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CorreioArtes

FUNDADO POR ÉDSON RÉGIS


EM 27 DE MARÇO DE 1949

das
Julho 2018 – ANO LXIX Nº 5

ANTROPOFAGIA POÉTICA

Zé Orlando
Limeira Tejo
6 editorial

Poesia e amizade
Quem teve o privilégio de Nas moradas sos zelimeirianos seriam, na
conhecer e, principalmente, verdade, versos tejanos. Há
conviver com o jornalista, da memória e da controvérsias. Estudiosos da
poeta e cantador paraiba- poesia popular juram de pés
no Orlando Tejo (1935-2018)
poesia, Orlando juntos que o estrambótico Zé
tem sempre uma boa histó- Tejo e Zé Limeira Limeira viveu e poetou nesta
ria para contar. E quem não parte do planeta Terra.
o conheceu, mas leu ou ou- irão permanecer Em que pese o esforço his-
viu uma de suas histórias, toriográfico, o escritor Braulio
lamenta-se de não ter convi-
pelos séculos dos Tavares, por exemplo, que en-
vido com essa grande figura. séculos, recebendo, tende do riscado, afirma, com
Tejo nasceu em Campi- seu humor característico, que
na Grande e morou em João de braços abertos, “durante os próximos séculos
Pessoa, na Paraíba, e Recife, nossos netos e bisnetos conti-
em Pernambuco. É sua geo-
todos aqueles nuarão discutindo se a maio-
gráfica sentimental básica. que têm real ria dos versos que aparece no
Atuou no rádio, na publici- livro de Tejo foi mesmo cria-
dade, na advocacia e no ma- interesse por arte e da por Zé Limeira.”
gistério, entre outras áreas, Bem, o fato é que nem Tejo
mas as atividades de que
camaradagem. nem Zé Limeira, infelizmen-
mais gostava era fazer ver- te, não estão mais por aqui.
sos, escrever livros e estabe- Crenças religiosas à parte,
lecer amizades. vivem agora na memória e
A bibliografia de Tejo é do Absurdo. Este último, no na poesia. Nessas duas mo-
curta, levando-se em conta entanto, pela repercussão radas permanecerão pelos
o enorme talento que ele ti- que teve, vale por uma bi- séculos dos séculos, receben-
nha. Dá para contar as pu- blioteca. do, de braços abertos, todos
blicações de sua autoria nos Reza a lenda que Zé Li- aqueles que têm real interes-
dedos de uma mão: Conceição meira é um personagem se por arte e camaradagem.
63, Impasse, Soneto dos dedos criado pelo próprio Tejo.
que falam e Zé Limeira: Poeta Sendo assim, os famosos ver- O Editor

6 índice

, 4 @ 8 2 21 D 26
Memória W. J. solha poesia cinema
O jornalista Linaldo O jornalista William Costa e A seção de Poesia reúne O crítico João Batista de
Guedes lança novas a professora Alexandra Vieira poemas de Joaquim Brito coloca em tela o
luzes sobre a antiga de Almeida descrevem as Branco, Bruno Falcão e cinema noir, destacando
polêmica envolvendo os qualidades de A engenhosa Luiz Fernandes da Silva, três filmes exemplares: Um
poetas Orlando Tejo e Zé tragédia de Dulcineia e ilustrados por Tônio e retrato de mulher, Pacto de
Limeira. Trancoso. Domingos Sávio. sangue e O grande golpe.

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http://www.auniao.pb.gov.br Câmara Neto Paulo Sérgio de Azevedo
6 autores

Orlando
fos, os versos atribuídos a Limei-
ra sem que este os tenha criado,
mas não importa. ‘Publique-se a
lenda’, como dizia o personagem
de John Ford”, ressalta.

Tejo
Braulio conta que, em meados
Foto: Machado Bitencourt

dos anos 1960, Orlando inventou


de se candidatar a vereador, ar-
ranjou um jipe, e era visto chis-
pando o dia inteiro ao volante,
pelas ruas de Campina Grande,

seria a cabeleira ao vento. “Não foi


eleito, e continuou assinando
ponto no Café São Braz, onde
o todo mundo até hoje passa o dia
falando de três assuntos cru-
ciais: política, futebol e a vida
alter alheia”, relata.
Foi dessas conversas inter-
mináveis que teria surgido o
ego de projeto do livro Zé Limeira, poe-
ta do absurdo, obra que, de acor-

Zé Limeira?
do com Braulio, “lhe deu fama
nacional e alçou o repentista
da Serra do Teixeira ao pan-
teão mitológico do Nordeste, ao
lado de Lampião, Padre Cícero
e Luiz Gonzaga”.
Linaldo Guedes No entendimento de Braulio,
linaldo.guedes@gmail.com durante os próximos séculos
nossos netos e bisnetos conti-
nuarão discutindo se a maioria c

P
arece que todo mundo tem uma história para con-
tar sobre Orlando Tejo, o jornalista, poeta e folclo-
Foto: divulgação
rista que nasceu em Campina Grande, em 1935,
e morou em João Pessoa e Recife. Tejo, que há 15
anos sofria da doença de Alzheimer, faleceu no
Recife, no dia primeiro deste mês, e foi sepultado,
no dia seguinte, em João Pessoa. Ele é autor dos
livros Conceição 63, Impasse, Soneto dos dedos que fa-
lam e Zé Limeira, Poeta do Absurdo, este último sua
obra mais famosa, com diversas reedições. Talvez
por isso, muitos digam que Zé Limeira era na ver-
dade Orlando Tejo e vice-versa.
O escritor Braulio Tavares conheceu Orlando
Tejo em 1965, quando entrou para a redação do
Diário da Borborema, onde ele (Tejo) era secretário.
“Mas já era amigo do meu pai, e uma figura mui-
to conhecida na cidade. Depois que cresci e me
envolvi com os cantadores de viola, retomamos
contato e começamos a conviver amistosamente”,
lembra o autor de A espinha dorsal da memória. Braulio Tavares
Segundo Braulio, Zé Limeira era uma lenda, assegura que a
polêmica sobre
uma profusão de histórias e versos soltos. “Foi Or- Orlando Tejo e
lando quem cristalizou essa lenda e lhe deu forma. Zé Limeira vai
Existirá para sempre a questão dos versos apócri- permanecer

4 | João Pessoa, julho de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


Foto: divulgação
c dos versos que aparecem naque-

Foto: Machado Bitencourt


le livro foi mesmo criada por
Zé Limeira, ou se o foi por uma
plêiade de poetas e boêmios
que circulavam entre os poucos
metros que separavam a Rádio
Borborema, o Café São Braz e a
Sorveteria Flórida.
“Segundo meu pai (grande
amigo de Orlando) – prossegue
Braulio - o passatempo ali era
inventar versos “zelimeirianos”,
para provocar gargalhadas, e
muitas dessas inocentes con-
trafações foram se agregando à
lenda e acabaram entrando no
livro, como imigrantes ilegais”.
Para o autor de Mundo fantasmo,
não importa. “Às vezes, mais Capa da quinta edição
que a verdade histórica – regis- de Zé Limeira: Poeta
do Absurdo, Asobra-
tra Braulio, na obra citada - o prima de Orlando Tejo
que vale é o pulsar do espírito
da lenda. Publique-se a lenda”.
É que, para Braulio, a lenda de
Orlando é mais polpuda de Foto: reprodução internet

versos do que a de Zé Limeira.


“Há anos digo que algumas de
suas improvisações poéticas de-
veriam ser reunidas em livro.
Estão espalhadas por aí, pela
internet e pela memória alheia.
Um livro não garante a imorta-
lidade, mas um Poemas reunidos
Foto: reprodução internet

de Orlando Tejo seria pretexto Grande saudade hoje sinto


para muitas noitadas de coque- das cantorias-tesouro
téis e lembranças boas”, sugere. do gigante que foi Pinto,
Exemplos disso – dados, aliás, do uirapuru que foi Louro.
pelo próprio Braulio, são os ver-
sos que Tejo - apologista das Era uma graça, um estouro
cantorias de viola - dedicou a ouvir em qualquer recinto
Lourival Batista, o Louro do Pa- os trocadilhos de Louro
jeú (1915-1992), e a seu parceiro os desconcertos de Pinto. Lourival Batista
(com a viola) e Pinto
Severino Pinto, o Pinto do Mon- do Monteiro: dois
teiro (1895-1990). Tal qual no Bar do Faminto, mitos do repente
Braulio sublinha que os dois do Pátio do Matadouro, nordestino
repentistas foram amigos de quando Louro aceitou Pinto
coração e antagonistas da viola e Pinto abençoou Louro.
por mais de meio século de em-
bates memoráveis. “No Nordes- Mas no Bar Rosa de Ouro
te inteiro, em bares, feiras, resi- houve um encontro distinto
Pinto elogiando Louro,
dências, fazendas, terraços, as
Louro chaleirando Pinto.
pessoas se juntavam para vê-los
disputando quem fazia o verso
Jamais ficará extinto
mais inspirado e quem dava al- o meu prazer de ouvir Louro
finetadas mais agudas no outro. querendo derrubar Pinto,
No Instituto Lourival Batista, Pinto brincando com Louro.
em São José do Egito (PE), há
uma parede onde está imortali- No Bar Casaca-de-Couro
zado o poema de Orlando Tejo vi o maior labirinto:
sobre essa dupla de gênio”, com- Pinto depenando Louro
pleta. Segue o poema: e Louro esganando Pinto. (...)” c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2018 | 5


Foto: augusto pessoa
(...) O cabra fuma e não traga do sem-vergonha enxerido
Astier Basílio afiança faz do crime o seu idílio! que falar de Canindé! (...)”
que Zé Limeira existiu, Onde está Flávio Marcílio
portanto não é uma
criação de Orlando Tejo
que não demite esta praga? Braulio diz que o poeta e jor-
Ao menos dava-se a vaga nalista Astier Basílio tem uma
pra um sujeito de fé, versão de que o nome completo
já que esse indivíduo é de Tejo era José Orlando Limeira
um tratante e delinquente! Tejo. “Não tenho acesso a docu-
Haja chumbo grosso e quente mentos, não posso checar. Mas
no rabo de Canindé! mesmo que seja é só coincidên-
cia. Limeira existiu, sobre isso
Por capricho do destino parece não haver dúvida, e o
de Satanás ou Deus Brama, próprio Astier desencavou docu-
o bicho também se chama mentos dele”, acrescenta.
coisa e tal e Tolentino; Astier Basílio, aliás, é enfático
doido, avarento e mofino, quando a reportagem pergunta
não conhece a Santa Sé, se Orlando Tejo era Zé Limeira.
faz da cola o seu rapé, “Não. Na minha pesquisa loca-
vive da desgraça alheia, lizei uma matéria de um jornal
devia estar na cadeia de São Paulo, na década de 1950,
esse tal de Canindé! (...) escrita pelo paraibano Euricledes
Formiga, no qual ele descreve Zé
Mas a história não termina Limeira tal como ele é conhecido
aí. Braulio continua: “Eis senão por nós e como foi descrito por
quando toca o telefone. É Ca- Tejo em seu livro. Este registro,
nindé, com o dinheiro liberado, que estará em meu livro, é, até
pronto para ser entregue! Co- então, a única prova escrita da
memorações, abraços efusivos, existência do homem Zé Limeira.
e Orlando senta-se de novo à O que há, até hoje, são testemu-
mesa, pega pena e papel, e pro- nhos e referências orais. Conse-
duz mais oito estrofes neste novo guimos, também, localizar um
teor”. Eis como Tejo pinta Canin- documento. Trata-se do assento
dé, no poema satisfeito. de morte do poeta, nos arquivos
da igreja de Teixeira. Cruzan-
Um sujeito despeitado, do dados e pistas, localizamos
desses de baixa maré, também semelhante documen-
inventou que Canindé tação de sua mulher, dona Bela.
é um canalha safado. Para este expediente, contei com
Eu fiquei preocupado a ajuda do historiador Mário Vi-
com a informação até, nicius Carneiro. Com o livro que
c Braulio cita de memória outra porém não perdi a fé pretendo finalizar ano que vem,
história orlandiana impagável, em quem merece louvores… tento deslocar Zé Limeira de sua
contada pelos seus amigos de E haja palmas e haja flores aura mítica e devolvê-lo ao seu
Brasília, onde ele foi funcionário na fronte de Canindé. contexto histórico”, explica o au-
da Câmara Federal: “Apertado tor de Falsas ficções.
de grana, Tejo precisou com ur- Tenho dito e sustentado Astier conta que sua relação
gência urgentíssima de um di- (todo mundo sabe disso) com Orlando Tejo, de quem era
nheiro emprestado. Alguém lhe que na Câmara, esse cortiço, amigo, começou em 1997, quan-
disse que procurasse um tal de há um cidadão honrado, do lançava seu primeiro livro.
Canindé, que poderia adiantar- pai de família extremado, “Fui declamador do Festival Na-
-lhe os trinta mil cruzeiros de homem de bem e de fé! cional de Violeiros, em Campina
que precisava para cobrir al- O Papa já disse até Grande. Quando terminei de re-
guns cheques. Orlando passou que há no torrão brasileiro citar, ao sair do palco, na mesa da
o dia esperando uma resposta Padre Cícero em Juazeiro comissão julgadora, um senhor
de Canindé, que na verdade era e em Brasília, Canindé. se levantou e ergueu os braços
apenas o contato com os agio- sorrindo. Era Tejo. Me deu um
tas. Em desespero, sentou-se à Sei que o Papa tem razão, abraço e começou uma longa das
mesa do seu amigo, o escritor mas ninguém quer saber disto. muitas conversas que tivemos na
Luiz Berto (autor do igualmente Se já falaram de Cristo, vida. A poesia nos uniu. Daque-
lendário Romance da Besta Fu- que se dirá de um cristão? le momento em diante foram 13
bana) e produziu oito décimas Porém a fofoca não anos de amizade intensa que fo-
implacáveis de ofensas e doestos atinge um homem de fé. ram interrompidos pela doença
contra o indefeso ausente”. Eis o e se eu descobrir quem é, que o acometeu”, comentou.
poema injuriado, de Tejo: meto a mão no pé do ouvido Ao ser indagado sobre como c

