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N.N.

2222 • MARÇO/JUNHO 2009


• MARÇO/DEZEMBRO 2009

josé lino
grünewald entre a vanguarda e a tradição

A poesia de Julián Axat • O livro da dança, de Gonçalo M. Tavares •


Entrevista com Paulo Vanzolini • Watchmen, de Alan Moore
2 K Jornal de Crítica

no ar. Acreditar que os pássaros são restos


de COREOGRAFIAS. Imagens do corpo
que ficaram atrás, suspensas.”
Ao mesmo tempo, o corpo-idéia de
Gonçalo M. Tavares é também uma sobra,
um resto e um osso que sempre permanece
quando o movimento se encerra, se acaba.
É uma espécie de “corpo cósmico” e mons-
Júlia Studart truoso como o sugerido por Nancy, um cor-
po que pode ser todo feito de excrementos.
A dança parece remeter a algo imaterial car ainda mais esta imprecisão da dança, da Diz Gonçalo: “uma parte do movimento

http://goncalomtavares.blogspot.com
porque é perto demais do corpo, porque é coreografia do corpo comum e do poema é excremento. a outra é desejo.” E diz
perto demais do gesto, tão intensamente como corpo comum que pode sempre ser isto tão intensamente perto do desejo que
perto do corpo e do gesto que passa a ser outra coisa. A dança e o corpo como um chega a fazer desaparecer o desejo quando
o próprio corpo e o próprio gesto. Um acidente mútuo, um gesto vulgarizado que sugere em outras linhas: “o Desejo, de
movimento absoluto pairando e parado pode e deve ser rearticulado de uma outra tão utilizado, perdeu a FUNÇÃO; serve
no ar, movendo o ar, ou apenas uma deixa maneira e assim sucessivamente num sem para Pendurar o chapéu. Esquecer agora
para a carne: “Deixar a dança ser natu- número de combinações infinitas. Gonçalo o DESEJO.” Gonçalo propõe uma espécie
ralmente Carne.” Nem pensamento, nem trabalha a linha das suas frases como uma de desejo absoluto para descolar o desejo
instinto, nem memória, muito mais rápida dança que é uma queda do corpo na dança, do que lhe é atribuído num hábito para
que a fotografia, muito mais longe do céu no chão, no ar, no próprio corpo. Algo a utilidade pública, como o ato banal de
muito mais longe do inferno, um bordado como repetir o quase imperativo em cada pendurar o chapéu. Assim propõe uma
radical da vida, um desenho, que nos leva frase, a frase como um dedo em riste que suspeita e quase artificial experiência-limite
a pensar com Nietzsche que só é possível aponta para a vida: “de qualquer modo do desejo, que num outro movimento é
crer num deus que dança. Um deus como a dança.” Ou ainda: “De qualquer modo a possível aproximar daquela sugerida por
dança, tão imaterial quanto um corpo que dança é imaginar música Produzida pelo Blanchot: desejar o desejo. E como diz o
é a dança, um contorno e uma idéia. corpo a ser entendida de maneira calma poeta americano Charles Bernstein para a
Jean-Luc Nancy diz, numa série de pelos Mortos e pelo céu”. Gonçalo abre as poesia, antes artificial do que nenhuma.
apontamentos sobre o corpo intitulada 58 frases por dentro com uso de letras maiús- Por fim, este livro de Gonçalo M.
indícios sobre o corpo, que “Um corpo é culas em algumas palavras para mover mais Tavares é o começo de um projeto interes-
imaterial. É um desenho, um contorno, uma O escritor português Gonçalo M. Tavares ainda este corpo da frase, esta linha, que santíssimo que se desdobra em seus livros
idéia”. Também este corpo-idéia lhe parece numas vezes é som, noutra sentido, noutra soltos, como no impertinente O homem ou
muito próximo de um corpo cósmico (que Lisboa, Portugal) elabora os seus apon- um tempo quando, mínimo, para contorcer é tonto ou é mulher, na sua tetralogia de
aponta para todos os lados e que tudo toca), tamentos sobre o corpo como dança e a até a própria idéia de poema. guerra intitulada O reino ou no encanta-
místico, um corpo disforme e impreciso dança como corpo, ou como ele mesmo De qualquer modo o movimento, a do projeto d’O Bairro com seus senhores
que se arma por dentro e através de uma define: apontamentos de um “projecto para dança ou estes vestígios de um corpo que servis, este paradoxo. Borges costumava
coleção de peças, pedaços, membros, zonas, uma poética do movimento”. Esse projeto dança, poema e linha solta na página, com- dizer de alguns escritores que eles eram
estados, funções; que se arma como uma aparece no seu primeiro livro intitulado parecem neste projeto do primeiro livro menos homens que uma vasta e complexa
coleção de coleções. E o que me parece Livro da dança, que foi publicado em – que agora é outro nesta segunda versão literatura, talvez este seja o caso de Gonçalo
mais formidável nestes 58 apontamentos de Portugal em 2001 pela editora Assírio & revista por ele antes da edição –, como M. Tavares. Precipitado isto? Talvez. Mas
Nancy é uma proposição a primeira vista Alvim; este corpo que dança e esta dança desejo. Um corpo que contribui para a o que se pode dizer de um dançarino sutil
muito simples: que todo corpo é um segredo que é corpo se desenha como se fosse um alegria, como nas linhas em que diz: “Con- “mais Magro que o instante mais míni-
e se conserva como segredo, e por isso mes- livro de poemas. Agora o livro acaba de tribuir para o aumento do olho-te com mo”? O que se pode dizer de alguém que
mo também é um corpo que morre. E este ser publicado no Brasil pela série Alpendre PASMO, surpreendo-me e gosto”; e que antes da dança esboça o desenho de um
corpo nos deixa apenas alguns indícios de de Poesia, da Editora da Casa; é o terceiro também é um corpo de invenção em outras pedido para proibir a morte: “Por favor, me
sua passagem, que podem ser, estes indícios, livro da série coordenada pelos poetas linhas: “inventar o repouso. No meio do dê um exemplar de deus.”? Nada, apenas
talvez, apenas uma espécie de coreografia Carlos Augusto Lima e Manoel Ricardo movimento o Repouso.” E que está muito mover o que ele diz: “Não respondo, mas
imprecisa, uma dança infinita. de Lima, que publicou antes Vazados & mais perto das coisas suspensas até ser a também não faço perguntas.”
De outra maneira, mas num procedi- molambos, de Laura Erber e Exames de própria coisa suspensa, uma imagem da
mento muito parecido ao da proposição rotina, de Tarso de Melo. coisa suspensa, quando ele diz: “A história Júlia Studart é poeta, doutoranda em Teoria Literária pela
de Jean-Luc Nancy, o escritor Gonçalo O Livro da dança aparece entre nós re- da dança não é não pode ser o Percurso dos UFSC, com pesquisa a partir das linhas narrativas de Gonçalo
M. Tavares (nascido em Luanda, Angola, editado com uma outra versão, num outro Movimentos Traçado no chão. É (tem de M. Tavares. Publicou Livro segredo e infâmia (Editora da Casa,
em 1970, e residente há muitos anos em desdobramento da linha, como para mar- ser) o Percurso dos Movimentos Traçado 2007) entre outros.

