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CorreioArtes

FUNDADO POR ÉDSON RÉGIS


EM 27 DE MARÇO DE 1949

das
Agosto 2015 – ANO LXVI Nº 6

Artes de
Orfeu
Quis o argonauta que o “menestrel” Virginius
da Gama e Melo saísse da vida para tornar-se
imortal, tocando sua lira de ouro na Arca de
sonhos do intrépido capitão Biu Ramos
6 editorial

Vida e arte
O professor, escritor e crí- Virginius foi nius. Em seu primeiro livro,
tico de literatura Virginius Arca de sonhos ou Mocidade e
da Gama e Melo era um dos o mentor outros heróis, Biu registrou al-
intelectuais mais queridos e intelectual de guns dos melhores momen-
admirados da cidade de João tos passados na companhia
Pessoa. Apelidado de “Me- uma geração que do Menestrel.
nestrel”, reunia em torno de No primeiro dia do mês de
sua figura singular a fina flor
marcou época agosto deste ano, amigos, en-
da boemia, notadamente en- nas tertúlias tre eles Biu Ramos, lembra-
tre as décadas de 50 e 60 do ram o quadragésimo aniver-
século passado. realizadas nas sário da morte de Virginius e
Virginius foi o mentor in- mesas de templos prestaram suas homenagens
telectual de uma geração que ao Menestrel. O fato foi notí-
marcou época nas tertúlias da boemia cia no jornal A União, e volta
realizadas nas mesas de tem- a receber agora o merecido
plos da boemia pessoense, a
pessoense, a destaque, nesta edição do
exemplo da Sorveteria Ca- exemplo da Correio das Artes.
nadá, Churrascaria Bambu Já o Arca de sonhos, que
e Cassino da Lagoa, o pri- Sorveteria guarda em suas páginas ale-
meiro no Ponto de Cem Réis Canadá. gres memórias de Virginius,
e os dois últimos, no Parque foi lançado por Biu Ramos há
Sólon de Lucena. exatos 30 anos. A data susci-
O “Menestrel” não vivia nismo e paisagem, Caxias, A tou, também, um amplo re-
apenas de sonhos, haja vista modelação, Os seres, Tempo de gistro jornalístico no Correio
ser adepto da teoria e prática. vingança e A vítima geral. das Artes. A vida e a arte, com
Comentou os livros de mui- O jornalista e escritor Seve- suas belas e estranhas rela-
tos escritores, em resenhas rino Ramos - que conquistou ções, estão assim celebradas
memoráveis, mas criou tam- fama nos meios jornalísticos no suplemento de A União.
bém obras de ficção e análise, como Biu Ramos – integrou
de que são exemplos Antago- a entourage boêmia de Virgi- O Editor

6 índice

, 4 @ 16 2 49 D 54
Virginius e biu Dôra Limeira sérgio tavares Ronaldo Cagiano
Reportagens abordam O jornalista Linaldo O escritor Sérgio Tavares, "Travessias". Este é o
os 40 anos da morte de Guedes e o professor autor de Cavala (vencedor título do conto, cedido
Virginius da Gama e Melo e José Mário da Silva do prêmio Sesc de Literatura gentilmente, para
os 30 anos de lançamento rememoram a história de 2009), estreia no Correio publicação no Correio
do livro Arca de sonhos, do vida e o legado literário da das Artes com o conto "A das Artes, pelo escritor e
jornalista Biu Ramos. escritora Dôra Limeira. vida de Lucélia Santos". tradutor Ronaldo Cagiano.

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http://www.auniao.pb.gov.br Câmara Neto Azevedo
fotos: arquivo a união

6 memória

Virginius
da
Gama
e
Melo
40 anos sem o “Menestrel”
Linaldo Guedes
linaldo.guedes@gmail.com

P
ara muitos que o conheceram de perto, tos deles premiados. Entre eles, Antago-
Virginius da Gama e Melo, o “Menestrel”, nismo e paisagem, Caxias, A modelação, Os
é considerado uma das maiores expres- seres, Tempo de vingança e A vítima geral.
sões dos meios intelectuais e literários Depois de morto, teve várias obras lan-
paraibanos. Faleceu há 40 anos, em 1º de çadas também.
agosto de 1975, mas até hoje amigos da Os 40 anos da morte de Virginius da
época lembram-se de sua figura elegan- Gama e Melo foram lembrados por ami-
te, sempre de paletó, geralmente branco, gos do escritor e crítico literário na Pa-
com o lenço combinando com a gravata. raíba. Wills Leal, por exemplo, lamenta
Não foi apenas uma referência literária. o desprezo dado ao sobrado do antigo
Foi também um boêmio na mais completa presidente Gama e Melo, onde nasceu
acepção da palavra e liderava as mesas da Virginius, “do qual só restam a parede
Sorveteria Canadá, no Ponto de Cem Réis, frontal destelhada e mal sustentando a
e da Churrascaria Bambu, na Lagoa do plaquinha desse registro pendente de
Parque Sólon de Lucena, em João Pessoa. dois dos quatro pinos enferrujados que
Virginius lançou diversos livros, mui- a sustentam”, protestou. c

4 | João Pessoa, agosto de 2015 Correio das Artes – A UNIÃO


c A historiadora Lourdinha panha o romance Pureza como
Luna, que foi secretária do es- introdução emblemática às suas
critor e ministro José Américo diversas edições”, analiso.
de Almeida, lembra com rique- Hildeberto acredita que Vir-
za de detalhes o falecimento de ginius realizou, provavelmente
Virginius: “Manhã de 2.8.1975, pela primeira vez, a contextua-
um telefonema, cedinho, do ci- lização da literatura paraibana
neasta Paulo Melo avisava que em meio à esfera mais larga
Virginius da Gama e Melo ha- da literatura brasileira, e, ao
via partido para a esfera side- lado de Juarez da Gama Batis-
ral. Comuniquei a José Américo ta, se solidificou como um dos
o triste acontecido e ele me con- eminentes críticos literários do
vidou a ir ao velório que acon- Nordeste. “A boêmia consistia
tecia em sua casa, no Roger. Ao também numa dimensão estéti-
chegarmos à Rua Prof. Batista ca, lúdica e literária de sua per-
Leite, cumprimentamos as tias sonalidade como uma extensão
do falecido e chamou minha de sua cátedra universitária
atenção, a dor exibida nas faces que se configurava, também,
de Paulo Melo e Edvanda Cân- nas mesas de bar e ao sopro
dido, ambos apoiados em uma dos primeiros chamados das
parede tinhas os olhos fixos madrugadas acesas do Bambu”,
no cadáver. Lá encontramos o observa. Respondendo a Lour-
governador Ivan Bichara com dinha Luna, Hildeberto diz que
quem José Américo lamentou a não se considera substituto do
desventura da cultura literária menestrel: “Certas figuras de-
paraibana ao se desfazer do crí- saparecem e deixam seu espaço
tico de renomado valor. Disse- sempre vazio. Também me con-
-lhe o Ministro: ‘Você, Ivan, po- sidero boêmio, também me con-
deria substituí-lo, mas emigrou sidero crítico literário, porém,
de sua vocação para a política.’ nossos universos cognitivos e
Nem sabia o ministro que es- psicológicos são diferentes no
tava em gestação o talento que A presença de Virginius no meio tempo e no espaço, embora al-
iria suceder Virginius, na análi- literário paraibano foi “seminal e guma coisa tácita possa nos ir-
se dos textos produzidos pelos fundante”, na opinião de Hildeberto manar no profundo e visceral
Barbosa Filho
escritores da Paraíba e do Bra- amor à coisa literária”.
sil, o ilustre acadêmico da APL Hildeberto entende que Vir-
professor Hildeberto Barbosa ginius não deixou seguidores.
Filho. São passados 40 anos do “Admiradores, sim, porque seu
episódio que entristeceu a inte- jeito e sua generosidade fasci-
lectualidade paraibana”. navam os que o cercavam nas
Apontado como sucessor de noites de debates públicos, à
Virginius no terreno da crítica beira vida e à beira bares. Fico
por Lourdinha Luna, Hilde- feliz em, entre outros, cultivar
berto esclarece que não chegou a sua memória e estudar o seu
a conhecer o autor de Tempo de dentro do campo sempre aber- legado interpretativo. A ele
vingança pessoalmente. “Aca- to da vida cotidiana e boêmia dediquei um estudo intitula-
bara de chegar à cidade de João da cidade. do ‘Notas à margem da crítica
Pessoa, ainda muito jovem, “Cronista da vida cultural, em Virginius da Gama e Melo’,
para fazer o curso de Direito, romancista histórico, couser inserido no meu livro As cila-
quando Virginius faleceu, sal- inimitável e, sobretudo, crítico das da escrita: aspectos da litera-
vo engano, no dia 1º de agosto literário genuíno, deixou pági- tura na Paraíba, de 1999. Ali, eu
de 1975”, recorda. nas relevantes acerca de alguns tento descortinar seu método
Para Hildeberto, a presença escritores brasileiros, a exem- particular de leitura, suas ba-
de Virginius no meio literário plo de José Lins do Rêgo, Jorge ses teóricas e seus objetos pre-
local foi simplesmente seminal Amado, Josué Montello e Ola- feridos. Mas não esgotei suas
e fundante, uma vez que toda vo Bilac, a quem, em especial, ofertas ensaísticas e estudio-
uma geração de escritores, in- dedicou um ensaio de cunho sas. Sempre leio e releio seus
telectuais e artistas aglutinou- exegético e estilístico dos mais textos com prazer. Virginius é
-se em torno de sua figura cata- fecundos. Seu melhor ensaio um crítico com o qual se apren-
lisadora, a receber uma espécie crítico, no entanto, é o que abor- de muito a respeito dos sortilé-
de magistério espontâneo e li- da a paisagem telúrica do ro- gios peculiares à arte literária”,
vre dos artefatos acadêmicos, mance de Zé Lins e que acom- sublinha o crítico. c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2015 | 5


Ilustração: Domingos Sávio

6 | João Pessoa, agosto de 2015 Correio das Artes – A UNIÃO


c REITOR DA Churrascaria Bambu,
no Parque Sólon de
Lucena (Lagoa)

UNIVERSIDADE
CHURRASCARIA
BAMBU
Autor do livro Academias de bambu
– Boêmia e intelectualidade nas mesas
de bar, fruto de tese acadêmica, o jor- por causa da situação política, e a festejado intelectual de seu tempo,
nalista Phelipe Caldas defende que Bambu era o ambiente comum de- comparado com vultos de nossa li-
Virginius da Gama e Melo era um les. O local onde eles se reuniam. teratura, como José Lins do Rego,
dos boêmios mais festejados de seu Onde eles existiam como conjunto. mas que com o tempo foi relegado a
tempo. Até porque era um boêmio Alguns dos principais intelectuais posto menor na história paraibana.
na essência da palavra. “Bebia todos da cidade frequentavam o bar. In- Todos os paraibanos mais jovens
os dias (menos nos finais de semana, cluindo muitos jovens, escritores, sabem quem foi José Lins do Rego,
já que, nestes momentos, os bares se que se tornariam célebres no futu- por exemplo, mas não têm a menor
enchiam de amadores) e tinha uma ro. Toda a Geração Sanhauá se for- ideia de quem foi Virginius. Tentei
incrível capacidade de congregar em mou na Bambu. E muitos de seus analisar isto. Uma tese é a de que ele
torno dele outros intelectuais. Se tra- livros foram escritos nas mesas da era muito mais famoso como agita-
tarmos a Churrascaria Bambu como Bambu. Nomes como Marcos dos dor cultural e boêmio, do que como
uma espécie de ‘universidade de cal- Anjos, Marcos Tavares, Marcos Vi- escritor. Outros dizem que ele era
çada’, ele certamente era o reitor da nícius, Anco Márcio, Sérgio de Cas- um crítico literário realmente muito
Bambu. E esta não é uma referência tro Pinto, Antônio Serafim e Ponce bom, mas que era medíocre como ro-
meramente poética. Existem relatos de Leon foram gestados como escri- mancista (e ele escreveu dois roman-
de que os debates em sua mesa no tores no local, segundo Phelipe. ces). O fato é que ao longo da vida
bar eram verdadeiras aulas literá- Ainda segundo o autor de Acade- ganhou vários prêmios literários,
rias. E ele liderava tanto os homens mias de bambu, Virginius da Gama e alguns deles em locais em que sua
de sua geração como os mais novos, Melo era bastante respeitado pelos fama boêmia não era tão difundida.
da Geração Sanhauá, por exemplo, seus contemporâneos e idolatrado E realmente movimentava a vida li-
que ainda no início da vida literária pelos mais jovens, muitos de seus terária da cidade. Mas de fato existe
tentavam sorver o que ele tinha a alunos que lhe acompanhavam até certa divergência sobre o real valor
oferecer. Um outro detalhe: a Chur- o bar. “E aí tem uma questão curio- de sua obra, inclusive pelos próprios
rascaria Bambu sempre foi o seu sa. Os mais novos, já “fazedores de contemporâneos”, enfatiza.
reduto boêmio preferido, e, curio- cultura”, buscavam certo reconheci- Virginius da Gama e Melo nas-
samente, Virginius morreu apenas mento dele, o que nunca aconteceu. ceu em 19 de outubro de 1923, na
dois anos depois da morte do bar”, Marcos Tavares, na época da minha Rua General Osório, número 71, no
relata Phelipe. pesquisa, chegou a confessar que centro de João Pessoa. Começou sua
Em seu trabalho, Phelipe defen- cada livro publicado pela Geração vida boêmia ainda quando estudava
de que os bares, principalmente em Sanhauá era seguido de frustração. na Faculdade de Direito do Recife.
tempos de pouca liberdade política, Porque eles esperavam alguma crí- Depois, voltou para João Pessoa e
transformam-se em pontos de resis- tica de Virginius, que escrevia em passou a ser polo aglutinador da in-
tência, ilhas de democracia, redutos jornais, mas ele nunca reservou telectualidade pessoense. Para Mar-
de saberes que são combatidos pelos seu tempo e seu espaço no jornal cos Tavares, ele criou uma geração.
opressores. “É exatamente este ce- para falar dos mais jovens. Isto ge- Era chamado de Menestrel pelos
nário que nós temos em João Pessoa rou mágoas. Era como se Virginius amigos, ia para os bares em carro de
naquela época. Repressão política, ainda não os visse como escritores praça e ganhou fama nacional como
pouca liberdade e opositores sendo e os mais jovens não recebiam isto crítico literário.
presos. A resistência se forma, as- muito bem. Mas esta era uma mágoa Para o escritor Gonzaga Rodri-
sim, nos bares. E a Bambu sempre que nunca foi levada para as mesas gues, a maior homenagem que se
foi a favorita. Três fatores favorecem da Bambu. Nunca houve um con- pode fazer ao Menestrel é reestudá-
a Bambu neste ponto: sua localiza- traponto público do grupo a ele. E -lo, republicá-lo, “o que compete
ção central, seus preços mais acessí- mais: a mágoa, talvez, é prova maior prioritariamente à Universidade
veis (em comparação ao Cassino da do respeito que ele possuía com os onde ele atuou e deu o prestígio que
Lagoa, por exemplo) e seu tamanho demais autores. Afinal, as pessoas ela precisava”. E
físico. Como era um espaço grande, só querem ser vistas por quem vale a
que ocupava boa parte dos bambu- pena. A mágoa silenciosa, portanto,
zais da Lagoa, conseguia abarcar to- jamais abalou sua figura central na Linaldo Guedes é poeta e jornalista,
das as tribos”, historia. Bambu”, ressalta. autor, entre outros, dos livros Os
zumbis também escutam blues e
Phelipe explica que, do ponto No livro, Phelipe Caldas faz, ain-
outros poemas (1998), Intervalo lírico
de vista da formação cultural, a da, uma análise comparativa sobre (2005), Metáforas para um duelo no
Bambu servia como um ponto de quem foi Virginius no bar e quem sertão (2012) e Receitas de como se
convergência para os intelectuais. se tornou Virginius com o tempo. tornar um bom escritor (2015). Mora
Eram tempos de dispersão, muito “É curioso ver que ele era o mais em João Pessoa (PB)

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2015 | 7


6 livros

Aqui também HÁ 30 ANOS O JORNALISTA


E ESCRITOR BIU RAMOS
LANÇAVA ARCA DE SONHOS OU
MOCIDADE E OUTROS HERÓIS,
A MELHOR CRÔNICA JÁ ESCRITA
SOBRE A VIDA BOÊMIA NA
CIDADE DE JOÃO PESSOA, NOS
ANOS 50/60

Foto de biu ramos sobreposta: antonio david

8 | João Pessoa, agosto de 2015 Correio das Artes – A UNIÃO


c

era uma festa


William Costa
Editor do Correio das Artes

As grandes guerras mundiais são tão absur- bitados por artistas, jornalistas, poetas, pro-
das e causam traumas tão profundos que os sadores, professores, médicos, funcionários
homens de espírito livre, crítico e criativo, após públicos, advogados etc., além de uma gen-
os armistícios – sim, os estados de beligerância te especial que não se enquadra nos padrões
jamais foram totalmente proscritos -, caem na comportamentais, figurando na rubrica de
boemia, uma forma mais comedida de esbór- boas-vidas, para não dizer “desregrados”.
nia, e voltam a celebrar a vida. A festa, geral- Nestas távolas redondas, arejadas por moi-
mente, começa no final da tarde e estende-se nhos, que se formam tão logo o Sol dá as cos-
pela madrugada, tendo como palcos privile- tas, os problemas do mundo, como também os
giados restaurantes, bares, botecos e cabarés. hábitos comezinhos da cidade, são trazidos à
Da farra não participam, evidentemente, to- tona, para debate, solução, deboche ou trans-
dos os cidadãos. E sim “medalhões”, flâneurs figuração. Há sempre um Dom Quixote ou Rei
e talentos em ascensão das “classes” artística Arthur disposto a tudo. Mas como todas as
e intelectual, espécies de guetos sociais ha- dores já foram choradas e todas as lágrimas, c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2015 | 9


Foto: arquivo a união

c derramadas – lembre-se, estamos nos


pós-guerras -, tudo acaba em longas e Jornalista e crítico de
sonoras gargalhadas. cinema Barreto Neto,
Foi assim, por exemplo, na Paris autor do prefácio de
Arca de sonhos
dos anos vinte, de Ernest Heming-
way, Gertrude Stein, James Joyce, Ezra
Pound, F. Scott Fitzgerald, T. S. Eliot,
Luis Buñuel, Salvador Dalí, Pablo Pi-
casso e Cole Porter, no requinte da
lendária Brasserie Lipp. E na Barran-
quilla dos anos cinquenta, de Gabriel
García Márquez, Álvaro Cepeda Sa-
mudio, Alfonso Fuenmayor, Germán
Vargas e Alejandro Obregón, no não
menos mítico salão do La Cueva.
O Brasil não poderia ficar de fora
dessa festa que, pelo menos em al-
guns redutos do Rio de Janeiro, pare-
Impressões de embarcadiço
ce que ainda não acabou. Nos “anos Antônio Barreto Neto dos pelo menestrel Virgínius
dourados” da antiga capital federal, a e sua corte, pelo inflamado
boemia e a malandragem pobres fa- tribuno Mocidade, pelo lord
ziam a patuscada na Lapa e no Está-
cio, enquanto seu equivalente “classe O s futuros historiadores
de nossa vida social irão en-
Sílvio Porto, pelo indômito
Venelipe, pelo circunspecto
média para cima” centralizava a es- Walfredo Rodriguez... e ou-
troinice em Copacabana, nas mesas contrar um rico material de tros tantos outros heróis que
do Sorreno, Maxim’s, Furna da Onça, pesquisa em Arca de sonhos ou marcaram a vida e a história
Bife de Ouro, Bistrô, Vogue, Copa, Mocidade e outros heróis, de Se- desse nosso bravo burgo.
Baccarat, Casablanca, Acapulco etc. verino Ramos. O livro é uma Narrador fluente, hábil de-
deliciosa crônica da vida in- senhista de perfis, Severino
O mantra “sonhar é viver” sedu-
telectual e boêmia da cidade Ramos evoca esse universo
ziu a boemia do mundo ocidental e,
nos idos de 50/60. Um alegre e mágico com a graça natural
no segundo pós-guerra, trazido pela
colorido mural da provincia- de um bom contador de casos,
brisa do Atlântico, também veio dar
na sociedade pessoense da- que simpatiza e se diverte com
na banda mais oriental das Améri-
quela época, seus ambientes seus personagens. Repórter
cas, sendo entoado do Parque Sólon típicos, seus hábitos peculia-
de Lucena, a Lagoa, até o derradeiro arguto, sensível na captação
res, suas figuras marcantes e do essencial, seus perfis não se
casarão do Centro Histórico de João seus tipos populares.
Pessoa, ecoando, com mais vigor, en- esgotam no pitoresco. Se esse
Como todo mural, o livro é o traço mais forte, nem por
tre as mesas da Churrascaria Bambu, é estruturado em fragmen- isso ele esquece os claro-es-
Cassino da Lagoa, Sorveteria Canadá, tos, que vão se ajustando em curos que produzem relevos
Café Alvear e cabarés da Rua Maciel torno de um ponto comum reveladores da verdade huma-
Pinheiro e adjacências. – aqui, o intemporal passeio na de cada um, recortada com
Hemingway registrou sua “bela do senador David José dos fidelidade e carinho.
época” na capital francesa no livro Reis pela cidade – para com- Creio que o verdadeiro
Paris é uma festa. García Márquez por, no conjunto, a imagem conhecimento de uma socie-
rememora os bons tempos de Bar- do universo mágico recriado dade, de suas características
ranquilla em um dos capítulos de pela memória e imaginação mais típicas e vitais, não nos
Viver para contar, sua autobiografia. do autor. Realidade e fantasia é dado apenas pela História.
Já a boemia carioca está fartamente fundem-se na descrição dos A contribuição da crônica é
documentada em incontáveis filmes, ambientes e tipos humanos fundamental. A História só se
desse universo, que Severino ocupa dos grandes feitos, dos
discos e livros, sendo um dos mais
Ramos evoca em prosa sim- acontecimentos que mudam
recomendáveis, no que diz respeito
ples e direta, clara e precisa, o curso natural das coisas,
à Zona Sul carioca, cenário da bos- de grande força emotiva. dos homens que interferem
sa nova, Chega de saudade, do escritor Os que estão hoje na fai- no destino das sociedades. A
mineiro Ruy Castro. xa dos 40/50 anos navegarão crônica fica com as miudezas
E João Pessoa, onde entra nessa nessa arca de sonhos com do cotidiano social, suas fei-
história? Arrodeamos, caro leitor, emoção e saudade, percorren- ções e modos peculiares, seus
mas, finalmente, chegamos aonde do os territórios mágicos do heróis de anônimas batalhas.
queríamos chegar: o Ponto de Cem Ponto de Cem Réis, da Sorve- A História é séria, sisuda,
Réis, a indestrutível (por mais que teria Canadá, do Café Alvear, compenetrada. A crônica é
tentem) ágora do Centro Histórico da boate Havaí, da Churras- alegre, bem humorada, des-
da capital paraibana, onde, há trinta caria Bambu, do Cassino da contraída. Confiram, embar-
anos, o jornalista e escritor Severino Lagoa e, sobretudo, o reinado cando nessa arca.
Ramos - mais conhecido como Biu encantado da Maciel Pinhei- E boa viagem.
Ramos - ancorou sua Arca de sonhos ro, com sua estranha fauna
ou Mocidade e outros heróis, abarrotada notívaga. Territórios povoa- (Prefácio de Arca de sonhos)
de deliciosas memórias dos “tempos c
heroicos” da “Cidade das Acácias”.
10 | João Pessoa, agosto de 2015 Correio das Artes – A UNIÃO
c SENADOR artimanhas do Rei Pelé, para não
marcar o milésimo gol em João

DAVID JOSÉ DOS REIS:


Pessoa, são algumas das histó-
rias impagáveis reunidas por Biu
Ramos em sua Arca de sonhos.
Assim como Noé construiu a
O TIMONEIRO DA sua, para livrar a bicharada e a
humanidade da ira divina, Biu
EMBARCAÇÃO Ramos projetou sua arca para
salvar memórias preciosas da
cidade de João Pessoa, narradas
Arca de sonhos, como o pró- do de suas ruas, ajudou a colocar com verve inigualável. Arca de
prio subtítulo sugere, não conta as torres de cada uma de suas sonhos é como o vinho bom por-
apenas as aventuras e desditas igrejas seculares”. tuguês: quanto mais o tempo
dos boêmios que, a exemplo do Pelo trecho acima, percebe-se passa, mais saboroso fica. Nada
próprio Biu Ramos, tinham no que Biu Ramos também lança nele é datado. Dizem que a crô-
professor universitário, escritor mão de uma paleta de cores lí- nica é gênero cujo prazo de vali-
e crítico literário Virginius da ricas, para fazer, da cidade que dade vence rápido. Acontece que
Gama e Melo um mentor inte- o acolheu, na juventude, um re- Biu Ramos nasceu para ser exce-
lectual e companheiro insubs- trato da saudade. Os matizes são ção, e não a regra. c
tituível de tertúlias - que come- propositalmente variados, única
çavam sempre nos fins de tarde, maneira de dar conta da multi- Fotos: arquivo a união
na Sorveteria Canadá, e pros- plicidade de personagens e situa-
seguiam no Cassino da Lagoa, ções que conformam este mira-
Churrascaria Bambu e lugares bolante painel social que é Arca
menos recomendáveis. de sonhos. O livro é como conver-
Tremula a Bandeira Brasileira. sa em mesa de bar, tem hora para
É Maria Isabel desembarcando tudo: rir, chorar, contar, cantar,
da Arca de sonhos: “Vassoura, com declamar e encenar.
suas pernas tortas à força da mon- Durante a leitura de Arca de
taria, uns alforjes que se pendura- sonhos, os mais velhos certamen-
vam pelos ombros, um chicote ou te choram de saudade, enquanto
uma chibata na mão, investe con- os mais novos riem a bandeiras
tra os heróis-fantasmas que infes- despregadas. É que Biu Ramos
tam esta cidade de ponta a ponta. fez de seu livro não só um pan-
Montada em seu Rocinante, é o teão de heróis populares, como
arremedo de uma amazona e não “Mocidade”, “Vassoura”, “Ma-
chega a ser uma réplica, de saias, caxeira” etc., ou uma galeria de
de D. Quixote. Ela é a estrela-ra- vultos históricos e homens de
inha destas noites intermináveis cultura, como Walfredo Rodri-
de cavalgadas de sonhos”. gues e Augusto dos Anjos, mas
Biu Ramos elegeu o “senador” também o inventário do melhor Maria Isabel Bandeira Brasileira: a
David José dos Reis – persona- anedotário da capital. intrépida “Vassoura”
gem real e uma das figuras mais A nau construída por Biu Ra-
emblemáticas do Ponto de Cem mos, para navegar no oceano
Réis -, para ser o timoneiro de sua do tempo, resgata a memória
Arca de sonhos. Em seu passeio de uma João Pessoa que desa-
pela cidade, o senador relembra pareceu para sempre, ou dela
casos e causos, conta piadas, e sobraram apenas vestígios. Uma
assegura um lugar, na história, cidade habitada por personagens
para os homens e mulheres que, feitos de uma fibra que a gené-
não importa a classe social, con- tica não fabrica nem a cultura
tribuíram cada um a sua manei- consegue moldar mais. Uma ci-
ra, para dar uma feição singular dade onde a alegria morava nos
à alma da capital paraibana. bairros populares, enfeitando-se
Está lá, no capítulo inaugural nos dias de festa e nos fins de se-
de Arca de sonhos: “David tem mana de futebol. Depois ia para
as chaves de todos os mistérios o Centro, jogar conversa fora.
desta Cidade. É ele quem abre O cinematográfico passeio
as suas portas todas as manhãs, de Walfredo Rodriguez com o
para fazer entrar a sua grande senador David, pela cidade, as
multidão de heróis e receber o “tiradas” de Mocidade, os in-
brilho do Sol que se levanta de fortúnios do prefeito Apolônio,
seu leito de espumas do mar de dos desportistas Venelipe e Lula
Tambaú. David, com sua lente de Fodinha, da apaixonada “Marle-
alcance, testemunhou a funda- ne”, do carente Manezinho e do João da Costa e Silva, o
ção da Cidade, orientou o traça- Mestre Alfredo, sem falar nas irreverente tribuno “Mocidade”

