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6 editorial

Paulo Pontes e um libelo contra o esquecimento


uando um amigo estran- Paulo Pontes, atesta a importân-

Q geiro procurou informa-


ções sobre o Brasil, a famo-
sa economista Maria da
Conceição Tavares reco-
É um dever
homenagear este
que foi um dos mais
cia do autor, dramaturgo de voz
bonita, inconformado com a in-
justiça social.
Por falar em amizade, foi este o
mendou que ele lesse o sentimento que balizou o emoci-
prefácio de Gota D’Água representativos onado depoimento de Paulo Melo,
(1975). “Se você quer en- paraibano hoje residindo em Bra-
tender o Brasil, leia esse nomes do teatro sília, que transporta a nós leito-
texto", ela disse. Quem dá res para uma viagem no tempo e,
a informação é o jornalis- brasileiro com precisão, nos lembra da im-
ta e amigo de Paulo Pon- portância tanto da pessoa como
tes, Zuenir Ventura, em sical, escrito em parceria do artista Paulo Pontes.
depoimento publicado na com Chico Buarque de Ho- O Correio das Artes, suplemen-
edição deste mês do Cor- llanda, Paulo Pontes foi um to mais antigo em circulação no
reio das Artes. artista irrequieto e vibran- Brasil, sente-se no dever de ho-
Espécie de oráculo do te. Mesmo com uma carrei- menagear este que foi um dos mais
jornalismo brasileiro, ra bem-sucedida no Rio de representativos nomes do teatro
Zuenir assinou o progra- Janeiro, Paulo Pontes não brasileiro. Esta edição enseja um
ma do espetáculo Gota deixou de voltar à Paraíba. libelo contra o esquecimento. Ler
D’Água, feito em forma de Quem, em um texto sabo- Doutor Fausto da Silva, Um Edifício
jornal e cuja capa é repro- roso, vai relembrando das Chamado 200 é uma prova de que
duzida em nossas páginas rodas de bate-papo aconte- o passado tem muito a ensinar ao
nesta edição comemorati- cidas em uma João Pessoa de presente.
va. É que se vivo estives- tempos idos, é o jornalista Ainda seguindo a tradição de
se, no mês de novembro, o Biu Ramos, também outro abrir suas páginas para nomes
dramaturgo paraibano grande amigo de Paulo. De representativos de nossa litera-
teria completado 70 anos forma certeira, Biu, que or- tura, o escritor Marçal Aquino
de vida. ganizou um importante nos dá o privilégio de publicar
Além deste famoso mu- livro sobre a vida e obra de seus inéditos.

6 índice

, 15 @ 22 D 33 2 38
ENTREVISTA POEMAS CINEMA ENSAIO
O ficcionista baiano Aleilton Na série de poemas O crítico João Batista de José Mário da Silva disserta

Fonseca fala sobre o seu escolhidos pelo próprio Brito investiga as sobre a atuação intelectual e

ofício como professor e autor, os favoritos do referências ao acadêmica do escritor e

romancista e da importância paraibano André Ricardo homossexualismo desde os imortal da ABL, Eduardo

da literatura hoje em dia Aguiar primórdios da sétima arte Portella

Suplemento mensal do jornal A UNIÃO, não pode ser vendido separadamente

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WELLINGTON AGUIAR
6 eu indico

A Alma de um Gênio Medo e Delírio em Las Vegas


Da Vinci sempre buscou a perfeição Bar frequentado por escritores e poetas
em suas criações e por isso, tornou-se marginais da zona decadente de Nova York,
referência mundial em vários âmbitos jazz, fumaça e meia luz de praxe. Entra um
do conhecimento: física, matemática, dedetizador e alguém lhe pergunta se ele
medicina, gastronomia, artes ainda escreve – Parei aos doze anos, percebi
plásticas, mecânica, música, etc. A que era muito perigoso. Essa cena tirada do
obra de Marislei Brasileiro é tão bem filme de David Cronenberg Mistérios e
escrita e interessante, que deu pena Paixões resume o espírito da obra de
de terminar de ler. Thompson: A literatura em seu estado mais
selvagem. De fazer gozar pelas orelhas.

Andressa Fabião
Arthur Lins
professora
cineasta

6 do leitor
Eu já li tanta coisa sobre Ariano que comecei a ler mais por obrigação; mas o clima de intimidade e
informalidade me tomou e lamentei quando cheguei ao fim do texto. Gostei da reprodução da fala de Ariano do
jeitão que ele gosta de dizer as coisas, das repetições, enfim, o texto ficou vivo, parecia que ele estava ali
falando.O Correio das Artes, com seu alto nível, orgulha a Paraíba
Clotilde Tavares - Natal/ RN
Adorei a entrevista de vocês com o mestre Ariano, muito boa, já estou lendo pela segunda vez. Pena não
conseguir o exemplar em papel, pois iria guardar junto com A Pedra do Reino, como se fosse um dos livros dele.
Pedro Salgueiro - Fortaleza/ CE
Parabéns, Astier, a cada mês o Correio das Artes está melhor! Grande trabalho que você tem feito
Olga Tavares - João Pessoa/ PB

6 lançamentos

Catatau Monty Python - onde tudo Clapton


O Catatau (1975) de Paulo Leminski é começou O aguardado novo álbum de Eric
umas das obras-primas da literatura Dvd vem com dois programas Clapton foi produzido por Doyle
brasileira de invenção do século 20. completos. O primeiro: 'Não Sintoniza Bramhall e inclui tanto covers quanto
Escrito durante quase uma década, sua TV' - Originalmente planejado como material inédito - algumas músicas
esse “romance-ideia”, como o um programa para crianças, tornou-se como "Rocking Chair" e "When
denominou o autor, é um monólogo um fenômeno cultuado pelos adultos, Somebody Thinks You're Wonderful”
onírico de René Descartes em visita a com seus esquetes surrealistas. Atingir Clapton e banda já vem tocando em
Pernambuco no período holandês. os espectadores como se estivessem seus shows há algum tempo. Clapton,
Diante do absurdo da natureza dos atirando um peixe fresco na cara era que mostra porque é um dos grandes
trópicos e dos costumes dos estranho, maravilhoso, e hilariante. O guitarristas do mundo, também conta
indígenas, o filósofo vê sua razão segundo programa é 'Finalmente o com participações de artistas
naufragar: “Duvido se existo, quem sou Show de 1948', interpretado por John consagrados como Sheryl Crow, JJ Cale,
eu se esse tamanduá existe?”, Cleese, Graham Chapman, Marty Allen Toussaint, Wynton Marsalis, Derek
pergunta.(Editora Iluminuras, 256 pgs, Feldman e Tim Brooke-Taylor. Trucks, Trombone Shorty, Jim Keltner
R$ 44) (DVD Vídeo, 3 volumes, R$ 69,90) entre outros ( Warner Music, R$ 34, 90)

4 | João Pessoa, novembro de 2010 A UNIÃO


Paulo Pontes
Um Homem do seu Tempo

DRAMATURGO PAULO PONTES: A OUSADIA E O ALCANCE DE SUA INTELIGÊNCIA TRANSPUNHAM OS LIMITES DA PROVÍNCIA

Biu Ramos* Eis que de repente, de maneira inespe-


rada, quase misteriosa, emerge em nosso
meio, como uma aparição, a figura tosca

C
onheci Paulo Pontes nos tempos da Rá- e franzina daquele rapaz de pernas ar-
dio Tabajara no começo da década de queadas, rosto fino e alongado, marcado
1960. A imagem mais nítida que guardo de espinhas, orelhas proeminentes. Na
do nosso primeiro encontro foi de uma cara, uns óculos pesados, de lentes gros-
6depoimento

manhã de sábado, uma manhã límpida sas, parecendo fundos de garrafa, que
de azul na Praça João Pessoa. Sentados à denunciavam uma miopia acentuada.
sombra das palmeiras imperiais, éramos Sentou no meio do grupo, lançou
um grupo de jornalistas, poetas, escri- para cada um de nós um olhar indife-
tores, contistas, pintores, loucos e artis- rente, não cumprimentou ninguém. A
tas que começavam a dura jornada na sua simples presença, no entanto, como
busca de afirmação profissional. Fazía- que cercada por uma aura de magne-
mos pouso na redação de A União e tismo, fez com que assumíssemos, in-
sempre estávamos reunidos no deba- voluntariamente, uma postura mais
te das ideias e do pensamento domi- discreta. Era como se ali tivesse chega-
nante na época. Malaquias Batista, do um mais idoso do que nós e não o
Adalberto Barreto, Jório Machado, João mais moço do grupo, pelo menos na sua
Manuel de Carvalho, Wills Leal, Lin- aparência infanto-juvenil. Ele era da
duarte Noronha, Vladimir Carvalho, nossa mesma faixa etária, mas deixa-
Gonzaga Rodrigues, Firmo Justino, va transparecer no rosto os traços de
para citar alguns. uma indecifrável angústia interior. c

A UNIÃO João Pessoa, novembro de 2010 | 5


c Tinha um jeito de sentar acoco-
rado, ou com as pernas cruzadas.
Olhou a um e a outro, sem dizer
palavra. Por trás das lentes espes-
sas não me foi difícil perceber que
ele tinha um olhar terno, porém
inquiridor. Um olhar crítico,
perscrutador, mas que não inibia.
Continuamos a nossa conver-
sa, tentando nos manter indife-
rentes à sua chegada. Não sei do
que falávamos - de literatura, de
política ou da vida alheia.
De repente, sem nenhum pre-
âmbulo, sem qualquer rodeio, des-
pido de qualquer inibição, ele en-
trou na conversa. Sua voz era gra-
ve, pausada e agradável. Soava
bem aos ouvidos, como bem soa-
vam as suas palavras. E nesse tom
de voz, um tanto imperioso, um CHICO BUARQUE DE HOLLANDA E PAULO PONTES, AUTORES DO ESPETÁCULO GOTA D’ÁGUA
tanto coloquial, ele foi despejando
sobre nós uma torrente de ideias e
conceitos, que fizeram baixar so- A reunião durou toda a manhã. Ele foi um homem de seu tem-
bre a roda um silêncio respeitoso. Não sei se duas ou três horas. Só po, um homem de ideias num país
Contestava um, concordava com sei que, quando nos dispersáva- tão carente de ideias. Ele não foi
outro, mas sempre ele mesmo na mos perguntei, não sei se a Firmo apenas um idealista, mas também
sua impressionante lucidez, nas ou a Wills Leal: um combatente vigoroso na defe-
suas formulações pertinentes sem - Quem é esse cara? sa da cultura brasileira, da cultu-
dar chance a nenhum de nós de - Paulo Pontes - me disseram. ra popular que colocasse o povo
vencê-lo no seu poder de argumen- - Nunca vi um cego enxergar tão como personagem principal. A sua
tação e no seu raciocínio ágil e bri- longe - comentei para Gonzaga. atividade intelectual era marcada
lhante. Tinha uma dialética des- por uma incessante atividade po-
concertante. As palavras fluíam *** lítica, sem laivos contestatórios,
como uma cachoeira, expelidas Foram assim os nossos primei- mas na busca dos melhores cami-
daquele peito débil, daquela caixa ros encontros. E desde então, a nhos para preservação da nossa
torácica afundada, onde eu imagi- nossa convivência, próxima ou verdadeira identidade.
nava que só existisse catarro e ni- distante, não teve mais fim, até a No Fiorentina, no Luna´s Bar,
cotina. sua morte prematura. na Manchete, no Canecão, nos tea-
A sua figura, que lembrava um Viveu pouco entre nós, aqui na tros, nos estúdios de TV, onde quer
Dom Quixote desarmado, logo se Paraíba. A sua inquietação inte- que ele estivesse, estava sempre
agigantou e se impôs no meio da lectual, a ousadia e o alcance de sua cercado de amigos, todos atentos
praça. Levantava-se, gesticulava, inteligência transpunham os limi- à sua palavra hipnótica. A sua
numa mímica perfeita de oratória, tes da província. Não seria aqui, mesa no Fiorentina, que ele fre-
como se estivesse recitando um na estreiteza de um meio social e quentava quase todas as noites,
monólogo de Shakespeare, ama- cultural sem qualquer estrutura atraía quase todas as pessoas im-
rando a segurança do gesto à fir- em que viesse encontrar terreno portantes da área cultural que che-
meza da palavra. Exaltava-se, e a propício para realizar o seu proje- gassem àquele recanto, um dos
sua voz, nessas ocasiões, soava um to de vida. templos sagrados da boemia cario-
pouco metálica. Fez rádio, fez teatro, fez jornal, ca. Era um desfile de personali-
Todos nos calamos para ouvi-lo. mas não poderia fixar aqui as suas dades, gente de saber que se dei-
E a sua palavra enchia aquele perspectivas e desejos de futuro. xava envolver por aquele moço
espaço infinito, batendo nos por- Foi para o Rio de Janeiro e em franzino que pregava as suas
tões do Palácio, nos portais do Tri- apenas dez anos sua palavra ideias com um sorriso condes-
bunal de Justiça, nas janelas da candente, ardorosa e vibrante já cendente e afetuoso.
Assembleia, no busto de João Pes- ecoava como um grito, levado atra- Todos tinham por ele uma sin-
soa, retornando até nós mais cheia vés de suas peças, de suas confe- gela afeição. Estava sempre cerca-
de calor e energia. Os passantes rências e entrevistas, mas, sobre- do de nomes famosos da televisão,
olhavam-nos desconfiados, receo- tudo, de suas intermináveis pales- do teatro, do jornalismo e da lite-
sos de que se tratasse de uma bri- tras nas rodas de artistas, escrito- ratura, como Antônio Callado,
ga de desocupados. res e jornalistas. Ferreira Gullar, Chico Buarque c

6 | João Pessoa, novembro de 2010 A UNIÃO


c de Holanda, Augusto Boal, Flá- ro e em São Paulo, a começar por
vio Rangel, Armindo Blanco, Má- Opinião, que escreveu em parce-
rio Lago e tudo quanto era gente ria com Ferreira Gullar e Oduval-
boa. do Viana Filho. Brasileiro, Profis-
Paulinho era autodidata e essa são Esperança, Um Edifício chama-
circunstância só fazia aumentar a do 200 e Gota D´Água bateram
nossa admiração por ele. Conhe- recorde de bilheteria e de apresen-
cia os clássicos, discutia história, tações nos palcos cariocas e pau-
política e economia, poesia, artes listas.
plásticas ou qualquer conceito fi- Qual teria sido a razão desse
losófico em moda. Vivia pregando sucesso, dessa aceitação das peças
entre os doutores, defendendo com de Paulo Pontes? Ele próprio ofe-
ardor os seus pontos de vista, as rece uma explicação, ao mostrar
suas ideias excessivamente oti- que o povo é atraído para o palco
mistas, utópicas para uns, mas na medida em que se vê ou se sen-
ninguém podia dizer que fugissem te identificado com o personagem
da nossa realidade, apesar de um e/ou a temática desenvolvida em
BIBI FERREIRA ATUANDO EM GOTA D’ÁGUA
quê de romantismo próprio dos cena. Na sua opinião, Paraí-bê-a-
sonhadores e idealistas, bá procurou como tema, antes de
Ele tinha um carisma impressio- era para descansar. Parece que mais nada, um poderoso elemen-
nante. Teria sido um grande con- pressentia que sua existência en- to de comunicação entre o palco e
dutor de massas se tivesse dirigi- tre nós seria efêmera e fugaz. Por a plateia. "Procurei em nossa lite-
do o seu inigualável talento para a isso, não descansava nem dava ratura - explicava ele - em nossa
atividade político-partidária. descanso a seus amigos jornalis- música popular o que existia de
Na Paraíba, ele chegou a filiar- tas, escritores e teatrólogos, co- mais expressivo e, claro, para for-
se ao Partido Socialista Brasilei- brando um livro, um estudo, um mular os problemas do homem
ro para disputar um mandato de trabalho sério sobre a saga do ho- paraibano. Tentei, assim, fazer um
deputado federal. Mas, um elen- mem paraibano e nordestino. acordo com o público, antes de
co de circunstâncias frustraram Numa dessas vindas, Paulo abrir o pano".
esse projeto. trancou-se durante uma semana
Um dos traços marcantes de num quarto do Hotel Pedro Amé- ***
sua personalidade era a lealdade rico, sustentando-se à base de café,
aos amigos. Tinha um profundo leite e cigarros, e de lá só saiu com Nascido em Campina Grande
respeito pela pessoa humana e ja- a peça Paraí-bê-a-bá debaixo do em 1940 estudou em Patos e cres-
mais achou graça em piadas do braço. Foi direto para o Teatro San- ceu na Rua da Areia, em João Pes-
humor negro. Mas morria de rir ta Roza, chamou alguns amigos li- soa. Jogava peladas em Cruz das
com as histórias dos loucos da Pa- gados à atividade teatral e em pou- Armas e Jaguaribe. Aos 11 anos de
raíba e estava sempre repetindo a cas semanas a peça estava pronta idade já era notícia de jornal. Em
frase de um "filósofo" sertanejo que para ser encenada. 1951, quando o país acompanha-
dizia que "para ser doido na Paraí- A apresentação de Paraí-bê-a- va comovido o martírio de Napo-
ba é preciso ter juízo". bá foi um fenômeno na história do leão Laureano, ele escrevia uma
teatro da Paraíba. Nunca uma carta ao Diário Carioca, do Rio de
*** obra de um autor paraibano, re- Janeiro, fazendo um apelo para que
Paulo ficou no Rio, alcançou a presentada por autores locais, sem todos os brasileiros se interessas-
glória, mas nunca se desvinculou o lastro do profissionalismo, levou sem pela cruzada de combate ao
de suas raízes paraibanas. Todos tanta gente ao teatro. Ficou quase câncer empreendida pelo médico
os anos visitava a sua terra. Uns um mês em cartaz, e na segunda paraibano. Por uma dessas fatali-
dois anos antes de sua morte, nas semana de apresentação ainda era dades do destino, 25 anos depois,
proximidades do Natal, acordou- necessária a presença de soldados em 1976, Paulinho morreria viti-
me às onze horas da noite, vindo da Polícia Militar para impedir que mado pela mesma doença. I
de táxi diretamente do Aeropor- as pessoas que não conseguiam in-
to Guararapes, do Recife, e me ar- gresso, porque a lotação estava es-
rastou - eu e Alarico - para ir- gotada, tentassem pular as grades
mos comer um churrasco na do jardim do teatro para assistir à
zona boêmia da cidade, no Bar de peça de qualquer jeito.
Marlene, de onde só saímos às João Agripino era o governador
sete da manhã. Mas foi como se a e assistiu a quase todas as repre-
noite nem tivesse começado, tal sentações. *JORNALISTA E ESCRITOR. FOI CORRESPONDEN-
a embriaguez de sua prosa cati- O mesmo fenômeno se repeti- TE DO JORNAL DO BRASIL, FOLHA DE SÃO PAULO
vante e arrebatadora. ria, anos depois, com todas as suas E REVISTA VEJA. AUTOR DE VÁRIOS LIVROS,
Quando ele vinha à Paraíba não peças produzidas no Rio de Janei- ENTRE OS QUAIS, O MAGO DE CATOLÉ

A UNIÃO João Pessoa, novembro de 2010 | 7


De como
Paulo Pontes
entrou para o Teatro
Ipojuca Pontes*

ivíamos então na Amaro Coutinho, em

V modesta casa de porta e janela, na boca


do Varadouro. Nossa vida girava em
torno de livros, futebol, cinema e, às ve-
zes, Ponto de Cem Réis, no espaço da
6crônica

Sapataria Cruz, "esquina do pecado",


onde Paulo Pontes, com menos de de-
zesseis anos, pontificava entre os ami-
gos Homero e Roberval. Os três joga-
vam palitos ("porrinha") para ver quem
pagava o cigarro ("Continental" sem fil-
tro) e o cafezinho - no Alvear (fichas
verdes) ou no Canadá (fichas verme- PAULO PONTES E SEU IRMÃO IPOJUCA (D), QUANDO ERAM CRIANÇAS

lhas), a escolher.
Na metade dos anos 50, João Pessoa
era uma cidade especial. O chique, para Tambaú, ou tomar de "assustado" alguma casa
os deserdados, era dançar sábado à noi- de família para bailar ao som de Waldir Cal-
te no Samburá, uma boate às claras em mon. Não se falava ainda no Sputnik, c

"O mais lúcido intelectual que conheci..."


