Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ISSN: 0103-1104
revista@saudeemdebate.org.br
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
Brasil
I Psicóloga; Mesue em Psicologia pela RESUMO O objetivo deste artigo é trazer para apauta de discussóes da RefOrma
Universidade Carólica de Goiás (UCG);
Psiquiátrica brasileira os processos de trabalho que tem se constituído nos Centros
especialisra em Políricas Públicas pela
Universidade Federal de Goiás (UFG) e
de A tenráo Psicossocial (CAPS). Sáo apresentados os significados atribuídos pelos
em Saúde Menral pela UCG; professora trabalhadores as trocas que se estabelecem entre as diversas profissóes e como o
da Funda~ao Universidade do Tocanrins serviro tem se organizado para atender asua demanda. Foi utilizada pesquisa
(UNITfNS); uabalhadora de Cenrro de
documental, gravaróes de reunióes de equipe e grupo fOcal com trabalhadores
Aten~ao Psicossocial (CAPs).
rosana.carneirotavares@gmail.com
e gestores de CAPS, no município de Goiania, Goiás. Os resultados trazem
significados contraditórios quanto aparticiparáo da ftmília no tratamento e
2 Psicóloga; Dourora em Psicologia quanto ao exercício da interdisciplinaridade no CAPS.
Social pela Ponrifícia Universidade
Católica de Sao Paulo (PUC-SP); PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Serviros de Saúde Mental; RefOrma do
professora do Deparramenro de serviro de Saúde; Psicologia social
Psicologia da UCG; direrora do
Insticuro Dom Fernando especializada
nas temáticas da infancia, adolescencia, ABSTRACT The purpose ofthis essay is to be bringingfOr Brazilian Psychiatric
juvenrude e família (UCG/PROEX). RefOrm issues the work process which has been made up in Psychosocial Center of
smgsousa@terra.com.br
Attention (CAPS). It shows the meaning ofexchanges among diffirent proftssions,
fOr CAPS workers, and how the service has been organized to attend its demand It
utilized desk research, recordings ofmeetings ofthe team and afOcal group with
the workers and coordinators ftom one CAPS ofde city ofGoiania, Brazil The
results entail contradictory meanings aboutftmily tanking part in treatment, at
the same time, about the ongoing ofthe proftssional interaction in CAPS.
da aten<;:ao nos servi<;:os de Saúde Mental, privilegiando a aten<;:ao psiquiátrica naoasilar. É nesse momento que a
o tratamento em servi<;:os substitutivos e redirecionando Reforma Psiquiátrica se consolida como urna política de
a assistencia. Regulamentou também a interna<;:ao só Estado, legislada no nível federal. Porém, apesar de prever
quando os recursos extra-hospitalares forem insuficientes alguns avan<;:os em dire<;:ao a inversao do modelo de aten-
e vedou interna<;:óes em institui<;:óes com características <;:ao psiquiátrica, esta política contém, ainda, deficiencias
asilares (BRASIL, 20ü4A). que permitem a constru<;:ao de modos de aten<;:ao ainda
Outro dispositivo legal que marcou o desenvolvi- pautados na psiquiatria tradicional e hospitalocentrica.
mento do processo da Reforma Psiquiátrica, no Brasil, Dessa maneira, compreender como os trabalhado-
foi a portaria 336, do Ministério da Saúde (MS), de res de CAPS tem estruturado seus processos de trabalho
fevereiro de 2002, que regeu os servi<;:os de substitui<;:ao e como compreendem as mudan<;:as na aten<;:ao a Saúde
dos hospitais psiquiátricos, determinando que os servi- Mental é importante para delinear os caminhos da refor-
<;:os CAPS e os Núcleos de Aten<;:ao Psicossocial (NAPs) ma no Brasil. Os significados atribuídos pelos trabalha-
existentes fossem recadastrados nas modalidades CAPS dores a todo esse processo de constru<;:ao de práticas de
1, CAPS 11, CAPS I1I, Centro de Aten<;:ao Psicossocial In- saúde sao o reflexo das possibilidades de inova<;:óes das
fantil (CAPS i) e Centro de Aten<;:ao Psicossocial Álcool práticas em Saúde Mental, e sao esses significados que
e Drogas (CAPS ad), bem como todos os novos servi<;:os demarcam as modifica<;:óes já consolidadas deste novo
de Saúde Mental no Sistema Único de Saúde (SUS), modelo e os caminhos que ainda restam a percorrer no
que viessem a ser criados e cadastrados. Vários outros processo de Reforma Psiquiátrica brasileira.
