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Verdadeira Tragédia do

Marquez de Mantua e do
Imperador Carloto Magno

Organização, introdução e notas de


António Bárbolo Alves
(Bolseiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia
e do Ministério da Educação)

FICHA TÉCNICA
Título: Verdadeira Tragédia do Marquez de Mantua e do Imperador Carloto Magno

© Centro de Estudos António Maria Mourinho e António Bárbolo Alves


1ª Edição: Junho de 2007
ISBN: 978-972-9249-11-2
Edições do Centro de Estudos António Maria Mourinho
Biblioteca Municipal
Rue de l Cumbento, s/n
5210-021 MIRANDA DE L DOURO
centro.amm@gmail.com
http://ceamm.no.sapo.pt
http://tpmirandes.no.sapo.pt
1. Versões existentes no CEAMM
No CEAMM existem quatro cópias. A primeira é uma fotocópia da colecção
“Bibliotheca para o Povo”, nº 20, da autoria de Balthazar Dias, editada pela Livraria
Chardron, de Lello & Irmão, editores, Porto, 1907, a qual leva o seguinte título:
Tragédia do Marquez de Mantua e do Imperador Carloto Magno A qual trata como o Marquez
de Mantua, andando perdido na caçada, achou a Valdevinos ferido de morte, da justiça que por sua morte
foi feita a D. Carloto, filho do Imperador, e na qual figuram as seguintes personagens: Marquez de
Mantua; Valdevinos, seu sobrinho; um PAJEM; dous Embaixadores, chamados Duque Amão, e e
Conde D. Beltrão; o Imperador Carloto; Ganalão; a Imperatriz; a Mãi, e esposa de Valdevinos, e D.
Carloto.
As restantes três, dactilografadas, são cópia de uma delas, seguindo, grosso modo, a
edição impressa. A edição digitalizada reproduz uma destas versões.

2. Origens
Como se pode constatar, trata-se de uma versão já bastante “tardia” desta obra de
Baltazar Dias uma vez que a primeira edição conhecida é de 1664. Tal facto atesta,
contudo, o êxito que as suas obras tiveram ao longo dos séculos.
Este texto é uma das mais importantes composições dramáticas do século XVI. O
contexto é de profunda transformações sociais e culturais, abertura, desenvolvimento,
optimismo e confiança no futuro. Enquanto muitos se dirigiam para Itália, sobretudo
Florença, procurando beber as novas letras “mais humanas”, Baltazar Dias, o “cego da ilha
da Madeira”, configura-se como um autor onde confluem e de alguma forma se sincretizam
alguns aspectos temáticos fundamentais da mundividência medieval: o cavaleiresco e o
religioso. A fé na justiça, a honra e o heroísmo são outros vectores temáticos presentes na
sua obra e que terão igualmente contribuído para o sucesso deste texto e do seu autor.
Baltazar Dias é quase o único sucessor daqueles cegos jograis que cantavam velhas
façanhas1. A sua aceitação por parte do povo foi grande, graças, entre outros motivos, à
simplicidade da sua linguagem e «por ser homem pobre», que vendia e cantava
publicamente os seus pliegos sueltos, revitalizando, deste modo, a imagem antiga do cego
músico e cantor2. Enquanto escritor do povo, enraíza-se em toda uma tradição secular à qual

1 Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Romances velhos em Portugal, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1934, p.
256.
2 Sobre este tema veja-se Júlio Caro Baroja, Ensayo sobre la literatura de cordel, Madrid, Istmo, 1969, pp. 43-55.

Na Terra de Miranda conservou-se, até há bem poucas décadas, a tradição dos cegos que, de terra de em
terra, passavam pedindo esmola, tocando e cantando esses romances. Ainda me lembro de os ver e ouvir.
permanece fiel sobretudo nas vertentes semântica e técnico-discursiva. A adesão do
público, de cariz marcadamente popular, ligado ao mundo rural, exige temas sensacionais,
vividos e sentimentais (patéticos, às vezes, mas não tão distantes de algumas manifestações
que, na actualidade, congregam e arrastam as massas populares, ouvintes e telespectadores).
O autor, mais do que um introdutor, convoca para a sua obra abundantes ecos onde se
projectam de modo especular discursos distantes de muitos “romances” conhecidos na
tradição oral europeia e peninsular. O romance sobre o Marquez de Mântua é justamente
“um desses velhos romances populares tecidos à volta de Carlos Magno e da sua época”3
onde, como refere Ramón Menéndez Pidal, a narração era suprimida e a cena ou situação
se desenvolve toda em forma de diálogo4. Tendo sofrido, ao longo dos tempos, inúmeras
variações no título, considera-se que o mais apropriado é Tragédia do Marquês de Mântua.
Uma versão deste “romance”, muito idêntica à nossa, foi publicada por Almeida Garrett5.

3. Representações
Valdemar Gonçalves informa que este “colóquio”, também conhecido, na Terra de
Miranda, por Tragédia de Valdevinos e do Imperador Carloto Magno, foi recentemente
representado em São Martinho de Angueira, mas não refere a data precisa6. A versão
editada pelo GEFAC, mais extensa do que a nossa, foi recolhida em Avelanoso de um
manuscrito datado de 1 de Julho de 1924. Nesta localidade terá sido também representado
por volta de 1949.
É provável que o texto aqui apresentado não corresponda àquele que foi
representado nestas localidades. Com efeito, faltam-lhe algumas das “personagens” e
elementos essenciais do teatro mirandês: a “profecia”, o Diabo ou Satanás, Deus, um Anjo
ou outra personagem divina. De referir que todas elas estão presentes da edição recolhida e
editada pelo GEFAC.

Segundo Ferreira Deusdado, um dos temas mais míticos do Cancioneiro Popular Mirandês, o Mirandun, foi
justamente trazido por uns cegos de Vimioso que, na sequência na destruição da praça mirandesa, em 1762,
apareceram cantando esta canção. Ver Ferreira Deusdado, Escorços Transmontanos, Lisboa, Livrarias Aillaud e
Bertrand, 1912, p. 149.
3 Alberto Figueiredo Gomes, Autos e trovas de Baltazar Dias, Funchal, Tipografia Comércio do Funchal, 1961,

p. XXXVI.
Uma versão deste romance pode ser encontrada neste site:
http://depts.washington.edu/hisprom/optional/balladaction.php?igrh=0088&publisher=Wolf%201856b
4 Ramon Menéndez Pidal, Romancero hispânico (hispano-portugués, americano y sefardí): teoría e historia, Madrid,

Espasa-Calpe, 1968, Tomo I, p. 64.


