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Julho 2018 – ANO LXIX Nº 5
ANTROPOFAGIA POÉTICA
Zé Orlando
Limeira Tejo
6 editorial
Poesia e amizade
Quem teve o privilégio de Nas moradas sos zelimeirianos seriam, na
conhecer e, principalmente, verdade, versos tejanos. Há
conviver com o jornalista, da memória e da controvérsias. Estudiosos da
poeta e cantador paraiba- poesia popular juram de pés
no Orlando Tejo (1935-2018)
poesia, Orlando juntos que o estrambótico Zé
tem sempre uma boa histó- Tejo e Zé Limeira Limeira viveu e poetou nesta
ria para contar. E quem não parte do planeta Terra.
o conheceu, mas leu ou ou- irão permanecer Em que pese o esforço his-
viu uma de suas histórias, toriográfico, o escritor Braulio
lamenta-se de não ter convi-
pelos séculos dos Tavares, por exemplo, que en-
vido com essa grande figura. séculos, recebendo, tende do riscado, afirma, com
Tejo nasceu em Campi- seu humor característico, que
na Grande e morou em João de braços abertos, “durante os próximos séculos
Pessoa, na Paraíba, e Recife, nossos netos e bisnetos conti-
em Pernambuco. É sua geo-
todos aqueles nuarão discutindo se a maio-
gráfica sentimental básica. que têm real ria dos versos que aparece no
Atuou no rádio, na publici- livro de Tejo foi mesmo cria-
dade, na advocacia e no ma- interesse por arte e da por Zé Limeira.”
gistério, entre outras áreas, Bem, o fato é que nem Tejo
mas as atividades de que
camaradagem. nem Zé Limeira, infelizmen-
mais gostava era fazer ver- te, não estão mais por aqui.
sos, escrever livros e estabe- Crenças religiosas à parte,
lecer amizades. vivem agora na memória e
A bibliografia de Tejo é do Absurdo. Este último, no na poesia. Nessas duas mo-
curta, levando-se em conta entanto, pela repercussão radas permanecerão pelos
o enorme talento que ele ti- que teve, vale por uma bi- séculos dos séculos, receben-
nha. Dá para contar as pu- blioteca. do, de braços abertos, todos
blicações de sua autoria nos Reza a lenda que Zé Li- aqueles que têm real interes-
dedos de uma mão: Conceição meira é um personagem se por arte e camaradagem.
63, Impasse, Soneto dos dedos criado pelo próprio Tejo.
que falam e Zé Limeira: Poeta Sendo assim, os famosos ver- O Editor
6 índice
, 4 @ 8 2 21 D 26
Memória W. J. solha poesia cinema
O jornalista Linaldo O jornalista William Costa e A seção de Poesia reúne O crítico João Batista de
Guedes lança novas a professora Alexandra Vieira poemas de Joaquim Brito coloca em tela o
luzes sobre a antiga de Almeida descrevem as Branco, Bruno Falcão e cinema noir, destacando
polêmica envolvendo os qualidades de A engenhosa Luiz Fernandes da Silva, três filmes exemplares: Um
poetas Orlando Tejo e Zé tragédia de Dulcineia e ilustrados por Tônio e retrato de mulher, Pacto de
Limeira. Trancoso. Domingos Sávio. sangue e O grande golpe.
O Correio das Artes é um suplemento mensal do jornal A UNIÃO e não pode ser vendido separadamente.
Orlando
fos, os versos atribuídos a Limei-
ra sem que este os tenha criado,
mas não importa. ‘Publique-se a
lenda’, como dizia o personagem
de John Ford”, ressalta.
Tejo
Braulio conta que, em meados
Foto: Machado Bitencourt
Zé Limeira?
do com Braulio, “lhe deu fama
nacional e alçou o repentista
da Serra do Teixeira ao pan-
teão mitológico do Nordeste, ao
lado de Lampião, Padre Cícero
e Luiz Gonzaga”.
Linaldo Guedes No entendimento de Braulio,
linaldo.guedes@gmail.com durante os próximos séculos
nossos netos e bisnetos conti-
nuarão discutindo se a maioria c
P
arece que todo mundo tem uma história para con-
tar sobre Orlando Tejo, o jornalista, poeta e folclo-
Foto: divulgação
rista que nasceu em Campina Grande, em 1935,
e morou em João Pessoa e Recife. Tejo, que há 15
anos sofria da doença de Alzheimer, faleceu no
Recife, no dia primeiro deste mês, e foi sepultado,
no dia seguinte, em João Pessoa. Ele é autor dos
livros Conceição 63, Impasse, Soneto dos dedos que fa-
lam e Zé Limeira, Poeta do Absurdo, este último sua
obra mais famosa, com diversas reedições. Talvez
por isso, muitos digam que Zé Limeira era na ver-
dade Orlando Tejo e vice-versa.
O escritor Braulio Tavares conheceu Orlando
Tejo em 1965, quando entrou para a redação do
Diário da Borborema, onde ele (Tejo) era secretário.
“Mas já era amigo do meu pai, e uma figura mui-
to conhecida na cidade. Depois que cresci e me
envolvi com os cantadores de viola, retomamos
contato e começamos a conviver amistosamente”,
lembra o autor de A espinha dorsal da memória. Braulio Tavares
Segundo Braulio, Zé Limeira era uma lenda, assegura que a
polêmica sobre
uma profusão de histórias e versos soltos. “Foi Or- Orlando Tejo e
lando quem cristalizou essa lenda e lhe deu forma. Zé Limeira vai
Existirá para sempre a questão dos versos apócri- permanecer
Dulcineia
último caso, do Romance da Pedra
do Reino, do paraibano Ariano
Suassuna (1927-2014), e Dom Qui-
xote de la Mancha, do espanhol
Miguel de Cervantes (1547-1616).