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2015 | 11


c
TRÂNSITO INTERROMPIDO
NA RUA DAS TRINCHEIRAS
Biu Ramos lançou Arca de
sonhos, em 1985, no Hotel Tro-
picana, localizado na Rua das
Trincheiras, Centro de João
Pessoa. Segundo ele, a artéria
ficou pequena para a longa fila
de automóveis que se formou,
começando no Pavilhão do
Chá e esticando-se até o prédio
da antiga Escola Industrial, no
bairro de Jaguaribe. “A reper-
cussão foi enorme. Foi o livro
mais comentado, na Paraíba,
até hoje, seja de escritor parai-
bano ou de fora”, garante.
O sucesso do livro teve maior
relevância, porque, na opinião de
Biu, na Paraíba não existia crítica
literária. “A crítica literária daqui O jornalista Carlos Romero ...embora não
também exerceu a crítica assiduamente, como
sempre foi muito capenga. Os crí-
literária... Virginius da Gama e Melo
ticos literários eram Virginius da
Gama e Melo e, eventualmente,
Carlos Romero. Eram poucos os
que se dedicavam a esse ofício. juntando os demais personagens que representassem a ‘vida
Porque não tinha literatura, tam- anímica’ da cidade, como dizia Gonzaga Rodrigues”, conta.
bém. Os escritores eram aqueles A escrita de Arca de sonhos foi demorada porque Biu Ramos
‘medalhões’ que se faziam de visitou todos os lugares da cidade que iria citar no livro. “Fui
santos e não queriam acesso à à Cidade Baixa e procurei os locais pitorescos, como o Porto
grande massa”, ressalta. do Capim. Mas o Ponto de Cem Réis era o ponto nevrálgico
Biu Ramos escreveu Arca de da cidade. A gente passava por lá todos os dias, todo mundo
sonhos para concorrer ao prê- vivia no Ponto de Cem Réis. Então eu comecei a observar o
mio instituído pela Comissão Ponto de Cem Réis com outros olhos, mirando nas figuras
do IV Centenário da Paraíba, que habitavam a área”, sublinha.
embora assegure que não tinha Apelidado de “Senador”, David José Reis é descrito por Biu
a pretensão de vencer o con- Ramos como uma das figuras mais interessantes e curiosas
clave. “Eu vim morar em João dentre as que frequentavam o Ponto de Cem Réis. “A des-
Pessoa ainda jovem, mas não crição que eu faço dele, no livro, é perfeita. É como ele era
tinha um trabalho para home- mesmo. Um sujeito bonachão, muito gozador, que usava pa-
nagear a cidade. Certo dia, pas- letó e gravata, diariamente, e fumava charuto. Ele não tinha
sando pelo Ponto de Cem Réis, pretensão de ser rei ou imperador, como está dito no livro.
me veio a ideia de mostrar o Isso é coisa da minha imaginação”, explica.
lado boêmio da capital, as sim- O único dissabor oriundo da publicação de Arca de sonho teria
páticas figuras populares que sido protagonizado por um filho de Venelipe Joaquim de Almei-
viviam naquela área central”. da, dirigente do Filipéia Esporte Clube, personagem da crônica
Para Biu Ramos, nenhuma “O Vou de Venelipe”, uma das mais engraçadas do livro. Ele
cidade do país tem um lugar achou o texto desrespeitoso, mas, segundo Biu Ramos, Veneli-
tão expressivo como o Ponto de pe foi retratado fielmente. “Ele era uma figura queridíssima em
Cem Reis – cujo nome oficial é João Pessoa, e a linguagem dele era essa”, acrescenta.
Praça Vidal de Negreiros. “Eu As filhas do senador David ficaram preocupadas. Pensa-
entendi que no Ponto de Cem vam que Biu iria retratá-lo de forma depreciativa. “Elas me
Réis estava toda a história da procuraram e pediram para ver o texto antes de ser publica-
Paraíba. Então transformei Da- do, interessadas em saber se tinha algo que atingisse a memó-
vid José dos Reis, que era um ser ria do pai. Ele era de uma família bem conceituada, as filhas
humano extraordinário, na figu- eram professoras. O fato é que elas leram os originais, acha-
ra central do livro. Depois fui ram excelente e não fizeram nenhuma restrição”, disse. c

12 | João Pessoa, agosto de 2015 Correio das Artes – A UNIÃO


c POLÊMICO NO JORNALISMO, cuidado de quando fizer um li-
vro fazer pensando em deixar
uma obra eterna, que possa ven-
BIÓGRAFO NA LITERATURA cer o tempo e ser sempre uma re-
ferência do seu trabalho. Eu não
tenho mais pretensões. O que eu
Autor de onze livros, Biu Ra- articulista político e polêmico. tinha de fazer, em literatura, eu
mos diz que a sua opção pela “Eu sempre gostei da polêmica já fiz, porque eu escrevi onze li-
reportagem (Crimes que abalaram violenta. Eu enfrentei muitas vros. Não é brincadeira. E todos
a Paraíba), biografia (João Agripi- polêmicas aqui que entraram me satisfizeram, o que é funda-
no, Tarcísio Burity, Paulo Pontes) para a história. Nas minhas mental”, reconhece.
e autobiografia (Memórias de um colunas nos jornais Correio da Biu argumenta que o livro
repórter) nasceu de sua atua- Paraíba e O Norte eu abordava deve satisfazer, primeiramente,
ção criteriosa como jornalista. os temas com muita densidade, ao autor. “O livro pode ter a re-
“Eu sempre tive o cuidado de às vezes de maneira até incon- ceptividade que tiver do públi-
guardar imagens e documen- veniente, eu mesmo reconheço co, mas a minha satisfação pes-
tos impressos que eu sabia que que muitas vezes fui inconve- soal, a minha realização como
tinham valor e que, futuramen- niente nos artigos que fiz. Mas escritor é que me interessa. Se o
te, iria precisar deles para uma era o meu estilo. Não podia ser livro é bem recebido ou não pela
pesquisa ou outro trabalho sério diferente”, advoga. crítica é problema da crítica, não
qualquer”, destaca. E olhe que não foi por falta é meu. O fato é que eu me satis-
Esses documentos Biu guar- de influência literária. Biu é lei- fiz em escrever aquele livro e por
dava em sua casa. E assim foi tor declarado de Jorge Amado e isso já me considero vitorioso.
criando um substancioso arqui- Graciliano Ramos (no romance), Não escrevo para agradar nem à
vo particular. “De maneira que Manuel Bandeira, Carlos Drum- critica nem ao crítico. Eu quero
quando eu me dispus a escrever mond de Andrade e Augusto dos agradar a mim”, admite.
o meu primeiro livro biográfi- Anjos (na poesia) e Carlos Lacer- Mas ele não se considera
co, sobre o ex-governador João da (no jornalismo). “Não diria egoísta por pensar assim. “É
Agripino, as fontes pertenciam que ele me influenciou, mas um que o meu senso de autocrítica
ao meu arquivo pessoal. De dos autores que mais gosto, ain- é muito forte. Eu sou muito ri-
Agripino só tinha um depoi- da hoje, é Jorge Amado. É um goroso comigo mesmo. Se eu me
mento que ele deu na Fundação dos maiores escritores do Brasil, satisfizer com aquela obra que
Getúlio Vargas, o resto era tudo como Graciliano. Esses me mar- terminei, pouco importa a opi-
meu: fotografias, depoimentos, caram”, confidencia. nião de terceiros, do crítico lite-
entrevistas etc.”, enumera. Biu aposentou-se do jornalis- rário ou do pseudocrítico. Se de-
A ficção nunca o seduziu. En- mo e da literatura. Hoje, mantém pois de escrever um livro eu ler
tende que o sonho de todo es- apenas o hábito de ler livros e e achar que está impecável, não
critor é fazer um romance, mas jornais, diariamente. E é muito tem muita coisa para remendar,
nunca se aventurou nessa seara sincero ao abordar este assunto. aí estou realizado,
porque lhe falta a vocação lite- “Você não pode forçar a barra, como escritor”,
rária. “Tem pessoas que juntam escrever sem ter o que di- conclui. I
duas, três frases e faz uma poe- zer. No meu caso, eu só
sia, mas não é por aí”, critica. A escrevi quando tinha o
crônica também nunca o inte- que dizer, porque livro
ressou. “Eu a pratiquei na Arca é uma coisa de muita
de sonhos porque esse era o estilo responsabilidade, não
que se impunha, mas reconheço é você pegar umas
que nunca fui um cronista, como ideias loucas ou ideia
é Gonzaga Rodrigues e como foi nenhuma, juntar as
Natanael Alves”, assinala. palavras e dizer que é
Na verdade, o um livro. Não é”, ques-
que Biu é e tiona.
gosta de Para ele, um livro, por
ser é menor que seja, é um re-
gistro intelectual ou
poético que fica
para a eternida-
de. “Então é
bom você
ter o

Biu Ramos em sua residência,


no bairro de Jaguaribe. A
foto é de Antônio David, feita
especialmente para esta edição
do Correio das Artes

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2015 | 13


6 depoimentos
O lançamento de Arca de sonhos ou Mocidade e ou- essa fauna em extinção, que vive ou viveu ao arrepio
tros heróis suscitou inúmeros artigos na imprensa do catecismo de gente bem.
paraibana, assinados não só por colegas de batente
de Biu Ramos, como também por professores e crí- Do escritor e ex-governador
ticos de literatura. A quantidade e a qualidade dos
Ivan Bichara:
registros atestam o impacto provocado pela obra.
Seu livro é uma delícia. À sua tendên-
Selecionamos alguns trechos da “fortuna crítica” do
livro, para ilustrar a reportagem comemorativa dos cia para a ironia, para a mistura de sal e
30 anos de sua publicação. pimenta com a sua prosa sensual e ágil, se
junta a evocação de figuras do passado, à
saudade dos companheiros (Virgínius no
Do cronista e jornalista
centro), fazendo tudo isso junto com uma
Carlos Romero: combinação que torna seu livro saboroso, rico, luminoso, ex-
Arca de sonhos: Severino Ramos, com traordinário, raro. Tem sentido a acolhida cordial e calorosa
as armas de sua imaginação e de sua in-
com que a Arca tem sido festejada. Meus parabéns.
teligência, soube nos dar um livro-res-
surreição, uma panorâmica extraordiná-
ria do nosso passado boêmio e humano. Do jornalista
Soube, com sua pena de mestre, cultuar Abmael Morais:
aqueles heróis que Carlyle esqueceu e que Realmente, como era esperado, o
os historiadores não costumam registrar. sucesso do lançamento do livro de Biu
Heróis que ficam marginalizados na vida e na história. Ramos. Os salões do Tropicana quase
que não eram capacitados para receber
Do historiador e jornalista tanta gente que foi prestigiar o dèbut li-
Wellington Aguiar: terário do “menino de engenho que deu
Confesso que Arca de sonhos me despertou muitas sau- certo”. O livro, então, já está receitado
dades. Saudades daqueles que já se foram, pelos médicos da paróquia, como remédio para o fígado.
e que nessas páginas parecem reviver Quer desopilar? Vá no Arca de sonhos ou Mocidade e
graças à pena mágica de Severino Ra- outros heróis. Já à venda em livrarias e farmácias.
mos. Saudades de Sílvio Porto, Virgínius
da Gama e Melo, Apolônio Sales, de Mo- Do poeta, professor e crítico literário
cidade. Saudades também de coisas que Hildeberto Barbosa Filho:
não existem mais, como a Churrascaria O significado desta Arca de sonhos consiste em pri-
Bambu, o Café Alvear, Sorveteria Canadá, o Luzeirinho. meira mão no fato de que a velha Felipeia de Nossa Senho-
ra das Neves ganha seu primeiro prosador, consideradas,
Do jornalista Djacy Andrade: naturalmente, certas sinuosidades de sua paisagem, e cer-
Biu Ramos não se preocupou em fazer literatura, em tos “climas” de uma época que já passou. O primeiro a lhe
esnobar na narrativa. A sua preocupação maior foi con- sondar as entranhas, através da luneta dos sonhos e da
tar, dentro de um estilo todo seu, a vida noturna daquela memória poética.
época, numa crônica saborosa que se devora de uma vez
numa leitura sôfrega e direta. O livro tem o poder de levar Do jornalista Gonzaga Rodrigues:
àqueles tempos os que viveram a época e de deleitar os que Com humor disponível para todos os instantes da vida
não tiveram a glória de ter sido um daqueles heróis. e da história, (Biu Ramos) sai passeando com Mocidade,
Virgínius, Walfredo, o senador David, Zé Octávio, Sá Lei-
Do jornalista e escritor tão, sem que o leitor precise saber se está em 1817 ou 1986.
Helder Moura: Como já disse, o tempo não conta. Contam os instantes de
Biu Ramos, em muito boa hora, decide dedicar-se com perpetuidade vital (isso mesmo!) que vão compondo a mon-
mais avidez à Literatura, imprimindo a sua marca jorna- tagem da cidade em busca de sua identidade.
lística, ao individual espaço que medeia a Literatura do
Jornalismo, habitando aquele universo com seus heróis do Do escritor e crítico literário
cotidiano e sua filosofia de pé de orelha, em sua Arca de Gemy Cândido:
Sonhos, num mar de águas profundas, encapelado, sob o Severino Ramos conseguiu expri-
vento forte da inspiração. mir, com a força do seu espírito lunar,
a crônica histórica de uma cidade que
Do desembargador se encontra imersa no solo do passado.
Mário Moacyr Porto: E no esforço para dizer a verdade pra
Excelentes os tipos da boemia paraibana, que você que melhor fosse lido, não se utilizou
traçou com leveza e fidelidade. Eu, (vai aqui uma de qualquer método de investigação,
confissão), sempre fui um sujeito bem comportado, sabendo que não poderia usar os câno-
obediente à disciplina dos preconceitos, “virtuoso” nes da retórica cientifica confiante em princípios e leis
no sentido humilhante da palavra. Por isso mesmo, cujas variáveis são sempre influenciadas por nossos va-
admiro e invejo os boêmios, os homens da madrugada, lores e interesses pessoais.

14 | João Pessoa, agosto de 2015 Correio das Artes – A UNIÃO


P O E S I A

Célia Carvalho

imagem do plano de fundo: pintura de hermano josé


Ode ao Cabo Branco

Estou nu.
Diante de todos
minha nudez afronta
e no entanto ninguém,
ninguém se dá conta de minha dor.
Deixaram que minha intimidade fosse exposta,
zombaram de meus sentimentos
e menosprezaram minha beleza.
E agora, nu,
despojado de minhas vestes e pele
clamo por uma justiça tardia.
O sol inclemente resseca,
o vento e a chuva degradam minha aparência.
Estou nu, nu e só
e tenho medo,
medo do que ainda me possa acontecer.
Meus pés corroídos
pela indiferença dos homens
ameaçam levar-me ao chão.
Quem me reerguerá?
Quem me cobrirá com verde manto
que aquece e conforta as entranhas?
Quem cuidará para que minha beleza seja redescoberta
e eu possa, abandonar o pranto
para irradiar a beleza pujante,
deixar-me beijar pelo mar?
De que serve um farol a iluminar
se o cabo, sentinela do mar,
deixaram perecer indiferentes?

Célia Maria Costa


de Carvalho é
professora universitária
aposentada. Membro
da Academia de Letras
e Artes do Nordeste
- Núcleo da Paraíba
(Alane-PB) e da União
Brasileira de Escritores
- seção Paraíba (UBE-
PB). Autora de Vazio
(poesia, 1966) e
Alquimia das palavas
(poesia, 2008). Mora em
João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2015 | 15


6 memória

O encantamento
da escritora

Dôra Limeira
Linaldo Guedes
Linaldo.guedes@gmail.com

S
eu último livro foi lançado em rentes e publicado na antolo- ‘Daqui a dez anos você vai
abril deste ano. O livro afetuoso gia Todas as estações, pela edi- se tornar um grande escritor.
das cartas (Editora Ideia) nar- tora Peirópolis, São Paulo. Em Até lá trabalhe porque talento
rava a história de uma anciã 2005, publicou seu segundo você tem de sobra’. Foi assim
septuagenária que troca cor- livro de contos, Preces e orgas- que uma das minhas duas
respondência com um rapaz mos dos desvalidos. Em 2007, pu- musas da literatura paraiba-
de vinte e poucos anos. Dôra blicou O beijo de Deus, livro de na terminou o e-mail. Grato,
Limeira gostava de histórias minicontos. Edição indepen- Dôra, por me ensinar a arte
assim, aparentemente inu- dente, Editora Manufatura. da teimosia”.
sitadas, mas cheias de calor Em 2009, editou outro livro Em abril, quando do lança-
humano. A professora e escri- de contos, Os gemidos da rua mento de O livro afetuoso das
tora deixou de luto a literatu- (Editora Manufatura), finan- cartas, Dôra explicou a este
ra paraibana no último dia 4, ciado pelo Fundo Municipal repórter o seu processo de es-
ao morrer após complicações de Cultura (FMC). Cancionei- crita. Na ocasião, a escritora
decorrentes de um quadro de ro dos loucos foi publicado em contou que numa entrevista
diabetes e hipertensão arterial. 2013 pela Ideia Editora. a duas adolescentes, elas lhe
Sua morte comoveu a classe A partida de Dôra pegou perguntaram se é fácil es-
artística e cultural da Paraíba de surpresa amigos e leitores. crever. “Respondi que não. É
e até o governador Ricardo Um deles, o parceiro do Clu- paradoxal, mas eu tenho difi-
Coutinho fez uma homena- be do Conto, Ronaldo Mon- culdade. Perguntaram-me se
gem durante a inauguração do te. “Eu já disse uma vez que tenho uma metodologia para
Teatro Pedra do Reino. meu nome é Ronaldo Monte escrever textos, e que metodo-
Dôra Limeira nasceu em Limeira. Eu e Dôra somos ir- logia seria essa. Respondi que
21 de abril de 1938, em João mãos na dor e exercemos o não tenho metodologia defi-
Pessoa. Fez os primeiros estu- ofício perverso de transfor- nida. Perguntaram-me sobre
dos em escola pública, depois mar essa dor em beleza. Eu como nascem minhas histó-
em colégio religioso católico. e Dôra brigamos muito du- rias, se arquiteto tudo na ca-
Graduou-se e especializou-se rante o tempo em que convi- beça, para depois passar para
em História pela Universida- vemos. Mas vivemos sempre o papel ou pra tela do com-
de Federal da Paraíba (UFPB). momentos fraternos em que putador. Eu respondi que as
Publicou seu primeiro pude expressar o meu amor e histórias geralmente jorram
livro de contos, Arquitetu- a minha admiração pelo seu como sangue no papel ou na
ra de um abandono, em maio trabalho”, disse. tela. As personagens se apos-
de 2003, o que lhe valeu o O escritor Roberto Mene- sam de mim como se fossem
prêmio de Revelação Literá- zes também se emociona ao entidades da natureza. Nesse
ria/2003, num certame pro- falar de Dôra. “Conheci Dôra sentido, acredito em transe.
movido pelo suplemento lite- Limeira em 2006. Mandei pra Nada de sobrenatural, nada
rário Correio das Artes. ela um conto de dez páginas de alma de outro mundo.
Em 2002, participou do e nem esperava que ela lesse. Tudo muito natural e simples,
Concurso Talentos da Maturi- Pra minha surpresa, ela me como a chuva ou como um
dade com o conto “Não há si- respondeu com um grande e- parto normal”. Tudo simples,
nais”, concorrendo com 10.338 -mail que ainda tenho. Tinha como a capacidade de Dôra
inscritos em todo o país. “Não vários pontos importantes pra Limeira de encantar através
há sinais” foi incluído entre os mim, entre eles ser fiel ao esti- da escrita e de encantar-se
vinte melhores contos concor- lo que eu propunha escrever: para outra dimensão. E

16 | João Pessoa, agosto de 2015 Correio das Artes – A UNIÃO


foto: isabella araújo

6 memória

A arte
ficcional de

Dôra
Limeira
José Mário da Silva
Especial para o Correio das Artes

C
om as velhas e imorredouras lições de Teoria da Litera-
tura ministradas pelo mestre Massaud Moisés, apren-
demos que o conto é uma narrativa curta ancorada no
princípio composicional da unicelularidade dramática;
o que, no limite, significa a captação do mundo por
meio de um único flagrante, dentre as múltiplas moda-
lidades manifestativas que o integram. Em Valise de Cro-
nópio, Julio Cortázar, exponencial teórico da literatura c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2015 | 17


fotos: internet

c e criador ficcional do mais alto


quilate, asseverou que o conto
está para a fotografia assim como
o romance está para o cinema.
Em todos esses universos estéti-
cos, diria o Manuel Bandeira do
imortal poema “A maçã”, o ponto
central é a mesma vida que “pal-
pita prodigiosamente”.
No entanto, o modo como se
operacionaliza nas malhas dos
arranjos linguísticos difere no
grau, no ritmo, na tonalidade,
enfim, na maneira de transfigu-
rar o observado, o vivido, o in-
ventado, a matéria prima de que
se alimenta esta máquina gera-
dora de sentidos e significações,
que é o texto literário. Assim, se
por natureza o conto compacta o
enredo e o submete à gramática
da percepção sintética da reali-
dade, o miniconto agudiza essa
espécie de poética do encurta-
mento da dizibilidade, quase
transformando a reconfigura-
ção estética do real em flashes
imediatistas, instantâneos de
um olhar viajor peregrino que,
conduzido pelos vetores de uma
agônica pressa diante da exigui-
dade da existência, anela mais
por dizer do que contar; mais
espalhar pelo cotidiano as duras
impressões de um desencanta-
do espírito do que, nas asas da
poderosa ficção, simular a res- José Régio (pseudônimo de José Maria
tauração do que já se lhe afigura dos Reis Pereira), poeta português
ser, irremediavelmente, o reino idealizações textuais pródigas autor de Cântico suspenso (1968)
do caos, a pátria das ruínas, o em dourar a pílula dos dramas
território incorrigível dos deso- mais abjetos da condição hu-
lados escombros. Eis-nos, pois, mana. Desempregados, subem-
nas margens do sentimento trá- pregados, famintos, enfermos,
gico do mundo, para nos repor- iludidos, desiludidos dão o des-
tarmos ao soberbo pensamento confortável molho da sua ficção
de Miguel de Unamuno. por vezes aderente à realidade
Eis-nos sob o impacto de O mais dolorosa da vida. Dir-se-ia pelos minitextos profundamen-
beijo de Deus, diminutas narrati- ser Dôra Limeira uma pintora te disfóricos e questionadores
vas de Dôra Limeira, represen- feroz da carência humana, ma- da ordem do mundo. No limite,
tante da nova literatura parai- terializada de formas diversas os pequenos relatos de que se
bana, mais precisamente a que no turvado palco do dia a dia. compõe o livro andam sempre
se gesta em torno de persona- O beijo de Deus, minicontos da na contramão dos discursos es-
gens femininas emparedadas criadora de Preces e orgasmos dos tabelecidos, como se os narra-
num mundo em que a opressão desvalidos insere-se na categoria dores que deslizam no dorso da
masculina, dentre tantas outras, da prosa minimalista, descarna- linguagem esculpida vivessem
ainda é uma nódoa nas desuma- da, invadida, aqui/acolá, pelos sempre transidos entre a suspei-
nizadoras relações entre os se- vetores da linguagem poética, ção mais sibilina e a descrença
res. A literatura de Dôra Limei- mas sem a agudização dos pro- mais explicitada acerca daquilo
ra, desde o seu livro de estreia, cessos constituidores da opaci- que no mundo anda impregnado
Arquitetura de um abandono, até dade textual mais extremada. do rótulo de verdadeiro.
o mais recente O afetuoso livro O título do livro, num primeiro Mesmo o fragmento que dá
das cartas, sua última produção, momento, pelo lirismo de que título ao livro, o que poderia, à
nutre-se de um realismo áspe- se reveste, gera uma expectati- primeira vista, parecer um ele-
ro, sem nenhuma concessão às va eufórica, logo desconstruída mento sinalizador de esperança, c

