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-
Copyright © 2011 by Rubem Fonseca
EDITORANOVAFRONTEIRAPARTICIPAÇÕESS.A.
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e-rnail: sac@novafronteira.com.br
ISBN 978-85-209-2616-1
educação, diz Alyosha Karamázov. E se apenas uma des-
CDD869.93
vez venha a ser, um dia, o instrumento da nossa salvação.
CDU 821.134.3(81)-3
Mas há quem pense o contrário do personagem de
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Ao falar de sua infância José tem que recorrer à sua
Hemingway, nem a do Beaubourg e do Quai d'Orsay,
memória e sabe que ela o trai, pois muita coisa está
mas a Paris das vielas estreitas, do Pátio dos Milagres,
sendo relembrada de maneira inexata, ou foi esque-
de Richelieu, contada por Michel Zévaco e Ponson du
cida. Mas ele gostaria de concluir, ao fim dessas lem-
Terrail. Essa parte da sua vida lhe é real, certamen-
branças tumultuadas, que a memória pode ser uma
te ele passava mais tempo na companhia da pérfida
aliada da vida. Sabe que todo relato autobiográfico é
princesa Fausta ("ela era paciente; isto é que a fazia tão
um amontoado de mentiras - o autor mente para o
forte e temível"), do intrépido cavaleiro de Pardaillan
leitor, e mente para si mesmo. Mas aqui, se alguma
e do prodigioso Rocambole do que com a sua família.
coisa foi esquecida, ele se esforçou para que nada fos-
(Os Três Mosqueteiros eram uma equipe, o que os tor-
se inventado. José cita Proust: "a lembrança das coisas
nava menos interessantes.) As narrativas desses auto-
passadas não é necessariamente a lembrança das coi-
res fizeram-no íntimo de reis, papas, duques, cardeais,
sas como elas foram:'
grandes inquisidores, espadachins formidáveis, prin-
Ele tenta dar uma ordem cronológica às suas lem-
cesas e estalajadeiras lindas, áulicos sicofantas e astu-
branças, mas não consegue, nem acha necessário. Lem-
ciosos bobos da corte. Essas pessoas o envolviam em
bra que até os oito anos de idade seu pai, sua mãe e dois
golpes de estado, regicídios, fratricídios, homicídios,
irmãos moravam em uma confortável casa localizada
parricídios, genocídios, conluios criminosos, intrigas
numa cidade do estado de Minas Gerais, mas ele não
palacianas, envenenamentos, defenestrações, lutas de
vivia ali. Durante aqueles oito anos de sua vida viveu
capa e espada e cenas de amor e altruísmo. José atra-
em Paris. Não a Paris dos bulevares de Haussmann,
vessava, embuçado numa capa negra, as ruas de Paris,
de Longchamp, de Napoleão Ill, nem a Paris festeira de
frequentava as estalagens, as mansardas, os salões e
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os boudoirs de princesas, os gabinetes de cardeais e
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nalidade num terreno atrás da sua casa. O vinho tinto Apesar de "viver" em Paris, José consegue relem-
maduro português, que seu pai lhe dava diluído com brar episódios da sua existência familiar na cidade de
água e açúcar, ainda que fosse quase um suco de fru- Minas. Sua mãe dizia que ele aprendeu a ler sozinho
tas, parecia-lhe bastante pertinente ao mundo da sua aos quatro anos (provavelmente ao ver os seus irmãos
imaginação. (José supunha que o Vouvray fosse um mais velhos estudando), ainda que pronunciasse mal
tinto maduro e surpreendeu-se ao saber que era muitas palavras, pois aprendera a ler sem soletrar e as
sopa de cavalo cansado, vinho com açúcar e pão. Sua ficante. A mãe acreditava que isso talvez explicasse a
mãe não bebia vinho, quando muito um cálice peque- obsessão de José pela leitura, as noites que ele passava
no de licor ou de Porto, ou então uma taça de cham- acordado lendo, e os dias também. A mãe não tinha
panhe. Não era da boa tradição as mulheres tomarem conhecimento, é claro, da emocionante vida do filho
vinho, ainda mais da maneira copiosa dos homens. em Paris, aquela que Zévaco e os outros inventavam
(Jean-François Revel conta que na Antiguidade beber para ele. Ela costumava arrumá -10, vestia-o com um
vinho era pr~ibido às mulheres e que há relatos histó- pimpão de veludo (era assim que chamava uma roupa
ricos de maridos que mataram as esposas por terem inteiriça, que incluía a blusa e a calça em uma só peça)
ido beber vinho às escondidas na adega.) e colocava um laço de fita nos seus longos cabelos. José
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cinquenta anos. O irmão do meio demonstra no ros-
beiras, a menos alta, rolava por ela, de maneira que
apenas o pimpão sofria os piores danos, na verdade fi- to a falta de sensatez que o faria criar problemas para
toda a família.
cava praticamente destruído. O laço de fita sumia. De-
pois de José fazer isso algumas vezes, a mãe desistiu de Na verdade, a mãe de José, depois de ter tido dois
vesti-lo de pimpão de veludo e de colocar laço de fita filhos homens, queria uma menina, e nasceu mais um
na sua cabeça. Ele não se lembra de algum comentário menino. Ela gostaria que ele entrasse para o seminário
de sua mãe, acredita que ela, sendo muito inteligente, e se tornasse um padre. Mal sabia que José, desde mui-
entendeu que aquela era uma maneira de José declarar to jovem, se tornaria um ateu.
que não queria de forma alguma usar aquele vestuário. Sua mãe acreditava que se José não dormisse podia
José tem até hoje uma foto, em que a mãe e o pai ficar doente, provavelmente tuberculoso, uma doença
estão de pé, tendo ao lado os dois filhos mais velhos, que a aterrorizava. Do seu quarto podia saber se a luz
e ele está sentado num banquinho, de pimpão e laço do quarto dele estava acesa e o mandava dormir. As-
de fita na cabeça; a mãe tem a mão colocada sobre o sim, para poder ler, José esperava que ela e o seu pai
ombro de José, como quem diz fica quieto, não vá fu- dormissem, utilizando-se de vários truques para man-
gir para rolar o morro. Seu pai está meio de lado, de ter-se acordado: andava dentro do quarto de um lado
braços cruzados, vestido com um terno bem-talhado, um para o outro; deitava-se nu no chão frio de ladrilho do
homem bonito. Sua mãe também está bonita, com um ves- banheiro, isso funcionava bem no inverno parisiense
tido de seda pregueado. Seus dois irmãos estão em pé, (digo, mineiro), com a vantagem de, às vezes, deixá-lo
e o mais velho já tinha a fisionomia boa, responsável e doente, e um garoto doente ficava de cama, e ninguém
generosa, que o faria sofrer e morrer do coração aos se incomodaria se ele permanecesse o dia inteiro fora
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de casa, em Paris. (Devo dizer que Paris representava, as palavras eram escritas sem o acento agudo, pois o
lato sensu, a França, pois as personagens de José atua- teclado americano da Underwood não fora adaptado
vam também em outras cidades francesas. Uma vez para o português. A máquina fê-lo adquirir dois hábi-
ou outra, José ia com eles à Itália para conversar com tos, duas propensões: ele só conseguia escrever com
os Bórgias e ver a Ponte dos Suspiros). É bem verdade conforto, teclando (ou digitando) as palavras numa
que sua mãe o enchia de gemadas, torturava-o com máquina; e essas palavras nunca eram acentuadas. No
ventosas e cataplasmas de mostarda fervente no peito. entanto, por alguma misteriosa razão, José não sentia
Mas valia a pena aquele sofrimento todo. Ele podia ler vontade de escrever uma só palavra sobre Paris, a ci-
o dia inteiro e, quando afinal todos dormiam, acendia dade onde ele vivia, nem mesmo sobre os fascinantes
a luz e novamente pegava o livro, e a leitura o desper- personagens que povoavam a sua mente.
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sua casa a vida dos escorpiões e das aranhas-caran-
ria prazer, como Karl May, J. Fenimore Cooper, Edgar
guejeiras, tipo de entretenimento, aliás, que viria a
Rice Burroughs, Edgar Wallace, seu primeiro autor de
ser descrito num dos seus livros. José não se lembra
mistério. (Nunca leu os livros clássicos infantis, afinal
de brincar com os cães da casa, talvez porque fossem
ele não era propriamente uma criança. Alguns desses
ferozes, três pastores-alemães, uma fêmea de nome
livros só foram lidos quando já era adulto, por curio-
Guadiana e dois machos, Tejo e Douro, nomes de rios
sidade profissional.)
de Portugal, pois, segundo uma tradição supersticiosa da
Continuou gostando do que os folhetins conta-
terra dos seus pais, dar nomes de rios aos animais im-
vam, o Curdistão bravio, as pradarias americanas, a
pediria que se tornassem hidrófobos.
África selvagem, os crimes na nevoenta Londres. Mas
Como José lia tudo que lhe aparecia na frente, em
tudo mudou quando veio para o Rio, aos oito anos. O
determinado momento, além dos romances franceses
Feitiço de Alcácer Quibir esperava por ele no Rio de
de capa e espada, devorou os livros de autores por-
Janeiro.
tugueses que havia na casa - Camões, Eça, Antero,
ção, que lido mais tarde, já adulto, lhe deu mais pra-
O pai e a mãe de José, dois jovens imigrantes portu-
zer), Albino Forjaz de Sampaio, Feliciano de Castilho,
gueses, haviam se conhecido no Rio de Janeiro, quando
Júlio Dantas, Gil Vicente, Camilo Castelo Branco, Jú-
o pai trabalhava no magazine Pare Royal e a mãe em A
lio Diniz, uma lista extensa. E começou a ler outros
Moda, uma elegante loja de roupas femininas. O Pare
autores, que a tia Natália lhe enviava, acreditando tal-
Royal fora fundado em 1875, pelo português Vasco Or-
vez, e acertando, que seriam livros cuja leitura lhe da-
tigão, filho do conhecido escritor português Ramalho
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Ortigão, e tornara-se em pouco tempo o mais impor- frugal e alguns empréstimos, abriu naquela cidade
tante estabelecimento comercial do Rio, com inova- um grande magazine, que pelo desejo dele seria gran-
ções que cativaram os consumidores, como a exibição dioso como o Pare Royal. A esse sonho, o pai de José
dos preços de todas as mercadorias e a distribuição de deu o nome de Paris n'América. Como todos os por-
catálogos ilustrados. O prédio da loja, que ocupava um tugueses da sua geração, era fortemente influenciado
quarteirão inteiro da rua que um dia se chamou rua pela cultura francesa, e isso com certeza o levara a
das Pedras Negras e depois receberia o nome de Ra- escolher aquele insólito nome afrancesado, repetindo,
malho Ortigão, entre a rua Sete de Setembro e o lar- de certa maneira, o que fizera Vasco Ortigão. Além
go de São Francisco, possuía 140 janelas, 48 vitrines disso, é provável que ele conhecesse a loja Paris em
externas e 5 portas de acesso. Seu pai, que era muito Lisboa, localizada na rua Garrett, no Chiado, quase
trabalhador, como a maioria dos imigrantes, e sendo em frente ao famoso café A Brasileira, frequentado
particularmente dedicado à firma, alcançou o posto de por Fernando Pessoa e outros escritores. Outra hipó-
gerente, certamente com alguma participação nos lu- tese, que não exclui as anteriores, é a de que ele co-
cros, o que lhe permitiu economizar o suficiente para nhecia a loja Paris n'América de Belém do Pará. Muito
estabelecer o seu próprio negócio. jovem ainda, Alberto, vindo de Portugal, fora viver
O pai de José ouvira falar no potencial da cidade em Belém, por algum tempo.
de Juiz de Fora (chamavam-na de a Manchester mi- Durante alguns anos o empreendimento do pai
neira, um grande centro industrial e econômico da de José foi um grande sucesso. Moravam numa casa
Inglaterra) e, com muita ambição e esperança, usando confortável, seu pai e sua mãe jogavam tênis, a mãe
as economias que conseguira fazer em anos de vida estudava bandolim e pintura e em pouco tempo esta-
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va pintando quadros a óleo; seus irmãos brincavam e derivação patronímica ou uma alcunha sinônima de
José lia.
patranha, pois Mário Gamela era um grande contador
Entre as pinturas da sua mãe que não se perderam de casos de autenticidade duvidosa. De compleição
há um nu feminino (nus femininos sempre estiveram robusta e tez muito vermelha, era uma figura impo-
em moda junto aos amadores) que José tem até hoje, nente em seu uniforme e boné escuros. Mário Gamela
na parede de sua casa. É um quadro a óleo de uma era um homem disposto, que ajudava os outros em-
mulher nua, recostada num sofá, contemplando, de pregados (o jardineiro, a cozinheira e as duas arruma-
perfil, um colar de pérolas que ela sustenta com a mão
deiras) nas épocas em que se faziam as alheiras e os
levantada em frente ao rosto. Além de pintar, sua mãe chouriços no galpão especial construído nos fundos
tangia com habilidade o bandolim e cantava em sa- da residência.
raus para a família, nunca para estranhos; dirigia um Uma das possessões mais apreciadas da casa, mais
Oakland conversível e fumava com uma piteira. O pai do que os tapetes persas, os quadros, os móveis de ma-
pedira que a mãe de José fumasse, achava elegante deira de lei, os cristais e a prataria, era uma vitrola do
uma mulher fumando, mas a mãe detestava o cigarro último tipo, onde a mãe de José escutava diariamente
e só fumava quando o marido estava por perto. árias de ópera com os cantores da moda, Caruso, Tito
A mãe de José foi provavelmente a primeira mulher Schipa, Tita Ruffo. José cresceu ouvindo óperas, e cer-
da "sociedade" que dirigiu um automóvel e fumou em tas árias lhe causam, hoje, um inefável sentimento de
Minas Gerais. A família possuía dois automóveis, um nostalgia.