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e o céu / que acolhe meus cismares / não


fosses fada e fluido o véu / que envolve teus
esgares” (p. 24); e este outro, da produção
mais recente: “com os lábios lavando minha
alma / digo lucy – e um sol já me deslumbra
/ os ouvidos – lucy – mas a penumbra / me
assombra, desde o olho até a palma / da
mão” (p. 139).
Chama a atenção, no último fragmento
transcrito, o uso do decassílabo, habilmen-
te matizado pelos enjambements, além das
rimas, que vão marcando, num poema

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sem divisões estróficas, a presença virtual
de três quartetos e um dístico, vale dizer
O poeta, tradutor e ensaísta José Lino Grünewald um soneto, de formato inglês. E não se
trata de exceção: é notável, no conjunto
Carlos Felipe Moisés da produção de Grünewald, a incidência
de decassílabos, alexandrinos, redondilhos
No posfácio à primeira edição de e outros metros convencionais, em meio a
Escreviver (1987), José Lino Grünewald poemas de metrificação irregular. Temos
(1931-2000) fixou, com clareza didática, até alguns sonetos bem lavrados: o poeta
seu ideal de poesia, expondo-o não por “cometeu” sete, o que é quase nada, se
meio de referências aos seus próprios comparado a qualquer dos neoparnasianos
poemas, mas pelo elogio incondicional da Geração de 45, mas uma enormidade
do concretismo, ao qual se filiara com para um concretista ortodoxo.
Um e dois (1958), seu livro de estréia: Dos sete, dois são na veia jocosa, dois
exploração sistemática dos processos de apenas levemente irônicos e três são a sério,
montagem, aglutinação, permutação e como este “soneto circular”, vazado em
pulverização das palavras, atribuindo- decassílabos clássicos, bem escandidos,
se a mesma importância aos aspectos todos grafados com a tradicional maiús-
semântico, sonoro e visual, a fim de que cula inicial (a ironia – claro está, sempre
o poema fosse percebido como estrutura há alguma – não chega a subverter o tom
sintético-ideográfica e não como encade- de seriedade): “Difícil responder a tal per-
amento analítico-discursivo. Com isso, gunta / A pergunta que o tempo eternizou
na medida em que passa a lidar com a / Pois se alguém com alguém sempre ficou /
linguagem “e não com o idioma”, o texto São só dois corpos vãos que a vida junta. //
poético se subordinará à “pura ascendên- O que é sonhar, cismar ou divagar / Definir
cia da metalinguagem (uma forma de lin- o que é flama, fé ou flor / São flácidas pala-
guagem que explica as propriedades de vras sem valor / Os fáceis pensamentos cor
outras linguagens)”.1 O resultado final, do ar. // Restaria esta inútil melopéia / De
aparentemente acalentado pelo poeta, quem burila o texto e logo ri / Do verbo que
seria a completa anulação daquilo que se quer visão e idéia. // Mas neste espelho
se convencionou chamar “sujeito lírico” me olho e vejo a ti / E ganho o conhecer
e suas circunstâncias históricas: “A im- renovador. / A resposta é Você. O que é o
pessoalidade do autor é total em matéria amor?” (p. 56).
de referências ou ilações subjetivas, no Soneto circular, Vai e vem Some-se ainda a predileção pelos
tocante a sentimentos ou acontecimen- vocábulos raros e pelo requinte visual
tos. A obra se despede do criador e se se despede do autor e se auto-explica”, já Já o propósito da impessoalidade total das associações inusitadas, de extração
auto-explica” (p. 248). estamos em pleno terreno ficcional, ou da (radicalização do ideal teórico da poesia decadentista (“fluxo de marfim”, “da
A “ascendência da metalinguagem” figuração retórica. como metalinguagem) nem sempre é con- platina dos meus óbolos”, “a vista se
parece corresponder à antiga procura No que se refere aos processos técnicos seguido, especialmente na primeira parte feria em filoxeras de alúmen”, “ânfora
da “pureza”, que Hans Sedlmayr consi- implicados no ideal metalingüístico ado- de Um e dois e nos inéditos acrescentados de escuma tragando o remoinho” etc.),
dera a principal “determinante” da arte tado por Grünewald, diríamos que este se à presente edição, onde a efusão lírico-senti- e a conclusão será inevitável: a trajetória
moderna, e o desejo de impessoalidade realiza, com brilho exemplar, na segunda mental, centrada no sujeito que se confessa, poética de José Lino é alimentada por um
remonta à ainda mais antiga “reação” parte do livro de estréia e na maioria das é uma constante. Diretamente confessional rico diálogo entre tradição e vanguarda,
anti-romântica, mas é pouco provável, composições de Escreviver, onde o poeta é, por exemplo, o belo poema inédito “não atraída que é, concomitantemente, por
em Grünewald e no geral, que o desejo exibe, com notável engenho, sua habilidade sei dançar”, que assim termina: “silencioso, refinadas experimentações inovadoras e
se realize. Basta pensar no caso extremo em multiplicar sentidos e conexões laten- só, assisto ao caudal / e às vezes me assoma por não menos refinadas “velharias”, pólos
da proeza cabralina, que levou às últimas tes no interior das palavras e, não raro, / o desejo de nele entrar; / mas como? / se aparentemente antagônicos, mas que só
conseqüências esse mesmo propósito: há dos sintagmas, como em: “sempre ceder / estou desarmado / também desamado / serão incompatíveis à luz do dogmatismo,
muito ninguém mais se ilude com esse “fa- sem preceder / sempre ferir / sem preferir / não sei dançar” (p. 147). Os exemplos são seja o puramente “conservador”, seja o
lar das coisas” que é, inapelavelmente, um sempre sumir / sem presumir / sempre ver abundantes, mas fiquemos só com este, da puramente “avançado”. Quanto à vertente
“falar de si”. Quanto a isso de que “a obra / sem prever” (p. 82). produção antiga: “não fosse a vista errante que acabei de chamar “decadentista” mas
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Pádua Fernandes1

