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JOSÉ GURGO E CIRNE TERRAS DE ANTUÃ | HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DO CONCELHO DE ESTARREJA

A ODIOSÍSSIMA MORTE DO LÁZARO Vinte e quatro anos depois (1878), era publicado em Barcelos, pela Tipografia Aurora do
Cávado, da autoria de António Francisco Barata, um livro intitulado “Miscelânea Histórico-
José Gurgo e Cirne* Romântica”, cujo Capítulo II (pp:49-60), sob a epígrafe “Miseráveis Conimbricenses”,
ostenta o subtítulo “A Lazarada”. Em tom manifestamente langoroso, como mandava ainda
a moda desse século, tal capítulo começa assim:

Era em Coimbra, em uma brilhante tarde do primeiro dia (sic) de Junho de 1854.

São (sic) de uma formosura grande as margens do Mondego naquele tempo, e os arrabaldes de
Coimbra de um encanto e poesia inexcedíveis.

Debruçam-se sobre o rio indolente os salgueiros verde-claros e os chorões, descanta ainda um ou


outro rouxinol as derradeiras canções amorosas nas balsas floridas, e o ar sereno, e o céu formoso, e o
inebriante aroma naquele vegetar pomposo conspiram às invejas por nos deliciar a alma, arrastando-
nos descuidosos e satisfeitos pela «Fonte das Lágrimas», «Lapa dos Esteios», «Fonte do Castanheiro»,
«Penedos da Saudade e da Meditação», «Vale de Coselhas e Salgueiral».

Tem este nome um bastantemente grande tracto de terra povoada de árvores na margem direita
do Mondego, no sítio em que o caminho de ferro do norte corta aquele rio sobre a extensão da ponte.

Foi nesta deliciosa mata que na tarde do referido dia entravam três académicos do liceu de Coimbra2,trajando
capa e batina. Adiante marchava Lázaro Tavares Afonso e Cunha, natural do Bunheiro, no distrito de Aveiro,
&&& estudante de Lógica e de Geometria3, seguia-o Diogo Maria Araújo Santa Bárbara, de Coimbra, condiscípulo do
No livro de “Registos de Óbitos” da Freguesia do Bunheiro, referente aos anos que primeiro4, e após os dois caminhava Luís Maria da Cunha, da Pedrulha, estudante de Latim5. Embrenharam-se.
medeiam entre 1849-1859, surge o seguinte assento, da mão do Reitor Manuel José Ruela
e Silva, relativo ao ano de 1854: – Grande caçada de rolas teremos nós esta tarde, ó Lázaro, dissera Diogo.

À margem: Lázaro, maior. E no texto: No dia sétimo do mês de Julho de mil oitocentos e – Talvez não, respondeu o Cunha: a modo que as não vejo.
cinquenta e quatro saiu da casa, onde habitava na cidade de Coimbra, sem jamais voltar a ela, Lázaro,
de vinte anos de idade, estudante do primeiro ano jurídico, filho legítimo de Manuel Tavares Amador, Desviados da estrada, que pela margem do rio e à beira da mata conduz a Montemor-velho por
e Maria Afonsa Vigária, do lugar do Celeiro, desta Freguesia de São Mateus do Bunheiro, e no dia forma que de ninguém fossem vistos, o Diogo redarguira ao Cunha:
dezassete do mesmo mês e ano apareceu morto no Salgueiral do encanamento junto à dita cidade
de Coimbra, com sinais evidentes de ter sido assassinado, e foi sepultado na Igreja de São João de
Almedina1 da mesma cidade, de que fiz este assento e assinei. 2 - Cf. Castro, 1867:102-103: “Neste edifício, que até hoje se tem denominado Colégio das Artes, exerceram os jesuítas
o magistério, conseguindo, com o seu poderoso valimento, estarem sempre isentos de submissão à Universidade (…).
Extinta, porém, a Companhia foram incorporadas na Universidade as aulas, que com algumas alterações formam hoje
o Liceu, regido por abalizados e respeitáveis professores.” Para além de já ter sido também em parte e simultaneamente
hospital, nele funciona actualmente o DARQ – Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra.
*Licenciado em Antropologia e Serviço Social, pós-graduado em Família e Sistemas Sociais, mestre em Antropologia Social 3 - Da “Relação e Índice Alfabético dos Estudantes Matriculados Na Universidade de Coimbra e No Liceu no Ano Lectivo de
e Cultural. Possui o Diploma de Estudos Avançados em Antropologia e frequentou também Estudos Avançados em História 1853 para 1854…”, consta, com o nº 3, do rol dos “Alunos Voluntários” da Cadeira de “Filosofia Racional e Moral, e Princípios
das Idades Média, Moderna e Contemporânea. É membro do CRIA – Centro em Rede de Investigação em Antropologia, de Direito Natural”; consta também, com o nº 22, do rol dos “Alunos Ordinários” da Cadeira de “Aritmética e Geometria”.
sob cuja égide se encontra a realizar o doutoramento em Antropologia. Filho de Manuel Tavares Amador, natural do Bunheiro, Distrito de Aveiro, tinha domicílio na Rua do Borralho, nº 13.
1 - Cf. Castro, 1867:85-86: “No Largo de S. João se encontra esta igreja fundada pelo bispo D. João de Melo, que governou 4 - Diogo surge com o nº 2, enquanto “Aluno Voluntário” da Cadeira de “Filosofia Racional e Moral, e Princípios de Direito
a diocese de Coimbra desde o ano de 1648 até ao de 1704. Foi edificada no local em que existiu outra muito antiga Natural”; e ainda com o nº 4, enquanto “Aluno Ordinário” da Cadeira de “Aritmética e Geometria”. Filho de Herculano
e memorável.” Adjacente ao Museu Machado de Castro, aquando recentes obras neste realizadas, aí foram inumados Aprígio Alves d’Araújo Santa Bárbara, natural de Coimbra, tinha domicílio na Rua das Rãs, nº 12.
alguns restos humanos, que jazem encaixotados nas águas furtadas, ditas “Reserva Osteológica”, do antigo Instituto de 5 - Luís, com o nº 62, é também “Aluno Ordinário” da Cadeira de “Aritmética e Geometria”, filho de pais incógnitos, natural
Antropologia de Coimbra. da Pedrulha, Distrito de Coimbra e morador na Rua do Corpo de Deus, nº 58. (Não consta que cursasse a Cadeira de “Latim”.)

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– Enganas-te, repara – e nisto apontava uma carabina que trazia carregada de bala e chumbo No final do também Capítulo II (pp:39-46) do livro “Coimbra Antiga e Moderna”, de
grosso ao pescoço de Lázaro, que ia na frente, e desfechava no moço um tiro mortal… A. C. Borges de Figueiredo, editado em Lisboa pela Livraria Ferreira trinta e dois anos
após os referidos acontecimentos (1886), ainda estes se mantinham vivos no espírito dos
Lázaro Tavares Afonso e Cunha levou precípite a mão direita ao gorro, que tirou da cabeça, caindo seus contemporâneos. A descrição dos mesmos é-nos dada, em tom circunstancial, pelo
instantaneamente sem vida aos pés do condiscípulo assassino!... referido autor:

Dois parágrafos à frente, o autor prossegue: Estávamos à sobremesa.