18 | João Pessoa, agosto de 2015 Correio das Artes – A UNIÃO


c referencializado pelo semema Eduardo Portella, “contra o dese-
Deus, indiciador de transcen- jo da ordem se instaura a ordem
dência, finda confluindo para do desejo”, e a utopia libertária,
território da mera condiciona- como sinalizado no poema “Ro-
lidade: “Se Deus beijar minha maria” de Carlos Drummond de
boca, estarei imune a vermes. Andrade finda sonhando com
Ninguém saberá de mim, na paz outra humanidade mais feliz.
do meu descanso”. Nos minicontos já aludidos,
Pontue-se aqui, de igual “Progresso” e “Brincadeira”, a ci-
modo, a dimensão erótica que dade é lócus amoenus de subjetivi-
recobre a passagem, trazendo dades pacificadas; e a infância é
a experiência do sagrado para o paraíso perdido e irrecuperável
o campo da corporeidade mais relembrado na musicalidade de-
concreta. O beijo de Deus está di- leitosa das cantigas infantis. No
vidido em três partes: Cotidia- fragmento “Cadeias nacionais”,
nos, Agonizantes e Espasmos. A o código de uma contestação
primeira parte cartografa cenas política mais ostensiva torna-
e cenários de vivências marca- -se presente nas imagens cruéis
das pelo signo da desumaniza- de uma pátria socialmente de-
ção mais ostensiva. Violência, sigual e vergada sob o peso de
tédio, vingança, desilusão são uma ditadura que vende ilusões;
algumas das temáticas que ur- busca, autoritariamente, a ho-
didas e bem correlacionadas mogeneização das consciências;
vão editorando uma espécie de conta com o auxílio farsesco de
dicionário de angústias insolú- mídias comprometidas, mas não
veis, vivenciadas por persona- consegue escamotear a realidade
gens que vegetam nos subterrâ- grotesca, dentre outras, “da fome
neos da cidade reificada. (que) se desfraldava, colorida,
Em meio à asfixiante galeria a céu aberto, sem ordem. Sem
de “humilhados e ofendidos”, progresso, a novela das oito co-
que passeiam no cinzento co- meçava diária e pontualmente.
Camilo Pessanha, poeta
tidiano denunciado por Dôra português autor de Levava uma hora de delírio às
Limeira, deparamo-nos, aqui/ Clepsydra (1920) casas daquele lugar. Cala boca,
acolá, com uma nota crítica por- menino. Em meio à novela, inter-
tadora de acentuado sarcasmo rompia-se a programação da TV.
diante da fachada mascarada do Formavam-se cadeias nacionais
convencionalismo social. para transmissão da fala do go-
No fragmento “Doutorado”, verno. Cala essa boca”.
encontramos: “de repente, Dr. Releve-se, aqui, a ambigui-
Silveira foi ao sanitário do bar sa- dade que impregna a lingua-
tisfazer suas necessidades. Acon- gem textual. A função apelativa
teceu que banheiro não havia corporificada no imperativo do
água nem papel higiênico. Dr. verbo calar diz respeito tanto ao
Silveira saiu todo sujo do sanitá- discurso alienado de quem se vê
rio. Sua autoestima caiu-lhe aos vencido pela fantasia alienadora
pés”. Outra nota que reponta no protagonizada pela novela das
cotidiano abordado por Dôra Li- Bosi nas considerações levadas a oito quanto ao gesto de revolta
meira é o que se insurge contra a cabo em seu excelente livro O ser manifestado pelo narrador do
face predatória de um progresso e o tempo da poesia. texto contra a fala mentirosa
que rouba do homem o privi- Aqui, a prosa poética da es- produzida pela retórica política
légio de desfrutar a existência critora paraibana ergue-se como da oficialidade.
de um modo mais espontâneo um canto de resistência aos pro- Na segunda parte do livro,
e despragmatizado. É o que fla- cessos históricos que amesqui- deparamo-nos, num roteiro
gramos nos fragmentos “Pro- nham os homens. No livro O anjo classificatório puramente didá-
gresso” e “Brincadeira”. Tanto bêbado, Paulo Mendes Campos tico, com fragmentos centrados
num quanto noutro celebra-se a afirma que “as cidades mudam num sotaque existencial mais
infância perdida e louvam-se os mais depressa que os homens”. ostensivamente visível. Nessa
tempos do antigamente, não em Nessas mudanças inevitáveis e porção do livro, de modo hege-
nome de uma paralisante nos- irreversíveis, frequentemente, o mônico predominam opressivas
talgia, mas sim “da saudade de progresso material rivaliza con- atmosferas de solidão, incomu-
tempos que nos parecem melho- tra as modalidades mais idiílicas nicabilidade, aprisionamentos
res do que o nosso, o que não é e comunitárias de configuração internos e externos dos sujeitos
de modo reacionarismo”, confor- da existência humana. É nesse emparedados, destituídos de
me lucidamente postula Alfredo exato momento em que, diria identidades minimamente está- c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2015 | 19


c veis; perdido, enfim, nos vãos e e o incursionamento pela interio-
desvãos “agonizantes” de uma ridade das personagens que in-
cidade hostil, em cujos espaços, ventou; e que são portadoras de
como autênticos fantasmas, as sobrante densidade psicológica.
personagens movem-se do nada Chegamos, enfim, ao último
para o lugar nenhum de exis- patamar do livro O beijo de Deus.
tências guetificadas, intranscen- Composto de 27 fragmentos, nes-
dentes e sem nenhuma possibi- sa parte dos seus escritos, Dôra
lidade de sonhar com utopias. Limeira radica no porto de uma
Em “Masmorra tóxica”, a corporeidade mais transgresso-
identidade fraturada e a solidão ramente assumida, com obses-
dominante confluem para a in- siva ênfase no erotismo, na des-
fernal fuga representada pelos coberta dos prazeres inerentes
vícios. Em “Aqui, na janela”, a ao sexo; ao gozo, muitas vezes
solidão, mais uma vez presente, solitário, de quem busca na liber-
e o desencontro traumático entre tação de todos os interditos, o de-
mãe e filho são produzidos por safogo das pressões cotidianas.
uma cidade desordenadamente “Última vela” parece sinalizar
construída, êmula do afeto mais nessa direção. Noutro momento,
estreito e da comunhão mais efe- “Gozo”, o êxtase erótico e a ex-
tiva entre os que a habitam. “So- periência do sagrado assumem-
nata” e “Desaparecido” ancoram -se como faces indissociáveis de
no porto de projetos existenciais uma realidade que retira o ser do
malogrados. No primeiro tex- chão mais prosaico da existência
to, “sem bilhete, carta ou aviso, e o arrebata para o território do
a moça (protagonista da trama) luminoso. Noutros patamares, a
adentrou a eternidade”. Ao fazê- passagem do tempo emula con-
-lo, deixou sobre o piano, estático tra a energia corporal, e o sexo,
e esquecido a um canto, a melo- outrora celebratoriamente culti-
dia “que poderia ter sido e não vado, passa a ser visto pela ótica
foi”. “Desaparecido”, na mesma de uma tonalidade inescondivel-
direção, sinaliza para uma exis- mente malancólica.
tência matizada pelo sentimento “Sorriso de ancião” e “Vida”
da perda: “Guardou a alma e as impõem-se como irretocáveis
sobras de amores antigos den- emblemas dessa realidade. A
Paulo Mendes Campos, autor
tro da mochila velha de pano. brutalidade descomunal com-
de O anjo bêbado (crônicas),
Colocou a mochila nas costas e publicado em 1959 parece no miniconto “Santa”. A
dobrou a esquina da padaria, miséria humana e o afeto ani-
sem dizer nada. Nunca mais al- mal dão a régua e o compasso
guém teve notícias de tal cria- do comovente “A quarta hora”.
tura”. Em “Cântico de danação”, Enfim, em O beijo de Deus, Dôra
na esteira da corrosividade ine- Limeira mostra-nos uma escri-
rente, por exemplo, a “Cântico tora bem mais segura no trato
negro”, paródico poema do poe- com a linguagem, na lapidação
ta português José Régio, Dôra mais elaborada de uma frase
Limeira, com igual dimensão impregnada de ritmo, dinami-
contracultural, põe em cena um cidade e energia poética na cap-
eu transido entre o divinatório e presença dominante de espaços tação de cotidianos agonizantes
o demoníaco, numa coreografia fechados, nos quais, cerradas e cheios dos mais diversos tipos
de contrastes que faz do ser hu- interiormente, as personagens de significação.
mano um perene palco de inso- sofrem os seus dramas e ilha- Já transformada em objeto de
lúveis contradições. mentos existenciais. Em “Instan- tese universitária, competente-
Vejo, nesse agônico fragmento, tes”, é a implacável passagem do mente levada a cabo pelo pro-
ecos intertextuais da poesia de tempo que se delineia diante de fessor Antonio de Pádua Dias da
Camilo Pessanha, toda ela anco- quem “Quando percebeu a eter- Silva, Dôra Limeira é representa-
rada no temário de uma onipre- nidade, seu corpo já era cinza”. A tivo nome da literatura paraiba-
sente e incurável dor. No poema morte e a memória, “cidade das na atual.I
“Inscrição”, com o qual se abre traições e pátio de milagres” nos
o livro Clepsidra, o poeta portu- dizeres de Machado de Assis e
guês sentencia: “Eu vi a luz em de José Saramago, são outros te-
um país perdido”. No fragmento mários a percorrer as agonizan- José Mário da Silva é professor da
limeiriano, encontramos: “A luz tes notações que Dôra Limeira Universidade Federal de Campina
Grande (UFCG) e membro da
existe, mas eu não vejo”. Nessa faz de uma realidade estética
Academia Paraibana de Letras (APL).
seção do livro, constatamos a que consorcia a denúncia social Mora em Campina Grande (PB)

20 | João Pessoa, agosto de 2015 Correio das Artes – A UNIÃO


6 convivência crítica
Hildeberto Barbosa Filho
hildebertobarbosa@bol.com.br

Edônio
Alves
e seus desconcertos poéticos

N
enhum poeta pode ser compreen- a produção poética do paraibano
dido sozinho. Eis a lição de T. S. Edônio Alves Nascimento, dis-
Eliot. Nenhum poeta e nenhum tribuída em três títulos: “O des-
poema. Há como que um arqui- concerto das coisas mais poemas
vo textual que se estratifica na minimais”, a parte inédita, e os
Foto: arquivo do autor dinâmica da criação literária, fa- outros dois já publicados, a saber:
zendo do poema e do mecanismo “Os amantes de Orfeu & poemas
da invenção poética um percurso de rima interior” (1999) e “Essa
dialético, um movimento dialógi- doce alquimia” (1992).
co, uma zona de conflitos, incerta “O Desconcerto é em verso/
e tensa, em que se consolidam as Cabe o inverso em cada verso/
ideias e os sentimentos que pro- Todo verso é seu anverso/O unir
movem a expressão estética. verso é um mundo”, diz a epígra-
Quando lemos um poeta, fe do longo poema “O descon-
portanto, vamos além dos limi- certo das coisas”, já preparando
tes materiais de suas palavras e o leitor para o jogo de paradoxos
do arcabouço particular de seus e ambiguidades que se dá, tan-
poemas. Há qualquer coisa nele to no plano significante da mas-
que, em sendo ele, também não o sa lexical quanto no recorrente
é, na medida em que o poema, ao investimento temático, voltado
mesmo tempo em que incorpora para uma cética persecução em
a subjetividade, insere, na flexi- torno do ser, do ser das coisas,
bilidade de seu corpo vocabular, do ser dos seres, do ser dos senti-
a presença inevitável do outro, mentos. A linhagem é a dos poe-
com suas múltiplas faces. Inclu- mas líricos, porém, reflexivos,
sive aquela face irredutível ao nos quais parece indispensável
cerco da palavra, embora o poe- o equilíbrio estético entre a po-
ta não possua outro instrumento sição conceptual e o acervo emo-
para nomeá-la e as suas indesviá- tivo que compõem o olhar do eu
veis e insólitas ambivalências. lírico sobre o mundo.
Parto desse pressuposto para Típico macrotexto, como diria
Edônio Alves, poeta, professor e jornalista,
autor de Poesia até aqui, súmula de sua ler Poesia até aqui (Natal: Jovens Maria Corti, em seus Princípios da
produção poética Escribas, 2015), volume que reúne comunicação literária (1976), uma c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2015 | 21


6 convivência crítica
Foto: internet
c vez que cada segmento é dotado
de autonomia semântica e estru-
tural, embora enredado nas fibras
sintáticas do conjunto. O texto
também se vale, em seu itinerá-
rio construtivo, das recorrências
vérsicas, onde os últimos versos
de um poema são retomados no
início de outro, assim como cer-
tas palavras, certas incidências
rítmicas, certas configurações
rímicas, paralelismos, redundân-
cias, oxímoros, enfim, múltiplos
recursos retóricos a lembrarem T. S. Eliot (1888-1965), poeta
a sextina medieval, compondo, modernista, dramaturgo e crítico
assim, a prismática unidade de Um outro lado que está/Paralelo literário
forma e conteúdo. ao seu ombro/Que sempre su-
No título já ecoa a voz de Ca- porta o mundo.//Não o mundo
mões e a espessura de seu canto de Raimundo/Que não pode su-
filosófico. “As coisas todas são portar (...) Mundo, mundo, vasto
feitas/do não poderem ter sido”, mundo,/Se tu não fosses Raimun-
lemos no primeiro dístico, que se do/Carecias de ter sido”.
põe como se fora uma premissa Edônio é dado às exigências do
básica a exigir desdobramentos macrotexto. Nos livros anteriores,
e glosas pontuais. “É do próprio exercita-se no âmbito desta for-
acontecer/já não terem sido mais”, ma, com os poemas “Os aman-
lemos no fecho do primeiro mo- tes de Orfeu” e “Do amor e seus
vimento. Se é Camões, também é corolários”, atento, sobretudo, às
Bandeira, também é Pessoa, pois instâncias do lirismo amoroso,
Edônio Alves Nascimento, poeta- uma das vigas centrais de sua
-leitor, não escapa, aliás, como poesia, ao lado do discurso me-
ninguém, ao imperativo destas talinguístico, das solicitações do Pano de fundo em mistério
raízes poéticas fundamentais. cotidiano e da angústia existen- de tudo que há no mundo.
“No seu equilíbrio instável,/ cial e metafísica. E é esta, sem E ainda há muito mais,
As coisas são e não são”, e, mais dúvida, a vertente temática que Diz o versículo, glosando:
adiante, “No seu equilíbrio está- predomina no “Desconcerto das
vel,/As coisas nunca serão”. Ins- coisas”, ajustando, na propositu- Há o que há por detrás
tabilidade, estabilidade, precarie- ra do poema, a gravidade mode- de tudo que há no mundo
dade, insustentabilidade, leveza, rada do tom a uma perspectiva para o fluxo-recorrer
oscilação, evanescência, eis um que brota do ceticismo, não do Das coisas todas do mundo.
pequenino glossário que pode re- ceticismo que apenas duvida,
ferenciar a correnteza cética e irô- porém, do ceticismo radical, que É assim o acontecer
nica que mobiliza o percurso do examina, que vai fundo, que não Do fatídico prorromper:
poema. Percurso plurivocal em se contenta com a aparência das já não terem sentido”.
que, sem temer confrontos ver- coisas, principalmente se as coi-
bais e contaminações melódicas, sas se nos apresentam ordenadas, Sem abdicar de pensar o
Edônio cristaliza sua fala poética, definitivas e perfeitas. amor, “O desconcerto das coi-
suas diretrizes próprias, sua per- Daí, os “sem-sentidos do mun- sas” procura na clareza e na con-
cepção autônoma. do”, que desencadeiam os últi- cisão cabralinas de seus versos,
E para tanto, nas questões que mos versos, simultaneamente tocar a nervura de outras maté-
se põem perante o claro enigma versos conclusos e inconclusos, rias, adensando – quero crer – o
do ser, convoca, em intercâmbio com os quais o poeta arremata capital de suas inquietações poé-
essencial e salutar, a parceria seu poema. Vejamos: ticas. Diria que sua linguagem,
de Omar Khayyam, de Ferrei- seu labor do verso, sua virtua-
ra Gullar e Carlos Drummond Já que de inconsistente tecido, lidade na composição, sua in-
de Andrade, principalmente de são todas as coisas feitas. tuição musical, assim como seu
Drummond, pela linha corrosiva olhar, curiosamente especulati-
que costura certas passagens do Amiúde, todas as coisas vo e lúdico, fundidos no rigor e
poema. Observemos estes versos: (as verdadeiramente reais), na justa medida do andamento
“(...) Repare sempre a seu lado/ Que nunca chegarão a tecido. poético, atingem a plena matu- c

22 | João Pessoa, agosto de 2015 Correio das Artes – A UNIÃO


6 convivência crítica
ilustração: internet
c ração de seus processos, que so- Foto: hghghf

mente a persistência e os anos de


aprendizado podem conceder.
Nos “Poemas minimais”, por
sua vez, se a focalização líri-
ca não muda e se a cadência do
verso procura fluir na lógica do
comedimento, da concentração
e da economia, a propósito sina-
lizada no sintagma “minimais”
(muito em pouco, mais no mí-
nimo, por exemplo), adere, não
obstante, a dispositivos estilísti-
cos mais descontraídos, em que
a componente lúdica e coloquial
se mescla com a distância crítica
da qual o eu poético não abdica
em momento algum.
Se em “O desconcerto das coi-
sas”, em seu insistente perscrutar
ontológico, cabe, aqui e ali, um
registro de fala coloquial, sem
comprometer, todavia, a espes-
sura do pensamento, em “Poe-
mas minimais”, que também faz
a crítica do ser, a linguagem é
toda espontânea, imediata, solta, Ilustração de Edmund J.
perfeitamente sintonizada com Sullivan para Rubaiyat, de
Omar Khayyam
os elementos do cotidiano, a par-
tir de uma técnica minimalista e
epigramática que faz dos poemas
curiosas mônadas verbais cheias
de sugestões semânticas.
Em “Virtualidades”, ironica-
Antes, eu queria amar todas as mulheres.
mente assinala o eu lírico, frente
Depois, por displicente desleixo, abdiquei da pretensão.
aos sortilégios do ciberespaço:
Hoje, quero que todas me amem.

Um dia nos encontraremos num chat.


Sem a tonalidade de uma lin- mento. Aquela espécie de “me-
Chato esses amores sem chiclete.
guagem de viés clássico, típica, tafísica instantânea”, de que
Desemoções no teclado.
por exemplo, de um Vanildo fala , ou, por outro lado, aquele
Brito e de um José Antonio As- “súbito momento de irreversível
A mesma perspectiva irônica sunção, para me referir apenas intuição”, a que alude um sábio
aparece em “Degustação”: a dois poetas paraibanos que in- budista, não raro impregnam
tegram, sem dúvida, o paideuma seus poemas, ora reunidos nesta
edoniano, o autor de Poesia até Poesia até aqui. Uma poesia que
Repare: essa é pra você bolar de rir. aqui mantém, no entanto, na es- constitui, a partir de seus pre-
Meu coração é fel com menta. fera geral de sua dicção, mesmo dicados intrínsecos e de suas
Essência de chantilly. no lirismo amoroso de Essa doce ressonâncias contextuais, um
alquimia e de Os amantes de Or- exercício de zelo e inventividade
feu, o fio interno do pensamento no que concerne às possibilida-
crítico na consecução de seu dis- des oblíquas da palavra poética
O mesmo se pode dizer de curso poético. e, ao mesmo tempo, uma grave e
textos, como “Um flash back”, Medularmente pessoano, pertinente meditação acerca do
em que topamos com este verso Edônio Alves Nascimento é homem e da vida.I
macio e luminoso (“A seda acesa poeta da emoção e do pensa-
seduz!”); “Freudiana n. 1”, “De-
claração” e o desconcertante e Hildeberto Barbosa Filho
é poeta, crítico de literatura e
irreverente “Sofisma”, que faço professor da Universidade Federal da
questão de transcrever: Paraíba. Mora em João Pessoa (PB)

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2015 | 23


6 artigo

Sereias
pré-pós sereísmo
Leonardo Davino de Oliveira
Especial para o Correio das Artes

N o Convento de Santo Antônio e Igre-


ja de São Francisco, em João Pessoa, capital
Foto: arquivo pessoal

da Paraíba, cidade que se desenvolveu en-


tre o rio e o mar, sereias ornam os altares
barrocos da capela do Santíssimo Sacra-
mento. Esses raros entalhes no templo
cristão recuperam a figura clássica da
sereia como símbolo funerário: guar-
dam o corpo de Cristo. Elas se aliariam
às figuras bíblicas para incutir temor
aos fiéis que ousassem se deixar seduzir
pelas belezas do mundo em detrimento de
Deus. Mas também apontam para a mestiça-
gem e a potência sincrética de nossa cultura.
Essas sereias paraibanas mostram que o
mito resistiu aos exorcismos.
Luiz da Câmara Cascudo as descre-
veu no artigo “As sereias na casa de
Sereia.
Deus” na edição de 5 de abril de 1952
Detalhe
de entalhe de O Cruzeiro: “cabeleira em concha, o
do altar da cinto venusino abaixo dos seios, uma
capela do volta de flores na altura do ventre e
Santíssimo
Sacramento. o longo corpo ictiforme volteando
Convento como ornamento e moldura”. Cada
de Santo elemento mereceria uma análise
Antônio
e Igreja
particular. O pesquisador rejeita a
de São égide sedutora em prol do símbolo
Fran- funerário, para interpretar as se-
cisco
reias paraibanas. Cascudo percorre
três séculos antes da igreja de Cristo
buscando explicar a relação das sereias
com a morte, num tempo em que elas ain-
da eram seres alados e barbados.
Desde que Ulisses narrou o famoso canto
das sereias na Odisseia de Homero, esses
seres cantores ocupam um espaço
importante no bestiário popular,
nas artes e no pensamento crítico.
Seres matriarcais detentores de um
canto que não cessa, que se transfor-
ma para manter-se vivo na cultura
como elemento poético, as sereias c

24 | João Pessoa, agosto de 2015 Correio das Artes – A UNIÃO


c são portadoras do canto audível olhei de frente confirmei que Fica a questão: as sereias,
aos ouvidos humanos comuns. era ela, a Kianda: os cabelos, mesmo quando parecem convi-
Com o tempo o aspecto narrativo a pele clara, a túnica azul. O dar à morte, não estariam convi-
foi eliminado. O rabo de peixe e a que sucedeu é que a nossa deu- dando à vida, via convite ao ris-
beleza física surgem na transfor- sa ficou prisioneira na estátua co e pela memória cantada? Não
mação do mito em lenda na Ida- de madeira dos portugueses. é essa a memória que julgamos
de Média. Aliás, nesse período o Libertar a sereia divina: essa perdida na cultura brasileira
uso moral dos animais era algo passou a ser a minha constante sempre disposta à novidade em
corriqueiro e a arte escultórica obsessão. (...) Na popa da nossa detrimento do novo? Para usar-
fez grande uso das sereias, como nau está esculpida uma outra mos expressões caras a Adorno
mostra Louis Réau, entre outros. Nossa Senhora. Deixo essa para leitor de Homero. Por sua vez,
Elas se aliariam às figuras do Ve- os brancos. A minha Kianda, ao escrever que “as sereias têm
lho e Novo Testamento para ad- essa é que não pode ficar assim, uma arma ainda mais terrível
vertir os fiéis que mantivessem amarrada aos próprios pés, tão que o canto: seu silêncio”, o nar-
temor a Deus – causa primeira fora do seu mundo, tão longe rador de Kafka está se referindo
e destino de tudo. Criaturas hí- de sua gente”. Esse gesto an- às modernas narrativas vazias
bridas, para o Cristianismo, elas tropofágico de manutenção da de experiências narráveis, à de-
significavam também a alma di- memória interessa à discussão sistência e/ou impossibilidade
vidida entre os dois mundos e o do mito: o embate estético entre de narrar diante do horror da
mal na sua ambiguidade: sedu- as sereias com rabo e as sereias guerra, do progresso vazio. O
ção e pecado. com pés. Nesse sentido, a sereia esclarecimento matou o mito. E
O fato é que a beleza calcada europeia de dupla cauda – a te- as sereias, forças de dissolução,
em elementos clássicos, aliada mível Melusina – está mais pró- indicariam a arte como forma de
à morte, reforçou a inibição das xima de Maria, que, por sua vez, conhecimento.
potencialidades essencialmente distancia-se de Kianda. Mas Perder-se. Eis o infinito sirê-
vocais que tais seres detinham. mesmo tendo cauda dupla, as nico. Perder-se entre os detalhes
Ou seja, a sereia bela fisicamente sereias paraibanas não se apro- da fauna e da flora tropicais e
é símbolo da ideologia que tem ximam iconograficamente da dos frutos regionais que ins-
na mulher a perdição do homem. Melusina. Diferente desta, elas piraram os artistas a decorar
Fonte de luxúria e sedutoras a não aparecem segurando os ra- a jóia barroca paraibana com
serviço das condutas impuras, bos abertos à oferta sexual. cajus, abacaxis e sereias. As se-
as mulheres passaram a ter suas A presença das sereias na casa reias paraibanas estão no meio,
representações ligadas ao mito. cristã paraibana quer falar de entre o rio e o mar, na travessia
Aliado a isso, a ênfase no aspec- amálgama, de sincretismo, bem pré-pós sereismos, na experiên-
to físico em detrimento da voz como do erotismo estético que cia das misturas, dos encontros
impõe a ordem de calar as mu- caracteriza a nossa barroca mobi- desimpedidos de proibições mo-
lheres que cantam: belas por fora lidade cultural. Mesmo amansa- rais e religiosas. Cambiantes,
e terríveis por dentro. A voz de das pela Igreja, as sereias se im- moventes, elas são algo novo, o
alguém cantando indica que há põem como presença, indicam enigma, o centro motor da pos-
um indivíduo de carne e osso que há algo além daquilo que sibilidade que temos da invenção
existindo. É essa unicidade que está sendo oferecido. O próprio do Brasil. É deste modo que as
assustava grande parte dos pen- Cascudo lembra que “os templos sereias paraibanas – Iaras? Kian-
sadores e religiosos medievais e olímpicos receberam a presença das? Marias? – tão mal conser-
assusta ainda hoje. dos santos (...). Numa carta fa- vadas, gastas pelo tempo e pelo
Cascudo destaca que as sereias mosa, o Papa Gregório Magno descaso humano, banhadas pelo
estão em outras igrejas católicas mandou conservar os templos sol tropical que ilumina seus
e cita, entre outras, os capitéis e retirar os ídolos”. Atitude não detalhes em ouro (de Oxum?),
do Mosteiro do Salvador de Tra- muito diferente da empreendi- resistem e deixam de serem exó-
vanca (Amarante-Portugal), e diz da pelas igrejas neopentecostais ticas, excêntricas, para ser signo
desconhecer a presença delas em que vem ocupando teatros e ci- de uma ética nacional.I
outras igrejas brasileiras. Porém, nemas, entre outros espaços se-
perto da Paraíba, em Recife (PE), culares, na tentativa de expansão
sereias guardam a entrada na do domínio. No entanto, como
Igreja de São Pedro. Mas ficam o pesquisador também observa,
do lado de fora, sem entrar. Daí a “ninguém intimou a Sereia a de-
raridade das sereias paraibanas. senrolar a cauda e remergulhar Leonardo Davino de Oliveira é
No romance O outro pé da no Rio Paraíba, caminho de Ca- professor de Literatura Brasileira
sereia, Mia Couto sugere uma bedelo, ganhando o Atlântico. da Universidade Estadual do Rio
de Janeiro (UERJ) e pesquisador
oportuna reflexão no trecho da As sereias ficaram. Ficaram na
residente da Fundação Biblioteca
carta de despedida da persona- sua forma pisciforme pós-clássi- Nacional (FBN). Mora no Rio de
gem Nimi Nsundi: “Quando a ca, de semi-peixe”. Janeiro (RJ)

