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Saúde em Debate

ISSN: 0103-1104
revista@saudeemdebate.org.br
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
Brasil

Carneiro Tavares, Rosana; Gomes Sousa, Sônia Margarida


Os Centros de Atenção Psicossocial e as possibilidades de inovação das práticas em
Saúde Mental
Saúde em Debate, vol. 33, núm. 82, mayo-agosto, 2009, pp. 252-263
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
Rio de Janeiro, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=406341771008

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252 ARTIGO ORIGINAL I ORlGINALARTICLE

Os Centros de Aten<;ao Psicossocial e as possibilidades de


inova<;ao das práticas em Saúde Mental
Psychosocial Care Centers and the possible changes o/practices
in Mental Health

Rosana Carneiro Tavares I


Sonia Margarida Gomes Sousa 2

I Psicóloga; Mesue em Psicologia pela RESUMO O objetivo deste artigo é trazer para apauta de discussóes da RefOrma
Universidade Carólica de Goiás (UCG);
Psiquiátrica brasileira os processos de trabalho que tem se constituído nos Centros
especialisra em Políricas Públicas pela
Universidade Federal de Goiás (UFG) e
de A tenráo Psicossocial (CAPS). Sáo apresentados os significados atribuídos pelos
em Saúde Menral pela UCG; professora trabalhadores as trocas que se estabelecem entre as diversas profissóes e como o
da Funda~ao Universidade do Tocanrins serviro tem se organizado para atender asua demanda. Foi utilizada pesquisa
(UNITfNS); uabalhadora de Cenrro de
documental, gravaróes de reunióes de equipe e grupo fOcal com trabalhadores
Aten~ao Psicossocial (CAPs).
rosana.carneirotavares@gmail.com
e gestores de CAPS, no município de Goiania, Goiás. Os resultados trazem
significados contraditórios quanto aparticiparáo da ftmília no tratamento e
2 Psicóloga; Dourora em Psicologia quanto ao exercício da interdisciplinaridade no CAPS.
Social pela Ponrifícia Universidade
Católica de Sao Paulo (PUC-SP); PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Serviros de Saúde Mental; RefOrma do
professora do Deparramenro de serviro de Saúde; Psicologia social
Psicologia da UCG; direrora do
Insticuro Dom Fernando especializada
nas temáticas da infancia, adolescencia, ABSTRACT The purpose ofthis essay is to be bringingfOr Brazilian Psychiatric
juvenrude e família (UCG/PROEX). RefOrm issues the work process which has been made up in Psychosocial Center of
smgsousa@terra.com.br
Attention (CAPS). It shows the meaning ofexchanges among diffirent proftssions,
fOr CAPS workers, and how the service has been organized to attend its demand It
utilized desk research, recordings ofmeetings ofthe team and afOcal group with
the workers and coordinators ftom one CAPS ofde city ofGoiania, Brazil The
results entail contradictory meanings aboutftmily tanking part in treatment, at
the same time, about the ongoing ofthe proftssional interaction in CAPS.

KEYWORDS: Mental Health; Mental Health Services; Health Care RefOrm;


Psychology, social

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INTRODU<;ÁO mento, Segundo Amarante (1994), o desenvolvimento


da psiquiatria consolidou, no Brasil, o modelo asilar de
tratamento do sujeito em sofrimento psíquico, O Estado
brasileiro investiu nos servi<;:os psiquiátricos privados,
comprando servi<;:os existentes, em detrimento da cria<;:ao
Este artigo se destina a apresentar os significados de servi<;:os públicos, efetivando, assim, o modelo privativo
que os trabalhadores de Centros de Aten<;:ao Psicossocial tanto na psiquiatria como na saúde geral,
(CAPs) atribuem aos processos de trabalho e as rela<;:óes e Com o processo de constru<;:ao da democracia
trocas interprofissionais que se estabelecem nos servi<;:os no Brasil no final dos anos de 1970, ampliaram-se as
que substituem a rede hospitalar, tendo por base a Re- discussóes e a forma<;:ao de movimentos sociais com
forma Psiquiátrica, Além disso, apresenta os modos de caráter de questionamento e denúncias: o Movimento
organiza<;:ao e as trocas interdisciplinares que marcam as dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), surgido
tentativas de supera<;:ao do modelo tradicional de aten<;:ao em 1978, destacou-se por denunciar maus-tratos aos
a Saúde Mental para a efetiva<;:ao da aten<;:ao psicossocial pacientes em hospitais psiquiátricos e por possuir urna
ao sujeito em sofrimento psíquico, política privativa da assistencia na saúde; o Movimento
A Reforma Psiquiátrica, baseada na desinstitucio- Nacional da Luta Antimanicomial, em 1986, surgido
naliza<;:ao do adoecimento psíquico, busca urna inver- da transforma<;:ao do MTSM em um movimento social
sao do modelo assistencial, passando de urna aten<;:ao mais amplo; e a Declara<;:ao de Caracas, em 1990, con-
direcionada ao modelo hospitalar e/ou asilar para urna siderada o marco histórico de novos rumos da aten<;:ao
aten<;:ao de viés psicossocial, que privilegia a reocupa<;:ao a saúde mental na América Latina, buscando privilegiar
do espa<;:o social pelo sujeito que sofre, Na busca da a permanencia das pessoas em sofrimento psíquico na
inversao do modelo, o caminho percorrido no Brasil comunidade (AMARANTE, 1994; 1995),
assinala altera<;:óes significativas na aten<;:ao, ao mesmo O processo inicial de interven<;:ao nos serVl<;:OS
tempo em que delineia embates e aponta entraves para hospitalares, de denúncia social de maus-tratos e des-
a fluidez do processo. respeito ao sujeito em sofrimento, aliado a cria<;:ao de
Tra<;:ar o histórico da Reforma Psiquiátrica brasileira servi<;:os que se contrapóem a psiquiatria tradicional, a
foge ao escopo deste trabalho, até porque é extensa a partir dos anos de 1990, traduziu o momento de ampla
bibliografia que aborda esse aspecto (COSTA, 1989; mobiliza<;:ao social pelo qual passou a história da psi-
AMARANTE, 1994; 1995; 2003; VASCONCELOS, 1997), quiatria e da aten<;:ao a pessoa com sofrimento psíquico,
No entanto, para melhor compreender o papel dos CAPS Demarcou o momento em que a sociedade, como um
na reforma da assistencia a Saúde Mental, faz-se mister todo, pressionou o Poder Público na busca da melho-
retomar sucintamente a história da psiquiatria no Brasil, ria da assistencia psiquiátrica brasileira e denunciou a
no cenário político nacional e as transforma<;:óes pelo precariedade do servi<;:o hospitalar e a privatiza<;:ao do
qual passou a psiquiatria no ambito da saúde, servi<;:o público de saúde,
A Reforma Psiquiátrica brasileira é um processo Em 2001, foi sancionada a lei 10,216, que de-
que vem se constituindo desde longa data, configurando marcou o modelo de aten<;:ao em servi<;:os substitutivos
transforma<;:óes gradativas na concep<;:ao do que é adoe- como política nacionaL A lei regulamentou a Reforma
cimento psíquico e de como intervir ou tratar esse sofri- Psiquiátrica e impulsionou a transforma<;:ao do modelo

