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Psicol. Pesqui. | Juiz de Fora | 13(1) | 42-52 | Janeiro-Abril de 2019 DOI: 10.24879/2019001300123799 Psicol. Pesqui.

879/2019001300123799 Psicol. Pesqui. | Juiz de Fora | 13(1) | 42-52 | Janeiro-Abril de 2019

Mulheres e loucura: a (des)institucionalização e as (re)invenções do feminino na saúde mental número do parecer 2.075.850. Também foi submetido e Diante desse cenário, o Fórum da Luta
aceito pela área de Divisão de Estágio, Aperfeiçoamento, Antimanicomial de Sorocaba (FLAMAS) denun-
Women and madness: the (des) institutionalization and the (re)inventions of the feminine in mental health Especialização e Residência em Saúde da Secretaria de ciou essas violações que ocorriam no interior dos sete
Saúde local. manicômios de Sorocaba e região, o que repercutiu na
Thaiga Danielle Momberg Silva ¹ A relevância do presente estudo está atrelada à assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta
Marcos Roberto Vieira Garcia ² mudança da lógica manicomial presente na cidade e a (TAC), no final de 2012, obrigando os entes federativos
Universidade Federal de São Carlos - UFSCar implementação de uma rede substitutiva, entendendo (União, Estado e municípios envolvidos) a desativar os
que deve possibilitar novas abordagens, princípios e manicômios da região em um prazo de 4 anos, o que
valores às pessoas em situação de sofrimento psíquico, se configurou como o maior processo de desinstitucio-
sendo capaz de impulsionar formas mais adequadas nalização no Brasil recente. O manicômio Vera Cruz
Resumo
de cuidado no seu âmbito familiar, social e cultural tornou-se conhecido nacionalmente como “palco das
A partir de uma pesquisa qualitativa desenvolvida por meio de observação participante, entrevista aberta e análise de prontuários, o artigo almejou
investigar as especificidades das mulheres no processo de desinstitucionalização na cidade de Sorocaba/SP, considerando como as questões de gênero (Valverde, 2010). atrocidades” a partir das graves violações de direitos
se articulam com a loucura. Buscou compreender, também, como as mulheres que atualmente residem nos Serviços Residências Terapêuticos (SRTs) Segundo Rotelli e colaboradores (2009), a base humanos denunciados no Programa televisivo Conexão
vivenciam sua independência diante das marcas da institucionalização, levando em consideração todo o silenciamento histórico vivenciado, o que se Repórter, que registrou pacientes comendo fezes, sem
soma ao estigma da loucura atribuído a elas. Os resultados demonstraram dispositivos de controle da sexualidade e da feminilidade no manicômio e, dos projetos de desinstitucionalização reside na ruptura
também, fora dele, que levam à infantilização e à tutela das moradoras. Ressalta-se, a partir disso, a necessidade de interseccionar a discussão da saúde da causalidade linear da doença-cura, problema-solu- roupas, sem colchão para dormir, além de violência
mental com as questões de gênero, classe e raça. ção, e na reconstrução do “objeto” enquanto sujeito his- física e verbal por parte dos funcionários e trabalhos
tórico. Ainda, ressaltam que as novas instituições devem forçados, em imagens que chocaram a sociedade, que
Palavras--chave: Saúde mental; Serviços Residenciais Terapêuticos; Desinstitucionalização; Mulheres.
estar à altura da complexidade da tarefa de intervir na quase nunca tem acesso ao que ocorre do outro lado
sua existência-sofrimento, remetendo ao processo da dos muros desses espaços.
Abstract constante reconstrução do sujeito. Cabe salientar que Buscou-se no decorrer da pesquisa problemati-
TBased on a qualitative research developed through participant observation, open interview and analysis of patients’ records, the article aimed to as dificuldades de superação do modelo manicomial vão zar a saúde mental e a questão de gênero, defendendo
investigate the specificities of women in the process of deinstitutionalization in the city of Sorocaba / SP, considering how gender issues are articulated a perspectiva que a saúde mental masculina é tratada
with madness. It also sought to understand how the women who currently reside in the Therapeutic Residences Services (SRTs) experience their além do mero fechamento de hospitais e da abertura
de forma distinta da feminina, desde a maneira de se
independence in the face of the marks of institutionalization, taking into account all the historical silencing experienced, which adds to the stigma de novos serviços, pois há uma lógica historicamente
of the madness attributed to them. The results demonstrated mechanisms of control of sexuality and femininity in the asylum and, also, outside it, compreender a doença e suas causas, como na forma de
institucionalizada a ser rompida.
which lead to the infantilization and guardianship of the dwellers. From this, we emphasize the need to intersect the discussion of mental health with tratá-la. De acordo com Scott (1995, p. 11), entende-
De acordo com o Ministério da Saúde (2004), o
issues of gender, class and race. -se gênero, aqui, como “um elemento constitutivo de
Serviço Residencial Terapêutico (SRT) – ou residência
relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre
Keywords: Mental health. Therapeutic Residential Services. Deinstitutionalization. Women. terapêutica ou simplesmente “moradia” – “são casas
os sexos”, e “(...) uma forma primeira de significar as
localizadas no espaço urbano, constituídas para respon-
relações de poder”.
der às necessidades de moradia de pessoas portadoras de
O presente artigo apresenta uma pesquisa cujo a elas, interseccionando a discussão também pelas cate- Para Beauvoir (1980), a mulher foi sempre tra-
transtornos mentais graves, institucionalizadas ou não”. tada como o outro, como o segundo sexo, e essas dife-
tema é o processo de (des)institucionalização na área da gorias de raça e classe.