excesso numa cidade pequena, ainda mais dispondo Um dia, ao ler um livro de poesias de Florbela Es-
de um motorista particular, cujo nome poderia ser de panca, editado em Portugal, cheio de fotos da gran-
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de escritora, José teve uma surpresa ao constatar que diam no espaço. Bastões e estrelinhas, além de outros
Florbela e sua mãe tinham a mesma fisionomia. A se- fogos de salão, eram distribuídos entre os convidados.
melhança era surpreendente, se ele colocasse o retrato Por algum milagre, parece que nunca chovia nesse dia.
das duas lado a lado dificilmente alguém diria quem A outra festa era o Natal, a consoada do dia 24, com
era a sua mãe e quem era Florbela. arroz de polvo, bacalhau, um leitão e um cabrito in-
Duas ocasiões eram importantes no calendário de frutas portuguesas, cerejas, peras, maçãs, uvas e mo-
festejos da família, os dias dedicados a São João e ao rangos. Um dia José perguntou à sua mãe se jaca era
Natal. Não era uma festa de São João brasileira, nin- uma fruta gostosa e ela respondeu, desdenhosa, "nós
guém se vestia à caipira, dançava a quadrilha, não não comemos isso". Iaca era uma fruta que crescia em
ocorria o casamento na roça, nem se servia o quentão, qualquer quintal, no meio do mato. Era uma fruta de
cachaça com gengibre levada ao fogo. Mas eles faziam gente pobre, como a banana.
uma grande fogueira no quintal dos fundos, em tor- (Não havia, porém, desperdício de comida na casa
no da qual os convidados (empregados da loja e suas de José. Uma parte dos alimentos preparados, e não
famílias eram incluídos) se reuniam para cantar en- somente o que sobrava, era distribuída para os pobres.
quanto bebiam licores e vinhos portugueses, bagacei- Era comum as famílias com recursos terem o "seu po-
ra, vinho do Porto, vinho Madeira. Assavam batatas bre", que costumava receber roupas e alimentos perio-
na fogueira e havia ainda uma enorme mesa de comi- dicamente. A família de José "tinha" vários, que nos
das e doces. Eram acesos fogos de artifício que explo- dias de festa faziam uma fila para receber presentes e
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fosse, tivesse que ser atirado no lixo, teria antes que ser
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os bens tiveram que ser vendidos, as jóias, os móveis, n igo. Ou seja, de qualquer maneira não pretendia
ciço, muitas vezes empenhado e sempre resgatado da Na verdade os transtornos da mudança para o Rio
caixa de penhores, um símbolo, não de evocação nos- de Janeiro e as carências da pobreza não causaram à
tálgica dos tempos de abundância, mas de advertência família e a José maiores sofrimentos. O bem mais im-
dos reversos do destino. Abrindo-se a placa externa, portante para todos era a união da família, o que fora
pode-se ler em outra, interna, que fecha o mecanismo, mantido. Para seus pais a única coisa realmente into-
uma gravação com os dizeres "Omega, Grand Prix, lerável seria perder a dignidade. As marcas da pobreza
Os pais de José (seu pai não tomava nenhuma de- roupas boas que possuíam ficassem inutilizáveis. As
cisão importante sem consultar a mulher) decidiram maiores virtudes de ambos eram a bondade, o orgu-
voltar para o Rio de Janeiro, talvez não se sentissem lho, a dignidade e a altivez, que não dependiam dos
bem em continuar vivendo num lugar onde ruas e bens materiais, e assim eles mantiveram a cabeça er-
pessoas lembravam a opulência perdida e o sonho guida e o coração apaziguado, e isso não podia deixar
fracassado. José e seus irmãos não participaram das de causar uma influência benéfica nos filhos.
providências logísticas que foram tomadas para a Apesar de passarem necessidades, ninguém se la-
mudança. O certo é que José cuidou de colocar seus mentava pelo fato de morar sem qualquer conforto
livros favoritos numa mala grande, para carregá-Ios num sobrado destinado a depósito de mercadorias,
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sobre a loja onde o pai conseguira estabelecer um mo- quando havia dentifrício suficiente. O único luxo da
desto negócio, na rua Sete de Setembro quase na es- família era devido à saúde da sua mãe. Ela tinha que
quina da rua Uruguaiana, uma parte nobre do centro comer frutas, peras e maçãs, e estas eram importadas,
da cidade. A casa era, na verdade, um pavimento com- já que não havia nacionais e se havia eram intragá-
prido, sem paredes, que começava no balcão que dava veis. Como a sua mãe não podia comer as cascas, es-
para a rua; no meio, uma c1araboia, por onde entrava tas eram dadas aos filhos, um verdadeiro regalo, que
alguma iluminação durante o dia, e terminava numa era brindado com equanimidade para os três filhos.
área de serviço com um pequeno banheiro, que na José, no dia em que as cascas lhe cabiam, saboreava-as
verdade não tinha nem banheira nem chuveiro, ape- lentamente, pois era a coisa mais deliciosa que comia
nas um vaso sanitário e uma pia, o que obrigava todos naqueles dias.
a tomarem banho de cuia - a metade de uma lata de Tia Natália perguntou a José se ele sabia ler em in-
queijo do reino, que ao abrir fornecia duas cuias per- glês e ele respondeu que sim, mas na verdade sabia
feitas -, a água sendo retirada de uma lata de banha muito pouco. Então ela passou a lhe enviar pocket
vazia de vinte quilos que se enchia na pia. A cozinha books que comprava barato nos sebos. O primeiro li-
era um fogareiro improvisado na área de serviço, o vro que ela lhe enviou era um pocket ensebado inti-
que exigia que a comida fosse de uma frugalidade tulado The Case of the Sleepwalker's Niece - O caso
José e os seus irmãos nunca tinham um único tos- entendendo apenas metade, muitas palavras sendo
tão no bolso, quando queriam tomar um refrigerante adivinhadas corretamente pelo contexto, mas com-
eles o faziam com pasta de dentes diluída em água, preendeu a trama e descobriu o whodunit, o autor
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do crime. Depois de algum tempo a sua fluência em Apesar de todas as vicissitudes, ninguém, nem
inglês foi aumentando, não obstante ele quase nunca mesmo o pai, que certamente fora o mais atingido de
consultasse o dicionário. todos, estava particularmente infeliz. O único gran-
A tia Natália gostava muito dele e um dia levou- de desgosto sofrido por ele em sua volta ao Rio foi o
-o ao jardim zoológico. Ele acabara de chegar ao Rio, incêndio do Pare Royal, o magazine de nome francês
tinha oito anos. Ele passeou com ela em frente a todas do qual fora gerente. Numa noite de junho, ao saber do
as jaulas, onde viu tigres, leões, elefantes, girafas, ma- incêndio, perto da sua casa, a família foi se juntar
cacos, grandes e pequenos, preguiças, antas, cobras, à multidão que via o quarteirão inteiro ocupado pelo
jacarés e muitos outros animais dos quais não se lem- Pare Royal ser consumido pelas chamas. Entre os ho-
bra mais. Mas recorda com nitidez o que mais o im- mens, mulheres e crianças, estarrecidos com o espe-
pressionou naquele dia. Tia Natália virou-se para ele e táculo, havia frades do convento de Santo Antônio,
pegando-o pela mão pediu-lhe que mostrasse o bicho localizado próximo, no largo da Carioca, e da igreja
do qual ele mais gostara. José então levou-a até uma de São Francisco, que ficava ao lado e corria o risco de
das veredas do zoológico e mostrou. Era uma enorme também se incendiar. Jamais acontecera no Rio
escavadeira pintada de vermelho com lança, caçamba de Janeiro um incêndio como aquele. Os vidros das
e barra dentada, que repousava sobre esteiras de pla- janelas da grande loja explodiam com o calor, o mes-
cas de ferro articuladas. Aquela máquina nunca saiu mo acontecendo com aqueles dos prédios vizinhos, até
da sua lembrança. os antigos vitrais da igreja estouraram e as cordas de
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com um fantástico estrondo, causando pânico entre a
multidão.
raios e trovões, e ali estava um verdadeiro cataclismo No início dos seus dias no Rio, José continuou len-
à sua frente, para ser gozado em seu convulsivo es- do tudo que encontrava, além dos folhetins que sua
plendor. tia Natália, que morava na cidade, lhe emprestava logo
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chamada São Sebastião do Rio de Janeiro o desperta-
impossível de ser realizado. "Você não vai querer
ram para outra realidade e lhe fizeram descobrir um
um?", perguntava Caruso, e José sempre dava a mes-
novo e atraente mundo, deram-lhe uma nova vida. E
ma resposta, "vou ter que jantar quando chegar em
por sorte sua, o primeiro emprego de José, aos 12 anos
casa, e se não comer o que minha mãe preparou ela
- todos tinham que ajudar na renda familiar, a mãe
briga comigo".
"costurava para fora" -, foi numa pequena oficina que
A maioria dos alunos era misógina e homofóbi-
fazia bolsas e carteiras de couro, localizada num so-
ca, duas características que irritavam José. Havia no
brado do centro.
colégio um aluno chamado Ivo C.; um homossexual
José fizera exame de admissão para o Colégio Pedro
efeminado. José não informa o nome dele por exten-
II e passara com facilidade. Mas o Pedro II não tinha
so, pois não quer identificá-Io. E sempre que Ivo C.
curso noturno e, como tinha que trabalhar durante o
ia ao banheiro, que ficava numa espécie de porão,
dia, José só poderia estudar à noite. Assim, matricu-
quando voltava subindo as escadas, os homofóbicos
lou-se num colégio chamado ISP, na rua Vieira Fazen-
enfiavam o dedo no ânus dele, mesmo por cima da
da, que tinha curso ginasial noturno.
roupa, e Ivo dava saltinhos e gritinhos e os pulhas
Os alunos eram da classe média baixa. Na tur-
gargalhavam. Aquilo irritava José de tal maneira que
ma dele, um aluno chamado Caruso ia toda noi-
um dia ele perdeu a paciência, armou-se com um fa-
te, depois das aulas, ao boteco da esquina e pedia
cão que pegou em casa e ficou na escada que levava
uma média com sanduíche de mortadela. José mui-
ao banheiro. José agarrou pelo cangote o primeiro
tas vezes o acompanhava e intimamente dizia que
sujeito que enfiou o dedo no ânus do Ivo C. e roçou
um dia também ia poder desfrutar daquele prazer
a faca na cara dele dizendo, "seu filho da puta, na
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próxima vez que você fizer isso eu vou cortar fora os essa de entregado r foi a mais agradável de todas, cer-
seus colhões" Os outros agressores pararam na esca- tamente mais prazerosa do que a de escritor.
Nunca mais enfiaram o dedo no ânus do Ivo C. minhadas pela manhã bem cedo, por volta das cinco
O seu trabalho era de entregador, e, para levar as jornal no peito e nas costas, e na manga está escrito
encomendas dos fregueses, que nunca eram demasia- Runner, o termo inglês que significa, entre outras coi-
do pesadas, pois a produção da oficina era vendida sas' mensageiro, indivíduo que entrega mensagens, en-
no varejo, José circulava pela cidade inteira, no cen- comendas etc. No tempo de José, o nome dessa função
tro, caminhando, e nos bairros e subúrbios, andando era entregador mesmo, não estávamos numa época de
de trem e de bonde, de preferência no estribo. "Saltar eufemismos anglicizados, como a de hoje. Ele encon-
do bonde andando" na velocidade máxima era um es- trava, durante o seu trabalho, muitos "entregadores de
porte emocionante para pirralhos como ele. A grande marmita': garotos como ele, carregando um conjunto
proeza realizada por José, e que o fez ser considerado de vasilhas de alumínio empilhadas e adaptadas a um
o melhor de todos, era saltar de costas com o bonde suporte, com refeições fornecidas pelas pensões. Na
na velocidade 9, a mais rápida que ele podia alcançar. hierarquia estabelecida pelos entregadores, essa era
Entre as muitas ocupações que José teve em sua vida considerada a menos nobre das atividades de entrega.
