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LEITURAS

OBRI
GATÓ
RIAS
UFRGS 2023
Prof. Dante Gonzatto
Prof. Patryk Galvan

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LEITURA OBRI
GATÓ
A prova de literatura da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul apresenta uma característica específica:
lista de Leituras Obrigatórias. Ao analisarmos o histórico
da prova, podemos observar a importância desta lista,
uma vez que no mínimo 10 questões - de um total de 15
- referem-se a ela. A banca seleciona textos de gêneros
e épocas diferentes: há romances, contos, teatro, poesia

RIAS
e canção. Dois destaques merecem nossa atenção: a
marcante presença feminina e a clara preferência por
obras que retratam denúncias sociais.

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INTRODUÇÃO 2 /83
LEITURA OBRI
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LISÍSTRATA: A GREVE DO SEXO
(411 a.C.) ARISTÓFANES
Apesar de, na antiguidade, a comédia ser vista como um gênero Principais Personagens:
menor ou com menos a acrescentar aos intelectuais e classes
dominantes, a obra de Aristófanes contrapõe essa visão. Várias - Lisístrata, Cleonice e Mirrina: mulheres atenienses de meia idade.
de suas peças cômicas transpuseram os séculos e chegaram aos - Lampito: mulher espartana.
dias atuais. Dentre elas destaca-se “Lisístrata” (411 a.C.). - Coro de Velhos: contrários à greve.
- Coro de Mulheres: favoráveis à greve.
Essa comédia tem como contexto os últimos anos da Guerra - Comissário de Polícia: tenta intervir na greve.
do Peloponeso, travada entre Atenas e Esparta. A peça foi - Quatro soldados: acompanham o Comissário.
uma tentativa de seu autor de acabar com as batalhas que - Cinésias: marido de Mirrina. Ele e sua esposa tinham um filho.
se estendiam por cerca de vinte anos. Atenas, por sua vez, - Embaixador espartano
estava ainda mais fragilizada devido ao desastre da expedição - Ministro ateniense
à Sicília em 413 a.C. Ele, então, dando voz às mulheres que - Conciliação: mulher jovem e bonita que aparece
tanto sofriam com os acontecimentos, lançou esse apelo por ao final representando a paz.
paz, mesmo que cômico.
Época e Espaço da peça: Atenas, 411 a.C.

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Resumo:

Cansada do contexto de guerras que os homens estavam As mulheres, reunidas e determinadas em suas ações,
inseridos, Lisístrata convoca suas vizinhas e outras mulheres dominam a Acrópole da Cidadela, local onde ficava todo o
das cidades gregas para colocar em prática seu plano. Embora tesouro, inclusive o que financiava as guerras. Ali acabam
soubesse que todas estariam ocupadas com os afazeres entrando em confronto com um grupo de Velhos. Eles,
domésticos, era justamente isso que a heroína queria combater. empunhados de tochas, tentam expulsá-las do lugar. Em
Ela percebe que os homens apenas estavam com elas em contrapartida, o Coro de Mulheres, na posse de vasos cheios
poucos momentos durante os intervalos das batalhas e pensa d’água, apagam o fogo.
em mudar esse cenário. Aos poucos as mulheres vão chegando.
A primeira delas é Cleonice, que ainda não sabia da seriedade A discussão segue até a chegada do Comissário.
da convocação. Lisístrata expõe a ela o que pensava, e logo Acompanhado de quatro soldados, ele tenta acabar com a
aparecem as outras, dentre elas Mirrina e mais tarde Lampito. confusão, com um discurso bastante machista. Lisístrata,
então, aparece para confrontar os homens. Com suas falas
Inicialmente Lisístrata está um pouco irritada, visto que bem elaboradas e questionadoras, ela deixa o Comissário
as mulheres de Atenas, Esparta e de outras cidades bastante irritado, visto que sua “dignidade masculina” estava
demoraram a chegar, mas, mesmo assim, expõe suas sendo posta à prova. As outras mulheres ali presentes apoiam
ideias: fazer uma greve de sexo até os homens acordarem a amiga e líder da greve.
a paz. Após convencer todas de que seus maridos estão
sempre ausentes, fazem um juramento sobre uma taça de Lisístrata domina inegavelmente o entrave. Enquanto o
vinho para acabar com a guerra. Comissário esbraveja suas falas conservadoras e de caráter

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patriarcal, associando as mulheres apenas a tarefas domésticas satisfazê-lo. Após deixa-lo com mais fogo ainda, Cirrina volta para
e cotidianas, a moça rebate as ironias e deboches com palavras a Acrópole e ele fica em total desespero.
firmes e duras. Unidas, atiram coisas no Comissário que sai
dali revoltado e humilhado. Mas a discussão não para, voltam a Com a situação entre os homens cada vez mais difícil de controlar,
debater com o Coro de Velhos que ali estava. um Arauto, Embaixador espartano, vai a Atenas em busca
de um acordo de paz com os magistrados. Todos os homens
Após isso, Lisístrata se depara com outro obstáculo: convencer envolvidos na guerra estão incontrolavelmente excitados, “uma
as mulheres a não voltarem para suas casas. Elas, assim como os ereção universal”, segundo o Arauto. Após a conversa, outros
homens, estavam começando a sentir falta dos prazeres carnais e embaixadores vão chegando ali, no mesmo estado.
passam a inventar algumas desculpas para voltarem a seus lares.
Lisístrata continua firme na causa e as proíbe de saírem dali. Para Vão em busca de Lisístrata e, com ela, tentam firmar um
encorajar ainda mais suas parceiras, a heroína lê a profecia feita acordo para terminar a greve. Ela, ciente de que o plano tinha
pelo oráculo sobre a situação. Nela, a vitória das mulheres estava funcionado, continua fiel a seus ideais e de suas companheiras.
garantida, contanto que cumpram seu juramento de greve. Com maestria, ela vai conduzindo o acordo de paz e, durante
ele, entra Conciliação. Os homens dali ficam ainda mais
Enquanto continuavam a discutir com o Coro de Velhos, as fervorosos e aceitam a proposta de acabar com a guerra.
mulheres avistam um guerreiro chegando. Mirrina reconhece seu
marido, Cinésias, que chegava ali extremamente e visivelmente Com todos concordando, uma festa é dada em homenagem
excitado. Ele chama por sua esposa e ela o atende. Lisístrata e à paz e ao reencontro de homens e mulheres. Cada uma
Mirrina colocam mais uma parte do plano em prática: deixar o delas volta a seu lar, junto de deu marido e a tranquilidade é
homem ainda mais excitado, dando a entender que a esposa vai reestabelecida na Grécia.

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VÁRIAS HISTÓRIAS (1869) e nuances seguindo a ordem do livro. Mas antes, a
“Advertência” do próprio autor:
MACHADO DE ASSIS
ADVERTÊNCIA
Além de seus célebres romances, Machado de Assis, um dos  
maiores escritores de nossa literatura, também é conhecido por Mon ami, faisons toujours des contes...
seus geniais contos. Em “Várias Histórias”, publicado em 1896, Le temps se passe, et le conte de la vie
foram reunidos 16 exemplos desse tesouro das nossas letras. s’achève, sans qu’on s’en aperçoive.
 
Com escrita bastante refinada e inconfundível, Machado Diderot.
tece perfis humanos analisando suas psiques e seus vícios,  
tão presentes na sociedade da época, quanto nos dias atuais. As várias histórias que formam este volume foram escolhidas
São traços e desvios identificados nos âmbitos individuais e entre outras, e podiam ser acrescentadas, se não conviesse
coletivos que levam as pessoas a vestirem máscaras sociais e limitar o livro às suas trezentas páginas. É a quinta coleção que
apelarem a mentiras por medo de serem expostas ou julgadas. dou ao público. As palavras de Diderot que vão por epígrafe
no rosto desta coleção servem de desculpa aos que acharem
O s c o n t o s a q u i p re s e n t e s , e m s u a m a i o r i a , fo r a m excessivos tantos contos. É um modo de passar o tempo. Não
publicados no jornal “Gazeta de Notícias” entre os anos pretendem sobreviver como os do filósofo. Não são feitos
de 1884 e 1891 e, após, reunidos nessa coletânea. A daquela matéria, nem daquele estilo que dão aos de Mérimée o
seguir, veremos o resumo de cada um deles destacando caráter de obras-primas, e colocam os de Poe entre os primeiros
seus principais pontos, personagens, focos narrativos escritos da América. O tamanho não é o que faz mal a este

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gênero de histórias, é naturalmente a qualidade; mas há sempre Anos depois, Vilela se casa com Rita. A amizade e a
uma qualidade nos contos, que os torna superiores aos grandes convivência faz com que Camilo e Rita se aproximem, ainda
romances, se uns e outros são medíocres: é serem curtos. mais depois da morte da mãe dele. Camilo, então, sente
  atração pela esposa de Vilela. Inicialmente tenta evitar, mas,
M. DE A. com o passar do tempo, entrega-se à paixão.
 
1. A Cartomante Certo dia Camilo recebe uma carta anônima em que estava
escrito que era de conhecimento de todos a relação dele
Foco narrativo: 3ª pessoa onisciente com a moça. Com medo dos boatos, resolve, então, diminuir
Personagens: Vilela, Camilo, Rita e a Cartomante as visitas à casa de Vilela, o que deixa Rita preocupada. Foi
a essas alturas que Rita consultou a cartomante. Camilo
O conto inicia com uma referência à peça Hamlet, na qual o segue bastante aflito, chegando a pensar que a carta foi
protagonista diz a Horácio que existem mais coisas entre o céu e a escrita pelo próprio Vilela tendo descoberto tudo. Os dois
terra do que sonha nossa filosofia. Era uma noite de sexta-feira e conversam sobre o ocorrido, mas ele decide manter distância.
Rita contava a Camilo que havia consultado uma cartomante, pois Às lágrimas, despedem-se.
estava aflita em relação ao amor dele para ela. Camilo, bastante
cético, ironiza o ato de Rita, mas ela acaba por se tranquilizar, pois, Camilo recebe um bilhete de Vilela apenas com a seguinte
assim como resultou nas cartas, ele ainda a amava. mensagem: “Vem já, já”. De imediato, desconfia que o amigo
havia descoberto tudo. Resolve atender ao amigo, mas sua
Acontece um flashback que vai explicar como eles se carruagem fica presa no tráfego por causa de um acidente.
conheceram. Camilo era amigo de Vilela há muito tempo. Coincidentemente Camilo está parado ao lado da casa da

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cartomante. Depois de muito refletir, decide consultá-la. ou algo do gênero, resolve entrar. Lá ele vê que os santos
Segundo as cartas da mulher, ele teria um bom futuro com amor tinham ganhado vida e estavam conversando entre si. Eles
e nada de ruim lhe aconteceria. Aliviado, segue seu caminho. comentavam sobre sua descrença e falta de esperança nos
humanos, julgando suas atitudes e pensamentos de forma
Chegando à casa de Vilela, desculpa-se pela demora, ao que ácida. Os comentários mais críticos surgiam de S. João Batista
o amigo o chama para dentro. Lá, horroriza-se com a cena: e S. Francisco de Paula.
Rita estava morta. Vilela pega Camilo pela goela e dispara
dois tiros nele. Camilo cai morto. A partir daí, começam outras narrativas dentro da narrativa.
S. José conta sobre uma mulher adúltera que foi até a igreja
2. Entre Santos pedir o perdão divino e a “cura” de sua mazela. Enquanto
ela rezava, sua mente, pouco a pouco, foi se distanciando e
Foco Narrativo: 3ª pessoa (na maior parte empresta a voz tendo pensamentos vis com outro homem. Percebendo sua
narrativa para o padre em 1ª pessoa). própria atitude, ela se levanta e vai embora.

Personagens: Padre (capelão), São José, São Miguel, São João Logo ao fim da primeira história, São Francisco de Sales
Batista, São Francisco de Sales e São Francisco de Paula. lembra de outra que pode observar. Um homem de mais ou
menos 50 anos foi pedir clemência divina por sua esposa que
Logo no início do texto o narrador em 3ª pessoa empresta sofria de uma doença (erisipela) em uma das pernas e nenhum
sua voz ao capelão contar algo que o deixou assustado há médico conseguia curá-la. De início o homem oferece como
uns anos: certa noite viu luzes acesas dentro da igreja e ouviu promessa ao santo uma perna de cera. Enquanto mentalizava
algumas vozes. Desconfiado de que poderiam ser ladrões sua reza, percebeu que iria gastar muito dinheiro com isso,

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então resolve mudar sua moeda de troca, mesmo sua mulher Inácio era um moço de aproximadamente 15 anos que
estando à beira da morte. Numa tentativa de iludir a si é contratado por Borges para ser seu assistente. Borges
mesmo e ao santo, pensa que o espiritual é mais importante trabalhava no Judiciário e Inácio é chamado para morar na casa
que o material, então decide pagar a promessa com rezas. dele. Lá conhece D. Severina, esposa de seu patrão, e logo
apaixona-se pelos braços da mulher que ficavam de fora da
Conforme a imagem de uma moeda ia surgindo em sua roupa (na época não era comum as mulheres mostrarem partes
mente sem pedir licença, o homem ficava cada vez mais de seu corpo, menos ainda os braços). Ela os usava assim, pois
desesperado. Inicialmente promete 300 padre-nossos e já tinha gastado todos os vestidos de manga longa.
300 ave-marias. Mas a aflição vai aumentando, e o número
prometido de orações também. Passa para 500 e depois Certa noite, após o jantar, Inácio demorou-se a tomar café e
para 1000. O homem fica repetindo enlouquecidamente isso deixou D. Severina desconfiada. Inicialmente ela duvida
esse número. Com esse relato, todos os santos ali presentes que seria interesse do rapaz por ela, mas se dá conta de que
caíram na gargalhada. ele não era mais um menino, então conscientiza-se de que
ele a amava. Paralelamente, Inácio se divide entre querer ir
Aos poucos, a conversa entre eles foi cessando e o capelão cai embora, devido ao cansaço de suas atividades e a sua solidão
ao chão. Acorda apenas no dia seguinte com o sol em seu rosto. longe da família, e ficar ali preso aos braços da mulher de seu
chefe. A aflição do rapaz aumentava a cada dia, estava cada
3. Uns braços vez mais apaixonado por D. Severina e seus braços.

Foco narrativo: 3ª pessoa. Num domingo, D. Severina, preocupada que Inácio tinha
Personagens: Inácio, D. Severia e Borges almoçado pouco e andava abatido, vai em busca do rapaz.