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da aten<;:ao nos servi<;:os de Saúde Mental, privilegiando a aten<;:ao psiquiátrica naoasilar. É nesse momento que a
o tratamento em servi<;:os substitutivos e redirecionando Reforma Psiquiátrica se consolida como urna política de
a assistencia. Regulamentou também a interna<;:ao só Estado, legislada no nível federal. Porém, apesar de prever
quando os recursos extra-hospitalares forem insuficientes alguns avan<;:os em dire<;:ao a inversao do modelo de aten-
e vedou interna<;:óes em institui<;:óes com características <;:ao psiquiátrica, esta política contém, ainda, deficiencias
asilares (BRASIL, 20ü4A). que permitem a constru<;:ao de modos de aten<;:ao ainda
Outro dispositivo legal que marcou o desenvolvi- pautados na psiquiatria tradicional e hospitalocentrica.
mento do processo da Reforma Psiquiátrica, no Brasil, Dessa maneira, compreender como os trabalhado-
foi a portaria 336, do Ministério da Saúde (MS), de res de CAPS tem estruturado seus processos de trabalho
fevereiro de 2002, que regeu os servi<;:os de substitui<;:ao e como compreendem as mudan<;:as na aten<;:ao a Saúde
dos hospitais psiquiátricos, determinando que os servi- Mental é importante para delinear os caminhos da refor-
<;:os CAPS e os Núcleos de Aten<;:ao Psicossocial (NAPs) ma no Brasil. Os significados atribuídos pelos trabalha-
existentes fossem recadastrados nas modalidades CAPS dores a todo esse processo de constru<;:ao de práticas de
1, CAPS 11, CAPS I1I, Centro de Aten<;:ao Psicossocial In- saúde sao o reflexo das possibilidades de inova<;:óes das
fantil (CAPS i) e Centro de Aten<;:ao Psicossocial Álcool práticas em Saúde Mental, e sao esses significados que
e Drogas (CAPS ad), bem como todos os novos servi<;:os demarcam as modifica<;:óes já consolidadas deste novo
de Saúde Mental no Sistema Único de Saúde (SUS), modelo e os caminhos que ainda restam a percorrer no
que viessem a ser criados e cadastrados. Vários outros processo de Reforma Psiquiátrica brasileira.
dispositivos vieram confirmar certo avan<;:o do processo
de Reforma da aten<;:ao a Saúde Mental no eixo jurídico,
como as portarias 189/2002 e 626/2002, do MS, que
regeram sobre o financiamento de autoriza<;:óes de proce- METODOLOGIA
dimentos de alta complexidade (APACS), que se tornaram
instrumentos de financiamento para a manuten<;:ao dos A análise apresentada neste artigo é parte de um
servi<;:os de modalidade CAPS (BRASIL, 20ü4A). trabalho de pesquisa de Mestrado do Programa de Pós-
Os CAPS tornaram-se, entao, a principal estratégia, gradua<;:ao em Psicologia, da Universidade Católica de
na política nacional, de transforma<;:ao do modelo e de Goiás (UCG), constituindo núcleos de significa<;:ao
garantia de direitos aos sujeitos em sofrimento psíquico. que se referem as técnicas e as práticas de assistencia ao
Sao espa<;:os de ofertas de servi<;:os que se diferenciam das usuário de Saúde Mental, nos espa<;:os de um CAPS, no
estruturas tradicionais e que se orientam pela amplia<;:ao município de Goiánia, Goiás. Os significados foram
do espa<;:o de participa<;:ao social do sujeito que sofre, pela apreendidos em pesquisa qualitativa, de abordagem so-
democratiza<;:ao das a<;:óes, pela naosegrega<;:ao do ado- cial e histórica (VIGOTSKI, 2001), cuja diretriz teórica se
ecimento psíquico e pela valoriza<;:ao da subjetividade, define pela compreensao da subjetividade como intrin-
como base das a<;:óes multiprofissionais. secamente vinculada aos processos sociais, entendendo
Atualmente, pode-se caracterizar o momento políti- o sujeito como constituinte da sociedade, ao mesmo
co da Reforma Psiquiátrica brasileira por sua possibilidade tempo em que é constituído por ela.
de constru<;:ao de urna rede substitutiva de aten<;:ao a Saúde Nesta perspectiva teórica, a pesquisa apresentada
Mental, com incentivos para a amplia<;:ao da mesma e para utilizou-se de triangula<;:ao de métodos (MINAYO, 2005)

