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Trabalho bancário e saúde mental no paradigma da excelência

Article · January 2006

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Mayte Raya Amazarray


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TRABALHO BANCÁRIO E SAÚDE MENTAL NO
PARADIGMA DA EXCELÊNCIA

BANKING WORK AND MENTAL HEALTH IN THE


PARADIGM OF EXCELLENCE

Maria da Graça Corrêa Jacques


Psicóloga, Mestre em Psicologia Organizacional (PUCRS), Doutora em Educação (PUCRS).
Professora e pesquisadora no campo da Saúde Mental & Trabalho.
E-mail: fjacques@terra.com.br
Mayte Raya Amazarray
Psicóloga, Especialista em Gestão de Serviços Sociais (Universidade Complutense de Madrid),
Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS), e Doutoranda em Psicologia (UFRGS).
Assessora de saúde da Federação dos Bancários do Rio Grande do Sul.
E-mail: maytepsi@hotmail.com

RESUMO ABSTRACT
As transformações no cenário mundial e suas expressões Transformations on world scenario and their expressions in
no mundo do trabalho são reconhecidas como fatores que the contemporary work environment are recognized as
vêm contribuindo para o crescimento do sofrimento men- factors that contribute to the increase of mental suffering
tal e dos distúrbios psicológicos de modo geral. O setor and psychological disorders. The banking work field of
bancário foi um dos segmentos em que essas transforma- activity has been one in which those transformations were
ções foram introduzidas de forma mais abrangente, e mui- introduced in a broader manner and many of those are
tas dessas vão se constituir em fatores altamente patogê- considered pathological factors. In this paper, we analyze
nicos. Neste texto, examina-se o perfil de sofrimento dos the profile of mental suffering of banking workers and its
trabalhadores bancários e suas relações com a organização connections with work organization related to the chan-
do trabalho a partir das mudanças introduzidas nos proces- ges that were introduced on work process and manage-
sos de trabalho e nos modelos de gestão. Privilegia-se a ment models. We analyze especially stress and depressi-
análise dos quadros de estresse e depressão, incluindo on disorders, including post-traumatic stress disorder,
quadros de estresse pós-traumático associado à violência a connected to the violence that workers are exposed to.
que estão expostos os trabalhadores. Conclui-se com o We conclude with the analysis of moral harassment at
exame do assédio moral e suas implicações no psiquismo. work and its implications on mental health. It is a paper
É um texto dirigido àqueles que buscam uma maior apro- for those who search for an approach to the issue, espe-
ximação com a temática e, principalmente, aos trabalhado- cially bank workers.
res bancários.

PALAVRAS-CHAVE KEY WORDS


Saúde do trabalhador. Saúde pública. Saúde mental. Do- Occupational health. Public health. Mental health. Occu-
enças ocupacionais. pational diseases.
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INTRODUÇÃO desta tendência. Alguns estudos apontam, inclu-


sive, para uma relação entre a implementação de
Desde as últimas décadas do século XX, cons- processos de reestruturação produtiva e o nú-
tata-se uma crescente atenção à saúde/doença mero crescente de suicídios, alguns cometidos nas
mental dos trabalhadores. Constata-se, também, próprias agências bancárias (LIMA, 2000).
que a associação do sofrimento e/ou da doença Em nossa sociedade, o trabalho constitui-
psíquica com o contexto laboral começa, paula- se como mediador da integração social pelo seu
tinamente, a ser reconhecida pelo imaginário social. valor econômico, como fonte de subsistência, e
As estatísticas dos serviços de saúde regis- pelo seu aspecto cultural (simbólico) que confere
tram o aumento de distúrbios mentais e de com- valor ao sujeito trabalhador, constituindo-se em
portamento na população trabalhadora. No Bra- um elemento que define sua identidade (JAC-
sil, ocupam o 3º lugar entre as causas de conces- QUES, 2002). Tanto é que, ao dizer quem so-
são de benefícios previdenciários (BRASIL, 2001), mos, nos apresentamos informando sobre o que
sem considerar os casos não registrados nas esta- fazemos, o que também informa sobre o nosso
tísticas oficiais. Segundo a mesma fonte, dentre lugar social. Além disso, o trabalho é um impor-
os problemas de saúde, os transtornos mentais tante sinalizador na organização do nosso modo
são os responsáveis pelo maior número de dias de vida, no estabelecimento de nossas relações
de afastamento do trabalho. Além disso, como afetivas, na construção de nossas habilidades e
não se tratam de lesões visíveis ou de processos competências, enfim, assume uma importância
físicos mensuráveis através de exames objetivos, fundamental na constituição da nossa subjetivida-
muitas vezes, os portadores não têm seu sofri- de e, portanto, na nossa saúde física e mental.
mento legitimamente reconhecido. O trabalho, enquanto uma relação de du-
As transformações no cenário mundial e suas pla transformação entre homem e natureza, ge-
expressões no mundo do trabalho, tais como de- radora de significado, é apontado como determi-
semprego e subemprego, processos organizacio- nante (único ou não) no processo de hominiza-
nais internos de reestruturação produtiva e de ção, tanto na tradição marxista (ENGELS, [1983?])
introdução de novas formas de gestão, enxuga- como em revisões ou reconstruções do materia-
mento do quadro de funcionários, inovações tec- lismo histórico (HABERMAS, 1990). O significa-
nológicas freqüentes, são reconhecidas como fa- do atribuído ao produto (do latim, signo-ficare –
tores que vêm contribuindo para o crescimento signo que fica), constrói a cultura e transforma os
do sofrimento mental e dos distúrbios psicológi- homens em animais históricos. Assim, o trabalho
cos de modo geral. O setor bancário é sinalizador é uma atividade humana por excelência, enten-

