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A pintura de São Brás

Basílio Rodrigues

Organização, introdução e notas de

António Bárbolo Alves


(Bolseiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia
e do Ministério da Educação)

FICHA TÉCNICA
Título: A pintura de São Brás
Autor: Basílio Rodrigues
© Centro de Estudos António Maria Mourinho e António Bárbolo Alves

ISBN: 978-972-9249-04-4
Edições do Centro de Estudos António Maria Mourinho
Biblioteca Municipal
Rue de l Cumbento, s/n
5210-021 MIRANDA DE L DOURO
centro.amm@gmail.com
http://ceamm.no.sapo.pt
http://tpmirandes.no.sapo.pt
Basílio Rodrigues

A pintura de São Brás


Comédia cómico-satírica

Assunto verdadeiro ocorrido com personagens de Vilar Seco


(Vimioso), Cércio de Miranda do Douro e outros.

Representado em tablado de 40 metros de comprido ao ar livre, em


Vilar Seco (Vimioso), a 10 de Fevereiro de 1928.
1. Versões existentes no CEAMM

Deste texto existem no CEAMM quatro cópias. Três encontram-se dactilografadas,


sendo duas meras reproduções da primeira. A terceira encontra-se já impressa a partir de
computador. Possivelmente terá sido também copiada das outras versões.
A edição digitalizada é uma das cópias dactilografadas, aquela em que, quer as didascálias
quer o nome das personagens se encontra a vermelho.
Em todas as versões se pode ler, na segunda página, um texto anónimo sobre Basílio
Rodrigues. A enunciação em terceira pessoa deixa supor que o autor é outro que não o
próprio Basílio Rodrigues. Contudo, não nos parece que isso seja assim tão evidente pois os
"erros" ortográficos em muito se assemelham aos da "comédia". Se não é ele o autor deverá
ser alguém não muito letrado e, pelos pormenores que nos oferece sobre Basílio Rodrigues,
alguém profundamente conhecedor da sua vida pessoal e familiar. Não fazendo parte do
"colóquio", optámos por colocá-lo numa página à parte que pode ser lida a partir da mesma
versão da edição digitalizada.

2. Origens

A história deste auto é, como se lê na primeira página, um “assunto verdadeiro”


ocorrido com personagens de Vilar Seco (Vimioso), Cércio de Miranda do Douro e outros. A
história consiste no relato desse episódio em que alguns mordomos de São Brás, da aldeia de
Cércio, se terem recusado a pagar a pintura desse santo que tinham encomendado a Basílio
Rodrigues. O auto, nascido e criado nas mãos de um autor quase analfabeto, como se pode
aferir pelo texto de carácter biográfico que o acompanha, sem pretensões literárias e destituído
de grandes artifícios dramático-narrativos, é um verdadeiro “auto popular”. Nele se consuma
plenamente a função lúdica, mas também satírica, pois se procura troçar de certos
comportamentos sociais, nomeadamente daqueles que não cumprem com a palavra dada.
Numa civilização de oralidade − e este texto marca uma fase-chave de transformação de
oralidade quase pura para oralidade mista1 − onde a palavra devia ser respeitada, os que não o
fazem só podem ser motivo de chacota por parte da restante comunidade. Tal como diz um
dos muitos ditados populares que encontramos neste auto, “um boi prende-se pela haste e um

1É Paul Zumthor que distingue civilizações de “oralidade pura”, sem escrita, de civilizações de “oralidade mista”,
em que a oralidade já domina a escrita, e “oralidade segunda”, em que há uma hegemonia da escrita sobre a
oralidade. Ver «Littératures de la voix», in Le Grand Atlas des Littératures, Paris, Encyclopaedia Universalis, 1990,
pp. 70-72.
homem pela palavra”.
Se os “mordomeiros” de São Brás acabam por encarnar esse “tipo social”, cabe à figura
de Fala-Só, o Bobo, assumir o papel de fazer rir o público, provocando esse riso através das
palavras, quer através das atitudes. Tal como há muitas outras situações cómicas − como
quando a figura do santo é transportada nuns alforges − capazes de provocar o riso, de cativar
a assistência e de a prender à história dramatizada no tablado.
Mas não ficam por aqui os temas de interesse deste texto. Para além dos mirandesismos,
são múltiplas as referências à Terra de Miranda, através da toponímia, da história, das alusões a
lugares e a manifestações sociais e culturais da região, que assim nos permitem percorrer mais
alguns dédalos desta viagem em busca das raízes identitárias mirandesas, da sua configuração e
do seu significado.

3. Representações

Como se pode ler na página de rosto da “edição digitalizada, este texto foi “representado
em tabelado de quarenta metros de cumprido ao ar livre em Vilar Seco, Vimioso a 10 de
Fevereiro de 1928”. Valdemar Gonçalves informa que ela foi também “recentemente
representada na Póvoa”2.
Como informação secundária, mas que nos dá conta do grande impacto que estas
representações tiveram nesta região, veja-se esta nota manuscrita, de António Maria Mourinho
que encontrámos em uma das cópias do seu artigo “Teatro Rural em Trás-os-Montes”3.

[Os de Cércio], no regresso para suas casas, uns aos outros diziam pelo caminho:
− Não podemos gabar a representação, porque foi contra nós, mas na verdade esteve bem feita!
Ficaram no entanto com ressentimento para Vilar Seco pela crítica jocosa que no entremez lhe foi feita,
embora baseada só nos moldes da verdade, pois a comédia tem apenas de fabuloso o papel do Diabo e do
Bobo, obedecendo assim ao estilo da região. Todo o resto é apenas a expressão da verdade sem
acréscimos. Esse ressentimento levava-os a buscarem ocasião de ajustarem contas com Vilar Seco,
embora se sentissem impotentes.
Em 19 de Maio desse ano, 1929, foi representado em Genísio os “Sete Infantes de Lara”, e finda a
representação, envolveram-se em desordem uns indivíduos de S. Pedro com outros de Caçarelhos,
intervindo irreflectidamente a favor de São Pedro alguns de Vilar Seco. Trocaram-se cacetadas, houve
pedradas, com alguns ferimentos de parte a parte. Poucos, os de Vilar Seco e S. Pedro fizeram muito; a
superioridade numérica dos de Caçarelhos varreu-os do campo. Terminado o conflito, que durou apenas
dois ou três minutos, enquanto já a malta de Cércio ia fora da povoação a caminho da sua aldeia,
alguém lhe fez saber que havia barulho entre Vilar Seco e Caçarelhos e então, julgando oportunidade
dos povos zurzir os de Vilar Seco, desordenadamente voltou atrás, tentando aliar-se a Caçarelhos. Mas
Caçarelhos e Cércio, povoações distantes, não se conheciam, assim que os de Caçarelhos, ao verem vir
2 Valdemar Gonçalves, Teatro Popular Mirandês, Lisboa, Instituto de Desenvolvimento Social, 2002, p. 47.
3 Separata a Revista Ocidente, Vol. LI, Lisboa, 1956
sobre eles aquele tumulto desordenado, supondo-se afrontados, bateram nos improvisados aliados.
Por sua vez os de Cércio bateram apenas covardemente num indefeso indivíduo de S. Pedro, Joaquim
Garcia, e em dois menores de Vilar Seco, Baptista bernardo e Félix Rodrigues a quem apanhando-lhes
os chapéus os golperam à navalha, mostrando-se assim valentões.
Tendo-se dado sempre bem, estas povoações, depois de ligeiras entendimentos, bem se continuaram
sempre dando, restando apenas aversão entre Cércio e Vilar Seco somente pela “Pintura de S. Brás”.

Noutra nota manuscrita, que se segue a esta, depois de referir que ainda existem mais
entremezes do Sr. Bazílio Rodrigues, que lhe não foi possível encontrar, escreve:

De Bazílio Rodrigues existem entre outros o entremez rimado "Vida de João Soldado", que merece
menção e que foi representado várias vezes na Póvoa, depois em São Martinho, em Caçarelhos, em
Angueira e noutras localidades.
A "Confissão de Vicente marujo" que se representou em Vilar Seco, Póvoa, S. Martinho, Angueira,
etc. e outros entremezes vários.
Figurantes

Naturais de Vilar Seco


O pintor, Basílio Rodrigues
Maria dos Reis, mulher do pintor.

Naturais de Cércio
Mateus dos Anjos
Maria Valentina, mãe de Mateus dos Anjos
Mateus Gonçalo
João de Alfredo
Lázaro Freixo
Firmino Lobo
António Freixo
Manuel José Sapateiro
Glória Ribeira
Manuel Calejo

Espanhóis residentes em Cércio


António Branco, taberneiro
Mathea, taberneira, mulher de António Branco

De Miranda do Douro
Manuel Furriel, Administrador de Miranda

Fantasiados
Fala Só, Bobo ou Gracioso
Formados a duas filas entram figurantes ao tablado,
fazem o giro habitual, cortejam e recolhem cada um Trabalhava em Cércio há dois anos
no seu lugar. Onde tem trabalhado tanto
E disse um dia a uns fulanos
Aparece Fala Só a declamar o prólogo e diz Que eram mordomos de um santo.

FALA SÓ Deveis pintar o São Brás


Está com grande necessidade
Olá! Tanta gente à minha beira! Tem a cabeça como um butelo1
Correu tudo com cobiça! Falando bem a verdade.
Por ser Domingo Gordo
Quereis tirar-me a chouriça? Assim se juntou o pessoal
Todo unido em boa graça
Tira uma grande chouriça do bolso mostra-a ao Trataram de pintar o santo
público e diz E fazer-lhe uma vidraça.

Anda bem arrecadada!... Por quinhentos e cinquenta mil reis


Se ma vierdes tirar eu sinto Foi contratado o serviço todo
Para não ficar talvez sem ela O pintor pegou no santo
Vou mas é prendê-la ao cinto. Levou-o para casa logo.

Prende-a e continua Meteu então o santo em obra


Ficou lindo! Mesmo pimpão
Agora já não há perigo Aprontou santo e vidraça
Está o petisco arrecadado Para a Páscoa de Ressurreição.
E eu estou em condições
Para dar o meu recado. Dia de Sexta-feira santa
O pintor uma carta escrevia
Se vós pois quereis ouvir Mandou-a por Glória Ribeira
Com apetite e satisfação O santo marchava outro dia.
Eu vou já principiar
Prestai-me a vossa atenção. Cumpriu a sua palavra
Por isso o santo, a vidraça e o resto
Como a conversa é comprida Dia de Sábado aleluia
Que isto leva um bocado Entrou na Igreja de Cércio.
Com licença meus senhores
Deixem-me primeiro beber um trago. Depois de colocada a obra
Aguardaram o dia inteiro
Bebe e continua O pintor e mais a mulher
Para receber o dinheiro.
Agora já molhei a boca
Refresquei o paladar Não apareceram mordomos
Vou dar-vos um prévio anúncio
1 Butelo é um enchido, obtido a partir de carne,
Do que vamos representar.
gordura, ossos e cartilagens provenientes de partes da
costela e coluna vertebral de porco, cheio no estômago
Neste povo de Vilar Seco ou na tripa do intestino grosso do porco. Alguns
Temos nós um tal pintor dicionários registam a palavra como um regionalismo
É o autor desta obra transmontano. Em mirandês registam-se as formas
De que eu sou recitador. butielho e também bulho, com o mesmo significado.
Nem devotos nem beatões Mas onde é que andará
Andariam a cumprir a penitência Que será dele? Meu Deus.
Ou a rezar as orações.
Voltaram os dois para Cércio
Como era fim de Quaresma Com o coração mui aflito
Só isso deveria ser E lá encontraram o tal amigo
Mas quem pagou as consequências Agarrado a jogar o fito.
Foi o pintor e mais a mulher.
Chega-se a ele Manuel Calejo
Nem dinheiro nem mordomos Chamando-o à parte primeiro
Ali não apareceu nada Mas o figurão descarado
E o pintor e a mulher Recusa-se a dar o dinheiro.
Ficaram lá aquela noitada.
Mas Manuel Calejo é homem
A mulher veio embora Que se sabe apresentar
Dia de Páscoa muito cedo Deu-lhe ali quatro palavras
Mas o pintor ficou lá E fez-lhe a casaca virar.
A cumprir o seu degredo.
Por fim promete dá-lo
Os mordomos haver-se-iam perdido Fica o caso combinado
Ou a terra os tinha tragado Para o dia três de Maio
Ali não apareceu ninguém Ter o dinheiro arranjado.
Desde que chegou o santo pintado.
O Mateus mostra juízo
Então o pintor muito zangado E promete a sua palavra
Por lhe pregarem aquele mono Dizendo que antes desse dia
Pediu ao Manuel Calejo Poria em venda uma cabra.
Para lhe indicar o mordomo.
O pintor saiu embora
Bateram à porta de Mateus dos Anjos Com boas disposições
Para ver se largava a massa Mas pouco lhe roubariam
Apareceu a bisca de mãe Se lhe aparecessem os ladrões.
E atendeu-os com pouca graça.
O Mateus ficou descontente
O Mateus não aparece Apreensivo e arreliado
Nem alguém conta que o vira Porém à noite sobre um canto
Trataram então de buscá-lo No escuro apareceu-lhe o diabo.
Na quinta de Vale de Mira.
Diz-lhe que nunca venda a cabra
Apareceu Alípio Pimpão Que nunca pague ao pintor
Homem de contas mui fieis Olhai o anjo das trevas
Também tinha restos do santo Quanto é enganador.
Ao tudo cinquenta mil reis.
O Mateus reconfortado
Apresentou logo o dinheiro Com a léria do tal fadista
Moço por Deus abençoado Dá a palavra ao diabo
Deus lhe dê muita saúde De não pagar ao artista.
E o faça bem-afortunado.
Meus senhores, peço desculpa
Em Vale de Mira não acharam Agradeço vossa atenção
O tal mordomeiro Mateus E a segunda parte da obra
Darei logo satisfação. Isto sem mostra de inveja
Ponde-o lá onde se veja.
Vou guardar a chouriça
Que estou a desconfiar Quem vos fala quer-vos tanto
Tanta gente a olhar para ela Mandai-me lá pintar o santo
Bem certo ma podem palmar. Tenho gosto que isto se faça
Fazer-lhe também uma vidraça.
Corteja e recolhe-se.
Aparece o Pintor no tasco, junto dele Mateus dos E de Cércio da nobre cidade
Anjos, Lázaro Freixo, Firmino Lobo e António Ficaria bem na verdade
Freixo e diz o Pintor: Mais luzente que Berlim
Convém-vos a vós e a mim.
PINTOR
Ora Graças a Deus Esse santo tão festejado
Encontrei-vos amigos meus No dia três de Fevereiro
Uma vez aqui reunidos Dará eco ao mundo inteiro
No gozo dos nossos sentidos. E dos moços desta terra
Dirão todos lá por fora
Pois ainda é pouca a vinhaça Isto é que é gente de guerra!
Não leveis isto em chalaça
Mas atendei caros amigos. Olhai!
Isto é desenganar
Tendes na Igreja o S. Brás Nada há que sobrepor
O santo da Mocidade Porque vos ficareis muito bem
Mas falando quanto é verdade E eu ainda ficarei muito melhor.
Não está em condições.
Toda a gente de bom-tom
Tem muito fracas feições Certo diz que sim que gosta
E uma cabeça! Valha-me Deus E por isso eu então
Sem nisso ofender os Céus Espero a vossa resposta.
Nem ao respeito ao santo faltar.
Diz António Freixo:
Uma cabeça de alguidar
Que está mesmo a meter medo Dinheiro ainda deve haver
Ter-vo-lo-ia dito mais cedo Mas está por várias mãos.
Mas só agora calhou a jeito.
FIRMINO LOBO
Olhai lá? Mas não custa nada a juntar
A esse respeito estamos agora aqui juntos Porque está em rapazes sãos
E quem sabe? Quando não dizei-me cá
Se amanhã seremos defuntos Todo o que tem sido mordomo
Podíeis tratar do conserto. Ou que está sendo mordomeiro
Ainda nenhum passou
Eu... não puxo para mim é certo Pela alcunha de caloteiro.
Mas sempre tive propensão
Que viesse à minha mão MATEUS DOS ANJOS
O dinheiro dos santinhos. Que alguém como alguma coisa
Não vos deve parecer mal
Conhecem a minha opinião Ninguém é galego2 alugado
E com franqueza...e com razão
2 A fama dos galegos, que ajudaram a povoar esta
Já que vós tendes dinheiro
região desde a chamada Reconquista, não deveria ser
Cá no nosso Portugal.
Que lo traga mjo e pronto
Quando não olhai o ditado En la Páscoa de Ressureicion4.
Que diziam nossos avós
Em vez de o comerem os padres PINTOR
Melhor é roermo-lo nós3. Bebei a pinga e vamos lá
Não esqueçais pois o assunto
Mas isto é de brincadeira Que eu Domingo volto cá
Porque em vós bem o sabeis Quero ver o pessoal junto.
O que está na minha mão
Não quero ficar com cinco reis. ANTÓNIO FREIXO
Pois então é para Domingo
Se resolveis pintar o santo Aí pelo meio-dia
Eu nada dele cobiço Juntar-nos-emos os rapazes
O dinheiro que me sobejou Na igreja ou na sacristia.
Dou-o para esse serviço.
Adeus que haja saúde
LÁZARO FREIXO Que a mim muito me apraz
Então juntar-nos-emos todos Viva a nobre rapaziada
E reunidos é que se trata E a pintura de S. Bráz.
Quer-se que a obra fique boa
E sobretudo... que seja barata. Apertam-se a mão e saem, aparece e Fala Só:

