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MEDITAÇÕES

CONCERNENTES
A PRIMEIRA FILOSOFIA
NAS QUAIS A EXISTÊNCIA DE DEUS E A DISTINÇÃO REAL
ENTREA ALMA E O CORPO DO HOMEM
SÃO DEMONSTRADAS
PriMEIRA MEDITAÇÃO!

Das Coisas que se Podem Colocar em Dúvida

|. Hã já algum tempo eu me aper- 2. Agora, pois, que meu espirito


cebi de que, desde méus primeiros está livre de todos os cuidados, e que
anos, recebera muitas falsas opiniões consegui um repouso assegurado numa
como verdadeiras, e de que aquilo que pacífica solidão, aplicar-me-ei seria-
depois eu fundei em princípios tão mal mente e com liberdade em destruir em
assegurados não podia ser senão mui geral todas as minhas antigas opiniões.
duvidoso e incerto; de modo que me Ora, não será necessário, para aican-
era necessário tentar seriamente, uma çar esse desígnio, provar que todas elas
vez em minha vida, desfazer-me de são falsas, o que talvez nunça levasse à
todas as opiniões a que até então dera cabo; mas, uma vez que a razão já me
crédito, é começar tudo novamente persuade de que não devo menos
desde os fundamentos, se quisesse esta- cuidadosamente impedir-me de dar
belecer algo de firme e de constante crédito às coisas que não são inteira-
nas ciências. Mas, parecendo-me ser mente certas e indubitáveis, do que às
muito grande essa empresa, aguardei que nos parecem manifestamente ser
stingir uma idade que fosse tão madu- falsas, o menor motivo de dúvida que
ra que não pudesse esperar outra após eu nelas encontrar bastará para me
ela, na qual eu estivesse mais apto para levar a rejeitar todas" 4, E, para isso,
esecutá-la; o que me fez diferila por não é necessário que examine cada
tão longo tempo que doravante acredi- uma em particular, o que seria um tra-
teria cometer uma falta se empregasse balho infinito; mas, visto que a ruína
ainda em deliberar o tempo que me dos alicerces carrega necessariamente
resta para agir. consigo todo o resto do edifício, dedi-
car-me-ei inicialmente aos principios
“* A primeira Meditação tem como peculiaridade sobre os quais todas as minhas antigas
o [xo de não se tratar aí de “estabelecer verdade
Eusesa, mas apenas de me desfazer desses antigos opiniões estavam apoiadas.
secura". (Sétimas Respostas.) Sus composição é 3. Tudo o que recebi, até presente-
a =eguinte:
4 $51:3:0 princípio da dúvida hiperbólica: mente, como o mais verdadeiro e segu-
B| 5$2-13: argumentos que estendem e radica- ro, aprendio dos sentidos ou pelos
iam a dúvida. É
(53): argumento dos erros dos
sentidos; "4 A dúvida assim posta em ação: a) distinguir-se-
[354-9); argumento do sonho; à da duvida vulgar pelo fato de ser engendrada não
(5$9-13); argumento que estende à por experiência, mas por uma decisão; b) será
dúvida ao valor objetivo das essén- “hiperbólica”, isto é, sistemática e generalizada; €)
cias matemáticas, em duas etapas: consistirá, pois. em tratar como falso o que & apenas
o Deus enganador; duvidoso, como sempre exnganador à que slguma
à Gênio Maligno: vez me enganou.
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sentidos: ora, experimentei algumas mente; que é com desígnio e propósito


vezes que esses sentidos eram engano- deliberado que estendo esta mão e que
sos, e é de prudência nunca se fiar a sinto: o que ocorre no sono não paré-
inteiramente em quem já nos enganou ce ser tão claro nem tão distinto quan-
uma vez! 8. to tudo isso. Mas, pensando cuidado-
4. Mas, ainda que os sentidos nos samente nisso, lembro-me de ter sido
enganem às vezes, no que se refere às muitas vezes enganado, quando dor-
coisas pouco sensíveis e muito distan- mia, por semelhantes ilusões. E, deten-
tes. encontramos talvez muitas outras, do-me neste pensamento, vejo 120
das quais não se pode razoavelmente manifestamente que não há quaisquer
duvidar, embora as conhecêssemos por indícios concludentes, nem marcas
intermédio deles: por exemplo, que eu assaz certas por onde se possa distin-
esteja aqui, sentado junto ao fogo, ves- guir nitidamente a vigília do sono, que
tido com um chambre, tendo este papel me sinto inteiramente pasmado: e meu
entre as mãos e outras coisas desta pasmo é tal que é quase capaz de me
natureza. E como poderia eu negar que persuadir de que estou dormindo,
estas mãos e este corpo sejam meus? A 6. Suponhamos, pois, agora, que
não ser, talvez, que eu me compare € estamos adormecidos e que todas essas
esses insensatos. cujo cérebro está de particularidades, a saber, que abrimos
tal modo perturbado e ofuscado pelos os olhos, que mexemos a cabeça, que
negros vapores da bile que constante- estendemos as mãos, e coisas seme-
mente asseguram que são reis quando lhantes, não passam de falsas ilusões: =
são muito pobres; que estão vestidos pensemos que talvez nossas mãos,
de ouro e de púrpura quando estão assim como todo o nosso corpo, não
inteiramente nus; ou imaginam ser são tais como os vemos. Todavia, &
cântaros ou ter um corpo de vidro. preciso ao menos confessar que as cor
Mas que? São loucos e eu não seria sas que nos são representadas durante
menos extravagante se me guiasse por O sono são como quadros e pinturas.
seus exemplos. que não podem ser formados senão a
5. Todavia. devo aqui considerar semelhança de algo real e verdadeiro: s
que sou homem! & e, por conseguinte, que assim, pelo menos, essas coisas
que tenho o costume de dormir e de gerais, a saber, olhos, cabeça, mãos &
representar, em meus sonhos, as mêes- todo o resto do corpo, não são coisas
mas coisas, ou algumas vezes menos imaginárias, mas verdadeiras e existen-
verossimeis, que esses insensatos em tes. Pois, na verdade, os pintores,
vigília. Quantas vezes ocorreu-me so- mesmo quando se empenham com p
nhar, durante a noite, que estava neste maior artifício em representar sereias =
lugar, que estava vestido, que estava sátiros por formas estranhas e extraos-
junto ao fogo, embora estivesse inteira- dinárias, não lhes podem, todavia, su»
mente nu dentro de meu lêito? Parece- buir formas e naturezas inteiramente
me agora que não é com olhos adorme- novas, mas apenas fazem certa mistura
cidos que contemplo este papel; que e composição dos membros de divers.
esta cabeça que eu mexo não está dor- sos animais; ou então, se porventura
15 Argumento-do erro do sentido, primeiro grau da
sua imaginação for assaz extravagante
dúvida. É insuficiente para nos fazer duvidar siste- para inventar algo de tão novo, que je
maticamente de nossas percepções sensíveis. mais tenhamos visto coisa semelhante,
Tá Aqui começa o argumento do sonho, segundo
grau da dúvida, que irá estendé-la a todo conheci e que assim sua obra nos represente
mento'sensível, ou pelo menos à seu conteúdo. uma coisa puramente fictícia e absolu
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tamente falsa, certamente ao menos as quadrado nunca terã mais do que qua-
cores com que eles a compõem devem tro lados; e não parece possível que
ser verdadeiras. verdades tão patentes possam ser sus-
7. E pela mesma razão, ainda que peitas de alguma falsidade ou incerte-
essas coisas gerais, a saber, olhos, za.
cabeça. mãos e outras semelhantes, 9. Todavia, há muito que tenho no
possam ser imaginárias. é preciso, meu espírito certa opinião!º de que hã
todavia, confessar que há coisas ainda um Deus que tudo pode e por quem fui
mais simples e mais universais, que criado e produzido tal como sou. Ora,
são verdadeiras e existentes; de cuja quem me poderá assegurar que esse
mistura, nem mais nem menos do que Deus não tenha feito com que não haja
da mistura de algumas cores verdadei- nenhuma terra, nenhum céu, nenhum
ras, são Tormadas todas essas imagens corpo extenso, nenhuma figura, nenhu-
das coisas que residem em nosso ma grandeza, nenhum lugar e que, não
pensamento. quer verdadeiras e reais, obstante, eu tenha os sentimentos de
quer fictícias e fantásticas. Desse gêne- todas essas coisas e que tudo isso não
ro de coisas é a natureza corpórea em me pareça existir de maneira diferente
geral, é sua extensão; juntamente com daquela que eu vejo? E, mesmo, como
a figura das coisas extensas, sua quan- julgo que algumas vezes os outros se
tidade, ou grandeza, e seu número; enganam até nas coisas que eles acre-
como também o lugar em que estão, o ditam saber com maior certeza, pode
tempo que mede sua duração e outras ocorrer que Deus tenha desejado que
coisas semelhantes! ?. eu me engane todas as vezes em que
8. Eis por que, talvez, daí nós não faço a adição de dois mais três, ou em
concluamos mal se dissermos que a Fi- que enumero os lados de um quadrado,
sica, a Astronomia. a Medicina e todas ou em que Julgo alguma coisa ainda
as outras ciências dependentes da mais facil, se é que se pode imaginar
consideração das coisas compostas algo mais fácil do que isso. Mas pode
são muito duvidosas e incertas; mas ser que Deus não tenha querido que eu
que a Aritmética, a Geometria é as ou- seja decepcionado desta maneira, pois
tras ciências desta natureza, que não ele é considerado soberanamente bom.
tratam senão de coisas muito simples e Todavia, se repugnasse à sua bondade
muito gerais, sem cuidarem muito em fazer-me de tal modo que eu me enga-
se elas existem ou nao na natureza, nasse sempre, pareceria também ser-
contém alguma coisa de certo e indubi- lhe contrário permitir que eu me enga-
tável. Pois, quer eu esteja acordado, ne algumas vezes e, no entanto, não
quer esteja dormindo, dois mais três posso duvidar de que ele mo permi-
formarão sempre o número cinco e O tala,
10. Haverá talvez aqui pessoas que
1? O segundo argumento encontra, pois.o seu limi- preferirão negar a existência de um
se; ele não me permite pôr em dúvida os compo-
nentes de minhas percepções, a saber, as “naturezas Deus tão poderoso a acreditar que
simples”, indecomponiveis (figura, quantidade, es-
paço, tempo), que são o objeto da Matemática. Tais '8 Essa “opinião” é-sustentada pelos teólogos das
elementos “escapam, contrariamente aos objetos Segundas Objeções: Deus, dada sua onipotência,
sensíveis, a todas as razões naturais de duvidar”, pode nos enganar, Não É o parecer de Descartes: O
sublinha Guéroult, apojando-se no texto da Quinta engano em Deus constituiria não só um sinal de
Meditação: “A natureza de meu espírito é tal que eu malignidade, mas de não-ser. (Col. com Burman)
não me: poderia impedir de julgá-las verdadeiras Isso redunda em afirmar o valor tão-somente meto-
enquanto as concebo clara e distintamente”. Dai a dológico dessa suposição antinatural,
necessidade de recorrer ao lerceiro argumento que 18 À consideração da bondade, por si só,não basta
abslará está certeza “natural”. para invalidar a suposição. Cf, a nota precedente.
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todas as outras coisas são incertas. dosas de alguma maneira, como aca-
Mas não lhes resistamos no momento e bamos de mostrar, e todavia muito
suponhamos, em favor delas, que tudo prováveis, de sorte que se tem muito
quanto aqui é dito de um Deus seja mais razão em acreditar nelas do que
uma fábula. Todavia, de qualquer em negá-las. Eis por que penso que me
maneira que suponham ter eu chegado utilizarei delas mais prudentemente se,
ao estado e ao ser que possuo, quer O tomando partido contrário, empregar
atribuam a algum destino ou fatali- todos os meus cuidados em enganar-
dade, quer o refiram ao acaso, quer me a mim mesmo, fingindo que todos
queiram que isto ocorra por uma conti- esses pensamentos são falsos e imagi-
nua série e conexão das coisas, é certo nários; até que, tendo de tal modo
que, já que falhar e enganar-se é uma sopesado meus prejuízos, eles não pos-
espécie de imperfeição, quanto menos sam inclinar minha opinião mais para
poderoso for o autor a que atribuírem um lado do que para o outro, e meu
minha origem tanto mais será provável juízo não mais seja doravante domi-
que eu seja de tal modo imperfeito que nado por maus usos é desviado do reto
me engane sempre. Razões às quais caminho que pode conduzi-lo ao co-
nada tenho a responder, mas sou obri- nhecimento da verdade. Pois estou se-
gado a confessar que, de todas as opi- guro de que, apesar disso, não pode
niões que recebi outrora em minha haver perigo nem erro nesta via e de
crença como verdadeiras, não há ne- que não poderia hoje aceder dema-
nhuma da qual não possa duvidar siado à minha desconfiança, posto que
atualmente, não por alguma inconside- não se trata po aa! agir, mas
ração ou leviandade, mas por razões somente de meditar e de conhecer.
muito fortes e maduramente considera- 12. Suporei, pois, que há não um
das: de sorte que é necessário que verdadeiro Deus, que é a soberana
interrompa e suspenda doravante meu fonte da verdade, mas certo gênio
juízo sobre tais pensamentos, e que maligno??, não menos ardiloso e enga-
não mais lhes dê crédito, como faria nador do que poderoso, que empregou
com as coisas que me parecem eviden- toda a sua indústria em enganar-me.
temente falsas, se desejo encontrar Pensarei que o céu, o ar, a terra, as
algo de constante e de seguro nas cores, as figuras, Os sons e todas as
ciências??, coisas exteriores que vemos são apenas
II. Mas não basta ter feito tais ilusões e enganos de que ele se serve
considerações, é préciso ainda que para surpreender minha credulidade.
cuide de lembrar-me delas; pois essas Considerar-me-ci a mim mesmo abso-
antigas e ordinárias opiniões ainda me lutamente desprovido de mãos, de
voltam amiúde ao pensamento, dan- olhos, de carne, de sangue, desprovido
do-lhes a longa e familiar tonvivência de quaisquer sentidos, mas dotado da
que tiveram comigo o direito de ocu- falsa crença de ter todas essas coisas.
par meu espírito mau grado meu e de Permanecerei obstinadamente apegado
tornarem-se quase que senhoras de a esse pensamento; & se, por esse meio,
minha crença. E jamais perderei o cos-
tume de aquiescer a isso e de confiar 21 A Função do Deus enganador é do Gênio Malig-
nelas, enquanto as considerar como no é a mesma: porém o Gênio Malignoé um artifi-
cio psicológico que. impressionando mais a minha
são efetivamente, ou séja, como duvi- imaginação. levar-me-ã & tomar a dúvida mais à
sério E & inscrevé-la melhor em minha memória ("é
20 A dúvida é agora universalizada. preciso ainda que cuide de lembrar-me dela”).
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não está em meu poder chegar ao eu reincido insensivelmente por mim


conhecimento de qualquer verdade, ao mesmo em minhas antigas opiniões e
menos está ao meu alcance suspender evito despertar dessa sonolência, de
meu juizo. Eis por que cuidarei zelosa- medo de que as vigílias laboriosas que
mente de não receber em minha crença se sucederiam à tranquilidade de tal
nenhuma falsidade, e prepararei tão repouso, em vez de mé propiciarem al-
bem meu espírito a todos os ardis, guma luz ou alguma clareza no conhe-
desse grande enganador que, por pode-' cimento da verdade, não fossem sufi-
roso e ardiloso que seja, nunca poderá cientes para esclarecer as trevas das
impor-me algo. dificuldades que acabam de ser agita-
13. Mas esse desígnio é árduo é das.
trabalhoso2? e certa preguiça arrasta-
me insensivelmente para o ritmo de 22 Esta insistência na dificuldade de exercer uma
dúvida tão radical não é enfática, quanto maisa du-
minha vida ordinária. E, assim como vida for vivida como radical, mais as certezas que
um escravo que gozava de uma liber- se impuserem, em seguida: se apresentarão como
dade imaginária, quando começa a inabaláveis. Tomar à dúvida levianamente é expor-
se a nada compreender da sequência das Medita-
suspeitar de que sua liberdade é apenas ções. A este propósito, cf. 203, — “Não há erro
um sonho, teme ser despertado e cons- mais grave”, diz Alain, “do que julgar que-esta dú-
vida é fingida. Não há também erro mais comum,
pira com essas ilusões agradáveis para porque poucos homens jogam este jogo seriamen-
ser mais longamente enganado, assim ter
MEDITAÇÃO SEGUNDA?
Da Natureza do Espirito Humano;
e de como Ele é Mais Fácil de Conhecer do queo Corpo

|. A Meditação que fiz ontem en- vel, até que tenha aprendido certa-
cheu-me o espírito de tantas dúvidas, mente que não há nada no mundo de
que doravante não está mais em meu certo.
alcance esquecê-las. E, no entanto, não 2. Arquimedes, para tirar o globo
vejo de que maneira poderia resolvê- terrestre de seu lugar e transportá-lo
las; e, como se de súbito tivesse caido para outra parte, não pedia nada mais
em águas muito profundas, estou de tal exceto um ponto que fosse fixo e segu-
modo surpreso que não posso nem fir- ro. Ássim, teres o direito de conceber
mar meus pés no fundo, nem nadar altas esperanças, se for bastante feliz
para me manter à tona. Esforçar-me-ei, para encontrar somente uma coisa que
não obstante, é séguirei novamente a seja certa e indubitável? *.
mesma via que trilhei ontem, afastan- 3. Suponho, portanto, que todas as
do-me de tudo em que poderia imagi- coisas que vejo são falsas: persuado-
nar a menor dúvida, da mesma manei- me de que jamais existiu de tudo quan-
rá como se eu soubesse que istó fosse to minha memória referta de mentiras
absolutamente falso; e continuarei me representa: penso não possuir ne-
sempre nesse caminho até que tenha nhum sentido; creio que o corpo, a
encontrado algo de certo, ou, pelo figura, a extensão, o movimento e o
menos, se outra coisa não me for possi- lugar são apenas ficções de méu espíri-
to, O que poderá, pois; ser considerado
2º Plano da Meditação:
A) 881-9: da namreza do espírito huma- verdadeiro? Talvez nenhuma outra
HO = .ci coisa a não ser que nada há no mundo
55 1-4: conquista da primeira certeza: de certo. . sa
(9813): procura de uma primeira
certeza;
4. Mas que sei eu, se não há nenhu-
(54): “Eu sou, eu existo”; ma outra coisa diferente das que acabo
E$5-9: reflexão sobre esta primeira certe- de julgar incertas, da qual não se possa
za e conquista da segunda:
(88 5-8 quem sou eu, eu que
ter a menor dúvida” Não haverá algum
estou certo que sou? Uma coisa Deus, ou alguma outra potência, que
pensante. Determinação da essên- me ponha no espírito tais pensamen-
cia do Eu:
(89): descrição da “coisa pensante” tos? Isso não é necessário; pois talvez
e distinção entre o pensamento seja eu capaz de produzi-los por mim
(atributo. principal desta substân- mesmo. Eu então, pelo menos, não
cla) e suas qutras faculdades;
B) 5810-148: e de como eleé mais fácil de
serei alguma coisa? Mas já neguei que
conhecer do que o corpo:
Contraprova da segunda certeza (o pe 2* A primeira certeza adquirida não será, pois, à
daço de cera) e conguista da terceira mais. alta; deve apenas inaugurar a cadeia das
certeza, razões.
100 DESCARTES