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Encontra-o dormindo na rede e seu coração começa a bater Pestana era um compositor de polcas, ritmo associado à
mais forte. Lembra que tinha sonhado com ele na última popularidade. Mesmo famoso por suas composições, ele
madrugada e hesita em se aproximar. Enquanto dormia, queria mais, queria ser um grande compositor de música
Inácio sonhava com D. Severina. Ela, então, aproxima-se do erudita como Bethoven, Mozart e outros. Mas, sempre
rapaz e dá-lhe um beijo na boca, coincidindo com a cena do que sentava para compor algo, era outra polca que surgia.
sonho do menino. Sentindo-se culpada e envergonhada, a Inicialmente ele gostava de suas músicas, entretanto o
mulher sai correndo dali. Volta a ver Inácio apenas no jantar. sentimento durava pouco. Sinhazinha Mota, uma jovem moça
A partir daquele momento, ela não deixa mais seus braços à que era apaixonada por ele, consola o compositor algumas
mostra; passa a usar um xale para cobri-los. E assim foi toda a vezes após suas apresentações.
semana, até que, no sábado, Inácio é dispensado com toda a
gentileza por seu patrão. Em casa, Pestana custa a dormir pelas noites, pensando e se
martirizando por não conseguir compor músicas clássicas.
O rapaz vai embora sem entender muita coisa e, por muitos Vive amargurado, sonhando em ser maior, ainda que
anos, continua a lembrar do que, para ele, foi apenas um sonho. reconhecido por todo o povo. Numa tentativa de alavancar
sua carreira e, talvez, mudar suas inspirações de composição,
casa com Maria, uma cantora viúva, o que deixa Sinhazinha
4. Um homem célebre Mota com certa inveja.

Foco narrativo: 3ª pessoa. Logo no início do casamento, Pestana pensa em compor


Personagens: Pestana (compositor de polcas), Sinhazinha secretamente algo para Maria, uma música com mais
Mota e Maria (uma viúva). profundidade e erudição. Quando achou que estava com ela

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quase pronta, sua esposa a ouviu e reconheceu uma peça de Personagens: Conselheiro (protagonista), interlocutor,
Chopin, o que deixou Pestana desolado. Ele sai de casa às Quintilha e Nóbrega (amigo do Conselheiro).
pressas e tenta suicídio, mas volta a si e retorna para casa.
Segue por algumas semanas compondo mais polcas até que O conto inicia pela revelação do amor que Conselheiro
sua esposa falece (ela era tuberculosa). sentiu por uma jovem chamada Quintília, agora falecida. Ela
era considerada a mais bela de todas as mulheres do local e
Após a morte de Maria, Pestana se propõe a compor um todos os homens queriam casar com ela, porém, ela já aos
Réquiem. Passam-se vários meses e a composição não fica trinta anos, não queria ser esposa. Morou com seu tio e, após
pronta. Ele tinha por objetivo tocá-la no aniversário de a morte do velho, com uma prima viúva.
falecimento da esposa, porém não obteve sucesso. Sem
produzir mais músicas, acaba vendendo sua casa para pagar O Conselheiro e Nóbrega decidem fazer uma aposta
as dívidas. O editor, então, faz uma proposta ao compositor: para ver quem desposaria a moça. O protagonista,
20 polcas em 12 meses, e ele acaba aceitando por aos poucos, aproxima-se da amada e uma amizade
necessidade. Compôs todas com maestria, mas, pouco tempo foi surgindo. Com o passar do tempo, a amizade
depois, após aceitar uma nova demanda de composição, pega transformou-se em amor secreto. Nóbrega, por sua vez,
uma febre e morre. aceita um cargo de juiz na Bahia e acaba falecendo, o
que deixou o Conselheiro com remorso. Mais algumas
5. A desejada das gentes f a t a l i d a d e s a co nt e ce ra m , co m o a m o r t e d o t i o d e
Quintilha e do pai do Conselheiro. Juntos, ele e a moça,
Foco narrativo: estrutura dialógica em que o protagonista compartilhavam suas tristezas.
conta a história de Quintilha a um interlocutor.

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Após esse período de luto, o Conselheiro toma coragem e Garcia e Maria Luísa. Os três pouco falam entre si nesse
pede Quintilha em casamento. Entretanto ela continua firme momento, dando ao ambiente um ar de tensão. Após essa
em seu posicionamento de não casar e pede que ele não breve apresentação, acontece um flashback contando
se afaste dela por esse motivo. Os dois continuam com a como eles se conheceram. Garcia tinha visto Fortunato pela
amizade, com as visitas e cordialidades. Passa-se algum tempo primeira vez na plateia de uma peça de teatro na qual cenas
e Quintilha adoece gravemente. Quando estava prestes a violentas aconteciam e estranhou as reações do outro com os
morrer, ela decide aceitar a proposta do protagonista. Como momentos sanguinários. Observou, também, que Fortunato
sua promessa de não casamento tinha sido feita a ele, era ele foi embora quando a peça se torna mais alegre.
o único que poderia desfazer.
Tempos depois, Garcia volta a vê-lo um homem é esfaqueado.
Os dois finalmente se casam, contudo a moça morre dois dias Enquanto a vítima estava em momentos críticos, Fortunato
depois. O Conselheiro abraça seu corpo falecido e conclui fica bastante atento a ele, porém, quando melhora, torna-
que Quintilha tinha uma aversão física ao casamento, só o se indiferente. Garcia, então, cria certa curiosidade sobre
aceitando quando já tinha certeza de sua morte. o comportamento do homem, querendo saber qual seria a
“causa secreta” de tudo isso.
6. A causa secreta
Passa-se mais um tempo e os dois encontram-se com certa
Foco narrativo: 3ª pessoa frequência pelas ruas e no mesmo transporte, iniciando assim
Personagens: Fortunato, Garcia e Maria Luísa uma amizade. Fortunato, então, convida Garcia para conhecer
sua casa e conta que está casado. Não tendo como recusar
De início nos são apresentadas três pessoas, Fortunato, o convite, Garcia faz a visita e conhece Maria Luísa, esposa

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do amigo. A partir dali, os três aproximam-se cada vez mais Maria Luísa acaba ficando tuberculosa e Fortunato dedica
e Garcia passa a ter interesse em Maria Luísa, mas nada se todas as atenções a sua esposa, principalmente em seus
desenvolve em relação a isso. momentos finais. Ela falece e quem fica velando seu corpo é
Garcia. No meio da noite, Fortunato acorda e vê o amigo, às
Com a amizade consolidada, eles abrem uma clínica em lágrimas, beijando o rosto sem vida de Maria Luísa. Ali, em
sociedade. Fortunato é quem cuida dos pacientes em vez de ficar preocupado com uma possível traição, Fortunato
pior situação, dedicando muita atenção a eles. Como delicia-se com a cena. Assim, confirma-se a “causa secreta”
desculpa para aprimorar suas técnicas, ele passa algum de seus comportamentos: o sadismo.
tempo dissecando animais, o que desagrada Maria Luísa.
Ela pede intervenção a Garcia, e ele convence o amigo a 7. Trio em lá menor
parar com as práticas, nem que seja apenas quando sua
esposa estivesse por perto. Foco narrativo: 3ª pessoa
Personagens: Maria Regina, sua avó, Maciel (27 anos)
Todavia Fortunato é encontrado torturando um rato que teria e Miranda (50 anos).
roído documentos importantes. É visto cortando as patas e rabo
do animal cauterizando as feridas no fogo para que o animal não O conto possui quatro capítulos que contam sobre Maria
morresse logo e ele pudesse continuar com tudo aquilo. Sua Regina e os dois homens. Ela tinha interesse pelos dois,
esposa pediu para Garcia mais uma vez intervir na cena e, aqui mas não conseguia se decidir. Na música, o acorde “lá
está o retorno ao início do conto, naquele ambiente de tensão. menor” soa melancólico.

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Capítulo I – Adagio Cantabile: Maria Regina já em seu quarto Capítulo III – Allegro apassionato: Maciel sabe de todas as
na casa de sua avó relembra fatos que aconteceram há fofocas e assuntos da cidade, o que deixa a avó de Maria
pouco. Ela recebeu a visita de seus dois amores e, na sala, bastante animada. Conta a ela sobre as futilidades e o
tocou uma sonata, deixando sua avó sonolenta. Conversam andamento das pessoas da sociedade, seus comportamentos
sobre música e Miranda traz alguns posicionamentos e nos bailes e casos amorosos. Além disso, vendo que estava
opiniões sobre o assunto, enquanto Maciel apenas concorda. agradando, soltava frases em francês para impressionar ainda
Adormece pensando nos homens e nos jeitos de cada um. mais. Só que ele não percebeu que, com isso, Maria Regina
foi perdendo a admiração pelo rapaz. Como uma espécie
Capítulo II – Allegro ma non tropo: no dia seguinte, Maria de fuga, a moça passa a combinar as figuras de seus dois
Regina e sua avó foram visitar uma amiga. Na viagem de amores: enquanto via Maciel, tratava de lembrar as palavras
volta, sua carruagem atropela um menino, que cai desmaiado. de Miranda. Nisto, Miranda chega e logo encanta com suas
Quem interveio no momento foi Maciel, que salva a criança palavras. Na presença dele, Maria Regina vai tocar mais
do pior. Levam a criança até sua mãe e a avó de Maria uma sonata no piano e sua indecisão segue. Enquanto ouvia
oferece uma carona a Maciel. Ali, Maria Regina nota que a as palavras do mais velho tocando sua alma, lembrava da
mão do homem estava ensanguentada e fica preocupada. fisionomia do mais novo.
Maciel releva o ferimento e a moça fica ainda mais encantada
por ele, tendo em vista a atitude heroica do rapaz. Deixam Capítulo IV – Minuetto: passados alguns meses daquela
Maciel em sua casa com a promessa de que o rapaz iria visitá- noite, Maria Regina vê os dois homens se distanciando
las pela noite. A noite chega e Maria Regina estava esperando pouco a pouco, como se os tivesse perdido, afinal, os dois
ansiosa pelo homem. A avó tece elogios a ele e a moça se não satisfaziam completamente suas vontades. Na verdade,
questiona onde poderia encontrar um noivo melhor. Maria estava apaixonada por um terceiro homem que era

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a exata mistura dos outros dois. Certa manhã, a moça leu de culpar o outro. Quando consultam a opinião do Frei, ele
sobre alguns astros que são formados pela combinação de diz “tocar viola”, ou seja, não quer opinar. Já Veloso, quando
duas estrelas. Separadas, valem muito, porém juntas, formam questionado diz que a história verdadeira era diferente do que
um astro esplêndido. Ela queria este último, fazendo uma estava na Bíblia, segundo a primeira parte do Pentateuco, uma
referência aos dois homens. Ao adormecer, sonhou que escritura não reconhecida como oficial. Após certa confusão,
morria e sua alma encontrava duas estrelas que, sozinhas, ele diz que quem criou o mundo não foi Deus, mas sim o
não a satisfaziam. Ela ficava vagando de uma para a outra Diabo. Todos ficam espantados, mas ele prossegue a narrativa.
pela eternidade. Nesse sonho, ouve uma voz dizendo que
esse era o destino dela: oscilar por toda a eternidade entre Segundo Veloso, o Diabo criou as trevas, as árvores sem
astros incompletos ao som de uma sonata. frutos, os espinhos, as sombras etc. E Deus foi tratando de
arrumar tudo, criando o Sol, as estrelas, as flores, os frutos
8. Adão e Eva e as coisas belas. No sexto dia é criado o homem e logo
depois a mulher, mas sem alma. Então Deus os preenche
Foco narrativo: 3ª pessoa com espírito e sentimentos nobres; eles vão às lágrimas e
Personagens: D. Leonor, Frei Bento e Veloso (juiz-de-fora) caem aos pés do senhor. Deus diz aos dois que viveriam ali e
poderiam comer de tudo, menos o fruto da Árvore da Ciência
Nos anos mil setecentos e poucos, na Bahia, estavam todos do Bem e do Mal.
a comer doces na casa de D. Leonor. Durante o banquete,
ela chama um homem de curioso e o assunto que seguiu foi O Diabo, revoltado com isso, manda uma serpente para
se a curiosidade era algo masculino ou feminino e se a perda recuperar sua criação. Ela, não gostando do casal, aceita a
do paraíso foi culpa de Adão ou Eva. Cada gênero tratava proposta, pois era para fazer o mal. No paraíso a serpente

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tenta convencer Eva a comer do fruto, mas ela nega. Depois Procópio com muito zelo, por ser ele a última esperança.
tenta Adão, que também declina. Deus, vendo o ocorrido,
manda o anjo Gabriel buscar os dois como recompensa por Felisberto estava à beira da morte e Procópio age com
terem resistido às tentações, e foi assim que Adão e Eva extrema paciência, ganhando certa simpatia do Coronel.
entraram no céu, deixando o paraíso sob o domínio das Porém isso dura pouco, logo o velho começa a tratar seu
serpentes e do Tinhoso. enfermeiro com grosserias. Com o passar do tempo, Procópio,
cansado das humilhações, pede demissão e Felisberto,
D. Leonor acusa Veloso de calúnia e, mais uma vez pede a surpreendentemente, pede desculpas, confessando que
opinião do Frei, que recua. O próprio Veloso conclui que não esperava por um enfermeiro paciente todo esse tempo.
acredita que aquilo tivesse ocorrido, pois, se assim fosse, não Infelizmente a trégua dura pouco tempo mais uma vez. O
estariam todos sentados ali comendo aquele doce divinal. Coronel, mostrando sua verdadeira face atira uma vasilha
d’água no enfermeiro e ele, enfurecido com a atitude do
9. O Enfermeiro outro e com a dor, esgana Felisberto até a morte.

Foco narrativo: 1ª pessoa (Procópio) Após os acontecimentos, Procópio começa a ter crises de
Personagens: Procópio, Coronel Felisberto consciência, o que ele mesmo trata de acobertar e desviar,
criando desculpas para si próprio numa tentativa de aliviar
O narrador, já mais velho, conta uma história passada, de sua angústia. Apesar de tudo, o enfermeiro é quem fica com
quando tinha ido trabalhar como enfermeiro para Coronel a fortuna do velho por ter cuidado dele, e isso aumenta ainda
Felisberto, um homem bastante rico e rabugento. Como mais seu remorso. As oscilações entre culpa e perdão próprio
ele já tinha demitido vários outros, o padre da cidade trata seguem, numa verdadeira imersão ao psicológico humano.