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Assim, ficou encantado ao contemplar o mar, mas
obstante o hotel Copacabana Palace tivesse sido cons-
não surpreendido. truído havia mais de dez anos, em 1922, consta que
Do sobrado da sua casa José chegava, em dez mi-
as primeiras pessoas que tomaram banho de mar em
nutos de caminhada, à avenida Beira Mar e podia
frente ao hotel o fizeram amarradas em cordas, com
contemplar a baía de Guanabara, o Pão de Açúcar, o
medo de se afogarem.
morro Cara de Cão, os fortes protegendo a entrada da
Podia-se ir de bonde até o Alto da Boa Vista para
baía, pela qual, às vezes, um navio, vindo sem dúvida
passear na Floresta da Tijuca, a maior floresta do mun-
de muito longe, penetrava lentamente. Podia nadar na
do localizada dentro de um perímetro urbano. A única
praia das Virtudes, ou Santa Luzia, pois as águas da
inteiramente planejada e criada pelo engenho huma-
baía ainda não estavam poluídas, ou então na praia do
no, plantada em uma área que fora devastada para a
Flamengo, que ficava a uma distância que ele percor-
cultura do café, cujas duas primeiras mudas haviam
ria flanando, beirando o mar. Naquela época, as praias
sido plantadas no Rio de Janeiro em 177l.
frequentadas ficavam dentro da baía: Ramos, Ilha do
Mas os encantos maiores eram as caminhadas
Governador, Paquetá, praia das Virtudes na avenida
próximo de sua casa, pelas ruas do centro cheias de
Beira Mar, praia do Flamengo, praia de Botafogo. O
transeuntes, ruas onde se encontravam os cinemas e
grosso da população da cidade morava no centro, nos
teatros, as confeitarias, as lojas, os bondes elétricos
bairros e subúrbios da zona norte e numa parte da
trafegando pelos trilhos, os carros, e os monumentais
zona suL A ocupação ainda não se estendera de fato
edifícios do Theatro Municipal, do Museu de Belas
a Copacabana e às demais zonas litorâneas. As restin-
Artes e da Biblioteca Nacional, sendo que nos dois úl-
gas dessas áreas eram muito pouco visitadas, e, não
timos ele podia entrar sem pagar.
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meses, certamente. Era sempre uma aventura, cheia de
Para qualquer lado que fosse, só deparava com atra-
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pois soube que a sua babá namorava o lanterninha e ia habitualmente, marcada com uma placa comemorati-
para o cinema se encontrar com ele e deixava José sen- v . Mais tarde, o prédio virou uma sapataria.) E logo
tado olhando as imagens, o que devia alegrá-lo pois m seguida ficava a praça Tiradentes, que tinha má
nunca reclamou.) E cinema e literatura se juntaram fama por ser frequentada por travestis, homossexuais
que não as da tela. (Constava que Rui Barbosa havia A maior de todas as criações do ser humano é a ci-
sido frequentador assíduo do Ideal, e havia uma cadei- dade. É no centro das cidades que o seu passado pode
ra, que seria aquela na qual o grande jurista se sentava ser sentido e o seu futuro, concebido. Ainda que leitu-
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ra e imaginação disputassem o mesmo espaço e certa-
peso e história.
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a olhar insaciavelmente as pessoas, a entendê-Ias sem
do e onde.)
amores e dissabores. E essas pessoas imaginárias Voltando ao Rio de Janeiro. No Museu Nacional
tornam-se os personagens principais do livro. Teria de Belas Artes - uma cidade sem museus não é uma
Amos Oz se inspirado nos relatos autobiográficos de verdadeira cidade - José se encantava ingenuamente
Canetti? A melhor inspiração do escritor é sempre en- com a monumentalidade heroica da Batalha dos Gua-
contrada nos livros. rarapes, de Victor Meirelles, da Batalha do Avaí, de
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seria lá dentro daquele teatro que diziam ser um dos
orno "bonde de ceroulas", pois todos os seus bancos
mais luxuosos do mundo, o que só descobriria mais
'!'um cobertos por uma capa de imaculado linho bege-
tarde quando se tornou um claqueur, para poder as-
.laro. José olhava essas pessoas descerem do bonde,
sistir de graça aos espetáculos de ópera e balé, além de
I te parava ao lado do teatro, na rua Treze de Maio. As
ganhar alguns mil-réis.
mulheres desciam com alguma dificuldade devido aos
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livrarias nunca estavam muito cheias. Mas ler, agora,
Moema, de Delgado de Carvalho. Mas o que fez mais
começava a lhe proporcionar uma incipiente com-
sucesso foram as palavras do poeta Olavo Bilac, que ao
preensão das coisas e de si mesmo, lhe dava um pra-
concluir um discurso foi "delirantemente aplaudido e
zer diferente, pois lia os autores que escreviam sobre
chamado ao proscénio" A leitura dos jornais da época
o seu país, originalmente na sua língua, que em ri-
mostra que os poetas de então gozavam de prestígio
queza e beleza não perde para nenhuma outra. Eram
idêntico ao dos astros da música popular e da televisão
escritores do norte, do sul, do centro, de toda parte,
de hoje.
do campo e da cidade, uns já mortos e outros que es-
Na Biblioteca Nacional - o prédio, as pinturas de
tavam em pleno apogeu. Gostava de ler especialmen-
Eliseu Visconti, Modesto Brocos, Henrique Bernar-
te os autores mineiros. Não obstante, por formação e
delli e Rodolfo Amoedo, as esculturas de Correia Lima
paixão, o Rio seja a sua cidade e o cenário da maioria
e Rodolfo Bernardelli, e principalmente as estantes
dos seus livros, ele se orgulha de ter nascido em Mi-
cheias de livros causavam em José um grande enlevo
nas e gosta quando o chamam de escritor mineiro.
- José podia satisfazer o seu vício, a leitura, que então
A literatura feita em Portugal também teve uma par-
já era incurável e do qual nunca conseguiu se livrar,
ticipação importante nessa época em que, junto com
tendo se tornado ainda mais exacerbado com a idade.
o amor pela literatura, cresceu o seu amor pela língua
José descobrira que era fácil ler em pé nas livra-
portuguesa, e poderia citar dezenas de notáveis auto-
rias os lançamentos que ainda não tinham sido ca-
res lusitanos, de história, ficção e poesia, que o mar-
talogados pela Biblioteca Nacional. Meia hora numa
caram e lhe provocaram grande enlevo e admiração.
livraria, meia hora noutra, ele conseguia ler um li-
Seu pai gostava de recitar sonetos de Camões e versos
vro inteiro; os vendedores não se incomodavam, as
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de António Nobre e Guerra Junqueiro. José lembra-se I olhe dor salão de leitura, e enquanto aguardava o li-
dele recitando, deste último, "O melro" e "Oração à luz". vro, que era entregue por um funcionário, entretinha-
Junqueiro não era um dos seus poetas favoritos, não -s a olhar as fileiras de estantes superpostas até o teto,
obstante Fernando Pessoa tenha afirmado, em carta a que na época podiam ser vistas do salão, e sentia como
um editor inglês, ao sugerir a publicação do poema ra bom viver. Ficar, por menor que fosse o tempo,
"Oração à luz", que Junqueiro era o "maior de todos os no meio daquela infinidade de livros do mundo in-
poetas portugueses, tirou Camões do primeiro lugar teiro era, para José, como estar no paraíso. Ele consi-
quando publicou Pátria em 1896 [... ] 'Oração à luz' é derava da maior importância os inúmeros tradutores
provavelmente a maior realização poético-metafísica anônimos que verteram para o português os livros que
desde a grande 'Ode, de Wordsworth". lia então, escritos nas línguas que não conhecia. Sem
Todos os dias José passava uma parte do seu tempo num congresso de tradutores, na Alemanha, que diz,
lendo na Biblioteca, e mesmo ao entrar para o curso com razão, Übersetzer unersetzlich - o tradutor é in-
noite, conseguia arranjar tempo para ir lá. Nas ocasiões E havia as mulheres, que ele contemplava nas ruas,
em que tinha muita pressa, para voltar ao trabalho ou tão logo chegou ao Rio, e que, apesar da sua idade,
ao colégio, que também ficava no centro da cidade, ele o atraíam e seduziam pela beleza, muito mais do que
preenchia rapidamente uma ficha de pedido de livro, as mulheres dos livros. José se tornara precocemente
sentava-se numa das cadeiras marrons do imenso e sensível ao encanto feminino, o que pode ser explica-
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do por Freud e suas teorias sobre sexualidade infantil,
1 rua, parecia -lhe um local mágico. Ao chegar em
ou então por Iung, algo ligado ao inconsciente coleti- I .José se deitava, fechava os olhos e via novamente
vo, mas provavelmente não é nada disso.
I mulheres desfilarem, uma após a outra, talvez ainda
Perto da sua casa, na esquina, ficava a confeitaria
111 i deslumbrantes em sua imaginação. Não havia (e
Cavé, que parecia ser frequentada apenas por mu-
li há) nada mais agradável de se ver do que uma bela
lheres bonitas. E um pouco adiante, na rua Gonçal-
n ulher em movimento.
ves Dias, a confeitaria Colombo. O fato é que ele foi o
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afirmava haver jogado uma bomba no palácio de Que- I I \ afirmamos que Dom Pedro, ao seguir o conselho
luz, onde residia o presidente da República, razão pela I ) pai, 'põe a coroa sobre a sua cabeça antes que algum
qual teve que fugir para o Brasil. (Há quem diga que IV ntureiro lance mão dela', e tornar-se imperador do
se arrependeu: "É um palácio lindo que não merecia lira il, perdeu o direito à Coroa Portuguesa. Dom Mi-
sofrer qualquer dano, mesmo um causado em defesa l! 1 era o legítimo sucessor de Dom João VI".
da liberdade:' Outros dizem que Maria Clara jogou Dom Pedro (nome completo: Pedro de Alcântara
mesmo uma bomba mas ela não explodiu, pois jamais I'rancisco António João Carlos Xavier de Paula Miguel
foi constatado qualquer dano ao palácio.) Apesar de afael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Sera-
anarquista convicta, ela orgulhava-se de ter entre os fim de Bragança e Bourbon) nasceu em 12 de outubro
antepassados um tataravô que fora estribeiro-mor du- de 1798, veio para o Brasil com toda a família Real
rante o curto reinado de Dom Miguel. (Nome comple- devido à invasão de Portugal pelas tropas de Napo-
to: Miguel Maria do Patrocínio João Carlos Francisco leão comandadas por Jean-Andoche Junot. Dom Pe-
de Assis Xavier de Paula Pedro de Alcântara António dro, menino, leu a clássica obra Eneida de Virgílio no
Rafael Gabriel Joaquim José Gonzaga Evaristo de Bra- original em latim. Leu os sermões do padre António
gança e Bourbon; terceiro filho do rei João VI.) Vieira, as cartas de Madame de Sévigné, as obras de
"Como tu sabes", ela dizia para José com o seu forte Edmund Burke, de Voltaire e outros. Até o fim de seus
sotaque lusitano, "Dom Miguel foi rei de Portugal en- dias o príncipe reservou diariamente cerca de duas
tre 1828 e 1834, embora, segundo os pedristas, tenha horas à leitura e ao estudo. Também escreveu diver-
sido um usurpador do título monárquico de sua sobri- sas poesias: "Meu amor, meu grande amor/ Sem ti não
nha Dona Maria da Glória. Por seu turno, nós migue- quero viver/ Tua imagem é a meiga flori Que eu vivo
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a benquerer. .." Mas a avó de José nunca mencionava política portuguesa. Nesse meio-tempo Dom Pedro
Dom Pedro casou-se com Dona Maria Leopoldina, artas, Dom Pedro desembainhou a espada e gritou
respondeu com uma frase que se tornaria histórica: garve, e nós miguelistas fomos sofrer nas masmorras.
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fazia com que se deitassem de costas na água, apoiadas Do sobrado da rua Evaristo da Veiga - onde José
nas mãos dele, a mão direita sempre sob as nádegas sua família agora moravam -, seguindo na direção
das meninas, o que o deixava muito excitado, e a es- op sta à rua Treze de Maio, ele chegava à Lapa, que
querda sob as costas. Mas o melhor era quando, depois pa sou a incluir no roteiro das suas deambulações. Na-
de aprenderem a boiar, José lhes ensinava a dar as pri- quela ocasião a Lapa era conhecida como o reduto dos
meiras braçadas. Agora elas se deitavam de bruços so- 1 gítimos boêmios do Rio, mas já estava decadente, não
bre as mãos dele, os pequenos seios apoiados em uma ra mais, como no dizer de um dos escritores que a fre-
das mãos, e as coxas, na altura da vagina, apoiadas na quentavam, um "bairro literário e artístico, uma alegre
outra. Muitas meninas sapecas deixavam que ele, com miniatura de Montmartre, Soho ou Greenwich Village
os dedos, acariciasse sua vagina. implantada nos trópicos". Ainda havia na região vários
Um dia interditaram a praia das Virtudes, e em cabarés, dancings com taxi-girls, bares e leiterias que
pouco tempo ela foi aterrada. "Vão construir um aero- ficavam abertas a noite inteira e que por algum motivo
José passou, então, a frequentar a praia do Flamen- não eram muito chegados às bebidas servidas nesses
go, que ficava uns dois quilômetros distante da sua locais que vendiam laticínios. (Antigamente eram inú-
casa. Ele ia correndo, descalço, até a praia, nadava e meras as leiterias no centro, hoje existem poucas.)
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a significar local de prostituição. Quando se queria mandado por uma lendária entidade internacional
dizer que uma mulher se prostituíra dizia-se que ela nhecida como Zwig Migdal.