tivesse qualquer sentido ou qualquer vezes que a enuncio ou que a concebo


corpo. Hesito no entanto, pois que se em meu espirito? 7,
segue daí? Serei de tal modo depen- 5. Mas não conheço ainda bastante
dente do corpo e dos sentidos que não claramente o que sou, eu que estou
possa existir sem eles? Mas eu me per- certo de que sou; de sorte que dora-
suadi de que nada existia no mundo, vante é preciso que eu atente com todo
que não havia nenhum céu, nenhuma cuidado, para não tomar imprudente-
terra, espíritos alguns, nem corpos mente alguma outra coisa por mim, €
alguns: não me persuadi também, por- assim para não equivocar-me neste
tanto, de que eu não existia? 5? Certa-
mente não, eu existia sem dúvida, se é conhecimento que afirmo ser mais
certo e mais evidente do que todos os
que eu me persuadi, ou, apenas, pensei que tive até agora?º,
alguma coisa. Mas hã algum, não sei
qual, enganador mui poderoso e mui 6. Eis por que considerarei de novo
ardiloso que emprega toda a sua indús- o que acreditava ser, antes de me
empenhar nestes últimos pensamentos;
tria em enganar-me sempre. Não hã.
e de minhas antigas opiniões suprimi-
pois, dúvida alguma de que sou, se-ele
me engana; e, por mais que me engane, rei tudo o que pode ser combatido
não poderá jamais fazer com que eu pelas razões que aleguei há pouco, de
nada seja. enquanto eu pensar ser algu- sorte que permaneça apenas precisa-
ma coisa? $, De sorte que, após ter pen- mente o que é de todo indubitável. O
sado bastante nisto e de ter examinado que, pois, acreditava eu ser até aqui?
cuidadosamente todas as coisas, cum- Sem dificuldade, pensei que era um
pre enfim concluir e ter por constante homem. Mas que é um homem? Direi
que esta proposição, eu sou, eu existo, que é um animal racional? Certamente
é necessariamente verdadeira todas as não: pois seria necessário em seguida
pesquisar o que é animal e o que é
** Retomemos o raciocinio. No ponto em que racional e assim, de uma só questão,
estou, não Eria eu ter à cérteza de existência cairiamos insensivelmente numa infini-
de “algum Deus"? Não, nada o exige (e um dos
principios da análise dos gedmetras & o de não dade de outras mais dificeis e embara-
remontar a uma verdade superior âquela com que cosas, € eu não quereria abusar do
posso me contentar). Irei invocar a certeza de minha
existência como indivíduo, sujeito concreto? Não, pouco tempo e lazer que me resta
nada 0 permite, visto que pus em dúvida a exis empregando-o em deslindar seme-
tência de tudo O que há “no mundo”... Mas cuida-
do! A “hesitação” aqui é ditada pelo medo de uma
confusão: fel à regra da dúvida, não tenho motivo 2" O fim da frase indica que ela só é verdadeira
de abrir exceção em favor do homem concreto que cada vez que penso nela atualmente.É também uma
sou; mas, aquém deste, há algo que irá resíntir à dá- transição, pois permitirá responder à pergunta que
vida. E doravante o Eu não será mais este Eu de agora haverá de colocar-se: qualé a natureza deste
chambre e ao pé do fogo que a Primeira Meditação Eu-existenteque acabo de afirmar?
evocava (como indica Goldschmidt, Congresso 25 Eu não conheço, amda, o conteúdo desta sxis-
Descartes de Royaumont, pág. 53). tência que acabo de afirmar, Importa, pois, encon-
28 Essa frase evidencia bem o papel do “Grande trá-lo pela exclusiva análise dos dados do problema,
Embustsiro”; impor à meus pensamentos uma Istole, por determinação, tevando em conta tudo.o
prova de tal ordemHu aquele que lhe resistir seja, que é dado, mas excluindo tudo o que não o é (a
quando não garantido como verdadeiro (é impos- referência à Regra KII é aqui indispensável). Notar
sivel antes da prova da existência de Deus), pélo a frase “É preciso que eu atente com todo cuidado
menos recebido como certo, Se não fosse arrancado, para não tomar imprudentemente alguma dutra
extorquido ao Génio Maligno, o Cogito não passa- coisa por mim”, que-seria absurdo no plano da Psi-
ria de uma banalidade. Sobrea originalidade do cologia e que se justifica apenas ao nível de uma ÁI-
Cogito, ef. o fim do opúsculo de Pascal: De VEsprit gebra das noções, comparável à “Álgebra dos
Géoméirique, comprimentos” das Regulge.
MEDITAÇÕES 101
lhantes sutilezas?º. Mas, antes, deter- qual seja tocado e do qual receba a
me-ei em considerar aqui os pensa- impressão. Pois não acreditava de
mentos que anteriormente nasciam por modo algum que se devesse atribuir à
si mesmos em meu espírito e que eram natureza corpórea vantagens como ter
inspirados apenas por minha natureza, de si o poder de mover-se, de sentir €
quando me aplicava à consideração de de pensar; ao contrário, espantava-me
meu ser. Considerava-me, inicial- antes ao ver que semelhantes faculda-
mente, como provido de rosto, mãos, des se encontravam em certos cor-
braços e toda essa máquina composta pos??
de ossos e carne, tal como ela apareçe 7. Mas eu, O que sou eu, agora que
em um cadáver, a qual eu designava suponho?2 que há alguém que é extre-
pelo nome de corpo. Considerava, mamente poderoso e, se ouso dizê-lo,
além disso, que me alimentava, que malicioso e ardiloso, que emprega
caminhava, que sentia e que pensava e
todas as suas forças e toda a sua indús-
relacionava todas essas ações à tria em enganar-me? Posso estar certo
alma*?; mas não me detinha em pen- de possuir a menor de todas as coisas
sar em que consistia essa alma, ou, se que atribui há pouco à natureza corpo-
o fazia, imaginava que era algo extre-
mamente raro e sutil, como um vento, rea? Detenho-me em pensar nisto com
uma flama ou um ar muito tênue, que atenção, passo e repasso todas essas
estava insinuado e disseminado nas coisas em meu espírito, e não encontro
minhas partes mais grosseiras. No que nenhuma que possa dizer que exista
se referia ao corpo, não duvidava de em mim. Não é necessário que me de-
maneira alguma de sua natureza; pois more a enumerá-las. Passemos, pois,
pensava conhecê-la mui distintamente aos atributos da alma e vejamos se há
e, se quisesse explicá-la segundo as alguns que existam em mim. Os pri-
noções que dela tinha, tê-la-ia descrito meiros são alimentar-me e caminhar;
desta maneira: por corpo entendo tudo mas, se é verdade que não possuo
o que pode ser limitado por alguma corpo algum, é verdade também que
figura; que pode ser compreendido em não posso nem caminhar nem alimen-
qualquer lugar e preencher um espaço tar-me. Um outro é sentir; mas não se
de tal sorte que todo outro corpo dele pode também sentir sem o corpo; além
seja excluído; que pode ser sentido ou do que, pensei sentir outrora muitas
pelo tato, ou pela visão, ou pela audi-
coisas, durante O sono, as quais reco-
ção, ou pelo olfato; que pode ser movi- nheci, ao despertar, não ter sentido
do de muitas maneiras, não por si efetivamente. Um outro é pensar: é
mesmo, mas por algo de alheio pelo verifico aqui que o pensamento é um
atributo que me pertence; só ele não
*º Sobre este método de determinação do pro-
blema por segregação, cf. o diálogo: Recherche de
ta Vérité (Pléiade, págs. 8972-994). Ao interlocutor 3* Este conhecimento “natural” que eu tenho de
aturdido que acaba de responder: “Diria, portanto, mim mesmo antes da prova da dúvida será nteira-
que sou um homem”, o cartesiano réplica: “Não mente falso? Não. Se a alma é concebidaà maneira
prestais alenção ao que perguntei e a resposta quê dos escolásticos, em troca a distinção entre 9 corpo
apresentais, embora vos pareça simples, lançar- eo espírito (indispensável& Fisica) está aí presente,
vos-ia em questões muito árduas e muito embaraço- mas à título de opinião provável, sem fundamento,
sas, se eu quisesse apertá-las por menos que sejá., Cf. Respostas, 204.
Não entendestes bem a minha pergunta e respondeis 37 Mudança de plano, Do pensamento inspirado
a mais coisas do que vos perguntei... Dizei-me, por “minha natureza” passamos à só idéia de mim
pois, o que sois propriamente. na medida em que mesmo compativel com a instauração da dúvida, da
duvidais”. indeterminação psicológica à determinação metafi-
3º Of. Respostas, 508. sita.
102 DESCARTES

pode ser separado de mim. Eu sou, eu existirem, já que me são desconhe-


existo: isto é certo; mas por quanto cidas, não sejam efetivamente diferen-
tempo? A saber, por todo o tempo em tes de mim, que eu conheço? Nada sei
que eu penso??; pois poderia, talvez, a respeito; não o discuto atualmente,
ocorrer que, se eu deixasse de pensar, não posso dar meu juízo senão a coisas
deixaria ao mesmo tempo de ser ou de que me são conhecidas: reconheci que
existir. Nada admito agora que não eu era, e procuro o que sou, eu que
seja necessariamente verdadeiro: nada reconheci ser. Ora, é muito certo que
sou, pois, falando precisamente, senão essa noção e conhecimento de mim
uma coisa que pensa, isto é, um espíri- mesmo, assim precisamente tomada,
to, um entendimento ou uma razão, não depende em nada das coisas cuja
que são termos cuja significação me existência não me é ainda conheci-
era anteriormente? * desconhecida. da* º; nem, por conseguinte, e com
Ora, eu sou uma coisa verdadeira e mais razão de nenhuma daquelas que
verdadeiramente existente; mas que são fingidas e inventadas pela imagina-
coisa? Já o disse: uma coisa que pensa. ção. E mesmo esses termos fingir e
E que mais? Excitarei ainda minha imaginar adveriem-me de meu erro;
imaginação para procurar saber se não pois eu fingiria efetivamente se imagi-
sou algo mais. Eu não sou essa reunião nasse ser alguma coisa, posto que ima-
de membros que se chama o corpo ginar nada mais é do que contemplar a
humano; não sou um ar tênue e pene- figura ou a imagem de uma coisa cor-
trante, disseminado por todos esses poral. Ora, sei já certamente que eu
membros; não sou um vento, um sou, e que, ao mesmo tempo, pode
sopro, um vapor, nem algo que posso ocorrer que todas essas imagens e, em
fingir e imaginar, posto que supus que geral, todas as coisas que se relacio-
tudo isso não era nada e que, sem nam à natureza do corpo sejam apenas
mudar essa suposição, verifico que não sonhos ou quimeras. Em seguimento
deixo de estar seguro de que sou algu- disso, vejo claramente que teria: tão
ma coisa * 5, pouca razão ao dizer: excitarei minha
& Mas também pode ocorrer que imaginação para conhecer mais distin-
essas mesmas coisas, que suponho não tamente o que sou, como se dissesse:
estou atualmente acordado e percebo
3º Entre todas às faculdades: 1) do corpo — 2) da algo de real e de verdadeiro; mas, visto
alma, uma só, o pensamento, resiste à exclusão. que não o percebo ainda assaz nitida-
Vemos aqui a importancia do fim do$ 4: “Esta
proposição — gu sou, eu existo — É necessarjá- mente, dormiria intencionalmente a
mente verdadeira sempre que eu a pronuncio ou que fim de que meus sonhos mo represen-
eu a conceho em meu espírito”. É ao refletir sobre tassem com maior verdade e evidência.
esta inseparabilidade — único dado que-se encontra
em minha posse — que obtenho imediatamente a E, assim, reconheço certamente que
natureza “daquilo que sou”. Trata-se da primeira nada, de tudo o que posso com-
verdade da cadeia de razões.
** “Anteriormente”, isto €, no plano em que nos preender por meio da imaginação, per-
colocava o parágrafo precedente, eu podia proferir tence a este conhecimento que tenho de
estas palavras, mas sem lhes ter determinado o sen- mim mesmo e que é necessário lembrar
tdo, portanto sem conhecê-lo.
25 Sobre o lim desse parágrafo, cf, 505 e segs. Não
hã necessidade alguma de ir prócurar em ouira ** O contraditor que retorquisse haver talvez em
parte uma resposta, visto que dei a línica resposta mim alguma outra faculdade desconhecida situar-
que respeitava os dados do problema: “Eu sou uma se-ja no plano da Psicologia e não das razões meta-
coisa que pensa”. Mas “o homem natural” sente-se fisicas, Um dos principios da análise é que não
tentado a recorrer à imaginação a fim de completar tenho o direito de arguir propriedades ainda desco-
esta resposta. Há nisso uma inclinação que o pará- nhecidas para combater as que se acham agora
grafo seguinte irá desenraizar: estabelecidas.
MEDITAÇÕES 103

e desviar o espírito dessa maneira de de mim mesmo? Pois é por si tão evi-
conceber a fim de que ele próprio dente que sou eu quem duvida, quem
possa reconhecer muito distintamente entende e quem deseja que não é neces-
sua natureza? ?, sário nada acrescentar aqui para expli-
9. Mas o que sou eu, portanto? cá-lo. E tenho também certamente o
Uma coisa que pensa. Que é uma coisa poder de imaginar; pois, ainda que
que pensa? É uma coisa que duvida, possa ocorrer (como supus anterior-
que concebe, que afirma, que nega, que mente) que as coisas que imagino não
quer, que não quer, que imagina tam- sejam verdadeiras, este poder de imagi-
bém e que sente?º, Certamente não é nar não deixa, no entanto, de existir
pouco se todas essas coisas pertencem realmente em mim e faz parte do meu
à minha natureza. Mas por que não lhe pensamento. Enfim, sou o mesmo que
pertenceriam? Não sou eu próprio esse sente, isto é, que recebe é conhece as
mesmo que duvida de quase tudo, que, coisas como que pelos órgãos dos sen-
no entanto, entende e concebe certas tidos, posto que, com efeito, vejo a luz,
coisas, que assegura e afirma que ouço o ruído, sinto o calor. Mas dir-
somente tais coisas são verdadeiras, me-ão que essas aparências são falsas
que nega todas as demais, que quer e e que eu durmo. Que assim seja; toda-
deseja conhecê-las mais, que não quer via,. ao menos, é muito certo que me
ser enganado, que imagina muitas coi- parece que vejo, que ouço e que me
sas, mesmo mau grado seu, e que sente aqueço; e é propriamente aquilo que
também muitas como que por inter- em mim se chama sentir e isto, tomado
médio dos órgãos do corpo? Haverá assim precisamente, nada é senão pen-
algo em tudo isso que não seja tão ver- sar. Donde, começo a conhecer o que
dadeiro quanto é certo que sou e que sou, com um pouco mais de luz e de
existo, mesmo se dormisse sempre e distinção do que anteriormente?*.
ainda quando aquele que me deu a 10. Mas não me posso impedir de
existência se servisse de todas as suas crer que as coisas corpóreas*º, cujas
forças para enganar-me? Haverá, tam- imagens se formam pelo meu pensa-
bém, algum desses atributos que possa mento, e que se apresentam aos senti-
ser distinguido de meu pensamento, ou dos, sejam mais distintamente conheci-
que se possa dizer que existe separado das do que essa não sei que parte de
mim mesmo que não se apresenta à
*7 Em virtude desse princípio, não me é dado abso-
lutamente o direito de recorrer à imaginação, pois
imaginação: embora, com efeito, seja
“tudo quanto posso compreender por seu meio” foi uma coisa bastante estranha que coisas
excluído pela dúvida: Por ai eu sei, ao mesmo que considero duvidosas e distantes
tempo, que minha natureza é puro ento
exclusivo de todo elemento corporal. É a ségunda sejam mais claras e mais facilmente
verdade, a qual não se deve confundir com a distin- conhecidas por mim do que aquelas
ção real entre a alma é o corpo, estabelecida somen-
te na Meditação Sexta. CÍ. 510.
*º Cumpre observar a diferença relativamente à 2º A saber, um pensamento; a) distinto dos corpos,
definição do 8 7: “Isto é, um espírito, um entendi- se os houver; b) distinto das faculdades não propria-
mento ou uma razão”, Ai determinava-se a essência mente intelectuais, como a imaginação. que só me
da substância “coisa pensante”; aqui ela é descrita pertencem porque-implicam este pensamento puro.
cevestida de seus diferentes modos. Desse novo 4º Novo assalto do pensamento imaginativo ine-
posto de vista, reintegra-se na “coisa pensante” o rente à “minha natureza” e do qual não posso ainda
que fora excluído de sua essencia. Todos: esses me desprender: estou convencido, mas não persua-
mudos (imaginar, sentir. querer), embora não per- dido. Dai a necessidade de uma contraprova que
tençam à minha natureza, não podem ser postos em servirá para estabelecer a terceira verdade. Como
Gúvida, na medida em que se beneficiam da certeza todas as figuras de retórica das Meditações, esta
do Cogito, integra-se na ordem.
104 DESCARTES

que são verdadeiras e certas é que per- todas as coisas que se apresentavam ao
tencem à minha própria natureza. Mas paladar, ao olfato, ou à visão, ou ao
vejo bem o que seja: meu espírito tato, ou à audição, encontram-se mu-
apraz-se em extraviar-se e não pode dadas e, no entanto, a mesma cera per-
amda conter-se nos justos limites da manece. Talvez fosse como penso
verdade. Soltemos-lhe, pois, ainda uma atualmente, a saber, que a cera não era
vez, as rêdeas a fim de que, vindo, em nem essa doçura do mel, nem esse
seguida, a libertar-se delas suave e agradável odor das flores, nem essa
oportunamente, possamos mais Ffacil- brancura, nem essa figura, nem esse
mente dominá-lo e conduzi-lo **, som, mas somente um corpo que um
11, Comecemos pela consideração pouco antes me aparecia sob certas
das coisas mais comuns e que acredi- formas e que agora se faz notar sob
tamos compreender mais distinta- outras. Mas o que será, falando preci-
mente, a saber, Os corpos que tocamos samente, que eu imagino quando a
é que vemos. Não pretendo falar dos concebo dessa maneira? Considere-
corpos em geral, pois essas noções ge- mo-lo atentamente e, afastando todas
rais são ordinariamente mais confusas, as coisas que não pertencem à cera,
porém de qualquer corpo em particu- vejamos o que resta. Certamente nada
lar. Tomemos, por exemplo, este peda- permanece senão algo de extenso, flexi-
ço de cera que acaba de ser tirado da vel e mutável. Ora, o que é isto: flexi-
colmeia: ele não perdeu ainda a doçura vel e mutável? Não estou imaginando
do mel que continha, retém ainda algo que esta cera, sendo redonda, é capaz
do odor das flores de que foi recolhido; de se tornar quadrada e de passar do
sua cor, sua figura, sua grandeza, são quadrado a uma figura triangular?
patentes; é duro, é frio, tocamo-lo e, se Certamente não, não é isso, posto que
nele batermos, produzirá algum som. a concebo capaz de receber uma infini-
Enfim, todas as coisas que podem dade de modificações similares e eu
distintamente fazer conhecer um corpo não poderia, no entanto, percorrer essa
encontram-se neste. infinidade com minha imaginação e,
I2. Mas eis que, enquanto falo, é por conseguinte, essa concepção que
aproximado do fogo: o que nele resta- tenho da cera não se realiza através da
va de sabor exala-se, o odor se esval, minha faculdade de imaginar *2.
sua cor se modifica, sua figura se alte- 13. E, agora, que é essa extensão?
ra, sua grandeza aumenta, ele torna-se Não será ela igualmente desconhecida,
líquido, esquenta-se, mal o podemos já que na cera que se funde ela aumen-
ta e fica ainda maior quando está intei-
tocar e, embora nele batamos, nenhum
ramente fundida e muito mais ainda
som produzirá. A mesma cera perma-
quando o calor aumenta? E eu não
nece após essa modificação? Cumpre conceberia claramente e segundo a ver-
confessar que permanece: é ninguém o dade o que é a cera, se não pensasse
pode negar. O que é, pois, que se que é capaz de receber mais variedades
conhecia deste pedaço de cera com
tanta distinção? Certamente não pode 4º Raciocinio em duas partes: 1º o que me permite
ser nada de tudo o que notei nela por reconhecer à mesma cera é sua identidade na medi-
intermédio dos sentidos, posto que da em que a cera É coisa extensa; 2.º mas este con-
teúdo só pode ser idéia e não imagem da extensão
que o corpo ocupa atualmente ou daquelas (em nú-
** Em outros termos: façamos de conta que inter- mero finito) que poderia ocupar em seguida. CF.
rompemos a ordem a fim de seguir o senso comum Ouintas Respostas: “As faculdades de entender e de
em seu próprio terreno. Sobre o faro de-ser esta imagmar diferem não só segundo o mais é O menos,
iransgressão apenas aparente, cl. o importantíssimo porém como duas maneiras de agir totalmente
E 515 das Respostas. diferentes”.
MEDITAÇÕES 105

segundo a extensão do que jamais ima- la, senão chapéus e casacos que podem
ginei. É preciso, pois, que eu concorde cobrir espectros ou homens ficticios
que não poderia mesmo conceber pela que se movem apenas por molas? Mas
imaginação o que é essa cera e que julgo que são homens verdadeiros e
somente meu entendimento é quem o assim compreendo, somente pelo poder
concebe **; digo este pedaço de cera de julgar que reside em meu espírito,
em particular, pois para a cera em aquilo que acreditava ver com meus
geral é ainda mais evidente. Ora, qual olhos.
é esta cera que não pode ser concebida 15. Um homem que procura elevar
senão pelo entendimento ou pelo espí- seu conhecimento para além do
rito? Certamente é a mesma que vejo, comum deve envergonhar-se de apro-
que toco, que imagino e a mesma que veitar ocasiões para duvidar das for-
conhecia desde o começo. Mas o que é mas e dos termos do falar do vulgo;
de notar é que sua percepção, ou a prefiro passar adiante e considerar se
ação pela qual é percebida, não é uma eu concebia com maior evidência e
visão, nem um tatear, nem uma imagi- perfeição o que era a cera, quando a
nação, e jamais o foi, embora assim o percebi inicialmente e acreditei conhe-
parecesse anteriormente, mas somente cê-la por meio dos sentidos exteriores,
uma inspeção do espírito, que pode ser ou ao menos por meio do senso
imperfeita e confusa, como era antes, comum, como o chamam, isto é, por
ou clara é distinta, como é presente- meio do poder imaginativo, do que a
mente, conforme minha atenção se di- concebo presentemente, após haver
rija mais ou menos às coisas que exis- examinado mais exatamente o que ela
tem nela e das quais é composta. é e de que maneira pode ser conhecida.
14. Entretanto, Eu não poderia es- Por certo, seria ridículo colocar isso
pantar-me demasiado ao considerar o em dúvida, Pois, que havia nessa pri-
quanto meu espírito tem de fraqueza e meira percepção que fosse distinto e
de pendor que o leva insensivelmente evidente e que não pudesse cair da
ao erro. Pois, ainda que sem falar eu mesma maneira sob os sentidos do
considere tudo isso em mim mesmo, as menor dos animais? Mas quando dis-
palavras detêm-me, todavia, e sou tingo a cera de suas formas exteriores
quase enganado pelos termos da lin- e, como se a tivesse despido de suas
guagem comum; pois nós dizemos que vestimentas, considero-a inteiramente
vemos a mesma cera, se no-la apresen- nua**, é certo que, embora se possa
tam, e não que julgamos que é a ainda encontrar algum erro em meu
mesma, pelo fato de ter a mesma cor e juizo, não a posso conceber dessa
a mesma figura: donde desejaria quase forma sem um espírito humano * 8.
concluir que se conhece a cera pela
visão dos olhos e não pela tão-só ins- ** CEL 513, onde Descaries se defende de ter pre-
peção do espirito, se por acaso não tendido “abstrair o conceito da cera de seus aciden-
olhasse pela janela homens que pas- tes”. “Os acidentes são contingentes em relação à
sam pela rua, à vista dos quais não substância, mas não a acidentalidade”, especifica
Guéroult, (Descartes, | pág. 56)
deixo de dizer que vejo homens da 45 Tal é o sentido exato do “pedaço de cera”: eu
mesma maneira que digo que vejo a nada posso conhecer através da percepção ou da
imaginação sem compreender (ou reconhecer), atra-
cera; e, entretanto, que vejo desta jane- vés do pensamento, & essência da coisa. Tenho ou
não razão de reconhecer esta essência! Não sei
*3 Por onde fica provado não só que a imaginação anda. Pois não se tata aqui de saber se eu dispo-
não pode me dar a conhecer a natureza dos corpos nho efetivamente do conhecimento da essência do
que se lhe apresentam (o que éra o objetivo da corpo. mas de saber em quais condições posso estar
contraprova), mas ainda que o pensamento puro é o seguro de possuir a idéia clara e distinta deste
único capaz de fazê-lo. corpo. Cf. Guéroult, op. cit. pags. 144-45,
106 DESCARTES

16. Mas, enfim, que direi desse espí- nitidez não deverei eu conhecer-me* 7,
rito, isto é, de mim mesmo * *2 Pois atê posto que todas as razões que servem
aqui não admiti em mim nada além de para conhecer e conceber a natureza
um espirito. Que declararei, digo, de da cera, ou qualquer outro corpo, pro-
mim, que pareço conceber com tanta vam muito mais fácil e evidentemente
nitidez e distinção este pedaço de cera? a natureza de meu espirito? E encon-
Não me conheço a mim mesmo não só tram-se ainda tantas outras coisas no
com muito mais verdade e certeza. mas próprio espírito que podem contribuir
também com muito maior distinção e ao esclarecimento de sua natureza, que
nitidez? Pois, se julgo que a cera é ou aquelas que dependem do corpo (como
existe pelo fato de eu a ver, sem dúvida esta) não merecem quase ser enumera-
segue-se bem mais evidentemente que das, ,
eu próprio sou, ou que existo pelo fato 18. Mas, enfim, eis que insensivel-
de eu a ver. Pois pode acontecer que
mente cheguei aonde queria; pois, já
aquilo que eu vejo não seja, de fato,
que é coisa presentemente conhecida
cera; pode tambêm dar-se que eu não
tenha olhos para ver coisa alguma; por mim que, propriamente falando, só
mas não pode ocorrer, quando vejo ou concebemos os corpos pela faculdade
(coisa que não mais distingo) quando de entender em nós existente e não pela
penso ver, que eu, que penso, não seja imaginação nem pelos sentidos, e que
alguma coisa. Do mesmo modo, se não os conhecemos pelo fato de os ver
julgo que a cera existe. pelo fato de que ou de tocá-los, mas somente por os
a toco, seguir-se-á ainda a mesma conceber pelo pensamento, reconheço
coisa, ou seja, que eu sou; E se O julgo com evidência que nada há que me seja
porque minha imaginação disso me mais fácil de conhecer do que meu
persuade, ou por qualquer outra causa espírito. Mas, posto que é quase
que seja, concluirei sempre a mesma impossível desfazer-se tão prontamente
coisa. É o que notei aqui a respeito da de uma antiga opinião, será bom que
cera pode aplicar-se a todas as outras eu me detenha um pouco neste ponto, a
coisas que me são exteriores e que se fim de que, pela amplitude de minha
encontram fora de mim, meditação, eu imprima mais profunda-
17. Ora, se a noção ou conheci- mente em minha memória este novo
mento da cera parece ser mais nitido e conhecimento.
mais distinto após ter sido descoberto
não somente pela visão ou pelo tato, 47 fa terceira verdade: o espírito é mais fácil de
conhecer do que o corpo, Com efeito, obtenho
mas ainda por muitas outras causas, imediatamente o conhecimento da existência e da
com quão maior evidência, distinção e natureza de meu espírito, ao passo que o meu pensa-
mento me proporciona apenas a idéia clara e dis-
“e Passamos, com este parágrafo, à confirmação tinta dos corpos cuja existência ainda é problemã-
da segunda verdade: quando percebo o pedaço de tica. Guéroult comenta: “Quando Descartes declara
cera, seja compreendendo clara € distintamente sua que o conhecimento da alma é o mais fácil dos
natureza, seja apenas imaginando-o ou tocando-o, conhecimentos, quer dizer que é a mais fácil das
só uma coisa é certa, no ponto em que me encontro. verdades cientificas é o primeiro dos conhecimentos
É que eu penso percebêo. . Mostrando que este na ordem da-ciência. Não quer dizer que a ciência é
“pensamento” era indispensável ao conhecimento mais fácil do que o conhecimento vulgar, A passa-
da coisa, a análise precedente deu confirmação a gem do senso comum à ciência é, com efeito, a mais
esta verdade, dificil das ascensões”. (Op. cit., pág. 128.)
MEDITAÇÃO TERCEIRA“8
De Deus; que Ele Existe

