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Wetzel C, Kantorski LP, Souza J

CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL: TRAJETÓRIA,


ORGANIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO

CENTER OF PSYCHOSOCIAL CARE: PATH, ORGANIZATION AND THE


OPERATION

CENTRO DE ATENCIÓN PSICOSOCIAL: CAMINO, ORGANIZACIÓN Y


FUNCIONAMIENTO

Christine WetzelI
Luciane Prado KantorskiII
Jacquelie de SouzaIII

RESUMO: Este artigo objetiva descrever a trajetória, organização e funcionamento de um Centro de Atenção Psicossocial
(CAPS). Utiliza-se a abordagem qualitativa da avaliação de quarta geração, mediante observação de campo desenvolvida
em 2003 e 2004. Foram realizadas 468 horas de observação e entrevistas com usuários, equipe e familiares. As questões
decorrentes do processo foram agrupadas nos seguintes núcleos temáticos: histórico do serviço – 1992 a 2002,
compreendendo a trajetória desde o início informal das atividades até o efetivo cadastramento do serviço e a organização
do CAPS. Conclui-se enfatizando fatores internos e externos que contribuem e limitam para que o serviço se constitua
como substitutivo ao hospital psiquiátrico.
Palavras-chave: Avaliação; saúde mental; atenção psicossocial; enfermagem.

ABSTRACT
ABSTRACT:: This article describes the path, organization and the operation of a Center of Psychosocial Care (CAPS). The
qualitative approach of the forth generation evaluation is used, with field observations and interviews developed along 14
months and totaling 468 hours with the team, users, and family members, in 2003 and 2004. The issues generated by the
process were grouped in the following thematic nuclei: history of the service - 1992 to 2002, for the understanding of its
path from the early informal beginning of its operations to its effective structuring, registering, and organization. Finally,
there is emphasis on internal and external factors that propel and limit the service toward the replacement of the psychiatric
hospital.
Keywords: Evaluation; mental health; psychosocial care; nursing.

RESUMEN: Este artículo intenta describir el camino, organización y el funcionamiento de un Centro de Atención
Psicosocial (CAPS). Se usa el enfoque cualitativo de la evaluación de cuarta generación, observación de campo
desarrollada en 2003 y 2004, en Pelotas – RS – Brasil. Fueron cumplidas 468 horas de observación y entrevistas con
equipo, usuarios y familiares. Las questiones que emergieron en el proceso fueron agrupadas en los siguientes núcleos
temáticos: histórico del servicio - 1992 a 2002, comprendendo el camino desde el principio informal de las actividades
hasta el efectivo registro del servicio y la organización del CAPS. Se concluye enfatizando factores interiores y exteriores
que contribuyen y limitan para que el servicio substituya el hospital psiquiátrico.
Palabras Clave: Evaluación; salud mental, atenciónpsicosocial; enfermería.

INTRODUÇÃO
A Reforma Psiquiátrica Brasileira, atualmente, ma de assistência no mundo todo, ela permanece
na sua vertente assistencial, é marcada pela implan- hegemônica e a sua lógica entranhada nas práticas
tação de serviços substitutivos ao hospital psiquiátri- (mesmo em instituições abertas).
co. Vários estudos comprovam a incapacidade que o As transformações propostas pelo movimento
hospital psiquiátrico e o modelo asilar de atenção à de reforma psiquiátrica tiveram maior visibilidade no
loucura têm de ser um espaço de tratamento e, além Brasil a partir da década de 1980. Esse movimento
disso, seu mandato como espaço de exclusão aniqui- foi protagonizado pelos trabalhadores de saúde
lam as subjetividades e geram violência1-5. Apesar das mental, tendo incluído diferentes atores: usuários,
críticas e de o movimento social questionar essa for- famílias, políticos, donos de hospitais psiquiátricos,

I
Docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Enfermagem, Departamento de Assistência e Orientação Profissional. E-mail:
cwetzel@ibest.com.br.
II
Docente da Universidade Federal de Pelotas – Faculdade de Enfermagem e Obstetrícia – Departamento de Enfermagem.
III
Mestranda da Universidade de São Paulo – Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto – Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências
Humanas.