"caiu na zona" ou era "uma mulher da zona") Tomavam leite ou comiam coalhadas ao lado de
A Lapa para José sempre foi um lugar tranquilo. sé, na leiteria BoI (a da Lapa, não a da rua Gonçal-
O escritor Ribeiro Couto, um dos cronistas da cida- ves Dias, que tinha outra freguesia), homens e mulhe-
de, escreveu: "na Lapa posso olhar melhor os homens res que exigiam um esforço de imaginação para que
decaírem, decaírem, roídos pelo vício". Mas isso foi ele pudesse lhes atribuir coisas perniciosas e perigos
em 1924, antes de José ter nascido. Para ele, os fre- ameaçadores. Na verdade, José notava neles uma certa
quentadores da Lapa - cafetões, putas, vagabundos, formalidade, a cidade, como um todo, era mais formal.
mendigos, artistas e boêmios em geral - não pare- Não se viajava descalço nos bondes, havia um bonde
ciam "roídos pelo vício",porém normais e bem-com- especial de carga que era usado pela gente malvestida,
portados. conhecido como taioba; para entrar nos cinemas, com
Mas existia uma mitologia, perversa e romântica, exceção dos chamados poeiras, era preciso usar paletó
ligada à Lapa: o lendário Madame Satã, um malandro e gravata, mesmo nas matinês, Não havia consumo de
homossexual capaz de enfrentar a polícia e de vencer drogas, com exceção de cigarros e álcool; a maconha
brigas fantásticas; os cafetões assustadores que desfi- nem sequer era proibida, usada por poucos entre a po-
guravam com navalhadas o rosto das prostitutas que pulação mais pobre; o consumo de drogas era tão ín-
exploravam; os suicídios, as mortes e as ruínas de fimo na cidade que havia um cidadão que era famoso
burgueses de boa família, causados por deslumbran- exatamente por ser o único consumidor de cocaína,
tes hetairas francesas; o tráfico de escravas brancas, que aliás também não era proibida. João do Rio fala da
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sua visita a uma casa de "comedores de ópio", no Beco 111 lr s de cristais, aquelas mulheres muito brancas, jo-
dos Ferreiros (que ficava no centro, mas não na Lapa), v n e bonitas, elegantes em seus ricos vestidos longos
onde "chins magros, chins gordos, de cabelos brancos, otados, de seda e cetim, tomando champanhe em
de caras despeladas, chins trigueiros, com a pele cor de II as de cristal, provavelmente falando francês com os
manga, chins cor de oca, chins com a amarelidão da • us clientes, trajados formalmente de roupas escuras,
cera dos círios [...] preparam-se para a intoxicação". lguns de smoking.
Mas isso, se não for produto da imaginação do cronis- José nunca sentiu atração por prostitutas, mas essas
ta, teria acontecido, de maneira episódica e inexpres- da Conde Laje ele não considerava putas, nada tinham
siva, em 1908. em comum com aquelas do Mangue, que ficavam na
As putas francesas da rua Conde Lage eram, de porta de suas casas rústicas, gordas ou raquíticas, mal-
certa forma, fascinantes - assim como os suntuosos vestidas, feias, algumas velhas, aliciando os potenciais
palacetes com grandes janelões onde os bordéis fun- clientes que passavam com palavras encantatórias como
cionavam e que antes haviam sido ocupados por fa- buchê, corruptela francesa que significava sexo oral,
mílias ricas. Os porteiros dos bordéis da Conde Lage, uma extravagância luxuriosa importada, diziam, da
apesar das inúmeras tentativas de José, não o deixa- terra da marquesa de Maintenon. Cobravam dois mil-
vam entrar por ele ser menor, e também certamente -réis dos clientes (nessa época uma entrada de cinema
por estar malvestido - aqueles bordéis eram frequen- custava mil e cem réis). A moeda de dois mil- réis tinha
tados por homens importantes, do mundo da política num dos lados a efígie de Santos Dumont, o inventor
e dos negócios. José se postava na rua, e via através da aviação, e no outro, uma asa. Era chamada por todo
das largas janelas, nos salões iluminados por grandes mundo de "voando para o Mangue':
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José não conseguia ter da zona do Mangue uma duzidas pelos anos, caboclas franzinas e croatas obe-
visão romântica, como a de Stefan Zweig, ao visitá-Ia as esperam os fregueses, que em incessante préstito
"Também outra originalidade do Rio", disse Zweig, trás de cada uma dessas mulheres se veem lâmpadas
"em breve será vítima da ambição civilizadora e talvez elétricas de cor, que iluminam com reflexos mágicos
também da moral- como em muitas cidades da Eu- o aposento posterior, no qual se destaca na penumbra o
ropa, Hamburgo ou Marselha - as ruas de que não leito, que é mais claro, um clair-obscur de Rembrandt ,
se fala, a zona do Mangue, a grande feira do amor, a que torna quase mística essa atividade cotidiana e,
Yoshiwara do Rio. Oxalá ainda à última hora apareces- além disso, assombrosamente barata. Mas o que é mais
se um pintor, a fim de retratar essas ruas, quando elas surpreendente, o que, ao mesmo tempo é brasileiro,
à noite brilham com luzes verdes, vermelhas, amarelas nessa feira, é a calma, o sossego, a disciplina; ao passo
e brancas, e sombras fugitivas, constituindo um espe- que, em ruas como essas em Marselha, em Toulon, rei-
táculo oriental, misterioso pelos destinos acorrentados na grande barulho, se ouvem risadas, gritos, chamados
uns aos outros e semelhante ao qual não vi outro em em voz alta e gramofones, lá os fregueses bêbados, os
toda a minha vida. Nas janelas, ou melhor, nas portas, europeus, berram nas ruas, aqui, nas do Rio, reina cal-
se acham como animais exóticos por trás das grades, ma e moderação. Sem se sentirem envergonhados, os
mil ou talvez mil e quinhentas mulheres, de todas as homens passam diante daquelas portas, para às vezes
raças e de todas as cores, de todas idades e naturalida- desaparecerem ali, como um rápido raio de luz. E por
des, negras senegalescas ao lado de francesas, que já cima de toda essa atividade calma e oculta está o fir-
quase não podem cobrir com arrebiques as rugas pro- mamento com suas estrelas; mesmo esse recanto, que
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em outras cidades, de qualquer modo, consciente e en- J sé já havia lido dele as biografias de Maria An-
vergonhado do seu comércio, se concentra nos bairros ( tieta e de Fouché. A de Fouché deixou-o muito
mais feios e decaídos, no Rio ainda tem beleza e se tor- I pressionado. Durante a chamada Época do Terror,
na um triunfo de cor e de luzes variadas". P uché passou a ser conhecido como Le mitrailleur
O grande Lasar Segall pintou o Mangue, mas não Lyon, por ser responsável por quase duas mil exe-
o "triunfo de cor e luzes coloridas" de Zweig, e sim, uções. Conspirou contra Robespierre, derrubando-o
como disse Manuel Bandeira, "as almas mais solitárias 110 Golpe do Termidor. Depois, com as mudanças po-
e amarguradas daquele mundo de perdição, como já líticas, ele desapareceu por uns tempos, até que com a
se debruçara sobre as almas mais solitárias e amargu- ascensão de Bonaparte conseguiu retornar, associado
radas do mundo judeu, sobre as vítimas dos pogroms, a Talleyrand, ao primeiro plano da política francesa.
de luxo".
Stefan Zweig era um escritor austríaco de ascen- não de Magalhães. E também os romances de Zweig. E
dência judaica que fugiu da Áustria dominada pelos finalmente leu Brasil, país do futuro.
nazistas. Morou algum tempo na Inglaterra e depois Muito se escreveu sobre o suicídio de Zweig, até foi
veio para o Brasil. Suicidou-se no dia 23 de fevereiro levantada a hipótese de que ele teria sido assassinado.
de 1942, talvez influenciado pelos êxitos dos nazistas O certo é que José ficou triste quando soube da morte
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Il voltara aos seus tempos de glória. Chico Buarque,
vencido apenas pelo destino que não soube dominar.
\ os depois, apenas confirmou essa situação ao com-
Não há derrota que não tenha um significado e não
r a conhecida canção que diz "Eu fui à Lapa e perdi a
represente também uma culpa:'
viagem, que aquela tal malandragem não existe mais".
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tituição para a classe média acabaram e as dos pobres
I
de renas cimento e entrou na moda junto à classe mé-
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ram ocupadas por grupos de pessoas fantasiadas can-
carnavalescas - esse ref=:rão enchia José de tristeza, o
tando e dançando ao som de bandas de música; pelos
Carnaval ia acabar. Não entendia por que as pessoas
carros abertos fazendo o corso; pelo desfile dos présti-
faziam questão de gritar .esse inútil estribilho doloroso
tos das Grandes Sociedades - os Fenianos, os Pierrots
de alerta. Nesse dia, ele =foi para casa e ficou até o sol
da Caverna, os Tenentes do Diabo, o Clube dos Demo-
raiar no balcão do seu sobrado, para ver os últimos
cráticos. E havia as serpentinas e os confetes colori-
blocos deslocando-se pela rua Sete de Setembro entre
dos, no ar o aroma do lança-perfume, éter perfumado
a praça Tiradentes e a Rio Branco. Ouviu, ao longe,
em bisnagas de vidro ou metal, que as pessoas esgui-
na madrugada cinzenta o derradeiro bloco se aproxi-
chavam umas sobre as outras, e que, quando aspirado
mando, apenas o barulho cadenciado dos tamancos
em pequenas doses, o que era comum, causava uma
no asfalto, uma anunciação misteriosa, não assusta-
"
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céu, tenho passado tão mal, a minha cama é uma folha -se logo que havia alguma coisa de errado. Quando o
de jornal". mestre mandou que ela parasse, não ocorreu aquele
o primeiro desfile a que José assistiu ocorreu quan- crescendo que termina numa explosão uníssona se-
do ele era ainda estudante, em 1943. Em algum lugar guida de um silêncio fortíssimo. Um estalar a mais de
José já escreveu sobre essa sua experiência. Foi na Pra- um único tamborim, um pequeno gemido da cuíca,
ça Onze e não havia arquibancadas, e o público, na uma batida sopitada de repicador, um contido estre-
grande maioria pessoas humildes, seguia dançando e pitar da caixa de guerra, um leve retinir de pratos, o
cantando as escolas cercadas por cordas carregadas pe- ressoar arrependido de um bumbo põem tudo a per-
los sambistas. Desde então ele só deixou de ver os des- der. Pois foi o que aconteceu com a Unidos da Tijuca.
files quando morou no exterior. E acompanhou, ano a O surdo repicador, um deles, deu mais duas ou três
ano, as transformações dos enredos, das baterias, das batidas após o estouro que marca a parada. O surdo é
fantasias, dos carros alegóricos, da composição étnica um dos mais difíceis instrumentos da bateria. Ele é o
e social de desfilantes e assistentes, e tudo o mais. mais cansativo de tocar. O bumbo é mais pesado, mas
Lembra-se bem de um desfile em que se colocou a sua batida é uniforme, de cadência simples e auto-
nas escadas de acesso aos camarotes de número par matizável, e exige menos do ritmista. O surdo repica-
e que ficavam sobre o local de armação das baterias. dor tem liberdade dentro da congruência sonora dos
Por se interessar mais pela percussão esse foi o lugar instrumentos. Ele faz cortes, divisões, cruzamentos,
onde permaneceu mais tempo. A bateria da Unidos fortalecendo a coerência harmônica do compasso dos
da Tijuca chegou, vinda da Presidente Vargas, bem vários instrumentos, gerando essa grande cadência de
à frente do resto da escola. Veio batendo e percebia- ruídos brutos que é uma bateria de escola de samba.
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Quando você está no meio dela o som entra pelos po- coisa que ter um ferrete incandescente marcando seus
ros da pele, pela boca, pelo nariz, mais do que pelos corações para o resto da vida. José ainda se lembra do
orifícios dos ouvidos. Waldemiro, da Mangueira, velho e mancando, o rosto
Da arquibancada, engaiolados nos seus poleiros, enrugado torcido de ódio, partindo para cima de um
ninguém percebeu o desastre dos tijucanos. Mas no instrumentista e arrancando-lhe das mãos o tambo-
fundo do local de armação da bateria, longe dos olha- rim e a baqueta. Nestes anos todos viu muito passista
res do público, um repicador foi cercado pelos com- desengonçado, sambista desafinado, alas inteiras atra-
panheiros. Uma feroz discussão se estabeleceu. O vessando o samba, destaque caindo do carro alegórico
repicador tirou a sua fantasia e jogou-a no chão. De no asfalto; já viu tudo de errado e vexatório que pode
onde estava, José não conseguia ouvir o que eles di- acontecer sem que os transgressores sofressem maio-
ziam exaltadamente. Depois de alguns arrochos e pes- res agravos. Mas quando o ritmista pratica qualquer
coções o rapaz foi obrigado a vestir a fantasia, mas o desacerto ninguém o perdoa, como se ele tivesse co-
surdo foi entregue a um dos reservas. O ritmista ficou metido um crime nefando. No panorama das grandes
num canto marginalizado, e mesmo à distância José manifestações culturais brasileiras o músico de bateria
podia ver a tristeza de seu semblante infortunado. só tem um igual na vulnerabilidade ao opróbrio - o
Dissimuladamente ele limpava do rosto as lágrimas goleiro de futebol e sua Némesis, o frango.
que não conseguia conter. O desfile é feito basicamente de paixão. Vendo-
Esse foi um momento de paixão. Como o ritmista -se o cortejo dos artistas e sua imensa plateia aper-
da Unidos da Tijuca outros também perderam, neste tada nas arquibancadas ou recostada nos camarotes,
e em outros desfiles, a cadência - o que é a mesma cantando, sambando, comendo, invadindo, bebendo,
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drogando-se, vituperando, poderiam vir à mente das
a bateria amaciou o coração de José. "E quindi us-
pessoas as palavras de Marcos: "do interior do cora-
immo a riveder le stelle", pensou ele.
