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“a colocar as perguntas certas” (p. 368). espaço com as imagens, a intenção não
Ainda que a hesitação e a contradição foi mais que aproximar o texto das mi-
acompanhem seus passos, Maria Eugénia nhas notas do texto do caderno, e com
é uma heroína modelar, que se integra em isso fazer uma espécie de vénia a este últi-
uma obra pouco condescendente à atri- mo” (p. 24), os documentos de arquivo
buição de exemplaridade a suas persona- são objeto de um enérgico escrutínio,
gens. João Paulo busca neste romance, pois representam o modo como o tempo
enfim, detectar as “subtilezas que distin- é instrumentalizado segundo interesses
guiriam aquelas mulheres” (p. 179) e, por específicos. Apesar de tentadores, pela
essa via, traçar o painel de um passado abertura que favoreciam à pesquisa sobre
mais “rendilhado” do que o propagado o caderno de Maria Eugénia, os arquivos
pelos discursos do presente. Podemos estavam “pejado de armadilhas” (p. 141):
afirmar inclusive que Rainhas da Noite por um lado, criavam a ilusão de tudo
dialoga, no que tange à temática, com abrangerem, mas, por outro, desconside-
um posicionamento que se tem robuste- ravam como “se escoam entretanto, e se
cido no pensamento crítico e artístico perdem, os ódios e os amores. Os segre-
dos últimos anos, especialmente em Por- dos” (p. 189). Por privilegiarem as narra-
tugal: o de ponderar a experiência colo- tivas hegemônicas, “destrinçando quem
nial pelo olhar feminino para, através pertencia ao passado e de quem era o fu-
desse ângulo que tão pouco interesse des- turo” (p. 256), esses documentos distor-
pertou na historiografia, sondar alguns ciam o elo que poderia haver entre tempo
matizes do passado e identificar certos e realidade: “Num deles, o objeto é por
pontos cinzentos no interior da camada exemplo um Bernardo M’Boola desgasta-
privilegiada. do, trémulo e doente, enquanto no se-
A questão do tempo e de seu manu- guinte o mesmo régulo é ainda jovem,
seamento para fins diversos é, com efeito, ingénuo e confiante” (p. 219). Enquanto
uma preocupação que atravessa o imagi- “fábrica de papéis, mas empenhada em
nário intelectual do autor moçambicano. trocar essa atividade pela produção do es-
Além de explicitada (“O mundo, velho quecimento” (p. 290), o arquivo passa a
ou novo, é o mesmo. Os que dizem o ser lido como um lugar de sujeira. As ra-
contrário são papagaios que vomitam tazanas que por lá pululam devem ser,
uma retórica oca e mentirosa” – p. 245- por isso, interpretadas tanto em seu senti-
246) por um narrador que roça a impaci- do literal quanto metafórico. O terceiro
ência por se sentir atropelado pelo “circo recurso utilizado, a testemunha, revela-se
insano” (p. 358) do presente, ela é com- o mais complexo de todos. Travessa
plementada neste romance por uma fina Chassafar, empregado da Casa Quinze e,
reflexão sobre os “reforços externos” que, depois, de Maria Eugénia, estabelece,
neste caso, são utilizados para a leitura do como já referido, o elo entre passado e
passado. Se as fotos visam mostrar que “o presente. O conhecimento que possuía,
meu texto não está isento de vulnerabili- exterior ao do caderno, e a profissão que
dades” e que, “ao obrigá-lo a partilhar o exercera (“nada melhor que os criados
para espreitar atrás das barreiras erigidas buscarem um sentido que as salve da inu-
em torno daqueles pequenos mundos tilidade. Em segundo, o extremo con-
privados” – p. 136) o tornava “numa es- temporâneo: aglutinando e desenvolven-
pécie de senhor todo-poderoso” (p. 96). do a narrativa primeira, o tempo atual
Contudo, seus encontros com o narrador abriga o abandono institucionalizado e a
são marcados pela oscilação característica intensidade contraditória dos não-lugares
de quem encontra na gestão da memória urbanos, a dinâmica da ostentação políti-
um mecanismo de defesa e, simultanea- ca e do desleixo civil e, sobretudo, a irri-
mente, um caminho para a transforma- tabilidade de um narrador perante o
ção. A complexidade desse encontro será mundo que observa e o observa. De fato,
reiterada pelo narrador, que assume com o distanciamento entre o narrador e o es-
insistência e de modo desabrido, pela ad- paço exterior é um traço que, perpassan-
jetivação, sua distância para com o uni- do a obra de João Paulo Borges Coelho,
verso cultural de Chassafar: “sua lógica se agiganta neste romance.
enigmática” (p. 66); “punha em funcio- Nesta narrativa coral que baralha as
namento a sua curiosa maneira de lem- fronteiras do gênero (diário, crônica, en-
brar” (p. 186); “Na sua maneira circular saio, romance, romance histórico, ro-
de dizer as coisas” (p. 250). mance policial) demarcando gêneros (fe-
Dois tempos, em suma, correm em minino e masculino), e entrecruza,
paralelo no romance. Em primeiro lugar, reavaliando-as, diversas fontes de investi-
o lento e arrastado período colonial de gação (caderno de memórias, fotografias,
Moatize, composto por fantasmas, lutas arquivo, testemunha), João Paulo Borges
surdas e gestos de diferenciação que, se Coelho questiona a hierarquia e a legiti-
por um lado, confirmam a contradição midade dos relatos sobre a passagem do
de um universo construído à volta de cas- tempo, desempoeira do passado algumas
tas, por outro, visam tergiversar alguns linhas de continuidade com o presente e
dogmas erigidos no período que se seguiu radicaliza um posicionamento intelectual
à independência. Trata-se de um tempo que, partindo da e celebrando a literatu-
marcado pela violência intracomunitária, ra, faz da discussão sobre a memória e a
que se indiciam nos tensos chás da Casa história sua pedra angular.
Quinze e se ampliam pelos rumores que
“se espevitam e crescem neste lugar, como
pequenos riachos serpenteando, achando Referências bibliográficas:
caminhos entre as pedras para poderem
engrossar” (p. 127-128), mas também COELHO, João Paulo Borges. Rainhas da Noi-
pela natureza dessas rainhas da noite que, te. Lisboa: Caminho, 2013. Nome: (Uni-
como a flor que inspira o título do ro- versidade Federal do Rio de Janeiro).
mance, exalam mistérios que impedem
sua totalização, são diversas e, pelo me-
nos no quadro daquele limitado horizon-
te social, se mostram inquietas a ponto de