Somente se é um poeta extraordinário se o que
se diz faz com que os outros seres pensem, façam e digam coisas 129. O poeta tem a obrigação de dizer (mostrar) tudo aquilo que os
extraordinárias. místicos e filósofos disseram que não pode ser extraído do silêncio.

121. Um poema deve conter apenas imagens que afetem a mente. 130. O silêncio é uma das sutilezas da linguagem.

137
131. A linguagem está em todas as partes. historicamente, com a luta internacional do anarquismo em todas
as suas correntes (a filosofia do indivíduo como Totalidade), desde
132. Cada vez que escuto a palavra “cultura”, tenho certeza de que Yang Chu até Bakunin.
pertenço à esfera dos animais.
143. A conversão de todos os indivíduos em poetas.
133. A natureza é um livro.
144. A poesia é uma palavra vazia quando não está impregnada por
134. A união do oculto e do visível se faz na voz. atos amorosos ou atos políticos.

135. Só valem a pena as transformações radicais, as renovações 145. O poeta atinge seu objetivo não quando faz surgir homens de
pessoais. A morte da poesia também se manifesta nos retoques ou no leitura, mas quando faz surgir homens de ação.
blefe publicitário das falsas vanguardas.
146. A poética é anterior à religião. Se religião é religação (religare,
136. Embora o conceito de vanguarda não é muito feliz, o Feuerbach), a poética é a condição de retorno à comunhão original. A
fenômeno da revolução no Dizer deve ser incansável. linguagem é a única via de acesso ao divino. O divino é a totalidade
da Linguagem, o Dizer completo.
137. Entre o endurecimento e a desordem, o caos é a melhor
alternativa. 147. Uma vez que se crê na “insuficiência” da linguagem, cai-se na
crença de uma divindade cuja comunicação transcende a linguagem.
138. Um poeta que não é crítico é um hipócrita ou um ressentido. Esta é uma das armadilhas dos inimigos do Dizer.

139. A vanguarda: “Make It New”, não “Make It News”. 148. Enquanto alguns de seus oficiantes (da infância africana ou
latino-americana até as nações ocupadas pelas potências militares)
140. O trabalho para a invenção e a perseverança do Dizer é sofrerem em seus corpos ou espírito de perseguição ou extermínio,
também uma atitude socioeconômica. A política é o braço mundano haverá interferências na plural clareza da linguagem universal.
da Poética.
149. O processo contrário ao aprofundamento do Dizer
141. A Poética deve sempre ser mundana. é denominado pela mídia e pela política de “globalização”
(monocultura mundial, monoaculturização).
142. A defesa do Dizer implica um combate que se identifica,

138
150. As palavras só são verdadeiras se são utopias que levam à Tudo o que eu disse, eu não digo, a não ser o que foi dito; o eu é
prática. apenas uma voz, na voz o eu se transfigura em outro. Quem fala não
é eu, mas outro
151. As utopias são mais úteis que as receitas.
160. Uma palavra não é uma parte da linguagem, mas uma
152. Não há sujeitos, mas processos. O Dizer é o registro dessas demonstração da linguagem.
mutações.
161. Os vocábulos são apenas a aparição sensível (evidente) das
153. Antes de possuir acepções, as palavras têm vibrações. palavras.
154. Produzir um novo estado corporal (do qual a mente faz parte) é 162. A maior parte da poesia está oculta e fora dos vocábulos.
a finalidade da arte vibratória da poesia.
163. A existência humana deve ser um trabalho consciente em busca
155. Transformar a mente sim, mas somente porque é uma etapa da linguagem.
necessária para transformar, em seguida, o corpo todo.
164. A força feminina é o princípio criador do universo. Sem um
156. O poeta é o indivíduo que sabe produzir e manejar as vibrações retorno e uma recriação das diversas filosofias do princípio feminino,
que mostram o fluxo universal, o caráter indivisível do universo e a não há futuro para a poesia. Nem para o mundo. O futuro é
interconexão de todos os seres. uterino.

157. É necessário destruir a macrotecnologia e esquivar-se da 165. Existe um modo de falar que transforma a mente de quem
ciência, pois ambas são responsáveis pelo assassinato da Terra e fala e de quem escuta. Existe um modo de falar que transforma os
pela mentira da divisão entre sujeito e objeto. É responsabilidade interlocutores em deuses, corujas, búfalos, serpentes, galhos. Existe
da poesia acabar com essa mentira e destruir a macrotecnologia e a um modo de escrever... existe um modo de ler...
ciência (que atentam contra a sacralidade de todos os seres).
166. Tudo o que é sobrenatural tem origem no corpo.
158. A consciência terrestre sobre o Grande Processo Cósmico em
breve será interrompida pelo cogumelo nuclear. O cogumelo nuclear 167. O estilo é para culturas cuja linguagem não tem poder por si
deve ser substituído pelo cogumelo alucinógeno. e para simulá-lo, essas culturas se auxiliam de efeitos e persuasões
sintáticas.
159. Isto não é um manifesto pessoal, mas uma antologia de
projetos que tenho detectado nas últimas fases do projeto do Dizer. 168. A novidade é a pré-história da consciência.
139
169. A poesia é inseparável de todos os atos – desde cagar até Por una poética antes del paleolítico
y después de la propaganda
celebrar.
1. La noción de “Literatura” ha caducado por completo. “Literatura” (letras, escritura) es un
campo tan reducido (pero en ese charquito se ha regodeado el Canon Occidental) que ha
170. O discurso da poesia refere-se a elementos circundantes à enajenado al lenguaje humano y a la creación, apartándonos de la mayoría de las formas
poesia, certo; mas ainda mais certo é que a poesia refere-se também primigenias del Decir: la oralidad, la pictografía, todas las gamas del lenguaje sin palabras y el
decir corporal (performance, danza, teatro esencial, ritual), etc.
ao que está “fora” dela. A poética não se “ocupa” da “poesia”.
2. La noción de “Literatura” debe ser abolida y en su lugar debe ser recobrado el concepto
Tampouco a poesia. de “Decir”. Estudiar y prolongar el devenir del Decir. (Dejemos el estudio y contagio de la
Literatura a las Universidades e Institutos de Cultura Paraestatal). Adentrar en todas las formas
del Decir, desde la poesía rupestre hasta la holografía; desde la etnopoética hasta la cibercultura.
171. Renunciar à poesia ou supô-la (lugar comum de nossa tradição)
é confundir o inexplicável com o impensável. 3. La poesía y todo el decir proviene (y se mantiene) dentro de la Naturaleza, no de la Cultura.
El lenguaje tiene origen animal y vegetal. La animalidad y la vegetalidad son la fuerza en el
interior del Decir. El origen del lenguaje está depositado en las palabras, pero también en la
172. Ao fato de que todas as inquietudes da existência foram carne del ciervo y en los hongos alucinógenos.
abordadas pela poesia, segue-se a hipótese de que a poesia é a única 4. El circuito del habla es uno de los muchos ciclos naturales.
atividade total, a única necessária, a única atividade a que devemos
5. El Decir ha sido verbocéntrico por demasiado tiempo. Probablemente el tercer milenio tenga
nos dedicar com toda paixão e inteligência de que somos capazes. A que evolucionar a formas del lenguaje alejadas de la palabra, anteriores a la palabra.
poesia é a única atividade suficiente.
6. La gravedad de la crisis del lenguaje exige que no sólo seamos profundos contemporáneos
de todas las épocas anteriores, sino también (quizá por primera vez en la historia humana)
173. Um poema deve ser o despertar da zona desconhecida do individuos muy posteriores a nuestra época (tan retrasada espiritualmente, tan retrógrada
axiológicamente). Retener la poesía pretérita y hacer ya (más que premonizar) la poética
cérebro. posterior a nuestro mundo.

7. Lo que no es visionario es suicida.


174. Poetizar não é a arte de juntar palavras, mas uma técnica para
interconectar os neurônios através dos sons. 8. La mitad de la labor poética que enfrentamos se debe hacer en el terreno de la especulación.
La especulación ilimitada hacia las (re)definiciones de la poesía es más importante, en este
momento, que escribir poemarios irreflexivos.
175. O que faz o poeta no mundo?: Faz o mundo. 9. Hacer poesía irracional desde las cuevas de la conciencia es pensar superior a toda la filosofía
griega clásica.

10. Cada autor, cada mujer y hombre, deben formular una poética personal. Una obra que no
esté sustentada en una o varias poéticas no es más que una emulsión de saliva.

11. Transtornémonos los unos a los otros.

12. Probablemente todavía debamos expurgar las arcas del pasado poético humano, pues todo
apunta al hecho de que perdimos el futuro del Decir hace muchos siglos. Quizá nos convenga
Nota: O tradutor agradece à leitura e sugestões de Iván García Lopez, Juliana Amato e Juliana Marks.

140
mantener por un tiempo una poética del retroceso, una ret- 21. Basta una sola plática estúpida, un solo texto flojo para 31. El Gran Ritmo Universal está entero en todos sus fragmen-
ropoética que nos lleve de vuelta al porvenir, y diluya la actual matar de golpe la labor de nuestros ancestros. tos, un tamborileo sincero tanto como un poema profundo
crisis del lenguaje. reflejan (aunque sea dentro de unos pocos segundos) toda la
22. Deben irse destruyendo todas las convenciones. La gran sinfonía completa del Gran Ritmo Universal.
13. El lenguaje actual no es savia que brota, sino ácido que labor negativa (Tzara) es una empresa permanente, las nuevas
desfigura lo que envuelve. obras son siempre destructoras. Cuando se cree que destruir es 32. El crujir de la hojarasca o el sincronizado rompimiento de
una moda (una “vanguardia”), renovar se hace un “fenómeno los cascarones de los cocodrilos contiene en un segundo todo
14. La crisis del lenguaje es una de las fases de la clarificación pasajero” y se prepara la vuelta al estancamiento y al asesinato el lenguaje posible.
del lenguaje. La crisis del lenguaje precede al lenguaje. El
lenguaje todavía no ha sido creado; hasta ahora vivimos en el 23. Cuando se escuche que ya pasó el tiempo de los revolu- 33. El siseo del agua, los sonidos de las palabras son parte
proyecto de la invención del lenguaje, en los ensayos generales cionarios, se hace más necesaria la resistencia contra la muerte del Gran Ritmo Universal. Pero también, extrañamente, los
del génesis del lenguaje. Todas las obras poéticas hasta el pre- del lenguaje. machetazos en las aldeas asesinadas y el claxon paranoico de la
sente han sido únicamente pruebas hacia el Decir venidero. ciudad.
24. Si se escucha detenidamente la expresión “ya pasó el
15. Sólo la poesía de los pueblos forma parte de las audiciones tiempo de los rebeldes”, se notará que su sonido es idéntico 34. El Gran Ritmo Universal puede ser escuchado y transcrito
hacia la búsqueda de los primeros hablantes, escribientes y al del afilamiento metálico del cuchillo mayor del matarife en un baile, una plática, etcétera, tanto como en un poema
cantantes del lenguaje. Todo el resto de nuestras habladurías espeluznante.
y literaturas son meros carraspeos flemosos, toses, bostezos de 35. Las grandes obras son aquellas que capturan un pedazo de
los personajes exteriores a las audiciones hacia la búsqueda de 25. El propósito de la poética no es el embellecimiento verbal, ese Gran Ritmo Universal que no deja de sonar.
los primeros hablantes, escribientes y cantantes del lenguaje. el perfeccionamiento de los artificios literarios o la correcta
continuación de los estilos, sino la defensa de la naturaleza, 36. Una palabra es un acto energético drástico.
16. El modelo aconsejable para el tercer milenio, no es la “lit- la transfiguración de la realidad inmediata, la sobrevivencia
eratura” de las grandes civilizaciones (el acervo grecolatino y material y la evolución espiritual del mundo circundante. 37. Un poema escrito debe ser un objeto visual para meditar
luego el europeo, ni siquiera la literatura hindú o china), sino
el Decir de las pequeñas comunidades. En las tribus nómadas 26. La fuerza invencible contra las convenciones es el Juego. 38. En las manos están ocultos y por ellas pueden ser libera-
del mundo, en las tradiciones rescatadas y sobrevivientes indí- Cuando se advierta en el panorama poético que el Decir deja dos algunos de los secretos superiores del lenguaje.
genas están los eslabones perdidos del proyecto del Decir. de ser lúdico, ha dejado de ser desde hace mucho tiempo.
Todo lo que no es juego es “putrefacto” (García Lorca). 39. Para un escritor, las manos son más importantes que la
17. En la Gran Audición hay que escuchar todo el Decir de “conciencia”.
los Pueblos. 27. El latido humano es una de las modulaciones originarias
del gran ritmo universal, como los mantras. El latido animal 40. Yo no distingo mis manos de mis pensamientos.
18. Ya en el origen de la humanidad existía “el multicultur- es el mantra primordial.
alismo”. En el futuro, en las sociedades del tercer milenio 41. Unidad del medio externo (teclado, pluma), las manos,
no haremos sino recobrar las crisis y virtudes de nuestros 28. Las nociones “formalistas” de métrica, rima y tropo deben la voz y el pensar. Si no hay disolución de estas separaciones/
antepasados más remotos. ser definitivamente sustituidas por las de aliento, latido y nombres, no hay poesía.
percepción.
19. Deben ser traducidas todas las obras del pasado. Deben 42. Tomando en cuenta que no hay Ser, sino Otredad, lo otro,
ser reinterpretados todos los clásicos, deben ser restituidos los 29. Cada vez que fallen todas las técnicas para crear un poema la creación y la revelación de lo otro es el objetivo central del
nombres olvidados, deben ser reescritos todos los idiomas. La o descontaminar la “tradición” hay que pedir auxilio a la voz. Lenguaje.
mitad de la obra poética requerida para impedir la muerte del La voz es un tratamiento invaluable contra las enfermedades
lenguaje es de índole crítica. y crisis del lenguaje. La voz es bautizo y exorcismo de las pala- 43. Entre todos (Lautréamont) escribir el Sutra de la Otredad.
bras nuevas o endemoniadas.
20. Si una generación no rehace todo el pasado (retraducir, 44. Amor y Humor, Orgasmo y Sarcasmo, son los únicos dio-
reinterpretar, reescribir, etc.), vuelven las edades obscuras. 30. Todas las obras son fragmentos de una gran partitura ses en cuyos altares vale la pena ofrendar y darse en sacrificio.
Basta una generación pasiva para ensombrecer todos los siglos universal, de un proceso ritmado del cual todos los seres son
de praxis poética. momentos y entonaciones. La buena obra poética es aquella 45. El espíritu de la antipoesía no puede perderse. Si se pierde,
que se inserta, atrapa y anota una parte de esa partitura. regresan las edades obscuras.

141
46. La solemnidad es una de las señales del fin de la humanidad. 58. Convertir a todas las tradiciones, las “líneas” de las mu- no crea que al hacer poesía se convierte en un vidente, está
chas tradiciones del Decir, en una telaraña o en un tejido es el haciéndonos perder nuestro tiempo y pierde el suyo.
47. Corresponde a la poética inventar otra forma de amor objetivo de todo poeta. El poeta debe servir de trama de toda
que sustituya a este amor “romántico” que ha plagado nuestro la historia poética, de hilo que atraviesa todos los hilos. 69. La poesía es un medio para adentrar en el cuerpo y la
mundo y nuestros cuerpos. La Poética es Erótica. conciencia, la disolución de su dicotomía.
59. La poesía de una época tiene enemigos. Esos enemigos
48. El arte “intermedia” denota inmediatamente su analogía casi siempre son poetas del presente o el pasado inmediato. 70. La poesía es el fundamento y el fin de todas las dualidades.
con las formas “artísticas” primitivas. El “nuevo” arte que se
hace hoy en las pantallas de las computadoras se hizo también 60. La tradición es idéntica a su transformación; no hay 71. Aquellos que encuentran defectuoso al lenguaje para
en las paredes de las cuevas. No se debe negar ningún medio, rupturas en la tradición, no hay continuación de la tradición, decir las realidades ulteriores, viven bajo esta falacia: asumir
ni hay intromisión de la tecnología en las artes, porque las la transformación es permanente / impermanente. Los únicos que el lenguaje sólo transmite y hace bien su labor si es claro;
artes siempre han requerido nuevos medios. Sin lugar a dudas atributos seguros de la tradición son que es irreal y desconoci- olvidando que la contradicción y la paradoja no son señales de
las “nuevas” técnicas cada vez nos aproximan más a los medios da. La única tradición existente es la incesante transfiguración la insuficiencia del lenguaje, sino de la lógica.
y técnicas originales de la poesía. de las tradiciones.
72. La impotencia del lenguaje es un fenómeno social, no un
49. Alguna vez la escritura también fue un medio extraño para 61. El tercer milenio debe insertarse de lleno en la “dialécti- fenómeno mismo del lenguaje (que es pura naturaleza).
el decir profundo. ca alucinante” de la “tradición de lo desconocido” (Lezama
Lima). La única tradición “fija” y “universal” es la búsqueda, 73. Cuando el lenguaje expresa contradicciones y paradojas
50. Está bien creer que no hay nada nuevo bajo el sol… pero entramado y renovación de las tradiciones. habla en los códigos primigenios del Decir, quienes no los
sólo si se cree que el sol que nos alumbra en la mañana es otro entienden, han olvidado esos códigos.
en el alba. 62. Es necesaria una vuelta a la poesía narrativa: histórica y
de pequeña-épica. Contar es tan importante como cantar. La 74. Safo, “flor y canto” nahuatl, ceremonias tribales, etc.: los
51. El habla es el alba de la poesía. No dejes que caiga la no- historia es propiedad natural de la poesía. orígenes de la poesía también están en la danza. Poesía que no
che sin que hayas procurado alguna forma de que la poesía se incite movimiento corporal es inferior.
haga escuchar en lo obscuro. Vamos hacia lo obscuro. 63. Si lo lírico no es fisiológico no es auténtico, sino chatarra
sentimental. 75. La danza, la poesía y la memoria, todo nos fue enseñado
52. Una poesía que desuse (cancele) ese Yo lírico que todos por las criaturas no humanas. Los primeros chamanes del
practicamos. 64. Las funciones elementales del decir son sonar y sanar. lenguaje son los animales salvajes.
Cuando las palabras han dejado de sanar, cuando la poesía ha
53. Para hacer poesía, no se necesita un “Yo” sino un “Otro” perdido su función medicinal y ya no cura a quien la hace y a 76. La poesía es la prueba externa de la existencia de un mun-
quien la recibe, ya no es poesía, sino falsificación. do interior.
54. El proyecto total del Lenguaje involucra la reconstrucción
de la identidad individual. Ello implica la evolución hacia otra 65. La poesía como técnica para recobrar lo sagrado (Rothen- 77. El lenguaje es la aldaba en la puerta de lo real.
forma de identidad superior a la del Yo. berg); la poética es el rescate, formulación y renovación de las
técnicas para crear, convocar o manipular a lo sagrado. 78. La puerta de lo real se abre y nos muestra absolutamente
55. El Yo es un sílaba sucia que implica la negación de todo el la imaginación.
lenguaje. 66. Lo sagrado es el lenguaje mismo, el Decir mismo. La
poesía como técnica de lo sagrado es, finalmente, la colección 79. El gran ritmo universal, el gran ritmo universal, el gran
56. El Decir no pertenece ni es protagonizado por una sola de técnicas para manejar a la propia poesía. La poética es la ritmo universal.
“Gran Tradición”. Existe una pluralidad innumerable de tra- técnica de lo sagrado.
diciones. Entre ellas a veces hay intersecciones, unificaciones 80. La poesía nos emociona, no porque se “escucha bien”, sino
o desvanecimientos, pero casi todas, en realidad, son “líneas” 67. La poesía inventará al lenguaje; el lenguaje sustentará a la porque tenemos piel que se eriza.
paralelas que han corrido sin jamás tocarse. poesía.
81. La búsqueda de una poética hacia todas las poéticas de-
57. Hay que colocarse en la Contra-Tradición, en la Con- 68. El decir debe ser visionario. Poesía que no sea visionaria pende, en gran parte, del efectivo retorno al pensar metafísico.
Tradición, en la Contradicción. En la Contradicción de la ni siquiera vale la pena hablar de ella. Aquel individuo que
Contra-Tradición.

142
82. La poesía es la posesión de una parte de todos los poderes 91. En realidad, toda la realidad es imaginaria. Todo lo imagi- 106. La poesía humana es la prueba irrefutable de que la
que poseían los seres primordiales. nario es real. El ser humano se caracteriza por su uso espe- Presencia también habita este planeta.
cializado de la imaginación. La poética depende del cultivo y
83. Leo unos epigramas de la Antología Griega. Creo com- ensanchamiento de la imaginación. 107. Hacer poesía voluntaria y explícitamente es únicamente
prender la sencillez esencial de la poesía. Una hora después leo una de las muchas variadas formas de hacer poesía.
poemas de Artaud y creo comprender la complejidad esencial 92. El objetivo también es lograr que nos comuniquemos con
de la poesía. Esas dos conclusiones me parecen tan impecables los animales y conozcamos sus imaginaciones. 108. Escribir poesía voluntariamente, sano; hallar poesía invo-
como abiertamente opuestas, lo que me hace comprender luntaria en las pláticas, escrituras y cantos de otros: mejor.
absolutamente que la poesía sólo nos depara comprensiones 93. El poema debe ser manejado como un organismo, no
que son contradicciones. como una máquina. 109. Hay que registrar toda la poesía involuntaria que se hace
en el mundo.
84. El decir es Decir sólo en su contexto ceremonial. Lo 94. La redacción del más mundano poemínimo requiere
demás se llama literatura. investigaciones alocadas y exhaustivas sobre todos los temas 110. Todo es uno. Uno, muchos. Muchos, otros.
concebibles.
85. La poesía “moderna” fue una poesía acerca de la ciudad. 111. El lenguaje es omnipotente. No hay nada que no pueda
La irrupción de una poesía no de la ciudad, sino en la ciudad. 95. Lo inconcebible es la meta. Los lugares comunes que ser expresado por alguna de las formas del lenguaje. No hay
No sobre la ciudad, sino sobre la ciudad (=Poética Contextu- pudren nuestro pensar provienen de nuestra sabiduría. Es nada que no pueda ser dicho por el lenguaje. La tradición
al). En sus orígenes (Grecia, China, etc.) la poesía ocupaba los preferible erradicar nuestra sabiduría que predicar, más allá de religiosa y filosófica (del budismo tradicional al positivismo
espacios públicos de las ciudades (epigramas = inscripciones). una generación, el mismo conocimiento del mundo. lógico) que niega la capacidad del lenguaje para expresar las
Tan importante como el regreso a la oralidad, es la salida de la ‘realidades supremas’ son doctrinas continentes y decadentes.
poesía desde la página hacia los letreros callejeros, los muros, 96. Decir, pensar y actuar deben ser lo mismo.
el graffiti. En el graffiti de Tijuana hay más poesía viva que en 112. No hay nada más dañino que la mística (=doctrina de la
los libros de Harold Bloom. 97. La poesía precede al lenguaje. El lenguaje precede a las imposibilidad del lenguaje).
palabras.
86. No hay formas o espacios poéticos superiores a otros. Sólo 113. La sobrevivencia de la poesía en el tercer milenio depen-
que en cierta época, algunos son más necesarios. Ahora, por 98. Las palabras son, tan solo, la manifestación sensible de directamente de su efectiva hibridación con todas las artes,
ejemplo, vivimos en un tiempo en el cual será indispensable (visible-audible) del lenguaje. actividades y técnicas.
volver a los espacios allende la página. Pero en el fondo, todas
las épocas necesitan todas las formas poéticas. 99. Hago mías algunas creencias de otros, porque ni siquiera 114. Hay que procurar hacer menos cosas en la poesía, y hacer
considero como mías las revelaciones que yo aporto. más con la poesía.
87. En cualquier momento del proyecto del Decir en el que
se deje de practicar una sola de todas las infinitas formas del 100. En el interior de la mente individual están todos. 115. No hay que pasarse la vida perfeccionando la poesía,
Decir, significa que no se está practicando el Decir. sino usando la poesía para la continuación de la imperfecta
101. Conocer al mundo a través de la conciencia, sí; conocer existencia.
88. No poesía que nombre, poesía que actúe. al mundo a través del cuerpo, mejor.
116. Cada vez que uno escribe debe intensificar el tema trata-
89. La poesía es parte fundamental de wu-wei (la no-acción, 102. La “literatura” sólo se redime en su contexto y uso “extra- do. Lo superficial no es lenguaje, sino interferencia.
el acto espontáneo, el acto que es natural: resistir contra el literario”. Los poetas tiene que ser, por fuerza, extraliterarios.
asesinato es natural, no se debe confundir la no-acción con la 117. Los poetas protagonistas de una comunidad deben ser
inactividad). 103. Lo experimental se opone a lo preestablecido. La poesía los más jóvenes; cuando eso no ocurre, volverán pronto las
no debe cesar de ser experimental. edades obscuras.
90. Si no soy claro, si no soy consecuente, la poesía lo es, pues
la poesía es enjambre de contradicciones. La contradicción es 104. El mejor literato es el literato muerto. El mejor literato 118. Sería bueno reclutar ladrones de ataúdes y desenterrado-
la prueba del buen resultado de la exploración mental. Todo muerto, es el que fue prolífico y profundo. res profesionales, pues casi todas las palabras están muertas.
lo que no sea contradictorio es ficticio y contraproducente.
105. La poesía es el registro del devenir de la Presencia. 119. Darle respiración boca a boca a las palabras, es decir,
decir la poesía en voz alta.

143
120. El poeta, por supuesto, debe ser un ser extraordinario 133. La naturaleza es un libro. ciende al lenguaje. Esta es una de las trampas de los enemigos
por lo que piensa y hace. Sólo es un poeta extraordinario si lo del Decir.
que dice provoca que otros seres piensen, hagan y digan cosas 134. La unión de lo oculto y lo visible se produce en la voz.
extraordinarias. 148. Mientras algunos de sus oficiantes (desde la infancia
135. Sólo valen la pena las transformaciones radicales, las africana o latinoamericana, hasta las naciones ocupadas por las
121. Un poema debe contener sólo imágenes que afecten la renovaciones personales; la muerte de la poesía también se potencias militares) sufran en sus cuerpos o espíritus de perse-
mente. manifiesta en los retoques o el bluff publicitario de las falsas cución o exterminio, habrá interferencias en la plural claridad
vanguardias. del lenguaje universal.
122. Las virtudes de un gran poema siempre son otras que
aquellas derivadas de la novedad de sus imágenes. 136. Aunque el concepto de vanguardia no es muy afor- 149. El proceso contrario a la profundización del Decir es
tunado, el fenómeno de la revolución en el Decir debe ser denominado en los medios y la política “Globalización” (Mo-
123. La poesía debe dejar de ser sublimación para convertirse infatigable. nocultura mundial, mono-aculturización).
en vivencia.
137. Entre la fijeza y el desorden, el caos es la mejor alternativa. 150. Los Lemas son verdaderos sólo si son utopías que se
124. Casi todas las metáforas creadas y las imágenes “poéticas” llevan a la práctica.
son meras combinaciones hábiles o inusuales de vocablos. 138. Un poeta que no sea crítico es un hipócrita o un resentido.
Todo eso es basura si no está respaldada en una alteración 151. Las utopías son más útiles que las recetas.
análoga de la mente que escribe y lee. 139. La vanguardia: “Make It New”, no “Make It News”.
152. No hay entes, sino procesos. El Decir es el registro de
125. En una poética ideal, el “desdoblamiento” ocuparía un 140. La labor para la invención y perseverancia del Decir es esas mutaciones.
lugar central. también una empresa socioeconómica. La Política es el brazo
mundano de la Poética. 153. Antes que tener acepciones, las palabras tienen vibracio-
126. Todo lo que ha sido dicho, y es dicho, en muchos lugares nes.
y épocas, lo reformulo, pues he llegado a la convicción de 141. La Poética siempre debe ser mundana.
que nuevamente mi sociedad incita que estos principios sean 154. Producir un nuevo estado corporal (del cual la mente
abandonados o marginados, incluso por sus “poetas”. Por eso 142. La defensa del Decir implica un combate que se identifi- forma parte) es el fin del arte vibratorio de la poesía.
repito estas definiciones acerca de qué es la poesía. ca, históricamente, con la lucha internacional del anarquismo
en todas sus corrientes (la filosofía del individuo como Totali- 155. Transformar la mente sí, pero sólo porque es una etapa
127. La absoluta sinceridad de estas anotaciones no provie- dad), desde Yang Chu hasta Bakunin. necesaria para transformar luego, todo el cuerpo.
ne de lecturas o del dominio que puedo tener de ellas, sino
del hecho de que también para mí son revelaciones desde lo 143. La conversión de todos los individuos en poetas. 156. El poeta es el individuo que sabe producir y manejar las
insondable. vibraciones que muestran el flujo universal, el carácter indivi-
144. La poesía es un nombre hueco si no está respaldada por so del universo y la interconexión de todos los seres.
128. No existe lo indecible. actos amorosos o actos políticos.
157. Es necesario destruir la macrotecnología y evadir la
129. El poeta tiene la obligación de decir (mostrar) todo 145. El poeta logra su objetivo no si lo suceden hombres que ciencia. Ellas dos son responsables del asesinato de la Tierra
aquello que los místicos y filósofos han dicho que no puede lo leen, sino hombres que lo actúan. y de la ilusión de la división entre el sujeto y el objeto. Es
ser extraído del silencio. responsabilidad de la poesía destruir esa ilusión y destruir la
146. La poética precede a la religión. Si religión es re-vincu- macrotecnología y la ciencia (que atentan contra la sacralidad
130. El silencio es una de las argucias del lenguaje. lación (religare, Feurbach), la poética es la condición de dicho de todos los seres).
retorno dichoso a la comunión original. El lenguaje es la única
131. El lenguaje está en todas partes. vía hacia lo divino. Lo divino es la totalidad del Lenguaje, el 158. La conciencia terrestre sobre el Gran Proceso Cósmico
Decir completo. pronto será interrumpida por el hongo nuclear. El hongo
132. Cada vez que escucho la palabra “cultura”, pego un grito nuclear debe ser sustituido por el hongo alucinógeno.
que prueba que pertenezco a la esfera de los animales. 147. Una vez que se cree en la “insuficiencia” del lenguaje, se
cae en la creencia de una divinidad cuya comunicación tras- 159. Este no es un manifiesto personal, sino una recopilación
de proyectos que creo haber detectado en las últimas fases

144
del proyecto del Decir. Todo lo que he dicho, no lo digo yo, 172. Del hecho de que todas las inquietudes de la existencia
sino que es dicho; el yo es tan sólo una voz, en la voz el yo se hayan sido abordadas por la poesía, se desprende la conjetura
transfigura en lo otro. No lo he dicho yo sino otro. de que la poesía es la única actividad total, la única necesa-
ria, la única actividad a la que hay que dedicarnos con todo
160. Una palabra no es una parte del lenguaje, sino una de- el apasionamiento e inteligencia de que seamos capaces. La
mostración del lenguaje. poesía es la única actividad suficiente.

161. Los vocablos son solamente la aparición sensible (eviden- 173. Un poema debe ser el despertar de una zona desconocida
te) de las palabras. del cerebro.

162. La mayor parte de la poesía yace oculta y fuera de los 174. Poetizar no es el arte de juntar palabras, sino una técnica
vocablos. para interconectar las neuronas a través de los sonidos.

163. La existencia humana debe ser una empresa consciente 175. ¿Qué hace el poeta en el mundo?: Hace al mundo.
en busca del lenguaje.

164. La fuerza femenina es el principio creador del universo;


sin una vuelta y recreación de las diversas filosofías del princi- 2000
pio femenino no hay futuro para la poesía. Ni para el mundo.
El futuro es uterino.

165. Hay una manera de hablar que transforma la mente del


que habla y del que escucha. Hay una manera de hablar que
transforma a los interlocutores en dioses, búhos, búfalos, ser-
pientes, ramas. Hay una manera de escribir… hay una manera
de leer…

166. Todo lo sobrenatural tiene su origen en el cuerpo.

167. El estilo es para culturas cuyo lenguaje no tiene poder de


antemano y para simularlo se auxilian de efectos y persuasio-
nes sintácticas.

168. La novedad es la prehistoria de la conciencia.

169. La poesía es inseparable de todos los actos, desde cagar


hasta celebrar.

170. El discurso sobre la poesía se refiere a elementos circun-


dantes a la poesía, cierto; pero más cierto aún es que la poesía
se refiere también a lo que está “fuera” de ella. La poética no se
“ocupa” de la “poesía”. Tampoco la poesía.

171. Renunciar a la poesía o sobreentenderla (lugar común de


nuestra tradición) es confundir lo inexplicable con lo impen-
sable.

145
Leticia Costa
Da vigilância ao vacilo da vocação: a subjetividade em risco
ou a (in)certeza dos sentidos (vícios ocultos)

não há como me separar da triste cena imperativa de análise. Assim, os que se [...] nada é obra de arte em geral se não
mas meu sonho é te propor pequenos deciframentos de adentrarem nesse campo terão acesso a é, mediata ou imediatamente, reflexo do
uma infinito, assim também nada pode em
página – tarefa que cansa e recorda separações uma caudalosa fortuna de embates, a qual, particular ser poema ou poético se não expõe
inevitáveis aos pressupostos filosóficos e críticos do algo absoluto, ou seja, Absoluto mesmo em
(e vícios ocultos)
Ana Cristina Cesar Romantismo alemão, por direito, muito, referência a alguma particularidade6.
em sua origem, lhes é tributária. Ocorre
Em literatura, a própria “sinceridade” é, apenas, uma que, nesse período, o sujeito é imbuído de Trata-se de palavras poéticas que valham a
jogada de estilo.
Paulo Leminski uma condição hegemônica, de sorte que exposição do universo num particular, esse
seu individualismo egocêntrico faz frente o objetivo ideal a que devem se encontrar
aos ideais iluministas, numa expiração a reboque, sobremaneira, todas as Musas.
Como se configura a subjetividade na do pensamento da razão como o centro Partindo dessa investidura no Absoluto,
poesia lírica parece ser uma entre tantas de todas as coisas. Dessa maneira, a emerge-se a ideia de “gênio” tão cara, ainda
questões dos estudos literários que romântica “concepção do mundo”, sendo hoje, aos estudos sobre subjetividade lírica.
permanecem na ordem do dia e que têm, na “preponderantemente idealista e metafísica”
contemporaneidade, corrido à conta de uma e “percorrida por um afã de totalidade e de Considerada peça basilar do idealismo de
interrogação maior: o lugar que o sujeito unidade, próprio da sensibilidade conflitiva Schelling, de sua filosofia da Natureza7,
ocupa. Mesmo não sendo “componente que a impulsionou”5, faz eco, sobretudo, às a noção de gênio consegue reputar as
sistemático das teorias literárias”4, pois doutrinas de Rousseau, Fichte e Schelling, medidas de individualismo egocêntrico
“só aparece na crítica literária através de cujo elogio do Absoluto por eles defendido 6 Cf. Schelling (2001, p. 267; grifo do autor).
uma importação daqueles saberes que lhe confere às artes e, principalmente, à poesia 7 Schelling considera a natureza sob uma perspectiva or-
ganicista, que pressupõe uma ideia espiritualizada do mundo
são laterais”, o sujeito é constantemente lírica, sua carga mais intensa e expressiva. exterior à maneira idealista. Assim, “tudo deve ser explicado
suscitado à reflexão por quem está em Para Schelling a partir do Incondicionado, do Eu absoluto, tanto o reino
dos espíritos como também a natureza” (Bornheim, 2002, p.
contato direto com a lírica, seja na produção 100). Logo, o idealismo do espírito deveria desdobrar-se num
ou na recepção, tornando-se modalidade idealismo da natureza, sendo ambos caracterizados por uma
“dimensão teológica da aspiração do Absoluto” (Bornheim,
4 Cf. Krysinski (2007, p. 52). 5 Cf. Nunes (2002, p. 53). 2002, p. 100).

146
e orgânico requeridas, exacerbadamente, unidade. Por conseguinte, sem deixar de importância transcendente à especulação
pelo Romantismo, de forma a elevar em ser individual, o gênio universaliza-se, à do filósofo, à atividade política e à ciência,
primeiro plano a espontaneidade, fruto medida que volve, resumindo, o espírito de que ela possibilita, elucida e perpetua”12.
do talento8, em detrimento de quaisquer toda a humanidade, esta, ao mesmo tempo, Podendo ser muitas vezes considerada
técnicas e artifícios. Para os românticos, o cotejada em seu esboço e correção. Com superior, inclusive, à atividade científica, e
gênio deveria ser “o mediador entre o Eu e a efeito, “a excepcional relevância religiosa análoga à filosofia, como afirma Nunes, a
Natureza exterior”, uma vez que e ética, senão metafísica” – que a poesia poesia lírica, em sua ordem primeva, porque
adquire, a priori, em seu sentido abrangente fundadora da realidade, acaba, dessa forma,
A faculdade de representar artisticamente, de literatura e de arte, ou no de lírica lançando mão, a mais não poder, de uma
isto é, de apresentar ideias estéticas isolada, sobretudo na condição de “novo estrutura autônoma, capaz de penetrar “em
[...] converte-se [...] no poder intuitivo
cognoscente [...], ao mesmo tempo criador e reino dos fins espirituais”10– passa a ser todos os domínios da cultura”, porque se
expressivo, da imaginação poética, acima do viabilizada com maior frequência. enlaça “verticalmente, desde os primórdios,
conhecimento empírico – poder correlativo ao desenvolvimento sócio-histórico”13.
à capacidade expansiva e à força irradiante Difícil é deixar de superestimar a poesia Também na modernidade, o poeta apanha
do Eu, à originalidade e ao entusiasmo, e no – salvando importância e particularidade para a sua poesia a função de nomear a
qual se refletiriam a profundeza, a elevação,
espiritualidade e a liberdade da vida interior9 de cada gênero literário – no exercício origem, numa problemática que se recoloca
da representação da humanidade11, já primeiro em um Eu dimensionado ao
O gênio, como assinala Benedito Nunes, que através e por força de sua dicção Absoluto, depois, à celebração da poesia
torna-se largamente adensado quando lírica, ela, ainda que sem deixar à deriva a pura, que, nela, o terreno e o espiritual
transposto para o campo das artes, pois, impressão do tom pessoal, reivindica para são oferecidos a uma só unidade, cujos
nele, o Eu atinge a intuição de si próprio si a concreção do mundo, que, ao cabo contornos ultrapassam a precisão das
como Absoluto, no momento em que as de palavras a cujo sentido é destinado um medidas empíricas14. O excerto de alguns
dualidades: subjetivo e objetivo, real e alcance formativo e original, enreda-se, versos, transcritos a seguir, do poema 56,
ideal, consciente e inconsciente, liberdade por justa causa, a uma inveterada noção 12 Cf. Nunes (2002, p. 62).
e necessidade, finito e infinito, beleza e coletiva, que se dá tão “à altura do trabalho 13 Idem, ibidem.
14 Sobre a potencialidade criadora da poesia, guardada de
verdade, são superadas em proveito da do legislador e próximo do visionarismo seu poder de reinvenção da vida, encontra em Novalis toda
místico e profético, quando não de uma sua validade, quando afirma que “Quanto mais poético, mais
8 Talento que, graças a Kant, atribuiu ao gênio uma “excep- verdadeiro” (1992, p. 69), e quando diz que “Uma ideia
cional autonomia” (Nunes, 2002, p. 60), já que as obras de 10 Ibidem, p. 62. perde, extraordinariamente, quando lhe imprimo o carimbo
arte seriam, segundo esse filósofo, tanto mais belas quanto mais 11 Friedrich Schlegel, em sua “Conversa sobre a Poesia”, não da minha invenção pessoal e dela faço uma ideia patenteada”
aparentadas fossem à Natureza, quando de seu desprovimento por acaso, chega a afirmar que “[...] nenhum homem é apenas (Idem, ibidem; grifos do autor). Ora, o ato criador poético
de recurso engenhoso. um homem, pois pode e deve ser, ao mesmo tempo, verdadeira encontra, assim, sua mais ampla definição, ao revelar-se abso-
9 Idem, p. 61; grifo do autor. e efetivamente toda a humanidade” (1994, p. 30). luta, porque demiúrgica.

147
de Anunciação e Encontro de Mira-Celi da poesia/ quase nunca pode ascender da seu aspecto central: o de fundar a existência
(1950), de Jorge de Lima, exemplifica isso terra” – que a intencionada elevação do eu humana pelos trâmites de uma visão que
consideravelmente: ao destino, conquanto não inteiramente, seja profética, reveladora e, sobretudo,
mais espiritual. Chama os ouvidos do poeta desforrada da lógica ordinária17. Por essa
Os grandes poemas começam com a nossa o verso sagrado – adjetivo que a ânsia pelo causa, confirmam-se versos que veem na
/visão desdobrada. Absoluto se encarregará de confirmar no integração da subjetividade à religiosidade
Aqui já não sofremos a contingência de
/escrevê-los, processo formal e universal da interiorização o seu principal mote, pois a poesia (a Musa,
e notamos que a mais alta significação da plena dos sujeitos, em que os “nossos corpos Mira-Celi) deveria estar para a criatura,
/poesia comunicantes transparecem a unidade assim como o Poeta para o Criador. Daí
quase nunca pode ascender da terra. inconsútil”. A expressão contida nesse decorre que o processo de criação do autor
Aqui todos os seres têm fisionomias fragmento do poema é, portanto, formador de Invenção de Orfeu compensa-se rica e
/familiares
e nossos corpos comunicantes transparecem de um centro comum a toda humanidade, especialmente pela “qualidade lírica da
/a unidade inconsútil. visto que concorrem, para uma mesma imaginação”18 que, estando confundida
Sentimos uma dilatação total que nos torna direção – ou seja, para a infinitude, aludida “mais ou menos com sensibilidade”, permite
/infinitos, pelo sentimento de dilatação – as “várias que se lhe atribua, em uma palavra, o que
abrigamos os galopes das várias vidas que vidas que cruzam os desertos do mundo”. É há de mais essencial às potencialidades da
/cruzam os desertos do mundo15
sintomático que esses versos façam parte do criação: a liberdade.
A princípio, a matéria lírica, como se nota, corpo maior que é Anunciação e Encontro de
oferece-se como corte significativo entre Mira-Celi.
duas possibilidades – a espiritual e a terrena Ver: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/
– equacionadas pelo olhar do poeta que, ao Logo, cabe aqui a breve, porém, apropriada, fq1803200610.htm
17 Segundo o crítico Fábio de Souza Andrade (1997, p. 75),
prescindir-se de uma fatura interseccionada, observação de que essa obra de Jorge de em Anunciação e Encontro de Mira-Celi, demarca-se uma
mostra-se consciente de que a força Lima, ao continuar atravessada pela ordem obsessão pela “fuga da representação mimética da realidade”.
É notório, pois, o quanto “a reflexão sobre a criação cristal-
expressiva de seu ofício deve estar em função programática da “restauração da poesia em iza-se na figura título, Mira-Celi, misto de musa mística e
de ambas. Que, pois, essa dualidade é o que, Cristo”, proposta já em Tempo e eternidade poética, cuja presença difusa e epifânica se funde não apenas
com visões da Virgem e da amada, mas representa também
necessariamente, dá mostras de boa poesia. (1935)16, segue, numa inscrição divina, o a transfiguração da visão ordinária do cosmos que o discurso
16 É a partir da obra Tempo e eternidade, em parceria com poético suscita. A consciência do poeta é o palco de uma
Porém, num segundo momento, o estímulo Murilo Mendes, que Jorge de Lima inicia-se na produção de misteriosa rebelião dos elementos que se condensa na imagem
poético deixa de ser menos a dialética dos uma poesia de inspiração católica, que combinou, por meio central e múltipla de Mira-Celi, cujo poder não é o de decifrar
de imagens ousadas, temas como o sentimento de queda, a e tornar claro seus significados complexos, mas de condensar
opostos – já que “a mais alta significação apreensão apocalíptica não apenas do tempo presente, mas esta complexidade numa super-imagem ‘laitmotívica’, como a
também da história, a uma construção notadamente mítica chama Jorge de Lima” (Idem, Ibidem; grifo do autor).
15 Cf. Lima (1997, p. 458). da figura do poeta. (Andrade, 2006). 18 Cf. Andrade (1997, p. 89).

148
Percebe-se, portanto, uma poesia lírica intermediaram e ainda intermedeiam impressões do Eu que nela se abririam
sequiosa de alcance e estima grandiosos, o resgate ou mesmo a atualização dessa profusas e distantes da realidade exterior,
com traços remanescentes do Romantismo, forma de conceber a poesia lírica. Essa quando das manifestações incontidas do
e que estando, por isso, à cata da forma e tantas outras formas são prontamente espírito do poeta, pouco custou para que
mais absoluta da subjetividade, refuta, sob a justificáveis pelo cenário múltiplo a que o o Romantismo passasse ao domínio de um
contundente divinização do ofício do poeta, período alude sob a insígnia de que a arte duplo postulado22 e, com isso, atribuísse
qualquer juízo apressado que assimile vida “não pode ser resumida numa só poética livre curso para a objetividade, antes, como
e arte. Como a individualidade empírica e em um único estilo”20. Se antes eram é sabido, morada apenas do épico. A função
perde a vez, o substrato lírico é indicado determinadas quais seriam as linhas de força mimética da linguagem é aceita por alguns,
pela experiência de solidão do poeta que, mestras21 que deveriam aplainar os projetos finalmente. Como exemplo disso, temos a
centrado em si mesmo, afasta-se do mundo poéticos, agora, os ânimos se voltam para incisiva afirmação goethiana que diz que “o
à sua volta, para que os critérios da criação, um contato ruidoso, porque trilhado por conteúdo poético é o conteúdo da própria
ao serem plenamente tomados pelo sentido uma enorme gama de dicção, qual seja, a de vida”23, que vai ao encontro de uma poesia
interno daquele que a realiza, imprimam um só poeta – de articulação desdobrável autêntica em sua expressão, em que pese
à poesia existência própria e sua requerida ou em fragmentos – como a de vários, o referencial da realidade. Para além da
autonomia. No lugar da representação, cujos ritmos, sendo difusos, obedecem tão subjetividade implícita na criação poética,
da mímese e condições afins, a acuidade somente a um único e rigoroso fator, que da dicotomia dos sujeitos, da sinceridade
introspectiva, é o da democratização da arte. Ocorre que esquecida, é o motivo vivido (as experiências
lançar uma definição precisa para o sujeito do poeta) que aponta para o caminho da
O estado de alma mais instantâneo, os na contemporaneidade torna-se, como se vê, verdade na arte que, Goethe, fartamente,
anelos do coração, os relâmpagos de alegria, tarefa tanto incauta, quanto arriscada, pois, demonstrou e documentou nas páginas
a tristeza e a melancolia, as lágrimas,
ele, o sujeito, guarda uma estampa precária autobiográficas de Poesia e verdade, redigidas
enfim toda a gama de sentidos nos seus
movimentos mais rápidos e acidentes e provisória, no momento da alteração de entre os anos de 1811 e 1830. Nelas, deseja-
mais variados, [é que] permanecem fixos sua forma poética, sua “metaformose”, para se que a escrita da existência privada seja o
eternizados mediante a expressão verbal19. pronunciar como Leminski. próprio estofo literário, o que as faz serem
validadas justo por meio daquilo que,
Não obstante se verifique a validade desse Com o reconhecimento da poesia lírica em princípio, a ela se oporia, a arte. Já na
projeto poético na cena contemporânea, é fixando-se à tessitura subjetiva das introdução, ocorre a Goethe24 dar aos seus
preciso lembrar que inúmeras e divergentes 22 Cf. Dominique Combe (1996), em seu artigo “La referencia
20 Cf. Berardinelli (2007, p. 178). desdoblada: el sujeto lírico entre la ficción y la autobiografía”.
o mais das vezes foram as discussões que 21 Cf. tendência apontada por Marcos Siscar (2005), em seu 23 Cf. Goethe (2000, p. 13).
19 Cf. Hegel (1993, p. 609). ensaio “A cisma da poesia brasileira”. 24 Idem, 1971.

149
escritos uma forma “semipoética” e “semi- De antinomias a consonantes, realidade e não apenas seriam mal quistas, como ao
histórica”, a fim de que tanto a pertinência ficção são impressas sob a mesma rubrica, poeta, em sua incumbência exemplar,
de seu ideal pudesse confirmar-se, como num acordo que faz da confissão objetiva restaria a responsabilidade plena por suas
para que ele, na condição de “artista, o reflexo da imagem do mundo no qual palavras e ações, alçando o estatuto de um
poeta, escritor”, fosse circunstancialmente o poeta, inevitavelmente, encontra-se “sujeito de direito”.
carregado. Quer dizer: se se tem o ganho na inserido. Goethe, como observador atento
aposta da realidade como recurso primeiro que era às efemérides, apreendia a vida com De modo oportuno, e por meio da
da obra literária, à sua biografia, o autor extrema finura lírica, mas, com um olhar lembrança de Combe, traremos à cena,
de Werther destina as funções de “descrever que, passo a passo, pudesse sintetizar sob o como caso exemplar, o equívoco da
e mostrar o homem em suas relações signo da dúvida o que seria história e poesia, condenação sofrida por Baudelaire,
com a época, até que ponto o conjunto o reflexo e reflexão. Mobilizado por escolhas quando este teve sua biografia enrijecida
contraria ou favorece, que ideias êle forma que arrematassem à altura o seu objetivo porque engendrada na composição
em resultado disso a respeito do mundo de meios caminhos, o poeta de Weimar perceptivelmente crítica e corrosiva de As
e da humanidade, e [...] de que modo as ocupa-se, entre outras coisas, em elevar sua flores do Mal (1857). O que, por um lado,
reflete”25. E mais, admite que toda confissão impressão individual à esfera universal. Pois desembocou em clima hostil e problemas
autobiográfica que todo sentimento do Eu deveria escapar judiciais, por outro, imprimiu marco e
à sua própria subjetividade. Nesse caso, a sentido novos para a poesia lírica, pois
[...] exige algo quase impossível, a saber: transcendência no campo da arte deveria trouxe, para as rodas de debate, a celeuma
que o homem conheça a si próprio e se dar em níveis de menor liberdade de que envolve a possível e necessária (ou não!)
ao seu século. Quanto a si próprio, até criação e maior conversão arquetípica, para correspondência do lírico com o empírico,
que ponto permaneceu o mesmo em que o conceito de literatura mundial – a da inspiração divinamente facilitada versus
tôdas as circunstâncias; e quanto ao weltliteratur – criado por Goethe, pudesse o árduo ofício da elaboração ficcional. Para
século, na medida em que nos arrasta instalar-se, representando a condição Baudelaire, a palavra poética deveria estar
consigo por bem ou por mal, nos molda humana. Assim, grassaria pelo processo de afeita não à espontaneidade – prerrogativa
e determina, de sorte que todo homem, escrita literária a exigência da construção romântica de força maior – mas, à reflexão,
pode-se dizer, se houvesse nascido dez
do “sujeito ético” que “remete não só à que pudesse abrir caminho para se pensar
anos mais cedo ou mais tarde, seria
psicologia, mas também e, sobretudo, à a condição humana menos sob os soluços
bem diverso do que é no tocante à sua
moral, ao vincar uma atitude voluntária afetivos de um sujeito a portas cerradas, que
própria cultura e à ação que exerce
e responsável do escritor diante da
sôbre o mundo exterior26. p. 129): “[...] remite no sólo a la psicología sino también y
25 Ibidem, p. 5. linguagem”27, de forma que as falsas verdades sobre todo a la moral, al plantear una actitud voluntaria y
26 Ibidem. 27 Cf. tradução nossa para a seguinte fala de Combe (1996, responsable del escritor frente al lenguaje [...]”.

150
sob um sujeito que se oferecesse destinando que não apenas traduzissem “a angústia, a coração e suas comoções sentimentais,
seu olhar e expressão à “civilização impossibilidade de evasão, o ruir frente à mas da engenharia imagética e astuciosa
comercializada e dominada pela técnica”28, idealidade ardentemente querida”30, como, da criação, onde todas as coisas acabam se
a qual não apenas a integra, mas, lhe é, também, propusesse uma composição transformando em “luxo, forma e volúpia”32.
simultaneamente, crítico e apreciador de sua de imagens centradas na mais extrema Essa estética dissonante, ao mesmo tempo
beleza, ainda que camuflada. À sua poesia, angústia, no persistente apelo da realidade, aterradora e leve – vide aproximações
dá-se a conta efetiva de uma realidade das situações mórbidas e negativas, mas aparentemente incompatíveis, porém, de
subtraída do coração – propagada antes por reveladoras na sua maneira concreta de forma assídua flagradas, como flores e mal,
Edgar Allan Poe e repetida e levada à risca recombinar criação e fantasia tomadas do horror e sedutor, morto e alegre, satanismo
por Baudelaire – em que, não convindo a destino da verdade humana e não de apenas e idealidade etc –, fez de Baudelaire o
passionalidade pessoal, institui versos da um único sujeito. Este só seria relevante na criador da palavra modernidade. “Ele a
mais pura clarividência, lançados à luz do medida em que fizesse parte do todo que é emprega em 1859, desculpando-se por sua
intelecto. Conquanto em As Flores do Mal a humanidade. O Eu a que dá voz à obra As novidade, mas necessita dela para expressar
haja “o sofrimento de um homem solitário, flores do Mal é condicionado como imediata o particular do artista moderno”, que era
infeliz e doente”29, não se pode dizer que ressonância de todos que sofrem, pungem e sua exata “capacidade de ver no deserto da
se trata de uma obra romântica, em sua se queixam do e no mundo em que vivem. metrópole não só a decadência do homem,
acepção mais tradicional, uma vez que Nesse ponto reside o material poético com mas também de pressentir uma beleza
Baudelaire alargou o conceito ao propor o qual lida o poeta e que ao mesmo tempo misteriosa, não descoberta até então”33. Essa
a despersonalização da poesia. Ou seja: o que lhe perturba, lhe sugere, por exemplo, beleza de que se fala encontra tradução no
poeta francês desconsiderou que o sujeito a composição de uma musa em estado estilo da decadência ao qual Baudelaire
empírico e o sujeito lírico carecessem de doentio e em cuja face sintomaticamente destinava o maior dos apreços, sobretudo,
mesma identidade. Se antes deveriam, “[...] afloram lado a lado/ A loucura e a porque em sua poesia – composta por
ao mesmo eu, serem confinados, com aflição, frias e taciturnas.”31 “ideias novas com formas novas e palavras
Baudelaire, essa medida de balizas iguais se que ainda não se ouviram” podiam ser
tornaria anacrônica, quando não arbitrária e A poesia lírica para Baudelaire define- encontradas
infundada. se, portanto e essencialmente, nisto: na
reflexão acerca da realidade objetiva, na [...] as larvas das superstições, os fantasmas
Assim, o que começou dogmático com subjetividade diluída, na estética do feio apavorados da insônia, os terrores noturnos,
os remorsos que estremecem e se voltam ao
os românticos passou à caça de palavras e do mórbido. Tudo prescinde não do menor ruído, os sonhos monstruosos a que
28 Cf. Friedrich (1991, p. 35). 30 Ibidem, p. 38. 32 Cf. Valéry (1999, p. 29).
29 Idem, p. 36. 31 Cf. Baudelaire (2006, p. 135). 33 Cf. Friedrich (1991, p. 35).

151
só a impotência põe paradeiro, as fantasias demorado. Eliot, não sendo apenas poeta- sobre a matéria inalterada. A vigília que
obscuras de que se espantaria o dia, e tudo crítico, mas crítico-poeta, afirma, em seu sempre organiza o sonho, a instância inicial
aquilo que a alma, no fundo de sua mais ensaio “A tradição e o talento individual”,
profunda e derradeira caverna, encerra de
do acometimento poético. Instância que
tenebroso, de disforme e de vagamente
que todo artista deve promover a extinção pode insurgir-se como coadjuvante de peso
horrível34. de sua personalidade ao compor sua obra, o na formulação das elaboradas combinações,
que não significa – é preciso que se esclareça mas se não confere à estrutura poética lugar
Ancorada no novo, a poesia lírica – que a obra de arte, nesse caso, a poesia, elevado no estatuto da criação literária,
conheceria, dessa maneira, outras formas não possa resultar das experiências daquele é porque tanto pode ser forjada, obtida
de expressão, que, além de terem como que a produziu, mas que, se nelas decidir- integralmente por meio da inteligência
linha de frente o culto à despersonalização, se enviesar, não deixe de desenvolver outras
sensível, como pode, devido à ausência
à desrealização do real, na medida combinações, dando vazão à possibilidade
de complexidade e efeito intensos, ser
distintiva dos sujeitos, ainda, perpassariam outra que não a entregue ao alcance
recurso insuficiente à finalização da poesia.
multiplamente o desagradável, retratado imediato da biografia. Assim, “a mente do
poeta” até A razão lírica, ao fundo de todas as coisas,
com o assombro das deformações múltiplas, experiências e arroubos, eis o que deve vir
de sopro e percepção impuros. Tudo isso, à tona, para Eliot, e que até nos permite o
[...] pode, parcial ou exclusivamente, atuar
por sua vez, autorizou desdobramentos escrutínio de formações em ponte de vida
sobre a experiência do próprio homem,
fecundos, de poetas que, não apenas se mas, quanto mais perfeito for o artista, e obra, porque atende ao coro aclamado
juntaram a Baudelaire, como o continuaram mais inteiramente separado estará nele o da arte como demanda do real, mas que se
e, não poucas vezes, superaram-no35, homem que sofre e a mente que cria; e com
inclusive. Afirmação adequada frente à maior perfeição saberá a mente digerir e
não irrompe do aprofundamento da fusão
urgência da lírica explosiva e desconcertante transfigurar as paixões que lhe servem de dos elementos também nada para a poesia
de Rimbaud; ao elogio consabido de matéria-prima36. reputa, o que vai da indiferença por parte
Mallarmé à autonomia da estrutura; ao da crítica à resistência temporal, sobretudo.
“make it new” da poesia inventiva de Ezra Rapidamente, deve-se reconhecer que essa Assim, sob pena de dar cabo àquilo que
Pound; à lira dissoluta de Fernando Pessoa; defesa eliotiana da teoria impessoal da para a poesia é de extremo apreço: a
à transmutação do pessoal ao impessoal da poesia não tem como objeção a presença transfiguração da matéria-prima, fantasiosa
poética fragmentada de T.S. Eliot; isso para emocional e sentimental da figura do ou mimética, seja qual for, porém, em sua
ficarmos apenas com alguns casos. Sobre poeta, ou tampouco requer a bandeira da mais alta potencialidade. O processo de
este último vale aqui um comentário mais despersonalização, mas angaria para sua personalização, nesse sentido, segundo Eliot,
34 Cf. Gautier (2001, p. 43-44). relevância e funcionalidade a consciência não deve assumir condição de imagem
35 O verbo superar nesse contexto conota o sentido daquilo
que excede, passando ao largo, portanto, de qualquer valora- que cria; a precedência do novo composto insistente, já que
ção judicativa que se possa, de pronto, cogitar. 36 Cf. Eliot (1989, p. 43).

152
[...] o que o poeta tem não é uma os matizes, posições e oposições. Dessa ao cumprimento elaborado do novo
“personalidade” a ser expressa, mas um maneira, não é casual ou, tampouco, modo de olhar e de dizer as coisas. De
médium particular, que é apenas um
médium, e não uma personalidade, no qual
forçoso, o fato de mesmo as matriz imagética, essas papoulas tanto
impressões e experiências se associam em podem conduzir a leituras estritamente
peculiares e inesperados caminhos37. Papoulas de outubro alegóricas do poema, que celebra Sylvia
Para Helder e Suzette Macedo
em rasgo dramático, carreando a procura
Afora o exagero metafórico, com as Nesta manhã nem sol nem nuvens podem de si própria na direção da associação de
considerações de Eliot dispomos de motivos controlar estas saias. cada uma das cenas, de corte e impressão
para discutir uma das questões que, com Nem a mulher na ambulância cinematográficos, enfatizados, no poema,
enorme assiduidade, a produção poética Cujo coração vermelho viceja com pincel espesso de tinta, quanto podem
assustadoramente pelo casaco – sinalizar para o fluxo cartorial de sua rotina
contemporânea vem suscitando, que é,
novamente, a tomada da medida interna Um presente, presente de amor diária, cuja marcha, seguindo o toque
como sinônimo de verdade da arte. Agora, Espontaneamente oferecido apaixonado, entre “pálido e ardente”, das
porém, acrescenta-se: sendo advertida por Por um céu batidas de seu coração, entrega Plath, em
detrás de lentes de aumento, de modo sua essência mais pura e extravagante (com
Pálido e ardente doses de um pequeno e delicado erotismo
a advogar, de tão alargado que o ritmo
Inflamando seus monóxidos de carbono,
subjetivo está, uma concepção de mundo por olhos em função da imagem de liberdade que
aberta à possibilidade vária, múltipla e, Opacos, parados sob chapéus-cocos. “as saias” exaltam). Vertente que, somada
mesmo, extrema. Sucede que o elevado, à nota da morte suicidada, contribuiu e
o grandioso, ou, “a marca de qualquer Oh, meu Deus, que sou eu muito contribui ainda para a disseminação
Que estas bocas temporãs devam gritar da propaganda mítica em torno de seu
critério semiético de ‘sublimidade’”38,
Em floresta de geada, em aurora de
passam a ser estancados sob a mesma centáureas-azuis!39 nome. É irrevogável que é justamente
ordenação valorativa do impuro, do feio, nesse vínculo não rompido com a vida
do estilhaço, do mau gosto; o que redefine de uma Sylvia Plath – de cujo que a poeta consegue individuar sua
a forma poética, ultrapassando o obstáculo confessionalismo emana sua impetuosa, obra, agregando não pouca pessoalidade.
estético ao revés normativo pelo uso das quase austera, subjetividade –, não se Esta é encarnada na dissidência ou até
imponentes recursividades expressivas. furtarem aos procedimentos formais, convergência dos vários sujeitos que
De suas frases, palavras, imagens, a poesia que, sendo concessivos, expandem a compõem um único, Sylvia, fixando-se
resiste, cadenciando e presidindo a todos ideia do poético como retrato biográfico mesmo na arritmia de sua respiração a
37 Idem, p. 45; grifo do autor. cada crise ou tormenta emocionais. Fato
38 Ibidem, p. 44; grifo do autor. 39 Cf. Plath (2007, p. 101).