ção dos homens é que saem os maus pensamentos, os
Naquele momento José não estava interessado em
adultérios, as fornicações, os homicídios, os furtos,
lucubrações filosóficas. O desfile oficial podia afinal
as avarezas, as malícias, as fraudes, as desonestida-
cabar, como acabou o corso na avenida, como acaba-
des, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura." Nun-
ram, ou perderam expressão, o concurso de misses e
ca houve uma dessas ações que não fosse cometida
outros espetáculos e ocorrências que gozaram de gran-
em razão do desfile. E também estavam presentes os
de prestígio popular. Mas o desfile das escolas de samba
apáticos, os autômatos, os que tinham de estar lá por-
não é o Carnaval, nem é o samba. O mais importante
que todos estavam lá, os adesistas de última hora, os
é o fenômeno cultural que está por trás dele, cultu-
bocalivristas.
ra entendida como o conjunto de criações e valores
"Isto não pode durar muito': disse um amigo espe-
que caracterizam uma comunidade, aí incluídas não
cialista em Dante. 'Ainda existe uma luz e algum so-
apenas as manifestações artísticas contidas no des-
nho, um pouco de concórdia e melancolia atenuando
file - a dança, a música, a poesia e as artes visuais
o furor das paixões humanas. Depois disso, o inferno.
- mas também a organização social e todas aquelas
Então tudo acabará."
aptidões que o indivíduo adquire e desenvolve numa
José acreditava que o purgatório revigorava o ho-
sociedade determinada, no caso das escolas o morro,
mem, purificava-o da mácula do pecado e predispu-
os conjuntos habitacionais e outras comunidades ca-
nha-o a subir às estrelas. "Mas o homem não supera o
rentes e, colateralmente nos últimos anos, certos nú-
inferno." Nesse instante passou a bateria de Vila Isabel,
cleos da classe média. Todo fenômeno cultural sofre
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uma evolução espontânea. Na verdade, ela é imune à v ilh de todos, o octagenário Waldemiro, com seu per-
manipulação e às ameaças do inferno. O desfile, essa LI enrugado de falcão e seu andar manco de albatroz
parada regulamentada e regimentalizada, tende rnes- baudelairiano redimido. Eles faziam um som espesso
mo a acabar e isso não terá a menor importância para e exato, constante, de precisão e distinção inigualáveis.
o Carnaval e para o samba. Só em Madureira havia Não eram de inventar arabescos e hipérboles inúteis.
mais gente brincando nas ruas do que em toda a Mar- Sua segurança e firmeza transmitiam ao sambista da
De volta ao seu posto de observação da bateria, José insinuasse, após algum tempo, uma (pouca) monoto-
ficou admirando os velhos ritmistas da Mangueira. Eles nia, mas nunca a insipidez ou o tédio. Às vezes José
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eram extremamente hábeis e muitos têm mais idade do sentia um certo prazer com as baterias mais firulentas,
I que a própria escola. José os conhecia de vista há lon- quando porém preservavam a consistência e virtuosi-
gos anos: o de cabelos grisalhos que cantava empolgado dade. Com satisfação verificava que as baterias estavam
o tempo inteiro, branco e de constituição física pouco a cada ano melhores, sob todos os aspectos, e talvez o
característica de sambista, parecendo mais um advoga- futuro dos desfiles seja apenas o de grandes baterias,
do ou contador de boa clientela; ou o mulato magro de com o povo solto dançando atrás.
óculos que batia no tamborim com uma vareta de duas O dia raiou, o sol surgiu abras ante e, com exceção
hastes, sério e digno como um antigo mestre-escola, o dos turistas, ninguém havia ido embora. Já passava
bigode fino pintado de preto; e o outro velho baixinho das dez horas quando a última escola, a Mocidade
e pálido e todos os demais veteranos da ala de tambo- Independente, armou-se para o desfile. O mestre da
rins na linha de frente da bateria, liderados pelo mais bateria, baleado na perna, dirigia seus ritmistas de
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uma cadeira de rodas. Dílson Carregal, que substituía No Carnaval de 1855, ocorreu no centro da cida-
o lendário mestre André, só deixaria de estar ali, fa- de o primeiro desfile do Congresso das Sumidades
zendo aquilo que ele queria e sabia, se estivesse morto. Carnavalescas. Em carruagens ou a cavalo, desfila-
O sol batia em sua perna engessada e, mais do que o ram carnavalescos fantasiados de Nostradamus, Luís
espírito carnavalesco do carioca, ele representava a re- XIII, Lord Buckingham, Benevenuto Cellini, Van
sistência e a obstinação do ser humano na preservação Dyck. "O entrudo está completamente extinto", es-
do seu estilo de vida.
creveu, neste ano, o romancista José de Alencar. As
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lança-perfume. Os blocos à fantasia ou de sujos des- Os bailes de Carnaval demoraram ainda alguns
filavam pelas ruas seguindo a cadência dos instru- anos para se tornarem realmente populares. Com o
mentos de percussão, agora não apenas os bumbos passar do tempo, surgiram bailes de todos os tipos.
e zabumbas do tempo do Zé Pereira, um português Para ricos, em locais como o Theatro Municipal, feliz-
que saía sozinho pelas ruas batendo um bumbo, mas mente proibidos, quando perceberam que os folgazões
coisa que percutisse. Uma nova maneira de brincar José lembra-se de ter ido a um desses bailes de Car-
o Carnaval surgiu com o corso, um desfile de car- naval e ficado revoltado ao ver hordas de louras gor-
ros conversíveis percorrendo lentamente, próximos das oxigenadas, ricamente fantasiadas, sentadas sobre
II uns dos outros, um trajeto de ida e volta ao longo da as bordas acolchoadas de veludo das frisas e dos ca-
avenida Rio Branco, com foliões de ambos os sexos marotes, com as pernas nuas para fora, batendo com
devidamente fantasiados, cobertos de confete, se di- os saltos dos sapatos no bojo das paredes, ao som das
vertindo, cantando, as mulheres sentadas nas capo- marchas carnavalescas; viu pessoas jogando cigarros
tas arriadas e os homens em pé nos estribos, o que acesos, restos de bebidas e vomitando sobre as passa-
permitia que saltassem rapidamente para jogar lan- deiras vermelhas dos corredores e das escadas. Para
ça-perfume nas colombinas e odaliscas da fila mo- os pobres e remediados, muitos clubes esportivos ou
torizada. Serpentinas eram arrojadas de lado a lado, recreativos promoviam bailes, em salões ou quadras
ligando os carros com feixes compridos e espessos de de esporte; mas havia locais que só funcionavam no
fitas multicoloridas. Maçarocas de serpentina e con- Carnaval, como o famoso High Life, na rua Santo
fete espalhavam-se pelo chão da avenida. Amaro, onde ele assistiu ao seu primeiro baile, ainda
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lul '111 surpr so com a licenciosidade que impe-
Baile do Cabide, pois na entrada o convidado, que pas-
rava nos salões, algo que não via nas ruas.
sara a manhã no foro ou no escritório e chegava de
Ainda muito jovem, quando estudante da faculdade
paletó e gravata, recebia um cabide para colocar sua
de direito, José participou algumas vezes de um baile
roupa. Um pequeno número ficava apenas de cuecas,
realizado todo ano, na tarde de um dia útil da semana
que, conforme a moda da época, pareciam bermudas;
anterior ao Carnaval, em um local fechado, alugado
outros tiravam o paletó e a camisa, pois era verão e o
especialmente para esse dia, com porteiros, garçons,
salão ficava muito quente; mas a quase totalidade ape-
roupeiros, todos de confiança, contratados pelos orga-
nas tirava o paletó e a gravata. Roupas e pastas eram
nizadores. Somente eram admitidos no baile aqueles
cuidadosamente guardadas e não se conhecia história
que possuíam convite, que não era fácil de se conse-
de uma simples gravata ter desaparecido. Algumas
guir, e os escolhidos eram advogados, juízes, alguns
mulheres, mais ousadas, punham-se de calcinha e su-
estudantes de direito que estagiavam no foro, ou em
tiã, com as máscaras, é claro, mas a maioria manti-
um escritório, e eram confiáveis pela discrição, como
nha-se decorosamente trajada. Os casais dançavam,
era o seu caso. O baile era conhecido como Baile da
se agarravam e se beijavam, mas qualquer coisa além
Balança, a balança que simboliza o equilíbrio e pon-
disso teria que ser transferida para outro local, pois o
deração da Justiça. Só havia mulheres bonitas no baile ,
baile se orgulhava de não ser um festim licencioso. A
José acredita que o porteiro barrava as feias; nem todas
toda hora um convidado se retirava sorrateiramente,
eram vadias (ou coisa parecida); provavelmente as que
acompanhado de uma mulher. Se um advogado, ou
se mantinham mascaradas eram mulheres sérias (ou
estudante como José, reconhecesse um respeitável juiz
coisa parecida). O baile era também conhecido como
ou desembargador abraçado a uma mulher, fingia que
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II II \ t \11 omentaria isso. Encontrando o juiz
repletos de amigos da folia, muitos deles usuários do.
no foro, agiria como se nada daquilo tivesse aconteci-
bondes. José lembra-se de ficar nas portas das cerve-
do. Eram todos cavalheiros, e como tal se portavam.
jarias olhando as pessoas lá dentro, sem poder entrar,
(Quer dizer, fora do baile.)
por não ter dinheiro ou idade para isso. Numa delas,
A maioria dos foliões não brincava em bailes, di-
uma banda tocava, com grande estridência, as mar-
vertia-se nas ruas, nos blocos de sujos ou nos bondes
chinhas de Carnaval, com o acompanhamento ale-
que trafegavam na cidade, dependurados nos seus es-
gre e desafinado dos beberrões. Magotes de pessoas
tribos, sentados ou em pé no interior do veículo, can-
fantasiadas entravam e saíam dos bondes. Enquanto
tando as músicas carnavalescas. Os bondes da zona
existiu, o bonde foi um elemento importante da festa,
sul, que vinham com destino ao centro passando pela
tema de inúmeras músicas carnavalescas. Próximo da
rua Treze de Maio, entravam na galeria Cruzeiro, que
galeria ficava o famoso café Nice, onde os composito-
era o ponto final, e faziam o seu retorno pela rua Se-
res populares se reuniam para conversar e vender uns
nador Dantas.
aos outros as suas composições.
A galeria Cruzeiro, localizada sob o prédio do hotel
Em 1932, na Praça Onze, aconteceu o desfile inau-
Avenida, ocupava um quarteirão da Rio Branco, que
gural das escolas de samba. Antes das escolas de sam-
foi mais tarde demolido para dar lugar a mais um arra-
ba' havia os ranchos-escolas, no final do século XIX,
nha-céu. Com seus dois corredores em forma de cruz
cujos desfiles eram um grande acontecimento car-
(daí o seu nome), a galeria abrigava em seu interior
navalesco. Os ranchos ainda existem e desfilam hoje
várias lojas comerciais e pelo menos duas cervejarias,
no mesmo local das escolas de samba, mas em outro
cujos salões durante os três dias de Carnaval ferviam
dia, pois as escolas têm a exclusividade das noites/
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madrugadas do domingo e da segunda-feira. Os ran-
da Gamboa e do Catumbi. Nesse local surgiu também
chos buscam manter sua forma original, no entanto
o samba, que desbancou o maxixe, a música dos car-
são apenas, para tristeza de muitos estudiosos, uma
navalescos até então.
curiosidade folclórica, sem prestígio popular. Tam-
As escolas de samba, hoje integradas por milhares
bém desfilam, em outro dia, os frevos, uma dança po-
de participantes, são agremiações surgidas nas comu-
pular do estado de Pernambuco, com coreografia que
nidades carentes dos morros ou da periferia da cidade.
exige uma forma física perfeita dos dançarinos, ani-
O primeiro desfile com arquibancadas ocorreu
mados por uma orquestra de metais que produz um
em 1962, na avenida Rio Branco, e ele recorda-se da
som empolgante. Mas também o frevo, não obstante
apresentação revolucionária do Salgueiro, dirigida
sua vitalidade e beleza, não passa de um coadjuvante
por Fernando Pamplona, estabelecendo um novo pa-
da festa no Rio de Janeiro.
drão estético para os desfiles futuros, no que se refere
Desde 1920 já havia escolas de samba, e a primeira,
às fantasias, aos carros alegóricos e à interação entre
por uma singular coincidência, surgiu no bairro Está-
tema, música e organização das alas de sambistas.
cio de Sá, cujo nome homenageia o fundador da cida-
Desde 1984 as escolas exibem-se no Sambódromo,
de. Nas adjacências do Estácio ficavam os morros da
como é conhecido o conjunto arquitetônico construí-
Saúde, da Favela (vocábulo provavelmente originário
do pelo governo estadual especialmente para o desfile,
de local com o mesmo nome, em Canudos, e que, di-
com arquibancadas e camarotes para o público. As es-
cionarizado, passou a significar qualquer ajuntamento
colas desfilam cantando e dançando ao som de cente-
de barracos ou casas pobres desprovidas de condições
nas de instrumentos de percussão, tambores, bumbos,
higiênicas), da Providência, de São Carlos e os bairros
caixas de guerra, tamborins, pandeiros, cuícas, reco-
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-recos, pratos de metal, comandados por um mestre,
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N ssu o a ião ele morava na rua Sete de Setembro e pés de maneira precária nas cornijas do alto dos prédios
se apaixonou por uma menina de 14 que morava num e agarrando-se nas grades de ferro das sacadas.
sobrado ao lado. Os dois moravam no mesmo andar de Quando ficaram a sós eles se abraçaram.
dois antigos prédios, que sendo contíguos permitiam "Você quer me beijar?", ela perguntou. José já havia
que ficassem namorando à distância de suas sacadas beijado outras meninas e respondeu que sim. Então
de ferro batido. O único contato que eles conseguiam Antônia se aproximou, abraçou-o. Ele acariciou de
ter era tocar a mão um do outro. O nome da menina leve os pequenos seios dela. Antônia beijou-o, tocan-
era Antônia. do com a língua dela a língua de José. Ele nunca fora
Um dia Antônia disse que estava sozinha em casa. beijado assim, e aquilo o surpreendeu agradavelmente.