Haviam decorridos mais de quinze dias depois dos tristes acontecimentos marcados. Um estudante tinha vindo jantar ao hotel, para fazer companhia a um sujeito seu parente, homem
de cinquenta anos, rico e jovial, que teve de pagar também o jantar a dois amigos que o primo lhe
Debalde a polícia de Coimbra empregara meios para descobrir o destino do académico Lázaro apresentara, os quais se desfaziam em cumprimentos e atenções para com o seu anfitrião. Além destes
Tavares Afonso e Cunha: ninguém sabia dele nem morto nem vivo, quando uma tarde correu voz na quatro personagens (…), estava também à mesa um velhote, cuja idade não podia facilmente ser
cidade que era aparecido! E, de facto, um caçador por apelido Tinoco, andando no «Choupal» à caça, determinada, mas que tinha a particularidade de se parecer extremamente com o fecundo e finíssimo
notara que alguns dos cães haviam amarrado a uma balsa, e que com seus ladridos o convidavam a Mirabeau9, se é exacto o retrato que os escritores e pintores do tempo nos legaram.
aproximar-se. Achegou-se. Que espectáculo! Ali jazia o assassinado estudante, envolto ainda nas vestes
pretas de seu uniforme, meio devorado já dos cães famintos e das aves de rapina, separada do tronco a (…)
cabeça, cujo rosto já perdera as feições na horrível decomposição em que estava.
– Pois declaro-lhes, meus senhores, disse o primo do estudante para os seus convidados, que tive
Pressuroso correra o caçador à cidade para dar parte à autoridade daquele aflitivo e comovedor imenso prazer em tornar a ver Coimbra: e, tendo andado lá por longes terras, asseguro-lhes que muitas
aparecimento… vezes me lembrei desta cidade onde passei tão bons dias da minha mocidade.

Trazidos os restos do mancebo infeliz para o teatro anatómico, neles fez autópsia, no dia seguinte, –V. Exª esteve aqui em…? Perguntou um dos estudantes.
o falecido e distinto médico António Joaquim Barjona6, com dificuldade pelo deletério e nauseabundo
do cheiro, oferecendo à justiça a base de um processo crime contra alguém, que se não conhecia, e que O saudoso veterano confirmou então que frequentara a academia entre 1848 e 1855.
havia assassinado aquele moço, com um tiro na parte posterior do pescoço junto à região occipital. Rememorou vários episódios marcantes de que ainda se lembrava (incluindo duas dispensas
de acto, uma concedida em 6 de Maio de 1851 pelo duque de Saldanha, recebido em
E, quase em tom apocalíptico, o autor conclui: Coimbra nesse dia com “uma extraordinária ovação”, pelo seu triunfo sobre o conde de
Tomar; e outra em 23 de Abril de 1852, aquando da visita da rainha D. Maria II à cidade).
Sepultara-se o que restava do mancebo que, 15 dias antes, descuidado cursava os estudos no ledo
viver da juventude, primavera de ilusões encantadoras, tão cedo trocada pelos gelos do Outono, pelo Quanto a esta, pormenoriza que era perto do meio dia quando o préstito real chegou à “antiga
frio da morte… ponte, aquela que sempre foi para a academia doutras eras um ponto de reunião.” Sentados nos
seus parapeitos, “em número superior a oitocentos”, escusado será dizer que, dos quintanistas aos
E o tempo começava lentamente a sua obra fatalíssima de esquecimento, e o matador a dar tréguas caloiros, esse foi um dia de “regabofe”, o que não obstou às formais manifestações de respeito:
ao fantasma ensanguentado do condiscípulo morto, que por vezes a horas mortas da noite o assaltava em de imediato, postos de pé, descobriram-se e soltaram vivas à família real!
sonhos, medonho como o espectro de Samuel7 e como o de Holofernes8, oferecendo-lhe a própria cabeça
horrivelmente desfigurada, em prémio de seu infernal desígnio, de seu feito selvagem e desumaníssimo. Mas insistiu ainda o estudante seu parente:

– Não é também do seu tempo a morte dum Lázaro? Perguntou ao velhote o primo estudante.Tenho
ouvido falar nisso.
6 - Precursor do ensino da medicina legal no País, nasceu e faleceu em Coimbra (1786-1886). Foi lente da Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra e tio materno de Augusto César Barjona de Freitas, jurista, académico e político, a
que mais adiante nos referiremos.
7 - Profeta e último Juiz de Israel (cf. Lello [vol.II], 1992:826). 9 - Honoré Gabriel Riqueti (1749-1791), conde de Mirabeu, filho do marquês do mesmo título, “foi o orador mais
8 - General de Nabucodonosor, morto por Judite enquanto dormia (cf. Lello [vol.I], 1992:1237). eminente da Revolução Francesa” (cf. Lello [Vol.II], 1992:252).

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– Teve lugar esse desgraçado acontecimento em 16 (sic) de Junho de 1854; chamava-se o rapaz Lázaro Pormenorizando, acrescenta o autor:
Tavares Afonso e Cunha. Lembro-me disso como se tivesse sucedido ontem. Foi no Choupal, onde o
levaram a pretexto de caça, que covardemente o assassinaram para lhe roubarem algum dinheiro que No ano lectivo a que vimos de referir-nos (1853-1854) frequentavam o liceu de Coimbra, Lázaro
tinha. O assassino cujo apelido era Santa Bárbara, foi tempo depois preso num botequim, e denunciou Afonso Tavares e Cunha (sic), natural do Bunheiro, distrito de Aveiro, Diogo Maria d’ Araújo Santa
os cúmplices. Lembro-me de que na ocasião em que os presos eram conduzidos pela rua da Calçada Bárbara, natural de Coimbra, e Luís Maria da Cunha, natural da Pedrulha, distrito de Coimbra;
ao tribunal para comparecerem na audiência em que deviam ser julgados, o pai do assassino estava estando matriculados – os dois primeiros nas aulas de Lógica e Geometria, e o Cunha, apenas, na
jogando num bilhar dessa mesma rua… última dessas disciplinas.

Há também referência ao episódio no Capítulo V, intitulado “Assassinato do Lázaro” Diogo era filho de Herculano Aprígio Araújo Alves Santa Bárbara, empregado na secretaria do
(pp:31-46), do livro “Outros Tempos ou Velharias de Coimbra”, de Augusto d’ Oliveira Hospital da Universidade11.
Cardoso Fonseca, apontamentos referentes aos anos que medeiam entre 1850 e 1880,
obra publicada pela Livraria Tabuense e impressa em Lisboa pela Parceria António Maria Tinha sido educado com demasiada liberdade, resultando daí entregar-se desvairadamente a
Pereira, em 1911. Dela respigaremos apenas as passagens que não constam das descrições extravagâncias que constantemente o colocavam em circunstâncias precárias.
anteriores ou que delas se evidenciam. O referido capítulo, narrado na primeira pessoa do
plural, começa assim: Foi numa destas ocasiões que ele, invocando a sua qualidade de condiscípulo, pediu a Lázaro
emprestada uma moeda (4$800 réis), que prometeu pagar-lhe em breve prazo.
Ao fundo da Couraça dos Apóstolos, do lado esquerdo e quase em frente do Arco do Colégio
Novo, existia, e ignoramos se ainda existe, uma modesta casa de dois andares, na qual habitava João Nunca lha restituiu, porém; e ainda, tendo conhecimento, em certo dia, de que Lázaro havia
Gaudêncio Ribeiro do Amaral, professor de latinidade10. recebido a sua mesada, voltou a pedir-lhe mais dinheiro.