153
é que sua poesia acaba funcionando como viçoso e palpitante, deve também se lançar Há a superação do impasse do testemunho
desafio à e da intimidade, quando nela se ao achado crítico da razão, acordando, por direto, sendo recolocado de forma aguda,
percebe uma linguagem particular, cujo isso, a experiência-limite em sua mais alta mas, hesitante, pois que também há a fusão
acúmulo de fortuna expressiva segue rumo voltagem. Imprópria torna-se, nesse sentido, de todas as coisas, “em que fica difícil saber
a uma escrita que guarda proximidade a descoberta isolada de onde vem certa dose se Sylvia Plath está falando de si mesma ou
empírica, revolve os sentidos e faz brotar de criação, se da forma bem tramada de de outra pessoa: seu sujeito se funde e se
circunstâncias menos ou jamais esperadas. motivos existenciais – a busca metafísica finge nas imagens e observações do mundo
Melhor dizendo: o cotidiano impõe-se sob do sujeito, o tom de despedida definitiva, exterior”43. Por essa razão, credita-se aos
inimaginável articulação, embevece-se de a angústia transmitida por olhos opacos estratagemas da linguagem – sobre os quais
cores e, finalmente, se arma do desejo de – com o peso biográfico que o nome de voltaremos a falar – toda a profusão poética,
dizer o ver, de “fazer com que o leitor escute Sylvia Plath, triste e tragicamente, implica, de modo a fazer do sujeito uma figura
o que ela [a poeta] vê”40. Se são murmúrios ou se da estética envenenada instigada móvel: que vai do intimismo regozijado
indistintos o que as bocas gritam, ao certo, pela papoula que flameja, pela presença de ironia à dublagem de uma existência
não colocam em voga a responsabilidade e sufocante dos monóxidos de carbono, pelo perturbada, afiançada pelo vazio. O jogo
qualidade poéticas de Plath. branco frio da geada, pelo jubiloso presente é disperso: com a poesia a subjetividade se
de amor, espontaneamente oferecido pelo amalgama, como se desloca e se reorienta,
Tomadas como forma simbólica de céu e profundamente inscrito no desenho permitindo a cifra da indissociável
“reactualização do Inferno”41 as papoulas utópico e sonoro de uma lira que se totalidade no curso da escrita. Para o leitor
servem não apenas como metáfora da pretenda fundadora de outro mundo que de Sylvia Plath, a palavra deve suscitar uma
viagem interior, de aspecto fatal, que não o habitual. Mesmo que para isso lhe dimensão cênica, pois a linha de frente do
amortiza pouco a pouco a que o sujeito custe o flerte com elementos antilíricos. poema pertencerá à formação do “delírio
lírico vinca sua poesia, mas e, sobretudo, Estes em sua maioria é que acabam fazendo lapidado”44, onde a linguagem, graças ao
como indicativo de que a chama íntima da justiça à dinâmica da ambiciosa criação da absoluto domínio de consciência, viabiliza
palavra-imagem, coberta por um vermelho42 autora de Ariel. Em clave merecidamente variadas noções e usos do signo. Assertiva
40 Cf. Carvalho (2003, p. 126; grifo da autora). pictórica, os versos dedicam-se a descrever verificável na confissão preocupada da
41 Cf. Avelar (1997, p. 177).
42 De acordo com Chevalier e Gheerbrant (2003, p. 944- de modo enfático a divisa da subjetividade, própria poeta:
945), o vermelho quando imerso em uma tonalidade viçosa, instalando falas alucinadas a cenas plásticas
diurna, solar, concebe o incitamento das ações, pois ele, ao
lançar, “como um sol, seu brilho sobre todas as coisas, com arbitrárias, numa articulação estreita e
uma força imensa e irredutível”, representa, entre outras aleatória com seu conteúdo referencial e
coisas, “a imagem de ardor e de beleza, de força impulsiva e
generosa”, que, no poema de Plath, faz todo o sentido porque histórico. 43 Cf. Lopes (2005, p. 122).
se coincide com o desejo de mudança no qual o sujeito, logo no início, se mostra envolvido. 44 Idem, p. 117.

154
O que mais receio é, creio eu, a morte poética, quando de seu poder de síntese não captado”, quão é a “densidade de sua
da imaginação. Quando o céu lá fora é e modelagem, também nela se localiza o individuação”46.
apenas cor-de-rosa, e os telhados apenas
negros: essa inteligência fotográfica que
fracasso de seu ofício. Pois se o objetivo a
paradoxalmente diz a verdade, mas uma princípio é o de rumar para uma fundação O meio-termo que acomoda e condensa
verdade inútil, a respeito do mundo. O poética não circunstanciada, num segundo poesia e realidade, alternando a
espírito de síntese, a força “modeladora” que momento, nota-se que a ausência “dos função daquela com a função desta,
brota prolificamente e cria os seus próprios gestos de mãos e palavras dos outros seres celebra a medida exata do sujeito lírico
mundos com mais poder inventivo que
Deus, eis o que eu desejo. Se ficar sentada e
humanos” lhe causa um esvaziamento contemporâneo que se deixa glosar pelo
quieta, sem fazer nada, o mundo continuará de sentido, já que este se traduz, vale peso das efemérides, como pela acuidade
a pulsar como um tambor bambo, sem o dizer, nas relações intersubjetivas, ou seja, de seu despiste, sucumbindo-as ao sabor do
menor sentido. Há que caminhar, trabalhar, na possibilidade mínima de uma dupla impasse, da hesitação. A equação tem muito
criar sonhos para os perseguir [...]. Estou escuta de vozes, a do escritor, na imagem de resgate romântico, contudo, em estrutura
sempre à escuta de passos na escada, e fico
cheia de raiva quando não são para mim.
solitária do asceta colocado à margem, e a heterogênea, e, principalmente, de maneira
Porquê, porquê, por que é que não posso da sociedade, nas determinações plural e bastante singular, a impressão que se tem
ser asceta por algum tempo, em vez deste ruidosa que lhe são típicas. Logo, quanto é a de que a subjetividade é direcionada na
constante vacilar na fronteira entre o desejo mais se adicionar à poesia, aqui e ali, alguma poesia de hoje para as vias de mão-dupla,
da solidão absoluta, para ler e trabalhar, e – parcela de realismo, tanto melhor será a cujo acesso se dá justo por meio do risco
tanto, tanto – a sede dos gestos de mãos e
palavras dos outros seres humanos45.
permanência da novidade formal, uma adivinhado das alternativas que escusam
vez que não se deve hesitar em subsumi- os gestos opostos com fins de assumir
Essa fala mostra-se bastante reveladora la de maneira natural. Ocorre, pois, que o tênue limite, a posição simultânea.
no que respeita à eficiência superestimada seus leitores devem avistá-la com um Duas faces de uma mesma moeda, o
do culto à imaginação – posto que sem olhar espelhado, perscrutador da condição intermitente movimento pendular, o
isso tudo não passa de “verdade inútil” –, humana. Nesse sentido, o somatório da elogio da vacilação, esses alguns modos de
faculdade mais importante entre todas, invenção com a realidade é responsável por visualizar – sem o prejuízo da autonomia
cujo ideal consiste em que se identifique não apenas ilustrar de perto a lírica universal das escolhas individuais – o retrato da poesia
o processo de mobilização da palavra – “quando a referência ao social não deve contemporânea: face de claro enigma, frente
tão somente de acordo com o mundo levar para fora da obra de arte, mas sim levar de sua subjetividade. Se tal subjetividade
criado pela poeta. Entretanto, se é na mais fundo para dentro dela” – como por sobrevém a uma tensão irresolvida entre a
imaginação pura que reside sua maior força atuar no desenvolvimento de uma escritura voz física (concernente à realidade) e a voz
que consiga tornar manifesto algo “de fictícia (concernente à imaginação), pouco
45 Cf. Plath (1995, p. 254; grifo da autora). 46 Cf. Adorno (2003, p. 66-67).

155
custa entrevê-la sob o momento de crise, de o lugar que, a ela, a poesia, destina-se por dúvida quanto à equivalência identitária da
tão hesitante que é sua forma, e quão aberta direito, ocupando-o com sua maior força: a personagem e do Eu – que se desnuda no
está às circunstâncias de seu tempo. carga lírica, que, por isso mesmo, se abre a processo da escrita – com o nome impresso
“uma ou duas águas mais ambíguas”. Assim na capa do livro. Daí o contrato ter sua
“Entrar depressa no que se escreve/ e sair, defendida, a poesia baliza sua recepção, importância
expulso, sujo, sem lavar as mãos/ sem dada a princípios de uma lógica própria que
lustrar nada, úmido de alma/ de coração sedimenta e substancia o sujeito, em meio [...] comprovada pela própria atitude
escuro, contrariando/ o verso ilustre, a alterações enfáticas da sintaxe ordinária, do leitor que é determinada por ele: se a
identidade não for afirmada (caso da ficção),
mas capaz de iluminar/ o poema com a que, atendendo à agitação e oscilação do o leitor procurará estabelecer semelhanças,
claridade embaçada/ de uma ou duas águas mundo interior particular, aguarda “à espera apesar do que diz o autor; se for afirmada
mais ambíguas”, esse um dos caminhos, do leitor, do lince/ que vai destrinchar – ver (caso da autobiografia), a tendência
apontados por Armando Freitas Filho – / o cálculo, a variável”49. será tentar buscar as diferenças (erros,
no “fragmento 69” de Numeral, para deformações etc.)50.
que se afigure a subjetividade sob uma É nessa espera que a poesia deslinda, de
metodologia que consiga engendrar a início, a dificuldade de seu interlocutor – A princípio, como se sabe, a teoria de
duplicidade no poema, desgarrando deste uma vez cúmplice da informação estética Lejeune se empreenderia no funcionamento
“tentativas de explicação do ser e estar no subjetiva – em enfrentar, ou melhor, em apenas ao estudo do gênero autobiográfico,
mundo”47, nas quais “forma-se o indivíduo descobrir qual é a intenção que nela se cuja definição e complexidade saltavam
e forja-se o poeta, no mesmo movimento instala, se a de uma construção obstinada aos olhos e deixavam em suspenso toda
não pacificado”48 e urgente, que nos versos e mesmo afetada de biografismo, ou se de e qualquer asserção infalível; noutro
verifica-se. Aí se desenha, na contemplação uma construção postiça que refuta, mas momento, graças à revisão51 cuidadosa
cotidiana da existência e no personalíssimo que se mobiliza em acolher a expedição do e autocrítica do autor, ela se abre, ainda
olhar sobre ela, a defesa de uma poesia documento de identidade, ou coisa que o que em medida cautelosa, para os demais
que esteja imbuída de sua importância no valha. Para isso, é significativa a lembrança gêneros vizinhos, como a memória,
que se refere ao ajuste de contas filosófico, do que Philippe Lejeune, em seu ensaio 50 Cf. Lejeune (2008, p. 26).
51 O que resultou nos textos “O pacto autobiográfico (bis)”,
artístico e realista com o que se lhe opõe, “O pacto autobiográfico”, cuja publicação de 1986, e “O pacto autobiográfico, 25 anos depois”, em 2001.
mas também com o que se lhe identifica, consta de 1975, propusera: o contrato Trata-se de reformulação e releitura, respectivamente, das ideias
desenvolvidas em “O pacto autobiográfico”, de 1975. Além disso,
na disputa do sentido estrito e controverso, (“pacto”) de autenticidade assumido pelo acrescem-se dois estudos de 2002 acerca da poesia autobiográ-
autor mediante seu leitor, de tal forma que fica e do valor artístico conferido à ficção. No Brasil, todos esses
47 Cf. Camilo (2009, p. 10; grifo do autor). textos encontram-se reunidos e traduzidos pela Editora UFMG e
48 Cf. Andrade (2009) em: aquele não proporcione a este qualquer são parte integrante da obra O pacto autobiográfico: de Rousseau
http://www.1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2006200912.htm 49 Cf. Freitas Filho (2009, p. 104). à Internet (2008). Ver referência completa ao final deste trabalho.

156
a biografia, o autorretrato, o diário sobremodo, “Finge tão completamente/ a sua melhor e mais premente definição?
íntimo, o romance de ficção, o poema Que chega a fingir que é dor/ A dor que Considerar o espaço autobiográfico talvez
autobiográfico... Pois o próprio teórico deveras sente”, conforme nos avisa sempre a seja válido menos para o encontro do ponto
reconhece que, “num sentido mais amplo, “Autopsicografia”55 de Fernando Pessoa. preciso das análises que do diálogo que se
‘autobiografia’ pode designar também pode promover entre os vários contratos
qualquer texto em que o autor parece Somado a isso, também é facultado ao de leitura quando dos vários tipos de texto
expressar sua vida ou seus sentimentos, leitor o convite de ler as obras literárias não existentes. Ao que parece, “assim como os
quaisquer que sejam a forma do texto e o apenas como ficções atiradas à verdadeira signos, os contratos só têm sentido por seus
contrato proposto por ele”52. Logo, a opção imagem de toda a “natureza humana”, jogos de oposição”57.
de se haver também com a literatura, faz mas como “fantasmas reveladores de um
com que o pacto, de essencial, muitas vezes, indivíduo”, que se oferecem por meio da Essa é a linha que vai conferir à obra
se torne secundário, na medida em que forma indireta do pacto autobiográfico, e de Ana Cristina Cesar o conceito de
nela [na literatura] não existem elementos recebem o nome de “pacto fantasmático”56. hesitação, de tão diverso o contrato, poesia
fixos, mas arranjos e combinações (com Uma vez mais a pesquisa em face do e prosa, centro e margem, e, logo na
o pensamento em Eliot) diversos, que verdadeiro adquire lugar privilegiado no sequência, realidade e imaginação, literário
evoluem para um território de parâmetros campo das análises, não demorando muito e antiliterário, concentração e dispersão,
ambíguos. Por outro lado, se de acordo para que seja reforçada pelas regras impostas unidade e heterogeneidade, memória e
com Lejeune, todas as análises devem ser pelo próprio autor. Dizendo de outro esquecimento. De posse de uma penetrante
feitas a partir da recepção, é natural que modo, será ele que designará o “espaço e estimada oposição, a autora, em quem o
não se descarte por completo a importância autobiográfico”, de que fala Lejeune, em ruído especular se dá de modo interminável
do pacto, pois com ele se “supõe uma que deseja que o conjunto de suas obras seja – pois que ela, não resistindo ao contexto
intenção de comunicação, imediata ou lido. Se, com isso, o olhar do leitor será ou opressor dos anos de chumbo e, sobretudo,
diferida”53 sendo possível, independente não deslocado, isso já é uma outra história, às pressões de uma existência arrolada
da promessa que se tenha feito, o leitor pois a problemática tem maior alcance que “em urgência aflitiva”, opta por despedir-
apurar, “como um cão de caça”54, suas a advertência das falas conceitualmente se precocemente da vida58 – a ponto de
rupturas. Metodologia às avessas, que busca determinadas e direcionadas deixa entrever. cravar em suas “marcas indeléveis, rastros,
costurar pistas, combinar dados com fins Que pensar, então, se as obras em foco traços”59 algum sentido ou explicação para a
de pesquisa e captação do fingidor que, pertencem ao momento atual, época em que disseminação de seu drama poético. Este –
os gêneros encontram na forma dissoluta 57 Idem, p. 47.
52 Cf. Lejeune (2008, p. 53; grifos do autor). 58 Ana Cristina Cesar suicida-se em 29 de outubro de 1983,
53 Idem, p. 82. 55 Cf. Pessoa (2006, p. 27). aos 31 anos de idade.
54 Ibidem, p. 26. 56 Cf. Lejeune (2008, p. 43; grifos do autor). 59 Cf. Moriconi (1996, p. 23).

157
não é difícil perceber – não se restringiu ao destaque à parelha contrária, que, por sua aprofundada para quem com ela mantiver
território literário, uma vez que não apenas vez, corre o risco de se anular em virtude algum contato.
avançou, como se excedeu nas tensões das aspas colocadas no segundo termo,
inerentes à sua própria pessoa, de que são conquanto venha antecedido de reforço Dessa maneira, o sujeito do poema, nos
exemplos vários poemas, como o em seu valor semântico. Esse apelo visual limites que lhe assinala, na insuficiência de
gritado pelas palavras suscita aquilo que definição que, muito embora se configure
Do diário não diário “inconfissões” nos espera: a enformação de um sujeito amplamente (“conteúdo tudo”), não nos
que se capta atravessado por uma inflexão mostra em detalhe o que o particulariza, o
17. 10. 68
Forma sem norma generalizante, onde “tudo é e nada é”62, que, de fato, abrange, senão “a” ana, pelo
Defesa cotidiana pois nele [no sujeito] tudo cabe. Ao menos “uma” entre várias anas. Novamente
Conteúdo tudo invés da alternância, os versos deixam-se é sintomático o tamanho da letra, nesse
Abranges uma ana60 apreender pelo convívio dialético que não caso, a que o nome próprio é grafado: em
cede à pressão de um ou de outro lado e se minúscula. Oportuna escolha de quem
Logo pelo seu título, é possível identificar distende para as variantes de forma às quais se pretende como desígnio dúbio, o da
um franco contraste entre o que o diário, o poema, no essencial, se presta. Não há despersonalização, que torna comum o
em sua definição mais corriqueira, é – como negar: do diário a poeta encontra o sujeito, transformando-o em “um ser como
gênero autobiográfico que se mantém motivo da escrita cotidiana, ocupando-se, muitos outros de sua espécie”64, e o da
em função das confissões do cotidiano de inclusive, de sua defesa, e o anota datando subjetividade que divide a mesma sombra,
um sujeito, cuja interlocução encontra (17.10.68) – premissas que alicerçam o firmada pelo “pacto autobiográfico”, em
fim em si mesmo – e o que, nos lábios gênero – aqui, colhidas com segurança em que se sugere a fórmula: ana = Ana Cristina
de Ana Cristina, ele passa a representar, Lejeune e Blanchot – e que determinam o Cesar. Porém, essa segunda designação
ou, que, com sua pronúncia, a de rumo da leitura para a avaliação íntima da carrega uma peculiaridade que ao ser lida
“inconfissões”61, se faça em redefinição, escrita, que, nela, se dá a ler, com grande sem demora pode passar despercebida.
ora de modo aparente, ora não. De suma frequência, por meio de uma “série de O último verso rompe com a sequência
relevância, ainda com o pensamento no vestígios”63. Vestígios que honram a ideia de de frases nominais dos anteriores para
título, é a observação referente ao uso de indício, sinal, rastro, quando a totalidade introduzir a pessoa, entretanto, “o sujeito
maiúsculas com a finalidade de conferir do sentido ou razão de ser se encontra sob o não é o eu: o sujeito é o tu”, o que faz
60 Cf. Cesar (1999c, p. 36) domínio apenas daquele que se autorrelata, com que o diário se torne um “não
61 O título negativo (“Inconfissões”) “reúne um conjunto deixando em suspenso a informação mais diário personificado”65. É exatamente essa
de nove poemas [de Ana Cristina], escritos entre outubro
e dezembro de 1968, e que integrariam um futuro livro do 62 Cf. Camargo (2003, p. 114). 64 Cf. Camargo (2003, p 115).
mesmo nome” (Camargo, 2003, p. 113). 63 Cf. Lejeune (2008, p. 260; grifos do autor). 65 Idem, ibidem.

158
combinação dos índices de pessoa, expressa Tal referência ao diário é significativa Soneto
na e pela linguagem, que se insurge a também no ponto em que ele, mesmo
Pergunto aqui se sou louca
subjetividade, uma vez que o sujeito – para sendo propagador da forma livre, que vai Quem quem saberá dizer
pensarmos como Émile Benveniste (2005) de uma simples “asserção” à “narrativa”, ao Pergunto mais, se sou sã
o fez em sua semântica enunciativa – só “lirismo”, bem como de “todos os níveis E ainda mais, se sou eu
terá consciência de si mesmo por meio do de linguagem e de estilo”, põe-se a serviço
que lhe é contrário, de outrem, de modo de “dois traços formais invariáveis”, que Que uso o viés pra amar
E finjo fingir que finjo
a fazer com que o “eu me torne tu na são “a fragmentação e a repetição”67. Esses Adorar o fingimento
alocução daquele que por sua vez se designa são outros aspectos que fazem guarda da Fingindo que sou fingida
por eu” (Benveniste, 2005, p. 286; grifos poesia de Ana Cristina e que distribuem
do autor). Na troca revezada de funções os diversos níveis de significado que o seu Pergunto aqui meus senhores
entre os locutores, de que se serve o poema, lirismo, a cada olhar aplicado aos versos Quem é loura donzela
Que se chama Ana Cristina
reside o fundamento linguístico de toda ontológicos, fazem supor. Pense-se a usura
procura subjetiva, o que nos mostra que tão de seu nome próprio, como do material E que se diz ser alguém
somente “única é a condição do homem na íntimo, que, de tão recorrentes, aportam É um fenômeno mor
linguagem”66. na convencionalização de sua poesia como Ou é um lapso sutil?
intento autobiográfico. Mas, pense-se
inconfissões – 21.10.6869
O sujeito se inscreve pondo termo à também este intento a reboque da vontade
pesquisa de sua existência, que começa na e do controle de uma poeta que livra sua
que, em sua fixidez – aqui devidamente
indefinição de estilo literário e encontra escrita de um juízo parcial e único, para
obedecida pela escrita de quatorze versos
no extrínseco à forma a sua melhor e mais dizê-la no extremo oposto, buscando a
dispostos em dois quartetos e dois tercetos70
infinita expressão, em favor da percepção soltura que lhe é de destino, quando em
– parece sugerir de imediato uma atitude
de si mesmo. À estrutura indisciplinada, notações dissimuladas, de sustentação,
para lá de controversa por parte de Ana
a subjetividade, portanto, se inclina, no mínimo, ambivalente. Escrita que
Cristina Cesar, se caso já não tivéssemos
problematizando-se no direito conquistado se compensa “como experiência de
tomado nota de sua postura literária, que
da forma – sua dispersão –, cuja força deslocamento, traslado, deriva” (Süssekind,
pervaga uma enorme gama de estilo com o
poética passa a ser diretamente proporcional 1995, p. 57), indo da “forma sem norma”,
objetivo de que o exame da subjetividade
aos custos da hesitação de quem, a toda (sub)vertida em poema-minuto, pelo seu
esteja à ela inextricavelmente ligado.
sorte, opera-a, de sua certeza em obsediar a “impulso de coloquialização”68, ao
69 Cf. Cesar (1999c, p. 38).
mais latente, porém, furtiva, das definições. 67 Cf. Lejeune (2008, p. 261). 70 Repare-se que os versos são redondilhas maiores, o que
66 Cf. Benveniste (2005, p. 287). 68 Cf. Süssekind (1995, p. 17). reafirma a preocupação com a forma.

159
Importa perceber nesse processo que daí que, em muitas atividades humanas, como fundamentais, restaram duas, a
a poesia, ao final, sente-se igualmente especialmente a da criação literária, o descontinuidade e a alusão, que parecem
atraída por diferentes opções e dilemas, diário se afeiçoe mesmo a “um método de resistir, em certa medida, a uma relação mais
promovendo com isso, para nos referirmos trabalho”72. É essa mobilidade de função direta com o poema. Pensemos a respeito.
mais uma vez à teoria lejeuniana, uma estilística e de identidade que Ana Cristina Sobre a descontinuidade, ela não se valida
espécie de laboratório não apenas da toma para si como paradigmática, a fim de no ponto em que o sujeito permanece numa
introspecção, como da criação, na sua mais seguir adorando o fingimento, bem como investigação integral de si mesmo, de outra
variada natureza. Assim, não é gratuito o para fingir ser fingida – se como “fenômeno sorte, restitui seu valor quando pensada
fato de esse poema se aproximar em alguma mor” ou como “lapso sutil”, tanto faz; ao por sob a oscilação da subjetividade, então,
medida do gênero diário. leitor, talvez, caiba definir a intensidade. em jogo no “Soneto”. Outro foco, outro
enfoque: a ideia da descontinuidade se faz
A escrita do soneto é análoga: do “Soneto” consegue, pois, representar profundamente fecunda na associação de
autorretrato do sujeito que tenta se grande parte do que Philippe Lejeune sua prática à função deliberativa do diário.
estabelecer em chave dialógica – versos que elege como características obrigatórias Ou seja: o que à primeira vista sugere
veem no outro, na condição de outrem ou ao diário que se pretenda “verdadeiro uma conciliação de contrários – afinal,
na condição de mero desdobramento do e autêntico”. É, pois, que ele deve ser: como resolver ou decidir por, no mínimo,
eu, ou nas duas condições em simultâneo, “lacunar” (no poema, o sujeito deixa-se entre isto ou aquilo, se nem mesmo há a
o mote para a construção da imagem por completar), “redundante e repetitivo” informação precisa de suas delimitações? –
subjetiva – passa-se à dinâmica dos testes e (o poema gira em torno de uma mesma num segundo momento, abre campo para
das reflexões acerca da validade das ideias problemática, a captura da identidade do o “debate”, para o “diálogo”, de maneira
que a autora pretende desenvolver ao longo sujeito) e “não narrativo” (não há no poema que essas discussões, não levando a tomada
de sua obra. Por isso, a alusão ao diário o desenvolvimento de uma narrativa com de decisão alguma, podem, de acordo com
remete aqui a um espaço de análise, cujas início, meio e fim, e os últimos versos não Lejeune, “estimular a hesitação”.
questões de foro íntimo, quando transcritas apenas não dão conta de estabelecer o No que respeita à alusão, sua lembrança
para o papel, darão ao sujeito a possibilidade sujeito em palavra definitiva, como ainda aqui se justifica não por sua faculdade
de uma autoavaliação distanciada, donde o lançam em perguntas direcionadas aos mnemônica – em fazer com que o diarista
o resultado último poderá se repetir ou se “senhores”, muito provavelmente uma se torne reconhecível, com o passar do
transformar, “fazendo surgir as contradições alcunha respeitosa que aos leitores lhes tempo, por meio de sua escrita registrada
e os erros, todos os vieses que possam é de destino). Das características que o e guardada –, mas pelo que ela “contém
abalar” quaisquer “certezas”71. Decorre autor de O pacto autobiográfico assinala em suspenso”, quer dizer, por “outra coisa
71 Cf. Lejeune (2008, p. 263). 72 Idem, p. 264; grifo do autor. além do que [está] escrito”, contudo,
160
“apenas para aquele que a escreveu, toda inteiro de nosso alcance, como resgata no Isso posto, pensemos em como o seu
uma ‘referência’ à qual ele próprio, aliás, “Soneto” sua qualidade literária. Ainda
só tem acesso através dela e que não que às avessas. Disso provém o hábito de Jornal íntimo
existe para nenhum outro leitor”73. Nesse os poemas, aqui, serem vistos com sua à Clara
sentido, traremos à baila os dois últimos denominação revezada noutros gêneros, o 30 de junho
versos do primeiro terceto: “Quem é loura que torna pertinente chamarmos de poeta Acho uma citação que me preocupa: “Não
donzela/ Que se chama Ana Cristina”. De a autora, e a autora de poeta, e a pouca, ou basta produzir contradições, é preciso
novo, a presença do nome da escritora na nenhuma delimitação (empírica ou lírica) explicá-las”. De leve recito o poema até
escritura, além da referência ao seu aspecto do sujeito, da subjetividade, quando se sabê-lo de cor. Célia aparece e me encara
com um muxoxo inexplicável.
físico, o de “loura donzela”, que tanto a está diante de uma estrutura entreligada, 29 de junho
particularizou em vida74, suscitam o travo afinal, tão complexa. Que resiste ao fecho Voltei a fazer anos. Leio para os convidados
da associação direta. No entanto, se, no definitivo. Que a própria materialização trechos do antigo diário. Trocam olhares.
poema, o sujeito, cuja identidade definitiva, da brochura segurada pelas mãos do leitor Que bela alegriazinha adolescente, exclama
como vimos, está ainda por fazer-se, ou, não o encaminha para saída alguma, a bem o diplomata. Me deitei no chão sem calças.
Ouvi a palavra dissipação nos gordos dentes
por definir-se, seria possível pensá-lo como dizer, mascarada pela conotação intervalar de Célia.
modelo artificioso, que “se diz ser alguém” da inscrição “poesia/ prosa”75, de cuja luz, 27 de junho
que, necessariamente, ele pode não ser, todas as edições mais cuidadas das obras de Célia sonhou que eu a espancava até quebrar
ou, de fato não é, graças ao fingimento – a Ana Cristina – graças, sobretudo, ao seu seus dentes. Passei a tarde toda obnublada.
consciência sã do ofício criativo – que a cada curador de muitos anos, Armando Freitas Datilografei até sentir câimbras. Seriam
culpas suaves. Binder diz que o diário é um
intervenção poética o situa em novos cursos Filho – tiram proveito. Armando as recheou artifício, que não sou sincera porque desejo
subjetivos. Logo, se Ana Cristina Cesar está com composições de fotos e manuscritos da secretamente que o leiam. Tomo banho de lua.
realmente (com a utilização intencional do poeta, o que acabou autorizando, voluntária 27 de junho
advérbio) contida em Ana Cristina, isso é ou involuntariamente, os leitores de Ana Nossa primeira relação sexual. Estávamos
algo que não apenas foge (quase que) por C. a se sentirem mais próximos dela, numa sóbrios. O obscurecimento me perseguiu
outra vez. Não consegui fazer as reclamações
73 Ibidem, p. 285; grifos do autor. relação de intimidade que beira a familiar, devidas. Me sinto em Marienbad junto
74 Se recorrermos à biografia de Ana Cristina Cesar, logo,
saberemos que o termo “loura donzela” fora pronunciado com com direito à alternância, entre afetuosa e dele. Perdi meu pente. Recitei a propósito
uma fina, porém, cortante ironia. Isso porque uma das coisas conflitante, que lhe é tão típica76. fantasias capilares, descabelos, pelos subindo
que mais causava incômodo à poeta era o fato de muitos a
reconhecerem apenas por sua bela aparência. Não por acaso, 75 Como se vê, com esta inscrição, Ana Cristina mostrou-se
pelo pescoço. Quando Binder perguntou do
em conversa com o escritor e cronista José Castello (1999, p. coerente com a proposta de seu “espaço autobiográfico” (Leje- testemunham o processo criativo de Ana Cristina, além, claro,
201), Ana Cristina, em tom de desabafo, chega a afirmar que une, 2008): o da hibridização dos gêneros literários. da cor e do formato do livro, que lembram a “pasta rosa”,
a beleza a “afasta do mundo” e mais: “Todos re referem a ela, 76 Também em Antigos e soltos (2008), a reprodução dos onde ela guardava seus poemas, nos fazem sentir intimamente
mas ela não sou eu”. manuscritos, as várias versões de um mesmo poema, que próximos da poeta.

161
banheiro o que eu dizia respondi “Nada” segue o movimento de tensão que há (journal intime), não por acaso, significa
funebremente. nos dois poemas anteriores ao enlaçar o diário78 – em seu valor menos esperado, o
26 de junho
Célia também deu de criticar meu estilo
sujeito ao ritmo da inquietação ruminante da insinceridade. Isso porque “ninguém
nas reuniões. Ambíguo e sobrecarregado. de sua escrita interior, persistindo de deve ser mais sincero do que o autor de
Os excessos seriam gratuitos. Binder prefere modo obsessivo e apurado, por entre a um diário”, uma vez que a “sinceridade é
a hipótese da sedução. Os dois discutem abdicação da lógica do tempo. A base na a transparência que lhe permite não lançar
como gatos enquanto rumbas me sacolejam. qual a figuração subjetiva se entronca não sombras sobre a existência confinada de
25 de junho
Quando acabei O Jardim de Caminhos
chega, portanto, a ser nova: na agônica cada dia, à qual ele limita o cuidado da
que se Bifurcam uma urticária me atacou o combinação dos paradoxos é onde se situa escrita”79.
corpo. Comemos pato no almoço. Binder toda a demora das experiências, do quadro
me afaga sempre no lugar errado. amoroso e da sensibilidade perspicaz. A No que concerne ao aspecto descontínuo, o
27 de junho linearidade descartada do calendário do poema divide-se entre o simples registro da
O prurido só passou com a datilografia.
Copiei trinta páginas de Escola de Mulheres
mês de junho, cujo ano, inclusive, não se vida social cotidiana do sujeito e a expressão
no original sem errar. Célia irrompeu pela tem conhecimento, equipara-se à desordem elaborada e meditada que dela resulta,
sala batendo com a língua nos dentes. Célia sentimental do sujeito, e faz com que fazendo supor uma sequência de tempo que
é uma obsessiva. a poesia disso dependa para se instalar. seja completamente dependente e obstinada
28 de junho Ocorre que o embaralhamento das datas, a da forma introspectiva que, de tão ostensiva,
Cantei e dancei na chuva. Tivemos uma
briga. Binder se recusava a alimentar
repetição por três vezes de uma delas (“27 de chega a confundir-se com os próprios fatos.
os corvos. Voltou a mexericar o diário. junho”), bem como o “começo” e o “final” A subjetividade, nesse caso, valerá o peso
Escreveu algumas palavras. Recurso mofado – se é que podemos falar nesses termos – de sua manifestação expandida na sensível
e bolorento! Me chama de vadia para baixo. do poema-diário, inscritos no mesmo dia, confusão de seu relato, na soma de todas as
Me levanto com dignidade, subo na pia, “30 de junho”, representam mais uma vez a palavras dissipadas, cujo processo e sentido
faço um escândalo, entupo o ralo com fatias
de goiabada.
defesa da descontinuidade (agora bem mais deixam outro tipo de saldo que não o da
30 de junho amplificada) e, ainda, da resistência e da disciplina. Assim, referências como “O
Célia desceu as escadas de quatro. Insisti no duração, respectivamente –, muito embora Jardim de Caminhos80 que se Bifurcam”,
despropósito do ato. Comemos outra vez as duas últimas não possam ser tomadas, de Jorge Luis Borges, e o filme de Alain
aquela ave no almoço. Fungo e suspiro antes assim, tão em separado. Além disso, todas
de deitar. Voltei ao77 78 Cf. observação bem lembrada de Lejeune, que aqui só
estão, na realidade, entrevistas sob o mesmo intensifica a aproximação do gênero diário com o gênero
compromisso, o de estimular a percepção poético.
79 Cf. Blanchot (2005, p. 270-271).
do jornal íntimo – expressão que em francês 80 Palavra traduzida em português também como “veredas”,
77 Cf. Cesar (1999a, o. 109-110). como é o caso da edição citada neste trabalho.

162
Resnais – O ano passado em Marienbad, todo o poema de Ana Cristina, mas que as alternativas – prática constante, como
ou, simplesmente Marienbad, conforme o se dita, com maior rigor, nas duas últimas se tem percebido, no estilo “ambíguo/ e
poema – concorrem para dar maior força e palavras do último verso: “Voltei ao”, e nos sobrecarregado [...]” de Ana Cristina Cesar.
relevo à descontinuidade. deixa à deriva do final; é como se tivéssemos
acesso apenas ao bilhete de ida. Quanto ao filme de Alain Resnais, a
Da primeira referência, apanha-se a referência coloca-se, ainda, e incisivamente,
resolução labiríntica de que se vale A referência ao conto de Borges ainda nos mesmos termos do movimento
Borges para compor seu conto. Nele, é significativa para o poema na medida labiríntico do poema e do conto, mas,
há o acionamento de uma narrativa não em que a “controvérsia filosófica”, de com alguns acréscimos, aderindo espaço e
linear que, em tempo, ação e intenção, se verve metafísica e mítica, “que usurpa tempo a condições particulares do campo
adequa ao projeto, um tanto ambicioso, da boa parte do romance” de Ts´ui Pen, amoroso. Não por acaso, O ano passado
personagem Ts´ui Pen, que é o de escrever aproxima “o problema abismal do tempo” em Marienbad, lançado em 1961, tem
um livro cuja estrutura atendesse aos à própria obra, que é, por definição, como roteirista o escritor Alain Robbe-
chamados de uma ordenação cronológica “uma imagem incompleta, mas não falsa Grillet (fundador e principal expoente da
completamente caótica. Nas palavras da do universo tal como”83 a personagem, geração do nouveau roman que tinha como
própria personagem, a expressão do seu enfim, concebia. Dessa relação contígua, objetivo romper com a forma tradicional
desejo se definiria na construção de um não resta dúvida de que o romance, em de narrar) e é considerado um dos clássicos
romance que fosse “uma enorme charada, questão, é mesmo “um acervo indeciso de que antecederam toda a ousadia formal
ou parábola, cujo tema é o tempo”81, e rascunhos contraditórios”84, que, enquanto do movimento artístico do cinema francês
que, por isso mesmo, passado, presente tal, dispensa o sujeito do impasse da conhecido por Nouvelle Vague. Essa
e futuro deveriam ser percebidos de decisão única para lhe proporcionar o escolha pelo trabalho conjunto com o
maneira indistinta. Assim, livro e labirinto aceite simultâneo (a bifurcação85) de todas romancista, por sua fidelidade ao métier
para Ts´ui Pen seriam o mesmo objeto, 83 Ibidem, p. 112-113. literário, diz respeito à garantia de frescor
84 Op. cit. p. 108.
de modo a qualificar a narrativa como 85 Interessante evidenciar que também no conto de Borges e dramaticidade – dotada do senso de
infinita, donde seu apelo circular proporia (2001) há a alusão a outras referências, como é o caso da espetáculo –, por meio dos quais, o cinema,
filosofia dos Mundos Possíveis, de Leibniz, de quem, segundo
que a “última página fosse idêntica à Deleuze (1991, p. 97), o escritor argentino torna-se “discípu- de acordo com Resnais, em entrevista
primeira, com possibilidade de continuar lo” quando decide, por meio da figura do “filósofo-arquiteto- a Bernard Pingaud86, pode “prestar-se à
chinês”, Ts´ui Pen, inventar um “jardim das veredas que se
indefinidamente”82. Como se pode constatar, bifurcam”: verdadeiro “labirinto barroco”, onde as “séries improvisação”, ainda que ilusória, uma vez
essa é uma ideia que reflui no decorrer de infinitas convergem e divergem”, sob uma mesma “trama de
tempo”. Assim, “bifurcação” e “incompossibilidade” são ter- inclusiva, em que mundos divergentes poderiam perfeita-
81 Cf. Borges (2001, p. 112). mos que Borges toma de empréstimo de Leibniz para pensar mente coexistir.
82 Idem, p. 110. as coisas tal como o filósofo o fez, isto é, sob uma perspectiva 86 Cf. Pingaud (1969, p. 167).

163
que ela é apenas um entre tantos frutos Marienbad se desenvolve. Tanto pertinente numa atmosfera de mistérios e encontros
que os efeitos de uma boa direção podem que as personagens, mesmo as centrais, desajustados, fará com que as explicações
proporcionar. Tão logo se verifica que a nem sequer nos dão a conhecer seus nomes mais elucidativas fiquem a encargo do
incursão de Resnais pela literatura inscreva – o que só corrobora com o delineamento público em seu estado mais crítico91.
Marienbad numa lógica própria, que de tão confuso de suas identidades – e são, a todo
interna, faz com que ela seja “a lógica dos instante, expostas a favor de um realismo Resnais provoca o espectador “através da
sentimentos”87, e venha seguida da renúncia psicológico, com o qual e pelo qual se fluidez fascinante do ritmo combinado
do clamor expressionista, então em voga. constrói o que, para Resnais, é o “espetáculo com a violência das intenções” (Samson,
Resnais consegue, pois, fundamental”: o retrato do “inconsciente”90. 1969, p. 170), que, em O ano passado
Isso porque, segundo o diretor francês, em Marienbad, assume contornos mais
[...] exprimir a fugacidade das imagens mesmo o realismo não deve afugentar-se expressivos a ponto de conferir seu próprio
mentais, a fixidez das imagens do sonho, das ambiguidades. Pelo contrário. Para desfecho uma noção não terminada,
a simplicidade da imaginação; sua
“encenação” esposa sutilmente a demarche o cineasta, a hesitação nesse caso deveria definitiva, mas, circular. Nesse caso, a fala
dos personagens em seus tateamentos, dar-se de forma tão necessária, quanto aleatória “Conhece o ditado: do princípio
hesitações, mentiras, na imprecisão de suas comum, já que a montagem de seus filmes, ao fim”, pronunciada mais de uma vez
recordações88. sobretudo o que aqui se está discutindo, no filme pela voz do narrador, está para o
lida com a transposição da realidade para verso de Ana Cristina: “Acho uma citação
É sob o signo da contradição, de par o imaginário, donde a primeira se torna que me preocupa: ‘Não basta produzir/
com a sucessão sobreposta de planos devidamente manipulável por meio dos contradições, é preciso explicá-las’”. Em
entrecruzados, de uma hesitação inarredável, recursos audiovisuais requeridos pela ambos os casos, o que há é uma fina ironia,
e do desencontro voluntário entre som segunda. Essa manipulação, contudo, deixa uma falsa esperança, falsa insinuação de que
e imagem, modalizada pela mescla de a entender que o sentido em sua totalidade em algum momento as coisas irão clarear-
vozes89 – estas, não raro, reticentes – que escapa ao simples desenrolar do entrecho – se, quando na verdade o que ocorre é o seu
87 Cf. Samson (1969, p. 175)
88 Idem, p. 179; grifo do autor. centrado no triângulo amoroso do Narrador, obscurecimento. Dito isso, torna-se possível
89 Também no poema, percebemos a presença de muitas vozes: da Mulher por quem o narrador se diz ter avistar que por detrás da discreta menção a
anônimas, identificadas (Célia, Binder) e ilustres (além de Borg-
es e Resnais, o Molière de Escola de Mulheres, Stanley Donen envolvido um ano atrás e que tenta, por Marienbad, feita por Ana C., em seu “Jornal
e Gene Kelly, de Cantando na chuva), que podem confundir-se essa razão, convencê-la a partir com ele, e íntimo”, subsiste a afirmação de que seus
com a própria voz do sujeito, na medida em que estão a seu
serviço, reiterando suas ideias. Além disso, vale lembrar que essas o Homem, com o qual ela se encontra no versos, tal como as cenas do filme, animam-
vozes da tradição cultural são mencionadas não nominalmente, presente – à medida que, estando imerso se de um delicado rigor que, somado ao
mas pelo título (original ou modificado) de sua obra, o que, por
essa razão, pressupõe, como de costume na poética de Ana Cris- 90 Cf. entrevista já mencionada que Resnais concedeu a Pin-
tina Cesar, a figura de um leitor iniciado e participativo. gaud (1969, p. 156). 91 Cf. Samson, 1969.

164
“lirismo crítico”92, a tudo testemunha, ao final, ou, ao seu abandono, eram todos atrelado apuramento à forma temporal
facultando ao leitor/ espectador o poder de reunidos por ela em um só lugar: numa subjetivamente construída pelo poema,
decifrá-los e até de imaginá-los como um pasta grande, de cor rosa e de lombada que as coteja, pois e principalmente como
entre vários possíveis finais. sanfonada, dividida em seções. Mas, sua “experiência psicológica” (ao modo da
sequência, como não poderia deixar de ser, filosofia bergsoniana). Feito isso, é natural
A linha da descontinuidade também põe revezava-se entre organizada e aleatória, que o acúmulo das experiências do sujeito
em causa o “suporte” – de que nos fala espelhando toda a lógica subjetiva e deixe de ser “medido” para ser “sentido”,
Lejeune – escolhido por Ana Cristina Cesar, passional (per)seguida pela poeta. que “de quantidade” ele “retorne ao estado
ao escrever o seu “Jornal íntimo”, que, se de qualidade” e que “a avaliação matemática
por sua natureza anticronológica, nos faz Todavia, se por um lado “a poética de Ana do tempo transcorrido deix[e] de ser feita”
pensá-lo subsumido a “folhas soltas”, por Cristina busca a apreensão impossível da para “cede[r] lugar a um instinto confuso”98
seu caráter circular e repetitivo (mais uma vida enquanto acontece, [...] aproximando e, ainda, dar trânsito livre à repetição de
vez destacamos a insistência do sujeito para ao máximo a experiência e sua expressão”95, um mesmo dia, bem como ao branco das
com a data “27 de junho”), já nos incita por outro, é preciso reconhecer que páginas dos dias que não resistem interna
a pensá-lo sob o corpo de um “caderno”, esse processo é “resultado de uma lenta e afetivamente. Assim, a fixação do sujeito
onde se consegue “cicatrizar, encadear e conquista”96; prova disso é que a autora de A pelo “27 de junho” pode ser entendida
fundir tudo”, fazendo dele uma “espécie teus pés – são ainda palavras da crítica – ao como uma realidade durável, que, votada
de seguro de vida”; que, como corolário, “brinca[r] diretamente com o que cham[ou] a um movimento de infindável criação
confere ao escritor as noções de “unidade” de ‘obscurantismo biografílico”97, enunciou- (ainda na esteira bergsoniana), permite que
e “duração”93. Dessa maneira, a forma mais se ancorada na figura do outro. Este, por seu esta mesma data, não apenas seja assistida
precária, o estilo e a intenção sempre a turno, exigido como compromisso prévio, em sua riqueza factual, como permite que
serviço do provisório, tanto deste poema, fosse na pele de um interlocutor específico, se imponha concessiva ao conhecimento
como de outros, tocam em cheio na fosse no seu suposto leitor, ou, mesmo, na intuitivo do eu, de forma imprevisível e
coerência dos “bastidores da criação escrita” sua pessoa desdobrada. livre.
de Ana Cristina, donde “hesitações, cortes,
repetições obsessivas”94, se, por certo, se Quanto às defesas da resistência e É esse conhecimento intuitivo – que
davam nas formas de bilhetes, guardanapos, da duração, sobre as quais já nos se quer desautomatizado e oposto ao
envelopes, meros rascunhos, papeizinhos..., referimos, resta-nos dizê-las também em conhecimento intelectual, para dizer como
Bergson – que delega tudo o que houve na
92 Termo tomado de empréstimo de Pirre Samson (1969, p. 169). 95 Idem, ibidem.
93 Cf. Lejeune (2008, p. 292-293). 96 Cf. Süssekind (1995, p. 35). realidade concreta do sujeito a uma outra
94 Cf. Bosi (2008, p. 11). 97 Idem, p. 41; grifo da autora. 98 Cf. Bergson (2006, p. 4).

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Plath, Sylvia. Poemas. Tradução e organização de Rodrigo Siscar, Marcos. A cisma da poesia brasileira. In: Sibila. São
Garcia Lopes, Maurício Arruda Mendonça. 2. ed. São Paulo: Paulo, n.8-9, p. 41-60. set. 2005.
Iluminuras, 2005. p. 117-126.

167
Rogerio Sganzerla
Jimi, gênio total exprimir, mas divindade do homem. Total
mente gênio total – pois ele próprio é uma
De 1965 a 1970, um gênio reinou sob divindade que se alimenta de sua própria
a Terra – Jimi Hendrix (27/11/1945- aura: um gênio encarnado suntuosamente
18/09/1970); mais uma vez a Terra não num negro-índio, gênio da América e
soube coroar seu rei. E se assim não o foi americano por dentro número um.
mais porque por dentro de altas estruturas Hendrix já é século 21 e 23 – além de 20.
astrais (isto é, físicas, e seguindo do Três séculos atravessam e informam com sua
princípio único a lei de encarnação) ele maneira típica de tocar coma mão esquerda,
como rei sabia que iria partir breve “He’s cordas (12 na stringuitar) na posição
not gone, is just dead”, prediz Hendrix em invertida, por exemplo.
1965, numa gravação com Curtis Knight de
uma canção intitulada justamente “Ballad Suas letras devem ser ouvidas como um
of Jimi”, onde fala, com diferença de um ideograma, com grande elegância e concisão
dia, a exata data – mês e ano – de passagem de forma – referindo-se ao essencial – se
deste para outro(s) mundo(s) onde segundo fala do poder (e formas subalternas de usar
ele estará nos esperando para a próxima o poder – dinheiro medo moeda repressão
revoada de trovões que transformará a face chicletes e metralhadora, por aí afora):
da Terra, mas até lá ele voltará (“I’ll return” “Sweet talks in vain”.
will return”. Rejeição deste mundo, mente e
– repete em “Highway Chile”, presciente de
sociedade do medo, não fazem senão recusar
sua vida transitória e abissalmente genial, Já a música é uma explosão de luz (e cor:
tudo que deve ser recusado – em nome do
em péssimo estado como Noel que por sua como a língua raiz sânscrito e o tupi – or
novo homem, nova sociedade e de tudo que
vez desabafa “...tenho passado tão mal/ not to be), onde o som representa um
é de Deus.
a minha cama é uma folha de jornal...”). valor tonal e é escrito sob uma pauta
Desvendo o véu de Ísis; tenho para mim
Gênios ceifados na flor da idade não fazem musical, novamente Hendrix reina sob
que antes de mais nada é necessário pensar
senão rejeitar “I don’t live today/ maybe nossa mente. Não divaga sobre anedota
em Hendrix como uma divindade. Não
tomorrow” “Até amanhã, se Deus quiser”, “I ou deslumbramento menor: ele diz o
uma “divindade do som” se assim posso

168
essencial isto é, o supérfluo: vinho, o uno, Jimi era um rei e ele sabia. O rei nasceu Desmobilizado vinte e seis saltos depois,
poder, tudo é possível. Fala sobre “quetzal”, em Seattle, filho de índia e negro. Gostava com fraturas na costela e tornozelo – rolou
o poder de transformar tudo e a mente de passar as férias em companhia da mãe dez anos pelas estradas no circuito de música
à medida positiva de desmedido negar. alcoólatra (perdeu-a aos dez anos) em negra americana, aprendendo ou ensinando
Sobretudo diz tudo sobre tudo com pouco tendas de antepassados “cherokees” na (tocou com Little Richard, B. B. King,
ou quase nada três homens – guitarra, reserva de Vancouver, Canadá. Segundo Sam Cooke, Salomon Burke e o grupo de
baixo, bateria – soam como multidão em o pai, um jardineiro austero “Jimi era um twist Joey Dee & The Starlinghts e o Isley
músicas escritas, cantadas e frequentemente verdadeiro sagitário, obcecado com a justiça, Brothers até chegar, só e desconhecido, em
mixadas por ele em seu estúdio Electric com a ideia de fazer as coisas certo. Uma Nova York em 1965.
Lady. Mal admitido, claro, pelos que tolhem personalidade muito forte, difícil de curvar
o pensamento com medo, quem necessita e individualista. Vivia interessado em coisas Mudou nome para Jimmy James com um
de tal artigo seu empresário fez questão não comuns nos garotos; uma delas era a grupo próprio o Blue-Flames” – fracasso
de “apagá-lo” e só relançá-lo em sucessivas música. Em sua casa não faltavam discos completo – teve que empenhar e vender
gravações dispersas, voluntariamente mal de Robert Johnson, Muddy Waters e B. B. guitarra para continuar num hotel miserável
escolhidas entre as duas mil horas gravadas King; todo domingo os amigos paternos no Greenwich Village. Aceitou gravar
em dezesseis canais... após o serviço religioso iam tocar blues e com Curtis Knight e salvou sua situação
beber cerveja”. Aos quatro anos irrompeu financeira. “Eu acho que nunca cheguei
Tocando “Red House” ou “Voodoo Chile” sala adentro soprando uma gaita “como a conhecer Jimi”, declara Curtis Knight.
simplesmente varre do planeta toda perda um maluco mas dentro do ritmo”, aos sete “Acho que nunca ninguém o conheceu.
de tempo levando-nos até altura inalcançada recebeu de uma tia um violino – “e eu Ele não se deu a conhecer a ninguém. Era
por qualquer outro ingênuo ou gênio cheguei a tocar mesmo, sempre curti os fechado, se guardava como quem guarda um
terrestre. Para todos e para ninguém: instrumentos de corda, foi aí que descobri segredo. Mas nós, nesses tempos em Nova
mente livre, homem, despertar relação com que era canhoto para tocar também. Eu só York, nós conversávamos muito. Jimi estava
divindade – eis o abc hendrixiano onde dedilhava a vassoura coma mão esquerda! – sempre intrigado, preocupado com coisas
como em qualquer revolução tudo começa e tocava-a com a mão esquerda”. como a origem da vida, o problema da
termina na mente livre sem esforço partido morte. Nunca curtiu uma de orgulho racial
medo ou classe. Ganhou um violão e depois uma guitarra ou preconceito. Estava mais preocupado
usada (“Ele ouvia um disco uma vez, e com a noção de humanidade e conceito
minutos depois, já tocava igualzinho”). de fraternidade. Lia muito, nunca soube
Alistou-se no Exército como paraquedista. o quê. Não conseguia acompanhar suas

169
conversas. Certa vez me disse acreditar que o futuro, sobre essa era em declínio. Mas sono – grandeza, consistência e humildade
os seres humanos devem passar por várias não quero acabar, quero continuar, vá para – saber-se bom é para o bom demais
encarnações em nove diferentes planetas onde for o futuro. (...) Talvez escrevendo um limite ou uma tentação – como ele
cada um mais evoluído que o outro até mais para os outros, fazendo arranjos. prematuramente falecido ou desfalecido.
chegar à eternidade, à perfeição (Nirvana Talvez com uma orquestra... não uma dúzia Não existe maldição mas há sortilégios sinas
em sânscrito significa extinção). Ele dizia de harpas e violinos mas uma banda de e sinais.
também que esse mundo em que vivemos é verdade para que eu possa reger músicos
apenas uma imagem distorcida de um outro competentes... e talvez algo visual, como Folha de S.Paulo, 11 de agosto de 1980.
mundo, espiritual e perfeito”. filme ou slides que alarguem aquilo que a
música quer dizer. Assim tudo poderia ser
Em 1969, apara o cabelo, reduz a novo, excitante. Acho que é isso que virá.
quantidade de anéis e colares. Com a Música é tão importante agora. Política já
palavra, o rei: “Isso já foi importante teve sua importância e é a música e as artes
para mim. Agora não é mais. (...) O que que vão mudar o mundo. Aprecio Strauss
é importante? Minha música e minha e Wagner – eles são muito bons. Acho que
mente é o que conta. Quanto a elas, me servirão de base dessa minha nova música.
sinto ilimitado. Tentei sempre fazer minha (...) Mas acima de tudo, quero blues e
música honestamente e se as pessoas não me um pouco de western, tudo misturado.
entendem é porque não ouviram direito. Até Estamos tentando fazer um terceiro mundo
“Electric Ladyland” eu queria basicamente acontecer mas ainda há tanta coisa para
pintar paisagens do céu e da terra com a aprender, tanta coisa nova para fazer. Como
guitarra para as pessoas se soltarem dentro o mundo, a música está ficando pesada
delas. Sofri muitas mudanças, descobri demais... quando, como o mundo, a música
muitas coisas que ainda não contei. Gostaria fica assim pesada eu simplesmente quero me
agora de pintar a realidade de uma forma chamar hélio, o gás mais leve que o homem
simbólica capaz de levar as pessoas a pensar. conhece”.
(...) Eu sou tantas raças... como poderia
tocar uma música... como poderia trair Foi sua última entrevista. Como uma fera
uma dessas raças, se eu sou todas elas ao do astral parece ter vindo ao mundo para
mesmo tempo? Tenho pensado muito sobre sacudir-nos de nosso terrestre e passageiro

170
Retiro Espiritual contrário” – no comportamento explosivo e dentro de altas esferas, que tivesse vindo
nada exibicionista, como quiseram acusar: à terra para sacudi-la e despertar a ente
Minha teoria será de que gênio existe ao contrário, sabe-se que era tímido e fazia contemporânea com seus acordes, dedos,
– basta consultar a história anônima de dessa timidez em cantar o reduto maior de amplificador e alto-falante. Com quê?
crianças-prodígio e de outros, menos sua beleza secreta mas não menos presente Até com “porradas” sonoras ou não nessa
frequente, de adultos-prodígio, sabendo- por não estar tão aparente. música do ruído e do silêncio o gênio maior
se que a grande maioria desses casos não assume e engrandece a força que conduz
chega ao conhecimento público quando Para se reconhecer um gênio é preciso até altíssimas paragens enquanto sua mente
não são promovidos pela publicidade instinto e sensibilidade, como aconteceu me conduz e diz: “vai em frente que essa
internacional. Necessário pesquisar casos da comigo quando o vi frente a frente no palco é quente e interessa, principalmente no
história anônima dos povos e suas criaturas do festival de Wight em 1970: enquanto Brasil” redimido pelo sofrimento, terra
“diferentes” ou excepcionais, principalmente transcorria o espetáculo, certificava-me da luz que se aproxima com o terceiro
aqueles que ninguém considerou grandes de que aquele seria e continua sendo sem milênio... Vou em frente, adiantando-
por serem eles mesmos. É preciso ver e dúvida a maior experiência que já me me aos demais no encontro adiantado
rever exemplos de genialidade congênita ocorreu em vida. Sabia-o naquele momento, e avantajado do gênio número um e do
de nascidos e mortos sob o signo do eu, realizador incrivelmente premiado no número um e meio que desafia vida e morte,
esquecimento, verdadeiro tesouro natural primeiro filme cuja imagem inicial (um o suave beijo do preto e do branco que
que o povo concede mas não define à letreiro luminoso) avisa e indaga: “um cruzam todas as linhas, ponto de intersecção
humanidade, tão necessitada de tipos gênio ou uma besta”. No fundo nem eu total de milhões de anos-luz, pediu-me o
extrassensoriais que, podendo estabelecer – obcecado com a ideia da existência ou grande sabedor de tudo, o mestre fulgurante
uma corrente, bastariam dez ou doze para não de gênio – não acreditava em seres me deu a consciência e a clareza exigidos
transformar um Estado, uma mente ou aparentemente normais mas extraordinário pelos que como eu sabem de tudo e escondo
um continente. Um como Jimi Hendrix em todos os sentidos. Até aquele instante; (leitor: chegou a hora de contar toda inteira
nasce de cem em cem anos, e não é para depois tudo mudou para mim. verdade, acredite se quiser).
menos... Minha tese será a de que gênio
existe, sim; embora pouco ou quase nada Entrou no palco, fulgurante, a luz número Iluminou e inundou o palco de luz. Da luz
fizessem para demonstrá-lo, ao contrário de um do Uno. Ilumina-o com seu brilho – sua luz. Pela primeira vez, certificava-me
Hendrix, cuja genialidade estava na cara: no áureo, traduzido numa rapidez anormal de que existia mesmo aquilo que pressentia;
andar, na maneira dele, canhoto, inverter de gesto, andar, comportar. Doce, elegante gênio existe, seja “Jina” (leia Roso de
as cordas de sua guitarra e tirar um som “ao e explosivo como uma fera do astral, por Luna: O livro que mata a morte) Dzin, jin,

171
chinês...) gin, gênio, nuntius (significa em instrumento – da Grécia à Wight.
latim: enviado) ou como quiser nomear O milenar mito do artista contra o
aquilo que é inominável. “Maha Jina” – à instrumento. Desde as primeiras notas notei
minha frente movia-se diferente de todos que era uma guitarra nova, vermelha, que
os outros humanos terrestres, rápido e coincidia com a vestimenta de triângulos
fulgurante, aquele ser movido por uma verdes e vermelhos que usava na ocasião.
graça que faz a história vibrar e ameaça o Tocando soberbamente, senti que ele não
transcorrer acadêmico das coisas. Hendrix estava satisfeito com o aparelho. Chamou
estava lá e eu vi. Tudo. Vi, então, o número alguém e sem parar de tocar, cochichou
um completar – na sua sucessão de números no ouvido. Certifiquei-me de que, como
musicais ou não – todos os outros números intuíra mandou apanhar sua Fender branca
e possibilidades seguintes – como se tudo de 12 cordas. Trouxeram. Sem interromper
fosse uma coisa só. De fato, tocava todas o número, trocou, tocou o instrumento
as suas criações ao mesmo tempo, desde as mais à vontade.
primeiras de Experience 1967 com as últimas
misturadas nos acordes mais conhecidos O mito trágico – isso já é tragédia – do
de um ou outro (“In From The Storm”), artista brigando com o instrumento e, tendo
incluída no final de meu filme O abismo. que brigar, vencendo-o, estava ali, se repetia
Lembro-me de cada detalhe mas não é fácil por uma desnecessidade histórica a luta e
(d) escrever... condição astral do guerreiro etc. – tudo
isso circulou pela minha mente, em poucos
Foram duas horas históricas de uma noite segundos, enquanto Jimi Hendrix fixou
de pânico; e som e fúria, nada significando o publicano público, eu via corrente de
a não ser que o homem contém divindades eletricidade saindo do peito do artista para
dentro de si mesmo e seu trabalho está aí a plateia e dessa para ele, descarga sensível
para ser compreendido (respeitado) porque transmitindo. Novamente Hendrix reina
somos próximos (filhos) daquele que é o sob nossa mente.
maior, cujo nome não pode ser citado em
vão... Na minha viagem pude inicialmente
constatar a briga milenar do artista com o Folha de S.Paulo, 29 de dezembro de 1980.

172
Dirceu Villa
Razó101 Romieus e Martis del Canet e Miquels de para dar a entender aos pastores e aos cães
Luzia e Sas d'Antilon e Guilems d'Alcala e que ele era um lobo. E os pastores o caçaram
Albertz de Castelveill e Raimon Gauseran com seus cães e o espancaram de tal forma
de Pinons e Guilems Raimon de Moncada que ele foi levado como morto à residência
e Arnautz de Castelbon e Raimons de da Loba de Pueinautier.
Cervera. E encontraram Peire Vidal assim
triste e doente e assim tomado por homem Quando ela soube que aquele era Peire
doente e louco. E o rei começou a lhe Vidal, ela começou a achar bastante
pregar, e todos os outros barões seus amigos engraçada a loucura que ele havia feito e
especiais, que ele devia deixar aquela dor a se rir muito, e seu marido igualmente.
e devia se alegrar e devia cantar, e que ele E receberam-no com grande alegria; e o
devia fazer uma canção, para que levassem marido fez que cuidassem dele e o meteu
a Aragão. Tanto lhe pregaram o rei e seus em lugar recolhido, no melhor que conhecia
Peire Vidal, pela morte do bom conde barões que ele disse que se alegraria e e de que dispunha. E o mandou ao médico,
Raimon de Tolosa, se amargurou muito e deixaria o que a dor lhe obrigava, e que que o medicou, e tanto o cuidou que foi
se entregou a grande tristeza. E vestiu-se faria uma canção como lhes agradasse. E curado.
de negro, e talhou as crinas e as orelhas a ele amava a Loba de Pueinautier e madame
todos os seus cavalos, e a si e a todos os seus Estefania, que era da Sardenha. E mais E como eu havia começado a dizer de Peire
servidores fez raspar os cabelos da cabeça; recentemente estava enamorado de madame Vidal que havia prometido ao rei e aos seus
mas as barbas e as unhas deixaram de cortar. Raimbauda de Biol, que era mulher de barões cantar e fazer canções, quando foi
Durante um longo tempo foi tomado Guilem de Rostanh, que era senhor de curado, o rei armou e vestiu a si e a Peire
por homem louco e doente. E houve que, Bioill. Bioill fica em Provença, na montanha Vidal; e foi bem preparado; e fez então esta
naquele tempo em que andava assim doente, que divide Lombardia e Provença. A Loba canção – a qual vós ouvireis – que diz:
o rei Afonso de Aragão veio a Provença. E era de Carcases, e Peire Vidal se fez chamar                                                               
vieram com ele Blascols Romieus e Garsias Lobo por ela e portava armas de lobo. E na De chantar m'era laisatz
101 O texto desta razó foi traduzido a partir do de Boutière- montanha de Cabaretz se fez caçar pelos                         Per ira e per dolor...
Schutz-Cluzel (p. 368), utilizado no livro de Riquer (op. cit. pastores com mastins e com lebréus, como  
pp. 897-899). O texto em provençal do poema veio também            
do livro de Riquer. se caça um lobo. E vestiu uma pele de lobo
173
De chantar m’era laissatz  
 
I IV VII
De chantar m’era laissatz A tal domna.m sui donatz Bels Sembelis, Saut e So
per ira e per dolor aue viu de joi e d’amor am per vos et Alio;
qu’ai del comte, mon senhor; e de pretz e de valor, mas car la vista.m fo brieus,
mas pos vei qu’al bon rei platz, on s’afina si beutatz en sui sai marritz e grieus.
farai tost una chanso, cum l’aurs en l’arden carbo;
que porte en Arago e quar mos precs li sap bo, VIII
Guilhems e.N Blascols Romieus, be.m par que.l segles es mieus La Loba ditz que seus so
si.l sos lor par bons e lieus. e que.il rei tenon mos fieus. et a.n ben drech e razo,
    que, per ma fe, mielhs sui sieus
II V que no sui d’autrui ni mieus.
E s’ieu chant cum hom forsatz, De fin joi sui coronatz  
pus Mosenher n’a sabor, sobre tot emperador,  
non tengatz per sordeyor quar de filha de comtor
mon chan, que.l cor m’es viratz me sui tant enamoratz,
De lieis on anc non aic pro, et ai mais d’un pauc cordo
que.m gieta de sospeisso; que Na Raimbauda.m do,
e.l partirs es me tan grieus que.l reis Richartz ab Peitieus
que res non o sap mas Dieus. ni ab Tors ni ab Angieus.
 