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dido como o modo pelo qual transmitimos signifi- processo de trabalho, as políticas de gestão de
cado à natureza; por outro lado, o trabalho com- recursos humanos, a estrutura hierárquica, os
parece como um dos elementos essenciais na processos de comunicação, o ritmo e a jornada
constituição da nossa identidade. laboral). Sato (2003) reconhece fortes evidências
Segundo Codo (2006), os prazeres huma- entre a forma como se organiza o trabalho e pro-
nos são, também, preenchidos de significados. Ilus- blemas de saúde mental na população trabalha-
tra com as ações de comer e de beber que não dora e argumenta “que os contextos de trabalho
ocorrem apenas quando há fome ou sede, mas que oferecem riscos para a saúde mental tam-
também com outros significados: por raiva, por bém o oferecem para o desenvolvimento das LER”
poder, por prestígio. Neste caso, exemplifica com (SATO, 2003, p. 68). Os próprios trabalhadores
o ato de cozinhar e todo o prazer que daí pode reconhecem a associação entre fatores da orga-
advir desde a sua idealização até a apresentação nização do trabalho e efeitos sobre a saúde, con-
do prato à mesa. Mas pondera que se o gás ter- forme depoimento deste bancário2 :
minar no ponto crucial do processo, se o prato
não for apreciado, ou ainda, se o cozinhar é uma “O pequeno número de funcionários nos estabele-
rotina, uma superexploração e/ou um conjunto cimentos bancários em geral, as diversas ativida-
de ações parciais e repetitivas, o resultado é o des relacionadas ao trabalho, a responsabilidade e
desprazer. Daí conclui que “qualquer trabalho, em os riscos envolvidos, cobranças, metas, reclama-
qualquer momento, pode ver o circuito mágico ção de clientes, geram um sentimento de frustra-
de construção quebrado e o resultado é o sofri- ção muito grande. Nunca vencemos o volume de
trabalho, o movimento constante de clientes, tele-
mento, muito sofrimento no limite: a doença
fones, sistemas a serem digitados, planilhas, núme-
mental” (CODO, 2006, p. 87).
ros, o que esgota mensalmente os funcionários,
gerando doenças físicas e psicológicas na grande
maioria, senão em todos da área” (Depoimento
AGRAVOS À SAÚDE MENTAL E LER/
verbal).
DORT1 : PERFIL DE SOFRIMENTO NO
TRABALHO CONTEMPORÂNEO E
O Ministério da Saúde do Brasil também re-
RELAÇÕES COM A ORGANIZAÇÃO
DO TRABALHO conhece esta relação quando pontua que

A adoção de novas tecnologias e métodos geren-


Reconhece-se, hoje, uma série de fatores as-
ciais facilita a intensificação do trabalho que, alia-
sociados ao trabalho como responsáveis por sofri-
da à instabilidade no emprego, modifica o perfil
mento e por alterações na saúde mental, desde de adoecimento e sofrimento dos trabalhadores,
fatores pontuais, como a exposição a agentes tó- expressando-se, entre outros, pelo aumento da
xicos (por exemplo, presentes em setores de prevalência de doenças relacionadas ao trabalho,
micro-filmagem) até a complexa articulação de como as LER/DORT; o surgimento de novas for-
fatores relativos à organização do trabalho (como mas de adoecimento mal caracterizadas, como o
o parcelamento de tarefas, o controle sobre o estresse e a fadiga física e mental e outras mani-

1
Lesões por Esforços Repetitivos/Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho
2
Os depoimentos de trabalhadores bancários citados neste artigo foram coletados em uma pesquisa realizada pela Federação dos Bancários do Rio Grande do Sul,
ainda não publicada, na qual participaram cerca de 2.000 bancários. O instrumento de coleta de dados consistiu em um questionário auto-aplicável sobre saúde e
condições de trabalho. A última questão do questionário, descritiva, consistiu em “O que mais, em relação ao seu trabalho, tem influência na sua saúde?”. A entidade
responsável pela pesquisa autorizou a reprodução dos depoimentos neste artigo.

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festações de sofrimento relacionadas ao trabalho trados ao ritmo excessivo de trabalho, ao cálculo