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Centro de Atenção Psicossocial

artistas, entre outros, e proporcionou várias mudan- Este estudo tem como objetivo descrever a
ças nas políticas, na legislação e na organização da trajetória, organização e funcionamento de um
atenção em saúde mental, preconizando a CAPS do município de Pelotas - Rio Grande do Sul.
necessidade de equipamentos múltiplos para atender Sua relevância está na possibilidade de verificar como
a complexidade do sofrimento psíquico. o movimento mais amplo da Reforma Psiquiátrica
Entretanto, os serviços substitutivos ainda não tem se desdobrado em experiências concretas de
se consolidaram como tais, uma vez que o são mais transformação no campo assistência em saúde
em termos potenciais do que em termos efetivos, pois mental, como resultado de iniciativas de
não lograram a substituição do sistema asilar no país. trabalhadores, usuários e familiares, na criação de
Isso não diminui a sua importância, principalmente serviços e na organização de estratégias de cuidado
como possibilidade concreta de superação do modelo menos burocráticas (uma vez que a experiência
manicomial, o que todos os movimentos anteriores relatada não partiu da iniciativa e diretrizes do
não conseguiram construir. município), mantendo o controle do processo de
trabalho ao resolver, de modo pontual e criativo, os
O movimento da Reforma Psiquiátrica Brasilei-
problemas do cotidiano.
ra busca a transformação do modelo hospitalocên-
trico de atenção, substituindo-o por uma rede de aten- Há necessidade de conhecer as práticas
ção integral à saúde mental. As modalidades de aten- cotidianas dos CAPS visando problematizá-las, para
dimento típicas do modo psicossocial são os Centros que se possa de fato promover a superação das
de Atenção Psicossocial (CAPS), os Ambulatórios de práticas asilares. Ao mesmo tempo em que alguns
Saúde Mental, as ações de saúde mental na Atenção avanços foram conquistados no contexto brasileiro,
Básica e setores de tratamento de saúde mental inse- este fato por si só não exclui a possibilidade de
ridos em hospitais gerais. reproduções cotidianas de práticas de exclusão9.
Os CAPS surgem no Brasil a partir de 1986 ten-
do como fontes inspiradoras as estruturas de hospi- REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO
tal-dia que surgiram na França na década de 1940; as
experiências das comunidades terapêuticas de Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa,
Maxwell Jones, na Escócia; os Centros de Saúde Men- operacionalizado através da avaliação de quarta
tal, nos anos 1960, nos Estados Unidos; os Centros de geração, desenvolvida por Guba e Lincoln10.
Saúde Mental da Itália, nos anos 1970/19806. A avaliação de quarta geração propõe, como
Os CAPS são formalmente definidos pela Por- alternativa às avaliações tradicionais, uma avaliação
taria nº 224 de 29 de janeiro de 1992, do Ministério responsiva baseada em referencial construtivista e
da Saúde, como unidades locais/regionalizadas, que que parte da realização de uma etnografia prévia no
contam com uma população adscrita definida pelo campo, incorporando as reivindicações,
nível local e que oferecem atendimento de cuida- preocupações e questões dos stakeholders (usuários e
dos intermediários entre o regime ambulatorial e a vítimas do processo avaliativo) que servem de foco
internação hospitalar, em um ou dois turnos de qua- organizacional (a base para determinar que
tro horas, por equipe multiprofissional7. A Portaria informação seja necessária)10. A literatura utiliza o
nº 336, de 19 de fevereiro de 2002, estabelece que termo em inglês stakeholders para designar pessoas
os CAPS passem a ser definidos por ordem crescen- com características comuns que têm algum interesse
te de porte/complexidade e abrangência na performance, no produto ou no impacto do objeto
populacional, constituindo-se em CAPS I, CAPS da avaliação10-15.
II e CAPS III, modalidades que deverão estar capa- A coleta de dados foi desenvolvida no período
citadas para realizar, prioritariamente, o atendimen- de 2003 e 2004 e o local do estudo foi o CAPS
to de pacientes com transtornos mentais severos e Castelo, no município de Pelotas – RS. As técnicas
persistentes em sua área territorial7. utilizadas foram observação e entrevistas.
Esses serviços se encontram incorporados como A seleção dos entrevistados foi realizada a partir
política pública de saúde mental de referência para da definição dos grupos de interesse incluídos no
todo o país e se inscrevem em um contexto que estudo: equipe, usuários e familiares. Na equipe,
pretende desenvolver novas tecnologias em saúde foram inseridos os que a compunham no momento
mental que respeitem o usuário no seu direito de em que se iniciou a pesquisa, totalizando nove
cidadania e que se diferenciem do modelo profissionais. Foram entrevistados 10 usuários,
manicomial excludente dominante8. selecionados seguindo os seguintes critérios de