dispositivos vieram confirmar certo avan<;:o do processo
de Reforma da aten<;:ao a Saúde Mental no eixo jurídico,
como as portarias 189/2002 e 626/2002, do MS, que
regeram sobre o financiamento de autoriza<;:óes de proce- METODOLOGIA
dimentos de alta complexidade (APACS), que se tornaram
instrumentos de financiamento para a manuten<;:ao dos A análise apresentada neste artigo é parte de um
servi<;:os de modalidade CAPS (BRASIL, 20ü4A). trabalho de pesquisa de Mestrado do Programa de Pós-
Os CAPS tornaram-se, entao, a principal estratégia, gradua<;:ao em Psicologia, da Universidade Católica de
na política nacional, de transforma<;:ao do modelo e de Goiás (UCG), constituindo núcleos de significa<;:ao
garantia de direitos aos sujeitos em sofrimento psíquico. que se referem as técnicas e as práticas de assistencia ao
Sao espa<;:os de ofertas de servi<;:os que se diferenciam das usuário de Saúde Mental, nos espa<;:os de um CAPS, no
estruturas tradicionais e que se orientam pela amplia<;:ao município de Goiánia, Goiás. Os significados foram
do espa<;:o de participa<;:ao social do sujeito que sofre, pela apreendidos em pesquisa qualitativa, de abordagem so-
democratiza<;:ao das a<;:óes, pela naosegrega<;:ao do ado- cial e histórica (VIGOTSKI, 2001), cuja diretriz teórica se
ecimento psíquico e pela valoriza<;:ao da subjetividade, define pela compreensao da subjetividade como intrin-
como base das a<;:óes multiprofissionais. secamente vinculada aos processos sociais, entendendo
Atualmente, pode-se caracterizar o momento políti- o sujeito como constituinte da sociedade, ao mesmo
co da Reforma Psiquiátrica brasileira por sua possibilidade tempo em que é constituído por ela.
de constru<;:ao de urna rede substitutiva de aten<;:ao a Saúde Nesta perspectiva teórica, a pesquisa apresentada
Mental, com incentivos para a amplia<;:ao da mesma e para utilizou-se de triangula<;:ao de métodos (MINAYO, 2005)
reunióes de equipe e um grupo focal com trabalhadores Para os trabalhadores de CAPS, no ambito do sig-
e gestores de CAPS, Os conteúdos assimilados foram nificado da assistencia, a participayao da família é um
sistematizados e, posteriormente, analisados, buscando ponto de ampla discussao na equipe, Os trabalhadores
apreender os núcleos de significayóes que perpassam demonstraram urna relayao familiar ainda problemática,
as falas dos trabalhadores de CAPS, considerando a apesar de a proposta ser de serviyo com porta aberta
perspectiva vigotskiana de que os significados contem e envolvimento integral da família no tratamento, A
a experiencia histórica de várias gerayóes, equipe ressaltou a dificuldade de envolver o familiar no
Vigotski (2001) considera a atividade humana tratamento do usuário, ficando evidente que os traba-
sempre significada e é essa significayao que permite a lhadares nao conseguiram definir urna farma estratégica
comunicayao, a socializayao e a transformayao do que é para a participayao efetiva da família,
natural em cultura, Assim, os significados apreendidos e No modelo hospitalar da assistencia em Saúde
apresentados neste estudo revelam as compreensóes dos Mental, um modelo segregador, fechado e instituciona-
trabalhadores a respeito das trocas interdisciplinares na lizado, a participayao familiar é definida objetivamente:
atenyao ao sujeito em sofrimento psíquico, ao mesmo sao visitas ao usuário internado e orientayóes quanto
tempo em que denotam um modo específico de agir e ao tratamento (farmacológico, condutas, manejo de
de construir processos de trabalho dentro do CAPS, crises), A participayao da família em grupos ocorre com
A análise das falas se deu com base nas diretrizes a presenya de profissionais para orientayóes, nas quais
teóricas e metodológicas da Reforma de atenyao a o profissional (médico ou nao), de forma verticalizada,
