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06/04/2024, 14:34 Departamento de Psicanálise - Sedes Sapientiae - PUBLICAÇÕES

PUBLICAÇÕES

JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS

49 Abril 2019

PSICANÁLISE E POLÍTICA

A SOCIEDADE DO DESEMPENHO E AS PATOLOGIAS DO NEOLIBERALISMO

AULA INAUGURAL DE PSICOPATOLOGIA PSICANALÍTICA E CLÍNICA CONTEMPORÂNEA 2019:


ORIGENS DO CURSO

MARIO PABLO FUKS [I]

Faz parte do caminho seguido pela psicanálise – como afirmamos em trabalho publicado no Boletim
Online em 2017 [ii]- não só a expansão das fronteiras clínicas, mas o perguntar-se reiteradamente
sobre a relação entre o psíquico e o social, o papel do determinismo sócio-cultural na produção dos
sofrimentos psíquicos, a forma que tomam esses sofrimentos conforme cada época e o modo como
são tratados em dita época os portadores destes sofrimentos.

Através de que caminho chegamos até as chamadas patologias contemporâneas para torná-las
objeto desse curso? É preciso falar da história do grupo.

Em primeiro lugar, está o fato de sermos psicanalistas e termos participado todos da criação e
desenvolvimento de um projeto formativo de projeção histórica. O Curso de Psicanálise, fundado
em 1976, foi o primeiro projeto paulistano independente de formação de psicanalistas. Consolidado
dito curso, criou-se o Departamento de Psicanálise em 1985.

Foi nessa época que nos engajamos nas práticas institucionais da Saúde Mental pública, apoiando a
Reforma Psiquiátrica e encontrando aliados nos movimentos antimanicomiais que floresceram nos
anos 80 e 90, acompanhando o processo de democratização do país.[iii]

O curso de Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea, assim como o grupo que o


sustenta, surge em 1998, a partir de outro que iniciamos em 1993 sobre Psicoses: Concepções
teóricas e estratégias institucionais que teve muito boa acolhida, em um momento de muita
mobilização e trabalho com novos equipamentos de Saúde Mental, principalmente os hospitais-dia.
Dita experiência teria repercussões importantes no devir do grupo.

Um dois eixos teóricos que desenvolvemos centrou-se no conceito de recusa, processo defensivo que
se põe em ação quando alguma percepção angustiante ameaça socavar as crenças e ilusões que dão
suporte ao narcisismo de indivíduos, grupos ou coletivos maiores e que produz efeitos dissociativos
favoráveis à produção de sintomas diferentes do sintoma neurótico, como se vê no campo das
perversões e da psicose.

Enfocamos a recusa desde o ponto de vista do bloqueio do processo de subjetivação, estudando


quais episódios e processos intrafamiliares o produziam – e o reproduziam, no presente, no contexto
institucional – investigando também que dispositivos poderiam ser montados para superar a recusa e
iniciar um processo de re-subjetivação.

Estudamos as relações dessubjetivantes presentes na instituição psiquiátrica, a evaporação das


histórias singulares e a ausência de interlocução, e defendemos enfaticamente a possibilidade de
uma recuperação da elaboração psíquica através do trabalho das equipes nos hospitais-dia. A
compreensão mais ampla das políticas de Saúde Mental vigentes nos permitiu situar a problemática
da psicose em um contexto científico, ético, social e político. Nesse contexto afirmamos, e podemos
afirmar hoje, o valor da clínica psicanalítica como dispositivo promotor do processo de subjetivação
e sua importância como interlocução, construção de narrativas e possibilidade de elaboração de
situações traumáticas.

Valorizamos também a supervisão, que permite identificar os pontos cegos presentes na prática
psicoterápica, os quais, no contexto institucional, viram pontos cegos, surdos e mudos.
Coerentemente com essa posição, acolhemos rapidamente a demanda aguda surgida no espaço
daquele curso frente à paralisia, reorganização e desmantelamento dos lugares de trabalho,
causados pela implantação do PAS pelo governo Maluf [iv]. Reformulamos imediatamente nosso
funcionamento, criando grupos de elaboração das situações traumáticas que afetaram tanto os
profissionais como os pacientes a partir da imposição acelerada e autoritária daquela política nos
equipamentos de saúde pública da cidade.