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2015 | 25


6 entre os livros
Expedito Ferraz Jr.
expeditoferrazjr@gmail.com

Augusto de Campos:
um lírico no auge

do experimentalismo

A
obra de Augusto de Campos interessa visão ainda pouco privilegiada
ao leitor de poesia, quer seja ela foca- na leitura da obra em questão: o
lizada numa perspectiva sincrônica lirismo peculiar do poeta. Talvez
ou diacrônica. O aspecto diacrônico, porque a nossa cultura artística
já amplamente debatido, diz respeito associe (com toda a razão) o ex-
ao significado da intervenção concre- perimentalismo a certo espírito
tista em nossa série histórico-cultural. científico e (sem razão alguma)
A invenção da poesia concreta legou julgue-o incompatível com a ex-
às gerações seguintes um conceito am- pressão lírica. Ou talvez porque
pliado do signo poético. O aproveita- a própria leitura que fazemos dos
mento funcional do espaço (gráfico ou poemas visuais permaneça ainda
tridimensional); o recurso sistemático à excessivamente condicionada por
paronomásia, ao plurilinguismo, à po- certos aspectos pontuais dos ma-
lifonia, à (des)articulação de palavras; a nifestos lançados pelo Concretis-
interpenetração de linguagem da poe- mo, nos anos 50, aparentemente
sia e linguagem dos mass media – são al- mais lidos e discutidos do que a
guns dos traços que estão hoje incorpo- produção literária de seus criado-
rados à poesia brasileira, e que revelam res. Fato é que o poeta lírico e o
quanto ela é tributária da revolução poeta de vanguarda quase nun-
provocada pelo experimentalismo do ca se encontram numa mesma
grupo Noigandres. Desde a década de abordagem crítica da obra de Au-
50, a consciência dos recursos verbivo- gusto de Campos. E, no entanto,
covisuais (sentido + som + aspecto grá- o lírico se manifesta com vigor,
fico) da poesia orienta toda uma linha tanto no plano temático quanto
de poetas, numa esfera que se estende a no nível estrutural de sua poesia.
áreas contíguas, como a da música po- Basta lembrar que a primeira ex-
pular. Nenhum outro conceito de poe- periência do que se pode chamar
sia levou tão longe quanto a poesia con- de poesia concreta, entre nós, a
creta o intercâmbio com outras lingua- série Poetamenos, consiste numa
gens artísticas e com os novos meios sequência de poemas de amor e
tecnológicos e seus códigos específicos. saudade (Caetano Veloso deve ter
Sem contar a inestimável contribuição sido o primeiro a chamar atenção
do grupo paulista à cultura nacional no para isso, quando enxertou em
campo da crítica e da tradução. sua leitura de “Dias dias dias” os
A importância desse significado versos da canção “Volta”, de Lu-
diacrônico não impede, entretanto, picínio Rodrigues).
que sublinhemos um segundo, de na- Com efeito, delineia-se com
tureza sincrônica, e que envolve uma muita nitidez, na obra do poe- c

26 | João Pessoa, agosto de 2015 Correio das Artes – A UNIÃO


6 entre os livros
Foto: plano b design
c ta, uma persona lírica que se
inscreve na temática do amor e
do erotismo: “Os sentidos senti-
dos”, “Eis os amantes”, “Limite”.
E também evoca com frequência
o tema da solidão – a solidão de
um sujeito, a dos poetas, a da es-
pécie humana no Cosmos: “Que
faremos após / sem sol sem pai
sem mãe / na noite que anoitece?
/ vagaremos sem voz / silencioso
/ SOS”. Que mais expressiva ale-
goria desse sentimento se pode
conceber do que aquele canto de
baleia decifrado, em que se ouve,
por entre sequências de mm: “o
mar me esquece / Jonas me co-
nhece / Só Ahab não soube / a
Augusto de Campos autografa poema no
noite que me coube” (Canção-
Projeto Expográfico Augusto de Campos -
noturnadabaleia)? Solidão e in- paralelo entre essas duas velhas Poésie Verbivocovisuelle, reinaugurando
comunicabilidade, contra o que irmãs: um reencontro com a mé- a galeria da Embaixada do Brasil em
a comunicação poética seria um lica, a “poesia articulada com a Bruxelas, Bélgica
gesto utópico de aceno ao futu- música”, atualizadas ambas com
ro: “abraço de anos-luz / que ne- as formas vigentes no contexto da
nhum sol aquece / e o oco (eco) contemporaneidade.
escuro esquece” (Pulsar). Augusto de Campos é o poeta
No nível da construção, a ana- brasileiro a quem coube reatar es-
logia de estruturas com a lingua- ses laços semióticos. O exemplo
gem musical é o elo a se estabe- mais notório disso é a referida
lecer entre a poética de Augusto sequência de poemas coloridos,
de Campos e o que se costuma inspirada na Klangfarbenmelodie
entender por lírica, naquilo que do compositor austríaco Anton
este termo induz ao parentesco Webern, que o poeta descreveu
entre a arte da palavra e a músi- como “uma melodia contínua
ca. Se, em seu aspecto semântico, deslocada de um instrumento
o Concretismo se pronunciou, para outro, mudando constan-
em princípio, como alternativa temente de cor” (Teoria da Poesia
excludente à poesia de expres- Concreta, Brasiliense, 1979). Com-
são subjetiva, que distingue o posto em 1953, o Poetamenos ante- cipou em uma década a visada de
conceito tradicional do gênero Mikel Dufrenne, que afirmaria:
lírico, por outro lado, é possível “talvez a música contemporânea,
afirmar sem receio que a poesia na medida em que renuncia à
concreta realizou uma sincro- tonalidade e ao compasso, possa
nização entre essas duas artes, lançar as bases para uma nova
fazendo corresponder a uma aliança entre poesia e música”
poética de vanguarda uma sono- (O poético. Ed. Globo, 1969). Mas
ridade igualmente dissonante, em o lastro musical dessa poesia não
diálogo com o experimentalismo se restringiu àquela primeira ex-
da música do nosso tempo. Os periência. Nos anos 80, por exem-
poetas concretos promoveram plo, “Viventes e vampiros” re-
uma profunda reestruturação do visita a analogia poesia/música.
poema, tanto em seu aspecto grá- Ali, a decodificação do ritmo está
fico quanto em sua camada sono- decisivamente influenciada pelo
ra. Explodindo o verso, ao mesmo diálogo com a partitura repro-
tempo em que libertavam a pala- duzida ao centro da página (um
vra no espaço da página (e para fragmento do madrigal Io pur
além dela), abriam caminho para respiro in cose gran dolore, do ita-
novas experiências de oralização, liano Carlo Gesualdo). Por uma
algumas inspiradas na música “Limite” (1980) espécie de contaminação entre os
de vanguarda, fixando um novo códigos, a representação gráfica c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2015 | 27


6 entre os livros
c dos versos é interpretada rigoro-
samente como um diagrama, de
modo que os intervalos em bran-
co correspondam pontualmente
a pausas. Assim, os versos mais
longos apresentam o mesmo
comprimento que os mais breves.
Não é uma disposição gráfica ar-
bitrária: trata-se de uma alusão à
noção musical de compasso, em
que o poeta distribui na linha ho-
rizontal figuras de duração varia-
da (inclusive as pausas), de modo
que o somatório delas, no tempo
de leitura, seja sempre o mesmo.
São constantes as referências
a músicos na poesia de Augus-
to de Campos. Anton Webern,
Giacinto Scelsi, John Cage são
alguns dos compositores citados.
No ensaio “Cage: chance: chan-
ge” (O anticrítico. Companhia das
Letras, 1986), ele escreveu: “De-
pois que Pound morreu, o maior
poeta vivo americano, talvez o
maior poeta vivo, é um músico:
John Cage”. Em contrapartida,
presta grande reverência à melo-
peia dos trovadores provençais,
subscrevendo o juízo de Pound,
para quem “a arte de Arnaut “Viventes e vampiros” (1982)
Daniel não é literatura, é a arte
de combinar palavras e música
numa sequência onde as rimas O experimentalismo, a poesia
caem com precisão e os sons se de invenção, a abertura ao diálo-
fundem ou se alongam” (cit. em go intersemiótico são, indiscuti- teúdo lírico de sua poesia. Talvez
Verso reverso controverso, Perspec- velmente, as mais fecundas men- seja esta, ao contrário, uma das
tiva, 1988). As referências e reve- sagens a se apreender na poética traduções possíveis para a ex-
rências atravessam a música eru- de Augusto de Campos. Mas a pressão “o cerne da experiência
dita e chegam aos compositores fruição dessas mensagens não humana poetizável”, que o poeta
populares, como Caetano Veloso implica, nem precisa implicar, deixou em aberto num dos mani-
e João Gilberto. Ainda nos anos uma renúncia do leitor ao con- festos dos anos 50. I
70, num ready-made intitulado
“Soneterapia 2”, versos alheios
colhidos em poemas e canções
nos davam o roteiro dessa traves-
NOTA
O texto acima foi publicado originalmente na extinta re-
sia sem limites: “Tamarindo de
vista Sebastião (Selo Sebastião Grifo) de São Paulo, em 2002.
minha desventura / Não me es-
Trago-o de volta, mais de uma década depois, com algumas
cutes nostálgico a cantar / Me vi
alterações. O poeta Augusto de Campos foi, recentemente,
perdido numa selva escura / que
homenageado com o Prêmio Iberoamericano de Poesia Pablo
o vento vai levando pelo ar”. Já
Neruda, e acaba de lançar mais uma coletânea de poemas,
em “Coisa”, da década seguinte,
intitulada Outro (ed. Perspectiva).
um mosaico sincrônico de cita-
ções realiza a mixagem de frag-
mentos de Arnaut Daniel, Guido
Cavalcanti, Dante, Jimi Hendrix e
Cole Porter. Em mais este aspec-
to, é possível perceber a orienta- Expedito Ferraz Jr. é poeta e
ção do poeta pelos critérios da professor de Teoria Literária da
Universidade Federal da Paraíba.
inventividade e radicalidade. Mora em João Pessoa (PB)

28 | João Pessoa, agosto de 2015 Correio das Artes – A UNIÃO


6 imagens amadas
João Batista de Brito
brito.joaobatista@gmail.com

Espectadores (12) ,

Eleonora Falcone

V
amos começar pelo começo: como Foi quando conheci Fred Astaire
foram os seus primeiros contatos e Ginger Rogers, e junto com eles
com o cinema? toda a magia dos musicais. Mas
Eu e meu irmão, quando crian- sem dúvida, o que despertou em
ças, íamos às matinais de sábado mim um desejo muito forte de
do Cine Municipal ou Plaza le- me expressar artisticamente fo-
vados por nosso avô. Foi quando ram os filmes de Bergman e suas
me apaixonei por Mary Poppins e personagens femininas. Queria
Topo Gigio. E aquele ritual de ir ter vivido aquelas mulheres no
ao cinema cultivo até hoje – nada cinema. E de certa maneira, aque-
como ver um filme no escurinho las personagens me levaram a
do cinema, apesar do incômodo cantar. Digamos que sempre quis
Foto: arquivo pessoal do barulho de pipoca, celulares fazer cinema, mas sempre prefe-
e conversas de parte dos espec- ri cantar a falar o texto. Morando
tadores. Acho que a relação que no Rio, pra onde me mudei após
se estabelece com um filme, es- concluir o curso de Psicologia na
tando no escuro e diante de uma UFPB, e onde iniciei minha car-
telona, é diferente do que aconte- reira de cantora, também estudei
ce quando se vê um filme na TV teatro e cheguei a fazer uma pon-
ou no computador. O cinema nos ta num longa-metragem, Assim na
proporciona as condições físicas tela como no céu, dirigido por Ri-
ideais para o mergulho no filme, cardo Miranda.
naquela fantasia, naquela realida-
de. Talvez o escuro do cinema nos As suas letras de música têm
revele nossa intimidade, nossa muito de poesia. Mas, para nos
essência... Lembro também de ter mantermos no terreno do cine-
visto E o vento levou na pré-ado- ma, você acha que é possível um
lescência, quando morava com “filme poético”?
minha família nos Estados Uni- Sim, pois toda expressão artís-
dos. Fiquei encantada, sobretudo, tica pode ser livre como a poesia,
com aquele ritual com intervalo, pode acontecer pra além das re-
pois por ser muito longo, o filme gras. Quando o cinema se utiliza
era exibido em duas partes. de todo seu potencial enquanto
linguagem, se expressando de
Enquanto cantora e composi- uma forma que só ele, o cinema,
tora, você assegura que o cinema tem como se expressar, acontece
teve certa influência na sua for- a poesia. Assim como no teatro,
mação e carreira? Como? quando ele, teatro, acontece de um
Morando nos EUA, tive contato jeito que só ele pode fazer acon-
com a produção cinematográfica tecer. Num filme como A história
Eleonora Falcone é cantora e compositora.
Nasceu em João Pessoa e iniciou a carreira americana das décadas de 30 e 40, da eternidade (Camilo Cavalcante,
artística no Rio de Janeiro cujos filmes eram exibidos na TV. 2015), quando me entrego ao rit- c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2015 | 29


6 imagens amadas
c mo com que ele apresenta aquele e questões humanas, sejam indivi- tem sua especificidade, e cada ar-
universo, acontece a poesia. Eu me duais ou coletivas, com liberdade tista sua personalidade. E é assim
submeto àquele ritmo, seduzida narrativa e de forma não conven- que acabamos preferindo deter-
pelo que vejo, me envolvendo com cional. E a reflexão é transforma- minado cantor, ator, compositor,
as personagens e suas tragédias. dora. Não deixo de assistir a um cineasta. É interessante quando a
filme porque um amigo ou crítico música de Nino Rota, em um fil-
No cinema, há, para você, te- não gostou. Se o cineasta, o tema, me de Fellini, rouba a cena, sem
mas que sejam preferidos, ou, in- os atores, a fotografia, a música, as nos fazer esquecer da genialidade
desejados, descartáveis? locações, o cartaz me interessam, do diretor, que é quem articula as
Não é exatamente o tema que ou se simplesmente estou com sensibilidades do compositor, do
me incomoda, e sim como este vontade de ir ao cinema, repito o fotógrafo, do roteirista, dos atores
tema é apresentado. Me incomoda ritual. Ir ao cinema é correr risco. etc. Mas é interessante, também,
ir pro cinema e saber, já no início Quando estou comprando o in- quando a trilha está em tamanha
do filme, o que vai acontecer. O gresso, torço pra que ao final eu simbiose com a narrativa e suas
imprevisível, o olhar de uma pers- diga pra mim mesma: eu queria cenas que mal podemos ouvi-la,
pectiva diferente, me interessam ter feito esse filme! embora ela seja também responsá-
num filme. O cinema, como qual- vel por nos conduzir a ter compai-
quer outra arte, pode trazer consi- Os gêneros tradicionais (dra- xão pela personagem, ao sentir o
go o esperado, para que inclusive a ma, comédia, ficção científica, que ela sente.
identificação aconteça, mas é ma- etc.) lhe atraem, ou você acha que
ravilhoso quando uma obra envol- gêneros é melhor não tê-los? Uma boa curtição você reve-
ve o espectador com o imprevisí- As combinações entre eles me la que teve no Cinema Tambaú,
vel, arrebatando-o e despertando atraem mais. Não devemos perder anos oitenta, com as sessões do
sua sensibilidade pro novo, pra a perspectiva de que em arte, as re- cinema de arte. Rememore o
diversidade. Mas independente de gras e fórmulas existem pra deixa- período.
como se dá a narrativa do filme, rem de existir, pra que a gente siga Foi uma fase muito importante
a magia do cinema é justamente uma linha evolutiva, aprimorando em minha vida. Vivíamos a aber-
entrar numa sala escura e ver, no nosso processo criativo e mudan- tura política, e ao deixar o colégio
que está sendo projetado na tela, do o jogo. Qual o gênero de Lucy para entrar na universidade, vi um
a projeção de uma fantasia que é (Luc Besson, 2014), por exemplo? mundo novo, de infinitas possibi-
minha, de uma realidade que é Ele é apenas ficção científica? E pra lidades, se abrir diante de mim. E
minha. Ver um filme, assim como que serve dar gênero às coisas se- aquelas sessões, às 22h da sexta
ouvir uma canção, é uma expe- não pra ter como colocá-las à ven- e às 16h do sábado, se tornariam
riência afetiva e intelectual. Pode- da numa vitrine, colocar uma ven- ponto de encontro de artistas,
mos perceber as coisas com a ca- da em nossos olhos pra fazer com jornalistas, intelectuais, estudan-
beça ou o coração, ou os dois; que- que a gente veja as coisas de um tes, professores. Pelo cinema do
rendo o novo, mas também presos jeito só? Reconheço em Lucy ques- Hotel Tambaú passaram Eisens-
ao que já existe, pois não estamos tões que são minhas, e isso me faz tein, Glauber, Fellini, Bergman,
livres de nosso passado. Depende gostar do filme. Não sou crítica de Resnais, Godard, Truffaut, Fass-
do que desejamos ou precisamos, cinema, nem tenho conhecimento binder, Buñuel, Saura, Kurosawa,
se nos acalmar ou nos inquietar. acadêmico sobre teoria e técnica Woody Allen e tantos outros, a nos
da sétima arte, mas duvido muito mostrar o que era cinema, como
Qual seria o seu perfil de es- que um crítico esteja livre de sua poderia ser feito, o que o cinema
pectadora? Você se considera história pessoal quando assiste a poderia dizer de humano, sobre o
uma espectadora normal, ou um filme. humano. Abordando questões éti-
idiossincrática, com gostos e exi- cas e estéticas, eles nos ensinavam
gências bem particulares? A sétima arte, a gente sabe, a olhar o cinema sem preconceito,
Procuro não ter preconceito, é um compósito onde cabem as e mostravam que não há uma úni-
mas corro da maioria dos filmes outras seis artes. Por acaso cha- ca maneira dele ser feito. A partir
exibidos nos shopping centers, ou ma a sua atenção a presença das dos anos 90, as salas de cinema
seja, do cinema comercial, aquele outras artes no cinema. Quais? começam a diminuir de tamanho
que é cinema de entretenimen- E por quê? e a deixar as ruas pra invadir os
to, que repete uma fórmula e se- Cresci ouvindo música, indo shopping centers. É a indústria de
gue um padrão, que é previsível, a shows, indo ao cinema, sempre cinema, apoiada por forte esque-
que não surpreende. Não gosto estimulada por minha mãe, que ma de divulgação e distribuição,
do cinema que se nega a ser cine- era também artista plástica. Des- a dar ao público cada vez mais
ma enquanto linguagem, mesmo de cedo tive contato com fotogra- acesso ao cinema comercial, aque-
quando dialoga com as outras fia, através de meu pai e meu avô, le cinema que segue um padrão
linguagens artísticas. Cinema é que sempre me fotografaram. E as em sua feitura. O cinema de arte,
imagem, é som, e pode ser poesia artes nunca estão sozinhas, há a enquanto isso, vai se restringindo
e liberdade. O cinema pode nos luz no teatro, a música no cinema, aos festivais, mostras, locadoras e
levar à reflexão ao abordar temas o poema no canto. Mas cada arte algumas salas de rua que resistem c

30 | João Pessoa, agosto de 2015 Correio das Artes – A UNIÃO


6 imagens amadas
c bravamente, pra alegria e salvação mão e muito, muito mais que uma trando o Brasil pro Brasil e pro
dos cinéfilos. O Estação Botafogo, ideia na cabeça, passeia pela cena mundo; a nos dar outro olhar, ou-
cinema de rua do Rio de Janeiro, e seus objetos ou faz suas perso- tro sentir, outro pensar; até hoje a
surge em meados dos anos 80 e nagens passearem diante da lente, nos influenciar, desafiar, inspirar.
torna-se referência e modelo de ci- numa dança entre o seu olhar de
nema de arte, e até hoje é prova de criador e o de suas criaturas. Ele Para fechar, gostaria que você
que há público pra todos os tipos nos empresta seu olhar profundo mencionasse os seus filmes
de cinema. Quando me mudei pro para fazermos o reconhecimento mais amados em todos os tem-
Rio, encontrei no Estação Botafogo de um Nordeste, de um Brasil, de pos e espaços. Por favor, arrole
um substituto pras sessões de ci- uma Humanidade que muitos, por sete títulos.
nema do Hotel Tambaú. conveniência, não querem ver. “O São tantos, e de muitos nem me
homem não pode ser escravo do lembro. Também não sou de re-
Você me conta que assistiu homem”, diz Glauber pela boca ver um filme, prefiro ver um que
Deus e o Diabo na Terra do Sol de Manuel em Deus e o Diabo na ainda não vi. Contudo, posso ci-
nos Estados Unidos, ainda crian- Terra do Sol. E através da ação e tar, sim, sete filmes dos quais me
ça, e só depois é que o reviu por consciência de Rosa, o cineasta dá lembro, neste momento, com ad-
aqui. Que importância você atri- outro sentido a uma personagem miração: Caverna dos sonhos esque-
bui à obra de Glauber Rocha? feminina no cinema. Continuando cidos, Werner Herzog (2010), Deus
Eu tinha 12 anos quando fui com em Deus e o Diabo, em seus diálo- e o Diabo na Terra do Sol, Glauber
minha família morar nos EUA, gos não falta nem sobra palavra ou Rocha (1964), E la nave va, Federico
para meu pai fazer mestrado em vírgula, e estas se cruzam com a Fellini (1983), Limite, Mário Peixo-
Tecnologia de Alimentos na Uni- cena e suas imagens de forma pre- to (1930), Matchpoint, Woody Allen
versidade da Florida. Meus pais, cisa, como ocorre entre voz e vio- (2005), O som ao redor, Kleber Men-
meu irmão e eu vimos este filme lão em João Gilberto. Cada frame donça Filho (2012) e Sonata de outo-
numa mostra de cinema brasileiro em Glauber é poesia feita de luz no, Ingmar Bergman (1978). I
no Departamento de História da e forma. E de quebra, ao som de
América Latina, onde minha mãe Villa-Lobos, acontece entre Rosa e
estudou. Tenho uma vaga lem- Corisco o mais belo beijo da histó-
brança desse dia, e devo ter revis- ria do cinema. Como João Gilberto
to esse filme no Cinema Tambaú. em “Desafinado”, ou como o “Do-
Glauber Rocha foi, sobretudo, um mingo no Parque” de Gilberto Gil,
João Batista de Brito é escritor e
grande artista, um visionário. O a obra de Glauber Rocha quebra crítico de cinema e literatura. Mora
cinema foi seu caminho, e ele nos os paradigmas existentes, fazendo em João Pessoa (PB)
deixou um novo caminho. Apai- deste período um dos mais férteis
xonado pelo Brasil, conta e reconta da nossa arte. É a bossa nova, é a
a nossa história. Com a câmera na tropicália, é o cinema novo, mos-

Cena de “Deus e o Diabo na Terra


do Sol” (1964), filme de Glauber
Foto: internet

Rocha, considerado um marco do


chamado cinema novo

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2015 | 31


P O E S I A

Estrela de Matos

ilustração: domingos sávio


51
Sei lá se 51 é uma boa ideia
Ridículo começar um poema por aqui
(Mais ridículo é você se lembrar da porra da propaganda)
Só sei que cheguei aqui
Num onde não sei
Num tempo qualquer
O que existe mesmo agora é uma vertigem
Violenta
Contemporaneamente aterradora
Que mistura tudo
Pedaços de tudo
Alma de todos
Vórtice de vidas
Dias e meses e segundos na mesma
Diabólica velocidade
Coisas aos trancos e barrancos
E mangues e desertos e esgotos
Esta vida é um grande deserto
E eu estou chegando nele
Com esta carne que me incorpora Aleijadinho
E me diz:
Sim, tu tens 51 anos a José Eugênio Guimarães
Menos
Os sonhos que ficaram na estrada Teu esforço fez-te invulgar e
Os amores que não se completaram Anacrônico
Os beijos que se perderam Não poderias ser diferente
Os olhares que se exterminaram Nesta colônia que nos matava a todos
O tempo com as pessoas certas E continua nos exterminando em dengues e cáries
As noites que dormi demais E todo um câncer financeiro sem fim
Cedo demais, meu Deus! Nem teus medos e taras e choros
E a estranha sensação E sofrimentos
De que alguns fantasmas Fecharam-te o sopro mais profundo
Irão agora cada vez mais
Me acompanhar, Isto abissal
Me povoar estas minhas almas
51 definitivamente que vem do fundo da terra
Não é uma boa ideia. E do azul mais alto e rarefeito
Além profetas, além razão
Além Portugal

Isto que te sai


E inomina os objetos
e nos espanta numa arte pura e visceral
Tu estarás gravado na carne
Deste corpo mais pesado e cruel
desta coisa enorme, barroca e tão excessiva
que se intitula brasil.

32 | João Pessoa, agosto de 2015 Correio das Artes – A UNIÃO


P O E S I A

Conspiração cósmica
Nesta paisagem
Quase urbana
em que não me reconheço
Vejo as raízes e elas abortam percursos em mim
Ficamos brigados e nem o caule me toma
Então sobram-me folhas sobradas ao pouco vento,
no rosto e também peito.
Frutos nem ao menos imagino
Pois que o cinza dos dias
E das noites
Certifica uma experiência que nem ouso confirmar:
vejo!
e sou infeliz
mas ser infeliz é de uma felicidade tão outra,
tão exilada e anônima
que me sinto em depósitos
de irrealizações
e fracassos
e isto, carícia conspiratória,
faz-me homem
entre homens
homem entre coisas
E coisa entre dejetos

No mínimo,
Cósmico.