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para a busca de apreensao dos significados dos processos A PARTICIPA<;ÁO FAMILIAR


de trabalho estabelecidos entre os profissionais, Utiliza- NOS SERVI<;OS CAPS
ram-se, ainda, pesquisa documental, gravayóes de tn~s

reunióes de equipe e um grupo focal com trabalhadores Para os trabalhadores de CAPS, no ambito do sig-
e gestores de CAPS, Os conteúdos assimilados foram nificado da assistencia, a participayao da família é um
sistematizados e, posteriormente, analisados, buscando ponto de ampla discussao na equipe, Os trabalhadores
apreender os núcleos de significayóes que perpassam demonstraram urna relayao familiar ainda problemática,
as falas dos trabalhadores de CAPS, considerando a apesar de a proposta ser de serviyo com porta aberta
perspectiva vigotskiana de que os significados contem e envolvimento integral da família no tratamento, A
a experiencia histórica de várias gerayóes, equipe ressaltou a dificuldade de envolver o familiar no
Vigotski (2001) considera a atividade humana tratamento do usuário, ficando evidente que os traba-
sempre significada e é essa significayao que permite a lhadares nao conseguiram definir urna farma estratégica
comunicayao, a socializayao e a transformayao do que é para a participayao efetiva da família,
natural em cultura, Assim, os significados apreendidos e No modelo hospitalar da assistencia em Saúde
apresentados neste estudo revelam as compreensóes dos Mental, um modelo segregador, fechado e instituciona-
trabalhadores a respeito das trocas interdisciplinares na lizado, a participayao familiar é definida objetivamente:
atenyao ao sujeito em sofrimento psíquico, ao mesmo sao visitas ao usuário internado e orientayóes quanto
tempo em que denotam um modo específico de agir e ao tratamento (farmacológico, condutas, manejo de
de construir processos de trabalho dentro do CAPS, crises), A participayao da família em grupos ocorre com
A análise das falas se deu com base nas diretrizes a presenya de profissionais para orientayóes, nas quais
teóricas e metodológicas da Reforma de atenyao a o profissional (médico ou nao), de forma verticalizada,
Saúde Mental e pelo confronto dessas diretrizes com repassa informayóes ao familiar a respeito do tratamento
as significayóes apreendidas. A busca de núcleos de do usuário, mas sem questionamentos, Nao há nem mes-
significayao dos conteúdos analisados considerou as mo, para as internayóes feitas pelo SUS, a possibilidade
contradiyóes, as similaridades das falas e o subtexto de adentrar os espayos em que os usuários internados
(AGUIAR; OZELLA, 2006), estao vivenciando seu cotidiano, pois as visitas sao em
Dentre os significados assimilados, que serao apre- horários e locais determinados,
sentados a seguir, elegeram-se, no presente trabalho, Essa é a prática que caracteriza a história da aten-
aqueles que permitiram trayar um perfil comparativo do yao aSaúde Mental, a qual sempre esteve voltada para
modelo tradicional com o proposto pela reforma, a fim a normalizayao (em instituiyóes fechadas) e para o que
de compreender o atual momento dos CAPS no cenário Costa, Mizoguchi e Fonseca (2005) denominaram
político de Saúde Mental e avaliar as possibilidades dos esquadrinhamento que, por sua vez, é definido pela
percursos que estes serviyos ainda podem fazer. Ressalta- ayao estratégica de formayao de espayos destinados a
se que, para o desenvolvimento desta pesquisa, todos classificayao e "contenyao-ordenayao" social, nos quais
os tramites exigidos pelo Conselho Nacional de Saúde nao cabe aos desprovidos de técnicas qualquer forma de
(CNS), resoluyao 196, foram respeitados e, para res- manifestayao, apenas o acatamento das orientayóes,
guardar a identidade dos participantes, todos os nomes Pelo contrário, nos serviyos de modelo CAPS, a pro-
referidos no presente artigo sao fictícios. posta é ter a família como urna aliada ao tratamento e

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colaboradora, construindo espa<;:os abertos que permitam processo da doenra [..} Eu acho que tinha que ser sis-
a forma<;:ao de urna rede de apoio ao familiar e ao usuário, temático, que tinha que ser quase que obrigatório, pelo
menos estar vindo uma vez por mes aos grupos [..}.
auxiliando-os nessa experiencia de lidar com o sofrimento.
Costa Mizoguchi e Fonseca (2005, po 543) assim definem
Essa fala retrata a dificuldade de se estabelecer cri-
os espa<;:os antimanicomiais: "aquilo que sempre fora
térios objetivos e métodos para o desenvolvimento de
duro e sólido, o imenso e majestoso hospital psiquiátrico
um grupo que seja destinado aos familiares de usuários
disciplinar, respingará na forma de múltiplas gotículas".
do servi<;:oo E, ainda, refIete as dúvidas quanto ao modo
Assim, as famílias, será possível a participa<;:ao, o questio-
como o familiar deve se envolver no processo de trata-
namento e o envolvimento, ou melhor, será exigida, dos
mento da pessoa, pois grupo psicoterápico é um grupo de
trabalhadores, a elei<;:ao de estratégias para lidar com o
tratamento do sujeito; sendo assim, propor psicoterapia
familiar do portador de sofrimento psíquico.
ao familiar indica propor tratamento.]á o grupo psicoe-
No entanto, na equipe do CAPS, o que se apreen-
ducativo, pelo contrário, é urna diretriz de grupo de apoio
deu como significado é que ainda nao se construiu esse
que tem como objetivo minimizar a ansiedade por meio
espa<;:o para os familiares, que se institui pela liberdade.
de informa<;:óes e facilitar a comunica<;:ao. Há, ainda, na
Transformá-Ios em aliados ao tratamento nesse novo
fala anterior urna tentativa de organiza<;:ao de grupo que
modelo de aten<;:ao - que nao retira o usuário de seu con-
se assemelha ao modelo verticalizado e autoritário quando
texto, que se organiza pela institui<;:ao da liberdade e pela
rela<;:ao horizontalizada, onde todos partilham (família, ocorre a sugestao de que a participa<;:ao do familiar no