ylumynarya (City Bell: Libros de la leva, por vezes, à dispersão, e não à concen-
Tallita Dorada, 2008), à diferença dos tração da linguagem poética: “propaga haz/
Ezra Pound, autor traduzido por Grünewald Anotações de Pound para The cantos livros de poesia anteriores de Julián Axat línea recta coral/ recto en cámara lúcida/
(La Plata, 1976), possui uma estrutura bi- lúdica/púdica/ ambidiestra sombra/fractal/
nária. A primeira parte, que nomeia o livro, acostumbramiento// de lo maldito-divino”
poderia chamar “art nouveau”, quem sabe, obra e personalidade cultuou com devoção caracteriza-se por uma série de fragmentos (p. 25). Mesmo aqui, porém, pode-se rever o
José Lino pratica uma poesia que guarda (Carlos Gardel: lunfardo e tango, 1994). não numerados, em versos curtos com sin- Axat simultaneamente inspirado pela filosofia
estreita afinidade com a de Mário Faustino Tudo somado, José Lino seria um intelec- taxe rarefeita. O tema é e pela guerra em passa-
ou a de Sosígenes Costa – vozes recessivas tual pós-moderno, avant-la-lettre. o da luz e o do olhar: gens como “ereignis-

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no quadro geral da poesia brasileira do A constatação é paradoxal: a parte “ojo// llega antes// al ere-i-gni -¡no!// M.
século xx. da obra que o autor mais prezava (a da instante de luz/ en las Heidegger fue ase-
Tendo sido um dos intelectuais mais ortodoxia concreta) é, ainda hoje, avan- palabras” (p. 12). Por sinado al salir de
avançados do seu tempo, adepto intran- çada, moderníssima, já que não surgiu vezes, há um comentá- Francia/ por Walter
sigente do concretismo, apologista do ci- em nossa poesia nada mais radical do rio em prosa que pare- Benjamin disfraza-
nema experimental, hiperintelectualizado, que a blitz concretista dos anos 50-60 ce aludir a escritos de do” (p. 30), que ter-
de Jean-Luc Godard e de Alain Resnais (A do século passado, além de não ter apa- Leonardo da Vinci (au- mina ironicamente
idéia do cinema, 1969); tradutor de poetas recido, depois de João Cabral, nenhum tor do desenho usado com um comentá-
como Pound (de quem verteu, na íntegra, poeta capaz de aglutinar as mais férteis na capa). 2 O caráter rio sobre as transi-
os Cantos) ou William Carlos Williams; das desencontradas correntes dominantes singular dessa ilumina- ções entre a luz e a
admirador da sofisticada música atonal, nas últimas décadas. Mas ao folhearmos ção é dado pela escolha sombra... Benjamin
e por aí vai; não chega, na verdade, a hoje a produção daquele Zelino (como da letra y em vez de i assombra, com seu
surpreender que Grünewald tenha sido o chamavam os companheiros de então) para o título e as pala- anjo e sua aura, este
também, em outras áreas, um entusiasta não há como ignorar certa atmosfera en- vras derivadas: “dispo- segmento do livro.
da Velha Guarda, dedicando muito do seu velhecida, marco histórico, documental, ner/ de la ylumynacyon/ A segunda parte
empenho, como jornalista e pesquisador, a daquele tempo áureo. O poeta José Lino o que ylumynacyon/ disponga//.../ luz, fuera evoca Gui Rosey, o poeta surrealista que
Pixinguinha, Mário Reis, Moreira da Silva Grünewald verdadeiramente atual parece de la cual no hay nada.” (p. 29). desapareceu em Marselha (cidade da morte
e tantos outros, assim como a Gardel, cuja ser, não o da ortodoxia concreta, mas o A segunda parte, “Gui Rosey”, corres- de Rimbaud), em 1941, enquanto tentava
do inusitado e valioso consórcio entre ponde a um poema longo em versos livres, um visto para refugiar-se nos Estados
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vanguarda e tradição. A bem cuidada e entrecortado por reticências, com o tema Unidos (diferentemente do que ocorreu
auspiciosa reedição de toda a sua poesia dos desaparecidos (o próprio Rosey é um com Benjamin, seu corpo nunca foi en-