Não ouviram a conversa


PINTOR Do nosso pintor sagaz
Pois então é melhor Tantas voltinhas lhe deu
Eu no Domingo venho cá Que vai pintar o S. Brás.
E se há-de ser mais tarde
É melhor que seja já. A ninguém deve parecer mal
E eu dou-lhe os parabéns
Condoei-vos do S. Brás Pois todos andamos no mundo
Que mesmo no céu coitado Para ganhar os seis vinténs.
No meio dos outros santos
Deve andar envergonhado. Chega o Pintor. Aparece no tasco e encontra-se com
António Freixo e diz o Pintor:
TABERNEIRO
Pus se lo habeis de dar a outro Bons dias senhor Freixo
Senõr Basílio já está aqui Como vai do outro dia.
Trabaja como nunca vi
Entonces que estais aguardar. ANTÓNIO FREIXO
Muito bem e vossa senhoria.
Tratai yá de lo ajustar
4 Através desta linguagem, assim como em posteriores
E no resgateis lo dinero
intervenções do Taberneiro, podemos apreciar quanto
Estamos por fim de febrero Basílio Rodrigues dominava a língua castelhana. Sem
E sin mas outra discursion. ser um conhecimento profundo, nomeadamente no
que se refere à ortografia, é visível que falaria com um
muito boa. Atestam-no, por exemplo, alguns ditados certo à-vontade. A este saber não são alheias nem as
populares mirandeses como estes: Cumo sou galhego nien seculares ligações da Terra de Miranda com o país
pago nien nego; Dá-me dinheiro i cháma-me galhego; Nien te vizinho, nem, talvez, a história pessoal do autor com o
fies an manqueira de fierro, nien an fé de galhego. espanhol Benito Panero. Em todas as intervenções
3 De igual modo, como se constatar por este rifão,
cuja língua seja o castelhano, manteremos também a
também a fama dos padres não era a melhor. ortografia original.
PINTOR PINTOR
Eu tenho andado mal Vamos se fazem favor
Para nada me sinto capaz Uma vez que estou aqui
E se não fosse o S. Brás Aproveitarei a ocasião
Digo-lhe isto muito formal Logo que vós o quereis pronto
Não viria hoje cá Na Páscoa da Ressurreição.
Nem por todo o Portugal.
FIRMINO LOBO
ANTÓNIO FREIXO Então vamos caminhando
Pois não é isso nada bom. S. Brás queira que assim seja
Os demais já p’rá ai vêm
PINTOR Juntamo-nos todos na Igreja.
Também eu digo que não
Mas vamos ao resto então Entram na Igreja fazem o Sinal da Cruz e diz cá
Onde está o pessoal? fora o Fala Só:

ANTÓNIO FREIXO Ó que grandes devotos


Estarão aí por esse vale São os “quatro mocetões”
Onde lhe chamamos as Eiras Vão passar acima do céu
Andam jogando ferro e fito Com tão largas devoções.
E outros dizendo asneiras.
Levantam-se chegam junto do Santo e diz o Pintor:
Para o taberneiro diz o Pintor:
Louvado sejais São Brás
Ó senhor António Branco Mal sabes quanto eu te quero
Bote uma pinga para cá. Para que me livres a garganta
Dos ossos de algum butelo.
Para o Freixo:
Vejam lá meus amigos
Para que não haja demora Se é como eu lhes havia dito
Bebemo-la e vamos já. Está mesmo numa miséria
O glorioso santo bendito.
Bebem e saem, encontram-se com Lázaro Freixo,
Firmino Lobo e outros mais. Caminham todos para É preciso muito trabalho
a Igreja cumprimentando-se deste modo: Para o pôr em condições
De poder fazer milagres
PINTOR De ouvir vossas orações.
Bons dias senhores Lobo e Freixo
Como estão? Passaram bem? Tem uma grande cabeça
Não está em proporção
FIRMINO LOBO Vede pois se tenho razão
Perfeitamente e o senhor também? E vós mesmos me haveis de dar.

PINTOR Tem muito que desbastar


Ando um pouco achacado Pois a mitra e a cabeça
Mas vou indo obrigado. Nem que a vós não pareça
Dá lenha para mais de um mês.
LÁZARO FREIXO
Então vamos ao S. Brás E aproveitando os cavacos miúdos
Que lhe parece senhor Pintor. Chegaria até para três
Precisa nova bengala
Um báculo bem lavrado LÁZARO FREIXO
Ainda estamos muito longe
Na volta bem ornamentado E nós não podemos dar mais
Como ungido do senhor. Mas se vós comigo concordais
A pintura deve ser a primor E por isso não vos zangais
Nas cores que o hábito pede. Damos-lhe quinhentos mil reis
Tudo pronto no altar
Por isso, meus amigos, vede Em condições de o venerar.
Quanto trabalho dá
Só o santo sem a vidraça FIRMINO LOBO
E se vós quereis que ela se faça Falta cá Mateus dos Anjos
Tem de ser a correspondência Que também tem algum dinheiro.
Fica em frente da credência
Onde a luz dá muito bem LÁZARO FREIXO
Tem de ser bonita também Anda com outros arranjos
Caixilhos de boa madeira Foi com as vacas para o lameiro
Que não seja obra de feira. Até à noite não vem
Está lá a namorada também
Vidros de boa qualidade Mas por esse não há novidade
E caros que estão na verdade Porque já falou a verdade
Uma pintura enriquecida E disse que dava o dinheiro
Com dourados a capricho E ele não é caloteiro
Uma obra de criar bicho E ainda de mais a mais
E fazer morder de inveja Eu e ele somos iguais
A todo e qualquer que a veja. Mordomos ambos de um ano.
Confio no tal fulano
Nas condições que atrás disse Vamos o ajuste tratar
E que todos mui bem sabeis Que o dinheiro que ele tem
Junto a vidraça e mais o santo De certo não há-de faltar.
Tudo por setecentos mil reis.
PINTOR
Aproxima-se mais alguns interessados e diz Firmino Pois olhai quinhentos mil reis
Lopes: Bem vedes que é pouco dinheiro
Se quereis um trabalho porreiro
Não devemos isso lá chegar Que se possa apresentar
Por tudo isto poderíamos dar Dareis seiscentos mil reis
Ainda que isso é bem puxado Eu mais não posso baixar.
Olhai vós outros que dizeis?
Por quatrocentos e cinquenta mil reis. ANTÓNIO FREIXO
Pois eu vou fazer o terço
PINTOR Atenção rapazes de Cércio
Não senhor! Isso é pouco... Não me leveis isto a mal
Mas olhai! Olhai lá?
Não quero que digais, sabei O que eu digo vale?
Que eu tenho palavra de rei O senhor pintor há-de entrar
São seiscentos e cinquenta Pelo terço que eu vou fazer.
Sabeis que tudo se sustenta
Cada qual daquilo que faz PINTOR
E portanto meus amigos Entro sim, se me convier.
Não posso vir mais atrás.
ANTÓNIO FREIXO Separa-se deles levando o santo, toca a música, Fala
Convém sim senhor, eu sei-o Só dança pelo tabuado no final diz Fala Só:
Vou partir a conta ao meio
Toda a gente muito atenta. São Brás e mais o Pintor
São quinhentos e cinquenta São amantes da maroteira
Falei ou não com razão Lá foram dar um passeio
Senhor pintor? À volta da Peinha Mingueira
Passaram pela Formiga
Dê cá a sua mão Pela Quinta de Cordeiro5
Que a obra fique boa E pelo caminho inteiro
É tudo quanto eu reparo Nunca lhe doeu a barriga.
Serviço pronto, dinheiro à frente
Os rapazes solteiros são gente Isto é que é uma cantiga
Não é o andor de Santo Amaro. São Brás como um anjo do céu
Lida-se bem com o pintor
PINTOR Também assim faria eu
Não desfaço da sua palavra Tirou-lhe de madeira quatro arrobas
Por ajudar-lhe a sua devoção Da cara, da mitra e da testa
Mas vamos lá ver então E vestiu-lhe roupa nova
Já que a sua palavra vai Que pimpão para o dia de festa.
Quem é que me dá o sinal.
Abre o Pintor a casa onde se vê pronto o S. Brás.
FIRMINO LOBO Aparece Glória Ribeira e diz para o Pintor e mais a
Darei eu cem mil reis mulher:
Já não fico tão carregado
Depois de largar os papeis GLÓRIA RIBEIRA
Ficarei mais descansado. Bons dias senhor pintor
E senhora Maria dos Reis.
Dá-lhe uma nota de cem escudos, depois de receber
diz-lhe o Pintor: GLÓRIA DOS REIS
Bons dias senhora Glória
Pois bem, venha cá o santo Por cá hoje que fazeis.
Que o levo já comigo
Oh! Glorioso santo amigo GLÓRIA RIBEIRA
São Brás do meu coração Viemos passear um bocado
Lá para o dia de Páscoa Dar por cá quatro sentenças
Vais ficar um pimpão. Como é dia de endoenças6
Também fizemos o confessado
Embrulha o santo num pano, mete-o num saco e Estávamos eu e a minha irmã
leva-o debaixo do braço. Saem todos da Igreja e diz o Com a senhora Bovineira
Pintor: E eu disse-lhe desta maneira
Logo cedo de manhã
Fiquem certos meus senhores Aguardai por mim um pouco
Que aí pelo Domingo de Ramos Não me deixeis para trás
Eu e S. Brás aportamos Que eu não quero ir embora
Portanto digo-vos adeus Sem ir ver o São Brás.
Respeitáveis amigos meus
Ficai na paz do senhor
5 Todas estas designações toponímicas se mantêm
A caminho de Vilar Seco
actuais.
Lá vai o santo e o pintor. 6 Chama-se endoenças à celebração eclesiástica da Paixão

de Cristo, na Semana Santa (<latim INDULGENTIAS).


PINTOR O dinheiro certo está.
Sim senhor, fico-lhe muito obrigado
O santo já está pintado GLÓRIA RIBEIRA
Pronto a pôr no altar Lá por isso não desconfiem
É aquele que além vê Que o dinheiro roda por lá
Chegue-se a ele pode entrar. O recado eu lho darei
Um recado assim à farta
MARIA DOS REIS Embora eu não me esqueça
Entre senhora Glória Deixe-me ver para cá a carta.
Há-de ver que lindo santo
Levou voltas à memória Dando-lha o Pintor:
Mas ficou que é um encanto.
Aí tem senhora Glória
GLÓRIA RIBEIRA Oferecemos-lhe de comer.
Sim senhor, está bonito
Lindo que é um primor GLÓRIA RIBEIRA
Tem ainda mais enfeites Obrigado!
Que um pauliteiro dançador7. Confessei-me logo cedo
E não quero o jejum perder.
PINTOR
Ó senhora Glória Ribeiro MARIA DOS REIS
Se nos fizesse um favor. Pois então boa viagem
Até amanhã senhora Glória.
GLÓRIA RIBEIRA
Faço sim senhor GLÓRIA RIBEIRA
Se não for muito pesado. Adeus senhora Maria
Levo o recado na memória.
PINTOR
Só era levar um recado Separam-se e diz Fala Só:
Por escrito para a sua terra
Para os mordomos de São Brás O santo lá vai para a terra
Animada tropa de guerra O serviço pronto está
Diga-lhe desta maneira Mas para fazer as contas?
Está pronta a obra toda Ai Jesus! Como será?
São Brás e mais a vidraça Coitado do nosso pintor
A banqueta e Nossa Senhora Tão pobre como São Francisco
Amanhã lá vai o trabalho Passou a Quaresma toda
E quero ver ali a gente Como diz, a trabalhar para o bispo.
Eu confio bastante neles
É um pessoal excelente. Olé!
Dinheiro? Isso de grilo!
MARIA DOS REIS Ai meu pobre coitado...
Sabe o quê senhora Glória Melhor jejuaria na Quaresma
O recado mais verdadeiro Se passa ao menos deitado.
Embora eles não apareçam
Que tenham pronto o dinheiro. Toca a música.
Aparece o pintor e a mulher e diz Maria dos Reis:
PINTOR
Tem lá juízo mulher São horas de irmos embora
Que temos muito que andar
7 Os pauliteiros são geralmente designados apenas A besta está aparelhada
como “dançadores”.
E o tempo está a passar. Falta uma coisa
Sabes o que é?
PINTOR É o menino
Há já muito que eu estou pronto Se me tens lembrado em casa
E os santos há muito tempo Teria trazido o Hermínio.
Aguardando só que viesses
Tu com esse pensamento. Chegam ao tasco de Cércio, apeia-se Maria dos Reis
descarregando o saco e diz o pintor:
MARIA DOS REIS
Vamos botar com os alforges Ó senhor António Branco
Tem conta com o São Brás Abra a porta se faz favor.
Não passe algum desarranjo
Que tenha de voltar atrás. Aparecendo a taberneira:

Carregam dois alforges monta a mulher a cavalo e diz Señor Basílio que há lhegado
o pintor: Yá benido mui templano
Como por allá todos bien?
Não te ponhas a mexer
Aguarda não vás embora PINTOR
Chega-te ao cabo da albarda Todos bem e por cá?
Para levar na frente a Senhora. O resto da família.