Zuenir Ventura* debates que se tornou histórico, porque
revelou ao público carioca dois persona-
Conheci Paulinho no começo dos gens então emergentes: Fernando Henri-
anos 70, mas convivemos mais in- que Cardoso (um sociólogo pouco conhe-
timamente em meados da década, cido) e um certo operário de apelido Lula
quando foi criado o Grupo Casa (foi a primeira vez que veio ao Rio falar
Grande por Max Hause e Moysés em público). Paulinho era o ideólogo do
Aychenblat, donos do teatro do grupo, a principal cabeça.
mesmo nome. O grupo reunia inte- Paulo Pontes foi o mais lúcido intelectu-
lectuais e artistas para discutir a al que conheci naquela época. Quando não
situação cultural do país. Faziam se falava ainda em abertura política, ele foi
parte: Antonio Callado, Luiz Wer- o primeiro a garantir que ela seria inevitá-
neck Vianna, Chico Buarque, Darwin vel. "O capitalismo agora precisa de um es-
e Guguta Brandão, Tereza Aragão, tado mais aberto". Me lembro de Maria da
Bete Mendes, Maria Lucia Novais, Conceição Tavares, a mestra de todos os
Mary Ventura, entre outros. Em 75, economistas de esquerda, recomendando a
resolvemos organizar um ciclo de um colega estrangeiro, na minha casa, que

8 | João Pessoa, novembro de 2010 A UNIÃO


c tampouco nas Ligas Campone- O futuro dramaturgo rajosa subia ao palco e se enfro-
sas: o crime em pauta no disse-que- nhava num mundo religioso e exa-
disse da cidade era - estranhamen- descobria o teatro pela cerbado, obscuro e confuso para
te - o de Caryl Chesmann, o ban- mim que tinha saído para ver os
dido americano da Luz Vermelha. mão sedutora de uma Anjos da Cara Suja, e só aguarda-
A vidinha no pedaço fluía vagaro- va a chuva passar para tomar o
sa e mansa como uma procissão mulher a quem nunca vira sorvete de Princesa, na Botijinha.
de Corpus Christi, só interrompi- Do meu lado, Paulo Pontes olha-
da pelo canto embriagado e ope- antes, mas cujos encantos va aquilo embevecido. Olhava a
rístico de Vasco Navarro, de ma- mulher mais do que o ensaio, to-
drugada, na Praça João Pessoa. não mais esqueceria davia, o ensaio também. Havia um
Às terças-feiras, depois de ven- clima no ar. Talvez a engrenagem
der jornais, garrafas e metais no de um universo desconhecido que
"ferro velho" de Severino Pouco se desenrolava pela primeira vez
Peso (onde um quilo pesava 600 abrigar na entrada do Teatro San- diante dos seus olhos, seguramen-
gramas), íamos invariavelmente ta Roza, cujo porteiro, Zé Peque- te a perspectiva de uma experiên-
ao Cine Brasil assistir às comédias no, variava de humor conforme o cia afetiva e amorosa que surgia
de Leo Gorcey e seus rapazes, os tempo - e ele odiava chuva. Foi de forma imprevista e casual. O fu-
sempre divertidos Anjos da Cara então que se deu o acontecido. Pau- turo dramaturgo descobria o tea-
Suja, que viviam na tela o drama lo Pontes, sem querer (era míope), tro pela mão sedutora de uma mu-
enfrentado pelos irmãos Pontes na pisou no pé da moça, a moça es- lher a quem nunca vira antes, mas
vida real: estavam sempre duros bravejou, ele pediu desculpas com cujos encantos, dali por diante, não
e cheios de projetos. Saíamos feli- educada voz, a moça sorriu, ele mais esqueceria. Voltando-se para
zes do Cine Brasil e, se houvesse também sorriu e ela, olhos gran- mim, mas falando mais para si
"algum" de troco, prolongávamos des e amendoados, cabelos azevi- mesmo, deixou escapar, sussur-
o estado de graça com um sorvete che, voz de flauta doce, estendeu- rando:
n`A Botijinha, de propriedade do lhe a mão e, atrevida para os pa- - Bela Gil! I
mais tarde empalado Princesa, o drões da época e do lugar, apre-
Sibilino. sentou-se:
Foi exatamente numa "noitada" - Eu me chamo Gil Santos. Es-
assim, quando saímos satisfeitos tou ensaiando uma peça lá dentro.
da sessão de cinema rumo ao sor- Não quer ir ver?
vete de Princesa, que desabou um Ele foi, aliás, fomos e ficamos à ** CINEASTA, JORNALISTA, ESCRITOR, PALESTRAN-

súbito pé-d´água, e resolvemos nos distância enquanto a mocinha co- TE E EX-SECRETÁRIO NACIONAL DA CULTURA

lesse o prefácio mesmo respeito e atenção com que ou-


de Paulinho à via os amigos. Para se ter uma ideia. Na-
peça dele e de queles anos de chumbo, era uma heresia
Chico Buarque, ler Roberto Campos, o Bob Field, "ven-
Gota d'água, cujo dido aos americanos", como era conhe-
programa tive o cido pela esquerda. Pois Paulinho não
privilégio de fa- deixava de fazê-lo diariamente. Lia, re-
z e r. " S e vo c ê fletia, comentava e tinha a coragem e
quer entender o grandeza de admirar uma inteligência
Brasil, leia esse da qual discordava inteiramente. Mui-
texto". Quando tas vezes o ouvi dizer: "que cabra inteli-
PAULO PONTES: PRIMEIRO A GARANTIR havia um im- gente!". Ele dizia, com razão, que apren-
QUE A ABERTURA SERIA INEVITÁVEL
passe, quando dia mais com aquele adversário do que
as coisas se com muitos dos próprios aliados. Paulo
complicavam, o que mais se ouvia nas ro- Pontes continua atual.
das artísticas era "vamos perguntar ao Pau-
linho".
O traço que mais me marcou na persona-
lidade de Paulinho, além da generosidade,
bem entendido, foi a tolerância em relação
à diferença. Ele não hierarquizava as pessoas ** JORNALISTA E ESCRITOR. AUTOR DE 1968: O ANO QUE NÃO

ideologicamente. Ouvia o adversário com o TERMINOU

A UNIÃO João Pessoa, novembro de 2010 | 9


Um vazio não
preenchido
Paulo Melo*

or mais que seja lugar-comum a

P afirmação de que a morte de determinada


personalidade vai deixar um vazio em
sua área de atuação, só o tempo, na
verdade, vai dizer até onde ela fazia
sentido ou não. O que não quer dizer que
6depoimento

um eventual esquecimento não deixe de


ser injusto, no que, por sinal, o Brasil é
pródigo, contribuindo, assim, para o
epíteto de um país sem memória. Mas
independentemente de ser declarado
imprescindível ou não, tem gente que, por
suas qualidades, é sempre lembrada, e
mais ainda naqueles momentos em que a PAULO PONTES EMPREENDIA JORNADAS POLÍTICAS
moralidade é ameaçada e a capacidade de
discernimento é bloqueada por falsas
ilusões. Na pobreza em que está 1998), às comemorações dos 70 anos de seu
mergulhada a nossa cultura, em especial nascimento, passados 34 de sua morte.
no que diz respeito ao debate de ideias e Paulo nasceu em novembro de 1940, em
por conta da pasmaceira crítica Campina Grande; eu, em maio de 1943, em
preponderante em boa parte da nossa João Pessoa. Quando crianças, chegamos a
intelectualidade, quanta falta nos faz hoje morar na Rua da Areia, na parte histórica da
figuras como Nelson Rodrigues, Sérgio Capital, sem nos conhecermos, o que só veio a
Porto, Paulo Francis, José Guilherme acontecer em 1956, no Pio X, colégio marista,
Merquior, João Saldanha, Darcy Ribeiro, quando fomos colegas de turma na 3ª série
Glauber Rocha, Roberto Campos, Wilson ginasial, chefiada pelo Irmão Leãozinho.
Martins e mais uns poucos. Eram pessoas Paulo, por não professar o catolicismo, tinha
de pensamentos diversos, até opostos, mas permissão para não assistir as aulas de
com um ponto em comum: não se religião, que era ministrada no primeiro
permitiam uma leitura superficial e horário. Com a sala fechada, ele ficava lá fora,
dogmática dos fatos. Com coragem e sozinho, sentado num degrau da escada
honestidade defendiam suas convicções e próxima, meditando outras crenças. Tinha 15
denunciavam as hipocrisias e falsidades anos e cursou apenas o primeiro semestre.
de toda ordem, em especial as relacionadas Foi continuar os estudos, na companhia do
com a área cultural. Tinham uma visão irmão Ipojuca, no famoso Colégio Diocesano,
crítica dos acontecimentos, não se em Patos, sertão da Paraíba. Anos depois, nos
furtavam ao bom combate, não temiam encontramos no auditório da Rádio Tabajara,
patrulha de qualquer espécie e tornavam- em cujo palco Paulo chamava a atenção, até
se dessa maneira referências quase que pela sua capacidade histriônica. Antes de
obrigatórias aos que não se satisfaziam 1964, estávamos na Ceplar (uma espécie de
com os festejados de plantão. Desse mesmo Centro Popular de Cultura, que era o órgão
calibre e natureza era Paulo Pontes. E é de agitação cultural da União Nacional dos
pensando nele dessa forma que me Estudantes) e em cima de tonéis de gasolina
incorporo, por meio deste depoimento de empreendendo jornadas políticas pelos
caráter mais pessoal (é de minha autoria bairros da província. Paulo era bom de
a introdução de Teatro de Paulo Pontes, dois discurso, sabia envolver a plateia e de forma
volumes, Editora Civilização Brasileira, vibrante encerrava os comícios relâmpagos.
c

10 | João Pessoa, novembro de 2010 A UNIÃO


c Veio o golpe militar e só fomos Paulo morreu moço, aos 36 o que terminou se concretizando nas
nos reencontrar no final da década figuras de Callado e Ana Arruda.
de 1960, ele de vez no Rio de Janeiro anos e, até o último Com efeito, Paulo era assim,
e eu de passagem, procurando apoio sempre se jogando por inteiro em
para as atividades culturais que momento, não abandonou tudo o que fazia, à exceção da saúde,
dirigia na Paraíba, em relação as a qual parecia não ter muito tempo
quais ele sempre se mostrava a sua preocupação com para cuidar.
interessado e prestimoso. Morava Depois que ele se foi, muitas
no Leme, em cujo apartamento, transformações ocorreram, no
os destinos do País, com a
juntos com os compositores Marcus Brasil e no mundo. A democracia
Vinícius e Paulinho da Viola e um gradualmente foi recuperada
condição do artista no
garrafão de whisky J&B, ouvimos o entre nós, o comunismo não
Brasil ser campeão no México. demorou muito e terminou por
Depois, em Copacabana, no duplex
contexto histórico fracassar em razão das
da Barata Ribeiro, esquina com a inconsistências que lhe eram
Rodolfo Dantas (em frente ao prédio intrínsecas, sendo que tal desfecho
que lhe inspirou a peça Um edifício certamente não causaria a Paulo
chamado 200), com a presença ativa e convidados e, com suas aulas sobre constrangimento ideológico ou
solidária de Bibi Ferreira, muita dramaturgia, certamente uma das político, já que tinha inteligência
discussão, alguma sinuca, eventuais figuras presentes de maior brilho suficiente para rever seus
carteados (o ex-governador João intelectual. Fora da sala, nos conceitos e perceber que tudo o que
Agripino ocasionalmente batia o corredores, pelas ruas e praças e no aconteceu com o socialismo (na
ponto) e projetos sem fim. De vez barzinho de "seu" Milton, estava teoria e na prática) não poderia ter
em quando, até para lembrar os sempre cercado de participantes. outro fim. Novos paradigmas
velhos tempos de João Pessoa, Associava ao corpo franzino e ao foram assentados, a tecnologia e a
noites intermináveis pelos andar meio bamboleante inovação aumentaram de
sedutores inferninhos da Zona Sul (resultante de um cirurgia de patamar e a saudável
do então decantado balneário. Na correção nos pés, quando criança), competitividade revolucionou o
década de 1970 os contatos foram uma voz grave e uma variedade de mercado. Assim como a maioria
mais frequentes até os dias de Paulo gestos, a expressarem opiniões dos países, o Brasil cresceu, mas
terminarem. No Cemitério do Caju, firmes, raciocínios claros e conceitos seus problemas básicos
em uma manhã de dezembro de precisos. continuam sem solução, agora
1976, assisti uma cerimônia de dor O sucesso obtido na primeira acrescidos de um tipo de liderança
e de inconformismo pelo adeus tão edição do festival fez de Paulo um política que, paradoxalmente, ao
precoce, ainda que dolorosamente dos seus principais entusiastas, tempo em que promove direta ou
previsto. como em geral ele era com as coisas indiretamente a impunidade
A primeira forma de homenageá- da Paraíba. Aliás, a participação estimula cabeças tidas como bem
lo foi torná-lo patrono do II Festival dele no festival deu-se desde o pensantes à cumplicidade ou ao
de Verão de Areia, realizado no momento em que o projeto começou comodismo, estes, para todos os
período de 30 de janeiro a 12 de a ser elaborado. Por diversas vezes, efeitos, no mínimo irresponsáveis.
fevereiro de 1977. Na plaqueta em seu apartamento em E, assim, um sentimento de
alusiva ao festival, que tem sua foto Copacabana, conversamos amoralidade - nefasto e
na capa, escrevi sobre os motivos demoradamente sobre os temas a ameaçador, como lhe é próprio -
da deferência, alguns deles, por serem tratados e as pessoas que pouco a pouco vai se entranhando
considerá-los ainda atuais, são poderiam ser convidadas. Com no interior da sociedade, sem que
adiante reiterados, sob um outro relação ao II, o nosso último ela perceba, como um ovo da
formato. encontro (algumas semanas antes serpente. E aqui penso que a
Paulo morreu moço, aos 36 anos de sua morte) - com a presença de melhor homenagem que se
e, até o último momento, não Vladimir Carvalho, Antônio prestaria a Paulo - sem nenhum
abandonou a sua quase obsessiva Callado, Ana Arruda, Darwin viés nostálgico e ciente de que tinha
preocupação com os destinos do Brandão, Maria Augusto (Guta), também as suas limitações -, seria
País, com a condição do artista no Tereza Aragão, Nelma e Luiz sentir a falta que ele faz, pois é certo
contexto histórico e com a defesa dos Werneck Viana - foi, em grande que sua lucidez e bravura
ideais democráticos, preocupações parte, dedicado a uma discussão intelectual não compactuariam
essas expressas nos seus textos sobre a programação do festival. com esse quadro de apatia e
dramáticos, nas suas conferências, Para aqueles ali presentes que ainda conformidade hoje predominante.
artigos, ensaios e nos programas não conheciam a natureza do E muito menos se omitiria.
que escreveu e produziu para a evento, o próprio Paulo tomou a (Brasília, novembro de 2010) I
televisão. iniciativa de explicá-lo e seu fervor
Quando da realização do I foi tanto que quase todos
Festival, em 1976, Paulo foi um dos demonstraram imediato interesse, *JORNALISTA E PROFESSOR

A UNIÃO João Pessoa, novembro de 2010 | 11


12 | João Pessoa, novembro de 2010 A UNIÃO
De Maurice Blanchot a Foucault
Dois capítulos de Foucault tal como
o imagino, de Maurice Blanchot
Daniel de Oliveira Gomes*
Eclair Antonio Almeida Filho**