6 | João Pessoa, julho de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


Foto: divulgação
cou conhecido como Festival de
Inverno. Extremamente concor-
rido, afluíam para lá a nata do
pensamento da Paraíba. “Entre
mostras de artistas plásticos, lan-
çamentos de livros, oficinas de
cinema, espetáculos de teatro e
dança, apresentação de cantores
locais, regionais e nacionais, eu
desfilava, meninote, buscando
algo que não sabia. Numa roda
de cachaça no bar de Seu Dedé,
no centro da cidade, ouvi pela
primeira vez a referência a Zé
Limeira, o poeta do absurdo, e a
Orlando Tejo. Havia uma alga-
zarra de gente ao redor de uma
mesa e eu me acheguei e vi aque-
les camaradas recitando poemas
e dizendo putaria. Um daqueles
Aderaldo Luciano também garante camaradas, pelo que a memória
c vê o resgate que Tejo fez da obra que Zé Limeira não era e nunca
pode me trair, seria Orlando Tejo.
foi Orlando Tejo, porque, se assim
de Zé Limeira, Astier explica que Havia em Areia, um braço da fa-
o fosse, Orlando Tejo teria que ser
o que aconteceu foi a apresenta- Zé Limeira mília Tejo e os irmãos areenses
ção de um personagem, que já Marcus, Aguinaldo e Adelaide
era muito conhecido, no universo Tejo eram, e continuam sendo,
da poesia oral, para o mundo dos meus amigos. E Marcus apresen-
letrados. “Há registros de Zé Li- tou-me Orlando Tejo. Passado o
meira antes do livro de Tejo, que festival, bisbilhotando a biblio-
é de 1973. Há referências em jor- teca do Padre Ruy, vigário local
nais. Tudo isso eu apresento na e grande benfeitor cultural na
obra que estou escrevendo. Tejo, cidade, encontrei o livro imortal
que pertencia a uma elite inte- dor Zé Limeira existiu e não era Zé Limeira, Poeta do Absurdo, em
lectual, elegeu um personagem Tejo, agora a obra, a poemática, sua terceira edição. Daí iniciou-
que já era conhecido do mundo pode ter pitadas do gênio do es- -se minha relação com o homem
da cantoria, dimensionou esta fi- critor, o que lhe fortalece como Tejo e sua obra”.
gura em uma obra genial, e uma lenda e lhe coloca os pés no chão São histórias como essa que
série de componentes dos mais do terreiro”, completa. valorizam a lenda Zé Limeira
diversos lhe garantiram um su- Sobre Tejo, aliás, Aderaldo e valorizam a obra de Orlando
cesso imprevisível”, define. lembra que muitos nomes basi- Tejo. Assim como outras obras de
Assim como Braulio, Astier é lares de nossa formação cultural arte, a exemplo do filme de Mau-
farto em histórias sobre Orlan- vivem e morrem na penumbra. rício Melo Jr., de Brasília, O ho-
do Tejo. E rememora uma delas: “Quando se lança a luz sobre mem que viu Zé Limeira. Segundo
“Em João Pessoa, ao ser preso, eles, quando se retira sua exis- Braulio Tavares, um documento
na época da ditadura, o militar tência dos escombros, a cons- excepcional, onde inclusive Tejo
de plantão perguntou a Tejo, que ciência social lhes oferece, para aparece cantando sambas ao vio-
se apresentava no quartel, se ele uns, o berço negado, para ou- lão, filmado por Vladimir Carva-
estaria armado. Tejo respondeu tros, a encruzilhada da dúvida. lho. O vídeo pode ser acessado
que sim. Ao ser solicitado a mos- Tejo traz Zé Limeira, sob os dois no YouTube, no seguinte ende-
trar a arma, Tejo exibiu a caneta. territórios, visto que, a dúvida reço: https://www.youtube.com/
Isso era Tejo. Irreverência e poe- ofereceu a imortalidade e um sé- watch?v=INYH0F6Acsg. I
sia o tempo todo, mesmo em si- quito de seguidores. Zé Limeira,
tuações difíceis como aquela”. da forma como Tejo nos apresen-
O poeta Aderaldo Luciano ta, é um poço de simplicidade e
também garante que Zé Limeira um oceano de possibilidades. A
não era e nunca foi Orlando Tejo, história da cantoria nordestina é Linaldo Guedes é jornalista e poeta.
porque, se assim o fosse, Orlan- cindida ao meio a partir da pa- Nasceu em Cajazeiras e mora em
do Tejo teria que ser Zé Limeira. João Pessoa (PB). Como jornalista,
rição do gesto monumental de atuou nos principais órgãos de
“Uma coisa é o homem histó- Orlando Tejo”, define. comunicação da Paraíba e foi editor
rico, outra coisa é a obra desse Aderaldo narra que no final do Correio das Artes. Lançou, entre
homem. Todos que conviveram da década de 70, a cidade de outros livros, Os zumbis também
com Zé Limeira, inclusive Otací- escutam blues e outros poemas,
Areia, no Brejo paraibano, reu- Tara e outros otimismos (poesia)
lio Batista, afirmam e atestam a nia, anualmente, os intelectuais e O nirvana do Eu (ensaio). E-mail:
existência do cantador. O canta- e artistas brasileiros no que fi- linaldo.guedes@gmail.com.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2018 | 7


6 livros

Dulcineia
último caso, do Romance da Pedra
do Reino, do paraibano Ariano
Suassuna (1927-2014), e Dom Qui-
xote de la Mancha, do espanhol
Miguel de Cervantes (1547-1616).

e Trancoso Em uma tosca imitação do


que fez o escritor paraibano As-
cendino Leite (1915-2010) com
Ópera, poema, romance? o escritor mineiro Guimarães
Rosa (1908-1967), pedi a Solha
Tudo isso e mais um as “chaves” do seu “rimance”.
pouco A história d’A engenhosa tragédia
de Dulcineia e Trancoso, segundo
ele, teve início anos atrás, quan-
William Costa
Editor do Correio das Artes
do o Movimento Armorial - que
prossegue, no Recife - enco-
mendou ao maestro e composi-
tor paraibano Eli-Eri Moura um

O
que a literatura tem de cinema e o cinema, de tea- concerto dentro dos parâmetros
tro, o novo livro de W. J. Solha, A engenhosa tragédia estéticos defendidos por Aria-
de Dulcineia e Trancoso (Penalux, 2018), tem dos três, no Suassuna. “Eli-Eri se deu tão
além do fato de, por ser também poema, ora livre, bem, que lhe encomendaram
ora metrificado, ser musical. Para rimar, nada mais uma ópera”, acrescenta.
armorial. Na obra, o autor, além da síntese formal, Eli-Eri topou dar conta do
procede a um prodigioso ‘diálogo’ entre tradição e novo pedido, mas confiou o li-
‘contemporaneidade’, tendo, como epicentro, os epi- breto a Solha, seu parceiro de ou-
sódios que transformaram a Pedra do Reino - na tros carnavais. A ópera armorial
verdade, dois monólitos localizados entre Paraíba e Dulcineia e Trancoso – considera-
Pernambuco - em marco histórico e literário. da a primeira obra nordestina
A contemporaneidade da obra de Solha é a ousa- do gênero – estreou no Teatro de
dia da forma, que, além de espantosamente visual, do Santa Isabel, no Recife, em 2009.
ponto de vista da relação polissêmica entre palavra e Solha pensou que a obra ficaria
imagem, harmoniza diálogos - em português, espa- circunscrita aos palcos nordes-
nhol e ‘portunhol’ – de uma sucessão de personagens, tinos, no que, felizmente, errou
transfigurados tanto da vida real como do cânone lite- feio, pois Dulcineia e Trancoso ga-
rário brasileiro e universal (a tradição), a exemplo, no nhou nova montagem e estreou, c

Foto: Antônio David

Versátil, criativo
e muito bem
informado, Solha
estabelece um
prodigioso diálogo
entre realidade e
ficção; tradição e
contemporaneidade

8 | João Pessoa, julho de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


c com sucesso, em setembro do SOBRE O AUTOR Primeiras notícias
ano passado, na Sala Paschoal
Carlos Magno (Palcão), no Rio de
Foto: Andréia Solha da crítica
Janeiro, como atração do Projeto W. J. Solha aparentou a nar-
Ópera na UNIRIO. rativa de A engenhosa tragédia de
A descrença de Solha no po- Dulcineia e Trancoso à novela de
tencial da ópera acabou sendo cavalaria. Nas “orelhas” do livro,
Daniel Zanella, editor do jornal
positiva, porque o escritor-poeta
RelevO, assinala que Solha “se
transformou o libreto num “ri-
abastece de aspectos regionalis-
mance”, ou seja, “um romance em tas, sob a figura fulcral de Ariano
versos, coisa do passado remoto, Suassuna, e da ambivalência hu-
refrescado pelos versos livres e morística de Miguel de Cervan-
uma visão bastante cinematográ- tes, para tecer uma rede de trans-
fica da narrativa”, além do que, o criação de mitos – o poeta como
enredo de A engenhosa tragédia de profeta – e retrabalho de gêneros
Dulcineia e Trancoso “consiste na discursivos medievais, com forte
realização do que não acontece emulação aos princípios huma-
no romance d’A Pedra do Reino: o W. J. Solha, 77 anos, natural nistas, filosofantes, ao trovado-
sacrifício humano e o ressurgi- de Sorocaba (SP), está rismo e às narrativas orais”.
Zanella acrescenta que “o
mento de el-rey Dom Sebastião radicado, na Paraíba (mora
grande circo místico de Solha ex-
(1554-1578), aberta a rocha com o em João Pessoa), desde
pande as relações entre literatura
sangue derramado”. 1962. É autor de vários e jornalismo, tascando elementos
Considerando o fato de Mi- romances premiados: Israel da contemporaneidade (perió-
guel de Cervantes ser um dos Rêmora (Prêmio Fernando dicos, relação com a notícia em
autores idolatrados por Ariano Chinaglia 1974), A canga tempos de liquidificadoras di-
Suassuna, como também o pro- (Prêmio Caixa Econômica gitais, sensacionalismo, repor-
jeto estético do autor do Auto de Goiás 1975), A batalha tagem) com a atmosfera onírica
da Compadecida, de estabelecer de um Suassuna de A Pedra do
de Oliveiros (Prêmio INL
uma arte erudita fundamentada Reino”, destacando “que há, aqui,
1988) e Relato de Prócula
na cultura popular, Solha, n’A portanto, uma inteligência nar-
(Funarte 2007 e Prêmio João rativa em progressão, poesia que
engenhosa tragédia de Dulcineia e
Fagundes de Menezes, da se derrama na sonoridade, na
Trancoso, bota em cena os dois
UBE-Rio, 2010). Tem vários beleza dos gestos abruptos, um
ícones, na condição de poetas/
poemas longos, dentre eles certo pacto de sonho em prol da
profetas da formação do casal potência máxima da poesia”.
Trigal com corvos (Prêmio
Dulcineia (personagem de Dom Para a escritora Tânia Du
João Cabral de Melo Neto,
Quixote) e Trancoso (Gonçalo Bois, “é praticamente impossível
UBE-Rio 2005). O autor
Fernandes Trancoso {1520-1596}, (...) não perceber a lucidez lírica
também se dedicou à pintura
um dos primeiros contistas por- em Solha, demonstrada através
tugueses, autor de Contos e histó- (é dele, por exemplo, o painel do seu estilo, conhecimento e
rias de proveito e exemplo). Homenagem a Shakespeare, competência, que o personaliza
Para Solha, o “rimance” instalado na reitoria da pela busca de ampliar os limites
tornou-se bem mais solto que Universidade Federal da do possível nas cenas da vida e
a ópera, devido à ação, que Paraíba) e participou como transforma o livro em espetáculo,
ator em vários filmes, onde o leitor é o espectador”. Já
transcorre no presente: uma
o crítico literário Éverton Santos
multidão chega em São José destacando-se os curtas A
observa que o cantar de Solha,
do Belmonte – município per- canga , de Marcus Vilar, e
nessa obra, “é inventivo, crítico,
nambucano onde se realiza a Antoninha, de Laércio Filho. simbólico, perspicaz, irônico, um
famosa Cavalgada d’A Pedra Entre os longas, O som ao antropofágico monumento que,
do Reino -, para testemunhar o redor, de Kleber Mendonça como as duas Pedras do Reino, é
milagre. O fato chama a aten- Filho, e Era uma vez eu, cercado de histórias”. E
ção da imprensa nacional e es- Verônica, de Marcelo Gomes.
trangeira, e a imediata reação Tem publicada também a
das Forças Armadas brasileiras. coletânea História Universal William Costa nasceu em Campina
Solha enviou a primeira versão da Angústia (Editora Grande e mora em João Pessoa
do livro para vários amigos es- (PB). É jornalista, escritor, crítico
Bertrand Brasil, 2005), de literatura e artes. Estreou na
critores e, diante da reação, que finalista do Jabuti 2006 e literatura com o livro de crônicas
considerou negativa, trabalhou Prêmio Graciliano Ramos,
Para tocar tuas mãos (Ideia, 2017).
É editor do suplemento “Correio das
mais um ano e meio na obra, até
da UBE/Rio 2006. Artes”, cronista e editorialista de
se dar por satisfeito. A União.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2018 | 9


6 livros
W. J. Solha,
fotografado
por
Antônio
David

Entre
o tradicional
e o contemporâneo,
o particular e o universal,
na obra de solha

Alexandra Vieira de Almeida Há também o embate entre


alealmeida76@gmail.com forma e conteúdo no seu roman-
ce em versos. Valendo-se da es-
trutura tradicional do martelo
agalopado, produz um conteú-

N
a narrativa em versos de W. J. Solha, A engenhosa do rico em nuances e mais livre
tragédia de Dulcineia e Trancoso (Penalux, 2018), te- da forma. O conteúdo apresenta
mos o embate cultural entre vozes das mais diver- uma mistura de línguas e cultu-
sas, criando-se, assim, um texto rico em referên- ras, com a trágica visão da vio-
cias e estilos nesta obra monumental. Retomando o lência e da crueldade das estru-
gênero épico em seus primórdios onde a narrativa turas de poder. Dulcineia, com
era composta por versos, o autor mistura estilos a sua naturalidade não tão bela se
partir da junção entre o tradicional e o contempo- utiliza do artifício para seduzir
râneo, o particular e o universal. Utilizando-se da (toma um banho de loja) Tran-
épica, Solha reestrutura aquilo que é um fenômeno coso (nosso Dom Quixote), os
do todo e o subtrai para o regionalismo nordestino heróis, que juntamente com Bozo
a partir do cordel e do rimance típico do Nordeste. (nosso Sancho Pancha) tentarão
Com estrofes de dez versos decassílabos, se vale driblar os aviões da Força Aérea
do martelo agalopado, dando ritmo e musicalida- Brasileira para implodir a Pedra
de ao seu livro. Nos duetos entre os personagens do Reino, onde uma multidão de
Ariano Suassuna e Miguel de Cervantes, percebe- romeiros se aglomera para que
mos o universalismo das línguas com a utilização a lenda se torne realidade, ou
das línguas portuguesa e espanhola. Além disto, seja, o encoberto Dom Sebastião
nos faz refletir sobre a constante invasão da língua retorne para trazer um reino de
inglesa no nosso idioma. Mas como resposta antro- paz para uma nação tão sofrida.
pofágica, temos a utilização de um vocabulário tí- Com o retorno de pessoas que já
pico do Nordeste, com nossa caatinga, alimentos tí- morreram como, por exemplo,
picos da região e aspectos da flora e fauna, fazendo Miguel de Cervantes e Ariano
de seu livro um diálogo, um repente, ou seja, uma Suassuna, personagens do livro
resposta à globalização a que estamos submeti- de Solha, temos a mistura dos
dos, com a revelação de nossas particularidades, planos terreno e celestial, fazen-
num projeto de brasilidade que dialoga com um do a junção entre o mundo dos
estrangeirismo reinante em nações periféricas. vivos e dos mortos. A mídia com- c