talvez seja indício, quem sabe, de que já deles) e da ética da escritura: “pienso en las contrado). Porém, o faz citando Bolaño,
podemos pensar em poesia brasileira como últimas palabras/ de los poetas/humildes/ o que ancora o livro na questão dos de-
um todo, heterogêneo, sem a exclusão miserables/menores” (p. 54). saparecidos na América Latina: “Penso
apriorística desta ou daquela tendência, A relação entre as duas seções é muito en Gui Rosey/ y evoco a los nuestros que
em vez de darmos curso à espécie de guer- interessante: a poética exposta na primeira también se los tragó la tierra/ o la tierra
ra fria que isolou, por meio século, de um serve de base para a segunda. O “tañar que les tiraron encima/ / sin saber si habían
lado do muro, a ortodoxia concreta, e do vivo/ de una luz” (p. 17) permite a incursão muerto/ a los contratados para encontrar
outro, o resto. pelo reino dos mortos em “Gui Rosey”: su tumba” (p. 51).
“calaveras con ojo vacío en la frente/ Um dos livros de Bolaño, Los detectives
1
J.L. Grünewald, Escreviver, 2ª ed. revista canto o lamento fusilado de ultratumba/ selvajes, dá nome à coleção de poesia que
e ampliada, org. José Guilherme Correa, se juzgan/ se celebran/ se recuerdan/ y se Axat coordena, em que saíram ylumyna-
revisão de Augusto de Campos, São Paulo, entregan a la muralla de la noche” (p. 63); rya, desear y tener de González Mora e
Perspectiva, 2008, pp. 248-250. “cuál es el punto/ en el que la intensidad Versos aparecidos, reunião dos poemas de
de luz/ se cotiza en sangre/ ¿derramada?/ um desaparecido pela ditadura argentina,
Carlos Felipe Moisés é poeta, tradutor e ensaísta, autor de Alta ¿negociada?” (p. 56). Carlos Aiub. A questão biográfica é im-
traição (Unimarco), Fernando Pessoa: almoxarifado de mitos A primeira parte é menos bem realizada portante: os pais de Axat também foram
O cantor Carlos Gardel (1890-1935), tema de ensaio (Escrituras) e Noite nula (Nankin, 2008). do que a segunda. A rarefação sintática vítimas da ditadura.
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No romance de Bolaño, busca-se uma a los poetas caídos/ a los asesinados/ a los Alberto Pimenta A encomenda do silêncio
3
Em um dos melhores momentos de Peso
poetisa mexicana. Mas o que parece aqui que se quedaron cantando solos/ a los que (São Paulo, Odradek, 2004). formidable (Buenos Aires: Zama, 2003),
importar é outro livro, Putas asesinas, com alguna vez empuñaron la palabra justa/ 2
O comentário da página 34, por exemplo, lê-se o sonho de um filho que tenta conven-
seu conto Últimos entardeceres en la tierra, [...]/ para que nada sea en vano/ para que sobre o azul do ar, parece evocar a anotação cer o pai a fugir, inutilmente: “la sangre de
em que a relação entre pai e filho e o desa- el hueco que separa// a nosostros de ellos/ 305 dos Cadernos do gênio italiano a respei- los compañeros no se negocia” (p. 67) até a
parecimento de Rosey são combinadas de de ellos a nosotros// no pueda ingresar/ de to da cor da atmosfera. Esse procedimento constatação final: “Padre/ no puedo salvarte
forma quase assombrada. No conto, o filho, nuevo en las palabras”. intertextual não é novo na obra de Axat: ni en los sueños” (p. 68).
no final, se dá conta de que o pai não estava A terceira parte recebeu o inspirado Servarios (Buenos Aires:Zama, 2005), na 4
O general prussiano Carl von Clausewitz
sozinho, ao contrário de Gui Rosey. Em título “la rosa perdida de Clausewitz”.4 segunda seção, apresenta um diálogo com foi o grande teórico da estratégia do
Axat, lemos que “yo conozco/ un hijo que/ Como escreveu na seção anterior, os poetas o autor romano Lucrécio. século XIX.
/ encontró un poema/ de “como un pan se reparten la
su padre y/ se lo fumó en/ rosa/ para hacer el amor con

