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Agosto 2015 – ANO LXVI Nº 6
Artes de
Orfeu
Quis o argonauta que o “menestrel” Virginius
da Gama e Melo saísse da vida para tornar-se
imortal, tocando sua lira de ouro na Arca de
sonhos do intrépido capitão Biu Ramos
6 editorial
Vida e arte
O professor, escritor e crí- Virginius foi nius. Em seu primeiro livro,
tico de literatura Virginius Arca de sonhos ou Mocidade e
da Gama e Melo era um dos o mentor outros heróis, Biu registrou al-
intelectuais mais queridos e intelectual de guns dos melhores momen-
admirados da cidade de João tos passados na companhia
Pessoa. Apelidado de “Me- uma geração que do Menestrel.
nestrel”, reunia em torno de No primeiro dia do mês de
sua figura singular a fina flor
marcou época agosto deste ano, amigos, en-
da boemia, notadamente en- nas tertúlias tre eles Biu Ramos, lembra-
tre as décadas de 50 e 60 do ram o quadragésimo aniver-
século passado. realizadas nas sário da morte de Virginius e
Virginius foi o mentor in- mesas de templos prestaram suas homenagens
telectual de uma geração que ao Menestrel. O fato foi notí-
marcou época nas tertúlias da boemia cia no jornal A União, e volta
realizadas nas mesas de tem- a receber agora o merecido
plos da boemia pessoense, a
pessoense, a destaque, nesta edição do
exemplo da Sorveteria Ca- exemplo da Correio das Artes.
nadá, Churrascaria Bambu Já o Arca de sonhos, que
e Cassino da Lagoa, o pri- Sorveteria guarda em suas páginas ale-
meiro no Ponto de Cem Réis Canadá. gres memórias de Virginius,
e os dois últimos, no Parque foi lançado por Biu Ramos há
Sólon de Lucena. exatos 30 anos. A data susci-
O “Menestrel” não vivia nismo e paisagem, Caxias, A tou, também, um amplo re-
apenas de sonhos, haja vista modelação, Os seres, Tempo de gistro jornalístico no Correio
ser adepto da teoria e prática. vingança e A vítima geral. das Artes. A vida e a arte, com
Comentou os livros de mui- O jornalista e escritor Seve- suas belas e estranhas rela-
tos escritores, em resenhas rino Ramos - que conquistou ções, estão assim celebradas
memoráveis, mas criou tam- fama nos meios jornalísticos no suplemento de A União.
bém obras de ficção e análise, como Biu Ramos – integrou
de que são exemplos Antago- a entourage boêmia de Virgi- O Editor
6 índice
, 4 @ 16 2 49 D 54
Virginius e biu Dôra Limeira sérgio tavares Ronaldo Cagiano
Reportagens abordam O jornalista Linaldo O escritor Sérgio Tavares, "Travessias". Este é o
os 40 anos da morte de Guedes e o professor autor de Cavala (vencedor título do conto, cedido
Virginius da Gama e Melo e José Mário da Silva do prêmio Sesc de Literatura gentilmente, para
os 30 anos de lançamento rememoram a história de 2009), estreia no Correio publicação no Correio
do livro Arca de sonhos, do vida e o legado literário da das Artes com o conto "A das Artes, pelo escritor e
jornalista Biu Ramos. escritora Dôra Limeira. vida de Lucélia Santos". tradutor Ronaldo Cagiano.
O Correio das Artes é um suplemento mensal do jornal A UNIÃO e não pode ser vendido separadamente.
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http://www.auniao.pb.gov.br Câmara Neto Azevedo
fotos: arquivo a união
6 memória
Virginius
da
Gama
e
Melo
40 anos sem o “Menestrel”
Linaldo Guedes
linaldo.guedes@gmail.com
P
ara muitos que o conheceram de perto, tos deles premiados. Entre eles, Antago-
Virginius da Gama e Melo, o “Menestrel”, nismo e paisagem, Caxias, A modelação, Os
é considerado uma das maiores expres- seres, Tempo de vingança e A vítima geral.
sões dos meios intelectuais e literários Depois de morto, teve várias obras lan-
paraibanos. Faleceu há 40 anos, em 1º de çadas também.
agosto de 1975, mas até hoje amigos da Os 40 anos da morte de Virginius da
época lembram-se de sua figura elegan- Gama e Melo foram lembrados por ami-
te, sempre de paletó, geralmente branco, gos do escritor e crítico literário na Pa-
com o lenço combinando com a gravata. raíba. Wills Leal, por exemplo, lamenta
Não foi apenas uma referência literária. o desprezo dado ao sobrado do antigo
Foi também um boêmio na mais completa presidente Gama e Melo, onde nasceu
acepção da palavra e liderava as mesas da Virginius, “do qual só restam a parede
Sorveteria Canadá, no Ponto de Cem Réis, frontal destelhada e mal sustentando a
e da Churrascaria Bambu, na Lagoa do plaquinha desse registro pendente de
Parque Sólon de Lucena, em João Pessoa. dois dos quatro pinos enferrujados que
Virginius lançou diversos livros, mui- a sustentam”, protestou. c
UNIVERSIDADE
CHURRASCARIA
BAMBU
Autor do livro Academias de bambu
– Boêmia e intelectualidade nas mesas
de bar, fruto de tese acadêmica, o jor- por causa da situação política, e a festejado intelectual de seu tempo,
nalista Phelipe Caldas defende que Bambu era o ambiente comum de- comparado com vultos de nossa li-
Virginius da Gama e Melo era um les. O local onde eles se reuniam. teratura, como José Lins do Rego,
dos boêmios mais festejados de seu Onde eles existiam como conjunto. mas que com o tempo foi relegado a
tempo. Até porque era um boêmio Alguns dos principais intelectuais posto menor na história paraibana.
na essência da palavra. “Bebia todos da cidade frequentavam o bar. In- Todos os paraibanos mais jovens
os dias (menos nos finais de semana, cluindo muitos jovens, escritores, sabem quem foi José Lins do Rego,
já que, nestes momentos, os bares se que se tornariam célebres no futu- por exemplo, mas não têm a menor
enchiam de amadores) e tinha uma ro. Toda a Geração Sanhauá se for- ideia de quem foi Virginius. Tentei
incrível capacidade de congregar em mou na Bambu. E muitos de seus analisar isto. Uma tese é a de que ele
torno dele outros intelectuais. Se tra- livros foram escritos nas mesas da era muito mais famoso como agita-
tarmos a Churrascaria Bambu como Bambu. Nomes como Marcos dos dor cultural e boêmio, do que como
uma espécie de ‘universidade de cal- Anjos, Marcos Tavares, Marcos Vi- escritor. Outros dizem que ele era
çada’, ele certamente era o reitor da nícius, Anco Márcio, Sérgio de Cas- um crítico literário realmente muito
Bambu. E esta não é uma referência tro Pinto, Antônio Serafim e Ponce bom, mas que era medíocre como ro-
meramente poética. Existem relatos de Leon foram gestados como escri- mancista (e ele escreveu dois roman-
de que os debates em sua mesa no tores no local, segundo Phelipe. ces). O fato é que ao longo da vida
bar eram verdadeiras aulas literá- Ainda segundo o autor de Acade- ganhou vários prêmios literários,
rias. E ele liderava tanto os homens mias de bambu, Virginius da Gama e alguns deles em locais em que sua
de sua geração como os mais novos, Melo era bastante respeitado pelos fama boêmia não era tão difundida.