5 Almeida Garrett, Romanceiro, Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, Vol. III , 1963, ,
6 Ver Valdemar da Assunção Gonçalves, Teatro Popular Mirandês, Lisboa, Instituto de Desenvolvimento Social,

p. 41.
VERDADEIRA TRAGÉDIA DO MARQUEZ DE

MANTUA E DO IMPERADOR CARLOTO

MAGNO

A qual trata como Marquez de manta andando perdido na caçada achou a

Valdevinos ferido de morte E da justiça que por sua morte foi feita a D.

Carloto filho do imperador


NA QUAL FIGURAM AS SEGUINTES Era logar deshabitado
PERSONAGENS: Onde não há povoado
Ao que lhe for preguntado.
Marquez de Mântua
Valdevinos, seu sobrinho Grão mal é o caminhar
Um Pajem Por tão fragosa montanha
Dois embaixadores chamados Cansado assim sem companha
Duque Amão e o conde D. Beltrão Não tenho onde repousar
O Imperador Carloto Nesta serra tão estranha.
Ganalão
A Imperatriz Vejo o mato tão serrado
A mãi e esposa de Valdevinos Que fiz bem em me apear
E D. Carloto E meu cavalo deixar
Porque está tão cansado
Que já não podia andar.
Diz o Marquez fingindo andar perdido na caça
Agora vejo-me aqui
Fortunosa caçada é esta Nesta tão grande espessura
Que a fortuna me há mostrado Que nem eu me vejo a mim
Pois que por ser manifesta Nem sei da minha ventura.
Minha pena e gran cuidado
Me mostrou esta floresta. Nem menos será cordura
Repousar neste logar
Nunca vi tão forte brenha Nem sei onde possa achar
Desde que me acorde de mim Descanso a minha tristura.
Eu creio que Margasim
Fez esta serra de ardenha VALDEVINOS
Estes campos de Marlin1. Ho virgem minha senhora
Madre do rei da verdade
Quero tocar a bosina Por vossa grão piedade
Por ver se alguém me ouvirá Sede minha interssessora.
Mas cuido que não será Em tanta necessidade.
Porque minha gran mofina2
Comigo começou já. Ho suma regina pia
Radiante luz phebea
Todavia quero ver Custodia anima mea
Se mora alguém nesta serra Pois está na terra fria
Que me diga desta terra A alma de pesar cheia
Cuja é para saber Pois és amparo dos teus
Que quem pergunta não erra. Consola os desconsolados
Rainha dos altos céus
Por demais é o tanger Rogai ao meu senhor deus
Que perdoe os meus pecados.
1 A forma que se encontra na versão editada pela
Livraria Chardron é “Merlim”, ou seja a personagem
MARQUEZ
do Ciclo Arturiano, mago, profeta, conselheiro e Não sei quem ouço chorar
grão-druida. As referências a esta edição serão, E gemer de quando em quando
doravante, indicadas apenas pelas iniciais do autor: Alguém deve aqui estar
BD. Segundo se está queixando
2
Infelicidade, desgraça.
Deve ter grande pesar.
Madre minha muito amada
VALDEVINOS Que é do filho que paristes
Domine memento mei3 De quem ireis5 consolada
Lembrai-vos da minha alma De quem se há tornado nada
Pois que sois da gloria rei Quanta glória possuístes.
Nascido da flor da palma
Remédio da nossa lei. Já me não vereis reinar
Já me não dareis consselho
MARQUEZ Nem eu o posso tomar
Segundo dele se espera Que quebrado é o espelho
Aquele homem anda perdido Em que vos soieis olhar.
Ou por ventura ferido
De alguma besta fera. Já nunca me haveis de ver
Fazer justas e torneios
Quero ver este mistério Nem vestir nobres arreios
Que a fala me dá ousadia Nem cavaleiros vencer
Porque dois em companhia Nem tomar bandos alheios.
Tem grande refrigério
Para qualquer agonia. Já não tomareis prazer
Quando me vireis armado
VALDEVINOS Já vos não virão dizer
Minha esposa e senhora Nem louvar-me de esforçado.
Já não tereis em poder
Vosso esposo que assim chora Ó valentes cavaleiros
Pois a morte roubadora Reinaldos de Montalvão6
Vos roubou todo o prazer! Ó esforçado Roldão
Ó marquez dom Oliveiros
Ho vida ao meu viver D. Ricardo, D. Dodão.
Resplandecente nasciso4
Grão pena levo em saber D. Gaiferos, D. Beltrão
Que nunca vos hei-de ver Ó grão duque de Milão
Até o dia de juízo. Que é da vossa companhia
Duque de Naime de Baviera
Ho esperança por quem Que é do vosso Valdevinos
Tinha victória vencida
Ho minha glória meu bem Ho esforçado Guarinos
Porque não partis também Quem consigo vos tivera
Pois que sois a minha vida. Meu amigo Montesinos
Já nunca mais vos verei
Se não for de vossa vontade Dom Alonso de Inglaterra
De haver de mim compaixão Já nunca acompanharei
Mandai-me meu coração O conde Dirlos na guerra.
Minha fé e liberdade
Que está em vossa prisão. Ho esforçado Marquez
De Mântua teu senhorio
3 Esta expressão, atribuída ao bom ladrão, que assim Já não me poreis arnez
pede a Cristo que interfira por ele quando chegar ao Nem me vereis outra vez
paraíso, encontramo-la igualmente em Gil Vicente,
no Auto da Barca do inferno, na boca do Corregedor
Gosar vosso senhorio.
que, perante a condenação inevitável, pede a ajuda
divina. 5 Na versão impressa lê-se “éreis”.
4 Por “Narciso”. 6 Na transcrição aparece “monte Alvão”.
Não me negueis a verdade
Já nem quero vosso estado Contai-me vosso pesar
Já nem quero ser pessoa Que prometo ajudar
Nem mandar nem ter reinado Com toda a força e vontade.
Já não quero ter coroa
Nem quero ser venerado. VALDEVINOS
Muito me agasta, ó amigo
Ho Carloto Imperador Certamente o teu tardar
Senhor de mui alta sorte Diz se trazes contigo
Como sentireis grão dor Quem me haja de confessar.
Sabendo de minha morte
E quem dela é causador. MARQUEZ
Eu não sou quem vos cuidais?
Bem sei se for informado Nunca comi vosso pão
Do caso como passou Mas vossos gritos e ais
Que serei mui bem vingado Me trouxeram onde estais