Cabe avaliar a importância da historização para pensar a crise política que estamos atravessando,

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que inclui - desde 2017 - graves retrocessos nas políticas de Saúde Mental, como são: a violenta
intervenção da Prefeitura nos programas ligados a drogadicções ao restaurar o modelo, questionado
já em toda parte, de “guerra às drogas”; a promoção das “comunidades terapêuticas” que têm um
sentido diferente, senão oposto, ao que tinham para Maxwell Jones, criador das mesmas na
Inglaterra a fim de impulsionar a abertura institucional; o recente aumento de financiamento para
novos leitos psiquiátricos, que ameaça ser um primeiro passo para o restabelecimento do modelo
manicomial. Hoje, março de 2019, frente ao propósito recentemente declarado - através da Nota
Técnica 11/2019, divulgada pelo Ministério de Saúde Pública - de desmontar os espaços
conquistados e os recursos construídos por mais de 30 anos de avanços na Reforma Psiquiátrica,
recusando a validez e o sentido da existência de equipamentos e métodos substitutivos da
internação psiquiátrica, nos perguntamos qual será a forma de resistir. Em um primeiro movimento
cabe nos unirmos aos Psicanalistas pela democracia, a diversos grupos de analistas que estão se
mobilizando dentro do movimento Articulação, aos trabalhadores de Saúde Mental, aos ex-
psiquiatrizados e suas famílias e a todos aqueles que fazem parte da luta antimanicomial, no
repúdio a estas tentativas. A Diretoria do Instituto Sedes já publicou uma declaração nesse sentido,
em 26/02/2019.

Em meados de 1995 nosso grupo tinha começado a se interessar por uma problemática mais ampla,
que associa as análises sobre subjetividade contemporânea, cultura pós-moderna, neoliberalismo,
etc. com a ocorrência de certos tipos de patologias, de caráter por momentos epidêmico, e que
passam a ser objeto de uma abordagem frequentemente reducionista e dessubjetivante por parte
das correntes vigentes no campo psiquiátrico. O assunto estava no ar, tanto no espaço sócio-cultural
geral como no meio especificamente psicanalítico.

Em 1993 aparece o livro As novas doenças da alma da psicanalista búlgara Julia Kristeva e, em 1995,
em espanhol, o livro Entre dos mundos, das psicanalistas argentinas Maria Cristina Rojas e Susana
Sternbach, no qual se visualizava como, através do debate modernidade - pósmodernidade, o
sujeito como tema volta a se revestir do social-histórico, desafiando as cosmovisões assentadas.
Esse livro nos introduziu na análise da crise que, iniciando-se nos anos 70, avançaria ao longo do que
faltava do século e do milênio. Vista como crise dos ideais e valores da modernidade face às
mudanças nos processos de subjetivação derivadas da queda das grandes utopias coletivas - o
chamado fim da história de Fukuyama -, da ruptura de laços sociais e da produção de um novo tipo
de subjetividade, narcisista e adictiva, decorrente das lógicas induzidas pelas novas modalidades de
produção e práticas de consumo.

Em As novas doenças da alma Julia Kristeva (1993)[v] sustenta que a experiência cotidiana
demonstra uma redução impressionante da vida interior, perguntando-se se temos hoje o tempo e o
espaço necessários para arranjarmo-nos uma alma, ou se "pressionados pelo estresse, impacientes
por ganhar e gastar, por desfrutar e morrer, os homens e mulheres de hoje economizam essa
representação de sua experiência a que chamamos vida psíquica."(2002, p.14). Habitante de um
espaço e um tempo fragmentado e acelerado, com dificuldade para reconhecer-se uma fisionomia,
essa espécie de anfíbio é um ser fronteiriço, um borderline ou um falso-self.

Estes novos pacientes – diz ela - mostram todos uma particular dificuldade de representação. “O
espaço psíquico, essa câmera escura de nosso ser onde se refletem tanto a angústia de viver como a
alegria e a liberdade do homem ocidental, está talvez a ponto de desaparecer?”. Que significa o
retorno das religiões? O aumento de interesse pelas mesmas procede de uma busca, ou todo o
contrário, elas se constituem numa solução-prótese para sua pobreza psíquica?