1. Fecharei agora os olhos, tampa- que pensa, isto é. que duvida, que afir-
rei meus ouvidos, desviar-me-ei de ma, que nega, que conhece poucas coi-
todos os meus sentidos, apagarei sas, que ignora muitas, que ama, que
mesmo de meu pensamento todas as odeia, quê quer& não quer. que tam-
imagens de coisas corporais, ou, ao bém imagina e que sente. Pois. assim
menos, uma vez que mal se pode fazé- como notei acima, conquanto as coisas
lo, reputá-las-ei como vãs e como fal- que sinto € imagino não sejam talvez
sas; e assim, entretendo-me apenas co- absolutamente nada fora de mim e
migo mesmo e considerando meu nelas mesmas, estou, entretanto, certo
interior, empreenderei | tornar-me
pouco a pouco mais conhecido e mais de que essas maneiras de pensar, que
chamo sentimentos e imaginações so-
familiar a mim mesmo. Sou uma cóisa
mente na medida em que são maneiras
“% Plano da Meditação: de pensar, residem e se encontram cer-
8914: recapitulação: tamente em mim. E neste pouco que
45: a questão de Deus;
886-9: discriminação dos dados do pro- acabo de dizer creio ter relatado tudo o
blema. que sei verdadeiramente, ou, pelo
A) S$10-[4: primeiro caminho para o exame
do valor objetivo das idéias; o senso comum.
menos. tudo o que até aqui notei que
B) 45 15-29. segundo caminho: | sabia.
(9816-17): princípios de causali-
dade e correspondência; 2. Agora considerarei mais exata-
($18): colocação do problema: em mente se talvez não se encontrem abso-
quais condições reconheceria eu o lutamente em mim outros conheci-
valor objetivo dé uma idéia?
($819-21): exame das diferentes mentos que não tenha ainda percebido.
espécies de idéia sob este novo Estou certo de que sou uma coisa pen-
prismas,
(522): à idéia de Deus reconhecida
sante; mas não saberei também, por-
como dotada de valor objetivo = tanto, o que é requerido para me tornar
primeira prova; certo de alguma coisa? Nesse primeiro
($523-28): reflexões sobre esta
prova conhecimento só se encontra uma
C) 5529-42: segunda prova: clara e distinta percepção daquilo que
(5$29-30): necessidade de outra conheço;a qual, na verdade, não seria
rOva;
(8931-327): primeiro momento, pri- suficiente para me assegurar de que é
meira hipótese: eu existo por mim verdadeira se em algum momento
mesmo como por uma causa:
($833-34): primeiro múmento, se-
pudesse acontecer qué uma coisa que
gunda hipótese: eu existo sem eu concebesse tão clara e distintamente
causa; se verificasse falsa. E, portanto, pare-
(835): segundo momentos
(5536-317): reflexões subsidiárias. ce-me que já posso estabelecer como
$$38-42; reflexão sobre o conjunto. regra geral que todas as coisas que
108 DESCARTES

concebemos mui clara e mui distinta- rano poder de um Deus se apresenta a


mente são todas verdadeiras *º, meu pensamento, sou constrangido a
3, Todavia, recebi e admiti acima confessar que lhe é fácil, se ele o qui-
várias coisas como muito certas e ser, proceder de tal modo que eu me
muito manifestas, as quais, entretanto, . engane mesmo nas coisas que acredito
reconheci depois serem duvidosas € conhecer com uma evidência muito
incertas. Quais eram, pois, essas coi- grande. E, ao contrário, todas as vezes
sas? Eram a terra, O cêu, os astros e que me volto para as coisas que penso
todas as outras coisas que percebia por conceber mui claramente sou de tal
intermédio de meus sentidos. Ora, o maneira persuadido delas que sou leva-
que é que eu concebia clara e distinta- do, por mim mesmo, a estas palavras:
mente nelas? Certamente nada mais engane-me quem puder, ainda assim
exceto que as idéias ou os pensamentos jamais poderá fazer que eu nada seja
dessas coisas se apresentavam a meu enquanto eu pensar que sou algo; ou
espírito. E ainda agora não nego que que algum dia seja verdade que eu não
essas idéias se encontrem em mim. tenha jamais existido, sendo verdade
Mas havia ainda outra coisa que eu agora que eu existo; ou então que dois
afirmava, e que, devido ao hábito que e três juntos façam mais ou menos do
tinha de acreditar nela, pensava perce- que cinco, ou coisas semelhantes, que
ber mui claramente, embora na verda- vejo claramente não poderem ser de
de não a percebesse de modo algum, a outra maneira senão como as conce-
saber, que havia coisas fora de mim bo 8º,
donde procediam essas idéias e às 5. E, por certo, posto que não tenho
quais elas eram inteiramente semelhan- nenhuma razão de acreditar que haja
tes. E era nisso que eu me enganava; algum Deus que seja enganador, €
ou, se eu julgava talvez segundo a ver- mesmo que-não tenha ainda conside-
dade, não havia nenhum conhecimento rado aquelas que provam que há um
que eu tivesse que fosse causa da ver- Deus, a razão de duvidar que depende
dade de meu julgamento. somente desta opinião é bem frágil e,
4. Mas quando considerava alguma por assim dizer. metafísica. Mas, a fim
coisa de muito simples e de muito facil de poder afastã-la inteiramente, devo
no tocante à Aritmética e à Geometria, examinar se hã um Deus, tão logo a
por exemplo, que dois e três juntos ocasião se apresente; e, se achar que
produzem o número cinto, e outras existe um, devo também examinar se
coisas semelhantes, não as concebia eu ele pode ser enganador: pois, sem o
pelo menos bastante claramente para conhecimento dessas duas verdades,
assegurar que eram verdadeiras? Cer- não vejo como possa jamais estar certo
tamente, se julguei depois que se podia de coisa alguma. E a fim de que eu
duvidar destas coisas, não foi por possa ter a ocasião de examinar isto
outra razão senão porque me veio ao
*4 “Produz-se, em consegiencia, uma oscilação
espírito que talvez algum Deus tivesse entre o fato e o direito, entre à certeza do fato de
podido me dar uma tal natureza que eu que-sou quando penso e a dúvida absoluta que man-
me enganasse mesmo no concernente têm dé direito a hipótese do Deus enganador...
Ássim, enquanto o Cogito constitui o único ponto
às coisas que me parecem as mais de apoio para a ciência, a ciência... é impossível,
manifestas. Mas todas as vezes que pois. desde que méu espirito deixa de fixar-se no
esta opinião acima concebida do sobe- Cogito para se dirigir alhures, este ponto de apoio
se abisma na noite da dúvida universal, arrastando
consigo toda a Cadeia das razões.” (Guéroult, Des-
48 A respeito desta regra, cf. 561. eartes, E pãgs. 155-157,)
MEDITAÇÕES 109

sém interromper a ordem de meditação 7. Agora?*, no que concerne às


que me propus, que é de passar grada- idéias, se as consideramos somente
tivamente das noções que encontrar nelas mesmas e não as relacionamos à
em primeiro lugar no meu espírito para alguma outra coisa, elas não podem,
aquelas que aí poderei achar depois*”, propriamente falando, ser falsas; pois,
cumpre aqui que eu divida todos os quer eu imagine uma cabra ou uma
meus pensamentos em certos gêneros E quimera, não é menos verdadeiro que
considere em quais destes gêneros hã eu imagino tanto uma quanto a outra.
propriamente verdade ou erro. 8. Não é preciso temer também que
se possa encontrar falsidade nas afec-
6. Entre meus pensamentos, alguns
ções ou vontades; pois, ainda que
são como as imagens das coisas, e só
possa desejar coisas más, ou mesmo
aqueles convém propriamente o nome
que jamais existiram, não é por isso,
de idéia 2: como no momento em que todavia, menos verdade que as desejo.
eu represento um homem ou uma qui-
9. Assim, restam tão-somente os
mera, ou O céu, ou um ano, ou mesmo
juízos, em relação aos quais eu devo
Deus. Outros, além disso, têm algumas
acautelar-me para não me enganar* 8,
outras formas: como, no momento em
Ora, o principal erro eo mais comum
que eu quero, que eu temo, que eu afir-
que se pode encontrar consiste em que
mo ou que eu nego, então concebo
eu julgue que as idéias que estão em
efetivamente uma coisa como o sujeito
mim são semelhantes ou conformes às
da ação de meéu espírito, mas acres-
cóisas que estão fora de mim; pois,
cento também alguma outra coisa por
certamente, se eu considerasse as
esta ação à idéia que tenho daquela
idéias apenas como certos modos ou
coisa *3; e deste gênero de pensamen-
fórmas de méu pensamento, sem que-
tos, uns são chamados vontades ou
rer relacioná-las a algo de exterior,
afecções, e outros juízos.
mal* º poderiam elas dar-me ocasião
de falhar.
81 A fim de varrer definitivamente a dúvida, procu- 10. Ora, destas idéias, umas me
rar-se-ã a “ocasião” de provar que hã um Deus e
que ele não é enganador, mas sem interromper, no parecem *7 ter nascido comigo, outras
entanto, a cadeia das razões. Donde, atso 5 13,0 ser estranhas e vir de fora, e as outras
exame minucioso dos dados em meu poder sobre os ser feitas e inventadas por mim
quais: eu poderia eventualmente: basear minha
prova.
62 Esta definição da idéia como cópia na qual se ** Segunda classificação: quais são, dentre Os con-
anuncia um original (a idéia-quadro) reaparecerá teúdos anteriores, aqueles em que podemos nbs
muitas vezes nesta Meditação. Importa tanto mais fiar? Todos, salto os juízos.
sublinhar que os termos “como uma imagem” cons- “E Enquanto conteúdo de pensamento, o juizo é
tituem apenas uma comparação destinada a expli- ie certo como os outros: (parece-me que eu jul-
car a função da idéia. Não se trata, de forma algu- «). Mas cumpre éxcluí-lo da indagação, na me-
ma, de assimilar 4 idéia intélectual à imagem dida em que consiste em afirmar ou em negar sem
sensível, CE o protesto contra Hobbes nas Terceiras fundamento, que o conteúdo de minha idéia corres-
Respostas: “Pelo nome de idéia, ele quer somente ponde a uma realidade fora dela. Ou ainda: afirma
que'se entendam aqui as imagens das coisas mate- ou nega que o conteúdo de uma idéia (sua “reali-
riais pintadas na fantasia corpórea; e sendo isso dade objetiva”) possui um svalor óbjstivo, Sem exa-
suposto, é-lhe fácil mostrar que não se pode ter minar previamente o conteúdo desta idéia,
nenhuma idéia própria e verdadeira de Deus nem de 5% Restrição que tem sua importância. Tornar-se-ã
um ano...“ assim como G 2; “Pelo nome de compreensivel no & 19 desta Meditação:
idéia...” Sobre a novidade do sentido dado por 57 “Parecem” indica que Descartes se coloca so
Descartes à palavra “idéia”, cf. Gilson, Discours, nivel do senso comum. Aqui, com efeito, começa a
pag. 319. critica da classificação das idéias segundo o senso
53 Por-esta primeira classificação, distinguem-se: comum e dos preconceitos que ela implica — é& o
Lº as idéias; 27 os conteúdos nes quais uma ação “primeiro caminho” possivel da investigação; o
do espírito se acrescenta às idéias, segundo inicia-se no 8 15.
HO DESCARTES
mesmo. Pois, que eu tenha a faculdade e convincentes ?*. Quando digo que me
de conceber o que é aquilo que geral- parece que isso me é ensinado pela
mente se chama uma coisa ou uma ver- natureza *º, entendo somente por essa
dade, ou um pensamento, parece-me palavra natureza uma certa inclinação
que não o obtenho em outra parte que me leva a acreditar nessa coisa, €
senão em minha própria natureza; mas não uma luz natural que me faça
se ouço agora algum ruído, se vejo o conhecer que ela é verdadeira. Ora,
sol, se sinto calor, até o presente jul- essas duas coisas diferem muito entre
guei que estes sentimentos procediam si; pois eu nada poderia colocar em dú-
de algumas coisas que existem fora de vida daquilo que a luz natural me reve-
mim; e enfim parece-me que as sereias, la ser verdadeiro, assim como ela me
os hipogrifos e todas as outras quime- fez ver, hã pouco, que, do fato de eu
ras semelhantes são ficções e inven- duvidar, podia concluir que existia. E
ções de meu espírito. Mas também tal. não tenho em mim outra faculdade, ou
vez eu possa persuadir-me de que poder, para distinguir o verdadeiro do
todas essas idéias são do gênero das falso, que me possa ensinar que aquilo
que eu chamo de estranhas e que vêm que essa luz me mostra como verda-
de fora ou que nasceram todas comigo deiro não o é, e na qual eu me possa
ou, ainda, que foram todas feitas por fiar tanto quanto nela. Mas, no que se
mim: pois ainda não lhes descobri cla- refere a inclinações que também me
ramente a verdadeira origem. E o que parecem ser para mim naturais, notei
devo fazer principalmente neste ponto frequentemente, quando se tratava de
é considerar, no tocante aquelas que escolher enire as virtudes é os vícios,
me parecem vir de alguns objetos loca- que elas não me levaram menos ao mal
lizados fora de mim, quais as razões do que ao bem; eis por que não tenho
que me obrigam a acreditá-las seme- motivo de segui-las tampouco no refe-
rente ao verdadeiro e ao falso.
lhantes a esses objetos,
I3. E, quanto à outra razão, segun-
ll. A primeira dessas razões é que do a qual essas idéias devem provir de
me paréce que isso me é ensinado pela alhures, porquanto não dependem de
natureza: e a segunda, que experi- minha vontade, tampolico à acho mais
mento em mim próprio que essas convincente *º, Pois, da mesma forma
idéias não dependem, de modo algum, que as inclinações, de que falava hã
de minha vontade; pois amiúde se pouco, se encontram em mim, não obs-
apresentam a mim mau grado meu, tante não se acordarem sempre com
como agora. quer queira quer não, eu minha vontade, e assim talvez haja em
sinto calor, e por esta razão persuado- mim alguma faculdade ou poder pró-
me de que este sentimento ou esta idéia prio para produzir essas idéias sem
de calor é produzido em mim por algo
diferente de mim mesmo, ou seja, pelo SE Começo da crítica do senso comum, que
compreenderá três argumentos,
calor do fogo ao pé do qual me encon- 5º Primeiro drgumento; impossibilidade de confiar
tro. E nada vejo que pareça mais num instinto pretensamente “natural”. ,.
éo Segundo argumento: ... nem na independência
razoável do que julgar que essa coisa aparente das idéias adventicias em relação à minha
estranha envia-me e imprime em mim vontade, para concluir que essas idéias têm certa-
sua semelhança, mais do que qualquer mente por origem uma coisa exterior a mim. É de
notar que a idéia de uma faculdade desconhecida
outra coisa. que era rejeitada na Meditação Segunda, porque ela
não podia valer contra úma idéia clara e distinta, é
12. Agora é preciso que eu veja se aqui admitida: Mas é para mostrar que nada posso
estas razões são suficientemente fortes concluir na ausência de uma ideia clara e disunta.
MEDITAÇÕES nl

auxílio de quaisquer coisas exteriores, formas de pensar, não reconheço entre


embora ela não me seja ainda conheci- elas nenhuma diferença ou desigual-
da; como, com efeito, sempre me pare- dade, e todas parecem provir de mim
ceu até aqui que, quando durmo, elas de uma mesma maneira; mas, conside-
se formam em mim sem a ajuda dos rando-as como imagens, dentre as
objetos que representam. E, enfim*?!, quais algumas representam uma coisa
ainda que eu estivesse de acordo que e as outras uma outra, é evidente que
elas são causadas por esses objetos, elas são bastante diferentes entre si,
não é uma conseguência necessária Pois, com efeito, aquelas que me repre-
que lhes devam ser semelhantes. Pelo sentam substâncias são, sem dúvida,
contrário. notei amiúde, em muitos algo mais e contêm em si (por assim
exemplos, haver uma grande diferença falar) mais realidade objetiva, isto é,
entre o objeto e sua idéia. Como, por participam, por representação, num
exemplo, encontro em meu espírito maior número de graus de ser ou de
duas idéias do sol inteiramente diver- perfeição do que aquelas que repre-
sas; uma toma sua origem nos sentidos sentam apenas modos ou acidentes *º,
e deve ser colocada no gênero daquelas Além do mais, aquela pela qual eu
que disse acima provirem de fora, e concebo um Deus soberano, eterno,
pela qual o sol me parece extrema- infinito, imutável, onisciente,. onipo-
mente pequeno; a outra é tomada nas tente e criador universal de todas as
razões da Astronomia, Isto é, em cer- cóisas que estão fora dele: aquela,
digo, tem certamente em si mais reali-
tas noções nascidas comigo. ou, enfim,
dade objetiva do que aquelas pelas
é formada por mim mesmo, de qual-
quais as substâncias finitas me são
quer modo que seja. e pela qual o sol
me parece muitas vezes maior do que a
representadas. .
16. Agora, é coisa manifesta pela
terra inteira. Por certo, essas duas
idéias que concebo do sol não podem s1 Terceiro argumento. É o mais importante,
ser ambas semelhantes ao mesmo sol; Supondo-se que a idéia tem de fato por origem uma
e a razão me faz crer que aquela que coisa Exterior, dai não resulta, no entanto, que ela
lhe seja semelhante, O juizo sobre a origem (X é
vem imediatamente de sua aparência é causa de Y) não autoriza, de modo algum, o juízo
a que lhe é mais dessemelhante. sobre o valor objetivo (Y ussemelha-se a X). Assim
14, Tudo isso me leva a conhecer fica definitivamente afastada a “via” do senso
cormim.
suficientemente que até esse momento
*2 “Eu não poderia dizer que ainda se apresenta
não foi por um julgamento certo e outra via se não houvesse anteriormente rejeitado
premeditado, mas apenas por um cego todas as outras-e, por este meio, preparado o leitor
a melhor conceber o que eu tinha a escrever” (A.
e temerário impulso, que acreditei T.. Vi 354). Tendo decidido eliminar os “juízos” de
haver coisas fora dê mim, e diferentes que parte o senso comum, partiremos das idéias
de meu ser, as quais, pelos órgãos de Somente, e perguntaremos: existem idéias tais que
não posso deixar de lhes reconhecer valor objetivo?
meus sentidos ou por qualquer outro: Por “ocasião” desta pesquisa é qué será demons-
meio que seja, enviam-me suas idéias trada a existência de Deus.
ou imagens é imprimem em mim suas 83 Cf G 23, — A “diferença” entre os conteúdos
não designa apenas a diferença desses conteúdos
semelhanças. mesmos (uma cadeira, um pedaço de cera, um gene-
15. Mas há ainda uma outra via $?2 ral), mas também a diferença de “seus graus-de ser
ou de perfeição”, conforme o objeto que represen-
para pesquisar se, entre as coisas das tam. “Perfeição” designa um bem que se deve natu:
quais tenho em mimas idéias, há algu- ralmente possuir é, como tal, pertence pois ao ser
mas que existem fora de mim. A saber, (cf. Gilson, Discours, 317), — Esta diferença quan-
titativa entre os graus de ser dos conteúdos possibr
caso essas idéias sejam tomadas so- litarã a aplicação do princípio de causalidade, enun-
mente na medida em que são certas ciado adiante.
12 DESCARTES

luz natural que deve haver ao menos zido em um objeto que dele era priva-
tanta realidade na causa eficiente e do anteriormente se não for por uma
total quanto no seu efeito: pois de onde coisa que seja de uma ordem, de um
é que o efeito pode tirar sua realidade grau ou de um gênero ao menos tão
senão de sua causa? E como poderia perfeito quanto o calor, e assim os
esta causa lha comunicar se não a outros. Mas ainda, além disso, a idéia
tivesse em si mesma8 4? do calor, ou da pedra, não pode estar
17. Daí decorre * º não somente que em mim se não tiver sido aí colocada
o nada não poderia produzir coisa por alguma causa que contenha em si
alguma, mas também que o que é mais ao menos tanta realidade quanto aque-
perfeito, isto é, o que contém em si la que concebo no calor ou na pedra.
mais realidade, não pode ser uma Pois, ainda que essa causa não trans-
decorrência e uma dependência do mita à minha idéia nada de sua reali-
menos perfeito. E esta verdade não é dade atual ou formal, nem por isso se
somente clara e evidente nos seus efei- deve imaginar que essa causa deva ser
tos, que possuem essa realidade que os menos real; mas deve-se saber que,
filósofos chamam de atual ou formal, sendo toda idéia uma obra do espírito,
mas também nas idéias onde se consi- sua natureza é tal que não exige de si
dera somente a realidade que eles cha- nenhuma outra realidade formal além
mam de objetiva: por exemplo, a pedra da que recebe e toma de empréstimo
que ainda não foi, não somente não do pensamento ou do espírito, do qual
pode agora começar a ser, se não for ela é apenas um modo, isto é, uma
produzida por uma coisa que possui maneira ou forma de pensar. Ora, a
em si formalmente, ou eminentemen- fim de que uma idéia contenha uma tal
te8 8, tudo o que entra na composição realidade objetiva de preferência a
da pedra, ou seja, que contêm em si as outra, ela o deve, sem dúvida, a algu-
mesmas coisas ou outras mais excelen- ma causa, na qual se encontra ao
tes do que aquelas que se encontram menos tanta realidade formal quanto
na pedra; eo calor não pode ser produ- esta idéia contém de realidade objeti-
va8”?, Pois, se supomos que existe algo
** Primeiro princípio invocado como “manifesto
pela luz natural”; princípio de causalidade (cf. 211 &
G 20, 21) Mas será este princípio, enunciado geral 87 Do ponto de vista de sua realidade Formal, as
mente; aplicável ao caso das idéias que nos preocu- idéias são simplesmente conteúdos do pensamento;
pam? Daí a necessidade de completá-lo como prin- mas, do ponto de vista de sua realidade objetiva,
cipio expresso no parágrafo segumte, que Guêéroull “aquela não há de satisfazer quem disser (somente)
denomina: “princípio de correspondência da idéia é que o próprio enténdimento é a causa delas”. (Pri
de seu ideatum”. meiras Respostas.) Trata-se de uma Inovação de
88 Nesse parágrafo dificil, mostra-se que o princí- Descartes. Para:a Filosofia tomista, “não havia pro-
pio de causalidade vale tanto no caso de uma “reali- blema especial da-causa do conteúdo das idéias..
dade atual ou formal” quanto no caso de uma “rea: porque este conteúdo, não sendo considerado como
lidade objetiva”, Traduzamos. Seja uma substância do ser, não requeria nenhuma causa própria..
existente ém ato: uma pedra, um homem. É evidente Nessas condições, o ser formal de meu conceito re-
que hã na causa que a prodúziu pelo menos tanta quer uma causa (o imtelecto que apreende & forma
realidade quanto nesta substância mesma. Seja da pedra). mas:o ser objetivo de meu conceito não a
agora & Idéia que eu tenho desta substância (isto é, requer”. (Gilson, Discours, 322.) Com Descartes,
uma “realidade objetiva” é não mais uma “reali- ao contrário, coloca-se uma questão que para à
dade atual ou formal”). É igualmente evidente que Escolástica não tinha sentido: posso fiar-me na
hã no ser existente (“atual ou formalmente”) que é idéia para afirmar o que se me aparece através dela?
causa desta idéia (ou desta “realidade objetiva”) “Como é que o sendo para nós é o próprio sendo?"
pelo menos tanta realidade Quento nesta idéia traduz Guéroult, ao fim de seu livro, (Op. cit. HI,
mesma. 305.) Através dos termos da ontologia medieval, és
E Uma causa contém “formalmente” seu efeito ontologia do que se convencionou chamar “o idea-
quando ela lhe é homogênea, e o contém “eminente- lismo: moderno", de Fiche a Husserl que aqui se
mente”, no caso contrário. CF. G 4. desenha.
MEDITAÇÕES 113

