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ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 285

Efeitos danosos do processo de trabalho em


um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e
Drogas
Harmful effects of the work process in an Alcohol and Drugs
Psychosocial Care Center

Kallen Dettmann Wandekoken1, Maristela Dalbello-Araujo2, Luiz Henrique Borges3

RESUMO Este artigo analisa de que forma os trabalhadores vivenciam os efeitos do processo de
trabalho em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Capsad). Foram realizadas
observações, entrevista coletiva e entrevistas em profundidade com os trabalhadores. Entre os
efeitos, destacaram-se desgaste, adoecimento, impotência de ação e esgotamento. Conclui-se
que estes afetam a capacidade de agir, já que, para colaborar na produção do sentido de vida
do outro, em muitos casos, o trabalhador não oferta nada para si, e isto os leva ao que Merhy
chama de combustão.

PALAVRAS-CHAVE Serviços de saúde mental. Recursos humanos. Esgotamento profissional.

ABSTRACT This article analyzes how workers experience the effects of the work process in an
Alcohol and Drugs Psychosocial Care Center (Capsad). Observations, collective interview and in-
depth interviews with workers were carried out. Among the effects, the most notable were wear,
sickness, powerlessness of action and exhaustion. It is concluded that these affect the capacity
to act, since, in order to collaborate in the production of the meaning of life of the other, in many
cases, the employee does not offer nothing for himself, and this leads them to what Merhy calls
combustion.

1 Universidade
KEYWORDS Mental health services. Human resources. Professional exhaustion.
Federal
do Espírito Santo (Ufes),
Departamento de
Enfermagem – Vitória (ES),
Brasil.
kallendw@gmail.com

2 Universidade Federal
do Espírito Santo (Ufes),
Programa de Pós-
Graduação em Saúde
Coletiva – Vitória (ES),
Brasil.
dalbello.araujo@gmail.com

3 Escola Superior de
Ciências da Santa Casa de
Misericórdia de Vitória –
Vitória (ES), Brasil.
luiz.borges@emescam.br

DOI: 10.1590/0103-1104201711223 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 285-297, JAN-MAR 2017
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Introdução Schraiber (2008, P. 323) afirmam que processo


de trabalho em saúde
À medida que a sociedade ocidental se de-
senvolvia, frente às transformações ocasio- diz respeito à dimensão microscópica do coti-
nadas pela revolução industrial, o trabalho diano do trabalho em saúde, ou seja, à prática
foi colocado como mercadoria principal dos trabalhadores/profissionais de saúde in-
e indutora do processo de acumulação ca- seridos no dia-a-dia da produção e consumo
pitalista. Assim, o trabalho passou a ser de serviços de saúde.
elemento central no entendimento da so-
ciedade e do indivíduo na dinâmica social Assim, segundo Faria e Dalbello-Araujo
(CARDOSO, 2011). (2010),a finalidade do processo de trabalho
Para Marx (1996, P. 297), o trabalho é em saúde seria, por exemplo, a cura, a rea-
bilitação e a promoção da saúde, que coe-
um processo entre o homem e a natureza, um xistem em diferentes formas de produção
processo em que o homem, por sua própria de cuidado. Ressalta-se que, com base em
ação, media, regula e controla seu metabolis- Merhy, Feurwerker e Cerqueira (2010), a pro-
mo com a natureza. dução do cuidado deve ser compartilhada
por todos os trabalhadores de um serviço
Para o autor, a sobrevivência humana de saúde, uma vez que a todos são válidos os
depende da interação do indivíduo com a na- atos de acolhimento e de escuta, o mostrar-se
tureza, de modo que os elementos desta são interessado, de forma a possibilitar o encon-
modificados sempre com um propósito, uma tro que seja de conforto, a partir de olhares
finalidade. Assim, o processo de trabalho é diferenciados. Campos (2007, P. 22) afirma,
uma condição da existência humana e é por ainda, que “o trabalho em saúde assenta-se
meio dele que o homem se constitui, social sobre relações interpessoais todo o tempo”.
e culturalmente. Ele ainda esclarece que o Esses encontros são, dessa forma, essen-
processo de trabalho é a atividade humana ciais no processo de trabalho em saúde, e
(gasto de energia) que transforma matéria- particularmente importantes nos Centros
-prima em produto, a partir do uso de meios de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas
e instrumentos. Entende-se que a história (Capsad), uma vez que este é um serviço
da humanidade passa pelo trabalho e pelas de referência na rede de atenção aos usuá-
transformações que ele realiza, de forma rios de substâncias psicoativas, tendo como
que compreender o processo de trabalho base as atividades terapêuticas e preventivas
se torna importante para a compreensão da à comunidade (BRASIL, 2003). Logo, são várias
sociedade e das relações sociais, inclusive no as possibilidades de atividades a serem ofe-
contexto do trabalho na área da saúde. recidas pelos Capsad, tais como o atendi-
No Brasil, teóricos como Maria Cecília mento individual, que inclui a medicação; a
Donnângelo e Ricardo Bruno Mendes- psicoterapia; a orientação; as atividades em
Gonçalves foram pioneiros ao introduzir a grupo; oficinas terapêuticas; visitas domici-
teoria marxista no campo da saúde. Mendes- liares etc. (BRASIL, 2003). Atividades essas que
Gonçalves (1992) formulou o conceito de pro- se baseiam em relações interpessoais e no
cesso de trabalho em saúde, que se refere encontro entre trabalhador e usuário.
ao modo de organização dos serviços, a fim Além disso, trabalhadores de Capsad vi-
de atender às necessidades de saúde dos venciam uma contradição entre duas políti-
usuários, ou, ainda, diz respeito à configu- cas: a Política Nacional sobre Drogas ligada
ração e ao reconhecimento de novas neces- à Segurança Pública (BRASIL, 2002) e a Política
sidades. Corroborando essa ideia, Peduzzi e de Atenção Integral aos Usuários de Álcool