(Brasil, 2004, p. 6). A proposta de criação dos SRTs foi renças são produzidas e mantidas no âmbito social e
saúde mental em Sorocaba, com o intuito de investigar O trabalho da pesquisa se consolidou por meio desenvolvida com o intuito de possibilitar a redução de
as especificidades das mulheres egressas de manicômios, de observação participante de SRTs femininas, aná- cultural. Ao abordar a questão de gênero enquanto saber
leitos dos manicômios, auxiliando as/os moradoras/es e considerar as relações de poder presentes na diferença
considerando como as questões de gênero se articulam lise de prontuários de suas moradoras nos serviços de na superação da condição cronificante e estigmatizante
com sua tutela e/ou independência. saúde mental e entrevista aberta com uma delas. A pes- entre o que é ser homem e o que é ser mulher, pode-
de “moradores de hospital”. -se afirmar que o silêncio e a invisibilidade caracteri-
Buscou compreender, também, como as mulhe- quisa3 seguiu os parâmetros éticos recomendados, o que A região na qual Sorocaba se encontra foi até
res que atualmente residem nos Serviços Residências incluiu sua explicação minuciosa, a garantia de anoni- zam a história das mulheres. O lugar das mulheres no
recentemente, o maior da América Latina em termos espaço público sempre foi problemático, pelo menos no
Terapêuticos (SRTs) vivenciam sua independência mato para as participantes e a apresentação do Termo de de concentração de instituições do tipo, passando a ser mundo ocidental. O homem público, sujeito eminente
diante das marcas da institucionalização, levando em Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O projeto considerado o maior polo manicomial do país. Sorocaba da cidade, encarnava a honra e a virtude. A mulher
consideração todo o silenciamento histórico vivenciado de pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comitê de teve um histórico da presença de manicômios desde a pública constitui a vergonha, a parte escondida, terri-
por estas, o que se soma ao estigma da loucura atribuído Ética em Pesquisa da Universidade (referência omitida), abertura de uma colônia agrícola provisória no final tório de passagem, sem individualidade própria (Perrot,
do século XIX, passando pela abertura de um pequeno 2007). Para Perrot (2007), a invisibilidade e o silencia-
¹ Possui Mestrado em Educação pela Universidade Federal de São Carlos. Possui graduação em Psicologia pela Universidade Paulista. Atualmente é manicômio em 1928 e pela grande expansão destes mento fazem parte da história das mulheres, pois elas
psicóloga na Prefeitura da Estância Turística de Salto. nas décadas de 60 e 70, durante o regime militar, com atuam em família, confinadas em casa, sem liberdade,
² Possui graduação em Psicologia pela Universidade de São Paulo (1992), mestrado em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (2000) a contratação de leitos privados pelo sistema público
e doutorado em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (2007). É professor do Departamento de Ciências Humanas e Educação da
e esta “invisibilidade” é a garantia de uma cidade tran-
Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR) - Campus Sorocaba, professor permanente do Programa de Mestrado em Educação da UFSCar - de saúde, o que gerou uma “indústria manicomial” na quila, sendo sua aparição, inclusive, motivo de medo.
campus Sorocaba; coordenador do Grupo de Pesquisa “Saúde Mental e Sociedade” (UFSCAR) e integrante do Núcleo de Estudos para a Prevenção região (Garcia, 2012). Cabe ressaltar que alguns regis- Cabe ressaltar, ainda, a necessidade de raciali-
da Aids (NEPAIDS/USP) e do Grupo de Pesquisa Educação, Comunidade e Movimentos Sociais (GECOMS/UFSCar); coordenador do Centro tros apontam que as condições das/os internas/os nesse zar o debate político, levando em consideração que o
de Referência em Educação na Atenção ao Usuário de Drogas da região de Sorocaba (CRR-UFSCar-Sorocaba).
³ A pesquisa foi apresentada na dissertação de mestrado junto ao Programa de Pós-Graduação e Educação da UFSCar – campus Sorocaba manicômio eram de extremo sofrimento e violação de Brasil foi marcado por mais de 354 anos de escravidão
(Momberg, 2018). direitos humanos. negra e tornou-se o último país do mundo a aboli-la,

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relembrando a desumanização das pessoas escravizadas, diversas violências e exclusões sociais que as questões proteção de pais e mães é supostamente transferida para tarde e não adiantou tomar o chá, não des-
suas dores e tortura e múltiplas violências. De acordo étnico-raciais produzem. No contexto da saúde mental, as/os profissionais dessas instituições. ceu, eu me sentia triste, eu era danada, nós
com Davis (2016), a categoria “mulher” pode ser con- deve-se ampliar o debate das questões de gênero, raça era pobre, faltava as coisas, tive irmãos e
siderada uma armadilha se despojada do seu contexto e classe, que são pouco problematizadas e reproduzem MÉTODO minha tia não quis cuidar de mim, fui morar
racial e de classe. Considera que os mitos fundadores da formas de opressões, que reforçam a invisibilidade que com minha vó”. (Antônia)
feminilidade – que são caracterizados pela delicadeza, essas mulheres vivenciam pelo estigma que carregam A pesquisa se concentrou em dois Serviços
fragilidade, instinto materno natural, dedicação aos enquanto “loucas”. Residenciais Terapêutico (SRTs) femininos, compos- Segundo informações encontradas no
cuidados e submissão – são, na verdade, construções As mulheres da presente pesquisa são negras e tos – cada um – por 10 egressas de um manicômio seu prontuário:
sociais e políticas, frutos do capitalismo, que necessita pobres. Entende-se que tais componentes facilitam a feminino na cidade de Sorocaba-SP. Caracteriza-se
da produção e reprodução no lar de seres humanos para marginalização e a institucionalização precoce, resul- como uma pesquisa de abordagem qualitativa a partir Na infância Antônia morava com seus pais
o trabalho, mediante a criação da figura típica da “dona tando na manicomialização. A mulher pobre e negra da produção de narrativas e tendo como fonte de dados e sua irmã mais nova, com diversas dificul-
de casa”, ao mesmo tempo em que cristaliza o trabalho carrega o sofrimento e a estigmatização desde o passado os prontuários, observação participante (apoiada em dades principalmente financeiras. Seu pai
doméstico como aquele não-produtivo e sem remu- colonial até os dias atuais. As inúmeras discriminações diário de campo) e entrevista aberta com uma moradora veio a falecer quando ela estava com 3 anos
neração. A estudiosa também ressalta que as mulheres de gênero, raça e classe se refletem diretamente nas de SRT Também foi utilizado material escrito (cartas) de idade. A mãe apresentava problemas de
negras, durante e após a escravidão, trabalharam for- representações em relação ao “ser mulher negra”, seja de uma moradora, de acordo com seu pedido, que alcoolismo, necessitando sempre de auxílio
temente fora de casa, sendo oprimidas e violentadas. em relação ao seu corpo enquanto objeto sexual, ou ao optou por não gravar entrevista, mas desejou contribuir de membro da família para cuidar das filhas.