Stoikós
Enfrente Luís Manuel Estrela
vá em frente de Matos é poeta, contista
dê frente e professor universitário.
em frente Colabora em alguns veículos
midiáticos e revistas virtuais,
  tanto no Brasil como em
CHOQUE-SE Portugal. Mestre pela
Universidade Estadual do Rio
e não verás muro algum ... de Janeiro (UERJ) na área
de Literatura Brasileira.
Organiza um livro artesanal de
poemas escritos nos últimos 25
anos. Mora em Aracaju (SE).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2015 | 33


Foto: divulgação

6 artigo

Literatura e música:

enfim, juntas
Lourenço Cazarré
Especial para o Correio das Artes

N
o começo da década de 1970, cinco jovens fundaram em
Porto Alegre uma banda chamada Almôndegas, que bateu
lata por cinco anos e lançou quatro discos. Era, digamos
para simplificar, uma variação gaúcha de Mutantes. Entre
seus integrantes estavam dois irmãos, Kleiton e Kledir Ra-
mil, estudantes de engenharia eletrônica e mecânica, res-
pectivamente, nascidos em Pelotas.
Por essa época, os Ramil conheceram um jovem escri-
tor, interiorano como eles, mas nascido em Santiago, cha-
mado Caio Fernando Abreu, que havia lançado aos 22
anos seu primeiro romance, Limite branco. Conversaram
então sobre a possibilidade de Caio escrever uma letra
que viesse a ser musicada pela dupla. A canção deveria
ser um retrato da geração deles, a geração de Netuno no
signo de Libra, malucos destrambelhados chegados em
sexo, drogas e roquenról. c

Os shows de “Com todas as letras”,


reunindo músicos e escritores,
começaram no Rio Grande do Sul

34 | João Pessoa, agosto de 2015 Correio das Artes – A UNIÃO


Foto: isabel ramil
c Essa conversa entre os músi-
cos e o escritor se arrastaria por
duas décadas. Caio saiu de Porto
Alegre, morou no Rio e em São
Paulo e escreveu livros relevan-
tes, como Morangos mofados e Os
dragões não conhecem o Paraíso.
Com o fim dos Almôndegas, os
irmãos foram morar no Rio e for-
maram uma dupla que enfilei-
rou, no começo dos anos 80, meia
dúzia de discos com canções de
grande sucesso. Basta citar Deu
pra ti e Maria Fumaça.
Só na primavera de 1995, já re-
sidindo novamente em Porto Ale-
gre, um ano antes de falecer aos
47 anos, o escritor rabiscou um
poema sob um cabeçalho singelo:
“de Caio F. para Kledir R”.
A partir do poema os irmãos
Ramil desenvolveram uma can-
ção, intitulada “Lixo e purpuri-
na”, bem próxima de ser um hino
da geração do desbunde.
“Panos indianos, haxixe marro-
quino/ Lixo e purpurina/ E aquela
O “namoro” de Kleiton e Kledir Ramil com
menina só pensava em Calcutá/ a literatura vem dos anos 70, quando
Sinos do Nepal, mescalina mexi- conheceram Caio Fernando Abreu
cana/ Papos e baganas/ Descolar
um jeito de chegar a Katmandu/
Fora dos limites/ Coisa de Netuno
em Libra/ Tanta gente boa, tanta no Rio de Janeiro e em Brasília, eles interro-
trip/ Tanto sexo/ Viajar o mundo garam os futuros companheiros de viagem
sem sair de Porto Alegre”. sobre suas preferências estéticas – literárias
A canção hibernou por mais e musicais.
vinte anos. O que fazer com ela? Nesse primeiro contato, os escritores
Enquadrá-la em que disco? eram informados de que teriam liberdade
A resposta só surgiu há cerca total para a escolha de temas, mas eram
de três anos. também advertidos de que seriam obriga-
Construir um disco inteiro dos a criar algo inteiramente novo.
apenas com cantigas criadas pela - Não vale buscar o poeminha de amor
dupla em parceria com escritores esquecido no fundo do baú desde a adoles-
gaúchos, como Caio. cência – advertia Kledir.
Tomada a decisão, os Ramil Os contatos seguintes eram feitos por
decidiram procurar alguém com meio de cartas eletrônicas, que levavam
largo conhecimento sobre a atual textos ao Rio, onde residem os Ramil, e que
literatura sul-riograndense. A saiam de lá com esboços de melodias para a
escolha recaiu sobre o professor avaliação dos letristas em gestação.
Luis Augusto Fischer, que ficou Ao final da epopéia, que deu como re-
empolgado com o projeto. sultado uma obra intitulada “Com todas as
- Ali estava algo realmente ori- letras”, os músicos declararam-se agrada-
ginal no mundo das artes da pa- velmente surpreendidos pelo desempenho
lavra – escreveu Fischer no livro de seus convidados. Tanto pelas insólitas
que acompanha o disco. temáticas levantadas quanto por terem qua-
Da relação de Fischer, que con- se todos os escritores se afastado, nessa em-
templava autores de todas as gera- preitada musical, de seus mundos ficcionais.
ções atuantes e de todos os estilos De acordo com Kleiton, o fato de todos os
vigentes no extremo Sul, os músi- autores serem pessoas distantes do cenário
cos escolheram nove nomes. musical proporcionou o surgimento de le-
Começou o trabalho de mu- tras que fogem totalmente aos temas batidos
tirão, que seguiu um padrão in- até a náusea pela MPB.
variável. Os músicos reuniam-se - Embora sendo um nadador apaixonado,
com o escritor em sua casa ou eu jamais imaginei que um dia faria uma
ambiente de trabalho para uma música sobre natação – ressalta ele. - E me-
conversa inicial. Em Porto Alegre, nos ainda sobre escovas de dentes. c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2015 | 35


Fotos: internet

c
adeus
ao
CONFORTO
Como o exemplo mais radical
do afastamento do escritor de
sua zona de conforto temática,
Kledir cita Alcy Cheuiche. Em-
bora poeta, dramaturgo e cronis-
ta, Cheuiche é mais conhecido
pela sua obra ficcional formada O músico e escritor Letícia Wierzchowski
Fernando Veríssimo inspirou-se na natação,
por romances históricos que têm escreveu “Olho Mágico” para compor “Piscina”
como cenário o pampa gaúcho.
No entanto, surpreendendo a
quem talvez esperasse dele um sente ao observar seu filho prati-
texto sobre guerreiros percorren- cando natação.
do o Pampa em busca de caste- “E na água, na água, na água
lhanos para degolar, o autor de que dança em teu corpo eu sei
Sepé Tiaraju – Romance dos sete que vou/ E na água, na água, na
povos das Missões inventou – na água, o teu brilho reflete e eu sei
delicada “Lado a Lado” - um per- quem sou”.
sonagem que abençoa a relação Nos shows de “Com todas as
homoafetiva de sua filha. letras”, que começaram no Rio
“Se tu gostas dela, minha bela, Grande do Sul, clipes são proje-
o que é que eu posso te dizer?/ tados em telas colocadas ao fun-
Me emociono ao ver vocês as do do palco. Sem dúvida, o mais
duas/ O amor precisa acontecer... bonito desses clipes é o que foi
Se vocês se amam, minha filha/ feito a partir de “Piscina”, que
Façam uma jangada, uma famí- tem seu marcante refrão ressal-
lia/ Abandonem logo essa ilha/ E tado por uma sinuosa melodia.
atravessem o azul do mar”. Outro tema inusual foi suge-
Algo semelhante se deu com a rido por Daniel Galera, autor de
letra que Luís Fernando Veríssi- Barba ensopada de sangue. A letra
mo entregou a seus sócios musi- de “Vinte e oito escovas de den- Daniel Galera sugeriu
cais. Conhecido pela veia satírica tes” nasceu a partir de um conto o tema de “Vinte e oito
escovas de dentes”
e textos enxutos e diretos, o sa- que narra a história de um sujei-
xofonista (que dá uma canja no to que, irritado pelo fato da na-
disco) Veríssimo escreveu a intri- morada ter usado sua escova de
gante “Olho mágico.” dentes, discute com ela e, depois
“Venha ver o que ninguém de “esvaziar uma garrafa de
mais vê/ Submerso ali num vodka”, sai à rua para espaire-
oceano/ O outro lado do outro cer. Ocorre porém que aquele é o
lado disso que se vê/ O avesso dia mais escaldante do senega-
do avesso do Caetano... Veja a lesco verão porto-alegrense de
luz da luz e a contraluz/ Por um 2014. O cara então se arrasta pe-
contra-prisma singular/ Há um las ruas incendiadas observan-
mundo por detrás do mundo/ do “a fumaça triste dos chur-
Tudo o que parece é muito mais/ rascos” e “as praças de quem
Venha ver o que ninguém mais não foi pra praia”. Ao retornar
vê, não sabe ver.” ao apartamento, não encontra
Já Letícia Wierzchowski – au- mais a namorada. Vê sobre a
tora de A Casa das sete mulheres, mesa uma sacola de plástico de
que deu origem a uma minissé- farmácia. Dentro dela, vinte e O escritor Alcy Cheuiche
rie de tevê - resolveu falar do que oito escovas de dentes. c surpreende com “Lado
a Lado”

36 | João Pessoa, agosto de 2015 Correio das Artes – A UNIÃO


Martha Medeiros esnoba O poeta e cronista Fabrício Claúdia Tajes esreveu
as lamúrias amorosas Carpinejar detona em “Felizes para sempre” a
em “Pingos nos is” “Cansado de ser feliz” partir de um conto

c
AMOR ETERNO
Na contramão dessas insólitas “Veio atrás de uma casa pra fi- o olhar das mães que ficam sa-
composições, há uma que trata do car na sua/ Mas a casa não é sua/ bendo que seus filhos nunca
tema preferido por noventa e nove Ela é do mundo da lua/ Uma ro- mais voltarão?... Nenhuma casa
entre cem compositores brasilei- cha que flutua no meio da rua/ será a sua/ Aponta a rocha que
ros. Mas a letra de Claúdia Tajes, Sem rumo, sem rumo, sem rumo... flutua na paisagem e me diz: Vem
criada a partir de um miniconto, Dizem que somos belos e às vezes morar no movimento”.
aborda o assunto de modo ex- somos crianças/ Mas a verdade é Mas eis que, de repente, no
traordinariamente criativo e bem que somos violência... O que nos enfarruscado oceano da mú-
humorado. “Felizes para sempre” acontece quando desarrumamos sica brasileira, atravancado
é uma movimentada e divertida por tantos barquinhos lotados
história de um amor eterno que com gajos e raparigas sofrendo
dura apenas umas poucas horas. de dor de cotovelo, irrompe o
“Às onze e três se casaram/ transatlântico “Cansado de ser
Onze e um quarto, deitaram/ feliz”, do performático poeta e
Às onze e meia se amaram/ Ou Ao final da cronista Carpinejar.
pelo menos fingiram... À uma e “Veja bem/ O eu foi que eu fiz?
quinze, cansaram/ Dormiram e epopéia, que Pra sofrer/ De ser tão feliz... Você
não sonharam/ Depois das três, é o que eu sempre quis/ Rezo a
acordaram/ Nem eram quatro e deu como Deus e ainda peço bis/ Mas o que
saíram... Às quatro e pouco ainda acontece/ Pelo que parece/ É que
riram/ Às quatro e tanto, calaram/ resultado uma me aborrece ser feliz/ Felicidade
No carro, mal se tocaram/ No fim, demais é um tormento/ Me deixa
nem se despediram”. obra intitulada em paz por um breve momento.”
Já a grande contribuição de Também esnobando as lamú-
Paulo Scott, romancista e poeta, “Com todas rias amorosas, a cronista Martha
foi introduzir no disco um ru- Medeiros - que padece de felicida-
gido indistinto que parece vir as letras”, de crônica, segundo Kledir – es-
da periferia da vida. A melodia, creveu “Pingos nos is”, que, numa
embora suave, é soturna, sufo- os músicos tocada de roque, conta a história
cante. Mesmo sendo a crua de- de alguém que, ainda que na
núncia da guerra civil brasileira declararam-se marra, resolve ser feliz.
a marca dos nossos rappers, o “Eu decreto e me liberto/ É
discurso de “Rochas” não tem agradavelmente hoje, agora, eu nem quero nem
fumaças políticas ou reivindica- saber/ Porta aberta na hora certa/
tórias. É radicalmente poético. surpreendidos. Levar a vida sempre por um triz”. c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2015 | 37


Foto: internet

A cidade gaúcha é a Macondo


dos irmãos Ramil, mas dela
estão exilados há décadas

c PELOTAS
Convidado a participar do disco, num primeiro
momento eu fiquei apavorado e quis fugir. Sim-
plesmente minha cultura musical é pouco mais
do que rastejante. Detalhe sórdido: comprei um
primeiro aparelho de som aos 37 anos, por exi-
LIVRO E VINIL
gência dos filhos.
“Com todas as letras” foi lançado simulta-
- É só a letra – explicou Kledir.
neamente em livro, disco de vinil, CD e DVD.
Depois ele me pediu que não me apoquentasse
A edição comercial - que começou a ser ven-
porque ele e o irmão, adestrados na arte de entrançar
dida em shows realizados no Rio Grande do
palavras e músicas, me ajudariam.
Sul - traz, além do CD, um DVD que registra
Acertamos então que o tema da nossa cantiga se-
os bastidores da construção da obra. Há tam-
ria Pelotas, a nossa Macondo, cidade da qual esta-
bém uma edição especial, fora do comércio,
mos exilados desde os anos 1970.
que contém um disco de vinil encartado em
Como a letra teria a ver com a Princesa do Sul, pe-
um livro luxuoso, em grande formato. Nesse
guei um machado e me pus a desmantelar, em frases
livro, que reúne depoimentos escritos de to-
isoladas, um conto meu que tem aquela cidade como
dos os envolvidos no trabalho, as letras das
personagem – “Enfeitiçados todos nós”.
músicas foram transcritas por renomados ca-
Mais adiante me veio à cabeça que a coisa mais
lígrafos de vários países.
aproximada de poesia que eu havia engendrado era
Ao escrever este relato sobre uma pecu-
a produção – quatro ou cinco poemas de cordel - de
liar aventura litero-musical eu me lembrei do
um personagem de um livro meu (à época em tra-
poeta Cassiano Nunes Botica, meu mestre na
balho de parto).
Universidade de Brasília. Ele dizia que um
Mandei os cordéis para os irmãos Karamazov do
dos mais graves problemas da cultura brasi-
Laranjal, que é como eu os chamo, e eles me respon-
leira era que os artistas não se freqüentavam.
deram que eu até que não me dava tão mal com a
Segundo ele, músicos não conversavam com
redondilha maior. Fui aos dicionários. Redondilha
escritores, que esnobavam dramaturgos, que
maior: versos de sete sílabas.
desprezavam artistas plásticos...
Aí se chegou o clarão que me faltava: eu deveria
Pois saiba, mestre Cassiano, que alguns
meter aquelas dezenas de frases arrancadas do conto
guris de Pelotas quebraram essa escrita.
enfeitiçado em camisolas de sete sílabas. Foi o que fiz.
Com base nas tais frases soltas, esbocei três poe-
minhas em redondilha maior, que submeti ao crivo
dos irmãos. Prevaleceu aquele em que eu alinhava
basicamente recordações de infância e adolescência.
Polido e burilado, ele recebeu um banho musical e
transformou-se em “Mistérios do Bule Monstro -
Brincando na Praça dos Enforcados”.
A canção começa leve: “Lá no fim do arco-íris/
Caixas de lápis de cor/ A professora ensinava; Foi
Nabucodonosor”. Vai da infância à adolescência,
percorre a cidade (Igreja da Luz, Vila dos Agacha-
dos, Balneários dos Prazeres, Solar da Baronesa,
Praça dos Enforcados) e apresenta alguns dos mais
conhecidos tipos populares (Alfredinho, Corcel, Ju-
dite e Miloca), para os quais, ao final, pede a prote-
Lourenço Cazarré, jornalista e
ção divina: “Deus proteja os malucos/ E as “loucas” escritor, é autor de Estava nascendo
do mictório/ Que eu vou terminar meus dias/ Num o dia em que conheceriam o mar
quarto do sanatório”. I (Saraiva). Mora em Porto Alegre (RS)

38 | João Pessoa, agosto de 2015 Correio das Artes – A UNIÃO


6 romance

Outros
cantos
EXCERTO DO NOVO ROMANCE
DE MARIA VALÉRIA REZENDE,
SELECIONADO PARA PATROCÍNIO
PELA PETROBRAS CULTURAL, A SER
PUBLICADO PELA ALFAGUARA EM
NOVEMBRO DESTE ANO

A
cabado o trabalho de tingimento das meadas ganchando seus canecos dos cabeçotes das se-
que nos cabiam para o dia, Fátima foi tratar las. Eu contemplava aquela liturgia de hospita-
de banhar seus meninos, curar-lhes as feridas, lidade, imóvel e silenciosa para não a perturbar.
e eu, sob o sol ainda brilhante, caminhei até o Compreendia, pela pouca conversa entabulada,
cajueiro de Dona Zefinha para esperar o ocaso, tratar-se de um grupo de vaqueiros de fazen-
mas, antes dele vi chegar, sem se fazer anunciar das do outro lado do rio, distante pouco mais
por nenhum aboio, um grupo de quatro ou cin- de uma légua dali, passando eventualmente por
co vaqueiros que não pude reconhecer.  Olho d’Água em busca das reses do patrão e suas
Não vinham, como de costume, pelo estreito novas crias a ferrar, gado solto no mundo duran-
caminho arenoso já calcado por tantos cascos. te o verão para encontrar sozinho o que comer. 
Desembrenhavam-se diretamente da caatinga Por fim, uma nova figura emergiu do mato,
cerrada, quase em frente ao cajueiro, apeavam, estranho personagem, destoando dos seus com-
amarravam os cavalos num mourão de cerca e panheiros, muito mais alto e pesado para o pe-
um deles chamou “Salve, Dona Zefa, aqui vie- queno cavalo sertanejo, cartucheiras cruzadas
mos outra vez atrás da caridade de vosmecê!” no peito, imagem de herói cangaceiro, um cha-
“Faz tempo é muito que não apareciam por péu bem mais vistoso, abas largas alevantadas
este lado do rio”, ouvi responder a velhinha, já ostentando estrelas de prata, escondendo na
capengando porta fora. Veio até junto do pote, sombra a parte do rosto não coberta pela bar-
onde os homens, ao contrário dos moradores ba cerrada e crescida de herói guerrilheiro, tão
dali, acostumados a servir-se à vontade, espe- diferente das caras quase imberbes dos demais
ravam respeitosamente, apanhou a quenga de vaqueiros matutos. Não apeou. Sua montaria,
coco e pôs-se a entornar água fresca nos cane- agitada, talvez espicaçada por ele, batia os cas-
cos estendidos pelas mãos protegidas em cou- cos na areia, girando sobre si mesma, até que
ro, avançando com a concha já de novo cheia ele a deteve, com um único puxão nas rédeas,
para outros cavaleiros que saíam do meio dos sem, porém, desmontar. Desprendeu da sela
garranchos, saudavam e desmontavam, desen- uma guampa com borda de metal branco lavra- c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2015 | 39


c do, presa a uma fina corrente, e quase correndo para minha ca- gou hoje?“ Junto ao meio-fio, a es-
deixou-a pender para que outro sinha. Passei a tranca na porta, pantosa máquina, quase inalcan-
vaqueiro lhe desse de beber vá- pela primeira vez desde a mi- çável objeto de cobiça de qualquer
rias vezes. Sem palavras, deu a nha chegada, corri até o pequeno jovem daquele tempo, maravilha
entender que estava satisfeito, baú de couro tachado de latão, de esmalte e couro negros e po-
com a mão esquerda sustentan- contendo quase todos os meus lidos, tubos niquelados, som de
do as rédeas, ergueu o chapéu pertences, e puxei lá do fundo aventuras, um tentador sidecar,
com a direita, trouxe-o num am- a caixinha de madeira finamen- tudo saído diretamente de uma
plo gesto até o peito e curvou-se te entalhada por meu avô para tela de cinemascope. Precipitam-
em sinal de agradecimento e re- servir-me de porta-joias. Ao abri- -se todos para o cavaleiro que não
verência a Dona Zefinha, acom- -la, com o coração assustado ba- desliga o motor nem desmonta,
panhado nessa mesura por toda tucando na garganta, depois de “Harley, Harley!” Tapas dos ga-
a sua tropa, compondo diante tanto tempo a carregá-la comigo rotos nas costas e ombros sob a
de meus olhos admirados uma sem mirar seu conteúdo, dei logo jaqueta de couro, gritinhos e bei-
cena destacada de alguma antiga com um vistoso emblema nique- jos das meninas. Só eu, tímida e
tapeçaria medieval, de mistura lado, arrancado de uma motoci- encantada, permaneço para trás,
com a evocação de um grupo de cleta Harley-Davidson, um velho na calçada, enquanto o herói en-
cavaleiros tuaregues vindos do bilhete do metrô de Paris, o dis- courado oculta-se no meio do
sul do Saara para negociar com tintivo esmaltado de uma União grupo que o assedia. Por alguns
Mr. Aoum, a beber cerimoniosa- Estadual dos Estudantes, um ojo- segundos, abre-se uma ala permi-
mente junto ao poço no oásis de -de-Diós muito colorido, a “mão tindo entrevê-lo, “Quase deixou
Ghardaïa. Percebi, então, a sa- de Fátima” em metal amarelo. Ali de conhecer nossa prima...”, mas
cralidade da água nos desertos e junto depositei a estrela de metal logo se fecha novamente, o gru-
velhos textos bíblicos ganharam branco, apertando na mão apenas po de adolescentes mais interes-
para mim novas ressonâncias.  o emblema da Harley-Davidson, sados nele do que em mim, e só
O vaqueiro amontado repe- fechando e escondendo a caixa, debandam quando alguém insis-
tiu a manobra que fazia o cava- às pressas, no mais fundo do baú, te “É tarde, gente, vamos, daqui a
lo corrupiar em piafé, como um como se temesse perdê-la. pouco nem se consegue entrar no
sinal para que todos os compa- Bebi o restinho d’água da quar- ônibus”. Só então posso ver por
nheiros amontassem também e tinha, abri minha rede e me esten- inteiro o motociclista, um pouco
partissem adiante dele. Esperei di, para não perder o embalo do mais velho que nós, e receber de
que os seguisse imediatamente, sonho. Voltei à minha adolescên- frente o impacto do olhar dele, di-
sem tomar conhecimento da mi- cia e ao Rio de Janeiro, sentindo rigido diretamente a mim, insis-
nha presença, mas ele se deteve e na palma da mão o relevo da peça tente, dizendo-me muito mais do
me olhou de frente. Um arrepio de metal arrancada de uma moto- que simples curiosidade. Resisto
me percorreu. Eu conhecia aque- cicleta. A viagem tinha sido meu o quanto posso à mão de minha
le olhar, sim, aqueles mesmos presente de aniversário pelos prima a puxar-me, “Assim a gen-
olhos, me tocavam tão fundo, quinze anos, escolhido em lugar te não chega a tempo na Central,
não havia como duvidar.  dos enfadonhos bailes de debu- trem não espera por ninguém”,
Era ele, aquele olhar que tan- tantes que entusiasmavam mi- e então ele, sem deixar de mirar
tas vezes tinha cruzado com o nhas amigas. Eu preferi as duas meus olhos, num gesto inacredi-
meu, fugidio, passageiro, mas semanas em casa de uma tia, no tável, arranca de um lado da sua
intenso, permanecendo sempre seu velho e romântico casarão máquina o brilhante emblema
uma eternidade. Minhas lem- de porão alto, fachada adorna- niquelado, pende para a calçada,
branças me cegaram e quando da à belle époque, numa rua som- estende-me a mão com o presente
voltei a mim ele já se embrenha- breada de imensas árvores entre e eu o apanho quando a força de
va no emaranhado da vegetação Botafogo e Laranjeiras. Duas se- minha prima vence minha parali-
seca e espinhosa. Levantei-me do manas decorridas num instante, sia e me arrasta atrás dela.
meu assento numa raiz saliente a explorar a cidade, paisagens, A mudança no ruído do motor
do velho cajueiro, ia virando- morros, praias, teatros, museus, do ônibus, o suspiro dos freios e a
-me de volta para minha casa, bibliotecas, recantos, calçadas, parada com um leve solavanco me
esquecida dos aboiadores que um tesouro muito mais rico e du- trazem de volta a este hoje, mais
havia vindo apreciar, quando radouro na minha memória do de meio século passado desde o
um dos últimos raios do poen- que restaria de qualquer baile de tempo em que o dono desse olhar
te fez rebrilhar alguma coisa no debutantes. Fim da última tarde se chamava Harley, apelido em-
chão, junto ao ponto no qual o das férias, malas prontas, praça prestado de seu cavalo metálico.I
estranho cavaleiro desapareceu. Nossa Senhora de Copacabana,
Dei alguns passos, curvei-me e um sorvete de despedida com Maria Valéria Rezende é paulista
vi, meio oculta pela areia, uma meus novos amigos, velhos ami- de Santos, radicada na Paraíba
estrela prateada, sem nem um gos dos primos, “Agora vamos desde 1986. Estreou na ficção em
2001 com Vasto mundo, ao qual se
segundo duvidar de que fosse indo, ônibus enche a esta hora, se seguiram, entre outros, O voo da guará
do chapéu dele e ali estivesse es- não você pode se atrasar... Harley! vermelha, Modo de apanhar pássaros
pecialmente como um sinal para Gente, olha o Harley! Apareceu, à mão (Objetiva) e Quarenta dias
mim. Recolhi a prenda e voltei afinal! Onde você andava? Che- (Alfaguara). Mora em João Pessoa (PB)

40 | João Pessoa, agosto de 2015 Correio das Artes – A UNIÃO


6 festas semióticas
Amador Ribeiro Neto
amador.ribeiro@uol.com.br

Vanguarda
e arte
popular
Fotos: internet

João Cabral de Melo Neto (1920-1999) em O que em Jackson Pollock (1912-1956) Augusto de Campos “ergueu uma poética que
sua obra – à exceção de Pedra do sono (1941) “parece inconsequente atitude abstracionista desconcerta o mais agudo leitor, fazendo-o
-, im(ex)plode o sentimentalismo exacerbado revela, de fato, pesquisa histórica e estética dançar miudinho ante criações que só se
da “dita poesia profunda” calcadas na realidade” entregam depois de muita luta”