MARIA DOS REIS TABERNEIRA


Não me arranjo com a tenda Todos mui bien gracias
Que tudo me calha mal La senhora Maria tambien está buena.
Bota cá então a Senhora
Mas leva de rédea o animal. MARIA DOS REIS
Mui bem e vocemecê?
O pintor carrega um saco na frente pega na vidraça
ao ombro, o animal a rédea caminhando diz o pintor: TABERNEIRA
Mui bien gracias
Ó Maria! Yá traen el São Brás?
Parecemos uns ciganos
É um quadro bem bonito PINTOR
Quem nos vir com esta trouxa O São Brás e os demais
Pensa que vamos para o Egipto8. Que isto não é de brincadeira
Ofício de taberneira
MARIA DOS REIS É melhor do que a pintura
Eu a cavalo na égua Ai! Quem me dera ser cura
Tu à frente aí ao pé Que é ofício mais descansado.
Eu pareço Nossa Senhora
Tu pareces São José TABERNEIRA
Mas olha! Esso lo ei yo pensado
Mas nó passo de mirar-lo
8 A “fuga para o Egipto”, narrada apenas no Bibiendo com mucho trabajo
Evangelho de Mateus, é uma das histórias bíblicas
mais conhecidas, pintadas e apreciadas pelo povo. Na
António ayer ha dicho carajo
igreja de Nossa Senhora do Naso pode ser visto um Que bida esta tan mala
quadro representando esta cena onde, para além de Aquellos que andam de bengala
Maria, José e o Menino, nos aparece também a Bien limpios e regalados
palmeira que se curva, em sinal de reverência, um Com los bicios bien olgados
pormenor que não é relatado por S. Mateus mas que
provém dos chamados Evangelhos Apócrifos.
Nó se recordam de los de más
Mesmo aqui es um descarro
No pagam ni um cigarro PINTOR
Que son mismo unos caloteros Pois olha
Estos mochachos solteros Andam no trabalho
E los padres lo mismo dá Até à noite há que aguardar
Y señor Basilio hoy tampoco E depois quando eles venham
No llevará dinero de cá. Trataremos de nos chegar.

PINTOR MARIA DOS REIS


Não me dê esses anúncios Eu queria ir para casa
Que eu preciso bem de massa Que ficou a família só.
Por isso esse consolo
Não me o dê nem por chalaça. PINTOR
Bem me lembro eu dos pequenos
TABERNEIRA Tenho deles bastante dó
Pues esso lo digo yo Mas que lhe havemos de fazer?
E cierto la ba passar Anda que vamos à noite
Porque el dinero de São Brás Depois de receber o dinheiro
Ainda está por coroñar. Eles à noite devem dá-lo
Julgo o caso mais verdadeiro.
PINTOR
Não nos meta tanto medo Vão para o tasco onde encontram o taberneiro e diz-
Não nos fale desse modo lhe o Pintor:
Vamos levar os santos à igreja
Adeus patroa, até logo. Boa tarde senhor António!

Pegam no santo e vidraça e levam à Igreja colocando o TABERNEIRO


trabalho no seu lugar, saem e diz o pintor para a sua Adios senhor Basilio
mulher: E mas la senhora Maria
Entonces no quierem comer?
PINTOR E ba llamar-los todavia.
O serviço está pronto
Mas a massa quando vem? MARIA DOS REIS
Mal rais parta os mordomos Pois então aqui nos tem
Bem pouca vergonha têm Findou a nossa manobra
Não aparece aqui ninguém Falta-nos receber o dinheiro
E os mordomos são tantos Porque já concluímos a obra.
Fazem pouco todos dos santos
Andam todos a trabalhar ANTÓNIO BRANCO
E outros fugindo da gente... El dinero?...
Isto não vai de repente. Era buena
Esso tambien queria yó
Sabes o que me está a lembrar Pero lo dinero de San Brás
A barriga já dá horas Inda nó se fabricó
Vamos saber do jantar. Lo digo yó es verdád
Esso lo puede ostéd crer
MARIA DOS REIS Quando nó, vamos a ver
Eu também tenho apetite Al cabo osted lo dirá
Mas ainda queria primeiro Saben que más?
Ficarmos já prontos disto Bamos a comer
Recebermos antes o dinheiro. E a despues se verá
Como la quenta ba a ser. Tu vês por cá algum
Todos nos fogem à légua
Entram para dentro. Recolhem-se e diz Fala Só: Como os lobos dos archotes
Já falei ao António Freixo
Olá gente da festa? Disse-me que ele não tem nada
Que vos parece agora desta? Cinquenta mil reis que tinha
Coitado do nosso pintor Que os entregou ao camarada
Está agora pior Tu de noite não vais embora
O São Brás já está pintado E eu tenho de cá ficar
Mas o dinheiro ninguém o dá Para ver se os posso juntar
Nem as duas nem as três Amanhã ao ir à missa
Sabeis o que era melhor Não perderei a cobiça
Despintá-lo outra vez E o dinheiro hão-de largá-lo
Olhai!... Tu logo cedo pões-te a cavalo
Se em todas as obras Vais para casa e eu fico
For assim afortunado Não encontro outro bico
Pouco tempo vai durar O que nos resta é ficar
E há-de morrer bem delgado. E como isto já é tarde
Sabes o quê?
Toca a música. À porta da taberna aparece o pintor Vamo-nos deitar
e a mulher e diz o Pintor: É o melhor caminho Maria
Descansa dessas aflições
Estamos mal com esta vida Deixa-te de imaginações
O dinheiro ninguém o dá Que amanhã é outro dia.
Um desculpa-se com outro
E debalde aguardamos por cá. MARIA DOS REIS
Eu não durmo nem descanso
Hoje já não vamos embora Tudo em mim são lembranças
Por força temos de cá dormir Pensando nas duas crianças
Só amanhã por oito horas Que deixámos lá em casa
É que poderemos de cá sair. Tenho o peito numa brasa
Por causa desses desalmados
MARIA DOS REIS Que deveriam ser castigados
Valha-me Deus que vida Se fosse de vingança o céu
Por causa destes trapaceiros Porque eles têm tanta religião
Não digo que sejam caloteiros Como dinheiro tenho eu
Mas pouco lhe pode faltar Estou ardendo em chamas
Se não tratam de nos pagar Estou capaz de me matar
Eu mostro-lhe a cara das festas. Dormir sei que não durmo
Mas enfim... vamo-nos deitar.
PINTOR
Ai sim! Recolhem-se e diz Fala Só:
A quem?
Ora uma destas. São Brás
Aonde estás?
MARIA DOS REIS Olha que passas por cá
A quem? O cofre do teu dinheiro
A esses escariotas? Por onde é que lhe andará
Quem o agarrou
PINTOR Não mais o largou
Pois sim! E quem lhe custou a ganhar
Não é capaz de lhe cobrar PINTOR
O nosso pintor Apenas dois ovos estrelados
É o que está pior E um bife de carneiro
Pôs-te pimpão Come breve e põe-te a andar
Mas morde-lhe o cão. Que a besta está no palheiro
Eu vou tratar da vida
E o teu mordomeiro, A ver se recebo o dinheiro.
Não larga dinheiro
Lá do céu soberano Ela recolhe-se e o pintor segue pelo tabuado fora
Ó santo sobre humano encontra-se com Manuel Calejo e diz o pintor:
Olha cá para nós
Ouve este martírio atroz Meu caro amigo Calejo
Condói-te do nosso pintor Se soubesses como me vejo
Que também é filho de Eva Toca-me por cá cada sopa
Neto de Nosso Senhor Nem no nosso tempo de tropa
Lembra-te que te pintou Vejo-me cá em tais trabalhos
E tão lindo te deixou Ó Calejo estes cércios9
Olha! São Brás bendito São uns bandalhos.
Se soubesses como anda aflito
Por não receber os dinheiros MANUEL CALEJO
Converte os teus mordomeiros Então Basílio que te passa?
Que não sejam caloteiros Sucedeu-te alguma desgraça
Que sejam bons pagadores Para andares tão zangado.
Bem sabes que os pintores
Podem ser honrrados e nobres PINTOR
Mas todos eles são pobres Ando doido e desesperado
Para viver honestamente Olha!
Do seu trabalho decente Ajustei a pintar o São Brás
Para viverem com alegria Ao ajuste que sei eu quantos fomos
Precisam de receber Nesse dia todos eram mordomos
O pão-nosso de cada dia Digo-te a boa fé
Meus senhores! Povo nobre e honrado Olha se reparares bem
Isto verdades são Hoje ninguém o é.
E cá ao nosso Fala Só
Saiem-lhe do coração. Hoje não é ninguém
Eu preciso dessas migalhas
Recolhe-se e aparece o pintor à porta do tasco e diz: Mas estão em mãos de uns canalhas
Que voltam a cara à gente
PINTOR Ando triste e descontente
Ó Maria põe-te a pé Não esperava esta bofetada
Que está o dia a raiar Julguei sempre esta gente honrada
Desce lá para a cozinha Mas hoje meu caro Calejo
Que vais tratar de almoçar. Sabes qual é o meu desejo?
Escuta lá amigo meu
Aparecendo Maria dos Reis: Desta me tomara eu livre
Que doutra... me livrarei eu.
Por mim não seja a falta
Já há muito que estou a pé MANUEL CALEJO
Então se vou almoçar
9 Os habitantes de Cércio são normalmente
Que tal o almoço é.
designados por “cerceniegos”, deixando assim
transparecer o nome mirandês, Cérceno (< quercinus).
Não te zangues caro amigo De quem se vê só no mundo
Espera que eu te digo Vê-la
Os mordomos sei eu quem são Que triste situação
Vamos ver onde estão Um homem
Um é Mateus dos Anjos Ao abandono como um cão
Que anda lá com seus arranjos Onde uns lhe voltam as costas
Cada qual gira em seu eixo. E outros lhe negam a razão
Saí de minha casa
Outro é o Lázaro Freixo À procura de sustento
Pois não conheces o meu cunhado? Para os ente caros que lá deixei
São dos bons rapazes do povo E ando por aqui errante sem alento
Também é Firmino Lobo Desanimado da vida que nem sei
Que foi quem te deu o sinal Vê lá
Não te apures por quanto val Se é ou não ingratidão
O santo e mais o dinheiro Prestei o meu serviço a estes fulanos
Todo aquele que for mordomeiro E escondem-se de mim
Há-de dar o que tiver Cobardes, desomanos
Mas tu tens que te entreter Almas sem vida
E passar por cá o dia Corpos sem coração.
Hoje é dia de Páscoa
Dia de borga e alegria. MANUEL CALEJO
Vamos lá Basílio amigo
PINTOR Vem cá daí comigo
Para mim é dia de tristeza Deixa-te dessa cantiga
Digo-te com toda a certeza Vamos tratar da barriga
Que ando mais que arreliado Não te estejas a apoquentar
Por me ver aqui demorado Vamos para minha casa
Sujeito a quem não tem pressa A comer do meu folar
Isto faz-me doer a cabeça Depois iremos os dois
Que nem posso erguer a frente Os fulanos procurar.
Minha mãi ficou doente
Alimentando apenas esperanças PINTOR
Que iríamos tratar das crianças Agradeço meu caro Manuel
Pelo menos ao anoitecer Mas não posso aceitar
Vê lá se é ou não sofrer Já mandei fazer de almoçar
Se é preciso um fulano ser forte Mas se prometes de ir ter comigo
Para caminhar por cá sem norte Aceito sim meu amigo
Como quem vagueia no escuro Ofereço-te do meu almoço
Tacteando um fraco presente Anda daí vamos os dois.
E antevendo um mau futuro
Reflecte, caro amigo MANUEL CALEJO
E pensa o que eu te digo Não posso, tenho de ir até casa
Os meus pequeninos filhinhos Almoça e pregunta-me depois10.
Entregues somente aos vizinhos
Minha mãi que só tem no mundo o meu PINTOR
amparo Não te esqueças do meu rogo.
Vê lá tu, faz nisto reparo
Faltou-lhe ela ficou deserdada MANUEL CALEJO
A pobre velha ficou abandonada Não esqueço
Julgar-se-á num abismo profundo Adeus, até logo.
Que é o único pensamento
10 Ou seja, pergunta por mim depois.
Calejo, batendo as mãos:
Separam-se. O Pintor vai para o tasco, o Calejo para
a ponta do “tabelado” onde se recolhe. Ó de casa, abram a porta
Ó amigo Mateus
FALA SÓ Os teus ouvidos e os meus
Diz um adágio antigo Não foram feitos para ouvir.
Quem busca santos encontra Deus
Mas isso não vai a vigor Mais alto:
Senão repara o nosso pintor
Em altos gritos brada os céus Quem está cá?!
A vozes pede dinheiro Ninguém responde?...

Mas sem se descobrir primeiro Berrando:


A mina que há-de dar
Metal que há-de cunhar Ó patroa de casa.
O dinheiro de São Brás
Para diante e para traz De dentro Maria Valentina
Gastará as suas solas
Para comprar umas castanholas. Senhor!

Toca a música, sai o Pintor da taberna, encontra-se MANUEL CALEJO


com Manuel Calejo e diz: Caramba
Você tem ouvidos de ferrador
MANUEL CALEJO
Já vinha à tua procura Aparecendo Maria Valentina:
Vamos lá a saber dos rapazes
A estas horas são capazes Ai, Jesus
De estar em arrecado Eu estava na adega.

Por isso primeiro que tudo “Trás” um púcaro mediado na mão direita e um copo
Vamos buscar meu cunhado. na mão esquerda, bebe e continua. Limpa a boca à
manga:
PINTOR
Teu cunhado não tem dinheiro Uma pinga é bem que se beba
Está em mão do camarada Hoje é dia de folar
Com teu conhado não é nada E a sagrada ressurreição
Tudo é com o companheiro Muito se deve festejar
Mas ainda o não vi Vós que quereis amigos meus?
Nem sua morada a sei
Foi por isso que aceitei MANUEL CALEJO
Ser acompanhado por ti. Queria-mos falar ao Mateus.

MANUEL CALEJO MARIA VALENTINA


Pois vamos então a casa Pois olhai não está aqui
Do tal Mateus dos Anjos Desde cedo que não o vi.
Não sei estes marmanjos
Por onde podem andar MANUEL CALEJO
Se ele lá não estiver Pois olhe
Trataremos de o ir boscar. Está aqui este sugeito
Coitado, bem contrafeito
Chegam a casa de Mateus dos Anjos e diz Manuel Bem farto de passear
Para diante e para trás MANUEL CALEJO
E sem nada adiantar Nem no baile nem nos jogos
É o pintor de S. Brás Não se encontra o tal amigo
Queríamos falar ao Mateus O que muito me admira
Que também foi mordomeiro Ou está com alguma femia
Que também tem algum dinheiro Ou foi para val de mira
E é preciso fazer as contas. Que o havemos de encontrar.

MARIA VALENTINA Vão para “val de mira”, encontram-se Alípio


Valha-vos Deus cabeças tontas Pimpão e diz Manuel Calejo:
Podeis tirar isso da mente
Porque o caso é mui diferente Olha lá ó Pimpão
Olhai! Não viste por aí o Mateus.
O dinheiro do santo gastou-se
Agora não o tem não o dá ALÍPIO PIMPÃO
Acabou-se Em Vale de Mira não está.
Portanto olhai!
É melhor não o pedir MANUEL CALEJO
Ao menos evitai de ouvir Que seria dele meu Deus.
Ele anda meio arreliado
E se vocês lhe falam nisso ALÍPIO PIMPÃO
Manda-os logo para o diabo. Que lhe quereis ao rapaz?