(BRASIL, 2001, p. 19). da produtividade baseado na competição entre
os pares, ao automatismo e às formas de contro-
Ao voltarmos mais atrás na história, vamos le do processo de trabalho – fatores associados à
constatar que, no primeiro registro sobre lesões organização do trabalho.
ósteo-articulares associadas ao trabalho, há refe-
rências sobre sofrimento psíquico. É o registro
de Ramazzini, em 1700, na sua obra histórica in- TRANSFORMAÇÕES DA ORGANIZA-
titulada ‘De Morbis Artificium Diatriba’, quando ÇÃO DO TRABALHO NO SETOR
atribui as lesões encontradas em tipógrafos e es- BANCÁRIO E IMPACTOS SOBRE A
criturários não só à longa permanência na posição SAÚDE MENTAL DOS TRABALHADO-
sentada e à exigência de movimentos repetiti- RES
vos, mas também ao sofrimento psíquico em ra-
zão da rapidez, atenção e responsabilidades exi- O maior problema que enfrentamos é o estresse
gidas nessas funções. O que também nos chama causado pela pressão em atingir metas absurdas,
a atenção neste registro histórico é que os escri- onde muitas delas são imposição de produtos a
turários do passado, bancários no presente, após nossos clientes. O objetivo social do banco já não
mais de trezentos anos, apresentam os mesmos existe, deu lugar a ganância por grandes lucros e
problemas de forma recorrente, como atestam a desvalorização da ‘peça básica’- o funcionário
as estatísticas de afastamentos do trabalho, sem (Depoimento verbal).
considerar aqueles que continuam trabalhando
apesar do sofrimento experimentado cotidiana- O setor bancário foi um dos segmentos em
mente. que a reestruturação dos processos de trabalho
Ramazzini fez referência a fatores associa- introduziu-se de forma mais abrangente. Muitas
dos à organização do trabalho (rapidez, atenção e das transformações implantadas vão se constituir
responsabilidades), elementos também presentes em fatores altamente patogênicos. É o caso, por
no artigo ‘A neurose das telefonistas’, publicado exemplo, da convivência com a flexibilidade tec-
originalmente em 1956 (LE GUILLANT et al., nológica que exige maior adaptabilidade física e
1984), considerado como um dos marcos pionei- mental e o “gerenciamento advindo de uma ten-
ros no campo da saúde/doença mental e seus vín- são propositadamente criada para que os proble-
culos com o trabalho. Este autor interessou-se mas apareçam e o ritmo de produção possa au-
pelo estudo desses vínculos a partir da sua cons- mentar sem prejuízo no sistema técnico” (HE-
tatação sobre o número significativo de empre- LOANI, 2003, p. 136).
gadas domésticas internadas nos hospícios fran- Uma das primeiras ações quando da implan-
ceses em meados do século XX. Deste interes- tação dos programas de reestruturação produtiva
se, produziu uma variedade de estudos sobre di- tem sido o enxugamento de pessoal, através de
versas categorias profissionais, em que procurava demissões ou de programas de demissão voluntá-
demonstrar a existência de uma relação entre o ria. Tais ações são geradoras, entre outros efei-
contexto laboral e a freqüência e a gravidade dos tos, de crescente ansiedade e competitividade
distúrbios mentais apresentados pelos trabalha- entre os pares. Como conseqüências, o desem-
dores. No seu estudo mais conhecido, com tele- prego, ou subemprego, passa a se tornar uma
fonistas, atribui os transtornos psíquicos encon- realidade ou uma possibilidade, com todas as im-
plicações psíquicas daí derivadas. A identidade de

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trabalhador é ameaçada, os atributos de valor a de adaptar-se ao intenso ritmo de trabalho, e to-


ela associados se desfazem e a identidade psico- lerar a pressão e o estresse. Assim, as políticas de
lógica tem dificuldade de se reconstruir a partir gestão de pessoal passaram a demandar dos fun-
de outros parâmetros. Esta situação se agrava nos cionários, além da qualificação técnica, a cons-
casos em que a marca do banco, com forte valo- tante mobilização de afetos (GRISCI; BESSI,
rização social, está incorporada como identidade 2004).
do eu (o caso do Banco do Brasil, por exemplo). Além disso, a rapidez das mudanças, que se
Entre os que permanecem no banco, além do reflete na flexibilização exacerbada, enfraquece
desgaste advindo da intensificação do trabalho, a familiaridade com o trabalho e, conforme Sato
são comuns sentimentos de culpa, quadros de (2003), a ausência de familiaridade é um dos fa-
ansiedade, depressão e sofrimento psíquico, ca- tores responsáveis pelo sentimento de penosida-
racterizados como “síndrome do sobrevivente” de no trabalho. A necessidade de contínuo apri-
(HOEFEL, 2003). moramento é também um dos fatores que pro-
A intensificação do trabalho, a flexibilização voca um estado constante de vigilância, gerador
dos postos de trabalho e a polivalência exigida de tensão: vigilância para não perder o emprego,
dos trabalhadores (atividades de caixa e de ven- para ser o melhor, para enxergar à frente. Segun-
das, por exemplo) foram algumas das implicações do Dejours (1999), este conjunto de prerrogati-
do enxugamento de pessoal. Para Bresciani vas pode ser visualizado na linguagem cotidiana
(1999), a flexibilidade implica não só a capacidade presente nos ambientes de trabalho em que pa-
de realizar diferentes tarefas, mas a maleabilida- lavras como guerra, sobrevivência, combate, luta,
de de horários e de mudanças, inclusive geográfi- são freqüentes e não estranhas ao trabalho ban-
cas. A polivalência passou a exigir uma qualifica- cário.
ção crescente e a pressão para tal qualificação Neste novo modelo de gestão das institui-
passou a ser transferida individualmente para os ções bancárias, merece destaque o papel dos pro-
trabalhadores e associada à empregabilidade. As- gramas de qualidade, na medida em que tais es-
sim, o bancário é responsabilizado pela sua ma- tratégias modulam, de forma sutil, a subjetivida-
nutenção no mercado de trabalho e o desempre- de dos trabalhadores, cooptando-os a serem pro-
go gerador de sentimento de culpa, baixa auto- dutivos, flexíveis, motivados etc. Além disso, a
estima e depressão. introdução da remuneração variável, atrelada à
As exigências de qualificação para os bancá- produtividade e ao alcance de metas, também se
rios, hoje, incidem tanto sobre aspectos técnicos constitui em um elemento responsável pela in-
da ocupação (por exemplo, conhecimentos de in- tensificação do trabalho e extensão da jornada
formática, contabilidade financeira, aplicações, ava- laboral. Contribui, ainda, para o comprometimento
liação de riscos etc) como sobre aspectos com- das relações sociais entre colegas, tendo em vista
portamentais, associados à polivalência. Segundo que a remuneração depende da produtividade do
Segnini (1999), esta última exigência merece des- grupo de trabalho, gerando controle deste sobre
taque, uma vez que se refere a comportamentos a atividade de cada um e alimentando a competi-
esperados do bancário vendedor que modulam tividade. Destaca-se, também, que as metas co-
determinadas formas de ser e de trabalhar: dis- mumente são estabelecidas por escalões hierár-
posição e habilidade para vender produtos e ser- quicos superiores, de forma autoritária e unilate-
viços, para competir, ser amável, comunicativo, ral, e não raramente são consideradas inatingíveis
equilibrado, responder às demandas dos clientes, pelos trabalhadores.
saber fidelizar o cliente para o banco, ser capaz Implementa-se, na maioria dos casos, como