na idéia que não se encontra em sua tiradas, mas que jamais podem conter
causa, cumpre, portanto, que ela obte- algo de maior ou de mais perfeito 7º.
nha esse algo do nada; mas, por imper-
feita que seja essa maneira de ser pela 18. E quanto mais longa e cuidado-
qual uma coisa é objetivamente ou por samente examino todas estas coisas,
representação no entendimento por sua tanto mais clara e distintamente reco-
idéia ºº, decerto não se pode dizer, no nheço que elas são verdadeiras. Mas,
entanto, que essa maneira ou essa enfim, que concluirei de tudo isso?
forma não seja nada, nem por conse- Concluirei que, se a realidade objetiva
guinte que essa idéia tire sua origem do de alguma de minhas idéias é tal que
nada. Não devo também duvidar que eu reconheça claramente que ela não
seja necessário que a realidade esteja está em mim nem formal nem eminen-
formalmente nas causas dé minhas temente e que, por conseguinte, não
idéias, embora a realidade que eu con- posso, eu mesmo, ser-lhe a causa, dai
sidero nessas idéias seja somente obje- decorre necessariamente que não exis-
tiva, nem pensar que basta que essa to sozinho no mundo, mas que hã
realidade se encontre objetivamente em ainda algo que existe e que é a causa
suas causas **: pois, assim como essa desta idéia; ao passo que, se não se
maneira de ser objetivamente pertence encontrar em mim uma tal idéia, não
às idéias, pela própria natureza delas, terei nenhum argumento que me possa
do mesmo modo a maneira ou forma convencer e me certificar da existência
de ser formalmente pertence às causas de qualquer outra coisa além de mim
dessas idéias (ao menos às primeiras €& mesmo; pois procurei-os a todos cui-
principais) pela própria natureza delas. dadosamente e não pude, até agora,
E ainda que possa ocorper que uma encontrar nenhum 71,
idéia dê origem a uma outra idéia, isso
19. Ora, entre essas idéias, além
todavia não pode estender-se ao infini-
to, mas é preciso chegar ao fim a uma daquela que me representa a mim
primeira idéia, cuja causa seja um mesmo, sobre a qual não pode haver
como padrão ou original, na qual toda aqui nenhuma dificuldade, há uma
a realidade ou perfeição esteja contida outra que me representa um Deus, ou-
formalmente e em efeito, a qual só se tras as coisas corporais e inanimadas,
encontre objetivamente ou por repre- outras Os anjos, outras os animais,
sentação nessas idéias. De sorte que a outras, enfim, que me representam ho-
luz natural me faz conhecer evidente- mens semelhantes a mim. Mas, no que
mente que as idéias são em mim como se refere às ideias que me representam
quadros, ou imagens, que podem na outros homens ou animais, ou anjos,
verdade facilmente não conservar a
perfeição das coisas de onde foram 79 Conhecido pela luz natural, este princípio,
como o anterior, faz parte dessas noções primitivas
que escapam ao domínio do Grande Embusteiro.
ss Há imperfeição na medida em que o conteúdo Isso não significa que as idéias sejam efetivamente
representativo É privado da existência própria ao as imagens das coisas, porém me permite apenas
objeto que representa. Cf. Primeiras Respostas: “A aplicar o princípio de causalidade entre uma reali
maneira de ser pela qual uma coisa existe objetiva dade objetivae uma realidade atual.
mente ou por representação no entendimento por ?1 Recapitulação da exposição precedente (desde-o
sua idéia é imperfeita”, & 15) e posição do problema: encontrarei eu uma
58 Outra objeção possível: a idéia não terá como idéia cuja realidade objetiva seja tal que me seja
causa outra idéia é assim sucessivamente ao infini- absolutamente impossível imputar a sua causa a
to? Resposta; esta regressão é possivel, mas, cedo meu-exclusivo pensamento? Esta posítio quaestionis
ou tarde, chega-se a uma causa que possui uma reali- exige, pois, uma nova enumeração e classificação
dade “formal ou atual”. dos diversos gêneros de idéias.
liá DESCARTES

concebo facilmente que podem ser for- falsidade material 7*, a saber, quando
madas pela mistura e composição de elas representam o que nada é como se
outras idéias que tenho das coisas cor- fosse alguma coisa. Por exemplo, as
idéias que tenho do calor e do frio são
porais e de Deus, ainda que não hou-
tão pouco claras e tão pouco distintas,
vesse, fora de mim, no mundo, outros que por seu intermédio não posso dis-
homens, nem quaisquer animais ou cernir se o frio é somente uma priva-
anjos7Z. E quanto às idéias das coisas ção do calor ou o calor uma privação
corporais, nada reconheço de tão gran- do frio, ou ainda se uma e outra são
“de nem de tão excelente que não me qualidades reais ou não o são; e visto
pareça poder provir de mim mesmo; que, sendo as idéias como que ima-
pois, se as considero de mais perto, € gens, não pode haver nenhuma que não
se as examino da mesma maneira nos pareça representar alguma coisa,
como examinava, há pouco, a idéia da se é certo dizer que o frio nada é senão
cera, verifico que pouquíssima coisa privação do calor, a idéia que mo
nela se encontra que eu conceba clara representa como algo de real e de posi-
e distintamente: a saber, a grandeza ou tivo será sem despropósito chamada
a extensão em longura, largura e falsa, € assim outras idéias semelhan-
tes; às quais certamente não é neces-
profundidade; a figura que é formada
sário que eu atribua outro autor exceto
pelos termos e pelos limites dessa eu mesmo. Pois, se elas são falsas, isto
extensão; a situação que os corpos é, se representam coisas que não exis-
diferentemente figurados guardam tem, a luz natural me faz conhecer que
entre si; € o movimento ou a modifica- procedem do nada, ou seja, que estão
ção dessa situação; aos quais podemos em mim apenas porque falta algo à
acrescentar a substância, a duração e o minha natureza e porque ela não é
número 73, Quanto às outras coisas, inteiramente perfeita. E se essas idéias
como a luz, as cores, Os sons, os odo- são verdadeiras, todavia, já que me
res. os sabores, o calor. o frio é as ou- revelam tão pouca realidade que não
tras qualidades que caem sob o tato, posso discernir nitidamente a coisa
representada do não-ser, não vejo
encontram-se em meu pensamento
razão pela qual não possam ser produ-
com tanta obscuridade e confusão que zidas por mim mesmo e eu não possa
ipnoro mesmo se são verdadeiras ou ser o seu autor 78.
falsas e somente aparentes, isto é, se as
idéias que concebo dessas qualidades 74 Cf. a nossa-nota ao $ 9. Além da falsidade for-
mal, que é caso do juízo, Lemos a falsidade material.
são, com efeito, as idéias de algumas devida ao fato de certas idéias (sensíveis) serem ape-
coisas reais, ou se não me representam nas pseudo-idéias, isto é se apresentarem falsa-
apenas seres quiméricos que não mente a mim como dotadas de um caráter represen-
tativo. Mas existirão, no sentido estrito. idéias
podem existir. Pois, ainda que eu tenha completamente falsas por natureza? Não é aqui o
notado acima que só nos juízos é que lugar de decidilo. O fim do parágrafo levar-nos-á
simplesmente a obsérvar que, mesmo que essas
se pode encontrar a falsidade formal e idéias fossem verdadeiras idéias, comportam pelo
verdadeira, pode, no entanto, ocorrer menos um minimo de realidade objetiva e, como
que se encontre nas idéias uma certa tais, poderiam muito bem ser produzidas por mim
mesmo, É a única questão que nos interessa aqui.
7º Logo: BJExclusão das idéias das qualidades sen
** A) Exclusãodas realidades “animadas” (no senti- síveis corpóreas, Em 525, Descartes chama a aten-
do não estritamente cartesiano, visto que são incluí. çô de Gassendi para o fato de nunca ter dito que as
das as idéias dos animais). idéias das coisas sensíveis derivavam do espirito:
73 O exame das idéias claras e distintas das coisas “Somente: mostrei naquele ponto não haver nelas
“corporais « inanimadas” é remetido ao parágrafo tanta realidade. .. que se deva concluir que elas
seguinte: não podiam derivar do espírito só”,
MEDITAÇÕES 115

20. Quanto às idéias claras e distin- somente certos modos da substância, e


tas que tenho das coisas corporais, há como que as vestes sob as quais a
algumas dentre elas que, parece, pude substância corporal nos aparece, e que
tirar da idéia que tenho de mim sou, eu mesmo, uma substância, parece
mesmo? 8, como a que tenho da subs- que elas podem estar contidas em mim
tância, da duração, do número e de ou- eminentemente ”º.
tras coisas semelhantes. Pois, quando.
22. Portanto, resta tão-somente a
penso que a pedra é uma substância, idéia de Deus, na qual é preciso consi-
ou uma coisa que é por si capaz de
derar se há algo que não possa ter pro-
existir, é em seguida que sou uma subs-
vindo de mim mesmo? Pelo nome de
tância, embora eu conceba de fato que Deus entendo uma substância infinita,
sou uma coisa pensante e não extensa,
eterna, imutável, independente, onis-
e que a pedra, ao contrário, é uma ciente, onipotente e pela qual eu pró-
coisa extensa e não pensante, e que,
prio e todas as coisas que são (se é ver-
assim, entre essas duas concepções há dade que há coisas que existem) foram
uma notável diferença, elas parecem,
criadas e produzidas. Ora, essas vanta-
todavia, concordar na medida em que gens são tão grandes e tão eminentes
representam substâncias 7 7, Da mesma que, quanto mais atentamente -as consi-
maneira, quando penso que sou agora
dero, menos me persuado de que essa
e me lembro, além disso, de ter sido
idéia possa tirar sua origem de mim
outrora e concebo mui diversos pensa-
tão-somente. E, por conseguinte, é pre-
mentos, cujo número conheço, então
ciso necessariamente concluir, de tudo
adquiro em mim as idéias da duração e o que foi dito antes, que Deus existe?;
do número que, em seguida, posso pois, ainda que a idéia da substância
transferir a todas as outras coisas que esteja em mim, pelo próprio fato de ser
quiser 78, eu uma substância, eu não teria, toda-
21. Quanto às outras qualidades de via, a idéia de uma substância infinita,
cujas idéias são compostas as coisas eu que sou um ser finito, se ela não
corporais, a saber, a extensão, a figura. tivesse -sido colocada em mim por al-
a situação é o movimento de lugar, é
verdade que elas não estão formal- 7º DjExclusão da segunda classe das idéias das coi-
mente em mim, posto que sou apenas sas corporais, isto é, das idéias “dos atributos que
pertencem às coisas às quais são atribuídas”. (Prin-
uma coisa que pensa; mas, já que são eipios, 1,57.)
8» Aplicação do mesmo princípio de causalidade,
78 C) Exclusãode uma primeira classe de idéias das Contendo um máximo de realidade objetiva, a idéia
coisas corporais. de Deus envia necessariamente à uma causa que
contera, no minimo. um máximo absoluto dé reali-
77 “A noção que temos da substância criada refe- dade formal. Como eu não posso ser esta causa, É
re-se da mesma maneira a todas, isto&, aquelas quê mister concluir que Deus existe. Até agora proctra-
são imateriais assim como áquelas que são mate- va-se apenas, aparentemente. que idéia em mim
riais OU corporais; pois, para entender que são subs- podia ser reconhecida como investida de um valor
tâncias, é preciso apenas perceber que podem existir objetivo; Acabamos de acha-la, mas achamos ao
sem a ajuda de qualquer coisa criada.” (Princípios, miésmo tempo 4 primeira prova da existência de
E, 52.) Esta univocidade, de que se lança mão aqui. Deus pelos efeitos. Este 5 22 constitui uma volta
vale apenas para as “substancias criadas”, pois a decisiva. Pois a quarta verdade que acabamos assim
palavra “substância”, em compensação, já não tem de-estabelecer não é da mesma ordem que as prece-
à mesmo sentido quando aplicada a Deus é às cria- dentes: ela confere, por exemplo, sua verdade ao
turas; (Thid., $ 51) Cogito, ainda que eu não pense nele atualmente. Ela
18 CÊ; Princípios, |, 55; “Pensamos somente que a abole o poder do Grande Enganador, para nos
duração de cada coisa & um modo ou uma maneira transferir ao de um Deus garante da verdade-de mi-
como consideramos cada coisa enquanto ela conti- nhas- idéias claras e dislintas, Veja-se, a respeito
nua sendo” se 57, deste ponto, a obra de Guéroult.
16 DESCARTES

guma substância que fosse verdadeira- semelhantes: pois. ao contrário, sendo


mente infinita” !, esta idéia mui clara e distinta, e con-
23. E não devo imaginar*? que não tendo em si mais realidade objetiva do
concebo o infinito por uma verdadeira que qualquer outra, não há nenhuma
idéia, mas somente pela negação do que seja por si mais verdadeira nem
que é finito, do mesmo modo que com- que possa ser menos suspeita de erro €
preendo o repouso e as trevas pela de falsidade.
negação do movimento e da luz; pois, 25. A idéia, digo, desse ser sobera-
ao contrário, vejo manifestamente que namente perfeito e infinito é inteira-
há mais realidade na substância infi- mente verdadeira; pois, ainda que tal-
nita do que na substância finita e, por- vez se possa fingir que um tal ser não
tanto, que, de alguma maneira, tenho existe, não se pode fingir, todavia, que
em mim a noção do infinito anterior- sua idéia não me representa nada de
mente à do finito, isto é, de Deus antes real, como disse há pouco da idéia do
que de mim mesmo. Pois. como seria frio.
possível que eu pudesse conhecer que 26. Esta mesma idéia é também mui
duvido e que desejo, isto é, que me clara e distinta porque tudo o que meu
falta algo e que não sou inteiramente espírito concebe clara e distintamente
perfeito. se não tivesse em mim nenhu- de real e de verdadeiro, e que contém
ma idéia de um ser mais perfeito que o em si alguma perfeição, está contido e .
meu, em comparação ao qual eu encerrado inteiramente nessa idéia.
conheceria as carências de minha 27. E isto não deixa de ser verda-
naturezas3? deiro, ainda que gu não compreenda o
24. E nao se pode dizer que esta infinito, ou mesmo que.se encontre em
idéia de Deus talvez seja material- Deus uma infinidade de coisas que eu
mente falsa, e que, por conseguinte, eu não possa compreender, nem talvez
a possa ter do nada, isto é, que ela também atingir de modo algum pelo
possa estar em mim pelo fato de eu ter pensamento: pois é da natureza do infi-
carência, como disse acima, das idéias nito que minha natureza, que é finita e
de calor é de frio e de outras coisas limitada, não possa compreendê-lo; e
basta que eu conceba bem isto, e que
81 “É manifesto que tudo o que concebemos ser em julgue que todas as coisas que concebo
Deus dessemelhante às coisas externas não pode vir claramente, e nas quais sei que há al-
ao nosso pensamento por intermédio destas pró-
prias cóisas, mas somente pór mtermédio da causa guma perfeição, e talvez também uma
a diversidade, isto é. Deus.” (Terceiras Respos- infinidade de outras que ignoro, estão
ras em Deus formal ou eminentemente,
Es Aqui começa, até o $ 29, uma reflexão sobre a
prova quê acabo de obter; sua certeza é inabalável. para que a idéia que dele tenho seja a
és Cf, 526 E 563. — Sobre a precessão da noção mais verdadeira, a mais clara e a mais
de infinito com respeito à noção de finito, cf. Col:
com Burman (A. T., V, 153) e, sobretudo,o seguinte
distinta dentre todas as que se acham
texto que nos indica a orientação antidialética de em meu espírito? 4,
uma tal doutrina: “Nós não temos à intelecção do 28. Mas é possível também que eu
infinito por negação da limitação: e-do fato de a
limitação comer a negação do infinito infere-se erra- seja algo mais do que imagino ser E
damente que a negação da limitação contém o que todas as perfeições que atribuo à
conhecimento do infinito; posto que aquilo pelo que natureza de um Deus estejam de algum
o infinito difere do finito é real e positivo, mas, ao
comrário, a limitação pela qual o fimito difere do
infinito & não-ser ou negação do ser; ora, O que não 84 Não só posso conhecer o infinito sem o “com-
É não pode conduzir ao conheciménio do queÉ; preender”, mas o conhecimento desta incompreensi-
mas. inversamente, sua negação deve ser percebida bilidade me concede um conhecimento verdadeiro e
a partir do conhecimento da coisa”. (A. T., IN, pag: inteiro do infinito, embora cu tenha apenas um
427.) conhecimento parcial do que ele contém.
MEDITAÇÕES 117

modo em mim em potência, embora capaz de adquirir algum maior acrés-


ainda não se produzam e não façam cimo. Mas concebo Deus atualmente
surgir suas ações. Com efeito, já perce- infinito em tão alto grau que nada se
bo que meu conhecimento aumenta e pode acrescentar à sobérana perfeição
se aperfeiçoa pouco a pouco e nada que ele possui. E, enfim, compreendo
vejo que o possa impedir de aumentar muito bem que o ser objetivo de uma
cada vez mais até o infinito? *; pois, idéia não pode ser produzido por um
sendo assim acrescido e aperfeiçoado, ser que existe apenas em potência, O
nada vejo que impeça que eu possa qual, propriamente falando, não é
adquirir, por seu meio, todas as outras nada, mas somente por um ser formal
perfeições da natureza divina; e, enfim, ou atual.
parece que o poder que tenho para a 29. E por certo nada vejo em tudo o
aquisição dessas perfeições, se ele exis- que acabo de dizer que não seja muito
te em mim, pode ser capaz de aí impri- facil de conhecer pela luz natural a
mir e introduzir suas idéias. Todavia, todos os que quiserem pensar nisto
olhando um pouco mais de perto, reco-
cuidadosamente: mas, quando abrando
nheço que isto não pode-ocorrer; pois,
primeiramente, ainda que fosse verda-
um pouco minha atenção, achando-se
meu espírito obscurecido e como que
de que meu conhecimento adquire
todos os dias novos graus de perfeição
cegado pelas imagens das coisas sensi-
veis, não se lembra facilmente da razao
e que houvesse em minha natureza
pela qual a idéia que tenho de um ser
muitas coisas em potência que não
mais perfeito que o meu deva necessa-
existem ainda atualmente, todavia
riamente ter sido colocada em mim por
essas vantagens não pertencem e não
um ser que seja de fato mais perfei-
se aproximam de maneira alguma da
[A
idéia que tenho da Divindade, na qual
30. Eis por que desejo passar adian-
nada se encontra em potência, mas
te e considerar
se eu mesmo, que tenho
onde tudo & atualmente e efetivamente.
essa idéia de Deus, poderia existir, no
E não será mesmo um argumento infa-
caso de não haver Deus. E. pergunto,
lível e muito seguro de imperfeição em
de quem tirarei minha existência? Tal-
meu conhecimento o fato de crescer ele
pouco a pouco e aumentar gradativa- vez de mim mesmo, ou de meus pais,
mente? Demais, ainda que meu conhe- ou ainda de quaisquer outras causas
cimento aumentasse progressivamente, menos perfeitas que Deus; pois nada se
nem por isso deixo de conceber que ele pode imaginar de mais perfeito, nem
não poderia ser atualmente infinito, mesmo de igual a ele.
porquanto jamais chegará a tão alto 31. Ora, se eu fosse independente de
grau de perfeição que não seja ainda todo outro ser, e fosse eu próprio o
autor de meu ser?7, certamente não
st Da ue Descartes não poderá perceber duvidaria de coisa alguma, não mais
contradição na noção do “maior de todos os núme- conceberia desejos e, enfim, não me
ros": o que me impede de enumerar indefmidamente
ou talvez mesmo infinitamente? Mas poderei por no
faltaria perfeição alguma; pois eu me
mesmo plano este infinito que o meu conhecimento teria dado todas aquelas de que tenho
é talvez capaz de alingir (nada sej dele) e a presença alguma idéia e assim seria Deus.
atual do infinito à qual me envia a idéia de Deus? A
deia-dominante desse parágrafo é a oposição entre
o atualmente infinito e o infinito que não sepode s* Sobre à sentido da segunda prova (que aqui se
distinguir do indefinido. (Cf. Princípios, 1, 27) enceta), cl, 213.
Azerca da origem e do alcance matemático dessas &? Priméiro momento desta prova: posso eu ser
noções. consultar o cap. IV do Leibniz Critique de por mim mesmo? AjAdmitamos que sou o autor de
Descartes, de Belaval. mum mesmo...
118 DESCARTES