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e outras Drogas, com foco na saúde pública, analisar os efeitos vivenciados pelos trabalha-
ressaltando a necessidade da diversidade e da dores, tal escolha se deu pela crença de que a
pluralidade de ações neste campo (BRASIL, 2003). precariedade da rede de atenção em álcool e
Tal situação impacta negativamente no traba- drogas contribuía para esses achados.
lho a ser realizado no Capsad, dificultando as A coleta de dados foi realizada entre os
relações interpessoais, que são essenciais ao meses de janeiro e abril do ano de 2014, a partir
cuidado (WANDEKOKEN; DALBELLO-ARAUJO, 2015). de três técnicas: observação do cotidiano, das
A temática da dependência química está reuniões de equipe e das assembleias com os
diretamente vinculada a questões sociais, usuários; entrevista coletiva; e entrevistas em
como a criminalidade, a prostituição, a situ- profundidade. A técnica de observação foi im-
ação de rua, o tráfico de drogas, a Síndrome portante para identificar os comportamentos
da Imunodeficiência Adquirida (Aids), não intencionais ou as reações sutis e, dessa
entre outras (KESSLER; PECHANSKY, 2008). Fato é forma, explorar questões que as pessoas não
que o profissional dedicado à assistência ao se sentem à vontade para discutir, permitindo
usuário de substâncias psicoativas não deve registrar o comportamento no contexto em
se preocupar apenas com o uso de drogas, que ele ocorre (DALBELLO-ARAUJO, 2008). Conforme
redução de danos e/ou abstinência, mas deve Dalbello-Araujo (2008), a entrevista coletiva é
percebê-lo como um indivíduo que tem uma usada quando se pretende facilitar o acesso
história, uma trajetória, desejos, crenças, aos diferentes pontos de vista dos participan-
valores e potencialidades, o que torna este tes. A entrevista em profundidade foi utilizada
trabalho ainda mais complexo. com 13 trabalhadores, tendo como questão de
Tendo isso em vista, neste artigo, ana- partida ‘O que você acha de trabalhar aqui?’.
lisam-se os efeitos danosos identificados Todos os dados foram transcritos e discutidos
pelos trabalhadores no processo de trabalho com a utilização da técnica de análise temática
de um Capsad. (BARDIN, 2009).
Ressalta-se que os participantes assi-
naram de forma voluntária o Termo de
Métodos Consentimento Livre e Esclarecido, através
do qual tiveram a garantia do sigilo de iden-
Foi realizada uma pesquisa qualitativa, com tidade e das informações prestadas. Assim,
todos os 28 trabalhadores do serviço, in- a identificação dos trechos selecionados
cluindo enfermeiros, psicólogos, assistente aconteceu de três formas: ‘Trabalhador’ ou
administrativo, motorista, recepcionistas, ‘Trabalhador em roda’, quando teve relação
vigilantes, auxiliares de serviços gerais, far- com depoimentos; e ‘Diário de campo’,
macêutico, educadores físicos, terapeuta ocu- quando o trecho de observação da autora
pacional, gerente, técnicos de enfermagem, baseou-se na observação do cotidiano.
assistentes sociais e médicos, visto que todos Foram atendidas as prerrogativas da
intervêm na produção do cuidado do serviço Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional
de saúde (MERHY; FEUERWERKER; CERQUEIRA, 2010). de Saúde, sendo aprovada a pesquisa, sob o
Para a escolha do local da pesquisa, foram nº 16771113000005060, pelo Comitê de Ética
analisadas as informações municipais recen- em Pesquisa.
tes das sete cidades da região metropolitana
onde foi realizada a pesquisa a respeito da
rede de atenção aos usuários de substâncias Resultados e discussão
psicoativas. Optou-se, assim, por pesquisar
um município de 420 mil habitantes, com Entre as tantas questões observadas no
apenas um Capsad. Como o foco estava em campo de pesquisa, evidenciaram-se