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modelo de gestão a chamada gestão da excelên- ração bancária e da introdução de modelos de


cia que, baseada na noção de “produzir melhor gestão baseados na excelência.
que os concorrentes”, enfatiza o primado do êxi-
to, a supervalorização da ação, a obrigação de ser
forte, a adaptabilidade permanente, a canaliza- A RELAÇÃO SAÚDE/DOENÇA MEN-
ção da energia individual nas atividades coletivas, TAL & TRABALHO
o desafio permanente” (CHANLAT, 1996, p.
121). Para Pagès et al. (1997), tal modelo intro- Acredito que, da maneira como estamos traba-
duz a mobilização total do indivíduo a serviço da lhando, levando sempre à máxima perfeição, o
nosso nível de ansiedade pode nos levar a proble-
organização e a captação subjetiva do trabalha-
mas psíquicos (Depoimento verbal).
dor. Na perspectiva de Fonseca (2002, p. 20), à
reestruturação produtiva ou à
Os estudos desenvolvidos a partir da segunda
“(des)reestruturação produtiva, visto as desordens
metade do século XX contribuem para a compre-
introduzidas no mundo do trabalho, articula-se a
ensão do papel do trabalho na etiologia da doença
(des)reestruturação subjetiva”. É ilustrativo o de-
mental. Na década de 30, de forma brilhante,
poimento de um bancário:
Charles Chaplin propõe esta relação no seu filme
‘Tempos Modernos’, antecipando as postulações do
[...] agrega cobrança com metas difíceis de serem
alcançadas para obtenção de um salário, pagamento
campo científico. Até então, o trabalho era sim-
justo pelo esforço, é o maior problema. Metas plesmente empregado como um critério de diag-
cada vez mais arrojadas, sem perspectiva de al- nóstico (doença associada à ociosidade) ou como
cançá-las, pagamento, tabela de valores não cor- medida terapêutica no tratamento dos distúrbios
rigidos e sem perspectivas de negociar. Tudo isso mentais. A doença mental tinha a sua gênese em
causa um desgaste muito grande, além da decep- fatores hereditários e/ou fatores da biografia indi-
ção de não conseguirmos alcançar metas, para vidual, principalmente as relações familiares da pri-
um ordenado justo (Depoimento verbal). meira infância.
No entanto, é a consolidação do sistema capi-
Chanlat (1996) identifica o que chamou de talista de produção que vai produzir importantes
“neurose da excelência” como um quadro típico, reformulações na compreensão da doença mental.
em que o trabalhador se apropria psicologicamente É certo que, desde seus primórdios, as comunida-
das demandas de excelência propagadas pelo des conviveram com comportamentos bizarros de
modelo de gestão e as reproduz de modo sinto- alguns dos seus membros, cuja valorização e inter-
mático. Nesse sentido, constata-se que as carac- pretação se pautam por relações sócioeconômicas
terísticas da organização do trabalho bancário no e culturais de um determinado período histórico. É
contexto contemporâneo contribuem significati- a partir do século XVII, quando já se tem o domínio
vamente para gerar sofrimento e transtornos psí- da Medicina em substituição ao domínio religioso,
quicos. Os inúmeros estudos envolvendo este que tais ‘comportamentos bizarros’ passam a sofrer
grupo de trabalhadores (BARBARINI, 2001; BOR- condenação moral enquanto associados à ociosida-
GES, 2000; CAMPELLO, 2004; CODO; SAM- de e à desordem social e a internação compulsória
PAIO, 1995; GRISCI; BESSI, 2004; LIMA, 2000; ganha uma nova forma, o hospício. A obra de Ma-
SEGNINI, 1999) entre outros, reforçam as evi- chado de Assis, ‘O alienista’, é uma sátira desta ten-
dências sobre a relação entre trabalho bancário e dência que se acentua no final do século XIX e iní-
saúde/doença mental no contexto da reestrutu- cio do século XX.