Como diz mais adiante, “o psíquico pode ser o lugar onde se elaboram, e portanto se liquidam,
tanto o sintoma somático quanto a projeção delirante: o psíquico é nossa proteção, desde que a
pessoa não se feche nele, mas sim o transfira pelo ato da linguagem para uma sublimação, um ato
de pensamento, de interpretação, de transformação relacional...”[vi](Idem, pp. 38-39), o que supõe
a abertura para um outro.

Kristeva sustenta que há um agravamento da doença psicológica que caracteriza o mundo atual, que
é a outra face da sociedade do rendimento e do stress. O desassossego que se instala renova um
chamado à psicanálise para dar um sentido a esse desastre interior. Eu penso que é uma verdade
perceptível nos pacientes que nos procuram.

Mas a psicanálise tem dois grandes obstáculos a enfrentar: 1) a competição com as neurociências: a
pílula ou a palavra e 2) aliado do anterior, o desejo de não saber em suas diversas formas...
principalmente, entendemos, o tirar da cabeça que caracterizava o recalque como modo patógeno
de fugir do conflito, através das diferentes defesas, e a recusa, forma teorizada posteriormente e
que se apoia em diversos fetiches, discursos e relações perversas.

A autora afirma que “o homem moderno está perdendo sua alma. Mas não o sabe disso, pois é
precisamente o aparelho psíquico que registra as representações e seus valores significantes para o
sujeito. Ora, a câmara escura está avariada.”(p. 14)

Como desenvolvemos em um texto anterior [vii], a partir da grande virada neoliberal dos anos 80 e
90, iniciada e protagonizada por Thatcher e Reagan, começa a ser fabricado um novo sujeito que
pode ser chamado de sujeito empresarial, empresário de si mesmo, sujeito neoliberal ou
neosujeito. Trata-se de produzir e governar um ser cuja subjetividade deve estar inteiramente
envolvida na atividade que ele cumpra. A motivação, a vontade de realização pessoal, o projeto que
o sujeito se propõe desenvolver, “enfim o desejo, com todos os nomes que se queira dar a ele, é o
alvo do novo poder.” [viii]

A ideia de construir uma subjetividade neoliberal era clara e explícita. Há uma frase famosa de

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Margareth Thatcher em um discurso pré-eleitoral: “A economia é o método, mas o objetivo é a
alma”. A qual, de uma maneira insolitamente precisa, dá fundamento ao toque de alarme de
Kristeva.

Biung Chul Han, um filósofo nascido na Coreia mas radicado na Alemanha, um estudioso do tema do
qual publicou-se recentemente Sociedade do cansaço (Vozes, 2017) [ix], afirma que a sociedade do
século XXI não é mais a sociedade disciplinar, assim denominada e teorizada por Michel Foucault,
dominada pela negatividade, mas uma sociedade de desempenho. Os muros das instituições
disciplinares, que delimitavam os espaços entre o normal e o anormal, se tornaram arcaicos. Os
habitantes desta sociedade não se chamam mais “sujeitos da obediência” mas sujeitos de
desempenho e de produção. São empresários de si mesmos. Continuaremos na exposição
esquemática e comentada, com os limites e riscos que isso supõe, das ideias vertidas pelo autor.

Na sociedade disciplinar está presente a negatividade sob a forma da proibição, do “Não, não
pode”. Na imposição do dever também está presente a negatividade, que é a negatividade da
coerção. A sociedade do desempenho vai se desvinculando dessas negatividades, primeiro
habilitando a transgressão das regras e regulamentos, depois desregulamentando. O que a rege é o
“Pode, pode tudo”, ilimitadamente. “O plural coletivo da afirmação Yes, we can expressa
precisamente o caráter de positividade da sociedade de desempenho” (p. 24).

O sujeito do desempenho da modernidade tardia não se submete a nenhuma ordem compulsória.


Suas máximas são a liberdade e a boa vontade. Contrariamente à proscrição de gozo - presente na
ética protestante do trabalho, da acumulação de capital e da renúncia aos prazeres, sem a qual não
se teria desenvolvido o capitalismo (Max Weber), e que tem muito a ver com o superego freudiano
repressor das pulsões [x]- o sujeito do desempenho espera do trabalho, acima de tudo, o prazer. O
paradoxo é que surgem coações internas e se apresenta uma crise provocada pela falta de
gratificação.