Saúde Mental e pelo confronto dessas diretrizes com repassa informayóes ao familiar a respeito do tratamento
as significayóes apreendidas. A busca de núcleos de do usuário, mas sem questionamentos, Nao há nem mes-
significayao dos conteúdos analisados considerou as mo, para as internayóes feitas pelo SUS, a possibilidade
contradiyóes, as similaridades das falas e o subtexto de adentrar os espayos em que os usuários internados
(AGUIAR; OZELLA, 2006), estao vivenciando seu cotidiano, pois as visitas sao em
Dentre os significados assimilados, que serao apre- horários e locais determinados,
sentados a seguir, elegeram-se, no presente trabalho, Essa é a prática que caracteriza a história da aten-
aqueles que permitiram trayar um perfil comparativo do yao aSaúde Mental, a qual sempre esteve voltada para
modelo tradicional com o proposto pela reforma, a fim a normalizayao (em instituiyóes fechadas) e para o que
de compreender o atual momento dos CAPS no cenário Costa, Mizoguchi e Fonseca (2005) denominaram
político de Saúde Mental e avaliar as possibilidades dos esquadrinhamento que, por sua vez, é definido pela
percursos que estes serviyos ainda podem fazer. Ressalta- ayao estratégica de formayao de espayos destinados a
se que, para o desenvolvimento desta pesquisa, todos classificayao e "contenyao-ordenayao" social, nos quais
os tramites exigidos pelo Conselho Nacional de Saúde nao cabe aos desprovidos de técnicas qualquer forma de
(CNS), resoluyao 196, foram respeitados e, para res- manifestayao, apenas o acatamento das orientayóes,
guardar a identidade dos participantes, todos os nomes Pelo contrário, nos serviyos de modelo CAPS, a pro-
referidos no presente artigo sao fictícios. posta é ter a família como urna aliada ao tratamento e
colaboradora, construindo espa<;:os abertos que permitam processo da doenra [..} Eu acho que tinha que ser sis-
a forma<;:ao de urna rede de apoio ao familiar e ao usuário, temático, que tinha que ser quase que obrigatório, pelo
menos estar vindo uma vez por mes aos grupos [..}.
auxiliando-os nessa experiencia de lidar com o sofrimento.
Costa Mizoguchi e Fonseca (2005, po 543) assim definem
Essa fala retrata a dificuldade de se estabelecer cri-
os espa<;:os antimanicomiais: "aquilo que sempre fora
térios objetivos e métodos para o desenvolvimento de
duro e sólido, o imenso e majestoso hospital psiquiátrico
um grupo que seja destinado aos familiares de usuários
disciplinar, respingará na forma de múltiplas gotículas".
do servi<;:oo E, ainda, refIete as dúvidas quanto ao modo
Assim, as famílias, será possível a participa<;:ao, o questio-
como o familiar deve se envolver no processo de trata-
namento e o envolvimento, ou melhor, será exigida, dos
mento da pessoa, pois grupo psicoterápico é um grupo de
trabalhadores, a elei<;:ao de estratégias para lidar com o
tratamento do sujeito; sendo assim, propor psicoterapia
familiar do portador de sofrimento psíquico.
ao familiar indica propor tratamento.]á o grupo psicoe-
No entanto, na equipe do CAPS, o que se apreen-
ducativo, pelo contrário, é urna diretriz de grupo de apoio
deu como significado é que ainda nao se construiu esse
que tem como objetivo minimizar a ansiedade por meio
espa<;:o para os familiares, que se institui pela liberdade.
de informa<;:óes e facilitar a comunica<;:ao. Há, ainda, na
Transformá-Ios em aliados ao tratamento nesse novo
fala anterior urna tentativa de organiza<;:ao de grupo que
modelo de aten<;:ao - que nao retira o usuário de seu con-
se assemelha ao modelo verticalizado e autoritário quando
texto, que se organiza pela institui<;:ao da liberdade e pela
rela<;:ao horizontalizada, onde todos partilham (família, ocorre a sugestao de que a participa<;:ao do familiar no
usuários, trabalhadores e comunidade) - é um problema grupo deva ser 'quase que obrigatória'.