N essa nossa tradução dos dois primei-


ros capítulos de Foucault tal como o ima-
gino, que Blanchot escreve por oca-
sião da morte de Foucault em 1984,
6tradução

ouviremos em Blanchot a voz do fora


apontada por Foucault como pensa-
mento do fora (que nunca se torna
pensado, nunca se pensa) dirigir de
modo múltiplo ao filósofo, pensador,
historiador do poder, da loucura, do
cuidado de si.
Blanchot se sacrifica por Foucault.
Blanchot demonstra-se solitário e
põe em risco sua própria voz - pois é
preciso também aprender a falar BLANCHOT LÊ O AMIGO FOUCAULT COMO LITERATURA
com dor, em total risco. O destino de
sua escrita pertence a outro. Na exi-
gência do escrever que lhe faz pôr FOUCAULT TAL COMO O IMAGINO
mãos à obra, escrever sobre o amigo, Algumas palavras pessoais. Para ser
Blanchot anuncia uma recusa: a de preciso, não entretive relações pessoais
com Michel Foucault. Jamais o encontrei,
ultrapassar o limiar de sua literatu-
salvo uma vez, no pátio da Sorbonne
ra. Foucault é lido como uma litera-
durante os eventos de Maio de 68, talvez
tura; não há propriamente um últi-
em junho ou julho (mas me dizem que
mo Foucault, um primeiro Foucault,
ele não estava lá), ocasião em que lhe di-
um Foucault "do meio" (central). Se-
rigi algumas palavras, mesmo ele igno-
quer há um Foucault. Como diz Pe- rando quem lhe falava (o que quer que
ter Pál Pelbart, "Blanchot redescobre digam os detratores de Maio, foi um belo
na literatura um espaço rarefeito que momento esse, quando cada um podia
se põe em xeque a soberania do su- falar com o outro, anônimo, impessoal,
jeito. O que fala no escritor é que 'ele homem entre os homens, acolhido sem
não é mais ele mesmo, já não é nin- outra justificação do que ser um outro
guém': não o universal, mas o anôni- homem). É verdade que, durante tais
mo, o neutro, o fora." (Pelbart, 2002, eventos extraordinários, eu dizia: Mas
p.290). E Foucault é uma literatura porque Foucault não está aqui? - resti-
em Blanchot (no dilema do olhar de tuindo-lhe assim o seu poder de atra-
Orfeu), quando, destinado a fazer- ção e considerando o lugar vazio que
nos entender como entrar no tem- ele deveria ter ocupado. Ao quê me res-
plum, conforme na leitura de Bar- pondiam com uma observação que não
thes, estamos em uma região onde me contentava: ele anda meio reserva-
fatalmente queremos destruir o tem- do; ou então: ele está no estrangeiro.
plo, sob "um rumor que muda de Mas, precisamente, muitos estrangei-
antemão tudo o que podemos dizer". ros, até os longínquos japoneses esta-
Ouvimos, sobretudo, ressoar a vam lá. Foi assim, talvez, que nós nos
voz da amizade, filosófica, literária... perdemos um do outro.
Todavia, o seu primeiro livro, que lhe
trouxe renome, me fora comunicado c

A UNIÃO João Pessoa, novembro de 2010 | 13


c quando esse texto não era sequer O estilo de Foucault, pelo história e da qual os poetas (os ar-
um manuscrito, quase sem nome. tistas) foram e podem ser ainda as
Era Roger Caillois quem o tinha e o seu esplendor e precisão, testemunhas, as vítimas ou os he-
propôs a vários dentre nós. Recor- róis. Se esse foi um erro, isso lhe foi
do o papel de Caillois, porque ele me qualidades aparentemente benéfico, na medida em que, atra-
parece ter permanecido ignorado. O vés dele (e de Nietzsche), Foucault
próprio Caillois nem sempre era contraditórias, tomou consciência do seu pouco
bem aceito pelos especialistas ofici- gosto pela noção de profundidade,
ais. Caillois se interessava por de- deixou-o perplexo do mesmo modo que desmascara-
masiadas coisas. Conservador, ino- rá, nos discursos, os sentidos ocul-
vador, sempre um pouco à parte, tos, os segredos fascinantes: dito de
não entrava na sociedade dos que outro modo, os duplos e triplos fun-
possuem um saber reconhecido. Por de maldade, destinado a punir se- dos do sentido, dos quais, é certo,
fim, ele forjara para si um estilo be- res perigosos porque definitiva- só se pode vir à tona desqualifican-
líssimo, por vezes até ao excesso, a mente a-sociais (ociosos, pobres, do o sentido mesmo, assim como,
tal ponto de crer-se destinado a ze- depravados, profanadores, extra- nas palavras, o significado e até
lar - zelador arisco - pela correção vagantes e, para concluir, os cabe- mesmo o significante.
da língua francesa. O estilo de Fou- ças de vento ou os loucos) deve, por Aqui, direi que Foucault, um dia,
cault, pelo seu esplendor e sua pre- uma ambiguidade ainda mais te- tendo se proclamado, por desafio,
cisão, qualidades aparentemente mível, tomá-los em consideração, um "otimista feliz", foi um homem
contraditórias, deixou-o perplexo. dando-lhes cuidados, alimentos, em perigo e, sem fazer mostra dis-
Não sabia se aquele grande modo bênçãos. Impedir os doentes de so, teve um sentimento agudo dos
barroco não arruinaria o saber sin- morrerem na rua, os pobres de vi- perigos a que estamos expostos, in-
gular cujos múltiplos caracteres, fi- rem a ser criminosos para sobre- terrogando a si mesmo para saber
losófico, sociológico, histórico, o em- viverem, os depravados de per- quais os riscos mais ameaçadores e
baraçavam e o exaltavam. Talvez verterem os piedosos dando-lhes quais aqueles com que se pode con-
Caillois visse em Foucault um ou- o espetáculo e o gosto dos maus temporizar. Daí a importância que
tro ele mesmo que lhe furtaria a he- costumes, eis o que não é detestá- teve para ele a noção de estratégia, e
rança. Ninguém gosta de se reco- vel, mas marca um progresso, o daí que ela tenha vindo a jogar com
nhecer, estrangeiro, num espelho ponto de partida de uma mudan- a ideia de que ele teria podido, se o
onde não se discerne propriamente ça que os melhores mestres julga- acaso assim decidisse, tornar-se um
o seu duplo, mas aquele que ele ado- rão excelente. homem de Estado (um conselheiro
raria ter sido. Assim, desde seu primeiro livro, político), assim como um escritor -
O primeiro livro de Foucault (ad- Foucault trata de problemas que, termo que ele recusou sempre com
mitamos que tenha sido o primei- desde sempre, pertencem à filosofia maior ou menor veemência e since-
ro) valorizou, portanto, relações (razão, desrazão), mas os trata pelo ridade - ou um puro filósofo, ou um
com a literatura que mais tarde viés da história e da sociologia, sim- trabalhador sem qualificação, por-
será preciso corrigir. A palavra plesmente privilegiando na histó- tanto um "eu não sei o quê" ou um
"loucura" foi uma fonte de equívo- ria uma certa descontinuidade (um "eu não sei quem".
cos. Foucault só tratava indireta- pequeno evento muda pouco), sem Em todo caso: um homem em
mente da loucura, tratava primei- fazer dessa descontinuidade uma marcha, solitário, secreto e que, por
ramente desse poder de exclusão ruptura (antes dos loucos, há os le- causa disso, desconfia dos prestí-
que, um belo dia ou não, foi ocasio- prosos, e é nos lugares - lugares ao gios da interioridade, recusa as ar-
nado por um simples decreto ad- mesmo tempo materiais e espiritu- madilhas da subjetividade, procu-
ministrativo, decisão que, dividin- ais - deixados vazios pelos leprosos rando onde e como é possível um
do a sociedade, não em bons e/ou desaparecidos, que se restabelecem discurso de superfície, fulgurante,
maus, mas em razoáveis e desra- os abrigos de outros excluídos, do mas sem miragens; não um estran-
zoáveis, deu a reconhecer as impu- mesmo modo que esta necessidade geiro, como se acreditou, à procura
rezas da razão e as relações ambí- de excluir persevera sob formas sur- da verdade, mas deixando ver (de-
guas que o poder - aqui, um poder preendentes que ora vão revelá-la, pois de muitos outros) os perigos
soberano - iria entreter com aquilo ora vão dissimulá-la). dessa procura, assim como as rela-
que há de mais bem partilhado, ções ambíguas desta com os diver-
apenas deixando compreender que UM HOMEM EM PERIGO sos dispositivos do poder. I
não seria tão fácil reinar sem parti- Seria preciso se perguntar por
lha. O importante é, de fato, a par- que a palavra "loucura", mesmo em
tilha; o importante é a exclusão - e Foucault, conservou uma conside-
não aquilo que se exclui ou se parti- rável potência de interrogação. Pelo
* TRADUTOR E PROFESSOR ADJUNTO DO CURSO
lha. Afinal, que estranheza essa a menos por duas vezes Foucault se
LETRAS TRADUÇÃO FRANCÊS-PORTUGUÊS DA UNB
da história, se o que a faz oscilar é reprovará por ter-se deixado sedu-
um simples decreto, e não grandes zir pela ideia de que há uma pro-
batalhas ou importantes disputas fundidade da loucura, de que esta ** TRADUTOR E PROFESSOR DE TEORIA LITERÁ-

monárquicas. Além disso, tal par- constituiria uma experiência fun- RIA DA UNICENTRO, DO PARANÁ. ESCREVE

tilha, que, de modo algum, é um ato damental que se situa no fora da ARTIGOS SOBRE FILOSOFIA E LITERATURA

14 | João Pessoa, novembro de 2010 A UNIÃO


"A literatura
é de grande utilidade pública"
Por Lima Trindade*

A leilton Fonseca nasceu em Firmino


Alves-BA em1959, e viveu a infância e
adolescência em Ilhéus-BA. Residiu em
João Pessoa (1988-1990) e em São Paulo
(1994-1997), fixando-se em Salvador,
em 1996. Cursou Letras na UFBA,
mestrado na UFPB, e doutorado na USP
(1997). É Professor Pleno (titular) de
Literatura da Universidade Estadual de
Feira de Santana, na Bahia. Em 2003
lecionou na Université d'Artois
(França). É coeditor das revistas
Iararana (Literatura) e Légua e Meia
(Artigos). Publicou vários livros. Poesia:
Movimento de sondagem (1981), O espelho da
consciência (1984), Teoria particular do poema
(1994). As formas do barro (2006). Contos:
Jaú dos Bois (1997), O desterro dos mortos ALEILTON FONSECA: “EU ERA UM PROFESSOR QUE
(2001), O canto de Alvorada (2003) e Les ESCREVIA; AGORA SOU UM ESCRITOR QUE DÁ AULAS”
marques du feu (2008, França). Ensaio:
Enredo romântico, música ao fundo (1996) e
Guimarães Rosa, écrivain brésilien centenaire aspas" no Jornal da Manhã, de Ilhéus,
(2008, Bélgica). Romances: Nhô Guimarães além de contos e poemas no mesmo jor-
(2006) e O Pêndulo de Euclides (2009). nal. Em 1981, já em Salvador, cursando
Pertence à UBE-SP, ao PEN Clube do Letras na UFBA, soube do edital da Fun-
Brasil e à Academia de Letras da Bahia. dação Cultural do Estado da Bahia, con-
Acaba de publicar A mulher dos sonhos & vocando jovens autores para a Coleção
outras histórias de humor, uma coletânea de dos Novos, selo criado e dirigido pela po-
25 histórias curtas, focalizando eta Myriam Fraga. Inscrevi o livro de po-
situações bizarras do cotidiano. emas Movimento de Sondagem, que havia re-
cebido menção honrosa no Prêmio Lite-
rário UFBA de 1980. O livro foi aprovado
Você começou publicando poesia, mas e saiu como volume 2 de poesia da Cole-
parece ter se firmado mesmo na prosa. ção dos Novos. Mais adiante, meu veio cri-
Houve uma razão especial para a mudan- ativo se intensificou na prosa, possibili-
ça ou ainda cultua o gênero? tando-me publicar livros e receber um
Na verdade, comecei publicando reconhecimento público crescente, atra-
contos em jornais, em 1978, aos 19 vés de edições, prêmios e leituras. De fato,
anos. Publiquei três contos no Cader- sou conhecido e me reconheço como ficci-
no de Domingo, do Jornal da Bahia, onista, muito mais do que como poeta e
então dirigido por Adinoel Motta Maia, ensaísta. Não houve uma razão especial
e dois contos no suplemento domini- para eu abraçar a ficção, mas sim a afir-
cal A Tarde/Novela, dirigido pelo sau- mação de uma tendência mais forte de
doso Prof. Junot Silveira. Eu residia em contar histórias, aliás um hábito que
Ilhéus e fazia o curso de Técnico em aprendi com a minha avó D. Anália Sou-
Agrimensura na EMARC, em Uruçu- za, de 90 anos, e de minha mãe
ca. Também publicava a coluna "Entre D. Lourdes Santana, de 70 anos. c

A UNIÃO João Pessoa, novembro de 2010 | 15


c Até hoje, quando nos encon- na formação de novos escritores
tramos, em Ilhéus, é para contar
Jorge Amado e leitores?
histórias, umas dramáticas e ou- Vivemos a era da imagem e da
tras divertidas. Creio que temos representava sozinho a comunicação de massas. A poe-
a imaginação e a narrativa à flor sia e a ficção disputam espaço e
da pele e da voz. expressão literária da tempo com várias outras ocu-
pações oferecidas aos diversos
Em Salvador, ainda no começo da Bahia, nacional e segmentos do público. A litera-
sua vida literária, você integrou a tura foi muito popular no sécu-
Geração Oitenta. Fale um pouco so- internacionalmente. lo 19, como uma fonte de educa-
bre o grupo e como era o cenário ção, ilustração e entretenimen-
cultural daquela época em relação Parecia não existir to. A ênfase agora é na formação
ao restante do país. técnica, profissional e científica
No início dos anos 80 era mui- mais nada além dele das pessoas. Ainda que menos
to caro e difícil publicar um li- visível e dificilmente mensurá-
vro na Bahia. Os autores jovens vel, o volume de leitura é muito
esforçavam-se para se afirmar, maior hoje, considerando-se o
através das raras e efêmeras re- crescimento da população e o
vistas, através de edições de mi- ritmo e os apelos da vida con-
meógrafo e pequenas brochuras beiro Patricio, e nossos filhos, temporânea. A questão do sta-
produzidas em off-set. A chama- Diogo e Raul. Aliás, Raul nasceu tus da poesia - e da ficção - é de
da Geração Oitenta, na Bahia, em João Pessoa, nessa época, em escala. A literatura continua
composta por escritores inician- 1989. Com a família, retornei à sendo muito importante na for-
tes, era desde então dispersa. Ti- Bahia, adiante segui para São mação, na vivência e no enrique-
vemos, apesar de tudo, quatro Paulo, em 1994, para cursar dou- cimento intelectual dos indiví-
vetores de divulgação e afirma- torado na Universidade de São duos. Se uma sociedade não in-
ção dos jovens escritores: o con- Paulo. Foram 10 anos de estudos veste nisso, fica prejudicada nos
curso Prêmios Literários UFBA e aprendizado teórico, crítico e índices de discernimento e par-
de 1980, que revelou cinco poe- didático. Em 1994, em plena USP, ticipação criativa, produtiva e
tas; o Movimento Hera, de Feira recuperei o ímpeto da criação. Es- crítica de sua população. Há des-
de Santana, que publicava novos crevi e publiquei o poema Teoria níveis entre os países, e, dentro
autores em sua revista; o movi- particular (mas nem tanto) do poema. deles, entre os diversos segmen-
mento Poetas na Praça, que reu- Comecei a escrever os contos do tos sociais. É uma questão de
nia um grupo muito atuante nas livro Jaú dos Bois, que recebeu educação e de investimento na
ruas, e a Coleção dos Novos, que menção honrosa no Prêmio Nas- formação intelectual das pesso-
publicou quatorze autores de cente 1994, da USP. Em 1996, esse as. Todos os países que investi-
poesia e de prosa, criando um cli- livro, revisto e aumentado, foi ram na educação e na leitura de-
ma de incentivo e renovação premiado pela Fundação Cultu- senvolveram-se rapidamente. A
muito importante. O movimen- ral do Estado da Bahia, e editado internet é uma conquista fabu-
to editorial na Bahia era muito pela Relume-Dumará, em 1997. losa de nosso tempo. Ela multi-
local, muito isolado do restante Foi meu retorno à vida literária plica as possibilidades de inte-
do país. Jorge Amado represen- plena. Entre 1995 e 1997, enquan- gração à comunidade de infor-
tava sozinho a expressão literá- to escrevia a tese de doutorado, mações em tempo real. Isso
ria do estado, nacional e interna- eu ia também escrevendo poe- mudou, de forma silenciosa e
cionalmente. Parecia não existir mas e contos que logo saíram em sub-reptícia, a face do mundo.
mais nada além dele. livros e revistas, com muito êxi- A internet é uma ferramenta
to. Já a tese, sobre a poesia urba- fundamental na formação dos
Depois de O espelho da consci- na de Mário de Andrade, deve sair novos escritores e leitores, pois
ência , 1984, houve um interregno em livro ainda este ano. A minha os insere instantaneamente no
de dez anos até Teoria particular ausência de 10 anos, portanto, foi processo universal de troca de
(mas nem tanto) do poema . Qual a devida a um ciclo de formação de informações, de conhecimentos
razão para tamanha ausência? professor, pesquisador e ensaísta, e de bens culturais, através dos
Em 1984 entrei na vida univer- voltado para a reflexão sobre milhares de sites, blogs, orkuts,
sitária, como professor da UESB, questões teóricas e analíticas da livros, revistas e boletins ele-
em Vitória da Conquista, Bahia. literatura. Hoje, produzo poesia, trônicos.
Então me dediquei à formação ficção, crítica e ensaios. Eu era um
profissional. Cursei Especializa- professor que escrevia; agora sou Tanto Nhô Guimarães quanto O Pên-
ção, fiz mestrado na Universida- um escritor que dá aulas. dulo de Euclides são romances con-
de Federal da Paraíba, residindo Pensa que a poesia perdeu o cebidos a partir de contos. Como
em João Pessoa, entre 1988 e 1990, status nos dias de hoje? Como foi esse meio-de-campo?
com minha mulher, Rosana Ri- percebe o fenômeno da internet Houve uma transposição da c

16 | João Pessoa, novembro de 2010 A UNIÃO


que são verdadeiros convites à
escrita de um romance, através
da ampliação de tudo aquilo que
se entremostra nas entrelinhas
da narrativa curta e que pode ser
retomado e estendido na forma
romanesca. Sinto-me melhor no
papel de romancista.