Segundo Brah (2006), não podemos analisar trabalho doméstico como seu destino natural, o que para a investigação. Por volta dos 6 anos de idade foi morar com
isoladamente os problemas que afetam as mulheres, favorece a institucionalização precoce desde a infância, A análise de prontuários corresponde a uma os avós paternos. Neste local começou a fre-
muito menos universalizá-los: “Dentro dessas estruturas o que inclui a manicomialização. Para Santos (2009), modalidade de análise documental. Para Souza, quentar a escola, onde apresentava dificul-
de relações sociais não existimos simplesmente como ser mulher e negra no Brasil significa estar inserida em Kantorski e Luiz (2011), que investigam a análise de dades de aprendizagem e possuía poucos
mulheres, mas como categorias diferenciadas” (Brah, um ciclo de marginalização e de discriminação social. prontuários no campo da saúde mental, é importante amigos. Após aproximadamente 3 anos,
2006, p. 341), isto é, os discursos de feminilidades De acordo com Engel (2006), a loucura das que as informações sejam trabalhadas para torná-las voltou a morar com a mãe em uma casa
assumem significados específicos a partir das diferen- mulheres se refere o tempo todo a uma suposta “essên- mais compreensíveis, correlacionando-as aos dados simples com condições precárias e com difi-
ças trajetórias que atravessam não apenas as questões cia” feminina e sua sexualidade, enquanto a loucura oriundos de outras fontes, como é o caso dos diários culdades financeiras. Na adolescência apre-
de gênero, mas de raça, classe, sexualidade, geração, masculina se manifestaria na capacidade que os homens de campo da observação participante e da entrevista sentava auto-estima rebaixada, insegurança
entre outros. teriam ou não em desempenhar seus papeis na socie- no caso da presente pesquisa. para trabalhar e para relacionamentos amo-
Lugar de ambiguidades e espaço por excelência da dade. Assim, a mulher é historicamente diminuída, Os diários de campo, prontuários e entrevista rosos. Trabalhou em diversas casas de famí-
loucura, o corpo e a sexualidade femininos inspiraram aprisionada à uma ideia esperada de corpo e sexualidade, foram analisados a partir da proposta de análise lia como empregada doméstica (Prontuário
grande temor aos médicos e aos alienistas, constituindo- enquanto ao homem é atribuída a razão. categorial de conteúdo proposta por Bardin (1979). médico da paciente Antônia, s. d.).
-se em alvo prioritário das intervenções normatizadoras Para Garcia (1994), desde o início do século XIX, Esta técnica caracteriza-se pela classificação dos
da medicina e da psiquiatria. Muitas crenças pertencen- as mulheres caíram sob o controle psiquiátrico, levando elementos a serem analisados por uma diferencia- Antônia é diagnosticada pelo CID 10: F31.0
tes a antigas tradições e no âmbito dos mais variados ao confinamento em manicômios. A partir da metade ção temática e um reagrupamento subsequente pela (Transtorno Afetivo Bipolar) e é descrita em seu pron-
saberes - muitas das quais remontam à antiguidade clás- do século XIX, cresceu o número de mulheres interna- analogia estabelecida entre eles. A categorização tuário como tendo discurso coerente e pensamento
sica - seriam retomadas e redefinidas pelo alienismo do das em manicômios em relação aos homens, o que está permite, desta forma, condensar os dados brutos em organizado, sendo afetiva e tendo boa interação com
século XIX. Entre os alienados considerados “rebeldes associado ao modo como a doença mental feminina foi representações mais simples, o que permite estabe- todos. É referida como independente e autônoma nas
a qualquer tratamento, por razões mais morais do que encarada como associada à condição das mulheres, a lecer inferências e interpretar os dados. Está ligada atividades de vida diária, possui seus aspectos cognitivos
propriamente médicas”, Pinel incluía as mulheres que partir da expectativa de que as mulheres estariam sem- à ideia, portanto, de busca de uma maior visibilidade preservados, assim como atenção, memória e concen-
se tornavam irrecuperáveis por “um exercício não con- pre na iminência de um ataque “dos nervos”. dos dados, facilitando o trabalho de relacioná-los o tração. O prontuário conta, também, que ela apresenta
forme da sexualidade, devassidão, onanismo ou homos- Pode-se afirmar, também, que o manicômio referencial teórico. vínculo precário e fragilizado com os irmãos, é cura-
sexualidade” O temperamento nervoso, intimamente reproduz os estereótipos de gênero, afinal, enquanto Cabe ressaltar que, durante o trabalho de campo, telada e, desde dezembro de 2014, não tem acesso aos
relacionado à predisposição às nevroses e nevralgias, era se relegava aos homens as atividades ao ar livre, o que algumas moradoras tiveram dificuldade em se comu- seus benefícios previdenciários.