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inclusão: que freqüentassem o serviço há mais de UBS, no bairro Simões Lopes, desenvolvendo um
um ano e que tivessem boas condições de comuni- projeto de saúde mental comunitário. Os
cação. Também foram entrevistados 10 familiares denominados egressos do hospital psiquiátrico eram
tendo como critério de inclusão a sua inserção e vín- atendidos em grupo, dentro da Unidade e, por terem
culo com o serviço. sofrido as conseqüências da institucionalização, eram
As observações de campo foram desenvolvidas pessoas isoladas, com rotinas empobrecidas, sem
ao longo 1 ano e 2 meses e totalizaram 468 horas. perspectivas.
Utilizou-se como forma de registro o diário de campo. Esse trabalho inicial não causou o resultado
Os dados apresentados são originados das esperado e os usuários continuavam tendo a doença,
observações e das entrevistas, compondo a análise a incapacidade e a exclusão como centrais nas suas
aqueles que remetem à história e organização do vidas. A falta de resolubilidade levou à necessidade
CAPS Castelo. Outra dimensão da pesquisa, que não de ampliação da proposta e de novos espaços para a
é objeto de análise neste artigo, incorporou o material efetivação de um cuidado integral. Assim, foram
coletado nas entrevistas, trazendo as demandas dos realizadas visitas domiciliares a pessoas com
stakeholders para a avaliação, sendo essas analisadas transtorno mental da comunidade e suas famílias,
em uma publicação posterior. As questões tentando mobilizá-las para a criação de um serviço
decorrentes da análise foram agrupadas em núcleos de saúde mental no bairro. Reuniões começaram a
temáticos e a descrição do serviço foi subdividida ser realizadas na Casa de Cultura João Simões Lopes
em dois momentos: histórico do serviço – 1992 a Neto, um prédio histórico do bairro mais conhecido
2002 - compreendendo a trajetória desde o início como Castelo17. Em novembro de 1993, foi cedido,
informal das atividades do serviço até o efetivo nesse local, um espaço para a primeira oficina de
cadastramento e a organização do CAPS Castelo. criação coletiva dos portadores de sofrimento
Na redação dos depoimentos, são adotadas as se- psíquico, pelo SUS, na cidade18.
guintes convenções a fim de identificar os sujeitos: A equipe realizava a oficina uma vez por semana
entrevistado, seu nº, equipe (E1E), entrevistado, seu e desenvolvia o restante da jornada na UBS, onde
nº, usuários (E1U); entrevistado seu nº, familiar (E1F). era realizado um trabalho dentro de um modelo
Em relação aos procedimentos éticos, o proje- preventivista, com grupos, visitas domiciliares,
to do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em puericultura, entre outros. Nessa época, como em
Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Pre- Castelo funcionavam outros departamentos, o
to da Universidade de São Paulo e todos os sujeitos serviço de saúde mental ocupava apenas uma das
assinaram o termo de consentimento, conforme es- antigas salas de banho. À medida que o trabalho foi
pecificado na Resolução nº 196/96, do Conselho ampliado, a equipe começou a se desligar da Unidade,
Nacional de Saúde16. trabalhando de forma mais integral na proposta que
surgia. Aos poucos, conseguiu negociar a utilização
RESULTADOS E DISCUSSÃO de outras salas de Castelo e, posteriormente,
mediante um decreto municipal, o prédio foi cedido
Histórico do serviço – 1992 a 2002 integralmente à Secretaria Municipal de Saúde para
Pelotas é uma cidade com forte tradição funcionamento do serviço.
hospitalocêntrica no campo da saúde mental. Por O serviço sempre manteve a tradição de
mais de 50 anos, os cuidados foram prestados quase organização de festas, passeios, churrascos
exclusivamente por dois hospitais psiquiátricos tipicamente gaúchos. A organização dos eventos
privados conveniados ao SUS, com 200 leitos cada colocava lado a lado usuários, profissionais e
um, tendo um deles fechado suas portas em janeiro familiares:
de 2003. Até 1992 o atendimento era realizado A gente sempre tinha festa aqui. E passeios, que a
nesses hospitais e, paralelamente, psiquiatras e gente fazia muito. O churrasquinho que a gente fazia,
psicólogos realizavam atendimentos ambulatoriais em os almoços saiam bem seguido. (E9U)
Unidades Básicas de Saúde (UBS). Havia poucas A organização e busca de recursos necessários
condições concretas de tensionamento da geravam um espaço muito rico de participação. O
hegemonia do modelo vigente. grupo se organizava em comissões, discutia nas as-
Os profissionais que deram início ao trabalho sembléias, ocorrendo mobilização e envolvimento
do Castelo - psiquiatra, assistente social, psicólogo de todos, intensificando contatos e trocas e enrique-
e enfermeiro - exerciam as suas atividades em uma cendo a qualidade da convivência.