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Termina o conto, então, com o narrador-protagonista uma menina-moça, filha de Viegas, que conhecia há muitos
despedindo-se de seu interlocutor. anos. Era um desafio que, dentre seus devaneios, era possível
de realizar, porém, como era um homem de poucas atitudes,
10. O diplomático nunca agiu para conquistar a moça. Chega a escrever uma
carta para entregar a ela, mas sempre desvia do objetivo.
Foco narrativo: 3ª pessoa
Personagens: Rangel, Joaninha, João Viegas, Calisto e Durante a reunião, Rangel perdeu mais algumas
Queirós. oportunidades de se aproximar de Joaninha ou entregar-lhe
a carta. Volta e meia questionava a ausência de Calisto, um
Rangel era conhecido por todos devido a sua postura outro amigo que garantiu que estaria ali. É passado algum
diplomática, nunca conquistando desafetos ou inimigos. tempo quando Calisto chega acompanhado de Queirós,
Era leitor de uma antiga espécie de oráculo fajuto, o livro homem jovem e bonito, desconhecido deles até então. Logo,
de sortes. Passava, então, lendo as páginas para homens Queirós conquista a atenção de todos por seu espírito alegre
e moças em busca de respostas sobre seus destinos. Além e comunicativo, o que deixa Rangel enciumado e rancoroso.
disso, Rangel era solteiro, tendo mantido o celibato até
os quarenta anos. Fica a vida toda fantasiando ser alguém Ao ver que a moça prestava atenção em Queirós, decide
importante, com grande destaque social, mas, na realidade, entregar a carta de uma vez por todas, mas fica idealizando a
era um homem discreto e contido. vida caso casassem com Joaninha. Após o jantar, pedem para
Rangel fazer um discurso, já que era bom com as palavras.
Estavam todos em uma reunião de leitura da sorte, inclusive Entretanto, quando ia começar, viu os olhares de Joaninha
João Viegas, seu amigo. Rangel era apaixonado por Joaninha, para Queirós e os dele para ela. Seu discurso foi o mais

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genérico possível. Queirós, então, resolve tomar a palavra e Personagens: Mariana, Evaristo e Xavier
todos o aplaudem com louvor. A esperança do protagonista
é recuperada quando, num jogo de bingo, a moça o convida Capítulo I: Após 18 anos longe, Evaristo volta ao Brasil anda
para ser sua dupla. Ele, em vez de jogar, fica fantasiando seu pelas ruas. Não estava mais interessado nas coisas daqui,
amor como de costume. nem sequer lia nossos jornais. Fizera uma viagem de cura.
Questionava-se “que será feito de Mariana?” e lhe sobe uma
O dia já amanhecia quando Rangel vê Joaninha e Queirós de vontade incontrolável de vê-la. Lembra-se de sua beleza e
mãos dadas. Então vai para sua casa e desaba a chorar, afinal, formosura. E, após todo esse tempo longe, o que aconteceria
como podiam se apaixonar em apenas uma noite? Mas o final se encontrasse a mulher?
ainda foi pior:
Capítulo II: um flashback na história nos coloca frente a frente
“O pobre-diabo, feito de devaneio, indolência e afetação, era, em com os amantes. Mariana espera ansiosa por Evaristo e,
substância, tão desgraçado como Otelo, e teve um desfecho mais cruel. quando ele chega, os dois trocam juras de amor. Ao mesmo
tempo em que o calor do sentimento incendiava o ambiente,
Otelo mata Desdêmona; o nosso namorado, em quem ninguém a amargura de moça estar prometida de casamento a Xavier
pressentira nunca a paixão encoberta, serviu de testemunha ao paira sobre os dois. Era visível o quanto os dois se amavam e
Queirós, quando este se casou com Joaninha, seis meses depois” lamentavam o destino que a vida lhes impusera.

11. Mariana Capítulo III: é contado que, no tempo em que Evaristo e


Mariana eram amantes, ela, por não suportar ter que casar
Foco narrativo: 3ª pessoa. com Xavier, acaba ingerindo veneno tentando suicídio, mas

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não obteve sucesso. Evaristo, por sua vez, embarca na Pilar relembra um fato de sua infância: certa manhã
longa viagem a Paris, da qual retornava agora. Voltando ao estava indeciso se iria brincar ou iria para a escola. Porém,
presente da narrativa, assim como antes, Evaristo chega a lembrando a última surra que levou de seu pai, decidiu
casa de Mariana. Lá, encontra a mulher ao lado de Xavier ir estudar. Ele sempre foi um bom aluno, bastante ágil e
acamado e enfermo. Ela não o olhava mais como antes, inteligente. Raimundo era seu colega de classe e filho do
tudo estava diferente, inclusive os sentimentos. Após uma professor rabugento. Raimundo era muito cobrado por seu
semana, Xavier falece e Mariana fica totalmente desolada. pai, mas tinha dificuldades de aprendizagem.
Evaristo fica impressionado com tamanha tristeza. No Naquele dia, Raimundo oferece a Pilar uma “pratinha” para
enterro, conversando com parentes do casal, Evaristo que este o ensine uma lição que não estava conseguindo
descobre que, não passado muito do casamento, Mariana fazer. Seu Pilar, como era chamado, decidiu aceitar. Em
e Xavier criaram um amor incondicional, visto o pesar silêncio e com toda discrição fizeram a troca, pois, se fossem
da moça naquele momento de dor. Mariana nunca mais pegos pelo professor, seriam castigados severamente. O
atendeu aos chamados de Evaristo, inclusive desviando que eles não sabiam era que Curvelo, um dos colegas,
o olhar quando se cruzaram por uma rua. Era a paixão estava observando tudo. Enquanto Pilar estava feliz com
sucumbida pelo tempo. a pratinha ganha, o professor grita seu nome. Ao lado dele
estava Curvelo, que havia delatado o ocorrido. O professor
12. Conto de escola considerou aquilo como suborno e pediu o dinheiro. Pilar, em
desespero, joga a moeda pela janela e Raimundo e ele são
Foco narrativo: 1ª pessoa (Pilar) castigados com doze “bolos” (palmadas com palmatória).
Personagens: “Seu” Pilar, Raimundo, Curvelo Depois da aula Seu Pilar resolveu bater no colega delator,

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mas ele sumiu. Durante a noite Pilar sonhou que encontrava a suas provocações, mas a linha permanece quieta. Chega,
moeda na rua. Levantou-se rapidamente para pegar a moeda então, a noite do baile e a baronesa veste aquele vestido feito
de volta, porém, no meio do caminho, encontrou um batalhão pela costureira. A linha, por sua vez, rebate as provocações
militar marchando e tocando tambores. Encantado com tudo anteriores, dizendo que era ela quem ia ao baile desfrutar da
aquilo, resolveu segui-los e não ir à escola. Caminhou atrás vida enquanto a agulha voltaria para sua caixinha. Por fim, um
deles e terminou a manhã na Praia da Gamboa. Voltou para alfinete aconselha a agulha a fazer como ele: “Anda, aprende,
casa sem a moeda e sem peso na consciência. Assim, aprendeu tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar
com Raimundo e Curvelo sobre corrupção e delação. da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu,
que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.”
13. Um apólogo
O narrador nos diz que contou essa história a um “professor
Foco narrativo: 1ª pessoa de melancolia” que responde que também serviu de agulha a
Personagens: agulha e novelo de linha. muita linha ordinária.

De início o narrador nos apresenta uma discussão entre a agulha e 14. D. Paula
a linha sobre quem é mais importante. Enquanto a linha diz que é
ela quem prende e une os panos, a agulha diz que é ela que fura e Foco narrativo: 3ª pessoa
abre o caminho, a linha servia apenas para seguir seus comandos. Personagens: D. Paula, Venancinha, Conrado, Vasco Maria
Portela.
Tudo isso se passava na casa de uma baronesa e a costureira
chega para fazer seu trabalho. Nisso, a agulha segue com D. Paula, mulher séria e íntegra, chega a casa de sua sobrinha,

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Venancinha, que estava chorando muito. Depois de insistir, a Sabendo como seria a triste vida da sobrinha caso se
moça revela a sua tia que o motivo do choro era a briga que entregasse ao amor extraconjugal, D. Paula começa a dar
teve com seu marido por causa do ciúme exagerado que ele conselhos sobre casamento. Um dia, numa caminhada,
sentia. D. Paula diz que vai conversar com Conrado, o esposo as duas avistam o Vasco (filho) e Venancinha se esconde.
de Venancinha. Resolve, então, contar tudo a sua tia: conheceram-
se logo que ele veio da Europa e, nos bailes, trocavam
Chegando lá, D. Paula, após muita conversa, consegue cortejos e elogios. Logo estavam se amando, confirmando
convencer Conrado da inocência da sobrinha. Porém, o as suspeitas da tia e de Conrado. A conversa segue e
homem cita o motivo do ciúme: Vaco Maria Portela, filho Venancinha revela que, um dia, após o teatro, conversou
de um senhor com o mesmo nome. Ao ouvir isso, D. Paula com Vasco e ele declarou seu interesse sob olhares e
estremeceu. Como combinado com Conrado, ela apanha sua risos alheios. Conta, também, que se arrependeu, mas
sobrinha e as duas vão passar uma temporada na Tijuca. que queria voltar a vê-lo.

A história volta mais ou menos 30 anos ao passado, D. Paula insiste para a sobrinha continuar o relato, pois
quando D. Paula era mais jovem, assim como o Vasco estava vendo a si mesma na história. Mesmo assim,
pai. Ela era casada e traiu seu marido com Vasco Maria insiste para que a Venancinha se preocupe com sua
Portela (pai), o que torna a possível história de sua reputação e de seu marido. Ela torna a chorar e recolhe-
sobrinha muito semelhante a sua própria. Na Tijuca, entre se em seu quarto. D. Paula fica ali, distante, tomando
conversas e pensares, D. Paula conclui que Venancinha chá, observando o vento e as folhas, lembrando sua
ama o Vasco (filho) e volta a lembrar de seus tempos idos. própria vida.

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15. Viver
Diante dessa revelação, Ahasverus fica indignado e faz
Foco narrativo: diálogo. com que Prometeu volte para o seu castigo, de onde havia
Personagens: Ahasverus (judeu errante) e Prometeu. escapado. Prende Prometeu novamente nas correntes e ele
diz que faria de Ahasverus o início de uma nova espécie, mais
“Fim dos tempos. Ahasverus, sentado em uma rocha, fita forte do que a anterior, que estava findando na figura do
longamente o horizonte, onde passam duas águias cruzando-se. rejeitado, que agora se tornaria o rei dessa nova raça. Diante
Medita, depois sonha. Vai declinando o dia.” desse futuro grandioso, Ahasverus mergulha em devaneios,
feliz com sua nova condição, esquecendo até o fato de estar
O conto tem estrutura dialógica com clima onírico de fim morrendo para realizá-la. Tira as correntes de Prometeu e
dos tempos. Ahasverus, segundo a Bíblia, foi o judeu que vislumbra-se como rei, querendo, mais do que nunca, estar
empurrou Jesus Cristo enquanto ele carregava sua cruz, vivo. As duas águias que voavam por ali observam que o ódio
então recebeu a maldição de vagar pelo mundo durante toda que Ahasverus tinha da vida, nada mais era que amor.
a eternidade até que o último homem da terra morresse. Toda
essa experiência de vida lhe trouxe bastante conhecimento 16. O cônego ou metafísica do estilo
sobre os humanos. Ele é o primeiro a se apresentar.
Foco narrativo: 3ª pessoa
Em seguida Prometeu, da mitologia clássica, diz quem é. Ele Personagens: Cônego Matias
havia criado os primeiros homens e roubou para eles o fogo dos
céus. Seu castigo foi ter uma águia comendo seu fígado por toda Conto metalinguístico em que o protagonista, Cônego Matias,
a eternidade. Tempos mais tarde, Hércules o salva do castigo. estava escrevendo um sermão encomendado para uma festa,

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porém interrompe sua escrita por não achar um adjetivo que
lhe agradasse. Os donos da festa, inclusive, divulgam que o
sermão seria escrito por ele, tendo em vista sua fama.

Por causa do entrave, o narrador nos leva a entrar na cabeça


do Cônego para ver o que se passava lá dentro. Ele nos conta
que os substantivos nascem do lado direito do cérebro e os
adjetivos, do lado esquerdo. Em diálogos com uma leitora,
o narrador avisa para não se assustar, pois ele mesmo tinha
descoberto isso. E acrescenta que as palavras têm sexo,
relacionam-se e se casam. Essa junção se chama estilo.

O Cônego se levanta, caminha, espairece e torna a sentar


para escrever. Metaforizando o substantivo e o adjetivo
respectivamente como Sílvio e Sílvia, o narrador fala da
relação de busca entre os dois. E eis que, finalmente, Sílvio
encontra Sílvia, ou seja, o Cônego consegue encontrar o
adjetivo que tanto buscava para acompanhar o substantivo.

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A FALÊNCIA (1901) importante da autora. A seguir, aspectos importantes a serem
destacados:
JÚLIA LOPES DE ALMEIDA
• Tematiza o adultério;
Sobre a autora: • Uso de determinismo;
Júlia Valentim da Silveira Lopes de Almeida (1862 – 1934) • Análise social;
foi romancista, cronista, contista, teatróloga e abolicionista • Narrador em 3ª pessoa, onisciente;
brasileira. Defendeu a educação para as mulheres, o divórcio • Linguagem simples, mas não precarizada;
e o voto feminino. Foi uma das idealizadoras da Academia • Tempo: final do séc. XIX;
Brasileira de Letras, porém, por causa do machismo • Espaço: Rio de Janeiro;
acadêmico instalado no país, sua participação foi vetada, • Falência: financeira, moral, de estilo e familiar.
permanecendo a ABL composta apenas por homens. Seu
estilo de escrita mescla traços realistas e naturalistas. Principais Personagens:
- Francisco Teodoro: português, consegue ficar rico
Foi pioneira na escrita de literatura infanto-juvenil com como comerciante de café no Brasil; possui práticas e
Contos infantis (1886) escrito em parceria com sua irmã. Sua comportamentos conservadores.
literatura é essencialmente feminina, feito por mulher, para - Camila: jovem bastante bonita com família desestruturada;
mulheres. aceita o casamento por conveniências.
- Mário: filho mais velho de Camila e Teodoro. Gosta de
Sobre a obra: festas, mas não de trabalhar.
Romance publicado em 1901 é considerado o mais - Ruth: segunda filha do casal. Gosta de artes e toca piano.