32. E não devo imaginar que as coi- maneira alguma das outras; é assim do
sas que me faltam são talvez mais difi- fato de ter sido um pouco antes não se
ceis de adquirir do que aquelas das segue que eu deva ser atualmente, a
quais já estou de posse; pois, ao não ser que neste momento alguma
contrário, é bem certo que foi muito causa me produza e me crie, por assim
mais dificil que eu, isto €, uma coisa ou dizer, novamente, isto é, me conserve.
uma substância pensante, haja saído 34. Com efeito, é uma coisa muito
do nada, do que me seria adquirir as clara e muito evidente?º (para todos os
luzes é os conhecimentos de muitas que considerarem com atenção a natu-
coisas que ignoro, e que sao apenas reza do tempo) que uma substância,
acidentes dessa substância. E, assim, para ser conservada em todos es
sem dificuldade, se eu mesmo me tivés- momentos de sua duração, precisa do
se dado essé mais de que acabo de mesmo poder e da mesma ação, que
falar, isto é, se eu fosse o autor de meu seria necessário para produzila e
nascimento e de minha existência, eu criá-la de novo, caso não existisse
não me teria privado ao menos de coi- ainda. De sorte que a luz natural nos
sas que são de mais fácil aquisição, a mostra claramente que a conservação
saber. de muitos conhecimentos de que e a criação não diferem senão com res-
minha natureza está despojada**; não peito à nossa maneira de pensar. e não
me teria tampouco privado de nenhu- em efeito. Cumpre, pois, apenas que eu
ma das coisas que estão contidas na me interrogue a mim mesmo para
idéia que concebo de Deus, pois não saber se possuo algum poder e alguma
ha nenhuma que me pareça de mais virtude que seja capaz de fazer de tal
dificil aquisição; e se houvesse alguma,
modo que eu, que sou agora, seja ainda
certamente ela me pareceria tal (su-
no futuro: pois, já que eu sou apenas
pondo que tivesse por mim todas as uma coisa pensante (ou ao menos já
que não se trata até aqui precisamente
outras coisas que possuo). porque eu
senão dessa parte de mim mesmo), se
sentiria que minha força acabaria neste
um tal poder residisse em mim, decerto
ponto e não seria capaz de alcançá-lo.
eu deveria ao menos pensálo e ter
33. E ainda que possa supor que
talvez tenha sido sempre como sou conhecimento dele: mas não sinto ne-
nhum poder em mimº? e por isso reco-
agora*º, ném por isso poderia evitar a
nheço evidentemente que dependo de
força desse raciocínio, e não deixo de
algum ser diferente de mim.
conhecer que é necessário que Deus 35. Poderá também ocorrer que este
seja o autor de minha existência, Pois ser de que dependo não seja aquilo que
todo o tempo de minha vida pode ser chamo Deus e que eu seja produzido
dividido em uma infinidade de partes, ou por meus pais ou por outras causas
cada uma das quais não depende de
3º Cumpre justificar a equação entre criação e
ss É impossível, em virtude do princípio: “Quem conservação, colocada ao fim do parágrafo anterior
pode o mais pode o menos”. Ora, é mais dificil criar e sem a qual a refutação já não disporia de força.
uma substância (mesmo finita) do que atribuir Mas lrata-se de um princípio ainda imposto pela
perfeições que jamais são algo exceto acidentes (of. descontinuidade dos momentos do lempo.
G 23). Logo, como não posso produzir omenos (as * Cfo 8 13,o0nde a hipótese de uma faculdade
perfeições de que tenho idéia). não posso produzir o desconhecida não era: repelida; mas tratava-se de
mais (ser O autor do meu ser). À hipótese é absurda, uma Faculdade “própria para produzir idéias”, e
“º B) Admitamos que cu exista sem causa À aqui trata-se de uma faculdade que poderia produzir
descontinuidade é a independência dos momentos a mim próprio com meu desconhecimento. Ora,
do tempo. invalidam de pronto esta hipótese, por: dado que eu aqui me considero sempre como sendo
quamo implicam a necessidade para mim de ser nada mais do que uma coisa pensante, tal hipótese é
conservado, em cada instante, por uma causa. dessa vez inaceitável.
MEDITAÇÕES 119

menos perfeitas do que ele*2? Muito não pode haver progresso até o infini-
ao contrário, isso não pode ser assim, to, posto que não se trata tanto aqui da
Pois, como já disse anteriormente, é causa que me produziu outrora como
uma coisa evidente que deve haver ao da que me conserva presentemente.
menos tanta realidade na causa quanto
36. Não se pode fingir também que
em seu efeito. E portanto, já que sou
talvez muitas causas juntas tenham
uma coisa pensante, e tenho em mim
concorrido em parte para me produzir,
alguma idéia de Deus, qualquer que
e que de uma recebi a idéia de uma das
seja, enfim, a causa que se atribua à
perfeições que atribuo a Deus, e de
minha natureza, cumpre necessaria-
outra a idéia de alguma outra, de sorte
mente confessar que ela deve ser de
que todas essas perfeições se encon-
igual modo uma coisa pensante e pos-
tram na verdade em alguma parte do
suir em si a idéia de todas as perfeições
Universo, mas não se acham todas jun-
que atribuo à natureza divina”, Em tas e reunidas em uma só que seja
seguida, pode-se de novo pesquisar se
Deus. Pois, ao contrário, a unidade, a
essa causa tem sua origem e sua exis-
simplicidade ou a inseparabilidade de
tência de si mesma ou de alguma outra
coisa. Pois se ela a tem de si própria* *, todas as coisas que existem em Deus é
uma das principais perfeições que con-
segue-se, pelas razões que anterior-
cebo existentes nele; e por certo a idéia
mente aleguei, que deve ser, ela
dessa unidade e reunião de todas as
mesma, Deus: porquanto, tendo a vir-
tude de ser e de existir por si, ela deve perfeições de Deus não foi colocada
também, sem dúvida, ter o poder de em mim por nenhuma causa da qual eu
possuir atualmente todas as perfeições não haja recebido também as idéias de
cujas idéias concebe, isto é, todas todas as outras perfeições. Pois ela não
aquelas que eu concebo como existen- maispode ter feito compreender juntas
tes em Deus. Se ela tira sua existência E inseparáveis, sem fazer ao mesmo
de alguma outra causa diferente de tempo com que eu soubesse o que elas
si??, fornar-se-á a perguntar, pela eram é que as conhecesse a todas de al-
mesma razão, a respeito desta segunda guma maneira* *,
causa, se ela é por si, ou por outrem, 37. No que se refere aos meus pais,
até que gradativamente se chegue a aos quais parece que devo meu nasci-
uma última causa que se verificará ser mento, ainda que seja verdadeiro tudo
Deus. E é muito manifesto que nisto quanto jamais pude acreditar a seu res-
peito, daí não decorre todavia que
** Segundo momento da prova: eu sei agora “que sejam eles qué me conservam, nem que
dependo de algum ser diferente de mim”, mas este me tenham feito e produzido enquanto
ser não poderá ser algo mais exceto Deus?
“3 Invocação do principio de causalidade é aplica- coisa pensante, pois apenas puseram
ção ao caso precedente. algumas disposições nessa matéria, na
és A) Esta causa estranha existe por si; ela deve,
portanto, Causar-se com lodas as perfeições de que
qual julgo que eu, isto é, meu espírito
tenho idéia. Portanto, ela é Deus. — a única coisa que considero atual-
*5 RB) Esta causa é. por sua vez, produzida por mente como eu próprio — se acha
ouira, mas é possivel remontar assim indefinida-
mente na série das caúsas? Não; aqui, não nos encerrado; e, portanto, não pode haver
assiste O direito, pois não se trata da causa que me aqui, quanto a eles, nenhuma dificul-
produziu (posso subsistir sem os meus pais), mas da dade, mas é preciso concluir necessa-
causa que me criou ou me conserva no ser a cada
instante do lempo. Vemos quão ligada se encontra riamente que, pelo simples fato de que
esta segunda prova à idéia cartesiana do tempo,
imposta pela Física. (Cf. Guéroult, op. cit 1. pgs.
272-85,) ss Cf. Col. com Burman, A. T.. V.pãgs. 154-55.
120 DESCARTES

eu existo e de que a idéia de um ser coisa imperfeita, incompleta e depen-


soberanamente perfeito, isto é, Deus, é dente de outrem, que tende e aspira
em mim, a existência de Deus está mui incessantemente a algo de melhor e de
evidentemente demonstrada* ?, maior do que sou, mas também conhe-
38. Resta-me apenas examinar de ço, ao mesmo tempo. que aquele de
que maneira adquiri esta idéia. Pois quem dependo possui em si todas essas
não a recebi dos sentidos e nunca ela grandes coisas a que aspiro € cujas
se ofereceu a mim contra minha expec- idéias encontro em mim, não indefini-
tativa, como o fazem as idéias das coi- damente e só em potência, mas que ele
sas sensíveis quando essas coisas se as desfruta de fato, atual e infinita-
apresentam ou parecem apresentar-se mente e, assim, que ele é Deus. E toda
aos drgãos exteriores de meus sentidos. a força do argumento de que aqui me
Não é também uma pura produção ou servi para provar a existência de Deus
ficção de meu espirito; pois não estã consiste em que reconheço que seria
em meu poder diminuir-lhe ou acres- impossível que minha natureza fosse
centar-lhe coisa alguma. E, por conse- tal como é, ou seja, que eu tivesse em
guinte, não resta outra coisa a dizer mim a idéia de um Deus, se Deus não
senão que, como a idéia de mim existisse verdadeiramente; esse mesmo
mesmo, ela nasceu e foi produzida co- Deus, digo eu, do qual existe uma ídéia
migo desde o momento em que fui em mim, isto é, que possui todas essas
criado. altas perfeições de que nosso espírito
39. E certamente não se deve achar pode possuir alguma idéia, sem, no
estranho que Deus, ao me criar, haja entanto, compreendê-las a todas, que
posto em mim esta idéia para ser como não é sujeito a carência alguma e que
que a marca do operário impressa em nada tem de todas as coisas que assi-
sua obra; e não é tampouco necessário nalam alguma imperfeição.
40. Daí é bastante evidente que ele
que essa marca seja algo diferente da
não pode ser embusteiro. posto que a
- própria obra. Mas pelo simples fato de
luz natural nos ensina que o embuste
Deus me ter criado?*, é bastante crível
depende necessariamente de alguma
que ele, de algum modo, me tenha pro-
carência?º,
duzido à sua imagem e semelhança e 41. Mas, antes de examinar mais
que eu conceba essa semelhança (na cuidadosamente isso e passar à consi-
qual a idéia de Deus se acha contida) deração das outras verdades que daí se
por meio da mesma faculdade pela podem inferir, parece-me muito a pro-
qual me concebo a mim próprio; isto pósito deter-me algum tempo na con-
quer dizer que, quando refhito sobre templação deste Deus todo perfeito,
mim, não só conheço que sou uma ponderar totalmente à vontade seus
maravilhosos atributos, considerar, ad-
*7 Deus é colocado como causa de si, autor de meu
ser E soberanamente perfeito. É a quinta verdade. mirar e adorar a incomparável beleza
Guéroult acentua que, se à primeira prova é a mais dessa imensa luz, ao menos na medida
importante (ao menos na ordem das razões. que não em que a força de meu espírito, que
se deve confundir com a ordem das coisas), posto
que só ela me permite colocar Deus, passar do sub- queda de algum modo ofuscado por
jetivo ão objetivo, esta segunda prova, por seu ele, mo puder permitir.
tumo, me faz conhecer melhor quem ele é, CÍ Prin- 42. Pois, como a fé nos ensina que a
cipios, I, 22.
*s Todas as coisas criadas se parecem com seu
criador, pelo menos na medida em que são, como “º Assim fica cumprido o programa em dois pon-
ele, substâncias. Quanto mais ser ele lhes concedeu, tos, traçado no $ 5: 1.º Deus existe; 2.º Deus não é
mais elas se lhe parecem, enganador.
MEDITAÇÕES 1

sobérana felicidade da outra vida não ção, embora incomparavélmente


consiste senão nessa contemplação da menos perfeita, nos faz gozar do maior
Majestade divina, assim perceberemos, contentamento de que sejamos capazes
desde agora, que semelhante medita- de sentir nesta vida.
MEDITAÇÃO QUARTA'!ºº
Do Verdadeiro e do Falso

1. Acostumei-me de tal maneira ser completo e independente, ou seja,


nesses dias passados a desligar meu de Deus, apresenta-se a meu espirito
espirito dos sentidos e notei tão exata- com igual distinção é clareza; e do
mente que hã muito poucas coisas que simples fato de que essa idéia se encon-
sé conhecem com certeza no tocante às tra em mim, ou que sou ou existo, eu
coisas corporais. que hã muito mais que possuo esta idéia, concluo tão
que nos são conhecidas quanto ao evidentemente a existência de Deus &
espírito humano, e muito mais ainda que a minha depende inteiramente dele
quanto ao próprio Deus!º?, que agora em todos os momentos de minha vida,
desviarei sem nenhuma dificuldade que não penso que o espirito humano
meu pensamento da consideração das possa conhecer algo com maior evi-
coisas sensíveis ou imagináveis. para dência e certeza'º2. E'já me parece
dirigilo aquelas que, sendo. despren- que descubro um caminho que nos
didas de toda matéria, são puramente conduzirá desta contemplação do ver-
inteligíveis. dadeiro Deus (no qual todos os tesou-
2. E certamente a idéia que tenho ros da ciência e da sabedoria estão
do espírito humano, enquanto é uma encerrados) ao conhecimento das ou-
coisa pensante é não extensa, em lon- tras coisas do Universo! 93,
gura, largura e profundidade, e que 3. Pois, primeiramente, reconheço
não participa de nada que pertence ao que é impossível que ele me engane
corpo, é incomparavelmente mais dis- jamais. posto que em toda fraude e
tinta do que-a idéia de qualquer coisa embuste se encontra algum modo de
corporal. E quando considero que imperfeição. E, conquanto pareça que
duvido, isto é, que sou uma coisa poder enganar seja um sinal de sutileza
incompleta e dependente, a idéia de um ou de poder, todavia querer enganar
testemunha indubitavelmente fraqueza
100 Plano da Meditação: ou malícia. E, portanto, isso não se
$$ 1-2: recapitulação: pode encontrar em Deus.
853-5: esboço de uma solução para ino= 4. Em seguida, experimento em
centar Deus do erro;
56: rejeição desta solução;
987-8: dois argumentos metafísicos pos- 192 Reconheço. pois. agora. que Deus & a coisa
SÍVEIS; mais facil de conhecer, embora sendo, lembremo-lo:
B49-12; recurso à Psicologia e explica- incompreerisivel.
ção dó mecanismo do erro; toa Este “caminho” é a confrontação de duas teses
5913-14: Deus desculpado do erro; aparentemente contraditórias: 1.º fui criado por um
$915-17: retorno à Metafísica é valida- Deus não enganador; 2.º devo reconhecer que sou
ção da regra da claridade c da distmção. sujeito-ao erró. CL à oscilação entre O princípio da
rot Deus é, portanto, mais conhecido do que o dúvida universal é O fato da certeza do Cogito, no
meu Eu pensante, começa da Metlitação precedente.
124 DESCARTES

mim mesmo certa capacidade de jul- modo que não devo espantar-me se me
gar, que sem dúvida recebi de Deus, do engano,
mesmo modo que todas as outras coi- 5. Assim, conheço que o erro en-
sas que possuo; e como ele não quere- quanto tal não é algo de real que
ria iludir-me, é certo que ma deu tal dependa de Deus, mas que é apenas
uma carência; e, portanto, que não
que não poderei jamais falhar, quando
tenho necessidade, para falhar, de
a usar como é necessário. E não resta-
algum poder que me tenha sido dado
ria nenhuma dúvida quanto a esta ver- por Deus particularmente para esse
dade, se não fosse possível, ao que efeito, mas que ocorre que eu me enga-
parece, inferir dela a consequência de ne pelo fato de o poder que Deus me
que assim nunca me enganei; pois se doou para discernir o verdadeiro do
devo a Deus tudo o que possuo e se ele falso não ser infinito em mim'º8,
não me deu nenhum poder para falhar, 6. Todavia, isto ainda não me satis-
parece que nunca devo enganar-me! 4, faz inteiramente"º 8: pois o erro não é
E, na verdade, quando penso apenas uma pura negação, isto é, não é a sim-
em Deus, não descubro em mim ples carência ou falta de alguma perfei-
nenhuma causa de erro ou de falsida- ção que me não é devida, mas antes é
uma privação de algum conhecimento
de; mas em seguida, retornando a mim,
que parece que eu deveria possuir. E,
a experiência me ensina que estou, não
considerando a natureza de Deus, não
obstante, sujeito a uma infinidade de me parece possível que me tenha dado
erros e, ao procurar de mais perto a alguma faculdade que seja imperfeita
causa deles, noto que ao meu pensa- em seu gênero, isto é, à qual falte algu-
mento não se apresenta somente uma ma perfeição que lhe seja devida; pois,
idéia real e positiva de Deus, ou seja, se é verdade que, quanto mais um arte-
de um ser soberanamente perfeito, mas são é perito mais as obras que saem de
também, por assim dizer, uma certa suas mãos são perfeitas e acabadas,
idéia negativa do nada, isto é, daquilo que ser imaginaríamos nós que, produ-
que estã infinitamente distante de toda zido por esse soberano criador de
sorte de perfeição; E que sou como que todas as coisas, não fosse perfeito e
um meio entre Deus e o nada, isto é, inteiramente acabado em todas as suas
colocado de tal maneira entre o sobe- partes? E por certo não há dúvida de
rano ser e O não-ser que nada se encon- que Deus só pode me ter criado de tal
tra em mim, na verdade, que me possa
maneira que jamais eu pudesse enga-
conduzir ao erro, na medida em que nar-me; é certo também que ele quer
sempre aquilo que é o melhor: ser-me-
um soberano ser me produziu: mas
que, se me considero participante de
à, pois, mais vantajoso falhar do que
não falhar1977
alguma maneira do nada ou do não-
ser, isto é, na medida em que não sou
198 Estando o errono homem devido ao Taty de ele
eu próprio o soberano ser, acho-me também participar do nada é não sendo 0 nada
exposto a uma infinidade de faltas, de causa de nada (G 20), pode parecer que o erro fica
assim explicado e Deus desonipado. ,
to Por que? É queo erro não está em mim como
tos Eno entanto eu me engano... É a própria simples falta de ser, como admite com demasiada
colocação do problema da Teodicéia: Deus, meu rapidez-a solução anterior, mas como uma “imper-
criador, é miinitamente perfeito; ora, o erro e o mal feição positiva”. Não é uma simples ignorância,
existem de fato; como desculpar Deus disso? À bem mas uma ignorância que eu dou por uma verdade.
dizer, O probléma assim colocado preocupa menos Mais do que uma negação: uma privação.
Descartes do que este outro: como, salvaguardando *92 O reconhecimento do erro como privação des-
definitivamente a veracidade de Deus. garantir loca o problema: já que Deus quer sempre o melhor,
definitivamente “a: possibilidade “do conhecimento será melhor que o homem tenha sido afetado de
das outras coisas do Universo”? uma privação?
MEDITAÇÕES 125

7. Considerando isso com mais mesma coisa que poderia talvez, com
atenção, ocorre-me inicialmente ao alguma forma de razão, parecer muito
pensamento que me não devo espantar imperfeita, caso estivesse inteiramente
se minha inteligência não for capaz de só, apresenta-se muito perfeita em sua
compreender por que Deus faz o que natureza, caso seja encarada como
faz e que assim não tenho razão algu- parte de todo este Universo. E, embo-
ma de duvidar de sua existência, pelo ra, desde que me propus a tarefa de
fato de que, talvez, eu veja por expe- duvidar de todas as coisas, eu tenha
riência muitas outras coisas sem poder conhecido com certeza apenas minha
compreender por que razão nem como existência e a de Deus, todavia tam-
Deus as produziu" º%, Pois, sabendo já bém, já que reconheci o infinito poder
que minha natureza é extremamente de Deus, não poderia negar que ele não
fraca é limitada, e, ao contrário, que a tenha produzido muitas outras coisas,
de Deus é imensa, incompreensível e ou, pelo menos, que não as possa pro-
infinita" ºº, não mais tenho dificuldade duzir, de sorte que eu exista e seja
em reconhecer que há uma infinidade:
de coisas em sua potência cujas causas colocado no mundo como parte da
ultrapassam o alcance de meu espírito, universalidade de todos os seres.
9. E, em seguida, olhando-me de
E esta única razão é suficiente para
persuadir-me de que todo esse gênero mais perto e considerando quais são
meus erros (que apenas testemunham
de causas que se costuma tirar do
haver imperfeição em mim), descubro
fim não é de uso algum nas coisas físi-
cas ou naturais; pois não me parece que dependem do concurso de duas
que eu possa sem temeridade procurar causas, a saber, do poder de conhecer
e tentar descobrir os fins impenetráveis que existe em mim e do poder de esco-
de Deus! !º, . - lher, ou seja, meu livre arbítrio; isto é,
8. Demais, vem-me ainda ao espí- de meu entendimento e conjuntamente
rito que não devemos considerar uma de minha vontade'!2. Isto porque, só
única criatura separadamente, quando pelo entendimento, não asseguro nem
pesquisamos se as obras de Deus são nego coisa alguma, mas apenas conce-
perfeitas, mas de uma maneira geral bo as idéias das coisas que posso asse-
todas as coisas em conjunto!" '*, Pois a gurar ou negar, Ora, considerando-o
assim precisamente, pode-se dizer que
108 Primeiro argumento metafísico possível: recur- jamais encontraremos nele erro algum,
so à incompreensibilidade de Deus. Ela possibilita a desde que se tome a palavra erro em
tese: “O erro pode ser bom sem o nosso conheci- sua significação própria. E, ainda que
mento" Cf. Princípios, MI, 2,
tuê Podemos medir a diferença entre u finitude haja talvez uma infinidade de coisas
cartesiana é a finitude kantiana, se advertirmos que neste mundo das quais não tenho idéia
Kant poderia escrever o primeiro membro: desta
frase, mas nunca o segundo. alguma em meu entendimento, não se
*tº Fundamentação metafísica da exclusão das pode por isso dizer que ele seja privado
causas finais em Física. À respeito, cf. Col. com dessas idéias como de algo que seja de-
Burman (A. T., V, pãg. 158) e Princípios, 1, 28.
“Não devemos presumir tanto de nós mesmos 3 vido à sua natureza, mas somente que
ponto de crer que Deus nos quisesse participar seus não as tem: porque, com efeito, não há
conselhos...” razão alguma capaz de provar que
111 Segundo argumento metafísico possível: o que
eu percebo como imperfeição só é verdade em rela- Deus devesse dar-me uma faculdade de
ção a mim = não ao conjunto do Universo. Argu- conhecer maior e mais ampla do que
mento que se inscreve na linha das teodicéias clássi-
cas dos estóicos e de Santo Agostinho até Leibniz
(e, se se quer, até essas Leodicéias modernas que são 12 Recurso ao exame das faculdades psicológicas.
o hegelianismo é O marxismo). Deve-se observar Será sucessivamente mostrado que, nem a presença
que, apelando este argumento para a idéia de Uni em mim do entendimento, nem a da vontade, me
verso, é necessário tornar o recorso a esta compa- autorizam a queixar-me de uma privação qualquer
tivel com a ordem, neste lugar. e portanto, de uma imperfeição em Deus.
126 DESCARTES