Ainda que me matou Mui movido de compaixão;
Vosso filho mui amado Dizei-me vossa agonia
Que se remédio tiver
O príncipe D. Carloto Eu vos prometo fazer
Que era tão desigual Com que tenhais alegria.
Te moveu fazer mal
Em um logar tão remoto VALDEVINOS
A teu amigo leal. Meu senhor muitas mercês
Por vossa boa vontade
Alto Deus Omnipotente Bem creio que me fareis
Juiz direito sem par Muito mais do que dizeis
Sobre esta morte enocente Segundo vossa bondade.
Justiça queiras mostrar
Pois morro tão cruelmente. Mas minha dor é mortal
Meu remédio é só a morte
E fonte de piedade7 Porque estou parado tal
Arca da Santa Trindade Que nunca homem mortal
Onde o Verbo o Divino Foi tratado de tal sorte.
Trouxe a sua homanidade
Ó santa domina mea Tenho senhor vinte e duas
Ó virgem gracia plena Feridas todas mortais
Em que minha alma se recreia E passo penas tão cruas
Dai remédio à minha pena Que não poderão ser mais.
Pois que morro em terra alheia.
Há-me morto à traição
MARQUEZ O filho do Imperador
Senhor porque vos queixais? Carloto a grão8 sem razão
Quem vos tratou de tal sorte Mostrando-me todo o amor
E quem o que tal morte Mas não o tendo no coração.
Vos deu como publicais.
Muitas vezes requeria
Que assaz é este mal forte Minha esposa com maldade
Mas ela não consentia
7 Certamente por lapso do copista, foi eliminado o Pelo bem que me queria
primeiro verso desta estrofe que aparece na versão
impressa: “Oh Madre de Deus benigno”. 8 Por “gran”, como aparece na versão impressa.
Por sua grande bondade. Ho glória que vos sustém
Porque vos partis de quem
Carloto como mais pesar Sem vós não terá mais vida.
Como mais traidor que forte
Ordenou de me matar Ho desventurado velho
Cuidando com minha morte Captivo sem liberdade
Com ela haver de casar. Quem me pode dar conselho
Matou-me com tal falsia Pois quebrado é o espelho
Trazendo cinco consigo De minha grã claridade.
Sem eu trazer mais comigo
Que um PAJEM por companhia. Ho minha luz verdadeira
Trevas de meu coração
A mim me chamam Valdevinos Penas de minha paixão
Sou filho de el rei de Fracia9 Cuidado que me marteira
E primo de el rei da Grécia Tristeza fie tal traição!
E do forte de Montesinos
Que é herdeiro de Fracia. Porque não quereis falar
A este Marquez coitado
Dona Ermelinda formosa Que tio soias chamar
Minha madre natural Falai-me sobrinho amado
E Sibila minha esposa Não me façais rebentar
De graças especial
Mas com primores famosa. VALDEVINOS
Meu tormento tão molesto
Esta nova contareis Me faz não vos conhecer
A triste de minha madre Nem na fala nem no gesto
Que em Mantua achareis Nem entendo vosso dizer.
E ao honrrado Marquez
Meu tio irmão de meu padre. Se não for mais manifesto
Estou tão posto no fim
MARQUEZ10 Que não sei se sou alguém
Ho desastrado viver Nem mesmo conheço a mim
Ho amargorosa ventura Pois quem não conhece a si
Ho ventura sem prazer Mal conhecerá ninguém11.
Prazer cheio de tristura
Tristura que não ser. MARQUEZ
Como não me conheceis
Ho desventurada sorte Meu sobrinho Valdevinos
Ho sorte sem sofrimento Eu sou o triste Marquez
Desamparado tormento Irmão de El Rei D. Salinos
Dor muito pior que a morte Que era o pai que vos fez.
Morte de desabrimento.
Eu sou o Marquez sem sorte
Ho meu sobrinho meu bem Que devêra arrebentar
Minha esperança perdida Chorando a vossa morte
Por sem vida não ficar
9 Assim nos aparece quer na versão impressa quer Neste mundo sem deporte.
na dactilografada. Em outras versões podemos ler
quer “Trácia”, região que hoje pertence à Grécia,
que Dácia, que na geografia antiga correspondia à 11Este apelo, na boca do moribundo Valdevinos, é
terra dos daci ou getae, situada na Europa Central. também dirigido a todo o auditório / leitores para
10 Na versão impressa esta intervenção é atribuída, que cada um se conheça a si próprio antes de falar
certamente por lapso de impressão, a Valdevinos. do vizinho.
Ho triste mundo coitado Vem o “armitão” e o pajem. Diz o ermitão13:
Ninguém deve em ti fiar A paz de Deus sempre eterno14
Pois ês tão desventurado Seja com vosco irmão
Que o que tens mais exaltado Lembrai-vos da sua paixão
Mór queda lhe fazes dar. Que para nos livrar do inferno
Padeceu quanto a Varão.
VALDEVINOS
Perdoai-me senhor VALDEVINOS
A minha descortesia Com coisa mais não folgará
Que a minha grande agonia De vê-lo aqui chegado
Me pôs em tanto desvio Padre de Deus enviado
Que já vos não conhecia. Que se um pouco mais tardará
Não me achará neste estado15.
Não me queirais mais chorar
Deveis de considerar PAJEM
Que para isso é o mundo Ó que desastrada sorte
Que dobrais meu mal profundo12 Meu senhor Danes Ogeiro
Para meu bem e mal passar. Olhai vosso escudo forte
Olhai senhor vosso herdeiro
E bem sabeis que nascemos Em que extremo o pôs a morte.
Para ir a esta jornada
E que quanto mais vivemos Ho desditoso caminho
Maior ofensa fazemos Caça de tanto pesar
A quem nos criou de nada. Que cuidado16 de caçar
A morte a vosso sobrinho
Assim que necessidade Vieste, senhor, buscar.
Não tendes de me chorar
Pois que Deus me quiz levar ERMITÃO
No meio da minha idade A grão pressa que traria
Para mais que aproveitar. Não me deu senhor lugar
De conhecer nem falar
Mas que haveis de fazer A vossa grão senhoria
É por minha alma rogar Neste erro se há culpa
Porque o muito chorar Peço-lhe dela perdão
A alma não dá prazer Ainda que a discrição
Mas antes mui gran pesar. Sua me dará desculpa.