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diversas dificuldades apresentadas pelos o referencial da análise temática (BARDIN, 2009),


trabalhadores para entenderem os aconteci- os dados coletados foram divididos em ca-
mentos do seu exigente ofício. Destaca-se o tegorias, conforme os efeitos identificados:
fato de o cotidiano de trabalho ser marcado o desgaste, o medo, o adoecimento, o senti-
por intensas demandas de cuidado, por parte mento de inutilidade, a impotência de ação e
dos usuários com sintomas de abstinência ou o esgotamento.
em crise. Isto torna o fazer árduo, de forma
que, entre os efeitos estão o desgaste, o medo, Desgaste
o adoecimento, o sentimento de inutilidade e
a impotência de ação, que acabam levando ao
esgotamento. Esses efeitos produzem o que O grupo exige muito, é cansativo [...] No grupo,
Merhy (2004) descreve como combustão. Ainda é preciso ficar atenta a tudo ao que acontece.
conforme Merhy (2013), a combustão é o efeito (Trab3).
decorrente dos fazeres no trabalho em saúde,
que consomem vida em ato (no momento em
que o trabalho é realizado), uma vez que o tra- O serviço no Capsad é muito desgastante, ‘suga
balhador, ao realizar o cuidado em saúde, deve muito’. (Trab8).
ofertar o trabalho vivo para dar sentido à vida
do outro. Assim, para auxiliar na produção do
sentido de vida do outro, oferecendo energia É muito difícil trabalhar com adolescentes... é
vital, em muitos casos, ocorre o consumo do preciso ter habilidade para manejar o grupo. O
trabalhador quando, em não restando nada trabalho acaba sendo mais desgastante, você
para si, ele, de fato, entra em combustão. Ao fica muito cansado. (Trab6).
experimentar estes efeitos, o trabalhador não
vislumbra possibilidades para gerar mudanças
no trabalho, de forma que vivencia um distan- É muito cansativo, a cabeça fica cansada. É igual
ciamento afetivo (paralisia e automatismo). Tal quando você está estudando muito e parece
conceito se vincula à especificidade do trabalho que o corpo também dói. Tem dia em que chego
em saúde, visto que, para o autor, este esforço exausto em casa. (Trab2).
de dar sentido à vida de outro, emprestando-
-lhe o desejo, pode levar à combustão, quando Como se vê, o desgaste foi evidenciado em
não são tomadas medidas de compartilhamen- várias circunstâncias de trabalho no Capsad,
to e análise do processo de trabalho. seja ao coordenar um grupo com adultos, com
Vale a pena ressaltar, entretanto, que esta adolescentes ou no serviço cotidiano. Observa-
ideia em muito se assemelha ao conceito de se que, em todas as situações elencadas, o en-
sofrimento psíquico postulado por Dejours contro com o outro foi essencial, de forma a
(1994), que vem, desde 1980, estudando, so- exigir do trabalhador o estabelecimento de
bretudo no trabalho fabril, os efeitos da or- relações interpessoais e o envolvimento de sua
ganização industrial para os trabalhadores, subjetividade (MERHY, 2002), o que representa
visando a uma melhor compreensão da dor fonte de desgaste, nos depoimentos.
e do sofrimento. Também faz eco à síndrome Para Onocko e Campos (2006), o desgaste de
de Burnout, uma das consequências do estado um trabalhador da saúde é grande, uma vez que
de constante tensão emocional e estresse este se encontra em permanente contato com
crônico provocado por condições de trabalho a dor e com o sofrimento. Os autores afirmam,
desgastantes, estudada no Brasil, especial- ainda, que os trabalhadores da saúde não per-
mente entre professores (CARLOTTO, 2002). cebem que gastam suas vidas na defesa da vida
Para a organização da discussão, seguindo dos outros. Assim, o desgaste é um sinal de