Considera que tem mais facilida-


de para um gênero específico?
Quais são os seus hábitos para es-
crever? Eles se modificam de um
livro para outro, de um gênero para
outro?
Na criação literária não existe
facilidade nem para se colocar ou
tirar uma vírgula. Escrever é um
processo difícil, no qual ideias,
NARRADORA DO ROMANCE NHÔ GUIMARÃES AFIRMA TER SIDO AMIGA DE GUIMARÃES ROSA palavras, textos, correções, cor-
tes, tudo ocorre e convive simul-
taneamente, como um desafio à
c idéia principal ou você partiu de Escrever é um processo paciência e à capacidade do es-
inquietações não contempladas critor. Eu vivo tendo ideias que
originalmente nas narrativas cur- difícil, no qual ideias, vêm e vão, umas persistem e ou-
tas? tras somem ou se adiam. Nem
A criação literária é um pro- palavras, textos, correções, todas as ideias se concretizam em
cesso engenhoso de autoconheci- texto. Cada escritor tem seu mé-
mento. Cada obra é uma revela- cortes, tudo ocorre e todo, mas cada livro também im-
ção do autor para si próprio e põe sua regra e sua medida. Le-
para o leitor. Ocorre uma ideia, convive simultaneamente, vei 5 anos para concluir a trans-
dá-se a gestação de um texto, até formação do conto "Nhô Guima-
um dia aflorarem o apelo e a ne- como um desafio à rães" em romance, após subme-
cessidade da escrita. No caso tê-lo à leitura de cerca de 6 leito-
desses dois romances, inicial- paciência e à capacidade res críticos. Levei um mês para
mente tive ideias associadas às desenvolver o romance O pêndu-
minhas leituras e às minhas vi- do escritor lo de Euclides, e mais quatro me-
vências com os livros, os fatos e ses relendo e reescrevendo os
os autores. Escrevi o conto "Nhô originais, após conferir e compul-
Guimarães" em 2000 e o publi- mance. A partir da sinopse de 30 sar as leituras, as críticas e as
quei no livro O desterro dos mor- laudas, escrevi o conto "Às mar- sugestões de quatro amigos es-
tos, em 2001. Mais adiante, a voz gens do Belo Monte", de 20 lau- critores: Carlos Ribeiro, Gerana
narrativa do conto manifestava- das. O conto foi publicado no li- Damulakis, Gláucia Lemos e,
se na minha mente a fim de que vro Todas as guerras, coletânea or- principalmente, o poeta Luis An-
eu continuasse o processo narra- ganizada por Nelson de Olivei- tonio Cajazeira Ramos, que leu
tivo. Voltei ao conto, seccionei-o ra, em 2009. Nesse processo, re- em voz alta cada frase dos origi-
em várias partes e fui escreven- tomei e expandi a sinopse inicial nais e me fez diversas sugestões.
do novas histórias encaixadas, ao até concluir o romance, que foi Leitores críticos ajudam muito,
sabor do enredo principal. O publicado em agosto de 2009, no pois anteveem questões que o
conto tornou-se um romance. Na centenário de morte de Euclides autor pode analisar e sobre as
ampliação do texto, mantive a da Cunha. Nos dois casos, fiz quais pode refletir, antes de dar
unidade difusa de uma história uma transposição da ideia prin- a obra por concluída.
de fundo, entremeada por diver- cipal do conto e, ao mesmo tem-
sos causos vividos ou lembrados po, desenvolvi várias situações O seu novo livro, A mulher dos
por uma senhora sertaneja, a que tinham origem em minhas sonhos , é uma guinada para a lite-
narradora, que afirma ter sido inquietações não contempladas ratura de humor?
amiga de Guimarães Rosa, a nas narrativas curtas. O conto Desde o início de minha carrei-
quem conhecera em suas viagens impõe contensão de elementos, ra, também escrevo histórias de
pelos sertões dos Gerais. Já O pên- enquanto o romance comporta a humor, até aqui só publicadas em
dulo de Euclides surgiu como si- expansão dos diversos aspectos jornais. Resolvi, então, juntar em
nopse para a escrita de um ro- do enredo. Tenho alguns contos livro uma seleção dessas c

A UNIÃO João Pessoa, novembro de 2010 | 17


c narrativas, que captam mo- ambiente literário, seja na esco-
mentos sui generis do cotidiano,
Há quem se interesse por la, na universidade, nos grupos
situações que levam o leitor ao intelectualizados. Creio que há
livros temáticos, da moda,
riso. Várias delas foram publica- espaço para todo tipo de produ-
das nos anos 90, no Caderno 2 do ção, pois o mercado opera por um
de grande apelo midiático.
Jornal da Tarde de São Paulo, processo de segmentação do con-
numa coluna então dirigida pelo sumo e dos produtos. Hoje, a li-
A literatura precisa descer,
escritor José Nêumanne Pinto. teratura não pode ser limitada ao
Outras circularam em fotocópi- definitivamente, da velha padrão consagrado pela tradição
as na universidade e por e-mail, intelectual, aliás, eurocêntrica e
com muito sucesso. Minha mu- torre de marfim, e burguesa. A literatura hoje é
lher, Rosana Ribeiro Patricio, uma noção plural, mais ampla e
professora e pesquisadora de li- reincorporar o seu antigo diversa, e por isso mesmo seg-
teratura, me incentivou muito a mentada, que comporta, forçosa-
publicar o livro. Não pretendo estatuto utilitário mente, os diversos adjetivos in-
com isso me afastar da narrati- dicadores dos mais variados
va dramática. Mas o humor é grupos de interesse. Isso faz par-
uma faceta que já está presente te da democratização do acesso
em passagens dos meus roman- e da tradução. O livro Les marques aos bens simbólicos de maneira
ces. Neste livro eu quis mostrar du feu foi adotado pelo Lycée des descentralizada, dentro dos ho-
o humor de forma mais explíci- Arènes, de Toulouse, o que me rizontes dos diferentes grupos
ta, em histórias curtas e certei- rendeu uma homenagem especi- humanos e da diversidade cul-
ras. Trata-se de um livro para fa- al, num evento coordenado pela tural. Se, por exemplo, você não
zer o leitor rir, mas também re- Profa Brigitte Thierion e outras lê a chamada literatura espírita,
fletir sobre situações bizarras do docentes. A partir dos enredos saiba que milhares de pessoas
cotidiano. dos contos, os alunos produzi- preferem-na à literatura dita
ram pinturas, instalações, gra- "normal". Há quem prefira lite-
Recentemente você teve uma an- vuras, cerâmicas, livros artesa- ratura estrangeira. Há quem
tologia de contos, Les Marques du nais, planos teatrais, esculturas, goste mais das biografias. Há
Feu et autres nouvelles de Bahia , entalhes em madeira, quadri- quem se interesse por livros te-
traduzida e publicada na França, se- nhos e vídeos. Eu fui convidado máticos, da moda, de grande ape-
guida de vários lançamentos no para essa exposição e para falar lo midiático. A literatura precisa
país. Como foi essa experiência? no evento. Estive lá, vi e vivi essa descer, definitivamente, da velha
No ano 2000 conheci, em Sal- demonstração de reconhecimen- torre de marfim, e reincorporar
vador, o ensaísta e tradutor Do- to de meu trabalho. Foi algo ines- o seu antigo estatuto utilitário.
minique Stoenesco, então profes- quecível. No mesmo ano, o Insti- Os artistas da modernidade caí-
sor de português num Liceu e tuto de Letras da UFBA fez um ram numa cilada, ao voltar-se à
numa universidade na França. seminário, em comemoração aos arte da palavra em si, ou seja, a
Formado pela Sorbonne, é um fã meus 50 anos, através do Projeto arte em si mesma, arte pela arte,
da literatura brasileira, aprecia- de Pesquisa "O escritor e seus disseminando a ideia de que a li-
dor da obra de Jorge Amado. Ele múltiplos". A Academia de Letras teratura não tem uma utilidade
coedita até hoje a revista Latitu- da Bahia também fez uma ses- concreta para além de si mesma.
des, “Cahiers lusophones”, que são comemorativa. Tudo isso me É claro que ela tem utilidade, des-
divulga literatura e cultura de incentiva a trabalhar mais, pois de a sua origem. Ao cultivar a
língua portuguesa na França. Do- esses eventos confirmam o com- "inutilidade" da poesia, os mo-
minique gostou de meus contos, promisso do escritor para com a dernos tornaram, ipso facto, sua
escreveu sobre meu trabalho na comunidade literária. leitura dispensável às pessoas
revista e, em 2007, manifestou o práticas, voltadas às atividades
interesse de traduzir alguns de Em sua opinião, o interesse pela e interesses técnicos e produti-
meus contos. Ele reuniu os con- literatura brasileira fora dos padrões vos. Disseminou-se o equívoco de
tos traduzidos em livro, que foi dos best-sellers aumentou ou di- que literatura, sobretudo a poe-
publicado pelas Éditions Lanore, minuiu? Persiste a busca pelo exó- sia, é uma perda de tempo. Ledo
em 2008. Lançamos o livro em tico ou há espaço para todo tipo de e terrível engano. A literatura é
Paris, em Rennes, em Toulouse e produção? muito útil. Os escritores do sécu-
na capital belga Bruxelas, sem- Trata-se de uma questão de es- lo 21 devem repensar essa falsa
pre com um bate-papo com o cala. Há uma demanda significa- "inutilidade", recuperando um
público, com tradução simultâ- tiva por best-selleres em todo lugar indispensável da literatu-
nea. Fomos às universidades Sor- lugar do mundo. E há as deman- ra na formação integral dos in-
bonne Nouvelle, Rennes e Tou- das e as circunstâncias que le- divíduos. Estão faltando litera-
louse Le Mirail, pelas quais fo- vam à leitura de obras literárias tura e arte na formação das pes-
mos convidados a falar do livro de alto padrão artístico, seja no soas. Se a literatura for vista c

18 | João Pessoa, novembro de 2010 A UNIÃO


c e aceita como um valor indis- metalinguagem de exibição das
pensável, as pessoas tenderão a O mundo vive grandes técnicas romanescas, limita-se às
incorporá-la em maior propor- igrejas dos literatos puros e seu
ção ao seu cotidiano, ao seu uni- questões coletivas, e pequeno público fiel. O romance,
verso intelectual. Este é o desa- que é de origem burguesa, já gas-
fio: desenvolver uma efetiva edu- demanda dos escritores
tou muito tempo e muitas pági-
cação literária na sociedade do nas com dramas e dilemas parti-
século 21. uma intervenção à altura
culares, com as idiossincrasias de
nos debates atuais. O protagonistas problemáticos
Muitos debatem o problema do presos às ideologias de sua clas-
narrador na literatura atual, defen- se. O mundo vive grandes ques-
dendo um esgotamento do discur-
romance há muito vive uma
tões coletivas, e demanda dos es-
so onisciente e o uso da terceira
crise de linguagem. critores uma intervenção à altu-
pessoa como estratégias narrati- ra nos debates atuais. O roman-
vas. Essa questão parece estar bem
Paradoxalmente essa crise ce há muito vive uma crise de
resolvida em seus dois últimos li- linguagem, de foco e de identida-
vros de prosa, nos quais se tem a o mantém vivo. de. Paradoxalmente essa crise o
impressão de que o narrador-au- mantém vivo. Mas já se falou até
tor se cala para que as persona- na morte do romance. Então, qual
gens, até então secundárias no li- é a saída para uma literatura que
vro e também na literatura, levan- voz do narrador sertanejo canu-
se queira portadora de utilidade
tem voz e ocupem o proscênio. É dense, que conta uma outra ver-
e que possa ter permanência num
uma escolha consciente? O que são para a destruição do Arraial
mundo prático e ultra-realista,
ela diz do autor? do Belo Monte. A Guerra de Ca-
mantendo o interesse do leitor
Em seus romances, o escritor nudos continua, agora no campo
atual? Acredito na emergência do
russo Dostoieviski quebrou a he- da revisão dos registros históri-
romance híbrido, em que a mul-
gemonia da voz narrativa única, cos, no debate cultural, na rea-
tiplicidade, conforme uma das
absoluta, onisciente e onipoten- valiação dos fatos e na audição
propostas de Ítalo Calvino, seja
te. Mikhail Bakthin analisou sua das vozes que foram sufocadas.
sua característica de fundo e sua
narrativa, na qual contracenam Meu romance traz isso à tona.
força motriz. Um romance teci-
diversas vozes, definindo o ro- Trata-se, no limite, de um traba-
do com elementos de ficção, mas
mance polifônico. Com seus es- lho de inclusão de vozes cultu-
também de história, de memória,
tudos, Bakthin influenciou, ao rais que precisam intervir no
de crítica, do ensaio, do debate, e
lado de outros estudiosos, as no- processo da instauração de sen-
que seja capaz de amalgamar
vas teorias do narrador. Walter tidos, participando como sujei-
uma teia de relações de interesse
Benjamin também refletiu sobre tos da legitimação dos saberes
social mais amplo. O romance
o tema, demarcando a diferença coletivos.
precisa ser propositivo e instiga-
entre o narrador clássico, de con- dor, motivando o leitor a inter-
tos tradicionais, lendas e fábulas, Em O Pêndulo de Euclides você
vir e a se posicionar, em face de
e o narrador moderno, do roman- mistura ficção, dados históricos, um conteúdo engastado na rea-
ce do século 20. Hoje coexistem memória e ensaística. Esse hibri- lidade da história e da cultura.
as múltiplas possibilidades, for- dismo é uma das marcas da perma- Neste sentido, creio que o hibri-
mas e técnicas que os escritores nência do romance enquanto pos- dismo, a polifonia e a multiplici-
empregam visando a um certo sibilidade de renovação e possibi- dade sejam os elementos capazes
efeito ou resultado ficcional. No lidades criativas na contemporanei- de manter a permanência do ro-
meu caso, escolho meus temas, dade? mance na contemporaneidade
meus personagens e, consequen- Creio que sim. O romance de enquanto ficção, e também como
temente, meus narradores de for- cunho realista praticamente es- texto de utilidade intelectual e de
ma consciente. Procuro dar voz gotou seu alcance de interesse em interesse coletivo. A literatura é
a narradores pinçados de uma face das múltiplas formas de vei- de grande utilidade pública. I
experiência cultural, e que não culação imediata da realidade
costumavam ter a primazia da cotidiana. O romance fantasioso
palavra. Em Nhô Guimarães, uma tem seu lugar junto a um deter-
sertaneja de 80 anos detém a pa- minado segmento do público,
lavra e narra, de seu ponto de entretanto funciona mais como
*MESTRE EM TEORIA DA LITERATURA PELA
vista, o imaginário de um sertão forma de entretenimento, sem UFBA, AUTOR DOS LIVROS SUPERMERCADO DA
que sempre pertenceu aos ho- maiores consequências na opi- SOLIDÃO (2005), TODO SOL MAIS O ESPÍRITO SAN-
mens. Em O pêndulo de Euclides, o nião e na visão de mundo dos lei- TO (2007) E CORAÇÕES BLUES E SERPENTINAS

narrador erudito e a voz oficial tores. O romance puramente li- (2007) E EDITOR DA VERBO21

dos livros se calam para ouvir a terário, da palavra pela palavra, (WWW.VERBO21.COM.BR).

A UNIÃO João Pessoa, novembro de 2010 | 19


Faça no dente, sangue no olho

Inéditos de
Esquetes

E
PASSADO A LIMPO A CASA VERMELHA DA PRAÇA
eu a saúdo com uma mesura e ares No andar de cima, o herói rememora,
aristocráticos de um mendigo, e a tio Cecílio atravessou um ano inteiro
surpreendo fazendo-a possuidora num morre-não morre, que acabou se
de um vaso de hortênsias, impro- integrando de forma natural à rotina da
6contos

váveis nesta época do ano, subtraídas casa. A prima Tarsila chegou a dar uma
com astúcia e irresponsabilidade da es- festa de aniversário, com DJ e tudo, como
tufa do professor Novak - o alegre e brin- se ignorasse as dores do pai no quarto.
calhão Novak, dono de um hálito sem- No dia de sua morte, tio Cecílio ama-
pre denso, que perturba a molecada com nheceu recobrado, de faces coradas, ilu-
os sons que arranca de uma inseparável dindo que podia sarar a qualquer mo-
gaita de bolso -, gesto que, mais tarde, mento. Pediu que o sentassem na cama e
vai me valer um procedimento discipli- abrissem a janela do quarto. Tinha sido
nar interno, que, no fim, não terá o po- criado naquela casa, queria espiar pela
der de me afetar, pois já estarei de volta vez derradeira o casario trivial da pra-
ao Brasil, às minhas aulas na universi- ça, o sol deixando a paisagem em carne-
dade, uma rotina insossa e medíocre, viva.
bem diferente deste momento em que Lugar medonho, ele disse.
oferto a ela o vaso com hortênsias, e a E deu sua risada cava, a última, por
felicidade dela é tamanha que parece ter sinal, antes de encerrar o expediente nes-
o poder de tirar de seu esconderijo o sol te mundo.
entre nuvens, fazendo-o brilhar num dia
que, em recordações da velhice, será cha- CANTATA
mado de "inesquecível". Do nada, no meio da rua, ele a puxa
para si e a beija demorada e apaixona-
damente, a ponto de chamar a atenção
transeunte. Quando terminam, ela c