Quero-vos encomendar MARQUEZ


Minha esposa e minha madre Rogai a Deus, Padre honrrado
Pois que não tem outro padre Que me queira dar paciência
Que as haja de amparar
Se não vós como é verdade. 13 Conservámos a ortografia de “armitão” pois ela é

bem exemplificativa de que a “cópia” terá sido feita


Mas o que dá paixão por um mirandês, uma vez que essa é a forma
Em esta triste partida mirandesa.
É morrer sem confissão 14 A forma que nos aparece na versão impressa é

Mas se parto desta vida “sempiterno”.


15 Na versão de Baltazar Dias, as formas verbais
Deus receberá atenção. “folgará, tardará e achará”, desta estrofe, aparecem
no Pretérito Mais que Perfeito e não no Futuro do
12Este verso aparece repetido nas páginas três e Indicativo.
quatro, tratando certamente por lapso do copista. 16 Por “cuidando”.
Que o perdão é escusado Se há o filho de encomendar
Porque vossa diligência Depois que os santos for
Vos não deixa ser culpado. Sua vontade chamar.

ERMITÃO As mãos levante aos céus.


O filho de Deus enviado Faça confissão geral
Vos manda consolação Confessando-se a Deus
E pois que aqui sou chegado E à Virgem celestial
Quero ouvir de confissão E a todos os santos seus.
Este ferido e angustiado.
MARQUEZ
Cousa é mui natural Ho bonança aborrecida
A morte a toda a pessoa Ho desastrada fortuna
A todo o mundo em geral De prazeres grão tribuna
Pois que a nenhum perdoa Porque não desamparais
Não a tenhamos por mal. A quem tanto me importuna
Tristesa e desconfiança.
Porque o pecado de Adão
Foi tão fero e tão forte Contai-me PAJEM Burlor
Que não só na geração O caso como passou
Mas Deus que é a salvação Quem foi aquela traidor
Quiz também receber morte. Que matou o vosso senhor
Ou porque causa o matou.
E por tanto filho meu
Não se deve espantar
Da morte que Deus lhe deu PAJEM
Porque por provimento seu Ser-me-ia mui grão contado
Lha deu para o salvar. Se a sua gran senhoria
Não contasse o passado
Que já não dá galardão17 Eu sei certo o que faria
Senão tristesa e cuidado. O que não é esperado
Contra quem me deu estado
Enquanto o filho tem vida E feito a tantas mercês
Chame a Madre de Deus Nunca meu pai me fez
Aquela que foi nascida O que meu senhor amado
Sem pecado concebida E mais vós senhor Marquez.
E coroada nos céus.
Estando pois em Paris
Esta foi santificada O filho do Imperador
E visitada dos anjos Mandou chamar meu senhor
E em corpo e alma levada Nos passos da Imperatriz
À glória onde exaltada Falaram mui a sabor
Está sobre os arcanjos. O que falaram não sei
Se não que logo nessa hora
Assim que ao Redentor Sem fazer mais demora
E a esta Virgem sem par Com quatro atrás de si
Foram da cidade fora
17 Possivelmente por lapso do copista foram
Armados secretamente
ignorados três versos em relação à versão de BD,
Segundo depois ouvi
que são os seguintes: “Lembre-lhe sua paixão / Partimos todos daí
D’aqueste mundo coitado / Não engode o E D. Carloto presente
malvado.”
Também armado outro si. De quanto me ha preguntado
Outra coisa não direi
E tanto que aqui chegaram Mais do que lhe hei contado.
Neste vale de pesar
Todos juntos se apearam MARQUEZ
E fizeram-me ficar Quando sua magestade
Com os cavalos que deixaram. Justiça me não fizer
Com toda a rigoridade
E logo todos entraram A força de meu poder
Em este esquivo logar Cumprirei minha vontade
Onde meu senhor mataram
E depois de o matar ERMITÃO
Nos cavalos se tornaram. Já senhor se ha confessado
E fez actos de cristão
Como eu os vi tornar Morreu com tal contrição
Sentindo mui tal dor Que estou maravilhado
Temendo de lhe falar De sua gran discrição.
Não ousei de lhe preguntar
Onde estava meu senhor Não pode muito tardar
Vendo-os assim caminhar Segundo nele senti
Porque nenhum me falava Acabai de lhe falar
Quiz a meu senhor buscar Porque lhe quero rezar
Porque a meu coração me dava Os salmos de El Rei David..
Sobressaltos de pesar.
VALDEVINOS
Não o podia topar Não tomeis tio pesar
Porque a grande espessura Que me parto de vos ver
E a noite medrosa e escura Para nunca mais tornar
Me fazia não o achar Pois Deus me manda chamar
De que tinha gran tristura. E não posso mais fazer.

Buscando-o com gran paixão Torno-vos encomendar


Naquele lugar remoto Minha esposa e minha mãi
O achei desta feição Que as queirais consolar
Disse-me como à traição E a ambas amparar
O matara D. Carloto. Pois que não tem outro pai.