nao superado pela equipe de trabalhadores do CAPS. É manifesto também pela equipe um pensamento
Com a amplia<;:ao dos espa<;:os da participa<;:ao contraditório no que se refere ao ideal de participa<;:ao
familiar, contemplados na diretriz teórica da reforma, da família nas atividades do CAPS: se os familiares
nas mobiliza<;:óes sociais e na Política Nacional de devem somente frequentar os grupos de família ou se
Saúde Mental, ampliaram-se também as contradi<;:óes: devem haver regras para a sua permanencia na unidade
as famílias nao conseguem absorver esta nova forma e o que eles (familiares) podem fazer no momento em
de participa<;:ao no tratamento do usuário e nem os que estao presentes na unidade. Todas essas questóes
profissionais conseguem atuar de forma plena nesse sao pontos de questionamentos e contradi<;:ao para a
Entre os profissionais, as dúvidas sobre como deve alguns profissionais a respeito do comportamento de
ser a participa<;:ao da família no servi<;:o CAPS sao fre- um familiar quando envolvido nas atividades do CAPS
quentes, como vemos no relato de Selma: e presente na unidade, como observamos nas palavras
de Luíza:
[..} os problemas da maioria é preocuparáo com a
participaráo ftmiliar, se a gente conseguisse trabalhar E/a [máe do usuário}fica aqui, e elafica participando
pelo menos com asftmílias, pelo menos num grupo de e oJosé [usuário} náofica tI vontade na presenra dela,
apoio, eu acho que, talvez, náo psicoterápico, mas um ela fica dando palpite o tempo inteiroo [..} ela está
grupo de apoio terapeutico, oupsicoterápico, sei lá o que, atrapalhando, entendeu? E/a náo está contribuindoo
psicoeducativo, pelo menos para que eles entendam o ro.} Ué, assim, náo tem normas para oftmiliar? ro.}
Vém, mas é a serviro do usuário. Náo é pra ele fizer coloca no profissional de saúde o poder de orienta<;:ao
tratamento! [ ..} e de defini<;:ao das regras de um modelo hegemonico
tradicional e reproduúdo academicamente.
No decorrer da discussao, essa fala foi complementada
Sao falas que evidenciam a contradi<;:ao posta pela
pela de outro profissional, Saulo, que argumentava sobre a
amplia<;:ao da participa<;:ao familiar no tratamento, em
importancia de o familiar ter livre tránsito dentro do CAPs,
contraposi<;:ao as regras e as normas institucionais e acade-
mas, ao mesmo tempo, esse mesmo profissional fez, no
micas de interven<;:óes técnicas na aten<;:ao ao sofrimento
decorrer de sua argumenta<;:ao, a seguinte pontua<;:áo: "Eu
humano. As próprias famílias, pela sua história de partici-
acho que precisa colocar os familiares no lugar deles, que é
pa<;:ao social, nao conseguem se aliar a esse novo modelo.
no grupo de família e se for ficar aqui no CAPS é calada".
Encontram-se ancoradas nesta contradi<;:ao, em que, ora
Com esses exemplos, fica evidente o quanto ainda
envolvem-se e, inclusive, confundem os espa<;:os de par-
é contraditório, para a equipe, o papel do familiar no
ticipa<;:ao, e ora nao se responsabilizam, por entenderem
tratamento do usuário; se deve haver urna participa<;:ao
que nao é o seu papel. Dessa maneira, pode-se argumentar
mais efetiva, se a participa<;:ao deve ser democrática ou se as
que o que está posto no eixo jurídico da Reforma como
regras devem ser estabelecidas e fixadas pelos profissionais.
ideal de aten<;:ao ao sofrimento - a participa<;:ao familiar e
Esse é um posicionamento que poderia estar mais claro
o envolvimento democrático no tratamento do sujeito -
para os trabalhadores de CAPS, tendo em vista a proposta
constitui, no plano real, urna contradi<;:ao que legitima a
da Reforma Psiquiátrica de práticas democráticas, de cons-
organiza<;:ao social e que se transforma em eixos de tensao
tru<;:ao coletiva de modelos de atendimento, de resgate de
na rela<;:ao profissional e familiar dos usuários.
cidadania das famílias e dos sujeitos em sofrimento. Há
O significado da família do usuário de Saúde Men-
inclusive na diretriz do MS que, dentre os recursos tera-
tal para os profissionais indica, ainda, urna compreensao
peuticos dos CAPS, deve haver a realiza<;:ao de "assembléias
de que o familiar nao é considerado um usuário do
ou reunióes de organiza<;:ao do servi<;:o" (BRASIL, 2004B,
servi<;:o. Para alguns profissionais, compreender a famí-
p. 17), as quais sao definidas como:
lia como usuária está intrinsecamente relacionado ao
Instrumento importantepara o efttivofimcionamento entendimento de que ela (a pessoa no papel de família)
dos CAPS como um lugar de convivéncia. É uma ativi- também necessite de tratamento em Saúde Mental;
dade, preftrencialmente semanal que reúne técnicos,
tratá-Ia como usuária significaria tratá-Ia como urna
usuários, fimiliares e outros convidados que juntos
discutem, avaliam epropóem encaminhamentospara pessoa portadora de sofrimento psíquico.