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una noche/ de angustia” ella/ pero también la guer-
(p. 58). Essa experiência ra” (p. 49). Nesta, ele avisa
é marcada pelo terror, em “indagación”: “era yo
que não poupou, é claro, o éramos todos/ saliendo a
os poetas, cujas vozes são buscar la rosa// para hacer la
evocadas. As estátuas dos guerra/ por otros medios” (p.
mortos desprendem-se 67). Trata-se de uma poética
da luz e enlouquecem: de combate: “y un día abrí
“el terror puede cortar el los ojos// entonces escuché ereignis-era- i-gni -não! às vezes
espacio y tiempo de tal una voz que decía:// si las me meto no cemitério
forma/ que el cuerpo y la palabras ya no explotan// M. Heidegger foi assassinado ao sair de França e mergulho nos ossários
voz -a distancia- coinci- entonces...// que explote el por Walter Benjamin disfarçado
dam” (p. 64). hombre” (“diario.”, p. 70); na mesma noite de 26 de setembro de 1940 desesperado
Axat, pois, desenvol- “... y los pedazos del poeta// o cadáver do primeiro se encontra desde então navego
ve temas já abordados repartidos// para alimen- enterrado nado o nada
em seu livro anterior de tar niños// con fusiles en la no cemitério de Port Bow
poesia, médium (Poética belli) (Buenos boca” (“diario ii.”, p. 74). O livro termina, me afogo
Aires: Paradiso, 2006). Na primeira parte porém, numa nota menor com as permu- ninguém sabe me afogo entre fêmures e mandíbulas
desse livro, “Perdidos en la búsqueda de tações fáceis de “restos iv.” acerca do jogo de simulações
sus voces”, temos já essa poética que tor- Em Axat, que é também jurista e, nesse que armo puzzles impossíveis
na os ossos em voz. No final do notável papel, escreve sobre temas como o terro- desde lá dentes com metacarpos
“diario de viaje v.”, lemos “armo puzzles rismo de Estado e o protesto social, temos preparou o fantasma omoplatas com espinhas
imposibles/ dientes con metacarpos/ omó- o raro exemplo de poeta latino-americano ...
platos con espinazos// y así paso la noche/ que, em uma geração que se formou logo nas transições da luz à sombra, as cores locais dos e assim passo a noite
escondido/ cansado/ de tanta originalidad/ após a ditadura, conseguiu forjar uma objetos permanecem intactas ou, em todo caso, se escondido
para armar eslabones perdidos// pero antes combinação pessoal de história e memória se destroem, fazem-no de tal modo que não resulta cansado
de convertirme/ en el fracasado “equipo- pessoal, experimentação de linguagem e perceptível, pelo que não parecem sofrer mais de tanta originalidade
de-mi-mismo-forense”// dejo los huesos preocupação social. Não parece estranho destruição de cor do que a causada pela distância para armar elos perdidos
a un lado/ y escribo un poema// que me que ele seja da Argentina, país que, dife- do espectador.
devuelve/ la piel viva de su voz” (p. 34). rentemente do Brasil, ousou enfrentar os porém antes de converter-me
Ao usar pretensos manuscritos e cartas de crimes da ditadura e condenar militares e na fracassada “equipe-de-mim-mesmo-legista”
seu pai,3 indaga: “¿pudo ser padre de mi policiais por crimes contra a humanidade.
padre?” (p. 22). Aqui, os ossos continuam amordaçados. deixo os ossos de lado
Em “Ángelus Novus”, segunda parte, e escrevo um poema
temos a mesma poética; no “pacto entre F. 1
Pádua Fernandes é professor universitário,
Urondo y M. A. Bustos (pacto mayor)” (p. doutor em Direito pela Universidade de São que me devolve
57), os dois poetas referidos no título, am- Paulo. É autor do livro de poesia  Cinco a pele viva de sua voz
bos assassinados pela repressão política na lugares da fúria (São Paulo: Hedra, 2008)
ditadura militar argentina: “convocaron/ e organizador da antologia poética de