da Geração Sanhauá, por exemplo, seus contemporâneos e idolatrado E realmente movimentava a vida li-
que ainda no início da vida literária pelos mais jovens, muitos de seus terária da cidade. Mas de fato existe
tentavam sorver o que ele tinha a alunos que lhe acompanhavam até certa divergência sobre o real valor
oferecer. Um outro detalhe: a Chur- o bar. “E aí tem uma questão curio- de sua obra, inclusive pelos próprios
rascaria Bambu sempre foi o seu sa. Os mais novos, já “fazedores de contemporâneos”, enfatiza.
reduto boêmio preferido, e, curio- cultura”, buscavam certo reconheci- Virginius da Gama e Melo nas-
samente, Virginius morreu apenas mento dele, o que nunca aconteceu. ceu em 19 de outubro de 1923, na
dois anos depois da morte do bar”, Marcos Tavares, na época da minha Rua General Osório, número 71, no
relata Phelipe. pesquisa, chegou a confessar que centro de João Pessoa. Começou sua
Em seu trabalho, Phelipe defen- cada livro publicado pela Geração vida boêmia ainda quando estudava
de que os bares, principalmente em Sanhauá era seguido de frustração. na Faculdade de Direito do Recife.
tempos de pouca liberdade política, Porque eles esperavam alguma crí- Depois, voltou para João Pessoa e
transformam-se em pontos de resis- tica de Virginius, que escrevia em passou a ser polo aglutinador da in-
tência, ilhas de democracia, redutos jornais, mas ele nunca reservou telectualidade pessoense. Para Mar-
de saberes que são combatidos pelos seu tempo e seu espaço no jornal cos Tavares, ele criou uma geração.
opressores. “É exatamente este ce- para falar dos mais jovens. Isto ge- Era chamado de Menestrel pelos
nário que nós temos em João Pessoa rou mágoas. Era como se Virginius amigos, ia para os bares em carro de
naquela época. Repressão política, ainda não os visse como escritores praça e ganhou fama nacional como
pouca liberdade e opositores sendo e os mais jovens não recebiam isto crítico literário.
presos. A resistência se forma, as- muito bem. Mas esta era uma mágoa Para o escritor Gonzaga Rodri-
sim, nos bares. E a Bambu sempre que nunca foi levada para as mesas gues, a maior homenagem que se
foi a favorita. Três fatores favorecem da Bambu. Nunca houve um con- pode fazer ao Menestrel é reestudá-
a Bambu neste ponto: sua localiza- traponto público do grupo a ele. E -lo, republicá-lo, “o que compete
ção central, seus preços mais acessí- mais: a mágoa, talvez, é prova maior prioritariamente à Universidade
veis (em comparação ao Cassino da do respeito que ele possuía com os onde ele atuou e deu o prestígio que
Lagoa, por exemplo) e seu tamanho demais autores. Afinal, as pessoas ela precisava”. E
físico. Como era um espaço grande, só querem ser vistas por quem vale a
que ocupava boa parte dos bambu- pena. A mágoa silenciosa, portanto,
zais da Lagoa, conseguia abarcar to- jamais abalou sua figura central na Linaldo Guedes é poeta e jornalista,
das as tribos”, historia. Bambu”, ressalta. autor, entre outros, dos livros Os
zumbis também escutam blues e
Phelipe explica que, do ponto No livro, Phelipe Caldas faz, ain-
outros poemas (1998), Intervalo lírico
de vista da formação cultural, a da, uma análise comparativa sobre (2005), Metáforas para um duelo no
Bambu servia como um ponto de quem foi Virginius no bar e quem sertão (2012) e Receitas de como se
convergência para os intelectuais. se tornou Virginius com o tempo. tornar um bom escritor (2015). Mora
Eram tempos de dispersão, muito “É curioso ver que ele era o mais em João Pessoa (PB)
As grandes guerras mundiais são tão absur- bitados por artistas, jornalistas, poetas, pro-
das e causam traumas tão profundos que os sadores, professores, médicos, funcionários
homens de espírito livre, crítico e criativo, após públicos, advogados etc., além de uma gen-
os armistícios – sim, os estados de beligerância te especial que não se enquadra nos padrões
jamais foram totalmente proscritos -, caem na comportamentais, figurando na rubrica de
boemia, uma forma mais comedida de esbór- boas-vidas, para não dizer “desregrados”.
nia, e voltam a celebrar a vida. A festa, geral- Nestas távolas redondas, arejadas por moi-
mente, começa no final da tarde e estende-se nhos, que se formam tão logo o Sol dá as cos-
pela madrugada, tendo como palcos privile- tas, os problemas do mundo, como também os
giados restaurantes, bares, botecos e cabarés. hábitos comezinhos da cidade, são trazidos à
Da farra não participam, evidentemente, to- tona, para debate, solução, deboche ou trans-
dos os cidadãos. E sim “medalhões”, flâneurs figuração. Há sempre um Dom Quixote ou Rei
e talentos em ascensão das “classes” artística Arthur disposto a tudo. Mas como todas as
e intelectual, espécies de guetos sociais ha- dores já foram choradas e todas as lágrimas, c
Célia Carvalho
O encantamento
da escritora
Dôra Limeira
Linaldo Guedes
Linaldo.guedes@gmail.com
S
eu último livro foi lançado em rentes e publicado na antolo- ‘Daqui a dez anos você vai
abril deste ano. O livro afetuoso gia Todas as estações, pela edi- se tornar um grande escritor.
das cartas (Editora Ideia) nar- tora Peirópolis, São Paulo. Em Até lá trabalhe porque talento
rava a história de uma anciã 2005, publicou seu segundo você tem de sobra’. Foi assim
septuagenária que troca cor- livro de contos, Preces e orgas- que uma das minhas duas
respondência com um rapaz mos dos desvalidos. Em 2007, pu- musas da literatura paraiba-
de vinte e poucos anos. Dôra blicou O beijo de Deus, livro de na terminou o e-mail. Grato,
Limeira gostava de histórias minicontos. Edição indepen- Dôra, por me ensinar a arte
assim, aparentemente inu- dente, Editora Manufatura. da teimosia”.
sitadas, mas cheias de calor Em 2009, editou outro livro Em abril, quando do lança-
humano. A professora e escri- de contos, Os gemidos da rua mento de O livro afetuoso das
tora deixou de luto a literatu- (Editora Manufatura), finan- cartas, Dôra explicou a este
ra paraibana no último dia 4, ciado pelo Fundo Municipal repórter o seu processo de es-
ao morrer após complicações de Cultura (FMC). Cancionei- crita. Na ocasião, a escritora
decorrentes de um quadro de ro dos loucos foi publicado em contou que numa entrevista
diabetes e hipertensão arterial. 2013 pela Ideia Editora. a duas adolescentes, elas lhe
Sua morte comoveu a classe A partida de Dôra pegou perguntaram se é fácil es-
artística e cultural da Paraíba de surpresa amigos e leitores. crever. “Respondi que não. É
e até o governador Ricardo Um deles, o parceiro do Clu- paradoxal, mas eu tenho difi-
Coutinho fez uma homena- be do Conto, Ronaldo Mon- culdade. Perguntaram-me se
gem durante a inauguração do te. “Eu já disse uma vez que tenho uma metodologia para
Teatro Pedra do Reino. meu nome é Ronaldo Monte escrever textos, e que metodo-
Dôra Limeira nasceu em Limeira. Eu e Dôra somos ir- logia seria essa. Respondi que
21 de abril de 1938, em João mãos na dor e exercemos o não tenho metodologia defi-
Pessoa. Fez os primeiros estu- ofício perverso de transfor- nida. Perguntaram-me sobre
dos em escola pública, depois mar essa dor em beleza. Eu como nascem minhas histó-
em colégio religioso católico. e Dôra brigamos muito du- rias, se arquiteto tudo na ca-
Graduou-se e especializou-se rante o tempo em que convi- beça, para depois passar para
em História pela Universida- vemos. Mas vivemos sempre o papel ou pra tela do com-
de Federal da Paraíba (UFPB). momentos fraternos em que putador. Eu respondi que as
Publicou seu primeiro pude expressar o meu amor e histórias geralmente jorram
livro de contos, Arquitetu- a minha admiração pelo seu como sangue no papel ou na
ra de um abandono, em maio trabalho”, disse. tela. As personagens se apos-
de 2003, o que lhe valeu o O escritor Roberto Mene- sam de mim como se fossem
prêmio de Revelação Literá- zes também se emociona ao entidades da natureza. Nesse
ria/2003, num certame pro- falar de Dôra. “Conheci Dôra sentido, acredito em transe.
movido pelo suplemento lite- Limeira em 2006. Mandei pra Nada de sobrenatural, nada
rário Correio das Artes. ela um conto de dez páginas de alma de outro mundo.