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- Raquel e Lia: gêmeas caçulas de Teodoro e Camila. situação financeira, então o casamento seria um bom negócio
- Nina: sobrinha de Camila que mora com eles. para os dois lados. O casamento acontece e uma família é
- Noca: empregada. constituída. Com o passar do tempo, nascem os filhos do casal,
- Capitão Rino: apaixonado por Camila, gosta de aventuras pelo mar. totalizando quatro. Além deles, na mansão moravam Nina e Noca.
- Dr. Gervásio: homem culto e próximo à família. Médico.
Tem um caso com Camila. O filho mais velho do casal, Mario, cresce com todas as
- Inocêncio Braga: propõe negócio de risco a Teodoro. regalias financeiras que a família poderia proporcionar e,
desfrutando de sua posição de herdeiro, gasta bastante
Resumo da obra: dinheiro em festas, bebidas, namoricos e prostitutas. Sua
prima Nina era perdidamente apaixonada por ele, mas é
Francisco Teodoro é um português que chegou ao Brasil ignorada, o que a deixa muito triste.
bastante pobre. Com seu trabalho e sua vontade de mudar
de vida, torna-se um grande comerciante de café, até figurar Chega uma época que Ruth, a segunda filha do casal, adoece e o
como um dos mais importantes negociantes do produto no Dr. Gervásio é chamado para trata-la. O médico consegue curar
país. Como passou a vida toda preocupado com o trabalho, a moça e, a partir dali, os laços entre ele e a família de Teodoro
dá-se conta de que precisava constituir uma família para se estreitam. Ele vira tão íntimo da família que passa o tempo
gerar herdeiros. todo no palacete opinando sobre tudo, desde a disposição
dos móveis às músicas tocadas por Ruth. Gervásio influencia
Como seu objetivo não era casar por amor, não se esmera também na sofisticação das roupas, principalmente as de
na seleção da moça perfeita e, com a ajuda de um amigo, Camila, além de deixar seus hábitos mais requintados. Camila
conhece Camila. A família dela não passava por uma boa apaixona-se pelo médico, mas ele, seguindo a postura machista

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e patriarcal da época, só vai se encantar pela mulher quando ela Camila intervenha na situação. Quando ela vai conversar com
está aos moldes dele, como se fosse sua própria criatura. o rapaz, ele revela que sabe de seu adultério e não admite
que ela o repreenda. Desesperada, Camila passa a querer
Inicialmente Camila tenta resistir, mas não dura muito que seu filho case com Paquita, o que o afastaria da questão.
tempo e inicia um relacionamento com Gervásio. Para aliviar Mario e Paquita ficam juntos, mas logo Camila se arrepende,
seu sentimento de culpa, apoia-se ao fato de saber que pois a nora a trata com desdém e frieza.
seu marido também tem casos fora do casamento. Várias
pessoas ficam sabendo, mas nunca entregam os dois, tanto Surge, então, Inocêncio Braga, que quer convencer Teodoro
que Teodoro nunca desconfiou e segue confiando decisões a investir em um negócio especulativo que promete lucros
importantes ao médico e amigo. altos. Inicialmente Teodoro declina, mas a sua ambição fala
mais alto. Francisco Teodoro finalmente entra na sociedade
Paralelamente a isso, outros núcleos de personagens nos que Braga ofereceu. Com o passar das semanas, o preço do
são apresentados, destacando-se o Capitão Rino, que ama café tem uma queda repentina no mercado internacional.
Camila intensamente, mas não é correspondido; as tias Vários comerciantes quebraram, e Teodoro teme o pior, o que
Joana e Itelvina, bastante conservadoras, que maltratam sua realmente acontece: seu negócio foi à falência.
empregada e ficam comentando sobre o adultério de Camila;
e Catarina, irmã do Capitão Rino, mulher independente, tanto Francisco Teodoro, agora sem dinheiro, sem posses, sem sua
no âmbito financeiro quanto pessoal. empresa e sem ter o que fazer para contornar o prejuízo, fica
desesperado e suicida-se. Sua família se vê na miséria (exceto
Como Mário não gostava de trabalhar e era bastante Mário, que se casou com Paquita, de família rica). Camila,
irresponsável, seu pai, cansado dessas atitudes, exige que Ruth, Lia, Raquel, Nina e Noca mudam-se para uma casinha

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humilde que Nina havia ganhado do tio em um aniversário e
tentam seguir a vida.

Passado pouco tempo, Mário vai visitar a família na casinha


e encontra o Dr. Gervásio lá. Xinga sua mãe, receber o
amante a poucos dias da morte de seu pai. Com isso, resolve
tirar a guarda das gêmeas da posse de Camila. Sem saber o
que fazer, Camila vai procurar Dr. Gervásio com esperança
de salvação. Como os dois mantinham um relacionamento
por amor, propõe casamento a ele, o que, a princípio, seria
providencial a ambos. No entanto, ele revela que não poderia
casar-se legalmente, pois já tinha esposa. Mesmo separado
de sua mulher (por ela também ser adúltera), ela não permitiu
o divórcio, o que mantinha Gervásio preso.

Agora, “viúva pela segunda vez”, Camila resolve seguir a vida


com as outras mulheres de sua casa, sem que precisassem
depender de homem algum. Ruth passa a ganhar dinheiro
com aulas particulares de música; Nina costura para clientes
e Noca passa roupa. Camila consegue recuperar a guarda de
suas filhas gêmeas, cuida delas e as mantém consigo.

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CORAL E OUTROS POEMAS (2018)
SOPHIA DE MELLO BREYNER
Sophia (1919-2004) foi uma das mais importantes poetisas Autora de diversos livros de poesia escreveu também contos,
portuguesas do século XX. Foi a primeira mulher portuguesa artigos, ensaios e peça teatral. Traduziu para o português as
a receber o mais importante galardão literário da língua obras de Eurípedes, Shakespeare, Dante e Claudel. Para o
portuguesa, o Prémio Camões, em 1999. Desde 2014 está no francês traduziu Camões, Mário Sá-Carneiro, Cesário Verde,
Panteão Nacional. Estudou Filosofia Clássica na Universidade Fernando Pessoa, entre outros.
de Lisboa, entre 1936 e 1939, sem concluir o curso.
Participou de movimentos universitários. Em 1940 publicou A obra:
seus primeiros versos nos “Cadernos de Poesia”. Embora seja uma das maiores poetas lusitanas —ela ganhou o
Prêmio Camões em 1999—, os leitores brasileiros não deram
Sophia de Mello Breyner participou ativamente da oposição muita atenção para Sophia. Uma antologia, organizada por Vilma
ao Estado Novo. Foi candidata pela oposição Democrática Arêas, havia saído em 2004, ano da morte da autora, e está
nas eleições legislativas de 1968. Foi sócia fundadora da esgotada. Contudo, com a chegada às livrarias de “Coral e Outros
Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos. Após Poemas”, antologia organizada por Eucanaã Ferraz que cobre toda
a Revolução de abril de 1974 foi candidata à Assembleia a produção da autora, incluindo versos póstumos, ganhamos uma
Constituinte pelo Partido Socialista em 1975. nova oportunidade para “descobrir” Sophia e sua lírica.

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Características: • Metapoesia: a manifestação da essência da realidade;
• Tendo iniciado a publicação das suas obras nos anos 40, • A experiência como forma de conhecimento;
Sophia nunca se encaixou em nenhuma escola literária e nas • O essencial nos versos de Sophia é a perseguição do real
suas entrevistas sempre salientou a sua resistência às escolas segundo a própria autora revela: “Sempre a poesia foi para
literárias e o seu terror delas. mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um
• Sophia não traz novidades de estilo ou técnica; resguarda- círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro
se na forma clássica de expressão poética. do real fica preso.”
• Adoração pelo mundo grego: o helenismo transborda por • O desejo por revolução libertária: Sophia foi uma forte opositora
toda sua poesia; do salazarismo. Em um poema, chama Salazar de “o velho abutre”.
• A natureza —e o mar, mais do que tudo— cruza a obra de E, na Revolução dos Cravos, em 1974, as pessoas carregavam
Sophia do começo ao fim. É uma poeta em que o tom elevado cartazes com uma frase criada por ela: “A poesia está na rua”.
está em contraste com a escrita enxuta, muito clara, cheia • Sophia foi próxima de muitos intelectuais brasileiros, como
de substantivos concretos —estilo que a torna uma autora Manuel Bandeira e Murilo Mendes. Teve um diálogo próximo,
acessível para quem não é leitor habitual de versos. até pelas características das duas obras, com João Cabral de
• Natureza: espaço no qual encontra inspiração para Melo Neto. Um dos livros na antologia, “O Cristo Cigano”, é
construir um universo mais harmonioso; o Mar; essencialmente cabralino.

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Poemas principais: Eras uma vela bebendo o vento dos espaços
Eras o gesto luminoso de dois braços
Mar Abertos sem limite.
I Eras a pureza e a força do mar
De todos os cantos do mundo Eras o conhecimento pelo amor.
Amo com um amor mais forte e mais profundo Sonho e presença
Aquela praia extasiada e nua, De uma vida florindo
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua. Possuída e suspensa.
II Eras a medida suprema, o cânon eterno
Cheiro a terra as árvores e o vento Erguido puro, perfeito e harmonioso
Que a Primavera enche de perfumes No coração da vida e para além da vida
Mas neles só quero e só procuro No coração dos ritmos secretos.
A selvagem exalação das ondas
Subindo para os astros como um grito puro. Cidade
Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,
Apolo Musageta Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,
Eras o primeiro dia inteiro e puro Saber que existe o mar e as praias nuas,
Banhando os horizontes de louvor. Montanhas sem nome e planícies mais vastas
Eras o espírito a falar em cada linha Que o mais vasto desejo,
Eras a madrugada em flor E eu estou em ti fechada e apenas vejo
Entre a brisa marinha. Os muros e as paredes, e não vejo

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Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas. De uso universal
Saber que tomas em ti a minha vida A tornou tão aguda
E que arrastas pela sombra das paredes O poeta João Cabral
A minha alma que fora prometida Que agora ela aparece
Às ondas brancas e às florestas verdes. Azul e afiada
No gume do poema
Mar sonoro Atravessando a história
Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim, Por João Cabral contada.
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz O velho abutre
Segue o mais secreto bailar do meu sonho, O velho abutre é sábio e alisa as suas penas
Que momentos há em que eu suponho A podridão lhe agrada e seus discursos
Seres um milagre criado só para mim. Têm o dom de tornar as almas mais pequenas

Coral Manuel Bandeira


Ia e vinha Este poeta está
E a cada coisa perguntava Do outro lado do mar
Que nome tinha. Mas reconheço a sua voz há muitos anos
E digo ao silêncio os seus versos devagar
A palavra faca Relembrando
A palavra faca O antigo jovem tempo tempo quando

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Pelos sombrios corredores da casa antiga Estes poemas caminharam comigo e com a brisa
Nas solenes penumbras do silêncio Nos passeados campos da minha juventude
Eu recitava Estes poemas poisaram a sua mão sobre o meu ombro
“As três mulheres do sabonete Araxá” E foram parte do tempo respirado
E minha avó se espantava
Manuel Bandeira era o maior espanto da minha avó 25 de Abril
Quando em manhãs intactas e perdidas Esta é a madrugada que eu esperava
No quarto já então pleno de futura O dia inicial inteiro e limpo
Saudade Onde emergimos da noite e do silêncio
Eu lia E livres habitamos a substância do tempo
A canção do “Trem de ferro”
E o “Poema do beco” Revolução
Tempo antigo lembrança demorada Como casa limpa
Quando deixei uma tesoura esquecida nos ramos da cerejeira Como chão varrido
Quando Como porta aberta
Me sentava nos bancos pintados de fresco Como puro início
E no Junho inquieto e transparente Como tempo novo
As três mulheres do sabonete Araxá Sem mancha nem vício
Me acompanhavam Como a voz do mar
Tão visíveis Interior de um povo
Que um eléctrico amarelo as decepava Como página em branco

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Onde o poema emerge Nestes últimos tempos
Como arquitectura Nestes últimos tempos é certo a esquerda fez erros
Do homem que ergue Caiu em desmandos confusões praticou injustiças
Sua habitação Mas que diremos da longa tenebrosa e perita
Degradação das coisas que a direita pratica?
Liberdade Que diremos do lixo do seu luxo — de seu
O poema é Viscoso gozo da nata da vida — que diremos
A liberdade De sua feroz ganância e fria possessão?
Um poema não se programa Que diremos de sua sábia e tácita injustiça
Porém a disciplina Que diremos de seus conluios e negócios
— Sílaba por sílaba — E do utilitário uso dos seus ócios?
O acompanha Que diremos de suas máscaras álibis e pretextos
Sílaba por sílaba De suas fintas labirintos e contextos?
O poema emerge Nestes últimos tempos é certo a esquerda muita vez
— Como se os deuses o dessem Desfigurou as linhas do seu rosto
O fazemos Mas que diremos da meticulosa eficaz expedita
Degradação da vida que a direita pratica?