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Mario Rui Feliciani

FOTOS: REGINA KASHIHARA


Paulo Vanzolini é um compositor de Pedreiro’, dezoito!, uma música perfeita,
amigos. nem sabia que ele fazia sambas e me mos-
Fui até sua casa de vila por uma con- trou aquilo pronto”. “Você não sabia, mas
sulta ao zoólogo para um livro de fotos vai ver que ele te ouvia”, eu disse. “De jeito
sobre a Universidade. Tinha já me dito, nenhum”. Fim de papo.
telegráfico, que sobre o assunto do livro “Paulo, até onde eu sei, só você, o Noel
não tinha como ajudar. “Venha quando e o Chico com o Edu fizeram músicas sobre
quiser, mas sobre isso não tenho contribui- leilão. Três lindas músicas”. “O Chico tem
ção, meu trabalho é diferente”. Ele ainda uma? Não conheço”.
ignorava que minha razão maior era o “Pra mim, a sua é a melhor”.
encantamento pela sua música, a caixinha “ ‘Leilão’, era a preferida do Luiz
“Acerto de Contas”, cujas letras já sabia de Carlos Paraná. O Paraná morreu com
cor. Receberam-me, ele e a Ana Bernardo, cirrose sem nunca ter bebido, decorrên-
a ótima intérprete de “Seu Barbosa”, com cia de hepatite infantil. Eu estava com
café e água. Achei que cerveja seria mais ele no momento.”
adequado, mas fui protocolar e envergo- Amigo perdido.
nhado e não sugeri. Elogiei “Napoleão” (“pondo a mo-
No caminho, ouvindo MP3 no carro, déstia de parte / é Napoleão Bonaparte e
tinha listado meus sambas favoritos e eu / que sabemos na verdade / o quanto
marcado aqueles sobre os quais gostaria dói uma saudade”). Só olhou pra baixo,
de esclarecer um ou outro manteve a modéstia.
ponto pra mim obscuro — A música me deu muita alegria.
na letra. Uma grande lista, Citando o Luiz Gonzaga Neto, ami-
“grande demais”, pensei, O compositor Paulo Vanzolini em sua casa go, esse meu, que me acompanha no
não contava falar de tudo. entusiasmo diante de “Longe de casa eu
Falamos sobre muito mais. Sobre o “Cuiteli- Universidade, afinal era pra isso que tinha choro / e não quero nada”, eu lhe disse
Recebeu-me por uma hora. nho”, disse que Paulo ido até lá. que é música de amor a São Paulo, sem
Meio tímido, fui eu que Xandó, amigo de via- — A Universidade não é fácil. aquelas críticas que sempre permeiam
dei o final do encontro, gens, a mostrou para E voltávamos ao samba. as letras sobre a cidade. “Fiz essa letra
pois não vi um único sinal ele, cantada por um — A música me deu muita satisfação. quando estudava nos Estados Unidos. Saía
de impaciência. barqueiro. Eles a re- Li na lista “Amor de trapo e farrapo” e pela rua, chorava muito e pensava ‘o que
Capa de “Acerto de Contas”
Disse-lhe, de cara, que o colheram. Houve uma lhe disse ser música que eu e minha mulher estou fazendo aqui, longe de São Paulo?’ ”.
punha na primeira fila dos grandes com- injustiça no registro da música, que já ríamos juntos: éramos nós. E ficamos nos Elogiou o Gudin, parceiro genial que botou
positores nacionais, pelas ótimas músicas corrigiu. Perguntei se tinha mexido na sambas sobre as mulheres. Contei também, música nessa letra, e o Paulinho Nogueira,
e, principalmente, pelo coloquial, pelo letra e me contou que alguns versos eram já ia mais íntimo, que, diante de alguns parceiro em outras.
humor das letras e pelas mulheres, nelas quebrados, mal recordados pelo barqueiro, versos, minha mulher se espantava, por “Seu Barbosa” foi encomendada pelo
tratadas sem adulação. e os ajeitou. masculinos demais. Apenas sorriu, sorri Paraná, que ia dar uma medalha, no Jogral,
Paulo Vanzolini não adula as mu- No encontro confirmei uma desconfian- também, conversa de homem, de salão. ao Adoniran. Encomendou um samba que
lheres quando fala de amor, defeito de ça que tem me acompanhado por anos: a “Quem é Irede, Paulo?” (da música falasse dele e que fosse à sua moda. Música
muitos compositores brasileiros, esses estrofe “A tua saudade corta / como aço “Trato do homem” – “Diga Irede o que de amigo.
verdadeiramente machistas. de navaia / o coração fica aflito / bate uma quiser / o que mais enfeita a mulher / ainda “Capoeira do Arnaldo” foi provocação
E Paulo não se quer adulado. Baixou a outra faia, / os zóio se enche dágua / que é o trato do homem”). “É minha amiga do Arnaldo Pedroso d’ Horta, “você se diz
os olhos toda vez em que elogiei sua até a vista se atrapaia” foi Vanzolini quem Irede Cardoso, lembra dela, a vereadora compositor e não tem nenhuma capoeira”.
obra. Dizem (parece que os orientais) que escreveu. Eu me empolguei: “ ‘bate uma a feminista?, que botei aí, provocação”. “No dia seguinte mostrei essa”. Música
não se deve responder aos elogios. Paulo outra faia’ , Paulo, é um dos meus versos Falei-lhe que a idéia de que o amor embe- de amigo.
não responde, olha o chão de seu interior. favoritos na MPB”. leza a mulher tinha sido usada pelo Chico “Peça de Albene” é sobre uma mulher
Chão que ele e o Adoniran traduziram “É verso de médico”, riu. “Os cardio- Buarque, em “Anos Dourados”, com o que ia ao bar de calcinha e sutiã, apenas
à perfeição. logistas gostam”. Tom (“no nosso retrato / pareço tão lin- enrolada em um pano, preso só com
Para não deixar cair a peteca, espiei Já tinha valido a viagem. O enigma do da”), e arrisquei que há muita influência alfinetes (“quem põe a mão se cutuca”
minha lista de músicas e fui perguntando. Cuitelinho estava resolvido, mas muito da música de Paulo na do Chico. – genial interpretação da Pii). “Só tinha
Tentando encadear para não transformar o viria ainda. Quando havia silêncio, às vezes Recusou fortemente. “De jeito nenhum! um livro: a Enciclopédia Britânica”.
encontro em interrogatório policial. eu tentava falar sobre o trabalho para a O Chico tinha dezoito e me mostrou ‘Pedro Música de amigo.
K Jornal de Crítica 7