T odo artista sério, em algum momento de


suas atividades, defronta-se com a van-
guarda. Uns a negam. Outros assimilam-
-na obliquamente. E outros mergulham
ção. Pela exaustão advinda da monotonia.
Pela saturação da previsibilidade.
Num país em que o Modernismo de 22 é,
até hoje, motivo de controvérsias, e no qual
nela pra valer. Estes últimos, normalmen- o conservadorismo em artes é a regra domi-
te, são chamados de artificiais, frios, cal- nante, não admira que aqueles que ousem
culistas, cerebrais, desprovidos de emo- inovar sejam patrulhados. E até metralha-
ção. E até de loucos. dos. É o preço que pagam os grandes artis-
Aqui vale lembrar Fernando Pessoa: tas face à mentalidade retrógrada que só va-
“Sem a loucura, que é o homem, mais que loriza o que é demasiadamente conhecido.
a besta sadia / cadáver adiado que procria?”. Afinal, o novo desinstala. Incomoda muita
Sem os vanguardistas a arte estaria ple- gente. É provocativo. Já, o velho apazigua.
namente mergulhada nas águas densas e Serena. Instaura a sensação de conforto.
turvas da mediocridade. Teríamos a pasma- É o que mais vemos em arte. Senão em
ceira instalada a torto e a direito. Ou seja, outros tempos, há hoje – em parte devido
tudo dominado pela mesmice. Pela repeti- à massificação, em parte devido à globali- c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2015 | 41


6 festas semióticas

c zação –, a necessidade de valo- ções excludentes. Antes, ao con-


rizar-se o dejà vu. Há uma busca trário: operam em grande harmo-
de produzir uma arte que faça nia. E até precisam uma da outra,
o receptor sentir-se tranquili- em interação recíproca. Ambas
zado. Arte como anti-estresse. se retroalimentam. Tomemos,
Nada como a tranquilidade da fortuitamente, o caso de Pollock,
mesmice consagrada pelo senso (1912-1956), o genial pintor norte
comum. Ela merece aplausos. É -americano, dono de um traba-
sempre incentivada. lho que até hoje cutuca a onça de
Ao questionar a linguagem muita gente com vara curta. Ele
da arte, experimentar com ela, incomoda a ponto que se questio-
atrever-se a algo novo, ou pou- na se o que ele faz é arte.
camente conhecido, o artista su- Sabemos que Pollock desenvol-
jeita, quase sempre, ao fracasso veu seu modo de pintar salpican-
a receptividade de seu trabalho. do tinta sobre tela, numa técnica
Pior: é criticado não apenas por conhecida como action painting ou
sua criação, mas também por dripping. O que nele parece incon-
sua biografia. Maus críticos e sequente atitude abstracionista
comentadores, quase sempre, revela, de fato, pesquisa histórica
falam mais da vida do criador e estética calcadas na realidade.
do que da obra criada. Motivo? A partir das pinturas com areia
Para criticar-se a uma obra artís- feitas pelos índios de seu país, ele
tica faz-se necessário conhecer a desenvolveu uma técnica e uma
história e a linguagem da arte. estética que unem tradição cultu-
A história e a linguagem de um ral a conquistas da arte plástica
povo. Ter claro que caminhos – atual. Enfim: Pollock entrelaçou
arte e nação – traçaram em dife- na tela passado histórico e con-
rentes épocas, e por quais razões temporaneidade numa produção
hoje ambas se apresentam assim de vanguarda.
e/ou assado. Uma tarefa e tanto Guimarães Rosa (1908-1967)”embrenhou O descompasso entre o públi-
para todo estudioso – ou mera- James Joyce no sertão das geografias físicas co e sua obra não advém do ponto
e psíquicas de um povo que vence o território
mente apreciador de arte. brasileiro e ganha o mundo todo”
de vista pós-moderno do artista,
Todavia, repertório crítico pa- mas da desinformação histórica
rece ser um território ignorado (passada e presente) do público.
por muitos. Ou por quase todos. Enquanto o público professar a
Avalia-se a obra de arte com co- idolatria da cultura-dos-hambúr-
nhecimento teórico próximo do Enquanto o público gueres, é claro que continuará
grau zero. E, na falta de conteú- vendo nas telas de Pollock jatos
do substantivo, apela-se, ora para professar a idolatria de catchup e mostarda. E conti-
a superabundância adjetiva, ora nuará não entendendo nada da
para os acontecimentos pessoais. da cultura-dos- arte de seu próprio tempo.
E, assim, a obra de arte padece da Ao dizer que o artista é a an-
boçalidade que a cerca. hambúrgueres, é tena da raça, Pound não se refe-
As vanguardas têm sido muito riu ao fato de o artista ser um ser
mal entendidas, devido, em par- humano especial, um privilegia-
claro que continuará
ticular, a estes dois motivos. Este do, um visionário. Pelo contrá-
é um dado histórico. Lamentavel- rio: Pound referia-se ao fato de
mente histórico. Mas, por outro
vendo nas telas de o artista ser a antena por captar
lado, que fique claro: ser vanguar- precisamente o tempo presente.
da não é sinônimo de qualidade Pollock jatos de O tempo em que vive. Muitos
estética. Não é por fazer uso de de nós ainda vivemos no século
novas linguagens que a obra ad- catchup e mostarda. passado. Para não dizermos em
quire, intrinsecamente, valor ar- tempos medievais. Este descom-
tístico. Mas, que fique igualmen- E continuará não passo real entre a realidade que
te esclarecido: ser antivanguarda vivemos e a que conhecemos é
é sinônimo de conservadorismo. entendendo nada da que faz com que a vanguarda seja
É render-se às amarras abominá- tão falada, quanto mal vista e mal
veis do preconceito estético. arte de seu próprio compreendida.
Em tempo: arte popular e arte Oswald de Andrade com Me-
de vanguarda não são manifesta- tempo. mórias sentimentais de João Mi- c

42 | João Pessoa, agosto de 2015 Correio das Artes – A UNIÃO


6 festas semióticas

c ramar (1924) escreve o primeiro poesia, estremeceu, por dentro, o


romance de vanguarda brasilei- código do romance, demolindo-o
ro. Nos 163 episódios do livro – para, a seguir, reerguê-lo novo,
como se estivesse sempre lem- novinho em folha. Foi tão genial
brando ao leitor tratar-se de uma que tomou palavras básicas e ao
obra literária, um produto de lin- usá-las em contexto, sintaxe ou
guagem e não um texto catártico pontuação inusuais, revestiu-as
ou sócio-psicológico –, o autor de nova carga semântica. Mui-
investe radicalmente contra os tas vezes tomadas como neolo-
princípios de linearidade narrati- gismos, quando não passam de
va, desconstrói noções de tempo, vocábulos devidamente diciona-
espaço, personagem e foco nar- rizados. Seus personagens falam
rativo. Enfim, subversão em alta da aldeia para os mundos desbra-
dose é sua marca, associada a um vados ou por desbravar. Em suas
humor deliciosamente popular. mãos a escrita romanesca e con-
Mário de Andrade em Macu- tística redimensionam-se para o
naíma (1928), sua obra mais expe- agora, que de tão matéria objeti-
rimental, nada teria conseguido va e pessoal, transfigura-se, num
se aos efeitos futuristas da lin- primeiro momento, em pedras de
guagem não tivessem associados fogo para o leitor (des)avisado.
aos rudimentos etnográficos e à Não importa. A seguir ele torna-
dicção matreira do povo negro, -se seu cúmplice na genialidade
indígena, europeu. A linguagem da estética da recepção.
inovadora do romance paga tri- Figura central da vanguarda brasileira, Mário Augusto de Campos detonou o
buto ao grande romance cervan- de Andrade (1893-1945) tem no romance código poético para depois poe-
tino bem como satiriza os moldes Macunaíma, publicado em 1928, “sua obra
tizá-lo à margem, no centro do
do romance romântico, incorpo- mais experimental”
contra, no núcleo do não. Ergueu
rando a irreverência modernista. uma poética que desconcerta o
Mais uma vez, vanguarda e cul- mais agudo leitor, fazendo-o dan-
tura popular unidas. çar miudinho ante criações que só
João Cabral em sua obra – à se entregam depois de muita luta,
exceção de Pedra do sono (1941), trança, cópula. Sua poesia desafia
seu livro de estreia –, im(ex)plo- à esquerda e à direita, por ser
de o sentimentalismo exacerbado sem centro – mas não elíptica. Ela
da “dita poesia profunda” e cria Num país em que o é em espiral, especular e labirín-
na literatura brasileira o lirismo- tica. Nova, brota ora na terceira
-metal, marcado por redobrada Modernismo de 22 margem, ora na cauda do cometa,
contenção do eu, que, em gran- ora no umbigo das galáxias. E o
de parte dos poemas, exila-se na é, até hoje, motivo leitor vira a página do livro em
concretude da palavra buscada tomadas clip-cinematográficas,
cerebralmente. Investe na cons- de controvérsias, na busca do clic inicial que pos-
trução de poemas quase sem ri- sa ser a chave de uma poesia em
mas consoantes, eliminando a e no qual o código intersígnico. Beleza que se
musicalidade tão característica dá depois de descobrir, como na
do poema tradicional. Imagens conservadorismo famosa passagem degasiana, que
de uma contundência tão seca a mulher verde da tela não era
quanto sintética e fértil. Conse- em artes é a regra mulher: era pintura.
guiu o máximo com o mínimo, E assim poderíamos seguir
observando como ninguém a
paisagem nordestina e o compor-
dominante, não prosadores e poetas afora, no
mapa mundi da educação dos
tamento do sertanejo. Sua obra é
tão marcadamente singular que o
admira que aqueles sentidos por sertões e milênios
da linguagem. Ficamos por
adjetivo cabralino significa exce-
lência de qualidade única. que ousem inovar aqui, lançando o bumerangue
da vanguarda.I
Guimarães Rosa embrenhou
Joyce no sertão das geografias sejam patrulhados. E
físicas e psíquicas de um povo
que vence o território brasileiro até metralhados. É o Amador Ribeiro Neto é poeta,
crítico de literatura e professor da
e ganha o mundo todo. Ao in- Universidade Federal da Paraíba.
ventar uma prosa permeada pela preço que pagam. Mora em João Pessoa (PB)

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2015 | 43


6 conto

Coração
sitiado
ilustração: tonio

2ª Parte

Rodrigo Caldas
Especial para o Correio das Artes

III

N
os arredores de Stalingrado, na outra margem do Volga se abria um outro campo de batalha. Sendo
que neste campo, não se objetivava infligir a morte ao soldado inimigo, mas, antes, salvar a vida
dos feridos de guerra. Larissa Potapova era uma enfermeira do exército vermelho e desde a inva-
são da União Soviética pelas tropas de Hitler ela passou a exercer efetivamente o seu ofício de as-
sistente dos enfermos. Sendo que esses enfermos eram enfermos de guerra, homens mutilados por
tiros e explosões que deixavam ferimentos atrozes. Tudo isso em um clima de confusão, angústia e
a total ausência de material de trabalho. Larissa era enfermeira de formação, em Moscou estudou
e vivia em uma família de classe média quando estourou a guerra sangrenta que a arrastou para
aqueles campos enlameados e ensanguentados, campos ladrilhados por corpos dilacerados, moí-
dos, campos regidos pela sinfonia de explosões e gemidos agonizantes. Já esteve em outras frentes,
mas aquela de Stalingrado parecia dantescamente sangrenta, tudo cheirava a pólvora e feridas
abertas... Um odor de salmoura de carne putrefeita, um fervilhar de corpos em macas agonizantes.
Larissa era uma loira jovem e bela, mas a retina dos seus belos olhos amendoados já retinha pre-
cocemente um amplo mural dos horrores de uma carnificina sem precedentes na história da velha
Europa beligerante. Seu avental de enfermeira mais lembrava o de um açougueiro, seu rosto belo
e calmo parecia transcender aquela atmosfera de morte e desengano.
Hans Müller, o soldado alemão, estava a congelar naquela trincheira enlameada, sentia o frio
se apossar do seu corpo e da sua alma. Quando a angústia permitia ele rabiscava aqueles versos
no seu caderno de notas ou imaginava uma namorada para quem estivesse escrevendo e descre-
vendo o circo dos horrores em que estava imerso. Escrevia como que para criar a sensação de estar
acompanhado, como que para humanizar aquela atmosfera pesada de mortes e dores. A solidão, o
frio e a fome das trincheiras subtraiam a sua humanidade, o sexto exército, naquela altura da guer-
ra, era uma fileira de zumbis desumanizados, homens de olhos esbugalhados e lábios rachados c

44 | João Pessoa, agosto de 2015 Correio das Artes – A UNIÃO


c e pálidos, o cerco do sexagésimo mentava. Recluso em seu banker
segundo exército soviético se fe- cercado de seus oficiais subordi-
chava, Hans Müller sentia a cada nados ele ainda tinha uma chan-
dia uma atmosfera depressiva a ce de romper o cerco às tropas
tomar seus pálidos pensamen- do sexto exército, as baixas eram
tos... Os aviões da Luftwaffe já grandes, mas ainda tinha um
não apareciam com a mesma fre- efetivo considerável para romper
quência e as provisões de alimen- aquele cerco empreendido pelo
tos se exauriram. O frio e a morte exército vermelho. Nos últimos
o contemplam a cada instante, a dias o general Paulus se angustia-
diarreia é uma inimiga tão mortal va a espera das ordens do próprio
quanto o fuzil do soldado inimi- Führer. Tinha ordens expressas
go. Em seus versos e cartas ima- de não recuar um só centímetro.
ginárias Hans se traveste de Dr. Seus superiores de Berlin lhe asse-
Fausto e clama por sabedoria para guravam que chegaria ajuda para
não sucumbir à loucura, à fome e derrotar as forças do sexagésimo
ao frio. O sexagésimo segundo segundo exército soviético, a ca-
exército ruge impiedoso a poucos pitulação de Stalingrado era só
metros... uma questão de tempo segundo o
Aleksei Andreiévitch sobre- próprio Führer. Paulus, até aquele
viveu à explosão, mas não sentia momento, acreditava piamente no
seu corpo da cintura para baixo, gênio militar de Hitler. Cumpriria
seu peito estava ferido, eram le- as ordens vindas do comando de
sões profundas causadas pelos Berlin, mas ao mesmo tempo já
estilhaços da explosão. Seu rosto não concordava com os métodos
macerado pela explosão, dava-lhe desumanos da ação militar nazis-
um tom mumificado, como uma ta, via em tudo aquilo uma cruel-
máscara de morte faraônica a dade descabida, o assassinato de
encobrir sua face desumanizada milhares de soldados capturados,
pelo sofrimento. Aleksei agoniza- seu envio para campos de concen-
va inconsciente... Balbuciava pala- tração onde morreriam de fome e
vras desconexas em meio ao coro sede... Uma guerra não precisa ser
de lamúrias agônicas dos milha- um inferno, pensava Paulus. E até
res de outros soldados mutilados, mesmo entre seus subordinados,
distribuídos caótica e irregular- os soldados que morriam conge-
mente no campo aberto sob lonas lados nas fileiras entrincheiradas,
de barracas de campanha. Em já se ouvia aquele murmúrio des-
seus delírios agonizantes Aleksei contente com os caprichos de um
via as mesmas águas do Volga, Führer obstinado e sanguinário.
mas eram águas cristalinas e cal- Um líder que os abandonara ao
mas... Um campo bucólico onde frio e à fome. Paulus crumpria as
se ouve o canto dos pássaros, o ordens recebidas, mas já começa-
valsar dos pinhais uivantes e a va a sentir a culpa bater na porta
neblina a cobrir de um tom oníri- em face daquela carnificina que
co a paisagem do extasiante e belo ele poderia ainda minimizar. A
rio Volga. Aleksei carrega não um É quando Aleksei diz: “Não vá ajuda prometida não viria e Pau-
fuzil de militar, mas seu macha- Katyusha, não me deixe aqui...” lus, já sem forças, se penitencia
do de lenhador. Usa não um uni- em um tom leve e quase inaudí- por ter
forme de guerra, mas seus trajes vel... Larissa segura sua mão, ele mandado o que restou do sexto
simples de filho de mujiques. Nas não a vê, a febre que toma conta exército para a morte. Aquele exér-
águas cristalinas do rio vê refleti- de seu corpo estribuchante como cito de zumbis ainda era liderado
da a face doce da vida, a esperan- que cria uma cortina opaca entre por ele e ele estava desorientado
ça que corria pelas veias caudalo- os dois, ele fala para uma Katyu- e confuso diante do fulgurante
sas do imemorial Volga. sha que não existe, Larissa se com- exército soviético, reforçado pelos
O olhar de Larissa encontra o padece daquele olhar sombrio que efetivos da frente siberiana, caça-
corpo inerte e delirante de Alek- já antevê a face da morte iminen- dores do gelo. O general Paulus
sei, aquele soldado de aspecto te. Seus dedos suavemente aban- vê suas forças quedarem e em um
rude lembrava a ela algo familiar, donam os dedos enegrecidos de gesto final de desespero pede aju-
era como se fosse um filho que sangue coagulado de Aleksei que das ao comando central em Berlin,
clamasse por atenção e carinho. fica abandonado à febre de seus que ordena mais uma vez que não
Larissa troca os curativos do pei- delírios. se deve recuar. Paulus sente que
to dilacerado de Aleksei, aquele O general Paulus vira em pou- aquele jogo de xadrez militar já es-
soldado não sobreviverá sequer cos meses uma vitória já certa tava perdido. Que a derrota estava
ao final do dia, Larissa, paciente, escorrer por entre os seus dedos. consumada.
tem aquele olhar de clemência Sua face registrava um tremor Seus dedos estão enrijecidos
sobre aquela alma desenganada. nervoso que com o tempo só au- pelo frio, encravado naquele bu- c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2015 | 45


c raco Hans Müller escuta as explo- diluem, Hans Müller com o fuzil inflexão, um divisor de águas de-
sões chegarem mais perto. Man- em punho atira no seu inimigo, terminante no desenrolar dos fa-
tem-se oculto e rabisca alguns atira sobre aqueles corpos que tos seguintes de todo o século XX.
versos mal elaborados, sente não se aproximam... Ao levantar um Os soldados soviéticos do exército
só o frio onipresente mas também pouco a cabeça, encontra uma vermelho foram responsáveis não
as trevas se espalharem como bala que o acerta em cheio... Hans apenas pela defesa de sua mãe-pá-
uma cortina negra de fumaça, Müller cai morto dentro da trin- tria, mas também de um conteúdo
uma cortina densa e opaca. Seus cheira, junto ao seu caderno de mínimo de humanismo que sem
nervos destroçados já não o fazem notas... Seus companheiros, em o sacrifício de tantas vidas, teria
mais sentir o seu próprio chão, sua um último arfar, continuam de- escorrido pelo abismo do racismo
expressão é assustada, como que sesperadamente a atirar... e carnificina nazistas. Aleksei, ao
sem entender, perplexo com o ro- O soldado ferido e delirante cabo de algumas semanas, já es-
teiro que aquele drama começava não morreu naquela noite, como tava de pé... Lentamente, apoiado
a esboçar. Seu peito estava aper- pensava Larissa Potapova. Ele a nos ombros de Larissa, ele cami-
tado e do lado aquele fuzil estava surpreendeu... Sua vontade de vi- nhava e em alguns meses lá estava
a espreita como a lhe avisar que ver fora maior... Ainda que fosse ele nos vastos campos das estepes
não tinha como escapar daquela como uma chama de vela ao vento russas empunhando seu fuzil e
carnificina. Iria morrer e não ve- que titubeante, vacilava entre apa- defendendo com sua alma a inte-
ria mais o céu de Leipzig, sua ci- gar e permanecer acessa... Assim gridade daquela terra que ele des-
dade natal. Em sua escrita atônita, Aleksei navegava por uma febre de sempre aprendera a amar. Em
Hans expressa sua desilusão com convulsiva, como um náufrago suas andanças e guerras, o filho
a guerra, com a morte e a perda de em uma procela revolta. Larissa de mujiques e lenhador verteu-
sentido da vida. Toda a insanida- desenvolveu especial afeto por -se em um guerreiro valoroso do
de que carregamos transborda em aquele soldado que lutava por exército vermelho. Lutava pela
sangue e mortes, pensa e escre- uma vida já praticamente perdida. memória de sua família, lutava
ve Hans. Mira um galho seco, de Os dias se passavam e ela, sur- pela independência de sua terra e
uma árvore sem folhas, naquele presa, encontrava aquele enfer- quando a sombra da morte se avi-
campo de terra escura coberta de mo a persistir... Quando Aleksei zinhava, a lembrança do sorriso
gelo, de corpos em decomposição, olhou-a e falou... Ela foi tomada doce e do olhar amendoado de La-
de explosões e destruição. As ex- por uma doce surpresa... Aquele rissa o estimulava a continuar lu-
plosões se aproximam mais, ele rosto macerado perdeu a másca- tando contra o inimigo poderoso.
e seus outros três companheiros ra mumificada da morte, tinha Aleksei Andreiévitch aprendeu
nada falam, somente ele rabisca paulatinamente a cor devolvida que também era um guerreiro e
algo... Os outros ficam em silêncio. ao seu semblante. Aleksei já não que a vida, mesmo que no absur-
Nos rabiscos de Hans ele desespe- mais delirava e as lembranças co- do e insanidade de uma guerra
radamente tenta se apegar a um meçavam a visitar sua mente. Mas poderia ainda oferecer um sentido
fio de esperança de ainda sair vivo foi mesmo o olhar amendoado de em meio à angústia e ao dissabor
daquele inferno depressivo. “Essa Larissa que o despertou do seu se- de suas perdas. Ao chegar às por-
terra é feia, suja, fétida... Minha pulcro, era como se aquele olhar tas do Reichstag em Berlin, após
querida e civilizada Leipzig, terra não tivesse perdido a poesia que ver tantos companheiros mortos
de poetas, filósofos e composito- ele já não encontrava nele mes- e feridos, após ver a destruição
res, minha terra, minha pátria... mo. O jeito de Larissa cuidar de de uma outra nação, Aleksei não
Minha vida jovem escorre pelo seus ferimentos, seu denodo, sua sentiu prazer, mas a sensação de
ralo, evapora... Eu tenho medo... paz inabalável mesmo naquela at- que a vida tinha que prosseguir...
A escuridão avança sobre mim... mosfera sombria de dor e de mor- Ao fincar uma bandeira vermelha
Essa terra é sombria, terra em te, contagiaram o soldado ferido sobre um dos poucos prédios que
que os homens perdem sua hu- com uma centelha doce de vida. permaneciam em pé na dilacera-
manidade e se convertem em um Foi no olhar doce e amendoado da cidade de Berlin, o soldado do
exército de zumbis, máquinas da de Larissa que Aleksei encontrou exército vermelho sentiu que seu
morte a cuspirem horrores, fogo forças para buscar um novo sen- dever estava cumprido. Aos seus
da desilusão... Leipzig, minha luz, tido. Larissa, por sua vez, desen- pés, de homem simples e rude,
meu sol... Ich liebe dich...” Uma volveu aquele afeto de admiração Aleksei sabia o custo daquela vitó-
bomba cai e explode muito próxi- por um soldado tido como morto ria, mais de vinte milhões de rus-
mo, o exército vermelho já se faz e sem qualquer perspectiva de re- sos pagaram com a própria vida o
visível, o cerco se fechou e agora é nascer. Entre ambos surgiu uma sonho de liberdade que alimenta-
o embate homem-a-homem, seus atmosfera crescente de admiração va o novo significado das vidas de
ouvidos estão zumbindo, as no- e afeto, mesmo que ao seu redor Aleksei e Larissa.I
tas do Concerto de Brandenburgo só houvesse mortos e feridos. No
emudecem, sente que está surdo, desenrolar dos fatos, a batalha de
quando seus companheiros co- Stalingrado foi a mais sangrenta
meçam a atirar no inimigo que se da história, a derrota nazista em
avizinha... O caderno de notas cai Stalingrado não significou ape- Rodrigo Caldas é advogado com
a atuação em direitos humanos e
no chão enlameado da trincheira, nas a perda de uma batalha, mas
mestrando em direitos humanos,
as folhas brancas mergulham no a destruição da espinha dorsal da cidadania e políticas públicas da
barro negro em que estão enfiadas máquina de guerra de Hitler. Sta- Universidade Federal da Paraíba.
suas botas, as letras rabiscadas se lingrado, assim, foi um ponto de Mora em João Pessoa (PB)

46 | João Pessoa, agosto de 2015 Correio das Artes – A UNIÃO


6 jogada de letras
Edônio Alves
edonio@uol.com.br

Festa, futebol,
ressaca, literatura e bola
J
á afirmei em outra coluna mi- rante desse jogo no âmbito um desses casos – uma análi-
nha, aqui no Correio das Artes, específico da nossa mentali- se do conto intitulado, “1958”,
que ao estudar bastante a pre- dade e formação cultural. do escritor Deonísio da Silva),
sença do futebol na literatura Nesse contexto, um dos que tentaram trazer pelas ma-
brasileira em suas mais dife- assuntos mais pautados pe- lhas da ficção a experiência
rentes formas, pude compro- los escritores brasileiros que confortante da vitória.
var, ao menos analiticamente, escreveram sobre futebol no Trago, portanto, desta vez,
uma alvissareira constatação: gênero conto está a derrota para os nossos leitores, uma
a clara impressão de que, tal- do Brasil para o Uruguai na história que reúne festa (em-
vez motivada pela centralida- final da Copa do Mundo de bora seja a festa junina típi-
de do tema do futebol na nos- 1950 em pleno estádio do Ma- ca das cidades do interior
sa cultura, a literatura brasi- racanã, no Rio de Janeiro. Pelo do Brasil), futebol e ressaca.
leira já elaborou um conjunto trauma que o fato causou na Nosso intuito, como sempre,
de operações modelizantes, memória emocional brasilei- é o de relacionar futebol e li-
através da contribuição con- ra, o chamado “maracanazzo” teratura, numa tentativa de
junta, sucessiva e pessoal dos tem mobilizado a inteligência esclarecer nosso leitor sobre
seus mais distintos escrito- narrativa de vários de nossos as nuances dessas duas for-
res, com as quais construiu escritores tornando-se, assim, mas de expressão da alma
um tipo específico de peça um assunto típico do conto fu- nacional, que ora se faz pelos
literária: o conto brasileiro de tebolístico brasileiro. pés, ora se faz pelas mãos,
futebol. Não se diga o conto Numa outra ponta, tentan- ou seja: pelas chuteiras dos
de futebol no geral, mas, pre- do captar o sentido reverso – o nossos jogadores de futebol
cisamente, o conto brasileiro da euforia pela nossa primeira ou pela escrita mágica de
de futebol, significando isto conquista de um título mun- nossos escritores. A narrati-
uma peculiar formalização dial no campo da bola – está va abordada aqui é de auto-
estética de um tema cuja efe- a investida literária, feita por ria do escritor Renard Perez
tivação literária só é possível alguns escritores (e registre-se e intitula-se “Copa do Mun-
graças à dimensão estrutu- que já publiquei nessa coluna do”. Vamos a ela.