usuários, trabalhadores e comunidade) - é um problema grupo deva ser 'quase que obrigatória'.

nao superado pela equipe de trabalhadores do CAPS. É manifesto também pela equipe um pensamento

Com a amplia<;:ao dos espa<;:os da participa<;:ao contraditório no que se refere ao ideal de participa<;:ao

familiar, contemplados na diretriz teórica da reforma, da família nas atividades do CAPS: se os familiares

nas mobiliza<;:óes sociais e na Política Nacional de devem somente frequentar os grupos de família ou se

Saúde Mental, ampliaram-se também as contradi<;:óes: devem haver regras para a sua permanencia na unidade

as famílias nao conseguem absorver esta nova forma e o que eles (familiares) podem fazer no momento em

de participa<;:ao no tratamento do usuário e nem os que estao presentes na unidade. Todas essas questóes

profissionais conseguem atuar de forma plena nesse sao pontos de questionamentos e contradi<;:ao para a

novo modelo de inclusao familiar no tratamento do equipe de trabalhadores.

sofrimento psíquico. Essa contradi<;:ao fica mais evidente nas falas de

Entre os profissionais, as dúvidas sobre como deve alguns profissionais a respeito do comportamento de

ser a participa<;:ao da família no servi<;:o CAPS sao fre- um familiar quando envolvido nas atividades do CAPS
quentes, como vemos no relato de Selma: e presente na unidade, como observamos nas palavras
de Luíza:
[..} os problemas da maioria é preocuparáo com a
participaráo ftmiliar, se a gente conseguisse trabalhar E/a [máe do usuário}fica aqui, e elafica participando
pelo menos com asftmílias, pelo menos num grupo de e oJosé [usuário} náofica tI vontade na presenra dela,
apoio, eu acho que, talvez, náo psicoterápico, mas um ela fica dando palpite o tempo inteiroo [..} ela está
grupo de apoio terapeutico, oupsicoterápico, sei lá o que, atrapalhando, entendeu? E/a náo está contribuindoo
psicoeducativo, pelo menos para que eles entendam o ro.} Ué, assim, náo tem normas para oftmiliar? ro.}

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Vém, mas é a serviro do usuário. Náo é pra ele fizer coloca no profissional de saúde o poder de orienta<;:ao
tratamento! [ ..} e de defini<;:ao das regras de um modelo hegemonico
tradicional e reproduúdo academicamente.
No decorrer da discussao, essa fala foi complementada
Sao falas que evidenciam a contradi<;:ao posta pela
pela de outro profissional, Saulo, que argumentava sobre a
amplia<;:ao da participa<;:ao familiar no tratamento, em
importancia de o familiar ter livre tránsito dentro do CAPs,
contraposi<;:ao as regras e as normas institucionais e acade-
mas, ao mesmo tempo, esse mesmo profissional fez, no
micas de interven<;:óes técnicas na aten<;:ao ao sofrimento
decorrer de sua argumenta<;:ao, a seguinte pontua<;:áo: "Eu
humano. As próprias famílias, pela sua história de partici-
acho que precisa colocar os familiares no lugar deles, que é
pa<;:ao social, nao conseguem se aliar a esse novo modelo.
no grupo de família e se for ficar aqui no CAPS é calada".
Encontram-se ancoradas nesta contradi<;:ao, em que, ora
Com esses exemplos, fica evidente o quanto ainda
envolvem-se e, inclusive, confundem os espa<;:os de par-
é contraditório, para a equipe, o papel do familiar no
ticipa<;:ao, e ora nao se responsabilizam, por entenderem
tratamento do usuário; se deve haver urna participa<;:ao
que nao é o seu papel. Dessa maneira, pode-se argumentar
mais efetiva, se a participa<;:ao deve ser democrática ou se as
que o que está posto no eixo jurídico da Reforma como
regras devem ser estabelecidas e fixadas pelos profissionais.
ideal de aten<;:ao ao sofrimento - a participa<;:ao familiar e
Esse é um posicionamento que poderia estar mais claro
o envolvimento democrático no tratamento do sujeito -
para os trabalhadores de CAPS, tendo em vista a proposta
constitui, no plano real, urna contradi<;:ao que legitima a
da Reforma Psiquiátrica de práticas democráticas, de cons-
organiza<;:ao social e que se transforma em eixos de tensao
tru<;:ao coletiva de modelos de atendimento, de resgate de
na rela<;:ao profissional e familiar dos usuários.
cidadania das famílias e dos sujeitos em sofrimento. Há
O significado da família do usuário de Saúde Men-
inclusive na diretriz do MS que, dentre os recursos tera-
tal para os profissionais indica, ainda, urna compreensao
peuticos dos CAPS, deve haver a realiza<;:ao de "assembléias
de que o familiar nao é considerado um usuário do
ou reunióes de organiza<;:ao do servi<;:o" (BRASIL, 2004B,
servi<;:o. Para alguns profissionais, compreender a famí-
p. 17), as quais sao definidas como:
lia como usuária está intrinsecamente relacionado ao
Instrumento importantepara o efttivofimcionamento entendimento de que ela (a pessoa no papel de família)
dos CAPS como um lugar de convivéncia. É uma ativi- também necessite de tratamento em Saúde Mental;
dade, preftrencialmente semanal que reúne técnicos,
tratá-Ia como usuária significaria tratá-Ia como urna
usuários, fimiliares e outros convidados que juntos
discutem, avaliam epropóem encaminhamentospara pessoa portadora de sofrimento psíquico.
o serviw (BRASIL, 2004B, p. 17). A dificuldade de organiza<;:ao do servi<;:o com rela-
<;:ao a família está repleta de concep<;:óes tradicionais e