o serviw (BRASIL, 2004B, p. 17). A dificuldade de organiza<;:ao do servi<;:o com rela-
<;:ao a família está repleta de concep<;:óes tradicionais e
Apesar desta orienta<;:ao na política nacional quanto cristalizadas, que entendem que a dire<;:ao do tratamento
aparticipa<;:ao da família nas atividades do CAPS, o que da pessoa que sofre cabe, única e exclusivamente, aos
emerge como significado para os profissionais é a dúvida profissionais de Saúde Mental, como se a família e o
e a contradi<;:ao no que se refere ao ideal de participa<;:ao usuário devessem apenas acatar as decisóes estabelecidas,
familiar. As falas denotam a presen<;:a, ainda, do posi- concep<;:ao bem próxima do modelo de aten<;:ao desenvol-
cionamento autoritário do trabalhador, de posturas vido nos hospitais psiquiátricos. Caso a família nao aja de
orientadas pelo modelo de aten<;:ao verticalizada, que modo adequado para a equipe, entao, ela 'está acometida
de transtorno' e necessita ser tratada como usuária. Um de transforma<;:ao de urna lógica assentada em urna
exemplo dessa postura é o diálogo que se segue: organiza<;:ao histórico-social, que privilegia as rela<;:óes
institucionais calcadas no modelo hierarquizado.
Paula - Eu acho que a mae do Antonio está precisan- As famílias, nao cabe mais acatar as regras, mas
do de acolhimento [procedimento inicial com novos
sim aliarem-se ao tratamento e aos profissionais nao
usuários do CAPS).
cabe mais ditar as regras, mas construírem estratégias
Luiza - Eu também acho que precisa. Ela pára r..} de participa<;:ao familiar no tratamento. Porém, nao
aqui, te segura o tempo inteiro, te pára e... Aí, assim, há na estrutura social e na política da aten<;:ao a Saúde
eu vou ali, ela nao pá, pá, pá... r..}
A mulher é um Mental elementos facilitadores desse processo, os quais
problema, ela é mais que o Antonio.
sao denunciadores da contradi<;:ao que emerge desse
novo modelo.
Apesar de diálogos como esse terem ressonancia na
equipe como um todo, há falas pontuais, principalmente
daqueles que estao há mais tempo no servi<;:o, buscan-
do demarcar o papel da família. No entanto, sao falas MODELO CAPS: PRÁTICAS INOVADORAS?
isoladas e, na maioria das vezes, olvidadas por parte do
restante da equipe, como no exemplo de Selma: Há, no conteúdo das falas dos trabalhadores, as-
pectos que remetem a metodologia de atendimento,
Em relarao a permanéncia do ftmiliar na unidade, ou seja, ao modo como se organiza o servi<;:o. Ficou
eu fico imaginando se nao seria interessante que o
expresso que essa metodologia ainda se dá na lógica
reftrente discutisse com a ftmília de acordo com a
necessidade, de acordo com o projeto terapéutico. r..} da organiza<;:ao de servi<;:os pela perspectiva das possi-
Eu achei uma coisa interessante que fti discutida no bilidades dos trabalhadores. As discussóes com rela<;:ao
Congresso em Sao Paulo, CAPS também, né, que os a organiza<;:ao dos grupos ressaltam as dificuldades
ftmiliares colocam que o CAPS também é um esparo
relativas as competencias profissionais ou as dispo-
terapéutico para eles. Elesftlam, assim, que é um lugar
que tem alguém para ouvir. nibilidades pessoais para desenvolver determinadas
atividades, em detrimento da necessidade do usuário
Depois desta fala, houve alguns comentários buscan- ou do familiar. Um exemplo disso está na discussao
do incluir o familiar, mas ainda sem ressonancia no resto a respeito do próprio funcionamento do grupo de
da equipe, pois as falas retornavam apenas para o foco na família, que nao conseguiu reunir familiares para a
necessidade de defini<;:ao de normas que orientassem a participa<;:ao. A princípio, foi colocado em reuniao
participa<;:ao da família no tratamento do usuário. que os familiares nao se envolviam com os grupos de
Falas, como a apresentada anteriormente, marcam família, que era difícil faze-Ios ir ao grupo. Porém, no
pelas pessoas que estao no servi<;:o há mais tempo. No grupo, a seguinte fala foi feita por Selma:
Percebe-se, pela fala, que o modo de organizar o Eu acho que existe, existem dentro da área de Saúde
grupo está inerentemente voltado para a necessidade Mental acho que existem dois nichos de conhecimento
queftram, assim, capazes de dar uma resposta muito
do trabalhador, Ao dizer que ou um ou outro 'fugia' da
grande, em termos de ciencia mesmo, que é a medicina
organiza<;:ao e desenvolvimento do grupo, há implícita a e apsicologia, né? Entáo, por exemplo, quando eu vou
condi<;:ao de um grupo que funciona pela necessidade ou trabalhar, que eu venho trabalhar aqui no CAPS, na
disponibilidade da trabalhadora em desenvolve-lo, No minha leitura, no meu olhar, eu tenho que recorrer as
leituras da medicina, da psicologia, né?Alguma coisa
entanto, a atribui<;:ao, pela trabalhadora, das causas de
relacionada a Medicina e a Psicologia pra construir o
naofuncionamento deste grupo foi dada afalta de envol- meu dia-a-dia aqui.