III VI
Traitz sui et enganatz E sitot lop m’appellatz,
a lei de bon servidor, no m’o tenh a deshonor,
qand hom li ten a follor ni se.m baton li pastor
so don degr’esser honratz; ni se.m sui per lor cassatz;
e n’aten tal gazardo, et am mais bosc e boisso
cum selh qui ser a fello; no fatz palaitz ni maizo,
mas se derenan sui sieus, ni ab joi li er mos trieus  
a meins me tenh que juzieus. entre vent e gel e nieus.
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O cantar já não me apraz
 
I e se eu for agora seu, VI
O cantar já não me apraz serei menos que um judeu102 E se lobo me chamais,
pelo dó e pela dor   não me causa um grande horror,
– morto o conde, meu senhor –, IV quer me bata até um pastor,
mas vejo que ao bom rei faz De tal dama estou atrás, quer me cace em matagais;
bem que faça uma canção: que vive de riso e amor, amo o bosque, o ribeirão,
que a levem a Aragão muito mérito e valor. não palácio, nem mansão,
Guilherme e'N Blascol Romeu, Sua beleza brilha mais nem neve me demoveu,
se soou leve a quem leu. que o ouro ardendo em carvão; vento ou gelo me prendeu.
  já que chamo sua atenção,  
II quase ouço: “o mundo é seu”. VII
Se por força eu canto – aliás, Feudo? nada! o reino é meu. Bela Cimbelina, então
meu senhor lhe acha sabor –,   amo Saut, So e Alião105
não penseis que sai pior V por vós; mas triste e sandeu
meu canto: amor me desfaz Coroa de amor me faz é quem vos vê pouco, eu.
pois me encanta o coração, bem maior que um imperador,  
mas despreza e só diz não; que esta filha de comtor103 VIII
esse partir, dar adeus, em tanto amor me compraz: Loba diz: “és meu, sem não,”
como dói só sabe Deus. Vale mais este cordão pouco, certo e com razão,
  – Raimbauda o deu com paixão – pois sou mesmo mais seu
III que pra Ricardo valeu que de outra ou até meu.
Me traiu essa falaz, Tors, Angieus, Peitieu104
me danei, bom servidor,  
que me têm por louco em flor
onde planto a honra em paz;
102 Antissemitismo que se encontra em inúmeros textos da
não aguardo um galardão, Idade Média.
só, talvez, o de um vilão; 103 comtor seria um grau de hierarquia medieval, em Pro-
vença, entre visconde e barão, e tanto Anglade como Riquer 105 Saut e Son, lugares no condado de Foix, França; Llo
mantêm a palavra original. (Alio, Alion ou mesmo Allone, em latim), localidade perto da
104 Ricardo Coração de Leão. Tours, Anjou e Poitiers.  fonteira francesa com a Espanha (Riquer, op.cit.p. 902).

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176
Pedro Gale
Goethe Após uma peculiar jornada empreendida mesma se farão de maneira peculiar. Temos
modernidade a contragosto em solo italiano de cerca de dois anos de de dar um passo às origens do classicismo
duração frutificaram diversas posturas para daí entendermos em que contexto tais
A intenção inicial deste trabalho nasceu que seriam marcas distintivas do que se críticas surgiram.
de uma perplexidade, a saber: e como o celebrizou como a segunda etapa criativa
autor máximo do classicismo alemão, que do poeta: O Classicismo. Embora o que Em Goethe não podemos separar as
professava sua ligação com o mundo antigo, marque tal período seja a sua ligação, quase concepções teóricas de sua história, do
pôde, no ponto culminante do classicismo que afetiva, à concepção antiga de ciências contexto em que surgiram. Portanto é
especular acerca do espírito humano e se e de artes, Goethe não foi surdo ao barulho necessário que investiguemos o livro que
relacionar com a filosofia crítica de Kant? causado pela revolução kantiana: “Nenhum “narra” este momento celebrizado como o
Não se trata apenas de uma leitura, ou de homem culto pode impunemente afastar renascimento de Goethe, isto é, a viagem
um combate desta filosofia, mas de um de si, combater ou desdenhar esse grande à Itália, antes de partirmos para as obras
certo tipo de afinidade que se manifesta no movimento filosófico iniciado por Kant.”107 teóricas. Faremos aqui o que Goethe
interior da construção das bases das obras intentou fazer com as naturezas orgânicas:
que surgiram a partir deste período criativo É exatamente nesta posição delicada perante observar suas passagens de um ponto a
do poeta. Goethe, ao mesmo tempo em que o mundo filosófico de seu tempo que outro, tentando daí extrair uma imagem
professou uma busca pelo agir dos antigos, repousa a peculiaridade de Goethe, pois geral.
não pôde se considerar um filho de uma era se ele não aderiu cegamente a nenhuma
anterior à “destruição do cosmos, ou seja, o corrente filosófica, ainda assim ele não A metamorfose de Goethe quando em
desaparecimento desses conceitos válidos, pôde deixar de ser moderno no âmbito do solo italiano, se torna sensível em uma
filosófica e cientificamente, da concepção pensamento. Mas o poeta parte de uma leitura cuidadosa de seu próprio relato. Se
de mundo como um todo finito, fechado nova modernidade que parece estar ligada observarmos atentamente a carta de 6 de
e ordenado hierarquicamente (...), e a sua a alguma centelha da antiguidade. E é setembro de 1786, ainda em solo alemão
substituição por um universo infinito que exatamente nos trabalhos empreendidos no (Munique, mais precisamente), lê-se a
é mantido coeso pela identidade de seus período posterior à sua viagem à Itália que a seguinte confissão: “No salão dedicado à
próprios componentes.”106 crítica à filosofia e certa apropriação da antiguidade, pude notar bem que meus
olhos não estão bem treinados para a
107 “Esboços para um retrato de Winckelmann”, Escritos de
106 KOYRÉ, A.; Do mundo fechado ao universo infinito, p. 16. arte, p. 206.

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contemplação de tais objetos.”108 Essa falta esplendorosa em solo italiano; note-se que objetos morais se ordenam e se figuram de
de treino em relação à antiguidade será nos itens enumerados no trecho acima não maneira diferente na alma de cada um que
superada. A proximidade com o mundo há nada que tenha sua origem nas artes e no pensa, também cada artista desta espécie irá
antigo se dará não apenas pela visão de engenho humano. É a natureza que treina ver, apreender e imitar o mundo de outra
diversas obras, mas pela presença do solo o olhar de Goethe para a antiguidade e maneira”112. Com tal universo a arte cairia
clássico e mais ainda da natureza presente para a arte como um todo. Esse treino não nas searas do sujeito e perderia sua vocação
no solo clássico. principia, e tampouco se fecha, aqui. ao universal. Uma arte que fale à imaginação
Mais interessante ainda é notar que o ponto do espectador é uma arte que emprega a
Em carta a Herder, de 17 de maio de 1787, de ligação com a antiguidade, ou seja a representação sensível apenas como veículo,
Goethe escreve: “agora que tenho presente natureza, é o mesmo que levou Goethe a ter ela visa o efeito e não a representação dos
em minha mente todas estas costas e de emular a filosofia de seu tempo. Se como objetos.
promontórios, golfos e baías, ilhas e línguas ingênuo Goethe nutria “uma espécie de
de terra, rochedos e praias, colinas cobertas amor e de comovente respeito à natureza em O classicismo francês, tão combatido pelo
de arbustos, suaves pastagens, campos férteis, plantas, minerais, animais, paisagens”110 ele poeta em sua juventude, não é em sua idade
jardins adornados, árvores bem cuidadas, não se manteve fiel a outra exigência posta mais madura, a meta de Goethe, a raiz
videiras pendentes, montanhas de nuvens e aos ingênuos, a de que “seus juízos não racionalista não deixou de se fazer sentir
planícies, escarpas e bancos rochosos sempre reparam nas artificiais e rebuscadas relações entre esses teóricos. Como diz Cassirer “A
radiantes, com o mar a circundar tudo isso das coisas e atém-se unicamente à natureza teoria do classicismo francês não tem nada
com tantas variações e tanta variedade – simples.”111 que ver com a filosofia do common sense; não
Somente agora, pois, a Odisseia tornou-se apela ao entendimento trivial e cotidiano,
para mim palavra viva.”109 O classicismo de Goethe surge em oposição mas sim às forças da razão científica.”113 Sair
ao “mergulho no eu”. Esta oposição parece do mergulho no eu de índole romântica,
Se em solo alemão Goethe não havia querer prevenir os artistas e teóricos da para cair em uma espécie de estética
treinado o olhar para algumas poucas obras subjetividade, mostrando a possibilidade racionalizante, seria para Goethe cometer
da antiguidade, em solo clássico o autor de uma descrição de um mundo cuja uma versão diferente de um mesmo erro:
que pode ser considerado como o Pai dos objetividade se impõe, não permitindo o colocar o homem acima de tudo e permiti-
gregos torna-se para ele Palavra Viva. Torna- exagero, o maneirismo, a graça falsa e o lo que submeta os objetos a si mesmo,
se palavra viva não pelo acesso às obras da empolamento. O maneirismo diz Goethe: quer pela razão, quer pelo sentimento
antiguidade, mas pela natureza que se revela gera um mundo onde “as opiniões sobre os apaixonado.
112 Imitação simples da natureza, maneira, estilo, Escritos
108 Viagem à Itália, (doravante Viagem...) p. 14. 110 Schiller, F.; Poesia ingênua e sentimental, p. 43. sobre arte, p. 63.
109 Idem, p. 379. 111 Viagem..., p. 49. 113 La filosofia de la Ilustración, p. 311.

178
Para Goethe o mundo antigo era mais do do objeto artístico tal elemento subjacente vida interior das manifestações fenomênicas
que um ideal inalcançável, ou um exemplo ao fenômeno se deixa sentir. de ambos que será o objeto de estudo de
a ser imitado, os antigos eram aqueles que Goethe.
viveram em harmonia com a natureza e O mundo classicista de Goethe não é
fizeram dela o seu norte, pois ela os supria passível de isolamentos, arte e natureza É nesse trajeto em direção à compreensão
de objetos dignos e elevados. caminham juntas, assim como na gênese do operar da natureza e da arte que Goethe
de seu projeto classicista, ou seja, o não vai poder se furtar à sua modernidade,
Se as obras de arte, para a corrente renascimento de Goethe em solo clássico, pois como observador da natureza se viu
neoclássica, da antiguidade, apresentavam onde o olhar se educou pela arte e pela obrigado a avançar pelo terreno pantanoso
uma natureza que, representada por um natureza. É nesta chave de um crescimento do pensar sobre o pensar. Como moderno,
artista elevado, aparece mais digna que mútuo, de força e perseverança, dos estudos Goethe teve de lançar-se “quase em cada
a sua matriz, ou seja, a natureza, para das ciências naturais e das artes que devemos uma de suas considerações ao infinito, para
Goethe um passo ainda deve ser dado, entender o classicismo de Goethe. Muito finalmente, se possível voltar novamente a
honrar as operações da natureza, por sua mais do que pautado em qualquer tipo de um ponto delimitado.”117 Na situação do
inesgotabilidade. Pois “cada todo belo na nostalgia, se funda na percepção de toda a homem diante de um fenômeno natural,
arte é, em pequena escala, uma cópia do dignidade e infinitude dos objetos naturais e Goethe fala em um duplo infinito prolífero
belo supremo, no todo da natureza.”114 dos artísticos. que surge no contato do observador e
Por outro lado diz Goethe: “O belo é uma objeto, estabelecendo-se como ponto
manifestação das leis secretas da natureza, as A começar por suas manifestações, arte e culminante.
quais sem essa aparição, teriam permanecido natureza começam a se tornar os objetos
eternamente ocultas.”115 Portanto se o belo mais privilegiados da obra teórica de Essa adaptação é a exigência mais cara a
da natureza é o belo supremo e o belo da Goethe, e é a própria dignidade de seus Goethe no que se refere às ciências naturais:
arte apenas participa deste belo, é o belo da objetos que exige a dedicação resignada que “se queremos alcançar uma intuição viva
arte que permite a intuição das leis secretas marcará o poeta por toda sua existência: da natureza, temos de nos manter flexíveis
da natureza. É a partir dele que os homens “Uma obra de arte autêntica, assim como e em movimento, segundo o exemplo que
podem se aproximar de, ou ainda pressupor, uma obra da natureza, permanece sempre ela mesma nos dá.”118 Este exemplo dado
aquilo que não aparece aos nossos olhos em infinita ao nosso entendimento; ela é 117 Esboços para um retrato de Winckelmann, Escritos de
arte, p. 185.
um fenômeno natural. Na intuição imediata contemplada, sentida, faz efeito, mas não 118“Die Absicht eingeleitet”, Johann Wofgang Goethe,
pode ser propriamente conhecida.”116 É a Sämtliche Werke – Briefe, Tagebücher und Gesprache, Deut-
scher Klassiker Verlag, v. 24, p. 392. Doravante sempre que
114 “Resenha sobre a imitação formadora do belo de Moritz”, p. 59. utilizarmos algum volume desta edição das obras completas de
115 Máximas e reflexões, máxima 183, p. 53. 116 “Sobre Laocoonte”, Escritos sobre arte, p. 117. Goethe indicaremos a sigla dkv e o volume em questão.

179
pela natureza é nada menos que o próprio totalidade da natureza, pois esta “reservou- nova! Entrar em si mesmo, surpreender
agir da natureza, nela nada encontramos se tanta liberdade que nós, mesmo com seu próprio espírito em suas ações, fechar-
que já tenha alcançado sua perfeição, saber e ciência, não podemos alcançá-la ou se completamente em si mesmo, para
mas tudo se transforma num “contínuo encurralá-la120”, a esta impossibilidade, diz, melhor conhecer os objetos. Seria este o
devir”. Diante de tal mundo o intuir não “não podem nos impedir de fazer o que nos melhor caminho?”122 O poeta classicista
pode ser estático, ele deve acompanhar é possível.”121 não pode agir conforme uma filosofia alheia
as operações da natureza, a intuição deve a toda experiência, o poeta parece querer
ela mesma ser viva, pois como referência Para avançar em tais assuntos Goethe reivindicar uma maneira de operar em
imediata ao objeto, ela deve flutuar neste deverá, como já dissemos, pensar a natureza direção ao conhecimento, prática e livre,
mundo do devir. O que Goethe intenta em em sua grandeza, mas também pensar sobre ligada não a um sistema das operações
seus trabalhos morfológicos é conhecer a o pensar. Para estabelecer uma ligação quer cognoscentes do sujeito, mas sim aos
formação (Bildung) das naturezas orgânicas com as artes, quer com a natureza, o poeta objetos que este pretende entender. O
e suas mútuas relações por meio daquilo terá de avançar neste campo, mas não autor de Fausto teve de se embrenhar no
que nos aparece na intuição, e, em analogia isoladamente como filósofo teórico, nem seu próprio interior, mas por ordem dos
à recepção artística, essa parte visível do como esteta, muito menos como filósofo fenômenos e não de um estudo do espírito.
fenomênico e suas supostas relações devem da natureza, mas como alguém que no O conhece-te a ti mesmo é posto aqui de
indicar o seu interior. esforço de conhecer a si próprio enquanto modo um tanto diverso do que estabeleceu
fenômeno, pois paralelamente à investigação a tradição, o poeta quer se conhecer melhor
Goethe move-se aqui naquilo que se se faz necessária a delimitação das faculdades através dos objetos que vê, e não através de
pode observar da natureza “de um centro humanas, para que consciente de sua uma reflexão interior, o espírito deve ser
desconhecido até um fim incognoscível.”119 própria limitação o homem não busque ir conhecido na ação, no movimento gerado
A inesgotabilidade de tais objetos impede além do que pode ir. pelos fenômenos.
que os submetamos a nós mesmos, e mais
ainda a qualquer produto estritamente O homem deve se conhecer. Como Goethe Apesar de esta forma de entender o operar
racional ou filosofante. O discurso se conhecerá? Ele não seguirá o caminho do aparato cognitivo trazer em si uma
matemático e o discurso filosófico devem que ele mesmo denunciou em seu texto origem marcadamente ligada à sua ideia de
ser evitados, e apenas utilizados em pontos “O colecionador e seus pares”: “Que coisa Grécia antiga, Goethe teve de ser capaz de
específicos, e não como amálgamas que singular é a filosofia, particularmente a confrontar-se com a racionalidade moderna,
unem a diversidade dos fenômenos. ainda que a contragosto, sem jamais se
120 Máximas e reflexões, máxima 438, p. 104.
Goethe não pretende esgotar e abarcar a 121 “Der Versuch als Vermittler Von Objekt aund Subjetkt”, 122 Op. Cit, dkv, v 18, p. 879, utilizo aqui da tradução de
119 “Problem und Erwiderung”, dkv, v. 24, p. 582. dkv, v. 25, p. 27. Tereza Castro, ainda não publicada.

180
submeter a ela, embora consciente da especificamente no caso de Kant e de sua díspares postas lado a lado: arte e natureza,
ausência de cosmos da era moderna. Para filosofia Crítica o poeta parece possuir uma numa obra na qual segundo ele “juízo
a filosofia, propriamente dita, ele dizia não admiração velada, não pode identificar-se estético e juízo teleológico iluminavam
ter órgão, mas somente “ a reação contínua totalmente com o filósofo de Königsbeg, alternadamente”. Goethe, envolvido por
com a qual eu era coagido a resistir ao mas não pode ignorá-lo, Goethe não foi um mundo onde o ver e o intuir não se
mundo invasor e a apropriar-me dele; tive surdo ao barulho causado pela revolução apresentavam de maneira estática e não
de conceber um método, através do qual kantiana: “Nenhum homem culto pode esgotavam os seus objetos, acreditava que
procurava apreender a opinião dos filósofos impunemente afastar de si, combater ou o juízo por trás de tais operações do nosso
como se fossem objetos e, desse modo, desdenhar esse grande movimento filosófico aparato sensível tinha de se desenvolver em
instruir-me.”123 Apesar deste movimento iniciado por Kant.”125 Se a Crítica da razão direção aos objetos simples da natureza.
em direção à instrução, Goethe não pôde pura fez com que Goethe não pudesse deixar
deixar de voltar ao seu mais nobre objeto, de se identificar com a orientação geral de Mas não nos iludamos! O poeta via nesse
pois para seu célebre ensaio A metamorfose tal obra, ela permaneceu para ele algo cuja aparato pretensamente kantiano apenas a
das plantas teve, diz ele, “de desenvolver- “entrada foi o que me agradou, no próprio sofisticação daquilo que ele via se manifestar
se um método adaptado à natureza.”124 É labirinto não ousava aventurar-me; impedia- no seu eu em relação à natureza corriqueira.
aqui que, enquanto estudioso das coisas que me, em parte, o dom poético, em parte, o A filosofia devia manter-se a distância,
o cercavam, o poeta parece se arriscar em entendimento comum, e não me sentia em ao máximo possível das observações da
voos que não podem deixar de confessar lado algum favorecido.”126 Eram exatamente natureza e da arte. Em ambos os casos
sua origem, se não na filosofia, ao menos no o dom poético e o senso comum aquilo devemos partir, assim como um grego, dos
pensar acerca do pensar. que servia ao poeta como o mundo de sua objetos. Para poder defender sua postura
experiência possível. clássica, e sua ligação com o modo de
É claro que Goethe sempre fez um uso operar dos antigos, Goethe teve de usar de
caseiro da filosofia moderna, seu uso dela De maneira quase oposta Goethe recebeu inúmeras armas fornecidas pela filosofia
não se deu de maneira uniforme e não a Crítica da faculdade do juízo. A ela ele moderna.
pode-se notar em seus escritos nenhuma diz dever “um dos períodos mais felizes da
adesão clara a nenhum sistema filosófico. [sua] vida.”127 Nela viu suas ocupações mais Quando Goethe crítica a maneira como a
Ele não foi e não intentou ser um pensador natureza fora tratada por Schiller em seu
125 “Esboços para um retrato de Winckelmann”, Escritos de
sistemático, mas não pode se isolar dos arte, p. 206. ensaio Sobre a graça e a dignidade o que
construtos teóricos de seu tempo. Mais 126 Influência da nova filosofia, 65 de As metamorfoses das parece incomodá-lo são exatamente os
plantas
123 Influência da nova filosofia, A metamorfose das plantas, p. 65. 127 Influência da nova filosofia, 66 de As metamorfoses das pressupostos kantianos de tal ensaio. No
124 Influência da nova filosofia, A metamorfoses das plantas, p. 65. plantas

181
referido texto, Schiller diz coisas do tipo “Logo a conversação se debruçou sobre a
“Contudo é só na humanidade que o grego essência da dialética.
inclui toda beleza e perfeição”128, “Para o
grego, natureza nunca é apenas natureza”129, “– Em substância, não é outra coisa – disse
“A beleza (...) recebe sua existência na Hegel – senão o espírito de contradição
natureza sensível e conquista no mundo que todos os homens possuem, regulado
da razão o direito e a cidadania”130, “A e metodicamente educado, e este dom se
legislação da natureza tem existência até mostra em toda sua grandeza na distinção
chegar à vontade, onde termina aquela do verdadeiro e do falso.
e onde se inicia a legislação natural”.131
Goethe diz que neste ensaio Schiller “tinha “O ruim é – interrompeu Goethe – que
assimilado com alegria a filosofia kantiana, destas artes e habilidades se abusa com
que eleva tão alto o sujeito parecendo frequência, empregando-as em fazer o falso
diminuí-lo; ela desenvolvia o elemento verdadeiro e o verdadeiro falso.
extraordinário que a natureza tinha
depositado em seu ser, no sentimento da sua “Isso seguramente acontece – replicou Hegel
liberdade e autodeterminação, era injusto –, mas somente quando o fazem as pessoas
com a grande mãe”132, ou seja, a natureza. espiritualmente enfermas.

Para não mais que ilustrar essa postura, “Eu me alegro de haver-me dedicado ao
onde a natureza serve de objeto e de estudo da natureza – disse Goethe – que
proteção em relação ao mundo filosófico, não deixa lugar para que se apresente essa
concluo reproduzindo um diálogo entre enfermidade. Pois aqui temos de nos haver
Goethe e Hegel ocorrido em 18 de outubro com o infinito e eternamente verdadeiro, que
de 1827, que nos chegou aos dias de hoje se ruboresce em seguida como um indigno,
por meio de Eckermann: todo aquele que na observação e tratamento
de seu objeto não proceda com pureza e
128 “Sobre a graça e a dignidade”, in Textos sobre o belo, o
sublime e o trágico, p. 99. honradez absolutas. E estou seguro de que
129 Idem, p. 100. muitos dialéticos enfermos encontrariam na
130 Ibidem, p. 104.
131 Ibidem, p. 126. natureza uma benéfica cura.”133
132 “Um acontecimento feliz”, Metamorfose das plantas, p. 72. 133 Conversaciones con Goethe, p. 530.

182
Rodrigo Lobo Damasceno
Poesia, romance delas criar. Não me parece que tal proposta disso, a responsável direta pelas atitudes
e vanguarda: pudesse soar descabida a Paz ou Bolaño. patéticas, puramente livrescas que esses
visões de Octavio Paz mesmos personagens costumam cometer.
e Roberto Bolaño No depoimento de Simone Darrieux, dado Não se ignora que caminhar com livros
em setembro de 1977, na cidade de Paris, surrados, aparentemente antigos, pode ser
A natureza deste ensaio se apoia numa o leitor de Os detetives selvagens descobre uma maneira eficaz de sublinhar a condição
percepção problemática e delicada da que Ulisses Lima, poeta vanguardista maltrapilha e maldita de Ulisses Lima –
relação e a hierarquização entre os gêneros para uns, traficante de drogas para outros, condição que o poeta parece perseguir e,
literários. Concentra sua reflexão numa cultivava o singular hábito de ler poesia finalmente, alcançar. Mas caberia, aqui,
comparação entre ensaio e romance, poesia enquanto tomava banho. Sob o chuveiro, uma breve apresentação dos poetas até então
e ficção – justifica-se essa miscelânea, seus livros, repletos de anotações feitas referidos.
contudo, pela liberdade textual dos autores à caneta, encharcavam-se e desbotavam
tratados: Octavio Paz, ensaísta sempre – para, em seguida, já secos, enrugarem- O primeiro contato que o leitor tem com
consciente da condição poética de seus se e ganharem um aspecto envelhecido, os integrantes do movimento poético de
pensamentos expostos em prosa e Roberto de pergaminho. Essa breve passagem, de vanguarda, sediado na imensa e confusa
Bolaño, romancista inquieto e também aparente irrelevância àquilo que certas Cidade do México e intitulado Realismo
prosador que reincide na poesia – que vem leituras podem observar como trama Visceral, é o primeiro contato que Juan
a ser, portanto, fim comum da literatura ou enredo do romance, parece-me, ao García Madero tem com os mesmos.
de ambos. Tratarei de resistir ao máximo contrário, uma imagem central da relação Chega, portanto, através do registro que
a uma fusão ou relação entre essências que certos personagens de Roberto Bolaño Madero faz em seu diário pessoal. Ele, um
diametralmente opostas (observar o Octavio possuem com a matéria e o fazer literários. jovem poeta de dezessete anos, frequenta
Paz ficcionalizado por Bolaño como Imagem irônica, sem dúvida, e também uma oficina de criação literária chefiada
representação fiel de sua personalidade, ambígua: incorporada à vida de Ulisses por Julio César Álamo, crítico e poeta
por exemplo), mas sem opor resistência a Lima, Arturo Belano ou qualquer outro estabelecido. Já desconfiado da fraca cultura
qualquer espécie de reflexão que, amparada dos poetas real-visceralistas mexicanos que e sensibilidade poéticas do professor, García
numa leitura que me pareça clara, se cruzam o livro, a literatura ganha, também Madero aproveita uma súbita invasão de
aproveite das regiões limítrofes dos gêneros ela, a fragilidade física, a efêmera condição Ulisses Lima e Arturo Belano, líderes do
citados. Aproveitar-se das indefinições para dos seus condutores – tornando-se, além movimento vanguardista, à oficina, para
183
rebelar-se definitivamente e romper com física e mental à escrita, também lhe imiscuir-se no cotidiano de vanguarda, não
a farsa protagonizada pelo poeta bem- conduz aos perigos noturnos, amorosos e para nele se perder, mas para de lá retirar o
sucedido. A partir desse confronto, ele literários. Seu espírito já era revolucionário, que pode servir-lhe. Não por acaso, quando
estreita sua relação com Ulisses, Arturo e sua índole sempre fora boêmia – não se num depoimento de 1996, de Ernesto
seus seguidores e registra o desconcerto que trata de um ingênuo absoluto: é irônico, García Grajales, universitário que estuda a
se instala em sua vida: se antes era um bem- é questionador e não ignora a ignorância obra dos real-visceralistas, perguntam-lhe
comportado estudante de Direito, torna-se de Ulisses e Arturo. Sabe que, assim como se ouvira falar de Juan García Madero, ele
um aluno relapso, um poeta prolífico e um César Álamo, o professor ridicularizado, responde que esse nome não lhe diz nada
jovem desgarrado; abandona a casa dos seus novos líderes também desconhecem a e que “Com certeza nunca pertenceu ao
tios que lhe criavam; perde a virgindade; definição e as características de um rispetto grupo”.
inicia-se definitivamente nas drogas e na – que, como o próprio García Madero gosta
vida boêmia. Afirma, por exemplo, que de sublinhar, “é um tipo de poesia lírica, Não se pode deixar de notar, porém, que
“Antes eu não tinha tempo para nada, amorosa para ser mais exato, semelhante ao o próprio romance ampara uma espécie de
agora tenho tempo para tudo. Vivia metido strambotto, que tem oito hendecassílabos, preservação da visão romântica do poeta
em ônibus e metrôs, obrigado a percorrer os quatro primeiros em forma de sirvente e – afinal, a rebeldia concreta, a revolução
a cidade de norte a sul pelo menos duas os seguintes construídos em parelhas.” Não de fato só ocorre a partir do contato de
vezes por dia. Agora me desloco a pé, leio se ressente de envergonhar-se por Arturo García Madero com a vanguarda mexicana.
muito, escrevo muito, faço amor todos os que, no confronto com César Álamo, tira Sua propensão, anteriormente contida,
dias.” A mudança, como se nota, é radical – um poema do bolso e inicia uma leitura – só se liberta por meio dessa convivência.
alterando-se até mesmo a sua percepção de num momento em que, observa Madero, Poesia, então, confunde-se com experiência
tempo e espaço, que se alongam e estreitam, seria mais digno partir para o pugilato. Essa (poesia que provém do ato e provoca o ato)
respectivamente, ajustando-se de maneira atitude de Arturo, por sinal, soa tão farsesca – daí que o fato do romance conter tons
exemplar. Essa modificação termina por quanto a de Ulisses ao ler sob o chuveiro. A autobiográficos tão fortes é uma das notícias
alargar sua produção poética, antes cerceada romantização da figura do poeta, entidade mais fundamentais ao seu respeito. Durante
pelo enfadonho cotidiano pequeno-burguês mística e selvagem que nem mesmo os a sua juventude no México, Roberto
em que sobrevivia. concretos armados da Cidade do México Bolaño idealizou um movimento poético
conseguem curvar, não parece seduzir de vanguarda chamado Infra-Realismo,
Tais mudanças, no entanto, não se lhe completamente a Madero. Sua entrada no que se aproxima de preceitos e práticas do
revelam inteiramente apropriadas – pois, se movimento, enfim, soa como uma atitude Realismo Visceral. Para além disso, um
tudo isso lhe traz a inspiração e a propensão de curiosidade, de alguém que pretende leitor atento (ou apenas informado) saberá

184
perceber as semelhanças biográficas entre é uma uruguaia, poeta e viajante, envolvida Paz, assombra ou, mais propriamente,
Arturo Belano e Roberto Bolaño. com os movimentos de esquerda latino- se revela a Pound, leitor, crítico e poeta
americanos. Delineia-se, nessa situação, recriador de provençais, chineses, italianos
E a relação de Belano com a vanguarda a condição do poeta de vanguarda – à renascentistas), pois, Realismo Visceral fora
se trata de uma espécie de transformação margem da sociedade, à margem da própria o nome de um outro efêmero movimento
gradual de escrita e personalidade – algo comunidade artística. Trata-se, além disso, de vanguarda mexicano, da década de
muito mais profundo e desestabilizador de uma marginalidade perseguida de forma 1920, liderado pela poeta Cesárea Tinajero,
do que aquilo que ocorre com García apaixonada pelos próprios protagonistas do de quem se conhece apenas um poema e
Madero. Segundo os depoimentos daqueles movimento, que só se realizam devidamente pela qual Ulisses Lima e Arturo Belano se
que o conheceram ainda na adolescência, com a exclusão sumária de uma sociedade e encantam, empreendendo uma viagem ao
era um rapaz afável e sonhador, gentil de um círculo que eles rejeitam como podres norte do México para encontrá-la – viagem
e romântico, no sentido mais ingênuo e superados. São poetas que se sentem que se encerra em tragédia e resulta na
dessa expressão. Após conhecer Ulisses desconfortáveis diante da tradição hispano- diluição do movimento.
Lima e seus seguidores iniciais, contudo, americana – e que, por isso, procuram
muda drasticamente o seu caráter. Auxilio ícones e mestres na literatura norte- A transição do contexto latino-americano
Lacouture, em seu depoimento, afirma: americana e europeia do século xx. Sua para a tradição poética anglófona parte,
suposta violência teórica e estética encontra sobretudo, da incapacidade que, segundo
“Começou a sair com outros, com gente respaldo em Ezra Pound – aquele que, os realistas viscerais, a poesia canônica
mais moça que ele, moleques de dezesseis, segundo Octavio Paz, é “filho da Utopia” da América Hispânica, historicamente
dezessete, dezoito anos, conheceu Ulisses
Lima (má companhia, pensei quando o e para quem “a história é marcha, não rural, anacrônica e pouco cosmopolita,
vi), começou a rir de seus antigos amigos, círculo”. A caminhada dos real-visceralistas parece ter para lidar com a realidade da
a lhes perdoar a vida, a olhar tudo como aproxima-se dessa visão quase sanguinária megalópole moderna e da confluência
se ele fosse Dante voltando do Inferno, de homem e futuro – não apenas marcham, de idiomas, corpos e espíritos que nela
que Dante que nada!, como se ele fosse como pisam e esmagam seus obstáculos. se dá. Daí que seu embate maior seja
Virgílio, um rapaz tão sensível, começou a
fumar marijuana, vulgo mota, e a transar Mesmo essa relação, no entanto, não pode contra os chamados poetas camponeses,
substâncias que prefiro nem imaginar”. ser considerada de maneira absoluta: Bolaño arquétipos dos versos inadaptados à brutal
não constrói robôs, personagens previsíveis realidade da América Latina modernizada
É necessário que se atente ao sujeito que dá ou estereotipados. A condição circular da e subjugada às ditaduras militares. Essa
tal depoimento: não se trata de um cidadão história assombra os realistas-viscerais no interpretação histórica da poesia hispano-
conservador ou reacionário. Ao contrário: seu próprio projeto artístico (e, contrariando americana pareceria equivocada a Octavio

185
Paz, para quem o traço ideológico e 20 talvez seja muito mais ideológica do situa-se, em relação à natureza, num limiar
estético que marca a maturidade da que estética. A rigor, há escassa literatura entre a atração e o temor, a brutalidade
literatura do continente é exatamente o seu nas reflexões de Ulisses e Arturo: voltam-se ignara do natural e a configuração racional
desenraizamento – que, em suas palavras, contra instituições ou figuras, lutam por e sentimental do humano (“Hay jardines
utopias espirituais – de poesia, pouco ou en donde el viento mismo se demora/ Por
“não é acidental. É a consequência de nossa nada falam. A esse respeito, por exemplo, oírse correr entre las hojas/ Hablan con voz
história: termos sido fundados como uma lê-se no depoimento de Alfonso Pérez tan clara las acequias/ Que se ve al través
ideia da Europa. Ao assumi-lo plenamente
o superamos. Quando Rubén Darío escreve Camarga, dado em 1981: “Belano e Lima de sus palabras”). No seu célebre ensaio
Cantos de vida y esperanza não é um escritor não eram revolucionários. Não eram “O desconhecido de si mesmo – Fernando
americano que descobre o espírito moderno: escritores. Às vezes escreviam poesia, mas Pessoa”, o ensaísta mexicano, a respeito de
é um espírito moderno que descobre a também não creio que fossem poetas. Eram Caeiro, escreve o seguinte: “Caeiro é tudo o
realidade hispano-americana”. vendedores de drogas”. No caso específico que Pessoa não é e, além disso, tudo o que
de Octavio Paz, contudo, é possível que se nenhum poeta moderno pode ser: o homem
Não por acaso, os realistas viscerais elegem incomodem com versos como os que abrem reconciliado com a natureza” – dessa certeza
Octavio Paz como o inimigo maior o poema “Visitas”: deriva o trato que sua expressão poética
da vanguarda: sua condição de poeta dá a elementos como rios, árvores, folhas,
laureado, poeta nacional, incomoda-lhes “A través de la noche urbana de piedra y sequía flores, terra, abelhas, cavalos etc. Aos poetas
profundamente. Não se pode afirmar, entra el campo a mi cuarto.” de Bolaño, portanto, falta certa argúcia
categoricamente, que o projeto formal ou imaginativa, certa capacidade interpretativa
estético do Realismo Visceral destoe das Espécie de nostalgia imperdoável, talvez. – não reconheceriam versos como:
realizações de Paz, já que nenhum poema Haveria, ainda, uma impressão de
dos jovens escritores é criado e transcrito por anacronismo nas suntuosas imagens desses Aguas dormidas golpean día y noche tu
Bolaño. Como parâmetro, pode-se utilizar a escritos, sobretudo dos poemas de sua /cintura de arcilla
única produção de Cesárea Tinajero, que é primeira fase – livros como Calamidades y en tus costas, inmensas como los arenales
estritamente visual e de recitação impossível, y milagros ou, sobretudo, Semillas para un /de la luna,
el viento sopla por mi boca y su largo
muito próxima à poesia concreta brasileira. himno estariam baseados numa relação /quejido cubre con sus dos
Reluto em tomar-lhe como exemplo pelo entre natureza e erotismo que, aos realistas alas grises
fato de que existem inúmeras passagens do viscerais, seria descabida: suas volúpias la noche de los cuerpos
romance em que os jovens realistas viscerais encontram-se e fundem-se com edifícios, como la sombra del águila la soledad del
recitam os seus poemas – daí que a sua autoestradas, elevadores. Trata-se, contudo, /páramo
aproximação da misteriosa poeta dos anos de uma incompreensão: a poesia de Paz
186
O mais provável, no entanto, é que essa forma automática (à maneira beat, norte- resiste à sociedade burguesa e utilitária.
recusa à obra de Octavio Paz estivesse americana), Paz escreve que o “poema é Trata-se, a bem dizer, da vitória materialista:
realmente distante de reflexões artísticas. mediação entre uma experiência original o poeta está desfeito de sua poesia, ceifado
Ora, a obra de Paz, no contexto histórico e um conjunto de atos e experiências em sua imaginação – resta-lhe a áurea, um
da poesia americana de língua castelhana, posteriores, que só adquirem coerência indisfarçável ar de fracasso e deslocamento.
como bem observou Haroldo de Campos, e sentido com referência a essa primeira O fim da poesia – representada nas
é uma retomada das temáticas e das formas experiência que o poema consagra” – a vanguardas estéreis e tardias – está na
vanguardistas de Vallejo e Huidobro – Paz escrita automática, para ele, é uma prática preservação e na lapidação do poeta. Numa
não apenas experimentou o surrealismo impossível. sociedade midiática, o séquito de artistas
europeu (como se percebe nos versos que prioriza a imagem do artista trabalha
aqui citados), a poesia visual e o verso Octavio Paz poderia observar, além disso, e serve à intenção burguesa – nela, o poeta
essencialmente rítmico da poesia anglófona uma espécie de descompasso histórico é figura exótica e inofensiva; ora diverte ao
do século xx como também estudou e responsável pela desvalorização da poesia público irônico, ora serve como exemplo do
absorveu métodos da poética oriental, do Realismo Visceral. Acreditando que fracasso. A marginalidade, então, realiza-se
sobretudo japonesa. Seu cosmopolitismo os momentos poéticos oscilam num em si mesma, independente da produção
só poderia ser desprezado pelos real- “movimento de pêndulo entre períodos de ou da recepção social da obra – parecer ou
visceralistas por ignorância ou pura reflexão e períodos de espontaneidade”, a dizer-se poeta, jamais sê-lo. Nunca foi tão
indiferença à sua obra poética, sendo vanguarda setentista se lhe revelaria como fácil subjugar o poeta que, destituído de sua
priorizada (e depreciada) a sua imagem um fenômeno anacrônico - repetindo lira, é homem iludido e frágil, já incapaz de
de poeta adequado e quase necessário à um movimento da década de 1920, esses manejar seu arco.
sociedade. O intelectualismo do Nobel poetas não passariam de espectros de uma
mexicano, nesse caso, seria determinante revolução já concretizada, personagens de Não se pode acreditar, no entanto, que
– sua escrita estudada e cerebral deveria uma rebelião esvaziada de sentido e poder, o descompasso geracional do Realismo
ser severamente combatida (fosse por rebelião institucionalizada e artificial. Visceral se dê em relação a Octavio Paz – ao
ideologia ou conveniência, já que grande Completa-se, dessa forma, um círculo contrário: a incompreensão e a exclusão de
parte dos realistas-viscerais escrevia prosa de fundamental do modernismo, que se destrói que os poetas são vítimas surgem, muito
forma sofrível). A vanguarda dos anos 70 e pelas suas próprias armas, tornando-se mais, de seus contemporâneos. Dessa forma,
Octavio afastam-se, sobretudo, em sua ideia acrítico e descerebrado: já não existe a obra, o romance é profícuo em representações do
de poesia: se para os jovens o poema parte apenas o poeta, figura absoluta e completa cotidiano literário do México: os grupos,
da experiência imediatamente transcrita, de do homem que, apenas aparentemente, o corporativismo e as inimizades são

187
longamente retratados – de forma parcial, Tudo isso contribui com que o mercado minha frente na minha sala, olhando para
naturalmente, visto a natureza polifônica e editorial se feche aos jovens vanguardistas, mim com aqueles olhos vazios, a ponto de
dormir, iria me dar azar, que provavelmente
incompleta do romance. recusando-se a publicá-los (um editor o azar já estava pairando sobre o teto de
chega a afirmar: “(...) não creio que seja minha editora, como um corvo pestilento
Ulisses Lima e Arturo Belano parecem um luxo publicar poesia, mas sim uma ou como um avião das Aerolíneas Mexicanas
insuportáveis a todos os poetas e editores soberana estupidez”). Porém, acredito que destinado a se estatelar contra o edifício em
da Cidade do México: ridicularizados, tais justificativas não passam de assuntos que ficava minha editora.”
ignorados em todas as coletâneas, jamais secundários, nos quais não pretendo deter-
premiados – são poucos os que se deixam me – não para ignorar o tema, mas para Estigma que, de certa forma, não
seduzir por sua obra; desses poucos, um abordá-lo de outra forma; sobretudo porque surpreendente. Em “O verbo
deles é Joaquín Font, arquiteto e artista a aversão do status quo poético e editorial do desencarnado”, Octavio Paz já observa:
visual que diagramou uma revista publicada México a Ulisses e Arturo parece-me ser de “Os ‘poetas malditos’ não são uma criação
pelo grupo e termina enclausurado num outra ordem, menos óbvia e até esotérica: do romantismo: são o fruto de uma
hospício. É ele quem dá o depoimento que eles são vistos como figuras malditas (no sociedade que expulsa aquilo que não
procura definir a literatura praticada pelos sentido verdadeiramente místico do termo), pode assimilar. A poesia nem ilumina
realistas viscerais: seres carregados de uma negatividade que nem diverte ao burguês. Por isso desterra
devora a quem quer que se aproxime. A esse o poeta e transforma-o em um parasita
“Há uma literatura para quando se está respeito, leia-se o depoimento de Lisandro ou um vagabundo.” Ulisses e Arturo se
aborrecido. Abunda. Há uma literatura Morales, um dono de editora, dado em tornam, assim, poetas mendigos – figuras
para quando se está calmo. Esta é a melhor indesejáveis e repulsivas que povoam,
literatura, acho. Também há uma literatura março de 1977, sobre o seu primeiro
encontro com Arturo Belano, de quem segundo Paz, grande parte da história
para quando se está triste. E há uma
literatura para quando se está alegre. Há pretendia publicar uma antologia: literária da língua castelhana (“Góngora
uma literatura para quando se está ávido mendigou toda a sua vida”). Não por
de conhecimento. E há uma literatura para “E então, bem, então tive uma espécie de acaso, ocorre um considerável aumento
quando se está desesperado. Foi esta última iluminação. Ou de pressentimento. Soube na publicação de poesia após a saída deles
que Ulisses Lima e Belano quiseram fazer.” que era melhor não publicar essa antologia. do México. Esse azar, contudo, só parece
Soube que era melhor não publicar nada
manifestar-se em ambientes citadinos e
Completa a informação afirmando desse poeta. (...) Se havia outras editoras
interessadas, elas que publicassem, eu não, definitivamente burgueses – cite-se, por
que essa literatura desesperada só pode exemplo, a inesperada sorte que Ulisses
eu soube, naquele segundo de lucidez, que
ser devidamente apreciada por leitores publicar um livro daquele sujeito iria me Lima traz ao barco Isobel. Ulisses, que
imaturos, juvenis. dar azar, que ter aquele sujeito sentado na buscava qualquer espécie de trabalho,
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fora aceito na embarcação e, apenas em cabe em versos – sua exclusão o empurra à “Durante um segundo de lucidez, tive a
alto mar, os tripulantes deram-se conta vontade de uma criação nova, onde caibam certeza de que havíamos ficado loucos.
Mas a esse segundo de lucidez se antepôs
de que o mexicano jamais pescara – sua ele e sua imaginação: “(...) o advento de um supersegundo de superlucidez (se me
presença, porém, coincide com uma brusca uma sociedade fundada na palavra poética”, permitem a expressão), em que pensei que
alteração do cotidiano de peixes escassos da como escreve Paz. A poesia que se torna aquela cena fosse o resultado lógico de
tripulação: religião, História e mito que já não pretende nossas vidas absurdas.”
refundar uma sociedade decaída, mas iniciar
“Quando começou a escurecer, percebemos uma outra, diversa e inteiramente nova. A situação, anacrônica em seus meios, suas
que as redes estavam cheias. (...) Depois armas e seus pretextos, é um dos centros
tudo voltou a ser como antes, mas sabíamos
Para tanto, o poeta moderno, como se simbólicos da narrativa: antes dela, sabe-
que estávamos ricos (...). Então o mexicano
disse que já chegava, que ele já tinha sabe, desdobra-se em crítico – não apenas se que Belano agora escreve prosa e que
dinheiro bastante para fazer o que tinha que vislumbra e ilumina o futuro, mas trabalha o Realismo Visceral já não existia (os
fazer e que iria embora.” e recria o presente. Chega-se, outra vez, ao chilenos Belano e Felipe Müller já haviam
erro de Ulisses e Arturo: desprezam a crítica, se desligado oficialmente do movimento,
Percebo, nessa situação, a mudança de enxergando-a como inimiga do poema. Essa pois estavam “muito ocupados trabalhando
estigma que se dá paralela à mudança de posição talvez seja a mais bem trabalhada e tentando sobreviver”); em sua sequência,
cenário e contexto: no ambiente mais rude, por Bolaño, que põe Arturo Belano e Iñaki Belano empreende uma viagem final à
menos modernizado, o poeta retorna à sua Echavarne, crítico literário espanhol, frente África, recriação natural da trajetória de
condição de guia e sacerdote, conduzindo o a frente num duelo de espadas. Não se trata Rimbaud. Doente, pobre e esquecido,
homem à fartura, restituindo-lhe a fé. de uma retaliação a alguma observação o poeta latino-americano busca repetir
feita aos escritos de Belano – ao contrário: o percurso espiritual e físico do poeta
A marginalidade seduz aos realistas viscerais, Echavarne jamais fez considerações sobre o europeu, fundador do que Paz diz ser a
tornando-se, ela mesma, a sua obra-prima: autor chileno, que pratica uma espécie de poesia prática – é Rimbaud que faz o poeta
percorrer o México e cruzar a Europa prevenção, pois acredita que o espanhol, começar a sentir-se envergonhado de sua
como pedintes. Pretensão semelhante à de em breve, escreverá sobre seu novo livro. condição de poeta, de mero escritor, homem
Cesárea Tinajero e seus companheiros, cuja Não combate, portanto, ao crítico Iñaki alheio à ação histórica. Transformado
obra-prima seria Estridentópolis, cidade Echavarne, mas a uma espécie de instituição em anônimo trabalhador no continente
mítica que levaria o México “à porra da crítica – não quer matar ao homem, africano, Belano parece, enfim, realizar
modernidade”. Trata-se, enfim, da atração mas a sua atividade. Enfrentam-se numa o projeto artístico (ou apenas social) do
do poeta moderno por aquilo que já não praia, enfrentam-se estupidamente: Jaume Realismo Visceral. Rimbaud é o modelo,
Planells, padrinho de Echavarne, depõe que
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embora não seja fielmente seguido: o francês o anedotário – como se vê pelo desprezo um desinteressante e enfadonho traficante,
deixa a obra, intransponível; Belano se que um Octavio Paz ficcional, relembrado poeta por conveniência, revolucionário já
esfuma completamente. no depoimento de Clara Cabeza, sua ex- em declínio.
secretária, possui por um suposto plano dos
Ulisses Lima, àquela altura, já desaparecera. poetas de vanguarda em sequestrá-lo; como Roberto Bolaño se revela um artista
Perdido em meio à revolução na Nicarágua, se vê pela não existência do nome Ulisses impiedoso – seu olhar voltado à juventude
faz lembrar, a Jacinto Requena, o destino Lima na lista de jovens autores mexicanos e aos seus sonhos contém pouca nostalgia e
de outros poetas da Europa como Bierce consultada por Clara a pedido do seu chefe; pouca bondade. A própria situação ambígua
e Puchkin. Anos depois, há relatos de que como se vê, afinal, pelo encontro infrutífero dos líderes da vanguarda já demonstra
Ulisses fora visto, de volta à Cidade do entre Ulisses e Octavio no parque Hundido. essa atitude: acreditam realmente numa
México, como bem-comportado pai de revolução estética ou apenas simulam a
família, homem distanciado da criação Paz se deixa levar até o local como que condição de poetas para ter mais acesso e
poética e, talvez, do tráfico de drogas. A guiado por uma espécie de intuição – logo crédito num grande mercado consumidor
maturidade afasta-os da poesia, tornando-os ele, o poeta tido, pelos visceralistas, como de drogas, o mercado composto por
personagens já vazios, interessantes apenas cerebral e ascético – e lá se mete a andar em artistas? Existem as duas versões e tomar
na medida em que resgatam o passado – círculo, no sentido contrário ao de Ulisses. partido de uma delas caberá sempre ao
daí que o estudo de seus poemas realiza-se De início, não trocam olhares, mas depois leitor, que dificilmente se sentirá seguro
no nível de mera curiosidade histórica e se observam atentamente. No dia seguinte, o bastante para encerrar sua leitura – até
cronológica. São poetas que não têm obra. repetem a situação e o silêncio continua porque, embora Bolaño seja um satírico
Sua biografia é sua obra – entenda-se, aqui, – os lábios de ambos se movem, mas não irremediável, não se pode ignorar a ternura
uma categórica inversão da mais célebre se comunicam. Apenas no terceiro dia se evidente de certas passagens, como o já
afirmação de Paz, segundo a qual “Os poetas apresentam e conversam. Clara, em seu referido depoimento de Auxilio Lacouture.
não têm biografia. Sua obra é sua biografia”. depoimento, afirma que se afastou do banco Trata-se, sem dúvida, de uma subversão (já
São poetas que não criam, apenas servem de onde os poetas conversavam e nada sabe a tradicional na literatura latino-americana)
motivo para criar; poetas que, ao contrário respeito do tema – apenas lhe pareceu “uma do gênero policial, no qual a estrutura de Os
do que pensam, não agem, apenas servem conversa distendida, serena e tolerante”. detetives selvagens se baseia abertamente. O
de base para a ação de terceiros. Riscados Ao que parece, não tinham muito a dizer discurso lógico da investigação confunde-
da história literária do México e da América um para o outro – eram espécies distintas se num estranho limite (que o romance
Latina, os realistas viscerais transformam-se de pessoas, não compartilhavam assuntos e trata de acusar como artificial) entre prosa
em nota de rodapé e suas façanhas integram paixões: Ulisses parece se confirmar como e poesia, razão e delírio – seguindo, por

190
certo, o destino desagregador do romance quem escreve, sempre recaem sobre quem lê
moderno. Enquanto Belano sai da poesia – trata-se, a bem dizer, de uma alteração do
à prosa, Os detetives selvagens se desenvolve estado do autor que, se antes era cúmplice
inversamente. Não será gratuita uma de um sistema artístico artificializado, torna-
lembrança de “Ambiguidade do romance”, se agora cúmplice do leitor, que também
ensaio revelador das ideias de Paz: “Desde é envenenado pela dúvida. Tamanha
os princípios deste século o romance negatividade não se fundamenta em
tende a ser poema de novo”. Tendência niilismo obtuso, mas na crença fundamental
que se acentua, sobretudo na literatura da de que, mais do que no vazio absoluto, a
América Latina (de Macedónio Fernández, criação se fertiliza em meio aos restos.
de Cortázar, de Guimarães Rosa, de Juan
Rulfo), através da confluência de gêneros,
da criação de um centro diverso para a
arte romanesca – centro no qual a crítica
não corrói apenas a sociedade que a torna
possível, mas o próprio instrumento que a
cria. Trata-se, sem dúvida, de uma atitude
corajosa, mas, sobretudo, autodestrutiva: é o
artista quem toma o veneno, consciente de
sua cumplicidade.

Bolaño, ao longo das 600 páginas de


Os detetives selvagens, envenena-se fiel
e cotidianamente para, num último
momento, recorrer à anedota e à
inconclusão – seu fim é um poema visual,
mas também uma brincadeira infantil:
signo que não se sabe prenhe ou oco de
significado, mas obviamente repleto de
intenções. Intenções que, embora partam de

191
John Zerzan
Futuro primitivo134 paleontologia, etnologia, paleobotânica, e “Neanderthal” para nos lembrar onde
etno-antropologia etc. etc. – refletem a estaríamos sem a religião, o Estado e os
A divisão do trabalho, que tanto contribuiu restrição, o efeito mutilador que a civilização trabalhos forçados.
para nos submergir na crise global de personificou desde o seu começo.
nosso tempo, atua cotidianamente para Porém, esta visão ideológica de nosso
impedir-nos de compreender a origem A literatura especializada pode, apesar de passado foi radicalmente modificada no
do horror atual. Mary Lecron Foster e tudo, proporcionar uma ideia altamente curso das últimas décadas graças ao trabalho
outros acadêmicos afirmam, com muito apreciável, com a condição de abordá-la de estudiosos como Richard Lee e Marshall
eufemismo, que, hoje em dia, a antropologia com método e consciência apropriada, com Sahlins. Tem-se assistido a uma mudança
está “ameaçada por uma fragmentação a condição de deter a decisão de ultrapassar quase completa na ortodoxia antropológica
grave e destrutiva”. As vozes de Shanks e seus limites. De fato as deficiências no de importantes consequências. Admite-se a
Tilley fazem eco com um problema similar pensamento ortodoxo correspondem às partir de agora que antes da domesticação,
“o objetivo da arqueologia não é somente exigências de uma sociedade cada vez antes da invenção da agricultura, a
interpretar o passado, senão transformar mais frustrante. A insatisfação com a existência humana passava essencialmente
a maneira em como é interpretado em vida contemporânea se transforma em no ócio, que descansava na intimidade com
benefício da reconstrução da sociedade desconfiança frente às mentiras oficiais que a natureza, sobre uma sabedoria sensual,
atual”. Evidentemente, as ciências sociais, servem para justificar estas condições de fonte de igualdade entre sexos e de boa
por si mesmas, limitam a perspectiva existência: esta desconfiança permite assim saúde corporal. Isso foi nossa natureza
e a profundidade da visão necessária mesmo esboçar um quadro mais fiel do humana, por durante aproximadamente
que permitiriam uma reconstrução desenvolvimento da humanidade. Explicou- dois milhões de anos, antes de nossa
como esta. Em termos das origens e do se exaustivamente a renúncia e a submissão submissão aos sacerdotes, reis e patrões.
desenvolvimento da humanidade, o leque que caracterizam a vida moderna pela
de disciplinas e subdisciplinas cada dia mais “natureza humana”. Assim mesmo, o limite Recentemente se fez outra revelação
ramificado – antropologia, arqueologia, de nossa existência pré-civilizada, feita de surpreendente, ligada à primeira e dando-lhe
134 Esta obra foi digitalizada, formatada, revisada e liberta das privações, de brutalidade e de ignorância outra amplitude, que mostra quem fomos
excludentes convenções mercantis pelo Coletivo Sabotagem. acaba por fazer aparecer a autoridade como e o que nós poderíamos ser. O principal
Ela não possui direitos autorais pode e deve ser reproduzida
no todo ou em parte, além de ser liberada a sua distribuição, um benefício que nos salva da selvageria. motivo de rejeição às novas descrições da
preservando seu conteúdo e o nome do autor. (www.sabota- Ainda se invoca ao “homem das cavernas” vida dos caçadores-recolhedores consiste,
gem.revolt.org)

192
em considerar este modo de vida com humanidade. Robert Ardrey pinta um de tamanho e peso entre machos e fêmeas.
condescência, como o máximo a que podia quadro patriarcal e sanguinário da O dimorfismo sexual era inicialmente
chegar a espécie nos primeiros estágios de pré-história, como fizeram num grau muito pronunciado, incluindo tais
sua evolução. Assim, os que ainda propagam ligeiramente menor, Desmond Morris e características como caninos proeminentes
esta visão consideram que teria um longo Lionel Tiger. Na mesma direção, Sigmund ou “dentes de combate” entre os machos e
período de graça e de existência pacífica, Freud e Konrad Lorenz descreveram a caninos muito menores entre as fêmeas. O
mas dizem que os humanos simplesmente depravação inata da espécie, contribuindo, desaparecimento dos grandes caninos entre
não tinham a capacidade mental para mudar deste modo, com um tijolo na construção os machos aponta a tese segundo a qual a
sua simplicidade por complexidade social e do edifício da aceitação da hierarquia e do fêmea da espécie operou uma seleção a favor
realização tecnológica. poder no presente. dos machos sociáveis, que compartilhavam
mais. A maior parte dos símios atuais, na
Em um golpe fundamental à civilização, Felizmente, um panorama muito ausência da capacidade da fêmea de escolha,
agora aprendemos que não só foi a vida das mais plausível acabou por emergir, têm os caninos significantemente mais
pessoas uma vez, e para tão muito tempo, correspondendo a um conhecimento longos e grossos entre os machos que entre
um estado que não sabia a alienação ou geral da vida paleolítica. O compartilhar as fêmeas.
a dominação, mas como as investigações e repartir os alimentos foram finalmente
desde os anos 1980 por arqueólogos como considerados como um aspecto importante A divisão sexual do trabalho é outra questão
John Fowlett, Thomas Wynn, e outros, na vida das primeiras sociedades humanas. fundamental nos princípios da humanidade.
mostraram que aqueles seres humanos Jane Goodall e Richard Leakey, entre outros, É aceita quase sem discussão e inclusive
possuiam uma inteligência pelo menos igual chegaram à conclusão que isso foi um dos expressada pela ordem mesmo da expressão
à nossa, contemporânea. A antiga tese da elementos chave no acesso ao estágio de caçadores recolhedores. Atualmente se
“ignorância” foi apagada de uma vez, e nós homo ao menos há dois milhões de anos. admite que a coleta de alimentos vegetais,
contemplamos nossas origens com uma luz Esta teoria avançada nos inícios dos anos que durante muito tempo se considerou
nova. 1970 por Linton, Zihiman, Tanner e Isaac, um domínio exclusivo das mulheres e
da tese de cooperação, acabou por ser a de importância secundária frente à caça,
Com a finalidade de colocar a questão de dominante. Um dos elementos convincentes supervalorizada como atividade masculina,
nossa capacidade mental em seu contexto, a favor da tese da cooperação, contra a constituía a principal fonte de alimentos.
é útil rever as diversas interpretações da violência generalizada e da dominação Sendo assim, as mulheres não dependiam,
(com frequência carregadas de ideologia) dos machos, é a da diminuição, já nos de maneira significativa, dos homens para se
das origens e do desenvolvimento da primeiros estágios da evolução, da diferença alimentar, parece provável que, ao invés de

193
toda divisão do trabalho, a flexibilidade e a Fora, no Quênia, de 1,5 milhões de anos, at Tooralba? (1989), Lewis Binford duvida
partilha eram regra. Como mostra Zihiman, mostra que eles eram usados para cortar que as primeiras caçadas significativas
uma flexibilidade geral de comportamento vegetais. O pouco de carne na dieta, no teriam aparecido antes de 200.000 anos.
teria sido a característica principal dos início do paleolítico, era mais provavelmente Adrienne Zihiman, chegou à conclusão
primeiros tempos da espécie humana. Joan encontrada do que particularmente caçada. de que “a caçada apareceu relativamente
Gero demonstrou que os utensílios de pedra tarde na evolução” e “não existia antes
podiam ter sido feitos tanto por homens A condição “natural” da espécie é dos últimos 100.000 anos”. E há muitos
quanto por mulheres, e Poirier nos lembra evidentemente a de uma dieta formada em outros pesquisadores (como Levi-Strauss
que “nenhuma prova arqueológica apoia a grande parte por alimentos vegetais ricos em ou Trinkhaus) que não veem evidências de
teoria segundo a qual os primeiros humanos fibra, ao contrário da alimentação moderna caçadas consideráveis de grandes mamíferos
praticaram a divisão sexual do trabalho”. de alto conteúdo em matérias gordurosas antes de uma data ainda mais próxima, ao
Não parece que a procura de alimento e proteínas animais com sua sequela de final do paleolítico superior, justo antes da
tenha obedecido a uma divisão do trabalho desordens crônicas. Nossos primeiros aparição da agricultura.
sistemática, e é muito provável que a antepassados utilizavam “seu conhecimento
especialização por sexo se fizesse muito tarde detalhado do meio, numa espécie de Os mais antigos artefatos conhecidos são
no curso da evolução humana. cartografia cognitiva” (Zihiman 1981) na as ferramentas de pedra talhada de Hadar,
atividade de coletar as plantas que serviam à na África Oriental. Graças aos métodos de
Assim, se a primeira adaptação de nossa sua subsistência, as evidências arqueológicas datação precisos, utilizados hoje em dia,
espécie centrou-se na coleta, quando da existência de caça não aparecem senão estima-se que poderiam ter 3,1 milhões
apareceu a caça? Binford sustenta que muito lentamente ao longo do tempo. de anos. Talvez o principal motivo para
nenhum sinal de práticas carnívoras indica atribuir estes objetos à mão do homem é
o uso de produtos animais (i.e. evidência Entretanto, muitos elementos vêm que se tratam de ferramentas fabricadas
de práticas de sacrifício) até a aparição, contradizer a tese de que a caça estava utilizando outra ferramenta, característica
relativamente recente, de humanos muito estendida durante os tempos pré- encontrada só em humanos até onde nós
anatomicamente modernos. O exame ao históricos. Por exemplo, as pilhas de sabemos. O homo habilis, ou “homem
microscópio eletrônico de fósseis de dentes ossadas nas quais antes se via uma prova pratico” designa o que se considera a
encontrados na África Oriental (em 1984) de matanças em massa de mamíferos, ao primeira espécie humana conhecida, este
indica uma dieta essencialmente composta examiná-las, entretanto, resultaram em nome foi associado às primeiras ferramentas
por frutos, igualmente um exame similar de vestígios de inundações ou de refúgio de de pedra. Instrumentos básicos de madeira
utensílios de pedra provenientes de Koobi animais. Em Were There Elephant Hunters e de ossos, embora perecíveis e assim

194
escassamente representados no registro anos, no momento em que os humanos Recentemente, contudo, a mesma
arqueológico, também foram usados pelos saíam dos bosques para espalhar-se pelas classificação como espécie constitui
homo habilis como parte “de uma adaptação savanas africanas, mais secas e mais abertas. uma hipótese duvidosa. A atenção foi
notavelmente simples e eficaz” na África e a Apesar de o volume do cérebro não chamada pelo fato de que amostras de
Ásia. corresponder à capacidade intelectual, o fósseis provenientes de diversas espécies
volume craniano do homo erectus é neste de homo “apresentam traços morfológicos
Neste estágio, nossos antepassados tinham ponto similar ao dos homens modernos intermediários”, coisa que contradiz,
um cérebro e um corpo menor que o nosso, do mesmo gênero, e “deve ter sido capaz por obsoleta, a divisão arbitrária da
mas Poitier faz notar que “sua anatomia pós- de muitos dos mesmos comportamentos”. humanidade em categorias sucessivas e
craniana era muito parecida à dos humanos Como diz Johanson e Edey: “se formos separadas. Fagan, por exemplo, ensina-nos
modernos”, e Holloway afirma que os comparar homo erectus dotado de um que “é muito difícil traçar uma fronteira
estudos das marcas endocranianas deste cérebro maior que o de homo sapiens – sem taxonômica clara entre homo erectus e homo
período indicam uma organização cerebral considerar suas outras particularidades sapiens arcaico de um lado e homo sapiens
fundamentalmente moderna. Igualmente, – os seus nomes de espécie teriam de ser arcaico e anatomicamente moderno de
certas ferramentas de mais de dois milhões invertidos”. O homo neanderthalus, que outro”. Igualmente, Foley faz notar que “as
de anos provam, pela maneira em que nos teria precedido diretamente, possuía distinções anatômicas entre homo erectus e
estão talhadas nas pedras, o predomínio um cérebro ligeiramente maior que o homo sapiens não são grandes”. Jelinek de
dos destros. A tendência a utilizar nosso. Em contrapartida o homem de um modo plano declara que “não ha razão,
prioritariamente uma mão, traduz-se, entre neanderthal é muito difamado como uma anatômica ou cultural” para separar erectus
os modernos, em caracteres tipicamente criatura primitiva, bestial – de acordo com e sapiens em duas espécies, e conclui que
humanos, estas são a lateralização a prevalência ideologia de Hobbesiana135 – só os humanos desde o paleolítico médio,
pronunciada do cérebro e a separação apesar da inteligência manifesta bem como pelo menos, “podem considerar-se como
marcada dos dois hemisférios cerebrais. enorme força física. homo sapiens”. O formidável retrocesso
Klein conclui que “as capacidades cognitivas no passado na datação da aparição da
e de comunicação humanas básicas são inteligência, da qual falaremos mais adiante,
135 Provavelmente uma referencia a teoria de Thomas Hob-
quase certamente contidas”. bes (1588-1679), que postulava que o homem era bestial tem-se de ver desde a confusão atual sobre
por natureza. Sua frase mais famosa – “o homem e o lobo do o tema das espécies, à medida que o modelo
homem” – exprime o que Hobbes acreditava ser a natureza
Segundo a ciência oficial, o homo erectus é humana: uma guerra de todos contra todos. Na obra O Le- evolucionista praticamente dominante chega
outro grande antecessor do homo sapiens. viatã, Hobbes argumenta que, para viver em paz, os homens a seus limites.
tem de fazer um pacto social, abandonando a liberdade
Teria aparecido por volta 1,75 milhões de natural e delegando todo o poder ao Estado Absolutista – o
Leviatã. (n.t.)