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SÃO BERNARDO (1934)
GRACILIANO RAMOS
Paulo Honório, bem sucedido fazendeiro de Alagoas, atua Após a prisão, sai da cadeia com o intuito de acumular
como personagem – narrador. A história nos é relatada riquezas. Cansado de vagar pelo sertão, resolve morar em
num tempo posterior aos fatos. Ou seja, Paulo, agora com Viçosa (cidade de Alagoas) buscando adquirir a fazenda São
cinquenta anos, relata-nos algumas de suas experiências Bernardo na qual havia trabalhado na infância. Com a morte
buscando avaliação de si mesmo. Durante o primeiro capítulo, de Salustiano Padilha, o herdeiro, Luís Padilha, assume a
o narrador relata sua tentativa de buscar ajuda com os amigos fazenda. Este, por sua vez, perde-se em jogatina e bebida,
na árdua tarefa de escrever sobre sua vida, todavia, Paulo sendo alvo fácil para Paulo Honório. Após emprestar muito
Honório conclui que o melhor é executar sozinho seu projeto dinheiro para o herdeiro, Paulo atinge seu objetivo e adquire
autobiográfico: Começo declarando que me chamo Paulo a fazenda. Assim, com verdadeira fúria, o narrador nos relata
Honório, peso oitenta e nove quilos e completei cinquenta como se deu o processo de modernização da fazenda: Efetuei
anos pelo São Pedro. A idade, o peso, as sobrancelhas transações arriscadas, endividei-me, importei maquinismos
cerradas e grisalhas, este rosto vermelho e cabeludo, têm- e não prestei atenção aos que me censuravam por querer
me rendido muita consideração. Quando me faltavam estas abarcar o mundo com as pernas. Com a ajuda do fiel capanga
qualidades, a consideração era menor. Casimiro Lopes, Paulo começa a erguer um império em sua
São Bernardo. Manda buscar a negra Margarida, sua mãe
Em sua tumultuada adolescência, Paulo com 18 anos é de criação, e a instala na fazenda. Com o desenvolvimento
preso por esfaquear um rapaz na disputa por uma moça. espantoso da fazenda, Paulo atrai a atenção e a amizade

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das pessoas influentes da região, como o jornalista Azevedo Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci
Gondim, o advogado João Nogueira e o Padre Silvestre. tudo de uma vez (...) a culpa foi minha, ou antes, a culpa foi
Ao receber a visita do governador do estado nota que a desta vida agreste, que me deu uma alma agreste. Com tal
construção de uma escola na fazenda para os filhos dos reflexão, o narrador – personagem inicia o relato de inúmeras
funcionários agradaria o governo. Assim, mesmo contrariado, discussões entre o casal. Os pensamentos filantrópicos da
Paulo Honório constrói uma escola, convidando Luís Padilha, jovem professora Madalena contrapunham-se aos ideais
antigo herdeiro, para ministrar as aulas. capitalistas que pregava Paulo Honório. Porém, a grande
causa da tragédia maior do romance será o ciúme doentio
Amanheci um dia pensando em casar. Assim, o narrador que despertará no fazendeiro: comecei a sentir ciúmes.
nos informa a sua busca por um casamento que lhe desse
um herdeiro para continuar a tocar sua fazenda. Certo dia, Paulo Honório, então, ao sair de seu escritório encontra
na casa do juiz conhece uma jovem loira e bonita que lhe uma folha de papel e logo reconhece a letra de sua esposa.
desperta interesse. A jovem estava acompanhada por sua tia, Acreditando cegamente ser aquilo uma carta endereçada
D. Gloria. O diálogo no qual o narrador faz a proposta de a um amante, o fazendeiro conclui que finalmente obteve
casamento à Madalena demonstra explicitamente que, para a prova que precisava. Sai ao encontro de Madalena que
Paulo Honório, o casamento era visto muito mais como mais estava na capela. A conversa é marcada pelo momento de
um negócio do que algo sentimental: - Resolvi escolher uma maior tensão do romance, pois Paulo exige saber para quem
companheira. E como a senhora me quadra... sim como me era a carta e Madalena, tranquilamente, apenas lhe informa
engracei da senhora quando a vi pela primeira vez... (...) se que o restante da carta está no escritório. Paulo Honório
chegarmos a acordo, quem faz um negocio supimpa sou eu. adormece na capela. Ao voltar para sua casa se depara com

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o trágico desfecho: Entrei apressado, atravessei o corredor do
lado direito e no meu quarto dei com algumas pessoas soltando
exclamações. Arredei-as e estaquei: Madalena estava estirada
na cama, branca, de olhos vidrados, espuma nos cantos da boca.

Passado não muito tempo, d. Glória e seu Ribeiro, o idoso


contabilista que se afeiçoara a Madalena, deixam a fazenda. A
Revolução de 30 explode. Padre Silvestre e Luís Padilha, este
acompanhado de uma dezena de caboclos de São Bernardo,
aderem. A profunda crise econômica que se abate sobre o
país atinge também São Bernardo e Paulo Honório começa
a enfrentar dificuldades em vista da queda dos preços dos
produtos agrícolas, da alta do dólar e do corte do crédito.
Melancolicamente, Paulo Honório conclui: - Estraguei a minha
vida estupidamente. Penso em Madalena com insistência. Se
fosse possível recomeçarmos, aconteceria exatamente o que
aconteceu. Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um
aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro,
nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz
enorme, uma boca enorme, dedos enormes. Se Madalena me
via assim, com certeza me achava extraordinariamente feio.

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AS MENINAS (1973)
LYGIA FAGUNDES TELLES
Em As Meninas, de Lygia Fagundes Telles, acompanhamos presente que culminam com a morte de Ana Clara no
a trajetória de três jovens estudantes universitárias que desfecho da obra. Abaixo, segue um resumo comparativo das
moram no Pensionato Nossa Senhora de Fátima, pensão informações que, aos poucos, como numa colcha de retalhos,
feminina administrada pela Madre Alix. A cidade na qual se absorvemos da narrativa. Dois aspectos são mais importantes
desenvolve a trama jamais é citada, mas somos levados a e – desta forma – têm maiores chances de serem cobrados
crer que se trata de São Paulo. Além disso, também não é no vestibular: as trajetórias individuais de Ana, Lorena e Lia,
datada especificamente a obra e, desta forma, devido a pistas bem como o desfecho da obra.
que a narrativa nos dá, podemos crer que o tempo presente
da obra retrata algo entre o fim dos anos 1960 e o início dos QUADRO COMPARATIVO DAS PROTAGONISTAS:
anos 1970. A narrativa é extremamente psicológica e repleta Lorena Vaz Leme
de inserções memorialísticas – geralmente – em 1° pessoa, • Curso: Direito (apelido: Magnólia Desmaiada)
então, é importante lembrar que – apesar de existir um • Relacionamento Amoroso: à espera de M.N (homem casado)
narrador onisciente ( em 3° pessoa ) há também passagens • Cena Familiar: Pai (morreu no sanatório sem memória);
em 1° pessoa narradas pelas próprias protagonistas. O Mãe (relação com gigolô Mieux); Irmão Remo (diplomata);
enredo do romance se desenvolve – assim – entre os Irmão Rômulo (supostamente morto por Remo na infância)
flashbacks memorialísticos, que nos apresentam a trajetória • Amigos: Guga e Fabrizio
e os dramas de cada protagonista, além de ações no tempo • Memórias: gato Astronauta; a fazenda da família; a

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suposta morte do irmão (rasga-o); pretende escrever um diário; Bissexualidade; Reflexões
• Característica: atitude reflexiva, maternal, postura burguesa sociais: falta de consciência das classes; o desnível entre ricos e
Ana Clara Conceição pobres, as ações da OBAN e DOPS (relatos de tortura)
• Curso: (abandonou) Psicologia
• Relacionamento Amoroso: Max (traficante); suposto noivo O DESFECHO DA OBRA:
rico: “Escamoso” Ana Clara retorna ao pensionato e , como de costume, vai ao
• Cena Familiar: Pai (desconhecido); Mãe (vários amantes, quarto de Lorena. Lorena imediatamente põe Ana no banho,
abortos, suicídio com formicida) pois – também como de costume – ela está alterada ( alcoolismo
• Apelidos: Ana Turva, Deprimida, Coelha e drogadição fazem parte do cotidiano de Ana); Lorena sai do
• Memórias: miséria da infância; suicídio da mãe, molestada quarto para conversar com Lia, enquanto Ana permanece deitada
pelo Dentista, cão Lulu na cama após o banho. Lorena retorna ao quarto e percebe
• Característica: álcool, sexo, drogas, atitude autodestrutiva, que Ana está morta na cama. Lorena chama Lia para o quarto
racismo, busca arrivismo a qualquer custo, mundo fantasioso e, após ambas constatarem que de fato Ana está morta, Lorena
Lia de Melo Schultz tem a ideia de levar o cadáver de Ana para um banco de praça,
• Curso: Ciências Sociais (apelido dado por Lorena: Lião) pois a morte dela no pensionato poderia causar problemas para
• Relacionamento Amoroso: Miguel (ativista preso) elas e para a madre. Lorena, após levar, na companhia de Lia, o
• Cena Familiar: Pai (Paul, alemão, ex-nazista); Mãe (Dionísia, baiana) cadáver de Ana para uma praça, despede-se da amiga. Desta
• Apelido: Lião, Rosa (nome falso usado no “aparelho”) forma, o desfecho nos indica que nenhuma das protagonistas
• Amigos: Pedro e Bugre, do “aparelho” permanecerá no pensionato, pois Ana está morta na praça, Lorena
• Característica: atitude combativa / empoderamento está retornando à casa da mãe e Lia está arrumando as malas para
feminino + luta contra ditadura; Escreve um romance viajar para a Argélia e encontrar seu namorado Miguel.

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ÁLBUM CONSTRUÇÃO (1971)
CHICO BUARQUE
Uma breve biografia
Francisco Buarque de Hollanda nasceu no Rio de Janeiro, em 1966 e 1970 e é marcado pelo lançamento de quatro discos,
1944, Chico Buarque é um dos mais aclamados cancionistas do todos carregando o nome do autor como título: Chico
país. Filho do historiador Sérgio Buarque de Hollanda – autor Buarque de Hollanda; Chico Buarque de Hollanda Volume
do clássico estudo intitulado Raízes do Brasil – e de Maria 2; Chico Buarque de Hollanda Volume 3 e Chico Buarque de
Amélia Cesário Alvim, mulher intelectual e pianista amadora, Hollanda – nº 4. Grandes sucessos surgem nesse período:
Chico cresceu em uma casa com fácil acesso à literatura, A banda, Pedro Pedreiro, Com açúcar, com afeto e Retrato
música e artes em geral. Artista multifacetado, escreveu em branco e preto. É desse período também sua primeira
romances, peças de teatro, uma novela, musicou peças teatrais dificuldade com a ditadura militar: a canção Tamandaré é
de outros autores – Morte e vida severina, de João Cabral de censurada em 1966.
Melo Neto, é a mais célebre – e compôs trilhas de cinema, bem
como foi adaptado para as grandes telas. Chico Buarque e a ditadura
Ainda na década de 1960, o autor enfrentou outros
Os primeiros discos e os festivais problemas com a ditadura. Em 1968, o Grupo Oficina encena
Rosto conhecido no meio cultural brasileiro desde 1965, a peça Roda Viva. Essa montagem torna-se famosa graças
quando participa do I Festival Nacional da Canção, o primeiro a um evento de intensa violência: o CCC, Comando de
momento da carreira de Chico Buarque se estende entre Caça aos Comunistas, invadiu o teatro, destruiu o cenário e

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espancou os atores. Dali em diante, Chico acabou entrando Deus lhe pague
em uma espécie de lista não-oficial de artistas tidos como Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
perigosos: ao longo da década de 1970, diversas canções de A certidão pra nascer, e a concessão pra sorrir
sua autoria foram censuradas, forçando o autor a aprimorar Por me deixar respirar, por me deixar existir
formas de driblar os censores, a fim de que pudesse seguir Deus lhe pague
comentando a situação nacional. São célebres os casos de
Apesar de você e de Cálice. Antes da chegada dos anos 1970, Pelo prazer de chorar e pelo “estamos aí”
contudo, Chico parte para um período de autoexílio na Itália. Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir
Um crime pra comentar e um samba pra distrair
Construção (1971) Deus lhe pague
Chico Buarque voltava ao Brasil após o período no
exílio decidido a deixar de lado a marca de “Noel Rosa Por essa praia, essa saia, pelas mulheres daqui
contemporâneo” e se envolver mais claramente no debate O amor malfeito depressa, fazer a barba e partir
social da época. Lançado em 1971, Construção representa Pelo domingo que é lindo, novela, missa e gibi
uma virada na carreira do autor: o disco traz arranjos mais Deus lhe pague
complexos, letras construídas com grande apuro formal e,
como cereja do bolo, uma crítica à estrutura social brasileira. Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
O disco não versará diretamente contra os ditadores, mas Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir
trabalhará claramente os aspectos sociais do tempo, que terá Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair
a ditadura como pano de fundo. Deus lhe pague

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Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir Cotidiano
Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir Todo dia ela faz tudo sempre igual
E pelo grito demente que nos ajuda a fugir Me sacode às seis horas da manhã
Deus lhe pague Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã
Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir Todo dia ela diz que é pr’eu me cuidar
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir E essas coisas que diz toda mulher
Deus lhe pague Diz que está me esperando pr’o jantar
E me beija com a boca de café
COMENTÁRIO: Canção de forte teor crítico à condição
brasileira durante o período ditatorial, apresenta um sujeito Todo dia eu só penso em poder parar
cancional tem por interlocutor uma figura de poder (ditadores), Meio-dia eu só penso em dizer não
que mantém controle sobre a existência do eu lírico, incapaz Depois penso na vida pra levar
de reagir. Disso surge o refrão “Deus lhe pague”. O refrão E me calo com a boca de feijão
possui tom irônico de agradecimento pelos direitos que esse
sujeito tem, desde os mais básicos, como nascer e existir, Seis da tarde como era de se esperar
passando pelo direito a ter alguns lazeres que o alienem da Ela pega e me espera no portão
vida – o futebol, o samba, as notícias, o bar –, até o direito à Diz que está muito louca pra beijar
“paz derradeira que enfim vai nos redimir”, a morte. E me beija com a boca de paixão

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Toda noite ela diz pr’eu não me afastar Desalento (Chico Buarque e Vinícius de Moraes)
Meia-noite ela jura eterno amor Sim, vai e diz
E me aperta pr’eu quase sufocar Diz assim
E me morde com a boca de pavor Que eu chorei
Que eu morri
Todo dia ela faz tudo sempre igual De arrependimento
Me sacode às seis horas da manhã Que o meu desalento
Me sorri um sorriso… Já não tem mais fim
Vai e diz
COMENTÁRIO: A partir da perspectiva masculina, os versos Diz assim
tratam da rotina de um casal. É uma letra essencialmente Como sou
narrativa, em que somos apresentados à atividade matinal do Infeliz
casal. Na terceira estrofe, há uma mudança de foco; vemos No meu descaminho
uma breve reflexão do sujeito lírico, que “só pensa em parar”; Diz que estou sozinho
contudo, logo “pensa na vida pra levar” e “se cala com a E sem saber de mim
boca de feijão”, percebendo-se preso àquele trabalho pela
necessidade de sustento. Nas estrofes finais, o sujeito retorna Diz que eu estive por pouco
para o lar ao entardecer, após o expediente no emprego, onde Diz a ela que estou louco
a figura feminina o aguarda, como era o esperado, e o beija Pra perdoar
com paixão. À noite, o casal divide a cama, quando a mulher Que seja lá como for
jura seu eterno amor e aperta o companheiro contra si. Por amor