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combustão, como se observa na fala “[...] parece mesa – sinais claros de combustão.
que o corpo também dói. Tem dia que chego Nesse ponto, destaca-se que a produção
exausto em casa” (Trab4). do cuidado no Capsad é pautada no encontro
e no estabelecimento de vínculos, no entanto,
Estresse a combustão não favorece esta produção e,
assim, implica em dificuldades no encontro
entre trabalhador e usuário.
Tem que ter muito equilíbrio para lidar com os
pacientes de dependência química porque eles Medo
são muito instáveis, é muito difícil. Igual ao dia
em que eu me estressei muito, o paciente mani- Tal efeito foi ressaltado por aqueles que rea-
pulador... me acusava de ter solicitado a interna- lizam atividades externas, tais como levar os
ção dele para o Capsad se livrar dele [...] Eu me usuários da atenção diária para passeios:
estressei muito, sabe? Lidar com dependência
química é muito difícil. (Trab12). [...] ‘é preciso dois profissionais para levá-los
[os pacientes], já que é perigoso um sozinho’.
No depoimento, observa-se que as situa- O outro disse: ‘Eu tenho medo de sair de carro
ções de instabilidade dos usuários, inerentes com eles... não sei o que podem fazer, quem eles
ao tratamento da dependência química, são podem encontrar na rua’. Já outro disse: ‘O que
fontes de estresse para os trabalhadores, pode acontecer fora, acontece aqui dentro [no
uma vez que vivenciam estas situações dia- Capsad] também’. (Trabalhadores em roda).
riamente. Assim, a afirmação “você tem que
ser uma pessoa muito equilibrada” (Trab1) Ressalta-se a frase “O que pode acontecer
destaca que vivenciar estas situações é, de fora, acontece aqui dentro também”, uma vez
fato, difícil e requer certo preparo do traba- que amplia as situações de medo e, assim, de
lhador para que não haja a combustão. combustão, devido à exigência de perma-
Há, também, como no caso abaixo, o es- nência em estado de atenção. Grande parte
tresse proveniente das relações interpesso- dos depoimentos relacionados ao medo se
ais entre os trabalhadores: referiu à atividade de internação compulsó-
ria, como descrito abaixo:
O trabalhador, então, quis me falar sobre uma
reunião em que ele ‘explodiu’. Disse que, por falta [...] quem está na internação compulsória está
de comunicação da recepção, ele passou por uma correndo risco de morte, pois não se sabe se o
situação constrangedora, em que o paciente psi- paciente está com uma faca! Você ‘tá na frente
quiátrico reclamou de sua conduta na gerência da batalha. (Trab13).
[...] Até socou a mesa e alterou a voz para mos-
trar sua indignação. (Diário de campo).
Mas, eu sei que é muito perigoso, tem muito risco
Qualquer trabalhador está sujeito a vi- pr’a gente, porque a gente não sabe se o cara ‘tá
venciar episódios em que há conflitos na armado, né?, como ele está. Não tem uma escol-
comunicação entre os membros da equipe. ta, nada... Teve o caso de um usuário, que a gente
Entretanto, o relato acima ressalta uma in- foi internar e que ele fazia sinal de que queria se
dignação frente ao fato ter ocorrido repe- cortar, cortar os punhos. Ficamos morrendo de
tidas vezes, ainda mais se relacionando ao medo. Eu disse: ‘Já pensou se ele pega uma faca
cuidado em saúde mental, que demandaria e tenta se matar? O que a gente vai fazer?’, e X
maior atenção e empatia. Como se observa, o disse: ‘O pior é se ele pega uma faca e tenta nos
trabalhador diz ter ‘explodido’ e ter socado a matar, né?!’. (Trab5).

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Segundo Merhy (2013, P. 222), os trabalhado- dos problemas e certo desejo por mudança
res produzem “alívio nos outros, mas não têm – entretanto, extremamente limitado – para
nenhum alívio para olhar e repensar o tra- alterar a situação.
balho”. Neste sentido, é imprescindível que No depoimento acima, percebe-se, ainda,
existam formas de alívio para tais trabalhado- certa paralisia diante da impotência. Parece
res, de modo a aumentar-lhes a capacidade de que o diálogo e a escuta não foram conside-
agir. Há que se pensar em formas de articular rados como possíveis ferramentas de mu-
a rede intersetorial, de modo que haja maior danças frente às condutas do profissional em
segurança, e também em criar meios de pro- questão. Por isto, a espera por uma atitude
blematização das práticas para que esses tra- da gestão. E além disto, a gestão, personi-
balhadores articulem ferramentas frente às ficada na pessoa da diretoria, está sempre
demandas da internação compulsória. distante da assistência. Com este quadro,
Aponta-se a Educação Permanente em é muito difícil se atentar para as demandas
Saúde (EPS) como um possível caminho para do usuário e estabelecer “um compromisso
a transformação da produção do cuidado. permanente com a tarefa de acolher, respon-
A partir da EPS, o aprender e o ensinar sabilizar, resolver, autonomizar”, como pos-
são incorporados ao cotidiano do serviço tulado por Merhy (2002, P. 82).
(BRASIL, 2004). Compreende-se, assim, que a Em outra oportunidade, os trabalhadores
proposta da Política Nacional de Educação relataram a impotência de ação diante de
Permanente em Saúde (PNEPS) é atual e sua um caso:
implantação se faz necessária, mas sabe-se
que, para que isto ocorra, é preciso o en- Outro ponto de pauta foi o ‘caso do usuário X’.
volvimento de trabalhadores e de gestores. Neste momento, um profissional – técnico de re-
Ressalta-se, ainda, que a EPS se constitui em ferência de X – disse que não queria mais essa
estratégia para a reorganização do processo função, pois achava que já não dava conta da de-
de trabalho com base na problematização, manda e que não acrescentava mais ao paciente.
ou seja, vai muito além da ideia de oferta de (Diário de campo).
capacitações e cursos, e é uma proposta de
transformação frente a todos os efeitos que A princípio, concorda-se com Merhy (2002)
serão vistos a seguir. quando ele defende que deve haver, nas
equipes, os profissionais de referência para
Impotência de ação cada usuário, de forma que os trabalhadores
desenvolvam vínculos mais estreitos e, assim,
A ‘impotência de ação’ aparece sempre que os interpretem melhor suas demandas. Porém,
profissionais alegam que não há nada a fazer como se observa, as situações de impotência
para melhorar o atendimento burocratizado, parecem implicar em uma situação de para-
e não humanizado, realizado por alguns dos lisia, na qual o trabalhador prefere até deixar
trabalhadores: “[...] isso é muito ruim para de exercer sua função por não saber o que
os pacientes! Ficamos inconformados! Mas fazer. Ressalta-se que tal desistência não foi
vamos fazer o quê? X [a gestão] diz que é assim sequer analisada pelo grupo que optou pela
mesmo” (Trabalhadores em roda). troca do trabalhador que exercia a função de
Constata-se, assim, que as situações técnico de referência do usuário em questão.
de impotência se expressam nas relações A paralisia observada parece decorrer da
interpessoais – seja entre trabalhador e combustão vivenciada pelos trabalhadores,
usuário ou entre os próprios trabalhadores refletida na falta de implicação da equipe
– e nas relações intersubjetivas – relacional frente à produção de cuidados. Assim, pode
e afetiva. Há, aparentemente, consciência ser questionada a existência, neste serviço,