(…) Bem sabia Lázaro que nunca receberia do Diogo qualquer quantia que lhe emprestasse; e por isso,
pretextando ter feito despesas com a compra de livros e roupa, desculpou-se. E desde esse dia adoptou o
No ano lectivo de 1853 para 1854, frequentámos nós a sua aula, na qual tivemos cerca de trinta sistema de guardar o dinheiro num cinto, que usava por forma a não ser visto.
condiscípulos, contando-se, entre estes, três que felizmente ainda vivem.
De nada lhe valeu, porém, a sua previdência. Quanto pode a fatalidade!
Após nomear esses três condiscípulos, que nada têm a ver com o enredo do caso, a
deslocação diária, acompanhada pelos respectivos criados, a tradicional sabatina (aos Num dia, em que acabava de vestir-se para sair, entrou-lhe o Diogo, inesperadamente, em casa e
sábados, é bom de ver), em que se repetia a matéria dada durante a semana, acrescenta, pôde ainda lobrigar o cinto.
quanto à história que nos interessa:
Daí, a sua malvada premeditação do roubo e traiçoeiro assassinato do seu condiscípulo!...
No dia 16 de Junho (sexta-feira) desse ano, achando-nos todos os condiscípulos na aula, sentiu-se
uma enorme vozearia, assim como o rumor de passos de muita gente na rua. Fazendo uma breve retrospectiva dos factos ocorridos, esclarece o autor:

Sob um geral impulso de desculpável curiosidade, professor e alunos, todos corremos às janelas Na tarde de 7 de Junho não recolheu Lázaro a sua casa, como costumava fazer pontualmente,
e ao muro do quintal que ficava ao lado e nível da sala da aula; e então vimos uma imensidade nem de noite nem no dia seguinte; facto que muito estranhado foi pelo seu companheiro de casa, um
de estudantes e também futricas, cercando e acompanhando outros estudantes que, em uma maca estudante de teologia12, que se apressou a comunicá-lo à autoridade administrativa.
ligeiramente improvisada, conduziam os restos informes do desditoso Lázaro, o qual, conforme já
dissemos, desaparecera na tarde de 7 desse mês.
11 - “A sua primeira nomeação foi de escriturário do Dispensatório dos Hospitais da Universidade, em 17 de Julho de 1834.
(Almanaque de Portugal para 1856, pág. 199)./ Em 1873 ainda era empregado na secretaria do Hospital da Universidade.” (N.A.)
12 - Na mesma morada, não encontrámos registo de nenhum estudante de teologia. Consta, sim, um estudante do 3º ano de
Direito, Custódio José Ferreira de Carvalho e Vasconcelos, natural de Travanca, no Distrito do Porto. Era filho de António
10 - “Pouco depois dessa época fixou João Gaudêncio a sua residência na cidade de Évora, onde igualmente exerceu o José Teixeira de Carvalho e Vasconcelos, comendador da antiga Ordem Militar de Nª Srª de Vila Viçosa, por mercê de D. Luís
magistério; e aí faleceu passados anos.” (N.A.) I, e último presidente da Câmara Municipal do extinto concelho de Santa Cruz de Riba Tâmega (1855).

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Formaram-se diversas conjecturas, mas ninguém pensava num assassinato; pois sendo Lázaro um rapaz avançamos um ano, altura em que “a Providência não permitiu que os criminosos ficassem
morigerado, estudioso e inofensivo, não havia lugar a admitir essa hipótese. impunes” (Fonseca, 1911:38). Tanto que, quando “já pouco se falava em tal assassinato,
o seu principal autor veio levantar sobre si justas suspeitas” (idem, ibidem). O caso é
Alguns se lembraram se seria um suicídio; mas esta ideia foi também posta de parte, porque, explicado assim pelo autor:
sabendo toda a gente que ele vivia sem dificuldades e recebia boa mesada, não podiam admiti-la.
No ano lectivo de 1854 para 1855, Diogo Santa Bárbara tornou a matricular-se em lógica e
Numa persistiram, porém: – um desastre no rio Mondego, onde tivesse ido banhar-se. geometria, por ter sido reprovado nos respectivos exames, no ano anterior, em que fora condiscípulo de
Lázaro.
A autoridade administrativa mandou fazer diversas pesquisas nos portos dos Bentos e dos Lázaros,
na margem direita do Mondego, próximo da rua da Alegria, por neles se haverem dado muitos desastres O Cunha abandonara os estudos.
de pessoas que aí iam tomar banho e morriam afogadas.
Na rua da Calçada, hoje rua Ferreira Borges e fazendo esquina para as escadinhas de Santiago,
Nada, porém, se descobriu que revelasse ter ali ido o estudante Lázaro. que daquela rua dão comunicação para a antiga praça de S. Bartolomeu ou Praça Velha, hoje Praça
do Comércio, existiu por muitos anos uma ourivesaria pertencente a Abílio Augusto Martins, e por isso
E o autor dá conta também das diligências efectuadas para encontrar o desaparecido: conhecida por «Ourivesaria do Abílio».

Nessa época havia em Coimbra dois magníficos caçadores, cada um dos quais possuía uma boa Todas as tardes, em frente deste estabelecimento, se reuniam grupos de académicos, em animada
matilha. Eram João de Pinho, que durante anos exerceu o lugar de guarda-livros na loja de ferragens do conversa, distracção esta que os pacatos preferiam a ir-se asfixiar com o pestífero ambiente dos cafés,
grande capitalista e comerciante, Ferreira Borges, na antiga rua do Coruche, mais tarde rua doVisconde da que nesse tempo muito deixavam a desejar.
Luz, e um tal Tinoco, que mais tarde vimos revisor do caminho de ferro, os quais há muitos anos faleceram.
Neste ano cursava o 3º ano da faculdade de Direito D. Francisco de Sousa Holstein13, o qual, com seus
Conheciam eles perfeitamente o vasto Choupal, sítio muito frequentado não só para passeio, como dois irmãos, também estudantes, era hóspede do estudante do 5º ano dessa faculdade Jacinto António de
por muitos caçadores. E porque algumas vezes ali iam à caça não lhes eram desconhecidos os mais Sousa14, morador na rua da Esperança, numas casas que faziam esquina para o Beco do Loureiro.
recônditos lugares da grande mata.
Na tarde do dia 13 (sic) de Julho de 1855 (era uma sexta-feira), estava à porta da referida
Ofereceram os seus serviços ao administrador do concelho, que lhos aceitou, mas (diga-se a verdade) ourivesaria um grupo de estudantes da Universidade, entre os quais se encontrava aquele D. Francisco, que
sem esperar que qualquer coisa descobrissem, por isso que ninguém poderia supor que Lázaro se fosse habitualmente usava uma grossa corrente de ouro, parte da qual brilhava por fora do abotoado da batina.
embrenhar nos perigosos sítios que abundam no centro do Choupal.
Nessa ocasião passaram perto desse grupo os estudantes Diogo Santa Bárbara, repetente, como já
Escolheram o dia 16 de Junho para essa batida no Choupal, aonde se dirigiram com os seus cães dissemos, de Lógica e Geometria, e Fabrício Augusto Martins Pimentel, também repetente do primeiro
de caça. ano filosófico.

Com João de Pinho e Tinoco iam um tenente e dois sargentos. Diogo, tão deslumbrado ficou ao ver aquele precioso objecto, que não pôde resistir que não
murmurasse para Fabrício: «Que bela cadeia para uma lazarada!»
Depois de terem esquadrinhado diversos sítios mais solitários, sentiram os latidos dos cães,
parecendo-lhes que alguma coisa estranha houvessem descoberto.
13 - “D. Francisco de Sousa Holstein, já no ano lectivo de 1855 para 1856, era Marquês de Sousa Holstein. (…)/ Formou-se
Correram ao sítio, donde partiam os latidos, e eis que se lhes depara um cadáver em circunstâncias naquela faculdade em 1857, e doutorou-se em 1858 ou 1859.” (N.A.)
horrorosas. 14 - “Era geralmente conhecido por o «Jacintinho». Em 1855 para 1856 frequentou o 6º ano da faculdade de Filosofia,
na qual se doutorou, sendo em 26 de Maio de 1856 nomeado lente substituto extraordinário da mesma. (Almanaque de
Portugal para 1856. – Aditamento, pág. 689.)/ Também nos anos lectivos de 1855 para 1856 e 1857 para 1858, regeu no
Era o do infeliz Lázaro, mutilado e em completo estado de decomposição. Liceu a cadeira de Princípios de Física e Química e Introdução à História Natural dos Três Reinos, para o qual fora nomeado em
7 de Setembro de 1855. (Citado Almanaque, pág. 174)./ No ano lectivo de 1854 para 1855 foi a mesma cadeira regida
interinamente pelo Sr. Dr. Matias de Carvalho e Vasconcelos, posteriormente lente de Filosofia e há muitos anos Ministro
Escusamo-nos de repetir o que já acima foi dito sobre o macabro cenário do crime e plenipotenciário de Portugal na Itália.” (N.A.)

