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RAINHAS DA NOITE tora, na página de necrologia do jornal

Notícias. Eis aí os três protagonistas da


COELHO, João Paulo Borges. Lisboa: história: uma narradora vinda do passa-
Caminho, 2013, 376 p. do, um narrador inquieto mergulhado
no presente e uma testemunha que tran-
Nazir Ahmed Can* sita como pode entre tempos.
Em um movimento raro na obra de
Rainhas da Noite, do moçambicano João João Paulo Borges Coelho, mas com a de-
Paulo Borges Coelho, dá continuidade a senvoltura que o caracteriza, o narrador
um projeto artístico que, a despeito de cederá sua voz a uma figura feminina do
seu aparecimento tardio, em 2003, rapi- passado, regressando no final de cada um
damente se impôs como um dos mais dos nove capítulos que se seguem ao Pró-
instigantes dos contextos literários de lín- logo, em uma pequena seção intitulada
gua portuguesa. Ambientado em dois es- “Notas”. No fito de interpretar as labirín-
paços, Moatize e Maputo, e em dois perí- ticas linhas do caderno, bem como as he-
odos, o colonial e o pós-colonial, o sitações, contradições e não-ditos de Ma-
romance descreve o modo como um ca- ria Eugénia, repensa os jogos de poder e
derno de memórias, escrito por Maria até mesmo o horizonte de possíveis de
Eugénia Murilo, personagem recém-che- uma minúscula comunidade que gravita
gada da Metrópole nos estertores da dé- em torno da Companhia carbonífera de
cada de 50, e encontrado pelo narrador Moatize. Uma decisiva divisão se anuncia
em um mercado informal da capital cin- nas memórias: enquanto os homens mos-
quenta anos depois, dá lugar a uma inves- travam-se “entorpecidos pelo trabalho e
tigação sobre o tempo e suas formas de por uma espécie de ingenuidade que os
confiscação. O narrador, como se explici- fazia sentirem-se responsáveis por todo
ta no Prólogo, pressente nesse caderno a aquele mundo, mas nada sabendo afinal
chave para um enredo. O que desenca- o que verdadeiramente acontecia e im-
deia seu empreendimento, no entanto, é portava” (p. 118), as mulheres sofriam
o anúncio da morte de Maria Eugénia, uma espécie de degradação, pois viviam
publicado alguns meses depois por Tra- em um lugar onde lhes “era vedada a pos-
vessa Chassafar, antigo empregado da au- sibilidade de exercerem a sua função mais
fundamental, precisamente a de serem
* Professor Adjunto de Literaturas Africanas de Lín- mulheres” (p. 71). A personagem-narra-
gua Portuguesa, na Faculdade de Letras da Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro.
dora não se referia, porém, às mulheres

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negras, escassamente inscritas no roman- outros romances (As Duas Sombras do