195
Mas a controvérsia sobre a classificação das sinais de corte sobre ossadas, os homens espécie. Thomas Wynn estima que a
espécies não nos interessa mais do que em se serviam dos tendões e peles arrancadas fabricação do machado acheliano exige “um
relação com o conhecimento da maneira dos cadáveres de animais para confeccionar grau de inteligência característico de adultos
de viver de nossos antepassados. Apesar cordas, sacos e tapetes. Outros elementos completamente modernos”. Gowlett, assim
do caráter mínimo que se pode esperar fazem pensar que as peles serviam para como Wynn, examina o “pensamento
encontrar depois de milhares de anos, cobrir as paredes das cavernas e de assentos operacional” necessário no uso do martelo,
podemos vislumbrar um pouco a textura na gruta, e camas de alga marinha. da partilha de força ao escolher o ângulo
daquela vida e dos aspectos, com frequência de batimento apropriado, segundo uma
elegantes, que precederam à divisão do O uso do fogo pela primeira vez tem sequência ordenada e com a flexibilidade
trabalho. O “kit de ferramentas” da região quase dois milhões de anos e poderia necessária para modificar o processo. Ele
da Garganta de Olduvaï, famoso feito dos ter aparecido antes não fossem pelas afirma que eram necessárias capacidades
Leakeys, contém “ao menos seis tipos de condições tropicais reinantes na África de manipulação, de concentração, de
instrumentos claramente identificáveis nos inícios da humanidade. O domínio visualização da forma em três dimensões,
que remontam a 1,7 milhões de anos do fogo permitia incendiar as grutas para e de planejamento, e que estas exigências
aproximadamente”. É ali onde aparece o eliminar os insetos e esquentar o solo – “eram comuns entre os primeiros humanos,
machado acheliano136 com sua grande beleza elementos de conforto que aparecem cedo a pelo menos dois milhões de anos, e isto é
simétrica, que foi utilizado durante um no paleolítico. Assim como John Gowlet uma certeza, não uma hipótese”.
milhão de anos. Com sua forma de lágrima, notou, alguns arqueólogos consideram
e detentor de um equilíbrio notável, exala que todos os humanos anteriores ao homo Durante o vasto período do paleolítico,
graça e facilidade de uso, de uma era sapiens – os quais a aparição oficial se houve notavelmente poucas modificações
anterior à simbolização. Isaac observou remonta ao menos 300.000 anos – são na tecnologia. Segundo Gerhard Kraus,
que “as necessidades de ferramentas afiadas consideravelmente mais primitivos do a inovação, “ao longo de dois milhões de
podem ser satisfeitas pelas diversas formas que nós, “homens completos”. Mas a anos e meio, medida pela evolução do
geradas a partir do modelo ‘Oldowan’ de par das provas citadas anteriormente, da instrumento de pedra, é praticamente
pedra talhada”; e se pergunta como se pôde existência de um cérebro anatomicamente nula”. Visto à luz do que agora sabemos da
pensar que “quanto mais complexo mais “moderno” entre os primeiros humanos, inteligência pré-histórica, esta ‘estagnação’
adaptado”. Nesta época longínqua, segundo esta inferioridade se vê de novo contradita é especialmente desanimadora para
136 A Tradição Acheulean é um Velho Mundo Mais Baixo por trabalhos recentes, que demonstram muitos especialistas das ciências sociais.
da cultura Paleolítica, datada de há 1,4 milhões de anos a há a presença de uma inteligência humana Para Wymer, “é difícil compreender um
100.000 anos. Caracterizada por uma assembleia de instrumen-
tos de pedra dominados por machados, a tradição Acheulean completa quase desde o nascimento da desenvolvimento de uma tal lentidão”. Ao
originou-se na África, assim como na Garganta de Olduvai.

196
contrário, a mim parece muito plausível nenhuma outra forma de contabilidade ou a partir da consciência de oposições para
que a inteligência, a consciência da riqueza arte tinham tido um lugar na vida humana sua resolução”. Então, de onde vem esta
que proporciona a existência do caçador- pré-histórica – apesar de uma inteligência ausência de ordem, dos conflitos ou das
coletor137, seja a razão da marcada ausência capaz de inventá-los. “oposições”? A literatura sobre o paleolítico
de “progresso”. Parece evidente que a não contém quase nada que lida com
espécie tem, deliberadamente, recusado Eu gostaria de manifestar, de passagem, meu esta pergunta essencial, entre milhares de
a divisão do trabalho, a domesticação e a acordo com Goldschmidt quando escreve monografias com características específicas.
cultura simbólica até uma data recente. que “a dimensão oculta da construção Uma hipótese razoável, na minha opinião,
O pensamento contemporâneo, em sua do mundo simbólico é o tempo”. E é que a divisão do trabalho, despercebido
encarnação pós-moderna, gostaria de excluir como afirma Norman O. Brown, “a vida por causa do seu passo glacialmente lento, e
a realidade numa divisão entre natureza e não reprimida não se situa num tempo não suficientemente entendido por causa da
cultura; entretanto, dada a capacidade de histórico”, a qual considero um lembrete sua novidade, começou a causar pequenas
juízo dos seres humanos antes da chegada ao fato de que o tempo como materialidade fissuras na comunidade humana e práticas
da civilização, talvez seja mais exato dizer não é inerente à realidade, mas uma insalubres com relação à natureza. No final
que, basicamente, durante um tempo muito imposição cultural, talvez o primeiro fato do paleolítico superior, “há 15.000 anos,
longo escolheu-se a natureza em detrimento cultural imposto à realidade. É à medida começa a se observar no Oriente Médio
da cultura. É igualmente popular ver todo que evolui esta dimensão elementar de uma coleta especializada de plantas, e uma
gesto ou objeto humano como simbólico, progressos de cultura simbólica que se caça também mais especializada”, observou
uma posição que é, em geral, a parte estabelece, aos mesmos passos, a alienação Gowlett. A aparição repentina de atividades
negativa de uma natureza contra a distinção do natural. simbólicas (por exemplo, rituais e artes)
de cultura. Mas é da cultura como a no paleolítico superior é inegável – para os
manipulação de formas simbólicas básicas Cohen dissertou que os símbolos são arqueólogos uma das “grandes surpresas”
de que tratamos aqui. Parece-me igualmente “indispensáveis para o desenvolvimento da pré-história, dada sua ausência no
claro que nem o tempo reificado, nem e a manutenção da ordem social”. Isto paleolítico médio. Mas os efeitos da divisão
a linguagem escrita, com certeza, nem implica – como indicam mais precisamente do trabalho e a especialização fizeram sentir
provavelmente a linguagem falada (ao ainda muitas provas tangíveis – que antes sua presença enquanto ruptura da totalidade
menos durante boa parte do período), nem do surgimento dos símbolos, não havia da ordem natural – uma ruptura que é
137 Um modo de vida comum a toda a humanidade até há condição de desordem exigindo-os. Em necessária explicar. O que é surpreendente
cerca de 10.000 anos, no tempo em que os seres humanos linha similar, Levi-Strauss escreveu que é que essa transição para a civilização
ainda não domesticavam os animais nem semeavam cereais.
Uma época em que dependíamos diretamente da natureza para o “pensamento mítico progride sempre possa ainda ser vista como benigna. Foster
sobreviver.

197
parece fazer-lhe apologia quando conclui natureza, em direção a uma vida orientada cultural. Foi como um meio de consolidar
que “o mundo simbólico se revelou como para a dominação e a domesticação a coesão social que o ritual foi essencial; os
extraordinariamente adaptativo. Senão, que seguiram à inauguração da cultura rituais totêmicos, por exemplo, reforçam a
como homo sapiens pôde chegar a ser simbólica. Não existe por outra parte, unidade do clã.
materialmente o senhor do mundo?” Ele nenhuma prova definitiva que permita crer
está exatamente correto, como se pode que o pensamento humano é, pelo fato Começa-se a analisar o papel da
ver em “a manipulação dos símbolos, de pensar com palavras, o mais evoluído domesticação, ou a domesticação da
a essência da cultura”, mas ele parece – por pouco que se tenha a honestidade natureza, na ordenação cultural da selvageria
esquecer que esta adaptação conseguiu de apreciar o grau de conclusão de um através do ritual. Evidentemente a mulher
iniciar a separação do homem e a natureza, pensamento. Existem numerosos casos, como categoria cultural, vista como um ser
bem como a destruição progressiva desta, de enfermos que tendo perdido, depois de selvagem ou perigoso, data deste período.
até a terrível amplitude atual destes dois um acidente ou de outra degradação do As porcelanas rituais de “Vênus” datam
fenômenos. Parece razoável afirmar que o cérebro, a fala, incluindo a capacidade de 25.000 anos, e parecem ser um exemplo
mundo simbólico nasceu com a formulação falar silenciosamente com si próprio, são das primeiras aproximações simbólicas da
da linguagem, a qual pareceu de uma de fato capazes de pensamentos coerentes. mulher com finalidades de representação
maneira ou outra a partir da “matriz de Estes dados nos sugerem de que a “aptidão e de dominação. Mais concretamente
comunicação não verbal estendida” (Tanner, intelectual humana é de um empuxo ainda, a submissão da natureza selvagem
Zihiman) e do contato olho no olho. Não extraordinário, inclusive em ausência de se manifesta nesta época nas primeiras
há consenso sobre o período de aparição linguagem” (Donald). caças sistemáticas dos grandes mamíferos;
da linguagem, mas não existe nenhuma atividade da qual o ritual é parte integrante.
prova de sua existência antes da “explosão” Em termos de simbolização na ação, Rituais como a prática do ritual xamânico
cultural no final do paleolítico superior. A Goldschmidt parece estar certo quando podem ser considerados como uma
linguagem parece ter operado como um estima que “a invenção do ritual no regressão em relação com o estágio no qual
“agente inibidor”, como meio de submeter a paleolítico superior poderia ser o elemento todos compartilhavam uma consciência que
vida a um “controle maior” (Mumford), de estrutural que deu um maior impulso à hoje classificaríamos como extrassensorial.
pôr entraves às ondas de sensações a que o expansão da cultura”. O ritual desempenhou Quando só os especialistas podem acessar
indivíduo pré-moderno era receptivo. Visto um papel central no que Hodder uma percepção superior, que antes era de
assim, se teria produzido verdadeiramente denominou “o desdobramento implacável desfrute comum, acentuam-se e facilitam
um afastamento, a partir desta época, da de estruturas simbólicas e sociais” que novas renuncias em favor da divisão do
vida de abertura e de comunicação com a acompanharam a chegada da mediação trabalho. A volta à felicidade pelo ritual

198
é um tema mítico quase universal com progressivamente, na coordenação e na exercia eficazmente, e de fato tanto mais
a promessa da dissolução do tempo conduta da comunidade. Similarmente, predominante e adaptativa.
mensurável na eternidade, entre outras Pfeiffer viu nas célebres pinturas rupestres
maravilhas. Este tema do ritual aponta para europeias do paleolítico superior o primeiro A agricultura possibilita o nascimento
um vazio que é exigido falsamente para método de iniciar os jovens nos sistemas desmedido da divisão do trabalho, cria
senti-lo (o dedo na chaga que pretende sociais, agora, complexos. A educação foi os fundamentos materiais da hierarquia
curar), como faz a cultura simbólica em então necessária para a manutenção da social e inicia a destruição ambiental. Os
geral. disciplina e da ordem. E a arte poderia ter sacerdotes, os reis e o trabalho obrigatório,
contribuído no controle da natureza, por a desigualdade sexual, as guerras são
O ritual, como meio de organizar as exemplo, facilitando o desenvolvimento algumas das consequências específicas
emoções, é um método de orientação e de uma noção primitiva de território. A imediatas. Enquanto os humanos do
de construção cultural que governa a arte aparição da cultura simbólica, transformada paleolítico tinham um regime alimentício
(faceta da expressão ritual). Para Grans por sua necessidade de manipular e de extraordinariamente variado, alimentavam-
“não há dúvida que as diversas formas dominar, abriu o caminho à domesticação se de milhares de plantas diferentes, com a
da arte secular derivam do ritual”. Nós da natureza. Depois de dois milhões agricultura reduziu notavelmente essas suas
podemos detectar o começo de um mal- de anos de vida humana, respeitando fontes de alimentação variada.
estar: o sentimento de que uma antiga a natureza, em equilíbrio com outras
autenticidade direta está a ponto de espécies, a agricultura modificou toda nossa Dada a inteligência e o vasto saber prático
desaparecer. La Barre está correto, creio, existência e nossa maneira de nos adaptar. da humanidade durante a Idade da Pedra,
ao afirmar que “a arte, como a religião, Nunca antes uma espécie tinha conhecido pode-se fazer a pergunta “por que a
nasce do desejo insatisfeito”. Ao princípio uma mudança radical tão profunda e agricultura não apareceu um milhão ao
mais abstrato como a linguagem, depois rápida (Pfeiffer). A autodomesticação pela invés de apenas 8.000 anos a.c.?” Forneci
de uma maneira mais orientada como linguagem, pelo ritual e pela arte inspirou uma breve resposta ao formular a hipótese
ritual e a arte, a cultura entra em cena a dominação de animais e plantas que de uma lenta e insidiosa progressão da
para responder artificialmente às angústias lhe seguem. Aparecida apenas há 10.000 alienação, fundamentada sobre a divisão do
espirituais e/ou sociais. O ritual e a magia anos, a agricultura triunfou rapidamente, trabalho e a simbolização, mas ao considerar
dominaram, provavelmente, as origens pois a dominação, por si mesma, gera e suas desastrosas consequências, ainda é um
da arte (no paleolítico superior) e sem exige continuamente sua manutenção. fenômeno desconcertante. Assim, como diz
dúvida assumiram um papel essencial, Uma vez difundida, a vontade de produzir Binford: “a questão não é argumentar por
enquanto a divisão do trabalho se impunha foi tanto mais produtiva quanto mais se que a agricultura se desenvolveu em todos

199
os lugares, mas por que se desenvolveu Conformismo, repetição e regularidade lugares isolados e não reivindicados pela
de forma tão absoluta?” O fim do modo são as claves da civilização triunfante, agricultura e englobados pela conurbação.
de vida dos caçadores-coletores implicou substituindo a espontaneidade, o Apesar disto, os escassos recolhedores-
um declínio do tamanho, da estatura e encantamento e a descoberta característicos caçadores que conseguem ainda escapar à
da robustez do esqueleto humano e a da sociedade humana pré-agrícola que pressão enorme da civilização, estão na mira
introdução da cárie dental, as carências sobreviveu desta maneira durante muito para transformarem-se em escravos (isto é:
alimentares e as doenças infecciosas. “Em tempo. Clark fala da “amplitude do tempo camponeses, sujeitos políticos, assalariados),
conjunto, a diminuição da qualidade – e de lazer” dos caçadores-coletores, e conclui estão todos eles influenciados pelo contato
seguramente da duração – da vida humana”, que “foi isso e o modo de vida agradável que de povos estrangeiros.
concluem Cohen e Aremelagos. Outra o acompanhava, e não as penúrias e o longo
consequência foi a invenção do número, trabalho cotidiano, que explicam por que a Duffy nota, que os caçadores-coletores
inútil antes da existência da propriedade vida social foi tão extática”. Um dos mitos que estudou, os pigmeus Mbuti da África
de colheitas, dos animais, e da terra, que é mais vivos e mais antigos é a existência Central138, foram aculturados pelos
uma das características da agricultura. O de uma Idade de Ouro, caracterizada pela agricultores e cidadãos dos arredores
desenvolvimento da numeração fez crescer a paz e a inocência, antes que, alguma coisa, durante centenas de anos e, em menor
necessidade de tratar a natureza como uma destruísse aquele mundo idílico e nos medida por gerações de contato com a
coisa a se dominar. A escritura era também reduzisse à miséria e o sofrimento. O Éden, administração colonial e os missionários. E
necessária para a domesticação, para as ou qualquer que seja o nome que se lhe parece que um impulso em direção a vida
primeiras formas de transação comercial dê, era o mundo dos nossos antepassados autêntica que vem do fundo dos séculos
e de administração política (Larsen). primevos, e estes mitos expressam a persiste entre eles: “tente imaginar”, pede-
Levi-Strauss demonstrou de uma maneira nostalgia daqueles que trabalham sem nos Duffy, “um modo de vida onde a terra,
convincente que a função primeira da respirar, na servidão, diante uma vida livre o alojamento e a alimentação são gratuitos,
comunicação escrita foi facilitar a exploração e relativamente muito mais fácil, mas já e onde não há dirigentes, nem patronos,
e a subjugação. As cidades e os impérios, perdida. nem políticos, nem crime organizado, nem
por exemplo, seriam impossíveis sem a 138 A palavra pigmeu é de origem grega e significa “três
côvados”, ou seja, 1,35m, que se referem à altura dos mesmos.
comunicação escrita. Vê-se aqui claramente O rico ambiente habitado pelos humanos Nos grupos menos miscigenados, a altura média das mul-
a junção da lógica da simbolização ao antes da domesticação e da agricultura hoje heres é exatamente 1,35m enquanto dos homens 1,45m. São
conhecidos tradicionalmente como hospitaleiros e alegres. A
crescimento de capital. em dia praticamente desapareceu. Para os primeira menção histórica dos pigmeus, se encontra em docu-
raros caçadores-coletores sobreviventes, mentos egípcios da IV Dinastia, época do Faraó Neferkara,
cerca de 2.500 anos antes de Cristo, quando uma expedição
ficam somente as terras marginais, os de egípcios fez contados com pigmeus Mbuti, descrevendo-os
como “habitantes da selva” e “dançarinos de Deus”.

200
impostos, nem leis. Acrescente a isto os comparada com agricultores sedentários, a densidade e uma paixão incomparavelmente
benefícios de pertencer a uma sociedade sua vida relativamente segura e calma. maior do que nós a vivemos. Diz-se que
onde tudo se reparte, onde não há ricos dias revolucionários valem séculos – até lá,
nem pobres e onde o bem-estar não significa Flood notou que os aborígines da Austrália “olhemos antes e depois”, como Shelley
a acumulação de bens materiais”. Os consideram que “o trabalho requerido para escreveu, “E suspiremos para o que não
Mbuti nunca domesticaram animais nem lavrar e plantar não é compensado pelas é...” Os Mbuti acreditam que “por um
cultivaram vegetais. Entre os membros das possíveis vantagens”. Num plano geral, cumprimento correto do presente, o
bandas não-agrícolas existe uma combinação Tanaka revelou a abundância e equilíbrio passado e o futuro se cuidarão por si sós”.
altamente saudável de pouco trabalho e dos alimentos vegetais em todas as primeiras Os povos primitivos não têm necessidade
abundância material. Bodley descobriu sociedades humanas, bem como em todas de recordações e não dão, geralmente,
que os San (conhecidos com o nome as sociedades caçadoras-coletoras modernas. nenhuma importância aos aniversários nem
de Bosquímanos139) do deserto árido de Da mesma maneira, Festinger fala do à contagem da idade. Quanto ao futuro,
Kalahari, no sul da África, trabalham menos acesso entre os humanos do paleolítico eles têm tão pouco desejo de dominar o
horas do que seus vizinhos agricultores. De “a consideráveis quantidades de comida que ainda não existe quanto de dominar a
fato, em períodos de seca, é aos San a quem sem grande esforço”, acrescentando que natureza. Sua consciência de uma sucessão
se dirigem os agricultores para sobreviver. “os grupos contemporâneos de caçadores- de instantes misturando-se no fluxo e o
Eles passam “surpreendentemente pouco coletores fazem muito bem, mesmo quando refluxo do mundo natural não impede
tempo trabalhando e muito tempo em foram encurralados para hábitats marginais”. a noção das estações, mas não constitui
paz e lazer”, segundo Tanaka, enquanto Como Hole e Flannery resumiram: uma consciência alienada do tempo que os
outros estudiosos (Marshall, Guenther) “nenhum grupo sobre a terra dispõe de mais despoja do presente. Embora os caçadores-
comentaram a vitalidade e liberdade dos San lazer do que os caçadores e coletores, que coletores contemporâneos comam mais
consagram o melhor do tempo ao jogo, à carne do que seus antepassados pré-
conversa e à descontração”. Eles dispõem históricos, os alimentos vegetais constituem
139 Hoje cerca de 85.000 bosquímanos vivem à beira da ex-
tinção cultural. A maior parte reside nas regiões mais distantes de mais tempo livre, acrescenta Binford: ainda o essencial de seu menu nas regiões
do deserto do Kalahari, no Botswana, na Namíbia, na África “que os operários industriais ou agrícolas tropicais e subtropicais. Tanto os San do
do Sul, em Angola e na Zâmbia. São um dos povos aborígines
mais intensamente estudados do planeta. Este interesse é re- modernos, ou inclusive mais do que os Kalahari como os Hazda da África oriental
forçado pela ideia de que o bosquímano é um dos últimos elos professores de arqueologia”. Como disse (onde a caça é mais abundante do que no
que nos une à antiga existência de caçadores-coletores. Faz já
algum tempo que os bosquímanos deixaram de viver como Vaneigem, os não-domesticados sabem que Kalahari) dependem da coleta em 80% de
caçadores-coletores, e passaram a viver em total isolamento. só o presente pode ser total. Isto significa
Uma das vantagens principais dos bosquímanos em relação a
outras sociedades humanas era a sua capacidade para sobreviv- que vivem a vida com uma imediação, uma
erem sem água de superfície.

201
sua alimentação. O ramo Kung!140 dos San a oeste da Tailândia, não se submetem a perder no momento do contato com a
coleta mais de uma centena de vegetais nenhum líder, ignoram toda representação civilização. Na mesma ordem de ideias,
diferentes e não apresentam nenhuma simbólica e não criam nenhum tipo de dispõe-se de grande número de provas não
carência alimentícia. Isto se assemelha animal doméstico. Observou-se igualmente somente do vigor psíquico e emocional dos
à dieta saudável e variada dos coletores entre eles a ausência da agressividade, primitivos senão também de sua excelente
australianos. A dieta geral dos caçadores da violência, e da doença – suas feridas capacidade sensorial. Darwin descreveu que
coletores é melhor do que dos agricultores, curam-se com uma rapidez surpreendente os habitantes do extremo sul da América
a desnutrição é muito rara e seu estado e sua visão e audição são particularmente viviam quase nus em condições de frio
geral de saúde é geralmente superior, com agudas. Diz-se que declinaram desde a extremas, igualmente Peasley observou
menos doenças crônicas. Laure Van der invasão dos europeus em meados do século aborígines australianos que passavam a
Post se maravilhava ante a exuberância xix, mas apresentam ainda traços físicos noite no deserto em temperaturas muito
do riso dos San, uma gargalhada que sai extraordinários – como imunidade natural baixas “sem nenhum tipo de vestimenta”.
“do centro do ventre, um riso que não se à malária, uma pele elástica o suficiente Levi-Straus explicou sua surpresa ao saber
ouve nunca entre civilizados”. Ele julga para excluir marcas de estiramento pós- que uma determinada tribo da América do
que é um sinal de grande vigor e de uma parto e a rugosidade que associamos ao Sul podia ver o planeta Vênus a plena luz
clareza de sentidos que se resiste ainda aos envelhecimento, e uma força “incrível” nos do dia, proeza comparável à dos Dogon do
assaltos da civilização. Truswell e Hansen dentes. Cipriani relata ter visto garotos de norte da África, que consideram Sírius B
poderiam dizer a mesma coisa de outra 10 a 15 anos dobrando 21 pregos entre como a estrela mais importante, uma estrela
pessoa dos San, que tinha sobrevivido a um as mandíbulas. Ele também testemunhou visível só com potentes telescópios. Na
combate, desarmado, contra um leopardo, a prática Andamese de coletar o mel sem mesma via, Boyden descreveu a capacidade
e ainda que ferido, ele havia conseguido nenhuma roupa protetora: “não lhes picam dos Bosquímanos para ver, a olho nu,
ferir também ao animal com as mãos nunca, ao ver-lhes eu tinha a impressão de quatro das luas de Júpiter.
nuas. Os habitantes das ilhas Andaman141, estar frente a algum mistério antigo, perdido
140 A população Kung! fica localizada em áreas isoladas da do mundo civilizado”. DeVries citou uma No livro The Harmless People (1959), E.
Botswana, a Angola, e a Namíbia. Eles tratam-se como o larga variedade de contrastes pelos quais a Marshall explicou como um Bosquímano
Zhun/twasi, “a verdadeira gente”. Os Kung! são caçadores-co-
letores adaptados ao seu ambiente semiárido. Reúnem raízes, saúde superior de caçadores-coletores pode se tinha dirigido com precisão para um
bagas, frutos e sementes que encontram do deserto. Tanto as ser estabelecida, inclusive uma ausência ponto situado numa vasta planície, “sem
mulheres quanto os homens possuem um conhecimento no-
tável de diversos tipos de comida comestível disponível, e das de doenças degenerativas e inabilidades moitas ou árvores para marcar o lugar”,
propriedades medicinais e tóxicas de diferentes espécies. mentais, e parto sem dificuldade ou dor. e tinha assinalado com o dedo uma fibra
141 Os habitantes das Ilhas Andaman são conhecidos como
Negritos. O termo para este povo em língua malaia é “orang Ele também indica que isto começa a se de erva com um filamento de liana, quase
asli”, que significa “povo original”.

202
invisível, que tinha marcado meses antes, da partilha e do igualitarismo o caráter caçadores-coletores, dão um valor supremo
na estação das chuvas, quando era verde. distintivo destes grupos. Lee tem falado ao principio de autonomia individual”,
O tempo se tinha tornado caloroso e ao “da universalidade da distribuição entre equivalente à descoberta de Wilson de uma
voltar a passar por aquele lugar, obteve uma os caçadores-coletores”, igualmente, no “ética de independência” que é comum nas
suculenta raiz com a qual matou sua sede. trabalho de Marshall de 1961, vê-se uma “sociedades abertas em questão”.
Também no deserto do Kalahari, Van der “ética de generosidade e de humanidade”
Post refletia sobre a comunicação entre os demonstrando uma “forte tendência O estimado antropólogo de campo Radin
San/Bosquímanos com a natureza, falando igualitária” entre eles. Tanaka fornece um vai a ponto de dizer que “na sociedade
de um nível de experiência que “se poderia exemplo típico: “a característica do caráter primitiva se deixa campo livre a todas
inclusive chamar mística. Por exemplo, eles mais apreciado é a generosidade, e o mais as formas concebíveis de expressão da
parecem saber o que se experimenta quando desprezado é o egoísmo e mesquinhez”. personalidade. Não se emite nenhum
se é um elefante, um leão, um antílope, Baer enumerou que “o igualitarismo e o juízo moral sobre nenhum aspecto
um lagarto, um rato, um louva-a-deus, sentido democrático, a autonomia pessoal da personalidade humana como tal”.
a árvore de baobá, uma cobra de capelo e a individualização, o sentido protetor” Observando a estrutura social dos Mbuti,
listrada ou a amarílis sonhadora, para citar como as virtudes principais dos não Turnbull se surpreende ao encontrar “um
só alguns dos seres entre os quais eles se civilizados; e Lee fala “de uma aversão vazio aparente, uma ausência de sistema
moveram”. Parece quase banal comentar absoluta pelas distinções hierárquicas entre interno quase anárquico”. Segundo Duffy,
que com frequência se fica surpreso ante os povos caçadores-coletores do mundo “os Mbuti são naturalmente acéfalos
a habilidade dos caçadores-coletores para inteiro”. Leacock e Lee frisam que “toda (sem chefes) – não têm nem lideres nem
seguir uma pista desafiando toda explicação presunção de autoridade” no seio do grupo soberanos, e as decisões que dizem respeito
racional. Rohrlich-Leavitt notou que “os “provoca brigas e raiva entre os Kung!”, ao grupo são tomadas por consenso”. Neste
dados dos que dispomos mostram que como foi observado também entre os tema, como em muitos outros, encontra-se
geralmente os caçadores-coletores não Mbuti, os Hazda e os montanheses de uma diferença enorme entre caçadores-
procuram delimitar um território próprio Montagnais-Naskapi, entre outros. “Até coletores e os campesinos. As tribos de
e bilocal; rejeitam a agressão coletiva e o pai de uma família espalhada não pode agricultores Bantu142 (p. ex., os Saga) que
recusam a competição; repartem livremente dizer a seus filhos e filhas o que têm de fazer. rodeiam os San, estão organizados na
os recursos; apreciam o igualitarismo e a A maioria dos indivíduos parecem atuar aristocracia, hierarquia e trabalho, enquanto
autonomia pessoal no quadro da cooperação sobre suas próprias regras internas”, escreve que os San não conhecem coisa diferente
de grupo e são indulgentes e carinhosos Lee sobre os Kung! de Botswana. Ingold do igualitarismo. A domesticação é o
com as crianças”. Dezenas de estudos fazem julga que “a maior parte das sociedades de 142 Os Bantu ou Bantos são um conjunto de cerca de 400
grupos étnicos diferentes existentes na África.

203
princípio que explica esta distinção drástica. no século xix. A respeito da violência entre uma profusão de estruturas ritualísticas
A dominação no seio de uma sociedade não os caçadores-coletores, Lee descobriu que e de cerimônias destinadas a equilibrar
é possível sem a dominação da natureza. “os Kung! odeiam lutar e acham estúpido os conflitos gerados numa ruptura de
Pelo contrario, nas sociedades de caçadores- quem luta”. Segundo a narração de Duffy, uma sociedade anterior mais unida. Estas
coletores não existe nenhuma hierarquia os Mbuti “consideram toda violência entre cerimônias e estas estruturas têm uma
entre a espécie humana e as outras espécies indivíduos com muito horror e desgosto função política de integração. O ritual é
animais, da mesma forma, as relações que e não as representam nunca em suas uma atividade repetitiva para a qual as
unem os caçadores-coletores entre si não danças e jogos teatrais”. O homicídio e o consequências e resultados que engendra
são hierárquicas. Os não-domesticados suicídio, conclui Bodley, são “realmente tem o efeito de um contrato social; ele (o
tipicamente consideram os animais que excepcionais” entre os tranquilos caçadores- ritual) transmite a mensagem que a prática
caçam como iguais, e esse tipo de relação coletores. A natureza guerreira dos povos simbólica, através da participação do
fundamentalmente igualitária durou até indígenas nativos da América foi forjada grupo e das regras sociais, transforma em
a chegada da domesticação. Quando para dar legitimidade às conquistas controle (Cohen). O ritual nutre a aceitação
a alienação progressiva da natureza se europeias (Kroeber). Os caçadores-coletores da dominação, e, como se demonstra,
converteu em domesticação social patente Comanches conservaram suas maneiras conduz a criação de papéis de comando
(agricultura) não mudaram somente os não-violentas durante séculos antes da e de estruturas políticas centralizadas. O
comportamentos sociais. Os relatos dos invasão europeia, e só foram violentos com monopólio das instituições cerimoniais
marinheiros e exploradores que chegaram o contato com uma civilização dedicada prolonga lentamente a noção de autoridade
às terras “recém-descobertas” asseguram ao roubo (Fried). O desenvolvimento e pode ser, inclusive, a forma original da
que nem os pássaros, nem os mamíferos da cultura simbólica, que culminou autoridade. Entre as tribos de agrícolas da
selvagens tinham medo dos invasores rapidamente com a agricultura, está ligada Nova Guiné, a autoridade e a desigualdade
humanos. Alguns grupos de caçadores- através de rituais à vida social alienada implícita estão fundadas sobre a hierarquia
coletores não caçavam antes de ter contato entre os grupos de caçadores-coletores na participação de rituais de iniciação ou
com o exterior (por exemplo, os Tasadai existentes. Bloch descobriu uma correlação sobre a mediação espiritual de um xamã.
das Filipinas). Turnbull observou os entre os níveis de rituais e hierarquia. Posto Vemos no papel do xamã uma pratica
Mbuti que caçam sem qualquer espírito negativamente, Woodbum estabeleceu uma concreta da contribuição dos rituais para a
agressivo – e até executam essa tarefa com conexão entre a falta de rituais e a ausência dominação na sociedade humana.
uma espécie de desgosto. Hewitt notou de papéis especializados e hierarquia entre
laços de simpatia que unem caçador e caça os Hazda da Tanzânia. O estudo de Turner Radin descreve “a mesma tendência
entre os Bosquímanos Xan que contatou sobre os Ndembu do oeste Africano revela característica”, entre os povos Asiáticos e

204
norte-americanos, de xamãs ou homens foi vencida pela influencia dos xamãs, inclusive aqueles mais concentrados na
da medicina em “organizar e desenvolver entre os índios do sudeste americano. caça, comportam, com efeito, a garantia
a teoria segundo a qual somente eles estão Igualmente, Maquardt sugere que as da autonomia dos dois sexos. Esta garantia
em comunicação com o sobrenatural”. Este estruturas de autoridade dos rituais tiveram é pelo fato de os produtos de subsistência
acesso exclusivo parece dar-lhes um poder um importante papel no encadeamento estarem disponíveis igualmente para as
a custa dos outros. Lommel constata “um e organização da produção agrícola na mulheres e para os homens e, ainda mais,
aumento da potência psíquica do xamã América do Norte. Outro especialista em o sucesso do grupo depende da cooperação
contrabalançado com um enfraquecimento grupos americanos (Ingold) vê uma ligação fundamentada sobre a autonomia. As esferas
da potência dos outros membros do importante entre os papéis dos xamãs na de cada sexo estão frequentemente separadas
grupo”. Esta prática tem implicações muito dominação da natureza e o surgimento da de uma maneira ou outra, mas na medida
evidentes sobre as relações de poder em subordinação da mulher. que a contribuição das mulheres é ao menos
outros domínios da vida, e contrasta com igual a dos homens, a igualdade social
períodos anteriores em que as autoridades Berndt demonstra a importância, entre os sexos é uma “chave das sociedades
religiosas estavam ausentes. entre os aborígines australianos, dos caçadoras-coletoras” (Ehrenberg). Aliás,
rituais de divisão sexual do trabalho numerosos antropólogos constataram que
O candomblé do Brasil tem no comando no desenvolvimento de papéis sexuais nos grupos de caçadores-coletores o status
pais-de-santo que afirmam dominar certos negativos, enquanto Randolph, direto, das mulheres é superior que qualquer outro
espíritos e tratam de vender seus serviços declara: “a atividade ritual é necessária para tipo de sociedade. Para todas as grande
sobrenaturais a clientes (como padres de criar adequadamente tanto homens como decisões, observa Turnbull, entre os Mbuti,
seitas competidoras). mulheres”. Não existe na natureza nenhuma “os homens e as mulheres têm voz igual, a
razão para a divisão de gênero, explica caça e a coleta são igualmente importantes”.
Segundo Muller, os especialistas neste Bendre; “Têm que ser criados pela proibição Ele deixa claro (1981) que existe uma
tipo de “controle mágico da natureza e tabu, têm que ser ‘naturalizados’ pela diferenciação sexual – provavelmente mais
acabam naturalmente por controlar ideologia e ritual”. forte que nos seus antepassados – “mas
também os homens”. De fato, o xamã é sem nenhuma ideia de superioridade ou
frequentemente o individuo mais influente Mas a sociedade de caçadores-coletores, de subordinação”. Os homens realmente
das sociedades pré-agrícolas e está em por sua própria natureza, negam os rituais trabalham mais horas que as mulheres
posição de institucionalizar as possíveis em sua potencialidade de domesticar entre os Kung!, segundo Post e Taylor.
mudanças. Johannessen propõe a tese de as mulheres. A estrutura (ausência de Deve-se acrescentar, a respeito da divisão
que a resistência à inovação da agricultura estrutura?) dos grupos igualitários, do trabalho, comum entre os caçadores-

205
coletores contemporâneos, que esta “os esquimós tradicionais, são (ou eram) misterioso para aqueles que os corpos não
diferenciação de papéis não é de nenhum uma empresa cooperativa administrada por são objetos estrangeiros sobre o qual se atua.
modo universal. Não foi universal quando todo o grupo familiar”. Darwin descobriu
o historiador romano Tácitus escreveu outro aspecto da igualdade sexual: “entre as Os pigmeus do Zaire celebram as primeiras
a propósito dos Fenni da região Báltica, tribos totalmente bárbaras, as mulheres têm menstruações das meninas com uma grande
que “as mulheres sustentam a si próprias mais poder para escolher, negar e seduzir festa de gratidão e alegria. A mulher jovem
caçando, exatamente como os homens e seus amantes, ou, em consequência, mudar experimenta o orgulho e o prazer, e todo
contam seu lote mais feliz do que aqueles de marido, do que se poderia crer”. Os o grupo demonstra sua felicidade. Entre
outros que gemem sobre o trabalho no Bosquímanos Kung! e os Mbuti são bons os aldeãos agricultores, ao contrário, uma
campo”. Ou quando Procopius encontrou, exemplos desta autonomia feminina, como mulher que menstrua é considerada impura
no século vi a.c., que os Serithifinni, da notam Marshall e Thomas. “Aparentemente e perigosa, e a colocam em quarentena por
região onde atualmente fica a Finlândia, as mulheres trocam de marido cada vez que um tabu. Dramper se impressionou pelas
“não trabalham nunca no campo, nem estão insatisfeitas com a relação”, conclui relações livres e igualitárias entre homens
fazem suas mulheres cultivarem, sendo que Begler. Marshall descobriu também que a e mulheres (dos San), com sua suavidade
suas mulheres se juntam aos homens para violação é extraordinariamente rara, quase e respeito mútuo, tipo de relação que
caçar”. As mulheres Tiwi da Ilha Melville143 desconhecida, entre os Kung!. perdura, enquanto os San continuam sendo
caçam normalmente, assim como as caçadores-coletores e nada mais.
mulheres Agta das Filipinas. Na sociedade Um curioso fenômeno intrigante às
mulheres caçadoras-coletoras é sua Duffy (1984) descobriu que cada criança
Mbuti, “há pouca especialização segundo
capacidade de impedir a gravidez com a de um acampamento Mbuti chama todos
sexo. Mesmo a caça é um esforço conjunto”,
ausência de qualquer tipo de contraceptivos os homens de pai e todas mulheres de
nota Turnbull. Cotlow (1971), certifica que
(Silberbauer). Diversas hipóteses têm sido mãe. As crianças dos caçadores coletores
143 A Ilha Melville está na costa da Arnhem Land, Ter- formuladas e rechaçadas, por exemplo, a de se beneficiam de mais atenção, cuidados
ritório do Norte, Austrália. Com 5.786 km² é somente uma
das 100 maiores ilhas no mundo, e a segunda maior ilha que a fertilidade está ligada a quantidade e tempo de dedicação que das famílias
da Austrália, depois da Tasmânia. Também é conhecida na de gordura no corpo. A explicação, que nucleares isoladas pela civilização. Post e
língua Tiwi como Yermalner. Em conjunto, a Ilha Melville e
a Ilha Bathurst são conhecidas como as Ilhas Tiwi. A ilha foi parece plausível, se apoia no fato de que os Taylor descreveram o “um contato quase
encontrada pelo navegador holandês, Abel Tasman, que fez humanos não-domesticados estão mais em permanente” de que se beneficiam as
o mapa do seu litoral em 1644. Os Tiwi ainda chamam este
lugar de Pularumpi (ou Pirlangimpi), que significa “árvores de harmonia com seu ser físico do que nós, crianças bosquímanas com suas mães
tamarindo”, que forneciam as sementes lhes trariam comida. os “civilizados”. Os sentidos e os processos e com outros adultos. Os bebes Kung!
Embora o povo Tiwi de Bathurst e Melville tenha sido influ-
enciado pela Igreja Católica desde a chegada dos missionários físicos não lhes são alienados; o domínio estudados por Ainsworth apresentam uma
em 1911, eles guardaram muitos aspectos da sua cultura tradi- sobre a gravidez é sem dúvida menos precocidade marcada do desenvolvimento
cional, especialmente a sua arte e danças de clã e ofícios.

206
das habilidades cognitivas e motoras. Isso corpo de evidencias à proposição de que sobre a submissão das mulheres: “Nós
foi atribuído tanto à estimulação favorecida as relações entre sexos são extremamente domesticamo-los com a banana”. Simone
por uma liberdade de movimentos sem igualitárias nas sociedades dos caçadores- de Beauvoir reconheceu na equação do
restrições, como a proximidade física entre coletores mais rudimentares. As mulheres arado e do falo um símbolo da autoridade
os pais e as crianças. exercem um papel essencial na agricultura masculina sobre a mulher. Entre os
tradicional, mas não se beneficiam com o jívaros146 da Amazônia, outro grupo de
Draper pôde observar que a “competição status correspondente de sua contribuição, agricultores, as mulheres são as burras de
nos jogos é praticamente ausente entre os ao contrário do que se passava nas carga e a propriedade privada dos homens
Kung!,” assim como Shostack observa que sociedades de caçadores-coletores. Com a (Harner); a “captura de mulheres adultas
“os meninos e meninas Kung! jogam de chegada da agricultura, as mulheres, assim constitui o motivo de muitas guerras”
uma maneira conjunta e compartilham como as plantas e os animais, também para estas tribos das planícies da América
a maior parte dos jogos”. Ela também foram domesticadas. A cultura que se do Sul (Ferguson). O tratamento brutal
descobriu que não se proíbe às crianças os estabeleceu pela instauração da nova ordem e o isolamento das mulheres parecem ser
jogos sexuais experimentais, esta situação exigia a submissão autoritária dos instintos, funções das sociedades agrícolas (Gregor),
é similar à liberdade dos jovens Mbuti da liberdade e a sexualidade. Toda desordem nestes grupos, as mulheres continuam
durante a puberdade de “satisfazerem com tem que ser banida, o que é mais elementar hoje em dia executando a maior parte do
deleite e alegria a atividade sexual pré- e espontâneo precisa estar controlado trabalho (Morgan).
conjugal” (Turnbull). Os Zuni144 “não firmemente na palma da mão. A criatividade
possuem nenhuma noção de pecado”, das mulheres e o seu ser como pessoas
como disse Ruth Benedict na mesma linha sexuais são pressionadas para dar lugar ao
de ideias. “A castidade como estilo de vida 146 Os jívaros fazem parte de um pequeno grupo de cultu-
papel, expressado em todas as religiões ras linguisticamente isoladas. Vivem da caça, da pesca e da
é mal considerada. As relações agradáveis camponesas, da Grande Mãe, isto é, a agricultura. A unidade básica é a família no seu sentido mais
entre os sexos são apenas um aspecto das amplo: vivem agrupados numa casa grande, dividida em duas
reprodutora fértil de homens e de alimentos. partes: uma para os homens e a outra para as mulheres. Os
relações cordiais entre os humanos. Sexo é jívaros são também guerreiros e a sua sociedade igualitária
um incidente em uma vida feliz”. Os homens da tribo dos Munduruku145, funciona sob as rédeas de um chefe só em tempo de guerra.
Mas estas são numerosas: a etnia tem como inimigo heredi-
Coontz e Henderson apontam um crescente agricultores da América do Sul, referem- tário os Achuras, uma tribo vizinha. No entanto, os Achuras
144 O Zuni ou Ashiwi são uma tribo americana indígena, um se às plantas e sexo na mesma frase não são suficientes para saciar os instintos sanguinários dos
dos povos Pueblo, no Rio Zuni, um tributário do Pequeno jívaros e, quando o inimigo escasseia no exterior, matam-se às
Rio de Colorado, no Novo México ocidental. O Zuni tem 145 Os Munduruku são um povo originário do Brasil. Estão vezes entre si pelos mais variados pretextos, só pelo prestígio
uma população de aproximadamente 12.000, com mais de situados em regiões e territórios diferentes nos estados do Pará guerreiro. Este caráter selvagem e do medo que sentem pelos
80% que são americanos indígenas, com 43% da população (sudoeste, calha e afluentes do rio Tapajós, nos municípios seus inimigos, fizeram dos jívaros uma das poucas tribos que
abaixo da linha de pobreza como definido pelos padrões de de Santarém, Itaituba, Jacareacanga), Amazonas (leste, rio sobreviveram à invasão da América do Sul pelos europeus.
rendimento de Estados Unidos. Contudo, muitas das pessoas Canumã, município de Nova Olinda; e próximo a Transa- Foram popularizados pela literatura “comercial” e de aventura,
não consideram o rendimento baixo e o estilo de vida dos mazônica, município de Borba), Mato Grosso (Norte, região pela sua técnica de caça e redução de cabeças. Os jívaros são
Zuni como pobreza. do rio dos Peixes, município e Juara). até hoje um dos povos mais selvagens da América Latina.

207
A caça de cabeças é praticada pelos grupos em cães domesticados também deve ser literatura etnográfica, os testemunhos de
mencionados acima, como parte da guerra observada. Arens afirmou, concordando lutas territoriais” entre caçadores-coletores
endêmica que envolve a possessão das até certo ponto com Godelier, que o são “extremamente raros”. As fronteiras
terras de agricultura (Lathrap). Lenski em canibalismo, como um fenômeno cultural, Kung! são vagas e nunca vigiadas. Os
suas pesquisas chegou à conclusão de que é uma ficção inventada e promovida pelos territórios dos Pandaram se sobrepõem,
a guerra é muito rara entre os caçadores- agentes conquistadores externos. Mas e os indivíduos vão aonde eles querem;
coletores, mas se torna extremamente existem documentos dessa prática entre os os Hazda se deslocam livremente de uma
frequente nas sociedades agrícolas. Como povos envolvidos pela domesticação. Os região a outra; as noções de fronteira
expressa sucintamente Wilson: “a vingança, estudos de Hogg, por exemplo, revelam e violação de fronteira possuem pouco
a discórdia, a matança, a batalha e a guerra sua presença entre determinadas tribos significado ou nenhum entre os Mbuti;
parece emergir, e é característico, entre os africanas fundadas sobre a agricultura e e os aborígines australianos rechaçam
povos domesticados”. modeladas pelo ritual. O canibalismo é qualquer demarcação territorial ou social.
geralmente uma forma cultural de controle Uma ética da generosidade e da hospitalidade
Os conflitos tribais, afirma Godelier, são do caos, no qual as vítimas representam a toma o lugar da exclusividade (Steward,
“explicáveis principalmente pela dominação animalidade, ou tudo aquilo que deve ser Hiatt). Os povos caçadores-coletores não
colonial” e não se pode considerar que domesticado. É significativo que um dos desenvolveram “nenhuma concepção de
sua origem resida “no funcionamento das grandes mitos dos habitantes das ilhas Fidji propriedade privada”, na perspectiva de
estruturas pré-coloniais”. É certo que o (“Como os fidjianos tornaram-se canibais”) Kitwood). Como notado na referência acima
contato com a civilização pode ter tido é literalmente um conto sobre a plantação para compartilhar, e com a caracterização
um efeito degenerativo, mas pode supor-se (Sahlins). Igualmente os astecas, fortemente de Sansom aos aborígines como “pessoas
que o marxismo de Godelier (a saber: sua domesticados e conscientes sobre o tempo, sem propriedade”, os grupos de caçadores-
má vontade na questão da relação entre praticavam o sacrifício humano como um coletores não compartilham da obsessão da
domesticação e produção) é, sob suspeita, rito destinado a acalmar as forças rebeldes civilização com estrangeiros. “O meu e o
relevante para tal juízo. Assim, pode-se dizer e manter o equilíbrio de uma sociedade teu, semeiam toda a discórdia, não possuem
que os esquimós Cooper147, que possuem muito alienada. Como Norbeck apontou, as lugar entre eles”, escreveu Pietro (1511) a
uma taxa significativa de homicídios em seu sociedades não-domesticadas, “culturalmente propósito dos indígenas norte-americanos
grupo, devem essa violência ao impacto das empobrecidas”, são desprovidas de que encontrou na segunda viagem de
influências exteriores, mas a sua confiança canibalismo e sacrifício humano. Colombo. Segundo Post, os bosquímanos
147 Os primeiros exploradores trataram esses como esquimós não possuem “nenhum sentido de possessão”,
como esquimós “de Cobre” (Cooper) porque as reservas
de cobre nativas estiveram presentes no território que eles Quanto a um dos elementos subjacentes e Lee os observa “com nenhuma dicotomia
ocuparam. Os nativos usaram o cobre para instrumentos e fundamentais da violência nas sociedades marcada entre os recursos do ambiente
comércio. Além de habitar a Ilha de Victoria, os esquimós
Cooper também vivem na região de Golfo Coronation. mais complexas, Barnes, descobriu que “na natural e a riqueza social”. Existe uma linha
208
entre natureza e cultura, e os não-civilizados perde de vista. “As populações de caçadores- diferentes níveis de agricultura, marcados por
escolheram a primeira. Existem muitos coletores da Costa Oeste da América do um sentido crescente de territorialidade ou
caçadores-coletores que poderiam transportar Norte, são considerados como anômalos de propriedade e de hierarquia estritamente
tudo o que eles necessitam usando uma em relação aos outros caçadores-coletores”, correspondente aos diferentes graus de
mão, que morrem com praticamente declarou Cohen; como disse Kelly, “as domesticação. “Definir” um mundo
tudo o que eles tinham ao vir ao mundo. tribos da Costa Nordeste rompem todos os desalienado seria impossível, inclusive
Houve um tempo em que a humanidade estereótipos sobre os caçadores-coletores”. indesejável, mas podemos e devemos tentar
compartilhou tudo. Com a agricultura, Estes caçadores-coletores, que tinham seu desmascarar o não-mundo de hoje em dia
a propriedade se transformou essencial, e principal meio de subsistência na pesca, e como chegamos a ele. Temos tomado um
uma espécie pretendeu possuir o mundo. exibiam características alienadas, como caminho monstruosamente errado com a
Nos encontramos diante de uma distorção chefes, hierarquia, guerra e a escravidão. cultura simbólica e a divisão do trabalho,
que a imaginação dificilmente poderia Mas quase sempre foi ignorado que eles de um lugar de entendimento, encanto,
ter concebido. Sahlins falou disso de uma cultivavam tabaco e criavam cachorros. compreensão e totalidade para a ausência que
maneira eloquente: “Os povos primitivos Assim, até mesmo esta célebre anomalia nos encontramos, no coração da doutrina
do mundo possuem poucas possessões, contém caracteres que a relacionam com do progresso. Vazia e cada vez mais vazia, a
mas não são pobres. A pobreza não é uma a domesticação. A sua prática, do ritual à lógica da domesticação, com suas exigências
determinada quantidade pequena de bens, produção, com várias formas de dominação de total dominação, nos mostram a ruína
não é uma relação entre meios e fins; acima que acompanham, parece ancorar e de uma civilização que arrasa todo o resto.
de tudo, é uma relação entre as pessoas. A promover as facetas do declínio de um estado Presumir a inferioridade da natureza favorece
pobreza é um status social. Assim como é anterior de harmonia. a dominação de sistemas culturais que logo
uma invenção da civilização”. A “tendência tornarão a Terra um lugar inabitável. O pós-
habitual” dos caçadores-coletores “de rejeitar Thomas proporciona outros exemplos da modernismo nos diz que uma sociedade sem
a agricultura até que lhes foi imposta de América do Norte, os Shoshones148 do Gran relações de poder não pode ser mais que uma
modo absoluto” (Bodley) expressa uma Valle e as três sociedades que a compõe: abstração (Foucault). Isso é uma mentira, a
divisão entre natureza e cultura, bem os Shoshones das montanhas Kawich, os menos que aceitemos a morte da natureza e
presente nas ideias dos Mbuti em que Shoshones do rio Reese e os Shoshones do de tudo aquilo que foi e poderia ser de novo.
qualquer um que se torne um aldeão deixa vale de Owens. Os três grupos apresentaram Turnbull fala da intimidade dos Mbuti e a
de ser Mbuti. Eles sabem que o grupo de 148 Os Shoshones são um grupo americano indígena com- floresta, e da sua maneira de dançar como
posto de várias bandas. Os Shoshone viveram em uma larga
caçadores-coletores e as vilas de agricultores área em volta da Grande Bacia e Grandes áreas de planí- se fizessem amor com a floresta. Numa vida
são sociedades opostas com valores cies em um número de bandas encabeçadas por chefes com onde os seres são iguais, que não é uma
deslocamento coletivo. Os Shoshone adotaram uma cultura
antagônicos. Chega assim, um momento de cavalos, mas tiveram problemas competitivos com tribos abstração e que se esforça para existir, eles
em que o fator crucial da domesticação se ao leste que tiveram maior acesso ao comércio europeu e às “dançam com a floresta, dançam com a lua”.
armas de fogo.

209
210
Renan Nuernberger
E-mail de estética, recuperação de mitologias dentadura perfeita, ouve-me bem:
para Angélica Freitas desconhecidas – um oroboro dos diabos! não chegarás a lugar algum.
são tomates e cebolas que nos sustentam,
subject: uma coisinha sobre rilke shake – por puro fetiche e tudo devidamente e ervilhas e cenouras, dentadura perfeita.
enlaçado, com perícia e precisão para seu ah, sim, shakespeare é muito bom,
é preciso ressaltar o acordo tácito: nenhum leitor, (quase) ninguém. mesmo poetas de mas e beterrabas, chicória e agrião?
poeta hoje consolidado será ingênuo (ou, vanguarda true150 (interessado na ampliação e arroz, couve e feijão?
pelo menos, não o deveria ser) de acreditar q do público e na reaproximação de poesia e dentinhos lindos, o boi que comes
sua obra tenha realmente relevância perante ontem pastava no campo. e te queixaste
vida) são recuperados nesta miscelânia: seus que a carne estava dura demais.
a vida do leitor comum (quando este existe, malabarismos são apreendidos e festejados, dura demais é a vida, dentadura perfeita.
claro esteja!). ocorre q, para alguns poetas149, ignorando-se, contudo, as facas só lâmina e mas come, come tudo que puderes,
a irrelevância de sua obra não parece as labaredas só fogo usadas no processo. e esquece este papo,
nenhum pouco problemática: escreve-se e me enfia os talheres.
para a folha em branco (ah, mallarmé…), o rilke shake, angélica, q tanta controvérsia
à primeira vista será descabido este
para as paredes do quarto (apartamento causou em alguns círculos literários, parece-
2009 da torre de marfim), quando muito rebaixamento das qualidades literárias de
me organizar-se criticamente a partir deste
para os outros poetas (eu? você?) ou para shakespeare perante as qualidades nutritivas
impasse: a incomunicabilidade da poesia,
conseguir meia página, logo esquecida, do feijão. e continuará descabido para
objeto de arte restrito ressoando suas
na ilustrada (uma folha nem um pouco um poeta q tenta elidir completamente a
autorreferências cada vez mais distantes
branca). experiência de sua criação artística e flutua,
do leitor comum, cada vez mais manjados
a-histórico, entre as grandes obras universais
para os especialistas e (acordo tácito) o
pior, a irrelevância mistura-se formalmente nutrindo-se delas, e somente delas, para sua
aparente bem-estar nesta situação. pois bem,
a determinado hermetismo q serve, própria produção (e somente para isso).
desde seu título, o rilke shake explicita, de
muitas vezes, apenas para q o autor mostre um modo inteligentemente jocoso, este
orgulhoso sua vasta cultura livresca: é poema seu poema, angélica, irônico na forma
acordo perverso que orienta parte da poesia
dedicado, citação oculta, desdobramento brasileira contemporânea: (as falsas rimas dos primeiros versos,
150 tmb não é o caso mas, de modo geral, tudo quanto se todos terminados em vogais anasaladas,
149 não falemos nomes – já que não há certezas da aceitação chamou “vanguarda” pretendeu aproximar arte e vida. no
deste suposto acordo tácito por qualquer pessoa ou que eu Brasil, é só lembrar de 22, da poesia concreta, da tropicália e a reconstrução do nome do poeta inglês,
mesmo não aceite este acordo (apesar de estar longe da con- da poesia marginal – apesar de todas as diferenças entre estes nas vogais de “beterraba” e nas consoantes
solidação, em qualquer sentido…) momentos.

211
de “chicória”, as oclusivas do verso “dura motivos históricos. ocorre q hoje, em grande normalmente as pessoas não tem livros do
demais é a vida, dentadura perfeita” parte da poesia brasileira, tudo o q existe mallarmé em casa (parece tautologia, mas
causando um falso entrave de leitura),
no livro surgiu (somente) de outro livro muitos poetas se esquecem!).
e terminará em um terceiro (um curto-
não compactua com a voz poética + ou –
circuito de papel151, sem oxigenação) o q, de no entanto, a piada é mais perversa do que
corrente
modo canhestro, acaba por afastar a poesia parece: utilizando-se das frases-feitas da
(esta que, lendo shakespeare para servir da experiência vital e a apaziguar o sentido “campanha do desarmamento” ocorrida em
de alimento a sua própria poesia, esquece profundo do gesto do poeta francês152. 2003, o poema aponta ironicamente sua
dos tomates, cebolas e, principalmente, dos própria miudeza (hoje uma consulta popular
pepinos) a piada séria do poema “estatuto do sobre poesia resultaria profícua?) através
desmallarmento” joga com todos estes da distorção do tema do desarmamento
não compactua prometendo repor, desde já,
vetores de um modo bastante complexo. o (importante para o brasileiro médio,
a experiência concreta de nossos dias (muito
poema, parece-me, constrói-se como uma com consequências visíveis em sua vida)
pouco trabalhada em poesia, ainda). não à
consulta popular alertando sobre os perigos para o do desmallearmento (nem mesmo
toa (mas com humor corrosivo), os versos
de se ter um mallarmé em casa – o que, reconhecido por este mesmo brasileiro). e a
centrais recuperam, na carne dura de hoje,
por si só, já é cômico. primeiro porque crítica contra a inoculação da poesia (quase)
o boi de ontem que pastava no campo. e a
151 fabrício clemente, colega da faculdade de letras, quando se restringe, com pesar e ironia, aos próprios
corrosão desencadeada é bastante consciente, expus semelhante raciocínio recomendou-me um texto de
paulo henriques britto intitulado “poesia e memória” que,
poetas.
bastando perceber q os 3 últimos versos embora bastante controverso (não gosto, p. ex., do termo
voltam-se violentamente contra si mesmo “pós-lírico”), aponta interessantes considerações sobre a atual
poesia. cito uma: “mas quando boa parte dos efeitos do poema muitos dos poemas, angélica, parecem
e expõe seu possível fim: servir de alimento dependem de que o leitor reconheça alusões mais ou menos surgir a partir de fatos aparentemente banais
para outros poetas (como eu?). recônditas a outras criações artísticas, o prazer que o poema
pós-lírico provoca pode vir a aproximar-se perigosamente do (encontros familiares, viagens, pensamentos
“e esquece este papo”, sim?
prazer que sente o leitor de uma coluna social ao identificar despretensiosos) que, contrariando as
as personagens mencionadas”. in: pedrosa, célia (org.). mais
poesia hoje. rj: 7letras, 2000, p. 124-130. expectativas mais superficiais, ganham
a famosa frase-(re)feita de mallarmé (“tudo 152 vale lembrar as palavras do próprio mallarmé na “crise através do tratamento estético, densidade (a
do verso”, tradução de ana de alencar: “um desejo inegável de
existe no mundo para terminar num livro”) meu tempo é o de separar, como por atribuições diferentes, o densidade que faz da linguagem, poética).
não destrói a experiência concreta: o poeta duplo estado da fala, bruto ou imediato, aqui, lá essencial (…) os poemas mais “teóricos” (posso chamar
de que serve a maravilha de transpor um estado de fato em seu
em greve à procura da poesia pura tem quase desaparecimento vibratório segundo o jogo da palavra, assim?) como “autofocus”, no qual a
constantemente o mundo em suas costas entretanto; senão para que dele emane, isenta do incômodo imagem de oroboro é satirizada
de um próximo ou concreto apelo, a noção pura” (grifo meu).
e o ocultamento deste em sua obra possui in: inimigo rumor, n. 20. sp: cosac naify / rj: 7letras, 2008, p.
159-160.

212
inclusive formalmente, quando os versos uma propaganda alucinante, cheia de enfim, quem transformou o rilke em shake
iniciais (“o remordimento é algo/ muito informações apressadas, não tão irreal e o blake em toasted não foi você – foi
difícil”) são mastigados durante o texto
quando se pensa nos reclames das casas a postura poética de remissão pomposa
(“o remordi é al/ mui di”).
bahia, (neste livro, rlk shk, quer pagar a literatice: tratar a tradição como mero
os poemas mais teóricos não são pura e quanto?). e a paronomásia “escombro empório, na qual se abastece de bons
estritamente metalinguísticos (ah! eu só ombro a ombro com a obra”, novamente, produtos (leia-se com pedigree) para
podia estar falando de poesia, como ‘tá ri e chora de si mesmo – não posso ignorar montar seus próprios poemas para (quem
no poema do calixto), antes afinam os as semelhanças com o “tragédia urbana” me dera…!) serem vendidos no mesmo
instrumentos e explicam os comos e os de paulo ferraz, publicado em evidências esquema155.
porquês da forma poética utilizada – e o pedestres (e sobre o qual me debrucei num
mundo sobre o qual o poema reflete (e não texto publicado n’o casulo153). para além da colagem, do pastiche, do
apenas o mundo que o poema reflete): roubo da produção alheia, da alteração dos
espírito do tempo? talvez 2 tentativas paradigmas do bom e mau-gosto etc etc.
o quanto você quer, me diga, com um frio bastante diferentes, mas igualmente válidas, contra a atual retradicionalização da poesia156
/na barriga, de organizar no poema os percalços da (não falemos nomes), cabe ainda ir nos
proclamar norte onde seu nariz aponte, se experiência presente: um girar em falso fundos da loja para reciclar toda a sucata
/livrar do
diante da globalização154, padronizadora das jogada fora – ou, pior (parte da controvérsia
que não interessa, com força, abrir a cabeça,
/meter pés relações (tudo é mercadoria) e, ao mesmo
pelas mãos, com pressa, não importa, sentar tempo, permissiva o suficiente para deixar- 155 não proponho, ingenuamente, uma poesia de inspiração,
pseudo-romântica, calcada na exposição comezinha de senti-
/no escombro nos “livres” para escolher os vídeos que mentos e sem labor de linguagem (labor este aprendido, sim,
ombro a ombro com a obra, me diga me quisermos no youtube – mas não precisa com a grande tradição). o que há de problemático, portanto, é
/diga, com um frio o uso cosmético da tradição, a exposição comezinha de perícia
embrulhar, não! técnica e conhecimento enciclopédico. as velhas dicotomias
na barriga, quanto tempo perdido, quantos ainda estão, em muitas cabeças, travadas de modo escuso
/reais no bolso, 153 “o medo, o medo: o medo”, publicado em 2008 n’o ca- (triste o fato de não entenderem que existem diferentes modos
quantos livros não lidos, quantos minutos sulo 10. hoje em dia, está de molho – um necessário processo de se incorporar a tradição, concordando ou não com meu
de revisão. ponto). mas eu não vou, eu não quero, eu não preciso explicar
/de espera, 154 mais ou menos como escreveu heitor ferraz: “há uma absolutamente nada.
quantos dentes cariados, me diga o quanto espécie de vai-e-vem da classe média pelo mundo, que poderia 156 “multiplicam-se os tradicionalismos, todos modernos,
/você quer isso tudo significar ampliação do horizonte do conhecimento e em em cujas opções estéticas atenuadas identificamos a aparên-
e para onde quer que envie, se você quer que novas experiências. mas o que se percebe, se tomarmos a cia de exigência formal e riqueza de tendências (…) e não é
poesia de angélica como representativa de nossa época, é que no mínimo estranho que o bandeirismo, o drummondismo,
/embrulhe. essas experiências surgem esvaziadas e o horizonte se reduz o cabralismo, o concretismo, o leminskismo etc se tenham
à própria mercadoria do conhecimento. ou seja, algo como tornado griffes?”, como escreve iumna maria simon – “consid-
um shopping center”. in: “visões do feminino”: http://p.php. erações sobre a poesia brasileira em fim de século”. in: novos
uolcom.br/tropico/html/textos/3131,2.shl estudos cebrap, n. 55. sp, novembro de 1999, p. 36.