frequentemente considerado como típico das mulheres, contribuiria para a cura, no caso das mulheres isso se nicar verbalmente, uma das consequências da institu- Já a moradora Maria contou que tem 47 anos
“cujas funções especiais ao sexo, em muito contribuem daria por meio do trabalho doméstico, corroborando a cionalização. Por esse motivo, apenas quatro mulheres e teve uma infância conturbada. Viveu parte de sua
para o seu desenvolvimento”. (Eengel, 2006, p. 333). ideia que a condição feminina se relacionava aos espaços serão apresentadas na sequência, ressaltando a utilização infância na rua e foi internada ainda muito jovem
Marcinik e Mattos (2016) nos convocam a pensar fechados (Cunha, 1986). de nome fictício visando garantir seu anonimato. na Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor
a partir do conceito da interseccionalidade, ou seja, a Chesler (1972) considera que os manicômios Antônia afirmou ter 43 anos, ser pobre e (FEBEM, atual Fundação Casa). Seus sintomas eram
desconstrução de uma perspectiva universalizante da(s) servem como depósito para as mulheres, que recebem negra, e se recordar da infância com várias dificulda- caracterizados por agressividade, de acordo com seu
mulher(es) e das características que são produzidas por tratamento psiquiátrico desde muito cedo, funcionando des financeiras. prontuário. Após a internação na FEBEM, foi encami-
concepções dominantes. Deve-se ampliar e compreen- como uma família burocratizada, na qual a degradação nhada ao manicômio, onde residiu mais da metade de
der a racialização do gênero por meio da interseccio- e a fragmentação do ser passam a ser experienciadas pela “Eu tive depressão né? Não consegui cuidar sua vida. Também teve uma infância privada de condi-
nalidade das diferenças e compreender o impacto das paciente mulher e infantilizada. Pode-se afirmar que a da minha filha, eu tinha 13 anos, eu descobri ções financeiras e é negra. Segundo a moradora, “eu fui

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pra FEBEM, vivi lá, não lembro quando, mas eu era de idade, foi transferida para um abrigo, onde perma- até 23.07.2014. Com o advento do TAC – Termo da casa. Afirma que não gosta de passear e que “tem que
pequena, minha mãe bebia, depois fui pro hospital”. neceu por 12 anos. Em 1991, foi transferida para o de Ajustamento de Conduta, esta foi transferida para limpar”. As cuidadoras da RT dizem que ela é organi-
Segundo seu prontuário: manicômio, com diagnóstico de retardo mental leve e o Pólo de Desinstitucionalização, onde conheceu seu zada, “prendada” e que frequentemente ajuda, ficando
por conta do fato do abrigo encerrar suas atividades. atual companheiro Tem em seu prontuário a hipótese chateada se não realiza as atividades. Percebe-se grande
Menor internada em 30.11.1982, apresenta Durante todo o processo de internação, não há nenhum diagnóstica de “Retardo mental leve”. organização, limpeza e cuidados nas atividades que rea-
boas condições de saúde física, executa satis- registro de visitas e/ou vínculos familiares. Consta em Fátima carrega desde a infância um histórico de liza. Não é comum encontrar Maria fazendo alguma
fatoriamente as tarefas que lhe são atribuí- seu prontuário: institucionalização. Cabe ressaltar que o motivo que atividade de lazer, nem sequer sentada no sofá para assis-
das, porém com certa lentidão. Apresenta a levou a permanecer enquanto “moradora” do mani- tir à televisão, como as demais mulheres. Geralmente,
certa timidez, tornando assim muitas vezes Diagnóstico: F70.0 (Retardo Mental Leve). cômio foi o fato de a instituição de acolhimento não está na cozinha, nos cuidados com roupas de cama, ou
um relacionamento difícil tanto com os É independente nas Atividades de Vida receber mais crianças na sua faixa etária. auxiliando as cuidadoras e técnica de referência com
funcionários como com as demais internas. Diária (AVDs), como higiene pessoal e ali- a medicação.
A menor nunca recebeu visitas, continu- mentação. Apresenta certa dificuldade na RESULTADOS E DISCUSSÃO De acordo com Chesler (1972), as internações
ará recebendo treinamento nas atividades fala, porém com boa comunicação verbal, em manicômios costumam aproximar mais a mulher
domésticas, assim como nos trabalhos manu- aspectos cognitivos preservados, como orien- O trecho abaixo, retirado do prontuário de Maria, do que o homem da experiência familiar, fato que
ais, para que futuramente possamos colocá-la tação temporal e espacial, bem como resolu- mulher negra e de classe baixa, desde muito cedo insti- pode ser justificado por elas se sentirem “em casa”. A
em casa de família como empregada domés- ções de problemas, boa convivência com as tucionalizada, nos faz refletir sobre a intersecção entre mesma autora ressalta que pacientes mulheres, assim
tica. (Prontuário da paciente Maria, 16 de demais usuárias. Apresenta quadro cínico e gênero e raça: como meninas, são supervisionadas de perto por outras
maio de 1986). psiquiátrico estáveis. A paciente é curatelada, mulheres, enfermeiras atendentes, que são relativamente
porém atualmente seu benefício encontra-se A menor nunca recebeu visitas, continu- sem força em termos de hierarquia hospitalar.
Consta em seu histórico, de acordo com seu pron- bloqueado pela justiça [...]. (Prontuário da ará recebendo treinamento nas atividades Desta forma, pode-se afirmar que a lógica mani-
tuário, que Maria foi internada em 1971, por meio do paciente Mercedes, s. d.). domésticas, assim como nos trabalhos manu- comial permanece presente nas RTs em questão, onde
Juizado de Menores, após ter sido encontrada em estado ais, para que futuramente possamos colocá-la se percebe a “supervisão” das profissionais, bem como o
de abandono em casa e por sua genitora realizar uso Por fim, Fátima, 25 anos, negra e pobre, passou em casa de família como empregada domés- incentivo às mulheres permanecerem nos domínios do
abusivo de álcool, o que acarretou em sua prisão. Na a viver em um abrigo após a mãe perder sua guarda tica. (Prontuário médico da paciente Maria, privado, realizando atividades diárias, negando-se sua
sequência, Maria se manteve sob os cuidados da antiga aos 11 anos. Afirma que nunca conseguiu ler nem 16 de maio de 1986). autonomia, a vivência da sexualidade e sua socialização
FEBEM, passando por vários abrigos. Em 1986, ela escrever e foi encaminhada à Associação dos Pais e no mundo público, dentre outros aspectos.