Na sociedade disciplinar, há um Deus, os correligionários, um outro exterior ou interior que


gratificava, que premia finalmente a meta realizada com a bem-aventurança. Podia estar no além
mas estava. “O sujeito moral que aceita também a dor e o sofrimento por causa da moralidade está
seguro de receber a gratificação. Ele mantém uma relação íntima com o outro como instância de
gratificação. Aqui não há crise de gratificação porque Deus não engana, nele se pode confiar” (p.
83).

O sujeito empresarial apresenta uma crise no campo da satisfação. Não tem a gratificação de
chegar a uma meta. Vive constantemente num sentimento de carência, de insuficiência e de culpa.
Tentando sempre superar a si mesmo, acaba esgotando-se, entra em colapso psíquico, o burnout. A
síndrome de burnout (SB) é uma das figuras psicopatológicas paradigmáticas da sociedade de
desempenho. Para Byung-Chul Han, junto da depressão, do transtorno de déficit de atenção e
hiperatividade (TDAH) e do transtorno de personalidade limítrofe (TPL), determina parte da
paisagem patológica de começo de século XXI (p. 7).

Seguindo Richard Sennet, ele afirma que essa crise é o resultado do narcisismo e da falta de relação
com o outro. Mergulhar em si mesmo não traz gratificação, só dor e sofrimento.

O narcisista não é afeito à experiência, ele quer vivenciar. No encontro com o outro se vivencia a si
mesmo, bebe-se no si mesmo. Na experiência, ao contrário, encontramos o outro. Esses encontros
são transformadores, nos modificam. De nossa parte, temos afirmado que a psicanálise é uma
prática que está em posição de resistência à lógica do consumo, na medida em que promove uma
experiência em que os protagonistas entram dispostos a modificar-se reciprocamente. É claro que
poderão existir percursos analíticos pífios marcados por modos consumistas de encará-los.

Quando compara a depressão com a histeria, B-C. Han diz que esta última é uma doença típica da
sociedade disciplinar. Pressupõe a negatividade da repressão, que leva à formação do inconsciente.
As representações recalcadas se manifestam através da conversão do afeto em sintomas corporais,
mas numa conformação característica que os diferencia das somatizações. A histeria mostra uma
morfologia característica. A pessoa depressiva, em contraposição, não tem forma, é amorfa... Essa
falta de forma, essa excessiva flexibilidade favorece uma eficiência econômica elevada.

Nas doenças psíquicas de hoje não se veria a marca da repressão, da negatividade. Elas remetem a
um excesso de positividade. Tampouco se detecta nas depressões a relação ambivalente com um
outro que se perdeu –negatividade da perda - e foi incorporado, causando a relação agressiva e
destrutiva consigo mesmo, tal como reconhecido por Freud na melancolia. A causa da depressão é a
autorrelação sobre-exaltada narcisista, que acaba adotando traços depressivos. O eu se desgasta,
correndo numa roda de hamster que gira cada vez mais rápida ao redor de si mesma.

O sujeito do desempenho pós-moderno, que dispõe de uma quantidade exagerada de opções, não é
capaz de estabelecer relações intensas. O luto distingue-se da depressão sobretudo por sua forte
ligação libidinosa com um objeto. “O ego pós-moderno emprega grande parte de sua energia de
libido para si mesmo. O restante da libido é distribuído em contatos sempre crescentes, em número,
e relações superficiais e passageiras. Em virtude de um fraco elo de ligação, é muito fácil retirar a
libido de um objeto, e com isso, direcioná-la rumo à posse de novos objetos. O ‘trabalho de
enlutamento’, demorado e dolorido, acabou-se tornando desnecessário. A ‘alegria’ que se encontra
nas redes sociais de relacionamento tem sobretudo a função de elevar o sentimento próprio
narcísico. Ela forma uma massa de aplausos que dá atenção ao ego exposto ao modo de uma
mercadoria” (p. 93).