10 | João Pessoa, julho de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


c parece em peso, os principais jor- porque, como disse Aristóteles, a em questão é um grande conhe-
nais do mundo se concentram no história se passa da felicidade à cedor da cultura, revelando no
sertão nordestino para a cobertu- infelicidade, com o acontecimen- seu livro uma narrativa plena de
ra de tal fato, que embora mítico to funesto no final. Além disso, o seu domínio estético. Com coe-
e místico, atrai os olhares do jor- tom dramatizado de seus versos rência e riqueza de detalhes, seu
nalismo objetivo e realístico que dá o caráter cênico à sua narrati- romance é de grande fôlego. Não
conhecemos. Utilizando-se do va em versos. é para principiantes, mas para
fantástico, do mítico e do onírico, O circo de Sô Leo apresenta-se leitores conhecedores também
Solha narra com forte realismo, como um teatro de variedades, dos vários matizes literários.
trazendo o pictórico em sua fu- os famosos vaudevilles, com suas Unindo o popular ao erudito,
são de cores e matizes. maravilhosas atrações. Aqui esta ambiguidade enobrece sua
Daniel Zanella, na orelha do comparecem os personagens obra. Este jogo de formas, estilos
livro de Solha, disse: “O rimance reais como fictícios e os fictícios e épocas torna seu romance algo
‘A engenhosa tragédia de Dulci- como reais em sua obra, Miguel imprescindível para as futuras
neia e Trancoso’ entrega o que de Cervantes e Ariano Suassuna gerações de leitores que só têm a
podemos chamar de uma novela aparecem como uma das atra- ganhar com a leitura de um livro
de cavalaria para tempos pós- ções do circo, juntamente com tão variado e rico em camadas.
-modernos (dentro da lógica nor- Trancoso, Dulcineia e Bozo. Mes- Como no palimpsesto, temos que
destina)”. Dessa forma, encon- clando o caráter real ao ficcio- extrair suas camadas, para ver o
tramos neste livro magistral de nal, Solha não admite fronteiras que se esconde de tão verdadeiro
Solha a mistura entre o tradicio- entre estes planos, elevando sua e enigmático em A engenhosa tra-
nal e contemporâneo, o particu- narrativa a partir da riqueza de gédia de Dulcineia e Trancoso.
lar e o universal, fundindo cul- personagens que comparecem Portanto, encontramos em A
turas e estilos. E no belo prefácio na sua obra. Terry Eagleton, no engenhosa tragédia de Dulcineia e
do livro, de João Carlos Taveira, seu livro de crítica literária, Teo- Trancoso, um escritor pleno de
temos: “A engenhosa tragédia de ria da Literatura: uma introdução, seu domínio da escrita e da cul-
Dulcineia e Trancoso é mais que já dizia que não era produtiva tura universal e brasileira. Um
uma metáfora a serviço de temas para a literatura a díade fato livro de extrema beleza, com
os mais variados”. E ampliando x ficção. E temos na narrativa grande força vocabular, formal e
aqui, podemos ver que Solha de Solha não este embate, mas conteudística. Mistura também
também é um aglutinador de a mistura entre ambos, perfa- o mais tradicional, como a reli-
formas, pois além de utilizar-se zendo o caminho do mítico ao gião e a cultura popular e local,
da narrativa e da poesia, revela realista em A engenhosa tragédia ao mais tecnológico, com uma
as formas do gênero dramático, de Dulcineia e Trancoso. Além do cultura de laptops e celulares
como podemos perceber a par- mítico, temos presente, a religio- que gravam tudo. Um verdadei-
tir do título, a tragédia. Assim, a sidade recorrente do Nordeste ro painel que percorre desde o
partir de seu caráter polivalente, com suas crenças. Dessa forma, mito nórdico com sua Yggdrasil,
encontramos os três gêneros exis- vemos o mais antigo juntar-se uma árvore colossal, considera-
tentes na nossa literatura em um ao mais novo. Solha recria, rein- da o eixo do mundo até a Pedra
único livro: o épico ou narrativo, venta estas outras vozes, fazen- do Reino, no sertão nordestino.
o lírico e o dramático. Tragédia do um trabalho de deglutição do Imagens da natureza de vários
universal ao particular, na sua eixos do mundo. E para finali-
força antropofágica cultural. zar, nada melhor do que citar
Com versos rimados, a narra- um trecho do livro: “Ao fundo,/
tiva de Solha adentra a profundi- um grupo de camponeses – que
dade de nossa cultura particular, passa/com suas reses – confun-
Portanto, traduzindo a essência de nosso de-se,/dócil,/com as figuras de
povo com viagens rumo à Pedra barro do mestre Vitalino/e as de
do Reino, que dá nome a uma Manuel Eudócio”. I
encontramos em A
obra de Ariano Suassuna, pois o
livro de Solha é uma homenagem
engenhosa tragédia aos grandes nomes da literatura Alexandra Vieira de Almeida é
doutora em Literatura Comparada
nacional e também da estrangei-
de Dulcineia e ra. Passando pela literatura, sua
pela Universidade Estadual do Rio
de Janeiro (UERJ). Também é poeta,
obra perpassa por outras áreas contista, cronista, crítica literária e
Trancoso, um do saber, como o cinema e o jor- ensaísta. Publicou os primeiros livros
de poemas em 2011, pela editora
nalismo. Com tanta riqueza de Multifoco: 40 poemas e Painel. Oferta
escritor pleno de seu saberes, somos levados também é seu terceiro livro de poemas,
a citações da Bíblia, do mito e pela editora Scortecci. Ganhou
domínio da escrita e de grandes nomes da literatura, alguns prêmios literários. Publica
suas poesias em revistas, jornais e
como Fernando Pessoa, como alternativos por todo o Brasil. Em
da cultura universal exemplo. Este é o cosmopoli- 2016 publicou o livro Dormindo no
tismo de seu livro, que carrega Verbo, pela Editora Penalux. Vive no
e brasileira. muitos saberes. O escritor aqui Rio de Janeiro (RJ).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2018 | 11


6 festas semióticas
Amador Ribeiro Neto
amador.ribeiro@uol.com.br

Rebis,
o lirismo sublime de

Marco Lucchesi

A
poesia de Marco Lucchesi é um dos memoráveis patrimô- cotidiano.
nios de nossa produção artística. Ela vem tatuada na pele Esta poesia é a suspensão do
da mais fina sensibilidade. As revelações do mundo que trivial – ainda que, este, neces-
opera, e a consequente instauração de uma linguagem pró- sário. É o elevamento das fun-
pria, são luzes num mar jade sob azul celestial. ções essenciais da vida ao êxta-
Esta poesia mergulha no leitor e sustém-no intensa e se do enleio. Maravilhamento.
profundamente. Feita de parcas palavras e exuberantes Iluminação.
ideias, suas imagens visuais e sonoras, transporta o leitor A mente projeta-se num tapete
deste mundo para outro mais dentro dele. A seguir, lança- voador. O coração amalgama-se à
-o pra outro mundo – galáxia da estupefação gerada e re- cabeça. O corpo todo é redemoi-
gida no trabalho com a linguagem. nho de delícias, delírios, decisões.
fotos: divulgação

Não há como ler Marco Lucche- O leitor sente, emociona-se. E


si e não ser tomado/possuído pelas não perde o fio da meada. Con-
filigranas que tecem e imantam os tinua atento e forte. Livre, leve
meandros da ourivesaria da pala- e solto.
vra. Rebis: leitura que nos alça ao
Palavra nuclear. Palavra epifa- mundo da memória e do ima-
nia. Palavra: ser, morada e essência ginário. Da história e do sonho.
desta poesia. Pasárgada aqui e lá. Uma poesia
A respiração alteia-se. O corpo que une, reúne, argamassa acaso
responde à grandeza de imagens e organização. Sentimento e ra-
arquitetadas na fruição do amoroso ciocínio.
gesto da leitura. Poesia cujo pulsar instaura-se
Fruição, gozo, prazer de ler e nos volteios entre arfar e refletir.
sentir-se, paradoxal e concomitan- Um dos perigos que o poeta
temente, no centro do território e corre, lembra-nos T. S. Eliot, é
na zona limítrofe – do coração e do perder-se nas emoções. Não que
elas sejam dispensáveis. “Mas”,
diz Eliot, “o objetivo do poeta
não é descobrir novas emoções,
mas utilizar as corriqueiras e,
trabalhando-as no elevado nível
poético, exprimir sentimentos
O carioca
que não se encontram em absolu-
Marco
Lucchesi é to nas emoções como tais”.
poeta, escritor, Poesia, então, é trabalho com
romancista,
ensaísta e
a linguagem. É trabalho de coefi-
tradutor ciente poético. Ou seja: a palavra c

12 | João Pessoa, julho de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


6 festas semióticas

c e suas manifestações literárias. dito, filho de Afrodite e Hermes, dúplice de livro de poesia e livro
A palavra e a revelação, não do nascido homem, rejeita o amor de artista, concomitantemente.
novo, mas de algo que se faz novo de uma ninfa. Esta, por vingan- Impressos em papel especial, os
pelo modo tal como é revelado – ça, invoca os deuses para que a volumes, numerados e assinados
na percepção de Chklóvski. unisse, em um só corpo, a Her- pelos dois artistas, trazem a capa
Prossegue o poeta de The mafrodito. costurada manualmente e o títu-
waste land: “A poesia não é uma Esta duplicidade, este processo lo espelhado, como se diante de
liberação da emoção, mas uma contínuo e ambíguo, que permeia poça d’água, rio ou mar.
fuga da emoção. Não é a expres- a gênese semântica e mitológica Rebis, de Marco Lucchesi, é
são da personalidade, mas uma do termo rebis, é tomada, por Luc- abrigo da mais fina, sublime e
fuga da personalidade”. E con- chesi, como um dos mananciais tocante poesia. Livro-casa de
clui regiamente: “Naturalmen- de seu livro. Algo como afirmar um mundo que se entrega ao
te, porém, apenas aqueles que que a linguagem da poesia não leitor na calmaria de versos de-
têm personalidade e emoções se (p)rende a um só corpo, sexo, senhados nos brancos da folha.
sabem o que significa escapar desejo. Ou seja, é grande obra Versos dançarinos em ritmos e
dessas coisas”. em aberto. Ou, como preconizou harmonias vários. Versos que se
Marco Lucchesi, em toda a sua Haroldo de Campos, antecipando desdobram, desmancham-se e
produção poética - e Rebis reafir- Umberto Eco, é obra aberta. desvendam a beleza do sonho e
ma isso –, sabe valer-se da mais Em resumo, a poesia desen- da vida. Porque Rebis é esvaeci-
sublime emoção com o mais ri- volve um arco que vai da duplici- mento e materialidade. Conten-
goroso trabalho com a palavra. dade, da ambiguidade, do caos à ção e gozo.
Nada escapa ao seu zelo com o harmonização. Rebis dá-se como Imerso na beleza lírica desta
melhor da linguagem. Faz uma este processo conflituoso e, por poesia, encerro com a transcrição
poesia que toca fundo no leitor fim, harmônico. de um poema:
porque o que conta é a expres- Certamente por isso o volu-
são, o modo, a carpintaria do me encerra ilustrações e projeto NÃO HÁ SEGREDO
poema. Trabalho este nascido da gráfico, assinado por Zenilton ALGUM NO CORPO DA
relação do poeta com a grande Gayoso, que exploram os inters- PALAVRA
poesia de nosso tempo. E com a tícios dos poemas. Seu primoro-
poesia canônica. so trabalho plástico e gráfico é OU ANTES
A poesia de Lucchesi dialoga conversa inteligente com os poe- AO COMBINÁ-LA COM VERBOS
com o passado por presentificá-lo mas. Confere ao volume o status E LICORES
numa linguagem literária atem-
poral. AO DISSOLVÊ-LA EM
Retomando Rebis. O título do SERPES
livro é palavra derivada do la- E DRAGÕES
tim res bina, que significa duas
coisas, matéria dupla ou, sim- AO SUBLIMÁ-LA
plesmente, duplicidade. Rebis EM VIVOS
significa igualmente magnum
Marco Lucchesi, ATANORES
opus – ou seja, grande trabalho,
em toda a sua TRANSMUTA-SE A
grande obra.
A grande obra, geralmente PALAVRA
produção poética NO REBIS MISTERIOSO I
originária de estágios conflitan-
tes, ou mesmo estágios opostos, - e Rebis reafirma
atinge, ao final do processo, a
harmonização. Seria, para Jac- isso –, sabe valer-
ques Monod, guardadas as devi-
das restrições (e polêmicas), algo se da mais sublime
como o processo que vai do caos
à sistematização da necessidade emoção com o mais
organizadora.
Outra possível significação rigoroso trabalho Amador Ribeiro Neto é poeta,
crítico de literatura e professor da
para o termo rebis encontramos Universidade Federal da Paraíba.
na mitologia grega. Hermafro- com a palavra. Mora em João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2018 | 13


6 livros

Um resgate
a centésima postagem e transfor-
mar a série em livrinhos digitais
(e-books)”, explicou.
Rubens vem se dedi-
cando à essa pesquisa
e ao trabalho de divul-
das mulheres poetas gação desde meados de
2011, época do seu desa-

do Brasil
bafo malcriado. “Feliz-
mente, esse trabalho de
garimpagem me propor-
cionou muita satisfação
e muito prazer. Descobri
muito ouro na palavra
poética das mulheres.
E o meu blog transfor-
Linaldo Guedes mou-se no espaço delas.
linaldo.guedes@gmail.com
Nunca mais publiquei lá
meus poemas, nem poe-
mas de poetas homens”,
acrescentou.
O trabalho contempla mais

T
udo começou com um desabado “malcriado” em ou menos 400 poetas de várias
seu blog. Poeta e jornalista natural de São Paulo, gerações e de várias regiões do
Rubens Jardim ficou inconformado ao perceber Brasil, em três livros digitais.
como a poesia escrita por mulheres era relegada e Existem, por exemplo, poetas da
até mesmo boicotada. Foi aí que surgiu o projeto Paraíba, do Rio Grande do Sul,
“As Mulheres Poetas”, que gerou um livro digital do Pará, de Minas, do Rio Gran-
que é um verdadeiro compêndio da literatura pro- de do Norte, do Maranhão, de
duzida pelas mulheres, no Brasil. Minas Gerais, Rio de Janeiro e
Para comprovar esse “desprezo” à poesia escrita São Paulo. Do mesmo modo, in-
pelas mulheres, Rubens lembra que em 16 anos a tegram esse trabalho poetas de
Festa Literária de Parati (Flip) só homenageou Cla- 90 anos, com obra consistente,
rice Lispector, Ana Cristina César e este ano irá ho- até jovens poetas que publica-
menagear Hilda Hilst. “Aí fiz um desabafo malcria- ram apenas um livro. E algumas
do em meu blog e comecei a pesquisar e divulgar que não publicaram nem livro,
o trabalho poético das mulheres. Cheguei a con- apenas divulgaram poemas em
fessar que levaria isso até o fim de meus dias. De revistas virtuais, redes sociais e
repente mudei de idéia: estabeleci a meta de atingir blogs da internet.
Os livrinhos virtuais contem-
plam autoras do século 18 (Ân-
foto: reprodução internet

Movido pela gela do Amaral Gurgel, Barba-


indignação, Rubens ra Heliodora, Beatriz Brandão,
Jardim idealizou uma
trilogia com poesia
Maria Josefa Barreto, Delfina
escrita por mulheres da Cunha), do século 19 (Nísia
Floresta, Maria Firmina dos
Reis, Narcisa Amália, Adelai-
de de Castro Alves Guimarães,
Julia Lopes de Almeida, Fran-
cisca Julia, Auta de Souza, Co-
lombina, Cora Coralina, Gilka
Machado), do século 20 (Henri-
queta Lisboa, Cecília Meireles,
Adalgisa Nery, Lila Ripol, Hele-
na Kolody, Jacinta Passos, Dora
Ferreira da Silva, Maria José de
Carvalho, Yeda Prates Bernis e
muitas outras) e até do século
21 (Luiza Midlej). c

14 | João Pessoa, julho de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


Foto: Edson Matos

c Rubens Jardim cos-


tuma dizer que Xangô
é quem lhe impulsiona
nesses movimentos de
resgate da justiça. “Já
fiz algo semelhante, em
1973, em torno do Jor-
ge de Lima. Ele estava
esquecido e relegado a
poucas antologias. Elas
destacavam, é claro, seus
saborosos poemas regio-
nais e negros. Aí resolvi
fazer um livrinho, Jorge
- 80 Anos, que priorizava
aquela parte de sua obra
iniciada em Tempo e Eter-
nidade e vai desembocar
em Invenção de Orfeu.
Esse livrinho, mimeo-
grafado, foi o pontapé
inicial de um movimen-
to maior, O Ano Jorge de
Lima. Graças ao apoio de
figurões das letras (Car-
los Drummond, Cassia-
no Ricardo, Menotti del
Picchia, Walmir Ayala
etc.) essa cruzada obteve
êxito total (reedições de
suas obras) e até samba-
-enredo da Mangueira,
em 1975”, relembra. 
Segundo ele, para
quem enfrentou a or-
ganização de um movi-
mento como o Ano Jorge
de Lima, em um período
sem internet e sem re-
des sociais, não existem
dificuldades neste tra-
balho sobre as mulheres A escritora Maria
das, a uma autora jovem,
poetas. “Sentado diante Valéria Rezende assina a
sem livro publicado. Na apresentação de As mulheres
do micro e batendo em
migração desses conteú- poetas na literatura
algumas teclas, eu tinha
dos da pesquisa para os brasileira
livre trânsito para fuçar
e-books, resolvi adotar o
ali e aqui e manter con-
critério cronológico para
tatos com parcela signi-
facilitar a vida do leitor.
ficativa das poetas. Duro
Enfim, acho que esse
mesmo foi conseguir a
trabalho acabou virando
data de nascimento de
uma espécie de história
algumas dessas poetas
da poesia feminina no co, as vozes das mulheres, cada
mulheres”, comenta em
Brasil”, completou. uma única, mais da metade da
tom de brincadeira.
O trabalho de Rubens Jardim humanidade, estavam silencia-
Todo esse trabalho de
pesquisa foi sendo pu- tem o aval de escritoras como das ou esquecidas. É urgente
blicado em seu blog (ru- Maria Valéria Rezende, referên- resgatá-las, proclamá-las, para
bensjardim.com), alea- cia na literatura contemporânea salvar nossa humanidade em
toriamente, e de acordo nacional. “Por que a poesia, por perigo. Rubens Jardim percebeu
com as circunstâncias. que as palavras? Eu não poderia o desafio e aqui nos traz uma
O único critério adotado nem me conceber como alguém primeira dose indispensável
era a qualidade. “Des- sem as vozes que me invadiram dessa poesia, no momento exa-
sa forma eu misturava, desde antes d’eu nascer! Quan- to para que não pereçamos su-
no blog, uma poeta já to mais vozes me chegam, mais focados! Salve, Rubens Jardim!
conhecida, com obras ampla e funda me tornam. Pre- Salve, mulheres poetas! Salvem-
publicadas e até traduzi- ciso de todas elas. Até há pou- -nos!”, escreveu Valéria. I