O
que a literatura tem de cinema e o cinema, de tea- concerto dentro dos parâmetros
tro, o novo livro de W. J. Solha, A engenhosa tragédia estéticos defendidos por Aria-
de Dulcineia e Trancoso (Penalux, 2018), tem dos três, no Suassuna. “Eli-Eri se deu tão
além do fato de, por ser também poema, ora livre, bem, que lhe encomendaram
ora metrificado, ser musical. Para rimar, nada mais uma ópera”, acrescenta.
armorial. Na obra, o autor, além da síntese formal, Eli-Eri topou dar conta do
procede a um prodigioso ‘diálogo’ entre tradição e novo pedido, mas confiou o li-
‘contemporaneidade’, tendo, como epicentro, os epi- breto a Solha, seu parceiro de ou-
sódios que transformaram a Pedra do Reino - na tros carnavais. A ópera armorial
verdade, dois monólitos localizados entre Paraíba e Dulcineia e Trancoso – considera-
Pernambuco - em marco histórico e literário. da a primeira obra nordestina
A contemporaneidade da obra de Solha é a ousa- do gênero – estreou no Teatro de
dia da forma, que, além de espantosamente visual, do Santa Isabel, no Recife, em 2009.
ponto de vista da relação polissêmica entre palavra e Solha pensou que a obra ficaria
imagem, harmoniza diálogos - em português, espa- circunscrita aos palcos nordes-
nhol e ‘portunhol’ – de uma sucessão de personagens, tinos, no que, felizmente, errou
transfigurados tanto da vida real como do cânone lite- feio, pois Dulcineia e Trancoso ga-
rário brasileiro e universal (a tradição), a exemplo, no nhou nova montagem e estreou, c
Versátil, criativo
e muito bem
informado, Solha
estabelece um
prodigioso diálogo
entre realidade e
ficção; tradição e
contemporaneidade
Entre
o tradicional
e o contemporâneo,
o particular e o universal,
na obra de solha
N
a narrativa em versos de W. J. Solha, A engenhosa do rico em nuances e mais livre
tragédia de Dulcineia e Trancoso (Penalux, 2018), te- da forma. O conteúdo apresenta
mos o embate cultural entre vozes das mais diver- uma mistura de línguas e cultu-
sas, criando-se, assim, um texto rico em referên- ras, com a trágica visão da vio-
cias e estilos nesta obra monumental. Retomando o lência e da crueldade das estru-
gênero épico em seus primórdios onde a narrativa turas de poder. Dulcineia, com
era composta por versos, o autor mistura estilos a sua naturalidade não tão bela se
partir da junção entre o tradicional e o contempo- utiliza do artifício para seduzir
râneo, o particular e o universal. Utilizando-se da (toma um banho de loja) Tran-
épica, Solha reestrutura aquilo que é um fenômeno coso (nosso Dom Quixote), os
do todo e o subtrai para o regionalismo nordestino heróis, que juntamente com Bozo
a partir do cordel e do rimance típico do Nordeste. (nosso Sancho Pancha) tentarão
Com estrofes de dez versos decassílabos, se vale driblar os aviões da Força Aérea
do martelo agalopado, dando ritmo e musicalida- Brasileira para implodir a Pedra
de ao seu livro. Nos duetos entre os personagens do Reino, onde uma multidão de
Ariano Suassuna e Miguel de Cervantes, percebe- romeiros se aglomera para que
mos o universalismo das línguas com a utilização a lenda se torne realidade, ou
das línguas portuguesa e espanhola. Além disto, seja, o encoberto Dom Sebastião
nos faz refletir sobre a constante invasão da língua retorne para trazer um reino de
inglesa no nosso idioma. Mas como resposta antro- paz para uma nação tão sofrida.
pofágica, temos a utilização de um vocabulário tí- Com o retorno de pessoas que já
pico do Nordeste, com nossa caatinga, alimentos tí- morreram como, por exemplo,
picos da região e aspectos da flora e fauna, fazendo Miguel de Cervantes e Ariano
de seu livro um diálogo, um repente, ou seja, uma Suassuna, personagens do livro
resposta à globalização a que estamos submeti- de Solha, temos a mistura dos
dos, com a revelação de nossas particularidades, planos terreno e celestial, fazen-
num projeto de brasilidade que dialoga com um do a junção entre o mundo dos
estrangeirismo reinante em nações periféricas. vivos e dos mortos. A mídia com- c
Rebis,
o lirismo sublime de
Marco Lucchesi
A
poesia de Marco Lucchesi é um dos memoráveis patrimô- cotidiano.
nios de nossa produção artística. Ela vem tatuada na pele Esta poesia é a suspensão do
da mais fina sensibilidade. As revelações do mundo que trivial – ainda que, este, neces-
opera, e a consequente instauração de uma linguagem pró- sário. É o elevamento das fun-
pria, são luzes num mar jade sob azul celestial. ções essenciais da vida ao êxta-
Esta poesia mergulha no leitor e sustém-no intensa e se do enleio. Maravilhamento.
profundamente. Feita de parcas palavras e exuberantes Iluminação.
ideias, suas imagens visuais e sonoras, transporta o leitor A mente projeta-se num tapete
deste mundo para outro mais dentro dele. A seguir, lança- voador. O coração amalgama-se à
-o pra outro mundo – galáxia da estupefação gerada e re- cabeça. O corpo todo é redemoi-
gida no trabalho com a linguagem. nho de delícias, delírios, decisões.
fotos: divulgação
c e suas manifestações literárias. dito, filho de Afrodite e Hermes, dúplice de livro de poesia e livro
A palavra e a revelação, não do nascido homem, rejeita o amor de artista, concomitantemente.
novo, mas de algo que se faz novo de uma ninfa. Esta, por vingan- Impressos em papel especial, os
pelo modo tal como é revelado – ça, invoca os deuses para que a volumes, numerados e assinados
na percepção de Chklóvski. unisse, em um só corpo, a Her- pelos dois artistas, trazem a capa
Prossegue o poeta de The mafrodito. costurada manualmente e o títu-
waste land: “A poesia não é uma Esta duplicidade, este processo lo espelhado, como se diante de
liberação da emoção, mas uma contínuo e ambíguo, que permeia poça d’água, rio ou mar.
fuga da emoção. Não é a expres- a gênese semântica e mitológica Rebis, de Marco Lucchesi, é
são da personalidade, mas uma do termo rebis, é tomada, por Luc- abrigo da mais fina, sublime e
fuga da personalidade”. E con- chesi, como um dos mananciais tocante poesia. Livro-casa de
clui regiamente: “Naturalmen- de seu livro. Algo como afirmar um mundo que se entrega ao
te, porém, apenas aqueles que que a linguagem da poesia não leitor na calmaria de versos de-
têm personalidade e emoções se (p)rende a um só corpo, sexo, senhados nos brancos da folha.
sabem o que significa escapar desejo. Ou seja, é grande obra Versos dançarinos em ritmos e
dessas coisas”. em aberto. Ou, como preconizou harmonias vários. Versos que se
Marco Lucchesi, em toda a sua Haroldo de Campos, antecipando desdobram, desmancham-se e
produção poética - e Rebis reafir- Umberto Eco, é obra aberta. desvendam a beleza do sonho e
ma isso –, sabe valer-se da mais Em resumo, a poesia desen- da vida. Porque Rebis é esvaeci-
sublime emoção com o mais ri- volve um arco que vai da duplici- mento e materialidade. Conten-
goroso trabalho com a palavra. dade, da ambiguidade, do caos à ção e gozo.