Em 2002, participou do e nem esperava que ela lesse. Tudo muito natural e simples,
Concurso Talentos da Maturi- Pra minha surpresa, ela me como a chuva ou como um
dade com o conto “Não há si- respondeu com um grande e- parto normal”. Tudo simples,
nais”, concorrendo com 10.338 -mail que ainda tenho. Tinha como a capacidade de Dôra
inscritos em todo o país. “Não vários pontos importantes pra Limeira de encantar através
há sinais” foi incluído entre os mim, entre eles ser fiel ao esti- da escrita e de encantar-se
vinte melhores contos concor- lo que eu propunha escrever: para outra dimensão. E
6 memória
A arte
ficcional de
Dôra
Limeira
José Mário da Silva
Especial para o Correio das Artes
C
om as velhas e imorredouras lições de Teoria da Litera-
tura ministradas pelo mestre Massaud Moisés, apren-
demos que o conto é uma narrativa curta ancorada no
princípio composicional da unicelularidade dramática;
o que, no limite, significa a captação do mundo por
meio de um único flagrante, dentre as múltiplas moda-
lidades manifestativas que o integram. Em Valise de Cro-
nópio, Julio Cortázar, exponencial teórico da literatura c
Edônio
Alves
e seus desconcertos poéticos
N
enhum poeta pode ser compreen- a produção poética do paraibano
dido sozinho. Eis a lição de T. S. Edônio Alves Nascimento, dis-
Eliot. Nenhum poeta e nenhum tribuída em três títulos: “O des-
poema. Há como que um arqui- concerto das coisas mais poemas
vo textual que se estratifica na minimais”, a parte inédita, e os
Foto: arquivo do autor dinâmica da criação literária, fa- outros dois já publicados, a saber:
zendo do poema e do mecanismo “Os amantes de Orfeu & poemas
da invenção poética um percurso de rima interior” (1999) e “Essa
dialético, um movimento dialógi- doce alquimia” (1992).
co, uma zona de conflitos, incerta “O Desconcerto é em verso/
e tensa, em que se consolidam as Cabe o inverso em cada verso/
ideias e os sentimentos que pro- Todo verso é seu anverso/O unir
movem a expressão estética. verso é um mundo”, diz a epígra-
Quando lemos um poeta, fe do longo poema “O descon-
portanto, vamos além dos limi- certo das coisas”, já preparando
tes materiais de suas palavras e o leitor para o jogo de paradoxos
do arcabouço particular de seus e ambiguidades que se dá, tan-
poemas. Há qualquer coisa nele to no plano significante da mas-
que, em sendo ele, também não o sa lexical quanto no recorrente
é, na medida em que o poema, ao investimento temático, voltado
mesmo tempo em que incorpora para uma cética persecução em
a subjetividade, insere, na flexi- torno do ser, do ser das coisas,
bilidade de seu corpo vocabular, do ser dos seres, do ser dos senti-
a presença inevitável do outro, mentos. A linhagem é a dos poe-
com suas múltiplas faces. Inclu- mas líricos, porém, reflexivos,
sive aquela face irredutível ao nos quais parece indispensável
cerco da palavra, embora o poe- o equilíbrio estético entre a po-
ta não possua outro instrumento sição conceptual e o acervo emo-
para nomeá-la e as suas indesviá- tivo que compõem o olhar do eu
veis e insólitas ambivalências. lírico sobre o mundo.
Parto desse pressuposto para Típico macrotexto, como diria
Edônio Alves, poeta, professor e jornalista,
autor de Poesia até aqui, súmula de sua ler Poesia até aqui (Natal: Jovens Maria Corti, em seus Princípios da
produção poética Escribas, 2015), volume que reúne comunicação literária (1976), uma c
Sereias
pré-pós sereísmo
Leonardo Davino de Oliveira
Especial para o Correio das Artes
Augusto de Campos:
um lírico no auge
do experimentalismo
A
obra de Augusto de Campos interessa visão ainda pouco privilegiada
ao leitor de poesia, quer seja ela foca- na leitura da obra em questão: o
lizada numa perspectiva sincrônica lirismo peculiar do poeta. Talvez
ou diacrônica. O aspecto diacrônico, porque a nossa cultura artística
já amplamente debatido, diz respeito associe (com toda a razão) o ex-
ao significado da intervenção concre- perimentalismo a certo espírito
tista em nossa série histórico-cultural. científico e (sem razão alguma)
A invenção da poesia concreta legou julgue-o incompatível com a ex-
às gerações seguintes um conceito am- pressão lírica. Ou talvez porque
pliado do signo poético. O aproveita- a própria leitura que fazemos dos
mento funcional do espaço (gráfico ou poemas visuais permaneça ainda
tridimensional); o recurso sistemático à excessivamente condicionada por
paronomásia, ao plurilinguismo, à po- certos aspectos pontuais dos ma-
lifonia, à (des)articulação de palavras; a nifestos lançados pelo Concretis-
interpenetração de linguagem da poe- mo, nos anos 50, aparentemente
sia e linguagem dos mass media – são al- mais lidos e discutidos do que a
guns dos traços que estão hoje incorpo- produção literária de seus criado-
rados à poesia brasileira, e que revelam res. Fato é que o poeta lírico e o
quanto ela é tributária da revolução poeta de vanguarda quase nun-
provocada pelo experimentalismo do ca se encontram numa mesma
grupo Noigandres. Desde a década de abordagem crítica da obra de Au-
50, a consciência dos recursos verbivo- gusto de Campos. E, no entanto,
covisuais (sentido + som + aspecto grá- o lírico se manifesta com vigor,
fico) da poesia orienta toda uma linha tanto no plano temático quanto
de poetas, numa esfera que se estende a no nível estrutural de sua poesia.