20 | João Pessoa, novembro de 2010 A UNIÃO


Marçal Aquino belos, controlando os movi-
mentos, de modo a acelerar
quando necessário ou diminuir
quando prudente, praticava en-
fim todos os trâmites que fazem
c se afasta dele. Está com o rosto do felatio um momento muito
afogueado e, mais pela surpresa, prazeroso para varão e fêmea,
quase sem fôlego. Então solta uma tudo como nos velhos tempos,
exclamação e uma pergunta: quando varão e fêmea ainda não
- Nossa! A que devemos isso? eram inimigos lutando dentro
- Quis aumentar minha fre- da mesma trincheira.
qüência cardíaca. Dizem que é bom
pro coração. GAZA
Ela ri. Ele completa: Que raio de língua, afinal,
falavam aqueles dois
- Pra durar mais tempo ao seu
no cais, de resto deserto
lado no mundo.
àquela hora da noite?
Daí ela abre um sorriso e os bra-
Decerto algo arcaico,
ços e caminha em minha direção. PERSONAS
cingalês ou aramaico.
E me encaixo naquele abraço de um O herói muitas vezes se apre-
O fato é que um deles,
jeito que nunca tinha me encaixa- senta com nomes fictícios.
o gordinho,
do em lugar nenhum no mundo. Nogueira, ao seu dispor.
lembrava demais
Como se tivesse nascido ali. Oi, eu sou Carlos Heitor.
nosso primo Ahmed,
Dr. Vlavianos, acabei de chegar
que se explodiu
FILÉ DE ROSAS do Chipre.
num mercadinho marroquino
Quando postos frente a frente, os Um dos seus personagens favo-
no Dia do Perdão.
irmãos Lucena negam. Mas é certo ritos é Leon, o ruivo e pulguento
que a tenra Jaqueline e seu sumário Leon, aquele que nunca mais se
O herói termina de ler o poe-
biquíni foram vistos pela última recuperou de uma temporada em
ma de seu pai. Reina na platéia
vez na piscina da cobertura em que Paris, o homem com mais ho-
um silêncio de ouvir avião pou-
os dois vivem numa espécie de ca- ras de sebos daquela parte do
sando em outra cidade.
samento consangüíneo. Disse Dur- país.
val Lucena, com a empáfia que lhe Nessas ocasiões, Geórgia vira
RECADO
é peculiar, que tudo não passa de Myrien, uma doce corista de
Me disseram que você viria,
intriga de invejosos e que, se as coi- franjinha e olhos rebuscados. E
mas no transcorrer da noite
sas continuarem nesse pé, não terá ela capricha no papel - chega a
apenas o vento chegou até mim.
outra (sic) alternativa a não ser fe- usar lentes coloridas.
E, no vento, aquele inconfundí-
char a fábrica e mudar-se de vez
vel odor - urina e medo - das
para Nova York, onde já passa boa SONHEI QUE VOCÊ ME
guerras perdidas. I
parte do ano. Ao que Marli Lucena, CHUPAVA CONTRARIADA
que recentemente tosou o cabelão Sonhei noite dessas que você
que levava cor-de-rosa havia anos me chupava contrariada. Con-
e doou para um leilão em benefício trariada porque agora faz par-
da Casa do Pequeno Portador de te de um grupo pós-feminista -
Câncer, acrescentou: gente que não umas desocupadas -, para quem
foi convidada para nossa festa ha- a felação é um inaceitável ato de ** ROTEIRISTA DE CINEMA E UM DOS MAIS IM-

vaiana na cobertura, sobre a qual submissão feminina. Lembro PORTANTES ESCRITORES BRASILEIROS, AUTOR

até um jornal do Rio fez menção. O que, no sonho, você usava ca- DE VÁRIOS LIVROS ENTRE OS QUAIS FAROESTES

fato é que da bela Jaqueline e de seu belos compridos, como nos ve-
exíguo biquíni não se teve mais lhos tempos. E, como nos velhos ** ILUSTRAÇÃO COM OBRAS DE AMÍLCAR DE

notícia - a não ser aqui. tempos, eu a segurava pelos ca- CASTRO

A UNIÃO João Pessoa, novembro de 2010 | 21


POESIA

5 POEMAS ESCOLHIDOS
POR ANDRÉ RICARDO AGUIAR

A tartaruga ciclista
tem um quê de pedra à flor veloz
que não se atira. colhe o tempo
(pedal)
(eremita em sua caverna pé ante perigo
sem idéia de Platão) no risco de dar consigo

aciona sua casa centauro de rodas e aros,


por controle remoto meio homem, meio
- quando se pilha de transporte
em movimento
a pena da bicicleta
sempre em sua direção escreve ruas
corre o tempo. até que uma esquina
engatilha o ciclista
e dispara -
Icaro
a pólvora do instante
Quem fere o ciclo da vida
o pássaro
fere tudo pássaro
o vôo e passageiro.

fere
a si mesmo
(in)tenso
Ícaro

o vôo
é o alicerce do pássaro
(não o contrário)

o vôo
- imagina-se -
é mais leve que o ar.

22 | João Pessoa, novembro de 2010 A UNIÃO


POESIA

Loa para um gato Os argonautas


O gato, ele é todo uma antena, Os mortos com seus sapatos ébrios.
um clérigo de patas, uma ponte Quem os detém? Beberam os licores
qualquer para atingir o nunca da perda e andam por corredores
de esquivez - todo ele, mil gatos. com suas certezas de pó, desafagos,
suas bíblias da inércia.
Todo ele parte de si e nenhuma, Parecem dizer algo, anúncio de verme.
fácil de perder-se na sombra, Às vezes, cismam e por instantes
mover-se felinamente para o mistério folheiam o vento, habitam
do quarto, que mal respiramos. uma fotografia, pesam uma lágrima.
Não os tivessem tocado, e o batismo
Não consigo sequer tocá-lo, geral ou a relva inconcebível
inútil é a ilha do seu nome. voltariam a arquivá-los
Sua filosofia jamais suportaria numa lua de esquecimento.
os gestos bruscos, as fomes.

Não o temos. Um gato tem-nos.


E sua leitura é sermos lidos
por ele, sermos menos que uma
idéia felina, um chamado.

O acento interrogativo do rabo


diz que o bicho é uma pergunta
que não quer resposta. Seus olhos
de desdém são segundas garras.

Deixá-lo ser. Respira-se melhor o ar


volátil, enquanto a lenda estremece.
Nem roca nem fuso no íntimo do lar.
Tece-se aqui um gato.

A UNIÃO João Pessoa, novembro de 2010 | 23


P O E MAS NOVOS

3 Poemas de Eunice Boreal


Plantão Homo sabeis
E se em algum longo dia O arquétipo paleolítico
Domares a tua ignorância do Prometeu liberto
Não te iludas com nada grita ao homem
Pois tudo será pouco confuso e desperto
E nada pouco te bastará profusões do alimento
À sombra da inquietude que colore na linha tempo
Na caverna da não plenitude a profissão do mistério.
Que a memória ré, velará.
***
**

A vida é uma questão dos segundos


Além dos conjuntos
Aquém do bem e do mal
Cantam complexos distintos
Da velha ordem dos famintos
Para a retaguarda universal.

**

Alteridade
E pelo sopro dos heterônimos,
Com dança brava e interativa.
Eis que nasce o Eu.

Nascedouro de universos
Espécie rarificada de perigos
Calculo múltiplo de sentidos.

**

Contemporaneidade
Hoje medito a goles de champanhe
ao celebrar a vida de Zeus e Métis
pois vibro ao ver Galileu e Téspis
Dizendo: Cronos, nos acompanhe! ** EUNICE BOREAL É ARTISTA MULTIMÍDIA.

PUBLICA POEMAS EM PROCESSO NO BLOG:

** WWW.EUNASCE.BLOGSPOT.COM

24 | João Pessoa, novembro de 2010 A UNIÃO


Um novo Pai
Cláudio Portella*

scuta-se do elevador. O edifício inteiro

E escuta. É um bom tipo meu velho / que


anda só e carregando / sua tristeza
infinita / de tanto seguir andando. Tudo
aconteceu naquele fatídico ano. O ano
6conto

da morte de Altemar. Sua cozinheira


contou para minha. Desde então, e não
sei qual a razão, passei a nutrir um
carisma por aquela personagem. Sim!
Aos meus olhos, aquele homem calvo,
baixo, magro, com o rosto talhado qual
uma gravação xilográfica, era uma
personagem, uma personagem dos
romances de Lúcio Cardoso. Eu o
estudo desde longe / porque somos
diferentes / ele cresceu com os tempos
/ do respeito e dos mais crentes / velho
meu querido velho. Altemar morreu. E
logo depois a mulher com quem aquela
personagem enigmática viveu
quarenta anos. Nos encontrávamos na
portaria, no elevador. Ele sempre
sisudo. Calado. Algumas vezes eu
puxava conversa. Em vão. Só
cumprimentava com a cabeça. Jamais
uma palavra. Cinco anos morando no
mesmo prédio e eu não conhecia a voz
daquela personagem. Fôra resoluto. As
palavras tornaram-se meras pinturas
abstratas emolduradas numa galeria
deserta. Dez anos sem pronunciar
palavra alguma. Sua mulher morrera.
Falar com quem? Não tiveram filhos.
O cantor predileto morreu. Falar pra
quê? Agora caminha lento / como
perdoando o tempo / eu sou teu sangue
meu velho / teu silêncio e o teu tempo.
E justamente hoje. Dia dos pais. Essa
canção latina, "Mi Viejo", na voz de
Altemar Dutra invade o prédio. Não
conheci meu pai. Eu sou o teu sangue
meu velho / teu silêncio e o teu tempo.
Não me aguentei. Subi ao 803. A porta
está aberta. Entro. Sentado junto ao
ESCRITOR, POETA E RESENHISTA LITERÁRIO. AUTOR DOS LIVROS BINGO!
Gradiente antigo a personagem olha
(2003), CRACK (2009), FODALEZA.COM (2009) E AS VÍSCERAS (2010). É O ANTO-
fixamente a bolacha preta rodar. Sentei
LOGISTA DE MELHORES POEMAS PATATIVA DO ASSARÉ (2006). TAMBÉM É AU-
ao seu lado. Ele olhou-me fundo. E eu
TOR DE CEGO ADERALDO (2010).
senti-me ao lado de um novo pai que
nunca tive. Velho meu querido velho...

A UNIÃO João Pessoa, novembro de 2010 | 25


Délibáb ou
uma miragem do Sul
Janaína Guedes Milanez*

m agosto último, o compositor gaúcho

E Vitor Ramil visitou João Pessoa para o lan-


çamento do seu novo trabalho, Délibáb.
Contrariando o samba do álbum anteri-
or, Satolep Sambatown (2007), justificado tal-
6música

vez pela presença do percussionista Mar-


cos Suzano, com quem divide também a
produção do cd, Ramil retoma a atmosfe-
ra gauchesca do estranho Ramilonga - a es-
tética do frio (1997), tão distante dos nossos
ouvidos nordestinos mais acostumados
ao som do pandeiro de Suzano.
Aquele homem cinzento, de cabelos e
barbas grisalhos, que quase não sorria, VITOR RAMIL TRAZ O SUL GAÚCHO E SUL ARGENTINO EM CD
transpôs aos olhos de quem estava na pra-
ça um Délibáb de um Sul sem fronteiras: o
nosso Sul, do poeta gaúcho João da Cunha
Vargas, mas também o Sul argentino do Além das duas primeiras canções (frag-
escritor Jorge Luis Borges: "me acotovelo mentos transcritos acima), destacam-se
no joelho/ me sento sobre o garrão/ ao pé "Milonga de los morenos" (JLB), cuja voz
do fogo de chão/ vou repassando a memó- divide com o caballero de fina estampa,
ria/ e não encontro na história/ quem te Caetano Veloso, e "Deixando o pago" (JCV),
inventou chimarrão" ("Chimarrão", João para citar apenas duas. Tarefa difícil (tam-
da Cunha Vargas); "pienso que le gusta- bém merecem destaque "Mango" e "Milon-
ría/ saber que hoy anda su historia/ em ga para los orientales"). Por mais que se
uma milonga. El tempo/ es olvido y es tente recompor aqui os poemas em texto
memoria" ("Milonga de albornoz", Jorge nada dá conta da sonoridade magistral
Luis Borges). da voz e do violão de Vitor e do violão do
Entre uma milonga e outra (ora de sa- músico argentino Carlos Moscardini, que
bor lírico, ora épico), Ramil compõe a pai- ganham destaque no documentário do
sagem sulina da memória em Délibáb, DVD, anexo ao cd. Nele, pode-se ver mais
quando musica poemas de Borges e ver- de perto este homem "discípulo daqueles
sos de Vargas: "falam muito no destino/ para quem, na descrição de Paul Valéry, o
até nem sei se acredito/ eu fui criado soli- tempo não conta; aqueles que se dedicam
to/ mas sempre bem prevenido/ índio do a uma ética da forma, que leva ao traba-
queixo torcido/ que se amansou na experi- lho infinito" (epígrafe de A estética do frio).
ência/ eu vou voltar pra querência/ lugar A definição para Délibáb aparece no lado
onde fui parido" ("Deixando o pago", João esquerdo do encarte do CD cinza escuro
da Cunha Vargas). De origem africana de mesmo nome, nas palavras de Ernesto
(milonga é plural de mulonga, que signifi- Sábato: "tipo de espelhismo [que] trans-
ca "palavra", como explica o próprio Ra- porta paisagens muito distantes a hori-
mil em sua Estética do frio), a milonga con- zontes quase desérticos, reproduzindo
siste em uma "música platina de ritmo ante os olhos maravilhados do especta-
dolente, cantada com acompanhamento dor, em dias de calor, o desenvolvimento
de guitarra ou violão", muito apropriada, de cenas distantes". Trata-se de um fenô-
portanto, para o compositor: "Que outra, meno único nas planícies húngaras, seme-
se não essa forma, escolheria o gaúcho so- lhantes às planícies do Sul. Como um re-
litário da minha imagem diante daquela flexo, um fragmento de Satolep (romance
fria vastidão de campo e céu? Que outra de Ramil lançado em 2008, anagrama de
forma seria tão apropriada à nitidez, aos Pelotas, sua cidade natal) enfeita o lado
silêncios, ao vazio?", diz ele em seu livro A direito do mesmo encarte: "Esta locomoti-
estética do frio. va e este vagão que vocês veem, tão c

26 | João Pessoa, novembro de 2010 A UNIÃO


Convidado para participar de nal; diferente, separado do Brasil.

DIVULGAÇÃO
uma mesa sobre "Literatura e adap- Deslocado, o compositor está ci-
tações", Ramil pouco discute a ques- ente da pouca contribuição do gaú-
tão - a não ser quando fala da ver- cho para a constituição de uma de-
são que fez para a música "Gotta terminada brasilidade, muito mais
serve somebody", de Bob Dylan -, próximo que está dos hermanos vi-
mas toca num ponto fundamental: zinhos argentinos e uruguaios. Por
no caso da canção de Dylan, a ideia este viés, como artista, reclama ain-
era recriar a sensação com outras da das fronteiras menos diluídas
palavras e expressões para que fos- entre tradição e modernidade para
se significativa, principalmente, os compositores do Sul, por muitas
para o compositor. Nem diabo nem vezes saturados de uma visão regio-
deus: Ramil prefere servir-se a si nalista estereotipada: "Enquanto os
mesmo. nordestinos vinham há anos se re-
Você pode ser rei no país do futebol novando e renovando a própria
Pode ser viciado em bingo e nunca música brasileira graças à sua sem-
ver a luz do sol cerimônia para com os próprios mi-
Você pode ser um mago e vender tos, à sua capacidade de manter viva
livros de montão a tradição popular, os rio-granden-
Pode ser uma socialite, enriquecer ses, devido a muito patrulhamento
vendendo pão por parte de uma mentalidade pro-
tecionista disseminada, em raras
Mas um dia vai servir a alguém, é oportunidades, conseguiam desvin-
Um dia vai servir a alguém cular o regionalismo de seu caráter
Seja ao diabo folclórico, de resgate cultural, de
Ou seja a Deus culto".
c nítidos, a correr neste horizonte Um dia você vai servir a alguém Qual a saída? A busca de si mes-
desértico, não estão aqui onde pare- ("Um dia você vai ser vir a al- mo, de sua identidade como artista
cem estar, mas a pelo menos uns guém", versão de Ramil para a mú- que ao mesmo tempo o conecta e
cem quilômetros de distância. Acon- sica "Gotta serve somebody", de Bob distingue dos compositores urba-
tece em dias de muito calor". Dylan, Tambong, 2000) nos de sua geração e finalmente do
Cd nas mãos, vão se consubstan- Este pode ser um caminho para próprio Brasil. A sua estética do frio
ciando aos olhos camadas de signi- entendermos a sua Estética do frio. - e aqui não estamos falando apenas
ficação de uma estética do frio. Ima- O livro foi resultado de uma confe- do livro, mas de toda sua obra como
gem e palavra. Poesia e prosa. Lite- rência apresentada em junho de compositor e escritor de ficção - cons-
ratura e canção. Jorge Luis Borges e 2003, em Genebra, Suíça, como par- titui em uma tentativa de revisão
João da Cunha Vargas. Erudito e te da programação Porto Alegre, un da imagem estereotipada do gaúcho
popular. Argentina e Brasil (Buenos autre Brésil. Para chegar naquilo que e do Brasil, país que compreende
Aires também pode ser Pelotas, Sa- diz não ser um projeto estético for- tantos espaços distintos, contudo
tolep). Mas que Brasil? mal, Ramil descreve uma situação permeados de pontos de intersec-
vivenciada nos primeiros anos de ções. Nas palavras do compositor/
A estética do frio artista, no Rio de Janeiro, cidade- escritor, a estética do frio, "reação a
A presença do compositor na ci- metáfora-clichê do Brasil tropical. um estado de coisas em tudo para-
dade foi importante para refazer- Em um junho muito quente, o com- lisante (...), é uma viagem cujo obje-
mos o caminho percorrido de Ra- positor assistia seminu, tomando tivo é a própria viagem". I
milonga até Délibáb e finalmente seu chimarrão, à transmissão de
compreendermos a estética do frio. um carnaval fora de época nordes-
tino, em um telejornal local. Em se-
Chove na tarde fria de Porto Alegre guida, o mesmo telejornal mostra a
Trago sozinho o verde do chimarrão chegada de um inverno rigoroso no
* REFERÊNCIAS BIBIODISCOGRÁFICAS:
Olho o cotidiano, sei que vou embora Rio Grande do Sul, digno de "clima
RAMIL, VITOR. A ESTÉTICA DO FRIO. CONFERÊN-
Nunca mais, nunca mais europeu". Ramil descreve o que se
CIA EM GENEBRA. PORTO ALEGRE: SATOLEP,
seguiu: "Aquilo tudo causou em mim
2004.
Chega em ondas a música da cidade um forte estranhamento. Eu me sen-
RAMIL, VITOR. DÉLIBÁB: MILONGA DE LA
Também eu me transformo ti isolado, distante. Não do Rio Gran- MILONGA. DISPONÍVEL EM: HTTP://
numa canção de do Sul, que estava mesmo muito WWW.VITORRAMIL. COM.BR/. ACESSO EM
Ares de milonga vão e me carregam longe dali, mas distante de Copaca- AGOSTO DE 2010.
Por aí, por aí bana, do Rio de Janeiro, do centro __________________________________________________________
do país. Pela primeira vez eu me PROFESSORA DE LITERATURA E MESTRE EM
("Ramilonga", Ramilonga, a estética sentia um estranho, um estrangei- LITERATURA BRASILEIRA PELA UFPB
do frio, 1997) ro em meu próprio território nacio-