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Por favor Construção
É pra ela voltar Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
Sim, vai e diz E cada filho seu como se fosse o único
Diz assim E atravessou a rua com seu passo tímido
Que eu rodei
Que eu bebi Subiu a construção como se fosse máquina
Que eu caí Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Que eu não sei Tijolo com tijolo num desenho mágico
Que eu só sei Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Que cansei, enfim
Dos meus desencontros Sentou pra descansar como se fosse sábado
Corre e diz a ela Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Que eu entrego os pontos Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
COMENTÁRIO: A letra possui uma métrica variada e trata de um eu
lírico que pede a um mensageiro – em uma possibilidade de leitura, E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
pode-se apontar que esse mensageiro é a própria canção, fazendo com E flutuou no ar como se fosse um pássaro
que essa faixa assuma um caráter metaliterário – que “vá e diga” que E se acabou no chão feito um pacote flácido
está abatido e perdido na vida, sem sua companheira. No encerramento, Agonizou no meio do passeio público
o eu lírico afirma que está disposto a entregar os pontos. Morreu na contramão, atrapalhando o tráfego

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Amou daquela vez como se fosse o último Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse a única Beijou sua mulher como se fosse lógico
E cada filho seu como se fosse o pródigo Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
E atravessou a rua com seu passo bêbado Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
Subiu a construção como se fosse sólido E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas Morreu na contramão atrapalhando o sábado
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego COMENTÁRIO: Obra-prima do disco, Construção é construída
em versos alexandrinos, que se encerram sempre em palavras
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe proparoxítonas; as proparoxítonas vão se alternando e repetindo
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo ao longo das estrofes, “como se fossem peças, como se tudo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina fosse um jogo, sobre um tabuleiro trágico”, conforme disse Chico
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo em uma entrevista dada em 1972. Esse processo de encaixes
é acompanhado pelo arranjo da canção, lembra o avanço de
E tropeçou no céu como se ouvisse música uma construção em andamento: laje após laje, o trabalhador
E flutuou no ar como se fosse sábado constrói o edifício; palavra após palavra, o autor constrói
E se acabou no chão feito um pacote tímido seu poema-canção. No que diz respeito ao tema da canção,
Agonizou no meio do passeio náufrago acompanhamos a trajetória de um trabalhador da construção
Morreu na contramão atrapalhando o público civil, em seu derradeiro dia: o beijo na mulher e nos filhos, a

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chegado ao emprego, o almoço e a queda fatal; a morte do Eu não vou renunciar
sujeito, entretanto, não causa comoção, apenas incômodo na Fugir
vida cotidiana (um pacote flácido / tímido / bêbado que morreu Ninguém
na contramão atrapalhando o tráfego / o público / o sábado), Ninguém vai me acorrentar
denotando a crítica à automatização da existência, reduzida a Enquanto eu puder cantar
uma peça descartável e esvaziada de valor humano. Ou, para Enquanto eu puder sorrir
retomar o comentário do autor, reduzindo a vida dos sujeitos a
peças no tabuleiro. No encerramento, há o resgate de trechos Ninguém
de Deus lhe pague, atingindo o desfecho da canção. Ninguém vai me ver sofrer
Ninguém vai me surpreender
Cordão Na noite da solidão
Ninguém Pois quem
Ninguém vai me segurar Tiver nada pra perder
Ninguém há de me fechar Vai formar comigo o imenso cordão
As portas do coração E então
Ninguém Quero ver o vendaval
Ninguém vai me sujeitar Quero ver o carnaval
A trancar no peito a minha paixão Sair
Ninguém
Eu não Ninguém vai me acorrentar
Eu não vou desesperar Enquanto eu puder cantar

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Enquanto eu puder sorrir Olha Maria (Chico Buarque, Tom Jobim
Enquanto eu puder cantar e Vinícius de Moraes)
Alguém vai ter que me ouvir Olha, Maria
Enquanto eu puder cantar Eu bem te queria
Enquanto eu puder seguir Fazer uma presa
Enquanto eu puder cantar Da minha poesia
Enquanto eu puder sorrir Mas hoje, Maria
Enquanto eu puder cantar Pra minha surpresa
Enquanto eu puder… Pra minha tristeza
Precisas partir
COMENTÁRIO: A letra contém clara referência ao
período ditatorial; o sujeito cancional possui uma voz Parte, Maria
libertária que aponta a impossibilidade de se censurar as Que estás tão bonita
vozes do povo. Para que essa violação às regras do regime Que estás tão aflita
possa se cumprir e o povo possa retomar sua liberdade, Pra me abandonar
adota-se a metáfora do cordão – fazendo referência aos Sinto, Maria
cordões carnavalescos –, convidando todos à união nesse Que estás de visita
ato de rebeldia que é cantar e sorrir. Assim, vendaval e Teu corpo se agita
carnaval representam um festivo poder transformador, Querendo dançar
e o sujeito cancional afirma que as mudanças serão
alcançadas graças a essa união de forças. Parte, Maria

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Que estás toda nua Corre, Maria
Que a lua te chama Que a vida não espera
Que estás tão mulher É uma primavera
Arde, Maria Não podes perder
Na chama da lua
Maria cigana Anda, Maria
Maria maré Pois eu só teria
A minha agonia
Parte cantando Pra te oferecer
Maria fugindo
Contra a ventania COMENTÁRIO: Carregada de forte lirismo, a letra é constituída
Brincando, dormindo quase totalmente por redondilhas menores, mas alguns versos
Num colo de serra são tetrassílabos. O eu lírico se percebe incapaz de oferecer algo
Num campo vazio a Maria e afirma que, mesmo que desejasse sua permanência
Num leito de rio ela deve partir. Perceba a inversão da expectativa: estamos
Nos braços do mar habituados a ver sujeitos líricos que imploram pela permanência
de seus amores; aqui, contudo, clama-se pela partida do
Vai, alegria outro. Por fim, note a marca da oralidade do título: o verbo
Que a vida, Maria olhar aqui traz a ideia de ouvir, como o registro popular fixou;
Não passa de um dia seria, portanto, um “ouça, Maria”, antecipando a conversa que
Não vou te prender estimularia a partida da amada.

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Samba de Orly (Chico Buarque, E se puder me manda
Toquinho, Vinícius de Moraes) Uma notícia boa
Vai, meu irmão
Pega esse avião COMENTÁRIO: Samba de Orly é mais uma canção que
Você tem razão está vinculada claramente ao contexto político brasileiro.
De correr assim Durante algum tempo no autoexílio, Chico teve a companhia
Desse frio do violinista Toquinho, seu grande amigo e parceiro. Um dia
Mas beija antes do retorno ao Brasil, Toquinho apresenta uma melodia
O meu Rio de Janeiro a Chico, que logo escreve os quatro versos finais da letra. O
Antes que um aventureiro samba de Orly, portanto, origina-se na despedida dos dois
Lance mão amigos e trata dessas separações forçadas pela ditadura. Já
no Brasil, Vinícius de Moraes sugere mudanças na letra. No
Pede perdão lugar de “Pela duração / Dessa temporada”, Vinícius propõe
Pela duração (Pela omissão) “Pela omissão / Um tanto forçada”, Buarque e Toquinho
Dessa temporada (Um tanto forçada) aceitam as alterações, e o Poetinha se torna parceiro na
Mas não diga nada canção. Todavia, a censura veta apenas os dois versos de
Que me viu chorando Vinícius; a letra, então, volta à versão original; o nome de
E pros da pesada Moraes, entretanto, segue como autor da composição. Por
Diz que eu vou levando fim, uma curiosidade que pode ser útil: Toquinho, ao voltar
Vê como é que anda da Itália, saiu do aeroporto de Fiumicino, em Roma; todavia,
Aquela vida à toa como um número expressivo de exilados brasileiros vivia

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em Paris, os artistas optaram por uma licença poética para E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou
intitular a canção, adotando o nome do aeroporto de Orly, E foi tanta felicidade que toda cidade enfim se iluminou
que era a grande porta de entrada de brasileiros desterrados E foram tantos beijos loucos
em terras europeias. Tantos gritos roucos como não se ouvia mais
Que o mundo compreendeu
Valsinha (Chico Buarque e Vinícius de Moraes) E o dia amanheceu
Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar Em paz
Olhou-a de um jeito muito mais quente do que sempre
costumava olhar COMENTÁRIO: Na canção, a figura masculina retorna do dia
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar no trabalho e age de forma diferente do costumeiro. No lugar
E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto dos resmungos contra vida, o homem contempla a parceira
convidou-a pra rodar com um olhar apaixonado e a convida pra rodar, um convite
que pode ser para dar um passeio ou dançar. No segundo
E então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar momento, o foco da letra se desloca para a mulher, que se
Com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar faz bonita como há muito tempo não ousava. O casal então
Depois os dois deram-se os braços como a muito tempo não vai até a praça e lá, cheios de ternura, namoram e dançam. A
se usava dar alegria e a graça dos dois atinge um grau de encantamento
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram que leva toda a cidade a se iluminar, e ao fim o casal se ama
a se abraçar com intensidade.

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Minha história (Gesù Bambino) A mostrar que ali estava bem mais que uma simples criança
(Chico Buarque / Dalla-Pallottino) E não sei bem se por ironia ou se por amor
Versão em português de Chico Buarque do original Resolveu me chamar com o nome do Nosso Senhor
“Gesù Bambino”, de Lucio Dalla e Paola Pallotino
Minha história é esse nome que ainda hoje carrego comigo
Ele vinha sem muita conversa, sem muito explicar Quando vou bar em bar, viro a mesa, berro, bebo e brigo
Eu só sei que falava e cheirava e gostava de mar Os ladrões e as amantes, meus colegas de copo e de cruz
Sei que tinha tatuagem no braço e dourado no dente Me conhecem só pelo meu nome de Menino Jesus (2x)
E minha mãe se entregou a esse homem perdidamente
COMENTÁRIO: Minha história é uma versão que Chico
Ele assim como veio partiu não se sabe pra onde Buarque faz de uma canção italiana de autoria de Paola
E deixou minha mãe com o olhar cada dia mais longe Pallotiino e Lúcia Dalla. O sujeito cancional é um marginal
Esperando, parada, pregada na pedra do porto sem pai conhecido e filho de uma prostituta. As poucas
Com seu único velho vestido cada dia mais curto informações sobre a figura paterna são vagas: “Eu só sei que
falava e cheirava e gostava de mar / Sei que tinha tatuagem
Quando enfim eu nasci minha mãe embrulhou-me num manto no braço e dourado no dente”; a mãe, sofrendo por esse
Me vestiu como se eu fosse assim uma espécie de santo amor fugidio, diariamente se postava no porto, “esperando,
Mas por não se lembrar de acalantos, a pobre mulher parada, pregada na pedra do porto”, com o “único velho
Me ninava cantando cantigas de cabaré vestido cada dia mais curto”. Apenas quando o sujeito
cancional nasce nos é revelado que a figura materna era uma
Minha mãe não tardou a alertar toda a vizinhança prostituta, que o nina com cantigas de cabaré. Para o nome

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do filho, a pobre mulher escolhe o nome de Jesus. A escolha, COMENTÁRIO: Aparentemente despretensiosa, a canção,
diz o eu cancional, talvez seja uma ironia, talvez seja uma já no primeiro verso, mostra criatividade do autor, quando
opção amorosa. Ao final da canção, o sujeito lírico afirma que Buarque aproveita a semelhança sonora entre a última sílaba
seu nome é a síntese de sua própria história: como Cristo, de uma palavra com a primeira sílaba da seguinte para,
também ele anda entre ladrões e meretrizes, que o conhecem através da contração das duas, concatenar os dois vocábulos:
apenas pelo nome de Menino Jesus. “Dorme, minha pequena. Dor’minha pequena”. O verso
toma uma nova feição: “Dor, minha pequena”. Na sequência,
Acalanto vemos a afirmação do sujeito cancional de que a criança que
Dorme minha pequena dorme deve assim seguir, pois o mundo não vale a pena, é
Não vale a pena despertar (2x) um mundo de dor, expressando o desalento paterno de criar
Eu vou sair um filho em uma sociedade caracterizada pelo autoritarismo
Por aí afora militar. O eu lírico afirma, por fim, que sairá por aí atrás de um
Atrás da aurora mundo mais sereno.
Mais serena
OBS: adotou-se algumas nomenclaturas ao longo do
comentário: sujeito cancional / eu cancional / sujeito lírico.
Todos representam a mesma ideia, a da voz que se expressa
na canção e que costumamos chamar, em poesia, de eu lírico.

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BAGAGEM (1976)
ADÉLIA PRADO
Com uma linguagem poética transcendente, Adélia Prado • Poesia de Vitral : mosaico de acontecimentos
estreou no cenário literário brasileiro na década de 1970. • Memorialismo: infância, pai, mãe, experiências
Escrevia desde a adolescência, mas foi só em 1976, aos • O amor e a vida conjugal : presença de erotismo
40 anos, que veio a publicar seu primeiro livro de poemas, • Religiosidade: visão católica
intitulado Bagagem. • O universo feminino: o silenciamento, a condição feminina

PERIODIZAÇÃO DA LÍRICA DE ADÉLIA:


• Pertence à Poesia dos anos 1970 A DIVISÃO DA OBRA:
• Atenção: Adélia não aderiu à Poesia Marginal ( movimento Prefácio Geral:
da época) “Louvai o Senhor, livro meu irmão, com vossas letras e palavras,
com vosso verso e sentido, com vossa capa e forma, com as mãos
CARACTERÍSTICAS IMPORTANTES: de todos que vos fizeram existir, louvai o Senhor.”
• Traços comuns entre a poesia de Drummond e de Adélia: verso Da imitação do “Cântico das criaturas” de São Francisco de
livre, coloquialismo, tom prosaico e confessional, traços biográficos. Assis, a quem devo a graça deste livro
• Valorização da vida cotidiana de cidade do interior de Minas Gerais
• Simplicidade vocabular : o registro coloquial 1°) O modo poético:
• Prosaísmo: a observação do cotidiano interiorano • prefácio : “Chorando, chorando, sairão espalhando as

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sementes. Cantando, cantando, voltarão trazendo os seus feixes”. 4°) A sarça ardente (II)
(Escrito nos salmos) • Prefácio: ” Tira as sandálias de teus pés, porque a terra em
• 66 poemas que estás é uma terra sagrada.” ( Escrito no Êxodo)
• Temática predominante: o fazer literário • 13 poemas
• Temática predominante: efemeridade, memorialismo

2°) Um jeito e amor 5°) Alfândega


• Prefácio:” Conformai-me com flores, fortalecei-me com Não há prefácio
frutos, porque desfaleço de amor.” (Cântico dos Cânticos) 1 poema
• 19 poemas Temática predominante: síntese e desfecho da obra
• Temática predominante: amorosa
PRINCIPAIS POEMAS
COM LICENÇA POÉTICA
3°) A sarça ardente Quando nasci um anjo esbelto,
• Prefácio:” Uma chama de fogo saía do meio de uma desses que tocam trombeta, anunciou:
sarça que ardia sem se consumir.” (Escrito no Êxodo) vai carregar bandeira.
• 14 poemas
• Temática predominante: efemeridade, memorialismo

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Cargo muito pesado pra mulher, a leve palha de um pequeno sonho.
esta espécie ainda envergonhada. Quero o que antes da vida
Aceito os subterfúgios que me cabem, foi o profundo sono das espécies,
sem precisar mentir. a graça de um estado.
Semente.
Não tão feia que não possa casar, Muito mais que raízes.
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor. POEMA ESQUISITO
Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina. Dói-me a cabeça aos trinta e nove anos.
Inauguro linhagens, fundo reinos Não é hábito. É rarissimamente que ela dói.
— dor não é amargura. Ninguém tem culpa.
Minha tristeza não tem pedigree, Meu pai. Minha mãe descasaram seus fardos,
já a minha vontade de alegria, não existe mais modo
sua raiz vai ao meu mil avô. de eles terem seus olhos sobre mim.
Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem. Mãe, ô mãe, ô pai, meu pai. Onde estão escondidos?
Mulher é desdobrável. Eu sou. É dentro de mim que eles estão.
Não fiz mausoléu pra eles, pus os dois no chão
EXAUSTO Nasceu lá, pois quis um pé de saudade roxa,
Eu quero uma licença de dormir, que abunda nos cemitérios.
perdão pra descansar horas a fio, Quem plantou foi o vento, a água da chuva.
sem ao menos sonhar Quem vai matar é o sol.