áreas contíguas, como a da música po- Basta lembrar que a primeira ex-
pular. Nenhum outro conceito de poe- periência do que se pode chamar
sia levou tão longe quanto a poesia con- de poesia concreta, entre nós, a
creta o intercâmbio com outras lingua- série Poetamenos, consiste numa
gens artísticas e com os novos meios sequência de poemas de amor e
tecnológicos e seus códigos específicos. saudade (Caetano Veloso deve ter
Sem contar a inestimável contribuição sido o primeiro a chamar atenção
do grupo paulista à cultura nacional no para isso, quando enxertou em
campo da crítica e da tradução. sua leitura de “Dias dias dias” os
A importância desse significado versos da canção “Volta”, de Lu-
diacrônico não impede, entretanto, picínio Rodrigues).
que sublinhemos um segundo, de na- Com efeito, delineia-se com
tureza sincrônica, e que envolve uma muita nitidez, na obra do poe- c
Espectadores (12) ,
Eleonora Falcone
V
amos começar pelo começo: como Foi quando conheci Fred Astaire
foram os seus primeiros contatos e Ginger Rogers, e junto com eles
com o cinema? toda a magia dos musicais. Mas
Eu e meu irmão, quando crian- sem dúvida, o que despertou em
ças, íamos às matinais de sábado mim um desejo muito forte de
do Cine Municipal ou Plaza le- me expressar artisticamente fo-
vados por nosso avô. Foi quando ram os filmes de Bergman e suas
me apaixonei por Mary Poppins e personagens femininas. Queria
Topo Gigio. E aquele ritual de ir ter vivido aquelas mulheres no
ao cinema cultivo até hoje – nada cinema. E de certa maneira, aque-
como ver um filme no escurinho las personagens me levaram a
do cinema, apesar do incômodo cantar. Digamos que sempre quis
Foto: arquivo pessoal do barulho de pipoca, celulares fazer cinema, mas sempre prefe-
e conversas de parte dos espec- ri cantar a falar o texto. Morando
tadores. Acho que a relação que no Rio, pra onde me mudei após
se estabelece com um filme, es- concluir o curso de Psicologia na
tando no escuro e diante de uma UFPB, e onde iniciei minha car-
telona, é diferente do que aconte- reira de cantora, também estudei
ce quando se vê um filme na TV teatro e cheguei a fazer uma pon-
ou no computador. O cinema nos ta num longa-metragem, Assim na
proporciona as condições físicas tela como no céu, dirigido por Ri-
ideais para o mergulho no filme, cardo Miranda.
naquela fantasia, naquela realida-
de. Talvez o escuro do cinema nos As suas letras de música têm
revele nossa intimidade, nossa muito de poesia. Mas, para nos
essência... Lembro também de ter mantermos no terreno do cine-
visto E o vento levou na pré-ado- ma, você acha que é possível um
lescência, quando morava com “filme poético”?
minha família nos Estados Uni- Sim, pois toda expressão artís-
dos. Fiquei encantada, sobretudo, tica pode ser livre como a poesia,
com aquele ritual com intervalo, pode acontecer pra além das re-
pois por ser muito longo, o filme gras. Quando o cinema se utiliza
era exibido em duas partes. de todo seu potencial enquanto
linguagem, se expressando de
Enquanto cantora e composi- uma forma que só ele, o cinema,
tora, você assegura que o cinema tem como se expressar, acontece
teve certa influência na sua for- a poesia. Assim como no teatro,
mação e carreira? Como? quando ele, teatro, acontece de um
Morando nos EUA, tive contato jeito que só ele pode fazer acon-
com a produção cinematográfica tecer. Num filme como A história
Eleonora Falcone é cantora e compositora.
Nasceu em João Pessoa e iniciou a carreira americana das décadas de 30 e 40, da eternidade (Camilo Cavalcante,
artística no Rio de Janeiro cujos filmes eram exibidos na TV. 2015), quando me entrego ao rit- c
Estrela de Matos
Conspiração cósmica
Nesta paisagem
Quase urbana
em que não me reconheço
Vejo as raízes e elas abortam percursos em mim
Ficamos brigados e nem o caule me toma
Então sobram-me folhas sobradas ao pouco vento,
no rosto e também peito.
Frutos nem ao menos imagino
Pois que o cinza dos dias
E das noites
Certifica uma experiência que nem ouso confirmar:
vejo!
e sou infeliz
mas ser infeliz é de uma felicidade tão outra,
tão exilada e anônima
que me sinto em depósitos
de irrealizações
e fracassos
e isto, carícia conspiratória,
faz-me homem
entre homens
homem entre coisas
E coisa entre dejetos
No mínimo,
Cósmico.
Stoikós
Enfrente Luís Manuel Estrela
vá em frente de Matos é poeta, contista
dê frente e professor universitário.
em frente Colabora em alguns veículos
midiáticos e revistas virtuais,
tanto no Brasil como em
CHOQUE-SE Portugal. Mestre pela
Universidade Estadual do Rio
e não verás muro algum ... de Janeiro (UERJ) na área
de Literatura Brasileira.
Organiza um livro artesanal de
poemas escritos nos últimos 25
anos. Mora em Aracaju (SE).
6 artigo
Literatura e música:
enfim, juntas
Lourenço Cazarré
Especial para o Correio das Artes
N
o começo da década de 1970, cinco jovens fundaram em
Porto Alegre uma banda chamada Almôndegas, que bateu
lata por cinco anos e lançou quatro discos. Era, digamos
para simplificar, uma variação gaúcha de Mutantes. Entre
seus integrantes estavam dois irmãos, Kleiton e Kledir Ra-
mil, estudantes de engenharia eletrônica e mecânica, res-
pectivamente, nascidos em Pelotas.
Por essa época, os Ramil conheceram um jovem escri-
tor, interiorano como eles, mas nascido em Santiago, cha-
mado Caio Fernando Abreu, que havia lançado aos 22
anos seu primeiro romance, Limite branco. Conversaram
então sobre a possibilidade de Caio escrever uma letra
que viesse a ser musicada pela dupla. A canção deveria
ser um retrato da geração deles, a geração de Netuno no
signo de Libra, malucos destrambelhados chegados em
sexo, drogas e roquenról. c
c
adeus
ao
CONFORTO
Como o exemplo mais radical
do afastamento do escritor de
sua zona de conforto temática,
Kledir cita Alcy Cheuiche. Em-
bora poeta, dramaturgo e cronis-
ta, Cheuiche é mais conhecido
pela sua obra ficcional formada O músico e escritor Letícia Wierzchowski
Fernando Veríssimo inspirou-se na natação,
por romances históricos que têm escreveu “Olho Mágico” para compor “Piscina”
como cenário o pampa gaúcho.
No entanto, surpreendendo a
quem talvez esperasse dele um sente ao observar seu filho prati-
texto sobre guerreiros percorren- cando natação.
do o Pampa em busca de caste- “E na água, na água, na água
lhanos para degolar, o autor de que dança em teu corpo eu sei
Sepé Tiaraju – Romance dos sete que vou/ E na água, na água, na
povos das Missões inventou – na água, o teu brilho reflete e eu sei
delicada “Lado a Lado” - um per- quem sou”.
sonagem que abençoa a relação Nos shows de “Com todas as
homoafetiva de sua filha. letras”, que começaram no Rio
“Se tu gostas dela, minha bela, Grande do Sul, clipes são proje-
o que é que eu posso te dizer?/ tados em telas colocadas ao fun-
Me emociono ao ver vocês as do do palco. Sem dúvida, o mais
duas/ O amor precisa acontecer... bonito desses clipes é o que foi
Se vocês se amam, minha filha/ feito a partir de “Piscina”, que
Façam uma jangada, uma famí- tem seu marcante refrão ressal-
lia/ Abandonem logo essa ilha/ E tado por uma sinuosa melodia.