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Centro de Atenção Psicossocial

Entre as festas, destaca-se o baile de aniversário de atendimento psicossocial cuja existência se jus-
de Castelo, o baile de carnaval, a festa de Natal, a tifica pelo desejo e empenho de substituir, com van-
festa dos aniversariantes do mês e datas comemorati- tagens éticas e clínicas, o circuito emergência-
vas. A realização de festas é comum em instituições internação-ambulatório21. O conceito de território
psiquiátricas, mas, em Castelo, elas eram de verdade. designa o extra-institucional, marcado por limites
O sentimento de todos que delas participaram é que geográficos, culturais e socioeconômicos.
eram imperdíveis, e isso não tinha nada a ver com O acolhimento passou a ser instituído como a
uma grande infra-estrutura. Pelo contrário, eram re- forma de acesso ao CAPS, que passou a ser centro
alizadas praticamente sem recursos financeiros, usan- de referência distrital em saúde mental. O
do-se a criatividade e a capacidade de improvisação. encaminhamento para o hospital psiquiátrico passou
Não eram festas para os usuários, em que a equipe era a ser evitado de todas as formas e, em alguns casos
expectadora, mas uma festa para todos. Procurava-se agudos, a equipe articulada com a família atendia
superar aquele receio, muito enfatizado pela psiquia- em uma espécie de internação domiciliar. Apesar
tria tradicional, de que é necessário manter um disso, como o sistema não tinha (e ainda não tem
distanciamento para que a relação seja terapêutica. atualmente) nenhum local próprio para internação,
O que possibilitava a relação terapêutica, nesse caso, muitos casos ainda eram atendidos nos hospitais
era a sua construção no cotidiano, em que não só o psiquiátricos da cidade, sem nenhuma articulação
usuário era uma pessoa, mas os trabalhadores também com as equipes de saúde mental.
o eram. Criavam-se identidades, fundamentais para
O acolhimento no CAPS Castelo garantia o
o vínculo e a relação de ajuda.
acesso universal, resolutivo e humanizado, confir-
Esses eventos constituíam-se em dispositivos mando a lógica do trabalho interdisciplinar, com a
capazes de favorecer uma nova abertura para as equipe lançando mão de toda uma tecnologia
múltiplas possibilidades existenciais que habitam o assistencial voltada para a escuta e formação do vín-
homem. Ajudando a trazer à tona algo que estava culo e que, no encaminhamento das intervenções
encoberto pelo modo cotidiano e repetitivo das inter- terapêuticas, no encontro/relação entre o profissio-
relações, colocando em xeque valores, percepções, nal e o usuário, a autonomia do usuário foi possibili-
princípios, divisões de papel, enfim, o lugar de cada tada no momento da escolha das intervenções e do
pessoa no funcionamento das instituições19. contrato de cuidados21.
Também se institucionalizavam no serviço A estratégia de acolhimento não se resumia a
mecanismos voltados para a ênfase e o estímulo à uma forma de acesso. O acolhimento às demandas e
participação e controle social, coerente com os necessidades dos usuários e familiares era exercitado
princípios do SUS, sendo o principal o Conselho no dia-a-dia:
Gestor Local.
E falando também da separação brusca que teve com
No Brasil, em decorrência de uma série de esse acidente de trabalho (o filho sofreu um acidente
conflitos e jogos de interesse no campo da saúde de trabalho, vindo a falecer), nos primeiros dias de-
mental, vive-se hoje o desafio, continuado e pois, quando ele (usuário) ia ao Castelo, eles iam até
persistente, de se fazer cumprir as leis de proteção ao em casa e o traziam. Eu o deixava a tarde toda lá,
portador de sofrimento psíquico, o que exige uma eles (equipe) nunca me bateram a porta, vinham à
permanente e comprometida mobilização na minha casa. Sei que eles passam dificuldade para fazer
esse trabalho técnico. (E1F)
garantia dos direitos do cidadão20.
O trabalho realizado em Castelo foi
Nessa direção, a restituição da cidadania é um
reconhecido publicamente como modelar e, já em
desafio amplo no país para a conquista e garantia de
2001, o Ministério da Saúde concedeu a Pelotas o
manutenção de direitos. No campo da saúde mental
prêmio David Capistrano, destacando avanços da
ela também é técnica, pois se torna central quando se
reforma psiquiátrica no município.
defende a mudança de paradigma, quando se tira o
foco da doença e se estende o campo de intervenções Em 2002, já com seis CAPS em funcionamen-
para a existência-sofrimento das pessoas. to na cidade, três deles, entre os quais Castelo, fo-
ram cadastrados junto ao Ministério da Saúde como
A política de regionalização na saúde mental
CAPS II.
foi uma das ações mais estratégicas para a proposta
de mudança de modelo, pois os CAPS devem ser Organização do CAPS Castelo
serviços que tomam o universo pleno de seu território O serviço caracteriza-se como um serviço aber-
como clientela potencial, fazendo parte de uma rede to, funcionando de segunda a sexta-feira, nos tur-