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Ainda hoje, apesar das críticas do movimen- O ESTRESSE E A DEPRESSÃO NO


to anti-psiquiatria e da luta anti-manicomial, as- TRABALHO BANCÁRIO
siste-se a uma tendência à medicalização e à in-
ternação, apesar de todas as evidências acumula- Preocupação e medo de ficar desempregado, rit-
das sobre seus malefícios. Tal medicalização prio- mo de trabalho contínuo e acelerado, refeição
muito rápida, esgotamento ao final de cada dia. O
riza os aspectos biológicos dos transtornos psíqui-
trabalho bancário é estressante por natureza, suas
cos e retira a organização do trabalho de cena,
metas e o volume de trabalho atual, com poucos
individualizando a doença e responsabilizando o
funcionários e cada vez mais clientes, torna-se
trabalhador, o que reforça o estigma social a res- massacrante (Depoimento verbal).
peito. Não é de se estranhar, portanto, que, ao
experimentar sofrimento, o trabalhador opte por
O termo estresse ganhou popularidade cres-
abandonar o emprego ou continue se submeten-
cente desde que foi empregado, pela primeira
do aos fatores geradores de sofrimento, mesmo
vez, em 1936, por Hans Selye (FIGUEIRAS; HI-
quando o associa às condições de trabalho.
PPERT, 2002) para designar uma “síndrome geral
Para compreender os vínculos entre saúde/
de adaptação”, constituída de três fases (reação
doença mental e trabalho é importante compre-
de alarme, fase de adaptação, fase de exaustão).
ender que o processo saúde/doença mental é um
O termo é empregado para dar conta de uma
processo particular de expressão das condições
variedade de vivências que vão desde irritabilida-
da vida humana em determinada sociedade, re- de até depressão. Funciona, muitas vezes, como
presentando as diferentes qualidades do proces- um substituto socialmente aceito para expressar
so vital e as diferentes competências dos sujeitos o sofrimento psíquico e reconhecido pelo imagi-
para enfrentar desafios, agressões, conflitos, nário social como vinculado ao trabalho.
mudanças [...] com uma tríplice e contraditória Em relação à sintomatologia, os mesmos au-
natureza: biológica, psicológica e social (SAM- tores reconhecem uma variabilidade de sintomas,
PAIO; MESSIAS, 2002, p. 155). tanto físicos como mentais. Entre os físicos, os
mais citados são: fadiga, dores de cabeça, insônia,
Portanto, é sempre uma relação e uma in- dores no corpo, palpitações, alterações intesti-
serção entre uma história individual e um con- nais, náuseas, tremores, extremidades frias e res-
texto social (incluindo o contexto de trabalho) friados constantes. Entre os sintomas mentais ou
que particulariza os fatores patogênicos que es- emocionais, estão: diminuição da atenção concen-
tão postos. trada e da memória, indecisão, confusão, perda
Ainda, faz-se necessário levar em considera- do senso de humor, ansiedade, depressão, raiva,
ção que a ausência de sintomas psíquicos não im- frustração, preocupação, medo, irritabilidade e
plica, necessariamente, a ausência de sofrimento impaciência.
psíquico. Dejours e Abdouchelli (1994) definem O estresse psicológico é uma aplicação do
sofrimento como uma vivência intermediária en- conceito para além da dimensão biológica e é de-
tre saúde e doença mental. No cotidiano, ex- finido por Lazarus e Folkman (1984) como uma
pressões como “estou estressado” ou “este tra- relação entre a pessoa e o ambiente que é avali-
balho me estressa” são comuns entre bancários. ada como prejudicial ao seu bem-estar. Os auto-
res chamam a atenção para a importância da ava-
liação cognitiva da situação que determina por-
que e quando esta situação é estressora e para o

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esforço de enfrentamento, ou seja, a mudança sem reposição de substitutos e enxugamento (do-


cognitiva e comportamental diante do estressor. wnsizing) na chamada reestruturação produtiva
O estudo de Campello (2004) com 1.518 ban- (BRASIL, 2001, p. 192).
cários de quatro instituições financeiras na base do
Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e Região Além disso, o próprio contexto de declí-
demonstrou que o estresse3 em bancários apre- nio na situação financeira, ameaça de desempre-
senta números muito elevados. Os percentuais de go e insegurança social e econômica contribuem
bancários estressados, somando-se todas as fases para o aumento do risco de esgotamento profis-
do estresse, apresentaram-se da seguinte forma: sional, segundo o Ministério da Saúde (BRASIL,
68% no banco público A, 60% no banco privado 2001). Tal síndrome está associada a fatores es-
C, 50% no banco público B e mais de 40% no tressores crônicos relacionados ao trabalho e en-
banco privado D (média de 53,2%). Salienta-se que volve três componentes: exaustão emocional (sen-
há um número bastante elevado de bancários em timentos de desgaste e esvaziamento afetivo),
fase de exaustão: 36% no banco privado C, 30% despersonalização (reação negativa, insensibilida-
de ou afastamento excessivo do público que de-
no banco público A, 17% no banco privado D e
veria receber os serviços) e diminuição do envol-
14,5% no banco público B. Estes dados demons- vimento pessoal no trabalho (sentimento de di-
tram que um grande número de bancários (em minuição de competência e de sucesso no traba-
média 21,2%) vem sendo submetido a condições lho). Esses componentes se apresentam como
geradoras de estresse, de forma intensa e prolon- queixas e é comum o trabalhador apresentar uma
gada – o que significa maior vulnerabilidade para história de grande envolvimento subjetivo com o
adoecimento físico e mental. trabalho. A síndrome de burnout envolve, comu-
Entre os tipos de respostas a estressores mente, atitudes negativas em relação aos clien-
tes e à organização do trabalho. Estão presentes,
emocionais e interpessoais crônicos no trabalho
também, com freqüência, sintomas inespecíficos,
encontra-se o que foi denominado por Freuden-
como insônia, irritabilidade, tremores, inquieta-
berger (1974) e Maslasch e Jackson (1994) como ções, além de sintomas depressivos (GUIMARÃES;
síndrome de burnout (ou síndrome do esgotamen- CARDOSO, 2004).
to profissional), presente entre cuidadores e, pos- A perspectiva psicodinâmica (AUBERT, 1993)
teriormente, estendida a trabalhadores que pres- aproxima a síndrome de burnout da neurose de
tam serviços ao público. Recentemente, tem sido excelência, na medida em que se trata de um es-
associada às transformações introduzidas nos con- tado decorrente da luta constante para satisfazer
textos de trabalho: os ideais de excelência que caracterizam o mundo
do trabalho contemporâneo: trabalhar energica-
mente, tender sempre para maior sucesso, ter cada
Ultimamente, têm sido descritos aumentos da
vez melhor desempenho. O processo neurótico
prevalência da síndrome de esgotamento profis-
se instala quando o trabalho já não traz a recom-
sional em trabalhadores provenientes de ambi- pensa que o indivíduo espera, seja porque não per-
entes de trabalho que passam por transforma- mite mais realizar os ideais que se tem, seja por-
ções organizacionais, como dispensas temporárias que os esforços por ele demonstrados não são re-
do trabalho, diminuição da semana de trabalho, conhecidos pela organização4 . A energia que man-