Mas isso de nada adiantava, José não podia ir vê-Ia, pois "Foi você que inventou isso, esse tipo de beijo?", ele
sobrado que dava para a rua a fim de que a filha não pu- "Que tipo de beijo? Foi um beijo ... beijo", Antônia
o outro. Antônia quando soube das intenções do namo- José pensou um pouco e disse:
rado pediu que ele não fizesse isso, era muito arriscado, "Você beija todo mundo assim?"
ele poderia cair e morrer. Mas José, que, como sabe- Ela respondeu:
mos, tinha um grande controle sobre o seu equilíbrio "Você é a primeira pessoa que eu beijo na boca sen-
-lembrem-se de que viria a ser, aos 12 anos, campeão tindo ... sentindo ... sentindo amor:'
do salto de costas do bonde em alta velocidade -, con- Foi dessa maneira que José descobriu que o beijo
seguiu passar de um sobrado para o outro, apoiando os glossiano era normal, e não uma perversão erótica. Ao
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111[1< rio, era a sensualidade, o instinto sexual se ma-
ver desapareciam.
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Ele logo se apaixonou por uma datilógrafa loura, José pegou o ônibus de volta para a cidade querendo
que devia ter uns 18 anos. O nome dela era Dulce. sentir vergonha do que havia feito, mas só conseguia
Sempre que possível ele se encontrava com ela. Es- pensar no prazer que a mão de Dulce lhe proporciona-
perava-a chegar para entrarem juntos, e saía com ela, ra ao masturbá -10.
mesmo quando Dulce fazia serão. No dia seguinte, ao ver José na porta do escritório
Um dia José a convidou para irem ao cinema e ela aguardando por ela, Dulce ficou ruborizada, não res-
aceitou. Foram ao Pathé, na Cinelândia, às seis da tar- pondeu ao cumprimento que José lhe fez e entrou no
de. José escolheu a última fila do cinema. Logo que as prédio. Durante o dia inteiro não olhou para ele, ape-
luzes se apagaram ele segurou na mão de Dulce. De- sar de José passar à sua frente inúmeras vezes.
pois beijou-a. Em seguida acariciou com a outra mão Então José teve uma ideia. À noite, em casa, pegou
as suas coxas, sentindo o seu púbis e sua vagina sob a um poema de Fernando Pessoa e copiou-o à máqui-
roupa. Então colocou a mão de Dulce no seu pênis, na, sem divisões métricas e sem as regras fixas de uma
que ele havia tirado para fora da calça, e fez com que composição poética, como se fosse um trecho de pro-
Depois disso, não trocaram uma só palavra. Saíram "O amor, quando se revela, não se sabe revelar.
do cinema em silêncio. Ele entrou com ela no ônibus Sabe bem olhar para ela, mas não lhe sabe falar. Quem
que a levaria para casa e continuaram calados. Saltaram quer dizer o que sente não sabe o que há de dizer. Fala:
e andaram alguns metros até a porta da casa de Dulce. parece que mente, cala: parece esquecer. Ah, mas se
"Eu nunca fiz isso na minha vida" ela disse, antes ela adivinhasse, se pudesse ouvir o olhar, e se um olhar
de entrar. lhe bastasse para saber que a estão a amar! Mas quem
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sente muito, cala; quem quer dizer quanto sente fica Em sua nova função tinha uma mesa só dele, onde
sem alma nem fala, fica só, inteiramente! Mas se isto organizava pastas para serem guardadas em arquivos
puder contar-lhe o que não lhe ouso contar, já não te- de metal com cinco gavetas cada. Foi nesse escritó-
rei que falar-lhe porque lhe estou a falar..:' rio que ele conheceu Lia, uma escriturária, cujo nome
No dia seguinte, colocou um envelope com o poe- era Ofélia. José supunha que Lia seria mais velha do
ma na mesa de Dulce, que nem sequer tocou nele. Mas que ele uns quatro anos, mas na verdade a diferença
quando foi embora José notou que ela havia levado o entre eles era de seis anos, Lia tinha vinte. Além de
envelope. Dois dias depois Dulce perguntou se fora José Lia, havia uma outra garota com quem José flertava,
quem escrevera aquele texto e ele respondeu que pedira uma datilógrafa chamada [úlia, que tinha pernas mui-
socorro ao Fernando Pessoa. Dulce disse que gostava to bonitas e usava saias bem curtas. Um dia Iúlia lhe
muito do poeta português. José perguntou quando eles perguntou se ele sabia por que Ofélia usava sempre
iriam ao cinema novamente, Dulce respondeu dizendo calças compridas. Acrescentou que Ofélia era muito
que ia pensar e José prometeu que se comportaria. estranha, além de não ter uma saia ou um vestido se-
No fim deu tudo certo. Dulce e José foram juntos ao quer, não ia a festas, não tinha namorados e se alguém
cinema muitas outras vezes. Até o dia em que ele dei- a chamasse de Ofélia ela fingia não ouvir, queria que a
xou de ser office boy naquela empresa e foi trabalhar chamassem de Lia.
em outro lugar como auxiliar de escrita. José e Lia, cujas mesas eram próximas, gostavam de
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n, t ., 'I' ncs de todos os funcionários e ficava ouvindo para a mãe dele, aquela sim, a melhor cozinheira do
Ofélia confirmou e disse que Iúlia não gostava dela, disse que a sua mãe ia viajar e ela ficaria sozinha em
achava que Ofélia queria namorá-Io, e quando José casa a semana inteira e queria convidar José para al-
perguntou se ela queria, Ofélia respondeu que sim. moçar na sua casa no domingo. José disse que iria e
Odiava o nome Ofélia, os pais dela não sabiam as quando Lia lhe perguntou do que ele gostava respon-
I desgraças que haviam acontecido com a Ofélia do deu que de tudo, menos de cebola.
I
Hamlet. Não tinha irmãos, era órfã de pai e mora- No domingo José chegou à casa de Lia ao meio-dia,
va com a mãe num sobrado na rua Senador Dantas, conforme ela marcara. Ela, como sempre, estava de
próximo da casa de José. Foram ao cinema, mas Lia calças compridas e depois de lhe dar um beijo pediu a
não permitiu que José tocasse nela, ou melhor, dei- José que ficasse lendo enquanto esperava. Lia apontou
xou apenas que ele acariciasse seus pequenos seios. uma das estantes onde só havia livros de poesia. José
Lia era mais alta do que José, na verdade bem mais não se lembra mais qual foi o livro que pegou, nem
alta, quase dez centímetros, mas nem ele nem ela dava mesmo o que comeu, os acontecimentos que se segui-
importância a isso, eles se amavam. Os dois gostavam ram obliteraram tudo o que ocorreu antes.
de ler, e Lia, além disso, gostava de cozinhar. "Um dia Quando acabaram de almoçar os dois sentaram-se
ainda vou cozinhar para você", ela dizia, "duvido que num sofá e José, que sentia um grande desejo por Lia,
conheça uma cozinheira melhor do que eu". José pen- abraçou-a, beijando-a. "Vamos para o quarto", ele dis-
sou que, por melhor que fosse, Lia perdia facilmente se, e ela respondeu que tinha medo. Ele perguntou se
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ela era virgem e Lia respondeu que sim, mas aquela não atingiu o orgasmo e percebeu que o lençol que ain-
era a razão do seu medo, ela queria perder a virginda- da cobria o corpo de Lia estava úmido de sangue. Ele
de, sonhava com isso, era o seu mais ardente desejo, retirou-o e então notou, além da enorme quantidade
mas tinha medo da reação dele, quando fossem para de sangue, que Lia tinha uma perna, a direita, muito
a cama. José a dissuadiu colocando a sua mão sobre o mais fina do que a outra.
seu pênis, que estava mais duro do que uma pedra. Ela começou a chorar, pedindo desculpas por tê-lo
Ela se dirigiu para o quarto dizendo que o chama- enganado, que devia ter dito que era aleijada, que tive-
ria quando estivesse pronta. Depois de um tempo, que ra poliomielite (naquela época Sabin ainda não tinha
para José pareceu infindável, ela o chamou. inventado a sua vacina), que José agora ia ter nojo dela
Lia estava sob o lençol, apenas a sua cabeça apare- - e, arrancando o lençol cheio de sangue das mãos
cendo. Pediu que José se desnudasse e entrasse debai- dele, cobriu-se novamente, agora até mesmo a cabeça.
xo do lençol com ela. Mesmo coberta pelo lençol José José ficou calado, sem saber o que dizer. Depois
percebeu que uma das suas pernas era mais fina do deitou ao lado dela e, descobrindo o seu rosto, dis-
que a outra. se, beijando-a, que não estava sentindo nenhum nojo,
Enquanto a beijava na boca e nos seios e ao sentir que continuava desejando-a da mesma maneira - e
que a sua vagina estava bastante umedecida, começou tirou-a da cama, levou-a ao banheiro e deu banho
a introdução lenta do pênis. Percebeu logo que ela nela. Quando ensaboou a perna fina sentiu a rótula, os
era virgem. Perguntou se estava doendo, Lia respon- ossos, a articulação do fêmur com a tíbia e o perônio.
deu com a voz embargada, sem fôlego, "não para, não Depois carregou-a no colo de volta para a cama. Lia
para". Depois de copularem por algum tempo, José substituiu os lençóis e eles fizeram amor novamente.
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Em seguida ela abraçou-o, colocando o braço direito de Satanás é o sexo". A história está cheia de cx '11)
sobre o peito de José e a perna fina sobre as coxas dele. plos estapafúrdios, mas é pior do que isso, exemplos
Lia dormiu abraçada com José um sono tranquilo, horrendos dos perigos do fanatismo religioso em re-
suave, José mal ouvia a sua respiração. Então lembrou- lação ao sexo. Durante a Inquisição, as universidades
-se de um poema de Walt Whitman que decorara em de medicina somente permitiam que os estudantes
inglês, que então já lia com fluência: "Sex contains ali, operassem em manequins cujas partes sexuais eram
bodies, souls, meanings, proofs, purities, delicacies, omitidas. Esses tabus religiosos não estão confinados
results, promulgations, songs, commands, health, apenas à estupidez católica, são encontrados em todos
pride, the maternal mystery, the seminal milk; ali os livros sagrados, sejam cristãos, hindus, budistas, se-
hopes, benefactions, bestowals, ali the passions, loves, mitas, maometanos, não importa.
itself"
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criturário. Certa ocasião lhe disseram que ele deveria e por duas testemunhas idôneas, podendo ser impres-
se inscrever na 1a Circunscrição Militar, para o caso de so ou datilografado. Depois dessa ladainha o sargento
ser convocado, pois não era natural do Rio de Janeiro. deu voz de prisão a José dizendo que ele seria conduzi-
Na Ia Circunscrição Militar, quando José decla- do para Minas, para os devidos fins legais estipulados
rou a data e o local de nascimento, o sargento que o no Código de Processo Penal Militar. Naquela época,
atendia levantou-se da mesa onde estava, pedindo- pouco depois do fim da guerra, os procedimentos mi-
-lhe que esperasse. Pouco depois voltou dizendo que litares eram muito estritos.
tinha uma má notícia. A data de convocação para o José pediu licença para ligar para casa, disse para
serviço militar em Minas ocorrera há dois meses, e ele, sua mãe que iria a Minas resolver um problema, num
classificado como insubmisso. Conforme o Código de ria com ela novamente. A mãe ficou preocupada com a
Processo Penal Militar, artigo 463, estava consumado alimentação de José, mas ele disse que haviam servido
o crime de insubmissão, o qual deveria ter a sua la- um lauto almoço e que estavam cuidando muito bem
respondente, da unidade para a qual fora designado o A viagem para Minas em um veículo militar foi
insubmisso, no caso José, de maneira circunstanciada, rápida. Logo ao chegar ele foi encaminhado ao Regi-
com indicação de nome, filiação, naturalidade e clas- mento onde serviria, deram-lhe um uniforme de pra-
deveria apresentar-se, sendo o termo assinado pelo Não demorou muito para aparecer um capitão do
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"Meu filho, serei o seu advogado de defesa no nhecido o primeiro-sargento que desempenhava inú-
processo de insubmissão a que você será submeti- meras funções administrativas no Regimento, uma
do. Mas não se preocupe, no seu caso não há 'dolo', espécie de chefão; os oficiais superiores, inclusive o
você mesmo se apresentou e a sua absolvição não comandante do Regimento, assinavam ordens e pa-
Aquele dolo deixou José preocupado. Como es- José, que sabia quem ele era, ficou em posição de
tudante de direito sabia que a pronúncia correta da sentido, aguardando possíveis ordens.
palavra dolo - "a intenção consciente de cometer ou "Você está lendo esse livro?", o sargenteante per-
to. Aquele seu defensor não inspirava confiança. "Sim, senhor. Estou terminando:'
na cadeia, sendo solto durante o dia para fazer servi- "Acho que esse livro devia ser leitura obrigatória
ços de limpeza, que incluíam limpar as fossas imun- nos colégios. E nos quartéis também, por que não?"
andando no quartel carregando debaixo do braço um "Desculpe, senhor, mas acho um absurdo este
exemplar que levava com ele quando fora preso, Os quartel não ter uma biblioteca. E disseram-me que ne-
livro que relata os primeiros dias da revolução comu- "Você já leu o Karl Marx?"
nista de outubro, na Rússia, quando o sargenteante "Claro, e o Engels. Sou estudante de direito:'
passou perto dele. Sargenteante, era assim que era co- Contei para ele o meu problema.