foi transferida para um manicômio em Sorocaba, com Amigos dos Excepcionais (APAE) por causa dessa difi- Segundo Davis (2016), é possível observar uma Mercedes, também mulher negra e de classe
diagnóstico de retardo mental leve e episódios esporá- culdade. Frequentou essa instituição até ser internada relação direta entre escravismo e trabalho doméstico. baixa, apresenta características muito parecidas com as
dicos de agressividade, onde permaneceu por 13 anos. no manicômio. Não se recorda quantos anos tinha No Brasil ainda se mantém fortemente como uma de Maria, no que diz respeito à realização das atividades
Em 1999, foi transferida para outro manicômio, onde quando foi mandada para o hospital, mas se lembra atividade feita, em sua maioria, por mulheres negras, da casa. Frequentemente, auxilia na organização e lim-
ficou por mais 15 anos. Não há registro de nenhuma que ainda era criança, tendo ficado, aproximadamente, relembrando também que a escravidão foi usada como peza do local e não faz atividades fora da RT. Segundo
visita à paciente e nem procura por ela durante todo o 15 anos internada. modelo para a precarização do trabalho para a popula- a técnica de enfermagem, ela não sai, pois não sabe
tempo da internação. Segundo seu prontuário: ção negra. Devido ao sistema de contratação de pessoas pegar ônibus e se perde muitas vezes. Ambas costumam
Eu não sabia ler, e nem escrever, mandaram encarceradas, a população negra foi forçada a repre- sair com a técnica de enfermagem para levar alguma
Diagnóstico: CID F70.0 (Retardo Mental eu pra lá, eu queria aprendê, a professora me sentar o mesmo papel que a escravidão anteriormente moradora na UBS em consultas, ou em lojas quando
Leve). É considerada independente nas ati- acusou, dizia que eu era louca, que eu tinha lhe reservava. precisam comprar algo, prática que era comum quando
vidades de vida diária (AVDs) como higiene passado fezes na parede, eu não tinha feito Segundo informações do prontuário, Maria, viviam no manicômio. Outra semelhança em relação a
pessoal e alimentação, boa comunicação, nada, fui pro hospital e o juiz falou que eu desde pequena, foi ensinada a desempenhar funções essas mulheres é a “ausência” de uma vida fora da RT,
aspectos cognitivos preservados, como orien- ia ser moradora. (Fátima). domésticas, tida como sua única opção de inserção pois quando questionadas sobre suas vidas enquanto
tação temporal e espacial, bem como reso- social fora da instituição. Desde muito cedo, quando foi mulheres, sexualidade, relacionamentos interpessoais,
luções de problemas, boa convivência com De acordo com seu prontuário, Fátima tem 25 internada ainda na infância, foi estimulada a aprender o as duas afirmam que não possuem.
as demais usuárias (Prontuário da paciente anos, foi encaminhada para a instituição de acolhimento trabalho doméstico, visto como única possibilidade de Seu comportamento difere do de Antônia, que
Maria, s. d.). – “abrigo” – desde os 11 anos de idade, pois os pais rea- trabalho formal. Foi, desta forma, privada da educação tem mais autonomia e costuma realizar passeios com
lizavam uso abusivo de bebida alcoólica, além de haver formal e das inúmeras chances que poderiam surgir, maior independência, além de namorar. É perceptível,
A terceira moradora, Mercedes, não sabe sua uma suspeita de tentativa de abuso sexual por parte de devido à sua institucionalização em espaços para “meno- no dia a dia, o incômodo de Mercedes e Maria com o
idade, aparentando ter 35 anos. Negra e pobre, apre- seu pai. Em 2005, foi transferida para o manicômio res” e manicômios por, praticamente, a vida inteira. comportamento de Antônia, pois a mesma realiza tare-
senta dificuldades na linguagem verbal. Não recorda devido às crises de agressividade. De acordo com seu Atualmente, é possível perceber que a rotina de fas de limpeza na casa, mas numa frequência menor, e
o motivo pelo qual foi internada, mas sabe que o foi prontuário: Recebeu alta, mas foi impedida de retornar Maria na RT em que reside consiste em realizar tarefas constantemente está realizando outras atividades. Ela
ainda na infância. De acordo com seu prontuário, tem ao abrigo devido o mesmo acolher crianças até os 12 domésticas, auxiliando na limpeza de cozinha, organiza- gosta de escrever textos e sair com o namorado. Isso
38 anos. Foi encaminhada para a FEBEM com um ano anos, Fátima tinha passado desta idade. Assim perma- ção de roupas e no cuidado com outras moradoras que gera desconforto também em relação às cuidadoras,
de idade, devido ao abandono familiar. Aos dois anos neceu internada, como moradora do Hospital Mental possuem pouca ou nenhuma autonomia. Raramente sai que questionam sobre o “apetite sexual” de Antônia,

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quando afirmam que a mesma “apronta demais” quando De acordo com o prontuário de Fátima, foi pos- Por meio do relato acima, pode-se problematizar Nem todas as mulheres que viveram na primeira
sai, fazendo refletir sobre a questão de tutela ainda pre- sível observar a transferência de uma RT para a outra, a questão do papel social da mulher interna, que, geral- metade do século XX escolheram viver a vida nas formas
sente nas RTs, onde as mulheres pouco são estimuladas bem como aspectos que demonstram sua autonomia e mente, está associada às tarefas concretas do dia a dia, prescritas. Na população feminina do Sanatório Pinel,
a vivenciar uma vida “comum” como qualquer pessoa que incomodavam a gestão da SRT: enquanto da figura masculina é esperada maior responsa- podemos encontrar inúmeras histórias de 50 mulheres
adulta, vivenciando sua sexualidade. bilidade no sentido racional, embora a questão da irracio- que buscaram certa autonomia frente às pressões que a
De acordo com Chesler (1972), considerando Em junho de 2015 Fátima recebeu alta do nalidade esteja presente em ambos, devido ao estigma de sociedade lhes impunha, mas também mulheres que,
que as mulheres têm tido desde sempre sua sexualidade Pólo de Desinstitucionalização e foi morar associado ao manicômio. Fátima demonstra autonomia, mesmo desempenhando uma função a elas delegada,
reprimida, a tentativa de escapar de tal repressão é vista em uma RT, onde continuou com seus com- como aponta seu prontuário: sofreram crises relacionadas a esses papéis. Essas mani-
como perigosa pelas/os profissionais do manicômio. portamentos pueris, com birras e agressivi- festações, aos olhos das “instituições reguladoras”, foram
Diante disso, compreende-se que a sexualidade dessas dade, se recusando em muitos momentos Em fevereiro de 2017 Fátima foi sozinha de vistas como sinais de demência e desequilíbrio mental.