SUÉCIA, 1958: A PRIMEIRA GRANDE


CONQUISTA DO BRASIL

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2015 | 47


6 jogada de letras
c Como já antecipei, o conto é guém a quem comunicar a minha
uma pequena história, que re- PARA SABER MAIS felicidade. Os livros enfileirados
lembra, em ritmo e clima de res- na estante parecem-me absurdos,
saca, a primeira conquista de um Rena rd é ridículo o jornal jogado por bai-
título mundial de futebol pelo Perez nas- xo da porta, com seus conscien-
Brasil, na Copa de 1958, realizada ceu em ciosos prognósticos sobre uma
na Suécia. O texto é todo um re- Macaíba partida futura…”, observa noutro
gistro nauseado das lembranças trecho o enfastiado narrador.
(RN), em 3
matutinas de um personagem  Acreditamos, como exem-
que acorda ressacado dos exces- de janeiro plo, que estes dois registros aci-
sos de uma festa junina a que de 1928, e ma já são suficientes para dar
tinha ido na noite anterior, e que é um es- ao leitor a dimensão singular
se vê, agora, conduzido pela am- critor bra- deste conto que, se não é ino-
biência festiva e patriótica em seu sileiro que dedicou sua car- vador no tratamento simbólico
entorno, diante da circunstância do tema da posse e da perda – e
de enfrentar (assistir, ouvir) ou reira, sobretudo, aos gêneros de suas fundas repercussões no
não, pelo rádio, a partida final do conto e da novela, embora âmbito individual ou coletivo -,
da Copa contra a própria Suécia. tenha se aventurado também ao menos não é tributário do
Este é um daqueles contos atra- no romance e no ensaio crí- lugar-comum em termos de fa-
vés do qual se opera o encontro tico. Estreou com O beco em tura narrativa que elenca o jogo
da consciência com a memória de bola aos pés como motivo
1952. Sob a liderança de Di-
do narrador, para disso resultar acessório ou principal.
uma atmosfera intimista como nah Silveira de Queiroz, inte-  Um último momento-síntese
esta que passa a narrar. grou o grupo Café da Manhã, desta narrativa de Renard Perez
 Sendo assim, certo mal-estar ao lado de Fausto Cunha, Sa- que, esclareçamos, não inova em
vai logo se instaurando na his- muel Rawet, Luís Canabrava, nada em termos de investimento
tória como resultado de algumas formal e que, contudo, traz algu-
Daniel Dantas entre outros
lembranças do personagem-nar- ma inflexão alvissareira no tocan-
rador-protagonista marcadas por escritores. Advogado de for- te a sua determinação temática,
certa experiência traumática: a de mação, Renard dedicou-se simboliza bem o caráter reflexivo
ter também assistido o jogo final principalmente ao jornalismo geral da representação literária
da Copa de 50, no Brasil, e, em cultural. Passou por diversos sobre a matéria social sobre a
decorrência disso, ter amargado jornais e revistas, dentre eles qual se debruça: no caso, a expe-
o acre sabor da derrota num mo- riência da mentalidade brasileira
mento em que sob todas as evi- o Correio da Manhã, Revis- sobre um dia tão especial.
dências do mundo, éramos o me- ta da Semana, Revista Branca,  “É preciso contar o resto?
lhor país do mundo nas instân- de Saldanha Coelho, revista Cada brasileiro, naquela manhã,
cias do futebol. Momento em que Manchete e jornal Última Hora, a princípio terrível, depois glo-
o futebol, para nós brasileiros, já tendo sido ainda redator-che- riosa de domingo, sofreu como
era mais que o futebol. Era a face eu. Os gols que se sucederam me
fe da revista Literatura. Em
simbólica da nossa própria cara. levaram definitivamente a ressa-
 “Entendo o patriotismo, pa- setembro de 2003, recebeu a ca. Mas não me tranquilizaram.
triotismo é a vitória do futebol Medalha Antônio Houaiss, Cheguei a desejar um avanço no
no estrangeiro. Pátria é esse or- oferecida pelo Sindicato dos tempo – chegar logo ao fim da
gulho que me enche o peito, e Escritores do Estado do Rio de partida, qualquer que ele fosse.
me engrandece, dá-me vários O horrível era aquele martírio
Janeiro (SEERJ) em sua sede,
metros de altura. De súbito, o lento, martírio chinês”.
Brasil é a mais soberana das na- na Casa de Cultura Lima Bar-  E não terá sido assim que os
ções, e as grandes potências de reto, pelos serviços prestados brasileiros então sentiram – ou
dez minutos atrás de repente se à literatura brasileira. A nar- sentirão, agora, com esta narrati-
amesquinham e olham para nós rativa de futebol, “Copa do va – aquilo tudo? I
lá de baixo, respeitosamente”, Mundo”, encontra-se publica-
diz a certa altura o personagem-
-narrador, alternando seu estado da na reunião de contos sobre
de espírito de momento entre o tema, intitulada Contos bra-
eufórico e nauseabundo. sileiros de futebol, organizada
 “Tenho um aperto na gargan- em 2005 por Cyro de Matos,
Edônio Alves é jornalista, poeta e
ta. Mas sinto-me um tanto sem sob os auspícios da Editora professor de Comunicação Social da
graça, ali sozinho no apartamen- Universidade Federal da Paraíba.
LGE, de Brasília.
to, de pijama e dorso nu, sem nin- Mora em João Pessoa (PB)

48| João Pessoa, agosto de 2015 Correio das Artes – A UNIÃO


6 conto

ilustração: domingos sávio


A vida de
Lucélia Santos
Sérgio Tavares
Especial para o Correio das Artes

A
minha mãe não queria. Já estava nela, an- se enxergássemos um dentro do outro.
tes de existir. Intuição materna, costumam Nesse momento que minha mãe se aproxi-
dizer. Algo assim. mou de mansinho e sussurrou no meu ou-
A minha mãe disse esse rapaz não é vido esse rapaz não é bom pra você. Mas
bom pra você, e eu o havia visto fazia al- era tarde demais, eu já estava apaixonada.
guns minutos. Acontecia a festa de noiva- Me lembro disso só agora.
do da minha irmã mais velha. Estávamos Nos casamos dois meses depois, a con-
no living, exibindo nossos vestidos de or- tragosto dos meus pais. Eu abandonei o
gandi, quando entrevi aquele rosto desco- ginásio e consegui um emprego numa
nhecido, de traços angulosos e marcantes, boutique. Gilliard sempre foi um operário,
que navegava entre o aspecto disforme trabalhava com máquinas. Tinha expe-
da multidão que se apertava no alpendre riência em fábricas de tecido, de bicicletas,
equilibrando taças e aperitivos. de enlatados e, naquela ocasião, era corta-
Fiquei caidinha na hora. Eu o encarava dor numa fábrica de papel. Fomos morar
fixamente, erguendo, pouco a pouco, pa- numa casa alugada de um piso, que fica-
redes que nos privavam do falatório, da va numa vila de difícil acesso. Não tinha
música da vitrola, do efeito do ponche e do o conforto da casa onde cresci, mas eu
Campari, do cheiro do leitão assado. Era gostava daquela vida mínima, daquele es-
apenas eu e ele, vivos naquele cenário de paço mínimo que tratava caprichosamen-
manequins em ternos e vestidos. E quan- te como uma exportação do quarto antes
do me respondeu ao meu olhar, foi como compartilhado com minhas irmãs. É claro c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2015 | 49


c que a sensação de novidade con- sença da minha irmã. Quando cido para mim, melhor amigo de
tribuía. A aposta de que existia chegamos à praça, ele já estava longa data. Vargas tinha olhos
todo um mundo a ser explorado lá. Tinha levado flores e feito a estranhamente miúdos, suíças e
ao lado do Gilliard, ainda que ele barba. Confessou, com os olhos bigode por aparar. Era tão magro
fosse sete anos mais velho que marejados, que estava arrepen- a ponto do desenho das costelas
eu. Por conta da idade, haviam dido, que me amava o suficiente lhe vestir feito um colete. Ace-
coisas que ele já conhecia. Tanto para abandonar a maconha e ga- nou de onde estava, acho que
para o bem quanto para o mal. rantir que nunca mais iria tocar não conseguia mais que isso. Eu
Gilliard gostava de puxar um dedo em mim. Eu fiquei in- reprisei sua incapacidade, por ra-
fumo em casa, depois do traba- defesa e decidi voltar para a casa. zões voluntárias.
lho. Dizia que era para afastar Eu o amava tolamente. Estávamos a poucos dias do
o barulho das máquinas na sua A promessa foi cumprida por Carnaval e, no pequeno televi-
cabeça. Eu não conhecia maco- um tempo. Em dois dias, a rotina sor com o volume inaudível, co-
nha, sequer identificava o chei- prendeu-se ao eixo e a casa vol- meçou a rodar imagens de des-
ro da erva. Na primeira vez em tou a ser um lugar pacífico. Ele files de escolas de samba. Uma
que fumou depois de casado, me ficou mais atencioso, mais inte- sequência de registros das ruas,
ofereceu uma tragada. Eu expe- ressado pelas minhas preferên- mulheres à vontade e foliões em
rimentei, mas não me fez bem. cias. Assistíamos a telenovela, preto-e-branco. Macaqueando-se
Não deu barato, fiquei enjoada. às vezes um filme, depois íamos à minha frente, Gilliard começou
Para Gilliard, funcionava. Ficava para a cama juntos. Trepávamos a me sacolejar, achando graça
só de cueca numa espreguiçadei- todos os dias. Era monótono, eu daquele ato descabido. Depois
ra de pano que colocava entre a sei, todo o teatro de repetições, perguntou ao Vargas cê gosta
cozinha e a sala, bem embaixo de mas eu gostava, se harmonizava de Carnaval?, num tom altera-
um basculante, planando sobre ao modelo de casamento que to- do, mas incapaz de alcançar a
não sei onde, por horas a fio. mava emprestado dos meus pais. dimensão onde o amigo estava.
Eu não me importava, me ocu- Até que num sábado (me lem- Sem resposta, ele me trouxe con-
pava com os afazeres domésticos bro que era sábado, pois tinha tra o seu peito grudento e com-
e as marmitas do dia seguinte. cumprido meio expediente) eu pletou que, de todas as pessoas
Às vezes, ele ficava com vonta- retornava da boutique e me sur- que conhecia, eu era a que mais
de boa de trepar, mas o comum preendi com Gilliard, sentado no gostava de Carnaval, que samba
era eu ir para cama sozinha. Foi sofá da sala, ao lado de um cara. no pé eu tinha muito mais que
nessa normalidade morna que a Os dois estavam sem camisa e qualquer mulata do Sargentelli,
vida virou do avesso. sob o efeito de alguma droga que literalmente nesses termos. Quer
Era de madrugada. Eu esta- os faziam suar em bicas. Gilliard ver só? Vá ao quarto, tira essa
va dormindo, quando Gilliard fez um estardalhaço quando en- roupa, e mandou que eu voltasse
entrou no quarto ligando a luz trei, imitando trombetas com de biquíni e sambasse para eles.
e sacudindo o colchão. Levanta e os lábios. O nome do cara era Tomada por uma soma de
prepara um café e um pão com man- Vargas, seu, até então desconhe- espanto e incredulidade, eu me c
teiga, tô com fome, rosnava contra
o meu rosto espantado.
Eu estava em choque, ou pró-
xima disso. Nunca o tinha visto
transtornado daquele jeito, cor-
rendo sem rumo pela casa. Ele
saia e entrava do cômodo, ber-
rando levanta!, levanta!, e eu não
conseguia reagir. Então pulou
sobre a cama, me pegando pelos
cabelos, e me arrastou porta afo-
ra até a cozinha. Eu tremia toda,
preparando o lanche que arran-
cou da minha mão, cambaleando
de volta à espreguiçadeira. Não
dormi mais, naquela noite.
Fui trabalhar bem cedo, de-
pois segui para a casa da minha
irmã mais velha. Gilliard foi lá
durante uma semana, tentando
falar comigo. Queria se retratar,
pedir perdão, mas era sempre
dissuadido, pelo meu cunhado, a
desistir e ir embora.
Até que marcamos um encon-
tro. Um lugar público, com a pre-

50 | João Pessoa, agosto de 2015 Correio das Artes – A UNIÃO


c desvencilhei do abraço melado, afinal. Abri os olhos e vi o vulto passava pela cabeça o que era.
lhe atacando com um olhar de ajoelhado entre minhas pernas. Venha cá experimentar! E não
reprovação, que foi se escolhen- Tinha puxado meu short e a cal- sei, talvez por conta do pileque,
do à medida que via seu rosto se cinha até as canelas e se atirava talvez pela própria ingenuidade,
transfigurar numa bola de san- com força contra mim. Fechei os eu fui. Me juntei a eles e, nossa, foi
gue. Vista o biquíni e venha sambar olhos e fingi que não era nada, a melhor das melhores sensações da
pra gente!, mordia cada sílaba, se- um sonho desabitado. minha vida!
paradamente. Daí chegou o dia do baile. Mi- Era como se todos os senti-
Quando retornei à sala, Gil- nha irmã mais nova foi a única mentos encarcerados, a submis-
liard e Vargas estavam novamen- da família a aceitar o convite e, são, a baixa autoestima, o medo
te ladeados no sofá, mirando mi- de maneira gentil, veio cedo me ambulante, a anuência de que
nha entrada com sorrisos lepro- ajudar com os aperitivos e a deco- você não passa de uma coisi-
sos. Aqui, apontou para o centro ração. Gilliard ficou responsável nha medíocre, de um orifício
onde movera a mesinha. Iniciei pelas bebidas. Vieram também viscoso, deixassem de existir.
uns primeiros passos tímidos, uns vizinhos, Eva, uma amiga A cocaína me abriu um campo
contendo o choro e suportando da boutique, e a casa pequena infinito e sem riscos. Me sentia
o constrangimento. Apertava os não precisou de mais para ficar nua, selvagem e, o que mais me
olhos bem forte até a cabeça tre- lotada. Fantasiados, cantamos valia, mais próxima do Gilliard.
mer, tentando me transferir para marchinhas, brincamos de atirar Cheirar juntos se tornou o nosso
um lugar onde ser obrigada a confetes e serpentinas, bebemos ponto de estreitamento, nosso
rebolar de biquíni, sem música, além da conta. No fim, até que refúgio. Eu já não me importa-
no meio da sala não parecesse ul- tudo correu extraordinariamente va com as brigas e as agressões
trajante, quando surgiram gritos bem. Lá pelas tantas, sobraram porque sabia que a cocaína iria
de para, para, está tudo errado! Gil- apenas Vargas e Gilliard na sala. acertar tudo logo adiante. Vargas
liard inclinou-se no sofá e puxou Eu estava na cozinha lavando a era quem fornecia as pedras, vi-
a parte de trás da tanga, cavando louça, quando ouvi chamar o nham da Colômbia. Passamos a
todo o tecido dentro da minha meu nome. Me pareceu um tipo cheirar todos os dias. A noção do
bunda numa tira que revelava as de ritual, quando cheguei. Eles tempo foi se apagando, a ponto
laterais espessas do absorvente. estavam ajoelhados à beira do de descumprirmos obrigações
Agora sim, vamos!, e os dois come- tampo de vidro da mesinha de e deixarmos de nos alimentar.
çaram a gargalhar. Vamos animar centro, onde havia três fileiras Havia também a espionagem de
esse baile, Chico! Ei, peraí, é isso, ele de um pó branco, que não me uma agonia que me espreitava
exclamou no tom de quem tem nos acessos de abstinência. Mas
uma ideia brilhante, vamos fazer tudo se aniquilava nas festinhas
um baile de Carnaval! a dois, cheirando e trepando sem
Naquele mesmo dia, enquan- descanso por horas seguidas.
to jantávamos, um comentário Não demorou, obviamente, para
dos mais triviais sobre Vargas que perdêssemos nossos empre-
desencadeou um acesso inespe- gos. Foi justamente nesse perío-
rado de fúria. Curvado sobre o do em que engravidei.
prato, Gilliard reagiu com um Quando descobri que existia
murro no tampo da mesa, que uma vida dentro de mim alheia
levaram os copos e os talheres Daí chegou o dia à minha escolha, resolvi parar de
ao chão. Mandou que eu calasse usar cocaína. O fundo de pou-
a boca e, fora de si, seguiu com do baile. Minha pança durou por três meses, de-
um disparo de ofensas das mais pois Gilliard começou a vender
cruéis. Em seguida se levantou alguns eletrodomésticos para
e, chutando o que via pela fren- irmã mais nova foi sustentar o vício. Eu me alimen-
te, arrastou a espreguiçadeira tava na casa da minha irmã mais
para debaixo do basculante, se a única da família velha, que era quem me acompa-
esticou e acendeu um cigarro de nhava nos exames pré-natais. Foi
maconha. Eu fiquei sentada por a aceitar o convite ela quem deu o nome, quando
um tempo, apenas como estava, descobrimos que era um menino.
na companhia da comida que Maurício. Eu acreditei naquele
esfriava e dos cacos. Depois fui e, de maneira nome, acreditei que poderia dar
direto para a cama, sem me la- certo. Alguns meses após o par-
var ou trocar de roupa. gentil, veio cedo to, eu volta a cheirar de maneira
Mais tarde, sonhei que havia desbragada. Vargas trazia remes-
descoberto um lugar desabita- me ajudar com sas cada vez maiores de pedra no
do onde dançar seminua, contra fundo de caixas com propaganda
a vontade, não me fazia sentir política, fazendo da casa um tipo
constrangida. Meu corpo sacu- os aperitivos e a de estoque pelo qual éramos re-
dia para cima e para baixo, sem munerados, de modo que come-
compasso, mas não era sonho, decoração. çamos a nos sustentar com isso. c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2015 | 51


c Por outro lado, tínhamos muni- apenas em proteger o bebê ainda Verá não há nada que compro-
ção irrestrita para nos afundar- desacordado nos meus braços. meta a perda da guarda do seu
mos no vício. Gilliard iria me matar, eu sabia filho. O seu marido ficará detido
Nesse dia, na verdade esse dia disso. E engraçado era que o fato por um tempo, depois o Campão
começou em algum momento de eu ter apagado me dava vanta- irá conduzi-lo a uma das celas
que ainda não fazia parte dele, gem sobre ele. Contornei o sofá, destinas àqueles que praticam
provavelmente semanas antes insinuando entrar na cozinha, atos subversivos. E presumo que
pois vivíamos sob o efeito repri- e guinei para dentro do quarto, você saiba o que acontece com
sado da droga, eu apaguei. Não onde me tranquei. A manobra o aqueles que praticam atos sub-
sei, talvez por horas. Era uma irritou ainda mais. Urrava e es- versivos em nosso amado país?
fase em que meu filho já engati- murrava a porta, tentando supe- Eu o encarei por um tempo
nhava e ouvir um choro que soa- rar a madeira a facadas. Ele repe- e, na frieza daqueles olhos des-
va como o dele, de algum modo, tia você nos matou, você nos matou! maiados, percebi o quanto iria
foi o que escavou aquelas cama- E a algazarra estranhamente rea- me machucar, as coisas inominá-
das e me puxou. Despertei como nimou o menino, que começou veis que iria fazer comigo, o grau
quem escapa de um afogamento, a chorar. Não tão animador foi de maldade capaz de apagar
procurando o bebê pela casa, em para os vizinhos que, perturba- tudo o que eu era até aquele mo-
meio à desordem, mas não esta- dos, chamaram a polícia. mento. Peguei a caneta e assinei.
va em lugar nenhum e tampouco Gilliard foi algemado. Nos co- Amanhecia quando deixei a
o ouvia novamente. Pedia ajuda locaram no banco de trás da rá- delegacia. O sol começava a con-
ao Gilliard, inerte sobre a espre- dio patrulha; o bebê, sobre meus quistar territórios, tomando de
guiçadeira, gritava por socorro joelhos, ainda soluçava. Durante assalto o topo dos prédios, na
vagueando pela casa, quando o trajeto, ele me encara com olhos altura das antenas de televiso-
finalmente o achei aninhado no que diziam aconteça o que aconte- res e dos para-raios. Eu andava
vão entre a parede e o sofá. Na cer, não diga nada sobre a droga. a esmo, enfrentando a margem
altura do peito, o macacãozinho Na delegacia, fomos separados e do dia que ainda não conseguia
estava empapado de uma gosma uma assistente social me tomou se distinguir, quando tudo pa-
esbranquiçada e ele não respon- o menino. Um policial anotou rece resistente demais, submer-
dia aos meus estímulos. Fiquei meus dados, depois fiquei plan- so numa luminosidade aquosa.
desesperada. E, quando nos de- tada num banco de madeira por Pensava na minha mãe. Na tal
sesperamos, uma ideia se fixa na horas, atemorizada com o tanto intuição materna. Era apavo-
cabeça. Naquele momento, para de jovens, tipo estudantes, que rante imaginar que, ao sussur-
mim, era que ele tinha ingerido eram puxados de um lado a ou- rar no meu ouvido naquele dia
cocaína e que eu precisava aca- tro, alguns bem machucados a da festa, ela podia antever tudo
bar com tudo aquilo de uma vez ponto de não conseguirem ficar de mau que aconteceria, ainda
por todas. de pé por conta própria. que não tão apavorante quanto
Tomei o menino nos braços Até que o mesmo policial saiu eu, naquele instante, entender
e avancei contra a estante onde de uma porta e avisou que o dele- como isso era possível. Eu teria
Vargas estocava a droga. Pegava gado queria falar comigo. Era um o meu filho de volta, e isso bas-
o que conseguia com uma mão sujeito corpulento, na faixa dos tava. Mesmo doente e machuca-
e retornava até o banheiro, onde quarenta anos, com uma cova da, mesmo sem saber o que fazer
despejava o conteúdo dos sacos acentuada no queixo atarracado dali para frente.
plásticos dentro da privada. Na que flexionava os lábios finos. As Quando o sol me alcançou,
terceira descarga, me deparei costuras e os botões da camisa seu peso era tão insuportável,
com Gilliard atracado à porta eram forçados pela barriga esten- que tive de me render e deitar no
do banheiro, tentando decifrar dida, encoberta regiamente pelo chão. Fiquei assim por um tempo,
o que acontecia. Quando conse- terno de fazenda clara e a grava- imobilizada no plano das racha-
guiu, saltou sobre mim, gritando ta de listras bicolores. Tinha um duras e das coisas indesejadas.E
sua louca, você acaba de nos matar! olhar de sapo que se deitava so-
Tem ideia a quem pertence tudo bre olheiras carvoentas.
isso? Vargas vai acabar com a gente, O delegado se sentou, me in-
antes de acabarem com ele! dicando a cadeira vazia do ou-
Mas eu estava fora de mim, tro lado da escrivaninha. Ainda
que me esquivei e sai para pe- mudo, deslizou uma folha batida
gar mais pedras. Gilliard me se- a máquina e uma caneta na mi-
guiu, aos berros, por alguns mi- nha direção. Ele disse, de manei- Sérgio Tavares nasceu em 1978. É
nutos, depois desapareceu casa ra prosaica, essa é a sua confis- autor de Queda da própria altura,
adentro. Nos encontramos no- são. Você está testemunhando finalista do 2º Prêmio Brasília de
Literatura, e Cavala, vencedor do
vamente na porta do banheiro, e que o seu marido te estuprou, Prêmio Sesc de Literatura. Alguns
agora ele segurava uma faca de mas sou eu quem vai te estu- de seus contos foram traduzidos
açougueiro. prar. Você vai pegar a caneta e para o inglês, o italiano, o japonês e o
Iniciamos um jogo de gato assinar no fim da folha, na linha espanhol. Participa da edição seis da
Machado de Assis Magazine, lançada
e rato pela sala, onde eu me es- pontilhada, atestando que leu e no Salão do Livro de Paris. Mora em
quivava dos ataques pensando concorda com o que está escrito. Niterói (RJ)

52 | João Pessoa, agosto de 2015 Correio das Artes – A UNIÃO


6 ponto de vista crítico
Rinaldo de Fernandes
rinaldofernandes@uol.com.br

Anotações ,

sobre romances (13)

N
ão há um centro para Holden Caulfield, protagonista de O
apanhador no campo de centeio, J. D. Salinger. Todos (menos a
pequena Phoebe, sua irmã, ou ainda o irmão já falecido Al-
lie) são objeto do seu riso: diretores, professores e colegas de
escola; o pai, a mãe, o irmão D. B. (roteirista em Hollywood);
as várias figuras (taxistas, prostitutas, gigolôs, garçons) com
Foto: internet

as quais ele se depara. Os conteúdos pedagógicos e a arte


de massa americana (em especial, o cinema) são fortemen-
te ironizados pelo protagonista. Como ironizada é a Bíblia:
“Gosto de Jesus e tudo, mas não dou muita bola para a maio-
ria das outras coisas da Bíblia. Os Apóstolos, por exemplo.
Pra falar a verdade, os Apóstolos são uns chatos. Depois
que Jesus morreu e tudo eles trabalharam direitinho, mas,
enquanto Ele estava vivo, não serviam pra nada. Deixavam
Ele na mão o tempo todo. Gosto de todo mundo na Bíblia
mais que dos apóstolos”. Quando, em seu (transtornado, em
certos instantes) giro por Nova York, Holden se reencontra
com Sally Hayes, por quem se sente de algum modo atraído,
desabafa (e aqui uma síntese de seu pensamento acerca das
opções/gostos dos habitantes da cidade): “[...] eu odeio a es-
cola. Poxa, como detesto o troço [...]. E não é só isso. É tudo.
Detesto viver em Nova York e tudo. Táxis, ônibus da Avenida
Madison, com os motoristas gritando sempre para a gente
sair pela porta de trás, e ser apresentado a uns cretinos que
chamam os Lunts de anjos, e subir e descer em elevadores
quando a gente só quer sair, e os sujeitos ajustando as roupas
da gente nas lojas, e as pessoas sempre... // [...] Os carros, por
exemplo [...]. A maioria das pessoas são todas malucas por
carros. Ficam preocupadas com um arranhãozinho neles, e
estão sempre falando de quantos quilômetros fazem com um
litro de gasolina e, mal acabam de comprar um carro novo, já
estão pensando em trocar por outro mais novo ainda. Eu não
gosto nem de carros velhos. Quer dizer, nem me interesse
por eles. Eu preferia ter uma droga dum cavalo”.