atravessem o azul do mar”. Outro tema inusual foi suge-
Algo semelhante se deu com a rido por Daniel Galera, autor de
letra que Luís Fernando Veríssi- Barba ensopada de sangue. A letra
mo entregou a seus sócios musi- de “Vinte e oito escovas de den- Daniel Galera sugeriu
cais. Conhecido pela veia satírica tes” nasceu a partir de um conto o tema de “Vinte e oito
escovas de dentes”
e textos enxutos e diretos, o sa- que narra a história de um sujei-
xofonista (que dá uma canja no to que, irritado pelo fato da na-
disco) Veríssimo escreveu a intri- morada ter usado sua escova de
gante “Olho mágico.” dentes, discute com ela e, depois
“Venha ver o que ninguém de “esvaziar uma garrafa de
mais vê/ Submerso ali num vodka”, sai à rua para espaire-
oceano/ O outro lado do outro cer. Ocorre porém que aquele é o
lado disso que se vê/ O avesso dia mais escaldante do senega-
do avesso do Caetano... Veja a lesco verão porto-alegrense de
luz da luz e a contraluz/ Por um 2014. O cara então se arrasta pe-
contra-prisma singular/ Há um las ruas incendiadas observan-
mundo por detrás do mundo/ do “a fumaça triste dos chur-
Tudo o que parece é muito mais/ rascos” e “as praças de quem
Venha ver o que ninguém mais não foi pra praia”. Ao retornar
vê, não sabe ver.” ao apartamento, não encontra
Já Letícia Wierzchowski – au- mais a namorada. Vê sobre a
tora de A Casa das sete mulheres, mesa uma sacola de plástico de
que deu origem a uma minissé- farmácia. Dentro dela, vinte e O escritor Alcy Cheuiche
rie de tevê - resolveu falar do que oito escovas de dentes. c surpreende com “Lado
a Lado”
c
AMOR ETERNO
Na contramão dessas insólitas “Veio atrás de uma casa pra fi- o olhar das mães que ficam sa-
composições, há uma que trata do car na sua/ Mas a casa não é sua/ bendo que seus filhos nunca
tema preferido por noventa e nove Ela é do mundo da lua/ Uma ro- mais voltarão?... Nenhuma casa
entre cem compositores brasilei- cha que flutua no meio da rua/ será a sua/ Aponta a rocha que
ros. Mas a letra de Claúdia Tajes, Sem rumo, sem rumo, sem rumo... flutua na paisagem e me diz: Vem
criada a partir de um miniconto, Dizem que somos belos e às vezes morar no movimento”.
aborda o assunto de modo ex- somos crianças/ Mas a verdade é Mas eis que, de repente, no
traordinariamente criativo e bem que somos violência... O que nos enfarruscado oceano da mú-
humorado. “Felizes para sempre” acontece quando desarrumamos sica brasileira, atravancado
é uma movimentada e divertida por tantos barquinhos lotados
história de um amor eterno que com gajos e raparigas sofrendo
dura apenas umas poucas horas. de dor de cotovelo, irrompe o
“Às onze e três se casaram/ transatlântico “Cansado de ser
Onze e um quarto, deitaram/ feliz”, do performático poeta e
Às onze e meia se amaram/ Ou Ao final da cronista Carpinejar.
pelo menos fingiram... À uma e “Veja bem/ O eu foi que eu fiz?
quinze, cansaram/ Dormiram e epopéia, que Pra sofrer/ De ser tão feliz... Você
não sonharam/ Depois das três, é o que eu sempre quis/ Rezo a
acordaram/ Nem eram quatro e deu como Deus e ainda peço bis/ Mas o que
saíram... Às quatro e pouco ainda acontece/ Pelo que parece/ É que
riram/ Às quatro e tanto, calaram/ resultado uma me aborrece ser feliz/ Felicidade
No carro, mal se tocaram/ No fim, demais é um tormento/ Me deixa
nem se despediram”. obra intitulada em paz por um breve momento.”
Já a grande contribuição de Também esnobando as lamú-
Paulo Scott, romancista e poeta, “Com todas rias amorosas, a cronista Martha
foi introduzir no disco um ru- Medeiros - que padece de felicida-
gido indistinto que parece vir as letras”, de crônica, segundo Kledir – es-
da periferia da vida. A melodia, creveu “Pingos nos is”, que, numa
embora suave, é soturna, sufo- os músicos tocada de roque, conta a história
cante. Mesmo sendo a crua de- de alguém que, ainda que na
núncia da guerra civil brasileira declararam-se marra, resolve ser feliz.
a marca dos nossos rappers, o “Eu decreto e me liberto/ É
discurso de “Rochas” não tem agradavelmente hoje, agora, eu nem quero nem
fumaças políticas ou reivindica- saber/ Porta aberta na hora certa/
tórias. É radicalmente poético. surpreendidos. Levar a vida sempre por um triz”. c
c PELOTAS
Convidado a participar do disco, num primeiro
momento eu fiquei apavorado e quis fugir. Sim-
plesmente minha cultura musical é pouco mais
do que rastejante. Detalhe sórdido: comprei um
primeiro aparelho de som aos 37 anos, por exi-
LIVRO E VINIL
gência dos filhos.
“Com todas as letras” foi lançado simulta-
- É só a letra – explicou Kledir.
neamente em livro, disco de vinil, CD e DVD.
Depois ele me pediu que não me apoquentasse
A edição comercial - que começou a ser ven-
porque ele e o irmão, adestrados na arte de entrançar
dida em shows realizados no Rio Grande do
palavras e músicas, me ajudariam.
Sul - traz, além do CD, um DVD que registra
Acertamos então que o tema da nossa cantiga se-
os bastidores da construção da obra. Há tam-
ria Pelotas, a nossa Macondo, cidade da qual esta-
bém uma edição especial, fora do comércio,
mos exilados desde os anos 1970.
que contém um disco de vinil encartado em
Como a letra teria a ver com a Princesa do Sul, pe-
um livro luxuoso, em grande formato. Nesse
guei um machado e me pus a desmantelar, em frases
livro, que reúne depoimentos escritos de to-
isoladas, um conto meu que tem aquela cidade como
dos os envolvidos no trabalho, as letras das
personagem – “Enfeitiçados todos nós”.
músicas foram transcritas por renomados ca-
Mais adiante me veio à cabeça que a coisa mais
lígrafos de vários países.
aproximada de poesia que eu havia engendrado era
Ao escrever este relato sobre uma pecu-
a produção – quatro ou cinco poemas de cordel - de
liar aventura litero-musical eu me lembrei do
um personagem de um livro meu (à época em tra-
poeta Cassiano Nunes Botica, meu mestre na
balho de parto).
Universidade de Brasília. Ele dizia que um
Mandei os cordéis para os irmãos Karamazov do
dos mais graves problemas da cultura brasi-
Laranjal, que é como eu os chamo, e eles me respon-
leira era que os artistas não se freqüentavam.
deram que eu até que não me dava tão mal com a
Segundo ele, músicos não conversavam com
redondilha maior. Fui aos dicionários. Redondilha
escritores, que esnobavam dramaturgos, que
maior: versos de sete sílabas.
desprezavam artistas plásticos...
Aí se chegou o clarão que me faltava: eu deveria
Pois saiba, mestre Cassiano, que alguns
meter aquelas dezenas de frases arrancadas do conto
guris de Pelotas quebraram essa escrita.
enfeitiçado em camisolas de sete sílabas. Foi o que fiz.
Com base nas tais frases soltas, esbocei três poe-
minhas em redondilha maior, que submeti ao crivo
dos irmãos. Prevaleceu aquele em que eu alinhava
basicamente recordações de infância e adolescência.
Polido e burilado, ele recebeu um banho musical e
transformou-se em “Mistérios do Bule Monstro -
Brincando na Praça dos Enforcados”.