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2018 | 15


6 livros

Sob o ímpeto
comum de homens, mulheres,
crianças e idosos, em suas ins-
tâncias privadas e públicas, se-

do assombro
não enfrentar seus Duelos?
Nas “orelhas” de Duelos, com
o título Vergões e Arrepios, o es-
critor paulista Antonio Geraldo
Figueiredo Ferreira, autor do ro-
mance As visitas que hoje estamos,
Duelos, novo livro de contos de escreveu trata-se de um livro de
Eltânia André deve ser lançado contínuos e sobrepostos emba-
ainda este ano tes. “Do sujeito contra o mundo
que o sujeita. Contra o inimigo
familiar. Contra o outro, des-
conhecido às vezes tão íntimo,
Da Redação paradoxo de um país formado
na fratura exposta de desigual-
dades de toda ordem”. E acres-

A
escritora mineira Eltânia André, hoje residindo em
centa: “O livro, enfim, retrata a
Lisboa, Portugal, deve lançar ainda este ano o seu
luta do indivíduo consigo mes-
novo livro de contos, intitulado “Duelos”, com selo da
mo, peleja que o obriga à inesca-
Editora Patuá, de São Paulo (SP). Consta que a obra
pável aceitação de uma comple-
foi escrita sob o ímpeto do assombro, o Brasil
gerido pelo horror, crianças mortas por ba- ta derrota, se quiser ‘vencer na
las perdidas, o povo acuado pela vio- vida’”...
lência das ruas, do Estado. Para Antonio Geraldo, “a
Nos contos “pungentes e poe- consciência de si, pano de fun-
ticamente trágicos”, de Duelos, do da alteridade, portanto, é um
Eltânia mapeia a violência aspecto central em Duelos. As-
do cotidiano brasileiro - sinala que “Vidas Inventadas”
a doméstica, a social, a − título de um dos contos −, “en-
fotos: divulgação familiar, a psicológica, laçam o cotidiano das persona-
a moral, a política e a gens ao da escritora”, destacan-
econômica. Todas as do que “tal procedimento, em
formas de agressão última análise, compele o leitor
ao individual e ao a também se ver como perso-
coletivo, em que nagem moldada pelas mãos de
os personagens uma artista que escreve como se
vivem no fio da colocasse um ponto-final segui-
lâmina, experi- do de reticências. Dito de outra
mentando seus maneira, a arte da escrita insti-
becos-sem- tui-se, na obra, como extensão
A escritora
-saída, espe- gráfica que nos acerta em cheio,
lho de um
Eltânia André fustigando-nos para além das
vive hoje em dia-a-dia em
palavras”.
Lisboa, Portugal. que é tênue a
Duelos é seu Eltânia André nasceu em
fronteira en-
quarto livro
tre viver e so- Cataguases (MG), mora em Lis-
breviver. boa. É autora do livro de contos
São histó- Manhãs adiadas (Dobra Edito-
rias que po- rial, 2012) e dos romances Para
voam a mitolo- fugir dos vivos (Editora Patuá,
gia do mundo, 2015) e Diolindas (Editora Pena-
pois desde os lux, 2016), escrito em parceria
primórdios da com o escritor Ronaldo Cagia-
civilização, o que no. Contato: eltaniaandre@hot-
tem sido o destino mail.com. I

16 | João Pessoa, julho de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


6 livros

Vozes do
recôndito
O poeta Theo G. Alves reúne
novos poemas em doce
azedo amaro

poema, mas sabe se proteger. “O


importante – prossegue - é cons-
truir sempre essa poesia escon-
Da Redação dida nos becos, naquele homem
que caminhava pelos desertos,
nas Dulcineias caladas no cami-
nho, à espera ou à procura do
Cavaleiro da Triste Figura, D.

O
poeta norte-rio-grandense Theo G. Alves reúne 49 Quixote, que luta sempre contra
poemas, divididos em três seções, em seu novo livro, visões, mas sempre em favor da
doce azedo amaro (Editora Moinhos, 2018). Para o poe- Beleza”. E destaca: “O poeta tam-
ta e jornalista Álvaro Alves de Faria, “a obra é uma bém recorre à memória para en-
viagem pela poesia ainda possível de encontrar num contrar as imagens da infância,
mundo feito só de brutalidades”. E acrescenta: “Cabe ainda vivas dentro de si”.
ao poeta descobrir essas palavras generosas ao ho- Na apresentação da obra, o
mem para tornar a vida melhor, nem que seja por um poeta Alberto Bresciani, destaca,
instante. Como diz o poeta, em um de seus poemas, logo de início, que não é tarefa
antes da poesia era só o estampido, o fácil escrever sobre a poesia de
soco, o tiro, o golpe, a faca, a foi- Theo. Isso porque, o apresenta-
ce. Mas a poesia tem, sim, o dor enxerga no autor “uma das
poder de anular esses fe- mais talentosas vozes poéticas
rimentos cicatrizados da contemporaneidade”, dispen-
na vida”. sando “limitações geográficas”.
fotos: divulgação

Alves de Faria Theo, em doce azedo amaro, segun-


assinala que do Bresciani, escava, com deter-
Theo se afir- minação e sabedoria, o recôndi-
ma vítima to. “Fala de si – continua -, mas
de muitas descobre e decifra o mundo com
a r mad i- o que há de mais telúrico e com o
Theo é lhas do que há de mais mágico”. I
considerado
“uma das mais
talentosas vozes
poéticas da
contemporaneidade”

Theo G. Alves é poeta, contista e fotógrafo.


Nasceu em dezembro de 1980, em Natal (RN),
mas é radicado em Currais Novos, cidade do
mesmo estado. publicou os livros artesanais loa
de pedra (poesia) e a casa miúda (contos), além
de ter participado das coletâneas tamborete
(poesia) e triacanto: trilogia da dor e outras
mazelas (contos). Em 2009, lançou o pequeno
manual prático de coisas inúteis (poesia e contos),
e em 2015, a máquina de avessar os dias (poesia),
ambos pela Editora Flor do Sal.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2018 | 17


6 livros

Protagonistas
do A literatura negra brasileira:
suas leis fundamentais, a autora
cita a poesia de Cuti, assim como

negros
a de Oliveira Silveira, Ele Semog,
Oswaldo de Camargo, Paulo Co-
lina, entre outros, como exemplo
de poesia negra, ou seja, a produ-
nos contos de ção poética em que o negro bus-

Cuti
ca assumir-se criticamente como
sujeito da enunciação. Não mais
a poesia falando sobre o negro,
ao modo de Castro Alves e Jorge
de Lima, mas, sim, “um-eu-que-
-se-quer-negro, evidenciando
uma ruptura com uma ordena-
fotos: reprodução internet
ção anterior que condenava o ne-
gro a ocupar a posição de objeto
ou, melhor, daquele de quem se
fala”, nas palavras de Zilá Bernd.
Nesse mesmo livro, atendo-se
à realidade brasileira e à produ-
ção literária de autoria negra,
Zilá aponta a predominância da
Cuti (pseudônimo poesia sobre o conto e o romance
até então. Há um discurso poé-
de Luiz Silva), tico dando conta do “processo
de transformação da consciência
doutor em negra”, mas não há, ainda, uma
narrativa nesse mesmo padrão.
Literatura A causa, segunda a autora, é que
“para a maturação de um roman-
Brasileira pela ce negro brasileiro, algumas eta-
pas ainda precisam ser vencidas,
Unicamp, tem como o resgate da sua participa-
ção na História do Brasil, sobre a
produção na área qual tantas sombras se projetam,
e a definição de sua própria iden-
do ensaio, da tidade. Para que exista um dis-
curso ficcional do negro é preci-
so que o negro defina a imagem
poesia, do teatro,
que possui de si mesmo e que
consolide o processo já iniciado
do conto e da de construção de uma consciên-
cia de ser negro na América”.
literatura juvenil. O livro de Zilá Bernd é de 1988.
De lá para cá, muita coisa mu-
dou em relação a isso, inclusive
Geraldo Lima com o aumento no número de
Especial para o Correio das Artes pessoas que, segundo as últimas
pesquisas realizadas pelo IBGE,
têm se reconhecido como negras.

M
eu primeiro contato com a obra literária de Cuti deu-se Partindo então desse raciocínio,
através da poesia, mais precisamente com seus poemas podemos entender o crescente
publicados nos Cadernos Negros, do coletivo Quilom- número de escritores negros bra-
bhoje-Literatura – do qual ele foi um dos fundadores sileiros que trazem a público nar-
–, e no livro de Zilá Bernd, Introdução à Literatura Negra rativas em que homens negros e
(editora brasiliense). Nesse livro, no capítulo intitula- mulheres negras são protagonis- c

18 | João Pessoa, julho de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


c tas. É o caso, aqui, de Cuti, com
seu livro Contos escolhidos, publi-
cado pela Editora Malê. A Malê,
diga-se de passagem, veio com a
proposta de publicar e dar visibi-
lidade aos autores negros.

A questão racial
e seu enfoque
ficcional
Cuti (pseudônimo de Luiz
Silva), doutor em Literatura Bra-
sileira pela Unicamp, tem produ-
ção na área do ensaio, da poesia,
do teatro, do conto e da literatura
juvenil. É um dos expoentes da
geração de autores negros que,
no final dos anos 70, começou a
publicar, de forma independen-
te, poemas marcados por uma
voz descontente com a situação
do povo negro no Brasil. Nesse
seu livro de contos publicado
pela Editora Malê, ele se revela
um prosador hábil e conhecedor
da alma humana. Nos dezesseis
Contos escolhidos tem selo da
contos reunidos no livro, o leitor Malê, editora cuja proposta é
vai se deparar com uma temáti- publicar e dar visibilidade aos
ca variada, como violência urba- autores negros
na, inveja, desejo de vingança,
marginalidade juvenil, ciúme,
racismo, questões de identidade
racial, dificuldade financeira etc.
E, o mais importante, vivida por cês. E o seu povo?” A sua atitu-
protagonistas negros. de radical cria, como se pode
Para se ter uma ideia de como imaginar, um clima tenso e pe-
o autor trata a questão da iden- rigoso durante a comemoração
tidade racial a partir da narrati- do batizado. Naquele momento
va ficcional, vamos tomar como de festa e alienação, sua postura
exemplo o conto “O batizado”, é a do chato, do estraga-prazer
que abre o volume. Nesse conto que vem anunciar uma verdade
narrado em terceira pessoa, mas incômoda, a qual todos querem identidade cultural que propicia
com o fluxo de consciência dan- ignorar. É em meio a essa tensão a dominação de um povo por
do conta do desespero que vai familiar, de confronto entre vi- outro. A sua atitude nos lembra,
tomando conta de alguns perso- sões de mundo opostas, que a de certa maneira, a de Policarpo
nagens, o protagonista Paulino, narrativa deixa claro a fratura Quaresma, que, no seu naciona-
jovem e militante da causa ne- presente na formação da nossa lismo exacerbado, propõe o tu-
gra, critica duramente o fato de identidade racial, que começa, pi-guarani como língua oficial.
terem colocado no sobrinho um obviamente, no instante em que O tema do racismo está pre-
nome que não tem ligação algu- os africanos são trazidos à força sente, de modo mais explícito, em
ma com a cultura africana. “Ou- para o Brasil e, como estratégi- dois contos: “Preto no branco” e
çam o nome do meu adorado so- ca de dominação imposta pelos “Conluio das perdas”, ambos
brinho: Luizinho... Já não chega brancos escravagistas, são reno- narrados em primeira pessoa.
o sobrenome Oliveira? Luiz é meados de acordo com a cultu- No primeiro, temos aquela famo-
nome de qual ancestral? Refere- ra dos seus senhores. Embora a sa situação do negro que começa
-se a qual matriz cultural? E, mi- atitude de Paulino possa pare- a namorar uma mulher branca
nha gente, o nome é de origem cer exagerada e sem propósito, e tem que enfrentar a resistên-
francesa. Significa defensor do reivindicando que os negros cia da família dela, neste caso,
povo... que não é nosso povo. O brasileiros passem a adotar no- a resistência maior, com efeitos
meu sobrinho é, pelo significado mes de origem africana, ela nos trágicos, vem do cunhado. No
do nome, defensor do povo fran- faz refletir sobre essa perda de segundo, a situação de racismo c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2018 | 19


c é bem corriqueira, aquela em personagem, à deriva,
que o indivíduo negro é sempre vai nos arrastando jun-
visto como bandido. Neste caso, to para dentro do seu
ao ser confundido com bandidos desespero e do seu tor-
que assaltam um banco, o jovem velinho mental. Com
Malcolm fica traumatizado e de- frases curtas, torna
cide tomar outro rumo na vida ainda mais acelerada
quando já estava na iminência e asfixiante a situação
de prestar vestibular para En- do protagonista. A ten-
genharia. Essa sua decisão afeta são é sempre grande e
sobremaneira a vida do seu pai, a expectativa do que
narrador dessa história e cuja vai acontecer não nos
existência é marcada pela perda deixa abandonar a lei-
e pela vivência também de situa- tura. Nesse caso, Cuti
ções de racismo. pode ser colocado, sem
Outras questões raciais mar- receio algum, ao lado
cam a vida dos personagens de Machado de Assis,
dessas histórias de Cuti, como a Dostoiévski, Gracilia-
do protagonista do conto “Lem- no Ramos e Dyonélio
branças das lições”. A história é Machado. É preciso
narrada no tempo presente pelo ressaltar ainda o senti-
protagonista que, ainda crian- do poético que o autor
ça, vê-se massacrado psicoló- imprime à linguagem
gica e moralmente na aula de de alguns textos, nos
História, cujo tema é a escravi- surpreendendo às ve-
dão. Além do riso e dos olhares zes com belas imagens
sacanas dos colegas brancos, o como estas: “Apenas
que afeta mais ainda o prota- o silêncio empedrado
gonista, aumentando-lhe a an- deu indícios de que ele
gústia e o incômodo, é o modo não estava bem” (Não
como a professora desenvolve o era uma vez, pág. 61).
tema da aula, sempre realçando “A crueldade coloca-
algumas palavras, como negro e -lhe o revólver suave-
escravo. “Parece ter um marte- mente na mão” (“Não
lo na língua e um pé-de-cabra era uma vez”, pág. 65).
abrindo-lhe um sarcasmo de “Júlio foi povoado de Os contos de Cuti
canto de boca”, ele observa. pensamentos violentos, relâm- são um convite para
se mergulhar nas
Esse tipo de tormento e vergo- pagos desatados riscando o questões étnicas e nas
nha tem afetado, com certeza, céu de dentro” (“Ponto riscado contradições sociais que
muitas crianças negras em sala no espelho”, pág. 67). “Olha- marcam a formação do
de aula, levando-as, como o va apenas aquele inferno vivo, povo brasileiro
narrador dessa história, à tenta- nele procurando, talvez, algu-
tiva de evasão escolar. ma faísca de bondade” (“Limi-
te máximo”, pág. 123). Noutros
casos, é a ironia e o sarcasmo
Domínio da que atravessam suas narrativas,
técnica narrativa acrescentando-lhes um sabor
ácido e cortante.
e criação Os contos de Cuti, presentes
de tensão no livro Contos escolhidos, são,
psicológica sem dúvida alguma, um convite
para mergulharmos nas ques-
Alguns aspectos de carácter tões étnicas e nas contradições
literário e estilístico devem ser sociais que marcam a formação
destacados nos contos que for- do nosso povo. Mas, acima de
mam esse volume, pois são eles tudo, são um convite à leitura de
que revelam, aos nossos olhos textos ficcionais que nos reme-
de leitores, o escritor em pleno tem à reflexão e nos arrancam
domínio da técnica narrativa. da cômoda posição de enxergar-
Em dois contos, “Dupla culpa” mos a nossa realidade apenas de Geraldo Lima é natural de Planaltina
(GO) e reside em Brasília (DF). É
e “Não era uma vez”, Cuti mos- um ponto de vista, o dos prosa- escritor, dramaturgo e roteirista.
tra-se um hábil criador de ten- dores brancos e, geralmente, de Blog: Baque-blogdogeraldolima.
são psicológica, dessas em que o classe média. I blogspot.com.br.

20 | João Pessoa, julho de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


P O E S I A

Joaquim Branco
A morte dirigível
Drones são naves solitárias
que seguem um remoto comando
e, como folhas ao vento
ou como aves sem bando,
viajam no silêncio e na sombra.