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Passou finados não fui lá, aniversário também não. da comum e da dobrada.
Pra quê, se pra chorar qualquer lugar me cabe? Amor feinho é bom porque não fica velho.
É de tanto lembrá-los que eu não vou. Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:
Ôôôô pai eu sou homem você é mulher.
Ôôôô mãe Amor feinho não tem ilusão,
Dentro de mim respondem o que ele tem é esperança:
tenazes e duros, eu quero amor feinho..
Porque o zelo do espírito é sem meiguices,
Ôôôôi fia. UM JEITO
Meu amor é assim, sem nenhum pudor.
AMOR FEINHO Quando aperta eu grito da janela
Eu quero amor feinho. — ouve quem estiver passando —
Amor feinho não olha um pro outro. ô fulano, vem depressa.
Uma vez encontrado é igual fé, Tem urgência, medo de encanto quebrado,
não teologa mais. é duro como osso duro.
Duro de forte, o amor feinho é magro, doido por sexo Ideal eu tenho de amar como quem diz coisas:
e filhos tem os quantos haja. quero é dormir com você, alisar seu cabelo,
Tudo que não fala, faz. espremer de suas costas as montanhas pequenininhas
Planta beijo de três cores ao redor da casa de matéria branca. Por hora dou é grito e susto.
e saudade roxa e branca, Pouca gente gosta.

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DONA DOIDA do barroco na música e o Rio de Janeiro
Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso que visitei uma vez e me deixou suspensa.
com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora. ‘Não serve’, disseram. E exigiram
Quando se pôde abrir as janelas, a língua estrangeira que não aprendi,
as poças tremiam com os últimos pingos. o registro do meu diploma extraviado
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema, no Ministério da Educação, mais taxa sobre vaidade
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos. nas formas aparente, inusitada e capciosa — no que
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora, estavam certos — porém dá-se que inusitados e capciosos
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe. foram seus modos de detectar vaidades.
A mulher que me abriu a porta riu de dona tão velha, Todas as vezes que eu pedia desculpas diziam:
com sombrinha infantil e coxas à mostra. ‘Faz-se de educado e humilde, por presunção’,
Meus filhos me repudiaram envergonhados, e oneravam os impostos, sendo que o navio partiu
meu marido ficou triste até a morte, enquanto nos confundíamos.
eu fiquei doida no encalço. Quando agarrei meu dente e minha viagem ao Rio,
Só melhoro quando chove. pronto a chorar de cansaço, consumaram:
‘Fica o bem de raiz pra pagar a fiança’.
ALFÂNDEGA Deixei meu dente.
O que pude oferecer sem mácula foi Agora só tenho três reféns sem mácula.
meu choro por beleza ou cansaço,
um dente exraizado,
o preconceito favorável a todas as formas

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FELIZ ANO VELHO (1982)
MARCELO RUBENS PAIVA
A questão Rubens Paiva: no contexto de produção da obra, Resumo dos capítulos:
o autor apresenta um relato pessoal sobre o desaparecimento 1. Biiiiiiin – a descrição do acidente, ocorrido em 14/12/1979, às
de seu pai, Rubens Beyrodt Paiva, deputado federal cassado 17h, com “sol em conjunção com Netuno e em oposição a Vênus”,
pela ditadura. Encontramos um momento tenebroso, pois e os amigos que o levam ao hospital, ainda em Campinas.
Marcelo expõe uma chaga ainda aberta em nossa sociedade – Subi numa pedra e gritei:
o sumiço de diversos cidadãos pelas mãos do próprio governo — Aí, Gregor, vou descobrir o tesouro que você escondeu aqui
do país –, aliando a isso o drama familiar causado por um embaixo, seu milionário disfarçado.
regime autoritário: O dia 20 de janeiro de 1971 era feriado no Pulei com a pose do Tio Patinhas, bati a cabeça no chão e foi aí que
Rio, por isso dormi até mais tarde. De manhã, quando todos se ouvi a melodia: biiiiiiin. Estava debaixo d’água, não mexia os braços
preparavam pra ir à praia (e eu dormindo), a casa foi invadida por nem as pernas, somente via a água barrenta e ouvia: biiiiiiin.
seis militares à paisana, armados com metralhadoras. Enquanto
minhas irmãs e as empregadas estavam sob mira, um deles, que 2.Do lado de cá dos trilhos – Marcelo apresenta sua
parecia ser o chefe, deu uma ordem de prisão: meu pai deveria origem familiar. Para expressar o conforto que nunca lhe
comparecer na Aeronáutica para prestar depoimento. Ordem faltou, Marcelo diz: O único calo que tenho em minhas
escrita? Nenhuma. Motivo? Só deus sabe. mãos é de tocar violão. Nasci do lado de cá dos trilhos,

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de marginal somente no colegial, onde os colegas eram 5. Apartamento – nos primeiros dias em casa, as visitas
príncipes; eu, apenas burguês. abundam, Osório segue com a fisioterapia e Marcelo tem
uma nova enfermeira, Stella. O passeio de despedida ao final
3.UTI – Unidade de Terapia Intensiva – Marcelo acorda no das férias, onde Marcelo cumpre uma promessa feita para si,
hospital. Ali, logo perceberá a necessidade de se reinventar recebendo o vento da avenida no rosto (como Gabeira, em O
e de trabalhar o próprio trauma, apesar do sofrimento pelo que é isso, companheiro?).
qual passa. A leitura (na verdade, audição, já que as irmãs
é que leem para ele) e a identificação com O que é isso, 6. Uma paulista chamada avenida – Marcelo tenta se
companheiro?, livro de Fernando Gabeira, que narra sua habituar à vida em casa: passeios, visitas, leituras e televisão.
experiência na luta armada, a vergonha que sente diante da Marcelo se cansa de Stella e um novo enfermeiro surge: o
mãe e o desejo de voltar no tempo para corrigir a “cagada” “Neguinho”, rapaz corintiano como o autor. Após contar sobre
que cometera marcam o capítulo. uma nova cirurgia pela qual passa (para “tirar um calo de osso
que se formara na vértebra e colocar dois pinos.”), o narrador
4. Hospital Paraíso, São Paulo – transferido para São Paulo, relata as experiências com uma terapeuta ocupacional, que
Marcelo narra mais da sua recuperação: o Dr. Mangueira, que lhe lhe propicia avanços extraordinários, a seu ver: escrever em
coloca um colete de ferro para auxiliar na fixação do pescoço, uma máquina, comer sozinho, tomar banho (onde descobre
as sessões de fisioterapia e a experiência da “prancha” – uma que não ficara impotente, um de seus temores...). Além disso,
espécie de tábua reclinável que possibilita a Marcelo ficar de pé conhece Bianca, com quem passa por novas experiências
– com Osório, a possibilidade de se alimentar de comida sólida e eróticas. Ao final, finalmente livre do colete ortopédico,
a visão de si, mais magro, careca e com uma sonda no pênis. Ao Marcelo procura um centro de reabilitação, onde fará um
final do capítulo, retorna para casa, após três meses em hospitais. tratamento mais intensivo, e onde percebe sua verdadeira

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batalha: “Não deveria lutar apenas pra sair andando, mas me quantidade infinita de incertezas. Não sei como vou estar
preocupar basicamente com minha independência”. fisicamente, não sei como irei ganhar a vida e não estou a
fim de passar nenhuma lição. Não quero que as pessoas me
7. Início de dezembro 1980 – um ano após o acidente, encarem como um rapaz que apesar de tudo transmite muita
finalmente começa o tratamento na BBB. O capítulo final força. Não sou modelo pra nada. Não sou herói, sou apenas
demonstra a compreensão de que sua vida se transformara, vítima do destino(...)
em definitivo, naquele 14 de dezembro do ano anterior. A Hoje em dia, me pergunto se preferiria estar morto. Não sei
culpa não o abandona de todo, tampouco o sentimento de nem quero saber. Só sei que, nas noites em que tenho insônia,
injustiça por aquilo acontecer com ele. lembro de um garoto normal que subiu numa pedra e gritou:
— Aí, Gregor, vou descobrir o tesouro que você escondeu
Um ano em que tive uma certeza: minha vida mudou pacas. aqui embaixo, seu milionário disfarçado.
Sou um outro Marcelo, não mais Paiva, e sim Rodas. Não mais Pulou com a pose do Tio Patinhas, bateu a cabeça no chão
violonista, e sim deficiente físico. Ganhei algumas cicatrizes e foi aí que ouviu a melodia: BIIIIIIIN. Estava debaixo d’água.
pelo corpo, fiquei mais magro e agora uso barba. Não fumo Não mexia os braços nem as pernas. Via somente a água
mais Minister, agora passei pro Luiz XV. Meu futuro é uma barrenta e ouvia: BIIIIIIIN.

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DEIXE O QUARTO COMO ESTÁ (2002)
AMILCAR BETTEGA
A obra de Amílcar Bettega tem 14 contos e trabalha o
fantástico, mistura do real e do irreal, em que muitas vezes
haverá o predomínio do insólito, o não lógico. Assim,
os leitores devem aceitar esse caminho da “fantástico”,
conduzindo a leitura para uma normalização desse
sobrenatural, em que os personagens vão se resignando
quanto às ações do conto, criando uma ideia de circularidade.
E cuidado: esse fantástico é universal, e não regional.

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CONTO NARRADOR PERSONAGENS ENREDO

Autorretrato 3° Gorda, homem, 2 meninos Meninos invadem o pátio e acabam capturados pelo “homem-cão” da Gorda.

Exílio 1° Narrador, fregueses, meninos, cachorros Após tentar sair da cidade, sem sucesso, homem decide retornar à loja mesmo sem perspectiva de sucesso.

Aprendizado 1° Narrador, mãe, pai, Binho, Darci Após descobrir que será demitido, narrador é espancado por uma dívida e sua mãe falece.

Insistência 1° Narrador, os caras, os outros, eles Narrador, que sempre tentava invadir em grupo um local e acabava espancado, passa para o lado de quem expulsa os invasores.

Hereditário 1° Narrador, pai Narrador herda do pai uma “geleia” que gruda na mão; isola-se no porão; descobre que os demais não enxergam a geleia.

O crocodilo I 1° Narrador, zelador, crocodilo Narrador tem o quarto invadido por um crocodilo e passa a carregá-lo às costas; despejado, vai às ruas.

Uma doença sem cura se alastra e gera uma pandemia; uma cidade acaba isolada por um rio para tentar isolar os contaminados
A cura 1° Narrador, equipe médica, doentes
(entre eles, o narrador), apesar dos esforços das equipes médicas.

O crocodilo II 1° Narrador, crocodilo, esposa, filho, patrão O narrador, agora casado e pai, relata sua ascensão social (o patrão também tinha um crocodilo às costas).

O rosto 1° Narrador, rosto O narrador relata que sua casa cria cômodos e também os desfaz; persegue um rosto, captura-o, mas ele acaba fugindo.

Narrador vai a um jantar no lugar de seu irmão e acaba conduzido por uma Duquesa por uma casa enigmática. O desfecho se dá
A visita 1° Narrador, duquesa, filha da duquesa, capitão, torturado
diante de um homem torturado com chicotadas.

O encontro 3° Casal, habitantes da cidade Um casal vai a uma cidade para um “encontro”. Os poucos habitantes da cidade desaparecem e o casal vaga, perdido.

Correria 1° Narrador, Zezinho, Soares Durante uma corrida, o narrador sente-se mal, porém, segue correndo até mesmo quando tropeça e está prestes a cair no chão.
O narrador espera pela companhia de uma mulher-cantora que está no banho. Ele luta contra o sono que ameaça tomá-lo, pois
Espera 1° Narrador, ela
deseja estar acordado quando ela sair do banheiro.
Para salvar Gil consegue um trabalho simples: levar a cadela Beth à Petshop diariamente para um tratamento. Beth – em uma das sessões –
3° Gilberto, Soninha, Sra. Afonso, Afonso, Cremilda, Beth
Beth acaba tendo que permanecer lá, fato que desconsola Gil.