MANUEL CALEJO MANUEL CALEJO


Pois olhe senhora Maria Queríamos que ele larga-se
Se ele procede desses modos O dinheiro que ele deve ao São Brás.
Bem gostaria de ser sempre
Mordomo dos santos todos. ALÍPIO PIMPÃO
Pois olhai
MARIA VALENTINA Também eu tenho um resto
Sabes o que é ó Calejo Posso dá-lo se o quereis
Lérias não adubam sopas, É o que me sobejou da festa
O Mateus quer o dinheiro São só cincuenta mil reis.
Para comprar umas opas.
É pouco mas é o que tenho
PINTOR Não sou a mais obrigado
Você é que vestiu boa opa Em saindo da minha mão
Uma saia bem rodada Já fico desencarregado.
Se nós vamos feitos na fita
Levamos boa talhada Recebendo os cinquenta mil reis diz o Pintor:
Sabes o que é Manuel Calejo.
Sim Senhor
MANUEL CALEJO Fico-lhe muito obrigado
Vamos embora. É assim que deve fazer
Todo o homem honrrado.
PINTOR
Manda a mulher para o diabo ALÍPIO PIMPÃO
Vamos saber do tal Mateus Eu bem lho pagaria todo
Ou isto é obra do diabo Se estivesse na minha mão
Ou são os pecados meus. Dou portanto o que tenho
É a minha obrigação.
MANUEL CALEJO
MANUEL CALEJO A mim não me ofendeste nada
Nós voltamos para traz Mas tenho andado na pingada
O Mateus não está cá Todo o dia a procurar-te
Valha-me Deus e São Braz Está ali o pintor a procurar-te
Por onde é que andará. Que precisa de dinheiro.

Voltam-se e separam-se do Alípio Pimpão e diz o MATEUS DOS ANJOS


pintor: Que dinheiro? Qual dinheiro?

Senhor Alípio Pimpão MANUEL CALEJO


Fico-lhe muito obrigado O dinheiro de São Brás
Para aquilo que eu poder Bem vês que já o pintou
Tem-me sempre ao seu mandado. E bem bonito que o deixou.

ALÍPIO PIMPÃO MATEUS DOS ANJOS


Ora essa? Eu não o mandei pintar
Não tem nada que agradecer Não tenho nada que pagar
O dinheiro é do santo Nem estou disso encarregado
Eu não o podia comer. Bem sabes que diz o ditado
Quem te mandou pregar frade?
PINTOR Quem te mandou que te pague
É homem de boas contas Eu não estive ao ajuste
Não o digo por estar presente Nem para isso fui chamado.
Mas o senhor não é daqueles
Que voltam a cara à gente. MANUEL CALEJO
Chamou-te sim meu cunhado
Adeus senhor Pimpão Mas estavas fora, não vinhas
Fico em tudo ao seu dispor. Andavas por essas cortinhas
Piscando, fazendo figas
ALÍPIO PIMPÃO Namorando as raparigas
Também ao mesmo me ofereço Foste com as vacas para o lameiro
Adeus senhor pintor. De Retouço o dia inteiro
Estando tu já combinado
Separam-se e diz Manuel Calejo: Para o serviço ser tratado.
A gente contava contigo
Olha está ali o Mateus Como quem espera um amigo
Bem nos custou a encontrar Não vieste foi combinado
Anda no jogo do fito Como estava ali meu cunhado
Aguarda que o vou chamar. Foi o ajuste tratado
Por quem estava presente
O pintor fica o Calejo avança e chega ao Mateus e E ficou assim assente
diz Manuel Calejo: O dinheiro é do santo
Não é seu;
Boa tarde amigo Mateus Foi o povo que o deu
Mal sabes os trabalhos meus Portanto a obra que se faça
Que tenho por causa de ti. O Mateus há-de dar a maça
Ele é um rapaz verdadeiro
MATEUS DOS ANJOS E não anda por caloteiro.
Então eu no que te ofendi?
MATEUS DOS ANJOS
Eu agora não tenho dinheiro Não me rebenta a aljibeira
Nem o peço emprestado Isso assim não se faz
A tirá-lo a juro também não vou Que é ofender o São Brás
Manda o pintor para o diabo. Pode castigá-lo Nosso Senhor.
Nem que você lhe pareça
MANUEL CALEJO Ponha a carapuça na sua cabeça
Pois por não teres dinheiro Proceda como homem sem ronha
Não deves esconder a cara Tenha dez reis de vergonha11.
Que um boi prende-se pela haste
E um homem pela palavra. MATEUS DOS ANJOS
Pois eu não o tenho, acabou-se
MATEUS DOS ANJOS Foi-se embora, gastou-se
Pois o dinheiro eu lho darei Quando meu pai morreu
Mas agora não tenho nada. Devia mais de cinco contos
Pois cosendo12 uns e outros
MANUEL CALEJO Tudo se virou em prontos
Pois dissesses logo isso Eu era um rapaz novo
Não escondesses essa cara Mas era firme como um muro
Anda cá daí comigo De todo esse dinheiro
Chega aqui, faz favor Nunca paguei nenhum juro
Combina tu e o pintor Ainda assim me conservo
E cumpre a palavra depois. E assim quero acabar
Até aqui não o paguei
Vão os dois para junto do pintor e diz Manuel Também o não quero pagar.
Calejo:
PINTOR
Ora até que enfim Basílio É bem bonita doutrina
Cá está o mordomeiro Revela muito juízo
Mas diz que não tem dinheiro. E o mestre que lhe ensina
Vai passar do paraíso
PINTOR Que belo calão selvagem
Ora essa? Cá destas terras rurais
E só por esse motivo Querem a Deus para si
Andava o homem escondido E o Diabo para os de mais
Pois por isso que se apresente Olhe lá?
Que não volte a cara à gente. Se não tem dinheiro hoje
Diga só quando é que o dá
MATEUS DOS ANJOS Ficamos certos em um dia
Eu não andava escondido Em lhe dando cumprimentos
Quem é que o tinha dito? Findou nossa porfia
Eu andava a jogar o fito. Eu quando receber o dinheiro
É que ficarei descansado
PINTOR E o devedor ficará
Ó senhor Mateus dos Anjos Ao tempo limpo e honrado.
Todo o dia a procurá-lo
11 No dactiloscrito aparece “dia reis de vergonha”, o
Sem ser possível encontrá-lo
que nos parece ser um lapso de quem transcreveu. No
Veja lá? entanto, uma vez que, em mirandês, se diz “dieç reis”
Eu fiquei ontem cá pronunciando-se “die reis” (sem que ouça a sibilante
Para receber o dinheiro final), é também possível que o autor a tenha escrito
Gastei hoje o dia inteiro desta maneira, ou com uma ortografia próxima,
É já noite e a carteira imitando a pronúncia corrente.
12 Mirandesismo que significa tramar.
E quando paga adiantado
MATEUS DOS ANJOS É tido por bom pagador
Eu só posso arranjá-lo Não fica desacreditado.
Lá para o fim do mês.
PINTOR
PINTOR Vamos beber uns copos
Sim senhor serve bem Que tenho a garganta seca
Seja para o dia três Estes labregos da breca
Mas veja lá não se esqueça Dão-me cabo dos miolos
É dia de Santa Cruz Ainda me venho a virar tolo.
Tenha o dia na memória
Depois da Senhora da Luz13. Diz para o Taberneiro:

MATEUS DOS ANJOS Ó Senhor António Branco


Eu o dinheiro bem o arranjo Deixe ver uma pinga mais
Quero vender uma cabra
Por duzentos e cincuenta mil réis O Taberneiro lança o vinho e diz o Taberneiro:
Pego ao comprador na palavra.
TABERNEIRO
PINTOR Entoces las cuentas de São Brás
Então ficaremos certos
Pode ir tratando da cabra PINTOR
Que eu dia três venho cá As contas de São Brás
Quero ver se tem palavra. Inda ficam para trás

MATEUS DOS ANJOS TABERNEIRO


Pode ir descansado Pois no lo habia dicho yo
Que eu não falto ao prometido. Que esso estaba tardio?
Ai senhor Basilio amigo
PINTOR Que bida los dos traemos
Pois adeus, senhor Mateus A hosted no lo pagam los santos
Tenha isso no sentido. E a mi los quartilhos menos.

Seguem para o tasco o Pintor e o Calejo e diz o MANUEL CALEJO


Pintor Já o recebe no dia três
Não é lá o prazo tamanho.
Meu caro amigo Calejo
Quanto trabalho tens tido TABERNEIRA
Todo o dia a andar comigo Nel dia três? E de que mês?
À busca destes trapaceiros Si lo recebira de hoy a um año!...
Já são uzeiros e vezeiros
Nem eu me devo admirar PINTOR
Creio bem que no dia três Desculpa amigo Calejo
Ainda não me há-de pagar. Vou-me embora para casa
Por ver se espalho estas paixões.
MANUEL CALEJO
Paga, que tem boas contas MANUEL CALEJO
Tem lá conta pelo caminho
13Festa e feira popular e transfronteiriça que se celebra Não te saiam os ladrões.
no último Domingo de Abril, no Santuário de Nossa
Senhora da Luz, situado na Freguesia de Constantim,
bem nos limites fronteiriços entre Portugal e Espanha. PINTOR
Não me estejas a chatear Tu disto guarda segredo
Não me maces mais a testa Que te peço por favor
Não me faças quesiliar Ouvi-te dizer há bocado
Que algum dia será de festa Quando falavas com o pintor
Adeus meu caro Calejo Que querias vender a cabra!
Adeus até o dia três Nunca mais soltes essa palavra
Adeus senhora patroa
Senhor António, até outra vez. Enquanto eu e tu formos vivos
Há-de a cabra criar chibos14
Taberneiros em coro: E tu bom amigo Mateus
Atenta bem nos modos meus
Adios que haija salude. Que te falo com amor!
Manda para o diabo o pintor
Parte o Pintor para Vilar Seco Que o leve Belzebu
E o dinheiro de São Brás
FALA SÓ Comi-o mas é tu
Bem me custa a deter Repara que te digo bem
Por tanta maroteira ver Falo-te como ninguém
Ver o pobre pintor coitado Vê lá será verdade?
Dia e noite incomodado Discorro ou não com razão
Para receber o seu dinheiro Anda, fala, diz a tua opinião.
E ir-se embora para casa
Teso como um pinheiro MATEUS DOS ANJOS
Olhai lá que vos parece? Eu digo que falas bem
Aquele que a razão conhece E amigo como tu
E tem esperanças nos céus Ainda não encontrei ninguém
Pensará que os caloteiros Falas-me mesmo ao coração
Podem ter perdão de Deus? Segundo a minha opinião
Sabeis do que eu soponho Mas para te poder conhecer
Dos caloteiros de São Brás Queria o teu nome saber.
É que logo depois de morte
Serão entregues a Satanás. Recuando o Diabo…

Aparece o Diabo a um extremo do tablado e diz O meu nome...


Fala Só: Eu sei lá
Chamo-me Felizbelo
Ei-lo que já aí vem. Um nome lindo é verdade
Não vais por certo retê-lo
Fala Só foge espavorido ficando à espreita no extremo Sou príncipe num grande reino
oposto do tablado enquanto o Diabo fala. O Diabo Profundo escuro e bem quente
busca a Mateus dos Anjos que encontra no meio do Onde é feliz toda a gente
tablado e diz-lhe o Diabo: E tu também o hás-de ser
Se quizeres obedecer
Olá amigo Mateus Mas guarda isto de cor
Há muito que te procurava! Nunca pagues ao pintor
Movido pela razão Cumprirás a tua palavra
De ter dó da tua cabra Olha, não vendas a cabra
De certo não me conheces Fecha os olhos, tapa os ouvidos
Mas olha que sou teu amigo Não ouças pintores, não ouças pedidos
Ei-de sempre proteger-te Anda pois daí comigo
Enquanto tu fores vivo
14 Palavra mirandesa. Cf. português “cabrito”.
Vamos os dois passear Foi o tal Mateus dos Anjos
Temos muito que conversar O tal que negou o dinheiro
Que eu sempre serei teu amigo. Desculpe chamar-lhe pelo nome
Que é um grande caloteiro
O Diabo toma-o pelo braço e recolhem-se os dois. Voltou a mulher para casa
Fala Só que esteve ao cabo do tablado escutando e Da sua vida desconsolada
fazendo trejeitos diz: Quando encontravam o caloteiro
Não lhe podiam sacar nada
Já se foi o tal fulano Em Novembro do ano findo
Tinha léria de cigano Foram a Cércio trabalhar
Com modos de cidadão O pintor e a mulher
E andava bem pimpão Trataram logo de o avisar
Bota preta sem igual Dinheiro nem um centavo
Parecia um general Saía com mil trapalhadas
Trunfa cornada, cadeia na mão Que queria vender uma vaca
E que lindo cinto trazia Mas isto era só léria
Era mesmo um figurão. Esquecia-se do santinho
E o pintor pediu-lhe à conta
Fim da primeira parte. Toca a música. Que lhe desse uma carga de vinho
Nem vinho nem aguardente
Nem cousa alguma de trincar
SEGUNDA PARTE Pouco servia apurá-lo17
Se não tinha intenção de pagar
Aparece Fala Só proclamando a segunda parte do Então o pintor mui aflito
prólogo. Nunca ninguém tanto se veja
Que lhe havia de lembrar
FALA SÓ Tira-lhe o santo da Igreja
Povo honrado e mui selecto O pintor levou o santo
Em resumo vos venho anunciar Sem intenção de lho roubar
A segunda parte da obra Foi para obrigar desse modo
Que se está a representar. O caloteiro a pagar.
No dia três de Maio Mas aquelas almas danadas
De mil novecentos e vinte e seis Sem vergonha nem pudor
Foi o nosso pintor a Cércio Em vez de pagar o santo
Para receber quatrocentos mil reis Vão dar parte do pintor
Como tinha sido combinado Quando iam no Vilarinho18
Julgava que recebia Em frente dos arcos do cano
Mas não recebeu um centavo Eis que sai o diabo
Passando por lá noite e dia Maligno, tentador, desumano
Não lhe pode sacar nada Chegam a Miranda, dão parte
Aos tais moços da bofanda15 Com perverso furor raivoso
Por isso mandou pagar-lhe Em seguida é o pintor chamado
Ao senhor Guerra16 de Miranda À administração de Vimioso
O que restava combinou É ouvido
Aguardar ao fim de Verão Fala a verdade
Mandou lá nesse tempo a mulher Como a sua consciência manda
Um disse-lhe logo que não 17Meter pressa.
18O Aqueduto do Vilarinho é uma obra de finais do
15 Forma mirandesa, normalmente escrita “bufanda”,

que significa cachecol. Cf. castelhano: bufanda. século XVI, sobre a Ribeira do Vilarinho, mandado
16 Valentim Guerra era o Presidente da Comissão construir pelos bispos de Miranda, para a abastecer de
Executiva da câmara Municipal de Miranda do Douro. água a nova cidade episcopal.
E passados dias apresenta-se Graças a Deus Manuel Calejo
Na Administração de Miranda Sou feliz porque te vejo
Mas o senhor administrador Os olhos mos guarde Santa Luzia
Com probidade e competência E o mesmo a ti até ao fim da vida.
Manda ir ali os queixosos
Chamados com toda a urgência MANUEL CALEJO
Na presença dos queixosos Como vais, tens saúde?
É interrogado o pintor
E ouvido com atenção PINTOR
Pelo senhor administrador Saúde, mais que o diabo...
Logo que ele compreendeu Dinheiro, nem um centavo.
Quem é que tinha razão
Manda pôr ali o santo MANUEL CALEJO
Sem nenhuma detenção Então zangas-te por esse motivo.
E manda pôr ali o dinheiro
No prazo de dois dias PINTOR
Por isso marcham para Cércio E se te parece meu caro amigo
Ambos cheios de agonias Andar um homem sempre debaixo de um
Obrigam Mateus dos Anjos pêro
A apresentar o dinheiro Sempre a gemer e sempre teso.
Juntando-se para obrigar
Em Cércio o povo inteiro MANUEL CALEJO
Mal ele largou o dinheiro Então ainda as contas de São Brás.
Correu pelo povo o eco
E partem logo dois fulanos PINTOR
Buscar o santo a Vilar Seco Deixa-me
Era meia-noite em ponto Que as leve Satanás.
Não se sentia algum rumor
Quando batem os tais moços MANUEL CALEJO
À porta do nosso pintor Então o Mateus ainda não pagou?
Levantou-se o pintor da cama
Foi ver se conhecia as fardas PINTOR
E viu então dois fulanos Nem pagou nem pagará
Sobre uns burros sem albardas Nem o diabo o quer já lá.
Entraram, pagaram o santo
Não ficaram a dever nada MANUEL CALEJO
Apresentou-se com ele em Cércio Então que resposta te deu?
Às duas horas da madrugada
Findou o meu arrazoado19 PINTOR
Desculpem as palavras más Ai! deixa-me pelo céu
E peço também desculpas Ainda não fui capaz de o ver
Ao bendito e glorioso São Brás Como sabe que estou cá
Por isso vos peço licença De certo se pôs a mexer
Que me vou já retirar Não teme a Deus nem ama a Jesus
Prestai a vossa atenção Senão de certo se lembrava
Que a obra vai continuar. Do dia de santa crus.