mulheres é entendida como tabu. Seguindo-se a lógica a comer e tomar suas medicações. Ainda, ônibus buscar auxílio da irmã, onde resolveu (Vacaro, 2011, p. 10-11).
imposta a muitas delas, a manifestação da sexualidade é demonstrava-se frustrada por não receber seu morar. Então sua irmã a acolheu e foi realizado A análise dos prontuários das moradoras aqui
vista como atrelada à loucura. O desejo sexual pode exis- dinheiro do BPC, o qual continua bloqueado contato com o CRAS para articular a conti- pesquisadas mostra em muitos momentos a não-corres-
tir, desde que seja extremamente controlado, de acordo devido as questões judiciais relacionadas com nuidade do tratamento. Em março retornou pondência a um comportamento tido como “normal”.
com um padrão pré-estabelecido de apetite sexual, o que o processo de tutela e curatela. [...] Foi para para sua casa. (Prontuário da paciente Fátima, Entende-se que as mulheres foram historicamente restri-
reforça paradigmas sobre o feminino, reprime a sexua- casa da família em junho de 2016, acompa- s. d.). tas apenas ao papel de “filhas-esposas-mães”, e qualquer
lidade e demais aspectos que não são encarados como nhada pela referencia técnica da RT, onde tentativa de “fugir” deste seu único destino passa a ser
comportamentos adequados a uma mulher. morava, para rever a irmã. Deste modo, ficou Fátima, durante entrevista realizada em agosto de julgada, tendo como uma das consequências possíveis a
Antônia afirmou que, desde muito nova, gostava combinado que iria morar com a mesma 2017, afirmou que decidiu voltar para a RT, pois ela e o atribuição de “loucura” e sua segregação em manicômios.
de leitura e escrita, entretanto era pouco incentivada por dali 30 dias. Entretanto, Fátima depois de namorado brigavam bastante: Para Cunha (1986), as mulheres, em qualquer
causa das atividades que ela precisava realizar, prova- alguns dias, relatou que estava bem na RT, situação social, incluindo em situação de internamento,
velmente, em uma referência aos afazeres domésticos, considerando estar perto de seu namorado “Eu e W. briga demais, não deu certo, mas a serão inferiorizadas quando comparadas aos homens,
situação bastante comum. Conforme Hooks (1995) rejeitando a proposta de morar com a irmã. gente continua junto, aqui é bom [se referindo evidenciando as diferenças no modo de se compreender
existe um teor de recriminação em relação às meninas (Prontuário da paciente Fátima, s. d.). à RT atual], posso ver ele, sair, nois briguemos a “loucura”.
negras que se dedicam a atividades individuais, sendo muito. Ele tem os problema dele também né?” Parâmetros diferentes orientam a construção da
altamente reprovável a abdicação das obrigações domés- Percebe-se, por meio desse relato, a necessidade (Fátima, agosto de 2017). “loucura” – e, portanto, da “normalidade” – para cada um
ticas por atividades de leitura e escrita. de se considerar a capacidade de escolha das pessoas que dos sexos, remetidos a um desenho idealizado dos papéis
Fátima, assim como Maria e Mercedes, não sabe saem dos manicômios após períodos longos de interna- De acordo com seu prontuário, após decisão de sexuais e dos diferentes atributos de gênero. Assim cabia
ler e nem escrever, o que reafirma a privação presente ção; no caso citado, Fatima passou grande parte de sua Fátima voltar a residir em RT, foi pensando em nova ao homem “normal” a tarefa de provedor da família, de
já na infância no que diz respeito à escolarização. Cabe infância em instituições asilares, atualmente criando inserção em outra residência, o que se deu em abril de trabalhador dedicado e quanto o “exemplo” de uma vida
ressaltar, ainda, que Fátima era criticada pelas outras laços afetivos em Sorocaba, embora seus vínculos fami- 2017, onde Fátima está até os dias de hoje, sem quaisquer morigerada e livre dos vícios e dos “excessos”. À mulher
moradoras da RT devido ao não-cumprimento de certas liares estejam em outra cidade. Diante disso, teve como dificuldades de adaptação. No seu prontuário, consta que restavam as tarefas estratégicas da reprodução e da con-
“regras”. A técnica de enfermagem relatou que ela não preferência a escolha de permanecer em Sorocaba, o servação da família e do lar, de “ser – para – com – os
“obedecia”, queria sair e voltar “do seu modo e quando que foi respeitado pela equipe técnica. Consta ainda Fátima questionou sobre seu direito já con- – outros” conforme exigiriam sua própria determinação
quisesse”, além de não ajudar nos afazeres da casa. Isso em seu prontuário: quistado [de ir e vir] e me pediu para visitar biológica e as inclinações naturais do seu espírito. (Cunha,
mostra que condutas fora das expectativas de gênero e W. [seu namorado] e ir ao cinema no sábado 1986, p. 126).