Nada escapa ao seu zelo com o harmonização. Rebis dá-se como Imerso na beleza lírica desta
melhor da linguagem. Faz uma este processo conflituoso e, por poesia, encerro com a transcrição
poesia que toca fundo no leitor fim, harmônico. de um poema:
porque o que conta é a expres- Certamente por isso o volu-
são, o modo, a carpintaria do me encerra ilustrações e projeto NÃO HÁ SEGREDO
poema. Trabalho este nascido da gráfico, assinado por Zenilton ALGUM NO CORPO DA
relação do poeta com a grande Gayoso, que exploram os inters- PALAVRA
poesia de nosso tempo. E com a tícios dos poemas. Seu primoro-
poesia canônica. so trabalho plástico e gráfico é OU ANTES
A poesia de Lucchesi dialoga conversa inteligente com os poe- AO COMBINÁ-LA COM VERBOS
com o passado por presentificá-lo mas. Confere ao volume o status E LICORES
numa linguagem literária atem-
poral. AO DISSOLVÊ-LA EM
Retomando Rebis. O título do SERPES
livro é palavra derivada do la- E DRAGÕES
tim res bina, que significa duas
coisas, matéria dupla ou, sim- AO SUBLIMÁ-LA
plesmente, duplicidade. Rebis EM VIVOS
significa igualmente magnum
Marco Lucchesi, ATANORES
opus – ou seja, grande trabalho,
em toda a sua TRANSMUTA-SE A
grande obra.
A grande obra, geralmente PALAVRA
produção poética NO REBIS MISTERIOSO I
originária de estágios conflitan-
tes, ou mesmo estágios opostos, - e Rebis reafirma
atinge, ao final do processo, a
harmonização. Seria, para Jac- isso –, sabe valer-
ques Monod, guardadas as devi-
das restrições (e polêmicas), algo se da mais sublime
como o processo que vai do caos
à sistematização da necessidade emoção com o mais
organizadora.
Outra possível significação rigoroso trabalho Amador Ribeiro Neto é poeta,
crítico de literatura e professor da
para o termo rebis encontramos Universidade Federal da Paraíba.
na mitologia grega. Hermafro- com a palavra. Mora em João Pessoa (PB).
Um resgate
a centésima postagem e transfor-
mar a série em livrinhos digitais
(e-books)”, explicou.
Rubens vem se dedi-
cando à essa pesquisa
e ao trabalho de divul-
das mulheres poetas gação desde meados de
2011, época do seu desa-
do Brasil
bafo malcriado. “Feliz-
mente, esse trabalho de
garimpagem me propor-
cionou muita satisfação
e muito prazer. Descobri
muito ouro na palavra
poética das mulheres.
E o meu blog transfor-
Linaldo Guedes mou-se no espaço delas.
linaldo.guedes@gmail.com
Nunca mais publiquei lá
meus poemas, nem poe-
mas de poetas homens”,
acrescentou.
O trabalho contempla mais
T
udo começou com um desabado “malcriado” em ou menos 400 poetas de várias
seu blog. Poeta e jornalista natural de São Paulo, gerações e de várias regiões do
Rubens Jardim ficou inconformado ao perceber Brasil, em três livros digitais.
como a poesia escrita por mulheres era relegada e Existem, por exemplo, poetas da
até mesmo boicotada. Foi aí que surgiu o projeto Paraíba, do Rio Grande do Sul,
“As Mulheres Poetas”, que gerou um livro digital do Pará, de Minas, do Rio Gran-
que é um verdadeiro compêndio da literatura pro- de do Norte, do Maranhão, de
duzida pelas mulheres, no Brasil. Minas Gerais, Rio de Janeiro e
Para comprovar esse “desprezo” à poesia escrita São Paulo. Do mesmo modo, in-
pelas mulheres, Rubens lembra que em 16 anos a tegram esse trabalho poetas de
Festa Literária de Parati (Flip) só homenageou Cla- 90 anos, com obra consistente,
rice Lispector, Ana Cristina César e este ano irá ho- até jovens poetas que publica-
menagear Hilda Hilst. “Aí fiz um desabafo malcria- ram apenas um livro. E algumas
do em meu blog e comecei a pesquisar e divulgar que não publicaram nem livro,
o trabalho poético das mulheres. Cheguei a con- apenas divulgaram poemas em
fessar que levaria isso até o fim de meus dias. De revistas virtuais, redes sociais e
repente mudei de idéia: estabeleci a meta de atingir blogs da internet.
Os livrinhos virtuais contem-
plam autoras do século 18 (Ân-
foto: reprodução internet
Sob o ímpeto
comum de homens, mulheres,
crianças e idosos, em suas ins-
tâncias privadas e públicas, se-
do assombro
não enfrentar seus Duelos?
Nas “orelhas” de Duelos, com
o título Vergões e Arrepios, o es-
critor paulista Antonio Geraldo
Figueiredo Ferreira, autor do ro-
mance As visitas que hoje estamos,
Duelos, novo livro de contos de escreveu trata-se de um livro de
Eltânia André deve ser lançado contínuos e sobrepostos emba-
ainda este ano tes. “Do sujeito contra o mundo
que o sujeita. Contra o inimigo
familiar. Contra o outro, des-
conhecido às vezes tão íntimo,
Da Redação paradoxo de um país formado
na fratura exposta de desigual-
dades de toda ordem”. E acres-
A
escritora mineira Eltânia André, hoje residindo em
centa: “O livro, enfim, retrata a
Lisboa, Portugal, deve lançar ainda este ano o seu
luta do indivíduo consigo mes-
novo livro de contos, intitulado “Duelos”, com selo da
mo, peleja que o obriga à inesca-
Editora Patuá, de São Paulo (SP). Consta que a obra
pável aceitação de uma comple-
foi escrita sob o ímpeto do assombro, o Brasil
gerido pelo horror, crianças mortas por ba- ta derrota, se quiser ‘vencer na
las perdidas, o povo acuado pela vio- vida’”...
lência das ruas, do Estado. Para Antonio Geraldo, “a
Nos contos “pungentes e poe- consciência de si, pano de fun-
ticamente trágicos”, de Duelos, do da alteridade, portanto, é um
Eltânia mapeia a violência aspecto central em Duelos. As-
do cotidiano brasileiro - sinala que “Vidas Inventadas”
a doméstica, a social, a − título de um dos contos −, “en-
fotos: divulgação familiar, a psicológica, laçam o cotidiano das persona-
a moral, a política e a gens ao da escritora”, destacan-
econômica. Todas as do que “tal procedimento, em
formas de agressão última análise, compele o leitor
ao individual e ao a também se ver como perso-
coletivo, em que nagem moldada pelas mãos de
os personagens uma artista que escreve como se
vivem no fio da colocasse um ponto-final segui-
lâmina, experi- do de reticências. Dito de outra
mentando seus maneira, a arte da escrita insti-
becos-sem- tui-se, na obra, como extensão
A escritora
-saída, espe- gráfica que nos acerta em cheio,
lho de um
Eltânia André fustigando-nos para além das
vive hoje em dia-a-dia em
palavras”.