Em seus bicos, trazem inscrita


a morte secreta e dirigível
que localiza em voo sinistro,
por um toque celular,
alguém que esteja no deserto,
no mar ou no indizível.

Um drone corta o espaço


em fatias de simples decupagens,
como se a viagem fosse apenas
pelo prazer do ar em suas penas.

Noturnos, eles traçam um voo cego


para pegar de surpresa o inimigo
ou qualquer um que desafie
o Império, o Poder, o Ego.

Voltam depois, na mesma noite-asilo


de que saíram, pois são velozes
vorazes assassinos do ar,
e, como estes, vão dormir tranquilos
nos hangares da inconsciência.

ilustração: domingos sávio

Joaquim Branco nasceu e


mora em Cataguases (MG).
É poeta, crítico, jornalista
e professor universitário.
Publicou, entre outros
livros, Concreções da fala,
O caça-palavras, Passagem
para a Modernidade,
Verdes vozes modernistas
e Refugiados.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2018 | 21


POE

Bruno Fa
o gotejo do luar é um grão remoto
que a cereja do destino nunca vê
o choro e a flauta
quando a vi com tais olhos reluzentes já lento aflito que revolta o passo
olhos vagos, charmes de outro ser segue o menino a tornozelos ir
eu não tinha e não pude perceber varrendo as flores dos quintais daqui
que mais forte que a queirança é o querer dormindo o sono de seu descompasso
e o querer fez em mim tamanho espanto
pois a ela nunca quis me dirigir é o menino das notas de flauta
só um verso de olhar e me trai que toca amores e seus vendavais
como alguém trai a marcha de uma moto que beija a boca de seus carnavais
o gotejo do luar é um grão remoto no arpejo adoça, pula, brinca e salta
que a cereja do destino nunca vê
faz o destino o verbo do menino
tropecei por revés, redemoinhos quando ao olho de seu desatino
fiz carinho n’outras flores, n’outro ser reluz a face louca de outro ser
mas a rosa que estancou o meu viver
é a rosa que me abre toda noite quando que toca ele um novo choro
quando deito me enlaço no açoite e o coração repete o mesmo choro
do sorriso e da verdade aquariana do amargo doce gosto de viver
que um dia me contou uma cigana
e eu não vi e nem quis dar o meu voto
o gotejo do luar é um grão remoto
que a cereja do destino nunca vê
roma
lá no alto da montanha ela pairava
sobre o sonho que a Áustria entristecia o amor é mentira nos olhos do juiz
mas ao ver um dicionário que dizia intocável,
tudo fica num silêncio resguardado arbóreo,
hoje eu tenho o coração apaixonado lascivo
pela febre que arde no querer o amor é um giz
pelo sonho que não pode deixar ser de onde todos os pós se agrupam
o segredo da paixão é uma foto de onde todos já não se escutam.
o gotejo do luar é um grão remoto o amor disse kiss
que a cereja do destino nunca vê o amor disse quis
no pretérito
nas profecias
nas barbas
coração da manhã e nos cajados
o orvalho da manhã
saliva na folha e se vai nos quereres iconoclastas
como se vão também meus pensamentos nos saberes dos castos
se diz:
o bule vazio, cadarços soltos - o amor é o futuro inaudível:
as meias postas ao chão vivem palavras das figuras romanas
palavras que não foram ditas das paixões suburbanas
no coração da manhã dos ventos que pairam no céu
o amor é o fruto perfeito
a clave da Lua dá seu tom é um cristo no leito
como tons de cachos de uva o amor,
minha vida é viver o horizonte em verdade
é o réu
é noite
preciso dormir

22 | João Pessoa, julho de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


SIA

no Falcão
ilustração: tônio

a cascavel
a cascavel mora ao lado da boa noite
e finge reter solidão
pra esmaltar a razão
do apreço que não se conhece

sabe ela e se esquece


que o xique-xique do tempo
tem ouvidos como espinhos

mas vive a reter os carinhos


- da peça do atirador
lançando o veneno no ar

e o que se faz a sobrar?


se não o silêncio a cair
no guizo da contramão...

cascavel que rasteia o mundo


não sai do chão

Natural de João Pessoa, onde


reside, Bruno Falcão é profes-
sor, poeta e músico. Bisneto
do poeta paraibano Américo
Falcão, Bruno está produzindo
durante este ano trinta poe-
mas que serão reunidos em seu
primeiro livro, com previsão de
lançamento em 2019, quando o
autor completará 30 anos.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2018 | 23


POE

Luiz Fernande
Soletrando Meditando Ruídos da tarde nº 1
Soletro o futuro O imaginário vive em mim. Há um barulho
nos sentimentos do mundo. Desejo abrir os braços do sol. e ruídos da tarde
E pela alquimia da memória Aparar a chuva com as mãos na cisterna da visão.
fantasio o ego. e trazer todos os elos Encanto mágico
Nas asas da fantasia na corrente da poesia. no pó do pensamento
semeio paisagens, Descubro um pensamento, e na ilha imaginária
atravesso horizontes, cruzo sete mares abro janelas,
abro o leque das ideias, sem galgar horizontes desfio nos dedos
traço símbolos e velejo sobre as ondas o mormaço do tempo.
e soletro o tempo na planície da minha imaginação. Lembranças alegres em
com a minha visão. Reflito os milagres da vida. estado de poesia.
Soletro a raiz dos sentidos Colho o sorriso na
e me alimento nas curva do amor
folhagens das palavras. e fico leve no leque
Poemeto do olhar.
Pouso a memória
nas águas
para dormir o oceano.

Re-memória
Percorro nos desvios de um mesmo
encontro meus versos
na rua da República.
Medito no dia
em que na correnteza do Sanhauá
banhei o rosto
e na toalha do vento o enxuguei.
A memória passeia
nos sonhos marcados

e a minha caneta registra

os segredos das linhas da mente.


Medito no menino calado
que fui
e nesta viagem meus olhos acordam,
ficam tatuados e
retidos sobre os anos.

24 | João Pessoa, julho de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


SIA

andes da Silva
Versão nº 1 Miragem Meditando nº 2
Em transe Este mar me leva
Apenas silencio.
atravesso os instantes. a eternidade das coisas
A paz percorre
Brinco dentro de meus olhos viajam
a mente.
uma caixa cheia de palavras pelas tatuagens
Lembranças desatam
e reajusto os teoremas da infância.
meditação nesta
de linguagem. O mar e a infância
manhã.
Ao habitar um vazio são duas lâmpadas
Respiro comigo
geométrico da memória
e busco pouso
mergulho nas ondas sob o peso de meus sonhos
no voo amplo e
da meditação menino-ciranda-já fui.
infinito de minha meditação.
e me consumo por inteiro Hoje fico na areia
corpo e alma. com a manhã nos ombros.
Ainda
nas mãos da solidão
escorrego em fragmentos
da tua imagem.
ilustração: domingos sávio

Luiz Fernandes da
Silva é paraibano e
reside em João Pessoa
(PB). Poeta premiado, é
autor de vários livros,
entre eles, Balada de
um instante, Poemáti-
ca, Exílio do silêncio e
Universo poético.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2018 | 25


6 imagens amadas
João Batista de Brito
brito.joaobatista@gmail.com

Cinema
noir
,

N
ão faz muito tempo que publiquei aqui minhas “Notas sobre o noir”,
onde levanto os traços gerais desse subgênero cinematográfico tão
pessimista e tão amado. Pois, para retomar o assunto reproduzo
abaixo um trecho dessas “Notas”:
“Formalmente, eram filmes em preto-e-branco, cheios de
sombras e angulações fora do comum, com ambientações ur-
banas e música sombria. Na perspectiva do conteúdo, os fil-
mes noir eram estórias policiais envolvendo crime, sexo, cul-
pa, mistério e punição; os protagonistas podiam ser detetives
particulares, policiais, gangsteres, ou mesmo cidadãos comuns
vítimas de ciladas... O período áureo do noir foi a vintena que
vai de 1940 até os finais dos anos cinquenta. O que se fez de-
pois disso, nos parâmetros do gênero, foi derivação, e, o que se
fizera antes tinha sido premonição. Tanto é que Relíquia macabra
(1940) é dado como sendo inaugural e A marca da maldade (1958)
é considerado um dos últimos noirs autênticos.

Para historiadores e estu- mo não existia, pelo menos não são parte de um projeto de pes-
diosos, o gênero noir brotou da na acepção hoje conhecida. Foi o quisa maior, com a intenção que
combinação estética de duas crítico francês Nino Frank quem alimento de escrever um longo
coisas diferentes: de um lado a primeiro o usou com esta acep- ensaio sobre o assunto, a ser –
literatura policial americana dos ção, em 1946: “Noir” (´negro´ em quem sabe? – editado em formato
tempos da Depressão, tipo: Da- francês) era a cor da capa das pu- de livro. Delas já faz parte um ca-
shiel Hammet, Raymond Chan- blicações policiais em que esses derno com fichamento de quase
dler, James M. Cain, etc.; de ou- filmes eram baseados, e o crítico 150 filmes noir, com ficha técnica,
tro, o movimento expressionista francês achou que era um termo resumo do enredo e comentários
alemão dos anos vinte, trazido a bem apropriado para definir o críticos meus.
Hollywood por imigrantes como gênero. O termo, porém, não pe- Escreverei um dia esse livro?
Fritz Lang e outros. Da primeira, gou logo, pois, segundo consta, Não sei, mas, por enquanto, aqui
ele herdou a narrativa hardboi- os próprios cineastas america- comento três filmes que consi-
led, pessimista e de final infe- nos não gostaram dele. Só veio dero exemplares do estilo noir, a
liz; do outro, a plástica gótica. a pegar muito mais tarde, dos saber: Um retrato de mulher (The
Salvo exceções, eram produções anos 70 em diante, quando os woman in the window, 1944,
B, ou seja, de orçamentos limita- historiadores do cinema passa- Fritz Lang), Pacto de sangue (Dou-
dos, mas, o engraçado é que, ao ram a usá-lo de forma retroativa ble indemnity, 1944, Billy Wilder)
tempo em que se produziam os e sistemática.” e O grande golpe (The killing, 1956,
filmes noir em Hollywood, o ter- Pois estas “Notas sobre o noir” Stanley Kubrick). c

26 | João Pessoa, julho de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


6 imagens amadas

c
Um retrato de mulher
Fotos: reprodução internet

Grosso modo, Um retrato de


mulher conta a desafortunada
aventura desse bem-comportado
professor universitário de psi-
cologia criminal, o Sr. Richard
Wanley, que, meio por acaso, se
envolve com o crime e, nesse en-
volvimento involuntário, vem a
cometer uma atitude drástica.
Como Hitchcock, Fritz Lang
foi um desses cineastas que
sempre trabalhou com o medo
e Um retrato de mulher explora
essa emoção de uma forma do-
lorosa para o espectador que,
depois de meia hora de projeção,
não consegue mais desgrudar
os olhos da tela. Há pelo menos
dois fatores que concorrem para
esse efeito. Um deles é que o en-
volvido no universo do crime, é,
apesar da profissão, um cidadão
comum, inocente como nós, sen-
do obrigado pelas circunstâncias
a agir como culpado. O outro Joan Bennet
fator é que, sendo indiretamen- e Edward G.
te da área, esse mesmo cidadão Robinson em Um
retrato de mulher,
acompanha (conosco) o anda-
1944, do austríaco
mento das investigações nos Fritz Lang (1890-
seus mínimos detalhes, detalhes 1976)
estes que, inevitavelmente, de-
verão incriminá-lo no final da
estória. E isso sem que ele, como tragédia e comicidade. matá-lo com uma tesoura. Diante
nós, nada possa fazer, a não ser Nessa agonia de esperar que disso, o que fazer? Ligar para o
esperar, em desespero íntimo, a uma vítima inocente seja massa- polícia, ou, já que o morto era um
deflagração. crada pela justiça, o espectador, desconhecido de ambos, livrar-se
Não precisa dizer que há um preso a essa lógica de pesadelo, é do corpo e calar?
terceiro fator: o talento da direção mantido até um ponto de quase Com base no romance de J. H.
em, com recursos de toda ordem, insuportabilidade. Wallis, o roteiro de Um retrato
nos envolver na estória como se A única imprudência do Prof. de mulher foi feito pelo grande
fosse a nossa. Um desses recur- Wanley foi, num dia em que a es- Nunnaly Johnson (roteirista de
sos está no próprio roteiro, que, posa e os filhos estavam viajando, As vinhas da ira, Jesse James e As
em momentos cruciais do pro- ter se deslumbrado com uma pin- três faces de Eva); a fotografia é de
cesso de investigação faz o Prof. tura exposta numa vitrine, repre- Milton Krassner, e a música da
Wanley se trair diante de seus sentando um rosto feminino. Ao dupla, indicada ao Oscar, Arthur
colegas, como que a oferecer fitar o quadro, a modelo por acaso Lang e Hugo Friedhoffer. No
sua culpa de bandeja, quando aparece: os dois conversam sobre elenco está o magistral Edward
ninguém tinha, ainda, qualquer o retrato, saem para um drinque, G. Robinson, na pele atormenta-
razão para tomá-lo sequer como depois, com muita relutância do da do professor Wanley, e os pa-
suspeito. Nesse sentido, aquela professor, para o apartamento péis de apoio são feitos por: Joan
cena em que a polícia visita o dela, com o pretexto de ver ou- Bennet (a moça do retrato), Ray-
local onde o corpo da vítima foi tros quadros. Nesse ínterim, um mond Massey (o promotor públi-
encontrado, e o Prof. Wanley se freguês da moça aparece, ataca co), Dan Dureya (o chantagista
adianta no mato na direção certa violentamente o professor que, que complica o caso) e Arthur
é impagável na sua mistura de em legítima defesa, é obrigado a Loft (o freguês assassinado). c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2018 | 27


6 imagens amadas

c
Pacto de sangue

“Caro Keyes, suponho que


você vai chamar isso de confissão.
Não gosto da palavra confissão.
Só quero lhe contar algo que você
não teve condição de perceber,
justamente porque estava diante
do seu nariz. Matei Dietrichson,
eu, Walter Neff, corretor de segu-
ros, trinta e cinco anos, solteiro,
sem cicatrizes visíveis. Ao menos
até um momento atrás...”
Com este diálogo, ditado a um
gravador, começa Pacto de sangue.
A confissão de Neff, o protago-
nista, é feita no escritório da com-
panhia de seguros onde trabalha,
e o futuro interlocutor será seu
colega e amigo, o inspetor Bar-
ton Keyes, que investigava o caso
Dietrichson. Depois das reticên-
cias, Neff passará a explicar por-
que tem agora as cicatrizes que
não tinha, e nessa explicação vai
todo o enredo do filme, reconsti-
tuído em longo flashback pessoal. Barbara Stanwyck
Havendo sido honesto a vida e Fred McMurray
em Pacto de
toda, Neff fora um dia à man-
Sangue, 1944, do
são dos Dietrichson para uma norte-americano
mera renovação de seguro de (de origem
automóvel. Lá conhece Phyllis, a polonesa) Billy
Wilder (1906-
estonteante Sra. Dietrichson, se
2002)
impressiona, e logo, logo, desiste
de sua eterna e monótona hones-
tidade. Com ela planeja e execu-
ta, nos seus mínimos detalhes, não a dependência de sua par- estava, desde sempre, fadado a
a “acidental” morte do Sr. Die- ceira. Seu modelo, portanto, está fazer o que fez, como um perso-
trichson, não sem antes fazê-lo, longe de ser o do inocente que a nagem trágico carregando sua fa-
inadvertidamente, assinar uma revelia de si mesmo se envolve lha. E o processo de sua narração
fabulosa apólice de seguro que com o crime, a la Hitchcock. Tam- em primeira pessoa parece que
deixaria para a mulher uma du- pouco é o do Adão até então ho- desencadeia nele mesmo a cons-
pla indenização (vide título origi- nesto que age mal por influência ciência dessa fatalidade.
nal do filme) no valor de cem mil de uma Eva pecadora. “Nenhum beijo apaga um cri-
dólares. Programado e executado Claro que o filme não abraça me”, dizia o slogan de propagan-
como a queda de um trem em qualquer lição de moral, do tipo da no cartaz do filme ao tempo de
velocidade, o crime era perfeito, “o crime não compensa”. Deve sua estreia, certamente remeten-
ou pelo menos assim parecia, até ter sido para evitar moralismos do àquela dramática cena final
que Keyes começa a desconfiar desse tipo que Billy Wilder, de úl- em que Phyllis, abraçada a Neff
da excessiva boa sorte da viúva, e tima hora, decidiu cortar os der- depois de o haver atingido com
passa a segui-la noite e dia. radeiros fotogramas filmados os uma bala, lhe confessa, sincera-
A câmera que, substituindo a quais, segundo consta, exibiam mente ou não, que só descobrira
voz de Neff no ditafone, recons- Neff agonizando na cadeira elé- que o amava um instante atrás,
titui sua estória em imagens, nos trica. Ainda bem que o fez. Como quando não teve a coragem de
mostra que ele entrou de cabeça um bom “noir”, o filme apenas se disparar o segundo tiro, e ele,
no projeto da “dupla indeniza- compraz em, maldosa e sadica- sem acreditar (ou acreditando?)
ção”, com a cumplicidade, mas mente, nos demonstrar que Neff sumariamente a mata. c