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de sujeitos militantes, como descrito por conforme descrito por Merhy (2002). Segundo
Merhy (2004). Para nós, estar implicado é ser Franco e Merhy (2005), há ideias que associam
ativo, é se colocar como alguém que afeta e a complexidade tecnológica à qualidade do
é afetado, como alguém que produz e que é cuidado, configurando a ilusória imagem
produzido; se colocar como um trabalhador, de resolutividade. Sabe-se, no entanto, com
como um sujeito. É preciso abrir passagem base nestes autores, que o processo de tra-
para novos sentidos, até porque, neste con- balho mais relacional implica em alta sofis-
texto, a repetição já não funciona mais. ticação e exige grande energia por parte dos
Ao discutir sobre a impotência, é preciso trabalhadores. Até porque esta complexida-
ressaltar que, segundo Merhy (2002, P. 61), o de se baseia nas redes de relações focadas
trabalhador tem um alto grau de liberdade nos saber-fazer dos trabalhadores e não no
na produção do cuidado em saúde, de forma aporte tecnológico. Assim, concorda-se que
a exercer certo autogoverno de suas práticas. o olhar atento, a escuta, o toque operam em
Assim, para o autor, considerando a micro- conjunto com os saberes e, sem dúvida, co-
política do trabalho vivo, não cabe a noção de laboram na constituição de maior resolutivi-
impotência, uma vez que, se dade do trabalho em saúde (FRANCO, 2013).
Além dessas questões, percebe-se, no
o processo de trabalho está sempre aberto à depoimento, certo sofrimento e, de fato, a
presença do trabalho vivo em ato, é porque ele combustão, quando o trabalhador afirma
pode ser sempre ‘atravessado’ por distintas “Eu não aguento não falar o que penso”. Esta
lógicas que o trabalho vivo pode comportar. fala aponta que o trabalhador parece não ter
implicação com a escuta, no encontro com
Neste sentido, deve-se considerar que a o outro, e que ele apenas suporta vivenciar
criatividade é uma das possibilidades para esses encontros no cotidiano de trabalho, o
tornar os trabalhadores menos impotentes, que repercute na produção de um cuidado
de forma que possam inventar novos proces- menos acolhedor.
sos de trabalho.
Adoecimento
Sentimento de inutilidade

Disseram que muitos ali vivenciam processos de


[...] quando vim pra cá [para o Capsad], me sen- adoecimento devido à demanda e pelas condi-
ti inútil... a dinâmica é bem diferente do hospital ções de trabalho; que não é só o salário. (Diário
porque, no hospital, você tem que ficar o tempo de campo).
todo em atenção, porque, em um momento, pode
estar tudo bem e, em outro, cai um ônibus, tem
um acidente, e aí, lota o pronto socorro. [...] tra- [...] meu problema de audição é genético, mas,
balhar com álcool e drogas é difícil porque eu não com certeza, foi piorado devido ao estresse e an-
aguento não falar o que penso [...] Às vezes, vem siedade. Principalmente, pelas dificuldades de
um paciente que quer falar comigo, quer desa- relacionamento com a equipe. (Trab2).
bafar... e eu não aguento, não! Eu falo o que eu
penso e pronto! (Trab11).
[...] o motivo de eu ter ficado de atestado nesse
Percebe-se que o sentimento de inuti- tempo tem muito a ver com o Capsad... eu não
lidade vivenciado pelos trabalhadores se estava aguentando mais. (Trab9).
relaciona ao seu fazer muito distinto dos
procedimentos e técnicas hospitalares, Foram vários os depoimentos que apontaram