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nos da manhã e tarde. A equipe, no final da coleta ção do processo de trabalho e essa formação lhes
de dados, era composta por dois psiquiatras, dois confere certa superioridade em relação aos trabalha-
enfermeiros, três psicólogos, uma assistente social, dores de nível médio. Mas o pessoal de apoio não é
um profissional de artes, uma professora de educação totalmente isento de poder. Esse grupo opera no es-
física, uma professora de música, três auxiliares de paço denominado de autogoverno23, em que o pro-
enfermagem, uma auxiliar administrativa, uma fissional de saúde em seu trabalho, vivo instituinte,
educadora social (em desvio de função, atuando pode tanto fazer uso do que está dado quanto, em
como recepcionista), duas funcionárias da cozinha, certa medida, exercer, com alguma autonomia, a
uma funcionária da limpeza. transformação daquilo que está dado.
As seguintes atividades são desenvolvidas no O pessoal de apoio, permanecendo fora das
serviço: grupo de familiares, grupo de usuários e fa- salas de atendimentos, espaço onde as práticas estão
miliares, grupo de medicação (divididos de acordo mais cristalizadas por uma série de técnicas e saberes
com o tipo de medicação utilizada), grupo de con- instituídos, permanece em uma região em que as
versação, grupo de mulheres, grupo de educação para práticas e relações são mais abertas, em que pode
a saúde, grupo de expressão, grupo de prevenção de exercer um grau elevado de autonomia.
recaída, oficina de pintura artística, oficina de pin- Um exemplo é a recepção que, sendo a porta
tura em madeira, oficinas (de fabricação em madei- de entrada do serviço, tem um papel estratégico na
ra, de costura, de culinária, rádio, orientação indi- organização do cuidado. É uma espécie de espaço
vidualizada de pintura, momento cultural), visita de transição entre o estar dentro e estar fora do
domiciliar, assembléia, Conselho Gestor Local. serviço, e a abertura e receptividade do profissional
O serviço se localiza em uma casa que é que lá trabalha pode ser um dos determinantes do
patrimônio histórico da cidade, o Castelo Simões nível de abertura do próprio serviço. A profissional
Lopes, assim distribuído: primeiro piso: recepção; sala que atua nesse espaço tem a possibilidade de receber
de reuniões, na qual os grupos atuam; salão; sala de e tratar bem as pessoas, de identificar um usuário ou
televisão; quatro banheiros; sala de costura; um ate- familiar que esteja precisando de atendimento mais
liê; três salas para atendimento; cozinha; refeitório; imediato e facilitar o seu acesso à equipe, de gerar
sala de enfermagem; sacada; segundo piso: três salas informações para o restante da equipe que possam
para atividades em madeira; uma sala para depósito servir para a delimitação de estratégias de cuidado,
de materiais; um banheiro; dois terraços. Há um pá- entre outras.
tio amplo e arborizado, no qual se realizam várias ati- A inserção dos profissionais da arte ocorreu,
vidades como jogos de vôlei, futebol e exercícios físi- inicialmente, através de estágios desenvolvidos por
cos ou onde, com freqüência, os usuários se reúnem acadêmicos do curso de artes de uma universidade
em uma roda de chimarrão. O espaço é adequado em local. Alguns alunos permaneceram na saúde mental
termos das suas dimensões, porém, percebe-se que depois da graduação, realizando trabalho voluntário.
existe um abandono do prédio, ficando evidente para O reconhecimento do trabalho desenvolvido fez com
quem lá chega a necessidade de uma reforma geral:
que, no momento em que o grupo de voluntários
instalações elétricas e hidráulicas precárias, janelas
reivindicou a sua contratação, trabalhadores,
com vidros quebrados, piso apodrecido, pintura des-
usuários e familiares saíssem em defesa de seu pedido.
cascando. As poucas adequações foram realizadas de
Foram contratados em regime de contrato
modo improvisado, sem respeitar a arquitetura origi-
emergencial e, posteriormente, foi realizado concurso
nal de prédio histórico.
público e as vagas foram estendidas para profissionais
As reuniões de equipe são semanais e dividem- da área de música e educação física.
se em dois momentos: em um primeiro se reúnem
A proposta de inserção desses profissionais ain-
apenas os profissionais com formação universitária
da tem limitações, como surge no seguinte relato:
- os técnicos; no segundo momento também parti-
cipam os trabalhadores de nível médio - o pessoal Eu acredito que a interdisciplinaridade não acontece
de apoio. ainda de fato. Eu vejo mais como multidisciplinar:
A divisão entre os profissionais de nível supe- vários saberes tentando fazer uma coisa, mas ainda
não existe essa troca. O meu trabalho, eu não conse-
rior universitário e o pessoal de apoio reproduz uma gui ainda trabalhar junto com outro profissional, nem
lógica de funcionamento de equipe bastante comum com um psiquiatra, nem com psicólogo. Tem profissi-
nas instituições de saúde. O pessoal com formação onal dentro do CAPS que nunca entrou na sala de
superior é aquele que detém um poder na delimita- artes. (E8E)