vimento dos familiares, Esta estrutura<;:ao delineia urna
organiza<;:ao dos grupos, no CAPS, ainda precária e focada Essa fala mostra o quanto algumas práticas profis-
no modo autoritário de avalia<;:ao do funcionamento, sionais, que sao mais recentes na área da Saúde Mental,
Muitas vezes, na tentativa de estabelecer urna ainda se organizam em meio a urna indefini<;:ao de
metodologia mais estruturada na organiza<;:ao de metodologia e utilizam os recursos de profissóes que
determinado grupo, buscaram-se profissionais de aparentam possuir metodologia mais estruturada. Essas
área considerada, pelos trabalhadores, como melhor práticas também refletem a dificuldade de estabelecer
definida quanto aos processos de trabalho, como é o método de trabalho dentro do CAPS e colocam as a<;:óes
caso da referencia a necessidade de um profissional
em Saúde Mental ainda muito focadas nos recursos
de psicologia nos grupos de família, Porém, nao há
psicológicos e médicos para o tratamento.
clareza na justificativa para essa demanda, como bem
Pode-se destacar a discussao de Romagnoli (2006)
se percebe nas palavras de Selma:
a respeito das desestabiliza<;:óes das 'certezas' de cada
disciplina nas rela<;:óes interprofissionais:
Eu queria ver, gente, se náo tinha como a gente reor-
ganizar esse grupo deftmília e, principalmente, para
que tenha um psicólogo no grupo, tá? É... eu acho que Focados somente na produráo de conhecimentos e na
é super interessante, né, a participaráo do psicólogo transftrmaráo da realidade a partir de nossa 0práo
também nesse grupo. teórica, podemos estar exercendo jitnráes normativas
e reguladoras. (p. 8).
Assim, as a<;:óes se organizam pela lógica dos saberes credibilidade na sociedade. Pode-se argumentar, assim,
individualizados, pela pouca apropria<;:ao de novos sabe- que, no CAP5, o que ainda prevalece é o modo institu-
res e pela reprodu<;:ao de saberes já instituídos. A fala que cionalizado da prática profissional, é a organiza<;:ao de
se segue, de Saulo, expressa essa lógica de entendimento servi<;:os pela compreensao de que para tratar o sofrimento
da prática multiprofissional: psíquico é necessária a existencia de urna estrutura<;:ao de
técnicas e de procedimentos organizados pela lógica do
Existe, por exemplo, toda a questáo da jisiologia, da tratamento, focado na institucionaliza<;:ao do método,
cultura corporal; e ela éfimdamental no meu trabalho;
de modo que os saberes instituídos passam a ocupar um
e o meu trabalho é radicado nisso. Mas a gente náo
pode deixar de considerar que existe um conhecimen- espa<;:o determinante na aten<;:ao.
to, que ele é considerado socialmente mais relevante, Resta destacar, como forma de ilustrar o signifi-
talvez pelo tempo, pela pesquisa, e tudo mais; que é
cado apreendido das a<;:óes interprofissionais para os
da Psicologia e da Medicina, isso náo tem como negar.
[ ..} As vezes, acaba sendo complicado porque, por trabalhadores de CAP5, as argumenta<;:óes de Romagnoli
exemplo, eu náo vejo essas pessoas, esses projissionais (2006), que assinala a dificuldade dos profissionais de
médicos epsicólogos, por exemplo, preocupados com o construírem atitudes que sejam mais libertas do modo
conhecimento que éproduzidopela educaráoflsica ou
de trabalho e que elege a padroniza<;:ao das categorias
pela arte, pra construir a prática deles. Mas eu vejo
uma necessidade nossa de estar buscando na Medicina profissionais como ideal de conduta e que está assenta-
e na Psicologia pra construir a nossa prática. do em um modelo tecnicista e padronizado típico das
rela<;:óes capitalistas. A multiprofissionalidade no CAP5
Essa fala foi expressa no grupo focal e se constituiu traz um modo de intera<;:ao dos trabalhadores típico da
um diálogo reflexivo, manifestando-se como processo de organiza<;:ao social posta e contraditório ao construto
conscientiza<;:ao. Diante das dificuldades com rela<;:ao a teórico e político da reforma.