Corteja e recolhe-se. Aparece o Pintor encontrando-se Olha o Calejo, amigo franco


com Manuel Calejo e diz o Pintor: Vim de manhã fazer um trabalho
Ao nosso amigo António Branco
Pois olha,
19 “Razoado”.
Nem ele nem os mais vi
Graças a Deus que te encontrei a ti PINTOR
Que és o balssamo das aflições Ó senhor Mateus dos Anjos
Que de resto ó Calejo; É essa a sua palavra
Isto são uns maganões Não se lembra que prometeu
Eu já nem o dinheiro espero Que ia vender uma cabra.
Só quero contigo desabafar
Porque esse grande safado MATEUS DOS ANJOS
Só pensa em me intrujar Queria vender a cabra
Deixa-o lá com um raio Mas a cabra não se vendeu
Que se farte de dinheiro E agora por esse motivo
Que roia as tripas do santo Não me faço em dinheiro eu.
E que ponha as dele de fumeiro.
PINTOR
MANUEL CALEJO Veja lá homem
Vê lá! Que estamos nós a maçar
Não fales desses modos Diga ao menos de uma vez
Olha que o tal Mateus Não pago, não quero pagar.
Ainda não é mau de todo
Vamos lá falar com ele MATEUS DOS ANJOS
E alguma coisa há-de dizer É que eu quero pagar.
Também com a nossa visita
Bem pouco pode perder PINTOR
Olha! Ai sim, quer pagar?
Aí vem ele se não me engano Mas quando?
Ó Mateus dos Anjos.
MATEUS DOS ANJOS
MATEUS DOS ANJOS, para o pintor Manuel Quando tiver dinheiro na carteira.
Calejo:
PINTOR
Não te disse que era o fulano. Pois sim,
O pobre pintor que aguarde
Para o Mateus: Nem que seja a vida inteira
Eu preciso do dinheiro
Vem cá ó amigo Mateus Agora nesta ocasião
Os teus trabalhos e os meus Já sabia que tinha de o dar
Trazem-nos atrelados Não quer, diga logo que não
Maldito azar dos nossos pecados No seu serviço gastei o meu tempo
Olha lá? Gastei os meus materiais
Não vês ali o pintor? E agora para pagá-los
Deus me valha Jesus Precisa dos meus cabedais
Hoje é dia de santa crus Comprei os vidros em Miranda
Não te lembras ó Mateus Aqui junto da sua terra
Que há algum tempo atrás Estou-os ainda devendo
Prometeste de pagar hoje Quero pagá-los ao senhor Guerra
A pintura de São Brás. Se você quer ficar nisso
Podemos assim combinar
MATEUS DOS ANJOS Deia-lhe duzentos mil reis
Pois lembro sim senhor Mas não pode muito tardar
Mas não tenho hoje dinheiro E os outros cincuenta mil reis,
Que aguarde mais o pintor. Veja se eu sou formal ou não,
Os outros cincuenta mil reis Señor Basílio ha demorado
Espero-lhe até o fim de Verão. Bien carregado de dinero
My parece que tray mucho
MATEUS DOS ANJOS Que ha entrado mui somero.
Pois então eu fico nisso
Pode-se ir descansado PINTOR
Que dentro de pouco tempo Eu não sei que diga a isto
Será esse dinheiro pago. A tão longa penitência
Em Cércio não há dinheiro
PINTOR Ou acabou-se a consciência.
Veja lá no que se mete.
TABERNEIRA
MATEUS DOS ANJOS Entonces lo São Brás
Vá embora que Mateus dos Anjos Ainda no se an pagado.
Nunca falta ao que promete.
PINTOR
PINTOR No me lo han pagado
Então adeus, não pode faltar. Somente me trazem empalhado
Mas olhe que esta brincadeira
MATEUS DOS ANJOS De me andarem a empalhar
Vá descansado Por certo não dura sempre
Não se há-de queixar. Nem bom resoltado bem dar.

Separam-se. À porta diz Mateus dos Anjos: ANTÓNIO BRANCO


El dinero si se lo dá
Se outro não comeres Que no és mal pagador.
Antes destes receberes
Pouco vais engordar PINTOR
Cedo hás-de morrer. Já mo devia ter dado
Sem lhe ficar em favor
Para o Calejo: Depois de o haver ganhado
Adeus que me vou embora.
PINTOR
Adeus ó Calejo amigo TABERNEIRA
Eu já teria enlouquecido No, no se baia a esta hora.
Se tu não andasses comigo
Vou-me embora que é já tarde PINTOR
Por tudo, amigo Calejo, Deus te guarde Vou sim senhor, adeus
Adeus! Não findam os trabalhos meus
Desculpa por tanto te maçar Adeus até outro dia.
Como sempre ao teu dispor
Para tudo o que eu prestar. TABERNEIRA
Pus bueno adios
MANUEL CALEJO Recuerdos a la senhora Maria.
Basílio amigo, adeus
Nada tens que agradecer PINTOR
Até um dia se Deus quiser. Farei presente, obrigado.

Separam-se o pintor vai para o tasco onde lhe diz Parte o pintor para Vilar Seco.
António Branco:
FALA SÓ
Há muito que o nosso pintor E como eles o não largavam
Lá por Cércio trabalhava Veio-me isso ao penssamento
E naquele povo confiava Fico ao menos descansado
Era gente de por aí além Com aquela conta paga
Que pagava muito bem Como lhe disse que pagava logo
Se não era no seu dia De contínuo nele pensava.
Era quando o devedor podia
Mas agora o tal Mateus MARIA DOS REIS
Já me não está a cheirar bem Mas não ficaram liquidados
Porque é muito trapaceiro Porque o dinheiro era mais.
Mas sem direito de autor
A ordem do nosso pintor PINTOR
Quero colocar-lhe nas costas Pois sim, mas ao outro parceiro
O nome de caloteiro. Fiz-lhe outros tratos iguais
E o tal Mateus dos Anjos
Chega-se Mateus dos Anjos e Fala Só “coloca-le” Ainda não ficou limpo, inda não
com dois ganchos, uma placa de quarenta centímetros Ficaram-lhe cinquenta mil reis
com o nome em grandes letras, CALOTEIRO. Mas aguardando ao fim de Verão.
Mateus dos Anjos que enquanto lhe é colocada a
placa olha ao longo do tabulado de perfil ao público, MARIA DOS REIS
corteja, pede licença: “Meus senhores, com licença” e Aguardando ao fim de Verão
volta as costas ao público por forma que todos “vem” E também ao fim do Inverno!
novamente. Volta-se, corteja e volta-se e recolhe-se. Esses malditos caloteiros
Chega o Pintor a casa e diz para a mulher: Já deveriam estar no inferno.

Ó Maria Recolhem-se. Aparece Fala Só e diz:


Abre-me a porta
Que venho cheio de aflições. Os caloteiros no inferno?!
Essa bonita está
MARIA DOS REIS Mas nem de Verão nem de Inverno
Então que desastre te passou O diabo não os quer lá.
Saíram-te talvez os ladrões?
O diabo tem boas contas
PINTOR A quem o serve paga bem
Qual ladrões nem que diabo Por isso só quer no inferno
Se eu não recebi um centavo Quem não deva nada a ninguém.
Olha Maria
Põe atenção ao que te digo Toca a música. Aparece o Pintor e a mulher e diz o
Que falo sem reticência Pintor:
Em Cércio não há dinheiro
Ou acabou-se a consciência O fim de Verão já passou
Para te dizer a verdade Estamos no fim da sementeira20
Não recebi lá um pataco Parece que não será asneira
Já teria morto de arrelia Vê lá que dizes Maria
Se precisasse de comprar tabaco Sabes o que me parecia
Voltamos ao tempo antigo Escuta que dizer-te vou
O tempo de troças na terra Desde que no mundo estou
Duzentos mil reis de São Brás A toda a gente que me conhece
Mandei dá-los ao Senhor Guerra
20 Por aqui se pode apreciar a forma como o tempo
Eu não queria dever-lhe
era contado: através dos ciclos da natureza e dos
O dinheiro por mais tempo trabalhos agrícolas.
Ouvi dizer a este rifão Arranja-te como puderes.
Quem não aparece esquece Cá com os teus afazeres
A esse respeito então Olha lá não ponhas isso em banda
Parece-me que é melhor Lá irei eu a Miranda
Agora já não faz calor E pago a conta ao senhor Guerra
Nem o frio produz afrontas Eu por estar fora da terra
Vais a Cércio no Domingo Não me esqueço da vida de cá
A cobrar aquelas contas. Já te disse, no Domingo vais lá
Tu sabes bem quais são Que eu tenho de andar por fora
Não sendo assim nada se faz Está o caso combinado
Aproveita com a do São Brás Anda daí vamos embora.
E as outras a proporção
O resto de São Brás são Recolhem-se, aparece Fala Só e diz:
Cinquenta mil reis somente Que enganada anda a gente
Tu não abaixes a frente Por este mundo de Cristo
Que trate de te pagar Que vos parece agora disto
O dinheiro é do santo Valha-me Nosso Senhor
Tem obrigação de o dar. Ai coitado do pintor
Quanto trabalho gastou
MARIA DOS REIS Para fazer o conserto
Do São Brás é mais dinheiro Do tal São Brás de Cércio
Porque o maldito caloteiro E bem pouco aproveitou
Que é a nódoa daquela terra Vai de cá para lá
Que foi tão sério nos seus tratos E de lá para cá
Que não pagou ao senhor Guerra Ninguém lhe dá dinheiro
Assim mo disse há dias Grita que nem um azeiteiro.
Quando eu estive lá
Não estavas tu por cá “Sae” Maria dos Reis e vai a Cércio. Encontrando-
Dizendo-me que há dias atrás se com Mateus dos Anjos junto do tasco e diz-lhe
Viu passar o tal rapaz Maria dos Reis:
Depois de o chamar lhe falou
Porém ele o insultou Bons dias Senhor Mateus
Dizendo-lhe que não devia nada Ora até que enfim
Uma fera desmascarada Graças a Deus
Que bramiu com ira e furor Haja um grande bocado
A você não lhe devo nada Que por si tenho preguntado.
E outro tanto ao pintor.
MATEUS DOS ANJOS
PINTOR Pois agora já cá estou
Pois lá do tal caloteiro Veja lá então o quer?
Não conhecia essa bravura
Apura-o com fartura MARIA DOS REIS
Faz-lhe pagar sim senhor O senhor já o deve saber.
Que o ponha ali à pocinha
Já não faz grande favor MATEUS DOS ANJOS
Custou bastante a ganhá-lo Não. Decerto eu não sei.
Mas ainda custa mais a cobrá-lo
Eu tenho de ir embora MARIA DOS REIS
Sairei amanhã para fora Pois então eu lho direi
E tu trata dessa cobrança Mas não se faça esquecido
Não a percas de lembrança Porque eu tenho entendido
Para diante e para trás
Que o dinheiro de São Brás Junto à taberna, diz-lhe a Taberneira:
É o senhor quem o deve
Portanto dê-o cá de breve21 Entonces senhora Maria
Cumprirá o seu dever No lo hay querido pagar.
Pois eu vim para o receber.
MARIA DOS REIS
MATEUS DOS ANJOS É o mesmo! Estes marmanjos
Não devo dinheiro algum Há mesinha para os curar
Não tenho nada que dar Os outros foram prodentes
Pelo caminho donde veio Liquidaram o seu dinheiro
Pode tornar a voltar. Mas há remédio para curar
Este maldito caloteiro.
MARIA DOS REIS
Você nem diga isso TABERNEIRA
Que desonra esta terra Ay senhora Maria
Há muito ficou de pagar Que mui mal la ha tratado
O dinheiro ao senhor Guerra Nó basta ser mal pagador
E agora vem negá-lo Que tambiem ser mal criado.
Dizendo que não deve nada
Ponha em vista os seus deveres MARIA DOS REIS
Tenha vergonha nessa cara Adeus, até outro dia
Porque lá esses seis vinténs Não sei quando será
Não os papará como figos A contas com esse malandro
Você mostra que não tem vergonha Bem certo, não volto cá.
Nem cara de grandes amigos.
TABERNEIRA
Retirando-se, Mateus dos Anjos: Adios senhora Maria
Dios le de más dinero
Eu ao Guerra nada lhe devo Do que ha quitado hoy
E a você não lhe devo nada Deste maldito calotero.
Não dou o dinheiro de São Brás
A nenhum filho de mulher honrrada. Separam-se saindo Maria dos Reis para Vilar Seco.

Seguindo-o, Maria dos Reis: FALA SÓ


Esta lida tão comprida
Pois não lhe ficará no bolso Esta maldita cantiga
Garanto-lhe que o há-de largar. Que nada enche a barriga
Somente atrapalha a vida
Já longe, Mateus dos Anjos: Nunca mais há-de acabar
Aonde é que irá parar
Pois sim embargue-me os machos Esse trapalhão rapaz
Vá-me mandar obrigar. Caloteiro de São Brás
Mas vede a pobre mulher
Recolhe-se e continua Maria dos Reis Do nosso pintor coitado
Que saiu daqui a Cércio
Obrigado vais ser Em busca daquele desalmado
É bem certo ó marmanjo Como foi de afortunada
Há-de chegar o tempo Dinheiro dele não viu nada
Para te tratar do arranjo. Depois de trabalhos tantos
Deve-lhe ficar a boca doce
21 Cf. mirandês debrebe (depressa).
Para em Cércio pintar santos. PINTOR
Pois veja lá
Toca a música. Aparece em Cércio o pintor Lembre-se disso
encontrando-se com Manuel dos Anjos e diz o Pintor: Que são contas mui atrasadas.

