Você está na página 1de 4

Revisitando os paradigmas do saber psiquiátrico: tecendo o percurso do movimento da reforma

psiquiátrica

Os períodos em que os campos teóricos assistenciais da psiquiatria se estabelecem são


dois: um se marca pela crítica ao modelo asilar, responsável pelos altos índices de cronificação
(comunidades terapêuticas nos EUA e psicoterapia institucional na França). O segundo período
estende a psiquiatria ao espaço público, a fim de promover saúde mental e prevenir seu
deterioramento (psiquiatria de setor na França e psiquiatria comunitária ou preventiva nos
EUA). Os dois períodos colocam em xeque a instituição manicomial como local de cura,
fazendo com que a terapêutica se torne coletiva e preventiva.
Enquanto esses movimentos reformam o sistema, a antipsiquiatria de Franco Basaglia
opera uma ruptura, pretendendo desconstruir o aparato psiquiátrico e iniciando um novo
movimento teórico e político em relação a direitos dos pacientes de saúde mental.
A percepção da loucura apresenta contornos diferentes ao longo da história. Foucault,
versando sobre a história da loucura, coloca que na Idade Moderna, em oposição às concepções
da Idade Média, a loucura ganha um caráter de repulsa, provocando a exclusão das pessoas que
a portam. O louco é um agente do caos, não trabalha e não produz, por isso não tem utilidade
social.
Na mesma época, mais especificamente a partir do século XIX, a loucura ganha
percepção científica e se constitui na prática psiquiátrica medicalizante. Um critério de desrazão
marca a exclusão de pessoas com transtornos psiquiátricos. O internamento, então, ganha um
“respaldo científico”.
A psiquiatria, então, tendo seu caráter médico institucionalizado pelos hospitais gerais
(instituições filantrópicas com caráter assistencial), atua como agente de poder sobre esses
corpos e sujeitos, ao contrário de sua pretensa cientificidade e medicalização.
Pinel inaugura a transformação do hospital geral em espaço medicalizante e
farmacêutico e a apropriação da loucura pelos sistemas psiquiátricos. Surgem as primeiras
críticas a seu caráter fechado e autoritário, consolidando o modelo de colônia de alienados. O
modelo das colônias serve para ampliar a importância social e política da psiquiatria,
neutralizando algumas das críticas feitas ao modelo tradicional.
No período pós-guerra, surgem modelos abertos de tratamento, trazendo propostas
como as comunidades terapêuticas, a psicoterapia institucional, representando as reformas no
espaço asilar; a psiquiatria de setor e a psiquiatria preventiva, ampliando o espaço dos asilos e a
proposta da antipsiquiatria, que rompe totalmente com os modelos anteriores. A terapia
ocupacional surge na mesma época, que na época tinha a ideia da cura pelo trabalho.
O enfoque terapêutico se transforma em algo mais próximo do que conhecemos hoje:
oficinas de grupo, grupos operativos, grupos de atividades, objetivando, assim, o caráter
coletivo do tratamento em saúde mental. Assim, a ideia de comunidade terapêutica contribui
para desarticular o espaço hospitalar e asilar.
A psicoterapia institucional se encaixa nesse projeto com o mesmo objetivo, propondo
horizontalidade no tratamento. A psiquiatria de setor preconiza o tratamento em território,
descentralizando o hospital psiquiátrico. A psiquiatria preventiva busca tentar encontrar
elementos que levem os usuários dos sistemas a terem transtornos psiquiátricos através do
diagnóstico de comportamentos desajustados e enfocando a crise. A antipsiquiatria coloca a
loucura e a crise como fruto de dilemas e tensões sociais, onde o louco é colocado dessa forma
por contestar as normas sociais e reagir a essas de forma disruptiva, o que traz o aspecto de
periculosidade da loucura.
A trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil

No Brasil, o movimento de reforma psiquiátrica tem seu estopim na chamada “crise da