Lisboa, Portugal. que é tênue a
Duelos é seu Eltânia André nasceu em
fronteira en-
quarto livro
tre viver e so- Cataguases (MG), mora em Lis-
breviver. boa. É autora do livro de contos
São histó- Manhãs adiadas (Dobra Edito-
rias que po- rial, 2012) e dos romances Para
voam a mitolo- fugir dos vivos (Editora Patuá,
gia do mundo, 2015) e Diolindas (Editora Pena-
pois desde os lux, 2016), escrito em parceria
primórdios da com o escritor Ronaldo Cagia-
civilização, o que no. Contato: eltaniaandre@hot-
tem sido o destino mail.com. I
Vozes do
recôndito
O poeta Theo G. Alves reúne
novos poemas em doce
azedo amaro
O
poeta norte-rio-grandense Theo G. Alves reúne 49 Quixote, que luta sempre contra
poemas, divididos em três seções, em seu novo livro, visões, mas sempre em favor da
doce azedo amaro (Editora Moinhos, 2018). Para o poe- Beleza”. E destaca: “O poeta tam-
ta e jornalista Álvaro Alves de Faria, “a obra é uma bém recorre à memória para en-
viagem pela poesia ainda possível de encontrar num contrar as imagens da infância,
mundo feito só de brutalidades”. E acrescenta: “Cabe ainda vivas dentro de si”.
ao poeta descobrir essas palavras generosas ao ho- Na apresentação da obra, o
mem para tornar a vida melhor, nem que seja por um poeta Alberto Bresciani, destaca,
instante. Como diz o poeta, em um de seus poemas, logo de início, que não é tarefa
antes da poesia era só o estampido, o fácil escrever sobre a poesia de
soco, o tiro, o golpe, a faca, a foi- Theo. Isso porque, o apresenta-
ce. Mas a poesia tem, sim, o dor enxerga no autor “uma das
poder de anular esses fe- mais talentosas vozes poéticas
rimentos cicatrizados da contemporaneidade”, dispen-
na vida”. sando “limitações geográficas”.
fotos: divulgação
Protagonistas
do A literatura negra brasileira:
suas leis fundamentais, a autora
cita a poesia de Cuti, assim como
negros
a de Oliveira Silveira, Ele Semog,
Oswaldo de Camargo, Paulo Co-
lina, entre outros, como exemplo
de poesia negra, ou seja, a produ-
nos contos de ção poética em que o negro bus-
Cuti
ca assumir-se criticamente como
sujeito da enunciação. Não mais
a poesia falando sobre o negro,
ao modo de Castro Alves e Jorge
de Lima, mas, sim, “um-eu-que-
-se-quer-negro, evidenciando
uma ruptura com uma ordena-
fotos: reprodução internet
ção anterior que condenava o ne-
gro a ocupar a posição de objeto
ou, melhor, daquele de quem se
fala”, nas palavras de Zilá Bernd.
Nesse mesmo livro, atendo-se
à realidade brasileira e à produ-
ção literária de autoria negra,
Zilá aponta a predominância da
Cuti (pseudônimo poesia sobre o conto e o romance
até então. Há um discurso poé-
de Luiz Silva), tico dando conta do “processo
de transformação da consciência
doutor em negra”, mas não há, ainda, uma
narrativa nesse mesmo padrão.
Literatura A causa, segunda a autora, é que
“para a maturação de um roman-
Brasileira pela ce negro brasileiro, algumas eta-
pas ainda precisam ser vencidas,
Unicamp, tem como o resgate da sua participa-
ção na História do Brasil, sobre a
produção na área qual tantas sombras se projetam,
e a definição de sua própria iden-
do ensaio, da tidade. Para que exista um dis-
curso ficcional do negro é preci-
so que o negro defina a imagem
poesia, do teatro,
que possui de si mesmo e que
consolide o processo já iniciado
do conto e da de construção de uma consciên-
cia de ser negro na América”.
literatura juvenil. O livro de Zilá Bernd é de 1988.
De lá para cá, muita coisa mu-
dou em relação a isso, inclusive
Geraldo Lima com o aumento no número de
Especial para o Correio das Artes pessoas que, segundo as últimas
pesquisas realizadas pelo IBGE,
têm se reconhecido como negras.
M
eu primeiro contato com a obra literária de Cuti deu-se Partindo então desse raciocínio,
através da poesia, mais precisamente com seus poemas podemos entender o crescente
publicados nos Cadernos Negros, do coletivo Quilom- número de escritores negros bra-
bhoje-Literatura – do qual ele foi um dos fundadores sileiros que trazem a público nar-
–, e no livro de Zilá Bernd, Introdução à Literatura Negra rativas em que homens negros e
(editora brasiliense). Nesse livro, no capítulo intitula- mulheres negras são protagonis- c
A questão racial
e seu enfoque
ficcional
Cuti (pseudônimo de Luiz
Silva), doutor em Literatura Bra-
sileira pela Unicamp, tem produ-
ção na área do ensaio, da poesia,
do teatro, do conto e da literatura
juvenil. É um dos expoentes da
geração de autores negros que,
no final dos anos 70, começou a
publicar, de forma independen-
te, poemas marcados por uma
voz descontente com a situação
do povo negro no Brasil. Nesse
seu livro de contos publicado
pela Editora Malê, ele se revela
um prosador hábil e conhecedor
da alma humana. Nos dezesseis
Contos escolhidos tem selo da
contos reunidos no livro, o leitor Malê, editora cuja proposta é
vai se deparar com uma temáti- publicar e dar visibilidade aos
ca variada, como violência urba- autores negros
na, inveja, desejo de vingança,
marginalidade juvenil, ciúme,
racismo, questões de identidade
racial, dificuldade financeira etc.