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Centro de Atenção Psicossocial

A prática de um trabalho em equipe é algo ain- da psiquiatria tradicional; a inserção da família e co-
da em construção na saúde em geral, pois se percebe munidade na proposta; e o vínculo e o acolhimento
as dificuldades de concretizá-la nos serviços. A for- como estratégias fundamentais no atendimento. Exis-
mação profissional na área de saúde, voltada para o te um relativo consenso em relação a essas questões
modelo biomédico e individualizante, faz com que entre os trabalhadores e isso propiciou, mesmo infor-
os diferentes profissionais, ao se inserirem no mer- malmente, a revelação de uma proposta clara dando
cado de trabalho e se depararem com a necessidade direção ao trabalho.
de um trabalho coletivo, em equipe, tenham inú-
meras dificuldades. REFERÊNCIAS
CONCLUSÃO 1. Szasz TS. A fabricação da loucura: um estudo
comparativo entre a inquisição e o movimento de
No grupo que deu início às atividades no CAPS saúde mental. 3a ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara;
1984.
Castelo, a identificação com o trabalho comunitário
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consiste em sua principal característica. A crítica alienismo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1991.
ao hospital psiquiátrico não emergiu apenas da 3. Foucault M. Microfísica do Poder. 10a ed. Rio de
construção/incorporação dos referenciais teóricos da Janeiro: Edições Graal; 1992.
reforma, mas, também, a partir do contato, na 4. Foucault M. História da loucura. 3ª ed. São Paulo:
comunidade, com o sofrimento das pessoas que Editora Perspectiva; 1993.
passaram por essa experiência. 5. Goffman E. Manicômios, prisões e conventos. 6a ed.
São Paulo: Editora Perspectiva; 1999.
Essa construção mediante a prática, fundamen- 6. Pitta AMF. Os Centros de Atenção Psicossocial:
tada nos referenciais teóricos, é rica em resultados. O espaço de reabilitação? J Bras Psiq. 1994; 43:647-54.
fato de as coisas não estarem prontas, predetermina- 7. Ministério da Saúde (Br). Legislação em saúde
das, propicia aos sujeitos um alto grau de autonomia mental 1990 – 2004. 5ª ed. Brasília (DF): Secretaria
e poder de intervenção local. Como na época não Executiva; 2004.
havia nenhuma ação estruturada, tudo o que foi sen- 8. Carvalho ALL, Amarante P. Avaliação de qualidade
do criado dava ao grupo a possibilidade de inovar, de dos novos serviços de saúde mental: em busca de novos
parâmetros. Saúde em Debate. 1996; 52:74-82.
serem pioneiros. Apesar de, nesse momento, as con-
9. Kantorski LP, Souza J, Willrich J Q et al. O cuidado