A canção começa leve: “Lá no fim do arco-íris/
Caixas de lápis de cor/ A professora ensinava; Foi
Nabucodonosor”. Vai da infância à adolescência,
percorre a cidade (Igreja da Luz, Vila dos Agacha-
dos, Balneários dos Prazeres, Solar da Baronesa,
Praça dos Enforcados) e apresenta alguns dos mais
conhecidos tipos populares (Alfredinho, Corcel, Ju-
dite e Miloca), para os quais, ao final, pede a prote-
Lourenço Cazarré, jornalista e
ção divina: “Deus proteja os malucos/ E as “loucas” escritor, é autor de Estava nascendo
do mictório/ Que eu vou terminar meus dias/ Num o dia em que conheceriam o mar
quarto do sanatório”. I (Saraiva). Mora em Porto Alegre (RS)
Outros
cantos
EXCERTO DO NOVO ROMANCE
DE MARIA VALÉRIA REZENDE,
SELECIONADO PARA PATROCÍNIO
PELA PETROBRAS CULTURAL, A SER
PUBLICADO PELA ALFAGUARA EM
NOVEMBRO DESTE ANO
A
cabado o trabalho de tingimento das meadas ganchando seus canecos dos cabeçotes das se-
que nos cabiam para o dia, Fátima foi tratar las. Eu contemplava aquela liturgia de hospita-
de banhar seus meninos, curar-lhes as feridas, lidade, imóvel e silenciosa para não a perturbar.
e eu, sob o sol ainda brilhante, caminhei até o Compreendia, pela pouca conversa entabulada,
cajueiro de Dona Zefinha para esperar o ocaso, tratar-se de um grupo de vaqueiros de fazen-
mas, antes dele vi chegar, sem se fazer anunciar das do outro lado do rio, distante pouco mais
por nenhum aboio, um grupo de quatro ou cin- de uma légua dali, passando eventualmente por
co vaqueiros que não pude reconhecer. Olho d’Água em busca das reses do patrão e suas
Não vinham, como de costume, pelo estreito novas crias a ferrar, gado solto no mundo duran-
caminho arenoso já calcado por tantos cascos. te o verão para encontrar sozinho o que comer.
Desembrenhavam-se diretamente da caatinga Por fim, uma nova figura emergiu do mato,
cerrada, quase em frente ao cajueiro, apeavam, estranho personagem, destoando dos seus com-
amarravam os cavalos num mourão de cerca e panheiros, muito mais alto e pesado para o pe-
um deles chamou “Salve, Dona Zefa, aqui vie- queno cavalo sertanejo, cartucheiras cruzadas
mos outra vez atrás da caridade de vosmecê!” no peito, imagem de herói cangaceiro, um cha-
“Faz tempo é muito que não apareciam por péu bem mais vistoso, abas largas alevantadas
este lado do rio”, ouvi responder a velhinha, já ostentando estrelas de prata, escondendo na
capengando porta fora. Veio até junto do pote, sombra a parte do rosto não coberta pela bar-
onde os homens, ao contrário dos moradores ba cerrada e crescida de herói guerrilheiro, tão
dali, acostumados a servir-se à vontade, espe- diferente das caras quase imberbes dos demais
ravam respeitosamente, apanhou a quenga de vaqueiros matutos. Não apeou. Sua montaria,
coco e pôs-se a entornar água fresca nos cane- agitada, talvez espicaçada por ele, batia os cas-
cos estendidos pelas mãos protegidas em cou- cos na areia, girando sobre si mesma, até que
ro, avançando com a concha já de novo cheia ele a deteve, com um único puxão nas rédeas,
para outros cavaleiros que saíam do meio dos sem, porém, desmontar. Desprendeu da sela
garranchos, saudavam e desmontavam, desen- uma guampa com borda de metal branco lavra- c
Vanguarda
e arte
popular
Fotos: internet
João Cabral de Melo Neto (1920-1999) em O que em Jackson Pollock (1912-1956) Augusto de Campos “ergueu uma poética que
sua obra – à exceção de Pedra do sono (1941) “parece inconsequente atitude abstracionista desconcerta o mais agudo leitor, fazendo-o
-, im(ex)plode o sentimentalismo exacerbado revela, de fato, pesquisa histórica e estética dançar miudinho ante criações que só se
da “dita poesia profunda” calcadas na realidade” entregam depois de muita luta”
Coração
sitiado
ilustração: tonio
2ª Parte
Rodrigo Caldas
Especial para o Correio das Artes
III
N
os arredores de Stalingrado, na outra margem do Volga se abria um outro campo de batalha. Sendo
que neste campo, não se objetivava infligir a morte ao soldado inimigo, mas, antes, salvar a vida
dos feridos de guerra. Larissa Potapova era uma enfermeira do exército vermelho e desde a inva-
são da União Soviética pelas tropas de Hitler ela passou a exercer efetivamente o seu ofício de as-
sistente dos enfermos. Sendo que esses enfermos eram enfermos de guerra, homens mutilados por
tiros e explosões que deixavam ferimentos atrozes. Tudo isso em um clima de confusão, angústia e
a total ausência de material de trabalho. Larissa era enfermeira de formação, em Moscou estudou
e vivia em uma família de classe média quando estourou a guerra sangrenta que a arrastou para
aqueles campos enlameados e ensanguentados, campos ladrilhados por corpos dilacerados, moí-
dos, campos regidos pela sinfonia de explosões e gemidos agonizantes. Já esteve em outras frentes,
mas aquela de Stalingrado parecia dantescamente sangrenta, tudo cheirava a pólvora e feridas
abertas... Um odor de salmoura de carne putrefeita, um fervilhar de corpos em macas agonizantes.
Larissa era uma loira jovem e bela, mas a retina dos seus belos olhos amendoados já retinha pre-
cocemente um amplo mural dos horrores de uma carnificina sem precedentes na história da velha
Europa beligerante. Seu avental de enfermeira mais lembrava o de um açougueiro, seu rosto belo
e calmo parecia transcender aquela atmosfera de morte e desengano.
Hans Müller, o soldado alemão, estava a congelar naquela trincheira enlameada, sentia o frio
se apossar do seu corpo e da sua alma. Quando a angústia permitia ele rabiscava aqueles versos
no seu caderno de notas ou imaginava uma namorada para quem estivesse escrevendo e descre-
vendo o circo dos horrores em que estava imerso. Escrevia como que para criar a sensação de estar
acompanhado, como que para humanizar aquela atmosfera pesada de mortes e dores. A solidão, o
frio e a fome das trincheiras subtraiam a sua humanidade, o sexto exército, naquela altura da guer-
ra, era uma fileira de zumbis desumanizados, homens de olhos esbugalhados e lábios rachados c
Festa, futebol,
ressaca, literatura e bola
J
á afirmei em outra coluna mi- rante desse jogo no âmbito um desses casos – uma análi-
nha, aqui no Correio das Artes, específico da nossa mentali- se do conto intitulado, “1958”,
que ao estudar bastante a pre- dade e formação cultural. do escritor Deonísio da Silva),
sença do futebol na literatura Nesse contexto, um dos que tentaram trazer pelas ma-
brasileira em suas mais dife- assuntos mais pautados pe- lhas da ficção a experiência
rentes formas, pude compro- los escritores brasileiros que confortante da vitória.
var, ao menos analiticamente, escreveram sobre futebol no Trago, portanto, desta vez,
uma alvissareira constatação: gênero conto está a derrota para os nossos leitores, uma
a clara impressão de que, tal- do Brasil para o Uruguai na história que reúne festa (em-
vez motivada pela centralida- final da Copa do Mundo de bora seja a festa junina típi-
de do tema do futebol na nos- 1950 em pleno estádio do Ma- ca das cidades do interior
sa cultura, a literatura brasi- racanã, no Rio de Janeiro. Pelo do Brasil), futebol e ressaca.