E, o mais importante, vivida por cês. E o seu povo?” A sua atitu-
protagonistas negros. de radical cria, como se pode
Para se ter uma ideia de como imaginar, um clima tenso e pe-
o autor trata a questão da iden- rigoso durante a comemoração
tidade racial a partir da narrati- do batizado. Naquele momento
va ficcional, vamos tomar como de festa e alienação, sua postura
exemplo o conto “O batizado”, é a do chato, do estraga-prazer
que abre o volume. Nesse conto que vem anunciar uma verdade
narrado em terceira pessoa, mas incômoda, a qual todos querem identidade cultural que propicia
com o fluxo de consciência dan- ignorar. É em meio a essa tensão a dominação de um povo por
do conta do desespero que vai familiar, de confronto entre vi- outro. A sua atitude nos lembra,
tomando conta de alguns perso- sões de mundo opostas, que a de certa maneira, a de Policarpo
nagens, o protagonista Paulino, narrativa deixa claro a fratura Quaresma, que, no seu naciona-
jovem e militante da causa ne- presente na formação da nossa lismo exacerbado, propõe o tu-
gra, critica duramente o fato de identidade racial, que começa, pi-guarani como língua oficial.
terem colocado no sobrinho um obviamente, no instante em que O tema do racismo está pre-
nome que não tem ligação algu- os africanos são trazidos à força sente, de modo mais explícito, em
ma com a cultura africana. “Ou- para o Brasil e, como estratégi- dois contos: “Preto no branco” e
çam o nome do meu adorado so- ca de dominação imposta pelos “Conluio das perdas”, ambos
brinho: Luizinho... Já não chega brancos escravagistas, são reno- narrados em primeira pessoa.
o sobrenome Oliveira? Luiz é meados de acordo com a cultu- No primeiro, temos aquela famo-
nome de qual ancestral? Refere- ra dos seus senhores. Embora a sa situação do negro que começa
-se a qual matriz cultural? E, mi- atitude de Paulino possa pare- a namorar uma mulher branca
nha gente, o nome é de origem cer exagerada e sem propósito, e tem que enfrentar a resistên-
francesa. Significa defensor do reivindicando que os negros cia da família dela, neste caso,
povo... que não é nosso povo. O brasileiros passem a adotar no- a resistência maior, com efeitos
meu sobrinho é, pelo significado mes de origem africana, ela nos trágicos, vem do cunhado. No
do nome, defensor do povo fran- faz refletir sobre essa perda de segundo, a situação de racismo c
Joaquim Branco
A morte dirigível
Drones são naves solitárias
que seguem um remoto comando
e, como folhas ao vento
ou como aves sem bando,
viajam no silêncio e na sombra.
Bruno Fa
o gotejo do luar é um grão remoto
que a cereja do destino nunca vê
o choro e a flauta
quando a vi com tais olhos reluzentes já lento aflito que revolta o passo
olhos vagos, charmes de outro ser segue o menino a tornozelos ir
eu não tinha e não pude perceber varrendo as flores dos quintais daqui
que mais forte que a queirança é o querer dormindo o sono de seu descompasso
e o querer fez em mim tamanho espanto
pois a ela nunca quis me dirigir é o menino das notas de flauta
só um verso de olhar e me trai que toca amores e seus vendavais
como alguém trai a marcha de uma moto que beija a boca de seus carnavais
o gotejo do luar é um grão remoto no arpejo adoça, pula, brinca e salta
que a cereja do destino nunca vê
faz o destino o verbo do menino
tropecei por revés, redemoinhos quando ao olho de seu desatino
fiz carinho n’outras flores, n’outro ser reluz a face louca de outro ser
mas a rosa que estancou o meu viver
é a rosa que me abre toda noite quando que toca ele um novo choro
quando deito me enlaço no açoite e o coração repete o mesmo choro
do sorriso e da verdade aquariana do amargo doce gosto de viver
que um dia me contou uma cigana
e eu não vi e nem quis dar o meu voto
o gotejo do luar é um grão remoto
que a cereja do destino nunca vê
roma
lá no alto da montanha ela pairava
sobre o sonho que a Áustria entristecia o amor é mentira nos olhos do juiz
mas ao ver um dicionário que dizia intocável,
tudo fica num silêncio resguardado arbóreo,
hoje eu tenho o coração apaixonado lascivo
pela febre que arde no querer o amor é um giz
pelo sonho que não pode deixar ser de onde todos os pós se agrupam
o segredo da paixão é uma foto de onde todos já não se escutam.
o gotejo do luar é um grão remoto o amor disse kiss
que a cereja do destino nunca vê o amor disse quis
no pretérito
nas profecias
nas barbas
coração da manhã e nos cajados
o orvalho da manhã
saliva na folha e se vai nos quereres iconoclastas
como se vão também meus pensamentos nos saberes dos castos
se diz:
o bule vazio, cadarços soltos - o amor é o futuro inaudível:
as meias postas ao chão vivem palavras das figuras romanas
palavras que não foram ditas das paixões suburbanas
no coração da manhã dos ventos que pairam no céu
o amor é o fruto perfeito
a clave da Lua dá seu tom é um cristo no leito
como tons de cachos de uva o amor,
minha vida é viver o horizonte em verdade
é o réu
é noite
preciso dormir
no Falcão
ilustração: tônio
a cascavel
a cascavel mora ao lado da boa noite
e finge reter solidão
pra esmaltar a razão
do apreço que não se conhece
Luiz Fernande
Soletrando Meditando Ruídos da tarde nº 1
Soletro o futuro O imaginário vive em mim. Há um barulho
nos sentimentos do mundo. Desejo abrir os braços do sol. e ruídos da tarde
E pela alquimia da memória Aparar a chuva com as mãos na cisterna da visão.
fantasio o ego. e trazer todos os elos Encanto mágico
Nas asas da fantasia na corrente da poesia. no pó do pensamento
semeio paisagens, Descubro um pensamento, e na ilha imaginária
atravesso horizontes, cruzo sete mares abro janelas,
abro o leque das ideias, sem galgar horizontes desfio nos dedos
traço símbolos e velejo sobre as ondas o mormaço do tempo.
e soletro o tempo na planície da minha imaginação. Lembranças alegres em
com a minha visão. Reflito os milagres da vida. estado de poesia.
Soletro a raiz dos sentidos Colho o sorriso na
e me alimento nas curva do amor
folhagens das palavras. e fico leve no leque
Poemeto do olhar.
Pouso a memória
nas águas
para dormir o oceano.
Re-memória
Percorro nos desvios de um mesmo
encontro meus versos
na rua da República.
Medito no dia
em que na correnteza do Sanhauá
banhei o rosto
e na toalha do vento o enxuguei.