213
venha daí) revelar escancaradamente o
esquema todo, zombando do acordo tácito
e esgotando a primeira impressão do livro
(para inveja de muitos).

é isso, aglc.

cordialmente,
rnn nürnberger / sp – dez. 2009.

ps: clxt, rola este e-mail na lobisomem?

***

resposta licantrópica = já tá rolando...

214
Pablo Ortellado
Por que somos comercial, desde que citada a fonte.” Ao alguém possui uma casa, por exemplo, a
contra a propriedade invés de restringir a divulgação, a nota de propriedade privada dessa casa garante
intelectual?157 copyleft (um trocadilho com copyright), ao dono o acesso a ela quando bem
permite e mesmo estimula a distribuição entender e sua utilização para os fins que
posterior da informação que o site veicula. escolher (além de poder dispô-la, vendê-la,
Essa política de copyleft faz parte de um emprestá-la etc. – se desejar). Se essa casa
movimento amplo de oposição aos direitos fosse compartilhada com outras pessoas,
de propriedade intelectual.158 no momento em que essas outras pessoas
a estivessem utilizando, ele estaria privado
daquela casa que fez por merecer. Quando
Copyright uma pessoa utiliza a casa, a outra não
consegue utilizá-la (pelo menos não na sua
Embora nossa sociedade tenha assistido um totalidade). Isso vale para todos os tipos de
Enquanto a publicação aberta é uma longo debate sobre a propriedade privada bens materiais.
característica bastante conhecida do site nos últimos dois séculos, pouco ainda foi
do Centro de Mídia Independente (cmi), dito sobre o caráter peculiar desse estranho Mas o caso da propriedade intelectual é
a ideia irmã, de copyleft, de subversão dos tipo de propriedade que é a propriedade diferente e seus teóricos sabiam disso desde
direitos autorais, é ainda muito pouco intelectual. Em geral, a propriedade é o princípio. A legislação sobre a propriedade
conhecida e discutida. No rodapé da página justificada como uma garantia de uso e intelectual tem origem na Inglaterra,
principal do site, ao invés da tradicional disposição do proprietário àquilo que lhe numa lei de 1710, mas foi nos Estados
nota lembrando os direitos autorais, é de direito (por herança ou por trabalho). Unidos que ela foi teorizada e consolidada
lemos o seguinte: “(c) Centro de Mídia Em outras palavras, alguém que adquiriu pelos “pais fundadores”. Esses homens
Independente. É autorizada a reprodução, uma propriedade está garantindo para que fundaram a república americana e
na rede ou em outra parte, para uso não si a utilização de um bem - e está tendo escreveram a constituição sabiam que a
157 Fonte: Centro de Mídia Independente (http://www.midi- essa garantia porque fez por merecer. Se propriedade intelectual era diferente da
aindependente.org). Este artigo encontra-se em: http://midi- 158 “Direitos de propriedade intelectual” é um termo genéri- propriedade material. Eles sabiam que
aindependente.org/pt/blue/2002/06/29908.shtml. Acesso em co para designar os direitos autorais, de patentes e de marcas.
27/04/2006. É autorizada a reprodução deste artigo para fins Neste artigo, falo um pouco dos direitos sobre patentes, mas, canções, poemas, invenções e ideias não
não comerciais desde que o autor e a fonte sejam citados e esta sobretudo, dos direitos autorais. Para a questão das marcas têm a mesma natureza dos objetos materiais
nota seja incluída. (c) 2002. veja Naomi Klein, Sem Logo (Rio de Janeiro: Record, 2002).

215
que eram garantidos pelas leis de proteção Dessa forma, não parecia haver motivo descobertas.”160 Com o direito exclusivo às
à propriedade. Se quando eu uso uma para se transformar ideias (e canções, suas criações, os autores e inventores podem
bicicleta, a outra pessoa é privada do seu livros e invenções) em propriedade. No explorar comercialmente as suas ideias
uso (porque, a princípio, duas pessoas não entanto, o mesmo Thomas Jefferson lembra e conseguir a justa recompensa pelo seu
podem usar a mesma bicicleta ao mesmo da necessidade de se estimular a criação esforço e talento. A recompensa é o estímulo
tempo – principalmente se vão para lugares de invenções “para o bem do público” e para que o criador produza ainda mais e
diferentes), quando eu leio um poema, a esse estímulo – para ele – só poderia ser a sociedade progrida em direção ao bem
coisa é diferente. Eu posso ler o poema ao a recompensa (com bens materiais) ao comum.
mesmo tempo que o “dono” do poema “criador”. As ideias, justamente porque
e meu ato de ler não apenas não priva, têm a característica de uma vez expressas Mas esse mesmo bem comum pode
como não atrapalha em nada a leitura dele. serem assimiladas por todos que a recebem, ser ameaçado pela proteção excessiva à
Thomas Jefferson, um dos pais fundadores devem ser especialmente protegidas, para propriedade das ideias. Se se cria muitos
e um dos primeiros responsáveis pelo que os criadores de ideias não fiquem entraves, então, pode-se impedir, ao invés de
escritório de patentes dos Estados Unidos desistimulados de criá-las e expressá-las. promover a “instrução mútua e a melhoria
discutiu isso numa carta famosa que, à certa Aquele que cria a ideia deve ter o direito das condições”. Partindo de sua experiência
altura, diz: sobre ela, de forma que toda a vez que no escritório de patentes, Jefferson observa
alguém a utilize ou a receba, ele tenha que “considerando o direito exclusivo de
Se a natureza produziu uma coisa menos suscetível uma recompensa material. O autor de um invenção como dado, não pelo direito
de propriedade exclusiva que todas as outras, essa
coisa é a ação do poder de pensar que chamamos livro deve receber os direitos autorais pela natural, mas para o benefício da sociedade”,
de ideia, que um indivíduo pode possuir com publicação e o inventor, o direito pelo há inúmeras “dificuldades em separar com
exclusividade apenas se mantém para si mesmo. uso da patente. Assim, diz a constituição clareza as coisas que valem a pena para
Mas, no momento em que a divulga, ela é americana: “O Congresso deve ter o poder o público o embaraço de uma patente
forçosamente possuída por todo mundo e aquele de promover o progresso das ciências e exclusiva, daquelas que não valem.” Em
que a recebe não consegue se desembaraçar dela.
Seu caráter peculiar também é que ninguém a das artes úteis assegurando aos autores outras palavras, a questão é até que ponto
possui de menos, porque todos os outros a possuem e inventores, por um período limitado, a introdução do direito de propriedade
integralmente. Aquele que recebe uma ideia o direito exclusivo aos seus escritos e intelectual, ao invés de promover, termina
de mim, recebe instrução para si sem que haja por constranger o progresso do saber, da
diminuição da minha, da mesma forma que quem Washington: Thomas Jefferson Memorial Association, 1905,
vol. 13, pp. 333-335). Essa passagem é muito citada como cultura e da tecnologia. Se os critérios para
acende um lampião no meu, recebe luz sem que a
minha seja apagada.159
argumento contrário à propriedade intelectual, mas a intenção se estabelecer a propriedade são rígidos e
de Jefferson é apenas mostrar que a propriedade intelectual
159 Carta de Thomas Jefferson para Isaac McPherson de não é natural – o que não impede (e ele é um defensor disso) 160 Cláusula de direitos autorais e de patentes da Constitu-
13 de agosto de 1813 (The Writings of Thomas Jefferson. que ela seja instituída pela sociedade. ição Americana, art. i, § 8, cl. 8.

216
a duração do direito longa demais, então, que encarece o “produto” e o torna menos que já era excessivo). Se o objetivo do
pode-se dificultar o aproveitamento social acessível a todos. Mas, por outro lado, direito autoral é estimular a criação, uma
da criação. Esta é a questão fundamental ele é bom, porque permite que o criador recompensa tão distante e após a morte não
discutida em toda a legislação sobre seja remunerado pela criação. De um parecia ser eficiente. Macaulay argumenta:
a extensão do direito de propriedade lado, temos a necessidade do monopólio “Sabemos bem quão pouco somos
intelectual. na exploração comercial de um livro – de afetados pela perspectiva de vantagens
forma que apenas um editor possa lançar distantes, mesmo quando são vantagens
Na Inglaterra, a pioneira em estabelecer e vender o livro. Mas, por outro, esse que nós mesmos aproveitaremos. Mas uma
uma legislação de propriedade intelectual, o monopólio que sustenta o autor, prejudica vantagem que será aproveitada mais de meio
século depois que morrermos, por pessoas
debate começou no século xviii e percorreu a sociedade, encarecendo o livro e tornando
que talvez não conhecemos, que talvez não
os três séculos seguintes. Em 1841, foi feita sua difusão mais difícil. Em suas palavras,
tenham nascido, por pessoas que finalmente
mais uma tentativa de ampliar a duração “é bom que os autores sejam remunerados
não tenham conexão conosco não parece ser
dos direitos autorais, que, nesse período, e a forma menos excepcional de serem motivo algum para a ação [criadora].”161
cessavam depois de 20 anos da morte remunerados é pelo monopólio. No Com pequenas mudanças de ênfase, o
do autor. O famoso historiador Thomas entanto, o monopólio é ruim. Para que se debate sobre a propriedade intelectual
Babington Macaulay fez uma histórica consiga o que é bom, devemos nos submeter permaneceu sempre marcado pela disputa
intervenção no Parlamento no qual criticava ao que é ruim.” sobre o ponto de equilíbrio entre o estímulo
um projeto de lei que propunha ampliar à criação e o interesse social de usufruir
o direito autoral para 60 anos após o Toda a questão para Macaulay (e para toda o resultado da criação.162 A primeira lei
falecimento do autor. Seguindo a longa a tradição anglo-saxônica dominante) era inglesa, de 1710, dava ao criador o direito
tradição anglo-saxônica que legislava sobre saber a medida exata em que a submissão
o tema, Macaulay balanceava o direito do bom ao ruim era proveitosa: “o ruim 161 Thomas Babington Macaulay, “A Speech Delivered in
the House of Commons on the 5th of February 1841” In:
do autor em ser remunerado e o interesse não deve durar um único dia a mais do que The Miscellaneous Writtings and Speeches of Lord Macaulay.
social de usufruir as criações o quanto o necessário para assegurar o que é bom.” Londres: Longmans, Green, Reader & Dyer, 1880, vol. iv.
162 Apesar disso, houve várias tentativas de introduzir o direito
antes e com o menor custo. Segundo ele, o Mas quanto deve durar esse tempo? O natural no tratamento da propriedade intelectual. Se a doutrina
projeto em trâmite no parlamento pretendia do direito natural vingasse, o direito de exploração comercial
sistema de direitos autorais, tem vantagens exclusiva perderia o caráter de concessão temporária justificada
ampliar o direito de 20 para 60 anos após
e desvantagens e por isso não é preto, nem pelo estímulo à criação e se transformaria num direito perma-
a morte do autor. Segundo Macaulay, esse nente e hereditário. Isso levaria num curto prazo à completa
branco, mas cinza. O direito exclusivo de mercantilização de todos os bens culturais. Felizmente isso não
período era muito grande e não trazia
propriedade intelectual, para ele, no fundo nenhuma vantagem em relação ao período
foi adotado em nenhum lugar. Na França, depois da revolução,
a constituição de 1791 consagrou o direito “natural” à proprie-
é ruim, porque cria um “monopólio”, o vigente de 20 anos (que ele dá a entender dade intelectual, mas a regulamentação desse direito sempre re-
stringiu o monopólio a um período de exploração determinado.

217
exclusivo sobre um livro por quatorze anos no entanto, insistiam num período que do domínio público. Em 1976, finalmente,
e, se o autor ainda estivesse vivo quando cobrisse a vida do autor mais 50 anos após o Congresso aprovou uma nova e “moderna”
o direito expirasse, poderia renovar o a sua morte. O pretexto para esse período lei de direitos autorais, atribuindo um
direito por mais quatorze anos. A legislação longuíssimo era a “modernização” das leis período de vigência do direito por toda a
americana baseou-se na inglesa e nos atos de direitos autorais e a adequação delas à vida do autor mais 50 anos e para trabalhos
de patentes e de direitos autorais de 1790 Convenção de Berna.163 Como a disputa encomendados por empresas, um período
retomou os períodos de quatorze anos, não parecia poder ser resolvida no curto de 75 anos após a publicação ou 100 anos
renováveis por outros quatorze. Em 1831, prazo e os direitos estavam começando após a criação, o que fosse mais curto.
o Congresso americano revisou as leis de a expirar, os lobistas conseguiram um
direitos autorais substituindo o período adiamento extraordinário do vencimento Em meados dos 1990, no entanto, mais
inicial de quatorze anos, por um de 28, dos direitos que estavam por expirar, do ano uma vez uma série de preciosas obras em
renovável por mais quatorze. Em 1909, as de 1962 para o ano de 1965, enquanto a poder da indústria cultural aproximaram-
leis foram novamente revisadas e o período matéria não era definitivamente votada no se do prazo de expiração dos direitos
foi mais uma vez ampliado para 28 anos Congresso. Apesar das reiteradas objeções autorais. E, mais uma vez, a legislação
iniciais renováveis por mais 28 anos. do Departamento de Justiça, a polêmica internacional “mais moderna”164 serviu de
em torno do assunto levou a outros oito pretexto para a ampliação dos prazos de
Mais recentemente, porém, com o aumento adiamentos “extraordinários”, de 1965 vigência dos direitos. Desde o final dos anos
do poder da indústria cultural, a extensão para 1967, de 1967 para 1968, de 1968 1980, empresas como a Walt Disney e a
do direito à propriedade intelectual para 1969, de 1969 para 1970, de 1970 Time Warner começaram a preocupar-se
ultrapassou de longe os vinte anos após para 1971, de 1971 para 1972, de 1972 com algumas de suas obras cujos direitos
a morte que incomodavam o historiador para 1974 e de 1974 para 1976, tudo em autorais cessariam nos primeiros anos
Thomas Macaulay em 1841. As pressões nome dos interesses dos detentores dos do novo século. A Disney preocupava-se
começaram em 1955, quando o Congresso direitos (normalmente empresas e não os com o personagem Mickey Mouse que
americano autorizou o escritório de patentes descendentes dos autores) e em detrimento entraria em domínio público em 2003,
a desenvolver um estudo com vistas a com o Pluto que entraria em 2005 e com o
163 Evidência de que adequação à Convenção de Berna era
revisar as leis de direito autoral vigentes. O apenas um pretexto é dada pelo fato de que apesar do período Pateta e o Pato Donald que entrariam em
relatório final recomendava a ampliação do da vida do autor mais 50 anos ter sido adotado nos eua em 2007 e 2009, respectivamente. Já a Warner
1976, o país não aderiu à convenção até 1989 porque não
período de renovação de 28 para 48 anos. abriu mão de outros itens “menores” como a exigência de preocupava-se com o personagem Perna
As organizações de escritores e a indústria registro. Para todo esse levantamento, veja Tyler T. Ochoa Longa cujos direitos expiravam em 2015
“Patent and Copyright Term Extension and the Constitution:
cultural (principalmente as editoras), a Historical Perspective”.Copyright Society of the usa (março 164 A União Europeia havia estendido o prazo de validade dos
de 2002): 19-125. direitos autorais para a duração da vida do autor mais 70 anos.

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e com uma série de obras cujos direitos Copyleft autobiografia podemos ver os motivos pelos
possuía, entre elas, o filme E o vento levou quais se recusava a explorar comercialmente
que expirava em 2014 e uma série de Voltemos agora aos fundamentos da os inventos. Vale a pena citar um longo
músicas de George Gershwin, entre elas legislação sobre propriedade intelectual trecho:
Rhapsody in Blue e a ópera Porgy and Bess, (nome genérico que abrange os direitos
cujos direitos expiravam em 1998 e 2010, autorais, de patentes e de marcas). Tendo inventado, em 1742, um forno aberto para
respectivamente. Como vimos, desde que a legislação foi o melhor aquecimento de aposentos e ao mesmo
tempo, economia de combustível, na medida que o
primeiramente elaborada, ela sempre foi ar fresco incorporado era aquecido na entrada, fiz
Temendo sofrer grandes prejuízos pela justificada pelo estímulo material que o um presente do modelo para o Sr. Robert Grace,
perda dos direitos autorais, Disney, Warner criador receberia. Mas será que o estímulo um dos meus amigos mais antigos, que, tendo uma
e a indústria cinematográfica fizeram uma material é o único e o melhor estímulo que fornalha de ferro, considerou a disposição das placas
pesada campanha de lobby encabeçada se pode dar para o desenvolvimento do desse fogão uma coisa muito útil, já que aumentava
a sua procura. Para promover essa demanda, eu
no Congresso pelo senador Trent Lott. O saber, da cultura e da tecnologia? Será que escrevi e publiquei um panfleto de título: “Um
resultado foi a ampliação, em 1998, dos antes do advento das leis de propriedade relato do novo forno da Pensilvânia; no qual sua
direitos autorais após a morte do autor de 50 intelectual as pessoas não eram estimuladas construção e modo de operação são detalhadamente
para 70 anos, caso o direito fosse propriedade a escrever livros e canções e a inventar explicados; suas vantagens sobre qualquer outro
de uma pessoa e a ampliação de 75 para dispositivos tecnológicos? método de aquecimento de aposentos são
demonstradas; e todas as objeções que foram
95 anos caso o direito fosse propriedade de levantadas contra o seu uso são respondidas e
uma empresa. Com isso, além das obras das Antes que Thomas Jefferson atuasse no esclarecidas etc.” O panfleto teve uma boa resposta.
duas empresas, ganharam mais 20 anos de escritório de patentes, Benjamin Franklin O governador Thomas ficou tão satisfeito com a
exploração comercial exclusiva romances que com ele e John Adams redigiria a construção desse fogão, tal como está descrito, que
como O grande Gatsby de Scott Fitzgerald e Declaração de Independência, tinha uma me ofereceu uma patente para a venda exclusiva
deles por um período de anos. Eu recusei, no
Adeus às armas de Ernest Hemingway (cujos ativa vida de criador, tendo se tornado entanto, baseado num princípio que sempre pesou
direitos detidos pela Viacom venceriam em conhecido em todo mundo por seus para mim em tais situações: uma vez que tiramos
2000 e 2004, respectivamente) e músicas experimentos e invenções. Realizador da grandes vantagens das invenções alheias, devemos
como o Concerto número 2 para violino de famosa experiência com a pipa que provava ficar felizes de ter uma oportunidade de servir aos
Prokofiev e “Smokes Get in Your Eyes” de que os raios eram descargas elétricas e autor outros com quaisquer de nossas próprias invenções;
e isso devemos fazer de forma gratuita e generosa.165
Kern e Harbach (cujos direitos, da Boosey & de invenções como o óculos bifocal e o
Hawks e da Universal, venceriam em 1999 e pararraios, Benjamin Franklin sempre se
2008 respectivamente). recusou a patentear suas invenções. Em sua 165 The Autobiography of Benjamin Franklin. Nova Iorque:
P. F. Collier & Son, 1909. p. 112.

219
O fato de que homens talentosos como em algum momento impediu que eles dessas ideias a um empreendedor individual?
Benjamin Franklin nunca se sentiram se dedicassem à música, à pintura ou à Na verdade, questões como essas – se deve-
estimulados pela perspectiva de retorno literatura? Será que não tinham outro se ou não recompensar materialmente a
material por suas descobertas sempre tipo de motivação – a expectativa do criação e se a melhor forma de fazê-lo é
foi levado em conta no debate sobre reconhecimento póstumo, o simples amor através da exploração comercial privada –
os direitos de propriedade intelectual. pela sua arte? são questões às quais não cabem respostas
O historiador Thomas Macaulay, por teóricas. São os movimentos sociais que
exemplo, que defendia os direitos segundo A questão da propriedade intelectual, estão buscando alternativas concretas à
os princípios clássicos era obrigado a quando pensada fora da imagem tradicional propriedade intelectual que deverão oferecer
fazer ressalvas quando mencionava a da balança que opõe estímulo material ao as respostas – e, de fato, já estão a fazer.
contribuição que os ricos davam para a criador e interesse social em usufruir a obra
criação de obras e inventos: “Os ricos e ou invenção, leva a muitas outras ordens Desde que obras e patentes passaram a ser
os nobres não são levados ao exercício de consideração. Será que os artistas devem registradas, os direitos sobre elas passaram
intelectual pela necessidade. Eles podem ser remunerados pela criação das obras? a ser violados. Uma parte dessa violação
ser movidos para a prática intelectual pelo Poderiam eles contribuir para esse bem dos direitos é, sem dúvida, mero crime.
desejo de se distinguirem ou pelo desejo coletivo e anônimo que é a cultura humana No entanto, à parte a violação marginal
de auxiliar a comunidade.” Mas será que sem ter usufruído e incorporado antes a rica e clandestina dos direitos de propriedade
a vaidade de produzir uma obra única e generosa contribuição dos outros artistas, intelectual (que pode ser muito grande,
ou a generosidade de produzir um bem contemporâneos e do passado? E se achamos até mesmo dominante), sempre houve um
para a comunidade são virtudes exclusivas que é preciso um estímulo material além da fenômeno diferente de desobediência civil
dos ricos? Boa parte do desenvolvimento vaidade pessoal e da vontade de contribuir das leis que instauravam esses direitos. A
artístico parece dizer que não. Pintores para o bem comum, não seria possível desobediência civil, como se sabe, é muito
importantes como Rembrandt, Van Gogh então desenvolver um sistema público diferente do crime. O crime é uma violação
e Gauguin morreram na pobreza e sem de recompensa para os inventores, como de lei clandestina, feita às escondidas e com
reconhecimento, assim como músicos sugere o economista Stephen Marglin?166 o entendimento de que a lei que se viola é
como Mozart e Schubert e um escritor Um sistema que premiasse as grandes legítima. A desobediência civil, por sua vez,
como Kafka, embora nunca tenha sido ideias – por meio de concursos públicos, é uma violação pública das leis motivada por
verdadeiramente pobre, não chegou a por exemplo – mas que não limitasse o uso seu caráter ilegítimo. A desobediência civil
ser reconhecido em vida. Será que a falta se faz abertamente e ela não reconhece que a
166 Stephen Marglin. «Origem e funções do parcelamento de
de perspectiva de recompensa material tarefas» In: André Gorz. Crítica da divisão do trabalho. São lei que está sendo infringida seja justa.
Paulo: Martins Fontes, 1989. pp. 37-77.

220
Desde que os direitos de propriedade reprodução digital por computador), as Embora nem a indústria, nem o governo
intelectual foram instaurados, houve pessoas automaticamente começaram a tenham conseguido coibir de forma
uma resistência aberta à sua aplicação no reproduzir livros, canções, fotos e vídeos, eficiente o uso privado e comunitário das
setor privado e comunitário. A enorme para si e seus amigos, sem pagar os devidos obras sem o pagamento dos direitos autorais
dificuldade de fiscalização fez com que direitos, assim como, antes, já encenavam correspondentes167, eles fizeram o possível
essa desobediência civil tivesse um caráter peças nas escolas e nos bairros e cantavam e o impossível para obstruir a difusão de
passivo, que não se engajava na contestação e tocavam canções para os amigos e para tecnologias de reprodução doméstica168. Foi
das leis de propriedade intelectual, mas a comunidade também sem pagar os assim, em 1964, quando a Phillips lançou
simplesmente as ignorava. As pessoas direitos. Por mais que a campanha “cívica” o cassete de áudio e a indústria fonográfica
sabiam que os direitos existiam e deviam promovida pela indústria e pelo governo primeiro tentou impedir o lançamento do
ser respeitados e simplesmente passavam lembrasse a todos a importância de “pagar produto e depois fez lobby no Congresso
por cima deles porque achavam que eram os direitos”, as pessoas desconfiavam, para que fosse criado um imposto sobre os
absurdos. Evidentemente não estou me frequentemente de forma intuitiva, que cassetes virgens para compensar as “perdas”
referindo à pirataria comercial que era, sem aquele pagamento não fazia sentido pois da indústria resultantes das cópias que os
exagero, apenas crime. A indústria pirata quem apenas usufruía desse bem coletivo usuários fariam de seus lps para cassetes.
reconhecia a legislação vigente e fugia que é a cultura humana não podia estar O mesmo aconteceu em 1976 quando
dela de forma clandestina, sem contestá- roubando nada de ninguém. Como a Sony lançou o videocassete formato
la. Aliás, todo industrial pirata não podia Benjamin Frankliln havia escrito na sua Betamax. A Universal Studios e a Walt
aspirar a coisa maior do que transformar autobiografia, na produção da cultura (e do Disney abriram um processo contra a
sua indústria pirata numa indústria legal e saber e da tecnologia), nada pode ser feito Sony acusando-a de incitar a violação dos
passar a utilizar assim os direitos autorais a sem que se tenha antes aprendido com a direitos autorais e, depois de uma batalha
seu favor. imensa comunidade dos outros produtores judicial que durou oito anos, a Suprema
contemporâneos e dos que nos precederam.
167 Imagine a Warner exigindo das milhões de pessoas que
Mas coisa muito diferente eram os usuários E da mesma forma que usufruímos e fazem aniversário todos os dias pagamento pelos direitos de
que reproduziam a obra para fins não aprendemos gratuitamente com todos eles – “Parabéns para você” (sim, há direito autoral para “Parabéns
para você” e ele pertence ao grupo aol/Time Warner que
comerciais – “para a sua instrução mútua de maneira tão ampla que sequer podemos recebe como pagamento pelos direitos aproximadamente dois
e a melhoria das condições”, como dizia nomeá-los individualmente – devemos milhões de dólares todo ano).
168 Muito antes das disputas recentes envolvendo o cassete
Jefferson. Quando aparelhos de reprodução disponibilizar nossa contribuição para a de áudio e o videocassete, pode-se lembrar o processo que a
se popularizaram (o mimeógrafo, a formação das novas gerações. editora musical White-Smith moveu contra a Apollo Co. em
1908 pela venda de “rolos de piano”, cartuchos cilíndricos
fita cassete, a copiadora e em seguida a com papel perfurado que eram utilizados por um dispositivo
que permitia aos pianos tocarem músicas automaticamente.

221
Corte finalmente reconheceu que a pessoa o preço de venda) e sobre as fitas virgens capitalista, que iria explorar a obra por ele e
que gravava o último capítulo da novela (3% do preço de venda). O imposto, depois tirar parte dos rendimentos para si próprio,
não praticava pirataria. Depois, em 1987, de recolhido, era distribuído da seguinte como compensação pelo investimento.
chegou ao mercado um novo dispositivo maneira: 57% para as empresas (gravadoras Dessa forma, o autor cedia ao capitalista
de reprodução: a fita de áudio digital, que e editoras musicais) e apenas 43% para o direito de exploração exclusiva, sem
permitia gravações digitais fiéis sem recurso os autores. Seria este o tipo de incentivo concorrência, que tinha recebido do estado
à compressão de dados (como acontece com ao autor que norteara o pensamento de e dividia com ele os dividendos da criação.
o cd). Embora, de início, não tenha tido Thomas Jefferson e dos fundadores da Mas, nessa relação, o elo fraco era o autor.
boa aceitação no mercado e, posteriormente, república americana quando conceberam A distribuição de livros, discos e outros
tenha apenas conquistado o mercado dos as leis e instituições que regiam os direitos produtos sempre foi relativamente cara e
profissionais de áudio, a fita de áudio digital autorais? havia muitos autores para poucas empresas
fez com que a indústria fonográfica entrasse interessadas em lançá-los. Isso fez com
em desespero. Em função de suas pressões O interesse crescente das grandes empresas que as empresas tivessem um poder muito
foram propostas diversas leis e emendas na manutenção e ampliação dos direitos grande de determinar as condições dos
no Congresso americano que buscavam autorais se deve à forma específica como contratos e conseguissem assim uma grande
limitar a capacidade de reprodução dos eles foram estabelecidos. Quando a participação nos dividendos advindos da
aparelhos e taxar as fitas virgens. Depois de propriedade intelectual foi concebida no exploração comercial da obra. Era evidente
muitas disputas, o presidente Bush (pai), final do século xviii, sua finalidade era que se o objetivo era estimular o autor e
ratificou, em 1992, no último dia do seu conceder ao autor um monopólio sobre a não beneficiar as grandes empresas, não
mandato, o “Ato sobre a gravação doméstica exploração comercial da obra, de forma que havia porque o monopólio de exploração
de áudio” que tinha sido aprovado antes, quem quisesse ler o livro que tinha escrito comercial ser cedido à empresa. A melhor
no Congresso, por voto oral (de forma que ou escutar a música que tinha composto, forma de beneficiar o autor teria sido ele
não se têm registros sobre quem votou a teria que pagar a ele. Ele poderia exigir manter para si o monopólio de exploração e
favor e quem votou contra). O ato, entre esse pagamento porque tinha o direito ceder para diferentes empresas concorrentes
outras medidas, obrigava todos os aparelhos exclusivo de comercializar a obra, sem o direito não exclusivo de publicação da
de áudio digital a ter um dispositivo que concorrência. Mas é óbvio que os autores obra. Assim, com a concorrência entre as
impedia a cópia em série de uma fita (ou não podiam fazer isso. A não ser que o autor empresas, a obra seria barateada e melhor
seja, depois de feita uma cópia, não se podia de um livro se tornasse também editor, ele difundida e os dividendos se concentrariam
fazer outra cópia a partir dela) e instituía não poderia diretamente explorar a obra. com os autores que poderiam disputar
um imposto sobre os aparelhos (2% sobre Ele teria que recorrer a um editor, a um licenças de exploração mais vantajosas.

222
Com o monopólio de exploração comercial estudante Shawn Fanning que buscava amigos. A diferença era que isso era feito
oferecido pelos direitos autorais sendo superar a dificuldade de encontrar numa rede de cinco milhões de usuários
cedido integralmente para as empresas, não música em formato mp3 na internet. Até - e foi com base nessa grande dimensão
eram mais os autores que se beneficiavam então, as músicas em formato mp3 eram que a riaa, a associação das gravadoras
primariamente, mas as grandes empresas da disponibilizadas principalmente por meio de americanas, sustentou um processo contra o
indústria cultural. servidores ftp que, em geral, ficavam no ar Napster.
apenas até uma grande gravadora encontrar
À medida que o poder da indústria cultural o servidor e enviar uma mensagem Um dos fatos mais relevantes do fenômeno
crescia, também cresciam as campanhas ameaçando deflagrar um processo judicial. Napster foi a constituição da comunidade
contra as violações dos direitos autorais. Essa Para superar essa dificuldade, Fanning Napster. Na ausência de um servidor que
pressão fez, de certa forma, com que aquela projetou um sistema ponto a ponto, em armazenasse os arquivos, o funcionamento
desobediência civil passiva que aparecia que usuários poderiam acessar arquivos em da rede Napster exigia uma comunidade de
quando as pessoas simplesmente ignoravam pastas compartilhadas em computadores de usuários que compartilhasse suas músicas
as leis, se tornasse mais consciente e, outros usuários através de links recolhidos de maneira generosa. Se todos estivessem
assim, movimentos de oposição declarada por um servidor. Assim, suprimia-se a na rede apenas para baixar músicas e se
aos direitos autorais começassem a surgir. mediação dos servidores que armazenavam recusassem a disponibilizar os seus próprios
Enquanto pequenos grupos de hackers os arquivos. Os arquivos de música ficavam arquivos, a rede fracassaria. Mas o notável
radicais começaram campanhas de violação no computador de cada usuário e o servidor é que, a despeito de não ganharem nada e,
deliberada dos direitos autorais, distribuindo do Napster apenas disponibilizava os links pelo contrário, consumirem uma fatia às
música, vídeos, textos e programas de de acesso a eles. O Napster trazia uma vezes considerável da sua banda de acesso,
graça na internet sob o lema “a informação concepção inteligente que descentralizava milhões de pessoas disponibilizaram músicas
quer ser livre”, grandes movimentos o armazenamento dos arquivos. Com isso, para outras pessoas que não conheciam,
espontâneos menos conscientes e menos criava uma situação legal ambígua. Não formando uma verdadeira comunidade
radicais tomavam conta de um público mais se tratava mais de um grande servidor virtual.
amplo. Entre esses movimentos, o de maior distribuindo música, mas de uma rede de
impacto, sem dúvida, foi a formação da usuários trocando generosamente arquivos O fenômeno Napster deflagrou grandes
comunidade Napster. de música entre si. De certa forma, nada discussões públicas sobre os direitos autorais
distinguia a troca de arquivos na rede entre 1999 e 2001, quando o Napster
O Napster era um programa “ponto Napster do hábito que as pessoas sempre perdeu o processo na justiça. Por um lado,
a ponto” desenvolvido em 1999 pelo tiveram de gravar fitas cassetes para os essa discussão evidenciou o caráter de

223
desobediência civil que envolvia a utilização a livre troca de música sem o pagamento Embora muitas histórias possam ser
do programa. Embora o estatuto legal do dos direitos autorais retirava sua fonte de contatadas sobre a origem desse movimento,
Napster estivesse em julgamento, na grande sustento. E embora esse debate tenha sido podemos dizer que uma das suas principais
imprensa e na opinião pública formada muito desequilibrado – porque sempre manifestações teve origem no início dos
por ela, a mensagem uníssona era a das estava ausente um verdadeiro opositor anos 80 quando o programador Richard
grandes gravadoras e dos grandes artistas dos direitos autorais - ele teve o mérito de Stallman, do laboratório de inteligência
que condenavam o Napster e acusavam- pôr em evidência o objetivo primário da artificial do mit, abandonou seu emprego
no de roubo, pirataria e de tirar o sustento instituição dos direitos de autor. por se sentir constrangido pelas restrições
de milhares de artistas esforçados. Apesar de direitos autorais que impediam-no
dessa massiva campanha de propaganda Enquanto em alguns fóruns alternativos de aperfeiçoar programas comprados de
dos órgãos de imprensa (muitos dos quais a possibilidade de um mundo sem empresas. Stallman sentia que as licenças
ligados a grupos empresariais que também direitos autorais era discutida um tanto de direitos autorais que negavam acesso ao
controlam grandes gravadoras), as pessoas teoricamente, um movimento iniciado código fonte dos programas (para impedir
não paravam de aderir à rede Napster por programadores começava a mostrar a cópias ilegais) restringiam liberdades que os
numa demonstração aberta de que não programadores haviam usufruído antes do
viabilidade efetiva desse projeto. Não se
consideravam legítima uma lei que impedia mundo da informática ser dominado pelas
tratava de pensar como poderia ser uma
a livre troca dos bens culturais. grandes corporações – a liberdade de executar
sociedade sem direitos autorais, mas de
os programas sem restrições, a liberdade
começar a pô-la em prática.
A discussão sobre o Napster, por outro de conhecer e modificar os programas e a
lado, gerou um debate sobre a remuneração criticar as gravadoras grandes e más, elas sempre reinvestiram liberdade de redistribuir esses programas
seus lucros na exposição de novas bandas para o público” e
dos artistas e sobre as dificuldades de se que, “sem essa exposição, muitos fãs nunca teriam a oportu- na forma original ou modificada entre os
compatibilizar a livre troca de informações nidade de conhecer hoje as bandas de amanhã” (Lars Ulrich, amigos e a comunidade. Por esse motivo,
baterista do Metallica, em declaração sobre o Napster). Numa
com o sustento de uma classe de criadores audiência no congresso americano, buscando revisar as leis
Stallman resolveu iniciar um movimento
profissionais remunerados. Não apenas as de direito autoral em 1906, o escritor Mark Twain, autor que produzisse programas livres, programas
dos clássicos As aventuras de Tom Sawyer e Huckleberry que resguardassem aquelas liberdades que o
grandes gravadoras se opuseram ao Napster, Finn simplesmente defendeu o direito natural à propriedade
intelectual. Após ser informado que tal doutrina era incon- mundo dos programadores conhecia antes
mas uma série de artistas estabelecidos, do stitucional, passou a defender a extensão do direito para o das restrições empresariais. Foi com essas
Metallica a Lou Reed169, argumentaram que maior prazo possível. Seus argumentos? “Eu gosto da extensão
[do direito de propriedade intelectual] para cinquenta anos ideias que Stallman começou a conceber o
169 Quem se debruçar sobre a história da disputa sobre os porque isso beneficia minhas duas filhas que não têm com- sistema operacional gnu que depois de ter o
direitos autorais vai sofrer desilusões com grandes artistas que petência para ganhar a vida como eu ganho pois eu as eduquei
muitas vezes puseram mesquinhos interesses privados acima como jovens senhoras que não sabem e não conseguem fazer kernel desenvolvido por Linus Torvalds ficou
dos interesses públicos. Não é apenas o caso do Metallica que nada.” – E. F. Brylawsky e A. A. Goldman, Legislative His- conhecido como Linux.170
identificou os interesses dos novos artistas com o das grandes tory of the 1909 Copyright Act. Littleton: Fred B. Rothman,
empresas, lembrando que “apesar de todos nós gostarmos de 1976. p. 117. Citado por T. T. Ochoa, no mencionado, p. 36. 170 Richard Stallman. “The GNU Operating System and

224
O significado do desenvolvimento e O sucesso da difusão desse sistema que recebia um programa livre, recebia
principalmente da difusão do sistema operacional e de centenas de outros esse programa com a condição de que se o
operacional gnu/Linux não é apenas o de programas livres deveu-se ao fato de que copiasse ou o aprimorasse, mantivesse as
romper o monopólio do sistema Windows, esses programas garantiam a permanência características livres que tinha recebido: o
da Microsoft, mas, principalmente, de de suas características “livres”. Quando direito de rodar livremente, de modificar
fazê-lo por meio de um empreendimento Stallman iniciou o movimento pelo livremente e de copiar livremente. Com
em grande medida coletivo e voluntário. software livre, ele concebeu um tipo de isso, os programas livres, frutos de esforços
Tirando alguns poucos funcionários que licença de direitos autorais que assegurava coletivos voluntários, ganhavam uma licença
recebiam salários relativamente baixos a manutenção das liberdades em versões que garantia que mesmo que as empresas
da fundação de Stallman (a Fundação reproduzidas e melhoradas dos programas. quisessem usá-los e distribuí-los, o fizessem
para o Software Livre), a maioria dos A esse tipo de licença, Stallman deu o de forma a manter suas liberdades iniciais.
desenvolvedores do gnu/Linux eram nome de copyleft (esquerdo autoral), num
programadores ligados a empresas e trocadilho com copyright (direito autoral)171. O sucesso do sistema operacional gnu/
universidades que davam sua contribuição Ao invés de simplesmente abrir mão dos Linux e do movimento do software
voluntariamente sem esperar qualquer outro direitos autorais, o que permitiria que livre trouxe um exemplo concreto da
tipo de retorno que não o reconhecimento empresas se apropriassem de um programa possibilidade de se constituir um sistema
público por um trabalho bem feito. Como livre, modificando-o e redistribuindo-o de criação onde a remuneração não fosse
Benjamin Franklin, esses programadores, de forma não livre, Stallman pensou num a forma principal de estímulo e onde o
entre os quais encontravam-se alguns dos mecanismo de constrangimento que interesse coletivo de usufruir com liberdade
melhores em sua área, doavam seu trabalho assegurasse a manutenção da liberdade que a cultura humana fosse mais importante do
de forma “gratuita e generosa” esperando o programador havia dado ao programa. O que a exploração comercial das ideias. Claro
contribuir para “o bem comum” e “a mecanismo pensado era reafirmar os direitos que a objeção de que os autores ficariam
melhoria das condições”. E apenas com esse autorais abrindo mão da exclusividade desprovidos de sustento e teriam que sujar
trabalho voluntário e generoso (que nos de distribuição e alteração desde que o as mãos com trabalhos não puramente
últimos anos passou a ser bem explorado uso subsequente não restringisse aquelas criativos permaneceu. Mas o exemplo
por grandes empresas) conseguiu-se montar liberdades. Em outras palavras, a pessoa de Richard Stallman que trocou o papel
uma comunidade estimada hoje em mais de de programador que cedo ou tarde seria
171 O termo copyleft partiu de um amigo de Stallman que,
15 milhões de usuários. brincando, escreveu certa vez numa carta: Copyleft: all rights forçado a submeter-se às empresas pelo
reversed (esquerdos autorais: todos os direitos invertidos) em papel de conferencista e assessor técnico
the Free Software Movement” In: Mark Stone, Sam Ockman alusão à nota comum: Copyright: all rights reserved (direitos
e Chris DiBona (eds.) Open Sources: Voices from the Open autorais: todos os direitos reservados). Veja o artigo de Stall- independente ou ainda, o exemplo de
Source Revolution. Sebastopol. O’Reilly, 1999. man citado acima.

225
George Gershwin, que antes de garantir o de um programa de computador tem pouco
sustento de sua família por três gerações, cabimento quando aplicado à produção
ganhou a vida executando, como pianista científica etc.). Esse trabalho não é o
e regente, suas próprias composições, trabalho de imaginar um mundo possível,
mostram que uma vida sem direitos autorais mas de passar a construí-lo, aqui e agora.
é possível.

Hoje o movimento pelo copyleft, pela livre


circulação da cultura e do saber ampliou-se
muito além do universo dos programadores.
O conceito de copyleft é aplicado na
produção literária, científica, artística e
jornalística. Há ainda muito trabalho de
divulgação e esclarecimento a ser feito e é
preciso que discutamos politicamente os
prós e os contras dos diferentes tipos de
licença. Precisamos discutir se queremos
conciliar a exploração comercial com a
utilização não comercial livre ou se devemos
simplesmente nos livrar dos mecanismos
de difusão comercial de uma vez por todas;
precisamos também discutir questões
relativas à autoria e à integridade da obra,
principalmente numa época em que o
sampler e a colagem constituem formas
de manifestação artística importantes;
temos, finalmente, que discutir as inúmeras
peculiaridades de cada tipo de produção
adequando a licença ao que estamos fazendo
(a ênfase na possibilidade de modificação

226
Patricia Augusta Correa

Paranaguá (1996)
Museu de arqueologia e etnologia de Paranaguá, PR.

 
 

227
Iguape (1997)
Basílica de Bom Jesus de Iguape, SP.
(premiada com 4° lugar no concurso fotografico de Americana, SP, em 1997)

228
Dirceu Villa
Lars von Trier, inúmeras vezes o crítico) a esquecer o que mais no aspecto técnico do manifesto (com
o inimigo172 já conhece para abraçar um novo estilo por a música produzida in loco, com a produção
novas ideias, você deve esperar que muitos modesta em locação existente etc.175), mas
Um dos poucos cineastas atuais que faz do reclamem, esperneiem, acusem. Todo no cerne daquilo que veio incitar, isto é, um
cinema uma arte intelectualmente exigente mundo sabe que os burros zurram e dão golpe na complacência dos modos de filmar
sem prescindir de seu caráter narrativo173, coices, e pode-se dizer que Von Trier sabe e dos modos de se assistir a um filme.
Lars von Trier, que ficou conhecido com disso mais do que a maioria: é ele quem usa
o grupo Dogma 95174, assumiu no cinema a vara que cutuca seus traseiros. Dogville e Manderlay deverão formar a
o papel de irônico inimigo da estupidez “trilogia americana” com Washington, que
humana. Aqui no Brasil houve quem Seus filmes não são brinquedos, não cedem deve ficar pronto agora em 2007176. Imagino
dissesse, de Manderlay, que é racista; que ao desejo sôfrego de apelo sentimental das que em alguns anos estará bastante claro o
Von Trier é, ao menos desde Dançando no multidões, não facilitam as coisas quando horror de que von Trier estava falando em
Escuro, antiamericano (significando, com recorrem a um mínimo espaço cenográfico seus filmes, e que não são os eua como uma
isso, os eua); que não sabe filmar; que que se assemelha ao do teatro, ou quando concepção abstrata do mapa desenhado no
seu narrador dirige demais o percurso dos escolhem desafiar a comodidade acéfala do chão de sua trilogia, mas o que representa
filmes; etc., entre outros disparates que politicamente correto: traçam uma linha o governo Bush177, como um arquétipo
ganham imediatamente lugar privilegiado divisória muito clara, provocam falsas 175 O que, na verdade, já não aconteceu em Ondas do
no anedotário da infâmia crítica. catarses, culpam o espectador, riem dele, destino, de 1996 [nota de 2010: e se acentua o uso de truques
cinematográficos em Anticristo].
sugerem que ele não desconfia o bastante, 176 E depois segue-se a filmagem de Anticristo (2008), que
Consideremos: não era exatamente isso que crê demais. Inverte os preceitos partirá do princípio de que “não foi Deus, mas o Diabo,
quem criou o mundo”. Curiosamente, Von Trier é também o
que Von Trier queria? Óbvio, quando estruturais do cinema tomando emprestados nome do mais antigo Apocalipse preservado (no manuscrito
sua linguagem é recessiva, obrigando o os do teatro, ou do jornalismo; subverte os de Von Trier, circa 800-820 a.C.) [nota de 2010: Von Trier
passou por maus bocados e, ao que parece, desistiu de Wash-
preguiçoso e autocomplacente espectador (e gêneros, como o musical. Etc. ington. O Anticristo ficou pronto em 2009 &, obviamente,
escandalizou as desamparadas opiniões crítica & pública].
172 Texto originalmente publicado em Germina Literatura, 177 Que é um emblema do pior que pode se tornar o poder,
em 2006 – http://www.germinaliteratura.com.br Nesse sentido, as bases formais do Dogma tanto a respeito das discrepâncias internas (basta rever aquele
173 Alguns outros nomes: François Ozon, Oliver 95, único movimento cinematográfico com caos em New Orleans e as opiniões da simpática Sra. Bush so-
Hierschbiegel e Sofia Coppola. bre o assunto), quanto externas (world police, cujos momen-
174 Que fundou com Thomas Vinterberg, diretor do recentís- algum sentido depois da nouvelle vague e tos mais pontuais estão em Abu-Ghraib e na destruição do
simo e ótimo Querida Wendy, para o qual Von Trier escreveu da politique des auteurs, permanecem, não museu de Bagdá). [nota de 2010: com Obama, espera-se um
o roteiro. naco a mais de civilidade do que nos oito anos broncos que

229
das distorções associadas àquele monte de justiça que necessariamente se compõe
propaganda e ficção sobre “levar a liberdade de partes burocráticas para se mover, de
para os outros”, “salvar nações escravizadas” preconceitos para julgar e sentenciar:
e assim por diante. Grace, em ambos os funcionando como máquina insensível,
filmes, é ao mesmo tempo uma personagem era contraposta à singularidade de eventos
com traços brechtianos (aquela que Chico prosaicos e opressivos que levam Selma a
Buarque pôs assim em versos: “ela é feita ter de matar e ser morta em decorrência
pra apanhar,/ ela é boa de cuspir,/ ela dá pra de. Como o caso célebre do Estrangeiro, de
qualquer um,/ maldita Geni”), quanto uma Camus, que matou “por causa do sol”; ou
alegoria das intervenções desastrosas que se como a singularidade, em Ondas do destino,
apresentam com boas intenções, sublinhada deve sucumbir ao meio homogêneo.
pelo arsenal de fotos do lado obscuro dos
eua ao fim dos filmes, sob a música de No entanto, Von Trier não está fazendo
David Bowie, “Young Americans”, imagino, filmes românticos sobre algum tipo de
suficientemente eloquente: martírio da resistência: ele compõe quadros
(...) macabros e ambíguos sobre o isolamento e
sobre a brutalidade, mas como um satirista
Do you remember, your President Nixon? amoral, sem o que é o certo179. Ele é da
Do you remember, the bills you have to pay estirpe de Machado de Assis em “O Caso da
Or even yesterday?
Have you have been an un-American? Vara”, ou de Swift em A Modest Proposal. Ele
Just you and your idol singing falsetto 'bout é o inimigo, de fato. Mas da estupidez.
Leather, leather everywhere, and
Not a myth left from the ghetto
Well, well, well, would you carry a razor
In case, just in case of depression?178(...)

Era também o poder, em Dançando no 179 Nota de 2010: com Anticristo, percebe-se que, mesmo
escuro, que gerava a aberração da pena de amoral, Von Trier mostra que o cristianismo ocupa um bom
pedaço de sua mente, sobretudo a parte relativa a cruzes,
morte, proposta dentro de um sistema de coroas de espinhos, e o Vale da Morte, com o pastor relapso
que não provê para que nada falte. Um cristão como Sade &
nos deu seu antecessor, mas, nessas coisas, nunca se sabe]. Baudelaire & Bataille. Ou, em termos paulinos & kierkeg-
178 Young Americans, 1975. aardianos: temor & tremor.

230
Fabio Camarneiro
O massacre da serra
elétrica: histeria no
último volume

Uma tela escura. O negrume é interrompido


apenas por flashes rápidos, que revelam
partes de um corpo putrefato: a ponta dos
dedos, um tornozelo, dentes escancarados.
Em plena luz do sol, em meio a um
campo vasto, outro cadáver faz as vezes de
espantalho.

Logo em suas imagens de abertura, O


massacre da serra elétrica funda um gênero
cinematográfico que se preocupa em
observar territórios desolados (muitos
deles no meio-oeste ou no sul dos eua),
onde assassinos seriais perseguem,
preferencialmente, grupos de adolescentes
que são vitimados, um após o outro, a
partir de variações de golpes com objetos
cortantes, esquartejamentos, dilaceramentos,
esmagamento, golpes com martelo etc.

Desde 1974, quando O massacre da serra


elétrica estreou nos cinemas, uma das Mesmo compartilhando com seus sucessores famosas. Enquanto Michael Myers, Jason
preocupações dos roteiristas dos “slasher a figura do assassino serial, O massacre da Voorhees ou Freddy Krueger possuem
movies” tem sido descobrir variações de serra elétrica guarda muitas diferenças de alguma relação com forças sobrenaturais –
mortes violentas que fiquem visualmente séries como Halloween, Sexta-feira 13 e A e daí tiram sua força –, o horror que emana
interessantes numa tela de cinema. hora do pesadelo, para ficarmos nas mais do filme de Tobe Hooper é cotidiano,
231
quase familiar. O espanto nasce da violência mesmos colonizadores que, sedentos do Tobe Hooper, que apenas vagamente baseou
que existe sob o disfarce da normalidade, antigo sangue apache, fincaram residência seu personagem em Ed Gein. Nascido em
nas convenções de uma sociedade criada a para depois enlouquecer. Wisconsin, no nordeste dos eua, Gein
partir de uma colonização extremamente roubava cadáveres e usava suas peles e ossos na
agressiva, fato hoje oculto nas entrelinhas da N’O massacre da serra elétrica, as imagens de confecção de pequenos objetos que guardava
história. violência estão em toda a parte, escondidas em casa como adornos ou souvenires. Ele foi
em objetos cotidianos: talvez nada pareça preso pela morte de duas mulheres, em 1954
Pode-se ver O massacre da serra elétrica como mais “natural” do que matar um boi e e 1957, mas foi considerado insano e passou
a subversão do mito americano da conquista comê-lo, mas poucas coisas são mais o resto da vida em um sanatório. A história
do Oeste, como o contraponto das estranhas do que narrar essa morte como de Gein serviu também de inspiração para o
narrativas a respeito de bons colonizadores se fosse um exercício de prazer. Os sons e Norman Bates de Psicose e o Buffalo Bill de O
lutando com bravura por suas vidas em um ruídos também ajudam a criar essa sensação silêncio dos inocentes.
território dominado por indígenas. Em O de estranheza, como se os ecos dos bois
massacre da serra elétrica, nada disso parece abatidos que aparecem no filme (ou dos Quando o assassino do filme, Leatherface,
ter algum dia existido. Nada mais distante índios assassinados nos westerns e, antes, surge pela primeira vez em cena e, sem
(e ao mesmo tempo mais próximo) do filme no processo de colonização) estivessem nenhuma razão aparente, golpeia um dos
de 1974 do que, por exemplo, No tempo das em toda parte. Os ruídos dão uma textura adolescentes na cabeça, servindo-se apenas
diligências, o clássico western de John Ford. incômoda ao filme, como na sinfonia de de um martelo, acontece algo de absurdo
Em ambos os casos, um grupo de pessoas um motor que funciona solitário ao lado de e aterrador: há uma extrema simplicidade
viajando pelo interior americano (um, em uma casa aparentemente abandonada ou em naquela morte. Não se trata de um
uma diligência que cruza o deserto; o outro um dente encontrado por acaso na soleira assassinato, mas de uma execução, como
em uma van que para em uma cidade no de uma porta e que provoca um chiste e um animal sendo morto. Existe ali uma
interior do Texas). Ambos os filmes acabam um grito – no filme de Tobe Hooper, os eficiência que remete novamente à morte
se detendo na revelação de quem são essas cadáveres estão em todos os lugares. dos índios e dos búfalos que habitavam
pessoas (ou, no caso d’O massacre de quem vastas regiões americanas. O terreno para se
são as pessoas que vivem ali). São pequenos A relação estabelecida com a história dos eua construir essa sociedade foi aplainado com
microcosmos da sociedade americana fica ainda mais evidente no texto que abre sangue.
que se encontram, como se o grupo de o filme, que dá a entender que o roteiro foi
adolescentes de um filme encontrasse os baseado em fatos reais. Na verdade, é tudo Os ecos de Ed Gein estão na cena em que
invenção do diretor, produtor e roteirista uma galinha presa em uma gaiola (algo não

232
necessariamente bizarro) transforma-se em Leatherface é um retrato do que existe de A família obedece a uma normalidade
algo aterrador quando ao seu redor existe mais sanguinário e violento na história dos assustadora e contraditória: apesar de
um quarto decorado com ossos humanos eua. O texto no início do filme fala em cometer assassinatos à mesa, todas as
e restos de penas. Não foram também os “um dos crimes mais bizarros dos anais da antigas convenções são respeitadas (como
povos colonizados, desde sempre, tratados história americana”. Alude-se ao trabalho o colonizador, que precisa matar para que
como animais? Pois tal absurdo só se torna de arquivo, da pesquisa em anais históricos. as “boas maneiras” vençam). O que seria
patente quando colocado lado a lado com Isso torna ainda mais irônico o fato de que mais aterrorizante? O assassinato ou o
algo ainda mais absurdo e assustador. um dos personagens centrais do filme, um peso da tradição, a superioridade de uns
cadeirante, se chame Franklin (nome de um sobre os outros? Essa sequência encontra-se
Como dissemos, Leatherface não é uma dos fundadores dos eua) e represente um magistralmente analisada num trecho do
entidade sobrenatural: ele veste um homem com dificuldades de mobilidade, livro El cine de terror: una introducción, de
avental, algo entre um cozinheiro e um aprisionado em uma cadeira de rodas, que Carlos Losilla.
açougueiro. Um trabalhador, enfim. Um não consegue acompanhar seus colegas
funcionário da morte, um funcionário da de viagem e possui grandes dificuldades Ao se aproximar de seu final, O massacre
ordem estabelecida. Sua matéria-prima é para realizar atividades simples como ir ao da serra elétrica caminha para a histeria.
a carne, não importa qual. Por usar uma banheiro. Franklin logo no começo do filme Nunca antes no cinema tantos gritos foram
máscara, sua identidade se confunde com perde seu canivete e, mais tarde, permanece ouvidos, nunca antes tanta loucura esteve
a de todos os demais trabalhadores norte- apartado das risadas de cunho sexual de seus concentrada em tão poucos minutos de
americanos, que anonimamente cumprem colegas. Ele é o retrato de uma sociedade película. Não se trata do barulho estéril
seus trabalhos e voltam para casa ao final impotente que, depois, tornou-se viciada em que a saudosa crítica norte-americana
do expediente. Leatherface é nada além de violência. Pauline Kael chamava de “boo-movies”
um operário, um operário da carne. Sua (trocadilho com o b-movies). No filme de
situação de subalterno fica mais clara na Doutor Jekyll e Mister Hyde, o cadeirante Tobe Hooper, os gritos tentam superar o
cena do jantar, quando ele fica proibido de Franklin e o assassino Leatherface, faces de barulho dos motores, inclusive do motor
opinar. É evidente que ele não possui outra uma mesma moeda. da serra elétrica. É a eletricidade que
força além da sua força de trabalho. Seu alimenta também a violência: a civilização
único sentimento é uma espécie de orgulho Quando, nas sequências finais do filme, e todos os seus avanços, a modernidade e
profissional que não permite deixar que vemos a família de Leatherface reunida, o suas máquinas parecem existir a serviço da
aqueles corpos passem por ele sem serem assassino e o cadeirante se reúnem na figura morte. Foi esse o insight que levou Freud
transformados em alguma outra coisa. do vovô, agora completamente inválido. a escrever “O mal estar na civilização” e

233
também a ideia de Hitler, ao transformar que continua girando sem parar nas mãos
esse axioma teórico em prática genocida. do assassino, que encerra o filme em
uma coreografia de morte, a aurora ao
Talvez os barulhos das máquinas que fundo. Um corte abrupto, o fim do filme.
abundam em nossa sociedade até hoje ainda Silêncio. Mas a histeria continua, invisível,
consigam abafar os gritos de desespero, dentro de nós, nos momentos da história
os gritos histéricos de todas as vítimas da que nos precedeu e da qual somos fruto
história. Notícias no rádio anunciam o incontestável.
tempo todo essas mortes, os massacres,
os julgamentos, mas o público segue
anestesiado, pensando apenas em suas
próprias ocupações cotidianas enquanto
um pedaço de carne assa no forno. Poucos
se dão conta de que o martelo usado nos
massacres é o mesmo usado para abater a
carne que será comida à mesa, em meio
aos rituais familiares de todo dia – a ordem
familiar como prisão e como evangelho da
violência do dia a dia, origem de todo o
mal.

Essa visão de uma sociedade totalmente


distorcida e doentia é cinema a todo
volume. O massacre da serra elétrica é
um filme ensurdecedor: gritos, motores
e animais, grilos e insetos noturnos, as
notícias de morte no rádio. Quando, após
o jantar, a única sobrevivente finalmente
consegue escapar, seus gritos não cessam.
Tampouco cessa o barulho da motosserra,

234
5 Receitas da culinAria licantrOpica
(francesa, alemã, ianque e brasileira)

Ilustrações: Diego de Sousa

Pernil Humano en Croûte

Ingredientes:
4 kg de pernil de humano sem osso
1 pacote de massa folhada pronta
3 colheres de sopa de azeite extravirgem
2 cálices de vinho madeira
1 gema
tomilho e alecrim
sal e pimenta a gosto

Modo de preparo:
Temperar o pernil de humano (dê preferência aos corruptos, cuja bunda
mole faz do pernil mais tenro) com o sal, a pimenta, o tomilho e o alecrim.
Regar com vinho e deixar marinar durante 2 horas. Levar ao forno coberto
com o azeite e assar durante 30 minutos em forno médio. Retirar e deixar
esfriar. Envolver a carne na massa folhada, aberta com um rolo. Pincelar
com a gema misturada com 1 colher de água e voltar ao forno médio por
20 minutos.

Rendimento: 2 lupus hominarius

235
PorkPig à Moda Alemã

Ingredientes:
1 humanobeso de 150 a 200 kg
50 a 70 limões
50 dentes de alho
10 colheres (chá) de sal
10 colheres (chá) de pimenta-do-reino
10 colheres (chá) de cominho
30 cebolas
20 tabletes de caldo de bacon dissolvidos em 20 litros de água
ervas aromáticas frescas (coentro, salsa, manjerona)
10 xícaras (chá) de gordura de porco
10 litros de cerveja
10 xícaras (chá) de creme de leite
10 colheres (sopa) farinha de trigo

Modo de Preparo:
Limpar o humanobeso com o suco de limão. Deixar de véspera na vinha
d’alho feita com todos os ingredientes: limão, alho, sal, pimenta-do-reino,
manjerona, cominho, cebola, caldo de bacon e ervas aromáticas. No dia
seguinte, retirar o humanobeso da vinha d’alho e refogar na gordura até
dourar. Juntar um pouco da vinha d’alho, para ajudar a dourar. Colocar
o humanobeso numa assadeira e levar ao forno brando por 20 horas. Nos
últimos 15 minutos, regar com a cerveja. Depois de pronto, misturar a
farinha com o creme de leite e despejar sobre o humanobeso. Levar ao forno
para dar consistência ao creme.

Rendimento: 10 lupus hominarius

236
Fôrma de Carne Parva

Ingredientes:
2 kg de carne humana moída
2 ovos
1 xícara (chá) de cebola bem picadinha
2 colheres (sopa) de suco de limão
2 dentes de alho
3 colheres (sopa) de salsinha picada
3 colheres (sopa) cebolinha verde picada
1 colher (chá) de tomilho
2 pimentões azuis picados
2 pimentões vermelhos picados
sal e pimenta-do-reino a gosto
1 xícara (chá) de farinha de rosca
4 fatias de bacon
Catchup a gosto

Modo de Preparo:
Misturar a carne humana moída com o ovo, a cebola, o suco de limão,
o alho picado, a salsinha, a cebolinha, o tomilho, o pimentão, o sal, a
pimenta e a farinha de rosca, amassando com a mão para ligar bem. Untar
uma fôrma para bolo inglês, colocar a carne, comprimindo bem. Cobrir
com o bacon e assar em forno médio durante 1 hora. Servir em fatias com
barbecue.

Rendimento: 3 lupus hominarius

237
Feijoada Licantropicalista
Ingredientes:
200 g de carne seca humana
200 g de costela humana
200 g de pé de humano salgado
100 g de orelhas humanas secas
100 g de língua humana ferina defumada
100 g de paio fatiado
100 g de linguiça portuguesa defumada
50 g de bacon em cubos
1 kg de feijão preto
2 cebolas picadinhas
100 g de alho picado
6 folhas de louro da cabeça de Camões
2 laranjas com cascas cortadas ao meio

Modo de preparo:
Limpe bem as carnes salgadas, tirando o excesso de gorduras e nervuras, limpando os pelos e
colocando-as de molho em água por 24 horas, trocando-se a água três a quatro vezes durante este
período. Ferva as carnes salgadas em peças inteiras, durante mais ou menos 20 minutos em fogo forte,
e jogue a água fora, pois nela está todo o excesso da podridão humana. Coloque então as carnes para
cozinhar de forma definitiva, já com o feijão, as folhas de louro e as laranjas cortadas em metades,
na seguinte ordem: carne seca, pé e orelha. Meia hora depois coloque a língua, o cu e a costela, e
após meia hora, coloque a linguiça, o paio e o bacon, cuidando para tirar e jogar fora, durante todo
o cozimento, a podridão que for subindo à superfície. Em uma frigideira, doure bem a cebola e o
alho em duas xícaras de óleo previamente aquecido, colocando na panela do cozimento, junto com as
últimas carnes para cozinhar, retirando antes as metades das laranjas, que já cumpriram a sua missão
de ajudar a cortar a podridão das carnes. Após duas horas comece a testar o grau de cozimento com o
garfo, pois nem todas as carnes chegam ao grau de maciez ao mesmo tempo, retirando e reservando
as que já estiverem no ponto. Quando todas as carnes e o feijão estiverem no ponto, retire e corte as
carnes em pedaços pequenos para servir, voltando para a panela com o feijão e cozinhando por mais
10 ou 15 min. em fogo brando. Sirva com arroz branco e couve refogada no azeite e alho, e farofa de
mandioca.