ce, e sempre a partir da perspectiva exter- Rio, Crónica da Rua 513.2, As Visitas do
na de quem as vê trabalhar, nem às mu- Dr. Valdez), sua lembrança rondará os re-
lheres da Metrópole, que dificilmente cantos mais recônditos das restantes per-
acederiam em sua terra aos privilégios do sonagens, acentuando os segredos de
mundo colonial, mas à “nossa comunida- uma narrativa que, com efeito, examina
de” (p. 44), isto é, às mulheres “como nós silêncios e silenciamentos. Por ter desnu-
que, uma vez aqui chegadas nem sequer dado a “extrema arbitrariedade de Anne-
da casa podiam cuidar” (p. 71-72). As- marie Simon e [a] extrema cobardia da
sim, embora se situe nesse tempo de as- pequena comunidade” (89), Agnès inspi-
sombrosas fendas em que “a raça contava rará a trajetória de outras duas mulheres,
porventura mais que tudo o resto” (p. 52- Suzanne Clijsters e Maria Eugénia. A pri-
53), e nesse espaço onde o “chão ruía a meira, que tinha na compatriota sua
passos largos” (p. 155) devido à contesta- principal referência, procurava distan-
ção que se iniciava contra a ordem vigen- ciar-se do “ambiente afetado que reinava
te, após a administração decidir explorar na sala da Casa Quinze” (p. 43). Todavia,
o algodão, em detrimento do milho, agu- com o passar do tempo, deixa notar que
dizando desse modo o abismo entre pa- “mais que descobrir pretendia impressio-
trões e camponeses, Rainhas da Noite re- nar”, tornando-se “vítima do seu hedo-
alçará o paradoxal lugar das mulheres nismo” (p. 179) e resvalando para aquilo
brancas e as formas de violência intraco- que teorizava em suas conversas com Ma-
munitária por elas vividas em Moatize. ria Eugénia: o tédio, “esse caminho a pas-
O palco principal dessas figuras sos largos para a degradação” (p. 72). A
desbotadas no e pelo tempo será a Casa narradora das memórias, por sua vez, será
Quinze, onde vivem o senhor Simon, vista pelo narrador das “Notas” como
aristocrata belga, diretor-geral da Com- uma espécie de arquétipo da singularida-
panhia, e sua esposa Annemarie, persona- de, como a face de um passado desconsi-
gem influente, aracnídea, que toma todas derado pela contemporaneidade moçam-
as decisões importantes daquele reduzido bicana. De resto, o tão característico
núcleo. É ela a base da violência psicoló- poder demiúrgico da figura autoral em
gica de que foi alvo, entre outros, Agnès João Paulo Borges Coelho, que neste ro-
Fink. Pianista premiada em Bruxelas, Ag- mance volta a erguer espiões do passado
nès abandonou a Bélgica para acompa- para condenar o presente, não impede
nhar o marido em sua aventura africana, que, pela primeira vez em sua obra, uma
tendo depois se rebelado contra a paz po- personagem se sobreponha, em grau de
dre do ambiente de Moatize. Seu desapa- importância, à figura do narrador. Maria
recimento é o episódio que mais envergo- Eugénia, detentora de uma sensibilidade
nha o microcosmo colonial dessa capaz de abandonar “a lógica para seguir
localidade situada na província de Tete. um fio misterioso”, tendo assim chegado
De maneira fantasmática, estratégia utili- “à música das palavras”, conduz o narra-
zada por João Paulo Borges Coelho em dor a interrogar a história moçambicana,

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“a colocar as perguntas certas” (p. 368). espaço com as imagens, a intenção não
Ainda que a hesitação e a contradição foi mais que aproximar o texto das mi-
acompanhem seus passos, Maria Eugénia nhas notas do texto do caderno, e com
é uma heroína modelar, que se integra em isso fazer uma espécie de vénia a este últi-
uma obra pouco condescendente à atri- mo” (p. 24), os documentos de arquivo
buição de exemplaridade a suas persona- são objeto de um enérgico escrutínio,
gens. João Paulo busca neste romance, pois representam o modo como o tempo
enfim, detectar as “subtilezas que distin- é instrumentalizado segundo interesses
guiriam aquelas mulheres” (p. 179) e, por específicos. Apesar de tentadores, pela
essa via, traçar o painel de um passado abertura que favoreciam à pesquisa sobre
mais “rendilhado” do que o propagado o caderno de Maria Eugénia, os arquivos
pelos discursos do presente. Podemos estavam “pejado de armadilhas” (p. 141):
afirmar inclusive que Rainhas da Noite por um lado, criavam a ilusão de tudo
dialoga, no que tange à temática, com abrangerem, mas, por outro, desconside-
um posicionamento que se tem robuste- ravam como “se escoam entretanto, e se
cido no pensamento crítico e artístico perdem, os ódios e os amores. Os segre-
dos últimos anos, especialmente em Por- dos” (p. 189). Por privilegiarem as narra-
tugal: o de ponderar a experiência colo- tivas hegemônicas, “destrinçando quem
nial pelo olhar feminino para, através pertencia ao passado e de quem era o fu-
desse ângulo que tão pouco interesse des- turo” (p. 256), esses documentos distor-
pertou na historiografia, sondar alguns ciam o elo que poderia haver entre tempo
matizes do passado e identificar certos e realidade: “Num deles, o objeto é por
pontos cinzentos no interior da camada exemplo um Bernardo M’Boola desgasta-
privilegiada. do, trémulo e doente, enquanto no se-
A questão do tempo e de seu manu- guinte o mesmo régulo é ainda jovem,
seamento para fins diversos é, com efeito, ingénuo e confiante” (p. 219). Enquanto
uma preocupação que atravessa o imagi- “fábrica de papéis, mas empenhada em
nário intelectual do autor moçambicano. trocar essa atividade pela produção do es-
Além de explicitada (“O mundo, velho quecimento” (p. 290), o arquivo passa a
ou novo, é o mesmo. Os que dizem o ser lido como um lugar de sujeira. As ra-
contrário são papagaios que vomitam tazanas que por lá pululam devem ser,
uma retórica oca e mentirosa” – p. 245- por isso, interpretadas tanto em seu senti-
246) por um narrador que roça a impaci- do literal quanto metafórico. O terceiro
ência por se sentir atropelado pelo “circo recurso utilizado, a testemunha, revela-se
insano” (p. 358) do presente, ela é com- o mais complexo de todos. Travessa
plementada neste romance por uma fina Chassafar, empregado da Casa Quinze e,
reflexão sobre os “reforços externos” que, depois, de Maria Eugénia, estabelece,
neste caso, são utilizados para a leitura do como já referido, o elo entre passado e
passado. Se as fotos visam mostrar que “o presente. O conhecimento que possuía,
meu texto não está isento de vulnerabili- exterior ao do caderno, e a profissão que
dades” e que, “ao obrigá-lo a partilhar o exercera (“nada melhor que os criados