aquela que me deu; e, por hábil e enge- sinto ser em mim tão grande, que não
nhoso operário que eu mo represente, concebo absolutamente a idéia de
nem por isso devo pensar que devesse nenhuma outra mais ampla e mais
pôr em cada uma de suas obras todas extensa: de sorte que é principalmente
as perfeições que pôde por em algu- ela que me faz conhecer que eu trago a
mas. Não posso tampouco me lastimar imagem e a semelhança de Deus. Pois,
de que Deus não me tenha dado um anda que seja incomparavelmente
livre arbítrio ou uma vontade bastante maior em Deus do que em mim, quer
ampla e perfeita, visto que, com efeito, por causa do conhecimento e do poder,
eu à experimento tão vaga e tão exten- que, aí se encontrando juntos, a tor-
sa que ela não está encerrada em nam mais firme e mais eficaz, quer por
quaisquer limites! 1º. E o que me pare- causa do objeto, na medida em que a
ce muito notável neste ponto é que, de vontade se dirige e se estende infinita-
todas as outras coisas existentes em mente a mais coisas; ela não me pare-
mim, não há nenhuma tão perfeita é ce, todavia, maior se eu a considero
tão extensa que eu não reconheça efeti- formal e precisamente nela mesma!" 8,
vamente que ela poderia ser ainda Pois consiste somente em que podemos
maior e mais perfeita. Pois, por exem- fazer uma coisa ou deixar de fazer (isto
plo, se considero a faculdade de conce- é, afirmar ou negar, perseguir ou fugir)
ber que hã em mim, acho que ela é de ou, antes, somente em que, para afir-
uma extensão muito pequena e grande- mar ou negar, perseguir ou fugir às
mente limitada e, ao mesmo tempo, eu coisas que o entendimento nos propõe,
me represento a idéia de uma outra agimos de tal maneira que não senti-
faculdade muito mais ampla e mesmo mos absolutamente que alguma força
infinita; é, pelo simples fato de que me exterior nos obrigue a tanto! ! ?, Pois,
posso representar sua idéia, conheço para que eu seja livre, não é necessário
sem dificuldade que ela pertence à que eu seja indiferente na escolha de
natureza de Deus. Da mesma manei- um ou de outro dos dois contrários;
raliº, se examino a memória ou a mas antes, quanto mais eu pender para
imaginação, ou qualquer outro poder, um, seja porque eu conheça evidente-
não encontro nenhum que não seja em mente que o bom é o verdadeiro aí se
mim muito: pequeno e limitado e que encontrem, seja porque Deus disponha
em Deus-não seja imenso e infinito! 13, assim o interior do meu pensamento,
Resta tão-somente a vontade, que eu tanto mais livremente o escolherei e o
abraçarei. E certamente a graça divina
13 Nota-se que a infinidade da vontade é primeiro
evocada quanto à prandeza: “Não se encontra
encerrada em quaisquer limites... a idéia de outra 11 E Passagem que significa: a vontade marca 'a
mais ampla e mais extensa”, É por di, com efeito, minha semelhança com Deus, menos por ser ela
que ela mais difere do entendimento, para o qual ha infinita em grandeza (pois este infinito ainda é ape-
coisas incognosciveis de direito (o conteúdo do infi- nas indefinido com respeito a Deus) do que por ser.
nito em Deus), Nele tanto quanto em mim, poder absoluto do sim €
tis Esta passagem quererá dizer que a finitude do do não.
entendimento é do mesmo gênero que a da imagina- 117 Esse poder absoluto nunca está mais próximo,
ção? Guéroult nega e observa (op: cil, págs. no homem, daquele que hã em Deus, do que ao ser
328-29) que, sea finitude da imaginação é corporal, ele iluminado pelo entendimento. Eis por que
a do entendimento é antes uma “indefinitude”: importa distinguir aqui esta “potência real e posi-
nosso conhecimento pode aumentar “pradativa- tiva de se determinar” que Deus nos concedeu da
mente-até o infinito”, o que constitui uma espécie de “indiferença”, estado no qual a vontade, não sendo.
finitude em face-da infinitude positiva de Deus: iluminada por nenhuma razão num ou noutro senti-
118 É uma maneira de falar, pais à memória (que do, estã afastada ao máximo da de Deus. Cf. Car-
supõe a sucessão temporal) e a imaginação (que tus, a Mesland, 2 de mmo de 1644, Esta “indife-
“supõe a união à um corpo) não se encontram em rença” possível da vontade humana desempenhará
Deus. papel decisivo no parágrafo seguinte.
MEDITAÇÕES 127
e o conhecimento natural, longe de facilmente e escolhe o mal pelo bem ou
diminuírem minha liberdade, antes a o falso pelo verdadeiro. O que faz com
aumentam e a fortalecem. De maneira que eu me engane e peque! 'º,
que esta indiferença que sinto, quando 11. Por exemplo, examinando, estes
não sou absolutamente impelido para dias passados'?º, se alguma coisa
um lado mais do que para outro pelo existia no mundo e reconhecendo que,
peso de alguma razão, é o mais baixo pelo simples fato de examinar esta
grau da liberdade, e faz parecer mais questão, decorria necessariamente que
uma carência no conhecimento do que eu próprio existia, não podia impedir-
uma perfeição na vontade; pois, se eu me de julgar que era verdadeira uma
conhecesse sempre claramente o que é coisa que concebia tão claramente, não
verdadeiro e o que é bom, nunca esta- que a isso me achasse forçado por al-
ria em dificuldade para deliberar que guma causa exterior, mas somente por-
juízo ou que escolha deveria fazer; e que a uma grande clareza que havia no
assim seria inteiramente livre sem meu entendimento seguiu-se uma forte
nunca ser indiferente! 18, inclinação em minha vontade; e fui le-
10. De tudo isso reconheço que vado a acreditar com tanto mais liber-
nem o poder da vontade, o qual recebi dade quanto me encontrei com menos
de Deus, não é em si mesmo a causa de indiferença. Ao contrário, agora não
meus erros, pois é muito amplo e somente sei que existo na medida em
muito perfeito na sua espécie; nem que sou alguma coisa que pensa, mas
tampouco o poder de entender ou de apresenta-se também ao meu espírito
conceber: pois, nada concebendo uma certa idéia da natureza corpórea;
senão por meio deste poder que Deus o que faz com queseu duvide se esta
me conferiu para conceber, não há dú- natureza pensante que existe em mim,
vida de que tudo o que concebo, conce- ou antes, pela qual eu sou o que sou, é
bo como é necessário e não é possível diferente dessa natureza corpórea, ou
que nisso me engane. Donde nascem, ainda, se ambas não são senão uma
pois, meus erros? A saber, somente de mesma coisa. E suponho, aqui, que
que, sendo a vontade muito mais não conheço ainda nenhuma razão que
ampla e extensa que o entendimento, me persuada de uma coisa mais do que
eu não a contenho nos mesmos limites, de outra: donde se segue que sou intei-
mas estendo-a também as coisas que ramente indiferente quanto a negá-lo
não entendo; das quais, sendo a vonta- ou assegurá-lo, ou mesmo ainda a abs-
de por si indiferente, ela se perde muito ter-me de dar algum juízo a este
respeito.
Na Sobre o-fim desse parágrafo, cf. as especifica- 12. E essa indiferença não se esten-
ções essenciais oferecidas pela carta a Mesland, de de somente às coisas das quais o enten-
9 de fevereiro de 1654, onde Descartes distingue
entre'a liberdade antes da ação e enquanto se exerce
q ação. Só no segundo momento, diz ele, é quea Nº O conhecimento do mecanismo do erro aqui
liberdade “consiste apenas na facilidade que temos obtido constitui à sexta verdade. O erro é possivel
de operar... e foi neste sentido que escrevi que me porque a vontade livre, fundamentalmente indife-
dirigia tanto mais livremente a uma coisa quanto rente, pode tornar-se “indiferente” no segundo senti-
era a ela impelido por mais razões”. Para Mersenne, do da palavra — no caso, pronunciar-se sobre o que
ele súblinha também “que somos sempre livres de ela não entende inteira ou suficientemente, “E quan-
deixar de perseguir um bem que nos é claramente do dela abusamos deste modo, não é de admirar que
conhecido ou de adquirir uma verdade eviden- cheguemos a nos equivocar.” (Princípios, 1,35.)
te... (27 de maio de 1641). Assim, Descartes 120 Os 86 lie 12 tram a conclusão da verdade
pode manter, aO mesmo tempo e sem contradição, a precedente, mostrando-me como devo usar meu
iiberdade-indeterminação e a liberdade-esponta- livre arbítrio a fim de evitar o erro; ao mesmo
neidade, Cf. uma crítica desta última em Sartre, tempo, orientam-nos para outra verdade: a confir-
Situations, 1, pág: 317. mação definitiva da veracidade de Deus.
128 DESCARTES

dimento não tem nenhum conheci- me deu uma inteligência mais capaz,
mento, mas geralmente também a ou uma luz natural maior do que aque-
todas aquelas que ele não descobre la que dele recebi, posto que, com efei-
com uma clareza perfeita no momento to, é próprio do entendimento finito
em que a vontade delibera sobre elas; não compreender uma infinidade de
pois, por prováveis que sejam as conje- coisas e próprio de um entendimento
turas que me tornam inclinado a julgar criado o ser finito: mas tenho todos os
alguma coisa, o tão-só conhecimento motivos de lhe render graças pelo fato
que tenho de que são apenas conjetu- de que, embora jamais me devesse
ras e não razões certas e indubitáveis algo, me tenha dado, não obstante,
basta para me dar ocasião de julgar o todo o pouco de perfeição que existe
contrário. Isto é o que experimentei emynim; estando bem longe de conce-
suficientemente nesses dias passados, ber sentimentos tão injustos como o de
ao estabelecer como falso tudo o que imaginar que ele me tirou ou reteve
tivera antes como muito verdadeiro, injustamente as outras perfeições que
pelo simples fato de ter notado que se não me deu'22, Não tenho também
podia duvidar disso de alguma manei- motivo de me lastimar do fato de me
haver dado uma vontade mais ampla
13, Ora, se me abstenho de formu- do que o entendimento, uma vez que,
lar meu juízo sobre uma coisa, quando consistindo a vontade em apenas uma
não a concebo com suficiente clareza € coisa, e sendo seu sujeito como que
distinção, é evidente que o utilizo indivísivel, parece que sua natureza é
muito bem e que não estou enganado; tal que dela nada se poderia tirar sem
mas, se me determino a negá-la ou a destruí-la; e, certamente “quanto maior
assegurá-la, então não me sirvo como for ela, mais tenho que agradecer a
devo de meu livre arbítrio; se garanto o bondade daquele que ma deu'2?3. E,
que não é verdadeiro, é evidente que enfim, não devo também lamentar-me
me engano, € até mesmo, ainda que jul- de que Deus concorra comigo para for-
gue segundo a verdade, isto não ocorre mar os atos dessa vontade, isto é, os
senão por acaso e eu não deixo de fa- Juízos nos quais eu me engano, porque
lhar e de utilizar mal o meu livre arbí- esses atos são inteiramente verdadeiros
trio; pois a luz natural nos ensina que e absolutamente bons na medida em
o conhecimento do entendimento deve que dependem de Deus; e há, de algu-
sempre preceder a determinação da ma forma, mais perfeição em minha
vontade, E é neste mau uso do livre natureza, pelo fato de que posso
arbítrio que se encontra a privação que formá-los, do que se não o pudesse! 2 *,
constitui a forma do erro!21. A priva- Quanto à privação, que consiste na
ção, digo, encontra-se na operação na única razão formal do erro e do peca-
medida em que procede de mim; mas do, não tem necessidade de nenhum
ela não se acha no poder que recebi de concurso de Deus, já que não é uma
Deus, nem mesmo na operação na me-
dida em que ela depende dele. Pois não
t22 a) A finitude de mey entendimento não pode
tenho certamente nenhum motivo de ser imputada a Deus como uma imperfeição. Cf.
me lastimar pelo fato de que Deus não Princípios 1, 36.
123 b) Quanto à vontade, não só não tenho por
que me queixar, mas devo ser reconhecido a Deus
'21 O erro é, portanto, agora reconhecido como por ma ter dado mfinita.
privação, contrariamente ao que se passava na 124. c) Que minha vontade possa formar juízosé
pscudo-solução do $ 5, E, não obstante, Deus será ainda uma perfeição. Assim, tomados um a um, os
disso desculpado por quatro considerações: “Não elementos que concorrem ao erro humano não cons-
tenho nenhum motivo de me lastimar. .:” tituem sinal de nenhumnão-ser ou de nenhum mal,
MEDITAÇÕES 129

coisa ou um ser é que, se à relacio- criado de modo que eu nunca falhas-


namos a Deus como à sua causa, ela se!27. Mas não posso por isso negar
não deverá ser chamada privação mas que não seja, de alguma maneira, a
somente negação, segundo o signifi- maior perfeição em todo o Universo o
cado que se atribui a essas palavras na fato de algumas de suas partes não
Escola!28, serem isentas de defeitos, do que se
14. Pois, com efeito, não é uma fossem todas semelhantes. E não tenho
imperfeição em Deus o fato de ele me nenhum direito de me lastimar se
haver concedido a liberdade de dar Deus, tendo-me colocado no mundo,
meu juízo ou de não o dar sobre certas não me tenha querido colocar na
coisas, a cujo respeito ele não pôs um ordem das coisas mais nobres e das
claro e distinto saber em meu entendi- mais perfeitas; tenho mesmo motivo de
mento; mas, sem dúvida, é em mim me rejubilar porque, se ele não me con-
uma imperfeição o fato de eu não a cedeu a virtude de jamais falhar atra-
usar corretamente e de dar temeraria- vés do meio a que me referi acima, que
mentê meu juizo sobre coisas que eu depende de um claro e evidente conhe-
concebo apenas com obscuridade e cimento de todas as coisas a respeito
confusão! 2 &, das quais posso deliberar, ele ao menos
15, Vejo, no entanto, que era fácil a deixou em meu poder o outro meio,
Deus fazer de sorte que eu nunça me que é reter firmemente a resolução de
enganasse, embora permanecesse livre jamais formular meu juízo a respeito
e com um conhecimento limitado, a de coisas cuja verdade não conheço
saber, dando a meu entendimento uma claramente'28, Pois, embora eu note
clara e distinta inteligência de todas as essa fraqueza em minha natureza, de
coisas a respeito das quais eu devia al- não poder ligar continuamente meu
guma vez deliberar, ou, então, se ape- espírito a um mesmo pensamento,
nas houvesse gravado tão profunda- posso, todavia, por uma meditação
mente em minha memória a resolução atenta e amiúde reiterada, imprimi-la
de nunca julgar a respeito de alguma tão fortemente na memória, que não
coisa sem concebê-la clara e distinta- deixe jamais de lembrar-me, todas as
mente de sorte que eu nunca a pudesse vezes de que tiver necessidade, e adqui-
esquecer. E noto efetivamente que, rir, desta maneira, o hábito de nunca
enquanto me considero inteiramente falhar. E, na medida em que é nisto
sô, como se apenas eu existisse no
mundo, teria sido muito mais perfeito '27 Descartes sentir-se-á agora inteiramente satis-
do que sou caso Deus me houvesse feito? Não parece. Pois, afinal, Deus dispunha do
meio de não permitir o erro — e ele o permitiu. Dai
por que, definitivamente, a dialética cartesiana
125 d) Mas o próprio erro, na medida em que necessita dos argumentos clássicos da Teodicéia:
resulta do jogo dos elementos anteriores, sem dúvi- por que não teria Deus concedido todas as perfer-
da é privação ou imperfeição em nós, mas não é ções? Não é melhor parao lodo que haja imperfei-
produzido por Deus. O erro provém do fato de Deus ções nas partes? É mister, na verdade, recorrer aos
“não nos ter dado tudo quanto podia nos dar”, mas fims de Deus, mesmo quê nos sejam impenetrávéis,
“não era de modo algum obrigado” a nos dar (Prin- para inocentá-lo de nossa “finitude”, Veremos, de
cípios, 1, 31). Assim, isso que, para nós, é privação modo mais geral, que, em Descartes, a Antropo-
ou imperfeição positiva, não passa de negação ou logia reintroduz a finalidade que a Física mecani-
serlimitado do ponto de vista de Deus. Em termos cista exclui.
modernos, poder-se-ia dizer que o homem torna ser *28 Mas esta aparente insatisfação representava
o não-ser, mas que, no absoluto, trata-se de uma ilu- apenas um desvio para outra conclusão importante:
são, Esta confirmação da veracidade e da perfeição dado que, no absoluto, o erro não é nada ds real, eu
de Deus pode ser considerada como a sétima jamais falharia se me lembrasse sempre que devo
verdade. julgar o que me aparece clara e distintamente como
128 Recapitulação: Deus éinocentado. real on verdadeiro.
130 DESCARTES

que consiste a maior e principal perfei- preciso concluir que uma tal concep-
ção do homem, considero não ter ção ou um tal juízo é verdadeiro! 2º,
ganho pouco com esta Meditação, ao 17. De resto, não somente aprendi
haver descoberto a causa das falsida- hoje o que devo evitar para não mais
des e doserros. falhar, mas também o que devo fazer
16. E, certamente, não pode haver para chegar ao conhecimento da ver-
outra além daquela que expliquei; pois, dade. Pois, certamente, chegarei a
todas as vezes que retenho minha von- tanto se demorar suficientemente
minha atenção sobre todas as coisas
tade nos limites de meu conhecimento,
que conceber perfeitamente e se as
de tal modo que ela não formule juizo
separar das outras que não com-
algum senão a respeito das coisas que
preendo senão com confusão e obscu-
lhe são clara e distintamente represen-
ridade. E disto, doravante, cuidarei
tadas pelo entendimento, não pode
zelosamente.
ocorrer que eu me engane; porque toda
concepção clara e distinta é sem dúvi- 128 Daí a oitava verdade: as idéias claras e distin-
da algo de real e de positivo, e portanto tas têm um valor objetivo imediatamente certo. À
não pode ter sua origem no nada, mas regra segundo a qua! “todas as coisas que conce-
bermos muito clara e muito distintamente são
deve ter necessariamente Deus como verdadeiras”, que obtive por reflexão sobre o Cogi-
seu autor; Deus, digo, que, sendo sobe- to, no começo da Meditação Terceira (8 2), é agora
objetivamente validada. Doravante, não mais preci-
ranamente peiic'to, não pode ser causa sarei efetuar o Cogito & fim de provar a verdade
de erro algum; e, por conseguinte, é dessa regra; bastarã lembrar-me-dela.
MEDITAÇÃO QUINTA!
Da Essência das Coisas Materiais;
e, Novamente, de Deus, que Ele Existe

!, Restam-me muitas outras coisas enumerar nela muitas partes diversas e


a examinar, concernentes aos atributos atribuir a cada uma dessas partes toda
de Deus é à minha própria natureza, sorte de grandezas, de figuras, de situa-
isto é, ao meu espírito: mas retomarei ções e de movimentos; e, enfim, posso
em outra ocasião, talvez, a sua pesqui- consignar a cada um desses movimen-
sa, Agora (após haver notado o que tos toda espécie de duração.
cumpre fazer ou evitar para chegar ao 4. E não conheço estas coisas com
conhecimento da verdade), o que tenho distinção apenas quando as considero
principalmente a fazer é tentar sair e em geral; mas, também, por pouco que
desembaraçar-me de todas as dúvi- eu a isso aplique minha atenção, con-
das!3! em que mergulhei nesses dias cebo uma infinidade de particularida-
passados e ver se não é possivel conhe- des!32 referentes aos números, às figu-
cer nada de certo.no tocante às coisas ras, aos movimentos e asoutras coisas
semelhantes, cuja verdade se revela
materiais.
com tanta evidência e se acorda tão
2, Mas, antes de examinar se há tais bem com minha natureza que, quando
coisas que existam fora de mim, devo
começo a descobri-las, não parece que
considerar suas idéias na medida em aprendo algo de novo, mas, antes, que
que se encontram em meu pensamento me recordo de algo que já sabia
e ver quais são distintas e quais são anteriormente, isto é, que percebo coi-
confusas. sas que estavam já no meu espírito,
3. Em primeiro lugar, imzgino dis- embora eu ainda nao tivesse voltado
tintamente esta quantidade que os filó- meu pensamento para elas.
sofos chamam vulgarmente de quanti- 5. E o que, aqui, estimo mais consi-
dade continua, ou a extensão em derável é que encontro em mim uma
longura, largura e profundidade que hã infinidade de idéias de certas coisas
nessa quantidade ou, antes, na coisa à que não podem ser consideradas um
qual ela é atribuída. Demais, posso puro nada, embora talvez elas não te-
nham nenhuma existência fora de meu
v30: Plano da Meditação: pensamento!33, e que não são fingidas
55 1-2: exame das idéias das essências;
$93-6: validação da verdade das essên-
cias matemáticas; as “naturezas verda- 132 Após-os entes matemáticos, suas propriedades:
deiras e imutáveis” da Matemática não essenciais tais como Deus as instituiu.
são inventadas nem extraídas da expe- F33 À separação entrea essência e a existência só
Fiência; tem sentido ao nivel das idéias. Quando eu penso a
'887-10: a prova ontológica: essência do triângulo e a existência do mesmo triân-
$511-15: vantagens destanova prova. gulo, diz alhures Descartes, esses dois pensamentos
**1 Programa das Meditações Quinta e Sexta: diferem apenas enquanto são pensamentos, no
estabelecer a veracidade divina em todã a sua triângulo existente fora de meu pensamento, a
amplitude. essência e a existência-não podem ser distinguidas.
132 DESCARTES
por mim, conquanto esteja em minha. tudo o que é verdadeiro é alguma coisa
liberdade pensá-las ou não pensá-las; e já demonstrei amplamente acima que
mas elas possuem suas naturezas ver- todas as coisas que conheço clara e
dadeiras e imutáveis. Como, por exem- distintamente são verdadeiras. E, con-
plo, quando imagino um triângulo, quanto não o tivesse demonstrado,
ainda que não haja talvez em nenhum todavia a natureza de meu espírito é tal
lugar do mundo, fora de meu pensa- que não me poderia impedir de julgá-
mento, uma tal figura, e que nunca tas verdadeiras enquanto as concebo
tenha havido alguma, não deixa, entre- clara e distintamente'* 8. E me recordo
tanto, de haver uma certa natureza ou de que, mesmo quando estava ainda
forma, ou essência determinada, dessa fortemente ligado aos objetos dos sen-
figura, a qual é imutável e eterna, que tidos. tivera entre as mais constantes
eu não inventei absolutamente e que verdades aquelas que cu concebia clara
não depende, de maneira alguma, de e distintamente no que diz respeito às
meu espirito; como parece, pelo fato de figuras, aos números e às outras coisas
que se pode demonstrar diversas pro- que pertencem à Aritmética e à Geo-
priedades desse triângulo, a saber, que metria.
os três ângulos são iguais a dois retos, 7. Ora, agora" *, se do simples fato
que o maior ângulo é oposto ao maior de que posso tirar de meu pensamento
lado é outras semelhantes, as quais a idéia de alguma coisa segue-se que
agora, quer queira, quer não, reco- tudo quanto reconheço pertencer clara
nheço mui claramente é mui evidente- e distintamente a esta coisa pertence-
mente estarem nele, ainda que não lhe de fato, não posso tirar disto um
tenha antes pensado nisto de maneira argumento e uma provg demonstrativa
alguma, quando imaginei pela primeira da existência de Deus? E certo que não
vez um triângulo; e, portanto, não se encontro menos!'37 em mim sua idéia,
pode' dizer que eu as tenha fingido e isto é; a idéia de um ser soberanamente
inventado. perfeito, do que a idéia de qualquer fi-
6. E aqui só posso me objetar que gura ou de qualquer número que seja.
talvez essa idéia de triângulo tenha E não conheço menos clara e distinta-
vindo ao meu espirito por intermédio mente que uma existência atual e eter-
de meus sentidos, porque vi algumas na pertence à sua natureza do que
vezes corpos de figura triangular; pois conheço que tudo quanto posso de-
posso formar em meu espírito uma monstrar de qualquer figura ou de
infinidade de outras figuras, à cujo res- qualquer número pertence verdadeira-
peito não se pode alimentar a menor mente à natureza dessa figura ou desse
suspeita de que jamais tenham caído número. E, portanto, ainda que tudo o
sob os sentidos e não deixo, todavia, de que concluí nas Meditações anteriores
poder demonstrar diversas proprie-
dades relativas à sua natureza, bem
13º Retorno ao plano da “natureza” — o da Medi-
como à do triângulo: as quais devem tação Primeira —, onde me é impossível duvidar de
ser certamente todas verdadeiras, visto fato de uma verdade matemática quando ela se me
apresenta atualmente,
que as concebo claramente"? *. E, por-
tanto, elas são alguma coisa e não um '3º “Agora” = depois que estamos metafisica-
mente certos do valor objetivo das idéias claras é
puro nada; pois é muito evidente que distintas.
132 Notar a partir daí os “não... menos” e “ao
menos”: a existência de Deus, legível em sua essên-
t4* As idéias das essências matemáticas não são, cia, não É menos certa do que as verdades matemá-
portanto, simuladas nem provenientes-do sensível (5 ticas, mas tampouco o é mais. Devemos colocá-la
6). CI. 543. Enquanto idéias claras e distintas, no mesmo plano que essas verdades essenciais que a
correspondem, pois. a algo. dúvida natural não conseguia abalar.
MEDITAÇÕES 133
não fosse de modo algum verdadeiro, a 8. Mas, anda que, com efeito, eu
existência de Deus deve apresentar-se não possa conceber um Deus sem exis-
em meu espírito ao menos como tão tência, tanto quanto uma montanha
certa quanto considerei até agora todas sem vale, todavia, como do simples
as verdades das Matemáticas, que se fato de eu conceber uma montanha
referem apenas aos números e às figu- com vale não se segue que haja qual-
ras'38; embora, na verdade, isto não quer montanha no mundo, do mesmo
pareça de início inteiramente mani- modo, embora eu conceba Deus com
festo e se afigure ter alguma aparência existência, parece não decorrer daí que
de sofisma. Pois, estando habituado haja algum Deus existente: pois meu
em todas as outras coisas a fazer dis- pensamento não impõe necessidade al-
tinção entre a existência e a essência,
persuado-me facilmente de que a exis- guma às coisas; e como só depende de
tência pode ser separada da essência mim o imaginar um cavalo alado,
de Deus e de que, assim, é possivel ainda que não haja nenhum que dispo-
conceber Deus como não existindo nha de asas, assim eu poderia, talvez,
atualmente. Mas, não obstante, quan- atribuir existência a Deus, ainda que
do penso nisso com maior atenção, não houvesse Deus algum existen-
verifico claramente que a existência te! 49, Mas não é assim, é que aqui há
não pode ser separada da essência de um sofisma escondido sob a aparência
Deus, tanto quanto da essência de um desta objeção: pois pelo fato de que
triângulo retilneo não pode ser sepa- não posso conceber uma montanha
rada a grandeza de seus três ânguios sem vale não se segue que haja monta-
iguais a dois retos ou, da idéia de uma
montanha, a idéia de um vale; de sorte nha alguma nem vale algum, mas
que não sinto menos repugnancia em somente que a montanha e o vale, quer
conceber um Deus (isto é, um ser sobe- existam ia não, não podem, de
ranamente perfeito) ao qual falte exis- maneira alguma, ser separados um do
tência (isto é, ao qual falte alguma outro; ao passo que, do simples fato de
perfeição), do que em conceber uma eu não poder conceber Deus sem exis-
montanha que não tenha yale'39, tência, segue-se que a existência lhe é
inseparável, e, portanto, que existe
138 Há uma certeza da existência de Deus que é do verdadeiramente: não que meu pensa-
mesmo tipo que a cerieza espontânea é ingênua que mento possa fazer que isso seja assim,
se atribui às verdades matemáticas. É esta certeza e que imponha às coisas qualquer
que ora podemos validar, assim como validamos a
certeza matemática: em nome do princípio do valor necessidade; mas, ao contrário, porque
objetivo das idéias claras e distintas. Por isso, a a necessidade da própria coisa, a
“prova ontológica” situa-se em plano diverso do saber, da existência de Deus, deter-
das duas outras provas (o faro de se encontrar em
outra Meditação basta para indicá-lo) e É depen- mina meu pensamento a concebê-lo
dente em relação a elas na ordem das razões dessa maneira. Pois não está em minha
metafísicas.
125 Sobre a imagem da montanha e do vale: “Não liberdade conceber um Deus sem exis-
temos nenhuma outra razão para assegurar que não tência (isto é, um ser soberanamente
haja absolutamente montanha sem vale, exceto que perfeito sem uma soberana perfeição),
vemos ser impossível completar suas idéias quando
os consideramos um sem o outro, embora possa- como mé é dada a liberdade de imagi-
mos, por abstração, ter a idéia de uma montanha ou nar um cavalo sem asas ou com asas.
de um lugar pelo qual subimos de baixo para cima
sem considerar que se possa descer por ai mesmo de
cima para baixo”. (A Gibicuf, 19 de janeiro de t*0' Segunda objeção possivel: não se tratará
1642.) Primeira objeção possivel a esta nova prova somente de uma existência em idéja no meu pensa-
da existência de Deus: posso conceber Deus como mento? Resposta: em minha idéia de Deus, eu per-
não existente? Resposta: a idéia da essência de ceby a ligação da existência com a essência como
Deus é inseparável de sua existência. assim como uma relação de essência necessária que se impõe ao
“em todas as outras coisas”. mêu espírito.
134 DESCARTES