Rendimento: 4 lupus hominarius


238
Cabeças Humanas à Dose Dupla

Ingredientes:
2 cabeças humanas
2 gemas de ovos As Receitas
2 cálices de pinga da Cozinha Licantrópica
Azeite, orégano e sal a gosto São um Oferecimento de:
Modo de Preparo:
Pegue as duas cabeças e raspe todos os
cabelos do couro cabeludo. Depois de lisas,
coloque as duas em uma grande panela
de água fervente e deixe cozinhar por 20
minutos em fogo alto. Depois tire, regue
com os 2 cálices de pinga e deixe descansar
por 30 minutos. Bata as duas gemas e
pincele as duas cabeças. Salpique o orégano
e sal e leve ao forno por mais 15 minutos.
Depois é só tirar e regar com azeite. Chame
a namorada e aproveite, é ótimo para
acompanhar aquela cervejinha gelada.

Rendimento: 2 lupus hominarius

239
Are You Shakespearienced?
William Shakespeare O amanhã, o amanhã, outro amanhã. Amanhã, e amanhã, outro amanhã,
escreveu Macbeth. Desta peça, o fragmento dia a dia se escoam de mansinho, rasteja dia a dia em miúdo avanço,
abaixo: o solilóquio pop (e magnífico) de até que chegue, alfim, a última sílaba até à última sílaba da História,
do livro da memória. Nossos ontens e os nossos ontens alumiaram, todos,
Macbeth ao ser noticiado da morte de para os tolos a estrada deixam clara a estrada que nos leva, a nós, ingênuos,
Lady Macbeth. É de uma beleza colossal e da empoeirada morte. Fora! Apaga-te, ao pó da morte. Apaga-te, oh apaga-te,
não poucos tradutores, peritos no gingar candeia transitória! A vida é apenas precária vela! A vida é tão somente
das cadeiras da última flor do lácio, se uma sombra ambulante, um pobre cômico uma sombra que passa; um pobre ator,
enveredaram em verter à língua de Camões que se empavona e agita por uma hora que no palco se entona e se aborrece
estes belíssimos escritos shakespearianos. no palco, sem que seja, após, ouvido; em sua hora e depois não mais é ouvido:
é uma história contada por idiotas, é uma história narrada por idiota,
O Almanaque Lobisomem traz à baila cheia de fúria e muita barulheira cheia de som e fúria que não querem
algumas dessas aventuras intelectuais: Are que nada significa. dizer nada.
You Shakesperienced?
(Tradução de Carlos Alberto Nunes) (Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos)
To-morrow, and to-morrow, and to-morrow,
Creeps in this petty pace from day to day
To the last syllable of recorded time, Amanhã, volvendo O amanhã, o amanhã, o amanhã, avança em
And all our yesterdays have lighted fools Trás amanhã e trás amanhã de novo. pequenos passos, de dia para dia, até a última sílaba
The way to dusty death. Out, out, brief candle! Vai, a pequenos passos, dia a dia, da recordação e todos os nossos ontens iluminaram
Life´s but a walking shadow, a poor player, Até a última sílaba do tempo para os loucos o caminho da poeira da morte.
That struts and frets his hour upon the stage, Inscrito. E todos esses nossos ontens Apaga-te, apaga-te, fugaz tocha! A vida nada mais
And then is heard no more; it is a tale Têm alumiado aos tontos que nós somos é do que uma sombra que passa, um pobre histrião
Told by an idiot, full of sound and fury, Nosso caminho para o pó da morte. que se pavoneia e se agita uma hora em cena e,
Signifying nothing. Breve candeia, apaga-te! Que a vida depois, nada mais se ouve dele. É uma história
É uma sombra ambulante: um pobre ator contada por um idiota, cheia de fúria e tumulto,
Que gesticula em cena uma hora ou duas, nada significando.
Depois não se ouve mais; um conto cheio
De bulha e fúria, dito por um louco, (Tradução de Oscar Mendes e
Significando nada. F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros)

(Tradução de Manuel Bandeira)

240
Amanhã, e amanhã, e ainda outro amanhã Amanhã, e amanhã e ainda amanhã Amanhã amanhã amanhã amanhã
arrastam-se nessa passada trivial do dia para a noite, Arrastam nesse passo o dia a dia Rasteja em passo parco dia a dia
da noite para o dia, até a última sílaba do registro Até o fim do tempo pré-notado. até a última sílaba do Tempo.
dos tempos. E todos os nossos ontens não fizeram E todo ontem conduziu os tolos E os ontens, todos, só nos alumiam
mais que iluminar para os tolos o caminho que leva À vida em pó da morte. Apaga, vela! O fim no pó. Apaga, apaga, vela
ao pó da morte. Apaga-te, apaga-te, chama breve! A vida é só uma sombra: um mau ator Breve!
A vida não passa de uma sombra que caminha, Que grita e se debate pelo palco, A vida é só uma sombra móvel.
um pobre ator que se pavoneia e se aflige sobre Depois é esquecido; é uma história Pobre ator
o palco – faz isso por uma hora e, depois, não se Que conta o idiota, toda som e fúria Que freme e treme seu papel no palco
escuta mais sua voz. É uma história contada por um E não quer dizer nada. E logo sai de cena. Um conto tonto
idiota, cheia de som e fúria e vazia de significado. Dito por um idiota – som e fúria, signi-
(Tradução de Barbara Heliodora) Ficando nada.
(Tradução de Beatriz Viégas-Faria)
(Tradução de Augusto de Campos)
Amanhã, e outra vez amanhã, e novamente
Amanhã, amanhã, amanhã, avançando amanhã, vão deslizando devagar, de dia para dia
Vão, passo breve, dia após dia e chegando até à última sílaba marcada no tempo; e todos os A-manhã e a-manhã e a-manhã
Do registo do tempo à sílaba final. nossos ontens alumiaram à tola humanidade o Rasteja em passo espúrio, dia a dia,
Nossos ontens, então um a um, por igual, caminho do pó da morte. Apaga-te, apaga-te, débil Até a última sílaba do tempo,
Iluminado têm para loucos a estrada candeia. A vida não é mais do que uma sombra que E todos nossos ontens deram aos tolos
Que leva ao pó da morte. Esvai-te, ó delicada passa; um pobre actor que se pavoneia e agita em Luz na ida ao pó. Fora, vela breve!
Chama! Apaga-te! A vida é sombra passageira. cena por uma hora e depois nunca mais se ouve; Vida, ou sombra em pernas, mero ator
Um pobre ator que chega, agita a cena inteira, uma história contada por um idiota, cheia de sons e Que treme e tosse sua hora no palco,
Diz seu papel e sai. E ninguém mais o nota. de fúria, sem qualquer significado. E já não o ouvimos mais; é um conto
É um conto narrado aí por um idiota, De idiota, de muito som e fúria,
Cheio de sons, de fúria e não dizendo nada. (Tradução de Ricardo Alberty) Significando nada.

(Tradução de Artur de Sales) (Tradução de Dirceu Villa)

241
242
BEatles
As impurezas do
Álbum Branco
6 lyrics do White Album
Traduzidas por Carlos Drummond de Andrade

Farei tudo

Desde sempre te amei


e bem sabes que ainda te amo. I Will
Devo esperar toda a vida?
Who knows how long I’ve loved you,
Se quiseres – esperarei. You know I love you still,
Will I wait a lonely lifetime,
Se alguma vez te vi If you want me to I will.
nem sequer teu nome escutei.
Mas isso não faz diferença: For if I ever saw you,
sempre a mesma coisa sentirei. I didn’t catch your name,
But it never really mattered,
I will always feel the same.
Eu te amarei por todo o sempre, sempre,
desde a raiz do meu coração Love you forever and forever,
e te amarei quando estivermos juntos Love you with all my heart;
e te amarei na solidão. Love you whenever we’re together,
Love you when we’re apart.
Quando finalmente te encontrar
tua canção envolverá o espaço. And when at last I find you,
Canta bem alto, para eu escutar. Your song will fill the air,
Sing it loud so I can hear you,
Tudo farei para te dar o braço Make it easy to be near you,
pois tudo em ti me prende a mim. For the things you do endear you to me,
Bem sabes que farei tudo oh, you know I will.
                                        tudo farei. I will.
243
Melro

Melro que cantas no morrer da noite,


com estas asas rotas aprende teu voo Blackbird
A vida toda
esperaste a hora e a vez de teu voo. Blackbird singing in the dead of night
Take these broken wings and learn to fly
All your life
Melro que cantas no morrer da noite,
You were only waiting for this moment to arise.
com estes olhos fundos aprende a ver
A vida toda Blackbird singing in the dead of night
esperaste a hora e a vez de ser livre. Take these sunken eyes and learn to see
All your life
Voa, melro, voa, melro, You were only waiting for this moment to be free.
para o clarão da escura noite.
Blackbird fly, Blackbird fly
Into the light of the dark black night.
Voa, melro, voa, melro,
para o clarão da escura noite. Blackbird fly, Blackbird fly
Into the light of the dark black night.
Melro que cantas no morrer da noite,
Blackbird singing in the dead of night
com estas asas rotas aprende teu voo
Take these broken wings and learn to fly
A vida toda All your life
esperaste a hora e a vez de teu voo You were only waiting for this moment to arise
esperaste a hora e a vez de teu voo You were only waiting for this moment to arise
esperaste a hora e a vez de teu voo. You were only waiting for this moment to arise.

244
A felicidade é um revólver quente

Até que essa garota não erra muito


oi  oi  oi  oi  oi  oi  oi  oi Hapiness Is a Warm Gun
Acostumou-se ao roçar da mão de veludo
como lagartixa na vidraça. She’s not a girl who misses much
Do do do do do do do do
She’s well acquainted with the touch of the velvet hand
O cara da multidão, com espelhos multicores Like a lizard on a window pane.
sobre seus sapatões ferrados
descansa os olhos enquanto as mãos se ocupam The man in the crowd with the multicoloured mirrors
no trabalho de horas extraordinárias On his hobnail boots
com a saponácea impressão de sua mulher Lying with his eyes while his hands are busy
Working overtime
que ele papou e doou ao Depósito Público. A soap impression of his wife which he ate
And donated to the National Trust.
Preciso de justa-causa porque vou rolando para baixo
para baixo, para os pedaços que deixei na cidade-alta, I need a fix ‘cause I’m going down
preciso de justa-causa porque vou rolando para baixo Down to the bits that I left uptown
Madre Superiora dispara o revólver I need a fix cause I’m going down
Mother Superior jump the gun
Madre Superiora dispara o revólver Mother Superior jump the gun
Madre Superiora dispara o revólver Mother Superior jump the gun
Mother Superior jump the gun.
A felicidade é um revólver quente
A felicidade é um revólver quente Happiness is a warm gun
Quando te pego nos braços Happiness is a warm gun
When I hold you in my arms
e meus dedos sinto em teu gatilho, And I feel my finger on your trigger
ninguém mais pode com a gente, I know no one can do me no harm
pois a felicidade é um revólver quente Because happiness is a warm gun
                                                          lá isso é. – Yes it is.
 

245
Obladi, obladá

Desmond tem um carrinho na Praça do Mercado.


Ob-la-di, ob-la-da
Molly vocaliza num conjunto.
Desmond diz a Molly: Por teu rosto sou vidrado Desmond has a barrow in the market place
Molly diz-lhe: O quê? e pega-lhe na mão. Molly is the singer in a band
Desmond says to Molly – girl I like your face
Obladi, obladá, a vida continua: olá, And Molly says this as she takes him by the hand
olalá, como a vida continua!
Obladi, obladá, a vida continua... Olá, Ob-la-di ob-la-da life goes on bra
olalá, como a vida continua! La-la how the life goes on
Ob-la-di ob-la-da life goes on bra
Desmond toma o ônibus, vai à joalheria Lala how the life goes on
compra anel de ouro de ofuscar
Desmond takes a trolley to the jewellers store
e leva-o a Molly, que espera junto à porta.
Buys a twenty carat golden ring
De anel no dedo, eis Molly a cantar. Takes it back to Molly waiting at the door
And as he gives it to her she begins to sing
Em um par de anos terão construído
um lar bacana doce que nem cana. In a couple of years they have built
Um par de garotos corre pelo pátio A home sweet home
desse casal unido. With a couple of kids running in the yard
Of Desmond and Molly Jones
Olha Desmond feliz na Praça do Mercado.
Ao lado, os molequinhos ajudando. Happy ever after in the market place
Molly ficou em casa se enfeitando Desmond lets the children lend a hand
Molly stays at home and does her pretty face
e à noite ainda canta no conjunto.
And in the evening she still sings it with the band
Olha Molly feliz na Praça do Mercado. Happy ever after in the market place
Ao lado, os molequinhos ajudando. Molly lets the children lend a hand
Desmond ficou em casa se enfeitando Desmond stays at home and does his pretty face
e à noite ela ainda canta no conjunto. And in the evening she still sings it with the band

E se querem se divertir, obladi, obladá! And if you want some fun – Take Ob-la-di b-la-da.
246
Porcos E por que não aqui na estrada?

Viste os porquinhos E por que não aqui na estrada?


rebolando na imundície? Piggies Não há ninguém para ver nada
Para todos os porquinhos E por que não aqui na estrada?
a vida está cada vez mais difícil Have you seen the little piggies
e brincam sempre na sujeira por aí. Crawling in the dirt
And for all the little piggies
Life is getting worse
Viste os mais taludos porquinhos
Always having dirt to play around in
em suas engomadas, alvíssimas camisas? Why Don’t We Do It In The Road?
Olha os mais taludos porquinhos Have you seen the bigger piggies
Why don’t we do it in the road?
em algazarra na imundície In their starched white shirts?
No one will be watching us
com camisas alvíssimas a folgar por aí. You will find the bigger piggies
Why don’t we do it in the road?
Stirring up the dirt
Always have clean shirts to play around in
Em seus chiqueiros, plenamente protegidos,
ao que vai por aí nem ligam. In their styes with all their backing
Nos olhos deles falta uma coisinha: They don’t care what goes on around
precisam mesmo é de suma porcaria. In their eyes there’s something lacking
What they need’s a damn good whacking
Por toda parte há muitos porquinhos
Everywhere there’s lots of piggies
vivendo suas porquinhas vidas.
Living piggy lives
Podes vê-los para o jantar saindo You can see them out for dinner
com suas porquinhas mulherinhas With their piggy wives * Essas traduções foram publicadas originalmente
de garfo e faquinha para comer presunto. Clutching forks and knives to eat their bacon na revista Realidade, em março de 1969.
 

247
Juliana Marks

Banco de praça (2010)


Banco de praça em Santa Rosa – RS

248
Oferenda (2010)
Santa Rosa, RS

249
Paulo Rodrigues
Redemoinho constrangedora. Por não saber conversar, loja fico sem saída. O retorno abrupto
Apesar de exercer uma ocupação nem mesmo com pessoas da minha realimenta a fonte dos meus temores.
despretensiosa, procuro não me entediar idade, me acho companhia aborrecida Quando me ponho a reorganizar as coisas
por atender ao balcão. Vender bugigangas ou inoportuna. Só me sinto tranquilo para o dia seguinte, a primeira imagem que
é tarefa simples e das mais rotineiras, e eu durante o movimento da loja. Detrás do me acode é a do rosto sereno da dona Zina.
disponho de muito tempo para pensar e balcão sou figura imprescindível, e levo a Pensando nela, na afeição extremada que
repensar a vida. A maior parte da clientela vantagem de tratar com gente de gênero, lhe dedico, entre o silêncio das prateleiras
vem da periferia, é gente comum que não classe e idade diferentes, sem me envolver e o vazio dos balcões, eu sempre diviso
desperta maiores interesses; o trabalho emocionalmente. Para as mais interessantes um horizonte incerto. O balancete que
segue maquinalmente, e eu crio artifícios e aparentemente profundas, reservo um eu quero de fato ver lá em cima é o do
para fugir da monotonia. Acabo por usar sorriso gelado. Para as mais repulsivas, um meu conceito junto a essa família que me
o contato com a freguesia para treinar olhar tão cândido quanto pode simular uma abriga. Certeza de ser necessário, desejado
minha minguada conversação. Conversar, boa mistura de ironia e ódio. Não posso e querido, mesmo quando um miserável
eis uma das coisas que me assustam. negar que às vezes encontro alguém que canudo de papel tornar injustificável a
Nunca aprendi a discorrer sobre qualquer perturba meu esquema tão bem armado minha permanência na casa deles (que
assunto fora dos limites da minha casa. de superficialidade e distanciamento. Mas, razão teria um profissional diplomado para
Ficar encabulado diante das pessoas abaixa quando isso acontece, eu conto até dez e continuar defendendo uma merreca atrás
doentiamente a minha crista e me põe às não deixo o abalo transparecer. de um balcão de loja pequena?). Eu quase
portas da depressão. Não sei tirar prazer da enlouqueço, mas, mesmo que desejasse, não
solidão, por isso me forço a conviver em Em verdade, tudo que eu busco nessa conseguiria esquecer o rosto dela. Porém,
sociedade. Frequento o clube, os bares e as pequena loja de armarinhos é ocupar o a voz cansada do seu Antônio vem, numa
danceterias, escolhendo sempre lugares não tempo e a mente. Tento ficar longe de casa frase recorrente, perturbar ainda mais meu
muito distantes, porque assim posso voltar sem pensar no drama que me atormenta. devaneio. Numa frase! Frase singela, clara e
para casa a pé quando tenho a sensação de De certo modo isso parece contraditório, objetiva, dita em tom de felicitação: “Muito
estar prestes a entrar em pânico, ou quando pois me afasto da casa para pensar num bem, garoto, agora você já está preparado
o tédio se torna insuportável. Não recuso jeito de nunca mais sair dela. O trabalho para enfrentar a vida!” Essa frase à-toa, que
convites para festas, passeios e reuniões, funciona como entorpecente sobre os meus um dia haverá de ser dita por esse pobre
porém, minha participação é sempre muito sentidos, mas quando abaixo as portas da coitado, é a raiz dos meus temores. É que
250
a minha vida, depois que me mudei para a arrependimento tem tempo determinado. a ver, isto sim, com os expressivos silêncios
casa deles, finalmente encontrou sentido. E Passa a vergonha, vem outra crise, eu volto. da Dona Zina e com a voz metódica do seu
eu já nem me importo mais em questionar marido.
se há dignidade nesse sentido, pois só o Mandar-me para a casa deles como
fato de pensar em voltar à existência antiga empregado e pensionista era uma tentativa Quando retardo minha volta a casa, não
é aflição bastante para mover o engenho desesperada de mudar minha sorte, a mãe preciso apurar os ouvidos no portão para
da minha loucura. Minha cabeça se perde me disse. “Você tem má índole. Vai acabar saber que o seu Antônio já dorme um sono
então como dantes numa espiral de imagens por matar alguém num acesso de cólera.” de pedra. Mesmo dormindo ele consegue
de violência e de morte. (Ela se referia ao seu fogoso namorado, me enervar com seu ronco monocórdico.
o Amadeu, quando dizia que eu ainda Eu retiro então os sapatos, fingindo
Quando os pensamentos se tornam ia matar alguém). “De todo modo” – pretender deslizar respeitoso para o meu
insuportáveis, eu deixo a loja e perambulo completou, enquanto afivelava minha mala quarto e me pôr debaixo das cobertas sem
pelas ruas escuras do centro até me sentir – “você já está me matando aos poucos, de perturbar esse cerimonial antigo. Porém,
fatigado. Daí, como um ladrão, caminho desgosto”. antes que a chave gire na fechadura, a
à sombra dos muros e me enfio sorrateiro luz se acende e a cozinha entra em pleno
na quitinete da Marta, em busca de outro Eu nunca me senti esse demônio que funcionamento, como se houvesse um
conforto. Pobre Marta. Na meia claridade ela sugeria, embora muitas vezes tivesse mecanismo regulado para a hora de minha
do seu quarto, ninguém sabe de amor perambulado pelas ruas de minha chegada. Dona Zina apanha na porta os
melhor do que ela. Sua cama larga ocupa cidadezinha para evitar o pior. Em todo meus sapatos, e, sem fazer comentários nem
grande parte do aposento, e o espaço que caso, a mãe era injusta. Meu ódio sempre me permitir qualquer protesto, arruma
sobra é preenchido pelo excesso de afeto teve endereço certo, o descarado do pratos fumegantes sobre a mesa. Toma lugar
que ela distribui aos amigos. Mas eu só Amadeu. O medo de ela me desprezar à minha frente e namora meus trejeitos de
me envergonho de desfrutar um amor que perpetuamente fora o mais forte motivo satisfação, os quais, ainda que eu quisesse,
não mereço quando entro em trégua com para eu segurar os meus impulsos. Mas a não teria como evitar. Mas eu busco
o desespero. Em geral, subo friamente, mãe tinha certa razão quando me acusava de exatamente o contrário. Exagero os estalos
descarrego minha bile e caio fora, quase rancoroso, apenas nunca atentou para o fato da língua, olho com volúpia os petiscos
sereno, quase em paz... Prometo não deitar de que o desassossego pode brotar de outras sobre a mesa e tento demonstrar uma alegria
mais naquela cama escancarada, sempre fontes. Hoje, o motivo de minha angústia ingênua. Gaguejo ainda umas palavras de
pronta para o amor gratuito. Mas meu nada tem a ver com aquelas acusações. Tem desculpa pelo atraso. O semblante dela é

251
sempre tranquilo, apenas a sobrancelha trai às raias do cinismo e use novo estratagema regressar. Essa cena nunca me abandona:
um pontinho de censura, enquanto seu para praticar mais um ato vil. uma girândola de foguetes próximos de
sorriso aprova minha teatral gulodice. explodir. Repete-se, sempre e sempre,
Que devo fazer então? Dar o fora antes do alimentando a minha cólera. Pensar em
Ah, se ela não fosse assim tão jovem, eu tempo, ou pedir pra ela se afastar de mim, voltar à existência antiga é o bastante para
poderia enxergar em sua delicadeza apenas sobretudo quando me demoro? Gritar que me deixar em parafuso. Minha cabeça então
cuidados de mãe. Minha mãe, quando só me atraso quando estou doente, quando se perde num ameaçador redemoinho, cheio
ainda não havia o Amadeu (ele sim um perco o freio e tenho a rédea solta? Não. de imagens confusas, de violência e morte.
demônio dissimulado), sempre fora carinho Nada disso eu lhe peço ou digo, porque
e desvelo. Minha roupa, minha higiene, desejo exatamente o contrário. E se eu
minha linguagem, tudo ela inspecionava. A pudesse, se tivesse coragem, desprezaria
colcha no verão ou o edredom no inverno, rédeas e freios. Tomaria, isso sim, uma dose
sempre puxados com carinho à altura do caprichada de coragem e lhe confessaria
meu pescoço. Como eu me lembro do seu que noutros tempos eu vivera o reverso
beijo úmido e do seu olhar mesclado de da medalha, chegando a sentir no cheiro
preocupação e ternura! sagrado de minha mãe um clandestino
perfume de fêmea.
Ah, se ela não fosse tão jovem eu poderia
me entregar por completo a essas doces Mas o ronco aborrecido do seu Antônio
lembranças, aninhar a cabeça em seu colo no cômodo ao lado trava toda a minha
e chamá-la mãe. Poderia deixar escapar vontade. Dona Zina se levanta, desliza
lágrimas antigas e revelar a truculência com os dedos pelos meus cabelos e me deixa
que sempre ocultei minha fragilidade diante sozinho. Eu sempre acabo sozinho. O
desses desnaturados anseios. Entretanto, enfadonho ruído mantém uma regularidade
se os seios fartos de minha mãe tinham o exasperante e eu, não sei por quê, me
poder de me acalmar tormentas, os dela, lembro do Amadeu, do amante dissimulado
menos fartos e mais atrevidos, só podem e ativo. Parece-me que ali ao lado, como
liberar desejos proibidos. E o pouco que me num sonho, ressona sua cópia invertida,
resta de consciência impede que eu chegue lembrando que se aproxima a hora de

252
Heinrich Boll
Tradução de Flávio Rodrigo Penteado

O ridente Tornei-me indispensável, rio em discos, em bandas, e os diretores


de peças radiofônicas me tratam com reverência. Rio de forma
Sempre que indagado a respeito de minha profissão, sou acometido melancólica, sóbria, histérica – rio como um condutor de bonde
pelo embaraço: fico vermelho, gaguejo, eu, logo eu que sou tido ou como um aprendiz na indústria alimentícia; o riso da manhã, o
por pessoa decidida. Invejo os que podem dizer: sou pedreiro. riso da tarde, o riso da noite, o riso do crepúsculo, em suma: onde
Barbeiros, contadores, escritores, invejo neles todos a simplicidade sempre e como sempre se deve rir: é o que faço.
de suas respostas, pois todas essas profissões se esclarecem por si
próprias e não requerem maiores esclarecimentos. A perguntas Há de se acreditar que tal profissão é extenuante, sobretudo porque
como esta, contudo, sou obrigado a responder: sou ridente. Uma – esta é minha especialidade – domino também o riso contagioso,
declaração dessas acarreta outras e logo tenho de responder também de sorte que me tornei indispensável também para comediantes
à segunda pergunta “e você vive disso, é?” precisamente com um de terceira e quarta categoria, os quais temem, com razão, pelo
“sim”. Eu realmente vivo do meu riso, e vivo bem, pois o meu riso sucesso de suas piadas. Infiltro-me quase todas as noites em shows
é – comercialmente falando – requisitado. Sou um bom, um mestre de variedades como um discreto artista do riso, de modo a provocá-
ridente, não há outros que riam como eu, ninguém que domine lo nas partes fracas do programa. É trabalho pra ser feito sob
tão perfeitamente as minúcias de minha arte. Por muito tempo medida: decidido, desenfreado, meu riso não pode aparecer muito
– para evitar aborrecimentos – me defini como ator, mas minhas cedo, tampouco muito tarde, deve surgir no instante preciso –
habilidades mímicas e vocálicas são tão diminutas que esta definição então desato a rir conforme o programa, os clamores da plateia me
não me acompanham, e a piada está salva.
pareceu corresponder à verdade: eu amo a verdade e a verdade Depois me esgueiro exaurido pro camarim, visto meu agasalho, feliz
é: sou ridente. Não sou palhaço nem comediante, não divirto as por alcançar descanso, enfim. Em casa, geralmente há telegramas
pessoas, antes encarno a diversão: rio como um imperador romano endereçados a mim: “Carecemos impreterivelmente do seu riso.
ou como um sensível vestibulando, o riso do século xvii é para Gravação na terça-feira”, e poucas horas mais tarde vou de cócoras
mim tão familiar quanto o do século xix, e quando é preciso minha em um trem superlotado e lamento minha sorte.
risada atravessa todos os séculos, todas as classes sociais: aprendi Qualquer um compreenderá que, depois do expediente ou
isso tão facilmente quanto se aprende a pôr sola em sapatos. O riso quando estou de férias, eu sinta pouca vontade de rir: o camponês
da América descansa no meu peito, o riso da África, o riso branco, fica satisfeito quando pode se esquecer da vaca que ordenhou,
rubro, amarelo – e, em troca do pagamento correspondente, deixo-o o pedreiro, feliz quando se esquece do cimento, e o marceneiro
retinir, conforme o fixado pela direção do teatro.
253
geralmente tem em casa portas que não funcionam ou gavetas
que apenas com muito esforço se consegue abrir. O doceiro gosta
de pepino azedo, o açougueiro, de marzipã, e o padeiro prefere
salsicha ao pão; o toureiro gosta de lidar com pombas e o boxeador
fica branco quando sangra o nariz de seu filho: entendo tudo
isso, pois jamais dou risada após o fim do expediente. Sou um
sujeito casmurro e as pessoas me tomam – talvez com razão – por
pessimista.

Nos primeiros anos de nosso casamento, frequentemente minha


mulher me dizia: “Dê mais risadas!”, mas logo ficou claro para ela
que não posso satisfazer-lhe esse desejo. Sou feliz quando posso
distender os músculos em frangalhos de meu rosto, quando posso
aliviar com profunda gravidade meu espírito calejado. É, também o
riso dos outros me dá nos nervos, porque me lembra muito minha
profissão. Assim, levamos uma sossegada, pacata vida de casados,
porque também minha mulher desaprendeu a rir: vez ou outra topo
com ela sorrindo e então sorrio também. Falamos baixinho um com
o outro, pois detesto a farra dos shows de variedades, detesto a farra
que pode reinar sobre os bastidores. Pessoas que não me conhecem
me tomam por pouco comunicativo. Talvez eu seja, porque várias e
várias vezes tenho de abrir a boca para rir.

Com o rosto impassível vou levando minha vida, vez ou outra


esboço um leve sorriso, e então reflito se realmente já dei risada
algum dia. Acho que não. Meus irmãos afirmam que sempre fui um
rapaz sério.

Assim é que rio de inúmeras maneiras, mas meu próprio riso


desconheço.

254
Alfred Doblin
Tradução de Karen Revisited

A biblioteca lia. Em pouco tempo dispensava aquele exemplar e pegava outro;


este, qualquer coisa como uma história indiana, bem podia ter sido a
Era uma vez um homem, Karl Flieder, limpador de chaminés que bula de sua trajetória. Não conseguia se decidir.
ao entrar numa biblioteca certo dia, entregou-se por completo ao Eis como encontrou a saída: numa biblioteca as pessoas não podem
alumbramento. Não conseguia se defender da ideia de que essas se debruçar sobre livros que se contradizem, mas, isto sim, se darem
obras, caso permanecessem aqui e nunca fossem emprestadas, a por satisfeitas com uma espécie de “média ponderada” – a qual
longo prazo deviam exercer grande influxo nas paredes e no teto. resulte num espaço repleto de livros e nada mais. Não demorou
As obras deviam ter exercido tal influxo por tanto tempo que só de muito para que saísse de perto das estantes e voltasse ao irrefletido
sentar-se em uma dessas cadeiras, de permanecer à toa, se poderia estar à toa, pelo qual muitas e muitas ideias lhe semeavam a mente,
adquirir sólidos conhecimentos. sem que seguisse, no entanto, o rastro de nenhuma delas.

Ele jamais revelara essas ideias tão cristalinas a ninguém, mas em O limpador de chaminés viveu nesse estado flutuante por quatro
seu tempo livre acomodava-se numa cadeira, espiava em volta anos. Via-se nele um homem sério e respeitável. As pessoas
e esperava. Flieder, que era um solteirão e trabalhava com dois acreditavam que a imensa estima pelos livros o impedia de lê-los. A
ajudantes, não raro presenteava a si mesmo com meia hora dedicada estima sem dúvida estava lá, mas não deixava de ser também uma
à sua própria formação; essa meia hora logo se transformou em outra categoria do saber.
uma inteira – muitas vezes até em duas! Como muitos, ele também
pegava no sono, mas despertava sempre sério, renovado e cheio de
ideias.

Entretanto, ele não conseguia tirar o véu das tais ideias que lhe
preenchiam o espírito.

Para tentar resolver esse mistério, todos os dias, antes de ir embora,


passeava por entre as estantes e, ao acaso, parava diante de uma
delas, retirava um livro e o interrogava. Seguidas vezes tinha a
impressão de pensar ou já ter pensado algo semelhante àquilo que

255
Leandro Rodrigues
Um funeral para Ivete Barros Eu, coberto com o manto de Nossa Senhora da Guia, andarei não
andarei, meus inimigos encontrarei, mal não me farão, nem mal eu lhes
A notícia veio na madrugada. Olívia, ou Dona Olívia, mantenedora farei.
do asilo em Itaquaquecetuba e candidata a deputada estadual,
comunicou-nos o falecimento de Ivete Barros. O único telefone de O telefonema incômodo da madrugada nunca traz coisa boa.
contato que possuía – desculpou-se. Três da manhã, nada a fazer Voltei para a cama pensando nisso, após concordarmos em levantar
àquela hora: Dona Olívia havia arranjado tudo. Coisa simples, tudo às cinco. Minha mãe, que estava convalescente e não poderia ir
pago com a pequena pensão que Ivete Barros revertia ao asilo. Na conosco, ligou para os parentes e amigos que conheciam a morta –
verdade, nós o fazíamos por ela, pois sua sanidade falira tempos parentes nossos, Ivete não possuía laços sanguíneos com ser algum
antes de seu corpo. que caminhasse entre os vivos. Foram apresentando, um a um, suas
desculpas e todo o possível que fariam para comparecer. Na cama,
Setenta anos antes, a pequena Ivete, cheia de feridas e piolhos, quase eu me interrogava se conosco haveria sido diferente caso não fosse
morta (essa anedota era famosa na família, a menina feia e quase nosso o número nas mãos de Dona Olívia.
morta que fora recolhida), passara aos cuidados de Dona Teresa,
benfeitora de nossa família e de outras tantas, madrinha de inúmeros Acasos, há quem não creia neles. Fosse um acaso ou o destino, o
meninos. Quando Dona Teresa batizou meu próprio pai e acolheu, fato é que a vida de Ivete Barros esteve ligada sempre à de minha
com aquele menino magro, mãe e três irmãos que à época seguiam família. O mais interessante é que nunca nos perguntamos qual das
sem eira nem beira, órfãos de pai e rumo, Ivete já adolescia e tinha hipóteses elegeríamos. Ela sempre esteve lá, em setenta anos, tempo
sobrenome. Lugar-tenente na casa, à impossibilidade de Dona integral. Embalou o sono de duas gerações, assim como animou suas
Teresa ou de minha jovem avó, era ela quem cuidara dos meninos. noites em claro. Tinha especial afeição pelos animais domésticos,
Ivete, então já Ivete Barros, brincava em francês seu Frère Jacques, com quem travava longas e misteriosas conversas. No dia em que
bordava e dizia-se que, embora feia, era a mais prendada da rua onde passou a ser mais compreendida por eles que por nós, internamo-la
moravam. Prendas insuficientes para seduzir qualquer rapaz a ponto num asilo.
de levá-la a sério. Ivete amadureceu sozinha e corre o boato de uma
virgindade perene, coisa que pouco importa, se é que algo ainda Tenho na carteira uma oração escrita por ela, em letra escolar. Há
importava na madrugada sete décadas à frente, tantas moradas, décadas, protegendo-me na metrópole. Ivete, negra, era católica, mas
terços e receitas mais tarde. possuía saberes insuspeitados de benzedeira e curandeira. São Jorge

256
espiava por aqueles olhos baços, de córneas deficientes, e não me Apenas deram com o corpo após baterem à porta. No quarto, duas
faltou jamais. Em minha carteira, dobrada, quando antes do raiar do camas, um criado-mudo e uma mesinha com santos. Não levamos
dia eu conduzia o veículo para Itaquaquecetuba, pai ao lado, irmão nada. O cheiro de velhice já era conhecido. Em minha família, todos
atrás. Tudo o que fora, enfim, pouco importava. Estava morta. Seja os velhos têm o mesmo cheiro. Com ela não fora diferente: desde
a vida um dia tão plena de lirismo que tudo o que pese ao momento muito tempo, não possuindo o sangue, forjara o parentesco pelo
derradeiro sejam as recordações, o último júbilo e remorso. Mas cheiro, cheiro que refresca a memória e traz à luz a verdade doída de
há os detalhes práticos, sempre: a cidade era longe e só uma vez que já passei eu mesmo por duas mudanças de cheiro. Mais duas e
estivéramos naquele asilo, no dia da internação. Levamos tempo e estarei com eles, os velhos conhecidos que partem.
tempo para chegar.
O corpo estaria àquela hora no velório, que seria realizado no
Andarei não andarei, um cruzeiro encontrarei. Foi assim que o Anjo próprio cemitério. Faltava acertar alguns detalhes financeiros – o
Gabriel salvou-se, rezando três ave-marias. caixão, simples, já fora providenciado por Olívia, com uma coroa
de flores, tudo muito singelo, que a morta não era de luxos. Porém,
Que diabos nos dá a vida. As ruas eram de terra, lama seca e mal a empresa funerária teria ainda, além da conta a ser paga, uma série
batida. Uma mulher abriu o portão e esperamos quase uma hora de propostas interessantes para o funeral. Por isso fomos para lá sem
por Dona Olívia. Uma sala de estar improvisada onde um dia fora muita demora. Havia uma secretária e um homem de bigode. Os
uma garagem. Santos e mensagens nas paredes. Um senhor escapou vendedores das funerárias não fazem questão de muita simpatia, já
da ala interna e começou a falar conosco, excitado, sobre basquete. que a circunstância favorece a negociação rápida.
Completamente calvo. Inchado, provavelmente da medicação, e
gesticulando desesperado, o homem parecia uma criança ansiosa. O velório de Ivete Barros foi silencioso. Três paredes nuas e o
Não devia ter muita gente com quem conversar. Tentamos corredor. Dona Olívia comentou que a expressão de Ivete era serena,
corresponder, mas nosso conhecimento do assunto não ia muito quase sorriso, e se retirou. Ao redor do caixão, três homens incapazes
além da função fática. Dona Olívia chegou, acenou rapidamente e de chorar, vidrados no rosto e nas mãos inertes, evitando entreolhar-
conduziu com gentileza e uma mão nas costas o homem de volta se. E os homens eram, em sentido horário, meu irmão, meu pai e
à ala de onde saíra. Ele foi terminando de lhe contar as novas do eu, e se a vista mil vezes repetisse essa órbita encontraria apenas esses
basquete até sumir atrás de uma porta. Lá fora, o sol se impunha, três ponteiros estáticos – o tempo havia parado, vez ou outra uma
tardio e sem convite. senhora do velório vizinho se aproximava, mas a sala estava vazia
demais para comportar mais gente, e ela se afastava constrangida.
Olívia nos contou como foi tranquila a morte. Não se ouviu um Não me lembro se fui eu ou meu pai quem primeiro disse algo. Meu
ai do quarto simples onde dormia na companhia de uma anciã. irmão às vezes me olhava. A pele que observávamos, cuja aparência

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de plástico conferia impessoalidade e aspecto de cera a sua dona, não feira em que meu primo mais velho, Luís, dormiu em nossa casa.
tinha reentrância que não houvesse sido percorrida pelos seis olhos Luís falava sem parar – eu não ficava atrás. Madrugada. Meu irmão,
baixos. Óbvio que quinze minutos era muito pouco tempo para um após chorar muito, finalmente adormecera. Eu tossia. Tossia e falava
velório. Nós três pensávamos nisso quando meu olhar cruzou o de com a voz nasalada de rinite. Luís falava, Ivete tentava coordenar
meu pai e ele explodiu – “Vamos”? a bagunça para que o pequeno não acordasse. Quando, exausta,
resolveu se sentar na cama metálica de armar, o tombo. A cama se
Lá fora, os coveiros aparentemente conheciam esta espécie de fechou, ela foi ao chão e a ordem aos ares. O choro recomeçou.
cerimônia e sua indisfarçável brevidade. Fumavam, quando apareci Berros vindos do berço. Na cama, eu e Luís pulávamos. Ivete
para chamá-los. À vista da mesma senhora que se manteve solidária Barros, estatelada, ria. E ria, ria. Deitada naquela caixa, então, que
à distância, o caixão foi fechado. O funcionário emprestou a mão descia atada por cordas até o fundo da terra onde seria esquecida,
à alça que sobrava. Foi posto dentro de uma perua e desceu na ela ressurgia do substrato da memória e permanecia naquela sexta-
frente. Eu, meu irmão, meu pai. Os únicos conhecidos presentes no feira, ousando evadir-se da cova para se pôr a salvo em outra, mais
funeral. Descemos a ladeira horrível do cemitério de Itaquá, tristes, profunda, em meu passado.
mas ansiosos por encerrar a história. De certa maneira, amparados
pela certeza de que daquela vez sairíamos em mesmo número dali, e Quando anos mais tarde caminhei para o destino, levava ainda,
poderíamos esquecer de tudo logo mais, na companhia de um café roto, o papel em minha carteira. Ou seria naquele dia fatídico,
ruim do bar mais próximo. aos dezessete, o cano frio do revólver em minha testa. Andarei.
Lembranças de um passado breve, amigos e parentes que sumiram.
Que o braço do Onipotente descaia sobre aquele que me queira fazer mal. Mãe e pai, irmão, abraçados ao cano da arma. Que ela cumprisse o
Que olhos tenha e não me veja, pernas tenha e não me alcance, braços dever em outras batalhas. O papel no bolso, novinho. Eram ainda
tenha e não me agarre. Que fique imóvel como uma pedra em seu lugar. dezessete anos. Não andarei. Anos depois, nada de tocaia. Encontro
marcado. Oração se desfazendo na carteira, seria então o fim, bem
Numa noite de sexta-feira, dessas dos anos 80, quando meus pais próximo, com hora prevista – a honra sempre foi um defeito que
ainda saíam pra se divertir, ela esteve lá em casa. Esteve lá em muitas tivemos. Não vacilava, seria cara a cara. Havia coragem de sobra
dessas noites saborosas, quando se dormia tarde, brincava, contava para ocultar o medo. Parei na porta, palpei o bolso onde estava a
história. Cuidava de nós até que chegassem. Naquela época, meu carteira. Ivete ria, ria demais, estatelada na noite de sexta-feira. Ela
irmão ainda pequeno mal conseguia equilibrar-se ou se manter ria, eu estava protegido. Corpo fechado? Que viesse chumbo grosso.
longe do riso e do choro. E ela o levava sempre ao primeiro, exceto Andarei não andarei.
quando ele insistia em ficar acordado após as dez, como na sexta-

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Marcello Vitorino
Da série
Encontro com o Divino

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Qorpo-Santo
Certa Entidade em Busca de Outra direitos e deveres, ou nenhum governo durará no poder mais que
treze meses! A Nação, cujo espírito será como o de um só homem,
– os inutilizará, a todos embrutecendo ou a cabeça fedendo! Ainda
Comédia em dois atos não estão satisfeitos estes entes (a que chamam Governo porque
ocupam as posições oficiais) com os milhões de desgraças que têm
ocasionado!? Quererão bilhões, trilhões Assassinos, traidores de
Personagens: sua Pátria! Até onde chegará a vossa perversidade? E até que ponto
Velho Brás: homem sisudo. subirá tãobém, ou a que extensão alcançará a vingança do supremo
Ferrabrás: estudante, filho adotivo deste. Arquiteto do Universo!? Tremei, malvados! A trombeta final não
Micaela (Tagarela): mulher pouco comedida ou respeitável. tardará muito a tocar a voz: – Sejam queimados e reduzidos a cinzas!
Satanás
(Aparece Satanás)

BRÁS – Infeliz! Que fazes aqui?


Ato primeiro
SATANÁS – Sou Satanás, rei dos infernos, encarregado pelos
BRÁS (entrando) – Quem diabo está nesta casa!? (muito admirado) demônios para destruirmos os maus!
Por um dos reposteiros vi aqui a Satanás com olhos adiante e pernas
atrás! Depois vi Judas Iscariotes, que andava a trotes! Por uma BRÁS – Oh! Daí-me um abraço! Sois meu Irmão, meu amigo e
janela, a Micaela abrindo a boca de gamela! Mas o meu rapaz, o companheiro! Estais armado?
meu FerraBrás; o meu contimpina, que de dia dorme, e de noite
maquina! Oh! Esse, nem por sombras me quer aparecer, ou eu SATANÁS – Sim. Trago as armas – do poder e da vingança
pude ver! Bárbaros! Assasinos! Traidores! Que tudo me roubam!
Comem como burros; como cavalos; e depois querem que eu BRÁS – Pois sabei que eu empunho a espada da justiça; o revólver
trabalhe para sustentá-los! Infames! Poluem a honra das famílias! do direito e o punhal da razão! Combina-se bem com as tuas.
Divorciam esposos para massacrá-los, e a seu gosto fruirem seus Triunfaremos!
bens! Escravizam em vez de libertarem... Hei de lançar por terra
tão indigno governo! Ou hão de os governantes e governados terem SATANÁS – Sem dúvida. Com tais armas, jamais haverá poder que
nos possa vencer!
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BRÁS – Muito bem! Muito bem! Venha de lá outro abraço! (Torna ofendem a quem ninguém ofendeu. Tenho na minha carteira as
a abraçá-lo) sentenças para todas espécies de crimes, e fique certa que ao abri-la,
hei de puni-la! Isto é, hei de vingá-la!
MICAELA (entrando muito apressadamente) – Oh! Vivam! Os Srs.
Juntos! Que bela liga há de fazer Satanás com o velho Brás! MICAELA – Muito agradecida, Sr. Satanás! Muito obrigada; eu
Não esperava ver o grande prazer de os encontrar tão amigos; e até sou a sua menor, porém mais afetuosa criada! Quer saber a única
abraçados! Que lindos! Modificarão suas ideias!? Sem dúvida grandes cousa que me pesa? É que quando o Sr. defende ou castiga sempre
negócios políticos os hão juntado... Deus os conserve para felicidade lesa! Entretanto sou de algum modo forçada a aceitar o seu tão
púbrica e individual. (apontando para o próprio peito) importante oferecimento!

BRÁS – Sejam bem-vinda, Sra. D. Micaela! Não sabe quanto BRÁS (chegando-se e apalpando os peitos de Tagarela) – Que pomos
aprecio a sua presença (Á parte) e ainda mais a sua ausência – cá para deliciosos!
nós, a quem nenhum malévolo ouve. Que notícias nos traz e o que
há de novo pelo seu bairro? O que nos conta finalmente? MICAELA – Oh! Sr. Brás! Queira retira-se da minha presença! O Sr.
bem sabe que eu não sou dessas mulheres mundanas, para com as
MICAELA – Estou muito escandalizada! Sendo eu a mulher menos quais se procede de tal modo!
faladora que há, houve quem atrevesse-se à audácia de apelidar-me
Tagarela: e nesta mesma casa meus ouvidos ouviram suas tão duras BRÁS – Desculpe-me, Sra. Tagarela! Pareceu-me – duas lindas
palavras! laranjas; é por isso que quis tocá-los.

BRÁS – Sinto profundamente que tão grande infortúnio pesasse MICAELA – Pois não continue a Ter desses enganos, porque podem
tanto sobre a cabeça e o coração de minha muito prezada... Sra. D. Ter más consequências!
Micaela Tagarela!
SATANÁS – Sim! Sim! (À parte) Penso que são conhecidos há
MICAELA – E o Sr. tãobém me insulta!? Com efeito, não o muito! É talvez minha presença que os está incomodando! Retiro-
esperava! me portanto. (Vai saindo; Brás o agarra)

SATANÁS – Oh! Eu não sabia de tal. Prometo que há de ser BRÁS – Onde vai? Aonde vai? Somos companheiros; e se não chega
vingada, que... a Sra. Bem sabe! Eu não sou peco; e tenho à minha para dois ao mesmo tempo, há de chegar passada uma hora!
disposição a força e poder necessário para punir todos aqueles que

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SATANÁS – Não! Não! Sempre tive, tenho e terei medo de Ato segundo
mulheres. É para mim o objeto de mais perigo que o... Ah! não digo!
Mas fique certo que... sim! BRÁS (batendo na porta; fazendo esforço para abrir; gritando) –
Satanás! Satanás! Ó Diabo! trancaste-me a porta!? Judeus! Que é
MICAELA – Passem bem! Passem bem, meus Srs.! (Retirando-se com isto, ó Diabo! Abre-me a porta, senão te engulo! Não falas!? Querem
a frente para ambos, e entrando em um dos quartos) ver que este demônio trancou-me a porta e foi-se embora!? Tirano!
Deixa estar que tu me pagas. Hei de perseguir-te até os infernos!
BRÁS (fazendo um cumprimento, e seguindo-a) – Então já vai? Não
acha cedo? Eu... sim; mas... Vamos juntos! (Enfia-se pela porta, atrás MICAELA – Sr. Brás. Não se aflija! Não se incomode! Deixa estar
de Micaela) que tudo se há de arranjar! Olhe! Veja! Pense! Medite, e não fale!

SATANÁS (pondo as mãos) – Céus! Meu Deus! Que imoralidade! BRÁS (gritando) – Como diabo não hei de falar e me incomodar,
Deixar a minha presença, e a minha visita, e meterem-se em se o Satanás trancou-me a porta? (Para Micaela) Mulher, puxa daí,
quarto... em um quarto em presença... É audácia! É atrevimento! que eu puxo daqui! Anda, mulher dos diabos! Faz força, cutia velha!
Mas eu os hei de compor! (Puxa a porta e fecha por fora) Agora hão Parece-me que já não vales mais nada! Olha, e faz como eu!
de sair, quando eu estiver cansado – de comer, de dormir, e de viver!
Já se vê pois que aí têm de morrer, se algém os não acudir, e secos MICAELA – Estou ajudando-o a bem morrer! Que mais quer!?
como uma varinha de...como um palito! Porque já se sabe: eu cá hei
de durar pelo menos cem anos! Ou o que é mais certo – não morro BRÁS (tanto puxa, que cai no cenário com Micaela e a porta.
mais! (Metendo a chave na algibeira) Cá vai! Vou dar meu passeio, Levantando-se, para Micaela) – Quase quebrei a cuia! Mas ao menos
e não sei se cá voltarei mais! (Chegando-se para perto da porta do não fiquei enterrado! Que Dizes? Levanta-te, não tenhas preguiça!
quarto) Adeus, minhas encomendas! Adeus, minhas venturas! Adeus!
Adeus! (Sai) MICAELA – Não posso! Estou... ai! Penso que... (esfregando uma
perna) eta perna se não está quebrada, está esfolada!

BRÁS – Pois quem te mandou cair junto comigo!? Eu não te disse


que segurasse a porta!? Agora leventa-te; quer possas, quer não!
(Pegando-lhe em uma mão) Vá! Arriba! Arriba!

MICAELA – Ai! ai! Não posso mais!

267
BRÁS (atirando-a) – Pois vai-te com a porta, e com todos os diabos MICAELA – Mais prudência, Sr. Dr.! Olhe que não estou
que saírem hoje dos infernos! Micaela (levantando-se com muito acostumada a estes insultos! Pilha-me abatida, senão o Sr. não
custo) – Ai! Além de ajudá-lo a abrir a porta, e de cair com ele, mas ousaria insultar-me, porque eu ainda teria mãos!
esta crueldade! Atira comigo... esmaga-me... (Endireita a cabeleira
na cabeça) Rasgou-me o vestido de que eu mais gostava, com modos FERRABRÁS – Olhem; olhem que joia!
brutais! Quase pôs-me nua. Que crueldade! (levantando-se, compõe o
xale) Muito sofre quem ama! BRÁS (muito zangado) – Este rapaz não toma mais caminho!
Cada vez fica mais tolo, mais estonteado, e mais surdo! Vai, vai!
FERRABRÁS (entrando a manejar com uma bengala, vestido muito à (empurrando-o) Vai procurar outro pai! Eu não te quero mais por
pelintra) – Oh! Hoje, sim! O dia foi grande! Grande! Muito grande filho!
para mim! Vi a minha namorada da Rua dos Andradas! A minha
amiguinha do Beco do Botabica! A minha queridinha da Travessa FERRABRÁS – Pois meu pai, o Sr. é que tem a culpa. Apresenta-me
da Candelária! Vi, vi, vi, que mais? Ah! a minha tia avó (dando uma (tira-lhe a cabeleira e atira-a no chão) com esta cabeça rapada para
grande gargalhada), e em visitas aos velhos tortos, aleijados! Etc. etc. minha mãe, como se eu fora alguma criança! Que quer que eu lhe
faça!?
BRÁS – Oh! Rapaz! Quando tomarás tu juízo!? Cada vez ficas pior!
Anda para ali; anda! Toma a bênção à tua mãe. MICAELA (atirando-lhe com a cabeleira à cara) – Eu não o posso
mais aturar, Sr.. atrevido!
FERRABRÁS – Ora, meu pai, sempre o Sr. me está dando mães! Há
três dias era uma velha de que todos têm nojo, porque lhe sai tabaco FERRABRÁS – Olhe que lhe dou com a bengala!
pelas fossas, mormente pelos ouvidos, pela boca, e até pelos olhos!
Ontem era uma torta deste olho; aleijada desta perna (batendo com a BRÁS – Acomodem-se! Senão eu lhe dou um cachação! (Micaela
bengala na perna direita do pai) avança à bengala, toma-a de Ferrabrás e dá-lhe uma bengalada; trava-
se uma peleja entre ambos; dando-lhe este com a cabeleira pelo rosto.
BRÁS – Mais devagar com os teus exemplos, que estas pernas já são Brás mete-se entre ambos para apartar a briga, apanha e dá pancadas, e
– o Sr. sabe- algum tanto velhas e cansadas! nesta luta termina a comédia)

FERRABRÁS – Senhor! Dizia eu que ontem era uma velha nestas


agradabilíssimas condições, e hoje quer que eu tome a benção desta
Fim
tagarela (puxa-lhe pelo xale e quase o tira do pescoço)
Porto Alegre, junho 10 de 1866.
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O Almanaque Lobisomem entrevista
Dirceu Villa

Entrevistadores Qual sua leitura sobre os possíveis modos motivo do português brasileiro nunca ser
Ana Rüsche de circulação do poema? suficiente? Teremos sempre que usar o
Donizete Galvão Google para ler um poema de sua autoria
Eduardo Jorge Penso que deve ser sempre mais do que um e entender as citações?
Fabiano Calixto
Flávio Rodrigo Penteado
“modo de circulação”: deve estar suposto no
Marcos Siscar poema como forma, se foi feito para aquele O português não é suficiente porque sou
Renan Nuernberger meio de difusão. linguisticamente promíscuo. Tentei clínicas
Reynaldo Damazio de reabilitação, mas foi tudo inútil.
Historicamente, a poesia se fez de todo Não creio que diria a palavra “extenso”
jeito possível: pessoas cantaram poemas, para o uso de língua estrangeira nos meus
entoaram, narraram por dias a fio, colaram poemas, e isso pode ser uma afirmação até
no chão, nas paredes, na testa, puseram estatística: é um emprego ocasional, que
poemas em livros, computadores, nuvens, obviamente tem a ver com a função que a
fizeram poesia dos objets trouvés, revertidos coisa desempenha lá.
a figuras de linguagem, gravaram seu som e
reproduziram etc. Até o século xviii, quando o Ocidente
partilhava inteiro um mesmo princípio
Mas, quando valeu a pena em cada um de composição poética, um poeta
desses casos, o modo de circulação da poesia como Gregório de Matos podia emular
era ao mesmo tempo sua forma, seu sentido, retoricamente Góngora porque isso seria
era o modo como fora gerada por uma série percebido (às vezes, os espíritos de porco
de razões encontráveis no próprio poema, o acusavam de roubo, porque ainda não
no que ele dizia. pensavam em plágio) como um engenho,
uma qualidade que punha em circulação a
Qual a função do uso, em seus poemas, cultura poética.
de extenso vocabulário em latim, francês,
alemão, italiano, grego etc. Qual o
270
Incorporar uma referência hoje funciona que se abriram a partir de uma observação sublunar (e é apenas 1 dos numerosos
de maneira completamente diferente, e muito direta da vida e que têm seu sentido poemas dele a integrar um poderoso
faço isso de modos muito diversos: escrevo nela. Etc. esquema de referências articuladas para um
o poema discretamente na mesma forma, sentido); Sá de Miranda propõe diversos
mas com as minhas palavras, uso o mesmo E isso é também o sentido desses poemas: enigmas de sentido que vão de notações
ritmo, emprego uma palavra que remete perceber que muitas vezes aquilo que astronômicas a antigas cartas de baralho
a um poema ou poeta específico, uma pensamos com distanciamento meramente milanesas, antecessoras do tarô. Se você não
epígrafe, ou mesmo, como você assinala, museológico ou geográfico é, na verdade, percebe, não desfrutou tudo o que o poema
enfio trechos em língua original no meio. vida tão palpitante e presente quanto algo oferece.
E de outros modos, cuja lista exaustiva nos muito intenso percebido em experiência
deixaria exaustos. quotidiana. Grandes poetas, mesmo quando parecem
muito simples e pedestres, são complicados.
Cada um desses modos tem um sentido O que não há é gente para dar por isso, Ler bem é ler essas sutilezas de dicção,
pontual para cada poema, e ler isso a rodo como diria o Fernando Pessoa. E, para essas aproximações técnicas, o sentido
não funciona. Muitas vezes distorço o ser muito franco, esse modo de registro da orquestração de múltiplas camadas
significado original, ou modifico algumas da referência que você comenta nos meus de sentido e referência. Senão é como ler
palavras. poemas é apenas mais explícito, mas se se propaganda de banco num cartaz ordinário,
quer ler poesia, é preciso estar atento: não é um trapo imprestável de linguagem,
Às vezes, porque é mais dramático acertar se lê Pessoa, Drummond, Sá de Miranda, informação oca e sem vida.
o leitor direto na fonte linguística de um nem qualquer outro grande poeta se não se
conceito, ou porque é preciso deslocar seu percebe o uso que fazem de suas referências. Por isso não adianta usar o google para ler
ato de leitura com a intromissão da língua os poemas. O google é um instrumento útil,
estranha; outras, porque não seria possível Pessoa faz um heterônimo inteiro responder mas preguiçoso e pobre, da chamada “era
conseguir o mesmo efeito simplesmente passo a passo às Odes de Horácio, e se você da informação”, que baniu o conhecimento
traduzindo, ou fazendo uma paráfrase, não lê isso, não leu os poemas; Drummond (a gente supõe que se entenda a diferença
como por exemplo, das palavras musicais escreve a “Máquina do Mundo” com entre uma coisa e outra). E, muitas vezes,
em latim no relevo “Cantoria”, de Luca múltiplas remissões de técnica do verso a infelizmente para vocês, leitores, desfiguro
della Robbia, em Florença, que aparecem Dante, à tradição italiana, a Camões, usa as citações além do que se pode achar com
em “Multis per maribus”, um poema inteiro imitação de ablativo absoluto do latim, usa proveito explicativo no google.
de referências greco-latinas, e mediterrâneas, a escala da magia natural para o mundo

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Nada além da doce tortura de ler o poema sempre foi um mar de rosas, e que a maioria É claro que poeta algum que preste é parte
(com tudo o que ler significa em poesia) das pessoas cai vez por outra nos espinhos. de coisa alguma dessas, e agradeço o seu
resolverá. Sensações de se viver um período melhor ou cuidado gentil em me afastar disso.
pior são cíclicas.
Eu sou uma pessoa terrível, claro. O que posso dizer da poesia que escrevo
Concordo que boa parte da poesia hoje é muito pouco, infelizmente, porque
Observa-se em boa parte da poesia tem sido feita assim como caprichosamente não tenho um a priori. Tudo o que faço
recente feita no Brasil uma certa diluição descrito na pergunta, mas não é diferente decorre da minha percepção das coisas
da subjetividade, apoiada em insights de época alguma: a maioria do que se faz é em linguagem, moldada pela cultura que
pseudofilosóficos sobre banalidades sempre um lixo (basta pensar nos infinitos aprecio e com a qual aprendi.
do cotidiano e numa mistificação de sonetistas sentimentais do século xix, ou nos
paisagens exóticas. No entanto, os fingidos pastorinhos do XVIII). A maior Num mundo onde as pessoas passam
poemas reunidos em seu livro Icterofagia parte dos artistas lidos em suas épocas é fome, onde resiste fortemente o
seguem na contramão desta tendência mero efeito de época, os bons realmente coronelato, onde a corrupção assola
de dissolução da pesquisa ou do esperam a percepção chegar onde estão. todas as camadas da sociedade, onde
questionamento da linguagem poética, não há mais possibilidade de crença nos
revelando o enfrentamento consciente e (Costuma levar tempo, então é melhor partidos políticos ou na imprensa, onde
tenso entre a tradição e a modernidade, esperar sentado ou em boa companhia). a educação está completamente falida,
entre o erudito e o pop, num percurso onde os interesses sujos estão acima de
que vai do presente imediato (concreto) Por isso a regra da poesia morna de hoje qualquer suspeita etc. etc. etc. Qual o
ao mito (imaginário). Que proposta está é mesmo “insights pseudofilosóficos sobre sentido de fazer poesia num mundo
na raiz desta sua poética dos avessos, banalidades do cotidiano e numa mistificação totalmente devastado pela degradação
ou da desconstrução de temas e de de paisagens exóticas” (juntamente com ética? A poesia, esta coitada, pode servir
referências culturais arraigadas no que se derivações falhas dos concretos, e uns como arma de combate contra este
pode ainda chamar de civilização? minimalistas do tédio, e aqueles poetas mundo degradado sem que se dilua em
que escrevem o que nas livrarias se chamou puro panfleto? Já pôde ela um dia tal
A civilização foi um belo sonho, mas graciosamente “autoajuda” nas obras em feito? Tem ela esta responsabilidade?
deu errado. Ainda bem. Não acredito prosa), que atende à demanda do público
em fatalismos, porque basta fazer um irrisório e apressado: o grosso do que a poesia Mas esse é, sempre foi e sempre será o
retrospecto para perceber que o mundo tem, provisoriamente, hoje. mundo, sinto dizer. Ainda é também o

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único lugar que conheço onde as pessoas Qual dessas é a verdade? Ou a verdade seria foi uma dessas religiões, só que laica, com
se amam, fazem coisas desinteressadas, aquela úmida hipótese de que os artistas altares caseiros para mais um messias de
onde há aquela coisa que chamamos, por são os campeões da humanidade, prontos barba.
conveniência de vocabulário, “beleza” etc. a redimir ou expiar seus pecados coletivos
com a arte? A chave para o entendimento do mundo
Poesia não é arma de combate. Quem quer está num livro de 1486, chamado Nongentae
combate que se aliste e esteja pronto para Não sabemos: a resposta pode ser n.d.a. ou Conclusiones, as novecentas conclusões
receber ordens de alguém que não pensa. mesmo todas juntas, e mais algumas outras, do conde Pico della Mirandola. Ou no
Toda arte é um refinamento da inteligência incluindo a do bobo da corte. Hypnerotomachia Poliphili, de Francesco
e da sensibilidade, e é um contrário Colonna, publicado em 1499. Ou no Monas
totalmente egoísta daquele ardor ecumênico Mas me pergunto: interessa realmente? Não Hieroglyphica, de John Dee, no século xvi.
pelo sangue purificador do mundo. Então, basta que muitos de nós achem refúgio
a arte não se converte diretamente num ou uma qualidade elétrica (ou magnética) Ou, se se quiser evitar as filigranas de
mecanismo de aperfeiçoamento das relações nela? Que outros achem nela um reduto de complicações interpretativas desses
sociais. beleza? Que ainda outros aprendam coisas livros empoeirados e arcanos, basta ler as
com isso? Que se tornem mais espertos, Metamorfoses, de Ovídio. Ou ver os filmes
Alguns acham que os artistas são apenas ou mais mordazes, que desconfiem? que do Woody Allen. Ou, melhor ainda, o Tao
um defeito da percepção humana, por multipliquem a percepção? Te Ching. Com o Tao você não precisa de
exemplo: é o modo defeituoso como seus nenhuma outra chave.
cérebros decodificam essa percepção (isto A arte – e a poesia em particular, aqui – me
é, desviando da aplicação prática normal) parece ter esses efeitos, que me são mais do O que você acha do assustador
que lhes dá a faculdade de distorcer as coisas que suficientes para justificá-la em qualquer crescimento de movimentos de exceção
para representá-las. Platão, por outro lado, época. que assola o mundo?
apresentava Sócrates cutucando Íon – aquele
cantor sem noção – ao dizer que o que ele O marxismo ainda é a chave para o Acho assustador.
fazia era ter a glória de ser o receptáculo de entendimento do mundo?
uma descarga divina encantadora, e nada Sua poesia, em determinados momentos,
mais. O marxismo nunca foi a chave para o filia-se a uma vertente da poesia latina.
entendimento do mundo. De onde você Como você vê esta influência na sua
tirou isso, caro Lobisomem? O marxismo poesia? Como fazê-la soar contemporânea?