“Samba Abstrato” mostrou também


para ao d’ Horta, ainda sem título, e, no
dia seguinte, estava no Jornal da Tarde,
batizada. Música reconhecida por amigo.
Falou de parceiros mais uma vez. “É
difícil achar parceiros”. Amigos parceiros,
uma ou outra mágoa. Elogiei de novo:
“seus sambas são variados, tem à moda Calado eu luto, Que teimosia,
do Adoniran, uns ficam bem na voz do Sereno e resoluto, Nada nos une e tudo nos separa
Paulinho da Viola, outros na voz do Chi- Mas de minuto em minuto, Só quando a vida pára
co, ou na do Carlinhos Vergueiro, porque Sinto que a força se esvai. E o tempo se distrai
são sambas pra eles, mesmo que isso não Eu me mantenho e sustento, No momento que vai
fosse deliberado”. Da fibra e do pensamento, Do grito ouvido ao vidro estilhaçado
“O Paulinho da Viola sempre me pede Mas, de momento em momento, É que eu paro ao teu lado,
que ponha letras nas músicas dele, mas A resistência descai. E nós trocamos vidas perdidas por
não sei fazer música por encomenda”. Detalhe do autor de “Ronda”
Respiro fundo, horas roubadas.
“Não faço mais músicas. A última foi
Pois, de segundo em segundo,
‘quando eu for, eu vou sem pena / pena vai primeira cintura de moça, no bailinho de
ter quem ficar’. Eu fiz quando estava sozi- garagem, lá em Jundiaí.
Mais cresce o peso do mundo. Teima quem quer.
nho numa fazenda, tava lá sozinho e fiz.” Disse que não consegue traduzir “Vol- Jesus Cristo sendo o Pai.
“Eu já te disse e repito, você, pra mim, ta por cima” para o inglês. “Você criou Resisto, porém não sei até quando Deixa disso mulher.
está entre os grandes da MPB”. uma expressão”. No fim acabo ajoelhando, A sorte não dá pra todos
“Nada, fiz pouca música. Pra completar Olhos baixos. Mas a coragem não cai. Mas não escolhe a quem falta.
a caixinha ‘Acerto de Contas’ foi difícil. Explicou que “Acerto de Contas” De um lado tem maré alta,
Alguma coisa eu esqueci, mas não é impor- tinha esse nome por acertar as contas Mas ninguém pense Do outro, praia de fora.
tante ter esquecido”. “O Caymmi também com os músicos que sempre tocaram com Que não estou muito consciente Quem não tem juízo é que chora,
fez poucas, isso não importa”, respondi. ele. Coisa de amigo. Falei que, se era por De que fundamentalmente Quem tem é que não se toca,
“Fez mais do que eu”. “Um pouco mais, isso, tinha dois sentidos, pois também Não existe diferença Deus sabe o dia e a hora,
mas não importa”, insisti. era um acerto de contas da MPB com Entre morrer pela crença Aperta, mas não sufoca.
“Um grande cara o Caymmi, bom amigo. o grande compositor que ele é e, com
E ser igual a toda gente. Entre o grito e o estilhaço
Divertido. Compositor magnífico. Uma vez essa caixinha de quatro CD’s, agora se
É tudo um sonho, tudo uma sombra, uma ideia, Cabe outra vida na vida
o encontrei num lugarejo de meio de mato conhece melhor.
sentado numa soleira tocando violão”. De “Ronda” não falei. Não gosto de
Autor, ator e plateia, Todo um mundo entre meus braços.
Contei-lhe que “Volta por cima” é “Ronda”. E nem de “Sampa”. Espero que o pano caia Teima, sim quem quer.
música que me tocou, muito menino ainda, Paulo Vanzolini é homem de amigos. Nem Pra sair batendo palma Deixa disso, mulher.
sem saber por quê. Lembrança definitiva me conhecia e me recebeu como amigo. Ou romper na maior vaia,
de infância como o gosto de pizza, por Ou dizer muito ao contrário
causa do azeite, que não tinha na minha Mario Rui Feliciani clica e escreve. Publicou o livro de contos Que espetáculo tão frouxo
casa; como o cheiro da cama de meus pais, “Dobras”, pelo Selo Sebastião Grifo, e o de fotografias “Quando o Nem merece comentário.
quando me recebiam entre eles de manhã; Carteiro Chegar”, pela Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes
como a primeira visão do santuário de e Imprensa Oficial do Estado. É colaborador, como colunista, do
Congonhas do Campo; como o toque na site www.weblivros.com.br.