A memória passeia
nos sonhos marcados
andes da Silva
Versão nº 1 Miragem Meditando nº 2
Em transe Este mar me leva
Apenas silencio.
atravesso os instantes. a eternidade das coisas
A paz percorre
Brinco dentro de meus olhos viajam
a mente.
uma caixa cheia de palavras pelas tatuagens
Lembranças desatam
e reajusto os teoremas da infância.
meditação nesta
de linguagem. O mar e a infância
manhã.
Ao habitar um vazio são duas lâmpadas
Respiro comigo
geométrico da memória
e busco pouso
mergulho nas ondas sob o peso de meus sonhos
no voo amplo e
da meditação menino-ciranda-já fui.
infinito de minha meditação.
e me consumo por inteiro Hoje fico na areia
corpo e alma. com a manhã nos ombros.
Ainda
nas mãos da solidão
escorrego em fragmentos
da tua imagem.
ilustração: domingos sávio
Luiz Fernandes da
Silva é paraibano e
reside em João Pessoa
(PB). Poeta premiado, é
autor de vários livros,
entre eles, Balada de
um instante, Poemáti-
ca, Exílio do silêncio e
Universo poético.
Cinema
noir
,
N
ão faz muito tempo que publiquei aqui minhas “Notas sobre o noir”,
onde levanto os traços gerais desse subgênero cinematográfico tão
pessimista e tão amado. Pois, para retomar o assunto reproduzo
abaixo um trecho dessas “Notas”:
“Formalmente, eram filmes em preto-e-branco, cheios de
sombras e angulações fora do comum, com ambientações ur-
banas e música sombria. Na perspectiva do conteúdo, os fil-
mes noir eram estórias policiais envolvendo crime, sexo, cul-
pa, mistério e punição; os protagonistas podiam ser detetives
particulares, policiais, gangsteres, ou mesmo cidadãos comuns
vítimas de ciladas... O período áureo do noir foi a vintena que
vai de 1940 até os finais dos anos cinquenta. O que se fez de-
pois disso, nos parâmetros do gênero, foi derivação, e, o que se
fizera antes tinha sido premonição. Tanto é que Relíquia macabra
(1940) é dado como sendo inaugural e A marca da maldade (1958)
é considerado um dos últimos noirs autênticos.
Para historiadores e estu- mo não existia, pelo menos não são parte de um projeto de pes-
diosos, o gênero noir brotou da na acepção hoje conhecida. Foi o quisa maior, com a intenção que
combinação estética de duas crítico francês Nino Frank quem alimento de escrever um longo
coisas diferentes: de um lado a primeiro o usou com esta acep- ensaio sobre o assunto, a ser –
literatura policial americana dos ção, em 1946: “Noir” (´negro´ em quem sabe? – editado em formato
tempos da Depressão, tipo: Da- francês) era a cor da capa das pu- de livro. Delas já faz parte um ca-
shiel Hammet, Raymond Chan- blicações policiais em que esses derno com fichamento de quase
dler, James M. Cain, etc.; de ou- filmes eram baseados, e o crítico 150 filmes noir, com ficha técnica,
tro, o movimento expressionista francês achou que era um termo resumo do enredo e comentários
alemão dos anos vinte, trazido a bem apropriado para definir o críticos meus.
Hollywood por imigrantes como gênero. O termo, porém, não pe- Escreverei um dia esse livro?
Fritz Lang e outros. Da primeira, gou logo, pois, segundo consta, Não sei, mas, por enquanto, aqui
ele herdou a narrativa hardboi- os próprios cineastas america- comento três filmes que consi-
led, pessimista e de final infe- nos não gostaram dele. Só veio dero exemplares do estilo noir, a
liz; do outro, a plástica gótica. a pegar muito mais tarde, dos saber: Um retrato de mulher (The
Salvo exceções, eram produções anos 70 em diante, quando os woman in the window, 1944,
B, ou seja, de orçamentos limita- historiadores do cinema passa- Fritz Lang), Pacto de sangue (Dou-
dos, mas, o engraçado é que, ao ram a usá-lo de forma retroativa ble indemnity, 1944, Billy Wilder)
tempo em que se produziam os e sistemática.” e O grande golpe (The killing, 1956,
filmes noir em Hollywood, o ter- Pois estas “Notas sobre o noir” Stanley Kubrick). c
c
Um retrato de mulher
Fotos: reprodução internet
c
Pacto de sangue
c
O grande golpe
Cordel
em tese:
a importância da
preservação da cultura
popular
Fernando Vasconcelos
Especial para o Correio das Artes
Q
uando era adolescente (e lá se vão muitos anos) entre a xidade descritiva e, no tocante
cidade de Pedra Lavrada e o Seminário Franciscano de ao produtor intelectual, contro-
Ipuarana, em Lagoa Seca, Paraíba, admirava e chega- vérsias em função do papel do
va até a gravar as costumeiras cantorias. Conterrâneo proprietário e autorproprietário
de José Alves Sobrinho, grande cantador de viola e do- daquele verdadeiro arsenal de
tado de sapiência incomum, nunca pensei que, após obras poéticas. Quais eram os
quarenta e seis anos de magistério iria participar de verdadeiros autores daqueles fo-
uma Banca de Defesa de Tese, cujo objeto era o Cordel lhetos? Haveria plágio? E, depois
e o Direito Autoral. da Internet, como controlar tudo
Orientada pela professora doutora Bernardina isso?
Maria Juvenal Freire de Oliveira, atual Vice-Reitora A doutoranda Manuela Maia
da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), a jovem começou a pesquisar acerca
Manuela Eugênio Maia elaborou interessante traba- dessa distinção entre autor
lho sob o título Práticas autorais do cordel no contexto da e proprietário que, de
propriedade intelectual. Segundo a autora (e, agora, dou- modo diacrônico, en-
tora), “o cordel, enquanto documento é um tema pou- volve a percepção
co explorado no âmbito das teses produzidas junto à dos cordelistas
Pós-Graduação em Ciência da Informação no Brasil. quanto aos
Dos 17 (dezessete) programas identificados pela Asso- mecanis-
ciação Brasileira de Educação em Ciência da Informa- mos refe-
ção (2014) e, correlacionados com os dados obtidos na rentes
Biblioteca Digital de Teses e Dissertações, há um cam- à c
po potencial para pesquisas que tratem desse gênero
literário no contexto da área”.
Manuela vem trabalhando nesse universo há mais
de uma década, principiado em 2006 pelo gerencia-
mento da Biblioteca de Obras Raras “Átila Almei-
da”, em Campina Grande. Ao analisar milha-
res de cordéis (os famosos folhetos) um dos
temas que lhe chamou a atenção foi o re-
lativo à autoria, principalmente, no to-
cante à disponibilização do conteú-
do digital na base desenvolvida
no âmbito daquela Biblioteca.