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Se bem que falasse baixo, não passou despercebida ao grupo a expressão «lazarada», não tanto Procedendo-se no dia 17, imediato, ao auto de declarações e investigações, declararam os peritos
por trazer à lembrança o triste fim de Lázaro, como por ser proferida por Diogo; pois que este, em que estava o cadáver deitado no chão, de barriga para cima, com a perna direita estendida e a coxa
consequência da sua desregrada e má conduta, não merecia as simpatias da academia. da mesma perna em grande parte devorada pelos animais e a perna esquerda dobrada de forma, que
a planta do pé estava voltada para o lado da cabeça, indicando ter sido o cadáver arrastado pelos
E o certo é que, ponderando aquela frase que se lhes antolhou como tendo referência ao assassinato mesmos animais, na distância de seis palmos pouco mais ou menos, na direcção do norte para o sul do
de Lázaro, esses estudantes que formavam o grupo assim o foram participar ao administrador. local onde tinha estado, para o que concorriam as circunstâncias de se acharem os braços estendidos na
mesma direcção, e estar a batina arregaçada até ao peito, em resultado do dito arrastamento.
E remata o autor:
A cabeça achava-se separada do tronco, e colocada a dois palmos ao sul do cadáver e extremidade
No dia seguinte, 13 (?!) de Julho, foram presos Diogo Santa Bárbara e o seu ex-condiscípulo e da perna direita, estando a dita cabeça toda descarnada, e tendo ainda aderentes a si o atlas e o áxis,
quase inseparável companheiro Luís Maria da Cunha. e distante palmo e meio uma porção de cabelo empastado.

O Fabrício foi preso no dia 3 de Setembro. O cadáver achava-se num completo estado de putrefacção, tendo desaparecido as mãos, roídas, ao
que parecia, pelos animais.
O Diogo esteve alguns dias preso na antiga cadeia do Aljube, mas, para maior segurança, foi
removido para a da Portagem. Na sobredita distância de seis palmos, pouco mais ou menos, para o norte do cadáver, se achava a capa do
mesmo estudante dobrada, como para servir de travesseiro, ao princípio da elevação de um pequeno montículo,
Essas cadeias foram demolidas há cerca de 50 anos. que se seguia para o norte, e em que havia algumas pequenas árvores; e próximo a elas estava o gorro.

Contudo, a obra marcante em que é relatado o caso, tem o título de “Os Assassinos da As dobras da mesma capa, para o lado do sul, achavam-se manchadas, ao que parecia, de sangue
Beira” e o subtítulo “Novos Apontamentos para a História Contemporânea”. É da autoria sujo; para o lado do poente e junto da extremidade do sítio, onde se achava a capa dobrada, se via o
de Joaquim Martins de Carvalho e teve duas edições: uma em 1890, trinta e seis anos chão mais escuro e exalando um cheiro infecto e com bastantes cabelos aderentes às ervas, indicando ser
após os acontecimentos descritos, datada de Coimbra, sob a chancela da Imprensa da naquele mesmo ponto onde havia parado e permanecido a cabeça do cadáver.
Universidade; e outra em 1922, sessenta e oito anos depois, também datada de Coimbra,
da responsabilidade da Coimbra Editora, Lda. Em ambas, o caso é abordado no Capítulo Fazendo os peritos mais algumas indagações e pesquisas nesse lugar, encontraram ainda ali a
XXXVII, sob a epígrafe “A Odiosíssima Morte do Lázaro”, mote que escolhemos para maxila inferior do cadáver e um pedaço de uma das vértebras do pescoço, com uma pequena fractura,
título do presente trabalho e por cuja primeira edição (pp:255-265) nos guiamos: que no auto do exame e da autópsia se havia notado que faltava ao cadáver.

Depois da horrorosa morte do Campeão15, em 24 de Janeiro de 1846, o crime mais espantoso Apesar do tempo e das diligências empregues para descobrir quem fosse o autor do crime –
praticado em Coimbra foi o da morte de Lázaro Tavares Afonso e Cunha, natural do Bunheiro, concelho interrogaram-se nada menos que setenta testemunhas e aproveitaram-se “todos os indícios que
de Estarreja, distrito de Aveiro, estudante de lógica e geometria no liceu desta cidade, que se efectuou, pudessem levar ao descobrimento da verdade” –, nada foi apurado. No entanto, a autoridade
na tarde de 7 de Junho de 1854, no interior do Salgueiral, margem direita do Mondego. administrativa chegou mesmo a convencer-se de que o assassino era um criado dos Srs. Pinto
Bastos, residente no Choupal, chamado António Francisco Bispo. Essa era a convicção do próprio
Havendo desaparecido este estudante, empregaram-se todas as diligências para ver se se descobria administrador do concelho, Manuel Caetano de Almeida Coutinho, que a chegou a manifestar,
o destino que tinha levado. Só, porém, decorridos nove dias, a 16 do mesmo mês de Junho, é que os cães por escrito, ao delegado do procurador régio, em ofício de 24 de Agosto de 1854. Segundo as
de uns caçadores descobriram o cadáver do Lázaro, já corroído e mutilado. suas palavras, constituíam fundamento para tal os precedentes daquele e a confissão de algumas
testemunhas que depuseram nos autos, asseverando que o mesmo “queria conhecer o estudante,
que no Choupal entendia com as mulheres que ali mandava à erva”16. Não tivesse ele morrido
nessa altura e teria sido formalmente acusado do crime. Contudo:

15 - Cf. Figueiredo, 1886:39-40 – “O Campeão, cujo nome era José António da Silva Rocha, e que tinha loja de câmbio na
rua da Sofia, recebera certa porção de dinheiro para pagamento de prémios; e quatro artistas, um sapateiro, um carpinteiro
e dois alfaiates, assassinaram-no, para o roubarem. Praticado o crime em 24 de Janeiro de 1846, embrulharam-no em uma 16 - Não é por acaso que a cultura popular atribuía a designação de “filho das ervas” ao filho de pais incógnitos. E os próprios
esteira e foram pelas mais sombrias ruas do bairro baixo enterrá-lo no Choupal.” dicionários registam tal locução (cf. Lello [vol.I], 1992:859).