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"Gostaria de ler esse livro", ele disse. Num dia nublado José foi visitar a casa onde passa-
"Eu termino hoje e levo para o senhor na Casa das ra a sua infância. A casa continuava bela e imponente.
gente ante e, quando estava lá, pediu-lhe que o dei- ou ter qualquer tipo de lembrança. Lembrou-se de
xasse usar uma das máquinas de escrever. Explicou um provérbio conhecido, "águas passadas não movem
cesso a que estava submetido. Autorizado, sentou em José precisava voltar para o Rio, arranjar uma trans-
frente a uma das máquinas e escreveu a sua defesa. ferência para qualquer unidade. Tentou o CPOR -
Bastava o capitão ler aquele texto para que ele fosse Centro de Preparação de Oficiais da Reserva -, mas
por José, que foi absolvido por unanimidade do cri- Ele queria apenas voltar para o Rio, para qualquer lugar,
me de insubmissão, que naquela época era conside- como praça mesmo. Escreveu para uma porção de gen-
transferiu para a Casa das Ordens e o nomeou estafeta onde passou a integrar o corpo de soldados que guar-
montado. Isso não existe há muitos anos nas unidades neciam o prédio, um imenso laboratório. No batalhão
nada fazia.
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CPOR. José argumentou que sua transferência fora
eram realizados exames de várias naturezas, inclusive
negada e que ele estava servindo há cerca de 11 meses
em cavalos do Exército. Os seus horários de plantão lhe
e logo daria baixa, não queria servir mais dois anos,
permitiam voltar a frequentar a faculdade.
prazo de duração dos cursos do CPOR.
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durante três horas seguidas. Depois foram colocados
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seccionou uma espécie de tampa do crânio e cuidado-
Na mais recente autópsia Neto fez uma incisão lar-
samente cortou a conexão do cérebro com a medula
ga e profunda, em forma de "y", de ombro a ombro,
espinhal, depois dividiu o cerebelo, e o cérebro foi re-
passando pelo osso esterno e indo até o osso púbis.
tirado de dentro da caixa craniana.
Em seguida, Neto procedeu à retirada dos órgãos das
Olhando para a massa encefálica na sua mão, Neto,
cavidades, do pescoço e do retroperitônio, para, disse
apontando com a outra para o corpo sobre a mesa
ele, "avaliações macro e microscópicas".
com os seus órgãos sangrentos aparecendo, pergun-
Após examinar os órgãos, Neto pesou-os. (José em
tou, "isso tudo é suficiente para explicar a mente?". Ele
algum lugar escreveu sobre um coração que pesava
então começou a recitar uma ladainha cartesiana, com
225 gramas, tirado da caixa torácica de uma mulher.)
cogito ergo sum e tudo o mais.
Depois de abrir o estômago e pesar o seu conteúdo,
Para José era tudo uma coisa só, não havia essa
Neto disse, "ele comeu feijão com farofa no almoço",
entidade chamada alma com uma existência além da
e José teve a impressão de que Neto provou um frag-
matéria. Sendo agnóstico, ele não se interessava por
mento desse conteúdo.
provar o que não podia ser provado, e provavelmente
Mas o exame que mais interessava a José era o do
a alma estava incluída nessa categoria. Assim, ouviu o
crânio. Neto fez uma incisão com o bisturi, que come-
que Neto dizia sem contestá-lo.
çou atrás de uma orelha e foi cortando pela testa numa
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sempre que podia, José escrevia na máquina. Escrevia cida. Ele jogara e perdera no cassino de Wiesbaden
contos, que ia arquivando em uma pasta de papelão uma grande quantia que o seu editor Stellowski lhe
cinzento. Trabalhava em suas histórias sempre que ti- adiantara, assinando um contrato que estipulava,
nha algum tempo disponível. Ele lembrava-se de que numa cláusula que hoje seria considerada leonina,
sempre gostara de escrever à máquina, na verdade es- que se Dostoiévski não entregasse uma nova obra
crevia muito mal à mão. José sempre se perguntava: o dentro de um determinado prazo ele perderia, para
que era preciso para que uma pessoa se tornasse um Stellowski, os direitos de todos os livros que publica-
escritor? Ele tinha algumas certezas. A primeira, ób- ra até então. Era o ano de 1866, faltava um mês para
via: era necessário gostar de ler, aprende-se a escrever terminar o prazo e Dostoiévski, arruinado pelo jogo,
lendo. O único escritor analfabeto tinha sido Catarina perseguido pelos credores, confessou ao seu amigo
de Siena, que viveu no século XIV em Roma. Mas ela Alexander Herzen que estava desesperado com a sua
era uma santa e isso podia ser considerado um milagre. situação. Herzen então lhe fez a seguinte proposta:
Ele achava impossível alguém produzir um livro ele e um grupo de amigos escreveriam algumas deze-
"ditando". O livro tinha que ser escrito, de preferência nas de páginas cada um sobre um tema a ser escolhi-
ser digitado numa máquina, mas também aceitava os do e Dostoiévski apresentaria o livro para a editora.
que eram escritos à mão. Havia exceções que o dei- Isso foi combinado, mas no dia seguinte Dostoiévski
xavam perplexo, como Milton, cego, ditando a obra- procurou Herzen e disse que não podia levar adian-
-prima Paraíso perdido. te uma ação fraudulenta como aquela. Então Herzen
O caso do Dostoiévski ditando O jogador não tinha disse que existia um processo de escrita rápida por
a mesma importância. A história do russo era conhe- meio de sinais, pouco conhecido mas antigo, deno-
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minado taquigrafia, e que havia uma pessoa, de nome Não interessa o tipo de motivação, apenas tem que ser
Anna Grigorievna Snitkina que sabia usar aquela arte. suficientemente forte.
Dostoiévski aceitou a situação e ditou O jogador em José estava motivado, mas sabia que necessitava de
menos de um mês, dentro do prazo estipulado com outros requisitos, um deles "paciência", não a resigna-
Stellowski. É um romance autobiográfico, o que cer- ção conformista, mas a capacidade de perseverar, de
tamente facilitou o trabalho do autor. Dostoiévski enfrentar com auto controle as dificuldades que sur-
casou-se com Anna Grigorievna e viveram felizes por giriam durante o processo, a paciência para contro-
muitos anos, mas ele jamais ditou outro livro para ela. lar a sua pressa sem deixar de tê-Ia, o que pode ser
E isso seria suficiente para a pessoa se tornar um simbolizado pela frase favorita do imperador Augusto,
escritor? Gostar de ler e de digitar palavras? José sabia segundo o historiador clássico Suetônio: Festina len-
que o mais importante requisito era "motivação", essa te. "Apressa-te devagar': o que parece um paradoxo,
energia psicológica, essa tensão que põe em movi- mas não é. O filósofo Edmund Burke disse: "Nossa
mento o organismo humano, determinando um certo paciência conseguirá mais do que nossa força." Mas
comportamento. José sabia que se o aspirante a escri- José sabia que além de tudo isso precisava ter imagi-
tor não tiver uma motivação forte escreverá quando nação. Ele podia usar a realidade, como Balzac, Zola e
muito alguns poemas de dor de cotovelo, alguns con- outros, mas sabia que sem imaginação não consegui-
tos, talvez mesmo um romance, mas logo desistirá. ria escrever um bom texto de ficção. Sem imaginação
José estava certo de que na realidade a motivação de não existia literatura e ele lembrava-se de uma frase de
cada escritor está essencialmente ligada à sua vida, Burckhardt, "a imaginação era mãe da ficção, a mãe da
sua experiência, desejos, ambições, sonhos, pesadelos. poesia e até mesmo a mãe da História".
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Além de tudo isso, José sabia que precisava ter co- "Por quê?"
ragem de dizer o que era proibido de ser dito, coragem José sentiu vergonha de dizer que não tinha ti 1111
de dizer o que ninguém queria ouvir. Ele já falou sobre ro para comprar papel-carbono.
isso inúmeras vezes. E naquele dia em que compulsou a "Esqueci:'
volumosa pasta cinzenta onde estavam os seus contos, "Não faça mais isso, ouviu? Mas não se preocupe,
essas considerações vieram à sua mente. Agora, tinha daqui nunca sumiu um original:'
que arranjar um editor. Na Biblioteca Nacional, que ele José suspeita que talvez já tenha contado essa his-
frequentava constantemente, alguém lhe disse que na tória, mas se o fez não sabe quando, nem onde. Mas,
rua das Marrecas, no centro, havia uma pequena edito- com certeza, agora irá relatá-Ia de maneira diferente.
ra que só publicava livros de autores nacionais. A rua Quinze dias depois José voltou ao sobrado da rua
das Marrecas (que depois passou a se chamar rua Iuan das Marrecas. O velho o recebeu cordialmente e man-
Pablo Duarte, e mais tarde voltou a se denominar rua dou a sua auxiliar procurar o seu livro. Após o que lhe
das Marrecas) ficava próximo da casa dele. pareceu um longo tempo ela voltou e sussurrou algo
A editora estava localizada no primeiro andar de um ao ouvido do velho. José percebeu que ele ficou per-
sobrado velho, com escada de madeira. Era uma sala turbado com a informação.
cheia de estantes atulhadas de pastas de papelão e livros. ''A menina não achou o seu livro. Como lhe disse
O editor era um velho, cujo nome José não lembra. Ele antes, um original nunca sumiu deste escritório. Vamos
lhe disse para deixar o livro e voltar dentro de 15 dias. achá-lo. O seu livro está numa pasta cinza, onde está
"Você fez cópias, certamente:' escrito apenas a palavra Contos e o seu nome, não é?"
"Não, não fiz:' José confirmou.
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"Eu li o livro. Todos os contos. O seu livro não tem mas não vou publicar o seu livro. Vá para casa e pense
uma história em que um personagem", o velho baixou no que eu lhe disse. Volte daqui a uma semana, que
o tom da voz, "em que um personagem diz ao outro", o vou lhe devolver seus originais:'
som da sua voz ficou ainda mais baixo, "vai para a puta José teve vontade de dizer ao velho editor que não
"Não sei. Sim, acho que sim ..." ("Uma crise") que descreve a ida de Meyer, um jovem
"Quais são os seus contistas preferidos, meu filho?" estudante de medicina, a vários prostíbulos, dos quais
"Tchekhov, Maupassant, Machado de Assis..:' ele se retira chocado, causou, por se referir a lupanares
"E você já leu em algum deles um personagem di- e prostitutas, indignação a inúmeros leitores ofendidos
zer a outro", o velho diminuiu tanto o tom da sua voz com o "cinismo do tema". E era um conto moralista.
que mal se ouvia o que ele dizia, "vá para a puta que Teve vontade de citar a única frase de Horácio que
"Meu filho, escrever é uma dádiva. A literatura deve e dizer que o velho era um deles. Mas ele simpatizava
ser algo edificante, ela tem como objetivo o aperfeiçoa- com aquele editor, que publicava autores nacionais e,
mento das faculdades intelectuais e principalmente certamente por isso, estava na miséria.
mal, usando esse palavreado chulo e, ainda como disse Esperou uma semana e voltou à rua das Marrecas.
Horácio, quem começa mal acaba mal. Sinto muito, Ao vê-lo, o velho editor teve um choque, encolheu-se
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constrangido na cadeira e com voz trêmula disse, "não
desgraça"
O velho estava tão triste e infeliz, à beira de uma
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que devia ter 15 ou 16 anos nessa época, gostava das fazendo buracos na areia. Sua mãe fazia lIlIl n I I\I~
ressacas, pois ela criava boas ondas para pegar jacaré. tatuís delicioso.
a jacaré era uma forma de deslizar nas ondas usando Muitas vezes, no fim do dia, José sentava-se no pa-
o próprio peito como se fosse uma prancha de surf, redão da praia para contemplar o mar, que sutilmente
algo emocionante para José nos dias de ressaca, não mudava de cor à medida que a tarde caía.
obstante ele sofresse arranhões, hematomas e lesões Uma tarde ele estava, sem camisa, sentado no pare-
quando as ondas "encaixotavam", fechando-se numa dão, quando uma jovem mulher se aproximou.
espécie de arco. "Que marcas são essas, no seu peito e nos seus bra-
a mar lhe propiciava ainda um prazer maior, que ços?", ela perguntou.
era nadar. A água do mar é mais pesada do que a água "Jacaré", ele respondeu.
doce, é mais fácil nadar no mar do que numa pisci- "Mordida de jacaré?"
na, o nadador flutua melhor. José costumava nadar da "São de pegar jacaré na onda:'
praia do Flamengo até a praia da Urca; demorava al- "Continuo na mesma", ela disse.
gum tempo e José, que nadava muito bem, dizia que José explicou o que era "pegar jacaré". A mulher era
o medo dele era dormir no meio da travessia entre as muito bonita, magra, a pele muito branca, uma apa-
duas praias. ' rência recatada de moça de família. Devia ser mais ve-
a sábado e o domingo, dias em que não trabalha- lha do que ele, uns três ou quatro anos.
va, ele passava no mar. Às vezes pegava mexilhões nas "Meu nome é Solange:'
um pequeno crustáceo branco de barriga vermelha, Ficaram os dois contemplando o mar em silêncio.