273
Não preciso tentar fazê-la soar Shakespeare também o adorava e imitava, interesse e só a muito custo resolvem editar)
contemporânea (o que seria amesquinhar como sabeis. em troca da legalidade de sua publicação
sua dignidade), porque é eterna. Essa é uma e difusão (quando de interesse da editora)
versão da tirada do Drummond sobre o Existe um nexo histórico entre formas nos territórios tais e quais, com a minha
estilo dele em Claro Enigma. artísticas e processos sociais? Como se anuência, e por determinado tempo.
dá este nexo (se ele existe) na poesia feita
Não existe “velho” em arte; ou melhor, hoje? Você pensa a forma de seus poemas Pagam-se no ato uns trocados adiantados
“velho” é o que nasce com data de tendo em vista este nexo (se é que o ou cópias do mesmo livro por isso, e, depois
fabricação estampada em toda parte, como mesmo existe)? de 70 anos do meu desaparecimento físico,
um anúncio luminoso. Porque no verso reviverei em uso público gratuito – inútil
você poderá ler: válido até (inserir a próxima Existe, por necessidade. Mas é complexo, para a riqueza de meus parentes futuros –,
década de vossa preferência). porque alguns autores são o reflexo de sua quando doutores elogiarão minha obra e
época e outros são o avesso (+ toda a faixa acusarão a época molesta que a deixou no
Mas me perdoe, também, porque creio não cinzenta que fica entre uma coisa e outra), e escuro.
ter entendido exatamente a que poesia latina em todos se acha o nexo.
você se refere: se a escrita em latim, e de que Penso que seja o instrumento de um ritual
época; ou latina no sentido lato, dos falares Como disse antes, não tenho a priori que muito religioso, muito comovente.
neolatinos: o vulgare, como escreveu Dante. me mova a escrever. Por outro lado, o
fato de viver e experienciar a minha época E não cobre a atividade poética, em
Se forem os latinos daquela língua morta inevitavelmente cobre a minha poesia de todo caso: sabemos que a poesia é um
de Roma, Ovídio certamente é o meu marcas dessa época e de sua sociedade. ato clandestino, e, por isso, a relação
predileto, e faz alguns anos traduzi, por pura ambígua dela e do poeta com o meio social
admiração e imodéstia, alguns trechos das Não explica nem dá conta da minha poesia, organizado.
Metamorfoses, que é, na minha opinião, o mas a identifica e localiza historicamente.
melhor poema da tradição ocidental. Há Existe alguma crítica interessante sendo
tudo lá, e Ovídio é o melhor versemaker O que você pensa sobre o copyright? feita no país ou a crítica perdeu de vez o
que já li (e já li um pouco): seus engenhos bonde da história (que dizem, está morta
e recursos são infinitos, surpreendentes de Penso que seja um artifício legal para que dê e enterrada)?
tanta inteligência artística. humildemente às editoras o meu trabalho
sem valor (pelo qual não têm o menor Sempre há boa crítica sendo feita. Pouco
importa que a maioria dos críticos de uma
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época e/ou lugar seja confusa, covarde ou críticos jovens habilíssimos, leitores muito A recepção da obra dele no Brasil foi
silvestremente ignorante, porque sempre há finos e muito completos, que devemos pouca, e não se pode culpar o esforço
trabalhos notáveis de crítica. Falei de vários acompanhar com interesse, e aprender com. dos concretos, que até tentaram trazê-
críticos excelentes, brasileiros e atuais, na lo para lecionar aqui quando saía de seu
minha página Officina Perniciosa e também Você tem traduzido a obra de Ezra Pound, confinamento no sanatório St. Elizabeths,
no meu blog, Demônio Amarelo. colocando-se na perspectiva de uma na década de 1950.
releitura desse autor no Brasil. Qual é
No Brasil o que não há em específico é o exatamente o aspecto de fundo que, a seu Mas a recepção dos concretos, sendo
trabalho de crítica prospectiva, aquela que ver, não teria sido contemplado na leitura recepção de poetas, e de vanguarda, era
detecta os talentos que fazem a poesia hoje: concretista de Pound? Qual é o interesse interessada em aspectos da obra de Pound
mas quem pode culpar a crítica? é o trabalho de uma releitura do autor para a poesia que serviam à vanguarda, combinados
mais difícil. contemporânea? a aquisições parciais de outros autores
amplos e extraordinários, como cummings,
Os críticos têm medo de dizer como e por Recentemente tenho estudado a poesia Mallarmé, Joyce, poetas do século xvii etc.
que determinado moleque ou menina é do Renascimento, para o pavor de meus
bom ou boa, e depois vem o moleque ou amigos moderníssimos, que veem com Falando de Pound, apenas, o maior relevo
a menina sem educação e esculhamba o extrema desconfiança – para dizer o mínimo que se deu foi ao que se chamou “método
crítico, ou se torna mera promessa não – a minha aproximação dessa coisa tão ideogrâmico” – entendido via Fenollosa:
realizada, um balão furado. retrógrada, inoportuna. Mas traduzi há os caracteres chineses como veículo para a
alguns anos o Lustra de Pound e alguns poesia – lido em sua concisa complexidade
O crítico teme associar seu precioso nome Cantos, tudo ainda inédito. poética verbivocovisual contra a comparável
a algo incerto, e teme não compreender os moleza da sintaxe discursiva aristotélica,
critérios por meio dos quais deve apreender Pound tem dois livros de crítica traduzidos de “primeiro as coisas primeiras”, no estilo
a obra, e, em consequência, teme acabar no país (sendo que um é uma coletânea de mental desenvolvido pelo Estagirita.
cometendo um erro grotesco de diagnóstico ensaios), e dois de poemas (sendo que um
(notar por favor que encareço a consciência é uma antologia excelente, mas antologia, Pound era um poeta conciso, como todo
da crítica). e o outro uma tradução pioneira, mas poeta que valha alguma coisa, mas não
fraquíssima, dos Cantos), tendo publicado era ideogrâmico, como Octavio Paz fez
É uma questão de ajuste de perspectiva, e uns setenta livros durante a vida, dos quais notar a Haroldo de Campos na ótima
creio que será feito em breve. Vejo muitos uns dez ou quinze são fundamentais. correspondência que mantiveram durante

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a tradução de “Blanco”, do mexicano: envolvimento com o fascismo, em parte Pound resgatou do ostracismo, além de tudo
Pound era discursivo, ideogrâmicos eram porque se tem preguiça de encarar Pound isso, a música de Vivaldi, na Itália dos anos
os concretos, que tentavam imitar essa com o conhecimento necessário para fazê-lo. 1930, coisa que poucos sabem. Você pode
característica estrutural do ideograma numa Isso impede de lê-lo comme il faut. ler isso até em texto da rádio bbc hoje em
língua latina analítica, o português. dia, quando falam de Vivaldi. E se você lê
Pior para nós, porque a obra de Pound, poetas provençais hoje (ou ouve canções
Mas daí se percebe que as ideias de Pound poética e ensaística, é fundamental de Arnaut Daniel), ou Guido Cavalcanti,
no Brasil foram lidas por outros através da para questões de poesia moderna e agradeça a Pound.
leitura que dele fizeram os concretos, porque contemporânea, de revisão de tradições
muito poucos – mas muito poucos mesmo literárias, de tradução poética, para o que Com quantas luas cheias se faz um
– foram aos livros do estadunidense para ler. é crítica literária, para o que é e como lobisomem?
Então pensam em contradições: que Pound funciona o verso etc. E para autores
aplicava inventor e diluidor a torto e direito, posteriores e muito diferentes entre si, como Olha, dizem os experts em licantropia
que Pound conceituou a transcriação, que o Allen Ginsberg, Jerome Rothenberg, Pier que o lance da lua cheia é um detalhe
paideuma era uma fascista lei imóvel e que Paolo Pasolini, Hans Magnus Enzensberger, muito superestimado, que o que faz um
só meia-dúzia de autores pertencia a ele etc. os concretos brasileiros, Edoardo lobisomem é o contato (nunca muito
Sanguinetti, Octavio Paz, Derek Walcott, agradável) com outro: um arranhão, uma
E tudo isso é um enorme desvio do que Katsue Kitasono, Jorge Luís Borges, Giórgos mordida, e só daí é que entra a lua na
Pound escreveu. A parte românica da Seféris, Mário Faustino, Robert Creelley, história.
obra de Pound ainda é bastante ignorada Lawrence Ferlinghetti, e um longo etc.
no Brasil, assim como seus estudos mais
centrados na escrita histórica do verso, ou Para não falar do que já sabemos
mesmo suas traduções, que eram feitas de suficientemente sobre a influência em e a
uns dez modos diferentes, incluindo até ajuda a Yeats, Eliot, Joyce, Hemingway,
mesmo tradução ad sensum. Zukofsky, Bunting, cummings; o trabalho
como editor que divulgou Cocteau, Tagore,
O sentido disso para uma releitura de Frost; e o impacto na crítica de Faustino, na
Pound é que não se compreende, no Brasil, de Eliot, na de Marjorie Perloff, de Hugh
a importância nem o alcance de suas Kenner etc.
ideias; em parte porque se tem nojo de seu Novembro de 2009

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O Almanaque Lobisomem entrevista
Marco Buti

Por Flora Assumpção Marco Buti, artista e, desde 1996, quando constata, através do resultado
professor da Universidade de São Paulo das provas de aptidão para o curso
(usp). Durante 5 anos atuou como chefe de artes visuais (divididas em duas
Só é bom professor de arte quem é bom artista,
do Departamento de Artes Plásticas da partes: uma teórica sobre história e
porque além das linguagens da arte ele ensina [...]
a dedicação, a capacidade de concentração, eca-usp, além de aulas ministradas e crítica de arte e outra de desenho) que
os valores éticos. Até seu gesto ensina. de alunos orientados na graduação e na o conhecimento teórico sobre arte dos
Regina Silveira pós-graduação. Em 2008 apresentou sua candidatos é limitado aos grandes ícones
(Fragmento de depoimento da artista citado em tese de livre-docência 8.03. a Arte na do modernismo brasileiro (Tarsila
Regina Silveira – O Olho e o Lugar)
universidade, a Universidade na Arte no do Amaral), do cubismo (Picasso) e
mesmo departamento, na qual analisa do Impressionismo (Monet) e que
pontualmente diversas situações das artes o pensamento visual dos mesmos é
inseridas no ambiente acadêmico e científico determinado pelo universo visual de
das universidades. Na posição de artista videogames, quadrinhos, ilustrações de
graduada por esta escola, orientada por baixo nível e publicidade e logotipos.
Marco Buti e reconhecendo-me como Afinal, se a escola de ensino fundamental
personagem participante de muitas destas e médio, principalmente a pública,
situações que compõem a formação em artes desse alguma referência do que sejam
visuais na universidade, inicio um breve as artes (e não apenas as visuais, mas
diálogo com (insisto, ainda) meu professor também a música, a dança ou o teatro),
orientador. os candidatos saberiam um pouco
mais sobre as possibilidades da carreira
que estão escolhendo. É corriqueira
Logo no início de sua tese você detecta a justificativa da escolha do curso de
muito precisamente uma das raízes artes visuais pelo gosto por animações,
da problemática da arte inserida no quadrinhos ou ilustrações e outros
contexto da universidade; você mostra desenhos figurativos. Não que estes não
que o problema é anterior à universidade, possam ser motivos legítimos para a

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escolha do curso, mas estes evidenciam escola deva oferecer uma informação mais mesmo uma prática ingênua de artes visuais
o apreço pela representação enquanto completa sobre os ramos do conhecimento, constante: retratos e autorretratos com
verossimilhança, pela dificuldade mas cada estudante vai progressivamente celulares ou máquinas digitais, filmagens.
e qualidade técnicas superadas. E, fazendo suas escolhas, e muito do que se Não quero tomar posições a priori nem
acredito, é na valorização desta ideia aprendeu provisoriamente é deixado de pretender falar em nome dos outros. Em
de representação que consiste boa lado. Nós fizemos uma série de opções pela todo esse universo visual podemos encontrar
parte do equívoco do leigo sobre o que arte, e somos tão leigos em ciências, por obras de arte legítimas, embora a imensa
seja arte (contemporânea ou não) e exemplo, como a maioria dos cientistas maioria seja mais do que discutível, mesmo
suas necessidades enquanto curso na em arte. Admitamos que a arte tenda a mantendo alguma ligação com o que
universidade e enquanto carreira... E ser majoritariamente concebida como um entendemos por arte. Suponho que o senso
este leigo, conforme você diz, é também entretenimento – a indústria cultural sabe crítico dos espectadores tende a ser baixo, e
o cientista, o professor titular que vai disso muito bem. Não é nada comum pouco se percebe a existência de uma atitude
definir a verba e a infraestrutura que se entender que pode ser um meio de estética, mesmo embrionária, uma tentativa
um curso de artes pode ter... E ainda conhecimento do mundo. Pode ser uma de desenho, quando captamos nossa própria
este leigo é aquele que vai analisar os grande abertura, mas talvez não para todos. imagem frente a um determinado fundo.
resultados dos departamentos de arte nas Creio que cada um deve ter a capacidade E voltamos à questão da escola. Seria
universidades. É um efeito bola de neve. de escolher, e para isso, a arte deveria ser impossível partir dessa experiência cada vez
Como mudar isso? Até que esta mudança bem apresentada mais cedo, a todos, antes mais banal, e dar-lhe alguma consciência,
se introduza nas escolas, a universidade da opção universitária. Devemos respeitar a inserindo-a na história do retrato? Seria
vai precisar continuar com as medidas falta de interesse por algo que nos apaixona. impossível inserir o fundo frente ao qual
paliativas caso a caso... se posa na história da paisagem? Quantos
Mas a questão é muito complexa, e tentarei professores de ensino básico e médio
A única possibilidade que vejo para mudar não simplificar. Por outro lado, é quase seriam capazes de dar tais aulas, partindo
isso é a introdução de fato do ensino da impossível, hoje, não ter contato algum com de situações amplamente conhecidas e
arte no ensino básico e médio, ou seja, com a arte. Através justamente de “videogames, vivenciadas por muitos? Poucos. O celular é
professores competentes (muito poucos até quadrinhos, ilustrações de baixo nível usado como meio por artistas, mas quantos
agora), carga horária e espaços adequados. e publicidade e logotipos”. Ou através professores de arte (e artistas) percebem a
Mas me pergunto se isso pode mudar, ou de dvd’s, cd’s, mp3 etc. Há pessoas que diferença entre curiosidade e arte? A arte é
até que ponto. Não esqueçamos o papel parecem passar o dia ouvindo música em uma atividade de difícil definição.
de cada aluno em tudo isso. Creio que a fones de ouvido (mas que música?). Existe

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A falta de conhecimento dos enigmas e das eletrônica, poderíamos encontrar grande ainda insuficientes, desde a implantação
ambiguidades da figuração influencia sim quantidade de imagens e informações dos primeiros cursos de artes. Como chefe
os equívocos quanto às artes visuais. Afinal, artísticas, embora de forma desequilibrada, de departamento, tive oportunidade de
o que se vê mais facilmente são imagens a sem a profundidade desejável, e sem dialogar com pessoas de outras áreas.
partir do Renascimento, e ideias toscas sobre tanto acompanhamento da propaganda. Muitas se mostraram abertas ao diálogo,
sua superação no Modernismo. Se aceita Parece-me faltar um conhecimento compreenderam perfeitamente nossas
a ideia de semelhança sem ter chance de inicial que estimule e capacite à busca, peculiaridades e nos apoiaram. Mas
comparar o retrato com o retratado. Esta emancipe, e aí voltamos à questão da creio que a iniciativa só pode partir dos
experiência poderia ser possibilitada nas escola. Mas o interesse pela arte, no departamentos de artes, onde é difícil haver
mesmas aulas sobre a história do retrato. sentido que nós damos a esta palavra, não um consenso decidido a favor de mudanças
Aí começariam a aparecer as diferenças e pode surgir de uma obrigação, nem se efetivas.
as ambiguidades. É comum a experiência determina o nível desse interesse, ou se
de pessoas que pouco se reconhecem impede seu surgimento. Pode haver um Eu posso estar enganada, mas me parece
nas fotografias. Já conversei sobre isso interesse inconsciente por artes visuais em que as artes visuais, no Brasil, são as
com pessoas sem formação específica: manifestações mais ou menos próximas, mais elitistas das artes. Isso no sentido
mostraram-se perfeitamente capazes de como design de moda, de automóveis, de serem as menos compreendidas e
entender os problemas envolvidos. tatuagens, pinturas de pranchas de surf apreciadas. O mesmo não me parece
e skate, que geralmente não ultrapassam acontecer com a literatura, a música, o
Mas creio que existe outro fator mais o anseio programado de originalidade e
teatro ou o cinema contemporâneos. Aqui
poderoso para a influência de quadrinhos, o símbolo de status. Tal interesse pode
falo mesmo em termos quantitativos:
videogames, publicidade etc. no espectador: conduzir a outros níveis artísticos, mas
a sensação que tenho frequentando
a multiplicação. Trata-se de imagens mesmo com uma informação melhor na
estes meios é de que a elite cultural que
naturalmente pensadas para escala de escola, creio que muitos continuariam
aprecia os assim considerados “boa
produção elevadíssima, embora haja optando apenas pelo entretenimento. Que
literatura”, “boa musica”, “bom teatro”
exceções. Há quadrinhos em edições tem sua importância, do qual por vezes
necessitamos, e que pode estar presente sem e “bom cinema” é bem menos reduzida
pequenas, sem o acompanhamento do do que a dos apreciadores de arte visuais
aparato publicitário. Mas no geral essas conflitos em obras de arte autênticas.
contemporâneas. Também a arquitetura
manifestações estão facilmente disponíveis, e a dança contemporâneas são mais
são até inevitáveis, enquanto se pode passar Quanto às mudanças nas Universidades,
são difíceis, mas não impossíveis. Houve compreendidas. Creio que essa situação
a vida sem entrar num museu ou galeria se deva, em parte, à impossibilidade de
de arte. Na mesma mídia impressa ou muitas mudanças significativas, embora
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acompanhar as mudanças que as artes que o leigo ainda pense que o artista é obra de arte no espaço público, entendido
visuais sofreram. Salvo exceções, as elites apenas aquele que desenha, pinta ou “faz fisicamente, tentando, ao menos no discurso,
culturais apreciadoras das artes visuais estátuas” (escultura). O elitismo das artes não ser mais uma manifestação do poder.
pararam nas vanguardas modernas ou têm visuais é a possibilidade que resta, já que Mas o espaço público é também mental,
dificuldade em distinguir entre moderno começa no pouco entendimento do que imaterial – começa na percepção. Este é
e contemporâneo ou se deslumbram com seja arte – existente dentro da própria mais difícil de ocupar. Além disso, boa
os modismos equivocados e passageiros universidade, que seria um meio social parte dessas tentativas se constitui de obras
nas artes visuais contemporâneas. Hélio que supostamente deveria legitimar a efêmeras, expostas a outras intervenções ou
Oiticica e Lygia Clark ou Waltércio formação do artista enquanto profissão. mesmo à destruição, limitando ainda mais
Caldas e Julio Plaza não são tão o contato. Muitas acabam sendo colocadas
conhecidos quanto Tarsila ou Villa- No texto de minha livre-docência, começo no espaço real da metrópole apenas para
Lobos. Um exemplo rápido que considero citando um texto de Eric Hobsbawm, onde sumir, engolidas por uma situação sensorial
esclarecedor: Tarsila e Villa-Lobos têm o autor frisa que as artes visuais despertam poderosíssima, evidenciando a falta de
uma página dedicada na Wikipedia (a um interesse minoritário na sociedade. conhecimentos de desenho ou de recursos
enciclopédia livre on-line), mas Caldas Talvez seja inevitável. As artes visuais têm financeiros. O espaço só se expande na
e Plaza não têm. Arnaldo Antunes, Lars uma forte tradição ligada à obra única, medida dos financiamentos. Quando o
von Trier, Teatro Oficina, Ruy Ohtake ou que muitas vezes tem como destino ser objetivo é apenas produzir um evento e dar
o Grupo Corpo também têm sua página subtraída à visão pública, ao menos por notoriedade aos participantes, no reduzido
na Wikipedia. Experimentando buscar um período. É um objeto que pode ser meio artístico, nada disso é problema.
os nomes dos artistas contemporâneos fisicamente possuído, embora ilusoriamente. Sempre existe a chancela de algum discurso.
brasileiros e de outros países que estão nas Pode ser encomendado e guardado. No Mas quando se pretende de fato estabelecer
exposições de repercussão internacional limite, com alguma ironia, é viável que o uma reflexão sobre o contexto urbano
os resultados se repetem; os brasileiros público da obra única seja também único: o contemporâneo, tentando atingir o público
são os que não têm suas respectivas comprador. A obra única limita seu público, real e desavisado, a realização da obra é
páginas. Creio que este quadro não seja e vivemos, há muito mais tempo do que fundamental.
apenas resultante das desigualdades parece, uma época na qual as obras podem
financeiras para a repercussão das artes ser fruídas em casa, embora de modo menos O fator espetáculo sempre foi uma das
visuais nos diversos países, mas também completo. É a multiplicação que torna a principais maneiras de impressionar
do caráter de atividade desconhecida dos obra mais pública, mesmo a única. Há um o leigo. Só se exacerbou em nossos
artistas visuais no Brasil hoje... É comum grande número de tentativas de inserir a tempos. Geralmente, se apoia nas grandes

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dimensões, que só são grandes levando no espaço urbano, com desníveis enormes aulas, livros, internet e conversas. Inserir um
em conta a relação de escala com o de qualidade artística. São parte de nossa trabalho no contexto urbano, com poucas
entorno. Isto é desenho. Das três grandes paisagem. possibilidades de prolongamento interno
artes tradicionais – pintura, escultura, no público, não produz necessariamente
arquitetura – só a última guarda intata, Sou cético quanto à eficiência dos grandes arte pública. Creio que seria mais efetivo
ou até amplificada, pelo desenvolvimento eventos temporários – que precisam tornar toda arte pública, em primeiro lugar
tecnológico constantemente aplicado, a ser temporários para gerar sua cota de através da escola, de maneira emancipadora,
capacidade de produzir espetáculos. É espetáculo – para produzir algum efeito permitindo a cada interessado o contato por
fácil ver seu uso contemporâneo a serviço social apreciável, alguma reflexão a si mesmo, sem intermediários – por vezes
de interesses políticos e econômicos, partir da arte. A arte será um meio eficaz mal treinados – entre o olhar e a obra.
continuando a tradição. Creio que a para esta finalidade, justamente pelo
possível relação de escala entre pintura, desconhecimento que registramos? Ela No entanto, existiriam todas as condições
escultura e arquitetura, começa a se esgarçar só acontece na medida da recepção do para um contato maior com as artes visuais,
com a industrialização. Há lugares onde público. Um filme não foi capaz de impedir através de reproduções de todos os tipos e
está completamente rompida. E é no a reeleição de George W. Bush, mas as originais múltiplos. Não que isso substitua a
contexto urbano das grandes metrópoles, reportagens televisivas, veiculadas com presença de uma obra, mas não esqueçamos
tendente cada vez mais ao gigantismo, frequência durante anos, tiveram grande o papel do espectador: alguns são capazes de
onde se concentra o possível público e o papel contra a Guerra do Vietnã. Não será captar mais através de uma reprodução, do
interesse em produzir espetáculos, que se melhor tentar usar as possibilidades dos que outros frente à obra real. Qual é o nível
pretendem introduzir contraespetáculos media, em lugar de pretender transformar de envolvimento real de tantos espectadores,
– ou espetáculos outros. Mesmo com a arte em reportagem política? Uma com condições plenas de estarem presentes
o apoio de novas tecnologias e grandes metrópole como São Paulo mal nota frente ao original, achando “maravilhoso”?
investimentos, a escala permanece iniciativas como Arte Cidade. Qual o poder Quantos estariam apenas cumprindo
demasiado menor. Suspeito que o de alguns meses de uma Bienal de Arte? Os uma obrigação social? Não creio existir
investimento em arte simplesmente não eventos passam, a cidade fica – inalterada. uma impossibilidade para acompanhar
dá um retorno comparável a um grande Ou melhor, quem continua agindo, as mudanças no campo artístico. Mas a
empreendimento imobiliário. Existem, é ininterruptamente, são as forças políticas grande maioria das pessoas não sabe o que
claro, intervenções menos oficiais, mais e econômicas que procuram dirigir, bem e está acontecendo, ou não sabe onde poderia
discretas, independentes ou clandestinas – principalmente mal, o urbanismo. Acredito se informar, ou só tem conhecimento
que podem ser oficializadas – coexistindo mais nas ações cotidianas e discretas, como das consequências mais secundárias. Ou

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simplesmente não se interessa. Para que o intransigentes com a qualidade de sua de interessados em arte contemporânea
interesse deixe de ser minoritário, de novo, obra, ou operando sem buscar fama e no Brasil? E também não subestimemos
a escola pública seria fundamental. Ainda repercussão. É digno e ético. Mas o risco sistematicamente o espectador: alguém
mais no Brasil, onde as reproduções em comercial pode continuar existindo, mesmo não preparado pode simplesmente estar
livros de arte e até o cinema permanecem quando o público se reduz. Comprometer percebendo a falta de sentido, onde um
fora do alcance de muitos. A pirataria um trabalho, dirigindo-o pela construção espectador treinado – ou condicionado –
cultural teria um lado de democratização, da fama, a concessão de bolsas de estudo projeta sua pretensão de conhecimento.
além de ser uma face do crime organizado? ou residências artísticas é menos comercial?
A democratização através da imprensa Não creio que o artista com a capacidade Creio que antes de distinguir entre moderno
foi efetivada por uma maioria de editoras de realizar um trabalho de alto nível deva e contemporâneo é preciso distinguir entre
buscando o lucro. Vejo pessoas comprando se limitar, mas também não se pode esperar o que é arte e o que não é. Lembremos
pilhas de dvd’s e cd’s legais e ilegais. No que, no presente, em curto prazo, tantos se que ao falar em Arte Moderna e Arte
meio de tudo, é fácil encontrar filmes e disponham aos esforços exigidos por certas Contemporânea estamos incluindo todos
obras musicais importantes. A internet obras. É muito mais provável o desinteresse. seus academismos, que habitam, talvez
também poderia oferecer informação Como e porque um público mais amplo majoritariamente, os espaços expositivos.
ilimitada, mas sem o senso crítico formado se interessaria por questões apenas internas Seria muito cômodo se o “academismo”
na escola haverá a transformação em das artes? O sistema das artes visuais opera assumisse para sempre as formas
conhecimento? em circuito fechado. Há galerias com canonizadas pelas Academias de Belas Artes.
acessos que passam despercebidos ao não O academismo é uma atitude, não uma
A modernidade assumiu bastante uma iniciado, ou não convidam ao ingresso. O forma fixa. Uma atitude extremamente
postura de desafio ou indiferença em público desejado é o potencial comprador, difundida, não restrita à arte, inevitável em
relação ao grande público, e a obra única ou aqueles que determinam o valor da alguns momentos, é imitar modelos crendo
facilita isso. As obras multiplicáveis em obra exposta. O que é exposição para os já ser original. No campo artístico, sua forma
grande escala dificilmente podem ignorar informados pode ser ocultamento para o é camaleônica. Assume a aparência do que
os públicos mais amplos. Correm, é resto da cidade. Recebi há poucos dias uma permite obter as regalias e poderes possíveis
claro, o risco de se tornar apenas um edição do Canal Contemporâneo estimando num determinado momento. Nem todas
empreendimento comercial. Sempre em cerca de 8000 os participantes. É muito as Academias de Belas Artes merecem ser
existiram artistas com a consciência de para uma rede de relacionamento on-line? entendidas em sentido pejorativo, nem
estar trabalhando para poucos, pelo Trata-se apenas de um indicativo, mas sempre foi uma instituição retrógrada. Mas
menos durante o tempo de suas vidas, dá o que pensar. Será só este o número durante largos períodos ser acadêmico era

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condição para ter acesso, por exemplo, às a ser duchampista, a pior coisa que poderia insuficiente intelectualidade da arte que,
melhores encomendas ou às formas vigentes ter acontecido a este artista. Academismo é conforme você identifica: “se enraíza
de residência artística no exterior. Hoje, é tentar transformar a dúvida em garantia. no histórico menosprezo pelo trabalho
preciso apresentar-se com uma roupagem manual, pelas artes mecânicas e pelo
contemporânea extrema. Não deve haver Quando você afirma: “No caso das artes conhecimento sensível e material” e se
nada que explicite o academismo, a não visuais há um componente intelectual esquecem ou não percebem que “técnica
ser, é claro, a própria obra (para quem inevitável, mesmo sem buscar outras é cultura”, acreditando que a única forma
puder e quiser perceber). A academia hoje conceituações: o desenho entendido de arte legítima é aquela cujos projetos
não tem domicílio definido num edifício como pensamento visual, compreensão, se embasam em conceituações teóricas,
neoclássico e não se assume, mas existe. E organização ou desorganização do espaço, desconsiderando que a materialização de
não esqueçamos também que o academismo olhar qualificado que recebe e projeta”, um objeto ou imagem seja um processo
não é privilégio do artista, mas se estende a você parte do pressuposto de que o de pensamento que exige concentração
críticos, curadores, historiadores, galeristas, desenho seja primordial às artes visuais. e conhecimento e que produza
professores e outros artistas, e todos que E há quem no próprio meio da arte conhecimento tanto para o artista quanto
controlam o acesso e a permanência no discorde. Esta situação de desacordo a para o público. Inclusive, antes desta
circuito artístico. Estes criam os interesses respeito disto em que os próprios artistas situação atual das artes visuais, houve
que norteiam o artista acadêmico. Uma se encontram contribui para a confusão quem defendesse algo quase oposto.
obra nem sempre é exposta por suas sobre o que são as artes visuais hoje ou Citando um exemplo controverso na
qualidades, mas também por uma rede de sobre o que faz o artista. Muitos artistas academia, para Rudolf Steiner é preciso
relações pessoais, de interesse, julgamentos visuais hoje sejam eles participantes ou visualizar para meditar e a meditação é
apressados, enganos, modismos, limitações não, do círculo acadêmico, não percebem uma forma de exercitar o pensar. Neste
mentais. A não ser que acreditemos viver uma necessidade de um pensamento caso, visualizar vem antes do raciocínio
numa época em que todos os artistas estão visual e inclusive assumem não saber elaborado pela palavra, a palavra seria o
radicalmente comprometidos com seu desenhar ou não praticar o desenho em reconhecimento do raciocínio visual, do
trabalho, críticos e curadores clarividentes nenhuma das suas inúmeras formas. A raciocínio primeiro (o conhecimento).
e constantemente íntegros, e não haja incapacidade da qual você fala, de analisar Seria quando o raciocínio visual no
meios privilegiados pela sua capacidade de visualmente uma imagem por parte dos trabalho de arte é secundário é que se
gerar espetáculos. Não há nada novo ou acadêmicos, é também uma incapacidade perde a dimensão pública da arte? Como
contemporâneo nisso, mudam os modelos de muitos dos que se denominam artistas a criação de públicos especializados
a se imitar. A “academia”, há tempos, tende visuais. Estes compartilham da visão de dificulta as finalidades da universidade?

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Primeiramente, o desenho faz parte da perceber como é pequena a quantidade de do século xix” tenho a impressão de ouvir
visão, da mente e do corpo, não está alunos formados em artes visuais com um uma crítica à academia do século xix pela
confinado à arte. É usado constantemente, real conhecimento do desenho. Muitos academia dos séculos xx e xxi. E não
mas sem consciência e conceituação. Pouco se limitam a praticá-lo como obrigação posso deixar de sorrir quando ouço falar
se percebe o deslocamento do corpo no nos cursos específicos, que poderiam na “questão da linha”. Ela é um elemento
espaço como desenho, os roteiros e projetos ter um papel emancipatório se as buscas básico e cotidiano de pensamento visual,
feitos e desfeitos, o ato de se vestir, as continuassem de forma independente. expressão visível de um processo sensorial
mudanças qualitativas da experiência visual e reflexivo de busca e construção, como a
na metrópole, as mudanças de luz e espaço É fácil notar que boa parte das artes visuais linha do mesmo lápis em busca do texto.
com o passar das estações. recentes é transposição de conceitos verbais Sua presença é tão constante que quase se
para o plano visual. Para alguns artistas, é esquece. As verdadeiras questões são bem
Depois, existem pouquíssimos cursos em mais importante a apresentação ao público maiores. Se a linha vira questão, a arte anda
São Paulo e no Brasil onde o desenho é certo do que o próprio trabalho. A diferença muito pequena.
discutido com a profundidade necessária. É é grande em relação ao pensamento visual. É
perfeitamente possível formar-se em artes comum perceber que boa parte dos artistas Há outra questão, esta sim real, que me
visuais, fazer pós-graduação e participar visuais tem noções parcas do desenho, a parece afetar o estudo do desenho. É
do circuito artístico sem entender o que ponto de concebê-lo, hoje, nos moldes da onde a incapacidade se mostra mais clara
é desenho. Nos cursos de História da academia de Belas Artes, inevitavelmente e dolorida. Torna-se evidente demais
Arte, em geral, pouco se vê o desenho ligado à figuração, dependente apenas a necessidade de esforço e persistência
como realização gráfica independente e de técnicas gráficas, oposto à pintura, para conseguir ampliar os limites. Ora,
pensamento visual. Quase tudo gira em aparentemente imutável, desligado da aproximadamente no início dos anos
volta da pintura e da escultura. história. É a este desenho que se referem 80, foi sendo forjado o mito do sucesso
ao considerá-lo dispensável hoje. Não a curtíssimo prazo, que partindo da área
Para entender de fato o desenho é preciso conseguem pensá-lo como uma língua viva, financeira foi agigantando as proporções
usá-lo como maneira de buscar e visualizar totalmente conectado com o dinamismo do imediatismo. O meio artístico é
o próprio pensamento, meio de realização do pensamento de um artista, presente em sensível a este tipo de sucesso, e tal atitude
de projetos, instrumento da dúvida. qualquer meio. É uma confusão semelhante dificilmente deixaria de se infiltrar. O
Cursos não podem dar mais que uma à dos leigos com a figuração, porém mais desenho se opõe naturalmente à pressa, e
fundamentação básica, a ser desenvolvida grave, tratando-se de especialistas. Ao ouvir também não garante nada além de alguma
na medida das necessidades. Não é difícil certas referências negativas ao “desenho habilidade a praticantes mais pacientes,

285
porém sem inquietações. Mas o desenho é para as operações artísticas: não há artista vezes mãos hábeis. Sempre se trabalhou
uma capacidade a serviço de um fim, tanto genérico. Mas sugiro que estas escolhas já também a partir de outras imagens,
chave quanto trava para a expressão; limite são desenhos, nos vários sentidos possíveis. inclusive como apropriação. Selecionar o
ético, confronto com o mundo, obstáculo objeto da apropriação não é uma forma
necessário na rota do conhecimento, como O mesmo rigor de um texto está de desenho? Interpretar imagens de outra
qualquer linguagem. implícito nesse processo, já que se trata natureza, fotografar o fluxo da televisão,
de uma linguagem poética literalmente pintar partindo de imagens coletadas na
Na sua tese você fala em diversos materializada. Como em toda linguagem, internet não é desenhar? Perceber aspectos
momentos em ‘rigor’, ‘rigor íntimo’, tudo significa. O possível sentido da no caos urbano capazes de deflagrar uma
‘verdadeiro rigor’, ‘rigor possível’. Como obra realizada depende de todos os atos ação artística, relacionar escalas no espaço
definir isso para quem não reconhece o realizados. Podemos pensar numa forma real para uma possível instalação, levar em
raciocínio visual? em movimento, onde materiais, técnicas, conta o contexto visual onde o grafite vai
instrumentos – ou sua omissão – se ser pintado, não seriam atos de desenho? Se
O rigor, a meu ver, deveria começar por integram ao pensamento como a escrita houvesse mais competência, talvez não se
uma indagação contínua: existe mesmo a verbal. É neste rigor que Duchamp se ajudasse certos arquitetos a degradar nossa
necessidade (que não tentarei definir) de diferencia dos duchampistas. Se o seu uso cidade com a repetição dos piores modelos
tentar e continuar a tentar fazer “arte”? dos procedimentos não fosse preciso, as internacionais.
Ninguém é obrigado a ser artista sem a operações mentais não se completariam,
necessidade de sê-lo. Ninguém precisa ser e não haveria tanto interesse pelas Mas concordo que arte como “sacadinha”
artista a vida inteira. Quem o é talvez só interpretações. não precisa de desenho.
sirva para isso. Creio que sempre houve
gente demais se aventurando a ser artista A colagem é um dos grandes princípios Mas a arte é uma atividade de difícil
por motivos pequenos. E, claro, a aspiração de desenho, não sua negação. Longe de ser definição...
sincera nada garante. Só aumenta os uma simples acumulação ou justaposição,
riscos. Optando-se pela tentativa, o rigor demanda o mesmo rigor de um retrato.

continua na escolha de meios/técnicas/ Selecionar e reorganizar imagens e/ou
materiais/ações a serem efetivados, a fim objetos de naturezas diferentes, e tudo o
de que o desejo, a ideia deflagradora não mais que o conceito de colagem abarca,
se percam totalmente. Parece-me inútil solicita um olhar tão educado quanto
tentar estabelecer um procedimento geral qualquer forma de desenho, e muitas Novembro de 2009/ Abril de 2010
http://www.artebr.com/marcobuti/

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Banksy

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O Almanaque Lobisomem entrevista
Arnaldo Antunes
Por Fabiano Calixto, Flávio Rodrigo Penteado, cidadão (2009), com Edgard Scandurra, para essa linguagem. Mas não só para a
Gabriel Pedrosa, Juliana Marks & Renan Nuernberger Taciana Barros e Antonio Pinto. Tem vários criação, como também para a recepção.
livros publicados no Brasil, entre eles Ou Essa coisa da internet vem substituindo
e (edição do autor, 1983), Psia (Expressão, o espaço que eu tive na minha juventude
1986; Iluminuras, 1991), Tudos (Iluminuras, de conviver muito com a poesia que os
1990), As coisas (1992 – prêmio Jabuti meus contemporâneos estavam fazendo
de poesia), 2 ou + corpos no mesmo espaço através das revistas de poesia. Eu próprio
(Perspectiva, 1997), Palavra desordem tive o desejo de editar revistas de poesia
(Iluminuras, 2002), et eu tu (CosacNaify, por ficar muito instigado com as revistas
2003 – com imagens de Márcia Xavier), que chegavam até mim – como a Qorpo
Como é que chama o nome disso (Publifolha, Estranho, Artéria, Muda, Poesiaem Greve,
2006) e n.d.a. (Iluminuras, 2010). Pólen, Bric-a-Brac, Código, enfim –, uma
série de revistas muito interessantes que
apresentavam um repertório de poesia
já linkado com imagem. A história da
Qual sua leitura sobre os possíveis modos
Artéria, por exemplo, é interessante: o
de circulação do poema?
número um da revista era um envelope com
trabalhos soltos dentro; depois, fizeram uns
Arnaldo Antunes nasceu 1960, em São Os suportes para a poesia vêm se
volumes tradicionais em off-set, alguns em
Paulo. Integrou o grupo Titãs, de 1982 a multiplicando. Existe uma revolução
serigrafia... Tinha também um número que
1992, com o qual gravou sete álbuns. Como com o surgimento da linguagem digital
era uma fita cassete, uma edição toda em
artista solo, Arnaldo Antunes lançou os e não só como recurso para a criação. Há
áudio. Quando surgiu a internet, fizeram
discos Nome (1993), Ninguém (1995), O todo um repertório de efeitos, de som e
um número digital. Enfim, é uma história
silêncio (1996), Um som (1998), O corpo – imagem, de edição, de colagens: é uma
bacana que ainda continua sendo feita pelo
trilha para dança (2000), Paradeiro (2001), linguagem muito dada à colagem, que é
Nomuque Edições. De qualquer modo,
Saiba (2004), Qualquer (2006) e Iê iê iê uma coisa que a modernidade trouxe como
acho que a Artéria apresentava a poesia
(2009). Além de Tribalistas (2002), com linguagem, e agora parece que, com os
já nessa interface, com várias linguagens
Marisa Monte e Carlinhos Brown; e Pequeno meios digitais, chegamos ao recurso ideal
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e com muita agilidade. Então, essa coisa de quem estiver pegando no mouse. Você linguagem para ocupar esses recursos. O
das revistas migrou para os sites, como tem os poemas objeto, como o Gabriel próprio Augusto diz uma coisa interessante:
são os casos da Errática, da Mnemozine, [Pedrosa] fez, como eu fiz algumas coisas “o computador oferece respostas em busca
da Celuzlose e vários outros territórios de que expus no ano passado... Enfim, esses de perguntas”.
discussão de poesia. Essa movimentação links todos com outras linguagens que são
toda é muito interessante. Acho que nos potencializadas pelos meios digitais. A impressão é de que os espaços ainda
tempos em que a gente vive, a poesia não foram devidamente ocupados.
continua nos tocando através dos livros. É curioso que os poemas do Augusto Mesmo as técnicas: há muita coisa, ainda,
Acho muito difícil pensar numa substituição de Campos, dos anos 50, parecem que que é tradução de algo que já existia e que
do livro por outros meios. O livro a gente chegaram à sua plataforma ideal somente foi adaptado. Como naquelas mostras
leva pra cama ler, você cheira, é material, agora com o mundo virtual. anuais que acontecem no Centro Cultural
você tem um apego pelo formato do livro. da Fiesp, o File [Festival Internacional de
Acho que o livro se enriqueceu muito Pois é. Quando eu tomei contato com Linguagem Eletrônica]. Frequentemente
também por conta dos recursos digitais, meu primeiro computador caseiro, que há coisas de poesia lá que são apenas
graficamente. Estão se criando muitas era um Macintosh se – antes ainda do texto em movimento... Isso me lembra
novas formas de conceber o objeto livro. Macintosh Classic –, tomei contato com os que, quando eu fiz um trabalho baseado
Os suportes da poesia se multiplicaram e programas e logo pensei, “poxa, o Augusto, na obra do Augusto de Campos [Gabriel
isso faz muito para a poesia, porque instiga tem que conhecer e tomar contato com Pedrosa – Entremeios, 2006] e fui lhe
também como ocupar, a gente tem essa isso”, porque ele fazia as artes finais dele mostrar, ele viu os objetos e disse: “Pô,
instigação de como ocupar outros suportes. com Letraset, uma coisa bem artesanal. E você fez isso aqui no Flash”, daí ele
Pode ser a tela de um vídeo com a palavra, realmente, quando ele se defrontou com o começou a falar dos comandos (risos).
inserir um movimento na palavra – como repertório que o computador oferecia, ele Eu fui perguntar para os meus amigos
eu fiz no Nome (1993), onde ela passa a se encantou e passou a desenvolver muita na Fau e eles não sabiam mexer no Flash,
acontecer não só no espaço, mas também coisa: animações, poemas interativos, vídeos enquanto o Augusto dominava alguns
no tempo, em que ela tem um tempo de e vários trabalhos no computador, artes- recursos razoavelmente sofisticados do
leitura e a simultaneidade da imagem com finais e tudo isso. Eu acho que na verdade programa. Ou seja: tem esse negócio de ir
o som. Você pode ter um site onde inclusive tem isso: eles faziam, talvez, um repertório atrás, de experimentar, de fuçar.
se pode explorar aspectos de interatividade, de linguagem que estava além dos recursos
como Augusto de Campos fez no site dele, tecnológicos da época e hoje em dia a Há um repertório muito extenso e muito
com alguns poemas já abertos à interação gente tem mais recursos que resposta de novo. Há duas coisas que acontecem: como

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você falou, uma é apenas traduzir para um Aproveitando o exemplo dado na primeira manifestações. Claro que o corpo sempre
novo recurso uma coisa que poderia ser feita questão, em sua obra visual há um uso estará presente, mesmo teclando a tecla do
anteriormente, que não é um efeito novo. constante da caligrafia (sendo a forma, computador, mas ali é uma presença que
Outra coisa é ter um deslumbre por um tipo o traço, a espessura etc., os formadores tem uma expressividade mais explícita,
de efeito e querer usá-lo, mas aquilo não de conteúdo). O interessante é que a vamos dizer assim.
ser tão adequado ao uso que se faz – fica maioria dos trabalhos verbivocovisuais
uma espécie de enfeite. Essa relação mais são feitos com computação gráfica, sem O lance do corpo é uma presença muito
estrutural, empregando um novo efeito – traço humano. Por que esta referência tão forte na sua obra, não?
seja de distorção de letra, seja de criar um constante ao “manual”? Haveria alguma
objeto – como resposta de linguagem em mistura análoga em seu trabalho como É, tem isso mesmo. Como tema, inclusive:
um poema ou em uma criação híbrida, compositor? “Nome”, “Tato”, onde é filmado o corpo,
pegando aquele efeito e criando para ele tem várias coisas... Na verdade, a caligrafia
uma resposta de linguagem interessante, isso A caligrafia sempre foi uma paixão pra tem uma tradição que sempre me encantou,
é uma coisa rara: são poucas pessoas que mim. Talvez pelo desejo de fazer uma desde a caligrafia islâmica, japonesa, chinesa,
estão fazendo isso. coisa um pouco diferente, pegando algo a coisa do ideograma e tal... Para eles, isso
da poesia concreta – que trabalhava é uma modalidade artística assim como foi
A internet é uma coisa muito jovem... predominantemente com tipos – e com os pra gente no ocidente a pintura, a escultura.
desdobramentos dela nas gerações seguintes, Foi e continua sendo, enfim, convivendo
Eu acho que a gente ainda está, não sei se inclusive nos escritores contemporâneos. Eu com outras modalidades. A caligrafia
em uma Pré-História, mas no começo de tinha o desejo de dar algo orgânico e que era uma modalidade artística onde já se
uma coisa muito grande. Essa coisa dos continuasse na tendência construtivista, misturava verbal e visual, isso já milênios
meios digitais para a linguagem escrita e mas que inserisse a expressividade do tremor atrás. É uma coisa que sempre me fascinou,
para as linguagens em geral acaba sendo da mão, da coisa orgânica, do contato de certa forma. Isso na modernidade do
uma coisa tão revolucionária como foi, direto com o corpo, o que tem a ver com a ocidente foi traduzido pelos dadaístas
na época o Gutemberg, o surgimento da canção por conta disso também: na canção – Tristan Tzara, por exemplo –, pelo
imprensa e tal. Enfim. você tem contato direto com a emissão da Marinetti, pelo Apollinaire, enfim: vários
voz. Assim como tem as coisas expressivas poetas e artistas visuais que trabalharam
(Pausa para o café) que você emite pela garganta, você usa com a manuscritura. No Brasil, temos o
diretamente a mão, então a presença do caso exemplar do Edgard Braga.
corpo é uma coisa em comum entre as

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Você chegou a conhecê-lo, não é? não era editor, mas colaborei com a revista, em meus outros livros, sempre tinha um
acompanhei a feitura, a impressão do Omar ou outro trabalho caligráfico: no Tudos
Conheci. Eu convivi algumas vezes com Guedes, que era impressor serigráfico, um (1990) tem aquele “Asas”; no Psia (1986)
ele. Eu era casado na época com a Go grande artista da serigrafia. Enfim, nós tem aquele “Eu sumo”; no 2 ou + corpos no
[Regina de Barros Carvalho, sua primeira fizemos uma revista chamada A gráfica, mesmo espaço (1997) tem aquele “Apenas”,
esposa], com quem eu desenvolvi um que é toda de trabalhos caligráficos de enfim... Até que mais recentemente, uns
trabalho de caligrafia. A gente fez inclusive vários artistas e poetas, tem inclusive um cinco anos atrás, eu fiz uma exposição só de
uma exposição, em 1980 ou 1981, só de trabalho do Julinho Bressane. Mas sempre caligrafias, aqui em São Paulo no Centro
caligrafias. E o Braga era uma surpresa, foi uma coisa fascinante. Eu sempre tive Universitário MariAntonia e no Rio de
porque ele era como um óvni ali no meio um pouco essa ideia de entonação gráfica. Janeiro na Galeria Laura Marsiaj. Eram
do meio da poesia concreta, onde ele se Engraçado que você falou da canção. Essa caligrafias grandes, por monotipias, com
relacionava com Haroldo, Augusto, Décio. era uma ideia que me fascinou quando eu tinta de carimbo e papel de gravura. Eu
Antes disso, ele veio dos modernistas. comecei a fazer as primeiras caligrafias, fazia a escrita numa superfície e carimbava
Começou fazendo uma poesia mais de que os componentes do traço manual, com o papel de gravura, de modo que eu
tradicional, mais convencional, e foi da mão, do arco da letra, da espessura do precisava escrever invertido pra poder sair a
rompendo com várias coisas até chegar traço, a intensidade do traço, a distribuição leitura correta, então tem uma brincadeira
naquelas coisas do Tatuagens (1976), dos riscos no papel, tudo isso seriam com esses espelhamentos também. Aí eu fui
do Algo (1971), que é incrível. Eu era correspondentes que a gente teria para descobrindo que, para escrever invertido,
fascinado pelo trabalho dele e a gente foi os aspectos entonacionais da fala ou do eu escrevia melhor com a mão esquerda,
atrás e se encontrou com ele. Inclusive canto de uma forma mais cristalizada. e ao mesmo tempo saía todo o tremor
ele fez uma apresentação caligráfica dessa Hoje, inclusive, há a possibilidade de fazer de escrever com a mão esquerda, que
exposição que eu fiz com a Go na época. uma caligrafia e escaneá-la, distorcê-la, acabava sendo incorporado como um dado
Mas, na época em que eu comecei a fazer aplicar cor. No Nome tem algumas coisas expressivo. Foi legal, porque eu diagramei
poesia e a me aventurar na poesia visual caligráficas que entram ali já com animação, a parede tanto no Rio como aqui, fiz uma
(o Ou e, que é meu primeiro livro, é todo é um elemento a mais que tem uma diagramação parecida na montagem para
caligráfico), tinha vários poetas trabalhando tradição, mas cria um repertório de recursos a exposição. Na parede elas são grandes,
com caligrafia, talvez até por influência do que pode dialogar com as outras linguagens. emolduradas, mas eu diagramei na parede
Braga também, como o Walter Silveira, Eu nunca abandonei, na verdade eu sempre como se fosse uma página a ser diagramada
como a própria Go, como o Gilberto José tive esse gosto pela caligrafia. Eu fiz o Ou mesmo, de jornal ou de revista, então elas
Jorge. A gente chegou a editar... bom, eu e (1983), que era todo caligráfico. Depois, não estavam enfileiradas numa linha na

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altura do olho, mas sim cobrindo a parede, grande importância do repertório trazido as gerações logo posteriores à da poesia
encaixando-as desde o alto até o chão. Ficou pela poesia concreta, não apenas na fase concreta, que é se sentirem um pouco
como se fosse uma grande página com mais madura do movimento, mas muito nos oprimidas, de certa forma, por um rigor
umas escritas misturadas. Agora, tem essa desdobramentos criativos de cada um dos ao qual se teria que fazer jus. Para mim,
coisa do uso delas, que sempre acaba sendo protagonistas: do Haroldo, do Augusto e do aquilo nunca foi um dado que me tolhesse.
dentro de um contexto de expressividade. Décio. Eu acho que as experiências vão se Na verdade, sempre fui muito incentivado
Na publicidade, por exemplo, é mais desdobrando pra muitos lados, vão muito por aquilo, alimentado. Aquela coisa que o
difícil, porque muitas vezes a caligrafia fica além daquela fase coletiva do movimento. Pound fala: “a função da literatura é nutrir
naquele limiar de que você, em parte, lê de Há essa coisa pioneira, na poesia concreta, de impulsos”. Aquilo me nutria de anseio.
imediato; uma leitura que fica no limiar da de inserir essa inter-relação do verbal com Nunca tive esse drama, que eu acho que a
decifração, “pô, o que é que tá escrito ali?”. som e imagem, chamada verbivocovisual. geração do Régis [Bonvicino], do Leminski,
Às vezes tem uma demora que faz parte do Há essa radicalização da linguagem, do Torquato teve. Torquato era até mais
jogo, de você propor um certo exercício de de afirmar que forma é conteúdo, que livre, talvez por causa da ligação com a
decifração. conteúdo é forma, de coisificar as palavras, música. Eu acho que a minha geração já
de elas estarem ali não apenas dizendo um superou um pouco essa discussão do trauma
Em suas múltiplas obras, percebe- conteúdo, mas sendo aquele conteúdo, que a poesia concreta causou na poesia
se um constante diálogo crítico com sendo uma linguagem material. Enfim, essas brasileira. É uma coisa que já entra mais na
a tradição. Como se você operasse, lições todas foram muito importantes na realidade cotidiana da cultura e deixa de ser
a seu modo, releituras de obras e/ou minha poesia – não só a poesia concreta, algo traumatizante como foi para a geração
movimentos culturais representativos do mas toda a linhagem mais construtivista da que veio logo em seguida, que tinha essa
passado: sua poesia visual, por exemplo, poesia, como João Cabral de Melo Neto coisa de ser uma influência muito forte,
embora calcada na experiência da poesia ou mesmo a contribuição dos movimentos de ao mesmo tempo querer corresponder
concreta não segue os preceitos de rigor de vanguarda do começo do século. Tudo àquilo, mas ter que negar, como se nega um
matemático desta (neste sentido, sua cópia isso traz uma informação ligada à coisa pai. Eu já sou de uma geração posterior,
manual de um trecho de Galáxias do construtiva da forma, que é uma influência então já se tem essa discussão um pouco
Haroldo de Campos). Qual a importância muito presente. Além disso, a minha poesia apaziguada. E tem esse lado mais lírico,
destas releituras críticas da tradição? tem também um lado lírico que vem de que tem relação com a tradição de letra de
outros poetas, como Drummond, Bandeira, canção no Brasil, que é uma tradição muito
É uma pergunta que abrange muita coisa, Oswald, Mário, Augusto dos Anjos. Eu sofisticada, desde quando se começou a
porque as influências são muitas. Há uma nunca tive um trauma que tiveram, talvez, gravar, nos anos 20, com Noel, Lamartini,

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Lupicínio, e por aí vai; a Tropicália, a Bossa Aí a gente entra na questão dessa escutava música clássica. Isso foi de certa
Nova... Dentro dessa tradição, inclusive, a constituição maluca que faz parte da forma se dissolvendo, se quebrando, até os
gente tem esse link que foi sendo feito com formação dos escritores brasileiros, onde dias de hoje, mas eu acho que ainda existem
a literatura: apesar de ser muito escasso o a letra de música é uma das influências. resquícios dessa mentalidade de querer
contato dos sambistas das décadas de 20, 30 separar em alta e baixa cultura. Agora, eu
e 40 com os modernistas, a gente vê que a Eu cresci lendo alguns poetas e escutando acho que entre as minhas influências há
busca da coloquialidade de Oswald, Mário, música brasileira. Aquilo tudo me formou, uma terceira vertente também, que é a coisa
Bandeira etc., era próxima do que estavam as canções do Caetano, os poemas do da contracultura, que é ligada à tradição do
fazendo os poetas da canção. Augusto, do Drummond, do João Cabral. rock’n’roll, esse desejo de subverter, que você
Aquilo me alimentava de uma maneira encontra também na poesia concreta e na
Noel Rosa, por exemplo, pratica uma muito parecida, tão inspirador e tão canção popular brasileira, que é essa coisa
espécie de modernismo dentro do samba. formador da minha sensibilidade quanto... de bater de frente com algumas questões
comportamentais, tornando-se também um
Realmente. A gente se pergunta como é E é uma discussão tola essa coisa de letra ingrediente formador.
que não houve uma proximidade maior, de música e poema, uma discussão que,
que é um pouco forjada naquele filme do pelo que eu saiba, não existe nos Estados Certo, você falou muito do
Bressane, Tabu, onde o Oswald encontra Unidos, nem na Europa. Para eles, isso construtivismo, mas e os beats
o Lamartini. É um encontro fictício, mas não é uma questão dentro da música americanos, que vinham numa linha mais
a gente pensa: “como é que não houve brasileira: eles incorporam isso. Quanto a sanguínea, poesia & vida, ações, leituras
realmente?”, o que faria sentido para a nós, ainda não: ainda há um preconceito para multidões, rock & jazz etc. Os beats
gente, mas depois nos anos 50, com o aí, “pô, você é influenciado por música?”. te interessaram em algum momento?
Vinícius, que era um poeta das letras, que Enfim, tem essa coisa dos literatos, então
migrou pra canção. Depois, com Caetano, é muito estranho de aceitar, por exemplo, Ah, me interessaram. Não dá para
Gil, Chico, que escrevem romances e as canções em Torquato Neto. A Academia generalizar, porque há também várias coisas
frequentam a literatura e a canção com ainda tem uma reação forte, o próprio diferentes. Você pega o Jack Kerouac, que
muita desenvoltura; com poetas como Vinícius sofreu preconceito. é um tipo de prosa muito interessante pela
Cazuza, Raul Seixas, Waly Salomão, soltura, pela coisa de trazer uma coisa oral
Torquato Neto, Paulo Leminski e vários Essa discussão é um pouco herança de para a escrita, que é muito espontânea,
poetas que transitavam também pela canção, uma mentalidade do século xix, onde as uma coisa muito legal; você pega o Allen
isso foi se tornando uma coisa mais comum. coisas eram mais separadas e intelectual só Ginsberg, eu acho maravilhoso o “Uivo”.

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Para mim, aquilo parece “Tabacaria” do E os beats tinham uma coisa interessante Eu acho que essa coisa de... essa separação
Fernando Pessoa, sabe? Como forma de que é a coisa da performance, de trazer a do emocional do cerebral... Ah, eu acho
poesia de versos longos, prosaicos por um oralidade para a poesia, algo que no meu tudo isso chato. Há esse termo horrível, que
lado, mas de um lirismo muito interessante, trabalho eu acabo fazendo muito também, até entrou na imprensa cultural, seja pra
uma agressividade também... Não chega nas minhas performances. É muito falar de poesia ou de música etc., que é essa
a ser agressividade, talvez uma potência, diferente, na verdade, a maneira como coisa de “cabeça”; como se uma coisa fosse
assim, muito explícita. E houve poetas eu faço, porque eles tinham essa coisa da vista como “papo cabeça” e isso é visto como
também que me fascinaram, como o Gary poesia “espontaneísta”, que é muito avessa uma coisa pejorativa. São categorias que
Snyder, que tinha essa coisa de trazer o a esse lado mais construtivista que eu estão o tempo todo em diálogo: você sente
pensamento oriental de uma maneira estava assinando. Ao mesmo tempo, como pensando, você pensa sentindo. Essa coisa
nova, ligado à subversão comportamental manifestação de poesia falada, era muito não existe, é mais para negar uma coisa mais
dos anos 60, e ao movimento hippie. interessante o diálogo dos músicos de jazz, sofisticada, mais elaborada ou mais estranha
Claro que isso tudo para mim sempre improvisando, e eles dizendo vários poemas enquanto linguagem, falar: “ah, isso é papo
foi fascinante, então os beats entraram como happenings, isso tudo tinha um valor cabeça”, como se a emoção também, o
dentro dessa coisa do exemplo de vida, de trazer a poesia para fora dos livros, deixá- privilégio da emoção, servisse de pretexto
de liberdade, dentro da coisa social. E la como manifestação de vida. para uma coisa mais frouxa formalmente.
alguns me fascinaram especificamente Eu acho isso chato, é uma coisa que não
como linguagem, mais do que outros. Para retomar um pouco outra questão, cabe na discussão, não é valor de critério,
Você pega, por exemplo, o “Uivo”, que isso me lembra a poesia do Augusto, não é critério de valor na discussão seja em
é um poema derramado e extenso, e as por exemplo. A meu ver, ele supera qualquer modalidade artística.
coisas do Gary Snyder, ou do Gregory essa velha discussão de colocar de um
Corso, algumas muito influenciadas pela lado o racional e de outro o sensível; O Haroldo mesmo, já nos anos 60, talvez
forma do haicai, com pitadas zen. Uma de um lado a expressividade e de outro retomando um pouco a ideia do verso
coisa que me impressionou e não saiu o construtivismo. Há um belo estudo de Fernando Pessoa, “o que em mim
traduzido no Brasil até hoje, mas deveria do Eduardo Sterzi, inclusive, em que sente está pensando”, mas também um
sair, é a obra do Norman O. Brown, Love´s ele puxa esse lado mais lírico da poesia pensamento que já vinha do primeiro
Body. Tinha ali uma coisa muito forte, do Augusto, que não apaga o rigor de romantismo alemão no final do século
que é na verdade uma prosa ensaística, composição, mas sim tira proveito dele, xviii, ele falava: “a gente busca na verdade
mas muito viva, muito bacana por trazer quer dizer: não faz o menor sentido um racionalismo sensível”.
essa coisa do zen do pensamento oriental. colocar a discussão nesses termos.

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É, isso é maravilhoso. Eu cito isso do que propõe a hierarquia para que se possa elevadas”. Ainda existe isso, mas eu acho
Haroldo no ensaio que eu fiz para uma etiquetar o que é cult e o que é cafona, que está indo cada vez mais por água abaixo.
revista virtual que se chama Mnemozine, entre uma “alta” e uma “baixa” cultura
que teve um número todo dedicado ao etc. É como se não pudessem conviver na Isso sempre foi uma questão mais
Augusto. Quem editou foi o Marcelo Tápia mesma biblioteca as obras de Baudelaire de recepção ou de crítica do que de
e ele me pediu uma colaboração. Eu fiz um e as de Patativa do Assaré, ou como se os produção. Os artistas mais interessantes
ensaio analisando aquele poema do Augusto discos do Sonic Youth não pudessem estar não estão muito interessados nesse tipo de
que fala “meu coração não cabe em minha juntinhos aos do Beethoven. Bem, queria distinção.
cabeça, minha cabeça começa em meu que você comentasse mais a esse respeito,
coração”. Eu fiz uma análise desse poema, já que é uma movimentação perceptível Porque já lidam com esse trânsito com muita
onde eu falo exatamente isso, de como em toda sua obra. naturalidade. Para eles, quer dizer, para mim,
não cabe esse tipo de separação e como é muito natural, não é mais uma questão.
o próprio Augusto, de certa forma, dá a Eu já falei disso muitas vezes. Em grande No meu último show – você falou do Odair
entender nesse poema. parte da entrevista que tem nessa minha José –, no show do Iê iê iê, que é meu último
antologia, Como é que chama o nome disco, eu canto uma canção do Odair, que é
É uma espécie de tentativa de disso (2006), eu falo dessa coisa de “Quando você decidir”, que, aliás, tem uma
hierarquizar, como se as pessoas devessem romper a fronteira entre o baixo e o alto rima rica, que poderia surpreender muitos
gostar apenas do que eles chamam de repertório. Para mim, é um resquício de poetas, que fala (canta): “quando você decidir
alta cultura e a baixa cultura ficasse uma mentalidade antiga, que é a realidade dar pra mim/ dar pra mim/ o seu carinho/
sempre de lado – como se essas separações cultural com a qual a gente convive hoje pegue o seu telefone/ disque meu número/
tivessem algum sentido. Eu li uma em dia. Esse tipo de fronteira, porém, chame o meu nome, por favor”. Telefone,
entrevista em que você fala sobre o barato vem a cada dia mais sendo quebrada, número, nome, essa assonância aí já justifica,
que dão algumas canções, por falta de apesar de ainda haver manifestações mas fora isso tem essa sacada genial do
termo melhor, chamaremos de brega, de preconceituosas de um lado ou de outro, “quando você decidir dar pra mim”, (risos)
compositores como o Odair José (que como “papo cabeça”; no lado da cultura que tem o apelo sexual e depois: “dar pra
inclusive gravou uma canção sua). Achei popular querendo negar qualquer aspecto mim o seu carinho”, que alivia a coisa
muito interessante isso, pois aponta para intelectual, ou do lado dos intelectuais, explícita do pedido sexual. Enfim, é toda
uma “des-hierarquização” da arte. As falando “não, canção é entretenimento, esperta, é toda uma letra e melodia, é um
pessoas em geral parecem ainda insistir, é cultura de massa, isso não interessa à rock’n’roll moderno, bacana, não tem por
movidas por algum tipo de ingenuidade, arte. A poesia e a literatura são coisas mais que ter preconceito com uma canção dessas.