leira já elaborou um conjunto trauma que o fato causou na Nosso intuito, como sempre,
de operações modelizantes, memória emocional brasilei- é o de relacionar futebol e li-
através da contribuição con- ra, o chamado “maracanazzo” teratura, numa tentativa de
junta, sucessiva e pessoal dos tem mobilizado a inteligência esclarecer nosso leitor sobre
seus mais distintos escrito- narrativa de vários de nossos as nuances dessas duas for-
res, com as quais construiu escritores tornando-se, assim, mas de expressão da alma
um tipo específico de peça um assunto típico do conto fu- nacional, que ora se faz pelos
literária: o conto brasileiro de tebolístico brasileiro. pés, ora se faz pelas mãos,
futebol. Não se diga o conto Numa outra ponta, tentan- ou seja: pelas chuteiras dos
de futebol no geral, mas, pre- do captar o sentido reverso – o nossos jogadores de futebol
cisamente, o conto brasileiro da euforia pela nossa primeira ou pela escrita mágica de
de futebol, significando isto conquista de um título mun- nossos escritores. A narrati-
uma peculiar formalização dial no campo da bola – está va abordada aqui é de auto-
estética de um tema cuja efe- a investida literária, feita por ria do escritor Renard Perez
tivação literária só é possível alguns escritores (e registre-se e intitula-se “Copa do Mun-
graças à dimensão estrutu- que já publiquei nessa coluna do”. Vamos a ela.
A
minha mãe não queria. Já estava nela, an- se enxergássemos um dentro do outro.
tes de existir. Intuição materna, costumam Nesse momento que minha mãe se aproxi-
dizer. Algo assim. mou de mansinho e sussurrou no meu ou-
A minha mãe disse esse rapaz não é vido esse rapaz não é bom pra você. Mas
bom pra você, e eu o havia visto fazia al- era tarde demais, eu já estava apaixonada.
guns minutos. Acontecia a festa de noiva- Me lembro disso só agora.
do da minha irmã mais velha. Estávamos Nos casamos dois meses depois, a con-
no living, exibindo nossos vestidos de or- tragosto dos meus pais. Eu abandonei o
gandi, quando entrevi aquele rosto desco- ginásio e consegui um emprego numa
nhecido, de traços angulosos e marcantes, boutique. Gilliard sempre foi um operário,
que navegava entre o aspecto disforme trabalhava com máquinas. Tinha expe-
da multidão que se apertava no alpendre riência em fábricas de tecido, de bicicletas,
equilibrando taças e aperitivos. de enlatados e, naquela ocasião, era corta-
Fiquei caidinha na hora. Eu o encarava dor numa fábrica de papel. Fomos morar
fixamente, erguendo, pouco a pouco, pa- numa casa alugada de um piso, que fica-
redes que nos privavam do falatório, da va numa vila de difícil acesso. Não tinha
música da vitrola, do efeito do ponche e do o conforto da casa onde cresci, mas eu
Campari, do cheiro do leitão assado. Era gostava daquela vida mínima, daquele es-
apenas eu e ele, vivos naquele cenário de paço mínimo que tratava caprichosamen-
manequins em ternos e vestidos. E quan- te como uma exportação do quarto antes
do me respondeu ao meu olhar, foi como compartilhado com minhas irmãs. É claro c
Anotações ,
N
ão há um centro para Holden Caulfield, protagonista de O
apanhador no campo de centeio, J. D. Salinger. Todos (menos a
pequena Phoebe, sua irmã, ou ainda o irmão já falecido Al-
lie) são objeto do seu riso: diretores, professores e colegas de
escola; o pai, a mãe, o irmão D. B. (roteirista em Hollywood);
as várias figuras (taxistas, prostitutas, gigolôs, garçons) com
Foto: internet
Rinaldo de Fernandes
J. D. Salinger, autor é escritor, crítico de literatura e
de O apanhador no professor da Universidade Federal da
campo de centeio Paraíba. Mora em João Pessoa (PB)
Travessias
Ronaldo Cagiano
Especial para o Correio das Artes
S
ob um céu profano, a mesma rando-se entre os automóveis
lição todos os dias, para em fazendo o pregão de bugigan-
cada um deles tornar-me irre- gas, frutas e balas. Arsenais de
conhecível: a cidade se conver- vozes e ruídos se sucedem com
te na selva monolítica e gelada: uma solenidade improvisada no
matéria e circunstância para os minúsculo auditório dos tímpa-
psicanalistas. Uma geografia nos. A fera enjaulada na solidão
sinistra nesse ambiente retó- oceânica de ninguéns. Encapsu-
rico de fumaça e decadência. lados em suas estações de traba-
Fuliginosa é a manhã que, em lho, repassando e-mails e aten-
vão, aguardam esses seres ho- dendo aos chamados sucessivos
miziados ouvindo som digital dos celulares, muitos deliram
em seus tronos sobre rodas, de na miséria recalcitrante de cada
onde veem menores esguei- dia, ruminando seus lutos diá- c
Dez dias
com Elena em Havana
Analice Pereira intelectuais e os professores de universida-
Especial para o Correio das Artes des leem; os jovens não leem; a juventude
não quer saber de leitura, reiterava Elena.
Sabia que, na visita à 24ª Feira In-
Sexto dia: ternacional do Livro de Havana, seria
possível, mesmo por um desenho mais
“Como si fuera la primavera” geral do que presenciasse, confirmar
ou não a afirmação de Elena. A cami-
P
or que a literatura era tão importante na vida dela? nho da Feira – que não se restringia à
A resposta estava pronta e sem muito segredo ou cidade de Havana, ou seja, acontecia
elucubração: havia aprendido, sobretudo com Antonio também e concomitantemente em al-
Candido, que a literatura tem uma função humanizadora gumas províncias – ouvia uma música
e, por isso, o direito a ela deveria ser tratado como um dos tão familiar, ainda ao longe... Confir-
Direitos Humanos. É tudo. mou, logo, que vinha do lugar da Fei-
Não era difícil compreender, na sua prática leitora, ra, o Pabellon Cuba, um edifício mo-
e também pedagógica, como se dava essa humaniza- derno, grande e muito bonito. Era uma
ção, sem, necessariamente, interpenetrar, nessa noção, música cubana e de sucesso na versão
algum juízo de valor. Mas isso seria um outro papo. e voz de Chico Buarque. A experiência
No caso das narrativas de ficção, essa humanização se de ouvir aquela música naquele am-
dava pela formalização estética e pela fabulação, o que biente trespassaria a barreira da mera
justificava, inclusive, o fato de estar na Ilha, justamente experiência; tomaria conta do seu pen-
via literatura. A leitura dos livros de Leonardo Padura samento e das suas impressões até o fi-
foi o que a impulsionou a desbravar aquele terreno até nal daquela viagem. Ou seja, faria um
então conhecido apenas pela ficção e pelo que apresen- sentido que até então não tinha feito.
tava a mídia. Porém, ir à Ilha não significava, somente, Seguia... seguia a fim de verificar in
certificar-se, naquele chão real, do que se apresentava loco se se lê ou não na Ilha. E, para sua
nas ficções que lera, mas, também, adentrar na possi- surpresa, ao longe avistou uma fila de
bilidade de contatar um modus vivendi diverso do seu, pessoas na entrada do Pabellon. A sur-
conforme se apresentava, inclusive, naquelas ficções. presa só aumentava quando entrou no
Antonio Candido estava certo. local, e, mais ainda, quando verificou
Pelo que lia e ouvia dizer, imaginava que em Hava- os preços dos livros. E não menos sur-
na, cidade de pessoas que demonstram tanto saber, to- presa ficou quando procurou os livros
dos liam. Engano!? Segundo Elena, não se lê muito em de Leonardo Padura (sim ele mesmo,
Cuba. − Livros de literatura, dizia Elena, não se lê; aqui o que a levou, pela literatura, àquela
as pessoas estudam, não há analfabetos, não há nenhuma viagem: um escritor cubano que resi-
criança fora da escola, há universidade para todos; a educa- de e escreve em Cuba, mas não publica
ção é levada muito a sério, mas a grande maioria não lê lite- em seu país. Mas isso, também, é ou-
ratura. − Como pode?, perguntava a estrangeira. − Só os tro papo) e soube, por um livreiro, que c
* tec tec
tec tec
tec*
Raíssa Melo
Especial para o Correio das Artes
T
odos os dias. Aquele mesmo tec tec na ponta dos dedos. Aquele mes-
mo olhar sonolento grudado na tela de 14”. Aquelas mesmas quatro
paredes, que à medida que se aproxima do meio dia, parecem cada vez
mais estreitas. Aquela mesma cadeira acolchoada que vai lentamente
assumindo o formato da bunda que repousa sobre ela. Aquela mesma
luz acesa. Aquele mesmo ar condicionado soprado no pé do ouvido e
balançando as flores artificiais com suas gotas de orvalho de plástico.