Debruçando-se sobre o
estudo do cordel, per-
cebeu uma comple-
Quero
vendado os mistérios de nosso intelecto (nossa razão),
afirmando entre outras coisas que ele está “ligado ao
córtex cerebral, cuja estrutura é resultado de uma evo-
lução moderna do cérebro”, e que, pasmem, “é simples
analisá-lo”, agora pretende explicar cientificamente
minha alma nada mais nada menos que nossos sentimentos, decla-
rando, de saída, que eles “advêm do tronco do cerebelo,
da espiral da medula, dos nervos periféricos, enfim, de
de volta
uma mecânica cuja origem se confunde com o princí-
pio da evolução dos seres vivos”. Também não entendi
nada, caro leitor, mas fiquei preocupado.
Vale lembrar que até então nossas emoções e nossos
sentimentos costumavam ser relacionados com nossa
“alma”, usada esta palavra com sentido religioso ou
Francisco Gil Messias não, simplesmente por entender-se que o ser humano
Especial para o Correio das Artes era composto de duas partes: o corpo físico, objetivo,
e de mais alguma coisa intangível (a “alma”), suposta
sede incorpórea de nossa subjetividade, ou seja, de nos-
Q
uem sou eu para discordar de sas emoções e de nossos sentimentos, a parte nobre do
António Damásio, célebre neu- nosso “eu”, que nos diferenciava dos demais animais.
rocientista português, mundial- Em outras palavras, a “alma” nos conferia uma espécie
mente respeitado? Aliás, quem de transcendência, de espiritualidade, qualidades au-
sou eu para me contrapor a qual- sentes nos demais seres vivos, estes sim, restritos à pura
quer neurocientista, seja ele fa- matéria. A “alma”, portanto, era um privilégio (uma
moso ou não? No entanto, ouso. graça?) do qual o Homo sapiens muito se orgulhava.
E digo porquê. Ninguém ousaria supor, e muito menos afirmar, que
O caso é que não bastasse a a emoção, o sentimento, o talento e a arte contidos num
neurociência pretender ter des- poema de Drummond, numa sinfonia de Beethoven, c
Música1
é perfume
Para Raimundo Seixas
ilustração: domingos sávio
Canto 1
Um senhor culto e elegante treslouca numa cer-
ta madrugada. Na sala de sua casa, cheia de livros,
de discos, da ausência de amigos e nada mais, onde
mora com a companheira e quatro filhos. Treslouca
porque não aguenta mais a enganação. O senhor de
cabelos lisos e escorridos, penteados para o lado di-
reito e cheirando a erva-doce de banho recém-toma-
do, aumenta o volume da radiola onde toca no vinil
o primeiro movimento da sétima sinfonia de Beetho-
ven. Abafa seu grito inumano com a sinfonia. Um
grito que, ao invés de libertá-lo da angústia, entra na
alma e desvirgina a sua sanidade. A mulher, bem pe-
quenininha e de uma doçura que nada corresponde
ao seu tamanho, acorda com Beethoven àquela altura
e àquela hora da madrugada adentro. Entra na sala,
baixa o volume do som sem que seu marido perce-
ba, olha para ele e diz: “Vá ficar com ela. Eu cuido
dos nossos filhos”. Do lado oposto da rua, também
numa sala cheia de livros, de discos, da ausência de
amigos e nada mais, alguém, cuja silhueta não define
seu dono, escuta, em volume de som tão elevado, ca-
paz de despertar até os ouvidos surdos de Beethoven
morto, “High and dry”, do Radiohead. I
Canto 2
Saiu pelo corredor à procu-
ra da sala onde daria sua próxi-
ma aula. Estava num inverno de
alma e aqueles cabelos tão longos
e soltos, mais a quantidade de
livros e jornais que carregava,
eram tão pesados quanto o gelo
consumido pela alma que seu
corpo abrigava. Arrastava-se.
Até a sala onde entregou a cha-
ve a um dos alunos. “Por favor,
abre a porta para mim?”. E, assim
como um bicho que se integra à
natureza, camuflando-se para se
alimentar das fontes que lhe são
oferecidas, sentia-se, ali, em seu
habitat natural. Olhou nos olhos
de alguns alunos e era como abrir
janelas para uma nova estação.
O gelo se vertia em rio de águas
doces, de palavras líquidas, can-
tadas na harmonia daqueles acor-
Canto 3
des de violão; na melodia da flau- Ela usava um vestido de um tátuas deslocadas por uma força
ta (ah... aquela flauta!). As falas tecido chamado à época de crepe invisível. Ali ensaiavam os pas-
dos alunos se integravam àqueles indiano pelo seu aspecto amassa- sos e entravam no terreiro, dois
acordes como a vida dela àqueles do. Um vestido de três saias liga- pra lá e dois pra cá, rodopiando
olhares. Assim perceberam, pro- das por sianinhas de tonalidades em torno de si mesmos. Seriam
fessora e alunos, a dor de um eu- da mesma cor: cor da terra batida capazes de abrir um buraco no
-lírico (pai ou mãe?) por ver nos daquele terreiro onde costumava chão onde dançavam, sem ritmo,
olhos do seu filho rindo a venda dançar. Seu pai trazia em seus desconectados daquela música,
que trancou sua vida breve e, no sobrenomes (Seixas e Bandeira) mas ligados num afeto cúmplice
nome que deu ao filho, a redução a veia artística que nunca desen- que só quem ama entende. Viver
a simples iniciais a mais na es- volveu. Engano. Era um exímio poderia se resumir àquilo: aquela
tatística das misérias humanas. dançarino. Naquela época, forró poeira levantada a cada arraste
Olha aí, meu guri! I pé-de-serra era dançado ao pé da de pé, confundindo-se cromati-
serra mesmo, num sítio pros lados camente àquele vestido enfeitado
do Pinga, na cidade de Horebe, à de sianinhas. Mas viver acabou.
luz de candeeiro e ao som tradi- Numa manhã de sol, exausto de
cional do triângulo, da zabum- respirar, ele levantou seu braço
ba e da sanfona. O metro e meio direito, aquele que laçava a cintu-
dela não permitia que alcançasse ra magra de sua minúscula filha e,
além do queixo do seu pai, que, no lugar da mão suave dela, trazia
quando pequena, a apelidara de o peso do que ia lhe fazer descan-
Nala, para reforçar as consoantes sar para sempre. Salvo por sua
que soam no seu nome de batis- própria mão. Estaria tristinho o
mo. Para dançar, ela colava sua pai dela? Muito triste e de memó-
fronte ao queixo dele. O braço ria tão embaçada que não lhe per-
dele laçava aquela cintura magra mitiu lembrar a canção que pode-
e as mãos dadas, entrelaçadas ria lhe trazer oxigênio de volta.