Apesar desta orienta<;:ao na política nacional quanto cristalizadas, que entendem que a dire<;:ao do tratamento
aparticipa<;:ao da família nas atividades do CAPS, o que da pessoa que sofre cabe, única e exclusivamente, aos
emerge como significado para os profissionais é a dúvida profissionais de Saúde Mental, como se a família e o
e a contradi<;:ao no que se refere ao ideal de participa<;:ao usuário devessem apenas acatar as decisóes estabelecidas,
familiar. As falas denotam a presen<;:a, ainda, do posi- concep<;:ao bem próxima do modelo de aten<;:ao desenvol-
cionamento autoritário do trabalhador, de posturas vido nos hospitais psiquiátricos. Caso a família nao aja de
orientadas pelo modelo de aten<;:ao verticalizada, que modo adequado para a equipe, entao, ela 'está acometida

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de transtorno' e necessita ser tratada como usuária. Um de transforma<;:ao de urna lógica assentada em urna
exemplo dessa postura é o diálogo que se segue: organiza<;:ao histórico-social, que privilegia as rela<;:óes
institucionais calcadas no modelo hierarquizado.
Paula - Eu acho que a mae do Antonio está precisan- As famílias, nao cabe mais acatar as regras, mas
do de acolhimento [procedimento inicial com novos
sim aliarem-se ao tratamento e aos profissionais nao
usuários do CAPS).
cabe mais ditar as regras, mas construírem estratégias

Luiza - Eu também acho que precisa. Ela pára r..} de participa<;:ao familiar no tratamento. Porém, nao
aqui, te segura o tempo inteiro, te pára e... Aí, assim, há na estrutura social e na política da aten<;:ao a Saúde
eu vou ali, ela nao pá, pá, pá... r..}
A mulher é um Mental elementos facilitadores desse processo, os quais
problema, ela é mais que o Antonio.
sao denunciadores da contradi<;:ao que emerge desse
novo modelo.
Apesar de diálogos como esse terem ressonancia na
equipe como um todo, há falas pontuais, principalmente
daqueles que estao há mais tempo no servi<;:o, buscan-
do demarcar o papel da família. No entanto, sao falas MODELO CAPS: PRÁTICAS INOVADORAS?
isoladas e, na maioria das vezes, olvidadas por parte do
restante da equipe, como no exemplo de Selma: Há, no conteúdo das falas dos trabalhadores, as-
pectos que remetem a metodologia de atendimento,
Em relarao a permanéncia do ftmiliar na unidade, ou seja, ao modo como se organiza o servi<;:o. Ficou
eu fico imaginando se nao seria interessante que o
expresso que essa metodologia ainda se dá na lógica
reftrente discutisse com a ftmília de acordo com a
necessidade, de acordo com o projeto terapéutico. r..} da organiza<;:ao de servi<;:os pela perspectiva das possi-
Eu achei uma coisa interessante que fti discutida no bilidades dos trabalhadores. As discussóes com rela<;:ao
Congresso em Sao Paulo, CAPS também, né, que os a organiza<;:ao dos grupos ressaltam as dificuldades
ftmiliares colocam que o CAPS também é um esparo
relativas as competencias profissionais ou as dispo-
terapéutico para eles. Elesftlam, assim, que é um lugar
que tem alguém para ouvir. nibilidades pessoais para desenvolver determinadas
atividades, em detrimento da necessidade do usuário

Depois desta fala, houve alguns comentários buscan- ou do familiar. Um exemplo disso está na discussao

do incluir o familiar, mas ainda sem ressonancia no resto a respeito do próprio funcionamento do grupo de

da equipe, pois as falas retornavam apenas para o foco na família, que nao conseguiu reunir familiares para a

necessidade de defini<;:ao de normas que orientassem a participa<;:ao. A princípio, foi colocado em reuniao

participa<;:ao da família no tratamento do usuário. que os familiares nao se envolviam com os grupos de

Falas, como a apresentada anteriormente, marcam família, que era difícil faze-Ios ir ao grupo. Porém, no

a apropria<;:ao teórico-conceitual do modelo da reforma decorrer da discussao sobre o funcionamento desse

pelas pessoas que estao no servi<;:o há mais tempo. No grupo, a seguinte fala foi feita por Selma:

entanto, marcam também a contradi<;:ao posta pela


amplia<;:ao da participa<;:ao familiar, por meio das dificul-
o grupo que euftzia com aSter [profissionalJfti meio
que se perdendo, porque ou eu fUgia ou ela fUgia, as
dades de compreensao e de articula<;:ao com o restante vezes ninguém podia, e isso fiz com que as pessoas se
da equipe, e demarcam o processo da difícil trajetória afastassem.