3
O estresse foi avaliado mediante o Inventário de Sintomas de Stress para adultos de Lipp (1998), questionário estruturado que propicia a identificação do estresse
em quatro níveis: alerta, resistência, quase exaustão e exaustão.
4
Um exemplo típico do cotidiano de trabalho bancário em relação a este aspecto é a constante reformulação das metas impostas aos trabalhadores. As metas
passam a ser sempre inatingíveis, pois, uma vez alcançadas, a administração aumenta novamente a meta e/ou diminui o prazo para sua execução.

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TRABALHO BANCÁRIO E SAÚDE MENTAL NO PARADIGMA DA EXCELÊNCIA | 101

tinha o indivíduo, não sendo mais recompensada, se referem a vivências de situações traumáticas
degrada-se e o indivíduo se prostra. no ambiente de trabalho, como por exemplo, o
Os bancários apresentam, em relação à sín- grande número de assaltos a agências bancárias e
drome de burnout, dois fatores que concorrem seqüestros.
para sua ocorrência: seus contextos de trabalho O quadro clínico do Transtorno de Estresse
foram objeto de transformações organizacionais Pós-Traumático – TEPT - caracteriza-se pela re-
e prestam serviços ao público. O envolvimento memorização ou revivência persistentes e recor-
cotidiano com clientes expõe os bancários diaria- rentes do evento por imagens, pensamentos e
mente às problemáticas e dificuldades das pesso- memórias, incluindo, em alguns casos, ações e
as atendidas. São expressivas as falas de bancários sentimentos como se o evento estivesse aconte-
que associam o atendimento a clientes com pro- cendo novamente; e, também, por atitudes per-
blemas de saúde: sistentes de evitar circunstâncias semelhantes ou
associadas ao evento. Podem ocorrer episódios
Acho que uma das coisas que mais influencia nos- agudos de medo, pânico ou agressividade, a par-
sa saúde é o contato com o público, porque mui- tir de estímulos associados ao trauma e sintomas
tas vezes temos que lidar com clientes muito
inespecíficos como ansiedade, depressão, insônia,
estressados que acabam por descontar nos funci-
fobia, são recorrentes.
onários (Depoimento verbal).
O TEPT pode acometer indivíduos sem ne-
Os diferentes tipos de problemas que os clientes nhuma predisposição, particularmente se o es-
trazem e que acabam afetando nosso sistema tressor for muito intenso (TEIXEIRA et al.,2004).
nervoso (Depoimento verbal). É prevista a emissão de CAT, especialmente se o
quadro se apresentar até seis meses após a ocor-
“O pior de tudo é não poder ser transparente como rência do evento traumático. O trauma é conce-
eu queria com o meu próximo. Para cumprir as bido como uma situação experimentada ou tes-
metas impostas só enganando (não contando toda
temunhada pelo indivíduo, na qual houve ameaça
a verdade), senão ninguém vende. Os bancos são
à vida ou à integridade física. Segundo orientação
muito abusados em tarifas e taxas. A atitude dos
bancos (capitalismo selvagem) de lucros a qual- do Ministério da Saúde (2001), a ocorrência de
quer preço, impondo metas que fazem com que um caso de estado de estresse pós-traumático
os funcionários, com medo de perder o emprego, relacionado ao trabalho deve ser acompanhada
as cumpram, tendo que mentir para os clientes de intervenções psicossociais de suporte ao gru-
(seus próximos) vendendo “gato por lebre”, o que po de trabalhadores vitimados.
gera no nosso interior um sentimento culposo pois Outro quadro clínico que merece atenção
na maioria das vezes estamos enganando nosso
no tocante à saúde do trabalhador bancário é a
semelhante (Depoimento verbal).
depressão. Esta poderá se manifestar de diferen-
A Portaria nº.1339/99 (BRASIL, 1999) inclui tes maneiras, associada a outros diagnósticos, em
a síndrome de burnout na lista de transtornos quadros agudos ou crônicos, na forma de senti-
mentais e do comportamento relacionados ao tra- mentos de tristeza, baixa auto-estima, vivência
balho no grupo das doenças consideradas de etio- de fracasso, alcoolismo, desânimo etc. (JARDIM;
logia múltipla, em que o trabalho aparece como GLINA, 2000). A depressão também pode estar
fator contributivo, o que facilita a justificativa para associada a quadros crônicos de LER/DORT, en-
emissão de CAT - Comunicação de Acidente de quanto manifestação secundária da dor crônica e/
Trabalho. Também reconhecidas pela referida ou da incapacidade laboral.
Portaria estão as síndromes pós-traumáticas, que A depressão relacionada ao trabalho pode