Perguntei porque razão Oração de VALDEVINOS


Triste cheio de agonias Em as tuas mãos senhor
Disse-me com aflição Encomendo meu espírito
Vai-me buscar confissão Pois que és salvador meu
Já se acabaram meus dias. Meu Deus e meu redentor.
Não me falte favor teu
Como tais novas ouvi Pois senhor
Com grande tribulação Me redemiste
É pesar de vê-lo assi Como Deus que és de verdade
Me parti logo daqui Senhor de toda a piedade
A buscar este Ermitão. Lembra-te desta alma triste
Cheia de toda a maldade
Isto é senhor o que sei Salve, Senhora benigna
Deste caso desastrado Madre da mesiricordia
Paz de nossa gran discordia As trevas de Faraó
Dos pecadores mesinha Venham já sobre mim só
Vida doçura e concórdia Pois minha luz se perdeu.
Spes nostra a ti envocamos
Salva-nos da escura treva Na luz do mais claro dia
A ti senhora chamamos Não posso encontrar claresa
Desterrados filhos de Eva Minha doce companhia
A ti virgem suspiramos Onde está vossa alegria
A ti gemendo e chorando Que me deixa tal tristesa!
Em aquestre lacrimoso
Vale sem nenhum repouso Ho velhice desastrada
Sempre Virgem a ti chamamos Sem glória e sem prazer
Que és nosso prazer e gozo. Para que me deixais ser
Para que sendo não sou nada
Ora pois nossa adevogada Nem desejo de viver?
Amparo da cristandade
Volve os olhos de piedade Porque não vens padecer?
A mim virgem consagrada Porque não vindes tormentos?
Pois que és nossa liberdade Para que são sofrimentos
Dá-me senhora virtude A que o não quer já ter
Contra todos meus inimigos Nem busca contentamentos?
Pois que és nossa a saúde
Teu favor rogo me ajude Para que quero razão
Nos temores e perigos Para que quero prodencia
Roga tu por mim senhora Nem saber nem discrição
Ó santa mãi de deus Para que quero a paciência
Em quem a minha alma adora Pois perdi consolação.
Pois que és rainha dos céus
E dos anjos soperiora. PAJEM
Ho meu senhor meu amado
Aqui expira Valdevinos e diz o Porque vos tornastes pó
MARQUEZ Porque me deixastes só
Neste mundo coitado
Ho triste velho coitado Com tal tristesa e dó.
Ho cãs cheio de tristura18
Ho doloroso cuidado Levareis-me em companhia
Ho cuidado sem ventura Pois sempre vos tive vivo
Sem ventura desastrado Ho minha grande alegria
Quebrem-se minhas entranhas Porque me deixair cactivo20
Rompa-se meu coração Metido em tanta agonia.
Com minha tribulação.
Meu senhor, minha alegria,
Chorem todas as companhas Dizei porque me deixais
Minha grande perdição Com tanta pena notória
Escurecem-se o sol com dó Lembrai-vos, tende memória
Caem as estrelas de céu19
da desgraça humana é um dos temas mais comuns
18 Na versão de BD lê-se “cãs cheias de trsitura”. da época. Recorde-se, a este propósito, o famoso
19 Na edição da Livraria Chardon todos estas formas soneto atribuído a Luís de Camões, por uns, e a
verbais − quebrem-se, rompam-se, chorem, escureça-se, Baltazar Estaco, por outros, “O dia em que nasci
caiam, venham − aparecem no imperativo. A moura e pereça”.
convocação dos elementos naturais como solidária 20 Por “captivo” ou “cativo”.
De que tantos21 desamparais. Aqui levam a Valdevinos à Ermida e entra o
Imperador e o Conde Ganalão e diz o
Ho que sem ventura Burlor IMPERADOR
De quem serás amparado
De quem terás o favor Certo, Conde Ganalão
Que tenha de teu senhor Mui grã perdas perdemos
Pois que já te ha faltado? Pesa-me no coração
Porque na corte não temos
ERMITÃO Reinaldos de Montalvão
Não tomeis filho pesar Nem o conde D. Roldão
Pois claramente sabeis Nem o Marquez Oliveiros
Que pelo muito chorar Nem o Duque de Milão
Não cobrais o que perdeis. Nem o infante de Gaifeiros
Deveis filho de cuidar Nem o forte Meredião.
Que nossa vida é um vento
Tão ligeiro de passar GANALÃO
Que passa em um momento Muito alto imperador
Por nós assim como o ar. Muito estou maravilhado
Quem viu o senhor infante Porque mostrais tal favor
Tão pouco a fazer guerra A quem vos há deshonrrado
E ser nele tão possante Com tanta ira e vigor23.
E agora em um instante
Ser tornado em escura terra; Que chamando-se Almasor
Diria com gran razão Com o seu rosto mudado
Que este mundo, coitado, Aquele falso traidor
Não dá outro galardão Com mui grande desonor
Senão tristesa e paixão Quis honrrar24 vosso estado
Como a vós outro foi dado Porque, senhor, não sentis
Olhai a El Rei Salomão Que neste malvado ladrão
O galardão que lhe deu Vos prendeu da sua mão
A Amon e Absalão Tomando-vos a Paris
E ao valente Sansão Com muito grande traição?
E ao forte Macabeu
Em a sacra escriptura Pondo-vos em Montalvão
Muitos mais podia achar Apesar do vosso Império
Se os quisesse achar22 Onde com grã vitupério
Mas vossa grande cordura Estivestes em prisão
Suprirá donde faltar Sem ter nenhum refrigério.
E pois que não tem já cura
O mal feito e o passado IMPERADOR25
Acabe a nossa tristura Eu me espanto D. Beltrão
E demos a sepultura De vos ver daquesta sorte
A este corpo já finada E a vos forte duque Amão
Convém que logo levemos Não é esta a disposição
Para que seja enterrado E trage da nossa corte.
E pode bem ser guardado
Naquela ermida que vemos 23Em BD lê-se “rigor”.
24“Desonrar”, em BD.
Até ser embalssamado. 25 Nesta versão parecem ter sido “esquecidos”

alguns versos assim como a informação cénica da


chegada dos dois embaixadores mandados pelo
21 Em BD lê-se “quantos desamparaias”. Marquez de Mântua, D. Beltrão e o Duque Amão,
22 “Contar” (BD).. que vêm vestidos de luto.
DUQUE Andando assim a caçar
Muito mais será espantado Da companhia perdido
Da nossa triste embaixada Foi per ventura topar
E do caso desastrado Com seu sobrinho ferido
O qual lhe será contado Quasi a ponto de expirar.
Se seguro nos é dado.
Bem pode considerar
IMPERADOR O gran pesar que teria
Bem o podeis explicar De se ver sem companhia
Sem ter medo nem temor E morrer era tal lugar.
Para que é assegurar
Pois sabeis que o embaixador A cousa que mais queria
Tem licença de falar. Perguntando-lhe a razão
Sendo dela mui ignoto
Diz o Duque à embaixada: Disse com grande paixão
Que o matara à traição
Quis, senhor, nossa mofina Vosso filho D. Carloto.
Que o infante Valdevinos
Primo do forte Guarinos O caso que o moveu
Filho da linda Ermelina Dar morte tão dolorosa
E do grande Rei Salinos A tão grande amigo seu
Fosse morto à traição Não foi outra, senhor meu
Na floresta sem ventura Salvo tornar-lhe a esposa.
A tão grande desventura
Haverá quem não procure Matou-o à falsa fé
De vingar tal perdição. Indo muito bem armado
Com quatro homens de pé
IMPERADOR Quem mata tão sem porquê
É certo que tão gran maldade Merece bem castigado.
Que o sobrinho do Marquez
É morto como dizeis? O Marquez Danez Ogeiro
Lha manda pedir senhor
DUQUE Justiça mui por inteiro
Pela maior falsidade Ainda que perca herdeiro
Que nunca ninguém tal fez. Ele perde sucessor.