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Decorre muito tempo, e com espanto geral são presos pela autoridade administrativa no dia 13 de cinto para casa dos Pimentéis, onde por todos três fora aberto e por todos divididos os 14$000 réis
Julho de 1855 Diogo Maria de Araújo Santa Bárbara, natural de Coimbra e estudante do liceu; e Luís que continha; – que, passados um a dois meses, comprara o cinto ao Fabrício por 160 ou 240 réis,
Maria da Cunha natural da Pedrulha, deste concelho, também estudante do liceu. vendendo-o depois ou perdendo-o ao jogo com Luís Pinto Tavares, e sabendo mais tarde que estava de
posse dele o Alberto; – que o Fabrício não fora convidado, mas que sabia da tenção de matar o Lázaro.
Interrogado Luís Maria da Cunha pelo administrador do concelho, respondeu: – que em uma tarde de
Junho de 1854 fora, na companhia do preso Diogo e do Lázaro, ao Salgueiral do Mondego, convidados pelo Interrogado de novo o réu Cunha pelo administrador do concelho, disse que não tinha tirado o cinto
Diogo, para atirarem às rolas; – que, entrando no Salgueiral, ia Lázaro na frente, em seguida o Diogo, ele ao Lázaro, e que ouvira dizer que quem o tinha era o Diogo; – e que este lhe tinha oferecido dinheiro
Cunha atrás; e reparara que o Diogo metera algumas vezes a espingarda à cara, a qual por fim desfechara, em casa do Pimentel, mas que ele Cunha não aceitara.
caindo o Lázaro no chão; – que ele Cunha logo fugira e atrás dele Diogo, separando-se ambos aos Oleiros;
– que o Diogo trouxera a clavina, pedindo-lhe que não dissesse cousa alguma; – que lhe parecia que o Segue-se, depois, a respectiva tramitação judicial:
Diogo matara o outro para o roubar, por lhe ter dito antecedentemente que um seu condiscípulo, chamado
Lázaro, tinha muito dinheiro, sendo o jogo um dos meios que ele quisera empregar quinze dias antes; mas que, Sendo os acusados entregues ao poder judicial, foi o Diogo interrogado pelo juiz de direito no dia
quando vira apontar a arma, é que se lembrara da intenção do Diogo; – que não sabia quem tirara o cinto 2 de Agosto de 1855.
do dinheiro, porque fugira apenas vira Lázaro caído, parando só quando o Diogo lhe gritou que lhe faria o
mesmo; – que no dia seguinte o Diogo lhe oferecera dinheiro em casa dos Pimentéis, o qual ele não aceitara, Respondeu ele que matara o Lázaro no Salgueiral sem reflexão por causa da rixa da sabatina, como
e que também o ameaçara de que, se dissesse alguma coisa, o levaria às rolas… havia referido ao administrador do concelho, e que fora o Cunha que tirara o cinto, cujo dinheiro se
repartira em casa do Pimentel, entre ele Diogo, e Cunha, e o Fabrício, combinando com o dito Cunha
Interrogado o Diogo pelo mesmo administrador do concelho, respondeu: – que o Lázaro, à saída que um soberano, que aparecera, fosse para uma vaca ao jogo, onde se perdera; – que o cinto ficara em
da aula o convidara para passear, e que de tarde foram eles e o Cunha para o Salgueiral, levando o poder do Fabrício, a quem depois o comprara, vendendo-o a Luís Pinto; – que não praticou a morte com
Lázaro uma clavina dele Diogo, carregada com bala, que depois lha entregara para se poder embuçar; sentido no dinheiro; – que entre os três houve o propósito de maltratar o Lázaro, ou com cacetadas, ou
– que, caminhando o Lázaro na frente, ele Diogo no meio e o Cunha atrás de todos, tropeçara ele Diogo com pedradas, e mesmo de lhe dar um tiro, e que tudo isso não passara de conversa; – que não disparara
numa silva, disparando-se a arma, e caindo o Lázaro; – que fugira imediatamente e que, dizendo-lhe com a firme certeza de que o matava, mas que em parte fora com essa tenção; – que confessava o
o Cunha que por estarem perdidos fossem esconder o homem, ele respondera que não queria saber de delito, por costume que tinha da educação de confessar os pequenos delitos, e por se persuadir que a lei
esconder ninguém; o que ele queria era ver-se em casa; – que, estando essa noite em casa dos Pimentéis, favorecia mais os que confessavam; – que os outros dois, Cunha e Fabrício, tinham sido envolvidos nesta
contara tudo ao filho mais velho (Fabrício)17, que lhe disse que o melhor era calar-se para ver se se não rixa pessoal dele Diogo com o Lázaro, porque, pelo costume de andarem sempre juntos, o que se fazia
sabia nada; – e que não dera parte do acontecimento com medo de ser perseguido. a um se reputava como feito a todos.

Tornando a ser interrogado o Diogo pelo administrador do concelho em 15 de Julho, disse que quando Interrogado pelo juiz de direito o acusado Cunha no dia 3 de Agosto, respondeu ele que o
depusera, no dia 13, não estava em seu perfeito juízo por ter estado a tomar café e licor na rua da Moeda, Diogo é que matara o Lázaro, e que o Fabrício lhe dissera que aquele Diogo lhe tinha mostrado o
e que em alguns pontos tinha falado com menos verdade; – que atirara a Lázaro de propósito, não para o cinto, que ele Cunha não vira, ainda que no dia do assassinato estivesse em casa dos Pimentéis, por
roubar, mas porque, tendo sido por ele estendido numa sabatina, e dando-lhe depois um empurrão e dois estar em distância a uma janela; – que na tarde do dia da morte, o Diogo convidara o Lázaro e a
canelões, lhe ficara com zanga; – que estando os três no Salgueiral, e falando na dita sabatina, o Lázaro o ele Cunha para irem às rolas ao Salgueiral; – que ali viu o Diogo fazer pontaria ao Lázaro, com
ameaçara, levando a mão ao bolso; e pensando ele Diogo, pouco depois, que seria para lhe disparar alguma o qual depois desfechou, fugindo ele Cunha, e só demorando o passo, quando o Diogo lhe gritou
pistola, que então sem mais reflexões lhe atirara; – que o Lázaro era de forças superiores às suas; – que que, se se viesse embora, lhe fazia o mesmo; – assim com medo do Diogo fora a casa dos Pimentéis,
dias depois oferecera 1$220 réis ao Cunha para pagar o aluguer de um cavalo, mas que esse dinheiro lhe onde o Diogo lhe dava algum dinheiro em prata, que ele não quisera aceitar, ignorando a razão
fora dado por seu pai; – que o cinto de que usava era de seu primo Herculano Brandão. por que lho queria dar; – que o Diogo não lhe comunicara o projecto da morte, e que só lhe dissera
que tinha um condiscípulo que possuía muito dinheiro, que não havia meio de ele o largar, e que
Ainda em outro interrogatório do administrador do concelho disse o Diogo que quem tinha tirado desejava que jogasse para ver se lho ganhava; – que só no dia do assassinato é que viu o Lázaro
o cinto era o Cunha, que com ele fora de propósito para o assassinar; – que o dito Cunha levara o em casa do Diogo, ignorando o motivo porque lá fora; – que, se na administração do concelho
havia dito que se separara do Diogo aos Oleiros, fora porque havia sido essa a sua tenção, e por
ter ficado sobressaltado, e haver decorrido um ano depois do acontecimento; – que não sabia que
17 - Fabrício Augusto Marques Pimentel. Consta como “Aluno Voluntário” da Faculdade de Filosofia, com o nº 35. Filho de o Diogo comunicasse a alguém o projecto da morte; – e que nem antes nem depois dela conhecera
Manuel António Pimentel, natural de Coimbra, tinha domicílio na Rua da Moeda, nº 5. cinto algum ao Diogo.

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JOSÉ GURGO E CIRNE TERRAS DE ANTUÃ | HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DO CONCELHO DE ESTARREJA

O juiz de direito, voltando a interrogar o Diogo no dia 3 de Agosto, respondeu este que, quando «Querelados» – Diogo Maria d’ Araújo Santa Bárbara e Luís Maria da Cunha, como autores de
se queixara dos agravos do Lázaro ao Cunha e ao Fabrício, dissera o Cunha: o melhor é matá-lo; assassinato na pessoa de Lázaro Tavares Afonso e Cunha.
homem morto não fala; – que repartira o dinheiro com o Fabrício, posto não tomasse parte no sucesso:
– primo, «por lhe constar logo o acontecimento, assim que de lá veio; secundo, porque era costume «Juiz» – O bacharel ManuelVilela de Sousa Araújo Barbosa.
entre eles o bem e o mal ser por todos três»; –que o Cunha é que tirara o cinto, dizendo-lhe que o morto
«ainda pestanejara ou mexera os olhos»; – que no mesmo dia e tarde seguinte o dito Cunha trazia a «Advogados» – Do primeiro querelado o dr. José Adolfo Trony; e do segundo o bacharelVenâncio da
mania de que lhe cheiravam as mãos à pólvora, e tanto assim que, junto do muro do quintal do médico Costa Alves Ribeiro.
Costa Fernandes, ele Diogo subira aos ombros do Fabrício para cortar um pouco de limonete, que lhe
dera para esfregar as mãos. «Jurados» – Presidente, dr. José Joaquim Manso Preto, António Joaquim da Silva Ferreira, Henrique
O’ Neill, José da Costa Santos, José Alexandre, Manuel Maria Pereira da Silva, José da Costa, José
O célebre cinto, tirado com o dinheiro ao Lázaro, apareceu em poder de um particular no dia 25 Joaquim de Sousa Pereira, Manuel Duarte Areosa, Francisco Lopes Sobral, Julião Nogueira Coimbra e
de julho de 1855, em conformidade com a declaração de Diogo. João José Nogueira.