28 | João Pessoa, julho de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


6 imagens amadas

c
O grande golpe

O grande golpe tem todos os in-


gredientes do gênero “noir”, a co-
meçar pela fotografia em preto e
banco de Lucien Ballard, compos-
ta de sombras, cortadas por focos
de luz localizados. A câmera de
Stanley Kubrick é, na verdade,
quase um personagem, a pers-
crutar friamente o decorrer dos
acontecimentos, como se apos-
tando maldosamente no fracasso
do empreendimento.
Desempenhado pelo ótimo
Sterling Hayden, o protagonis-
ta Johnny Clay é esse ex-presi-
diário que concebe e executa o
engenhoso e ousado plano de
apropriar-se de dois milhões de
dólares, o apurado do hipódro-
mo no dia de uma grande cor-
rida. Para tanto, ele precisa de
sócios que banquem o capital
inicial e de operadores que fa-
çam tarefas periféricas, como, no
momento exato, provocar uma
briga de disfarce, atirar num ca-
valo, ou apanhar uma sacola jo-
gada de uma janela. O grande golpe, 1956, do
Clay é o cabeça, mas o assal- norte-americano Stanley
to (e o filme) tem uma penca de Kubrick (1928-1999), tem
todos os ingredientes do
coadjuvantes, dos quais destaco
gênero “noir”
a dupla feita por Elisha Cook e
Marie Windsor, ele, o marido
fraco e tolo, ela, a mulher esperta
que, com manhas conjugais, ar- terminando no mesmo ponto, de uma chuva de cédulas.
ranca o segredo do plano e o re- modo que se vê o já visto toda vez Este tipo de desenlace é o que
passa ao amante, o qual, por sua que as ações confluem. os comentadores de filmes poli-
vez, decide ter uma participação O grande golpe pode ser lem- ciais de antigamente costuma-
nos lucros, depois do assalto brado por muitos fatores. Entre vam chamar de ´o dedo de deus´,
consumado. outros, eu gosto de lembrá-lo por o fator metafísico que vinha ao
Em assumido ponto de vista aquela cena final, hoje antológi- encontro da moral, segunda a
onisciente, a narração nos conta - ca. Depois do assalto efetuado, já qual “o crime não compensa”.
em voz over – o que acontece no no aeroporto, os ansiosos Johnny Em O grande golpe o interessan-
dia do assalto a cada um dos en- Clay e sua namorada embarcam te é que esse desenlace, antes de,
volvidos, isto com indicações ver- a mala contendo a fortuna rou- externamente, confirmar os có-
bais de hora e minutos, como se bada. Seria o final feliz, não fosse digos do gênero, internamente,
estivéssemos acompanhando um por um cachorrinho que, se sol- confirma o papel da câmera de
relatório. Como os personagens tando dos braços de uma mada- Kubrick, o já citado, de apostar
são muitos (uns nove ou dez) e me, corre para a pista de voo e no pior. Com a pequena ironia
as ações, embora ocorrendo em faz o manobrista do carrinho que de o pior para os protagonistas
locais diferentes, sejam inevita- levava as bagagens derrubar a ser o melhor para o filme. I
velmente simultâneas, o tempo mala; com a pancada no piso, esta
narrativo se desloca para frente e abre-se e, com a ajuda do vento, João Batista de Brito é escritor e
para trás, em cada caso, recome- proporciona aos presentes estu- crítico de cinema e literatura. Mora
çando com cada personagem e pefatos um espetáculo inusitado: em João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2018 | 29


6 cultura popular
fotos: divulgação

Cordel
em tese:
a importância da
preservação da cultura
popular

Fernando Vasconcelos
Especial para o Correio das Artes

Q
uando era adolescente (e lá se vão muitos anos) entre a xidade descritiva e, no tocante
cidade de Pedra Lavrada e o Seminário Franciscano de ao produtor intelectual, contro-
Ipuarana, em Lagoa Seca, Paraíba, admirava e chega- vérsias em função do papel do
va até a gravar as costumeiras cantorias. Conterrâneo proprietário e autorproprietário
de José Alves Sobrinho, grande cantador de viola e do- daquele verdadeiro arsenal de
tado de sapiência incomum, nunca pensei que, após obras poéticas. Quais eram os
quarenta e seis anos de magistério iria participar de verdadeiros autores daqueles fo-
uma Banca de Defesa de Tese, cujo objeto era o Cordel lhetos? Haveria plágio? E, depois
e o Direito Autoral. da Internet, como controlar tudo
Orientada pela professora doutora Bernardina isso?
Maria Juvenal Freire de Oliveira, atual Vice-Reitora A doutoranda Manuela Maia
da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), a jovem começou a pesquisar acerca
Manuela Eugênio Maia elaborou interessante traba- dessa distinção entre autor
lho sob o título Práticas autorais do cordel no contexto da e proprietário que, de
propriedade intelectual. Segundo a autora (e, agora, dou- modo diacrônico, en-
tora), “o cordel, enquanto documento é um tema pou- volve a percepção
co explorado no âmbito das teses produzidas junto à dos cordelistas
Pós-Graduação em Ciência da Informação no Brasil. quanto aos
Dos 17 (dezessete) programas identificados pela Asso- mecanis-
ciação Brasileira de Educação em Ciência da Informa- mos refe-
ção (2014) e, correlacionados com os dados obtidos na rentes
Biblioteca Digital de Teses e Dissertações, há um cam- à c
po potencial para pesquisas que tratem desse gênero
literário no contexto da área”.
Manuela vem trabalhando nesse universo há mais
de uma década, principiado em 2006 pelo gerencia-
mento da Biblioteca de Obras Raras “Átila Almei-
da”, em Campina Grande. Ao analisar milha-
res de cordéis (os famosos folhetos) um dos
temas que lhe chamou a atenção foi o re-
lativo à autoria, principalmente, no to-
cante à disponibilização do conteú-
do digital na base desenvolvida
no âmbito daquela Biblioteca.
Debruçando-se sobre o
estudo do cordel, per-
cebeu uma comple-

30 | João Pessoa, julho de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


Professores componentes da banca (da
c propriedade intelectual e sua es- paralela à rua que dava início esquerda para a direita): Maria Elisabeth
fera legalista na atualidade. Des- em todas madrugadas de sexta Baltar, Jacqueline Echeverria Barrancos,
se modo, problematizou: “como a famosa feira de Caruaru, em Bernardina Freire de Oliveira, Manuela
Eugênio Maia (doutoranda), Antônio Rangel
se caracterizam e se efetivam as Pernambuco. Amanheciam-se
Júnior (reitor da UEPB), Marckson Roberto F.
práticas autorais do cordel no os sábados com a cantoria dos Sousa e Fernando Vasconcelos
contexto da propriedade intelec- repentistas e as declamações
tual? dos cordelistas na praça locali-
E aí passou a trabalhar o tema, zada em frente da citada feira.
tendo como objetivo geral do es- Vinte anos depois, em setembro
tudo o seguinte: analisar as prá- de 2006, estava a doutoranda histórias mirabolantes. É tam-
ticas autorais do cordel no con- morando em Campina Grande, bém nominado no contexto so-
texto da propriedade intelectual. cidade tradicionalmente afeita cial sob o título de “folheto”,
Nessa direção, a tese buscou a à cultura popular, coordenando produzido no Brasil em finais
comprovação de que “a autoria as atividades de ordem técnica do século XIX até os dias atuais,
no cordel se caracteriza em três frente a um dos mais significa- de forma peculiar e artesanal,
perspectivas: o ineditismo, o plá- tivos acervos de cordel do mun- com uso de imagem na capa,
gio e a intertextualidade, quando do: a já mencionada Biblioteca usualmente xilogravuras, técni-
o documento perpassa o proces- de Obras Raras “Átila Almeida” ca milenar de reprodução ima-
so de ressignificação autoral”. E (BORAA). gética. O cordel possui um tipo
a pesquisa envolveu a tríade me- Ao abrir as portas daquela ins- de estrutura textual metrificada
mória, propriedade intelectual e tituição e observar o inigualável em versos rimado, fazendo uso
direito autoral, numa perspecti- mundo literário deixado por seu de vocábulos e expressões re-
va da multiplicidade de sentidos, titular (que ultrapassa, em muito, gionais, expressa o modo de ler
ancorando-se na hermenêutica o universo do cordel), a rememo- o mundo do homem cotidiano
enquanto mecanismo de inter- ração à infância da pesquisadora com os preconceitos inerentes à
pretação, incluindo o sujeito no foi imediata, conduzindo-a ao sociedade e, por vezes contidas,
seu universo simbólico, cultural universo dos folhetos e inaugu- não registradas em outros supor-
e processual. rando uma nova etapa crucial na tes de informação.
A abordagem quanti-qualita- sua vida acadêmica, culminando No caso do cordel, o seu es-
tiva da autora levou a pesquisa no processo de doutoramento. paço permite liberdade nar-
a assumir características docu- Assim, os livros, os folhetos de rativa ilimitada; os tabus
mental, bibliográfica e descriti- feira, bem como outros registros e os bons costumes po-
va, utilizando-se dos seguintes e práticas informacionais pas- dem ser deixados à
instrumentos de coleta de dados: saram, equitativamente, a ser margem e, em ri-
entrevistas com cordelistas e per- relevantes para a pesquisa, pro- mas, os poetas
sonalidades relacionadas; análi- duzindo significativo impacto no expõem o
se de 1.404 cordéis digitalizados reconhecimento ou construção/ que mui-
oriundos do acervo da Biblioteca invenção nessa nova etapa de tos de
de Obras Raras “Átila Almeida”. sua vida. nós c
A tese demonstra que o cordel
AS FEIRAS DE é um documento possuidor de
forte potencial informativo, pois
CARUARU E DE o sentido ocorre quando os
CAMPINA GRANDE sujeitos se reconheçam nos
versos que tratam dos
Para a construção da tese a fatos reais, biográficos
autora voltou às suas “memórias e/ou mitológico e/
afetivas”, ao remeter sensações ou podem, ain-
experienciadas a outras já viven- da, descrever
ciadas, a exemplo de quando se crenças,
iniciou o seu enlace com o cor- costu-
del. Morava ela com a família, mes e
em 1987, em uma simples casa

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2018 | 31


cordação dos que já viveram, vis-
ta principalmente nas biografias
e nas narrativas sobre persona-
gens reais, sejam históricas como
Lampião, Padre Cícero, Getúlio
Vargas, Elvis Presley, João Paulo
II, entre outros, ou locais, riman-
do homicídios, acontecimentos e
catástrofes.
Lembra a autora que o cordel
brasileiro vai assumindo carac-
Manuela Maia na posse do acadêmico terísticas próprias e, uma delas,
c pensamos, mas não podemos Medeiros Braga (à esquerda) na Academia é o seu caráter jornalístico. Ven-
enunciar em função das regras e Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC). didos e declamados nas ruas
do papel social do qual estamos Do lado direito, Chico Salles (falecido em
das feiras livres interioranas,
2017) e Gonçalo Ferreira (presidente da
posicionados! O professor Átila ABLC) foi inevitável a sua penetrabili-
Almeida e o cantador/poeta José dade no Brasil e o desabrochar
Alves Sobrinho enxergavam no e apropriação de um grupo de
cordel “tamanha sinceridade em talentosos poetas, inicialmente
meio a uma linguagem descon- nordestinos e nominados como
traída, atraindo o público, que se populares. No final do século
reconhece, se atualiza ou se dis- XIX e início do XX, num país
trai nas histórias reais ou imagi- de poucos alfabetizados, esses
nadas, caracterizando o folheto folhetos que vieram nos navios artistas cumpriram papel social
brasileiro como documento de portugueses, mas de um novo primordial nas esferas peda-
valor e de força identitários”. documento que surge com as gógica e cultural, conduzindo,
Para a professora Manuela peculiaridades e necessidades por meio dos escritos, informa-
Maia, esse argumento é compro- inicialmente nordestinas, encan- ções atualizadas sobre fatos e
vável pelo simples fato de, em tando e se fixando, viajando e se pessoas dos cenários regional,
todo o ocidente, apenas o Brasil expandindo pelo Brasil. Assim, nacional e internacional. Acres-
continua a produzir cordel, que pode-se entender que o cordel centa-se aos folhetos a promo-
sobreviveu ao jornal, rádio, tele- brasileiro não representa uma ção da prática leitora, reunindo
visão e internet; aliás, esta, em simples assimilação e reprodu- os letrados declamar os cordéis
particular, é responsável por sua ção dos folhetos europeus vin- para os iletrados.
ampla disseminação e divulga- dos no século XIX com a família Contudo, ao nominarmos
ção no século XXI. real portuguesa, mas foram res- “poetas do povo” ou “poetas
A crescente força e aceitação significados a partir das neces- populares”, desapegamo-nos
desse documento na sociedade sidades informativas e culturais de um sentido negativo; ao con-
brasileira são percebidas nas locais. A princípio, os folhetos trário, conforme destaque do
publicações de seus versos nos eram declamados em locais pú- conhecido poeta Manoel
textos escolares de norte a sul do blicos em função de número sig- Monteiro, “essa titula-
Brasil; e ganham novos forma- nificativo de iletrados no Brasil ridade tem o sentido
tos e formas de comercialização, do século XVI ao XIX, por isso, dos poetas que es-
a exemplo de livros vendidos o seu vínculo motriz com a orali- crevem o que
em livrarias e pela internet. Em dade, principalmente em feiras e o povo quer
pesquisa realizada no site da festas populares (de rua). ouvir/ler”.
Livraria Cultura (2018) em mar- O custo economicamente E s s e
ço do corrente ano, conseguiu acessível da produção gráfica tam- c
a autora listar 327 (trezentos e dos textos e o uso de vocábulos e
vinte e sete) títulos de narrati- expressões do cotidiano em meio
vas de cordel, como: Alice no país à simplicidade e à leveza poéti-
das maravilhas em cordel, O conde ca podem ter sidos favoráveis ao
de Monte Cristo em cordel, Cordel processo de mobilidade e a
encantado, A guerra de Tróia em aceitação do cordel. Sobre o
versos de cordel, Mitos brasileiros cotidiano, os folhetos as-
em cordel, O pequeno príncipe em sumem um duplo pa-
cordel, Shakespeare nas rimas do pel no processo de
cordel, Sonho de uma noite de verão m e mor i z aç ã o.
em cordel, Os três mosqueteiros em Por outro,
cordel, entre outros. também
Essa produção que floresce envolve
e permanece no Brasil desde a re-
o final do século XIX não evi-
dencia uma continuidade dos