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"Tenho que ir", disse Solange depois de algum Às quatro horas em ponto José tocou a campainha
maneira que o atraía, a região glútea e os quadris pra- "Não tem nem cinco minutos que a empregada foi
ticamente imóveis, ereta, a passada nem muito curta embora. Será que ela viu você?"
meçava a escurecer Solange dizia que tinha que ir em- Ela vestia um short e uma blusa de seda que permi-
muito distante do prédio de José. lefone sem que José entendesse o que ela dizia, pois a
Marcaram quatro horas da tarde do dia seguinte. sua voz era muito baixa. Depois de um dos telefone-
Nessa noite, José não conseguiu dormir. mas Solange disse que José poderia dormir com ela.
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"Minha mãe vai ficar preocupada", respondeu José. "Aqui não mora ninguém com esse nom ,", I' 11
"Mas nós vamos fazer amor mais vezes, antes de irmão de Solange.
você ir embora", disse Solange levando-o de volta para "Mas ele me deu este endereço. Doutor Elias (;ui
a cama. - "
maraes.
Sempre que "o pessoal da casa", como dizia Solan- "Meu filho, aqui só moram duas pessoas: eu e a mi-
ge, viajava, José passava o dia com ela. Uma vez José nha esposa Solange:'
viu um porta-retratos com uma foto de Solange com "Desculpe", disse José, se afastando.
"É o meu irmão", disse Solange. lange era casada, a ideia de foder uma mulher casada
José e Solange, sempre que estavam na cama, troca- lhe parecia uma indignidade. Ele amava uma mulher
vam declarações de amor. que não merecia ser amada, uma pessoa desprezível.
''Amanhã o meu pessoal vai viajar", disse Solange. Naquela mesma tarde Solange ligou para José. Ele
Quando isso acontecia José passava a noite sem con- ficou em silêncio, só ela falou, disse que não gostava
No dia seguinte, bem cedo, José tocou a campainha marido sustentava não apenas ela, mas também a sua
da casa de Solange. mãe doente, que o amor da sua vida era ele, José, que
Quem abriu a porta foi o irmão dela. ela queria continuar a se encontrar com ele, que José
Perturbado, durante algum tempo José ficou sem não se preocupasse, que o marido não desconfiava de
"Eu queria falar com o doutor Guimarães:' José ouviu em silêncio, sem responder.
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I
Nunca mais esteve com ela. Evitava encontrar com
,: Solange na rua. Ele não podia amar uma mulher que
cou doente.
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criação.
II 150 151
feitiçaria. Ele se tornara agnóstico pouco depois que,
cobertos de sombra? Seu vigor físico fora substituído
atendendo ao desejo de sua mãe, fizera a Primeira Co-
por uma magreza mortiça.
Certa ocasião ele pediu a José que sentasse ao seu lado. munhão.
Sua mãe citava de cor a parte da Bíblia que fala em
"Meu filho", ele disse com dificuldade, "eu já lhe fa-
feitiçaria, no Deuteronômio 18,9-13: "Quando entra-
lei do Feitiço de Alcácer Quibir? Quem me contou foi
res na terra que o Senhor teu Deus te dá, não aprende-
o meu pai, que ouviu a história do pai dele, que ouviu
rás a fazer conforme as abominações daqueles povos.
por sua vez do seu pai, é uma história que vem sendo
Não se achará no meio de ti quem faça passar pe-
contada há mais de quinhentos anos. Eu fui dominado
lo fogo o seu filho ou a sua filha, nem adivinhador,
por esse Feitiço, que passa de pai para filho. E você,
nem prognosticador, nem agoureiro, nem feiticei-
José, tem o Feitiço também".
ro, nem encantador, nem quem consulte um espírito
Quando foi hospitalizado para morrer - seu pai,
adivinhador, nem mágico, nem quem consulte os
que evitava fechar os olhos porque acreditava que se
mortos; pois todo aquele que faz estas coisas é abomi-
fizesse isso morreria, e mantinha os olhos arregalados
nável ao Senhor, e é por causa destas abominações que
_ os olhos do seu pai foram ficando mais azuis e vol-
o Senhor teu Deus os lança fora diante de ti. Perfeito
taram a ter o fulgor antigo. Então, em certo momento,
serás para com o Senhor teu Deus:'
ele repetiu - com júbilo ou melancolia? - "José, você
Ou seja, aqueles que estão envolvidos na feitiçaria
tem o Feitiço", e fechou os olhos e morreu. José já es-
não entrarão no reino de Deus. Então, para ela, e todos
creveu sobre isso.
os religiosos em geral, a feitiçaria existia?
José já escreveu textos de ficção sobre o chamado
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Seu pai também dizia que talvez os feiticeiros fos- O outro irmão, Carlos, morreu de um câncer no
sem parar no inferno, mas os enfeitiçados como ele, pâncreas. José ia visitá-lo no hospital, tirava os sapa-
e como eu, e todos OS demais da nossa família, esses tos, deitava-se na cama dele e dizia, "seu preguiçoso,
jamais seriam condenados a sofrer o martírio de vi- levanta dessa cama, deixa de ser vagabundo", e coisas
leitor da Bíblia, gostava de contar que no Êxodo está José foi convidado para ser jurado do Prêmio Li-
dito que o rei Saul se envolveu com a feiticeira de En- terário da Casa de Ias Américas de Cuba no dia em
dor a fim de que ela consultasse o espírito do profeta que o médico que tratava de Carlos lhe disse que o
Samuel, para que ele o aconselhasse. estado do seu irmão era muito grave e que ele previa
"Saul consultando uma feiticeira, essa é de cabo de que a sua morte não tardaria muito. Tendo em vista
esquadra", dizia rindo o avô de José, que também era o que o médico lhe dissera, José decidiu não aceitar o
Manoel, o irmão mais velho de José, fumava dois para ir a Cuba. Carlos olhou José nos olhos e o sur-
maços de cigarros por dia. Morreu jovem, de um ful- preendeu dizendo: "Pode ir que eu espero você:' "Ir
minante infarto do miocárdio. Ele era o melhor dos aonde?", perguntou José. "Pode ir viajar que eu espero
irmãos, o melhor dos filhos. Visitava a mãe diariamen- você voltar:' José viajou, ficou em Cuba cerca de vinte
te, e quando o pai estava doente Manoel ia vê-Ío pela dias e ao voltar foi imediatamente ao hospital visitar o
manhã e à tarde, quando saía do seu escritório. irmão. José tirou os sapatos, deitou-se ao lado de Car-
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los e fez as brincadeiras de sempre. No dia seguinte rer, eu vou morrer. Não aguento mais ficar em cadeira
José viajou três vezes a Cuba. Achou o povo cubano da retirada de fecalomas. Morreu naquele fim de se-
admirável e já escreveu extensivamente sobre aquele mana pouco antes de completar 92 anos.
Com a morte de Carlos, na família restavam ape- para a Mariazinha. Ela nunca tivera um namorado.
nas ele e a sua mãe, além de Maria, que fora adotada Mas conheceu um rapaz, por quem se apaixonou. Eles
ainda menina por sua mãe quando fizera uma visita a iam se casar, mas uma semana antes do casamento Ma-
Portugal nos anos 1940. A mãe de José dirigia todos riazinha desapareceu de casa o dia inteiro. José encon-
os domingos para visitá-lo. No início um Gordini, de- trou-a no necrotério. Ela fora atropelada ao atravessar
pois um Volkswagen. Fez isso até os 85 anos, quando uma transversal da praia do Flamengo. Foi enterrada
ele então proibiu-a de dirigir, função que passou a ser no jazigo da família no cemitério São João Batista.
executada pela Maria. A mãe de José saía diariamente Foram todas perdas muito dolorosas. Mas, sobre a
para passear com Maria pela praia do Flamengo, onde pior de todas, a de agonia mais longa, ele prefere não
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Baiana, um ponto de bonde que existia no largo da José tinha que chegar bem cedo, para atender seus
Carioca, próximo da rua Treze de Maio, e pegava um clientes. Dava a alguns deles dinheiro do seu bolso.
bonde para casa. Muitas vezes ele ia andando até a sua Poucos lhe pagavam alguma coisa, muitas vezes lhe
residência na Buarque de Macedo, caminhando pelo levavam presentes, doces feitos pela mãe ou pela es-
calçadão da praia, ele sempre gostou de caminhar. posa, e um dia um lhe levou uma galinha embrulhada
Está de pleno acordo com lhoreau quando este diz, em papel de jornal. José não sabia o que fazer com
em seu livro Caminhando, que não podia ficar no seu aquela galinha - levá-Ia para casa? Desembrulhou-a
quarto um único dia sem criar ferrugem e confessava e viu que as asas da ave estavam inteiras. Num mo-
que se sentia atônito com o poder de resignação, para mento que ele depois atribuiu ao cansaço enorme que
nada dizer da insensibilidade moral dos seus vizinhos sentia naquele dia, José soltou a galinha pela janela
que não gostavam de caminhar. José já disse alhures, e ela, batendo as asas, chegou incólume à calçada da
quando anda resolve muitos problemas, solvitur am- rua, onde uma senhora a recolheu.
bulando, e realmente, quando quer criar e estimular Seus clientes eram ladrões, vigaristas de várias es-
sua imaginação ele precisa caminhar. pécies, até mesmo estupradores, e o seu índice de ab-
A maior parte dos seus clientes era de gente pobre, solvição era altíssimo, José fazia excelentes petições
negros na maioria, que não tinham dinheiro para lhe iniciais e alegações finais. Um dia foi procurado por
pagar. E como eram muitos e enchiam a sala de espera, um empregado de uma gráfica que estava sendo acu-
os colegas de José lhe pediram que os atendesse pela sado de falsificação de moeda. Havia mais outros dois
manhã, para que, durante a tarde, a sala de espera fi- réus desse crime: o dono da gráfica e um capitão do
casse livre para os seus clientes classe média. Exército. Esses últimos tinham como advogados de
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defesa os dois mais famosos criminalistas da época, José resolveu seguir o exemplo de Isaac Bashevis
I Singer, que ao escrever a sua autobiografia parou nos
Romeiro Neto e Stélio Galvão Bueno. O empregado da
gráfica, que não tinha dinheiro, teve que procurar um trinta anos. José resolveu parar um pouco mais cedo.
advogado iniciante, como José. Certamente não conseguiu escrever a história comple-
O julgamento foi, como sempre, demorado, mas ta da sua vida nesses vinte e poucos anos. Na reali-
apenas o cliente de José foi absolvido, conquanto na dade, como diz Singer, "a história verdadeira da vida
verdade fosse também culpado. de uma pessoa jamais poderá ser escrita. Fica além do
Romeiro Neto e Galvão Bueno convidaram José poder da literatura. A história plena de qualquer vida
para almoçar. "Menino", disse um deles, "suas alega- seria ao mesmo tempo absolutamente aborrecida e ab-
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o autor
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"pessoas empilhadas na cidade enquanto os tecnocratas as revistas O Cruzeiro e Senhor publicaram dois contos de
Carioca desde os oito anos, Rubem Fonseca nasceu em Em 1963, a primeira coletânea de contos, Os prisionei-
Juiz de Fora, em 11 de maio de 1925. Leitor precoce porém ros, foi imediatamente reconhecida pela crítica como a
atípico, não descobriu a literatura (ou apenas o prazer de ler) obra mais criativa da literatura brasileira em muitos anos;
no Sítio do Pica-pau Amarelo, como é ou era de praxe entre seguida, dois anos depois, de outra, A coleira do cão, a pro-
nós, mas devorando autores de romances de aventura e po- va definitiva de que a ficção urbana encontrara seu mais
liciais de variada categoria: de Rafael Sabatini a Edgar Allan audacioso e incisivo cronista. Com a terceira coletânea,
Poe, passando por Emilio Salgari, Michel Zévaco, Ponson Lúcia McCartney, tornou-se um best-seller e ganhou o
du Terrail, Karl May, Julio Verne e Edgar Wallace. Era ainda maior prêmio para narrativas curtas do país.
adolescente quando se aproximou dos primeiros clássicos Já era considerado o maior contista brasileiro quando,
(Homero, Virgílio, Dante, Shakespeare, Cervantes) e dos pri- em 1973, publicou seu primeiro romance, O caso Morel,
meiros modernos (Dostoiévski, Maupassant, Proust). Nun- um dos mais vendidos daquele ano, depois traduzido para
ca deixou de ser um leitor voraz e ecumênico, sobretudo da o francês e acolhido com entusiasmo pela crítica europeia.
literatura americana, sua mais visível influência. Sua carreira internacional estava apenas começando. Em
Por pouco não fez de tudo na vida. Foi office boy, escri- 2003, ganhou o Prêmio [uan Rulfo e o Prêmio Camões, o
turário, nadador, revisor de jornal, comissário de polícia mais importante da língua portuguesa. Com várias de suas
- até que se formou em direito, virou professor da Escola histórias adaptadas para o cinema, o teatro e a televisão,
Brasileira de Administração Pública da Fundação Getulio Rubem Fonseca já publicou 13 coletâneas de contos e 12
Vargas e, por fim, executivo da Light do Rio de Janeiro. Sua livros, entre romances e novelas. Em 2011, publicou Axilas
estreia como escritor foi no início dos anos 1960, quando e outras histórias indecorosas e a novela José.
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Underwood, a máquina de escrever
com teclado americano em que
ensaiava suas primeiras histórias
sem nenhum acento gráfico.
Produção editorial
Ângelo Lessa