A requisição do ministério público e ordem do governador civil foi preso no dia 3 de Setembro do Começou a audiência às dez horas da manhã, e acabou às quatro horas da madrugada do dia seguinte.
mesmo ano Fabrício Augusto Marques Pimentel, estudante de filosofia, a quem os acusados se referiam
nas suas declarações, e em cuja morada diziam ter sido feita a partilha do dinheiro. Durante todo esse tempo esteve sempre a sala completamente cheia de espectadores, sendo geral e
muito grande o interesse por esta causa.
Por despachos de 7 e 10 do mesmo mês de Setembro de 1855 foram indiciados sem fiança os três
acusados. Depois do depoimento das testemunhas procedeu o juiz ao interrogatório dos dois acusados, cada
um dos quias procurou lançar de si a parte mais odiosa do crime.
Diogo Maria Santa Bárbara foi indiciado como «réu de homicídio voluntário e premeditado,
acompanhado de roubo». Seguiu-se a orar o delegado do procurador régio, que ao terminar o seu enérgico discurso, tirando partido
da circunstância de o assassinado se chamar «Lázaro», disse: – «Se a minha voz tivesse o poder que tinha o
Luís Maria da Cunha foi indiciado «por tomar parte no homicídio e roubo, praticados pelo Diogo». Redentor do Mundo, eu diria agora como aquele: – ‘Surge, Lazare’ e então apresentando-se aqui no meio de
nós aquele cadáver decapitado, em corrupção e semidevorado pelos animais, não seríeis vós, senhores jurados,
Fabrício Augusto Marques Pimentel foi indiciado como «cúmplice no referido homicídio e roubo». que condenaríeis os réus; haviam de ser seus próprios pais, que como Bruto18 os sentenciariam!»

O Diogo não agravou. Os dois advogados seguiram na sua defesa o plano adoptado pelos acusados, desviando de cada um
dos clientes a parte mais odiosa da acusação.
O Cunha agravou para a relação do Porto, mas não foi atendido.
Depois da decisão condenatória do júri passou imediatamente o juiz de direito Vilela a lavrar a
O Fabrício agravou para o mesmo tribunal, e obteve ser despronunciado por acórdão de 30 de sentença, que pelas quatro horas da madrugada foi lida, e é a seguinte:
Janeiro de 1856.
(Segue-se a sentença.)
Segue-se o julgamento…
“Vistos estes autos, em que os réus Diogo Maria d’ Araújo Santa Bárbara e Luís Maria da Cunha
No dia 2 de Agosto de 1856 começou a audiência para o julgamento dos acusados. são arguidos e acusados de terem, em 7 de Junho de 1854, no sítio do Salgueiral, subúrbios desta
cidade, morto Lázaro Tavares Afonso e Cunha, isto de propósito, e com o fim principal de lhe subtraírem
A casa do tribunal era na sala do antigo cartório da Misericórdia, ao princípio da rua da Calçada, um cinto com dinheiro:
hoje de Ferreira Borges, onde posteriormente esteve a Associação Comercial e agora está novamente o
cartório da Misericórdia.
18 - Marco Júnio Bruto (86 a.C.-42 a.C.), político e militar romano, entrou numa conjura para assassinar César, tido por
seu pai e que sempre o havia protegido. “É o protótipo do republicano inflexível, capaz de sacrificar a própria vida em defesa
«Querelante» – O ministério público, representado pelo delegado Augusto de Abreu Castelo Branco. dos seus princípios” (cf. Lello [Vol.I], 1992:395).

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E porque, segundo a decisão do júri, os réus sobreditos se acham convencidos do crime de que são 1854. Era estudante do Liceu de Coimbra e preparava o seu ingresso na Faculdade de
arguidos e acusados, praticando o facto criminoso de propósito, e para o fim da subtracção dum cinto Direito. (Não tinha ainda, pois, a idade de 20 anos que o Reitor Manuel Ruela lhe atribui,
com dinheiro, e é por isso aplicável aos mesmos réus o art. 351 do cód. Pen. – ibi: à data da sua morte, nem a qualidade de estudante do curso jurídico.)

«Será punido com a pena de morte19 o crime de homicídio voluntário declarado no art. 349, A irmã mais velha e 1ª filha do referido casal, chamava-se Ana Maria Tavares Afonso
quando concorrer qualquer das circunstâncias seguintes – premeditação – e quando o crime tiver por Vigário, nasceu em 26 de Julho de 1817 e faleceu em 10 de Outubro de 1881. Em 23
objecto preparar, ou facilitar, ou executar qualquer outro crime.» de Novembro de 1852, casou com António Joaquim Pereira de Sousa, do lugar dos
Passadouros, na freguesia do Bunheiro, não tendo tido descendência.
Atendendo, porém, a que os réus são menores, e tinham cerca de 17 anos de idade ao tempo do delito:
O 2º filho do casal chamou-se Manuel José Tavares Afonso e Cunha, nasceu em 3 de
Atendendo a que o réu Diogo Maria, por ser agente directo do crime, ou aquele que se encarregou Outubro de 1818 e faleceu (de “bexigas negras”, segundo nota manuscrita deixada pelo
de disparar o tiro, como disparou, e ser tido e reputado como amigo do homicidado, convidando-o à seu sobrinho Dr. António Tavares Afonso e Cunha) em16 de Janeiro de 1842, no estado de
caça das rolas, é por isso mais criminoso e deve ter maior castigo: solteiro e sem descendência. Cursou direito em Coimbra e é tradição familiar que a sua
morte inesperada ocorreu no alpendre da casa paterna, no Celeiro, quando aguardava o
Atendendo ao que dispõe o cód. Pen. no art. 71, e ao que dispões no art. 99: ingresso na carreira da magistratura, na comarca de Vila da Feira21.

Por isso, e por tudo o mais, havendo por supridos os defeitos supríveis do processo, e suas Do seu assento de óbito, o Pároco da freguesia do Bunheiro, na altura, António José
irregularidades, condeno o réu Diogo Maria d’ Araújo Santa Bárbara em degredo por toda a vida para Pinto da Cunha, regista o seguinte:
a Africa Oriental, agravado com prisão por dez anos; e o outro réu Luís Maria da Cunha em degredo,
também por toda a vida, para a África Ocidental, e ambos paguem as custas do processo. À margem: “F. famª”22. E no texto: “Manuel, filho de Manuel Tavares Amador, do Celeiro, desta
freguesia do Bunheiro, faleceu da vida presente com todos os sacramentos no dia dezasseis de Janeiro de
Coimbra, 3 de Agosto, e quatro horas da manhã de 1856. mil oitocentos e quarenta e dois e no dia dezassete do mesmo foi sepultado no Adro da Igreja, de que
fiz este assento que assino. «Era et supra.»”
ManuelVilela de Sousa Araújo Barbosa.”
Seguiu-se-lhe, como 3º filho do casal, Domingos Tavares Afonso e Cunha, nascido em
Concluindo, impõe-se aqui uma nota circunstanciada nota biográfica, ainda que não 26 de Março de 1820 e falecido, também na casa paterna, em 8 de Junho de 1889. (Por
de todo exaustiva, sobre a família do desafortunado estudante. Lázaro Tavares Afonso e vezes acrescentava “Amador” ao apelido.) Ordenado padre, fixou residência em Aveiro,
Cunha20 era o 13º filho do casal constituído por Manuel Tavares Amador e Maria Afonso onde viveu, na Rua do Vento, como hóspede da família Regala. Foi capelão e tesoureiro da
Vigário. Nasceu em 5 de Novembro de 1835 e faleceu, como se viu, em 7 de Junho de Sé de Aveiro até à sua extinção em 1881, professor no Seminário e, de passagem, no então
criado Liceu de Aveiro (actualmente Escola Homem Cristo).