IMPERADOR D. BELTRÃO
Saibamos como passou Não deve deixar passar
Este caso desastrado Tão grande mal sem o prever
Que quem tal senhor matou Porque deve de cuidar
E tal tirania obrou Se seu filho nos matar
Merece bem castigado. Quem nos deve defender.

DUQUE E mais lhe faço saber


Saberá vossa magestade Porque esteja aparelhado
Que em dez dias pode haver Se justiça não fizer
Que o Marquez foi à cidade Que o Marquez tem jurado
De Mântua com gran vontade De pôr armas a fazer.
A caça como sos faziam26.
O mui valente e temido
26“Como sohe fazer” (BD).
Reinaldo de Montalvão Como creio que será
Entre todos escolhido Nunca rei na cristandade
Está bem apercebido Fez tão grande crueldade
Como geral capitão. Como por mim se verá.

D. Crisão e Aguilante Por minha coroa juro


Com o forte D. Guarinos De cumprir e de manter
E o valente Montesinos Tudo que digo e procuro
Primo do morto infante Ao Marquez podeis dizer
Filho de El Rei D. Salinos Que ele pode vir seguro
E o mui gran Rei Jaião E todos quantos tiver
De D. Reinaldo cunhado Venham de guerra ou de paz
E o esforçado Dudão Assim como ele quiser
E o Gran duque de Milão E pois que justiça quer
E D. Richarte esforçado Com ela muito me praz.
O Marquez D. Oliveiros
E o famoso Durandarte Entra D. Carloto e diz:
E o infante D. Gaifeiros
E o mui forte Ricardo. Bem sei que com gran paixão
E outros fortes cavalheiros Está vossa magestade
Todos tem boa vontade Pela falssa informação
De ajudar ao Marquez Que de mim contra razão
Em esta necessidade Deram com grande falsidade.
Porque foi gran crueldade
A que vosso filho fez. Porque um filho de tal homem
E de tão grande geração
Evitai, senhor, tal dano Não deve sujar seu nome
Pois que sois juis sem par Em caso de tal traição.
Não vos mostreis inhumano
Acordai-vos de Trajano Por vida de minha madre
Em a justiça guardar Que se tão gran desonor
Assim que alto esclarecido Não castigar com rigor
Podoroso sem igual Que me será cruel padre
O que fez tão grande mal E não fiel julgador.
Bem merece ser punido
Por seu mandado Imperial IMPERADOR
E pois senhor ei27 propostas Não vos queirais desculpar
A causa porque viemos Pois que tendes tanta culpa
E sabei o que queremos. Que se o mundo vos desculpa
Mandai-nos dar a resposta Eu não vos hei-de desculpar.
Com que ao Marquez tornemos.
E portanto manda logo
IMPERADOR Que sejais posto a recado
Ho podoroso senhor Até ser determinado
Que grande é o vosso mistério Por concelho de meu povo
Pois para meu vitupério Se sois livre ou condenado.
Me deste tal sucessor
Que deshonrrasse este império. Mando que sejais levado
A minha gran fortaleza
Se o que dizeis é verdade E que lá sejais guardado
De cem homens de Estado
27 Por “eis”.
Até saber a certeza. Sem causa com tal crueza?

D.CARLOTO IMPERADOR
E como senhor não quer Quem me cá mandou recado
Vossa real majestade Não foi senão com certeza.
Saber primeiro a verdade
Senão mandar-me prender
Por tão grande falsidade! IMPERATRIZ
Por tal recado senhor
IMPERADOR Quereis tratar de tal sorte
Não vos quero mais ouvir Vosso filho é socessor
Levem-no logo à prisão Que depois de vossa morte
Onde eu o mando ir Há-de ser Imperador?
Porque tão grande traição
Não é para consentir. IMPERADOR
Em eu o mandar prender
Vós outros podeis tornar Não cuideis que o maltrato
E contar-lhe o passado Mas se ele o merecer
A quem cá vos quiz mandar Eu espero de fazer
Que o seguro que lhe hei dado A justiça de Torquato:
Eu o torno afirmar. Porque pai tanto podoroso
Sendo de tantos caudilho
Aqui vem a Imperatriz e diz: Se não for tão rigoroso
Nem ele será bom filho
Eu muito me maravilho Nem será rei justiçoso.
De vossa tão grande bondade
Sem razão nem verdade Que agora mal pecador
Tratais assim vosso filho Nem um rei nem julgador
Com tão grande crueldade. Faz justiça de maior
Mas antes é despresado
Olhe vossa magestade O pequeno com rigor.
Que é herdeiro principal
E que toda a cristandade Todo o mundo é afeição
Lho terá muito a mal. Julgam com vária remissa
O nobre que tem razão
IMPERADOR Algum tem opinião
A mim, senhora, convém De lhe trocar a justiça
Ser contra toda a traição Que conta eu posso dar
E se o vosso filho a tem Aos senhores dos altos céus
Castigá-lo-ei muito bem Se a meu filho não julgar
E esta é minha tenção. Como a outro qualquer dos meus
Assim que escusado é
E mais eu vos certifico Buscar este intesssessor
Que com direito e rigor Porque Deus de Nazaré
Hei-de castigar o iníquo Não me fez tão gran senhor
Ora seja pobre ou rico Para minha alma perder.
Ora servo ou gran senhor.
IMPERATRIZ
IMPERATRIZ Ai triste de mim coitada28
Como quer vossa grandeza
Infamar o nosso estado 28Este verso faz eco de um outro que se encontra
em muitos “romances” populares tal como no
Para que quero viver Para jamais vos cobrar
Pois que sempre hei-de ser Filho desta alma mesquinha
De meu filho tão penada Dos meus olhos claridade
Como tão triste mulher Onde estais minha mesinha30
Pois tão triste hei-de ser Filho de minha saúde
Por meu filho muito amado Meu prazer e vida minha.
Nunca tomarei prazer
Senão tristeza e cuidado. Diz a esposa por nome Sibila:

IMPERADOR Que é de vós meu coração


Não façais tantos extremos Que é da minha liberdade
Pois dizeis que tem desculpa Espelho da cristandade
Que antes que sentença demos Quem vos matou sem razão
Primeiro todos veremos Com tão grande crueldade?
Se tem culpa ou não tem culpa
Mostrai maior sofrimento Quem vos apartou de mim
Que o caso é desastrado Meu querido e meu esposo
E hi-vos a vosso aposento Porque me deixais assim
Que ele não será culpado. Com cuidado mui penoso?