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L a n ç a m e n to s w w w . t e rc e ir a m a r g e m . c o m

V I D AS À V EN D A O U T R A
Eduardo C. Bittar e Tarso de Melo Q U 4 R TA - F E I R A
(org.) Vários autores
A história desta coletânea de textos Esta antologia reúne textos, em prosa
começa em outro livro, com o qual seu e verso, de doze autores com for-
título dialoga. Trata-se de Consuming mações e estilos muito diversos. Da R. Santo Antônio, 446
Life (Vida para consumo) de Zygmunt diversidade, porém, surgem diálogos Conjunto 33 – Bela Vista
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“fetichismo da subjetividade”. literatura: a vida.
8 K Jornal de Crítica

REYNALDO DAMAZIO dade criado pelo psiquiatra


suíço Hermann Rorschach
Quando foi publicado nos anos 1980, a (1884-1922), é outra das
saga Watchmen, escrita por Alan Moore e grandes ironias de Moore,
desenhada por Dave Gibbons, o contexto pois sua “cria” se mantém
era de grande maturidade para os quadri- justamente na fronteira en-
nhos. Ao lado de Neil Gaiman (Orquí- tre o herói e o vilão, o bem e o
dea Negra, Sandman), J. M. de Matteis mal, a ética e a barbárie, a sanidade e a
(Moonshadow, Blood), Frank Willer loucura, numa perigosa crise de identi-
(O cavaleiro das trevas) e Art Spiegelman dade. Se ele próprio, pode-se imaginar,
(Maus), Moore transformava as histórias fizesse o tal teste, certamente o resultado
de heróis e suas aventuras fantásticas num seria alarmante.
pesadelo existencial e filosófico, misturando Os textos de Moore, porém, não são
referências literárias, mitológicas, questões nada confortáveis. A linguagem é exaspe-
políticas do momento e o próprio universo rante, entre o poético e o sarcástico, e as
deste gênero híbrido, intertextual por exce- situações sombrias fazem o leitor mergu-

DIVULGAÇÃO
lência, das HQs. lhar num clima muitas vezes sufocante,
É como se o mundo real entrasse de sola de terror sutil. A narrativa normalmente
no reino da fantasia de homens-aranha, Alan Moore, autor de Watchmen e V de Vingança segue um fluxo labiríntico, com muitos
mulheres-maravilha, super-homens e semi- discursos que se cruzam e se fragmen-
deuses, virando tudo pelo avesso e revelando Muitas tramas se cruzam nas páginas tam, compondo um painel complexo
as misérias e ruínas da história contempo- impiedosas e assombradas de Moore, de dramas individuais e coletivos. Por
rânea. Foi um período maravilhoso para como o extermínio do grupo de heróis isso, não se deve estranhar se a sensação
os quadrinhos, muito criativo, mas que decadentes, a violência urbana crescente, depois da leitura for a de que o abismo
representou também o fim da inocência. Ou a possibilidade de uma guerra em escala está bem pertinho, ao alcance dos olhos
seja, as revistas já não seriam mais um mero planetária e a invasão de extraterrestres. e da sensibilidade.
entretenimento ou leitura juvenil. A barra Nos bastidores, há uma conspiração que Por tudo isso, não se pode esperar
ficou pesada, seguindo uma tradição que vi- move forças sobrenaturais e interesses uma versão cinematográfica muito fiel
nha dos geniais Will Eisner, a partir de 1940, políticos. Mas a narrativa não se esgota ou mesmo eficaz de Watchmen, ao gosto
e Robert Crumb, na década de 1960. aí e ainda inclui uma crítica bastante dos fãs. Embora o original seja ilustrado,
Em Watchmen, um bando de heróis crua e inteligente ao próprio conceito das como uma espécie de storyboard, HQ e
vive sua lamentável decadência, a maioria histórias em quadrinhos a partir de seus filme são meios diferentes, com modos
aposentada, entre deprimidos e padrões de mercado, de seus personagens próprios de narrar e de estabelecer a
impotentes, outros trabalhando inverossímeis e refeitos à exaustão para relação com seus receptores. As graphic
para o governo, ou remoendo o consumo de massa, da idealização de novels de Moore exigiriam filmes mais
as migalhas de lembranças poderes irreais, sobre-humanos, e de uma experimentais, de difícil apelo comercial,
dos tempos antigos em ideologia autoritária. Não é à toa que o que os tornaria economicamente invi-
que representavam a es- Moore é considerado por muitos como o áveis. Ainda que o diretor Zack Snyder
perança de ordem na so- enfant terrible do gênero, aquela cara que tenha buscado se aproximar da narrativa
ciedade, um ideal a ser sempre estraga a festa. imaginosa de Moore, o resultado não
seguido. O problema Um dos personagens mais interessantes agradou o escritor, que pediu para tirar
é que esta ordem de Watchmen, o mascarado esquisitão seu nome da produção, como já havia
é sempre ilusória, Rorschach, é na verdade um psicopata ocorrido com a adaptação de V de vin-
precária, e os heróis violento que segue uma moral particular gança. Para leitores e cinéfilos, resta ver o
começam a perce- de salvacionismo e vingança – como ocorre filme e comparar as duas obras, tentando
ber seu próprio fim com os justiceiros de um modo geral – e compreender o que há de comum e di-
e o caos ao redor. não se conforma com o fato desalentador verso entre as linguagens de ambas, suas
de que a situação fugiu definitivamente ao especificidades e contradições.
controle. Torna-se um pária, marginaliza-
O personagem Rorschach, do pelo sistema que o criou e perseguido Reynaldo Damazio é sociólogo. Trabalha como editor, crítico e
interpretado por Jackie Earle por aqueles a quem serviu. O nome do tradutor. Autor dos livros Nu entre nuvens (Ciência do Acidente,
Haley, no filme de Zeck Snyder personagem, tirado do teste de personali- 2001) e Horas perplexas (Editora 34, 2008), entre outros.

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