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O Titãs do Iê-iê era uma “banda cabeça”. iê” existiu no começo dos Titãs – quando mosquito ou das estrelas, está retratando o
Nas bandas de rock tinha uma coisa a gente gravou o primeiro disco já era só mundo contemporâneo na maneira de se
assim, de as menininhas gostarem do Titãs –, mas na época que tinha o “Iê-iê”, expressar. Depois, eu acho que política não
Legião e acharem Cabeça dinossauro muita gente chamava de Titãs do Iê-iê-iê, é só o que está acontecendo ali no senado e
muito estranho. Como vocês viam essa e a gente falava “não, é Titãs do Iê-iê”, e na câmara. Acho que é você com o porteiro
associação na época? isso era uma coisa que a gente tinha sempre do seu prédio, com sua empregada, com
que ficar corrigindo. A gente achava que já sua namorada, com sua mãe. As relações
Era uma coisa de pontas, a gente gostava era uma releitura do Iê-iê-iê dos anos 60. são todas políticas; a política permeia tudo,
das pontas, então a média a gente deixava Enfim, já não era a mesma coisa, como então eu não vejo muito essas distinções,
meio de lado. Nós gostávamos do que era não era mesmo, tinha influência de outras mas eu estranho um pouco. Uma canção
considerado lixo, mas tinha a sua potência, coisas. Mas agora quando eu fiz o Iê iê iê, de amor pode ser extremamente política.
e do que era considerado estranho, porque era como se fosse uma releitura da releitura, Tem uma que eu canto num show, que não
era fora do gosto comum. A gente gostava retomando um pouco dessa história, tanto é minha – e também é desse repertório mais
dos contrastes, tinha um barato de usar que tem no Iê iê iê uma parceria muito popular – que é “Americana”, uma música
um figurino, um cabelo punk e ao mesmo antiga daquela época, com Marcelo e Sérgio, do Dorgival Dantas, que foi um grande
tempo cantar uma balada romântica como que é “Luz acesa”. sucesso no Nordeste, mas que aqui em São
“Demais”, sabe: “tudo eu já fiz pra lhe Paulo ou no Rio de Janeiro pouca gente
esquecer”, enfim. Aquilo soava esquisito Pensemos, então, no caso das letras de conhece, e ela diz (canta): “ela é americana/
de algum jeito. A gente foi cantar no Circo música (componente essencial para a da América do Sul”. Só nesse primeiro
Voador e na hora que a gente foi cantar canção). O topos da poesia da canção verso já há um manifesto político e é uma
uma balada de amor, a gente foi vaiado. E parece ter se distanciado dos eventos do canção que fala de uma relação amorosa. A
quando a gente foi no programa da Hebe, mundo de uma forma brutal, como se música fala: (canta) “Ela é americana/ Da
entrou o Belotto, o Marcelo, que tinham as experiências fossem todas isoladas do América do Sul/ Eu amo uma americana/
um visual mais normal, e ela: “ai que desastre da contemporaneidade. O que Ela é bacana/ Linda pra chuchu/ Quando
bonitinho”; daí entramos eu e o Branco, você pensa sobre esse fato? estou na pior/ Ela está na melhor/ Ela me
e ela: “opa, falei cedo demais”. (risos) Ela dá tutu/ Com ela não tem cara feia/ Gosta
então falou: “mas vocês são estranhos, né?”, Eu acho essas generalizações muito de uma maluquice/ Mas picaretice/ Ela tem
e eu falei: “é, a gente é estranho, porque se redutoras. Primeiro porque eu acho que horror”, aí vai dizendo e acaba (canta): “Tô
a gente não for estranho, os outros vão ser”. qualquer música, seja falando de uma gamado nela/ Vou me casar com ela/ Não
(risos). E, de certa forma, essa coisa do “Iê- notícia de jornal, seja falando de um tem deduração/ Vou fazer com ela/ Uma

300
transação”. É uma música incrível, mas que fala: “imagine um pobre dos dentes de um site é geralmente um ato solitário.
só nessa primeira frase, “ela é americana de ouro”. Enfim: acho que está tudo aí. A leitura é um ato solitário e isso vem
da America do Sul”, acho que já é uma Sempre existe coisa interessante e coisa da natureza de cada linguagem, vem da
manifestação política. E vinda de uma desinteressante, mas é difícil criar uma regra tradição. Já a canção é uma arte de encontro
música que é considerada brega, mas é um geral. e isso se deve, talvez, ao fato de contar com
verso de uma contundência, essa coisa de uma audição vasta. É diferente você fazer
reivindicar – porque a gente só chama de Embora seja muito usual no universo da uma coisa para tocar no rádio e uma coisa
americano quem nasce nos Estados Unidos; música popular, raramente se encontra para ser vista na sua solidão, ali dentro do
reivindicar a americanidade de outras um bom poema escrito a quatro mãos livro. Então, tem a ver com a natureza da
regiões do Terceiro Mundo e questionar (há muitos livros de poesia escritos em linguagem. Talvez pelo fato de a canção
essa relação pela nomenclatura, eu acho parceria, mas o trabalho em cada poema ser uma arte híbrida, em que a palavra
que é uma sacada genial. Então essas coisas continua sendo individual). Você, no deve ser adequar a uma linha melódica,
estão em um lugar inusitado. Existem, entanto, publicou o livro-poema Outro à cadência rítmica, a uma inflexão, a um
claro, as músicas mais comprometidas com (2001), escrito em conjunto com Josely timbre: tudo isso faz com que ela ganhe
questões sociais mais abrangentes, onde isso Vianna Baptista. Poderia comentar um um outro valor. Às vezes, você tem um
aparece de maneira mais explícita, como pouco o processo de composição deste poema que é maravilhoso, mas que se você
no próprio repertório dos Titãs – “Polícia”, poema? Por que parcerias entre poetas fizer uma melodia inadequada pra ele, será
“Desordem”, “Estado violência”. Mas acho não ocorrem com tanta frequência? uma canção fraca. E o contrário também:
que o artista pode falar de tudo. Ele é livre você pode ter uma canção maravilhosa
para falar de qualquer coisa, sem ter um É engraçado, realmente, porque o trabalho e a letra ser extremamente banal ou mal
comprometimento ideológico com nada. da canção já pressupõe uma coisa coletiva, escrita. O grande valor da canção é a coisa
Pode comentar e vai haver um sentido não apenas nas parcerias, que é uma coisa da adequação e isso é algo possível de ser
político, às vezes mais revolucionário até comum (especialmente no Brasil), mas feito junto. Agora, na poesia é mais raro,
pela maneira de empregar a linguagem você toca com outras pessoas na banda, mais difícil mesmo. No caso do poema com
do que por aquilo que está falando. Acho você faz um show junto, você canta para a Josi, acho que se justifica pela afinidade
que existem vários níveis de subversão, de muitas pessoas. A poesia é toda cercada de que a gente tem, pela admiração mútua e
enfrentamento do establishment. É muito atos solitários, desde a feitura. Claro que, pelo desafio que nos foi colocado: fazer um
mais complexo, é difícil generalizar. Hoje em outros meios já é diferente, você dispor poema para aquele repertório de imagens
em dia as canções estão aí, falando do um cartaz, um objeto, uma camiseta. Mas da Maria [Angela Biscaia], que trouxe
mundo sim. Pega o Cidadão Instigado, se debruçar em cima do livro ou da página uma faísca. Trata-se de um poema, mas

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é também um comentário acerca de um se dilui. Não se sabe – nos Tribalistas, por surpreender com esse olhar ainda muito
repertório de imagens que nos foi dado. exemplo – o que cada um fez; se um verso virgem com relação ao mundo. Começou
Não é uma coisa que saiu do nada, não é é meu ou da Marisa ou do Carlinhos. A com a Rosa, que é minha filha mais velha.
um poema espontâneo, sem uma motivação. gente fez junto: um diz, o outro transforma, Quando eu escrevi As coisas ela tinha três
Existe também esse diálogo de adequação o outro já pega aquela ideia e transforma anos, mas já dizia algumas coisas que me
a outra linguagem. Talvez por isso tenha em outra, sugere outro verso e daí a gente deixavam fascinado e, de certa forma,
sido fácil. Foi assim: a Maria fez esse desafio substitui, mexe. É diferente de como eu fiz um pouco influenciado pelo fascínio do
para a gente e aí eu fiz a primeira parte, com a Josi, que é mandar um e-mail com a olhar infantil, de descobertas e associações
mandei para a Josi, e a gente ficou trocando sua parte fechada para ela fazer a dela e tal. surpreendentes. Às vezes, a gente vê uma
e-mails. Ela continuava, me mandava, eu Apesar disso, existe a unidade do poema coisa óbvia, mas que de tão óbvia ninguém
continuava, e aquilo ficou um poema longo, como um todo, algo que eu acredito termos vê, então aquilo passa a ser estranho. Isso
que eu acho que ficou coeso no final. É uma atingido, o que é bacana. tudo me impulsionou a buscar uma poética
coisa rara de ser feita, mas acho que a gente com esse sotaque do olhar infantil, que
conseguiu fazer algo interessante. Há uma coisa de que eu gosto muito no acabou resultando nesse livro [As coisas],
As coisas (1992), por exemplo, mas que que é como um texto sobre cada coisa do
E tinha aquela coisa de palpitar, tipo está também em vários livros seus, que mundo, só que lidos. Não é um livro para
oficina: “esse verso deveria ser assim ou é essa coisa do olhar, não infantil, mas o público infantil, especificamente – apesar
assado”?... de como os adultos gostam do modo de de algumas escolas já o terem dado para
enxergar das crianças. É uma idealização, crianças em sala de aula (eu tive retorno
(interrompendo) Muito pouco, acho que claro, mas no sentido de aproveitar certas disso e foi interessante). É um livro de
não teve. Cada um fez a sua parte e a gente, formas de dizer e de pensar das crianças poemas meus, em que eu quis aproximar a
na edição do livro, achou interessante para daquilo retirar uma proposta. Você poesia desse olhar infantil, o que tem um
diferenciar as partes: uma letra em cinza acha que tem a ver com isso, de a poesia pouco a ver com aquele poema do Oswald:
claro, outra em cinza escuro. As costuras ser a religião original da humanidade, “aprendi com meu filho de dez anos/ que
funcionam bem pelo fato de a gente estar uma ideia de que a poesia tenha esse a poesia é a descoberta/ das coisas que eu
comentando as imagens, mas o estilo de espanto, sempre novo? De onde sai esse nunca vi”. E conforme eu fui convivendo
cada um fica muito evidente. É uma coisa interesse? com meus livros isso foi contaminando
de sair o diálogo, mas ao mesmo tempo outras áreas. “O macaco”, por exemplo,
preservadas as partes de cada um, as suas No meu caso veio muito da convivência que está no Nome, ou mesmo outros textos
características mais pessoais. Na canção, isso com os meus filhos, de me encantar e me que foram pintando e que têm essa coisa

302
do olhar infantil. Ou aquela canção com o Pois é, tem uma coisa de inscrição rupestre, nós perdemos hoje em dia, ou seja: não
refrão “como é que chama o nome disso”, lembra aqueles desenhos das cavernas. É somos mais instigados a exercitá-la no uso
isso é uma frase literal de um dos meus uma coisa infantil dialogando com a coisa cotidiano, mais funcional.
filhos; ou essa construção que eu fiz na primitivista. Mas voltando ao livro do
canção em parceria com a Marisa e com o Tomé, que é o meu filho mais novo. Hoje Mas que é próximo do exercício da poesia.
Arto, “beija eu, pega eu”: isso era do jeito ele tem oito anos, mas quando tinha três eu
como os meus filhos falavam, o que é, fiquei muito encantado com algumas coisas Justamente. No caso dos seus filhos, isso
claro, uma transposição daquela afetividade que ele dizia. Então eu comecei a anotar o estimulou, mas de qualquer forma essa
infantil para uma relação amorosa adulta, e a fazer uns desenhos para as frases. Mas relação lúdica com a linguagem é própria
mas que tem esse erro gramatical, que ganha a ideia era fazer uma coisa para a gente, do poeta.
um sentido de uma afetividade mais íntima. um livrinho para ter dentro do universo
Essa incorporação tem um pouco desse familiar. Quando essa Editora Alegoria me Acho que isso foi muito bem sintetizado
convívio. Mais adiante eu fiz o livro Frases procurou, perguntando se eu tinha algum pelo Oswald nesse poema, que tem essa
do Tomé aos três anos (2006), não sei se vocês projeto associando palavra e imagem, coisa da “descoberta das coisas que eu
chegaram a ver, pela Editora Alegoria, do respondi que não. Depois me lembrei do nunca vi”. E às vezes são coisas que estão
Sul. repertório de frases do Tomé. Gostaram da na cara. Eu me encantei muito com essa
ideia e fizeram esse livro, composto de frases ideia de dizer obviedades que ninguém está
Sim... do Tomé ilustradas, compiladas e transcritas vendo, mas que estão a nossa volta e passam
por mim – uma espécie de espelho ao a ser estranhas justamente por serem tão
Na época que eu fiz As coisas, por ter essa contrário do As coisas, que era um livro de óbvias, mais óbvias do que são as coisas
dicção muito inspirada na maneira de poemas meus, ilustrado pela minha filha aos nossos olhos de todos os dias. Então
pensar das crianças, eu pedi para a minha mais velha quando tinha três anos; o Frases você ver o mundo com estranhamento faz
filha Rosa – que hoje tem 21 anos, mas na do Tomé, por outro lado, é um livro de frases parte também. Enfim: ver o que está na
época tinha apenas três – ilustrar os textos dele ilustradas por mim quando ele tinha superfície, mas uma superfície pela qual a
e acabou ficando um resultado muito legal, três anos. gente passa rapidamente, sem reparar nas
porque a relação do texto com o desenho já coisas. De qualquer forma, é uma coisa de
criava uma terceira coisa. Há também uma coisa de restaurar certa aguçar a percepção.
ideia de jogo, não? de uma operação
Lembro de haver também uns textos mais ou relação mais livre, mais lúdica com O que é muito legal de acontecer no
complicados, em que o desenho dela sai as linguagens, algo que de certo modo texto. Supostamente, grande parte dessa
da figuração.
303
perda é por um treinamento verbal, uma Há também descrições em que você partia Mudando um pouco de assunto: existe
catalogação das coisas e dos nomes das de uma coisa super simples e, de repente, uma grande controvérsia em torno da
coisas. A filosofia tem uma longa tradição temos uma página toda dando voltas ao questão do direito autoral. No último 26
de atribuir à generalização e à abstração redor daquilo... Porque se por um lado o de Maio, inclusive, um grupo de artistas,
da palavra a perda desse contato. copo é transparente, por outro qualquer escritores e acadêmicos lançou, em debate
Recuperar isso no texto é muito bonito. uma dessas palavras jogadas anula o promovido na sede do Ministério Público
Eu já comprei vários exemplares desse objeto. O próprio Wittgenstein, nas Federal, a “Carta São Paulo pelo Acesso
livro [As coisas], porque eu sempre dou o Investigações Filosóficas, fala muito disso: a Bens Culturais”. O objetivo era colocar
meu para alguém (risos). a partir do momento em que se lança a em pauta um projeto de revisão da Lei
definição ou o nome, já não é necessário
do Direito Autoral, buscando maior
Outra coisa que também me seduziu na olhar para aquilo, já está contabilizado,
equilíbrio entre os direitos patrimoniais
época foi essa obsessão com a definição. toca para frente (risos). Enfim, tem a ver
dos titulares de direito autoral e os
Pode-se dizer, então, que o livro é um com isso de a linguagem ser um projeto
compêndio pedagógico sobre as coisas suicida: é a definição, mas também uma direitos à cultura, à educação e à
do mundo: um texto sobre as formas, definição cujo intuito é superar todas as liberdade de expressão. O que você pensa
outro sobre o sol etc. Havia uma obsessão definições. A ideia de definir as coisas vai a esse respeito? Como você encara essa
pela definição, de olhar para um mesmo ser sempre insuficiente. coisa do cara baixar música na internet?
objeto sob muitos pontos de vista, o Ou mesmo um livro, já que hoje em dia é
que é sintetizado naquele texto final: “as A busca por definição, o foco absoluto, possível encontrar praticamente qualquer
coisas têm peso, massa e volume, cor”. Às isso não existe. A linguagem sempre será coisa na internet... Há inclusive um site,
vezes você vê um objeto pela função dele, insuficiente para abarcar essa visão total o Gigapedia, que é monstruoso: tem de
outra pela forma, outra pelo nome. Tem sobre algo. Mas ao mesmo tempo é o tudo, desde compêndios da história do
um pouco a ver com a noção de objeto exercício que nos sobra para, de certa forma, continente africano até os grandes best-
complexo do Wittgenstein, por exemplo: satisfazer um pouco dessa ânsia de engolir o sellers. É impressionante: o que você
isso aqui pode ser chamado de copo, ou de mundo. digitar lá, acha.
vidro, ou de transparente, ou de café; um
mesmo objeto, enfim, pode ser visto por E contra os focos relativos a que a gente é É mesmo? Gigapedia, que chama?
muitos pontos de vista. Então há um desejo acostumado ou treinado.
de abarcar tudo ali, como se eu buscasse É, Gigapedia. De qualquer modo, essa
uma espécie de Aleph do Borges, mas ao É, é isso. Ótimo. nova realidade transforma completamente
mesmo tempo havia esse desejo de você ver
a relação do consumidor de arte.
muitos ângulos de uma mesma coisa.
304
Eu acho maravilhoso. É um sonho como o grande impasse é esse: como manter em Radiohead, isso. Ou a venda de um disco
usuário da cultura – dos bens culturais funcionamento a roda em que o artista popular, se você vende de mão em mão...
– essa coisa do acesso livre à informação. possa viver do seu trabalho e o que rendeu Enfim, as soluções estão vindo. Ninguém
Eu passei a juventude juntando dinheiro do seu trabalho possa ser reinvestido. Uma sabe o que vai ser ainda, mas acho que existe
durante um mês para comprar aquele gravadora, por exemplo: ela vai aplicar o essa questão a ser equacionada futuramente.
disco de vinil que via lá na Hi-Fi, ficava lucro da venda daquele disco na gravação
escolhendo e tinha sempre aquele disco de outro desse mesmo artista ou de um A gente chegou num ponto de virada,
importado que lançavam lá fora, mas que segundo. Enfim, existe uma engrenagem não acha? O que vem me impressionando
não chegava nunca no Brasil... que funciona porque existe um mercado muito é que o princípio de direito autoral
que consome. Eu acho que isso tem uma surgiu atrelada ao de patentes. A primeira
Tinha que escolher um dentre os vinte importância social e deve ser mantido de patente de que se tem registro escrito
que você estava a fim... (risos) alguma forma, entendeu? Existe ainda a foi concedida em 1421 ao arquiteto
situação do acesso livre à informação, que é Filippo Bruneleschi, responsável pela
E livros também: um tempão juntando maravilhosa também, porém como equalizar cúpula da igreja de Santa Maria del Fiore,
grana para comprar um livro... E de uma coisa com a outra é um desafio futuro catedral de Florença. Essa patente lhe
repente você tem a informação toda ali, para própria sociedade resolver. Eu acho deu, pelo período de três anos, o direito
à disposição. Eu acho que é uma coisa que em parte vem se resolvendo. Na área exclusivo de fabricar um determinado
maravilhosa e muito difícil de ter voltar. da música, por exemplo: algumas empresas tipo de embarcação que aperfeiçoaria o
Não dá para reverter esse estado de coisas, privadas vêm patrocinando não só excursão transporte de equipamentos, mercadorias,
que tem um lado democrático que é muito de show, como já aconteceu no meu caso enfim: um monopólio. Pouco depois,
legal. Ao mesmo tempo, acho que é uma com a Natura, mas gravações de discos de em 1469, foi concedido a John of Spyer
conquista do artista o fato de ele conseguir artistas, às vezes até estreantes. A Petrobrás a exclusividade de uso da imprensa, em
ser considerado como um profissional e tem projetos de incentivo, enfim... Ao Veneza. Bom, essa história do surgimento
poder viver do seu trabalho, da criação mesmo tempo, buscaram-se vários outros dos direitos autorais é bem mais longa e
artística. E isso só é possível se ele for jeitos de remuneração, como aquela banda complexa do que o que eu estou contando
remunerado, seja por meio de alguma forma que pôs na internet o disco para as pessoas aqui, mas o que eu gostaria de ressaltar
de direito autoral ou de mecanismo que baixarem e depositarem o que quisessem... é uma pequenina ironia da História –
ainda vá ser inventado: algum patrocínio, ao menos em minha opinião: há pelo
subsídio, talvez. Eu não sei como se vai Ah, o Radiohead. menos trinta anos, desde o surgimento
equacionar essa questão. Mas eu acho que do mimeógrafo, depois do xerox e por aí

305
afora, ficou cada vez mais fácil, rápido e conteúdo gratuito. Enfim, é uma situação Certo... Bom, então vamos para essa
prático reproduzir textos impressos. Quer que tem muitos lados, bastante complexa. daqui: você tem produzido poemas e
dizer: um avanço tecnológico – a invenção E é tudo muito novo, é uma coisa de vinte canções para campanhas publicitárias
da imprensa – propiciou o surgimento anos para cá, talvez um pouco mais, não – creio que as do grupo Pão de
dos precursores dos direitos autorais, sei... O monopólio das grandes gravadoras Açúcar são as mais conhecidas. Existe
porém o mesmo princípio que legitimou dos anos 80-90, tudo isso se desfez muito diferença formal na elaboração de uma
a ideia de direito autoral se volta contra rapidamente. O mercado de cds despencou canção e um jingle; um poema e uma
ele quinhentos anos depois. e a própria estrutura de elas se manterem propaganda? Colocaria os poemas criados
com a estrutura de rádio e tudo o mais, especificamente para um produto num
É, mas existem também outros lados. Essa tudo isso está um pouco em crise. Hoje em livro seu ou gravaria um jingle num
mesma tecnologia também barateou muito dia, as pessoas assistem muito mais Youtube disco? Até para lembrar daquele caso do
do que televisão; ouvem muito mais rádio Décio, que colocou o “Disenfórmio”
os custos de produção. Aquele sonho do
virtual do que rádio na estação – talvez numa coletânea, ou isso pra você é
socialismo dos anos 50-60, essa coisa de os
ainda ouçam rádio no carro, sei lá... O fato completamente fora de...
meios de produção estarem na mão de quem
faz, que gerou a ideia de cooperativa e de é que tudo está mudando muito rápido. São
(interrompendo) Para mim é completamente
todas essas indústrias que os trabalhadores situações que a gente ainda vai ver como
diferente, porém existe um engano aí: a
transformavam em cooperativas, hoje em se resolve, é uma coisa que está em pleno
campanha do Pão de Açúcar e várias outras
dia isso é uma realidade. A gente não precisa turbilhão de mudança e que ninguém sabe
que eu já... bom, várias não, porque eu
mais de um grande estúdio para fazer o seu muito para onde vai. Mas eu acho que fiz poucas. Fiz uma participação numa
disco. Um monte de gente tem estúdio na tem de se levar em consideração isso de o campanha do Terra, que era um anúncio
garagem, no quarto. É possível fazer o seu artista poder ganhar pelo que faz, essa é comigo, com o Rappin Hood e com o
disco com muitos poucos recursos. Isso uma conquista que não se deve abandonar, Nando Reis; fiz a do Pão de Açúcar; fiz uma
tudo na área de música, mas a partir de uma nem ser delegado a segundo plano, porque é coisa de um carro, mas que era só para site,
impressora como essa daqui, de jato de tinta uma função importante para a saúde do ser não era tv... Das poucas coisas que eu fiz, a
(aponta), é possível fazer uma publicação, humano, enfim. maioria delas não era para... acho que houve
já que ela aceita papéis especiais; é possível uma ocasião em que eu fiz um poema para
imprimir um livro com uma qualidade É, e pagar conta, tudo mundo paga, uma promoção de uma máquina de lavar,
excelente. Existe também essa facilidade, ninguém escapa, não é? (risos) mas que não era uma coisa... era só para
que é o barateamento do acesso à produção. vinte pessoas, para as quais eles iam mandar
De certa forma, uma perda dos direitos Pois é. a máquina de lavar com um poema meu.
se disseminou por causa da aquisição de Mas é muito raro eu fazer o texto. Nesses
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casos do Pão de Açúcar, do Terra, desse carro está divulgando um produto, já não é... É coisa que, para mim, é desinteressante.
etc., eram textos em que eu fiz apenas a uma outra função mesmo. Acompanho na medida do possível, da
locução, em que eu participava apenas com minha própria disponibilidade de tempo
a minha leitura, com uma interpretação de Tem uma função que é aquele fim e do meu interesse. Eventualmente, vejo
um texto que me foi dado pelos criadores próprio, específico. alguma coisa que me chama mais a atenção.
da publicidade. É muito difícil eu fazer Acompanho mais essas revistas de poesia,
uma criação para publicidade. Acho que a É, e depois que vender o produto você pode que eu acho interessantes: a Zunái e essas
única vez que eu me recordo agora foi essa esquecer, que aquilo não tem mais graça que eu citei: a Mnemozine; a Errática,
da máquina de lavar, mas que não chegou depois que a campanha acabou. principalmente, que tem coisas muito legais,
a ser um anúncio. Nas outras vezes, eu fiz a mas tem pouco ensaio, geralmente é mais
locução, era um pouco diferente. Mas eu fiz Certo... E quanto à crítica? A gente queria criação e aí aparecem coisas legais. Nos
a locução porque achei o texto simpático, saber se você acompanha o debate crítico cadernos culturais da imprensa, é raro ter
enfim: não faria se fosse um texto avesso a... contemporâneo de poesia, literatura em uma discussão crítica mais aprofundada e
ou ideologicamente ou formalmente ao que geral, e se há alguma coisa interessante na nos espaços acadêmicos existem teses etc.,
eu tenho como qualidade. Agora, eu acho crítica ou ela perdeu de vez o bonde da mas eu não tenho muito tempo nem acesso
que são universos muito diferentes e não História? a esse material, nem interesse. Mas às vezes
creio que se misturem, no meu caso. Mesmo escrevem alguma tese sobre o meu trabalho,
no caso do Décio ter colocado aquele Olha, eu acompanho, mas eu acho me mandam, eu acompanho, leio, comento,
anúncio, aquilo é uma exceção, não é? O geralmente mais desinteressante do que enfim...
Leminski trabalhou muito com publicidade, interessante. Eu até tento acompanhar,
mas sempre foi uma área muito diferente da mas há muita coisa que não me seduz. Mas Existe pelo menos alguma leitura dessas
produção dele, que ele nunca misturou com também acompanho levianamente, não acadêmicas que... Lembrei de um caso
os poemas. Claro que a criatividade está sou aplicado em acompanhar as discussões. agora: outro dia houve um congresso de
numa área e noutra a serviço de uma função Às vezes entro nos sites de poesia, como semiótica em São Paulo e o presidente
ou de outra, mas em geral é muito diferente o Cronópios, por exemplo, que tem muita da mesa era o Décio. Aí ele fez uma
fazer o poema... coisa de crítica. Acompanho um pouco fala inicial e todo mundo falava depois:
também nas revistas impressas de poesia “Imagina, o Professor Décio Pignatari
É outro compromisso, não é? ou mesmo nos espaços em publicações aqui ao lado, eu vou só fazer um breve
maiores, espaços que não são tão profundos, comentário”. Todo mundo começou
Não há essa ambição de divulgar um como a revista Bravo ou a revista Cult, assim, uma coisa muito laudatória.
produto. A partir do momento em que se que tem um perfil que dá para aprofundar Depois que todo mundo fez aquele
mais algumas questões... Mas há muita “pequeno comentário” e tal, o Décio
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falou assim: “Bom, com tudo isso falado Acredito que esse seja um problema do que de discussão cultural, especificamente.
eu só posso concluir que eu tô morto, próprio modelo de tese que vigora na Agora acabou o caderno “Mais!” e entrou
né?” (gargalhadas) Ninguém quer mais maioria das universidades, em que se um caderno novo...
conversar com ele, só querem... parte de uma ideia pronta e o percurso
serve apenas para provar algo que já era “Ilustríssima”.
Genial... sabido no princípio.
Enfim, tem havido um diálogo, alguma ... que é totalmente jornalismo, não é nem
coisa que te chamou a atenção, que te É, no contexto universitário é difícil ter uma jornalismo cultural.
interessou?... surpresa. Acontece mais fora desse contexto.
Há pouco tempo, fizeram uma antologia Pois é, tem até resumo: ao lado do artigo,
Olha, geralmente são coisas corretas, mas de poemas na Argentina e encomendaram vão as palavras-chaves. Se você não tem
é raro ter uma leitura que me surpreenda. o prólogo para Gonzalo Aguilar. E ele fez tempo para ler o artigo na íntegra, pega lá
Algumas eu discordo, outras eu reconheço um texto que me surpreendeu totalmente, o resumo com as palavras-chaves.
ali muita procedência e às vezes há uma uma visão inesperada da minha obra... ou (risos) É, não entendi muito esse caderno
interpretação com um insight que eu não melhor, da minha poesia – “obra” é chato aí ainda, mas enfim... Eu acho que carece
tinha tido sobre o meu próprio trabalho, de falar, não é? (risos) Enfim, algo muito um pouco de cadernos culturais um pouco
que acaba sendo interessante. Mas no geral legal, muito diferente do que já se havia mais bacanas na imprensa. Acho que o
é muito raro eu falar: “Porra, que leitura falado. Ou mesmo o texto do Medina, “Folhetim” foi uma grande fase da Folha
crítica do meu trabalho!”. como introdução a essa antologia da como intervenção cultural. Existe também
Publifolha, Como é que chama o nome disso, aquele suplemento de Minas, que é legal
É mais mapeando do que lendo, talvez. foi também uma coisa que para mim deu [Suplemento Literário de Minas Gerais], que
um susto bom. continua sendo bacana.
É, é... Eu acho que é interpretando, mas
dizendo coisas que são mais... já sabidas,
O que é cada vez mais raro, esse susto Ah, é verdade, que ainda circula. A época
então...
bom. Até porque os espaços foram de ouro foi com o Carlos Ávila, mas ainda
É, nesse sentido, quer dizer: mapeando o minguando. Antigamente, nos anos 80, continua bom. Acho louvável que ainda
que já está comentado, as suas entrevistas havia o “Folhetim”, que tinha um espaço circule, porque os estados praticamente
e o que você já deu de pista... mais caudaloso, em que as pessoas podiam não têm mais suplementos literários e
escrever ensaios um pouco mais longos... o slmg é patrocinado pelo Governo do
Alguns trabalhos são mais sérios, chegam Estado, o que é uma coisa legal.
a ter um pouco de revelação pra mim, mas Pois é, depois veio o caderno “Mais!”, que
não é muito comum. foi tomando um rumo mais sociológico do Junho de 2010

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309
Eduardo Galeano
1. Os funcionários não funcionam. Os políticos falam, mas
não dizem. Os votantes votam, mas não escolhem. Os meios de
informação desinformam. Os centros de ensino ensinam a ignorar.
Os juízes condenam as vítimas. Os militares estão em guerra contra
seus compatriotas. Os policiais não combatem os crimes, porque
estão ocupados cometendo-os. As bancarrotas são socializadas, os
lucros são privatizados. O dinheiro é mais livre que as pessoas. As
pessoas estão a serviço das coisas.

2. Tempo dos camaleões: ninguém ensinou tanto à humanidade


quanto estes humildes animaizinhos. Considera-se culto quem
oculta, rende-se culto à cultura do disfarce. Fala-se a dupla
linguagem dos artistas da dissimulação. Dupla linguagem, dupla
contabilidade, dupla moral: uma moral para dizer, outra moral para
fazer.

3. Quem não banca o vivo, acaba morto. Você é obrigado a foder ou


ser fodido, mentir ou ser mentido. Tempos de o que me importa, de
o que se há de fazer, do é melhor não se meter, do salve-se quem puder.
Tempo dos trapaceiros: a produção não rende, a criação não serve,
o trabalho não vale. No rio da Prata, chamamos o coração de bobo.
E não porque se apaixona: o chamamos de bobo porque trabalha
muito.

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Jean Starobinski
Sobre a civilização
Um termo carregado de sagrado demoniza o seu antônimo.
A palavra civilização, se já não designa um fato submetido
ao julgamento, mas um valor incontestável, entra no
arsenal verbal do louvor e da acusação. Não se trata mais de
avaliar os defeitos ou os méritos da civilização. Ela própria
se torna o critério por excelência: julgar-se-á em nome da
civilização. É preciso tomar seu partido, adotar sua causa.
Ela se torna motivo de exaltação para todos aqueles que
respondem ao seu apelo; ou, inversamente, fundamenta
uma condenação: tudo que não é civilização, tudo que lhe
resiste, tudo que a ameaça, fará figura de monstro ou de mal
absoluto. Na excitação da eloquência, torna-se permissível
reclamar o sacrifício supremo em nome da civilização. O
que significa dizer que o serviço ou a defesa da civilização
poderão, eventualmente, legitimar o recurso à violência. O
anticivilizado, o bárbaro, devem ser postos fora de condição
de prejudicar, se não podem ser educados ou convertidos.

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Marcelo Ferreira de Oliveira
Evoé! Porém na terra dos yuppies, contra africanos vigorosos, Dioniso
retornou, fazendo olhos de Satã e respeitando os Orixás, a farra sagrada
Cabeleira, quando corria o barrigão pra frente, na ponta dos pés, novamente. As pudicas câmeras tremiam. A governadora de Ohio,
vontade de tango argentino, um olhar esquerdo e panorâmico. A supresa, pôs a mão na boquinha. Revolução no high business. Nada
semana anterior defumando em churrascadas, alguns lambruscos no de cartão de ponto nem musculação. – Vinhos!... o vinho que é o meu
alto do penhasco, peladas em alto mar, o Careca com a romena, o Pibe fraco!... Evoé Baco! Romário e Ronaldo aprenderam bem a mensagem.
com a grega, e vice-versa. Enfarinhados de sol, não havia rotina nem Mas os suíços e os yuppies, essa canalha que só sabe a pedofilia de
paparazzi no bico da bota. As cantinas e alcovas transbordavam suor. E paróquia, armaram uma cilada a Dioniso. A pérfida enfermeira o braço
domingo, no estádio, era o ritual de Dioniso Armando. dele enlaçado, o exame falso, frascos de sangue trocados. De novo uma
espiral de pó branco se ergueu... Estádios opacos.
Milão com jaquetas de seda, Roma e os legionários de maquete,
Florença na dança dos artistas mortos. Todos sucumbiam. Viva era a Restaram-lhe as entranhas de Havana, Bogotá, La Paz, Cochabamba,
displicência napolitana! Nem Elza Soares conviveu com tanta esbórnia. Rio de Janeiro, Buenos Aires, e a fartura de garrafas, sambódromos,
A rede sempre balançava, e os rugidos eram mafiosos. O êxtase girava, charutos, carnes vulvas, oncinhas enfermeiras, carnavais de massa
semana em semana, e o mundo assistiu, no México, à mais selvagem fetichistas, golfe, freiras em visitinhas ao canhoto, excursões de jovens
tourada, bacanal ao meio-dia, capaz de eriçar Maias e Astecas. Até que argentinas, todas castas, sem sequer uma bundinha. Comeu duma
os canalhas suíços, com suas regras de mijar sentado depois das dez da só vez doze croissants recheados, no lugar do banimento dos estádios.
noite pra evitar barulho, decidiram aniquilar Dioniso, tirando-lhe os Coma. Vieram então à sua porta fiéis sul-americanos: paneleiros,
domingos, deixando-o só, Armando, na orgia profana, dessublimada. milongueiros, amantes da moratória, golpistinhas, farristas, políticos,
prostitutas, e a Igreja Maradoniana se expandiu, milagrou: Armando
Uma espiral de pó branco se ergueu. A derrocada de um castelo na tv, o bate bola com o Rei, a Xuxa sem tetas e coxas pra olhar, e
nababo. E a burocracia e o espírito de equipe reinavam. Um bacanais em churrascadas, boates, palafitas, espeluncas flutuantes – mas
sorrisinho escolar pairava nos gramados. Tudo profissionalizado, tédio os domingos, nunca mais. Coma. E a falsa morte anunciada. Falsa
empresarial. Ria-se da Argentina com escárnio, como os ingleses depois morte?
da Guerra das Malvinas. Cada puta craque na Inglaterra! O Lineker
fazia cada golaço... Mas no Brasil ninguém ria. Terra carnavalesca e Suíços e yuppies trabalhando em equipe nos seus laboratórios de guerra
humilde, de negros índios portugueses. trocavam os frascos com o sangue de Dioniso Armando por outros
com sangue alterado. Assim a cultura do fair play, da pedofilia e morte
Tempos depois, no território flamenco, a mecha branca de coati. na pré-escola triunfou sobre a orgia sagrada de Dioniso, símbolo eterno
Dioniso Armando envelhecido, envilecido por suíços. Nem o espírito de júbilo e delírio.
cigano, e suas danças, guitarras, castanholas e ciganas ardentes o
reavivaram: rude, escorpiano, mas Armando para sempre.
313
Fernanda Serra Azul

314
315
Tiago Pinheiro
Bela literatura de província para outro, arando corredores e semeando prateleiras. Às vezes
faziam-nos desmontar estantes inteiras e levá-las para os andares
Escribiendo hasta que cae la noche con un estruendo de los mil demonios. superiores, volume por volume, apenas para, na semana seguinte,
Los demonios que han de llevarme al infierno, pero escribiendo.
tornar a repô-las em seu lugar original, esmagados pelos risos
Roberto Bolaño, “Mi Carrera literaria”
dos bibliotecários. Nossa patética vingança se resumia a esconder
nossos livros favoritos. Por isso, até hoje, é impossível encontrar
1. Fomos expulsos de casa. Prematuramente expulsos. Nossos pais qualquer exemplar de Ferdydurke ou d’Os Demônios nessa biblioteca.
nos enxotaram, por causa de nossos maus hábitos. Pegavam-nos Aliás, qualquer livro está perdido nesse lugar. Disfunção própria
sempre com livros nas mãos. Claro sinal de deformação do caráter. de seus funcionários disléxicos. Ao apontar-lhes essa enfadonha
Um daqueles defeitos genéticos, tais como a homossexualidade e a complicação, passamos a ser os encarregados da limpeza dos
pobreza, eles nos explicaram. Por isso, o aborto tardio. banheiros.

2. Depois disso, fomos até a casa de Dalton Trevisan, pedir abrigo. 6. Então, com as implantações do novo regime, a Biblioteca
Mas ele não estava. Ou simplesmente não quis nos receber. Pública do Paraná tornou-se um campo de concentração infantil.
Foi necessária uma série de reformas para a otimização de seu
3. Maldita seja a literatura. maquinário, de sua clássica arquitetura. Nós os ajudamos nessa
pequena revolução do trabalho burocrático. Recebemos ordens
4. Passamos a viver nos subterrâneos da Biblioteca Pública do de um velho que havia estudado na Universidade de Bad Arolsen,
Paraná. Roubávamos os lanches e o café dos funcionários para famosa pelo seu curso de Biblioteconomia. Se existiu alguma cultura
sobreviver. Aprendemos a ler Borges durante a noite e a assistir a literária em Curitiba, essa foi conquistada ao custo de um pequeno
velhos filmes suecos durante o dia. Aprendemos a cultivar a asma terror estudantil, sobrevoado por enxadristas pedófilos e militares
e a renite. Nossa pele se tornou tão cinza e nossa respiração tão aposentados. Por isso, as lágrimas das crianças ao ouvirem o nome
calcificada que as traças passaram a nos roer até os ossos. Faltou-nos de Bentinho Santiago.
a dignidade da tuberculose.
7. Intervenções da Delegacia da Criança e do Adolescente
5. Assim que nos descobriram, obrigaram-nos a trabalhar como interromperam nosso humilde trabalho missionário. Livros foram
animais de carga, arrastando aqueles carrinhos de um lado queimados e funcionários espancados. Os subornos não chegaram a

316
tempo. Num impulso de caridade criminosa, quiseram nos transferir 14. Subitamente foram nos oferecidos cargos de vendedores, numa
para um orfanato católico, alguma instituição do Santo Ofício livraria aos pés da Universidade Federal. Dispostos a nos reconciliar
patrocinada por José de Anchieta ou Antonio Vieira. Escapamos a com a lei, aceitamos a série de exames humilhantes, de documentos
tempo. infindáveis, inclusive a comprovação de pelo menos três ancestrais
germânicos em nossa família. Devido ao nosso histórico, fomos
8. Corremos até a casa de Paulo Leminski, dispostos a implorar por aceitos, com a condição de raspar nossos cabelos e de arrancarmos
uma carona para onde quer que fosse. Mas ele estava morto. Dele, nossos cavanhaques. Em seguida, deram a cada um de nós uma
sobraram apenas algumas pedras tumulares e festejos póstumos. porção de borsch e um par de sapatos italianos.

9. Desgraçada seja a literatura, que não salva ninguém. 15. Passamos o resto do ano sob os olhares humilhantes de
estudantes e teóricos. Fomos analisados e medidos por nossa
10. Tentamos vender poemas na rua xv, lutando por um espaço capacidade de vendas, pelas línguas que dominávamos, pela
entre os anarquistas, os palhaços e os dementes. Dias depois, determinação de nosso olhar, pelos livros que suportávamos, pelos
começamos a simplesmente mendigar, o que nos pareceu menos anos que viveríamos (ou não), pelo preço do dólar, pela taxa de
humilhante. No fim, nossa dignidade nos fez comer as páginas de câmbio, pelo crédito infinito. No fim, trabalhávamos 16 horas por
nossos próprios cadernos. Foi dessa forma que passamos a viver de dia para nos endividarmos um pouco menos.
literatura.
16. Tentamos fugir para o campo, mas não nos aceitaram como
11. Da xv para o Largo da Ordem. Desistimos dos poemas. Eles cortadores de cana.
eram de mau gosto. Passamos do papel para a bebida, dos versos
para as bijuterias. Por uma quantia mísera, davam-nos a chance 17. Procuramos algum trabalho entre os imigrantes ilegais. Mas
de comer uma coxinha e ouvir alguma coisa no falecido Bill’s. Décio Pignatari, Valêncio Xavier e Manoel Carlos Karam não
Contudo, vieram a Assistência Social e a Vigilância Sanitária. permitiram que nos envolvêssemos com seus negócios. A Polícia
Passamos seis meses na reabilitação escolar. Estávamos de volta ao de Fronteira ainda os persegue, enquanto eles se escondem em sua
higiênico domínio da gramática. pequenina kitnet...

12. De Helena Kolody, ninguém mais se lembra... 18. Funesta seja a literatura, que nunca cumpre suas promessas.

13. Amaldiçoada seja a literatura, que baniu todos os filósofos. 19. Restou-nos apenas cumprir nosso destino e entrarmos na
Universidade, imiscuindo-nos entre nossos clientes e algozes.

317
Pensamos em tomá-la, raptá-la, destruí-la, acabando assim com
todos os nossos pesadelos. Mas desistimos ao perceber que ninguém
se importa.

20. A Cristovão Tezza não pedimos ajuda. Questão de princípios.

21. E agora aqui estamos, senhores professores, entregando nossa


confissão e nosso dever de casa.

22. Maldita a literatura, que não morre.

Post-scriptum (sarau)

E agora, mesmo depois de comparecer diante da diretoria e ler todas
as minhas injúrias, os meus ódios, as minhas difamações àquilo
que lhes é mais caro, e, não sequer sofrer qualquer tipo punição
por causa disso, posso dizer então que encontrei a forma literária
ideal. Tal forma não é machadiana, não é andradina, nem mesmo
roseana, ainda que possa ser entrevista em todas elas. Não é sequer o
romance, o conto ou a poesia, mesmo que na maior parte das vezes
assuma esses moldes. Essa forma que transcende todas as formas,
com a qual posso construir o presente e prever o futuro da literatura
chama-se... suborno.

318
Dirceu Villa
A pose & a poesia180 Pode percorrer jornais, revistas & blogs, são sobretudo muito fáceis, então sequer é
& v. encontrará sobretudo um catálogo de preciso se preocupar com trabalho.
poses, legíveis & elogiáveis.
A mais em moda é a pose de negar
O que é a pose? qualquer tipo de forma; escrever coisas que
pareçam descompromissadas impressões
É criar um método simples de identificação fragmentárias, mas que arredondem sentido
da rubrica de seu nome, normalmente algum, porque é importante que v. negue
ligada a alguma grande questão (perdoem o qqer possibilidade de fechar qqer coisa.
vocabulário) que a sociedade reconheça, & A gente é democrática & politicamente
que agite aqueles seus pares importantes & correta, & é isso q v. tem de afagar.
de mentalidade de gelatina.
“Forma”, “qualidade” & mesmo “poesia”
De modo que: v. não precisa ser um artista, são coisas do passado, & o passado,
v. não precisa fazer absolutamente nada além de démodé, é ... buenas, o passado.
se tiver o tino (q se pode desenvolver) de Agora v. está fazendo um experimento de
acertar a pose que tenha a cara da época linguagem, questionando coisas, insinuando
Uma dica para quaisquer artistas iniciantes:
(perdão novamente pelo involuntário levemente, sendo existencial, v. não quer
sua arte não importa, importa sua pose.
esbarrão). que te confundam com uma coisa que
não interessa. Qualidade é um vestígio
O artista precisa entender o seguinte:
É o que vai atrair a atenção. Ler é muito ideológico de totalitarismos.
ninguém lê, & se sua arte não precisar
de leitura, deve lembrar que, igualmente, custoso & grotescamente fora de moda,
basta captar a atenção. A pose tem um Por isso é importante também que você
ninguém entende nenhuma outra ande com a turma certa. Obviamente,
linguagem. O que as pessoas guardam, bordão, ela é citável, muito econômica, &
atrai parceiros importantes no negócio das você deve criar à sua volta uma aparência
porque é a única coisa reprodutível & ecumênica, você se interessa por tudo & não
guardável, é a sua pose. artes, quaisquer artes.
julga nada, porque qualidade é um vestígio
Para acertar a pose, é preciso estar atento ideológico de totalitarismos. Mantenha uma
180 Publicado originalmente no blog do autor, O demônio ama- às tendências. Na poesia há algumas, que voz discordante de si por perto, para manter
relo. Endereço aqui ó: http://odemonioamarelo.blogspot.com as aparências, & apague o resto da vista.
319
Seja simpático, corteje os poderosos, mas Em artes plásticas é quase impossível fazer outras artes também); ou apresente um talk
tenha um ar indócil que sugira capacidade de outro jeito. Você quer dinheiro & show, & depois escreva qqer coisa. Escreva
crítica: por um lado, v. terá as facilidades galeristas? Caso não queira, faça outra coisa; bonito, seja sentimental, fuja de períodos
cômodas &, por outro, terá o nobilitante uma arte, por exemplo. subordinados & quem sabe não tira a sorte
de parecer capaz de discernimento. Mas grande de virar filme para um público ainda
não se esforce – lembre-se de que é uma Em música – caso v. não faça música pop – maior?
pose –, porque o verdadeiro discernimento basta perceber que o gosto do público parou
lhe custará tudo: fama, dinheiro, amigos, em meados do século XIX, & seu mínimo Nunca se culpe, nem pense duas vezes: você
possibilidades de publicação & leitura, etc. público quer apenas isso de você, o estro não é uma farsa. Se não fosse você, outro o
sinfônico zanzando insensivelmente de um faria. Você reflete a sua época. Não é o que
Ignore, também, os inteligentes, os lado para o outro. Ou, ao contrário, um se espera da arte?
habilidosos & os que tiverem verdadeiro público ainda menor – se v. quiser adulação
discernimento. Ignore sobretudo talentos crítica – quer que v. faça tudo, menos Quem tem tempo para ler, para entender? É
maiores do que o seu, esses são o grande melodia, porque o passado, além de démodé, uma época de biografias com tom de fábula,
perigo, a se evitar a todo custo: primeiro, é ... buenas, o passado. com lição de vida ao fim; de revistas &
porque qualidade é um mero vestígio de jornais com fotos maiores do que os textos;
totalitarismos, segundo, porque, oras bolas, Em prosa: incorpore uma ou outra coisa quem tem tempo para desenvolver uma arte?
estamos falando de você. De te fabula moderna, para mostrar que v. é sacado, mas É hora de ser mole com o uso de referências
narratur. mantenha a base do século xix. No Brasil, de celebridades, ou de fazer um experimento
ignore tudo isso: você só precisa escrever mole de linguagem. É ou não é?
E que essa última observação não passe de parágrafos mínimos, & usar um vocabulário
um lapso. Latim? de 1000 palavras no máximo. Fale sobre Strike a pose, como disse Madonna
coisas ditas fortes, p.e., loucura, suicídio, sabiamente (& faz algum tempo, 1989).
Lembre-se de que a maioria, angustiada, uma paixão estilosa & agridoce, ou algum
vive no futuro, uns vivem como a Regan, outro desses tópicos bacanas, & v. será O espírito de época. Você não sente a
com a cabeça torcida para o passado, & que considerado o gênio da semana. passagem do espírito de época? Está
o presente está despovoado, porque teria de piscando para você. Ele quer te pegar pelos
integrar as duas coisas. Querendo agradar público maior, seja um cabelos. É fácil. Colabore.
cantor ou compositor famoso antes, &
Para aplicar o acima exposto às outras artes é depois escreva qqer coisa (esse esquema é
ainda mais simples. tão bom que funciona para a poesia & as

320
321
The Number of the Krusty
Herschel Pinkus Yerucham Krustofski,
mundialmente conhecido como Krusty

“Ahhhh! Não há nada melhor que um cigarro...


a não ser um cigarro aceso com uma nota de 100 dólares!”.
Krusty, ao ser repreendido pelo prefeito Kassab,
enquanto fumava seu red Marlboro
no Educandário da Vida, nos Jardins.

A coluna The Number of the Krusty é o espaço do grande


Philosopher Doctor e empresário Herschel Pinkus Yerucham
Krustofski, mundialmente conhecido como Krusty. Nosso
conselheiro dissertará, nestas humildes páginas peludas, sobre
novos e importantes novíssimos new life styles da vida mais-que-
moderna. Neste caso, o estilo de vida true. Nosso delicado e painted
filósofo, também apresentador do fenomenal “O Show de Krusty,
O Palhaço”, ourives da palavra e do pensamento, espera que o
caríssimo leitor abra sua Duff geladinha e se ria-se muito. Portanto,
ilustríssimo leitor: Ride, ridentes! Derride, derridentes! Risonhai
aos risos, rimentes risandai! Derride sorrimente! Risos sobrerrisos
– risadas de sorrideiros risores! Hílare esrir risos de sobrerridores
riseiros! Sorrisonhos risonhos sorride, ridiculai, risando, risantes,
hilariando, riando, ride, ridentes! Derride, derridentes!

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The Number of the Krusty orgulhosamente apresenta: O estilo de vida true, amiguinhos e depois de apodrecidas, resgatadas devem ser
amiguinhas, vem da gélida Noruega, aquele usadas no dia a dia e devem ter o cheiro da
Como montar uma banda país nórdico que ocupa a parte ocidental da morte! True que é true é assim, queridinhos.
de true black metal? Península Escandinava e é famoso pelo seu
bacalhau. Sim, pequerruchos queridos. Sim, Quando perguntado qual o estilo de sua
eles são mei-malvadinhos e tudo o mais, mas banda responda: True Norwegian Black
não do tipo American’s Krusty School, mas de Metal! Mesmo que todos os componentes
outro jeito, um jeito mais from hell, digamos. sejam do interior de Minas Gerais.
Nos eua nós, os malvadões viciados em
jogos de baralho, viramos grandes estrelas de Nunca escreva músicas com menos de 15
seriados de tv. Nas florestas da Noruega a minutos de duração.
juventude transpintada monta bandas de...
true black metal. Lembre-se... se não machuca os ouvidos,
uma música não é true.
Para você, amiguinho e amiguinha, que quer
montar a sua banda de metal extremo, isto Nunca escreva músicas sem adjetivos no
é, true black metal, eu, o Grande Krusty I, título.
darei todas as dicas. Sigam-nas:
Certifique-se de que pelo menos metade
Antes de mais nada, amiguinhos e dos músicos no seu álbum sejam “músicos
amiguinhas, não monte uma banda. Monte convidados”.
uma “horda”.
Seja “músico convidado” nos álbuns de
Depois de montada a “horda”, faça outras bandas.
Facebook + Myspace + Orkut + o carvalho
a4. Mas jamais, em hipóetese alguma, fale Tenha projetos paralelos à sua banda.
pra mamãe ou pro papai, pois eles podem Certifique-se de que todos os outros
tachá-los de meninos muito muito muito membros também tenham projetos paralelos
maus. Ok? e participe você também de todos eles.

O corpse paint é algo fundamental. Jamais se Grave todos os seus projetos no mesmo
esqueça que todos os membros da banda estúdio, com a mesma equipe e mesmos
O Garoto Juca, depois de saído da trupe bozolina,
posando para Krusty – para jogar luz (?) ao exemplo. devem usá-los! Tachas e pregos e braceletes equipamentos que sua banda principal.
idem Roupas enterradas em cemitérios e, Conduza um membro de sua banda ao

323
suicídio. Depois diga em entrevistas que ele sua “horda” por pseudônimos. Nada de nomes forma absolutamente incompreensível.
se matou por não concordar com a cena ser reais. Pseudônimos são true. Além do mais a não Em entrevistas deixe claro que sua banda é
infestada pelo mainstream. publicação dos nomes de verdade contra qualquer forma organizada de religião.
faz supor que os membros de sua banda sejam Na mesma entrevista use a palavra Satanás pelo
Se o membro de sua banda não quiser ir dessa fugitivos da justiça por queimarem igrejas e menos oitenta vezes.
pra melhor por conta própria, mate-o. Depois de sacrificarem seres humanos.
matá-lo, fotografe seu corpo morto e publique O logotipo de sua banda deve ser ilegível e deve
na capa do próximo CD da banda. Ah, não se Nos créditos do álbum indique a função de cada conter pelo menos uma cruz de cabeça para
esqueça, seja preso pelo assassinato e depois de músico com termos como vociferations e infernal baixo ou um pentagrama. Este logotipo deve
20 anos vendo o sol nascer quadrado, diga que blasts ao invés dos comuns vocalista e baterista e ser desenvolvido desenhando em seu caderno
você “está bem e vê o mundo com outros olhos”. assim por diante. durante as aulas de sociologia.

Junte-se a antigos membros da banda e lance um Cantar em português não é true. Cantar em Diga que não gosta de ser entrevistado, mas
álbum. Quando ele não fizer sucesso diga que inglês arcaico é o mínimo aceitável. O ideal é aceite todas as entrevistas que lhe sejam
isso ocorreu porque é um álbum true de uma cantar em alemão, em norueguês ou no dialeto oferecidas, principalmente para fanzines de que
banda que ainda não foi corrompida (e jamais o dos orcs. ninguém ouviu falar e que são, portanto, os mais
será!) pelo mainstream. true.
Der zutreffende Zutreffende Schwarze Norweger
O título de seu álbum deve ser composto Metaller weiß, um Deutsch innen zu lesen. Como Feito isso, você pode dizer para todos os
de três palavras de difícil relação uma com a assim? Você não sabe ler textos em alemão? coleguinhas da escola e do Orkut que você tem
outra. A banda Dimmu Borgir é mestre nisso. Maldito amador! uma banda que é verdadeiramente true.
Por exemplo: Enthrone Darkness Triumphant,
Nas suas letras denuncie todas as formas
Spiritual Black Dimensions, Puritanical Euphoric Abraços por trás em todos os amiguinhos e
organizadas de religião. Em cada uma delas cite
Misanthropia, Godless Savage Garden. Portanto, amiguinhas.
Satanás pelo menos vinte e cinco vezes.
amiguinhos e amiguinhas, sigam o mestre!
Mulheres não têm lugar no mundo homoerótico Carinhosamente,
Se possível, o título de seu álbum deve conter a do black metal. Se sua namorada insiste em Krusty
palavra Northern. participar do álbum, escreva para ela um trecho
falado de conteúdo, só pra variar, imbecil.
Certifique-se de que a capa do álbum consista
em gravuras de no máximo três cores. As cores Certifique-se de que o seu álbum saia de catálogo
permitidas são: preto, branco e cinza. três anos após ter sido produzido. Isso o tornará
mais desconhecido e, portanto, mais true.
Nos créditos do álbum indique os membros de Nos shows, grunha os nomes das músicas de
324
Uma infame
À memória do saudoso Adriano Figueirinha, O Jacaré

Era apenas mais um dia de sol no urinol.


Pero Vaz Caminha... Salomão, ali, logo se pronuncia.
– Vais onde, ó escriba?
– Vou ali, Salomão.

325
326
O Almaque Lobisomem Tem o Apoio de:

327
Licantropia Worldwide
ADBUSTERS – https://www.adbusters.org/
AJUDA ANIMAL – http://www.ajudanimal.org.br/
ALTERNATIVE TENTACLES – http://www.alternativetentacles.com/
ANARQUISMO – http://www.anarquismo.org/noticias
ANGÉLICA FREITAS – http://loop.blogspot.com/
ANIMAL LIBERATION FRONT – http://www.animalliberationfront.com/
ANTIFA – http://www.antifa.net/
ANTIFA CURITIBA – http://antifacwb.wordpress.com/
ARNALDO ANTUNES – http://www.arnaldoantunes.com.br/
ASSOCIAÇÃO PROTETORA DE ANIMAIS SÃO FRANCISCO DE ASSIS – http://www.apasfa.org/
AUGUSTO DE CAMPOS – http://www2.uol.com.br/augustodecampos/
BAD RELIGION – http://www.badreligion.com/
BALANGANDANS – http://balangandans.wordpress.com/
BANGBUS – http://bangbus.com/
BEWARE! – http://www.werewolves.com/
BIBLIOTECA VIRTUAL REVOLUCIONÁRIA – http://www.geocities.com/autonomiabvr/
BRASIL VEGANO – http://www.brasilvegano.com.br/
BRISTOL ANTIFA – http://bristolantifa.org/
CASA DA LAGARTIXA PRETA – http://www.ativismoabc.org/
CENTRO DE MÍDIA INDEPENDENTE – http://midiaindependente.org/
CINUSP – www.usp.br/cinusp/
CLICLOVIDA – http://projetociclovida.blogspot.com/
CLUBE DOS VIRA-LATAS – http://www.clubedosviralatas.org.br/
COLETIVO SABOTAGEM – www.sabotagem.revolt.org/
DIRCEU VILLA – http://odemonioamarelo.blogspot.com/
DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – http://www.direitosdacrianca.org.br/
DOMÍNIO PÚBLICO – http://www.dominiopublico.gov.br/
EJÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERACIÓN NACIONAL – http://www.ezln.org.mx/

328
ESPAÇO CULTURAL CIDADÃO DO MUNDO – http://www.cidadaodomundo.org.br/
FABIANO CALIXTO – http://www.myspace.com/fabianocalixto/
FÓRUM PAULISTA LGBT – http://forumpaulistalgbt.org/site/
FREI TITO MEMORIAL ON-LINE – http://www.adital.com.br/freitito/
FREE MUMIA ABU-JAMAL – http://www.freemumia.org/
FREEGAN – http://freegan.info/
GERMINA LITERATURA – http://www.germinaliteratura.com.br/
GREEN ANARCHIST – http://www.greenanarchist.org/
GREENPEACE – http://www.greenpeace.org/brasil/
HERIBERTO YÉPEZ – http://www.hyepez.blogspot.com/
HILDA MAGAZINE – http://hildamagazine.net/
HUMAN RIGHTS – http://www.un.org/en/rights/
IDA TURSIC & WILFRIED MILLE – http://www.ida-wilfried.com/
JELLO BIAFRA – http://www.jellobiafra.org/
JEROME ROTHENBERG – http://poemsandpoetics.blogspot.com/
JOHN ZERZAN – http://www.johnzerzan.net/
JUVENTUDE ANTIFASCISTA – http://juventudeantifascista.blogspot.com/
L7 – http://l7official.com/
LATINALE – http://latinale.blogsport.de/
LAURIE ANDERSON – http://www.laurieanderson.com/
LEONARDO MARTINELLI – http://maformacao.blogspot.com/
MANU CHAO – http://www.manuchao.net/
MARCELO MONTENEGRO – http://marcelomontenegro.blog.uol.com.br/
MÁRIO BORTOLOTTO – http://atirenodramaturgo.zip.net/
MARXISM.ORG – http://www.marxists.org/
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O PHANTÓPERA DA ASMA – http://www.myspace.com/ophantoperadaasma/
O SÉTIMO PROJETOR – http://setimoprojetor.blogspot.com/
OS MALVADOS – http://www.malvados.com.br/
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PARLAPATÕES – http://www2.uol.com.br/parlapatoes/espaco/home/index.htm/
PATRICIA A. CORRÊA – http://patriciaaugusta.blogspot.com/
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SYLVIA BEIRUTE – www.sylviabeirute.blogspot.com/
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USP – http://www.usp.br/
VEGAN ACTION – http://www.vegan.org/
VEGAN PRIDE – http://www.veganpride.com/
VEGETARIANISMO – http://www.vegetarianismo.com.br/
VERDURADA – http://www.verdurada.org/
WU MING FOUNDATION – http://www.wumingfoundation.com/
330
Licantropicalistas Utubeiras!
http://www.youtube.com/watch?v=i-6H_c83Mx0
http://www.youtube.com/watch?v=_cmHp9uXt90 http://www.youtube.com/watch?v=o7AEkStx-oQ
http://www.youtube.com/watch?v=a2ZL9mSHG28 http://www.youtube.com/watch?v=IZhEOwBtK0s
http://www.youtube.com/watch?v=_dWB4dyl-lw http://www.youtube.com/watch?v=rDhzZ7jAUKA
http://www.youtube.com/watch?v=AmL5yyvuk6o http://www.youtube.com/watch?v=jMUSDVQj_GE
http://www.youtube.com/watch?v=1MRu8N2K0NY http://www.youtube.com/watch?v=TPmuD3-36dM
http://www.youtube.com/watch?v=Bd8QO0T9YyU http://www.youtube.com/watch?v=KGLUkMS2S1c
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http://www.youtube.com/watch?v=hw7KXr67tHg http://www.youtube.com/watch?v=nAp5dCiPW8c
http://www.youtube.com/watch?v=zLfAibxDK00

331
Uma saideirinha, só pra sacodar a barra da galça:

O Lobisomem na boa, no Bar do Seu Jão, refrescando os caninos


com suco de cevada na tórrida tarde do verão paulistano, quando,
não mais que de repente, um paparazzo aparece e de supetão pergunta:

– E como vai a poesia?


– Eu dei casa e comida, a nega ficou besta, tá querendo explorar,
quer me judiar, me desacatar!
– Hein?
– A poesia, essa enguia, me custou a aposentadoria...
– Hã?
– Começa na lua cheia e termina antes do fim...
– Quê?
– Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrooooooooooooooaaaaaaaaaaarrrrrrrrrrrrr!!!!!!!!!!!!!!!!!

Este Almanaque Lobisomem foi bolado, feito, maquinado, curtido, transado, construído nas cidades de Santo André & São Paulo no ano do riso de 2010 – nos 69 anos do lançamento do magistral
longa-metragem O lobisomem, com Bela Lugosi & Lon Chaney Jr.; nos 46 anos da publicação de O coronel e o lobisomem, de José Cândido de Carvalho; nos 32 anos da aparição do lobisomem de
Peixinhos, em Olinda-PE; nos 24 anos da veiculação do último capítulo de Roque Santeiro; nos cinco anos da estreia de Um lobisomem na Amazônia, filme de Ivan Cardoso.

Este Almanaque Lobisomem é dedicado a Augusto de Campos, Paulinho da Viola, Jards Macalé & Tom Zé.

332
,
That s all folks!
lovmotov edições, 2010

all rights reversed

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