De plástico, como tudo naquele lugar. Sem plantas, sem animais, sem
barulho de água jorrando, sem frescor, sem umidade, sem humanida-
de. Tem nem janela pra saber se tá chovendo ou fazendo sol naquele
dia. Todos os dias. Aquela mesma atmosfera impenetrável pelas intem- c
Uma entrevista
A
o longo de quase três décadas de cansativa a um escritor. Faz diferença, ir sozinho ou
vida literária, tive a sorte de ser entrevistado acompanhado?
por grandes jornalistas, a exemplo de William – Para mim faz muita.
Costa, Astier Basílio e Linaldo Guedes, todos – Bem, digamos que o senhor vá sozinho.
de jornais da Paraíba. Mas tive, também, a – Então eu levaria o Manual do construtor de
infelicidade de ser interpelado por meia dú- jangadas.
zia daqueles profissionais mais rotineiros, – E quem é o autor?
que costumam fazer as mesmas perguntas – Não vê que estou brincando? Não existe
de sempre, “óbvias, estapafúrdias, inconve- este livro. Quer dizer, que eu saiba não existe,
nientes ou repetitivas”, como dizia Ariano mas bem que deveria existir.
Suassuna. Às vezes, neste último caso, a gen- – Bem, e se o senhor fosse acompanhado,
te perde um pouco a paciência, sobretudo se que livro levaria?
entre a meia dúzia não há nenhuma beldade – Também depende.
cor de jambo como aquela que um dia entre- – De quê?
vistou Fernando Sabino; e aí termina dando – Da companhia. Se eu fosse acompanhado
respostas também óbvias e estapafúrdias, ora por algum desses políticos que vivem apa-
irônicas, ora engenhosas, ora inconvenientes, recendo em nossos noticiários, por exemplo,
respostas que são, quase sempre, deturpadas, levaria outro manual.
amputadas ou simplesmente descartadas das – E qual seria?
entrevistas, para que estas possam ser publi- – A Arte de furtar.
cadas sem maiores problemas para o jornalis- – É brincadeira?
ta, o editor ou o jornal. – Não, este existe mesmo. É um livro anô-
Meus arquivos, porém, são mais implacá- nimo, do século 18. Só assim eu ficaria preve-
veis que os de João Condé. De maneira que nido, sabendo como me comportar diante do
hoje, embaraçado com a falta de assunto para sujeito. Se, por outro lado, eu fosse na compa-
escrever, resolvi ocupar o espaço da minha nhia da Scarlett Johansson...
crônica reunindo, numa entrevista só, reali- – Da Scarlett Johansson?
zada por um fictício repórter de suplemento – Sim, não estamos no campo da fanta-
literário, algumas dessas perguntas e respos- sia? Ou você acha mesmo que eu poderia ser
tas que guardei comigo, na minha memória mandado para uma ilha deserta, e logo na
ou na memória do meu computador. companhia da Scarlett Johansson?
– Está bem. Se o senhor fosse para uma ilha
*** deserta, com a Scarlett Johansson, que livro
levaria?
– Que livro gostaria de ter em mãos se fos- – O Kama Sutra.
se mandado para uma ilha deserta? – Bem, isso eu não posso publicar.
– Depende. – Então não publique, eu apenas respondi
– Depende de quê? à sua pergunta.
– Eu iria sozinho? – Está certo. Vamos então mudar a pergunta.
– Não sei, perguntei por que é de regra, – De acordo.
todo jornalista cultural faz essa pergunta – O senhor exerce a crítica literária, não? c
c – Sim, exerço.
– Por quê?
– Por necessidade.
– Necessidade existencial?
– Não, financeira. Preciso sem-
pre de um extra no final do mês,
para fechar minhas contas.
– Como se sente ganhando
dinheiro para falar mal da obra
alheia?
– O dinheiro não é muito, e eu
só falo bem.
– Só fala bem? Como assim? O
senhor não é crítico?
– Eu escrevo prefácios de li-
vros. Você acha que algum editor
publicaria um prefácio que falas-
se mal de um livro que ele quer
vender?
– Mas então o senhor não está
sendo honesto. Isso é propaganda
enganosa!
– Não é não, pois só faço o pre-
fácio quando gosto do livro. Caso
contrário, não há dinheiro que
me faça escrever.
– E quem escreve, então?
– Alguém que tenha o gosto
diferente do meu.
– E quanto à poesia?
– Que é que tem?
– Também escreve por necessi-
dade financeira?
– Não, existencial. Poesia não
vende.
– Mas o que mais se encontra,
nas livrarias, é livro de poesia. Li-
vros muito bem feitos, com capa
dura e papel especial. E não me
refiro a poetas conhecidos, como – Então não publique, eu ape- de hotel, no Japão?
Bandeira ou Drummond. São au- nas respondi à sua pergunta. – Esse mesmo.
tores novos, dos quais nunca ouvi – Está certo. Vamos então mu- – A que horas vai ser?
falar. Como explica isso? dar a pergunta. – Às nove.
– São livros custeados pelos – De acordo. – Bem, então acho melhor ter-
próprios autores, que depois os – Que acha do cinema que se minar a entrevista. Já são sete e
colocam nas livrarias em regime faz atualmente em Pernambuco? cinco, e eu ainda tenho que pas-
de consignação. As livrarias não – Não sei, não acompanho sar no jornal. Se eu não for agora,
pagaram por eles, nem pagarão, muito o cinema daqui. Para ser não chego em casa a tempo!
pois não irão vender. E os livros sincero, vejo pouco cinema, daqui – De acordo.
mais bem feitos são, em regra, de ou de qualquer lugar do mundo. O repórter saiu e eu fui cor-
juízes ou desembargadores, que Para ser mais sincero ainda, os rendo ligar a televisão. O filme,
têm mais dinheiro para fazer li- únicos filmes que realmente me na verdade, começaria às sete e
vros assim. Às vezes, um ou ou- interessaram, nos últimos anos, meia. Menti para o jornalista, por
tro advogado compra um exem- foram os da Scarlett Johansson. puro ciúme. Para ver a Scarlett,
plar durante os lançamentos, Aliás, daqui a pouco vai passar quanto menos gente, melhor. I
em geral pomposos; não porque um, na televisão.
goste de poesia, mas para fazer – Vai passar qual? Carlos Newton Júnior é
poeta, ensaísta e professor
média com o autor. – Encontros e desencontros.
da Universidade Federal de
– Bem, isso eu não posso pu- – Aquele em que ela aparece Pernambuco.
blicar. de roupas íntimas, num quarto Mora em Recife (PE)