9, E não se deve dizer aqui que é, na jamais eu imagine triângulo algum;


verdade, necessário cu confessar que mas todas as vezes que quero conside-
Deus existe após ter suposto que ele rar uma figura retilinea composta
possui todas as sortes de perfeições, somente de três ângulos é absoluta-
posto que a existência é uma delas, mente necessário que eu lhe atribua
mas que, com efeito, minha primeira todas as coisas que servem para con-
suposição não era necessária; da cluir que seus três ângulos não são
mesma maneira que não é necessário maiores do que dois retos, ainda que
pensar que todas as figuras de quatro talvez não considere então isto em
lados podem inscrever-se no círculo, particular. Mas quando examino que
mas que, supondo que tenho este figuras são capazes de ser inscritas no
pensamento, sou obrigado a confessar círculo, não é de maneira alguma
que o rombóide pode inscrever-se no necessário que eu pense que todas as
círculo, já que é uma figura de quatro figuras de quatro lados se encontram
lados; e, assim, serei obrigado a con- neste rol; pelo contrário. nem mesmo
fessar uma coisa falsa!4'. Não se posso fingir que isso ocorrá enquanto
deve, digo, alegar isto: pois, ainda que eu nada quiser receber em meu pensa-
não seja necessário que eu incida ja- mento que não possa conceber clara e
mais em algum pensamento de Deus, distintamente. E, por conseguinte, há
todas as vezes, no entanto, que me uma grande difetença entre as falsas
ocorrer pensar em um ser primeiro e suposições, como essa, e as verda-
soberano, e tirar, por assim dizer, sua deiras idéias que nasceram comigo e,
idéia do tesouro de meu espírito, é dentre as quais, a primeira e principal
necessário que eu lhe atribua todas as é a de Deus,
espécies de perfeição, embora eu não 10. Pois, com efeito, reconheço de
chegue a enumerá-las todas e a aplicar muitas maneiras que esta idéia nao é
minha atenção a cada uma delas em de modo algum algo fingido ou inven-
particular. E esta necessidade é sufi- tado, que dependa somente de meu
ciente para me fazer concluir (depois pensamento, mas que é a imagem de
que reconheci ser a existência uma uma natureza verdadeira e imutável.
perfeição! *2). que esté ser primeiro e Primeiramente. porque eu nada pode-
soberano existe verdadeiramente: do ria conceber, exceto Deus só, a cuja
mesmo modo que não é necessário que essência a existência pertence com
necessidade. E, em seguida, também,
141 Terceira objeção possivel: concedendo a Deus porque não me é possível conceber
todas as perfeições, não teria partido de uma falsa
suposição que tornaria minha conclusão caduca?
dois ou muitos deuses da mesma
Resposta: esta Suposição não é gratuita; ela se limi- maneira. E, posto que há um agora que
ta-a tomar explícito o conteúdo mesmo da essência existe, vejo claramente que é neces-
de Deus, tal como esta se acha presente em meu
espírito. Do mesmo modo: “Se eu benso em um sário que ele tenha existido anterior-
triangulo, então penso em uma figura onde a soma mente por toda a eternidade e que exis-
dos ângulos é iguala dois-retos”. ta eternamente para o futuro. E, enfim,
t42 Este pressuposto é que será recusado por Kant
em sua criticaà prova ontológica: a existência não porque conheço uma infinidade de ou-
é uma perfeição que perteiça ao conceito. Cumpre, tras coisas em Deus, das quais nada
todavia, observar que Descartes não lira a exis-
tência de Deus da idéia que eu tenho dele. Depois de
posso diminuir nem mudar.
estabelecer que-a idéia de Deus corresponde a uma 11. De resto, de qualquer prova e
essência, mostra que, estando eu alento 4 esta essên: argumento que eu me sirva, cumpre
cia (já não se trata da idéia como representação da
essência), percebo nela necessariamente a existên- sempre retornar a este"ponto, isto é,
cia. que são somente as coisas que concebo
MEDITAÇÕES 135

clara e distintamente que têm a força natureza que, tão logo compreenda
de me persuadir inteiramente. E, embo- algo bastante clara e distintamente,
ra, entre as coisas que concebo dessa sou naturalmente levadoa acreditá-lo
maneira, haja na verdade algumas verdadeiro; no entanto, já que sou tam-
manifestamente conhecidas de qual- bém de tal natureza que não posso
quer, e haja outras também que não se manter sempre o espírito ligado a uma
revelam senão àqueles que as conside- mesma coisa, e que amiúde me recordo
ram de mais perto e que as examinam de ter julgado uma coisa verdadeira,
mais exatamente; todavia, uma vez quando deixo de considerar as razões
descobertas, não são consideradas que me obrigaram a julgá-la dessa
menos certas umas do que as outras. maneira, pode acontecer que nesse ín-
Como, por exemplo, em todo triângulo terim outras razões se me apresentem,
retângulo, ainda que não pareça tão as quais me fariam facilmente mudar
facilmente, de início, que o quadrado de opinião se eu ignorasse que há um
da base é igual aos quadrados dos dois Deus!4+*, E, assim, eu jamais teria uma
outros lados, como é evidente que essa ciência verdadeira e certa de qualquer
base é oposta ao maior ângulo, não coisa que seja, mas somente opiniões
obstante, uma vez que isto foi reconhe- vagas e inconstantes.
cido, ficamos persuadidos tanto da 14. Como, por exemplo, quando
verdade de um como da de outro. E no considero a natureza do triângulo,
que concerne a Deus, certamente, se conheço evidentemente, eu que sou um
meu espírito não estivesse prevenido pouco versado em Geometria, que seus
por quaisquer prejuízos e se meu pen- três ângulos são iguais a dois retos e
samento não se encontrasse distraído não me é possível não acreditar nisso
pela presença contínua das imagens enquanto aplico meu pensamento à sua
das coisas sensíveis, não haveria coisa demonstração; mas, tão logo eu o des-
alguma que eu conhecesse melhor nem vie dela, embora me recorde de tê-la
mais facilmente do que ele. Pois have- claramente compreendido, pode ocor-
rá algo por si mais claro e mais mani- rer facilmente que eu duvide de sua
festo do que pensar que há um Deus, verdade caso ignore que há um
isto é, um ser soberano é perfeito, em Deus! 45, Pois posso persuadir-me de
cuja idéia, e somente nela, a existência ter sido feito de tal modo pela natureza
necessária ou eterna estã incluída e, que possa enganar-me facilmente,
por conseguinte, que existe? mesmo nas coisas que acredito com-
12. E, conquanto, para bem conce- preender com mais evidência e certeza;
ber essa verdade, eu tivesse necessitado principalmente, visto que me lembro
de grande aplicação de espírito, pre- de haver muitas vezes estimado muitas
sentemente, todavia, estou mais seguro
t+* Compreende-se aqui por que a prova ontoló-
dela do que de tudo quanto me parece gica, em relação às outras, não é apenas uma prova
mais certo: mas, além disso, noto que a a mais: ela nos fornece imediatamente no plano da
certeza de todas as outras coisas dela “natureza”, isto é da Psicologia, à certeza de que
Deus existe eternamente. Poupa, assim, O constante
depende tão absolutamente que, sem recurso às dificeis provas a priori O raciocínio
esse conhecimento, é impossível jamais matemático, por exemplo, está assegurado, sem que
conhecer algo perfeitamente! “2, eu tenha necessidade, ao efetuá-lo, de reativar as
“razões” da Meditação Terceira.
13. Pois, ainda que eu seja de tal 148 As provas q priori garantem a evidência atual
(é nisso que desempenham papel primordial e imdis-
“3 Diferença entre a essência de Deuse as essên- pensável); a prova ontológica assegura a lembrança
cias matemáticas: aquela pode garantir a certeza das evidências. Cf, o comentário feito nas Segundas
destas, Respostas, 222.
136 DESCARTES

coisas como verdadeiras e certas, que, pela qual me certifico da verdade, era
em seguida, outras razões me levaram levado a acreditar nelas por razões que
a julgar absolutamente falsas. reconheci depois serem menos fortes
15. Mas, após ter reconhecido do que então imaginara. O que mais
haver um Deus, porque ao mesmo poderão, pois, objetar-me? Que talvez
tempo reconheci também que todas as eu durma (como eu mesmo me objetei
coisas dependem dele e que ele não é acima) ou que todos os pensamentos
enganador, e que, em seguida a isso, que tenho atualmente não são mais
julguei que tudo guanto concebo clara verdadeiros do que os sonhos que ima-
e distintamente não pode deixar de ser ginamos ao dormir? Mas, mesmo que
verdadeiro: ainda que não mais pense estivesse dormindo, tudo o que se apre-
nas razões pelas quais julguei tal ser senta a meu espírito com evidência é
verdadeiro, desde que me lembre de absolutamente verdadeiro. E, assim,
tê-lo compreendido clara e distinta- reconheço muito claramente que a cer-
mente, ninguém pode apresentar-me teza e a verdade de toda ciência depen-
razão contrária alguma que me faça ja- dem do tão-só conhecimento do verda-
mais colocá-lo em dúvida; e, assim, deiro Deus: de sorte que, antes que eu
tenho dele uma ciência certa e verda- o conhecesse, não podia saber perfeita-
deira. E esta mesma ciência se estende mente nênhuma outra coisa. E, agora
também a todas as outras coisas que que o conheço, tenho o meio de adqui-
me lembro ter outrora demonstrado, rir uma ciência perfeita no tocante a
como as verdades da Geometria e ou- uma infinidade de coisas, não somente
tras semelhantes: pois, que me poderão das que existem nele mas também das
objetar, para obrigar-me a coloca-las que pertencem à natureza corpórea, na
em dúvida! Dir-me-ão que minha natu- medida em que ela pode servir de obje-
reza é tal que sou muito sujeito a enga- to as demonstrações dos geômetras, os
nar-me? Mas. já set que me não posso quais não se preocupam, de modo
enganar nos juízos cujas razões conhe- algum, com sua existência! 48,
ço claramente. Dir-me-ão que outrora
tive muitas coisas por verdadeiras e t48 Esta Meditação Quinta contém a nona verdade
certas, as quais mais tarde reconheci da ordem das razões: temos certeza absoluta de que
serem falsas? Mas eu não havia conhe- as propriedades das essências são as propriedades
das coisas €, no que conceme à essência de Deus, de
cido clara nem distintamente tais coi- que aí estã inscrita a existência necessária, portanto
sas e, não conhecendo ainda esta regra eterna.
MEDITAÇÃO SEXTA '*?
Da Existência das Coisas Materiais e da Distinção
Real entre a Alma e o Corpo do Homem

1. Só me resta agora examinar se objeto das demonstrações de Geome-


existem coisas materiais; e certamente, tria, visto que, dessa maneira, eu as
ao menos, já sei que as pode haver, na concebo mus clara e distintamente! *º.
medida em que são consideradas como Pois não há dúvida de que Deus tem o
poder de produzir todas as coisas que
147 Plano da Meditação: sou capaz de conceber com distinção;
A) 881-16: problema da existência das coisas e nunca julguei que lhe fosse impos-
materiais:
81: reconhecimento da possibilidade de sível fazer algo, a não ser quando
sua existência: encontrasse contradição em poder con-
882-4: reconhecimento da probabili- cebê-la! *º, Demais, a faculdade de
pars de sua existência: exame da imagi-
nação; imaginar, que existe em mim e da qual
84$5-16: análise da sensação e colocação vejo por experiência que me sirvo
do problema:
(57): recordação das coisas que eu
quando me aplico à consideração das
considerava como verdadeiras; coisas materiais, é capaz de me persua-
(998-12:) recordação dos motivos dir da existência delas! *º: pois, quan-
de meus “prejuizos”;
($812-15): recapitulação das ra- do considero atentamente o que é a
zões extraídas da Meditação Pri- imaginação, verifico que ela nada mais
mêira é nova critica dos prejuízos; é que uma aplicação da faculdade que
($ 16): no ponto em que cheguei, no
que posso crer? conhece ao corpo que lhe é intima-
B) $917-29: as três verdades últimas:
$917-18: à décima verdade: distinção
real da alma e de corpo: 148 A existência das coisas materiais é primeira-
85 19-20; a décima primeira verdade: há mente reconhecida como possivel, posto que as
coisas corporais que existem; idéias claras e distintas que tenho de suas essências
$621-29: a décima segunda verdade; envolvem a possibilidade de sua existência.
união de fato da alma É do corpo. — tas Alusão à complexissima teoria da possibili-
Justificação e limitação do valor do sen- dade, analisada por Guérouli (op. cit. Il, págs.
Limento natural como órgão de informa- 26-39); 1.º posso afirmar a possibilidade de uma
ção biológica. coisa quando tenho idéia clara e distinta de sua
€) 8930-41: minha natureza não será, no possibilidade ou quando não tenho idéia clara e dis-
entanto, intrinsecamente errônea? tmta de sua impossibilidade: 2." devo manter em
8830-32: colocação do problema e a re- suspenso o meu juizo quando não tenho idéia clara
cusa da solução materialista! e distinta de sua possibilidade nem de sua impossi-
683341; justificação de Deus em vista bilidade; 3.º posso negar a sua possibilidade quando
da dificuldade no dado psicofisiológico tenho idéia clara e distinta dessa impossibilidade.
do problema, 160 O exame da imaginação levará a reconhecer
D) 8842-43: conclusão. como provável a existência das coisas materiais:
138 DESCARTES

mente presente e, portanto, que exis- estahelecem a diferença entre o quilió-


te! 51
gono e os demais poligonos! *2
2. E, para tornar isso mais manife,
to, noto primeiramente a diferença que 3. Quando se trata de considerar
há entre a imaginação e a pura intelec- um pentágono, é bem verdade que
ção, ou concepção. Por exemplo, quan- posso conceber sua figura, assim comc
do imagino um triângulo, não o conce-
bo apenas como uma figura composta a do quiliógono, sem o auxílio da
e determinada por três linhas, mas, imaginação; mas posso também imagi-
além disso, considero essas três linhas ná-la aplicando a atenção de meu espí-
como presentes pela força e pela apli- rito a cada um de seus cinco lados e,
cação interior de meu espírito; e é
ao mesmo tempo, à área ou ao espaço
propriamente isso que chamo imagi-
nar. Quando quero pensar em um que eles encerram. Assim, conheço cla-
quiliógono, concebo na verdade que é ramente que tenho necessidade de par-
uma figura composta de mil lados tão ticufar contenção de espírito para ima-
facilmente quanto concebo que um ginar, da qual não me sirvo
triângulo é uma figura composta de
apenas três lados; mas não posso ima-
absolutamente para cunceper' 53, e
ginar os mil lados de um quiliógono esta particular contenção de espírito
como faço com os três lados de um mostra evidentemente a diferença que
triângulo, nem, por assim dizer, vê-los há entre a imaginação e a intelecção.
como presentes com os olhos de meu ou concepção pura.
espirito: E conquanto, segundo o cos-
tume que tenho de me servir sempre de 4. Noto, além disso, que esta virtu-
minha imaginação, quando penso nas de de imaginar que existe em mim, na
coisas corpóreas, ocorra que, conce- medida em que difere do poder de con-
bendo um quiliógono, eu me represente
ceber, não é de modo algum necessária
confusamente alguma figura, é, toda-
via, evidente que essa figura não é um à minha natureza ou à minha essência,
quiliógono, posto que em nada difere isto é, à essência de meu espírito; pois,
daquela que me representaria se pen- anda que nao a possuísse de modo
sasse em um miriágono, ou em qual- algum, estã fora de dúvida que eu
quer outra figura de muitos lados; e permaneceria sempre o mesmo que sou
que ela não serve, de maneira alguma, atualmente: donde me parece que se
para descobrir as propriedades que
pode conclwr que ela depende de algo
Vst Para situar “a imaginação” ora em exame, cf,
Regula XTl: “É uma só e mesma força que. . ..se 182 “Como (a alma) não pode traçar assim mil
se aplica à imaginação somente, enquanto coberta pequenas linhas e lhes dar uma figura no cerebro, a
de figuras variadas, se chama lembrar-se; se se apli- não ser confusamente, resulta daí que ela não imagi-
za à Imaginação para criar novas figuras, se chama na distintamente um quiliógono, mas apenas de
imaginar. . .“ (Ed, Pléiade, pág. 79.) Aqui parece uma maneira confusa.,.” (Col, com Burman,
tratar-se do primeiro caso. Quanto à distinção entre ibid)
imaginar e sentir, cf. Col. com Burman (A. To V, 183 Sobre esta diferença entre a finitude da imagr-
pág. 162): na sensação, “as imagens são lraçadas nação e à “infinitude” do entendimento, cf. Medita-
pelos objetos externos, é estando éstes presentes, ao ção Quarta, & B. É a primeira presunção em favor
passo que na outra elas o são pela alma, sem obje- da existência de um outro, além do pensamento, que
tos externos e, por assim dizer, com todas as janelas explicaria esta “particular contenção de espírito” e
fechadas”. que poderia muito bem ser o corpo.
MEDITAÇÕES 139