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o adoecimento como um efeito do processo de Capsad que estão em tratamento intensivo):


trabalho no Capsad. Sabe-se que o trabalho,
por si só, não é fator de adoecimento, mas, sim,
determinadas condições e contextos nos quais Tem dia que xingam, que ofendem os profissio-
é realizado, o que pode implicar em situações nais. O convívio é diário, então, é mais difícil.
que interferem diretamente na produção do (Trab6).
cuidado e só reforçam a constatação de que a
combustão é vivenciada no cotidiano de grande
parte dos trabalhadores do serviço. Assim, [...] um dos trabalhadores me explica que o
ressalta-se a necessidade de serem pensadas usuário havia o tratado mal, ofendido, e ele não
formas de gerar alívio aos trabalhadores para aguentava mais, por isso, estava saindo da aten-
que estes produzam vida em si (para ofertar ção diária. (Diário de campo).
ao outro) e para si (para ofertar a si), conforme
Merhy (2013).
Já um efeito, e único identificado, que tem [...] ninguém gosta de ficar na atenção diária, só
a ver com o aumento da capacidade de agir fazem por falta de opção [e riram]. [Perguntei
é a ‘realização profissional’, mencionada por o porquê.] Vou te colocar lá um mês, pra você
alguns trabalhadores: saber. [O outro disse] Ah, eles são muito de-
sobedientes, são muito agressivos, só arrumam
É muito bom quando você vê o paciente, você vê confusão... (Trabalhadores em roda).
a mudança dele... isso traz realização, sabe? O
envolvimento que tem aqui, ele é muito intenso... Observa-se que o encontro com o usuário na
tanto pro que é positivo quanto pro que é nega- atenção diária é penoso. Todos os profissionais
tivo... é tudo muito intenso... muito forte... então, escalados para trabalhar na atenção diária, sem
eu gosto disso, sabe? É como se eu me sentisse exceção, disseram não gostar de nela atuar. O
mais viva! (Trab4). que mais impressiona é o fato desta atividade
ter grande importância, pois se trata do encon-
tro com usuários em cuidado intensivo. Assim,
Eu amo trabalhar no Capsad! Nunca trabalhei com atenta-se para a fala dos trabalhadores, quando
saúde, mas amo trabalhar com dependência quími- são perguntados a respeito de trabalhar na
ca [...] o que importa é o paciente e, por mais que atenção diária. Eles responderam, juntos, que:
depois da consulta ele vá embora e não volte, algo
já mudou nele e ele não é mais o mesmo. (Trab10). É estressante, frustrante, desgastante, desesti-
mulante, ‘broxante’! [...].

[...] eu sou do povo, gosto de estar com eles, con-


versar com eles, gosto da assistência. (Trab3). Eles gritam, ofendem, são agressivos [...].

Esgotamento Preparo o material. Às vezes, chego com tudo ‘ar-


mado’. Aí, um ‘vem pra dormir’, ninguém presta
Destaca-se, a partir do efeito esgotamento – atenção... Então, é assim, é frustrante! [...].
que engloba frustração, desgaste e estresse
–, o caso dos membros da equipe que dizem
não suportar o trabalho na atenção diária A gente pergunta e ‘cri, cri’. [E outro trabalha-
(modalidade de atendimento diário baseada dor disse:] ‘Por isso, não pergunto nada, falo so-
em oficinas terapêuticas para os usuários do zinha...’. (Trabalhadores em roda).

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Os usuários em cuidado intensivo frequen- leves, que se referem às relações construídas