Bons dias, senhor Mateus MATEUS DOS ANJOS


Como vamos de saúde? Pode ser que venda a vaca
Para a feira de Malhadas
MATEUS DOS ANJOS Se a vaca se vender
Bem, como tem passado? Talvez se arranje modo
Veremos lá nós a ver23.
PINTOR
Vou indo pelo costume. Fique em paz até logo.

MATEUS DOS ANJOS Safa-se. O Pintor segue para o tasco e Mateus dos
Então agora por cá? Anjos para a sua casa e vai dizendo aparte Mateus
dos Anjos
PINTOR
É verdade! O dinheiro de São Brás
Por uns dias Juro não pode vencer
Por aqui será Por mais vezes que o peças
Estamos fazendo concerto Nunca o hás-de receber.
Ao altar do Senhor do Amparo
Começámos ontem a obra Recolhe-se.
Leva tempo o tal reparo
Talves ao cabo de dez dias FALA SÓ
Apresente-mos obra pronta As amostras não são más
Já vê que durante esse tempo Não vistes o mordomeiro
Tem de nos pagar a conta Do dinheiro de São Brás
E já não é sem tempo É um autêntico caloteiro
O senhor prometeu-me no Naso22 E pouca diferença lhe faz.
Quando eu cá viesse pagar
Vim cá o trabalho ajustar Aparece no tasco Mateus dos Anjos, encontrando-se
E até hoje nada recebi com Maria dos Reis e diz-lhe Mateus dos Anjos:
E por isso hoje estou aqui
E demoro cá uns dias Boas noites companhia
É forçoso dar-me o dinheiro E mais a senhora Maria
Isso por todas as vias Está boa?
Já vai fazer dois anos Vou indo! E a sua pessoa?
Que lhe pintei o São Brás
É vergonha não estar liquidado MATEUS DOS ANJOS
E sempre de diante para tráz. Ainda estou melhor do que parece
A senhora não me conhece?
MATEUS DOS ANJOS
Pois veremos nós lá a ver MARIA DOS REIS
E não tenho dinheiro agora Não conheço... a ver se me inteiro.
Queria vender uma vaca
Vamos ver se a ponho fora. MATEUS DOS ANJOS
Sou o que lhe devo o dinheiro.
22 A romaria de Nossa Senhora do Naso tem lugar no

dia 8 de Setembro. 23 “haver”.


MARIA DOS REIS
Ah! já sei... o dinheiro de São Brás MANUEL CALEJO
Se soubesse que falta nos faz Pois então já lá não vou
A gente anda atrasada O outro dia falou-me em ti
Com a vida atrapalhada Por causa daquele restinho
Olhe que as coisas estão feias Podias-lhe vender algum vinho
E o dinheiro em mãos alheias Que ele disse-me que aceitava
Não remedeia a nossa vida. E até a importância que fosse
Ficar-te-ia a conta paga.
MATEUS DOS ANJOS
Pois sem o ter não o posso dar MATEUS DOS ANJOS
Em o tendo poderei pagar. Olha lá, ó Calejo
O dinheiro não é teu
MARIA DOS REIS E o vinho que eu colhi
Olhe lá senhor Mateus Quero mas é bebe-lo eu
Falou-se aqui há bocadinho O pintor terá de aguardar
Que o senhor vendia vinho Eu quando tiver dinheiro
Tanto faz que seja dinheiro É que lhe poderei pagar.
Como coisas que encha a tripa
Precisamos encher uma pipa Vão caminhando até ao extremo do tabulado e vai
É um adágio verdadeiro dizendo Manuel Calejo:
Pagar dívidas são virtudes
Dê-nos cinco ou seis almudes Tu bem sabes que já é tempo
Falando as cousas é que se trata O pintor já aguardou bastante
Uma conta outra mata Já vai completar dois anos.
O senhor paga a sua dívida
E nós dirigimos a nossa vida. MATEUS DOS ANJOS
Pois que aguarde o restante
MATEUS DOS ANJOS Ainda tem que aguardar
O ano passado vendi algum Porque eu sem ter dinheiro
Este ano não vendo nada De certo não hei-de pagar.
Para quanto nós colhemos
Gasta-se bem em casa Recolhem-se à ponta do tabulado; aparece Fala Só e
Adeus, até logo que me vou. diz:

MARIA DOS REIS A pedra dura, mal se fura


E bem contente que me deixou. Assim é o tal Mateus
Só por divina graça
Retira-se Mateus dos Anjos encontrando-se com Poderia abrandá-lo Deus.
Manuel Calejo que lhe diz:
Aparece o Pintor e a mulher fora do tasco e diz o
MANUEL CALEJO Pintor
Eu e tu chegamos bem
Queres vir até o tasco Isto está-me a chatear
Se queres vir anda cá. De contínuo a trabalhar
E a vida cada vez pior
MATEUS DOS ANJOS Valha-me Nosso senhor
Do tasco venho eu. Andar para diante
Andar para traz
MANUEL CALEJO E a conta de São Brás
Não viste o pintor lá? Não há meio de me vir à mão
Faz-me doer o coração MARIA VALENTINA
O despreso com que sou tratado Ai!... era o senhor pintor
Por isso ando desesperado
E sabes o que me lembrou no entanto PINTOR
Vamos levar com nós o santo É verdade somos nós
Em se encontrando sem ele Se nos quer dar de almoçar
Certo vão à procura dele Poderemo-lo aceitar.
E para o voltar e levar
Não lho dou sem mo pagar MARIA VALENTINA
Que te parece? Pois olhe andava agora a fazê-lo
Está bem pensado? Se são servidos, vamos comê-lo.

MARIA DOS REIS MARIA DOS REIS


Está sim! Obrigado, bom proveito.
Acho que está muito bem
Foi um acordo24 de pori-além. PINTOR
O senhor Mateus dos Anjos?
PINTOR
Pois olha MARIA VALENTINA
Amanhã vamos embora Olhe, ajuntaram-se a outros marmanjos
Sairemos cedo a boa hora Exercitaram-se de maneira
Que nos não vejam levar o santo Que foi à Ribeira de Angueira.
Mas ainda quero no entanto
Falar ao tal mordomeiro
A ver se dá vinho ou dinheiro PINTOR
Vamos a casa procurá-lo Pois queria-mos lhe falar
Que agora é fácil encontrá-lo.
MARIA VALENTINA
MARIA DOS REIS Os senhores queriam dinheiro
Uma vez que estamos cá Mas o que tem não o pode dar
Pouco nos pode custar E os senhores têm que aguardar.
E nos der má resposta
Já não devemos estranhar. PINTOR
Valha-me Deus
PINTOR Quanto eu tenho aguardado
Pois anda daí comigo Com bem pouco resultado
Vamos ver o tal amigo Olhe nem só com dinheiro
Que já disse para o obrigar É que pode pagar a conta
Teremos muito que gastar Dê-nos pão centeio ou trigo
E eu sem gastar um centavo Castanhas ou até bolotas
Quero que me pague pocinha Mas que não sejam mamotas
Ainda que berre o diabo. Porque nós tudo aceitamos.

Chegam a casa dele e diz o Pintor: MARIA VALENTINA


Pois nada disso nós lhe damos
Olá, ó senhor Mateus Aquilo que colhemos bem o gastamos.

Aparece a mãe Maria Valentina toda esguedelhada, PINTOR


vestida com um saiote e diz: Mostre a sua boa vontade
Dê-nos metade de um toucinho
Ou duas cargas de vinho.
24 Ou seja, uma lembrança.
E nos lance a absolvição.
MARIA VALENTINA
Vinho agora não pode ser Descendo o santo
Porque o nosso está a ferver
Andamos bebendo o do avó PINTOR
Mas é fraco não val um bilho25 O santo é que vai absolvido
Aí pela festa de São Brás Bem contente e satisfeito
Mais adiante ou mais atrás Olha que ele está benzido
Dois ou três cântaros posso lhe dar Não lhe faltes ao respeito
Quando muito se lá chegar. Mete-o na alforge27 embrulhado
Que vá bem acautelado
PINTOR Deixo-lhe o Báculo na vidraça
Pois bem então adeus E ponho-lhe por chalaça
Seja como a senhora quiser. De papel este linguado
Que escrevi há28 um bocado
MARIA VALENTINA Isto lembrou-me a mim.
Adeus, até nos voltar-mos a ver.
Lê o papel:
Saem e diz o Pintor para a mulher E o papel diz assim:
São Brás envergonhado
PINTOR Por causa de um caloteiro
São bicudos como canários Fugiu do tal trapaceiro
Estes pulhas salafrários Bem triste e desconsolado
O dinheiro hão-de largá-lo Por se encontrar empenhado
E para que o caso assim seja Com dívida de dois anos
Vamos lá até à Igreja Se houver alguns fulanos
O santo que está embrolhado Que o desejam de o encontrar
Tens um pano asseado? Tratem de o ir buscar
O caminho bem o sabeis
MARIA DOS REIS Devendo porém levar na mão
Tenho sim, bem arecadado Duzentos e cinquenta mil reis.
Vamos tirá-lo do altar
E trataremos de o embrolhar. Enlaça o papel no Báculo, este na vidraça e diz para
a mulher:
Entram na Igreja, benzem-se e diz o Pintor:
O contrato fica feito
O Báculo fica cá Saiamos daqui para fora
A cajata26 que o santo tem Quando se lembrarem do santo
Levá-la não nos convém Já nós temos ido embora.
Porque a podemos quebrar
E depois o resoltado MARIA DOS REIS
É termos de a concertar. Vou satisfeita graças a Deus
Acompanhada de São Brás
MARIA DOS REIS Hão-de nos ajudar os céus
Desce lá o santo depressa E os marmanjos, tu verás
O que estás fazendo então Se trata de nos pagar
Aguardas que alguém venha Até os demais ao-de obrigar.
25 “Bilhó”, ou seja, castanha assada e descascada,
significando, neste caso, algo de pouco valor ou
importância. 27 Alforja, em mirandês, é um substantivo feminino.
26 Cf. mirandês caiata.
28 “a”.
Vão saindo e encontram-se com Manuel José Vão saindo.
Sapateiro e diz-lhes Manuel José Sapateiro:
Pode entrar de noite alguém
Então já vão embora? Mas aqui não há que roubar
Mais que os santos do altar
PINTOR Os santos ninguém os quer
Sim senhor, acabou-se a obra. Se fosse coisa de comer
Posso dizer com fartura
JOSÉ MANUEL SAPATEIRO Que não ficaria mui segura.
Pois eu quero ir ver
Senão não posso dizer Chegam junto da taberna e separam-se; entrando
Ainda não vi pronto o galo Maria dos Reis no Tasco; aparece Fala Só e diz
E vi de manhã desenhá-lo. Fala Só:

PINTOR O São Brás está empalmado


Nós saiamos de vez Mas está bem arrecadado
Mas se quer voltamos os três Olá Mateus dos Anjos
Mas olhem, sabe o que é Encomenda-te aos arcanjos
Está-me a trouxa a pesar A ver se te dão favor
Vão os dois ver o altar Mas creio que só te resta
Como é noite e faz escuro Pagar o santo ao pintor
Acendam vela ou lanterna Mas trambicou-te com esta
Que eu vou indo para a taberna. Porque a trazer-to não vem
E sem dinheiro não tu dá.
MARIA DOS REIS
Vamos senhor Manuel José Toca a música. Aparece junto do Tasco o pintor a
Ver o serviço em conjunto mulher Calejo e os dois taberneiros e diz o Pintor:
Foi preciso trabalhar muito
Para chegarmos à conclusão São horas de partir embora
Mas ficou com perfeição. Por isso vos digo adeus
Rogai por nós aos céus
Entram e alumiam com uma vela e diz o Manuel Pela nossa viagem boa
José Sapateiro: Adeus senhora patroa
Adeus senhor António Branco
Sim senhor está bonito Desculpem o trabalho tanto
Mesmo o galo é um pimpão Adeus amigo Calejo
Um trabalho de eleição Muita saúde te desejo.
Capela e altar tudo novo
Deve ficar a gosto do povo TABERNEIRA
Vamos lá pois embora Adiós, senhor Basilio
Fico contente com a obra E la senora Maria tambim.
(ao sair)
A porta fica fechada. MANUEL CALEJO
Adeus, mil felicidades
MARIA DOS REIS É quanto eu vos desejo
Fica sim senhor E não esqueçais o Calejo.
Tem a fechadura desarranjada
Carregam na égua uns alforges e uns sacos em carga
MANUEL JOSÉ SAPATEIRO levam junto deles preso um carneiro, o pintor conduz
Pois não fica muito bem. a égua e a mulher o carneiro e diz Maria dos Reis:
Adeus ó gente amiga Pois havia o santo pintado
Permiti-me que vos diga E não bastou não o terem dado
Que levo saudades de vós Que até já o tinham negado
Desculpai-me os incómodos Por isso se levou o santo
Que aqui vos causamos nós Teria carros de razão
E se não voltarmos por cá E quem lhe negou o dinheiro
Ide-nos lá a ver vós. Ou é caloteiro ou ladrão.

Partem para Vilar Seco. Durante o caminho diz o JOÃO DE ALFREDO


Pintor: Ah! Tu estás a favor do pintor
Queres talvez herdar-lhe os bens?
Ó Maria És parente do Calejo
Se viessem sobre nós Bem pouca vergonha tens
Qual é que largavas primeiro Pois olha que não se limpa
O centeio, as azeitonas Tão bem como ele pensou
O santo ou o carneiro. Ainda se há-de arrepender
Do santo que nos roubou
MARIA DOS REIS Eu digo que se toque o sino
Eu não largaria nada Para juntar a mocidade
O que é que havia de largar? E com toda a brevidade
Largarei somente o São Brás Vamos juntos a Vilar Seco
Quando me o venham pagar. Este roubo há-de dar eco
Fazemos-lhe dar o santo.
Chegam a Vilar Seco e diz o Pintor: Dinheiro!
Nem preto nem branco
Graças a Deus e S. Brás Ali não se paga nada
Chegamos a casa em bem Quando virem a gente armada
Já estamos à vontade Todos nos darão razão
E o nosso santinho também. Até com medo tremerão
E pôr-se-ão a rezar o terço
Recolhem-se com todo o carregamento. Aparece e diz E nós valemo-nos da ocasião
Fala Só: Trazendo o santo para Cércio.

Bem alegre e satisfeito MATEUS DOS ANJOS


Ora esteve um chaço bem feito Isso assim não vai bem feito
Todo aquele que não queira pagar Ainda que era de dinheiro
Cura-se desta maneira Mas palpitou-me na mente
De certo lhe há-de lembrar E lembrou-se de repente
Esta lição a vida inteira. O santo não saiu de cá
O santo em Cércio está
Recolhe-se. Aparece em Cércio Manuel Calejo, Nem queria dizer-vos tanto
Mateus Gonçalo, João Alfredo e todos os figurantes Ou o tem Manuel Calejo
de Cércio e diz Manuel Gonçalo: Ou o tem António Branco
Porque são amigos do pintor
O São Brás desapareceu da igreja Fazem-lhe capa sim senhor.
Se o não levaram foi-se embora
Creio que o roubou o pintor ANTÓNIO BRANCO
Que havemos de fazer agora? Que estás dicendo?
Qui niem te puedo estar oindo
LÁZARO FREIXO La casa mia es chiquita
Ao pintor deviam-lhe dinheiro A dar-le vuelta de siguida
E los tos ojos nó se abriram Não é coisa que se faça
Para los santos que alla estan. Tirar o santo da vidraça
E deixar escrito dobrado
MATEUS DOS ANJOS Na cajata um papel enlaçado
Tu do roubo soubeste Que certo o há-de condenar
Não poderás negar não Se me quereis acompanhar
Só merecias com um cacete Mordomo da Igreja eu sou
Malhar-te como quem malha um cão. E dar parte a Miranda eu vou.