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Percebe-se, pela fala, que o modo de organizar o Eu acho que existe, existem dentro da área de Saúde
grupo está inerentemente voltado para a necessidade Mental acho que existem dois nichos de conhecimento
queftram, assim, capazes de dar uma resposta muito
do trabalhador, Ao dizer que ou um ou outro 'fugia' da
grande, em termos de ciencia mesmo, que é a medicina
organiza<;:ao e desenvolvimento do grupo, há implícita a e apsicologia, né? Entáo, por exemplo, quando eu vou
condi<;:ao de um grupo que funciona pela necessidade ou trabalhar, que eu venho trabalhar aqui no CAPS, na
disponibilidade da trabalhadora em desenvolve-lo, No minha leitura, no meu olhar, eu tenho que recorrer as
leituras da medicina, da psicologia, né?Alguma coisa
entanto, a atribui<;:ao, pela trabalhadora, das causas de
relacionada a Medicina e a Psicologia pra construir o
naofuncionamento deste grupo foi dada afalta de envol- meu dia-a-dia aqui.
vimento dos familiares, Esta estrutura<;:ao delineia urna
organiza<;:ao dos grupos, no CAPS, ainda precária e focada Essa fala mostra o quanto algumas práticas profis-
no modo autoritário de avalia<;:ao do funcionamento, sionais, que sao mais recentes na área da Saúde Mental,
Muitas vezes, na tentativa de estabelecer urna ainda se organizam em meio a urna indefini<;:ao de
metodologia mais estruturada na organiza<;:ao de metodologia e utilizam os recursos de profissóes que
determinado grupo, buscaram-se profissionais de aparentam possuir metodologia mais estruturada. Essas
área considerada, pelos trabalhadores, como melhor práticas também refletem a dificuldade de estabelecer
definida quanto aos processos de trabalho, como é o método de trabalho dentro do CAPS e colocam as a<;:óes
caso da referencia a necessidade de um profissional
em Saúde Mental ainda muito focadas nos recursos
de psicologia nos grupos de família, Porém, nao há
psicológicos e médicos para o tratamento.
clareza na justificativa para essa demanda, como bem
Pode-se destacar a discussao de Romagnoli (2006)
se percebe nas palavras de Selma:
a respeito das desestabiliza<;:óes das 'certezas' de cada
disciplina nas rela<;:óes interprofissionais:
Eu queria ver, gente, se náo tinha como a gente reor-
ganizar esse grupo deftmília e, principalmente, para
que tenha um psicólogo no grupo, tá? É... eu acho que Focados somente na produráo de conhecimentos e na
é super interessante, né, a participaráo do psicólogo transftrmaráo da realidade a partir de nossa 0práo
também nesse grupo. teórica, podemos estar exercendo jitnráes normativas
e reguladoras. (p. 8).

Essa demanda, que parece surgir em fun<;:ao da


dificuldade de constitui<;:ao de práticas definidas para o As profissóes, segundo a autora, devem apropriar-
trabalho com o grupo de família, denota ser o reflexo se da zona de indetermina<;:ao do seu campo e de suas
da concep<;:ao que os trabalhadores do CAPS tem de incertezas e exercer urna 'intercessao com outros saberes',
que o exercício da psicologia está melhor definido e é redirecionando a rela<;:ao teoria-prática e possibilitando
mais estruturado. Inclusive, no grupo focal, os próprios a cria<;:ao de novas formas de interven<;:ao.
trabalhadores, ao refletirem sobre as rela<;:óes de equipe, No entanto, o que ficou marcado pelas falas dos
afirmaram o processo de constru<;:ao histórica na área profissionais do CAPS, como formas de intera<;:óes mul-
da Saúde Mental, em que a Medicina e a Psicologia tiprofissionais, é a rela<;:ao dominante do saber médico
transformaram-se em saberes que conseguiram se esta- e psicológico como garantia de 'certeza' do saber disci-
belecer e tornaram-se campos de reconhecimento pela plinar e dos novos saberes, sem possibilidades de trocas
sociedade, como no relato de Saulo: e de amplia<;:ao do saber já instituído.