A UNIÃO João Pessoa, agosto de 2010 | 27


Thelma & Louise
à luz de
shakespeare
Maria das Vitórias de Lima Rocha*

helma & Louise é um filme de Ridley Scott

T de 1991, com um elenco fabuloso que


inclui Susan Sarandon (Louise), Geena
Davis (Thelma), Harvey Keitel (o polici-
al sensível Hal), Brad Pitt (J. D. , um jo-
6cinema

vem e lindo cowboy mau caráter), Mi-


chael Madsen (Jimmy, namorado inde-
ciso de Louise), Christopher Mc Donald
(o marido machão insensível de Thel-
ma), dentre outros, igualmente compe-
tentes em seus papéis.
Desde que o vi pela primeira vez que
tenho vontade de comentar alguns as-
pectos do filme que me chamaram a
atenção. É um road movie, como Bonnie
and Clyde, Easy Rider e tantos outros, mas
que inova o gênero, predominantemen-
te masculino, por ser protagonizado por
duas mulheres jovens e bonitas.
Louise é uma garçonete com uma lhe um guarda-roupa mais sóbrio, sem
vida organizada e repetitiva, que tem ressaltar suas formas femininas. Ela
um namorado que nunca se decide se a sabe que o mundo em que estão pene-
ama de verdade. Thelma é uma jovem trando - a estrada - é um terreno mar-
dona de casa casada com um machão cadamente masculino, no qual as mu-
insensível - um bully, para usar um ter- lheres devem pisar com cautela. As
mo tão na moda em nossos dias - que a heroínas de Shakespeare, mesmo as
trata mal e a oprime. Não é de estra- mais jovens e inexperientes sabem dis-
nhar que as duas sejam amigas e pulem so. Refiro-me à personagem Julia da
com gosto numa aventura de fim de se- peça Os dois Cavalheiros de Verona, cujo
mana, a princípio inocente, mas que as namorado, Proteus, ela deseja seguir
conduz a uma sucessão de atos falhos até Milão. Mas ela sabe que as estradas
que culminam na morte de ambas. são hostis para uma jovem desacom-
O primeiro desses atos falhos decor- panhada, sem proteção e veste um dis-
re da inexperiência de Thelma, que quer farce masculino para seguir seu desti-
sorver cada minuto daquela aventura no. O mesmo faz Viola, a jovem prota-
como se fosse o último da sua vida (o gonista da peça Noite de Reis que, vítima
que acaba sendo). Thelma prepara uma de um naufrágio, adota trajes masculi-
bagagem para uma longa viagem, não nos antes de se dirigir à corte de Orsi-
para um simples fim de semana. A rou- no, o duque de Ilíria.
pa de viagem que escolhe é também ina- A prudência dessas jovens protago-
propriada: vestidinho feminino de ve- nistas é o que falta a Thelma. Guiada
rão, de alcinha, que realça a sua femini- unicamente pelo desejo e sofreguidão de
lidade. Sua companheira de viagem, viver tudo que nunca vivera antes, na-
Louise, mais velha e experiente, esco- queles dois dias longe do marido c

28 | João Pessoa, novembro de 2010 A UNIÃO


DIVULGAÇÃO
sólito, absurdo, terrificante. Tan-
to se perde como se encontra, ao
mesmo tempo que se reafirma e
modifica. No curso da viagem há
sempre alguma transfiguração,
de tal modo que aquele que parte
não é nunca o mesmo que regres-
sa. (Enigmas da modernidade - mundo,
2000, p. 31)
Depois que o freio é liberado a
tragédia é desencadeada em rit-
mo acelerado. Alguma coisa mu-
dou e essa mudança é iconizada,
mais uma vez através do vestuá-
rio das personagens. Louise fica
cada vez mais descuidada com a
aparência, marcas de sujeira apa-
recem em sua blusa branca e Thel-
ma abandona suas roupas femi-
ninas. Agora veste jeans e casaco
(que Louise vestira no início da
jornada). Os anéis e outros adere-
ços femininos tornam-se desne-
cessários, redundantes mesmo e
são simbolicamente trocados por
um velho chapéu de cowboy, bem
mais útil dentro do novo contex-
ATRIZES SUSAN SARANDON (LOUISE), GEENA DAVIS (THELMA) EM ROAD MOVIE FEMININO to. O batom também não tem
mais serventia e é descartado. As
pequenas diferenças que causa-
c opressor, arrisca sua vida e a ro que tinham e que as levaria
da sua amiga Thelma. Resta a até o México e possivelmente até ram alguns atritos entre as duas
Louise o papel de protetora e a liberdade. no início da jornada estão agora
quando tenta puxar o freio de Mas Thelma está só no começo nivelados e a parceria é selada e
Louise esta se irrita e diz que ela da sua aprendizagem; a experiên- representada na cena final pelas
está agindo igual ao marido. cia com o cowboy não fora de mãos dadas que as duas erguem
Logo de início Thelma cai na ar- todo vã: ela aprendera com ele para o alto quando pulam para o
madilha de um outro machão que uma técnica de assalto que logo abismo.
a tira para dançar e a convida põe em prática. Aquela Thelma É próprio da tragédia causar
para tomar ar fresco fora do bar. que saíra de casa guarda poucas pity and horror, Peter Szondi (Ensaio
Isto resulta numa tentativa de es- semelhanças com a nova Thelma, dobre o Trágico, Rio de Janeiro: Jor-
tupro que só não se consuma por- decidida e desafiadora. A esta al- ge Zahar Editor, 2000, p.23) prefe-
que Louise intervém atirando no tura, acho pertinente citar Octa- re fear a horror, mas é esta mesma a
cara. Neste momento atingimos vio Ianni, que analisa a viagem sensação que nos fica após assis-
o point of no return da trama e o que como uma metáfora e diz: tirmos Thelma & Louise, uma tra-
era para ser diversão vira tragé- À medida que viaja, o viajante gédia moderna mas não menos
dia. Não é mais uma viagem ino- se desenraiza, solta, liberta. Pode trágica que as de antigamente. I
cente de fim de semana. É uma lançar-se pelos caminhos e pela
fuga desenfreada. imaginação, atravessar frontei-
Mas Thelma ainda não apren- ras e dissolver barreiras, inven-
deu. Logo em seguida se envol- tar diferenças e imaginar simila-
ve com um cowboy hitch-hiker ridades. A sua imaginação voa
espertalhão que lhe dá o prazer longe, defronta-se como o desco- *PROFESSORA DE LITERATURA DA UEPB, AUTO-

que ela esperava conseguir na nhecido, que pode ser exótico, sur- RA DOS LIVROS DE POEMAS ANOS BISSEXTOS E

estrada, mas leva todo o dinhei- preendente, maravilhoso, ou in- FÚCSIA

A UNIÃO João Pessoa, novembro de 2010 | 29


Chico Viana:
Cronista da Palavra
Hildeberto Barbosa Filho*

screver crônica é saber lidar com a

E trivialidade; ir ao rés do chão, como diz


Antonio Candido, para daí extrair
algum ingrediente de beleza e
perenidade que as coisas e os eventos do
6literatura

dia a dia podem conter. No seu ar de


gênero literário quase livre e todo aberto,
à crônica não escapa, ora ao contato da
chama lírica de um poema com toda a
sinuosidade e ambivalência de
percepção que lhe é peculiar, ora ao
movimento típico de um relato que a faz
irmanar-se ao conto, ou mesmo, em
CRONISTA-LEITOR, CHICO TRAZ PARA TEXTO LEITURAS QUE FEZ
certas investidas, ao apelo digressivo de
uma peça de ideias, de uma reflexão
acerca das miudezas e nadas que tecem da correnteza lírica, naquele, o impulso
e destecem a crosta do cotidiano. reflexivo, mesclado ao senso de humor, às
Gênero-desafio, não é qualquer vezes tocado pelo ácido da ironia, conforma
escritor que, no esgrimir da palavra os limites da análise e da interpretação que
diária, desataviada e comum, sabe se modulam em cada peça. E assim a crônica
contornar os perigos e as facilidades que se realiza no seu à vontade, ao mesmo tempo
rondam o seu entorno estilístico, a sua ordenado e rigoroso.
autonomia textual, o seu "claro enigma" Tais considerações teóricas me ocorrem
sempre renovável. A marca do cronista, porque ando lendo e relendo certas crônicas
me parece, reside no olhar, na maneira de Chico Viana, pinçadas de A Idade do Bobo
com que contempla e capta a banalidade (Ideia, 2010). Chico Viana que não é nenhum
das ocorrências, a singularidade de estreante, pois consolida seu nome, no rol
pessoas e fatos, objetos e imagens que dos cronistas da casa, com títulos como De
povoam o contínuo tecido da vida. Se Mãos Atadas (1977), Astronauta sem Luar (1992)
nesse cronista o olhar se elabora no fluxo e A Rosa Fenecida (2002). c

RODAPÉ

O NARRADOR CANALHA DE MIRISOLA (1)

Nenhuma reputação se sustenta diante do incorreto politicamente... São muitos os


narrador de Marcelo Mirisola. Em Animais em termos. A linguagem intempestiva dele
extinção, o mais recente romance do escritor chama bastante atenção, sendo o
paulista, o pessoal do hip-hop, os tipos palavrão uma de suas marcas - mas
mundanos da Praça Roosevelt e até um também o termo erudito, a apreciação
escritor ilustre como Jorge Luis Borges são teórica ou conceitual (ao modo dele!). Um
cutucados, desautorizados. Como definir o erotismo bizarro também é marca da
narrador de Animais em extinção? Canalha, narrativa, em que o escatológico brutaliza
mesquinho, preconceituoso (profundamente!), e fere o "bom gosto" literário. O (ótimo)
desabusado, desmedido, atirado, insensato, cronista de costumes aparece em vários

30| João Pessoa, novembro de 2010 A UNIÃO


c Pois bem: em Idade do Bobo
Em Idade do Bobo sobeja autor, compondo, fragmentária
sobeja o humor de raiz filosófica, mas substancialmente, a
num viés que diria machadiano. o humor de raiz filosófica. formação daquele olhar com o qual
Aquele humor que, sem dispensar, dialoga com o outro, sempre
em algum momento, o halo lírico, Aquele humor que, sem tomado pela presença do avesso,
tende, no entanto, a privilegiar o do inesperado, do surpreendente
recorte crítico e irônico face aos dispensar o halo lírico, e do risível...
chamados das coisas da vida. A Qualquer texto literário,
esse humor se associam o sentido tende, no entanto, a assegura Roland Barthes, em sua
de observação e a capacidade de famosa Aula, contempla uma
reflexão, culminando num registro privilegiar o recorte crítico mimesis, uma semiose e uma
aforismático comprometido, sem mathesis, isto é, uma
pedantismo, com a desconstrução: representação da realidade, uma
das ideias, das frases, das operação signica e um conjunto de
palavras... Veja-se, a propósito, o vida. Uma crônica, por exemplo, saberes. Se é assim, a crônica vale
título da coletânea e atente-se, em como "Conversa com Antonio sobretudo pelo conjunto de
particular, para uma série de Maria", seria simplesmente saberes, pela mathesis que a
crônicas em que o sortilégio da impossível se o autor não compõe. Em outros termos: a
palavra, suas pertinências convivesse, em intimidade crônica é o gênero típico da
inventivas e seus clichês aconchegante, com o humor e o sabedoria, de uma sabedoria
saturados, convoca o jogo do lirismo do cronista "carioca"; não difusa e assistemática, mas que
pensamento, fazendo convergir a convivesse, digo, pela experiência por isso mesmo deve vincar e
matéria lúdica com a sabedoria de leitura desse que, ao lado de um perdurar na alma do leitor.
lingüística. "Palavreando", Fernando Sabino, de um Paulo "Divino Vinho", "O Primeiro
"Traição", "O Poder da Frase", Mendes Campos e, Gibi", "Plástica e Bom Senso" , "O
"Alienação Gramatical", "O Sol principalmente, de um Rubem Filme da Vida", "O Beijo de
Nasceu", "Solecismo Amoroso" e "A Braga, é responsável pelo Maradona" e "A Idade do Bobo",
Precisão dos Clichês" constituem refinamento e leveza da crônica entre tantas outras, exibem, na sua
todo um repositório a sinalizar brasileira. singeleza e gratuidade, esse sabor
para o velho professor de Mesmo nas peças mais do saber como característica
português que se esconde por trás diretamente tocadas pelo apelo da essencial. Por isso, observa muito
do escritor. Nesse sentido, diria existência, pelos filamentos bem Mercedes Cavalcanti, em
que Chico Viana é sobretudo um imprevisíveis da rotina, pelo lúcido prefácio: "A presa de Chico
cronista da palavra, mesmo que tal secreto poder das coisas factíveis, Viana transcende o invólucro
imperativo não elida decerto o penso que brota, no desenho carnal. Vai ao âmago do ser, à sua
cronista da vida. seguro do escritor, a figura busca desesperada por dar sentido
Mas Chico Viana é também o imperceptível e presente de um à existência".
I
cronista-leitor. Professor de leitor inveterado. Leitor de
literatura e respeitável ensaísta Machado, leitor de Eça, leitor de *POETA, CRÍTICO LITERÁRIO, PROFESSOR DA
literário, faz emergir, em suas Sartre. Eis um paideuma que UFPB, AUTOR DE VÁRIOS LIVROS DE POEMAS E
páginas, o substrato das múltiplas recorre de modo subterrâneo, ENSAIOS, A EXEMPLO DE ARRECIFES E LAJEDOS
leituras que efetuou ao longo da fortalecendo o giro reflexivo do (2001)

Rinaldo de Fernandes*

capítulos e andamentos do livro - e aí são aliás, no que diz respeito sobretudo à linguagem,
vários os tipos e elementos da cultura encontro uma possível matriz do personagem
contemporânea que são ironizados (e até do romance. Há entre eles diferenças de classe
barbarizados). Mas ainda me pergunto sobre - o personagem de Fonseca tem origem em
quem é esse narrador? Que tipo ele quer estratos pobres da sociedade; o de Mirisola é,
significar em nossa sociedade? reitere-se, de classe média. Mas isto não impede
Aparentemente, o urbano, de classe média o débito do escritor paulista com a ficção brutal
sem perspectiva, buscando sentido na do autor de Feliz ano novo.
violência (trata-se de um narrador muito
violento!). Um tipo sádico, de violência que *ESCRITOR E PROFESSOR DE LITERATURA DA UFPB. JÁ PUBLICOU LIVROS
lembra o Cobrador de Rubem Fonseca - onde, DE CONTOS E O ROMANCE RITA NO POMAR (2008)

A UNIÃO João Pessoa, novembro de 2010 | 31


“PAS DE DEUX" MASCULINO DO CURTA DICKSON´S EXPERIMENTAL SOUND FILM (1894) DADO PELOS ESTUDIOSOS DO ASSUNTO...

Quando o amor não


ousava dizer seu nome
tinha grande espaço na tela. Como se

U
João Batista de Brito*
sabe, na Hollywood clássica, um bei-
m desaguadouro inevitável para a jo tinha duração marcada e uma
pulsão homoerótica tem sido o cine- cama de casal era considerada uma
ma. Desde a queda universal da cen- imagem inadequada.
6cinema

sura, nos anos setenta, um número Uma maneira interessante de cons-


cada vez maior de cineastas vem tatar a diferença entre as duas meta-
abordando o tema, de forma cada vez des do século XX, seria cotejar dois
mais ousada. Os Oscar concedidos a filmes que trataram do mesmo fato
O segredo de Brokeback Mountain (2005) histórico, por exemplo, a vida de Ale-
são apenas um sintoma da normati- xandre, o rei da Macedônia, que, além
zação do assunto. de grande conquistador de impérios,
Mas, a coisa não foi sempre assim. também conquistava homens. Com
Houve um tempo em que homosse- Colin Farrell no papel-título, a ver-
xualidade, na tela, era tabu, e este en- são recente de Oliver Stone (Alexan-
saio convida o leitor a se reportar à dre, 2004) nos mostra a vida homos-
primeira metade do século XX, quan- sexual do rei macedônio sem disfar-
do, institucionalizada ou não, a cen- ces; a versão de Robert Rossen de
sura terminantemente proibia qual- 1957, Alexandre, o grande, passa longe
quer manifestação cinematográfica do assunto e o rei, encarnado por um
de amor entre duas pessoas do mes- viril Richard Burton, é, neste filme,
mo sexo. tão machão quanto o que temos nos
Bem entendido, cineastas homosse- livros didáticos de história.
xuais, ou atores, atrizes, roteiristas, Bem, mas já é tempo de perguntar:
fotógrafos, sempre houve, porém, as quando foi mesmo que a homossexu-
suas experiências amorosas ficavam alidade foi à tela pela primeira vez?
nos bastidores e, dificilmente, iam às Qual foi a produção corajosa que
telas. E se iam, era de modo tão vela- inaugurou o tema no cinema?
do que ninguém notava. Até porque A questão é controvertida e o jeito é
mesmo o erotismo heterossexual não ir por etapas. c