Arregaçando o braço, António Branco: JOÃO DE ALFREDO


Pois aguarda aí rapaz
Nó, nó bai a cacete Eu sou mordomo de São Brás
Solo con dos punhetaços O mordomo deste ano
A quantos estais aqui Para que saiba o tal fulano
Vos roumpo pernas e braços. Que Cércio é terra alheia
Vou contigo dar a parte
Chega Manuel Calejo e diz para Mateus dos Anjos Até metê-lo na cadeia.

Vamos lá a minha casa MATEUS GONÇALO


Anda lá amigo Mateus Então vamos embora
Juro-te a pé de Deus Que o tempo está-se a passar
De Deus Nosso Senhor E se aguardamos a noite
Não deverias negar ao pintor Não nos querem aturar.
O dinheiro de São Brás
Sempre diante para trás Seguem os dois para Miranda e diz para os
O pobre pintor santeiro companheiros Mateus Gonçalo:
E a tua pouca vergonha
Chega a negar-lhe o dinheiro. Lá vamos os dois embora
Adeus até à volta.
MATEUS DOS ANJOS
Não digas isso cara de mosco FALA SÓ
Que nem ao menos te tosco. E eu vou servindo de escolta.

MANUEL CALEJO Acompanha-os até Miranda.


A minha cara e a tua
Postas no meio da rua JOÃO DE ALFREDO
Onde se vejam bem É melhor entrarmos em casa
Apreciadas por alguém Vestir-mos a roupa melhor
Com juízo verdadeiro Podemos levar uma pinga
Notara-lhe grande diferença Hoje é à conta do pintor.
Não é cara de caloteiro.
Recolhem-se e diz Fala Só:
MATEUS GONÇALO
Lérias não adubam sopas Faltaram-me os camaradas
Seja o caso como for Foram a mudar as farpelas
O santo levou-o o pintor Eu só tenho esta
Isto dá para uma demanda Estou sempre pronto para a guerra
Vamos daqui a Miranda E se eles trouxerem vinho
Ao senhor administrador Era o que eu queria melhor
Dar parte do pintor. Só me puxa por cabaça
Esta droga do pintor.
Que ele há-de pagar a justiça
Toca a música. Aparece João de Alfredo e Mateus Este meu palavreado
Gonçalo vestidos à antiga Mirandesa e calçados de Vos acreditareis à certa
socos e trazendo um a tiracolo uma borracha29 de Porque a terra em que viveis
vinho e diz João Alfredo: Ainda não foi descoberta
Lembrai-vos sempre de mim
Olha lá Mateus Gonçalo Que aqui falar-vos vim
Nós não vamos a cavalo? Se fizerdes o que vos digo
Poderemo-nos embebedar Ter-me-eis por grande amigo
E se caímos dos burros Mas não haveis de o santo pagar
Podemos a testa rachar. Escutai ainda mais esta
E dinheiro para fazer a festa
MATEUS GONÇALO Eu falo-vos sem interesse
Vamos já a beber um trago Bem vedes o meu palavreado.
Em honrra de São Tiago
Lá vai o sangue de Nosso Senhor MATEUS GONÇALO
À saúde do pintor. Vemos que és homem honrado
E muito amigo dos santos
Bebem cada um do seu e diz Fala Só Que nos deixaram nossos avós
Sabes o que eu te digo
Falas-tes em Nosso senhor Anda daí também com nós.
Eu também sou seu parente
Lembrai-vos de mim boa gente
Pois toma lá uma pinga DIABO
À saúde de São Brás Eu com vós não posso ir
Bebe à vontade rapaz. Que sou odiado no mundo
Só lá no reino profundo
Seguem os três para Miranda, no caminho aparece- É que tenho o meu poder.
lhe o diabo que lhe diz:
João de Alfredo dando-lhe a borracha:
DIABO
Ó cavalheiros muito amigos Pois uma pinga hás-de beber.
Quanto desejo de vos ver
Tinha eu, posso dizer DIABO
Creio que não me conheceis Eu só bebo água-forte
Mas eu sou amigo vosso E como cornos de viado
Em tudo ajudar-vos posso Mas fico-vos muito obrigado
Leio no vosso interior Ide embora à vossa vida
Dai a parte do pintor Acrescentai o vosso furor
Fazei-lhe o santo apresentar Mandai prender o pintor
E nunca lhe queirais pagar Inventai mil pataranhas
Trabalhai com bem cobiça30 Ponde em acção vossas manhas
Mas o diabo não o largueis
29 Esta sinédoque, em que a borracha significa a bota De mim não vos esquecereis
onde se transportava o vinho (muitas vezes feita
também de cabedal), está presente em outro ditado
Porque sou um servidor
mirandês que diz: Que trabalha noite e dia
Se fures a Miranda Nas cavernas do pavor.
Lhieba l pan na manga
I l bino na borracha Retira-se. Continuam eles caminhando e diz Mateus
Porque alhá nun s’acha.
30 “Trabalhar com cobiça” significa “trabalhar com Gonçalo:
garra, com energia.”
Já Deus nos quis ajudar Pois eu vou já ordenar
É tudo em nosso favor Que seja preso rapidamente
E tudo contra o pintor Aonde quer que se encontrar
Não viste aquele homenzarrão Vocês vão à sua vida
Negro como um tição Que o santo e mais o pintor
Mas tinha boas palavras. Virão debaixo de prisão
Acorrentados com rigor.
FALA SÓ
E tinha cornos como as cabras. JOÃO ALFREDO
Isso é o que nós queremos
JOÃO DE ALFREDO Senhor Administrador
Amigos, chegámos à repartição Deus lhe dê força e coragem
Do senhor administrador Para tirar a pele ao pintor.
Vamos beber uma pinga
À conta do pintor. Saem. Fala Só acompanha-os. Vão dançando e
cantando o seguinte:
Bebem
Partimos de Cércio
FALA SÓ Cheios de furor
Alto aí que o acabais A participar do tal pintor
E eu ainda quero mais. Pintou-nos São Brás
Tudo foi gabado
Chegando-lhe a borracha Mateus Gonçalo: Não deram dinheiro
Voltou a levá-lo.
Bebe para aí Fala Só
Bebe até emborrachar FALA SÓ
Que o pintor há-de pagar. Olá São Brás!

JOÃO DE ALFREDO Bebem os dois.


Ó senhor administrador
A dor nos impede o pranto As moças de Cércio
Tivemos lá um pintor Rezam com fervor
Tirou-nos da Igreja um santo À Virgem do Céu
Há-de dar-nos o santo A Nosso Senhor.
Queremos que seja preso Que venha São Brás
Sem alguma detenção Sem largar dinheiro
Que venha debaixo de prisão É quanto deseja o povo inteiro
Porque a acção é muito feia Nada lhe importa
Que nos apresente o santo De ficar caloteiro.
E que fique na cadeia.
FALA SÓ
ADMINISTRADOR Olá, São Brás!
Onde mora o tal fulano
Que levou o santo roubado. Bebem os dois.

MATEUS GONÇALO FALA SÓ


Basílio Pintor é chamado É beber e mais beber
Rapaz mediano e seco E a mim não me dais nada
Residente em Vilar Seco. Há pouco passou a rodada
E agora vai do mesmo modo
ADMINISTRADOR Vós bebeis o vinho todo
E de mim não tendes dó João de Alfredo ofereceu-lhe pinga
Dai para cá uma pinga Mas ele não quis aceitar.
Lembrai-vos lá do Fala Só.
FALA SÓ
MATEUS GONÇALO Bebia eu, tem bom vagar
Bebe lá pobre diabo Ponde-vos todos a mexer
Pingueiro, engraxador Que são horas de deitar.
Melhor é bebe-lo tu
Do que dá-lo ao pintor. Zurra em todos com a pelota e todos dispersam
recolhendo-se. Toca a música. Aparece o Pintor e a
Chegam a Cércio onde está ainda junto o povo e diz mulher e diz o Pintor:
Mateus Gonçalo:
Venho dar-te uma novidade
Fizemos a nossa jornada Que me custa a crer na verdade
Com valentia e valor Veio aqui o senhor regedor
Fomos bem atendidos E apresentou-me um ofício
Pelo senhor administrador Do senhor administrador
Que trata imediatamente Mandado com toda a urgência
De mandar prender o pintor. Veio cedo cá trazê-lo
Um oficial de diligências
João de Alfredo chega-se a Manuel Calejo e diz-lhe Fiquei um tanto confundido
João de Alfredo: Manda apresentar-me lá hoje
A fim de ser ouvido
Olá Manuel Calejo! Ainda sábado me falou
Já te morde o percevejo Sem nada de extraordinário
Olha o amigo pintor Pelo que mais admirado estou.
És tanto da sua banda
Se amanhã o queres ver MARIA DO CÉU
Vai à cadeia de Miranda. Pois és bem tolo rapaz
Isso é obra dos de Cércio
MANUEL CALEJO Por causa de São Brás
Só poderei acreditar Também já isso me lembrou
Depois de por meus olhos ver Seja lá pelo que for
Não me parece que vós tenhais Monto a cavalo e lá vou
Coragem de o prender. Tem à noite a ceia arranjada
Que devo trazer a foice picada.
MATEUS GONÇALO
Tudo é a nosso favor Caminha para Vimioso recolhendo-se no extremo do
E tudo contra o pintor tabuado.
Quando íamos no caminho
Chegando ao Vilarinho FALA SÓ
Apareceu-nos um figurão O São Brás estava morto
Negro como um tição Vai agora ressuscitar
Mas com tais palavrinhas Por causa do mordomo
Que nos deixou encantados Não querer o dinheiro largar
Já sabia do roubo do santo Mas não vai ser o molho
Se vísseis pediu-nos tanto Feito ao seu paladar
Que não pagássemos ao pintor Porque para levarem o santo
Era mesmo da nossa cor Primeiro o hão-de pagar
Com justiça e com razão E já não é sem tempo
Tinha a minha opinião Nem lhe fazem grande favor
Há muito que o ganhou Mandaram-me logo embora
O nosso pobre pintor Já fui a Vale de Frades
E eu à nossa saúde Vê lá o que arrodeei
Vou-lhe tocar o tambor. Portanto dá-me de cear
Que ainda não ceei
Marcha No domingo irei a Miranda
Volta o Pintor a casa e diz para a mulher: Falar com o senhor administrador
Que não me tenha por gatuno
Boa noite, como vais Maria? Pois eu sou um honrrado pintor.

MARIA DOS REIS MARIA DOS REIS


Bem, e tu como te foi o dia? Pois vamos então cear
Que bastante fome terás
PINTOR Deus te conserve os amigos
Perfeitamente Bendito seja o São Brás.
Porque dei com a minha gente.
Recolhe-se.
MARIA DOS REIS
Mas era o caso do santo. FALA SÓ
Ó glorioso São Brás
PINTOR E os mais santos dos Céus todos
Era o santo e outro tanto Condoei-vos do nosso pintor
Aquela canalha brava Salvai-o de todos os modos
Enviaram contra mim Sabeis o que vos quero pedir?
Um telegrama que era assim. Que perdoeis os seus pecados
Levai-o lá para o Céu
Telegrama Que vos põe a todos pintados.
Queria mandar prender
Sem nada se deter Aparece Mateus Gonçalo e João de Alfredo, e diz
O cidadão Basílio pintor Mateus Gonçalo:
Mandando-o transpor
Sem nenhuma detenção Venho-te dar um recado
Debaixo de prisão Do senhor administrador
A fronteira deste concelho Que nos manda ir a Miranda
Para que serva de espelho Lá por causa do pintor.
Seja preso em qualquer parte
Na rua ou em algum comércio JOÃO DE ALFREDO
Devendo vir acompanhado Lá vou vê-lo à cadeia
Do roubo da Igreja de Cércio. Que me vou encher de rir
Dizer-lhe quatro galhofas
Aí vês os grandes malandros Que há-de gostar de as ouvir.
Para que lhes havia de dar
Queriam o santo pintado MATEUS GONÇALO
E não o queriam pagar. Na cadeia... qual cadeia?
De o prendermos não há meio
MARIA DOS REIS A todos tenho perguntado
E então o resultado Mas para Miranda não veio.
Dessa canalha traidora.
JOÃO DE ALFREDO
PINTOR Pois havemos de o atiçar
Nenhum! Falei toda a verdade Com todo o nosso furor
E mais e mais entujar MATEUS GONÇALO
O senhor administrador Senhor Basílio, como está?
Quando vamos a Miranda?
PINTOR
MATEUS GONÇALO Bem, e vós como tendes passado.
Vamos daqui a bocado.
MATEUS GONÇALO
JOÃO DE ALFREDO Ambos temos saúde
Então virás chamar-me O que tendes de novo.
Que ainda não estou almoçado.
JOÃO DE ALFREDO
Recolhem-se. Aparece o pintor e a mulher e diz o Muito frio e lá no seu povo.
Pintor:
PINTOR
Vou embora até Miranda No frio estaremos iguais
Tu trata da vida por cá Mas temos lá um santo a mais.
Arranja o jantar com tempo
Que eu venho cedo de lá. MATEUS GONÇALO
Pois é o que nós lá não temos
MARIA DOS REIS Nós temos um santo a menos.
E se ficas na cadeia?
PINTOR
PINTOR Que extraordinária coincidência
Para mim não haverá cadeia Parece obra da providência
Não fazendo crime maior Olhai lá?
Ouvindo-me, dar-me há razão Então a meu respeito
O senhor administrador Não tendes por lá nada?
Preciso ir por Malhadas
Que tenho lá que fazer JOÃO DE ALFREDO
Por isso abalo cedo Temos a gente muito zangada.
Não tenho tempo a perder
Adeus até à volta PINTOR
Que já me vou de repente. A gente do vosso povo?

MARIA DOS REIS MATEUS GONÇALO


Adeus até à volta Sim senhor, o povo todo.
Tem conta com essa gente.
PINTOR
Separam-se seguindo o pintor para Miranda pelo Grande admiração me faz
lado oposto do “tabolado” a entrar ao outro extremo. Por que é?
Partem também para Miranda Mateus Gonçalo e
João de Alfredo encontrando-se com o pintor junto da JOÃO DE ALFREDO
administração voltam a cara e diz o Pintor: Por causa do São Brás.