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Assim, as a<;:óes se organizam pela lógica dos saberes credibilidade na sociedade. Pode-se argumentar, assim,
individualizados, pela pouca apropria<;:ao de novos sabe- que, no CAP5, o que ainda prevalece é o modo institu-
res e pela reprodu<;:ao de saberes já instituídos. A fala que cionalizado da prática profissional, é a organiza<;:ao de
se segue, de Saulo, expressa essa lógica de entendimento servi<;:os pela compreensao de que para tratar o sofrimento
da prática multiprofissional: psíquico é necessária a existencia de urna estrutura<;:ao de
técnicas e de procedimentos organizados pela lógica do
Existe, por exemplo, toda a questáo da jisiologia, da tratamento, focado na institucionaliza<;:ao do método,
cultura corporal; e ela éfimdamental no meu trabalho;
de modo que os saberes instituídos passam a ocupar um
e o meu trabalho é radicado nisso. Mas a gente náo
pode deixar de considerar que existe um conhecimen- espa<;:o determinante na aten<;:ao.
to, que ele é considerado socialmente mais relevante, Resta destacar, como forma de ilustrar o signifi-
talvez pelo tempo, pela pesquisa, e tudo mais; que é
cado apreendido das a<;:óes interprofissionais para os
da Psicologia e da Medicina, isso náo tem como negar.
[ ..} As vezes, acaba sendo complicado porque, por trabalhadores de CAP5, as argumenta<;:óes de Romagnoli
exemplo, eu náo vejo essas pessoas, esses projissionais (2006), que assinala a dificuldade dos profissionais de
médicos epsicólogos, por exemplo, preocupados com o construírem atitudes que sejam mais libertas do modo
conhecimento que éproduzidopela educaráoflsica ou
de trabalho e que elege a padroniza<;:ao das categorias
pela arte, pra construir a prática deles. Mas eu vejo
uma necessidade nossa de estar buscando na Medicina profissionais como ideal de conduta e que está assenta-
e na Psicologia pra construir a nossa prática. do em um modelo tecnicista e padronizado típico das
rela<;:óes capitalistas. A multiprofissionalidade no CAP5
Essa fala foi expressa no grupo focal e se constituiu traz um modo de intera<;:ao dos trabalhadores típico da
um diálogo reflexivo, manifestando-se como processo de organiza<;:ao social posta e contraditório ao construto
conscientiza<;:ao. Diante das dificuldades com rela<;:ao a teórico e político da reforma.
organiza<;:ao de determinados grupos, fica clara a demanda Quando Basaglia e Gagllio (1991, p. 29-30) argu-
pelo saber da Psicologia na orienta<;:ao das a<;:óes, tradu- mentavam que a Psiquiatria nao deu conta de realizar o
zindo um modo de constitui<;:ao dos servi<;:os ainda muito seu trabalho com base na promessa de tratamento e cura-
calcado em um modelo já pronto e estabelecido e pouco pois 'postulava urna cura improvável e impossível', e
criativo no processo de inova<;:ao e aquisi<;:ao de novos necessitou, portanto, de rever seu conceitual teórico e re-
saberes na prática da clínica da Reforma Psiquiátrica. correr a outros saberes como a Psicologia e a Sociologia-
Coloca-se em questao o modelo proposto pela políti- fizeram-na criticando o fato de esses novos saberes esta-
ca da Reforma e a forma<;:ao academica dos profissionais, rem, ainda, muito focados 'na rela<;:ao curante-curado,
pois sao distantes e indicam propostas de atua<;:óes díspa- no universo da doen<;:a, no universo da cura, na socie-
res. Exigem-se dos trabalhadores inova<;:óes, urna postura dade patogenica e nos remédios socializantes', ou seja,
teórica e política questionadora dos saberes já instituídos, representando ainda 'regras de vida coletiva em um mi-
mas nao se forma trabalhadores nessa diretriz, nem por crocosmo institucional'. Para os autores, o abarcamento
parte das universidades e nem por parte das capacita<;:óes de novos saberes na prática em Saúde Mental sugere
feitas pelo Poder Público. Isso que gera a dificuldade na as possibilidades de inova<;:óes e a amplia<;:ao das a<;:óes
atua<;:ao, deixando as profissóes menos instrumentadas para além do servi<;:o institucionalizado, a<;:óes estas que
para o trabalho na Saúde Mental, na perspectiva da Re- se constituam de sujeitos entre sujeitos, em um campo
forma, e permitindo a mera reprodu<;:ao dos saberes pela psicossocial. Com essa perspectiva, seria necessário trans-

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formar o imaginário social dos trabalhadores, porém pleto. Assim, o foco acaba fieando centrado nas a<;:óes, na
tal transforma<;:ao mostra-se impossibilitada diante das organiza<;:ao interna dos servi<;:os e das atividades propostas,
deficiencias da forma<;:ao academica e da própria vivencia com pouea amplia<;:ao para os espa<;:os extramuros dos CArs,
histórico-social dos trabalhadores, pois ainda espera-se a remissao dos sintomas.
Há, entre os profissionais, falas que ressaltam o Na estrutura<;:ao das práticas, o foco no serVl<;:O
papel dos novos saberes na prática em Saúde Mental sugere o comprometimento da equipe de trabalhadores
como recursos promotores de reabilita<;:ao psicossociaL em se constituírem resolutivos para a minimiza<;:ao do

Porém, o conteúdo das falas é contraditório e denota a sofrimento psíquico e em nao se conceberem como

valoriza<;:ao do método de trabalho instituído e as difi- espa<;:os constituídos sem métodos e sem diretrizes.

culdades da equipe de extrapolar o ámbito do modelo Denotam ainda urna forma de agir que contrapóe po-

biológico, como na fala de Marta: sicionamentos de alguns grupos contrários a reforma,


argumentando que o que Basaglia defendia como foco
[..} a química do cérebro para quem está psicótico, os da Reforma - por "entre parenteses a clínica" - seria
psicóticos maisgraves écomo seftsse um... nao uma base, um descompromisso com o tratamento do sujeito. Pelo
mas algo que precisa ter para voce poder trabalhar o
contrário, o que foi percebido nas falas dos trabalhadores
resto, o resto que eu chamo, que é apsicologia, a terapia
ocupacional todo o resto é tao importante quanto, para do CAPS é a necessidade constante de se organizarem
a reinserrao social para a reabilitarao, para ele se tornar sem perderem o seu papel, como servi<;:o que se propóe
de novo um ser humano completo, mas se a química a tratar do sujeito que sofre psiquicamente.
do cérebro nao estiver zerada ele nao consegue ft-zer
Porém, essa preocupa<;:ao da equipe transforma o
psicoterapia, ele nao consegueft-zer terapia ocupacional
ele fica totalmente disfuncionaL Entao, é por isso que tratamento exclusivamente restrito ao próprio servi<;:o e
eu chamo isso de base, mas nao quer dizer que a base é embasado em estruturas definidas de saber, orientadas
mais importante que o resto, é apenas um pré-requisito para a elimina<;:ao ou ameniza<;:ao dos sintomas, até
para ele poder aproveitar o resto do tratamento.
porque os profissionais, apesar do modelo proposto, nao
foram formados para a nova forma de atua<;:ao defendida
Percebe-se, por essa fala que emergiu durante o grupo pela reforma e, consequentemente, nao conseguiram
focal, o quanto a aten<;:ao ainda é centrada no tratamento extrapolar ou questionar toda a estrutura<;:ao social no
e na remissao dos sintomas como pré-requisito para a am- ámbito das categorias profissionais.
plia<;:áo a um campo psicossocial menos restrito, e o quanto Ressalta-se, nessa percep<;:ao, o argumento de Costa-
os outros saberes ficam de retaguarda. Essa fala, emitida Rosa, Luzio e Yasui (2003), que afirmam a necessidade
por urna profissional da área médica e acolhida pelos de a clínica e a Reforma Psiquiátrica constituírem-se
outros profissionais, representa o retrato de processos de como rela<;:óes necessariamente tensas, de modo que
trabalho que se baseiam nos saberes já instituídos, os quais buscar resolve-Ias seria pender para um ou outro lado,
se constituem hierarquicamente saberes da Medicina em ou seja, seria apenas um movimento social político ou
primeiro plano. O 'resto', que é a amplia<;:áo dos saberes, está apenas urna forma de oferta de servi<;:os que se propóe
subjugado a um tratamento biológico institucionalizado, a a possibilitar a adapta<;:ao dos sujeitos que sofrem, por
consequente remissao dos sintomas para o sujeito 'tornar-se meio da elimina<;:ao e manejo dos sintomas. Talvez, o que
de novo um ser humano completo', como se a existencia tem se configurado deficitário no CAPS é a compreensao
dos sintomas o retirasse da condi<;:ao de ser humano com- da reforma como movimento social político que exige