organiza<;:ao de determinados grupos, fica clara a demanda Quando Basaglia e Gagllio (1991, p. 29-30) argu-
pelo saber da Psicologia na orienta<;:ao das a<;:óes, tradu- mentavam que a Psiquiatria nao deu conta de realizar o
zindo um modo de constitui<;:ao dos servi<;:os ainda muito seu trabalho com base na promessa de tratamento e cura-
calcado em um modelo já pronto e estabelecido e pouco pois 'postulava urna cura improvável e impossível', e
criativo no processo de inova<;:ao e aquisi<;:ao de novos necessitou, portanto, de rever seu conceitual teórico e re-
saberes na prática da clínica da Reforma Psiquiátrica. correr a outros saberes como a Psicologia e a Sociologia-
Coloca-se em questao o modelo proposto pela políti- fizeram-na criticando o fato de esses novos saberes esta-
ca da Reforma e a forma<;:ao academica dos profissionais, rem, ainda, muito focados 'na rela<;:ao curante-curado,
pois sao distantes e indicam propostas de atua<;:óes díspa- no universo da doen<;:a, no universo da cura, na socie-
res. Exigem-se dos trabalhadores inova<;:óes, urna postura dade patogenica e nos remédios socializantes', ou seja,
teórica e política questionadora dos saberes já instituídos, representando ainda 'regras de vida coletiva em um mi-
mas nao se forma trabalhadores nessa diretriz, nem por crocosmo institucional'. Para os autores, o abarcamento
parte das universidades e nem por parte das capacita<;:óes de novos saberes na prática em Saúde Mental sugere
feitas pelo Poder Público. Isso que gera a dificuldade na as possibilidades de inova<;:óes e a amplia<;:ao das a<;:óes
atua<;:ao, deixando as profissóes menos instrumentadas para além do servi<;:o institucionalizado, a<;:óes estas que
para o trabalho na Saúde Mental, na perspectiva da Re- se constituam de sujeitos entre sujeitos, em um campo
forma, e permitindo a mera reprodu<;:ao dos saberes pela psicossocial. Com essa perspectiva, seria necessário trans-
formar o imaginário social dos trabalhadores, porém pleto. Assim, o foco acaba fieando centrado nas a<;:óes, na
tal transforma<;:ao mostra-se impossibilitada diante das organiza<;:ao interna dos servi<;:os e das atividades propostas,
deficiencias da forma<;:ao academica e da própria vivencia com pouea amplia<;:ao para os espa<;:os extramuros dos CArs,
histórico-social dos trabalhadores, pois ainda espera-se a remissao dos sintomas.
Há, entre os profissionais, falas que ressaltam o Na estrutura<;:ao das práticas, o foco no serVl<;:O
papel dos novos saberes na prática em Saúde Mental sugere o comprometimento da equipe de trabalhadores
como recursos promotores de reabilita<;:ao psicossociaL em se constituírem resolutivos para a minimiza<;:ao do
Porém, o conteúdo das falas é contraditório e denota a sofrimento psíquico e em nao se conceberem como
valoriza<;:ao do método de trabalho instituído e as difi- espa<;:os constituídos sem métodos e sem diretrizes.
culdades da equipe de extrapolar o ámbito do modelo Denotam ainda urna forma de agir que contrapóe po-
formas de tratamento sem destituir dos sujeitos a sub- superar a tradi<;:ao técnico-biológica, sem abandoná-Ia
jetividade, pois, a partir do momento em que a reforma em prol de urna liberdade leviana e de estabelecer urna
tornou-se urna política de estado, afastou-se considera- contratualidade na atua<;:ao multiprofissional que nao
velmente do movimento social e colocou os CAPS como signifique um abandono de seu saber.