temente são aqueles que ainda estão em uso entre duas pessoas, em ato, e produzem uma
continuado da substância e são orientados a relação de vínculo e de aceitação – conforme
permanecerem sem o uso da droga por um descreve Merhy (2002) –, imprescindíveis ao
dia inteiro – caso contrário, não poderão encontro no Capsad.
permanecer na atividade do Capsad. Assim, Outra questão que se coloca na cate-
compreende-se a dificuldade que é estar em goria esgotamento é mencionada pelos
abstinência, que os leva à agressividade e à trabalhadores:
falta de interesse por qualquer atividade, as-
pectos inerentes a este estado. No entanto, O PTS [Projeto Terapêutico Singular] é feito,
estas questões implicam no esgotamento do mas nunca é avaliado. Outro trabalhador disse:
trabalhador, que passa a vivenciar, no cuidado ‘Tem paciente na atenção diária, de forma inte-
intensivo, uma atividade que o exaure. gral, há mais de seis meses, porque o PTS nun-
Além disso, percebe-se, também, que a di- ca foi avaliado. A atenção diária está inchada’.
ficuldade da escuta frente às demandas dos (Trabalhadores em roda)
usuários e a dificuldade de tratá-los como su-
jeitos – com desejos, crenças e valores – tem Cada usuário do Capsad deve ter um
implicado em prejuízos, não só para o usuário Projeto Terapêutico Singular (PTS), isto é,
como para o trabalhador, que se sente limi-
tado para lidar com tais questões, que o têm um conjunto de atendimentos que respeite a
levado ao automatismo no encontro com o sua particularidade, que personalize o atendi-
outro – o que descreve as situações nas quais mento de cada pessoa na unidade e fora dela,
o trabalhador passa a ser indiferente e se dis- e proponha atividades durante a permanência
tancia do cotidiano, deixando-se levar pelas diária no serviço, segundo suas necessidades.
ocorrências sem se vincular e pressupondo (BRASIL, 2004, P. 16).
a passividade do usuário, como se vê na fala
“Por isso, não pergunto nada, falo sozinha...” PTS deve ser realizado no acolhimento
(Trab8). E estas situações não são nada anima- do usuário no serviço e deve ser monitorado
doras, uma vez que os trabalhadores chegam periodicamente pelo profissional de referên-
a ver os usuários como potenciais estressores, cia, junto com o usuário (BRASIL, 2004).
o que torna o encontro exaustivo. Assim, o fato de o PTS nunca ser avalia-
Assim, ao vivenciar o esgotamento por meio do é difícil de compreender. Percebe-se que
do automatismo, o trabalhador contribui para o encontro com o usuário, que está há tanto
que a produção do cuidado não seja centrada tempo na mesma atividade, só pode produ-
no usuário. E quando o profissional se distan- zir esgotamento, não só no trabalhador como
cia do cotidiano, outras questões passam a ter também no próprio usuário, que acaba por
prioridade, como o protocolo e o preenchi- manifestá-lo, seja pelos envolvimentos em
mento do prontuário, entre outros aspectos brigas ou em agressividade (nas palavras
contrários ao que Merhy (2002) sugere. Neste ou em gestos). Assim, o esgotamento e, con-
caso, fica claro que apenas o saber-fazer do sequentemente, a combustão contribuem
profissional importa, e assim, as ações centra- para um estado de paralisia, que o traba-
das no trabalhador fazem com que o usuário lhador acaba se distanciando afetivamente,
seja atendido com base em tecnologias duras mesmo estando presente no cotidiano do
(equipamentos, instrumentos, protocolos serviço, e, com isto, surgem situações como
etc.) e/ou leve-duras (conhecimentos es- estas observadas: usuários há mais de seis
truturados, dos diversos saberes da área da meses no mesmo tipo de cuidado e de abor-
saúde), sem que se dê atenção às tecnologias dagem sem, ao menos, uma avaliação. No

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entanto, essa questão não foi explicada pelos ao cuidado intensivo em um Capsad.
trabalhadores. No entanto, segundo Merhy (2005), não
Observa-se que os encontros na atenção se pode acreditar que a baixa eficácia das
diária, em sua maioria, exaurem o trabalha- ações em saúde se relaciona apenas à falta
dor, de forma que este, quando não está nesta de competência dos trabalhadores, que pode
atividade, demonstra grande alívio. Refletiu- ser suprida por meio de cursos. Essa seria
se, então, sobre o fato de estes trabalhadores uma visão simplista da questão, que geraria
irem todos os dias para esta atividade, já apenas pequenas mudanças no cotidiano de
exaustos, frustrados e na incerteza do que produção do cuidado. Ao contrário, Merhy
acontecerá, e poderem vivenciar episódios (2005) aponta que o trabalhador deve ser
de surtos, crises ou convulsões de usuários. protagonista no processo de transformação
Nesses casos, o trabalhador responsável pela da sua prática. Do mesmo modo, Carvalho
atividade do dia terá que atuar diretamente e Ceccim (2009) afirmam que o trabalhador
no caso, usando suas habilidades a fim de deve avaliar sua atuação e direcionar críticas
ofertar um cuidado singular que seja pro- em relação a ela.
motor de vínculo, de acolhimento, de escuta Destaca-se que, paradoxalmente, também
e de ressignificação, como propõe Merhy se percebe certa realização pessoal nos tra-
(2002). Mas, como? balhadores, com o desenvolvimento das
Nesse ponto, destaca-se, ainda, que outro atividades, mas esta precisa ser potencia-
motivo de esgotamento na atenção diária se lizada. Observa-se que, quando o trabalho
relaciona com a suposta falta de interesse em saúde tem como efeito esta realização, o
dos usuários levantada pelos trabalhadores trabalhador apresenta maior grau de potên-
do Capsad, o que gerou uma série de discus- cia para dar conta de suas atividades e, como
sões ao longo do campo de pesquisa: consequência, se sente mais satisfeito, o que
favorece a criação de vínculo e repercute
Ninguém quer ficar na atenção diária; uns não positivamente na produção do cuidado. No
querem mesmo e outros, apenas suportam. [...] entanto, pode-se afirmar que, para que haja
os pacientes confrontam muito os profissionais, bem-estar no trabalho, não se faz necessária
eles não têm interesse. Um deles explicou: ‘Antes a satisfação constante, apenas é preciso que
os pacientes eram mais novos e gostavam das haja esperança, metas, desejos.
atividades que a gente levava, mas agora eles Sabe-se que o desejo faz com que os traba-
são mais velhos e não querem fazer atividades lhadores tenham maior capacidade para agir,
como ‘adedonha’. Dizem que é idiotice e só gos- em concordância com o que afirma Franco
tam de atividades mais intelectuais, como leitura (2013), quando ele diz que é preciso estimular
e discussão’. (Trabalhadores em roda). os trabalhadores para que se tornem sujeitos
desejantes, visto que todos têm a capacida-
O fato de alguns apenas suportarem estar de de exercer mudanças na realidade que
na atenção diária e os outros não quererem vivenciam desde que tenham capacidade de
estar de forma alguma, é grave. Observa-se autogestão e de autoanálise. A primeira, diz
que algumas atividades não parecem ser in- respeito à atuação do trabalhador com foco
teressantes para serem desenvolvidas com no trabalho vivo em ato e é conduzida com
jovens e adultos em estado de abstinência, base no próprio sujeito, que faz as demais
mas que, mesmo nestes casos, a responsa- conexões com os outros trabalhadores,
bilidade pela falta de interesse é atribuída podendo realizar a produção do cuidado de
apenas ao usuário. Assim, identifica-se que forma diferenciada. A segunda tem a ver com
falta formação adequada aos trabalhadores a valorização do conhecimento do trabalha-
para saber lidar com os desgastes inerentes dor, de sua criatividade e iniciativa, seus