dições objetivas serem precárias, as condições subje- em saúde mental: um olhar a partir de documentos e
tivas – motivação, coesão dos participantes... – foram da observação participante. R Enferm UERJ. 2006;
fundamentais. A falta de recursos exigiu e possibili- 14:366-71.
tou também um envolvimento dos usuários e famili- 10. Guba EG, Lincoln YS. Fourth generation evaluation.
ares no funcionamento cotidiano do serviço. Newbury Park (USA): Sage Publications; 1989.
11. Guba EG, Lincoln YS. Effective evaluation. San
Contraditoriamente, a falta de uma diretriz mais
Francisco (Ca): Jossey-Bass Publishers; 1988.
ampla no município foi estratégica para que o grupo 12. Greene JC. Qualitative program evaluation:
se constituísse sujeito de transformação. Além disso, practice and promise. In: Denzin NK; Lincoln YS
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do sistema, tendo como responsabilidade o atendi- Oaks (USA): Sage Publications; 1994. p.530-44.
mento de uma demanda pequena e relativamente fixa 13. Lincoln YS, Guba EG. Naturalistic inquiry.
de usuários que anteriormente eram atendidos na Newbury Park (USA): Sage Publications; 1985.
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Nesse contexto, equipe, usuários e familiares 1997; 4:467-75.
conseguiram um maior controle do processo de tra- 15. Patton MQ. How to use qualitative methods in
balho, resolvendo, de modo pontual e criativo, os evaluation. Newbury Park (USA): Sage Publications;
problemas do cotidiano. As estratégias de organiza- 1987.
ção do serviço foram criadas no dia-a-dia, sem mui- 16. Ministério da Saúde (Br). Portaria nº 196/96. Dis-
tas normas e burocracia. põe sobre diretrizes e normas regulamentadoas de pes-
quisa com seres humanos. Brasília (DF): Conselho
O serviço foi constituído sem ser formalmente Nacional de Saúde; 1996.
um CAPS, mas tendo, na base do trabalho, muitas 17. Kantorski LP, Machado AT, Oliveira CA. Centro
das características que são preconizadas para esse tipo de Atenção Psicossocial: reiventando o cuidado em
de unidade: trabalho em equipe, identificada com a saúde mental. Texto & Contexto – Enfermagem. 2000;
proposta de trabalho comunitário, fora dos parâmetros 9(1):233-43.

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Wetzel C, Kantorski LP, Souza J

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20. Prandoni RFS, Padilha MICS, Spricigo JS. A 23. Merhy EE. Em busca do tempo perdido: a
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Recebido em: 07.05.2007


Aprovado em: 15.12.2007

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