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102 | Maria da Graça Correa Jacques, Mayte Raya Amazarray

expressar-se de forma sutil. De acordo com o Mi- direitos e assédio psicológico. Essas manifestações
nistério da Saúde: também podem vir acompanhadas de agressões
físicas e de assédio sexual (ORGANIZACION
As decepções sucessivas em situações de traba- INTERNACIONAL DEL TRABAJO, 1998).
lho frustrantes, as perdas acumuladas ao longo O assédio moral no trabalho pode ser de na-
dos anos de trabalho, as exigência excessivas de
tureza vertical, que é o tipo mais freqüente (a vio-
desempenho cada vez maior, no trabalho, gera-
lência parte da direção ou do superior hierárqui-
das pelo excesso de competição, implicando ame-
aça permanente de perda do lugar que o trabalha- co); horizontal (a violência é praticada por um ou
dor ocupa na hierarquia da empresa, perda efeti- mais colegas do mesmo nível hierárquico) ou as-
va, perda do posto de trabalho e demissão podem cendente (a violência é praticada pelo grupo de
determinar expressões mais ou menos graves trabalhadores contra um chefe ou superior), espé-
ou protraídas (BRASIL, 2001, p. 178). cie mais rara. No processo de assédio moral do
tipo vertical, a ação não necessariamente precisa
ser deflagrada pelo chefe, mas ele pode contar com
ASSÉDIO MORAL NO TRABALHO E a cumplicidade dos colegas de trabalho da(s) vítima(s)
IMPLICAÇÕES PSÍQUICAS e, através destes, a violência é desencadeada.
As repercussões do assédio moral no traba-
Definição de metas e formação aos que su-
lho sobre a saúde são diversas, tanto do ponto de
peram as metas, e conseqüente divulgação e ex-
vista físico como psíquico, advindos do estresse e
posição com efeitos negativos a todos aqueles que
da ansiedade, além dos danos que atingem a vida
não atingem as metas, gerando concorrência até
familiar e social, especialmente quando a situa-
desleal entre colegas (Depoimento verbal).
ção se prolonga. Barreto (2003) enfatiza que o
Nos últimos anos vem ganhando reconheci-
fenômeno pode ter como conseqüências a de-
mento, principalmente entre os órgãos sindicais,
sestruturação psicológica, a perda de identidade,
a figura jurídica do assédio moral. De acordo com
o sentimento de inferioridade e o comprometi-
Hirigoyen (2002, p. 17):
mento das relações afetivas.
As causas da violência psicológica no trabalho
O assédio moral no trabalho é definido como qual-
são complexas, não se tratando de um fenômeno
quer conduta abusiva (gesto, palavra, comporta-
individual, e sim enraizado em fatores mais am-
mento, atitude...) que atente, por sua repetição ou
sistematização, contra a dignidade ou integridade
plos, de ordem social, econômica e cultural. Se-
psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seu gundo Einarsen (2000, 2005), o modelo explicati-
emprego ou degradando o clima de trabalho. vo em torno do qual existe maior consenso é aquele
com base nas características do contexto laboral e
O assédio moral no trabalho apresenta-se social, que enfatiza os fatores organizacionais e
como um importante fator de risco no trabalho psicossociais como principais determinantes do fe-
bancário, podendo acarretar graves conseqüênci- nômeno, em detrimento de modelos explicativos
as sobre a saúde. Caracteriza-se como uma for- com base nas características de personalidade de
ma sutil de violência, que, em geral, institui-se vítimas e assediadores.
de modo insidioso e invisível nas relações de tra- Além disso, certas políticas empresariais,
balho e compreende uma diversidade de com- como reestruturações, reduções de pessoal e
portamentos: pressões psicológicas, coações, hu- imposição de metas inatingíveis proporcionam um
milhações, intimidações, ameaças, atitudes rudes clima facilitador da ocorrência do assédio e da
e agressivas, comportamentos hostis, violações de banalização do sofrimento e da injustiça social