Há uma violência sistemática que habita no seio da sociedade de desempenho, própria das relações

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de dominação neoliberal, se radica no elemento psicológico e transformou o sujeito ilusoriamente
livre e soberano, empreendedor de si mesmo, em escravo de si mesmo, escravidão manifesta, como
já vimos, nas enfermidades psíquicas do sujeito do desempenho.

O homem soberano, anunciado por Nietzsche, e que é uma referência para pensar o sujeito pós-
moderno, aparece no depressivo como uma pessoa esgotada por sua soberania. Já não tem mais
força de ser “senhor de si mesmo”. Daí o título do livro, Sociedade do cansaço. Não é o super-
homem, senhor de um tempo livre, que conserva o repouso e se movimenta lentamente; ao homem
da época falta gravidade, não há o bastante dentro de si, isso o torna doente. Mas as relações de
produção capitalistas requerem esse homem leve e flexível... A sociedade disciplinar industrial
dependia de uma identidade firme e imutável, a sociedade de desempenho não industrial precisa de
uma pessoa flexível para poder aumentar a produção. O burnout é a consequência patológica de
uma autoexploração.

“Na transição da sociedade disciplinar para a sociedade de desempenho, o superego acaba se


positivando no eu-ideal” (p. 100). O supereu é repressivo, pronuncia proibições; contrariamente, o
eu-ideal é sedutor. O sujeito de desempenho projeta a si mesmo na linha do eu-ideal, o sujeito da
disciplina se submete ao supereu. No lugar da violência gerada por um fator externo, entra a
violência autogerada, que é mais fatal, porque a vítima imagina ser alguém livre.

Observamos um paradoxo no percurso da reflexão teórico-filosófica de Byung-Chul Han. Ele afirma,


enfaticamente, que a concepção psicanalítica do psiquismo e seus conceitos maiores - o recalque e
o inconsciente -, determinando um espaço psíquico dividido por fronteiras, censuras, etc., segue a
lógica própria da sociedade repressiva, do que Foucault definiu como sociedade disciplinar, sujeita
ao imperativo da proibição, dos não pode. Responderiam, portanto, a uma dialética da
negatividade. A metapsicologia freudiana serviria para explicar a histeria e a neurose obsessiva,
doenças próprias da sociedade disciplinar, mas não as doenças que se produzem na sociedade do
desempenho e que são paradigmáticas da mesma. Estas são efeito da positividade, ou melhor, do
excesso de positividade, o que parece requerer do autor, o recurso a referências ou metáforas
outras: por se tratarem de “patologias” do DSM, as que utiliza mais frequentemente são tomadas
das concepções e vocabulário médico ou biológico: enfermidade neural versus enfermidade de
imunidade, superaquecimento neural, infarto psíquico ou gordura dos sistemas (remetendo-se a
Baudrillard).

Mas, para descrever e aprofundar-se nas depressões contemporâneas, o autor se serve amplamente
das comparações com a melancolia, tal como compreendida por Freud, e com o luto. Também lança
mão, de forma teoricamente eficaz, dos conceitos de narcisismo, investimento objetal, supereu, eu
ideal, etc. Penso que a reflexão sobre a negatividade e a positividade é muito interessante e
frutífera. E me leva a conectá-lo com um dos trabalhos mais importantes de um dos autores pós
freudianos que nos servem de base para a abordagem das patologias contemporâneas, André Green,
que se intitula, precisamente, O trabalho do negativo. Mas mesmo em relação a Freud, a bagagem
metapsicológica freudiana a que recorre, ao menos em Sociedade do cansaço, não parece passar de
O Ego e o Id, de 1923. Nada de A (de)negação[(Die Verneinung), 1925] nem dos conceitos
psicopatológicos desenvolvidos em 1926 em Neurose e psicose, onde entram em cena as neuroses
narcísicas, as alterações do eu, a cisão e a recusa. É por aí, justamente, que, no curso, tentamos
avançar, incluindo os trabalhos de Green, de Winnicott, de Lacan.