32 | João Pessoa, julho de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


c bém é o sentido de “popular” dução de cordéis.
abraçado pela doutora Manuela. Abaixo, listamos alguns exem-
plos de versos de folhetos produ-
CORDELISTAS zidos por renomados cordelistas,
indicando seu compromisso com
FAMOSOS a informação cotidiana, a divul-
Assim, baseada, principal- gação e o conhecimento literário
mente nos seus inspiradores Al- e popular:
meida e Alves Sobrinho (1978, v.
1), lista a pesquisadora os corde- “As prostitutas do mundo,
listas e os seus campos de atua- muitos outros nomes têm:
ção profissional, asseverando a Um, Mulher da Vida Fácil,
transversalidade social quan- pois acham que vivem bem.
to à autoria desse documento. Mas isso é pura besteira. Quer
São agricultores, emboladores ver se a vida é maneira?
de coco, ferreiros, funcionários Caia na vida também.
públicos, jornalistas, médicos, Catraia, quenga, piranha: é as-
pescadores, policiais, políticos, sim que o povo chama;
professores, entre outros que biscate, puta, rameira, quebra-
compõem a rede de discursos -galho, mulher-dama
cordelísticos. Isso demonstra ganha nova identidade pra ser
a capacidade inclusiva e social Moça de Programa (MONTEI-
Poeta, cordelista e repentista
desse documento que, indepen- José Alves Sobrinho (1921- RO, 2004, p. 05-06,).
dentemente da atuação profissio- 2011)
nal, permite a sua produção. As Assim, assume importância
diversificadas ocupações labo- relevante, tanto para a Univer-
rais desses poetas permitem-nos sidade, como para a cultura po-
perceber, de forma transparente, pular, a tese de doutorado elabo-
a sua secularidade e vivacidade rada por Manuela Maia. E que
nos dias de hoje. outros estudiosos aprofundem,
do cotidiano, o cordel reforça o
O leitor, com certeza, já ouviu ainda mais, os estudos do cor-
seu papel informativo, notician-
falar, ou teve um parente que del na era tecnológica, na era do
do em rimas e em versos as tris-
diz ter conhecido, ou vivido ou plágio e das facilidades, sempre
tezas e as alegrias do dia a dia
visto o fato ou as personagens com o intuito de se preservar as
das comunidades.
narradas nos cordéis e isso es- nossas raízes e tudo aquilo que
Exemplo disso é o tema da
treita o interesse pelas histórias os cantadores de viola deixaram
falta de gasolina, narrada há
descritas. Por isso, o processo de para a posteridade. E
30 (trinta) anos pelo poeta José
empatia e de identificação se so- Francisco Soares, temática re-
lidifica, podendo assumir uma corrente ainda nos dias de hoje,
garantia de aceitação, perma- expressando o caráter atemporal
nência e perpetuação do cordel. desse documento. Ainda sobre o Fernando Vasconcelos é
Sendo os temas de caráter local referido poeta, escreveu sobre a professor, mestre e doutor
e nacional, vinculados aos fatos em ciências jurídicas,
Copa em que Brasil foi campeão; escritor, jornalista e
foto: Biblioteca da UEPB as cheias que assolam cidades promotor de justiça
nordestinas; se no século ante- aposentado. Mora
rior passamos pela gripe inglesa, em João Pessoa
(PB).
no século XXI, somos assombra-
dos pelas viroses; biografia en-
volvendo a vida e morte de per-
sonagens de políticos da região; e
a mãe que matou filho, caso que
sensibilizou a cidade de Limoei-
ro. Não foi sem tempo que José
Francisco Soares nominou-
-se de “Poeta Repórter”
(Campina Grande-PB,
05-01-1914 – Timbaú-
ba-PE, 0901-1981)1,
Professor, indicando a
jornalista, sua vertente
pesquisador j or n a l í s -
e folclorista Átila
Almeida
tica na
pro-

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2018 | 33


6 artigo ilustração: domingos sávio

Quero
vendado os mistérios de nosso intelecto (nossa razão),
afirmando entre outras coisas que ele está “ligado ao
córtex cerebral, cuja estrutura é resultado de uma evo-
lução moderna do cérebro”, e que, pasmem, “é simples
analisá-lo”, agora pretende explicar cientificamente

minha alma nada mais nada menos que nossos sentimentos, decla-
rando, de saída, que eles “advêm do tronco do cerebelo,
da espiral da medula, dos nervos periféricos, enfim, de

de volta
uma mecânica cuja origem se confunde com o princí-
pio da evolução dos seres vivos”. Também não entendi
nada, caro leitor, mas fiquei preocupado.
Vale lembrar que até então nossas emoções e nossos
sentimentos costumavam ser relacionados com nossa
“alma”, usada esta palavra com sentido religioso ou
Francisco Gil Messias não, simplesmente por entender-se que o ser humano
Especial para o Correio das Artes era composto de duas partes: o corpo físico, objetivo,
e de mais alguma coisa intangível (a “alma”), suposta
sede incorpórea de nossa subjetividade, ou seja, de nos-

Q
uem sou eu para discordar de sas emoções e de nossos sentimentos, a parte nobre do
António Damásio, célebre neu- nosso “eu”, que nos diferenciava dos demais animais.
rocientista português, mundial- Em outras palavras, a “alma” nos conferia uma espécie
mente respeitado? Aliás, quem de transcendência, de espiritualidade, qualidades au-
sou eu para me contrapor a qual- sentes nos demais seres vivos, estes sim, restritos à pura
quer neurocientista, seja ele fa- matéria. A “alma”, portanto, era um privilégio (uma
moso ou não? No entanto, ouso. graça?) do qual o Homo sapiens muito se orgulhava.
E digo porquê. Ninguém ousaria supor, e muito menos afirmar, que
O caso é que não bastasse a a emoção, o sentimento, o talento e a arte contidos num
neurociência pretender ter des- poema de Drummond, numa sinfonia de Beethoven, c

34 | João Pessoa, julho de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


foto: reprodução internet
sioso da ficção para assumir ares ciente rege os nossos músculos
de tese científica, o que implica quando, na verdade, ela é sub-
assumir que estamos realmente produto inócuo de uma cadeia
a um passo de sermos reduzi- de eventos eletroquímicos no
dos, em toda nossa riqueza sub- cérebro?”, “ É possível que toda
jetiva, à objetividade da matéria reflexão e pregação da ética es-
cerebral. Tudo passa a ter uma tejam calcadas no equívoco de
António Damásio, explicação neurológica, desde que possuímos liberdade de
médico neurologista e uma simples tristeza de namo- escolha e de que existem coisas
neurocientista português
rado iludido até a inesperada em nossas vidas que poderiam
inspiração criativa de um artis- ser diferentes do que são?” e “É
ta. E, em consequência, nossa possível que a missão da ciên-
antiga e até então irrespondível cia – única fonte de saber ob-
indagação “Quem sou eu?” ga- jetivo ao nosso alcance – seja
nha incontestável resposta: Eu reduzir todos os mistérios a
c numa pintura de Leonardo ou sou meu cérebro. trivialidades?”. Sim, é possível,
numa escultura de Michelânge- Não é preciso muito esforço o personagem responde. E con-
lo, por exemplo, pudessem de- para deduzir que as implicações clui: “Então algo tem de ser fei-
rivar exclusivamente de nossa disso para nossa vida são imen- to”. Mas a questão é: o quê?
massa cinzenta, de nossos circui- sas. Algumas delas: Se somos Curvado sob a complexida-
tos neuronais. apenas nosso cérebro, com a de do tema, tomo como minhas
Agora não. Agora, tal como a nossa morte, acabamos comple- as derradeiras indagações de
Minas do poeta, “alma” não há tamente. Não há possibilidade, Eduardo Giannetti: “Se eu não
mais: o cérebro tomou seu lugar. como pregam os cristãos e ou- existo, se não sei quem – ou o que
E se assim é (ou for), creio que é tros, de ressurreição nem de vida – sou, como se pensam os pen-
o caso de se dar adeus à psicaná- eterna. Não há o paraíso muçul- samentos que me atormentam?
lise, à metafísica e até talvez às mano, para onde iriam aqueles Não há caminho que me leve
religiões, pois tudo será passível que dão a vida por Alá. É prová- adiante?”. E acrescento: E este
de explicação científica, médica, vel que não haja mais vontade li- texto, e a angustiante motivação
e portanto solucionados todos vre de nenhum sujeito e portanto que me levou a meditá-lo e a es-
os problemas e angústias exis- não haja, como efeito, nenhuma crevê-lo são simplesmente fruto
tenciais (desde as filosóficas às responsabilidade de ninguém do funcionamento específico de
dores de cotovelo) por qualquer sobre nada. Crime e castigo? Não minha estrutura cerebral? E ain-
medicamento tarja preta. Isto é, mais. E aí? da: Poderia eu não tê-lo pensado
saem de cena o divã, o confes- Se somos só cérebro, é pos- nem escrito? E poderia tê-lo feito
sionário e a filosofia, e entram, sível admitir-se seu controle de outra forma?
vitoriosos, o Rivotril e o Prozac. através de drogas e cirurgias; Questões, questões e ques-
Simples assim? é possível nossa transformação tões que a neurociência pretende
Evidente que simplifiquei em robôs de carne e osso, nossa responder com a segurança e a
uma questão complexa, mas, em automatização (e escravização) certeza dos que possuem a Ver-
linhas gerais e numa linguagem a serviço de outrem, a extinção dade. Infelizmente, orgulhosas
leiga, é mais ou menos isto que a da humanidade tal qual a co- respostas a serem dadas ao ele-
neurociência está propondo. nhecemos. Exagero? Absoluta- vado custo da supressão de meu
É verdade que o filósofo bra- mente. Voltemos a ler 1984, de velho eu, de minha liberdade, de
sileiro Eduardo Giannetti já ti- George Orwell. minha identidade, de meus mis-
nha abordado, de forma ficcio- No capítulo final do livro, o térios, de minha subjetividade,
nal, essa discussão em seu livro protagonista de Giannetti faz enfim, de tudo aquilo que até
A ilusão da alma, de 2010. Nele, o algumas perguntas a si mesmo agora eu chamava, ingênua e ro-
protagonista, após a descoberta (e ao leitor). “É possível termos manticamente, de minh’alma.
de um tumor cerebral, concen- acreditado falsamente durante Devo ficar triste? Responda-
tra-se no estudo das relações milênios que a vontade cons- -me já o meu sábio cerebelo.E
cérebro-mente e se depara com
uma aterradora hipótese: “a ideia
de que tudo que lhe passa pela Filósofo brasileiro Eduardo Francisco Gil Messias, paraibano de
consciência – suas alegrias e tris- Giannetti, autor de A ilusão João Pessoa, onde reside, é bacharel
tezas, suas memórias, temores e da alma (2010) em Ciências Jurídicas e Sociais pela
Universidade Federal da Paraíba
foto: Evelson de Freitas/Estadão

esperanças, seu senso de identi-


(UFPB) e mestre em Direito do
dade e sua sensação de liberdade Estado, pela Universidade Federal
ao agir no mundo – nada mais é de Santa Catarina (UFSC). É membro
senão o produto da atividade de da Academia Paraibana de Filosofia e
do Instituto de Estudos Kelsenianos.
bilhões de células nervosas si-
Publicou os livros Olhares – poemas
tuadas em seu cérebro”. bissextos e A medida do possível (e
O problema é que agora tal outros poemas da Aldeia). Contato:
hipótese deixou o terreno fanta- gmessias@reitoria.ufpb.br.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2018 | 35


6 clarisser
Analice Pereira
marianalice@hotmail.com

Música1
é perfume
Para Raimundo Seixas
ilustração: domingos sávio

Canto 1
Um senhor culto e elegante treslouca numa cer-
ta madrugada. Na sala de sua casa, cheia de livros,
de discos, da ausência de amigos e nada mais, onde
mora com a companheira e quatro filhos. Treslouca
porque não aguenta mais a enganação. O senhor de
cabelos lisos e escorridos, penteados para o lado di-
reito e cheirando a erva-doce de banho recém-toma-
do, aumenta o volume da radiola onde toca no vinil
o primeiro movimento da sétima sinfonia de Beetho-
ven. Abafa seu grito inumano com a sinfonia. Um
grito que, ao invés de libertá-lo da angústia, entra na
alma e desvirgina a sua sanidade. A mulher, bem pe-
quenininha e de uma doçura que nada corresponde
ao seu tamanho, acorda com Beethoven àquela altura
e àquela hora da madrugada adentro. Entra na sala,
baixa o volume do som sem que seu marido perce-
ba, olha para ele e diz: “Vá ficar com ela. Eu cuido
dos nossos filhos”. Do lado oposto da rua, também
numa sala cheia de livros, de discos, da ausência de
amigos e nada mais, alguém, cuja silhueta não define
seu dono, escuta, em volume de som tão elevado, ca-
paz de despertar até os ouvidos surdos de Beethoven
morto, “High and dry”, do Radiohead. I

1 A expressão é tomada de empréstimo de uma fala de Maria Bethânia


que deu origem ao documentário que leva esse mesmo título. Em sua
fala a cantora faz a analogia entre música e perfume como elementos
que atuam de forma estimulante e determinante na memória.

36 | João Pessoa, julho de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


6 clarisser

Canto 2
Saiu pelo corredor à procu-
ra da sala onde daria sua próxi-
ma aula. Estava num inverno de
alma e aqueles cabelos tão longos
e soltos, mais a quantidade de
livros e jornais que carregava,
eram tão pesados quanto o gelo
consumido pela alma que seu
corpo abrigava. Arrastava-se.
Até a sala onde entregou a cha-
ve a um dos alunos. “Por favor,
abre a porta para mim?”. E, assim
como um bicho que se integra à
natureza, camuflando-se para se
alimentar das fontes que lhe são
oferecidas, sentia-se, ali, em seu
habitat natural. Olhou nos olhos
de alguns alunos e era como abrir
janelas para uma nova estação.
O gelo se vertia em rio de águas
doces, de palavras líquidas, can-
tadas na harmonia daqueles acor-
Canto 3
des de violão; na melodia da flau- Ela usava um vestido de um tátuas deslocadas por uma força
ta (ah... aquela flauta!). As falas tecido chamado à época de crepe invisível. Ali ensaiavam os pas-
dos alunos se integravam àqueles indiano pelo seu aspecto amassa- sos e entravam no terreiro, dois
acordes como a vida dela àqueles do. Um vestido de três saias liga- pra lá e dois pra cá, rodopiando
olhares. Assim perceberam, pro- das por sianinhas de tonalidades em torno de si mesmos. Seriam
fessora e alunos, a dor de um eu- da mesma cor: cor da terra batida capazes de abrir um buraco no
-lírico (pai ou mãe?) por ver nos daquele terreiro onde costumava chão onde dançavam, sem ritmo,
olhos do seu filho rindo a venda dançar. Seu pai trazia em seus desconectados daquela música,
que trancou sua vida breve e, no sobrenomes (Seixas e Bandeira) mas ligados num afeto cúmplice
nome que deu ao filho, a redução a veia artística que nunca desen- que só quem ama entende. Viver
a simples iniciais a mais na es- volveu. Engano. Era um exímio poderia se resumir àquilo: aquela
tatística das misérias humanas. dançarino. Naquela época, forró poeira levantada a cada arraste
Olha aí, meu guri! I pé-de-serra era dançado ao pé da de pé, confundindo-se cromati-
serra mesmo, num sítio pros lados camente àquele vestido enfeitado
do Pinga, na cidade de Horebe, à de sianinhas. Mas viver acabou.
luz de candeeiro e ao som tradi- Numa manhã de sol, exausto de
cional do triângulo, da zabum- respirar, ele levantou seu braço
ba e da sanfona. O metro e meio direito, aquele que laçava a cintu-
dela não permitia que alcançasse ra magra de sua minúscula filha e,
além do queixo do seu pai, que, no lugar da mão suave dela, trazia
quando pequena, a apelidara de o peso do que ia lhe fazer descan-
Nala, para reforçar as consoantes sar para sempre. Salvo por sua
que soam no seu nome de batis- própria mão. Estaria tristinho o
mo. Para dançar, ela colava sua pai dela? Muito triste e de memó-
fronte ao queixo dele. O braço ria tão embaçada que não lhe per-
dele laçava aquela cintura magra mitiu lembrar a canção que pode-
e as mãos dadas, entrelaçadas ria lhe trazer oxigênio de volta.
com firmeza, ficavam imóveis, Era tarde. Não batia mais aquele
rentes à cabeça dele. Só os pés se coração, cujo ritmo embalava pai
moviam. Os corpos pareciam es- e filha num amor cósmico. I

Analice Pereira é professora de Língua Portuguesa


e Literatura Brasileira do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba (IFPB).
Escreve sobre literatura e, vez ou outra, aventura-se
pela ficção. Mora em João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2018 | 37


conto

ilustração: domingos sávio


6

Uma noite
de quinta-feira
Willy Nascimento Silva
Especial para o Correio das Artes