Rinaldo de Fernandes
J. D. Salinger, autor é escritor, crítico de literatura e
de O apanhador no professor da Universidade Federal da
campo de centeio Paraíba. Mora em João Pessoa (PB)

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2015 | 53


conto

ilustração: domingos sávio


6

Travessias
Ronaldo Cagiano
Especial para o Correio das Artes

Os edifícios me ameaçam, as mãos frias do vento me sufocam. Além dos olhares


assassinos e da velocidade; pessoas enormes deslizam ruidosas pela cidade, conduzindo
dentro delas outras pessoas.
Posso vê-las quando arrisco meu olhar assombrado pelas janelas dos seus ventres.
Maura Lopes Cançado
“O sofredor do ver”

S
ob um céu profano, a mesma rando-se entre os automóveis
lição todos os dias, para em fazendo o pregão de bugigan-
cada um deles tornar-me irre- gas, frutas e balas. Arsenais de
conhecível: a cidade se conver- vozes e ruídos se sucedem com
te na selva monolítica e gelada: uma solenidade improvisada no
matéria e circunstância para os minúsculo auditório dos tímpa-
psicanalistas. Uma geografia nos. A fera enjaulada na solidão
sinistra nesse ambiente retó- oceânica de ninguéns. Encapsu-
rico de fumaça e decadência. lados em suas estações de traba-
Fuliginosa é a manhã que, em lho, repassando e-mails e aten-
vão, aguardam esses seres ho- dendo aos chamados sucessivos
miziados ouvindo som digital dos celulares, muitos deliram
em seus tronos sobre rodas, de na miséria recalcitrante de cada
onde veem menores esguei- dia, ruminando seus lutos diá- c

54 | João Pessoa, agosto de 2015 Correio das Artes – A UNIÃO


c rios na moldura de um cárcere inusitado é o casal entre beijos nas no lugar de almas. A vida
funcional. Ruas, avenidas, becos aguardando para ultrapassar esvai-se como água em minhas
e vielas não escapam à aquarela a faixa de pedestres, a metró- mãos. E julho é um bom mês
insólita: artérias de cinza e en- pole regurgita seus fantasmas, para nascer. Ouço de alguém
xofre, canais antagônicos onde labareda & carnificina em ros- que passa ao meu lado, abraça-
fluem rios de vivos mortos que tos pressurosos dos que me do ao filho, na faixa de pedes-
se entrechocam e não se olham. esbarram, mas não me tocam. tres: Leonora, minha bike, precisa
Orquestra de motores. A pres- Um homem limpa a boca na ca- de grandes reparos. Só dei uma
sa fabril de uma alucinada en- misa e tenho a sensação de ter volta com ela. Depois demos mais
grenagem impondo um ritmo chegado a um final de festa. O 2 a pé. Em que ciclovi(d)as teria
avassalador em todas as coisas. que meus olhos flagram é uma pedalado até a exaustão? Tudo
A lógica veloz, tumultuária e fraude, pois a alma é que rever- se desmancha nessa alvenaria
vulcânica de todas as neces- bera todos os horrores: a energia de ventos. Entre um prédio e
sidades impedindo detectar a da dor que dela emana poderia outro, molduras de horizontes,
mínima parcela de consciência abalar a Terra. E vejo aquela mu- um portal do sol que insiste em
nos movimentos e de realidade lher espiando o mundo de den- penetrar no oceano fossilizado
nos sentimentos. Os edifícios tro de sua janela, sobre a qual de cimento e ferro, de carun-
formigando gente na monoto- há um toldo verde: ele funciona chos na alma. O que quero res-
nia das tarefas miúdas e enfa- como uma pálpebra que nunca suscitar nisso tudo? Um faixa de
donhas. Ônibus, metrôs, trens, se fecha sobre os olhos de seu gaza urbana com sua artilharia
automóveis vomitando corpos coração. Ela sofrerá como nós? torpedeando ouvidos e emitin-
refratários a qualquer alterida- Somos feras intangíveis nes- do certidões de óbito. Caminhos
de. Essa permanente colisão de sa coreografia de degredos, na & descaminhos bifurcam-se –
anonimatos e gestos redundan- imodéstia do perigo e da morte. centopéia de mil pés. Que Dé-
tes, meus olhos em seu verde es- Nas igrejas, transformadas em dalo projetou essas entranhas?
panto, pulsações de auroras que mercados de uma fé alucinada Sou uma flor desidratada nesse
não vingam, turismo de urubus e bizarra e uma espiritualida- imenso e incorpóreo jardim de
sobre as lixeiras, fast foods cheios de chantagista, com padres su- flagelos: uma orquídea autista
de pessoas vazias, gente como per stars e pastores eletrônicos, na corda bamba. Caminho entre
feras se nutrindo do inservível, contrabandistas da salvação as obturações do asfalto e con-
escafandristas da solidão mer- impossível, que aleluiam suas templo as cicatrizes na epider-
gulhando diuturnamente na acrocabias pelas tevês e praças me dos edifícios. Olhos exilados
multidão abissal, bancários bo- públicas, uma retórica melodra- no além-tudo. A noite chegará
vinizados por tarefas medíocres mática e bestializante, muitas sem qualquer promessa, ape-
e repetitivas, a avareza do cân- vezes escamoteando suas vidas nas o trânsito e suas fadigas
cer e sua bizarra multiplicação dicotômicas (divididas entre a com sua serpente de faróis sob
de células devorando silencioso oração e a ereção, perdidos en- a lua. Nada vale a pena, mas a
as vísceras do homem que ali- tre a falação e a felação). Nesses alma é grande. Acrobatas no
menta os pombos na Praça da verdadeiros shoppings centers da fio tênue entre a vida e a morte.
Sé, a pirataria que não se fatiga salvação onde se impõe uma Viveramar é criminoso. Procu-
das blitzes, um Paraguai a céu teologia predatória e carnívora ro na saída a antítese de tudo
aberto na 25 de março, o tape- e traficam a felicidade a crédito, isso e me vejo só, nesse silêncio
te de logomarcas falsas cobrin- vejo a angústia dos que (à pro- agudo, nessa ausência herméti-
do a Barão de Itapetininga, um cura da falsa prosperidade) en- ca, sem a misericórdia de uma
cemitério de sons confusos, os tram desorientados e saem sem Ariadne. Como inventariar o
trens do metrô: serpente sem- saber para onde vão. As virilhas caos nesse difuso concerto para
pre igual sem sair dos trilhos engomadas por espermas clan- arranha-céus? I
impondo aos usuários o tédio destinos dos que vivem o res-
que passa veloz como uma pelí- caldo de pantagruélica melan-
cula sem fim de vidas tão apou- colia ensinam mais que todas as
cadas, indivíduos apequenados ideologias. No mundo político e
pelos delírio do beijo assassino econômico, entre o canibalismo
do mercado. Poluição de semá- de uns e o terrorismo de outros,
foros disciplinando o mar con- o neoliberalismo e seus fetiches
vulsivo e divergente de animais (a canalhice e seus fantoches)
metálicos e uma assembléia de vão construindo seus túmulos
pedintes sobre a pista latejante. num país sem memória, cemité-
No abril em que me espelho, o rio dos vivos. Não sobra nada da Ronaldo Cagiano é escritor e tradutor.
amor parece sair de moda, pois guerra diária. Próteses huma- Mora em São Paulo (SP)

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2015 | 55


6 diário

Dez dias
com Elena em Havana
Analice Pereira intelectuais e os professores de universida-
Especial para o Correio das Artes des leem; os jovens não leem; a juventude
não quer saber de leitura, reiterava Elena.
Sabia que, na visita à 24ª Feira In-
Sexto dia: ternacional do Livro de Havana, seria
possível, mesmo por um desenho mais
“Como si fuera la primavera” geral do que presenciasse, confirmar
ou não a afirmação de Elena. A cami-

P
or que a literatura era tão importante na vida dela? nho da Feira – que não se restringia à
A resposta estava pronta e sem muito segredo ou cidade de Havana, ou seja, acontecia
elucubração: havia aprendido, sobretudo com Antonio também e concomitantemente em al-
Candido, que a literatura tem uma função humanizadora gumas províncias – ouvia uma música
e, por isso, o direito a ela deveria ser tratado como um dos tão familiar, ainda ao longe... Confir-
Direitos Humanos. É tudo. mou, logo, que vinha do lugar da Fei-
Não era difícil compreender, na sua prática leitora, ra, o Pabellon Cuba, um edifício mo-
e também pedagógica, como se dava essa humaniza- derno, grande e muito bonito. Era uma
ção, sem, necessariamente, interpenetrar, nessa noção, música cubana e de sucesso na versão
algum juízo de valor. Mas isso seria um outro papo. e voz de Chico Buarque. A experiência
No caso das narrativas de ficção, essa humanização se de ouvir aquela música naquele am-
dava pela formalização estética e pela fabulação, o que biente trespassaria a barreira da mera
justificava, inclusive, o fato de estar na Ilha, justamente experiência; tomaria conta do seu pen-
via literatura. A leitura dos livros de Leonardo Padura samento e das suas impressões até o fi-
foi o que a impulsionou a desbravar aquele terreno até nal daquela viagem. Ou seja, faria um
então conhecido apenas pela ficção e pelo que apresen- sentido que até então não tinha feito.
tava a mídia. Porém, ir à Ilha não significava, somente, Seguia... seguia a fim de verificar in
certificar-se, naquele chão real, do que se apresentava loco se se lê ou não na Ilha. E, para sua
nas ficções que lera, mas, também, adentrar na possi- surpresa, ao longe avistou uma fila de
bilidade de contatar um modus vivendi diverso do seu, pessoas na entrada do Pabellon. A sur-
conforme se apresentava, inclusive, naquelas ficções. presa só aumentava quando entrou no
Antonio Candido estava certo. local, e, mais ainda, quando verificou
Pelo que lia e ouvia dizer, imaginava que em Hava- os preços dos livros. E não menos sur-
na, cidade de pessoas que demonstram tanto saber, to- presa ficou quando procurou os livros
dos liam. Engano!? Segundo Elena, não se lê muito em de Leonardo Padura (sim ele mesmo,
Cuba. − Livros de literatura, dizia Elena, não se lê; aqui o que a levou, pela literatura, àquela
as pessoas estudam, não há analfabetos, não há nenhuma viagem: um escritor cubano que resi-
criança fora da escola, há universidade para todos; a educa- de e escreve em Cuba, mas não publica
ção é levada muito a sério, mas a grande maioria não lê lite- em seu país. Mas isso, também, é ou-
ratura. − Como pode?, perguntava a estrangeira. − Só os tro papo) e soube, por um livreiro, que c

56 | João Pessoa, agosto de 2015 Correio das Artes – A UNIÃO


Foto: internet
tanto desonesta. Resolveu, então,
deixar de lado. Sairia dali certa de
que as dinâmicas de publicação e
os preços dos livros são, entre ou-
tros, aspectos de consolidação da
tese de Antonio Candido, quando
defende que a literatura, o direi-
to a ela, deveria ser tratado como
um dos Direitos Humanos. Mas
ter direito significa ter acesso,
seja adquirindo livros, seja pelas
bibliotecas públicas. Era confuso!
Resolveu, então, bastar-se na ale-
gria de ver aquela multidão numa
feira de livros, tomar uma cerveja
e ouvir aquela música.
E que música era essa? Ah,
logo na entrada do Pabellon
Cuba, havia um grupo musical
recepcionando os visitantes. A
Crianças participam de rodas de leitura música que tocava era “De qué
c não encontraria livros de Padura na Fortaleza San Carlos de La Cabaña, um callada manera”, de Pablo Mi-
dos locais onde foi realizada a 24ª Feira lanés, que, na versão de Chico
naquele local. − Talvez, no dia da
Internacional do Livro de Havana
participação do escritor em uma me- Buarque, recebe o título “Como
sa-redonda, disse o vendedor. Mas se fosse a primavera”. Não sabia
nesse dia, que não tardaria a che- qual o título era mais bonito. Não
gar, a estrangeira já teria se ido. sabia qual versão mais lhe agra-
Havia muitas pessoas na Fei- dava, se em espanhol, se em por-
ra, para ser um dia de semana aquelas crianças nos estandes de tuguês. Só sentia que aquele som
e o primeiro dia. Em sua maio- literatura infantil. Guardadas as naquele contexto a tomaria de as-
ria, cubanos, visitando e com- devidas proporções, parecia ha- salto. Inevitavelmente, lembrou
prando livros. Para o final de ver mais gente do que livros. de muitos amores, dos seus e dos
semana, a previsão era de que Sim. Por uma falha na comuni- das ficções que leu, nas quais en-
lotaria, ou seja, tradicionalmen- cação, mais por parte da estran- contrava sempre alguma identifi-
te, a Feira atraía muita gente. As geira do que de Elena, havia um cação (estaria aí, também, a cota
cenas que viu e as informações equívoco que, agora, vendo de de humanização da literatura?).
que obteve auxiliavam a estran- perto, mesmo com seus olhos um Os versos “¿Quién le dijo que yo
geira na confirmação ou não da tanto românticos, diga-se de pas- era risa siempre nunca llanto? /
proposição de Elena (?). sagem, a estrangeira começava a Como si fuera la primavera / ¡no
A Feira homenageava a lite- desfazer. Como? Ora, ainda não soy tanto!” marcavam aqueles
ratura indiana e havia muitos conhecia bem a realidade do país instantes, fugazes pela condição
títulos traduzidos para o espa- de Elena (a questão das moedas de une passante, como no poema
nhol. Os preços dos livros publi- que circulam concomitantemen- de Baudelaire, mas que se fariam
cados em Cuba eram baixos, para te, inclusive) e esta não conhecia perenes em sua memória. Como
cubanos, que compravam na sua a realidade do país da sua hóspede, não levar Antonio Candido muito a
moeda, ou seja, em pesos cuba- um país de analfabetos funcio- sério? Como não acreditar no “fingi-
nos. Era algo em torno equivalen- nais. Tampouco Elena era profes- mento” da literatura? Como acredi-
te a um dólar cada livro. Porém, sora. Talvez bastassem essas duas tar que aquele povo não lê? E
tendo como parâmetro o salário razões, que constituíam, naquele
médio do cubano em sua equiva- contexto, os parâmetros, para a
Analice Pereira é crítica de
lência com o dólar, os livros não estrangeira, naquela tentativa literatura, ensaísta, contista e
eram tão acessíveis assim. Difícil de avaliar a assertiva de Elena. professora de Língua Portuguesa e
de entender. Mas mesmo assim, Aquela comparação entre os dois Literatura Brasileira do Instituto
Federal de Educação, Ciência e
chamava a atenção da estrangei- países, dadas as dimensões e com-
Tecnologia da Paraíba (IFPB). Mora
ra aquele número de pessoas e plexidades de cada um, era um em João Pessoa (PB)

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2015 | 57


6 crônica

* tec tec
tec tec
tec*
Raíssa Melo
Especial para o Correio das Artes

T
odos os dias. Aquele mesmo tec tec na ponta dos dedos. Aquele mes-
mo olhar sonolento grudado na tela de 14”. Aquelas mesmas quatro
paredes, que à medida que se aproxima do meio dia, parecem cada vez
mais estreitas. Aquela mesma cadeira acolchoada que vai lentamente
assumindo o formato da bunda que repousa sobre ela. Aquela mesma
luz acesa. Aquele mesmo ar condicionado soprado no pé do ouvido e
balançando as flores artificiais com suas gotas de orvalho de plástico.
De plástico, como tudo naquele lugar. Sem plantas, sem animais, sem
barulho de água jorrando, sem frescor, sem umidade, sem humanida-
de. Tem nem janela pra saber se tá chovendo ou fazendo sol naquele
dia. Todos os dias. Aquela mesma atmosfera impenetrável pelas intem- c

58 | João Pessoa, agosto de 2015 Correio das Artes – A UNIÃO


c péries naturais. Aquela mesma
conversa sobre a última fofoca
urbana anunciada no noticiário
de ontem. Aquele mesmo café
com gosto de pia. Aquele mesmo
conforto funesto da rotina diá-
ria. Aquele mesmo cheiro cinza
que exala das salas recém-aber-
tas. Cinza, como tudo naquele
lugar. Paredes, pisos, bureaus,
portas, pessoas. Tem nem um
sorriso amarelo pra sei lá, dizer
que alguma coisa é colorida ou
fingir que vale a pena viver na-
quele dia. Todos os dias.
Exceto em um. Que por acaso
é hoje. O último dia do mês. O dia
em que há cores e animais, pre-
sos nas contas bancárias, e risos
frouxos nas caras abatidas. Até
o café parece mais empolgante
e as conversas menos amargas.
Pena que não bebo (aquele) café.
E nem costumo gastar saliva
com (aquelas) conversas. Solita-
riamente, termino meu trabalho,
aguardo a hora de sair, salpican-
do umas curtidas entre uma e
outra leitura interessante, até que
finalmente chego em casa.
Todos os dias. Aquele mesmo
tec tec na ponta dos polegares.
Aquele mesmo olhar sonolento
grudado na tela de 32”. Aquelas
mesmas quatro paredes, que à
medida que se aproxima da meia
noite, parecem cada vez mais
estreitas. Aquela mesma cama
há um mês desarrumada que
já assumiu o formato de quem
repousa sobre ela. Aquela mes-
ma luz apagada. Aquele mesmo
ventilador barulhento rodando Artificial, como tudo naquele
a cabeça e espalhando no ar a lugar. Comida, bebida, diversão,
poeira dos carros que correm relações, pessoas. Tem nem uma
no asfalto. Que correm, como planta verdinha pra sei lá, dizer
tudo naquele lugar. Sem pausa, que alguma coisa é natural ou
sem descanso, sem adrenali- fingir que vale a pena viver nos
na jorrando, sem sentido, sem outros dias. Todos os dias.
vontade, sem liberdade. Tem Exceto em um. Que por acaso é
nem janela pra pular do décimo hoje. O último dia do mês. O dia
quinto andar e silenciar aquela em que há cores e animais, presos
agonia. Todos os dias. Aquela nas contas bancárias, e risos frou-
mesma atmosfera impenetrá- xos nas bocas de cara. Compro o
vel pelas intempéries naturais. remédio pra me curar dessa vida
Aquele mesmo noticiário anun- bandida. Chamo os amigos pra
ciando a última fofoca urbana. discutir filosofia, com as mentes
Aquela mesma coca já choca na abertas e as barrigas vazias. Co-
Raíssa de Melo Vieira é estudante
geladeira vazia. Aquele mesmo letivamente, preenchemos os pul- de Licenciatura em Artes Visuais
conforto funesto da vida soli- mões e o quarto com o cheiro da da Universidade Federal da Paraíba
tária. Aquele mesmo cheirinho liberdade, enquanto cometemos (UFPB). Mantém um tumblr na net
(raissamelov.tumblr.com), onde
artificial exalando do microon- o grave crime de fugir das dos
procura expressar sua visão de
das anunciando que o cardápio outros e finalmente viver nossas mundo através da escrita e do
é lasanha congelada de novo. próprias realidades. I desenho. Mora em João Pessoa (PB)

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2015 | 59


6 novo almanaque armorial
Carlos Newton Júnior
cnewtonjr@gmail.com

Uma entrevista
A
o longo de quase três décadas de cansativa a um escritor. Faz diferença, ir sozinho ou
vida literária, tive a sorte de ser entrevistado acompanhado?
por grandes jornalistas, a exemplo de William – Para mim faz muita.
Costa, Astier Basílio e Linaldo Guedes, todos – Bem, digamos que o senhor vá sozinho.
de jornais da Paraíba. Mas tive, também, a – Então eu levaria o Manual do construtor de
infelicidade de ser interpelado por meia dú- jangadas.
zia daqueles profissionais mais rotineiros, – E quem é o autor?
que costumam fazer as mesmas perguntas – Não vê que estou brincando? Não existe
de sempre, “óbvias, estapafúrdias, inconve- este livro. Quer dizer, que eu saiba não existe,
nientes ou repetitivas”, como dizia Ariano mas bem que deveria existir.
Suassuna. Às vezes, neste último caso, a gen- – Bem, e se o senhor fosse acompanhado,
te perde um pouco a paciência, sobretudo se que livro levaria?
entre a meia dúzia não há nenhuma beldade – Também depende.
cor de jambo como aquela que um dia entre- – De quê?
vistou Fernando Sabino; e aí termina dando – Da companhia. Se eu fosse acompanhado
respostas também óbvias e estapafúrdias, ora por algum desses políticos que vivem apa-
irônicas, ora engenhosas, ora inconvenientes, recendo em nossos noticiários, por exemplo,
respostas que são, quase sempre, deturpadas, levaria outro manual.
amputadas ou simplesmente descartadas das – E qual seria?
entrevistas, para que estas possam ser publi- – A Arte de furtar.
cadas sem maiores problemas para o jornalis- – É brincadeira?
ta, o editor ou o jornal. – Não, este existe mesmo. É um livro anô-
Meus arquivos, porém, são mais implacá- nimo, do século 18. Só assim eu ficaria preve-
veis que os de João Condé. De maneira que nido, sabendo como me comportar diante do
hoje, embaraçado com a falta de assunto para sujeito. Se, por outro lado, eu fosse na compa-
escrever, resolvi ocupar o espaço da minha nhia da Scarlett Johansson...
crônica reunindo, numa entrevista só, reali- – Da Scarlett Johansson?
zada por um fictício repórter de suplemento – Sim, não estamos no campo da fanta-
literário, algumas dessas perguntas e respos- sia? Ou você acha mesmo que eu poderia ser
tas que guardei comigo, na minha memória mandado para uma ilha deserta, e logo na
ou na memória do meu computador. companhia da Scarlett Johansson?
– Está bem. Se o senhor fosse para uma ilha
*** deserta, com a Scarlett Johansson, que livro
levaria?
– Que livro gostaria de ter em mãos se fos- – O Kama Sutra.
se mandado para uma ilha deserta? – Bem, isso eu não posso publicar.
– Depende. – Então não publique, eu apenas respondi
– Depende de quê? à sua pergunta.
– Eu iria sozinho? – Está certo. Vamos então mudar a pergunta.
– Não sei, perguntei por que é de regra, – De acordo.
todo jornalista cultural faz essa pergunta – O senhor exerce a crítica literária, não? c

60 | João Pessoa, agosto de 2015 Correio das Artes – A UNIÃO


6 novo almanaque armorial
ilustração exclusiva de manuel dantas suassuna para a coluna novo almanaque armorial

c – Sim, exerço.
– Por quê?
– Por necessidade.
– Necessidade existencial?
– Não, financeira. Preciso sem-
pre de um extra no final do mês,
para fechar minhas contas.
– Como se sente ganhando
dinheiro para falar mal da obra
alheia?
– O dinheiro não é muito, e eu
só falo bem.
– Só fala bem? Como assim? O
senhor não é crítico?
– Eu escrevo prefácios de li-
vros. Você acha que algum editor
publicaria um prefácio que falas-
se mal de um livro que ele quer
vender?
– Mas então o senhor não está
sendo honesto. Isso é propaganda
enganosa!
– Não é não, pois só faço o pre-
fácio quando gosto do livro. Caso
contrário, não há dinheiro que
me faça escrever.
– E quem escreve, então?
– Alguém que tenha o gosto
diferente do meu.
– E quanto à poesia?
– Que é que tem?
– Também escreve por necessi-
dade financeira?
– Não, existencial. Poesia não
vende.
– Mas o que mais se encontra,
nas livrarias, é livro de poesia. Li-
vros muito bem feitos, com capa
dura e papel especial. E não me
refiro a poetas conhecidos, como – Então não publique, eu ape- de hotel, no Japão?
Bandeira ou Drummond. São au- nas respondi à sua pergunta. – Esse mesmo.
tores novos, dos quais nunca ouvi – Está certo. Vamos então mu- – A que horas vai ser?
falar. Como explica isso? dar a pergunta. – Às nove.
– São livros custeados pelos – De acordo. – Bem, então acho melhor ter-
próprios autores, que depois os – Que acha do cinema que se minar a entrevista. Já são sete e
colocam nas livrarias em regime faz atualmente em Pernambuco? cinco, e eu ainda tenho que pas-
de consignação. As livrarias não – Não sei, não acompanho sar no jornal. Se eu não for agora,
pagaram por eles, nem pagarão, muito o cinema daqui. Para ser não chego em casa a tempo!
pois não irão vender. E os livros sincero, vejo pouco cinema, daqui – De acordo.
mais bem feitos são, em regra, de ou de qualquer lugar do mundo. O repórter saiu e eu fui cor-
juízes ou desembargadores, que Para ser mais sincero ainda, os rendo ligar a televisão. O filme,
têm mais dinheiro para fazer li- únicos filmes que realmente me na verdade, começaria às sete e
vros assim. Às vezes, um ou ou- interessaram, nos últimos anos, meia. Menti para o jornalista, por
tro advogado compra um exem- foram os da Scarlett Johansson. puro ciúme. Para ver a Scarlett,
plar durante os lançamentos, Aliás, daqui a pouco vai passar quanto menos gente, melhor. I
em geral pomposos; não porque um, na televisão.
goste de poesia, mas para fazer – Vai passar qual? Carlos Newton Júnior é
poeta, ensaísta e professor
média com o autor. – Encontros e desencontros.
da Universidade Federal de
– Bem, isso eu não posso pu- – Aquele em que ela aparece Pernambuco.
blicar. de roupas íntimas, num quarto Mora em Recife (PE)

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, agosto de 2015 | 61


6 tramas visuais L í vi a
C
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s
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“coloração com PS6 e colagens”

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