raça, mesmo mostrando maior autonomia por parte de Em julho de 2016 Fátima saiu abruptamente com seu namorado. Foi orientada que sim, A história de Antônia, mulher, negra e sobrevivente
Fátima, eram objeto de críticas na RT. da RT na companhia de seu namorado para desde que não atrapalhe seu PTS (Prontuário do manicômio, talvez seja a que melhor exemplifique esse
morarem sozinhos, sem orientação final da da paciente Fátima, s. d.). processo. Conforme seu prontuário,
Eu acho errado internar a pessoa a força, só equipe. Desde então, residem em uma casa
interna a pessoa a força se ela quiser. Acho precária onde dividem as despesas com alu- Entende-se que o campo psiquiátrico desempenha Antônia teve alguns relacionamentos amo-
errado. Na época a gente era chamado de guel e alimentação, sendo acompanhada pela uma função de normalização, padronizando comporta- rosos com homens casados, se envolvendo
louco, naquela época, eu lembro disso até equipe do CAPS. Fátima demonstra interesse mentos considerados aceitáveis para as mulheres egressas com várias pessoas na mesma época. Por esse
hoje. Me colocaram na ambulância, tem a pelos cuidados da casa, como o preparo das de manicômios. Pode-se perceber que a não-adequação motivo, ao engravidar, não sabia quem era o
gradinha sabe, já ouviu falar da ambulância, alimentações, enquanto o companheiro pre- a padrões impostos é um fator que contribui para sua pai da criança. Durante a gravidez Antônia
me colocavam lá e me chamavam de louca. ocupa-se com a continuidade do tratamento internação e institucionalização. residia com sua avó materna, sentia-se depri-
Desse jeito, aqui agora, nessa residência aqui e administração das medicações. Vale ressal- As marcas da institucionalização carregam diferen- mida, chorava bastante, sentia arrependi-
é um amor, é muito bom. Eu me sinto em tar que o relacionamento é sempre conflitu- tes formas de opressão, seja por classe, raça, e/ou gênero. mento de algumas situações 38 que passou.
casa, mãe D. deixa eu dormir na casa do W. oso com muitas discussões e brigas, quando Para as mulheres, os limites eram muito mais rígidos, e Após o parto de sua filha, os sintomas de
D. é um amor, não tenho o que falar dela. recorrem aos técnicos da equipe. (Prontuário elas tinham que se encaixar no que era ser mulher, mãe Antônia se intensificaram, apresentando alu-
Eu tô bem feliz. (Fátima) da paciente Fátima, s. d.). e esposa. cinações auditivas e visuais e delírios inclusive

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de cunho persecutório. Permaneceu com sua ele. Antônia compartilhou que realizou abortos por conta quando questionadas sobre essa prática, ainda presente situação que contrarie os argumentos machistas, sexistas
filha, residindo na casa de sua avó materna, de algumas gravidezes indesejadas. Contou que tomava na rotina da RT, as cuidadoras afirmam que é para a e racistas.
até a menina completar 2 meses de vida. Após chás que a impediam de dar continuidade às gestações. proteção das mulheres, no sentido de não engravida- Portanto, entende-se que o movimento antima-
isso, foi adotada por um casal que Antônia Entretanto, na última vez que engravidou, ela disse que rem, pois não teriam condições de desempenhar a função nicomial, que visa garantir a liberdade como forma de
conhecia. Antônia então fora internada no não conseguiu abortar, pois descobriu tardiamente que da maternagem, o que mostra a reprodução da negação tratamento para questões subjetivas e psíquicas, deveria
manicômio pela primeira vez. Após sua alta, estava grávida e não sabia quem era o pai, devido a ter histórica da autonomia e escolha no caso de mulheres estar fortemente relacionado ao movimento feminista,
Antônia passou a visitar a filha, porém foi proi- vários parceiros sexuais. consideradas “loucas”. Antônia transgride em sua sexu- já que a lógica manicomial também é usada para repri-
bida por essa família de ver a filha pois teria alidade, ao afirmar: mir e normatizar as diferenças de gênero. O movimento
tentado agredi-la algumas vezes. (Prontuário Eu já tinha tomado o chá, minha tia não da luta antimanicomial busca não apenas a desativação
da paciente Antônia, s. d.). deixava tomar pílula, na última vez não deu Eu sempre fui danada, gosto de namorar, no do manicômio como instância física, mas acabar com o
certo, acho que o tempo, sei lá, eu tomei, era manicômio não podia namorar, lá só tinha poder manicomial e suas estratégias de controle. Portanto,
Possuía uma vida promíscua, aos olhos da socie- uma bruxa que dava o chá, eu era danada, mulher tamém, e eu acho errado, pela força pensar a luta antimanicomial sem considerar as questões
dade, por manter relações sexuais com vários parceiros. gostava de sair, minha filha nasceu, eu cho- divina eu conheci J. no V., ele é um urso, me de gênero, classe e raça pode ser arriscado, no sentido de
Afirmou que, muitas vezes, optava por ter essas relações rava muito, pela doença, cheguei no hospital trata bem. (Antônia, maio de 2017). reproduzir violências e de ser subserviente aos interes-
em troca de roupas e presentes com pouco valor finan- balançando minha filha, assim, sem estar com ses racistas e patriarcais. De acordo com Martins et al.
ceiro, visto que vivia em condição de miséria. Sentia-se ela. (Antônia). Percebe-se, a partir das análises feitas, que a loucura (2017), o lema “Por uma sociedade sem manicômios” se
culpada e deprimida por não conseguir seguir os dogmas feminina transformou-se a transgressão social ou moral vincula à luta pela transformação da sociedade capitalista,
impostos pela igreja que foi “obrigada” a frequentar pela Após o parto, Antônia não conseguiu desempenhar em doença mental, por meio de discursos daqueles que mas deve incluir, também, a luta contra o machismo e o
tia materna, com quem passou a conviver após o aban- as funções de maternagem, afirmando não conseguir detêm o poder, seja ele político, religioso, médico, jurí- racismo. Deve-se atentar, ademais, ao fato que o racismo
dono da genitora. É possível perceber que sua condição realizar os cuidados necessários à criança. Passados três dico ou até mesmo familiar. Além disso, cabe refletir que pode ser (re)produzido, se for abandonada a discussão da
de “ser louca” se relaciona ao julgamento do modo como meses do nascimento de sua filha, os sintomas depres- é vigente um senso de moralidade, construído historica- branquitude enquanto privilégio racial, invisibilizando as
a mulher vivencia a sua sexualidade. sivos foram se intensificando, teve surtos frequentes de mente por bases cristãs e que dialoga com a ideologia bur- interseções de gênero e raça. No Brasil, negras/os e as/
De acordo com Hooks (1995), para justificar choro e impulsividade, e foi internada no manicômio, guesa, que costuma classificar os indivíduos como “bons” os indígenas sofrem racismo, extermínio e invisibiliza-
a exploração masculina branca e o estupro das negras após entregar a bebê para adoção. É possível observar que ou “maus”, em especial as mulheres, de acordo com suas ção. Ao se ampliar a discussão para as questões de saúde
durante a escravidão, a cultura branca teve de produ- Antônia não conseguiu desempenhar o papel de boa filha, atitudes, favorecendo a construção de um pensamento mental, considerando o histórico das pessoas que foram
zir uma iconografia de corpos de negras que insistia em boa esposa e boa mãe que lhe era naturalmente esperado maniqueísta que gera a invisibilidade das contradições estigmatizadas como “loucas”, é muito provável que se
representá-las como altamente dotadas de sexo a perfeita pelo fato de ser mulher. A gestação foi indesejada, e após sociais e individualiza os problemas, no qual a minoria identifique que grande parte das pessoas internadas era
encarnação de um erotismo primitivo e desenfreado. o nascimento, aparentemente, não conseguiu lidar com a é oprimida. negra e de camadas populares, reflexo significativo de
Pode-se afirmar que a escravidão foi um dos epi- condição de ser mãe. Devido aos seus comportamentos nossa herança escravocrata.