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formas de tratamento sem destituir dos sujeitos a sub- superar a tradi<;:ao técnico-biológica, sem abandoná-Ia
jetividade, pois, a partir do momento em que a reforma em prol de urna liberdade leviana e de estabelecer urna
tornou-se urna política de estado, afastou-se considera- contratualidade na atua<;:ao multiprofissional que nao
velmente do movimento social e colocou os CAPS como signifique um abandono de seu saber.
servi<;:os de atendimento a urna diretriz e de apresenta<;:ao Os significados apreendidos e destacados neste estudo
resultados. Dessa forma, poderá dirimir toda tensao que indicam significados que remetem a questóes universais re-
deve haver entre a reforma como movimento político e ferentes a Saúde Mental e a interlocu<;:áo com o sofrimento
social e a reforma como clínica e tratamento. psíquico. Trazem-se a tona reflexóes quanto a contradi<;:áo
posta por um projeto que se manifesta com caráter de
denúncia, com características de mobiliza<;:óes sociais e
de reivindica<;:óes de amplia<;:ao da participa<;:ao popular
CONSIDERA<;ÓES FINAIS e de direitos humanos, mas que, no decorrer do processo
histórico de evolu<;:áo da proposta, tornou-se urna política
Apesar dos avan<;:os e da apropria<;:ao do campo de estado e colocou em pauta dois polos de confronta<;:ao:
teórico-conceitual da reforma pelos trabalhadores de
as concep<;:óes advindas do movimento social (que reúne
CAPS, o modelo de aten<;:ao que tem se construído neste
intelectuais, militantes, usuários e familiares) e o aparato
servi<;:o ainda está permeado de a<;:óes limitadas a ativi-
institucional do Estado (que determina regras, contrata ser-
dades no interior da unidade, a urna lógica de atua<;:ao
vidores, impóe normas e busca o controle social). Ressalta-
multiprofissional ainda assentada na a<;:ao individual das
se que os avan<;:os da reforma, atualmente constituídos e
categorias profissionais e na pouca inova<;:ao com o abar-
assentados em urna política de estado, necessitam de novas
camento dos novos saberes, na institucionaliza<;:ao do
confronta<;:óes, de realce das contradi<;:óes emergentes desse
servi<;:o e foco na elimina<;:ao e manejo dos sintomas.
novo modelo, para prosseguir no seu percurso de constru-
Ressalta-se, nesta análise, a distancia entre o plano real
<;:ao democrática da aten<;:ao ao sofrimento psíquico e de
e o ideal (teórico/político) da reforma, a falta de instrumen-
amplia<;:ao de participa<;:ao social do sujeito que sofre.
taliza<;:ao do trabalhador, decorrente de sua própria condi-
<;:ao histórico-social, e as deficiencias do campo jurídico/
institucional, que propóe a execu<;:ao de urna política com
diretrizes inovadoras. Porém, nao se consegue instrumen- NOTAS
talizar os executores desta política: os trabalhadores.
Compreender em que alicerces o movimento social CAPS I - capacidade operacional para municípios
se transformou em política de estado e em que bases essa de até 70 mil habitantes, funcionando das 8 as 18h, em
política se torna condi<;:ao real de execu<;:ao e de trans- cinco dias úteis;
forma<;:ao técnico-assistencial e social, é fundamental CAPS II - capacidade operacional para municípios
para a apreensao do processo de Reforma Psiquiátrica com mais de 70 mil habitantes, funcionando das 8 as
no Brasil. Tal questionamento é a mola propulsora para 18h, em cinco dias úteis;
a avalia<;:ao do processo de reforma da aten<;:ao; é o eixo CAPS III - capacidade operacional para municípios
que poderá nortear a compreensao dos conflitos trava- com mais de 200 mil habitantes, funcionando diaria-
dos nas equipes que se encontram diante do desafio de mente 24 horas, inclusive aos finais de semana;

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CAPS i - servi<;:o para atendimento de crian<;:as, com BASAGLlA, E; GAGLLlO, G, Voca<;:ao terapeutica e luta de
transtorno mental de moderado a grave, constituindo-se classes: para urna análise crítica do modelo italiano, In:
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da, Brasília, DF, Ministério da saúde, 2004A
nidpios com popula<;:ao superior a 70 mil habitantes
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_ _ _ _, Ministério da Saúde, Secretaria de aten<;:ao
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