Aqui se vai a Imperatriz e vem a “mãi” e esposa Ho minha triste saudade


de Valdevinos e diz a “mãi”: Ho meu esposo e senhor
Minha alegria e vontade
Ho coração lastimado Escudo31 da cristandade
Mais triste que a noite escura Das tristes consolador!
Ho dolorosa tristura Que farei triste coitada
Cuidado desesperado Mais que uma32 nascida?
E fortunosa ventura! Miserável, angustiada
Para que quero ter mais vida
Ho vida da minha vida Pois minha alma é apartada.
Alma deste corpo meu
Ho desditosa perdida Ho minha alma33 variável
Ho sem ventura nascida Triste cruel matadora
A mais que nunca nasceu! De prazeres roubadora
Ho filho meu muito amado Inimiga perdurável
Minha doce companhia Mata-me se queres agora
Meu prazer, minha alegria
Minha tristeza e cuidado Diz Hermelina ao Imperador:
Minha saborosa29 lembrança
Que serei eu sem os ver Se vossa Gran Magestade
Filho de minha alegria Não der castigo direito
Ho meu descanso e prazer A quem tanto mal há feito
Porque me deixais viver Não será juiz perfeito.
Vida com tanta agonia
Adonde vos acharei Não olhe sua grandesa
Consolo de meu prazer
Onde vos irei buscar 30 “Mezinha” (BD).
31 No texto lê-se “escuda”.
Pois que perdido vos hei 32 “Nenhuma” (BD).
33 As palavras “minha alma” estão aqui por lapso

conhecido por “D. Infanta”, ou na célebre cantiga pois foram copiadas do verso anterior, sendo
de D. Sancho I: “Ai de mim, coitada…”. trocadas com a palavra “fortuna” que se encontra
29 No texto aparece “soberosa”. no texto de B. Dias.
Sua madre dolorosa Que por isso há-de viver
Nem sua tanta tristeza Que aquele que faz as leis
Mas olhe tão gran princesa É obrigado a manter.
Como esta sua esposa.
Assim que por bem querer
IMPERADOR Amisade nem respeito
Faz-me tanto entristecer Como agora sohem fazer
Este tão gran vitupério Não hei-de negar direito
Que mais quisera perder A quem direito tiver
Juntamente meu império E bem vos podeis tornar
Que tal meu filho fazer Fazei certo o que dissestes
Mas se tal verdade é E não torneis tal pesar
Como já sou informado Por que o bem que já perdestes
Que tal castigo lhe dê Não o cobrais com chorar.
Que seja bem castigado.
HERMELINA
SIBILA Senhor, nós outras nos pomos
Seja justiça guardada Em mãos de vossa grandeza
A esta órfã sem marido Olhai bem senhor quem fomos
Viúva desconsolada34 E de que linhagem somos
Tão triste e desconsolada Pois Deus nos deu tal nobreza.
Mais que tantas tem nascido
Olhai senhor tão grande mal SIBILA
Como vosso filho há feito Olhai os serviços dignos
E não queirais ter respeito Que tanto tempo vos fez
Ao amor paternal Meu esposo Valdevinos
Pois que não é por direito. Também seu tio Marquez
E como foram contínuos.

IMPERADOR Aqui se vai Hermelina e Sibila e virá Reinaldos


Senhora, não duvideis com uma carta que tomaram a um PAJEM de D.
Que eu farei o que é hei jurado Carloto e diz REINALDOS DE
Se é verdade o que dizeis MOLTALVÃO:
Porque cumpre o meu estado
De fazer o que quereis O Sumo Rei dos Senhores
Que mais quero ter comigo Que morreu crucificado
Fama de rigoridade Em poder dos fariseus
Que deixar de dar castigo Acrecente36 vosso estado
A quem cometeu tal maldade. E vos livre dos traidores.

Para que é ser caudilho IMPERADOR


De tanto povo e tão grande Mui valente e esforçado
E imperador chamado Reinaldeos de Montalvão
Senão julga-se35 meu filho Vós sejais também chegado
Como qualquer estragado! Como a sombra no Verão.

Não cuidem duques nem reis Muito estou maravilhado


Que por meu herdeiro ser Invencível e mui forte
De ver-vos assim armado
34“Desamparada” (BD).
35 Confusão com o imperfeito do conjuntivo 36Em B. Dias lê-se “acrescente”. De notar que esta
“julgasse”, forma que se encontra em BD. corresponde à forma mirandesa (< acrecentar).
Sabendo que em minha corte Confessa toda a traição
Nunca fostes maltratado. A qual fez da sua mão
E um pajem a levava
REINALDOS Para o conde D. Roldão
Senhor não seja espantado Que na cidade de Boava
De ver-me assim desta sorte Faz a sua habitação.
Porque com todo o cuidado
Ganalão vosso cunhado E como não há falsia
Sempre me procura a morte. Que se possa esconder
Tinha o Marquez espia
Bem sabeis que sem razão Porque queria saber
Com vontade me37 maligna O que D. Roldão faria.
Fez matar com tão38 traição
A Tiranes e a Erotina Esse pajem embossado
E a mim já quis matar Sem suspeita nem revés
Muitas vezes com maldade Ia mui determinado
E para mais me danar Onde logo foi tomado
Fez a sua magestade E levado ao Marquez.
Mil vezes me desterrar.
Nela contava a tenção
O grande mal que me quer Porque o matara à traição
De todo o mundo e sabido Isto é senhora a verdade
E por isso quis trazer O que vos mando dizer.
Armas para ofender Se o que digo é falsidade
Antes que ser ofendido. Que por isso a quiz trazer
A letra a bem conhecer
Mas deixando isto assim Que é este o seu sinal
Guardado para seu lugar, Pois quem faz tão grande mal
Onde se há-de vingar; Bem merece padecer
Vos quero senhor contar, Morte justa corporal.
Notório a todo o cristão
É o pesar lastimoso IMPERADOR
Do Marquez Danés Ogeiro Se a tal carta disser
Que tem com justa razão Não se há mister mais provar
Pela morte de herdeiro. Nem mais certeza fazer
Se não logo executar
Nesta nobre corte estão A pena que merecer.
Muitos mui nobres senhores
Que sabem que D. Beltrão E portanto sem deter
E o nobre duque Amão Leia-se publicamente
Foram seus embaixadores Ante esta nobre gente
Também este é sabedor Porque todos possam ver
Das respostas que lhe deste Vossa verdade evidente.
E mais de como prendestes
Vosso filho socessor. Carta de D. Carloto a D. Roldão:39