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TRABALHO BANCÁRIO E SAÚDE MENTAL NO PARADIGMA DA EXCELÊNCIA | 103

(BARRETO, 2003; GUEDES, 2004; HELOANI, Os versos de Chico Buarque são ilustrativos
2003). Entre os fatores citados por esses auto- do imaginário social que associa trabalho com so-
res, estão: precarização do trabalho, corrosão do frimento, doença, morte. Os modos como o tra-
caráter, individualismo exacerbado, diminuição dos balho se apresentou ao longo da história refor-
espaços de representação dos trabalhadores e çam esta associação. Por exemplo: as cenas de
exigência de performances baseadas na excelên- trabalho dos primórdios da Revolução Industrial,
cia. Diante disso, compreende-se o ambiente fa- a degradação das condições a que estavam ex-
cilitador do fenômeno do assédio moral existen- postos os trabalhadores, as repercussões sobre
te nas instituições bancárias. os corpos desses trabalhadores através de doen-
Um estudo nacional sobre assédio moral na ças, mutilações, debilidades, são imagens recor-
categoria bancária (MACIEL et al., 2006) consta- rentes que reafirmam o vínculo trabalho/sofrimen-
tou que cerca de 40% dos bancários já passaram to/doença/morte.
por situações constrangedoras no trabalho. Em As transformações introduzidas nos contex-
contrapartida, apenas 5,2% dos entrevistados que tos laborais, nos últimos anos, têm oportunizado,
relatam ter sido vítimas de assédio moral falaram em geral, melhores condições de trabalho, com
sobre o assunto com alguém: 34,65% buscaram ambientes mais limpos, menos insalubres, com
apoio na família, 14,85% falaram com amigos, 10, menos riscos de acidentes e doenças. Por outro
89% procuraram um colega da empresa e apenas lado, tais transformações nos processos de traba-
6,52% buscaram o sindicato. A mesma pesquisa lho têm suscitado novas formas de sofrimento e/
identificou que as principais dificuldades no tra- ou doença, vinculadas, preferencialmente, com o
balho apontadas pelos entrevistados são: falta de funcionamento psíquico dos trabalhadores e disse-
pessoal (70,97%), carga excessiva de trabalho minadas pelos mais diferentes espaços de traba-
(54,66%), competição entre pessoas (34,09%) e lho, incluindo o setor de serviços. As estatísticas
não respeito aos horários (27, 36%). de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez
refletem este novo perfil.
O setor bancário foi um dos setores em que
CONSIDERAÇÕES FINAIS a reestruturação dos processos de trabalho e as
mudanças nos modelos de gestão foram imple-
Vai trabalhar, vagabundo/ Vai trabalhar, criatura mentadas de modo mais abrangente. Intensifica-
Deus permite a todo o mundo/Uma loucura.
ção do trabalho, estímulo à competitividade en-
(...)
tre colegas, ameaça de desemprego, exigências
Vai terminar moribundo/Com um pouco de
constantes de qualificação, entre outros, fazem
paciência
parte do cotidiano do trabalhador bancário e são
No fim da fila/do Fundo da Previdência.
alguns dos fatores responsáveis por quadros de
Parte tranqüilo, ó irmão/Descansa na paz de
estresse e depressão. A exposição à violência, seja
Deus
Deixaste casa e pensão/Só para os teus.
no trato com os clientes, com colegas ou com
(...) chefias, seja na elevada incidência de assaltos e
Vai te entregar, vai te estragar seqüestros a que estão expostos, é também res-
Vai te enforcar, vai caducar ponsável por quadros de burnout, de estresse pós-
Vai trabalhar/Vai trabalhar traumático e de exposição ao assédio moral.
Vai trabalhar, vagabundo. Mas os versos de Chico Buarque também re-
metem à positividade conferida ao trabalho pelo
Vai trabalhar vagabundo, Chico Buarque de Holanda (1975). social, visto seu valor moral, contrário ao não tra-

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104 | Maria da Graça Correa Jacques, Mayte Raya Amazarray

balho, este último associado à vagabundagem. O ima- São Paulo: Editora VK, 2000. p. 167-204.
ginário social confere ao trabalho o papel de princi- BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n°. 1339/
pal mediador de inserção e de integração social, por- GM, de 18 de novembro de 1999. Institui a lista
tador de um valor simbólico constitutivo da subjeti- de doenças relacionadas ao trabalho e dá outras
vidade. O trabalho ocupa, também, um lugar fun- providências. Diário Oficial [da] República
damental na dinâmica do investimento afetivo das Federativa do Brasil, Brasília, DF, 19 nov. 1999,
pessoas. Condições favoráveis à livre utilização das Seção I, p. 21.
habilidades dos trabalhadores e ao controle do tra- BRASIL. Ministério da Saúde. Doenças relacio-
balho pelos trabalhadores, além do reconhecimen- nadas ao trabalho: manual de procedimentos
to pelo trabalho realizado têm sido identificados para os serviços de saúde. Brasília, 2001.
como importantes requisitos para que o trabalho BRESCIANI, L. P. Panorama da reestruturação
possa proporcionar prazer, saúde e bem-estar. produtiva. Cadernos de Psicologia Social e do
Resgatar a positividade do trabalho é o em- Trabalho, São Paulo, v. 2, n.1, p. 39-44, 1999.
penho dos movimentos sociais, especialmente dos CAMPELLO, J. C. Cargas de trabalho e evi-
movimentos sindicais. As maiores conquistas no dências de seu impacto sobre a saúde de tra-
balhadores em bancos: estudo de caso em qua-
âmbito da Saúde do Trabalhador se devem à luta
tro instituições financeiras em Porto Alegre. 2004.
histórica e cotidiana da classe trabalhadora como
Dissertação (Mestrado em Engenharia – ênfase
atestam os registros da História. Voltar-se, hoje,
em Ergonomia) - Universidade Federal do Rio
para as relações entre saúde mental e trabalho é
Grande do Sul, Porto Alegre, 2004.
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