Olá grandes amigos PINTOR


Não voltem a cara à gente. O São Brás bem sossegado está
E bem tratado por lá
JOÃO DE ALFREDO Se quiserdes em Cércio venerá-lo
Eu não o tinha visto Primeiro haveis de pagá-lo.
Vi-o agora de repente.
MATEUS GONÇALO
Veremos lá ver como será Conheço sim, é o pintor.
Naturalmente o senhor pintor
É que tem de o levar lá. PINTOR
Sim senhor, o tal traidor
PINTOR Ladrão do santo de Cércio.
Estou fora do meu concelho
Em terra quasi estrangeira ADMINISTRADOR
Ao dispor da auturidade Logo que está o pessoal junto
Submisso ao que ela queira Vamos lá ver o assunto.
Não sei como será aqui
Mas tenho visto nos outros concelhos Entram na administração, o Administrador aponta
Que a autoridade não protege cadeiras para os mais se “assentarem”.
Gatunos nem caloteiros
Por mais que vocês se esforcem
E cem vezes me mandem prender ADMINISTRADOR
Por este crime na cadeia Vamos ver senhor pintor
Não serão capazes de me meter. Como foi isso arranjado
Para o santo ser roubado?
JOÃO DE ALFREDO
Pois correu lá em Cércio PINTOR
Que foi preso lá em Angueira. Foi com toda a facilidade
Eu conto já em resumo
PINTOR Somente a pura verdade
E aonde me prenderam? Vai próximo de dois anos
A alguma taberneira Que na terra destes fulanos
Se mais crime não fizer Pintei o São Brás
Quem me mandar prender
Com os olhos bem arregalados Fazer-lhe uma vidraça
Certo ficará desolado Ajustei por minha desgraça
Ao ver os laços quebrados. Como o dinheiro são papéis
Foi contratado o serviço
Aparece o senhor administrador. Os de Cércio Por quinhentos e cinquenta mil reis
cumprimentam-no.
Pedi sinal adiantado
MATEUS GONÇALO Recebendo de bom ou de mau grado
Bom dia senhor administrador Das mãos dos tais moços
Como está? Como tem passado? Cem mil reis para tramoços
Concluída a obra em seu lugar
ADMINISTRADOR Eles deviam de me pagar
Muito bem amigo Gonçalo Mas nem dinheiro nem palavras
E o seu camarada? Saíam daquelas cabras
Eu precisava da maça
JOÃO DE ALFREDO Encontrava-lhe pouca graça
Bem, bom senhor administrador Gastei o meu dinheiro
Por hora não me dói nada. E teso como um pinheiro
Por me ver em tal desgraça
PINTOR Dei entrada em minha casa
Certo me não conhece Rindo-se eles de chalaça
Bom dia, senhor administrador. Rouco como um azeiteiro
De tanto gritar pelo dinheiro
ADMINISTRADOR Depois que muitas vezes o pedi
Trezentos mil reis recebi Nós não temos o dinheiro.
De vários modos em parcelas
E as tais pessoas aquelas ADMINISTRADOR
Ficaram pouco agradecidas Vocês conheçam o seu dever
E nada arrependidas Não me venham aqui intrujar
Lá ficou um tal sogeito São competentes para pedir o santo
Forçado e contrafeito E não são para pagar!
Encarregado de pagar
Para a conta liquidar JOÃO DE ALFREDO
Em resumo O dinheiro tem-no um rapaz de lá.
Somando as contas
Faltam duzentos e cincuenta mil reis ADMINISTRADOR
É bem pouco dinheiro o total Pois que o ponha para aí já
Mas negaram-no afinal Quando não...
Vendo-me assim desprezado Dou dele uma participação
Falei em mandar obrigar Espremo-o como um bago
O tal moço do dinheiro Aperto-o que o esmago
Mas o astuto caloteiro Não quero ver traficâncias
Não se quis amedrontar Feitas por esses cantos
Dizendo que para o obrigar Ninguém detenha em seu poder
Em selos processos e papeis O dinheiro que é dos santos.
Gastaria quinhentos mil reis.
Voltando-se para o Pintor:
Escarnecido e envergonhado
Ao ver-me assim aviltado Vou indicar o caminho
Não fazia senão pensar Prestes atenção portanto
Tirei-lhe o santo do altar O senhor manda amanhã
Aguardando a chegada Conduzir para aqui o santo.
Do tal moço do dinheiro
Eis o caso verdadeiro Dirigindo-se aos de Cércio
Tal qual sem tirar nem pôr
O senhor administrador E vocês depois de amanhã
Veja o exposto a seu modo Apresentam aqui o dinheiro
Eu só exijo o dinheiro Por este caminho verdadeiro
E entrego o santo logo. Levam o santo para lá.

Diz para os de Cércio o Administrador: Para o Pintor:

Vejam lá foi o caso exatamente O senhor depois vem cá


Como contou o senhor pintor. Ou manda buscar o dinheiro
E se não quer incomodar-se
MATEUS GONÇALO Mando-lho para o seu concelho
Foi sim senhor administrador! Ao senhor administrador
E em Vimioso o receberá
ADMINISTRADOR Está o caso arrumado
Pois sendo assim desse modo Podem-se ir embora já.
A vossa obrigação primeira
Era pagar o trabalho logo. Vai para se retirar Mateus Gonçalo pega-lhe pelo
casaco e diz-lhes Mateus Gonçalo:
MATEUS GONÇALO
Ó senhor Administrador Ó Administrador
Isso assim não pode ser.
PINTOR
ADMINISTRADOR Qual testemunha
Está já tudo resolvido Para não lhe porem a unha
Nada mais temos que ver. Sem largarem a bagalhoça
O senhor administrador os coça
Retira-se o Administrador na frente a seguir os de E caladinhos nem um pio
Cércio e depois o Pintor. O Administrador recolhe-se Vamos lá para casa
e os de Cércio de fora dizem para o Pintor. Que trago bastante frio.

MATEUS GONÇALO Recolhem-se; voltam para Cércio João de Alfredo e


Ó senhor pintor, isto assim não pode ficar Mateus Gonçalo e vão dizendo mas em choradeira:
O senhor leva o santo
Mas é para o seu altar. MATEUS GONÇALO
Quem diria que o São Brás
PINTOR Não nos havia de ajudar.
Vós desconfiais da autoridade
Que desta terra é governo JOÃO DE ALFREDO
Que eu levarei o santo ao inferno A mim bem me custa rapaz
Se a autoridade mo ordenar Que nos obriguem a pagar.
Manda porém trazê-lo aqui
Amanhã não há-de faltar. MATEUS GONÇALO
Prometemos uma promessa
JOÃO DE ALFREDO Que nos valha nosso senhor.
Eu não nem posso parar
Vamos dar parte a outro lugar. JOÃO ALFREDO
Não valem santos nem promessas
PINTOR Com este administrador.
Ide lá onde quiserdes
Vós tornareis a voltar Em Cércio entram no tasco e diz-lhe
Para entreterdes o tempo António Branco:
Podeis-vos ir passear.
Entonces
Retira-se. Chega a casa encontra a mulher que lhe Senhor Basílio yá está preso?
diz:
MATEUS GONÇALO
MARIA DOS REIS Era boa, está preso
Olá! Já vens tão cedo. Está-nos a olhar com desprezo
Mateus dos Anjos não esteve aqui.
PINTOR
Por quem havia de aguardar ANTÓNIO BRANCO
Depois de me despachar. Nó, yo no se lo bi
Que queriades tratar.
MARIA DOS REIS
Acabaste com a demanda. JOÃO DE ALFREDO
Que tratasse de largar
PINTOR E não faz grande favor
Amanhã vai o santo a Miranda. O dinheiro de São Brás
Para pagar ao pintor.
MARIA DOS REIS
Para testemunhar? MATEUS GONÇALO
Vamos embora que são horas
E tudo se nos vai em demoras. FIRMINO LOBO
Então vai-se já buscar
Saem logo, encontram Mateus dos Anjos e diz-lhe Sem nenhuma detenção
João de Alfredo: Os de val de mira ai vêm
Todos a ralhar com nós
Então tu estavas aqui Portanto reparai vós
E nós procurando por ti. Vede em vossos corações
Já por todas as povoações
MATEUS DOS ANJOS Nos enchem de trapalhões
Então há alguma novidade? Nos enchem de caloteiros
E de outros nomes tantos
MATEUS GONÇALO Por não pagarmos os santos.
Há sim, viemos da cidade
E temos o negócio desarranjado MATEUS DOS ANJOS
O pintor é levado do diabo Pois eu dinheiro não tenho
E em resumo... o primeiro Nem ao pintor lho dou.
É largares o dinheiro.
MATEUS GONÇALO
Enquanto isto se diz vêm-se aproximando os de Larga lá o dinheiro da mão
Cércio um a um até se juntarem rodos e diz Mateus E já a questão acabou.
dos Anjos:
LÁZARO FREIXO
Nem o diabo nem Nosso Senhor Tu larga só o dinheiro
Me obrigam a pagar ao pintor. Que o santo vai-se buscar.

JOÃO DE ALFREDO MATEUS DOS ANJOS


Mas obriga-te o Administrador Eu dinheiro é que não tenho
Olé, é ele quem manda Quem mo lo há-de emprestar.
Só tem dois dias de prazo
A pôr o dinheiro em Miranda MATEUS GONÇALO
Deixas o dinheiro e trazes o santo Eu te empresto cem mil reis
Que há-de estar na administração. É só o que tenho aqui.

MATEUS DOS ANJOS Mateus dos Anjos recebendo:


Hei-de eu ir buscar o santo
Antes eu queria ser um cão. Ainda me faltam cinquenta
Não há mais algum por aí.
LÁZARO FREIXO
As coisas arranjam-se por bem ANTÓNIO BRANCO
E eu julgo que será melhor Yo te do los cinquenta
Ir pelo santo a Vilar Seco Aum que yá me debes más
Dar-lhe o dinheiro ao pintor Creo que al poco tempo
Porque se vamos a Miranda Todo me lo pagarás.
Reparai lá, vede vós
É uma grande vergonha MATEUS DOS ANJOS
E fazem caçoada de nós. Pois aí tendes o dinheiro
Pois até já me sua a testa
MATEUS GONÇALO Tinha intenção de queimá-lo
Pois o santo de manhã cedo Em foguetes no dia da festa.
Já vai para a administração.
Entrega o dinheiro a Mateus Gonçalo e diz Mateus Quem chama a esta hora?
Gonçalo:
LÁZARO FREIXO
Vamos buscar o São Brás Somos nós.
Sem nenhuma detenção
Se aguardarmos amanhã PINTOR
Lá vai para a administração Ah! Sois vós!
A ver se algum se oferece Façam favor de aguardar
Para ir buscar o santo Que me vou já levantar.
Eu como fui dar a parte
Agora envergonho-me tanto... Sai a mulher e o Pintor e diz o Pintor:

LÁZARO ALEIXO Faltam dez para a meia-noite


Pois olha vamos eu e tu Como vêm a esta hora?
Que és o mordomo da Igreja
Vamos e viemos de noite LÁZARO FREIXO
Sem que ninguém nos veja. É o glorioso São Brás
Que nos trás por fora.
MATEUS GONÇALO
Pois são dez horas da noite PINTOR
Não podemos mais demorar Pois entrem cá para dentro
Vamo-nos já montar nas bestas Trata deles ó Maria
E pomo-nos já a andar. Na rua não se demorem
Que está a noite muito fria
Monta Lázaro Freixo uma “gementa” boa sem Eu vou tratar das bestas
rédea, uma manta sobre o lombo, Mateus Gonçalo Que não estejam a arrefecer
uma “gementa” ruim. Nada de aparelhos, apenas Vou metê-las na loja
uma corda ao pescoço, cobertos os dois com capas de E deitar-lhe de comer.
honra. Fala Só segue com eles e diz:
Retira-se para detrás do tabuado
FALA SÓ
Agora vamos de viagem MARIA DOS REIS
A casa do senhor pintor Entrem cá para dentro
Vamos buscar o São Brás E dirão o que desejam
Em honrra de Nosso Senhor Na rua não estejam
E para que nos leve ao céu Que o santo perto está
Vou-lhe tocar o tambor. Como deixem o dinheiro
Levem o santo para lá.
Marcha entoando:
Entram os três vem o Pintor e diz:
Rum pum, pum Rum pum pum, Rum pum,
pum. Já fui tratar das bestas
Meus caros amigos velhos
Chegam a casa do pintor, batem à porta e diz Venho muito arreliado
Lázaro Freixo: Roubaram-lhe os aparelhos
Uma queria prendê-la
Ó Senhor pintor! Nem ao menos tinha corda
Abra a porta por favor. Peguei nume inquerideira31
Prendi-a a argola da porta.
De dentro (Pintor):
31 Cf. mirandês “angrideira” (corda para prender,

angrir).
PINTOR
MATEUS GONÇALO Então desconfiais de mim.
Por isso não se aflija
Não quebre nisso a cabeça LÁZARO FREIXO
Trouxemo-las desaparelhadas Ora irmão! Não é assim
Porque saímos à pressa. Nós saímos fora de hora
Para não sermos vistos fora
PINTOR O senhor pintor suponha
E então com essa pressa Que isto é uma vergonha
O que vindes aqui fazer. É um descrédito atroz
Fazem caçoada de nós
MATEUS GONÇALO Se nos virem levar o santo
Viemos buscar o São Brás E logo então portanto
Para menos vergonha sofrer. Viemos de noite
De noite voltamos
PINTOR E um vergonhaço poupamos
Pois logo que vocês paguem O meu cunhado Calejo
Findou a nossa demanda Quando soube estas novas
Mas o santo está já pronto Logo disse desta maneira
Para ir amanhã a Miranda Vai-vos fazer umas trovas.
Vamos beber uma pinga
Findaram todos os rancores PINTOR
À saúde do São Brás Nem que seja uma comédia
E mais dos bons pagadores. Deus sabe o que faremos nós
Mas sempre será a meias
Bebem todos Mateus Gonçalo puxa do dinheiro e diz Entrando nelas eu e vós.
Mateus Gonçalo
LÁZARO FREIXO
Aqui tem o seu dinheiro Dê-nos então cá o santo
Não se zangue do nosso modo Como o havemos de levar.
Que se nós fomos dar parte
Foi por comprazer o nosso povo. MATEUS GONÇALO
Esqueceu-nos por sair à pressa
PINTOR Ó São Brás nos valha.
Ide em paz vós e o santo
Que eu não fico descontente PINTOR
Já me pagastes a conta Por isso não se apoquentem
Todo o resto é-me indiferente. Dou-lhe um saco e uma toalha.

Bebei mais uma pinga Embrulham o santo. Metem-no ao saco e diz Mateus
Aquecei o interior Gonçalo
Quero que fiqueis contente
No nosso amigo pintor Vamos embora depressa
Já é tarde a esta hora Não tem senão desculpar
Não vos deixo ir embora Por depois de meia-noite
Dormis aqui sossegados. O virmos a incomodar.

LÁZARO FREIXO Montam a cavalo.


Não senhor
Não ficaríamos descansados. PINTOR
Vão para casa sossegados
Eu não reparo outro tanto De cantar Kirie laison.
Recomendem-me ao Calejo
E também ao António Branco. Apeiam-se. Colocam o santo na Igreja e vão para
suas casas recolhem-se no lugar que lhe convenha e
Recolhem-se o pintor e a mulher. Vão-se embora deixando ficar fora Fala Só que diz:
Freixo e Gonçalo e Fala Só acompanha-os e diz:
Os fulanos foram-se embora
FALA SÓ Deixando-me na rua encerrado
As bestas vão sem albardas Sem me pagarem a jeira
Ora aqui é que são elas De os haver acompanhado
Ou o burro dá cabo do espinhaço Às duas horas da madrugada
Ou o santo esfola as costelas Ai valha-me Nosso Senhor
Com tudo lá vai contente Tal me fizeram a mim
Olhai o grande pimpão Como fizeram ao pintor
Eu vou acompanhando-o Sempre me pregaram um calote
Cantando o kirie laison Ó triste da minha vida
Kirie laison Findou a nossa função
Kirie laison Vou vos dar a despedida.
Kirie laison
FIM
Chegam a Cércio e continua:
Seguem, como é de costume, trovas de
Findou a nossa jornada despedida alusivas às várias povoações em
Chegámos à povoação volta.
Acabou a minha tarefa

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