É possível debater, por exemplo, as questões colocadas por Byung-Chul Han a respeito do supereu,
eu ideal, etc. partindo das contribuições de Lacan, consideradas por V. Safatle em “Por uma crítica
da economia libidinal” (2008). Postula-se - também nesse trabalho - que existiram consequências
psíquicas da passagem da sociedade de produção à sociedade de consumo. “Jacques Lacan
identificou talvez a maior delas ao insistir que a figura social dominante do supereu na
contemporaneidade não estava mais vinculada à repressão das moções pulsionais, mas à obrigação
da assunção dos fantasmas. Não mais a repressão ao gozo, mas o gozo como imperativo. Daí porque
ele nos lembra que o verdadeiro imperativo do supereu na contemporaneidade é: “Goza!”, ou seja,
o gozo transformado em uma obrigação”(nota V, p. 21). O declínio da imago paterna, postulado por
Lacan paralelamente aos trabalhos da escola de Frankfurt sobre a absorção, por parte de
corporações sociais burocráticas, de funções que anteriormente haviam sido do pai na família,
enfraquecendo sua autoridade, “deu espaço para o advento de figuras fantasmáticas de autoridade
que se assemelhavam ao pai primevo do mito freudiano de Totem e tabu; ou seja, ao pai-senhor do
gozo que pauta suas ações pela procura incessante da satisfação imediata. Figura perversa, feroz e
obscena, como dizia Lacan, que pouco tem a ver com a figura tradicional de um pai que converge
imperativos de repressão e de sublimação” (p. 22).

As reflexões desses autores servem para validar o percurso escolhido em nosso programa, não só
como programação do curso, mas no sentido de projeto teórico-crítico. Este parte do
reconhecimento da complexidade do aparelho psíquico concebido por Freud, sujeito a diferentes
regimes de funcionamento, capaz de produzir diversos “trabalhos”: trabalhos do sonho, do luto, da
per-laboração, trabalho do negativo, trabalho de cultura.

Transportando-nos agora para um contexto político mais amplo, nos aparecem algumas questões:
Trump não está levando, acaso, uma luta ferrenha no Congresso dos EUA para poder construir um
muro que separe a América, a grande América, do resto do continente? E o governo Bolsonaro não
parece seguir a mesma linha, na mesma tessitura, na sociedade brasileira, facilitando, entre outras
coisas, a pretensão de retorno ao modelo manicomial? Sem descartar o elemento de reação frente a
fracassos do neo-liberalismo que apontamos no trabalho anterior sobre o tema (ver Fuks, 2017),
penso que os processos de direitização que atravessam o mundo trazem consigo não somente a
modalidade autoritária centrada na figura do homem forte[xi], que pretendem compatível com a
democracia, mas também marcas emblemáticas totalitárias, visivelmente fascistizantes, que são

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resíduo de outros tempos, mas resíduos ativos. Buscam instaurar uma topologia de muros, fronteiras
e terrores, materiais e imaginárias. O homem forte faz parte do laço instituído nas sociedades
totalitárias. Foi estudado por Freud em Psicologia das massas e análise do eu(1921) e por W. Reich
em Psicologia de massas do fascismo(1933).

A cultura narcísica da violência - tematizada por Jurandir Freire Costa em “Narcisismo em tempos
sombrios”[xii]- nutrida pela deterioração social e pelo descrédito na justiça e a lei, apresenta como
saída “... a fruição imediata do presente, a submissão ao status quo e a oposição sistemática e
metódica a qualquer projeto de mudança que implique em cooperação social e a negociação não
violenta de interesses particulares.”(p. 167) .Ou seja, oposição à vigência de um laço solidário e de
um funcionamento político democrático.

Pensemos em Marielle Franco: como vereadora e líder social ela significava uma mudança crucial na
forma de fazer política de defesa dos direitos humanos, aprofundando a democracia, tornando a
política representativa, inovadora, fortemente inclusiva e de mobilização e reconhecimento dos
movimentos sociais. Por isso precisava ser eliminada, de modo a semear-se o terror nos indivíduos,
coletivos e comunidades representados e identificados com ela .[xiii]

Antes ainda de ser eleito, o candidato a homem forte brasileiro já dirigia expressões de ódio e de
não reconhecimento social a diversos grupos da população, expressões configuradas como
verdadeiros anátemas, enunciados condenatórios que operam como as excomunhões e maldições,
privando de reconhecimento social e expondo as agressões, ao modo do que se dirige aos homini
sacer. Foi eleito e continua a se manifestar, desde a posição de figura maior de poder Executivo,
contrariando as exigências mínimas de decoro que seriam pertinentes ao cargo de que está
investido.