19 - Na sequência da proposta apresentada em 27 de Fevereiro de 1867 na Câmara dos Deputados, por Barjona de Freitas Por vocação, dedicou-se durante muitos anos também ao ensino livre. Após o assassinato
(1834-1809), Ministro dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça, a extinção da pena de morte para crimes civis viria a ser do Pe. José da Anunciação Portugal (por sinal, um murtoseiro), na noite de 30 para 31 de
finalmente aprovada por Carta de Lei de 1 de Julho de 1867. (Note-se que, desde 1842, já não se registava nenhuma execução.)
20 - Sobre ele, deixou o seu sobrinho-neto, ao tempo ainda solteiro, lavrador, de 22 anos de idade, “desta casa dos Tavares
Março de 1866 (respectivamente Sexta-Feira Santa e Sábado de Aleluia) às mãos dos sicários
Afonso e Cunho do lugar do Celeiro e freguesia do Bunheiro”, a seguinte Lembrança comemorativa: “Plantei na terra denominada de João Brandão (cf. Pinto, 2004:148-149), passou a administrar a Casa de Almeidinha, como
Celeiro de Baixo no dia vinte e oito de Dezembro uma pinheirinha no sítio onde existiu uma outra deitada abaixo por um ciclone procurador do 2º Visconde do mesmo título, João Carlos do Amaral Osório de Sousa Pizarro.
que por aqui passou no dia dezasseis de Janeiro do ano passado (1922)./ Conta-se que esta pinheira destruída fora plantada
por um tal Lázaro Tavares Afonso e Cunha, que foi desta casa, quando andava a brincar com um irmãozito (…)./ Mais se
conta deste Lázaro que, mais tarde, sendo estudante de Direito em Coimbra, fora ali traiçoeiramente assassinado nas margens
do Mondego por um seu condiscípulo, com tiros de revólver./ A pinheirinha de que vinha falando e ontem plantei mede um
palmo de altura e foi nascida debaixo duma outra pinheira mãe que está (…) no cômoro de loureiros da estrema do Aido e 21 - Da “Relação e Índice Alfabético dos Estudantes Matriculados Na Universidade de Coimbra e No Liceu…”, consta o
Terras da Ribeira do Martinho./ Peço portanto a quem esta lembrança vir que a leia e conserve respeitosamente (…)./ Feito seguinte: frequentou o 1º Ano de Direito em 1837-38, com domicílio na Rua do Norte, nº 352; o 2º Ano em 1838-39,
isto no escritório desta casa aos vinte e nove dias do mês de Dezembro do ano de 1922./ Eu o escrevi e guardo./ António embora o seu domicílio não esteja identificado; o 3º Ano, com domicílio na Rua do Norte, nº 352; o 4º Ano, com domicílio
Tavares Afonso e Cunha Jr.” Lamentavelmente, há meia dúzia de anos, a Câmara Municipal da Murtosa mandou deitar abaixo na Rua do Norte, nº 135; e o 5º Ano, com domicílio na Feira, nº 258. (Ressalve-se uma eventual confusão entre o seu
esta pinheira, sob pretexto de que as suas raízes estavam a empolar o asfalto da estrada próxima… Era uma pinheira molar, domicílio académico e a comarca da sua colocação.)
exemplar raríssimo, cujo miolo das sementes se alcançava com a simples pressão da polpa dos dedos. 22 - Filho-família.

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Registe-se, a título de mera curiosidade, que o 2º Visconde de Almeidinha faleceu em O 9º filho chamou-se Evaristo Tavares Afonso e Cunha, nascido em 28 de Novembro de
30 de Maio de 1890, dia em que deveria ser assinado o Decreto que o nomeava Governador 1829. Casou em 20 de Agosto de 1863 com Maria Rosália Pereira de Sousa, sua vizinha,
Civil de Aveiro. Desconhecemos onde funcionava então o Governo Civil, mas quis a ironia também do Celeiro, freguesia do Bunheiro, tendo deixado descendência.
do destino que viesse depois a ser instalado no solar que ele possuía em Aveiro, não obstante
o mesmo ter sido entretanto palco de pavoroso incêndio. E aí se manteve, no mesmo O 10º filho foi a irmã gémea do anterior, Rosa Delfina, nascida na mesma data e falecida
edifício, entretanto recuperado, até à extinção, já em nossos dias, de tal circunscrição ainda menina, em 5 de Março de 1833.
administrativa (Pina et al, 2006:106-107).
O 11º filho chamou-se António, nasceu em 28 de Abril de 1831 e faleceu em 14 de
O 4º filho do casal foi Miguel Tavares Afonso e Cunha, nascido em 29 de Setembro de Outubro do mesmo ano.
1821. Casou em primeiras núpcias, em 8 de Outubro de 1843, em Pardilhó, com Ana
Joaquina de Abreu Freire, daí. Deste primeiro casamento não houve descendência. Ao 12º também foi dado o nome de António, o qual se assinou António Tavares Afonso
e Cunha (tal como o sobrinho homónimo, o Dr. António Tavares Afonso e Cunha, último
Após o falecimento da esposa, casou em segundas núpcias, em 3 de Fevereiro de presidente da Câmara Municipal de Estarreja durante o regime monárquico.)
1872, também em Pardilhó, com Ana Joaquina Valente Teixeira. Deste casamento
houve quatro filhos: Pe. José Luciano Afonso e Cunha, que paroquiou a freguesia de Nasceu em 8 de Janeiro de 1833 e faleceu em 11 de Agosto de 1909. Casou em 11 de
Stº Aleixo, concelho de Moura, no Alentejo, tendo depois emigrado para a Califórnia, Maio de 1871 com Clementina Alves Valente, do lugar da Lagoinha, freguesia do Bunheiro,
onde continuou o exercício do seu múnus pastoral; Maria Luciana, professora do mas não teve descendência, indo, já viúvo, residir para a casa paterna. Faleceu em Estarreja,
ensino primário, solteira; Dr. Caetano Tavares Afonso e Cunha, advogado, conservador onde se encontrava hospedado, na pensão da Sra. Ana de Jesus Mortágua, (Se não erramos,
do Registo Civil em Estarreja, que casou em Angeja, dele sendo filho o médico Dr. chegou a ser vereador da Câmara Municipal de Estarreja, quando a mesma era presidida
Domingos Ferreira Afonso e Cunha, que foi Delegado de Saúde em Aveiro; e Maria por Francisco Barbosa.) Ficou sepultado no cemitério de Beduído, à semelhança do que
Amélia, também professora do ensino primário, que casou com Manuel Maria Cirne, viria a suceder, mais tarde, com o já referido sobrinho.
com a mesma profissão, do lugar das Teixugueiras, em Pardilhó. Deste casamento houve
outro Miguel, que após cursar Enologia em Bordéus, se estabeleceu profissionalmente O 13º, como já vimos, foi Lázaro Tavares Afonso e Cunha, de que acima tratámos.
em Trás-os-Montes, no concelho de Montalegre. Porém, o casal constituído por Manuel Tavares Amador e Maria Afonso Vigário, teve ainda
outro filho mais novo; ou, melhor, uma filha:
O 5º filho foi Agostinho Tavares Afonso e Cunha, nascido em 15 de Março de 1823,
que casou em 10 de Novembro de 1875 com Joaquina Alves da Silva, dos Passadouros, O 14º filho foi Joana Maria Tavares, nascida em 12 de Novembro de 1837. Casou em 13
freguesia do Bunheiro, com descendência. de Janeiro de 1863 com Manuel José Pereira de Sousa (irmão da atrás mencionada Maria
Rosália Pereira de Sousa), também do Celeiro, freguesia do Bunheiro, e viria a ser avó
O 6º filho foi José Tavares Afonso e Cunha, nascido em 17 de Junho de 1824 e falecido materna do já falecido Dr. José Tavares Afonso e Cunha.
em 18 de Novembro de 1909, no estado de solteiro e sem descendência.
Resumindo, o infausto estudante Lázaro Tavares Afonso e Cunha era tio-avô do Dr. José
O 7º filho foi apenas registado como João, nascido em 27 de Fevereiro de 1826 e Tavares Afonso e Cunha23, durante muito tempo conservador do Registo Civil da Murtosa,
falecido, ainda infante, em 4 de Agosto do mesmo ano. presidente da Câmara Municipal deste concelho, advogado respeitado pela sua rectidão e
saber, e autor de “Notas Marinhoas”, obra incontornável da historiografia local.
O 8º filho, nascido em 15 de Julho de 1827 e falecido em 19 de Maio de 1841, também se
chamou João. No respectivo Livro de Óbitos, o Pároco António José Pinto da Cunha anotou:

À margem: “F. famª “. E no texto: “João, filho de Manuel Tavares Amador, do lugar do Celeiro,
desta Freguesia de S. Mateus do Bunheiro, tendo quase catorze anos de idade, faleceu da vida presente, 23 - Sobre ele, o seu irmão mais velho, que, entre vários cargos públicos, durante anos foi vereador da Câmara Municipal da
absolvido «Sub Conditione», com a Extrema Unção, no dia dezanove de Maio de mil oitocentos e Murtosa, assumindo a presidência interina da mesma após o golpe militar de 25 de Abril de 1974, deixou também a seguinte
lembrança manuscrita: “No dia vinte e dois de Outubro foi o meu irmão José Tavares Afonso e Cunha para o Colégio del Pasaje,
quarenta e um, e no dia vinte do dito mês e ano foi sepultado no Adro desta Igreja, e para constar fiz La Guardia, em Galiza, Espanha, colégio este dos Jesuítas, sendo director ou reitor do mesmo o Revmo. Pe. Manuel Tavares
este assento que assinei. «Era et supra»”. Rebimbas, natural da Murtosa./ Bunheiro, 23 de Outubro de 1923./ António Tavares Afonso e Cunha, Jr.”

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JOSÉ GURGO E CIRNE TERRAS DE ANTUÃ | HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DO CONCELHO DE ESTARREJA

Bibliografia CARLOS MARQUES RODRIGUES: O IMPULSIONADOR


Barata, António Francisco. 1878. Miscelânea histórico-romântica, Barcelos, Tipografia da DA EDIFICAÇÃO DA CENTRAL DE ENERGIA ELÉTRICA - A
Aurora do Cávado.
TURBINA DE ESTARREJA
Carvalho, Joaquim Martins de. 1890. Os assassinos da Beira: novos apontamentos para a história Juliana Cunha *
contemporânea, Coimbra, Imprensa da Universidade (1ª Edição).
**
Carvalho, Joaquim Martins de. 1922. Os assassinos da Beira: novos apontamentos para a história “Pretende-se instalar uma linha de transporte de energia
contemporânea, Coimbra, Coimbra Editora, Lda. (2ª Edição). eléctrica a 2.000 volts destinada a fornecer força motriz para a
fábrica de moagem e descasque de arroz “A Hidro-Eléctrica” na
Castro, Augusto Mendes Simões de. 1867. Guia histórico do viajante de Coimbra, Coimbra, vila de Estarreja. A distância da central à fábrica segundo a linha
Imprensa da Universidade. projectada é de 1870 m.”1

Figueiredo, A. C. Borges de. 1886. Coimbra antiga e moderna, Lisboa, Livraria Ferreira. In Memória Descritiva – Projecto da linha de transporte de energia eléctrica para a
Fábrica de Moagem do Senhor Carlos Marques Rodrigues na Vila de Estarreja
Fonseca, Augusto d’Oliveira Cardoso. 1911. Outros tempos ou velharias de Coimbra, s/l,
Livraria Tabuense.
No anterior número da Revista Terras de Antuã, abordamos a temática da antiga Fábrica
Lello Universal: dicionário enciclopédico luso-brasileiro, Porto, Lelo & Irmão, 1992 (Vols. I e II). de Descasque de Arroz, a “Hidro-Eléctrica de Estarreja, focando igualmente alguns aspetos
da vida do seu fundador: Carlos Marques Rodrigues (1882-1976). Além deste património
Pina, Miguel Esperança; Borrego, Nuno; Freitas, Lourenço Vilhena de. 2006. Os titulares e que marcou a história do desenvolvimento e progresso industrial no Concelho, este homem
os oficiais da Patuleia: ordens gerais da Junta Provisória do Governo Supremo do Reino (1846-1847), empreendedor e avançado no tempo foi o impulsionador da edificação da central de energia
Lisboa, Tribuna da História. elétrica: a afamada turbina em Estarreja. Situada nos terrenos da Quinta da Costa, que se
desenvolvem confinando com o rio Antuã e propriedade da família Marques Rodrigues, foi
Pinto, José M. Castro. 2004. João Brandão: «o terror da Beira», Lisboa, Plátano Editora. outrora um símbolo de inovação e tecnologia. Com uma visão inovadora, Carlos Marques
Rodrigues projetou e impulsionou a edificação da central de energia elétrica para “iluminação
da propriedade agrícola, constituída pelos terrenos e casas designadas por Quinta da Costa”2
e, para “servir com força motriz a Fábrica de Moagem e Descasque de Arroz em Estarreja.”3
Fontes Consultadas
ADAVR – “Assentos de Baptismos” da Freguesia do Bunheiro (1824-1840). Ambas idealizadas e impulsionadas por Carlos Marques Rodrigues, a central
ADAVR – “Assentos de Baptismos” da Freguesia do Bunheiro (1810-1827). hidroelétrica forneceu à Fábrica de Descasque de Arroz um recurso essencial para o seu
ADAVR – “Registos de Óbitos” da Freguesia do Bunheiro (1810-1827). desenvolvimento e progresso. Além da fábrica, e junta a esta, as casas e propriedades da
ADAVR – “Registos de Óbitos” da Freguesia do Bunheiro (1827-1840). família Marques Rodrigues também passaram a usufruir da mesma energia vinda da turbina
ADAVR – “Registos de Óbitos” da Freguesia do Bunheiro (1827-1840). e gerada pelas águas do rio Antuã.
ADAVR – “Registos de Óbitos” da Freguesia do Bunheiro (1840-1848).
ADAVR – “Registos de Óbitos” da Freguesia do Bunheiro (1849-1859).
“RELAÇÃO e Índice Alfabético dos Estudantes Matriculados Na Universidade de Coimbra * Licenciada em Ciência da Informação Arquivística e Biblioteconómica pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
e no Liceu no Ano Lectivo de 1839 para 1840, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1839. ** Voto de agradecimento àqueles que, na construção deste texto, viabilizaram o acesso às fontes primárias de informação,
Idem, Ano Lectivo de 1840 para 1841, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1840. designadamente José Carlos Antão da Costa Maques, entretanto falecido (1954-2018), neto de Carlos Marques Rodrigues
e Anabela Amorim, esposa de Carlos Eurico Figueira Marques, neto de Carlos Marques Rodrigues.
Idem, Ano Lectivo de 1841 para 1842, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1841. 1 - Documento gentilmente cedido pelo senhor José Carlos Antão da Costa Marques.
Idem, Ano Lectivo de 1842 para 1843, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1842. 2 - In Memória Descritiva – Plano sobre a instalação na Central Elétrica do lugar da Quinta da Costa. [sem data]. Documento
gentilmente cedido pelo senhor José Carlos Antão da Costa Marques.
Idem, Ano Lectivo de 1843 para 1844, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1843. 3 - In Memória Descritiva – Projeto sobre a ampliação da central elétrica no lugar da Quinta da Costa, 1934. Documento
Idem, Ano Lectivo de 1853 para 1854, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1853. gentilmente cedido pelo senhor José Carlos Antão da Costa Marques.

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