DINASAM”, que era o órgão responsável pela formulação das políticas de saúde mental. Na
época não realizava concursos públicos e contratava profissionais de saúde em condições de
trabalho muito precárias e hostis. A crise se instaura a partir da denúncia vinda de três médicos
bolsistas.
Assim nasce o MTSM (Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental), um espaço de
luta não institucional, que tem como reivindicações principais melhores condições trabalhistas e
pressionar para que as práticas manicomiais se extingam. Dessa forma, o MTSM possui pautas
tanto políticas quanto corporativas, que acabam se complementando.
O movimento ganha a oportunidade de se expandir nacionalmente com o V Congresso
Brasileiro de Psiquiatria. Toma de assalto o Congresso, já que a maioria de seus participantes se
compunha de psiquiatras conservadores. O MTSM amplia sua atuação pelo país através de
diversos congressos, propondo suas questões em relação ao trabalho na psiquiatria e também em
relação ao governo da época.
O MTST se caracteriza por ser o primeiro movimento de saúde com participação
popular, sendo um movimento plural e múltiplo. Dessa forma, se permite ser um movimento de
interesses diversos, se desvinculando um pouco de questões corporativas e trabalhistas.
No início dos anos 80, a modalidade de co-gestão prevê a colaboração do Ministério da
Saúde com o Ministério da Previdência e Assistência Social. Se torna um marco na saúde
mental, pois o Estado incorpora os setores críticos da saúde mental, propiciando as ocupações
dos movimentos em espaços públicos. Funciona como um mecanismo de gerenciamento
conjunto, trazendo gestões paritárias e horizontalizadas.
O processo de co-gestão surge a partir de uma crise institucional, onde os investimentos
realizados na saúde não garantem resultados satisfatórios, já que o modelo assistencial privilegia
o setor privado. A co-gestão entra fazendo um trabalho oposto, priorizando o sistema público de
prestação de serviços, a descentralização, a regionalização e a cooperação interinstitucional.
Dessa forma, o serviço de atendimento no sistema de co-gestão se dá de forma universalizada,
com utilização de recursos humanos por parte dos dois ministérios, também em colaboração
financeira. O projeto de co-gestão pode ser considerado como precursor de novos modelos de
saúde.
A co-gestão gera resistência dos proprietários de hospitais psiquiátricos, os chamados
“empresários da loucura”, que veem seus lucros e poderes ameaçados. Dessa forma, o setor de
psiquiatria na Federação Brasileira de Hospitais é organizado. Ainda assim, o sistema de co-
gestão se mostra mais eficiente e menos dispendioso para os cofres.
A partir dessa crise na Previdência, o CONASP (Conselho Consultivo de Administração
de Saúde Previdenciária) é criado e tem a função de organizar e aperfeiçoar a assistência médica
e financeira, descentralizando, hierarquizando e fortalecendo a intervenção do Estado. A FBH
também se opõe a esse modelo.
Esse momento do movimento de reforma psiquiátrica no país marca também a
incorporação do MTSM no aparato público, o que institucionaliza parte do movimento. Mas há
a organização de linhas estratégicas: parte se manteve nos aparatos públicos institucionais e a
outra parte exerce função sindical, organizando os trabalhadores e fazendo vigilância à outra
parte. Assim, em 1995 boa parte dos cargos de chefia de programas estaduais e municipais de
saúde mental e da direção das principais unidades hospitalares públicas está nas mãos de
membros do MTSM.
Dessa maneira, se organiza o I Encontro de Coordenadores de Saúde Mental, que
culmina na I Conferência Nacional de Saúde Mental, onde há uma espécie de ofensiva vinda da
FBH, da DINSAM e da ABP, que colocavam que a realização da conferência daria a hegemonia
ao MTSM. Mas ainda assim se realizam conferências estaduais e a nacional, contrariando a
DINSAM. A Conferência Nacional foi realizada sob impasses, mas o MTSM conseguiu tomar a
frente dela.
A I Conferência de Saúde Mental se realiza em 1987 e se estrutura a partir de três temas
básicos: economia, sociedade e estado; reforma sanitária e reorganização da assistência à saúde
mental e cidadania e doença mental. Tem como desdobramentos a desinstitucionalização das
práticas em saúde mental, incentivando a participação popular e a priorização de investimentos
em serviços extra-hospitalares, revertendo a lógica hospitalocêntrica.
De forma paralela, o MTSM se reunia para discutir os rumos do movimento. O
desatrelamento do Estado foi pautado como estratégia de renovação e forma do movimento
integrar a sociedade e levar questões sobre o manicômio e a loucura.
LINHA DO TEMPO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA NO BRASIL

 Década de 1970 – Início da reforma psiquiátrica – surgimento do MTSM


 Década de 1980 – Trajetória sanitarista – incorporação dos movimentos políticos em
saúde pelo Estado – co-gestão
 1986 – 8ª Conferência de Saúde – participação popular
 1987 – I Conferência de Saúde Mental – fim da trajetória sanitarista
- Movimento de desinstitucionalização
- Surgimento dos CAPS/NAPS

 1987 – Congresso de Bauru – dia da luta antimanicomial

Você também pode gostar