32 | João Pessoa, novembro de 2010 A UNIÃO


DIVULGAÇÃO

... COMO A PRIMEIRA MANIFESTAÇÃO HOMOSSEXUAL NA HISTÓRIA DO CINEMA

c Comecemos com o cinema Bem, mas já é tempo de no segundo, Cary Grant se ves-
primitivo, ainda no século XIX, te de mulher. O que se nota é
um pouco antes do cinemató- perguntar: quando foi mesmo que, influenciadas pelo que co-
grafo dos irmãos Lumière, nhecem das vidas privadas de
quando o inventor americano que a homossexualidade Garbo e Grant, essas pessoas
Thomas Edison e seu sócio estão atribuindo aos persona-
W.K.L. Dickson tentavam regis- foi à tela pela primeira vez? gens, características dos seus
trar imagem e som, com um respectivos atores.
aparelho chamado de Kineto- Qual foi a produção corajosa É fato que em Marrocos (1930)
phone. O experimento de sin- Marlene Dietrich faz mais do
cronizar som e imagem dentro que inaugurou o tema que se vestir de homem: ela,
dessa caixa escura não deu cer- num lance rápido e brincalhão,
to, mas um filmezinho de 17 se- no cinema? beija uma mulher na boca, mas
gundos sobreviveu ao tempo e isso revela mais sobre ela que
pode ser visto ainda hoje nos sobre o filme de Josef von Stro-
carquivos da cinemateca de heim.
Nova Iorque. Sem título, está re- xuais nas telas do mundo. Há quem mencione certos tre-
gistrado como Dickson´s experi- Ainda no cinema mudo, um jeitos de Carlitos como sendo
mental sound film (1894) e mostra outro raro exemplo que me ocor- efeminados, isto sem conside-
o quê? Ao som de um gramofo- re é o de A caixa de Pandora (G.W. rar que tais trejeitos faziam
ne duas pessoas dançam abra- Pabst, 1928), por coincidência parte do seu esquema de panto-
çadinhas. Um rapaz e uma também envolvendo dança, mimas, geralmente para signi-
moça? Não: dois homens. agora com duas mulheres que gi- ficar "romantismo" ou qualquer
Por que dois homens? Não se ram agarradinhas em volteios coisa oposta a brutalidade,
conhece as razões para a esco- realmente sensuais. como se vê claramente na cena
lha de Dickson, mas o fato é que O que geralmente acontece é que antecede a luta de boxe em
esse "pas de deux" masculino é que os interessados em consoli- Luzes da cidade (1931). Outros fil-
dado pelos estudiosos do assun- dar a diversidade sexual, empe- mes em que, com ou sem funda-
to como a primeira manifesta- nham-se em catar e apontar mento, se veem elementos de
ção homossexual na história do manifestações homossexuais homossexualidade são: Relíquia
cinema. em filmes antigos, que, na ver- macabra, 1941 (no personagem
Depois do primitivo filmezi- dade, só trataram do tema de Cairo, feito por Peter Lorre); Gil-
nho de Dickson, e por causa forma obscura, ou acidental, ou da, 1946 (entre Glenn Ford e seu
dele, alguém pode supor que o equívoca mesmo. Essas pessoas patrão); O salário do medo (entre
tema da homossexualidade es- querem, por fim e à força, reti- Ives Montand e Folco Lulli); O
tendeu-se e tornou-se popular rar sentido homossexual de fil- império do crime, 1955 (entre dois
no cinema dos primeiros tem- mes como Rainha Cristina (1933) gangsters, um dos quais é Lee
pos. Nada disso. Decorreriam e Levada da breca (1938) somente Van Cliff).
muitas décadas para nos depa- porque, naquele primeiro Gre- Um caso clássico é o que se diz de
rarmos com imagens homosse- ta Garbo se veste de homem e, Casablanca, 1942, especialmente c

A UNIÃO João Pessoa, novembro de 2010 | 33


c por causa do final, em que Misturar vidas privadas como um filme repleto de insi-
Rick e o delegado se afastam da nuações homoeróticas, inclusi-
tela, um dizendo ao outro que com o que está ve (pasmem) entre os proto-an-
"este é o começo de uma bela tagonistas Roger Thornhill
amizade". É verdade que, antes efetivamente na tela é um (Cary Grant) e Vandamm ( Ja-
disso, o delegado, em pleno Cas- mes Mason).
sino, já dissera que "se fosse mu- caminho equívoco que não Por outro lado, o engraçado é
lher, seria apaixonado por quando o filme traz, sim, suges-
Rick", mas tudo isso é muito leva a lugar nenhum, tões homossexuais e ninguém
pouco para se incluir Casablan- nota. Vejam o caso dessa comé-
ca no rol dos filmes homossexu- cometido até por críticos, dia leve de Joshua Logan Nunca
ais, somente porque (e este é o fui santa ("Bus Stop", 1956).
verdadeiro motivo da inclusão!) como é o caso de Rubens Como já demonstrei em ensaio
metade do seu elenco era com- publicado, a situação desses
posto de gays. Ewald Filho dois rapazes que vivem juntos,
Misturar vidas privadas com sozinhos, num sítio afastado de
o que está efetivamente na tela Montana é praticamente a mes-
é um caminho equívoco que não ma dos protagonistas de Broke-
leva a lugar nenhum, erro in- back Mountain, e a cena em que,
terpretativo absurdo, infeliz- no ônibus, um reclina a cabeça
mente cometido até por críticos, do, Charles R. Jackson - para no ombro do outro e adormece,
como é o caso de Rubens Ewald fugir de uma latência homos- não é nada inocente. A diferen-
Filho que, certamente por mo- sexual, estrategicamente trans- ça é que, aqui, o mais velho se
tivos pessoais, vê homossexua- formada em "bloqueio de escri- impõe o sacrifício de arranjar
lismo na tela onde ninguém tor" no filme de Billy Wilder. uma mulher para o companhei-
consegue ver sequer sexo. Sobre o problema de se ver o ro, e faz, sim, o sacrifício por
Grandes cineastas, como Ja- que não está na tela, um caso fa- amor. Claro que nada, no diálo-
mes Whale (de Frankenstein, moso é o de Festim diabólico (Rope, go do filme é dito, mas - relem-
1931) e George Cukor (de A dama 1948, de Alfred Hitchcock). Mui- brando a famosa frase de Oscar
das camélias, 1936) foram homos- tos autores de guias de filmes Wilde, retirada do poema de seu
sexuais assumidos e, contudo, começam o resumo do seu en- companheiro Alfred Douglas -
suas filmografias nada revelam redo assim: "dois homossexuais quem ousaria dizer o nome do
da inclinação sexual. Para citar matam um amigo..." Ora, não amor em 1956?
mais um caso notório, o mesmo há, no filme de Hitchcock, abso- Coincidentemente ou não, o
se diga do ator Charles Lau- lutamente nada que indique que ano de 1956 viu o lançamento
ghton que dirigiu um único belo os dois assassinos são homos- do filme que, na minha opinião,
filme O mensageiro do diabo (1958), sexuais: por que, então, esse re- foi, este sim, o primeiro na his-
sem que, nem neste filme, nem sumo? Ocorre que o filme é ba- tória do cinema americano, e
nos seus tantos desempenhos seado num caso real, aconteci- possivelmente mundial, a pelo
como ator ficassem visíveis do no início do século em que, menos introduzir o tema do ho-
quaisquer sintomas de suas de fato, o crime foi cometido mossexualismo masculino.
preferências privadas. por dois homossexuais. O pro- Trata-se do clássico de Vin-
Dois dos dramaturgos ameri- blema, porém, é que Hitchcock cente Minnelli Chá e simpatia (Tea
canos mais filmados foram - pressionado pela censura - and sympathy), na época distri-
Tennessee Williams e William suprimiu qualquer conotação buído como rigorosamente im-
Inge, ambos homossexuais que sexual do filme, de tal forma próprio até 18 anos. Todo decor-
trataram da questão em suas que continuar vendo (por cau- rido num campus universitário,
muitas peças, as quais, quando sa da informação histórica) ho- o filme conta o drama desse jo-
adaptadas ao cinema, eram mossexualidade em Festim é vem estudante, delicado e sen-
cuidadosamente "podadas" uma forçação de barra. Dez sível, que não se adapta à ma-
pela censura dos estúdios. Um anos depois de Festim, o diretor neira grosseira de comportar-
exemplo típico está em Gata em Richard Fleischer filmaria o se da maioria dos colegas. Para
teto de zinco quente onde o per- caso verídico (Conferir: Estra- os outros, ele é um efeminado e
sonagem é gay na peça, e, no nha compulsão, 1959), mantendo o caso toma contornos dramá-
filme, apenas "impotente" (pa- a mesma discreta distância do ticos insustentáveis. Compade-
pel de Paul Newman). Para ci- problema sexual. cida do rapaz, a sua bela senho-
tar mais um outro caso não tão Aliás, Hitchcock parece ser ria (Deborah Kerr), embora ca-
bem conhecido: na estória ori- uma preferência entre os que sada e anos mais velha que ele,
ginal, o alcoólatra de Farrapo hu- querem ver homossexualismo decide tentar convencê-lo da
mano (1945) bebe - exatamente onde não há. Teses universitá- sua "normalidade" e esse empre-
como o autor do livro adapta- rias têm lido Intriga internacional endimento afetivo ultrapassa c

34 | João Pessoa, novembro de 2010 A UNIÃO


c o "chá e simpatia" do título: tima, demonstrando - para ela
ela termina se apaixonando, e A década de sessenta e para os espectadores - que, no
os dois fazem amor. Vejam bem, fundo, a garota maldosa havia
a rigor, o rapaz seria apenas o se abre sem subterfúgios percebido uma faceta escondi-
que hoje se chama de ´metros- da da verdade.
sexual´ (um homem que, sem
e pode se dizer que Dirigido por Basil Dearden, na
perder a sua masculinidade, se Inglaterra, Meu passado me conde-
identifica com a natureza femi-
os seus primeiros na (Victim) conta a estória de um
nina), mas, em 1956, o filme de cidadão casado (Dick Bogarde),
Minnelli trazia à baila questões
anos constituem que levara uma vida dupla, en-
difíceis de enfrentar - sobretu- contrando-se com jovens do
do por uma Hollywood conser-
a data base do mesmo sexo. De repente, come-
vadora e paranoica que ainda ça a receber cartas anônimas, e
homossexualismo
vivia debaixo do rigoroso "có- o caso antigo vem à tona. O fil-
digo Hays de censura", só extin- me termina com o marido con-
no cinema
to em 1964. fessando à esposa sobre seu
Na verdade, antes de Chá e passado homossexual, que, do-
simpatia, em 1953, um filme eu- ravante, o casal deverá admi-
ropeu fizera menção ao homos- nistrar.
sexualismo, mas isto só de Já no ano seguinte o sempre
modo pontual: em Os boas-vidas, com sua famosa dedução final ousado Otto Preminger lança
de Federico Fellini, um dos ´vi- de que "ninguém é perfeito". a sua Tempestade sobre Washing-
telloni´ do título original é, mo- A década de sessenta se abre ton (1962) onde, de um alto se-
mentaneamente, assediado por sem subterfúgios e pode se di- cretário do governo america-
um escritor homossexual idoso, zer que os seus primeiros anos no, se revela um passado ho-
do qual foge apavorado. constituem a data base do ho- mossexual.
Seguindo a cronologia, um ou- mossexualismo no cinema. Na Depois desses cinco filmes, ro-
tro filme a citar é Minha vontade Europa, Luchino Visconti, pela dados no curto périplo de três
é lei (1959) de Edward Dmytryk, primeira vez, introduz um per- anos (1960 a 1962), ousados
caso curioso por se tratar de um sonagem homossexual na tela, inauguradores da temática na
faroeste, gênero normalmente o empresário de Rocco e seus ir- década, a questão da homosse-
atribuído a machões. Neste fil- mãos (1960), e o diretor inglês xualidade no cinema passou a
me o personagem vivido por Ken Hughes, com muita cora- ser assídua, para não se dizer,
Anthony Quinn, é obsessiva- gem - pois o homossexualismo quase obrigatória.
mente ligado ao personagem de ainda era, por lei, considerado Em 1966 Bergman faria Perso-
Henry Fonda, fato notado pela crime em seu país - resolve nar- na; em 1967 John Huston faria
crítica, neste caso com perti- rar a estória de um homossexu- O pecado de todos nós; em 1968
nência. O faroeste como se sabe, al famoso em Os crimes de Oscar Pier Paolo Pasolini faria Teore-
foi a história, não apenas de Wilde (1960). No meio disso, a ma; em 1969 Ken Russell faria
duelos, mas também de grandes cantada que o personagem de Mulheres apaixonadas e Delírio de
amizades entre homens (Wyatt Lawurence Olivier dá em Tony amor (sobre o caso Tchaikovski);
Earp e Doc Holiday, por exem- Curtis em Spartacus (Stanley em 1970 William Friedkin fa-
plo), só que, longe da "comra- Kubrick, 1960) é só um detalhe. ria Os rapazes da banda; em 1971
deship" do poeta americano Em 1961, dois filmes enfren- Visconti faria Morte em Veneza e
Walt Whitman, essas camara- tam diretamente a temática, John Schlessinger faria Domin-
dagens não tinham conotação com a curiosidade de que um go maldito...
sexual. No filme de Dmytryk, tratava da relação entre mulhe- Daí em diante, nunca mais o
realmente, é quase impossível res, e o outro, da relação entre cinema foi o mesmo. E foi assim
não ver mais que amizade no homens. que a famosa frase de Oscar Wil-
personagem de Anthony Quinn, Em Infâmia (The children´s hour, de - "o amor que não ousa dizer
tão ostensiva é a sua dedicação de William Wyler) duas profes- seu nome" - ficou caduca. I
ao amigo. soras primárias (Shirley
No mesmo ano de 1959, mais McLaine e Audrey Hepburn)
dois filmes hollywoodianos são acusadas por uma das alu-
apresentariam personagens nas de estarem tendo um caso
com inclinação gay, um de amoroso. Parte dos fatos na
modo trágico, o outro em tom acusação são invenções da me-
de comédia, a saber, De repente nina, mas nem tudo: há um mo-
no último verão (Joseph Manki- mento decisivo no desenlace do *ENSAÍSTA, CRÍTICO DE CINEMA, AUTOR DE
ewicz) e Quanto mais quente me- filme em que McLaine faz, a He- DIVERSOS LIVROS, TAIS COMO: UM BEIJO É SÓ

lhor (Billy Wilder), este último pburn, a sua confissão mais ín- UM BEIJO: MINICONTOS PARA CINÉFILOS

A UNIÃO João Pessoa, novembro de 2010 | 35


SEPTUAGENÁRIA, A POETISA MINEIRA REVISITA ALGUNS TEMAS E REFLETE SOBRE O ENVELHECIMENTO, REVELANDO-SE MAIS CONTEMPLATIVA

A duração da poesia:
sobre o novo livro de poemas de Adélia Prado
Hélder Pinheiro*

duração do dia, este é o título do sétimo revisita alguns temas, reflete sobre o

A livro de poemas de Adélia Prado. Desde


a publicação de Bagagem (1976) a poesia
de Adélia vem tendo uma grande reper-
cussão entre leitores e críticos. Uma pro-
envelhecimento e, sobretudo, revela-se
mais contemplativa, embora permane-
ça a força do querer, verbo que continua
central em sua obra ("Quero misericór-
6ensaio

va disto é o número crescente de ensai- dia e por nenhum romantismo/ sou mo-
os, dissertações e teses sobre sua obra. vida", - "Viés",p. 11) "quero o carinho que
Podemos afirmar que, neste último li- à ovelha mais fraca se dispensa", ("Rute
vro a poetisa permanece fiel a seus te- no campo", p. 15); "Queria, ainda que em
mas e procedimentos. Embora haja uma tico à toa de tempo,/ gozar chefia de mi-
espécie de serenização, suas inquitações nha própria pessoa," ("Como um presen-
são, ainda, o transcorrer da vivência do te meu, um Riobaldo", p. 17); "Quero um
cotidiano, a forte religiosidade e uma paranormal a me ensinar piano", ("Bali-
visão erótica da vida. Permanecem tam- do", p. 47") e tantos outros exemplos.)
bém algumas personagens como o pai, a O estilo de Adélia Prado, maduro des-
mãe que morreu cedo, e uma linguagem de a publicação da primeira obra, não
com sabor de conversa, bem diferente traz qualquer alteração, mantendo-se fiel
dos rebuscamentos de linguagem que quer na articulação das imagens quer no
marcaram grande parte da lírica do sé- modo de construção dos poemas. Per-
culo XX. Agora septuagenária, a poetisa manece o que denominamos de constru-
c

36 | João Pessoa, novembro de 2010 A UNIÃO


cção em vitral, isto é, há uma apa- Duas questões que podem sejo é o corpo/ e não o beijo./ O que
rente desorganização nascida da desejo é o corpo/ e não o toco" (
acoplagem de diferentes planos, ser consideradas novas "Anjo mau",p. 71)
de diferentes experiências e dese- Embora se possa afirmar que
jos ao longo do texto. E a passa- comparecem: a reflexão nada seja propriamente novo no
gem de um plano a outro se faz li- livro - no âmbito dos temas, dos
vremente, restando ao leitor a ta- sobre a velhice, agora a procedimentos - pode-se dizer
refa de ordenar os "cacos" para dar também que tudo é novo, revestido
sentido ao poema-vitral. Sobretu- partir da própria vivência e pela percepção aguda da poetisa. A
do nos poemas mais longos, pre- captação de uma cena, bem minei-
domina este procedimento, como os laivos de curiosidade ra, como em "Fosse o céu sempre
pode ser observado no primeiro assim" (p. 20) ilustra bem a força
poema do livro, "Tão bom aqui" sobre a física moderna desta recolha de elementos para
(p.9), em que se passa do recolhi- compor o poema:
mento no porão "para aproveitar
o dia/ e seu plantel de cigarras" e Como num insuspeitado aposento
"rezar,/ agradecer a Deus este con- da potência de saber que os ins- em casa que se conhece,
forto gigante" à inquietação sobre trumentos de percepção não se uma janela se abre para cascalho e areia,
o "microcosmo" e, logo em segui- desgastaram, apenas podem ter pouca vegetação resistindo nas pedras,
da, para o "cheiro do café", que agu- mudado a frequência e a sintonia. esmeraldas à flor da terra.
ça seu olfato e, por fim, a crença no As palavras são insuficientes para Nada exubera. É Minas,
amor como valor supremo: "Fora captar o rico manancial de experi- um homem com seu cavalo
que alguém me ama,/ eu nada sei ência que é a base de sua poesia: "A se abeberando no córrego.
de mim". Este jeito de articular di- beleza transfixa,/ as palavras can-
ferentes temas, diferentes planos sam porque não alcançam,/ e pre- E nem deu tempo falar da refle-
é marca constante de Adélia des- ciso de muitas pra dizer uma só" xão sobre a própria poesia inicia-
de o primeiro livro. Por traz, sem- ("A escrivã na cozinha", p. 25) da em "Com licença poética", pri-
pre uma inquietação, um recolhi- O outro aspecto curioso nesta meiro poema de Bagagem, e nunca
mento reflexivo, que jamais mina obra é a referência à física. No interrompida. A poesia como
sua fé, como já afirmou um crítico, primeiro poema do livro ela já cu- compreensão, não por um viés ra-
de dar inveja a vigário. nhara uma bela imagem para fa- cional, mas muitas vezes por um
Duas questões que podem ser lar do microcosmo: "Na partícu- espécie de percepção da totalida-
consideradas novas comparecem la visível de poeira/ em onda in- de das experiências, como pode-se
neste novo livro: a reflexão sobre visível dança a luz". Em "Pensa- observar em "Espendores" (p. 88),
a velhice, agora a partir da pró- mento à janela"(p. 19) a contem- que escolhemos para finalizar esta
pria vivência e os laivos de curio- plação da noite leva à afirmação rápida conversa:
sidade sobre a física moderna. de que "Estrelas na escuridão são
Adélia, que num poema de Baga- ícones potentes". E, logo em se- Toda compreensão é poesia,

gem ("A invenção de um modo") guida, uma curiosa junção entre clarão inaugural que névoa densa

dizia ensaiar o modo de andar das fé e ciência: "Como os oráculos faz parecer velados diamantes.

velhinhas, parece viver o que fora bíblicos,/ os paradoxos da física Em pequenos bocados,

antevisto: "Setenta anos redondos,/ me confortam". como quem dá comida a criancinhas,


O erotismo tem seu lugar, em- a beleza retém seu vórtice.
assim não se quebra o verso." O
bora não mais tão frequente como São águas de compaixão
olhar para a natureza, para coisas
nos três primeiros livros. O enve- e eu sobrevivo.
simples permanece atento, inqui-
eto: "Volta e meia estou perplexa/ lhecimento, portanto, não ceifou o
desejo, uma vez que "velhas se con- PRADO, Adélia. A duração do I
e toda rima que achei é circunfle-
sentem em suas vulvas,/ agrade- dia. Rio de Janeiro/São Paulo: Re-
xa." ("Balido", p. 47). As nova tec-
cendo a Deus por seus maridos" e cord, 2010.
nologias estão presentes na expe-
riência do eu lírico ("Tenho um te- "Até eu, pudica, arrisco: Ei, baby!/
clado e cito com elegância/ Os Mai- Meu corpo me ama e quer recipro-
as, A Civilização Asteca"), mas é o cidade." ("Dádivas", p. 42). Como
desejo de permanecer atenta ao não observar a conotação erótica
mundo que se destaca: "Falo alto, que emerge de versos como estes:
"Minha carne quer outra carne,/
às vezes, para testar a potência,/
vermelha entre dourados/ de gor-
afastar as línguas de trapo me avi- ** HÉLDER PINHEIRO É PROFESSOR DE LITERATU-
dura amarela gotejante." ( "O no-
sando da velhice:/ 'Como estás RA BRASILEIRA NA UFCG. ESCREVEU UMA DIS-
viço e a abstinência de preceito",
bem!" "Mulheres", p. 45). Há, por- SERTAÇÃO DE MESTRADO SOBRE A POESIA DE
p. 44) Ou ainda a força do desejo
tanto, uma jovialidade, que nasce ADÉLIA PRADO E PUBLICOU VÁRIOS ARTIGOS
em construções como: "O que de-
possivelmente da força da poesia, SOBRE A OBRA DA POETISA MINEIRA.