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para espreitar atrás das barreiras erigidas buscarem um sentido que as salve da inu-
em torno daqueles pequenos mundos tilidade. Em segundo, o extremo con-
privados” – p. 136) o tornava “numa es- temporâneo: aglutinando e desenvolven-
pécie de senhor todo-poderoso” (p. 96). do a narrativa primeira, o tempo atual
Contudo, seus encontros com o narrador abriga o abandono institucionalizado e a
são marcados pela oscilação característica intensidade contraditória dos não-lugares
de quem encontra na gestão da memória urbanos, a dinâmica da ostentação políti-
um mecanismo de defesa e, simultanea- ca e do desleixo civil e, sobretudo, a irri-
mente, um caminho para a transforma- tabilidade de um narrador perante o
ção. A complexidade desse encontro será mundo que observa e o observa. De fato,
reiterada pelo narrador, que assume com o distanciamento entre o narrador e o es-
insistência e de modo desabrido, pela ad- paço exterior é um traço que, perpassan-
jetivação, sua distância para com o uni- do a obra de João Paulo Borges Coelho,
verso cultural de Chassafar: “sua lógica se agiganta neste romance.
enigmática” (p. 66); “punha em funcio- Nesta narrativa coral que baralha as
namento a sua curiosa maneira de lem- fronteiras do gênero (diário, crônica, en-
brar” (p. 186); “Na sua maneira circular saio, romance, romance histórico, ro-
de dizer as coisas” (p. 250). mance policial) demarcando gêneros (fe-
Dois tempos, em suma, correm em minino e masculino), e entrecruza,
paralelo no romance. Em primeiro lugar, reavaliando-as, diversas fontes de investi-
o lento e arrastado período colonial de gação (caderno de memórias, fotografias,
Moatize, composto por fantasmas, lutas arquivo, testemunha), João Paulo Borges
surdas e gestos de diferenciação que, se Coelho questiona a hierarquia e a legiti-
por um lado, confirmam a contradição midade dos relatos sobre a passagem do
de um universo construído à volta de cas- tempo, desempoeira do passado algumas
tas, por outro, visam tergiversar alguns linhas de continuidade com o presente e
dogmas erigidos no período que se seguiu radicaliza um posicionamento intelectual
à independência. Trata-se de um tempo que, partindo da e celebrando a literatu-
marcado pela violência intracomunitária, ra, faz da discussão sobre a memória e a
que se indiciam nos tensos chás da Casa história sua pedra angular.
Quinze e se ampliam pelos rumores que
“se espevitam e crescem neste lugar, como
pequenos riachos serpenteando, achando Referências bibliográficas:
caminhos entre as pedras para poderem
engrossar” (p. 127-128), mas também COELHO, João Paulo Borges. Rainhas da Noi-
pela natureza dessas rainhas da noite que, te. Lisboa: Caminho, 2013. Nome: (Uni-
como a flor que inspira o título do ro- versidade Federal do Rio de Janeiro).
mance, exalam mistérios que impedem
sua totalização, são diversas e, pelo me-
nos no quadro daquele limitado horizon-
te social, se mostram inquietas a ponto de

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