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PONCIÁ VICÊNCIO (2003) Enredo
VÔ VICÊNCIO era o patriarca da família. Foi escravo na
CONCEIÇÃO EVARISTO fazenda dos Vicêncio por toda a vida, um homem controverso
que chegara à velhice beirando a loucura. Testemunhou
Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em 29 de quatro de seus filhos serem vendidos pelo Senhor.
novembro de 1946, em Belo Horizonte (MG). Teve a infância e a Desesperado com a situação, pegou uma de suas foices de
adolescência marcadas pela miséria, na extinta favela do Pindura trabalho, matou a esposa e tentou suicídio logo em seguida,
Saia na região centro-sul da capital mineira. Conceição mudou- sendo impedido pelo filho.
se, em 1973, para o Rio de Janeiro, onde se graduou em Letras
pela UFRJ e titulou-se como mestra em Literatura Brasileira pela PONCIÁ VICÊNCIO não entendia o porquê da família
PUC-Rio, e doutora em Literatura Comparada na UFF. carregar o sobrenome dos seus antigos donos, pois achava
que ser Vicêncio era não ser ela mesma. Sempre que
A obra caminhava até o rio para buscar o barro para a mãe, ficava
• 47 capítulos SEM título, SEM numeração ( letra maiúscula em negrito) petrificada à margem, já que morria de medo de atravessar
• Tempo: impreciso ( provavelmente transição do séc. XIX para o XX) a passagem por baixo do arco-íris. Ponciá era muito apegada
• Espaço: Vila Vicêncio (ambiente rural) e “cidade” ao avô, mesmo que essa tenha convivido pouco com vô
• Narrador: 3° pessoa Vicêncio, a jovem espelhava-se em sua imagem. Inclusive,
• Narrativa circular, fragmentária e memorialística. todos diziam, após seu falecimento, que o homem havia

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deixado a ela uma herança. A menina ajudava a mãe nas sequentemente agredia violentamente a esposa buscando
produções dos materiais de barro para vender, enquanto trazê-la de volta à realidade.
o irmão e o pai trabalhavam na terra dos brancos. O pai
morrera durante o trabalho na lavoura. Pouco tempo depois, LUANDI JOSÉ VICÊNCIO, irmão de Ponciá, após a morte do pai
a moça, repentinamente, decide que vai partir da Vila e a partida da irmã, decide também ir à cidade em busca de uma
Vicêncio; pegou o trem, sonhando com uma vida melhor vida melhor e, lá chegando, consegue o empredo de faxineiro
na cidade. A moça trabalhou por muito tempo, juntou um de uma delegacia. O jovem passava todos os dias limpando a
dinheiro para dar entrada em um quartinho na periferia e delegacia e sonhando com o dia em que poderia se tornar um
estava se envolvendo com um rapaz que trabalhava em uma soldado como Nestor, soldado negro que se tornara seu amigo.
construção próxima à casa de sua patroa. Durante muito Luandi, tempos depois, decide retornar à terra natal, e ao voltar
tempo buscando notícias da família, a menina descobriu que para a vila, visitou a casa de Nêngua Kainda. Recebeu a benção
o irmão, Luandi, também tinha abandonado a Vila Vicêncio. da negra que o informou que sua mãe passava bem e que, desde
Chegou à casa da negra Nêngua Kainda, que a benzeu a partida dos filhos, vagava entre os vilarejos. Contou que sua
e contou que a mãe estava bem, vagando entre as vilas irmã havia passado por ali também. Luandi estava decidido no
vizinhas realizando pequenos trabalhos. Ademais, deixou seu retorno ao trabalho para se tornar um soldado e assim ter
claro que a moça não deveria se preocupar com o desfecho o dinheiro que usaria para comprar um quartinho onde viveria
das coisas no presente, já que mais cedo ou mais tarde a vida com Biliza, prostituta por quem se apaixonara e que acabaria
colocaria tudo em seu devido lugar. Casada, Ponciá assume assassinada pelo cafetão Climério, fato que desola Luandi.
atitude do avô, gastando muito tempo longe da lucidez, ria e Mesmo recebendo a notícia de que se tornara oficialmente um
chorava simultaneamente. A situação irritava o marido, que soldado, Luandi segue desolado.

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DESFECHO: Ponciá, numa espécie de transe, decide ir à
estação de trem. Lá a moça ouviu seu nome e levantou os
olhos para o soldado que a encarava sorrindo, era Luandi.
Assim, abraçaram-se, choraram com saudades de casa e
foram encontrar sua mãe, Maria. Chegara a hora de a família
retornar para casa. Luandi e Maria olhavam as feições de
Ponciá, desde criança se pareceria tanto com Vô Vicêncio,
não atoa carregava sua herança de uma história tão sofrida.
O menino que havia lutado tanto para se tornar um soldado,
percebia nas mulheres em sua frente à previsão de Nêngua,
queria voltar para casa com elas. A peça que faltava havia
sido entregue pela vida, Ponciá não haveria de se perder
nunca mais, trazia sua herança e sua memória de volta ao rio
sob os olhares dos seus.

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CADERNO DE MEMÓRIAS COLONIAIS (2009)
ISABELA FIGUEIREDO
A autora O contexto do livro: A revolução dos Cravos
Na s c i d a e m Lo u re n ço Ma rq u e s (a t u a l Ma p u t o) e m A Revolução dos Cravos ocorreu em 25 de abril de 1974,
Moçambique, Isabela Figueiredo é reconhecida como uma e depôs o governo fascista português. Com a revolução, as
das principais escritoras portuguesas contemporâneas. colônias africanas então sob domínio luso passam por processos
Após a Revolução dos Cravos e o início do processo de de descolonização – com a ausência da força do estado
descolonização portuguesa na África, a autora foi para português, grupos nativos organizam levantes para a tomada
Portugal em 1975, na condição de retornada. do poder nos países africanos falantes de língua portuguesa,
especialmente em Angola e Moçambique. No país de origem
A obra de Isabela Figueiredo, o processo de descolonização é liderado
Em 2009, Figueiredo publicou o romance autobiográfico pela FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), partido
Caderno de memórias coloniais. Estruturado na forma de que reuniu diversos grupos políticos anticoloniais sob a mesma
resgate da memória, é um acerto de contas com o passado bandeira. A FRELIMO será citada algumas vezes na obra de
colonial de Portugal e com seu pai, eletricista português Isabela. Graças a esse processo, uma grande massa de cidadãos
radicado em Moçambique. Isabela escreve suas memórias portugueses que viviam nas colônias ultramarinas é obrigada
de menina e adolescente, intercalando com as falas e vida a retornar à Europa. Além desses indivíduos, também muitos
das pessoas ao seu redor. Por se tratar da transcrição de filhos de colonos, nascidos na África, são obrigadas a “retornar”
memórias, não há uma linha cronológica. a Portugal. São os chamados retornados.

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O estilo de narrativa Eu tinha tudo, eles, nada. O meu pai explicava-me que não, não
Narrado em primeira pessoa pela autora-personagem, era verdade, nós não éramos ricos, mas remediados. A família
em linguagem coloquial, Caderno de memórias coloniais dependia do trabalho do pai e, quando estoura a guerra civil e
é uma narrativa que estabelece uma relação intrincada o serviço míngua, as economias servem para sustentar a família
entre passado histórico português e o passado individual/ durante um ano, além da compra de uma passagem para que
familiar de Figueiredo. A autora mistura memórias íntimas a a menina pudesse voltar a Portugal. No país luso, reconhece a
memórias históricas, variando entre o presente e flashbacks pobreza familiar ao viver com a avó: Ser pobre era dormir num
de seu passado em terras moçambicanas, bem como de colchão de palha. Ser pobre era comer toucinho cozido com
seus primeiros tempos em Portugal. Essas idas e vindas batatas e couves. Ser pobre era tomar banho numa bacia larga,
temporais constroem uma narrativa não-linear, fragmentada. no pequeno quintal, junto ao tanque onde a minha avó lavava,
O vestibulando deve, ainda, atentar a presença de fotos do para fora, a roupa de senhoras que lhe pagavam. Ser pobre era
acervo pessoal de Figueiredo ao longo do livro. Por fim, a ouvir a minha avó dizer que mais valia lavar roupa para fora do
obra constrói uma espécie de diálogo com o pai da autora, já que estudar, porque estudar não dava de comer a ninguém.
morto no momento da escritura da obra. Sim, era uma pobreza.

As condições da família Figueiredo O racismo


Isabela revela que sua família tinha bom padrão de vida na África A relação entre os colonos portugueses e os nativos
(uma casa espaçosa, contendo apenas o essencial), o que fazia africanos foi construída sobre um racismo profundo, que
com que a autora, quando criança, acreditasse que fossem ricos. atravessava todas as relações. O preconceito expõe homens
Contudo, seu pai sempre dizia que eles eram “remediados”: (...) e mulheres nativos: o corpo das mulheres se torna um objeto
eu pensava que era rica como os ricos das histórias de Dickens. a serviço do prazer dos colonos – inclusive seu pai –; os

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corpos masculinos são força de trabalho barata; as mulheres por muito civilizado que fosse, nunca seria suficientemente
brancas – reprimidas e educadas para que fossem esposas e civilizado. O meu pai revoltava-se quando encontrava uma
“respeitáveis” – direcionam suas críticas às mulheres negras branca com um negro, já depois do 25 de Abril, em Portugal.
e à sua sexualidade. As pretas tinham a cona larga (...). A das Fitava os pares como se visse o Diabo. Eu dizia-lhe, para de
brancas não, era estreita, porque as brancas não eram umas olhar, o que é que te interessa? Respondia-me que eu não
cadelas fáceis, porque à cona sagrada das brancas só lá tinha sabia, que um preto nunca poderia tratar bem uma branca,
chegado o do marido, e pouco, e com dificuldade, que elas como ela merecia. Era outra gente. Outra cultura. Uns cães.”
eram muito estreitas, portanto muito sérias(...). Limitavam-se
ao cumprimento das suas obrigações matrimoniais, sempre O pai
com sacrifício, pelo que a fornicação era dolorosa, e evitável, É notável a paradoxal relação entre Isabela e seu pai, um
por isso é que os brancos iam à cona das pretas. As pretas sujeito que é a personificação das ações do colonizador
não eram sérias, as pretas tinham a cona larga, as pretas mais típico. Ao mesmo tempo que Isabela tem afeto pela
gemiam alto, porque as cadelas gostavam daquilo. Não valiam figura paterna, expõe o asco que sente frente às ações e seu
nada. A própria autora é marcada pelo racismo, e nos narra progenitor. É com ele que a obra estabelece uma espécie de
uma cena em que, ainda criança, esbofeteia uma colega de diálogo, ainda que o pai já estivesse morto quando da escrita
escola, pois sabia que nada aconteceria consigo, já que ela, da obra. Antes da partida da autora para Portugal, o pai
a colega, era negra, enquanto Isabela era branca e filha de pede que Isabela conte na metrópole a versão dos colonos
portugueses. Por fim, atente que, mesmo após o início da sobre a guerra civil instaurada pós-Revolução dos Cravos, de
descolonização, o português branco olhava para o negro com extrema violência por parte dos nativos contra os colonos
a uma criatura inferior: “Para uma branca, assumir uma união portugueses. Leia o trecho abaixo: “Nos dias que se seguiram
com um negro, implicava proscrição social. Um homem negro, ao 7 de Setembro a negralhada perdeu o freio, e (...) chacinou,

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cega, tudo o que era branco: os machambeiros e família, os A retornada: uma questão de identidade
gatos, cães, galinhas, periquitos, vacas brancas, e deixaram- Em Portugal, Isabela encontra uma família que desconhecia
nos agonizando sobre a terra, empapando sangue; salvavam- até então. Ali, enfrenta a questão identitária que foi um dos
se as galinhas cafreais de pescoço pelado. E os gatos pretos. dramas dos retornados: o que eram? Em um país em crise
“Quando os viste jogar à bola com as cabeças, na estrada como Portugal, os lusos europeus viam os retornados como
do Jardim Zoológico... contas tudo... tudo o que roubaram, invasores que vinham tomar seus empregos e onerar ainda
saquearam, partiram, queimaram, ocuparam. Os carros, as mais a população; os retornados, por sua vez, sentiam-
casas. As plantações, o gado. Tudo no chão a apodrecer. Tu se presos às colônias, com raízes lá fincadas. No caso de
vais contar. Que nos provocam todos os dias, e não podemos Isabela Figueiredo, havia uma questão ainda maior, pois
responder ou levam-nos ao comité; que nos postos de era nascida em Moçambique, mas filha de portugueses e
controle nos insultam, nos humilham, nos cospem em cima; criada como menina branca em um país negro e racista. Era,
que não nos deixam ir à igreja; (...)” Isabela, contudo, não afinal, portuguesa ou moçambicana? Europeia ou africana?
conta a versão que o pai lhe pede, entendendo que os negros Era as duas coisas, ou nenhuma? Essa identidade fraturada
também foram violentados, durante anos, pelos portugueses. é um dos principais temas do livro, e também de diversas
Agora que o Estado Português não mais intervinha, iam à outras obras da literatura portuguesa pós-descolonização.
forra contra os europeus. A autora não justifica a violência, Ridicularizada por usar roupas coloridas, vista com maus
mas percebe que ambos os lados possuem suas justificativas olhos pelos europeus, insultada por ser mulher (atravessava a
para seus atos, bem como seus pecados na relação puberdade na chegada à Portugal, e ouvia ofensas de homens
estabelecida entre eles. Por não contar o que o pai lhe pedira, na rua, “por ser mulher”), assediada até mesmo por um tio,
sente-se como se o traísse. Afinal, diz a autora, “Nunca Isabela nos conta, no encerramento do livro, o destino de sua
entreguei a mensagem de que fui portadora”. família: o pai fora preso em Moçambique durante três anos,

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mas jamais comentara o que vira na cadeia; a mãe seguia a mim. Por exemplo, neste momento estou a olhá-los através
crendo na falácia algo saudosista de que o colonialismo não do tempo, e há uma perplexidade nos seus olhos, um vazio,
fora tão prejudicial aos negros. E quanto a ela própria, Isabela uma fome, e nos meus uma impotência, uma incompreensão
afirma ser uma “estátua de culpa”, um fruto indelével do que que nenhuma razão poderá explicar. Moçambique é essa
o colonialismo português representara: Passaram algumas imagem parada da menina ao sol, com as tranças louras
décadas sobre a menina que encarava os negrinhos de meia impecavelmente penteadas, perante essa criança negra
dúzia de anos que pediam trabalho ao portão, descalços, empoeirada, quase nua, esfomeada, num silêncio em que
rotos, esfomeados, e chamava a mãe, trabalho não havia. Eu nenhum sabe o que dizer, mirando-se do mesmo lado e dos
sabia que não havia. Contudo, chamava-a. Havia a esperança lados opostos da justiça, do bem e do mal, da sobrevivência.
que de repente houvesse capim para apanhar, ou uma moeda, Um desterrado como eu é também uma estátua de culpa. E
pão. Às vezes a minha mãe estava bem disposta. Às vezes a culpa, a culpa, a culpa que deixamos crescer e enrolar-se
tinha pena das crianças. Eu e eles não falávamos a mesma por dentro de nós como uma trepadeira incolor, ata-nos ao
língua. Apenas umas palavras soltas. Olhava-os muito, e eles silêncio, à solidão, ao insolúvel desterro.”

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