A UNIÃO João Pessoa, novembro de 2010 | 37


Eduardo Portella:
um ser múltiplo
Para Elizabeth Marinheiro e
Hildeberto Barbosa Filho

José Mário da Silva* cruzada em prol do que sempre con-


ceituou como pedagogia da qualidade,
a única digna de exercer um papel ge-
m qualquer ocasião que se fizer um nuinamente libertário e civilizador no

E levantamento avaliativo mais verti-


cal da prática da crítica literária no
Brasil, não se poderá deixar de lado a
mundo dos homens.
Nesse patamar, a bibliografia de
Eduardo Portella exibe trabalhos no-
6ensaio

fecunda contribuição a ela conferida táveis no encalço de pensar um proje-


pelo professor-doutor Eduardo Ma- to desenvolvimentista para o Brasil
tos Portella, privilegiada inteligência umbilicalmente jungido a uma revo-
que a Bahia concedeu ao Brasil e ao lução gestada no território educacio-
mundo da reflexão, da cultura e do nal. Esse seu inarredável compromis-
pensamento. so com uma educação qualificada e
O itinerário biográfico do professor transformadora o levou a ocupar o
Eduardo Portella fulgura pela ascensi- cargo de Ministro da Educação, num
onalidade ostensivamente visível e momento em que o Brasil já respirava
presente em todos os cargos que ocu- os incipientes ares da redemocratiza-
pou, aos quais conferiu invulgar dig- ção mais tarde consolidada em todos
nidade. Poderíamos, neste canto de pá- os quadrantes nacionais. Depois de
gina, dissertar sobre o educador emé- vergados pelo peso de mais de duas
rito que, com desassombro, protago- décadas de obscurantismo político, eis-
nizou uma verdadeiramente crítica nos na reta final de uma transição c

38 | João Pessoa, novembro de 2010 A UNIÃO


REVISTA TEMPO BRASILEIRO, BALIZA CULTURAL MEMORÁVEL, INSTRUMENTO DE MANIFESTAÇÃO DO SABER EM SUAS MAIS DIVERSAS MODALIDADES

c que a passos largos promovia Eduardo Portella como homem


o divórcio entre o estado de exce-
Julgo sobremodo
da sala de aula, porque sei que há
ção e o estado de direito, promo- muitos que, de posse dos títulos
vendo o reencontro do país com
pertinente realçar a
que conferem distinção aos que
a sua inalienável vocação para a militam na academia, abando-
trajetória do professor
liberdade. nam a sala de aula e passam a
Nesse tenso jogo matizado por Eduardo Portella como tratá-la com arrogante, não raro
conflitantes ideologias, Eduardo ridículo, desdém. Não integro o
Portella, com elevado espírito homem da sala de aula rol dos que tiveram o privilégio
público e distinguida competên- de ser aluno do professor Eduar-
cia técnica, driblou as adversi- do Portella, mas, de alguns que
dades da hora e escreveu seu Antropologia, Sociologia, Econo- foram agraciados com esse mis-
nome na história recente, e um mia, dentre outras que cartogra- ter, colho o depoimento sinaliza-
tanto turbulenta, do país. Pode- fam o desbordante mundo da dor de um ser/fazer pedagógico
ríamos, de igual modo, discorrer cultura, encenam e contracenam raro, consorciador da emoção e
sobre o intelectual que consorcia, interações verdadeiramente ilu- da razão na medida certa, con-
com apreciável destreza, teoria e minadoras com a complexa rea- duzido por uma impecável lógi-
prática, argumentação e ação, lidade que nos cerca. ca expositiva, tudo bem tempe-
discurso e operosidade, que o Poderíamos, também, falar rado pelos ingredientes de um
diga a fundação, em 1962, com a acerca do brilhante professor humor refinado, mais do que
participação do seu irmão Fran- universitário, do homem da sala pródigo em dissolver as aporias
co Portella, recentemente faleci- de aula, do renovado produtor de inúmeras de que se impregna a
do, das Edições Tempo Brasilei- conhecimentos que, ainda hoje, condição humana.
ro, da Revista Tempo Brasileiro, não cessa de entrever na relação Dessa travessia pedagógica fe-
uma baliza cultural memorável, mestre/aluno um campo sobre- cunda, por qualquer que seja o
instrumento superlativo de ma- maneira propício, não somente ângulo que se queira examiná-la,
nifestação do saber em suas mais para a promoção do enriquece- emerge uma plêiade de eminen-
diversas modalidades manifes- dor convívio humano, mas, tam- tes mestres que encontraram na
tativas. bém, para o engendramento de sólida hermenêutica ministrada
A esse verdadeiro tento de re- uma práxis que une ensino e pes- por Eduardo Portella a fonte in-
sistência e criatividade acrescen- quisa, encarando-os como elas desviável em que se abeberaram,
te-se, com igual relevo, a criação precisam e devem encaradas, se nutriram e se consolidaram
e administração do Colégio do como inseparáveis faces de uma como profissionais autônomos,
Brasil, universo do pensamento mesma experiência, a que se nu- capazes de sobrevoar os alenta-
matizado pela realização perene cleariza pelo fascinante ato/pro- dos horizontes do conhecimento
de elevados estudos e pesquisas cesso da construção, transforma- com as suas próprias asas.
vincados pelo dialético marco da ção e partilha solidária do saber. Poderíamos falar do conferen-
transdisciplinaridade, dado que Julgo sobremodo pertinente cista vigoroso, presença festeja-
Educação, Filosofia, Literatura, realçar a trajetória do professor da em numerosas tribunas c

A UNIÃO João Pessoa, novembro de 2010 | 39


c do país e fora dele. Em Berlim, A erudição, na ensaística não em nome de um ecletismo
Bönn, Frankfurt e Munique, dis- festivo e inconsequente, mas,
sertando sobre literatura e soci- portelliana, convive com o sim, em nome do caminhar críti-
edade democrática. Em Campina co que julga mais compatível com
Grande, proferindo palestra de rasgo libertário próprio de o traço de ambigüidade essenci-
abertura do VII Seminário Inter- al que lateja no insubmisso sig-
nacional de Literatura, em 1984, quem não se deixa no literário.
por ocasião dos inesquecíveis Acercamo-nos, pois, do fundo
Congressos Brasileiros de Teoria aprisionar por nenhum corte heiddegeriano que emble-
e Crítica Literária, emergidos da matiza os Fundamentos da Investi-
garra idealizadora de Elizabeth modelo teórico gação Literária postos em cena por
Marinheiro e operoso grupo de Eduardo Portella, à luz dos quais
trabalho. Elizabeth Marinheiro, o emérito crítico brasileiro tem
fecundo nome da crítica literária balizado a sua convivência com
contemporânea, ex-aluna e ad- painel dos que escrevem ensaios o ser da literatura. Na ensaística
miradora confessa do criador de no Brasil. De pronto, chamamos de Eduardo Portella, a paixão da
Teoria da Comunicação Literária. Na a atenção para o peso de erudi- linguagem e a linguagem da pai-
Bienal Nestlé de Literatura, dis- ção que recobre os pronuncia- xão revezam-se em textos supe-
correndo, magistralmente, sobre mentos críticos de Eduardo Por- riores que retiram a crítica do ca-
o gênero crônica. Na Casa de tella. Peso que não se configura dinho estreito de uma insípida e
América, Madri, ao dissertar em nenhuma pedra no meio do previsível metalinguagem e a an-
acerca de Machado de Assis cro- caminho do leitor, antes sinaliza coram no porto da mais elevada
nista do Rio, constroi a belíssi- para a sólida formação filosófica e sublime criação.
ma metáfora, segundo a qual "a de quem, em várias geografias Para Eduardo Portella, "no
crônica brasileira moderna é um europeias, convive, demorada- jogo da verdade a crítica é cria-
animal urbano, não totalmente mente, com o pensamento de ex- ção", esforço ingente para se pe-
domesticado". poências da filosofia e da crítica netrar nos abismos da lingua-
Poderíamos falar do Eduardo literária internacional, tais gem, nas polissêmicas zonas do
Portella acadêmico, que, merito- como: Xavier Zubiri, Julián Ma- entretexto, lá onde os sentidos,
riamente, ingressa na Casa de rías, Dámaso Alonso, Carlos Bou- transgressoramente, rompem a
Machado de Assis, em 1981, pas- soño, Sartre, Habermas, Adorno, normatividade da língua, e a arte
sando a ocupar a Cadeira de Nú- Gadamer, Heiddeger, Nietzsche, se faz a libertária e fundadora
mero 27, cujo patrono é Maciel Hegel, Kant, Ortega y Gasset, pátria dos homens.
Monteiro e cujo fundador é o no- dentre outros. Território das utopias possí-
tável memorialista brasileiro Jo- Desse amplo espectro reflexi- veis. Invadida e assumidamente
aquim Nabuco, autor do sempre vo nutre-se o pensamento de fecundada pelo fogo da poesia, re-
clássico livro Minha Formação. Eduardo Portella, sempre mati- sistente a todos os enquadramen-
Poderíamos, enfim, abordar a zado, em todas as suas anticanô- tos classificatórios bem compor-
pluridimensional obra de nicas formulações, por uma abor- tados, a hermenêutica praticada
Eduardo Portella percorrendo o dagem crítica do existente, por pelo professor Eduardo Portella
gênero no qual ele se tem consu- uma incessante subversão e ina- prima pela elegância estilística
mido e consumado como um comodação diante do estabeleci- indisfarçável, pela construção
rematado mestre e um dos seus do. Talvez seja essa a influência musicalmente harmoniosa de
mais abalizados cultores: o en- mais permanente da iconoclas- frases que, de modo certeiro, cap-
saio literário. Ensaio que, na es- tia nietzschiana sobre o exercí- tam a verdade essencial e íntima
teira do fecundo pensamento de cio do pensar crítico na obra de dos fenômenos estéticos investi-
Montaigne, se configura numa Eduardo Portella. gados. É aqui que radica a memó-
espécie de livre aventura do es- A erudição, na ensaística por- ria profunda do seu inconfundí-
pírito e da inteligência, desbor- telliana, convive, admiravel- vel magistério crítico, da sua, di-
dante e indemarcável voo do mente, com o rasgo libertário ria Roland Barthes, "mitologia se-
pensar humano sobre os vãos e próprio de quem não se deixa creta e particular", do seu modo
desvãos do real. aprisionar por nenhum modelo múltiplo de ser diante do ser
A ensaística de Eduardo Por- teórico que se pretenda instân- múltiplo da literatura. I
tella, de Aspectos de La poesia brasi- cia legitimadora do conhecimen-
leña contemporânea, 1953, a México: to, daí a defesa apaixonada que
guerra e paz, 2001, tem se notabi- promoveu da abertura da Teoria
lizado pela ostensiva exibição de da Literatura para outros sabe- *ENSAÍSTA E CRÍTICO LITERÁRIO, PROFESSOR DE
um conjunto diversificado de as- res, reivindicando para ela a sau- LITERATURA DA UFCG, AUTOR DO LIVRO DE

pectos que a torna quase ilumi- dável capacidade de dialogar ENSAIOS MINÍMAS LEITURAS, MÚLTIPLOS INTER-

nadamente solitária no amplo pluralmente com a alteridade, LÚDIOS (2002)

40 | João Pessoa, novembro de 2010 A UNIÃO


Paulo de Toledo e a metapoesia do reverso
Amador Ribeiro Neto*

ma poesia condensada em alto grau.

U Lacônica. Parcimoniosa. Instigantemen-


te provocadora. Assim é a poesia de Pau-
lo Toledo em A rubrica do inventor (inédito,
2010).
6literatura

Ler um poema é estar no trampolim


pronto pra saltar. E cada salto é um es-
pocar de zumbidos de balas. Sublima-
dos corrosivos. Os poemas de Paulo de
Toledo, desde 51 mendicantos (Porto Ale-
gre: Ed. Éblis, 2007), são projéteis dirigi-
dos contra a mediocridade do olhar au-
tomatizado por controles a distância ou
remotos. Uma poesia hostil a. Defronte
de. Que rebate e refrata a reles realidade.
Que nos faz sentir quão ordinários so- a criança / que grita pelo pirulito // criar
mos na pasmaceira cotidiana. um poema ilegível // igualzinho a tal da
Tiro certeiro no tronco das adiposi- rubrica / do inventor do primeiro mito".
dades virtuais. Espelhação quebrada Outro poema: "chafurdar nos fha-
em fractais. Fraturas expostas de nos- shes do paparazzo / cair de boca na
so dia-a-dia em furores cegos. No en- lama do negócio / fazer-se de besta no
tanto, trazidos à luz com sacadas inu- papel de palhaço / dar esta bunda pra
sitadas de ácido & humor. Olhos pra espantar o tédio / isto tudo é o seu in-
ver quem queira. sosso ofício diário".
Ele veio pra des-velar o manifesto. O Este em que o trágico grego transmu-
ululante. O coloquialmente sacralizado ta-se em hilário oráculo: "andar / nas nu-
em apa, epa, ipa, opa e upa neguinho. vens / sem me molhar / nadar no rio /
Nada mais habita a mesma geografia. Os nihilo e nu / (o que é o que é trágico) /
signos se transmutam. A poesia pisa o fingir-me esfinge".
sete. Revela o reverso do um. E diz que o Um agora à la José Paulo Paes: "isso
máximo múltiplo incomum é o que con- ser poesia / não me espanta / o que me
ta a partir de agora. Agora, aqui, semio- estupefata / é o fato descabido / de isso
ticamente. Nada mais. nunca ter sido / lido visto ouvido / ou
Porrada. Porradas. Riso amarelo. Ri- sequer realizado / e ainda assim / o que
sos. Incontidos disfarces não escon- quiçá / caracterizaria / um paradoxo / é
dem mais nada. Poesia feita a golpes e canta".
de esculacho. Avessos atravessados. Uma quadrinha, na certa pensando
Índices de caminhos inversos. O con- em Bashô: "lua de outono / neste galho
trapelo dos afetos. O acre do mel. O seco / um sorriso penso / como um
favo do fel. O neobarroquismo das ima- pomo".
gens (fanopeias) secas, esturricadas, Pra encerrar esta breve amostra, um
lixadas. O golpe no gosto comum. O tom sátiro-gregório-matosiano se esban-
drible no senso incomum. ja em "se eu me precipitasse /em um pre-
A surpresa. O inesperado. O alumbra- cipício / qual uma boca que falasse // e
mento do encoberto. Do vedado. Do ven- essa decidisse / pôr fim à queda e à sua
dido. Da venda. Libido à solta. Laços de falácia / e predissesse / qual um vate que
versos de companhia limitada: Oswald, musas invocasse // meu destino / e o
Augusto, Glauco. E uma pitada ítalo-san- mais que me coubesse / eu principiaria
tista de Aretino. Poemas a conta-gotas. a rir / como se risse // fosse o passe de
Poemas de concreto armado. Pra mágica / que transfigurasse / o que pa-
desafiar o couro das percussões. Das recia inevitavelmente trágico / na mais
prevaricações. Das discussões. Poe- despretensiosa tolice". Paulo de Toledo,
sia em alto grau de excelência. Poe- a metapoesia do reverso. I
sia ponto final.
Vejamos alguns poemas: "querer tão *POETA, ENSAÍSTA, PROFESSOR DE LITERATURA DA UFPB.

somente o impossível // espernear como AUTOR DO LIVRO BARROCIDADE

A UNIÃO João Pessoa, novembro de 2010 | 41


POESIA

A OUTRA LUZ
Por Alberto Lacet

A luz - como forma de dizer e estar por perto

Como aliança secundária a se fazer com o nome

Quase uma segunda mágica, menor e extraída

do exponencial refugo e para outro reduto

De outra forma a luz - como nunca foi ou será?

Quem sabe esse guarda-chuva - que o tempo

A tempestade baniu das vestes, e que tentará

Na rota do possível, uma vez mais

Com seu ferruginoso passado de retidão

Descrever um círculo - articulando as hastes nuas

Quem sabe essa outra forma - dada de empréstimo

E sem que por nenhuma específica distinção

Debaixo de regulação extrema e condenada

A garimpar nos escombros, no talhe de lampejos

Invictos pela paisagem - seja outra luz

agosto 2010

42 | João Pessoa, novembro de 2010 A UNIÃO

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