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Efeitos danosos do processo de trabalho em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas 295

desejos e necessidades. Este conhecimento trabalho com prazer, o que repercute posi-
de si, associado com a realidade do cotidiano tivamente na produção de um cuidado com
de serviço no qual está inserido, dá ao traba- maior produção de vínculo. E, ao contrário,
lhador a possibilidade de intervir na produ- quando este se sente esgotado, pode demons-
ção de serviços mais acolhedores, com mais trar dificuldades de sentir empatia frente ao
vínculos, e que sejam centrados no usuário sofrimento do outro, o que pode implicar em
(FRANCO, 2013). Assim, ainda corroboram-se as distanciamento afetivo e repercutir de forma
ideias de Franco (2013) quando se afirma que negativa na produção do cuidado.
o maior desafio da gestão do trabalho em Para tanto, frente aos efeitos identifica-
saúde é manter os trabalhadores com alta dos, é preciso que haja formas de alívio que
capacidade para agir. evitem a combustão, favorecendo a capa-
Para tanto, Merhy (2013) aponta que é cidade de agir, a fim de que o processo de
preciso instituir no cotidiano dos serviços trabalho seja favorável não só aos usuários,
de saúde meios que avancem em direção à mas também aos trabalhadores. Entre estas
autogestão e à autoanálise, a fim de permi- formas, destacam-se a educação perma-
tir que os trabalhadores lidem melhor com nente, a autogestão e a autoanálise, que fa-
suas tristezas e sofrimentos, e que produzam vorecem a existência de espaços para que
o autocuidado. Até porque, como visto em o trabalhador possa se expressar e buscar
grande parte dos depoimentos, o cotidiano possibilidades, visando ter aumentada sua
no Capsad consome o trabalhador em vida capacidade de agir e gerando mudanças no
e em ato, como um ser antropofágico (MERHY, trabalho.
2013) e, diante disto, é preciso que haja con-
textos, no cotidiano, nos quais o trabalhador
possa falar sobre suas questões, abrindo-lhes Colaboradores
oportunidades e possibilidades de aumento
da capacidade de agir, o que favorece a pro- Autor principal: contribuiu substancial-
dução de cuidado. mente para a concepção, o planejamento, a
análise e a interpretação dos dados; contri-
buiu significativamente na elaboração do
Conclusões rascunho e na revisão crítica do conteúdo;
participou da aprovação da versão final do
Vários foram os relatos sobre o efeito des- manuscrito. Coautor 1: contribuiu substan-
gastante gerado pelo ato de acolher o outro, cialmente para o planejamento, a análise e a
neste lugar; sobre a exaustão, a frustração e interpretação dos dados; contribuiu signifi-
o pavor diante das crises dos usuários, re- cativamente na revisão crítica do conteúdo;
pletas de ofensas, xingamentos e episódios participou da aprovação da versão final do
de agressividade. Neste contexto, o encontro manuscrito. Coautor 2: contribuiu substan-
com o usuário se torna difícil. Deste modo, cialmente para o planejamento, a análise e a
uma reflexão sobre o trabalho em um Capsad interpretação dos dados; contribuiu signifi-
revela que é essencial pensar no cuidado cativamente na revisão crítica do conteúdo;
para com o trabalhador, uma vez que este, participou da aprovação da versão final do
quando satisfeito e realizado, vivencia seu manuscrito. s

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