A
briu a porta do quarto deli- vinho lhe amargar a boca, luz avermelhada e morna.
cadamente. Queria mantê- um gosto diferente de tudo Terminou de se vestir apa-
-la imersa em seus sonhos. que já provou, de um vi- vorado. Segurou as pare-
Enquanto se vestia no breu nho nunca provado, uma des do corredor que pare-
do corredor que dava para sensação de embriaguez ciam se estreitar em suas
uma pintura barroca pen- instantânea. Embebido por costas. Caminhou porta
durada na sala de estar, esse sentimento, achou-se adentro. O brilho vinha de
trocou as pernas e caiu de abandonado pelo mundo e uma tocha de fogo deposi-
peitos no chão. Voltou-se buscou amparo virando-se tada num lustre de bronze
para a palidez da mulher, outra vez para a imagem que descia do teto à altura
que soltou um suspiro e do anjo louro que se escon- de uns dois metros de sua
mexeu preguiçosamente dia desleixada nos lençóis cabeça, à esquerda do sa-
as coxas, deixando à mos- amassados pelo contorno lão. Tentou chamar por sua
tra suas nádegas brancas e do seu corpo. Entretan- companheira, mas a língua
redondas. Cerrou os olhos, to, a porta que antes dava estranhava a boca, e pro-
aliviado. Ali caído, com os para o quarto dos aman- duzia ruídos ininteligíveis,
joelhos atados pelo cós das tes agora abria um largo talvez outro idioma. Uma
calças, sentiu um gosto de salão, de onde vinha uma mulher, vestida num longo c

38 | João Pessoa, julho de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


c vestido branco-amarelado, res- vacilaram no canto dos olhos. joelhos e soltou um largo sor-
pondeu-o com uma expressão Beijou-a profunda e emociona- riso, misturado a uma careta
prosodicamente idêntica a sua. damente, ignorando seus con- de sofrimento. O vento silvava
Havia mais pessoas naquele vidados, que festejavam o beijo motores distantes. A chuva go-
lugar, ornamentado como para com brindes e dança. Tentou tejava percussivamente. As go-
uma festa. Todos, ao passarem falar-lhe de seu mal estar, mas tas despencavam do céu negro,
por ele, inclinavam-se cerimo- novamente não compreendeu ferindo a terra. Escorriam pelas
niosamente, fazendo-o inferir o que pronunciava e, antes que ruas, tocavam o teto, até acha-
que era ele o anfitrião daque- pudesse insistir em se fazer en- rem uma pequenina brecha
le jantar. Não conseguia com- tender, um grito vindo da porta e atingirem sua cabeça. Uma
preender o que falavam, mas por onde havia entrado irrom- única gota o fez congelar. Sua
o sorriso por que passavam as peu a harmonia da festa, suce- carne parecia ter se despren-
palavras era um bálsamo para dido por um tropel de pernas dido dos ossos. Era uma forma
sua alma confusa. Suas roupas que marchavam em uníssono. inumana e gelatinosa. Olhou
tinham ganhado nova textura, A mulher apertou-se contra para cima. Nuvens pesadas
mais fina e leve, à moda dos seu peito. Em menos de dois compunham um firmamento
demais ali presentes. Tocavam- minutos estavam todos cerca- apocalíptico. Relâmpagos foto-
-lhe a barba com reverência, dos por um batalhão que ros- grafavam o cenário dantesco.
como uma mãe acaricia o filho nava como um cão selvagem. Escarrou sangue. Os braços es-
que amamenta. Uma mesa se Os olhos daquele que conside- tavam cansados de sustentar o
estendia de uma ponta à ou- rou ser o comandante ardiam corpo àquela altura. De súbito,
tra, rodeada de rostos em que numa fúria insana. Soltou um uma lança rasgou-lhe a carne.
procurava atenta e desespe- grunhido incompreensível até Apertou os dentes e produziu
radamente um traço de fami- para os que falavam sua lín- um som nasal e abafado. Aos
liaridade; alguns lembravam gua. Atônitos, ficaram todos seus pés estavam alguns dos
vagamente amigos antigos. A imóveis. O comandante, en- convidados daquela festa. O
mulher do vestido encardido, tão, repetiu o mesmo grunhi- que fazem aí parados? Não en-
em companhia de duas ado- do, mais alto e com mais ódio. tendem nada do que eu digo?
lescentes, trouxe uma moringa Recolhendo os instrumentos e Abrindo a multidão de espec-
de vinho, frutas e uma massa a comida, os convivas foram, tadores, o grito de sua amada o
fina de trigo. Havia também um a um, saindo do recinto, fez recuperar o ânimo. Projeta-
uma música alegre, executada em fila indiana, deixando ape- do no verde daqueles olhos, ele
por homens sentados ao fundo. nas o casal no meio do círculo soluçava como uma criança.
Nas paredes viam-se grandes de soldados. Por fim, uma das De onde não havia mais como,
manchas de lodo, revelando serventes arrancou dos seus extraiu forças para dizer suas
uma umidade que contrasta- braços, às pressas, chorando últimas palavras. Adoro a cal-
va com o calor produzido pelo convulsivamente, aquela que o ma do teu sono... Ela soprou
fogo e pelos corpos que dança- conectava ao seu mundo. Esta- um sorriso. Seu rosto molha-
vam em êxtase. Tentava assi- va só. O gosto de vinho tornou do de lágrimas revelava uma
milar tudo numa agonia muda, a amargar-lhe a garganta. Sob compreensão que ele procurou
que comprimia seus pulmões a batuta do comandante, uma ter dos outros convidados – e
e causava-lhe tontura. Levado sinfonia de chicotes começou não encontrou. Estava, enfim,
pelo turbilhão de pessoas ao a estalar. Aturdido, cobriu a em paz. Ao ver aquele homem
centro da mesa, viu-se cons- cabeça com os braços e lamen- trucidado, coberto de sangue,
trangido por dezenas de rostos tou ser visto ainda de relance os olhos esbugalhados pela
que ansiavam, talvez, uma sau- por aqueles olhos maravilho- magreza, um mosaico de pe-
dação solene. O silêncio hospi- samente verdes. O sangue es- quenos fragmentos de memória
talar o inspirou a erguer um corria de suas costas e o gosto se formou em sua mente. Eram
copo de vinho, convocando to- de vinho ficava a cada açoitada um só em vida! E com a morte
dos a um brinde. Um cheiro de mais acre. Suportou alguns mi- dele estava ela também sepulta-
Armani invadiu suas narinas. nutos e caiu de peitos no chão. da. Um vento frio eriçou sua es-
E, fazendo-lhe cócegas, os de- Olhou para o quarto, outra vez, pinha. Puxou o cobertor, cobriu
dos miúdos de sua amada o to- e soltou um riso fraco e terno as coxas, as nádegas, e voltou a
caram. Seus olhos eram ainda para a tranquilidade que em- dormir serenamente. I
mais verdes e resplandecentes, balava o sono daquela mulher.
os fios de cabelo ainda mais Recostou a cabeça, encarando
dourados, os seios, escondidos o teto do apartamento. Uma Com “Uma noite de quinta-feira”,
Willy Nascimento Silva estreia como
sob o vestido, maiores e impo- dor lancinante o torturava, até contista. O escritor tem graduação
nentes. Uma luz maravilhosa que uma voz manhosa o cha- em Letras pela Universidade Federal
desenhava sua boca. Estava, mou. Volta pra cama! Seu cor- de Campina Grande (UFCG), e dedica
enfim, na presença de alguém po deslizou maliciosamente, as horas vagas à leitura e à música.
Sobre a natureza do homem (e
que habitava sua memória, e como uma serpente sorrateira outros poemas) é o seu primeiro
lhe devolvia a razão que jul- em busca da presa. Ergueu o livro, lançado, este mês, em Campina
gava ter perdido. Lágrimas tronco. Sentou-se abraçando os Grande (PB), onde reside o autor.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2018 | 39


6 novo almanaque armorial
Carlos Newton Júnior
cnewtonjr@gmail.com

Orlando
Tejo
M
orreu o meu amigo Orlando Tejo. Sim, porque por mais que alguns
“Descansou”, disse-me Astier Basí- insistam em dizer que Zé Limei-
lio. É verdade. Vitimado por uma ra realmente existiu (e o próprio
terrível doença degenerativa, Tejo Tejo o confirmava jurando de pés
estava há anos preso a uma cama, juntos, obviamente em defesa da
sem vontade própria nem memó- verossimilhança da sua criação), o
ria. Sem memória, meu Deus! Logo provável Zé Limeira da vida real
ele, que sabia de cor e salteado toda não é o mesmo Zé Limeira do livro
a obra poética de Augusto dos An- de Orlando Tejo, cujos versos se
jos! Certa vez, um repórter, que- tornaram célebres e são declama-
rendo pô-lo à prova, abriu ao acaso dos por uma legião de admirado-
um exemplar do Eu e o desafiou: res Brasil afora. A operação de Tejo
— Declame “O Morcego”! consistiu justamente em enxertar,
Mal Tejo concluía o terceiro ver- no frágil esqueleto do Zé Limeira
so, o repórter, sentindo-se vitorio- real (poeta que jamais passaria à
so, interrompeu: posteridade pelo teor de seus ver-
— Está tudo errado! sos), a carne da mais pura e vigo-
Tejo sorriu, levou o seu insepa- rosa poesia, criando o Zé Limeira
rável cachimbo à boca, deu uma que conhecemos hoje — aquele
baforada e lhe disse: “misto de menestrel e jagunço” de
— É que estou recitando de trás “estatura avantajada”, que trajava
para frente... roupa de mescla azul, usava lenço
O Brasil inteiro estaria de luto, vermelho ao pescoço e trazia quin-
caso fôssemos, enquanto povo, ze anéis reluzindo “nos dedos pos-
mais atentos aos verdadeiros valo- santes e ágeis”. Um Zé Limeira que
res culturais do nosso país. Jorna- é pura criação poética e o único a
lista, escritor e poeta, Orlando Tejo quem se pode atribuir a invenção
escreveu um livro excepcional, o do verso limeiriano, inconfundível
já hoje clássico Zé Limeira, poeta do no seu absurdo de viés surrealista.
absurdo. Realizou, com esta obra, a Há, no livro de Tejo, inúmeras
maior façanha que se pode espe- passagens antológicas. Mas nenhu-
rar de um escritor — a criação de ma talvez supere, em termos de in-
um personagem que ganha vida ventividade, de imaginação criado-
própria, passando a ser tratado ra e de ritmo narrativo, o episódio
pelo público como gente de carne ocorrido num bordel de Campina
e osso, desvinculando-se do nome Grande e protagonizado pelo ma-
do autor e até mesmo o superando landro Agápio, mais conhecido
em matéria de popularidade. como “o terror da Lagoa dos Ca-
c

40 | João Pessoa, julho de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


6 novo almanaque armorial
ilustração exclusiva de manuel dantas suassuna para a coluna novo almanaque armorial

c nários”. É todo um resumo da


miséria humana a desfilar dian-
te dos nossos olhos, e digo, sem
favor, que poucos na literatura
brasileira souberam se valer da
categoria estética do grotesco
para compor uma cena — ou
uma sequência de cenas, melhor
dizendo — como Tejo o fez na-
quela passagem do seu grande
livro. Tudo, ali, é inesquecível à
primeira leitura: o ambiente sór-
dido do prostíbulo; a descrição
do jovem malandro, mestre de
capoeira e exímio manejador de
navalha; sua dança ao mesmo
tempo cômica e deplorável com
a velha prostituta embriagada
cuja filha, também prostituta,
acabara de morrer; a crueldade
dos que assistiam àquele triste
espetáculo, vociferando contra
a pobre Dona Diva e atirando-
-lhe bagaços de laranja; a épica
luta de Agápio contra vários
policiais que tentaram prendê-
-lo e assim por diante, tudo isso
entremeado pelo jargão que o
meliante gostava de repetir:
— Comigo não tem pirreps!
Certa noite de verão, aqui no
Recife, num bar da moda cujas
cadeiras se espraiavam pela
calçada da Rua do Bom Jesus,
conversávamos eu, Orlando
Tejo e o poeta cearense Virgílio — Foi um grande cantador
Sansão fazendo ingrizia,
Maia, então em visita à cidade. das antigas, nascido no tempo
Salomão comeu a jia,
De repente, dois cantadores re- do rei! Morreu há muitos anos.
Vomitou pra o delegado,
lativamente jovens, julgando- Não o conheci pessoalmente,
Foi berro pra todo lado,
-nos turistas, se aproximaram mas sei alguns dos seus versos,
Adeus, até outro dia...”
e começaram a improvisar seus e meu companheiro, aqui, tam-
versos, obviamente visando bém sabe. Querem ouvir?
Rimos muito naquela noite,
algum dinheiro. Na primeira Ambos retomaram a fun-
sobretudo Tejo, plenamente sa-
pausa que fizeram, Virgílio per- ção, agora com os versos que
tisfeito com a vida, o cachimbo
guntou: Tejo pôs na boca de Zé Limei-
e a cantoria. Parece que foi on-
— Vocês por acaso conhecem ra. Foi aquele rol de dispara-
tem. E assim o tempo, à medida
o poeta Orlando Tejo? tes, apresentado sob as mais
que age sobre mim, vai levando,
— Não senhor, nunca ouvi diversas formas poéticas, até
um a um, os amigos mais ve-
falar dele! — respondeu o que concluírem com a glosa que
lhos com quem tive o privilégio
aparentava ser um pouco mais Zé Limeira certa vez cantou
de conviver.I
velho. numa “despedida”:
— Nem eu! — disse o outro. Carlos Newton Júnior é poeta,
— E Zé Limeira, vocês conhe- “A burra deu uma popa ensaísta e professor da Universidade
cem? — Insistiu Virgílio. Que derrubou Salomão, Federal de Pernambuco. É autor de
— Sim, claro! — responde- A fortuna de Sansão vários livros, entre os quais, Vida de
Quaderna e Simão (romance) e Canudos
ram os dois, quase em unísso- O Rei carregou na sopa... - Poema dos Quinhentos (poesia)
no. E o mais velho completou: A burra gritando ‘opa’, Mora em Recife (PE).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2018 | 41


6 ponto de vista crítico
Rinaldo de Fernandes
rinaldofernandes@uol.com.br

As passagens
benjaminianas: ,

leituras (5)

A
s passagens eram constru- ‘Passagens’ de Walter Ben- apresentar a cidade, em sua mul-
ções apoiadas em ferro e jamin: contribuições para tiplicidade e diversidade, como
vidro. Eram, como esclare- compreensão geográfica do espaço de experiência sensorial
ce Marcos Flamínio Peres, capitalismo”, “as vitrines e e intelectual, local de encenação
“as galerias cobertas que os preços fixos ao lado das dos conflitos sociais e de transfor-
passaram a povoar Paris mercadorias inovam o mun- mações urbanísticas. Suas ruas
na virada do século 18 para do do comércio da moda. são palco de circulação de mer-
o 19, como a do Cairo, de Apelos do ponto de vista cadorias, repletas de enigmas; o
l’Ópéra, a Vivienne ou a do desejo e do onírico que lugar onde o sujeito autônomo,
Véro-Dodat, várias delas os comerciantes parisienses senhor de uma razão iluminista,
hoje já demolidas”. Nas converteram ao seu favor perde-se em meio a uma labirín-
passagens, enfim, conforme nas vendas de mercadorias. tica multidão – de pessoas, de
ainda Wagnervalter Dutra As passagens despertam objetos, de imagens –, e em que a
Júnior, no artigo “Breve lei- desejos recônditos ancora- experiência de rapidez, de anoni-
tura do espaço-tempo nas dos nas fantasmagorias da mato pode ser realizada de modo
mercadoria”. No mais radical do que em qualquer
ensaio “A metró- outro lugar. Desse modo, ler a ci-
foto: reprodução internet

pole moderna, o dade é ler um mosaico [...]”. Para


olhar surrealis- Vanessa Madrona, “o tema da
ta: considerações cidade encontra-se presente em
benja m i n ia nas”, vários momentos do itinerário in-
Vanessa Madro- telectual de Benjamin. Em 1923,
na Moreira Salles, ele traduz para o alemão os Qua-
com dotourado dros parisienses, de Baudelaire.
pela Universidade No final da década de 20 surgem
de São Paulo, afir- Rua de mão única, Diário de Moscou
ma que “Walter e a série radiofônica sobre Ber-
Benjamin intenta lim. Crônica berlinense e Infância
em Berlim [...] são publicados nos
anos 30 e o ensaísta dedica-se às
Passagens entre os anos de 1927
até sua morte, em 1940”.I
Walter Benjamin
(1892-1940), filósofo
e sociólogo alemão Rinaldo de Fernandes
associado à Escola é escritor, crítico de literatura e
de Frankfurt e à professor da Universidade Federal da
Teoria Crítica Paraíba. Mora em João Pessoa (PB).

42 | João Pessoa, julho de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO

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