sódios mais violentos da história do povo brasileiro, que “inadequados”, não poderia mais conviver em sociedade CONSIDERAÇÕES FINAIS É urgente, enfim, refletir sobre nossas lutas no
a violência esteve presente de todas as formas possíveis e e, por isso, as relações, os laços sociais e familiares foram campo da saúde mental, incluindo a discussão do lugar
que a mulher negra foi objetificada, reforçando a ideia rompidos em busca da normatização de comportamen- Os resultados da pesquisa demonstraram a presença racializado da mulher. Falar e problematizar o racismo
do corpo enquanto objeto de servidão para os homens tos esperados. Seu destino foi o manicômio. Além do e ramificação dos dispositivos de controle da sexualidade exige a reflexão acerca dos lugares que ocupamos, das
brancos. Isso nos deixou marcas profundas no sentido de mais, vale problematizar a questão do aborto presente na e da feminilidade no manicômio e, também, fora dele, o nossas práticas, e o reconhecimento do lugar privilegiado
naturalizar a violência contra as mulheres, assim como vida de muitas mulheres, entendendo que, na estrutura que foi evidenciado pelos diversos mecanismos que levam que as mulheres brancas ocupam. Ser antimanicomial
reificar a associação entre mulheres e o trabalho domés- da sociedade capitalista, patriarcal e racista, o corpo das à infantilização e à tutela das moradoras. Ressalta-se, tam- é almejar romper com todos os paradigmas presentes
tico, e institucionalizar muitas das mulheres considera- mulheres está a serviço da lógica de produção, ou seja, bém, que esses processos devem ser entendidos a partir numa sociedade marcantemente manicomial, mas tam-
das “loucas”, em sua maioria negras e de classe baixa, no servir ao trabalho doméstico, à manutenção do lar e da de uma abordagem interseccional, que leve em conta bém racista e misógina. De acordo com Roeder (2016),
manicômio, destituindo-as de sua liberdade e de tudo vida humana, sendo necessário o cumprimento dos papeis a discussão da saúde mental em suas interfaces com as faz-se necessário construir políticas que articulem gênero
que as caracterizava como humanas. que lhes são fortemente impostos: o de mãe e esposa. questões de gênero, classe e raça. e saúde mental, possibilitem a comunicação com as diver-
Segundo Engel (2006), na construção dos diag- O corpo da mulher é visto como o corpo para a Pode-se afirmar que a relação entre mulheres e sas áreas de conhecimento e levem em consideração os
nósticos da doença mental em mulheres, a psiquiatria reprodução e maternidade. Especialmente para as mulhe- loucura deve ser destacada também como uma questão princípios da equidade e da integralidade nas ações.
deu grande destaque à menstruação e à maternidade, res negras, trata-se de um corpo que está ali para satisfazer social, pois aponta para as relações de gênero, culturais Finalmente, ressalta-se a importância de se refle-
considerando que o início e o fim do período menstrual os desejos sexuais, muitas vezes, sendo violado pelo estu- e morais, levando em consideração nosso país, extrema- tir e proporcionar outros diálogos no campo da saúde
seriam, frequentemente, momentos propícios à mani- pro, violência esta fortemente naturalizada pela sociedade. mente machista e misógino, que também carrega uma mental que possam contemplar as questões de gênero,
festação de distúrbios mentais, bem como a materni- Outra questão relevante aqui se refere à esteriliza- herança escravocrata, na qual o corpo da mulher ainda raça, classe e demais categorias, para que seja possível se
dade poderia curar ou intensificar a loucura feminina. É ção das mulheres pobres, que acompanha uma concepção é visto como mercadoria, visão reforçada pela grande pensar sobre a desinstitucionalização de forma plena, de
importante ressaltar, nesse discurso, a expectativa de que de higienização e limpeza social. No caso das mulheres mídia e que incita a desvalorização da mulher, reduzindo- forma a se acabar com lógicas segregacionistas, desuma-
uma mulher seja capaz de desempenhar a maternidade de que possuem transtornos mentais, presume-se que não -a meramente à sua sexualidade e atribuindo distúrbios nas e opressoras. Almeja-se, também, que profissionais
modo natural, pois este é seu papel social, atrelado ao seu devam gerar filhas/os. Desde a entrada nos manicômios, de saúde mental – por exemplo, a histeria – em qualquer da saúde, pesquisadoras/es e militantes estejam cientes do
corpo, restringindo-se, novamente, a figura da mulher a é comum a aplicação de injeções de anticoncepcionais. E compromisso social, sendo necessária e urgente a busca

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por estratégias e potencialidades para que a luta em busca MOMBERG, Thaiga. Entre lírios e delírios: a (des)
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