com firmeza, ficavam imóveis, Era tarde. Não batia mais aquele
rentes à cabeça dele. Só os pés se coração, cujo ritmo embalava pai
moviam. Os corpos pareciam es- e filha num amor cósmico. I
Uma noite
de quinta-feira
Willy Nascimento Silva
Especial para o Correio das Artes
A
briu a porta do quarto deli- vinho lhe amargar a boca, luz avermelhada e morna.
cadamente. Queria mantê- um gosto diferente de tudo Terminou de se vestir apa-
-la imersa em seus sonhos. que já provou, de um vi- vorado. Segurou as pare-
Enquanto se vestia no breu nho nunca provado, uma des do corredor que pare-
do corredor que dava para sensação de embriaguez ciam se estreitar em suas
uma pintura barroca pen- instantânea. Embebido por costas. Caminhou porta
durada na sala de estar, esse sentimento, achou-se adentro. O brilho vinha de
trocou as pernas e caiu de abandonado pelo mundo e uma tocha de fogo deposi-
peitos no chão. Voltou-se buscou amparo virando-se tada num lustre de bronze
para a palidez da mulher, outra vez para a imagem que descia do teto à altura
que soltou um suspiro e do anjo louro que se escon- de uns dois metros de sua
mexeu preguiçosamente dia desleixada nos lençóis cabeça, à esquerda do sa-
as coxas, deixando à mos- amassados pelo contorno lão. Tentou chamar por sua
tra suas nádegas brancas e do seu corpo. Entretan- companheira, mas a língua
redondas. Cerrou os olhos, to, a porta que antes dava estranhava a boca, e pro-
aliviado. Ali caído, com os para o quarto dos aman- duzia ruídos ininteligíveis,
joelhos atados pelo cós das tes agora abria um largo talvez outro idioma. Uma
calças, sentiu um gosto de salão, de onde vinha uma mulher, vestida num longo c
Orlando
Tejo
M
orreu o meu amigo Orlando Tejo. Sim, porque por mais que alguns
“Descansou”, disse-me Astier Basí- insistam em dizer que Zé Limei-
lio. É verdade. Vitimado por uma ra realmente existiu (e o próprio
terrível doença degenerativa, Tejo Tejo o confirmava jurando de pés
estava há anos preso a uma cama, juntos, obviamente em defesa da
sem vontade própria nem memó- verossimilhança da sua criação), o
ria. Sem memória, meu Deus! Logo provável Zé Limeira da vida real
ele, que sabia de cor e salteado toda não é o mesmo Zé Limeira do livro
a obra poética de Augusto dos An- de Orlando Tejo, cujos versos se
jos! Certa vez, um repórter, que- tornaram célebres e são declama-
rendo pô-lo à prova, abriu ao acaso dos por uma legião de admirado-
um exemplar do Eu e o desafiou: res Brasil afora. A operação de Tejo
— Declame “O Morcego”! consistiu justamente em enxertar,
Mal Tejo concluía o terceiro ver- no frágil esqueleto do Zé Limeira
so, o repórter, sentindo-se vitorio- real (poeta que jamais passaria à
so, interrompeu: posteridade pelo teor de seus ver-
— Está tudo errado! sos), a carne da mais pura e vigo-
Tejo sorriu, levou o seu insepa- rosa poesia, criando o Zé Limeira
rável cachimbo à boca, deu uma que conhecemos hoje — aquele
baforada e lhe disse: “misto de menestrel e jagunço” de
— É que estou recitando de trás “estatura avantajada”, que trajava
para frente... roupa de mescla azul, usava lenço
O Brasil inteiro estaria de luto, vermelho ao pescoço e trazia quin-
caso fôssemos, enquanto povo, ze anéis reluzindo “nos dedos pos-
mais atentos aos verdadeiros valo- santes e ágeis”. Um Zé Limeira que
res culturais do nosso país. Jorna- é pura criação poética e o único a
lista, escritor e poeta, Orlando Tejo quem se pode atribuir a invenção
escreveu um livro excepcional, o do verso limeiriano, inconfundível
já hoje clássico Zé Limeira, poeta do no seu absurdo de viés surrealista.
absurdo. Realizou, com esta obra, a Há, no livro de Tejo, inúmeras
maior façanha que se pode espe- passagens antológicas. Mas nenhu-
rar de um escritor — a criação de ma talvez supere, em termos de in-
um personagem que ganha vida ventividade, de imaginação criado-
própria, passando a ser tratado ra e de ritmo narrativo, o episódio
pelo público como gente de carne ocorrido num bordel de Campina
e osso, desvinculando-se do nome Grande e protagonizado pelo ma-
do autor e até mesmo o superando landro Agápio, mais conhecido
em matéria de popularidade. como “o terror da Lagoa dos Ca-
c
As passagens
benjaminianas: ,
leituras (5)
A
s passagens eram constru- ‘Passagens’ de Walter Ben- apresentar a cidade, em sua mul-
ções apoiadas em ferro e jamin: contribuições para tiplicidade e diversidade, como
vidro. Eram, como esclare- compreensão geográfica do espaço de experiência sensorial
ce Marcos Flamínio Peres, capitalismo”, “as vitrines e e intelectual, local de encenação
“as galerias cobertas que os preços fixos ao lado das dos conflitos sociais e de transfor-
passaram a povoar Paris mercadorias inovam o mun- mações urbanísticas. Suas ruas
na virada do século 18 para do do comércio da moda. são palco de circulação de mer-
o 19, como a do Cairo, de Apelos do ponto de vista cadorias, repletas de enigmas; o
l’Ópéra, a Vivienne ou a do desejo e do onírico que lugar onde o sujeito autônomo,
Véro-Dodat, várias delas os comerciantes parisienses senhor de uma razão iluminista,
hoje já demolidas”. Nas converteram ao seu favor perde-se em meio a uma labirín-
passagens, enfim, conforme nas vendas de mercadorias. tica multidão – de pessoas, de
ainda Wagnervalter Dutra As passagens despertam objetos, de imagens –, e em que a
Júnior, no artigo “Breve lei- desejos recônditos ancora- experiência de rapidez, de anoni-
tura do espaço-tempo nas dos nas fantasmagorias da mato pode ser realizada de modo
mercadoria”. No mais radical do que em qualquer
ensaio “A metró- outro lugar. Desse modo, ler a ci-
foto: reprodução internet