servi<;:os de atendimento a urna diretriz e de apresenta<;:ao Os significados apreendidos e destacados neste estudo
resultados. Dessa forma, poderá dirimir toda tensao que indicam significados que remetem a questóes universais re-
deve haver entre a reforma como movimento político e ferentes a Saúde Mental e a interlocu<;:áo com o sofrimento
social e a reforma como clínica e tratamento. psíquico. Trazem-se a tona reflexóes quanto a contradi<;:áo
posta por um projeto que se manifesta com caráter de
denúncia, com características de mobiliza<;:óes sociais e
de reivindica<;:óes de amplia<;:ao da participa<;:ao popular
CONSIDERA<;ÓES FINAIS e de direitos humanos, mas que, no decorrer do processo
histórico de evolu<;:áo da proposta, tornou-se urna política
Apesar dos avan<;:os e da apropria<;:ao do campo de estado e colocou em pauta dois polos de confronta<;:ao:
teórico-conceitual da reforma pelos trabalhadores de
as concep<;:óes advindas do movimento social (que reúne
CAPS, o modelo de aten<;:ao que tem se construído neste
intelectuais, militantes, usuários e familiares) e o aparato
servi<;:o ainda está permeado de a<;:óes limitadas a ativi-
institucional do Estado (que determina regras, contrata ser-
dades no interior da unidade, a urna lógica de atua<;:ao
vidores, impóe normas e busca o controle social). Ressalta-
multiprofissional ainda assentada na a<;:ao individual das
se que os avan<;:os da reforma, atualmente constituídos e
categorias profissionais e na pouca inova<;:ao com o abar-
assentados em urna política de estado, necessitam de novas
camento dos novos saberes, na institucionaliza<;:ao do
confronta<;:óes, de realce das contradi<;:óes emergentes desse
servi<;:o e foco na elimina<;:ao e manejo dos sintomas.
novo modelo, para prosseguir no seu percurso de constru-
Ressalta-se, nesta análise, a distancia entre o plano real
<;:ao democrática da aten<;:ao ao sofrimento psíquico e de
e o ideal (teórico/político) da reforma, a falta de instrumen-
amplia<;:ao de participa<;:ao social do sujeito que sofre.
taliza<;:ao do trabalhador, decorrente de sua própria condi-
<;:ao histórico-social, e as deficiencias do campo jurídico/
institucional, que propóe a execu<;:ao de urna política com
diretrizes inovadoras. Porém, nao se consegue instrumen- NOTAS
talizar os executores desta política: os trabalhadores.
Compreender em que alicerces o movimento social CAPS I - capacidade operacional para municípios
se transformou em política de estado e em que bases essa de até 70 mil habitantes, funcionando das 8 as 18h, em
política se torna condi<;:ao real de execu<;:ao e de trans- cinco dias úteis;
forma<;:ao técnico-assistencial e social, é fundamental CAPS II - capacidade operacional para municípios
para a apreensao do processo de Reforma Psiquiátrica com mais de 70 mil habitantes, funcionando das 8 as
no Brasil. Tal questionamento é a mola propulsora para 18h, em cinco dias úteis;
a avalia<;:ao do processo de reforma da aten<;:ao; é o eixo CAPS III - capacidade operacional para municípios
que poderá nortear a compreensao dos conflitos trava- com mais de 200 mil habitantes, funcionando diaria-
dos nas equipes que se encontram diante do desafio de mente 24 horas, inclusive aos finais de semana;
CAPS i - servi<;:o para atendimento de crian<;:as, com BASAGLlA, E; GAGLLlO, G, Voca<;:ao terapeutica e luta de
transtorno mental de moderado a grave, constituindo-se classes: para urna análise crítica do modelo italiano, In:
DELGADO,].M,EA loucura nasaladejantar, (Org,), Sao
referencia para urna popula<;:ao de, aproximadamente,
Paulo: Resenha Ltda, 1991,
200 mil habitantes;
CAPS ad - servi<;:o para atendimento de pacientes
BRASIL. Ministério da Saúde, Legisla<;:ao em Saúde
com transtornos decorrentes do uso e dependencias Mental (l990-2004)/Ministério da Saúde, Secretaria-
de substancias psicoativas, para atendimento em mu- Executiva, secretaria de Aten<;:ao aSaúde, 5, ed, Amplia-
da, Brasília, DF, Ministério da saúde, 2004A
nidpios com popula<;:ao superior a 70 mil habitantes
(Portaria GM 336/2002),
_ _ _ _, Ministério da Saúde, Secretaria de aten<;:ao
asaúde, Departamento de A<;:óes Programáticas Estra-
tégicas, Saúde Mental no SUS: os Centros de Aten<;:ao
PsicossociaL Brasília, DF, 2004B,
___, Psiquiatria social e RefOrma Psiquiátrica. Rio VIGOTSKI, LS, A construráo do pensamento e da lin-
de Janeiro: FIOCRUZ, 1994, guagem, Tradu<;:ao Paulo Bezerra, Sao Paulo: Martins
Fontes, 2001,