Do qual está mui contente Caudilho de grão poder


De tê-lo posto em prisão Capitão de cristandade
Porque na carta presente Esta vos quis escrever

37 “Mui”(BD). 39No nosso texto lê-se: “Carta de D. Carloto e de


38 “Gran” (BD). D. Roldão”.
Para vos fazer saber Pois o signal conhecemos
Minha gran necessidade. E pois vemos que confessa
De mais prova não curemos
Porque o verdadeiro amigo Nem vos façais mais detença
Há-de ser no coração E pois já tendes licença
Assim como fiel irmão Podeis dizer ao Marquez
E não há-de temer perigo Que venha ouvir a sentença.
Por salvar quem tem razão.
Ir-se-ha Reinaldos e vem a Imperatriz vestida de dó
Porque sabereis senhor e diz o IMPERADOR:
Que me sinto mui culpado
Como quem foi matador Senhora já não dirão
E temo ser condenado Que fui eu mal informado
De meu padre Imperador. Nem que o prendo sem razão
Pois por sua confissão
Eu confesso que pequei Vosso filho é condenado.
Pois com vontade danosa
A Valdevinos matei Vedes a carta presente
Amor me fez com que errei Que foi feita de sua mão
E o primor da sua esposa. Para o conde D. Roldão
Em a qual mui largamente
O Imperador meu padre Declara toda a traição.
Me mandou preso guardar
E nunca quiz atentar IMPERATRIZ41
Os roubos40 da minha madre Eu muito me maravilho
A ninguém quiz escutar Do que senhor me as42 contado
E o Marquez tem jurado Mas pois ele é confessado
De não vestir nem calçar Melhor é morrer o filho
Nem entrar no povoado Que deshonrrar o Estado.
Até me ver justiçar.
Mas a dor do coração
Tenho por acusadores Sempre me há-de ficar
A Reinaldos de Montalvão Peça-me com afeição
O seu padre Duque Amão E que lhe busque salvação
E muitos grandes senhores E que o queira escutar.
O grão Duque de Milão
Com o forte Montesinos IMPERADOR
Que é primo de Valdevinos Melhor é que o sucessor
Assim que todos me são Padeça morte sentida
Acusadores contínuos. Que ficar o pai traidor
Que será tocar o honor43
Pois tantos contra mim são Pela deshonrra crescida
Eu vos rogo, como amigo, Também eu padeço dor
Que vós queirais ser comigo Também eu sinto paixão
Porque tendo D. Roldão Também eu lhe tenho amor
Não temo ninhum perigo. Mas antes quero razão

IMPERADOR 41 Certamente por lapso do “copista”, na nossa


Antes que algum mal cresça versão, esta intervenção é também atribuída ao
Façamos o que devemos Imperador e a seguinte à Imperatriz.
42 “Has” (BD).
40 Por “rogos”, tal como se lê na versão impressa. 43 “Trocar o honor” (BD).
Que amisade nem favor. Que dá afeição voluntária.

IMPERATRIZ Como faz vossa grandeza


Pois que não pode escapar Com seu filho socessor
Eu não consinto nem quero Assim te digo senhor
Que vós o hajais de julgar Que estima mais a nobreza
Porque vos podem chamar Que amisade nem favor.
Muito mais pior que Nero.
IMPERADOR
IMPERADOR Não curemos de falar
Não vivais em tal engano Em cousa tão conhecida
Que também foram caudilhos Porque nesta breve vida
O grão Torquato e Trajano Havemos de procurar
E quiseram com grão dano Pela eterna e comprida
Ambos justiçar seus filhos. Para sentir grão pesar
Vós tendes razão infinita
Pois que menos farei eu E também de me vingar
Tendo tão grande estado Pois foi justa a vossa vinda
A quem com razão culpado Bem vimos a vossa embaixada
Em maior caso é que o seu? E a causa dela proposta
Foi de nós mui bem olhada
E portanto eu vos rogo E não menos foi mandada
Que não tomeis tal pesar Mui convencível resposta
Porque com vos enojar E vimos vossa atenção
Dá-se grão tristeza ao povo. E soubemos vosso voto
E vemos que tendes razão
IMPERATRIZ Pela grande informação
Eu cumprirei seu mandado Do Príncipe D. Carloto
Porque vejo que é razão E vimos a confissão
Mas sempre meu coração De D. Carloto também
Terá tristeza e cuidado E sabemos a traição
E grande tribulação. Como na carta contém
Que mandava a Roldão
Aqui vai a Imperatriz e vem o Marquez de De tudo certeficado
Mântua vestido de dó e diz o MARQUEZ: Eu condeno a D. Carloto
Tudo o que tenho mandado.
Bem parece alto senhor
Que vos fez deus sem segundo Vem o PAJEM da Imperatriz dizendo:
E de todos superior
Dos maiores o melhor A Imperatriz, senhor,
Rei e monarca do mundo. Está tão amortecida
De grande paixão e dor
Porque vós, senhor, sois tal Que não tem pulso nem cor
Que com razão e verdade Nenhum signal de vida
Sustentais cristandade Nenhum remédio lhe vem
Em justiça universal. Senão nela padecer
Sem lhe poder-mos44 valer
A qual para salvação E segundo dela queremos
Vos é muito necessária Mui pouco há-de viver.
Porque convém ao cristão
Que o uso mais de razão
44 Por “podermos”.
IMPERADOR
Eu muito me maravilho
De sua gran descripção45
Mais sinto sua paixão
Do que a morte de seu filho
Não me quero mais deter
Quero a ir consolar
Pois tanto lhe faz mister
Não sei porque é enojar
Por justiça se fazer.

Aqui se vai o Imperador e virá Reinaldos com o


Algós o qual trás a cabeça de D. Carloto e diz
Reinaldos:

Já agora senhor Marquez


Vos podeis chamar Vingado
Porque assaz é castigado
O que tanto mal vos fez
Pois que morreu degolado
Fazei por vos alegrar
Dai graças ao redenptor
Pois assim nos quiz vingar
Sem nenhum de vós perigar
E com mais vosso valor.
FIM.

45 “Discrição” (BD).

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