Superando o medo e o desânimo, as expressões de repúdio massivas por ocasião do carnaval - que
mostraram toda a potencialidade política crítica da festa popular estudada por M. Bakhtin – dirigidas
contra esse poder despótico que não só desqualifica grupos sociais inteiros, como pretende anular
realizações e conquistas democráticas, constituem, no momento, a resposta mais contundente e
efetiva, a interposição de um NÃO coletivo, destinado a pôr um limite ao retrocesso civilizatório
que ameaça esfacelar a cidadania e destruir a cultura.

A tarefa comum, a solidariedade, o poder contar uns com os outros, é a única possibilidade que
temos para enfrentar não só o desamparo frente a essas forças regressivas, mas também frente ao
poder destrutivo do supereu, que aumenta quando ficamos isolados.

Cito um colega argentino que se ocupou muito das questões da contemporaneidade, ao comentar O
mal-estar na cultura: “O homem tem, assim, duas alternativas frente ao outro: ou se liga
libidinalmente identificando-se com ele para constituir alguma forma de laço social, abolindo o
domínio do amo (pai primevo), ou desgarrado dos membros da fratria, fica entregue ao poder
absoluto desse outro interior que é o supereu”[xiv].

A qualidade da união amorosa entre os "irmãos", o fluir dos reconhecimentos, o tipo de


identificações que estabeleçam, o modo de processar as tensões intra grupo e as formas de agir
sobre a realidade exterior serão determinantes para seu destino ou sua história.

[i] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, onde é


professor do Curso de Psicanálise, coordenador do curso Psicopatologia Psicanalítica e Clínica
Contemporânea e integrante da equipe editorial do Boletim Online.
[ii] FUKS, M.P. “Psicopatologia psicanalítica, construção de subjetividade e neoliberalismo”, Boletim
Online nº 41, abril 2017.
[iii] FUKS, M.P. “Psicanálise, Saúde Mental e instituições: história de um projeto”, in A subjetividade
nos grupos e instituições: constituição, mediação e mudança, Cristiane Curi Abud (org). Lisboa:
Chiado, 2015
[iv] Ver ELIAS, P. E. “PAS: um perfil neoliberal de gestão de sistema público de saúde”, Estud. av.
vol.13 no.35 São Paulo Jan./Apr. 1999.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141999000100013
[v] KRISTEVA, J. “A alma e a imagem” in As novas doenças da alma. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
[vi] KRISTEVA, J. “Para que servem os psicanalistas em tempo de desgraça que se ignora?” in As
novas doenças da alma. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
[vii] FUKS, M. P. “Psicopatologia psicanalítica, construção de subjetividade e neoliberalismo”,
Boletim Online nº 41, abril 2017.
[viii] DARDOT, P. e LAVAL, F. Uma nova razão do mundo - Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São
Paulo: Boitempo, 2016, p. 237, apud Fuks, 2017, op. cit.
[ix] BYUNG-CHUL HAN, Sociedade do Cansaço. Petrópolis RJ: Vozes, 2017. Ver também, do mesmo
autor, Sociedade de Transparência, Petrópolis Vozes, 2017 e Psicopolítica - O neoliberalismo e as
novas técnicas de poder. Belo Horizonte, Ayiné, 2018.
[x] Ver SAFATLE, V. “Por uma crítica da economia política”, IDE , psicanálise e cultura, São Paulo,
2008, 31(46), 16-26
[xi] Ver BAUMANN, Z. Estranhos à nossa porta. Rio de Janeiro: Zahar, 2017, Capítulo 3: “Um
espectro ronda a terra da democracia: o homem (e a mulher) forte”.
[xii] COSTA, J. F. “Narcisismo em tempos sombrios” in Percursos na História da Psicanálise, vários
autores, Taurus, Rio de Janeiro. 1988. (pp. 151-174)
[xiii] Temas desenvolvidos na aula inaugural do curso em 2018.
[xiv] GALENDE, E.: “Violencia, psicosis y alienación - Nuestro malestar actual.” In Teoria y clinica de
las configuraciones vinculares. Buenos Aires: Paz Producciones, 1991.

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TOPO ÍNDICE DO BOLETIM 49

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