que difere de meu espírito! *, E conce- pórea que é o objeto da Geometria, a


bo facilmente que, se algum corpo saber, as cores, os sons, os sabores, a
existe ao qual meu espírito esteja con- dor e outras coisas semelhantes, embo-
jugado e unido de tal maneira que ele ra menos distintamente. E na medida
possa aplicar-se a considerá-lo quando em que percebo muito melhor tais coi-
lhe aprouver, pode acontecer que por sas pelos sentidos, por intermédio dos
este meio ele imagine as coisas corpó- quais, e da memória, elas parecem ter
reas: de sorte que esta maneira de pen- chegado até minha imaginação, creio
sar difere somente da pura inteleccão que, para examiná-las mais comoda-
no fato de que o espírito, concebendo, mente, vem a propósito examinar ao
volta-se de alguma forma para si mesmo tempo o que é sentir, é ver se,
mesmo e considera algumas das idéias das idéias que recebo em meu espírito
que elé tem em si; mas, imaginando, por este modo de pensar, que chamo
ele se volta para o corpo é considera sentir, posso tirar alguma prova certa
nele algo de conforme à idéia que for- da existência das coisas corpóreas! 8 8,
mou de si mesmo ou que recebeu pelos €& E, primeiramente, recordarei em
sentidos. Concebo, digo, facilmente minha memória quais são as coisas
que a imaginação pode realizar-se que até aqui considerei como verdadei-
dessa maneira, se é verdade que há ras, tendo-as recebido pelos sentidos, e
corpos; e, uma vez que não posso sobre que fundamentos estava apoiada
encontrar nenhuma outra via para
minha crença. E, depois, examinarei as
mostrar como ela se realiza, conjeturo
razões que me obrigaram em seguida a
daí provavelmente que os há: mas não
colocá-las em dúvida. E, enfim, consi-
é senão provavelmente e, embora exa-
derarei o que devo a respeito delas
mine cuidadosamente todas as coisas,
agora acreditar" 57,
não verifico. no entanto, que, desta
idéia distinta da natureza corporal que 7. Primeiramente, pois! 8, senti
tenho em minha imaginação, possa que possuía cabeça, mãos, pés e todos
tirar algum argumento que conclua os outros membros de que é composto
necessariamente a existência de algum este corpo que considerava como parte
corpo! 55, de mim mesmo ou, talvez, como o
todo. Demais, senti que esse corpo es-
5. Ora, acostumei-me a imaginar tava colocado entre muitos outros, dos
muitas coisas além desta natureza cor- quais era capaz de receber diversas
comodidades e incomodidades e adver-
64 Segunda presunção. Esta contmngencia da pre- tia essas comodidades por um certo
sença de imaginação em mim é fundamental em
relação à teoria das Matemáticas expostas: nas sentimento de prazer ou de voluptuo-
Regulae: embora possam e devam apoiar-se na sidade e essas incomodidades por um
imaginação, as Matemáticas são essencialmente sentimento de dor. E, além desse pra-
obra do entendimento. O modelo matemático de
Descartes É a teoria das proporções de Eudoxo (li- zer e dessa dor, sentia também em mim
vros V a VII de Euclides), que a Álgebra permite a fome, a sede e outros semelhantes
universalizar, e não 4 Geometria “imaginativa” de
Euclides, pela qual, segundo Bailiet, seu biógrafo,
não sentia quase nenhuma estima, Este ponto nos *5º Depois do recurso ao entendimento é da anã-
parece capital para qualquer cotejo entre Descartes lise da imagmação, a análise da sensação.
e Kant e para todo estudo do conceito clássico de "67 Anúncio dos momentos da pesquisa.
“imaginação” nos séculos XVII = XVII Veé “Primeiramente, recordarei em minha memó-
v65 Recapitulação: ao passo que a imaginação em ria quais são as coisas que até aqui considerei como
mim prova à existência dos corpos, a explicação verdadeiras, tendo-as recebido pelos sentidos”, a
que se lhe dá aqui só será verdadeira quando esta saber, que-estou unido a um corpo e que-as coisas
existência estiver comprovada. materiais existem,
140 DESCARTES
apetites, como também certas inclina- daquelas que eu mesmo podia simular,
ções corporais para a alegria, a triste- em meditando, ou do que as que
za, a cólera e outras paixões semelhan- encontrava impressas em minha me-
tes; e, no exterior, além da extensão, mória, parecia que não podiam proce-
das figuras, dos movimentos dos cor- der de meu espírito; de sorte que era
pos, notava neles a dureza, o calor € necessário que fossem causadas em
todas as outras qualidades que se reve- mim por quaisquer outras coisas. Coi-
lam ao tato. Demais, aí notáva a luz, sas das quais não tendo eu nenhum
cores, odores, sabores e sons, cuja conhecimento senão o que me forne-
variedade me fornecia meios de distin- ciam essas mesmas idéias, outra coisa
guir o céu, a terra, o mar e geralmente me podia vir ao espirito,
só que essas
todos os outros corpos uns dos outros, coisas eram semelhantes às idéias que
8. E, por certo, considerando as elas causavam.
idéias de todas essas qualidades que se IO. E jã que eu me lembrava tam-
apresentavam ao meu pensamento, & bém que me servira mais dos sentidos
as quais eram as únicas que eu sentia do que da razão e reconhecia que as
própria e imediatamente, não era sem idéias que eu formava por mim mesmo
razão que eu acreditava sentir coisas não eram tão expressas quanto aquelas
inteiramente diferentes de meu pensa- que eu recebia dos sentidos e, mesmo,
mento, a saber, corpos de onde proce- que eram, as mais das vezes, compos-
diam essas idéias! *º, Pois eu experi- tas de partes destas, eu me persuadia
mentava que elas se apresentavam ao facilmente de que não havia nenhuma
meu pensamento sem que meu consen- idéia em meu espírito que não tivesse
timento fosse requerido para tanto, de antes passado pelos meus sentidos.
sorte que não podia sentir objeto 11, Não era também sem alguma
algum, por mais vontade que tivesse, razão que eu acreditava que este corpo
se ele não se encontrasse presente ao (que, por um certo direito particular,
órgão de um de meus sentidos; e não eu chamava de meu) me pertencia mais
estava de maneira alguma em meu propriamente e mais estreitamente do
poder não o sentir quando ele aí esti- que qualquer outro. Pois, com efeito,
vesse presente, jamais eu podia ser separado dele
9. E, dado que as idéias que recebia como dos outros corpos; sentia nele e
pelos sentidos eram muito mais vivas, por ele todos os meus apetites e todas
mais expressas e mesmo, à sua manei- as minhas afecções; e, enfim, eu era to-
ra, mais distintas do que qualquer uma cado por sentimentos de prazer e de
Tae Mo- - e sobre que fundamento era apoiada
dor em suas partes e não nas dos ou-
minha crença, ..": enumeração até o $ 12 das tros corpos que são separados dele.
motivações dos “prejuizos da infância”. Os argu- 12. Mas, quando examinava por
mentos serão os seguintes: a) a coerção (cf. Princí-
pios, 0,8 |: “Não está em meu poder fazer com que que desse não sei que sentimento de
experimentemos um sentimento de preferência a dor segue a tristeza do espírito, e do
outro...) b) vivacidade particular das idéias sentimento de prazer nasce a alegria,
sensíveis, C) maior importância aparente das idéias
sensíveis, na qual sé baseia a teoria escolástica do ou, ainda, por que esta não sei que
conhecimento e todo empirismo-em geral; d) não emoção do estômago, que chamo
posso ser separado de meu corpo como dos outros fome, nos dá vontade de comer, e a se-
corpos; e) É nele que sinto minhas afecções é meus
apetites (noção do corpo próprio); É) é em suas par- cura da garganta nos dá desejo de
tes que sinto prazer e dor: p) o laço entre os estados beber, e assim por diante, não podia
fisiológicos e as afecções da alma (contrações do
estômago e fome) pode provir tão-somente de um apresentar nenhuma razão, senão que
ensinamento da natureza. a natureza mo ensinava dessa maneira;
MEDITAÇÕES 141

pois não hã, certamente, qualquer afi- I4. E a essas razões de dúvida
nidade nem qualquer relação (ao acrescentei ainda, pouco depois, duas
menos que eu possa compreender) outras bastante gerais. A primeira é
entre essa emoção do estômago e o de- que jamais acreditei sentir algo, estan-
sejo de comer, assim como entre o sen- do acordado, que não pudesse, tam-
timento da coisa que causa a dor é o bém, algumas vezes, acreditar sentir,
pensamento de tristeza que esse senti- ao estar dormindo; é como não creio
mento engendra. E, da mesma manei- que as coisas que me parece que sinto
ra, parecia-me que eu aprendera da ao dormir procedam de quaisquer
natureza todas as outras coisas que eu objetos existentes, não via por que
julgava no tocante aos objetos dos sen- devia ter antes essa crença no tocante
tidos; porque eu notava que os juízos, aquelas que me parece que sinto ao
que eu me acostumara a formular a estar acordado. E a segunda é que, não
respeito desses objetos, formavam-se conhecendo ainda ou, antes, fingindo
em mim antes que eu tivesse o lazer de não conhecer o autor de meu ser, nada
pesar e considerar quaisquer razões via que pudesse impedir que eu tivesse
que me pudessem obrigar a formulá- sido feito de tal maneira pela natureza
los! 89, que me enganasse mesmo nas coisas
13. Mas, depois! 8!, muitas expe- que me pareciam ser as mais verdadei-
riências arruinaram, pouco a pouco, ras.
todo o crédito que eu dera aos senti- 15. E, quanto às razões que me ha-
dos. Pois observei muitas vezes que viam anteriormente persuadido da ver-
torres, que de longe se me afiguravam dade das coisas sensíveis, não tinha
redondas, de perto pareciam-me qua- muita dificuldade em rejeitá-las. Pois,
dradas, e que colossos, erigidos sobre parecendo a natureza levar-me a mui-
tas coisas de que a razão me desviava,
os-mais altos cimos dessas torres, pare-
não acreditava dever confiar muito nos
ciam-me pequenas estátuas quando as
ensinamentos dessa natureza. E, embo-
olhava de baixo; e, assim, em uma infi-
ra as idéias que recebo pelos sentidos
nidade de outras ocasiões, achei erros
nao dependam de minha vontade, não
nos juízos fundados nos sentidos exte-
pensava que se devesse, por isso, con-
riores. E não somente nos sentidos
cluir que procediam de coisas diferen-
exteriores, mas mesmo nos interiores:
tes de mim, posto que talvez possa
pois haverá coisa mais íntima ou mais haver em mim alguma faculdade (ape-
interior do que a dor? E, no entanto, sar de ter até agora permanecido
aprendi outrora de algumas pessoas, desconhecida para mim) que seja a
que tinham os braços e as pernas cor- causa dessas idéias e que as produ-
tados, que lhes parecia ainda, algumas za! 52

vezes, sentir dores nas partes que lhes l6. Mas, agora que começo a me-
haviam sido amputadas; isto me dava lhor conhecer-me a mim mesmo e a
motivo de pensar que eu não podia descobrir mais claramente o autor de
também estar seguro de ter dolorido minha origem, não penso, na verdade,
algum de meus membros, embora sen-
tisse dores nele. +82 Critica dos argumentos a) é £g) expostos
anteriormente: como já notara a Meditação Tercei-
v8o Éa definição do “prê-juizo”, ra, a “natureza” pode contravir a razão, e o argu-
181 "E depois, examinarei as razões que me obri- mento proveniente da coerção é abalado pela hipó-
garam em seguida a colocá-las em divida, . ” Os tese de uma faculdade desconhecida que poderia
88 13e 1d recapitulam as razões tiradas da Medita- produzir, sem o nosso conhecimento, as idéias
ção Primeira: sensíveis,
142 DESCARTES

que deva temerariamente admitir todas jã que, de um lado, tenho uma idéia
as coisas que os sentidos parecem ensi- clara e distinta de mim mesmo, na me-
nar-nos, mas não penso tampouco que dida em que sou apenas uma coisa
deva colocar em dúvida todas em pensante e inextensa, e que, de outro,
geralt 88, tenho uma idéia distinta do corpo, na
17. E, primeiramente, porque sei medida em queé apenas uma coisa
que todas as coisas que concebo clara extensa Ee que não pensa, É certo que
e distintamente podem ser produzidas este eu, isto é, minha alma, pela qual
por Deus tais como as concebo, basta eu sou o que sou, é inteira e verdadei-
que possa conceber clara é distinta- ramente distinta de meu corpo e que
mente uma coisa sem uma outra para ela pode ser ou existir sem ele! 98,
estar certo de que uma é distinta ou I8. Ainda mais, encontro em mim
diferente da outra, já que podem ser faculdades de pensar totalmente parti-
postas separadamente, ao menos pela culares e distintas de mim, as faculda-
onipotência de Deus; e não importa des de imaginar e de sentir, sem as
por que potência se faça essa separa- quais posso de fato conceber-me clara
ção, para que seja obrigado a julgá-las e distintamente por inteiro, mas que
não podem ser concebidas sem mim,
diferentes! &*, E, portanto, pelo pro-
prio fato de que conheço com certeza isto é, sem uma substância inteligente
que existo, e que, no entanto, noto que à qual estejam ligadas. Pois, na noção
que temos dessas faculdades, ou (para
não pertence necessariamente nenhu-
ma outra coisa à minha natureza ou à servir-me dos termos da Escola) no seu
minha essência, a nao ser que sou uma conceito formal, elas encerram alguma
coisa que pensa. concluo efetivamente espécie de intelecção: donde concebo
que minha essência consiste somente que são distintas de mim, como as
em que sou uma coisa que pensa ou figuras, os movimentos e os outros
uma substância da qual toda a essên- modos ou acidentes dos corpos o são
cia ou natureza consiste apenas em dos próprios corpos que os sustentam.
pensar. E, embora talvez (ou, antes, 19. Reconheço, também, em mim
certamente, como direi logo mais) eu algumas outras faculdades, como as de
tenha um corpo ao qual estou muito mudar de lugar, de colocar-me em
estreitamente conjugado! 85, todavia, múltiplas posturas e outras semelhan-
tes, que não podem ser concebidas,
assim como as precedentes, sem algu-
18º “E, enfim, considerarei o que devo a respéito
delas agora acreditar,” Em outros termos, não se ma substância à qual estejam ligadas, é
trata mais “agora” de voltar aos “prejuizos” elimi- nem, por conseguinte, existir sem ela:
nados pela prova da dúvida; mas tampouco se trata: mas é muito evidente que essas facul-
de recusar os dados sensíveis em geral, sem anali-
sá-los à luz da veracidade divina. Começa, aqui, a dades, se é verdade que existem, devem
parte principal dessa Meditação, em que serão esta- ser ligadas a alguma substância corpó-
belecidas as três últimas verdades. . rea ou extensa, é não a uma substância
tE4 É o elemento essencial da prova da distinção:
Deus não pode deixar de fazer o que eu concebo inteligente, posto que, no conceito
clara e distintamênte. Só este princípio basta para claro e distinto dessas faculdades, há
invalidar todas us conclusões derivadas da união de de fato alguma sorte de extensão que
fato entre 4 alma e O corpo:
155 Notar a reserva: não sabemos ainda se a prova
se acha contida, mas de modo nenhum
poderá ser aplicada. C[:“E se Deus mesmo jun- qualquer inteligência" $ 7, Demais, en-
tasse tão intimamente corpo e alma que fosse
impossivel uni-los mais, € fizesse um composto des-
tas duas substâncias assim unidas, conçebemos: +80 É a décima verdade. Acerca das noções de dis-
também que permaneceriam realmente distintas, tinção real e modal, cf. Princípios, 1, 60-61.
não obstante tal união, porque, qualquer que seja a +82 Esta distinção dos modos da substância exten-
ligação que Deus estabeleça entre elas, não poderia sa e dos modos da substância inteligente anuncia
desfazer-se do seu poder de separá-las. .. " (Princi- que deve haver em mim outra coisa além do puro
pios,1, 60.) pensamento.
MEDITAÇÕES 143
contra-se em mim certa faculdade pas- mente. Pois, não me tendo dado nenhu-
siva de sentir, isto é de receber é ma faculdade para conhecer que isto
conhecer as idéias das coisas sensi- seja assim, mas, ao contrário, uma
veis! 88: mas ela me seria inútil, e dela fortísssma inclinação para crer que
não me poderia servir absolutamente, elas me são enviadas pelas coisas cor-
se não houvesse em mim, ou em porais ou partem destas, não vejo
outrem, uma faculdade ativa! *º, capaz como se poderia desculpá-lo de embai-
de formar e de produzir essas idéias, mento se, com efeito, essas idéias par-
Ora, essa faculdade ativa não pode tissem de outras causas que não coisas
existir em mim enquanto sou apenas corpóreas, ou fossem por elas produzi-
uma coisa que pensa, visto que ela não das. E, portanto, é preciso confessar
pressupõe meu pensamento! 7º, e, tam- que há coisas corpóreas que exis-
tem? 7z.
bêm, que essas idéias me são frequen-
temente representadas ser? que eu em 21. Talvez elas nao sejam, todavia,
nada contribua para tanto e mesmo, inteiramente como nós as percebemos
amiúde, mau grado meu; é preciso, pelos sentidos, pois essa percepção dos
pois, necessariamente, que ela exista sentidos é muito obscura é confusa em
muitas coisas; mas, ao menos, cumpre
em alguma substância diferente de
confessar que todas as coisas que, den-
mim, na qual toda a realidade que há
tre elas, concebo clara e distintamente,
objetivamente nas idétas por ela produ-
isto é, todas as coisas, falando em
zidas esteja contida formal ou eminen-
geral, compreendidas no objeto da
temente (como notéi antes). E esta
Geometria especulativa. aí se encon-
substância é ou um corpo, isto é, uma tram verdadeiramente. Mas, no que se
natureza corpórea, na qual estã conti- refere a outras coisas, as quais ou são
da formal é efetivamente tudo o que apenas particulares, por exemplo, que
existe objetivamente e por represen- o sol seja de uma tal grandeza e de
tação nas idéias; ou então é o próprio uma tal figura, etc., ou são concebidas
Deus, ou alguma outra criatura mais
menos claramente e menos distinta-
nobre do que o corpo, na qual isto mente, como a luz, o som, a dor e ou-
mesmo esteja contido eminentemen- tras semelhantes, é certo que, embora
te! 71 .
sejam elas muito duvidosas e incertas,
20. Ora, não sendo Deus de modo todavia, do simples fato de que Deus
algum enganador, é muito patente que não é enganador e que, por conse-
ele não me envia essas idéias imediata- guinte, não permitiu que pudesse haver
mente por si mesmo, nem também por alguma falsidade nas minhas opiniões,
intermédio de alguma criatura, na qual
que não me tivesse dado também algu-
a realidade das idéias não esteja conti- ma faculdade capaz de corrigi-la, creio
da formalmente, mas apenas eminente- poder concluir seguramente que tenho
em mim os meios de conhecê-las com
tes Passagem à prova da existência das coisas certeza” “3.
materiais. Parte-se do reconhecimento em mim da
existencia de uma sensibilidade passiva.
vês “Se acreditei que à ação ea paixão são apenas 172 Se Deus não nos proporcionou nenhum meio
uma única e mesma coisa a que se atribuíram dois de reconhecer ou de evitar um erro, é porque esta-
nomes diferentes...“ (A Hyperaspistes, 27 de julho mos: diante de uma verdade: processamento análogo
de 1641) ao de uma prova por absurdo, Assim, fica estabele-
v7o Se esta faculdade ativa pressupusesse meu cida a décima primeira verdade: certeza absoluta da
pensamento, eu haveria de sabé-lo. existência dos corpos.
17) Esta faculdade ativa deve estar colocada numa 1H O valor do sentimento é especificado: ele vai
substancia fora de mim que, em virtude do princípio mais longe do que a simples atestação da existência
de causalidade, será, ou mais “nobre” do que o dos corpos. Por menor que seja'o valor objetivo da
corpo (causa eminente), ou o próprio corpo (causa verdade sensivel, esta possui, no entanto, um valor.
formal). Ora, a primeira dessas possibilidades Sem embargo, não é ainda visível: qual a verdadeira
mfrnegiria o princípio da veracidade divina. função do sentimento e o fim que o justifica.
144 DESCARTES

22. E, primeiramente, não há dúvi- quando meu corpo tem necessidade de


da de que tudo o que a natureza me en- beber ou de comer, simplesmente per-
sina contém alguma verdade. Pois, por ceberia isto mesmo, sem disso ser
natureza. considerada em geral, não advertido por sentimentos confusos de
entendo agora outra coisa senão o pró- fome e de sede. Pois, com efeito, todos
prio Deus. ou a ordem e a disposição esses sentimentos de fome, de sede, de
que Deus estabeleceu nas coisas cria- dor, etc., nada são exceto maneiras
das. E. por minha natureza, em parti- confusas de pensar que provêm e
cular, nao entendo outra coisa senão a dependem da união e como que da
complexão ou o conjunto de todas as mistura entre o espírito e o corpo.
coisas que Deus me deu. 25. Além disso, a natureza me ensi-
23. Ora, nada há que esta natureza na que muitos outros corpos existem
me ensine mais expressamente, nem em torno do meu, entre os quais devo
mais sensivelmente do que o fato de procurar uns e fugir de outros. E,
que tenho um corpo que está mal dis- certamente, do fato de que sinto dife-
posto quando sinto dor, que tem neces- rentes sortes de cores, de odores, de
sidade de comer ou de beber, quando sabores, de sons, de calor e de dureza,
nutro os sentimentos de fome ou dé etc., concluo, com segurança, que há
sede, etc. E. portanto, não devo, de nos corpos, de onde procedem todas
modo algum, duvidar que haja nisso essas diversas percepções dos sentidos,
alguma verdade! 74. algumas variedades que lhes corres-
24. A natureza me ensina, também, pondem, embora essas variedades tal-
por esses sentimentos de dor, fome,
vez não lhes sejam efetivamente seme-
sede, etc., que não somente estou aloja-
lhantes. E, também, do fato de que,
do em meu corpo, como um piloto em
entre essas diversas percepções dos
seu navio, mas que, além disso, lhe sentidos, umas me são agradáveis e ou-
estou conjugado muito estreitamente e tras desagradáveis, posso tirar uma
de tal modo confundido e misturado, consequência completamente certa,
que componho com ele um único isto é, que meu corpo (ou, antes, eu
todo!78. Pois, se assim não fosse, mesmo por inteiro, na medida em que
quando meu corpo é ferido não sentiria sou composto do corpo e da alma)
por isso dor alguma, eu que não sou pode receber diversas comodidades ou
sehão uma coisa pensante, e apenas incomadidades dos outros corpos que
perceberia esse ferimento pelo entendi- o circundam.
mento, como o piloto percebe pela 26. Mas há muitas outras coisas
vista se algo se rompe em seu navio; e que parece-me terem sido ensinadas
pela natureza, as quais, todavia, não
174 Depreende-se agora, o que-de verdade contém recebi verdadeiramente dela, mas que
“o ensinamento da natureza”, ou, ainda, qual o
papel original do sentimento. Em seu nível, desven- se introduziram em meu espírito por
da-se a décima segunda verdade: eu tenho um corpo certo costume que tenho de julgar
ao qual estou jungido. inconsideradamente as coisas; e,
178 Frase capital. Descartes não estabeleceu que
eu sou um entendimento + um corpo, porém que assim, pode ocorrer facilmente que
em mim hã, além do mais, uma “mistura” dessas contenham alguma falsidade. Como,
duas substâncias. E esta mistura de fato corrige O
dualismo de direito. A idéia de que sou totalmente
por exemplo, a opinião que tenho
corpo e totalmente espirito anuncia um tema funda- segundo a qual todo espaço, no qual
mental da Antropologia moderna. Pode-se dizer, nada há que se mova é cause impres-
por exemplo, que a Phénoménologie de la Percep-
tion de Merleau-Ponty. constitui, em certo sentido,
são em meus sentidos, é vazio; que, em
um comentário dessas linhas: um corpo que é quente, há alguma
MEDITAÇÕES 145

coisa de semelhante à idéia do calor ensine que dessas diversas percepções


que existe em mim; que, em um corpo dos sentidos devêssemos jamais con-
branco ou negro, há a mesma brancura cluir algo a respeito das coisas que
ou negrume que sinto; que. em um existem fora de nós, sem que o espírito
corpo amargo ou doce, hã o mesmo as tenha examinado cuidadosa e madu-
gosto ou mesmo sabor e assim por ramente. Pois é, ao que me parece,
diante; que os astros é as torres, e somente ao espírito, € não ao com-
todos os outros corpos distantes, têm a posto de espírito e corpo, que compete
mesma figura e grandeza que parecem conheçer a verdade dessas coisas! 7 7,
ter de longe aos nossos olhos, etc.! 7 8 28. Assim, ainda que uma estrela
27. Mas, a fim de que nada haja não cause em meus olhos mais impres-
nisso que eu não conceba distinta- são do que o fogo de uma vela, não há,
mente, devo definir com precisão o que todavia, em mim nenhuma faculdade
propriamente entendo quando digo que real ou natural que me leve a acreditar
a natureza mé ensina algo. Pois tomo que ela não é maior do que esse fogo,
aqui a natureza numa significação mas que assim o julguei desde meus
muito mais limitada do que quando a primeiros anos sem nenhum funda-
denomino conjunto ou complexão de mento razoável. E, conquanto, ao me
todas as coisas que Deus me deu; visto aproximar do fogo, sinta calor e,
que esse conjunto ou complexão com- mesmo, sofra dor, aproximando-me
preende muitas coisas que pertencem perto demais, não há, todavia, nenhu-
apenas ao espírito, das quais não pre- ma razão que me possa persuadir de
tendo falar aqui, ao falar da natureza: que haja no fogo alguma coisa de
como, por exemplo, a noção que tenho semelhante a esse calor, assim como a
desta verdade, de que aquilo que foi essa dor; mas tenho somente razão
uma vez feito já não pode de modo para acreditar que há alguma coisa
algum deixar de ter sido feito, e uma nele, qualquer que seja, que provoca
infinidade de outras semelhantes. que em mim estes sentimentos de calor ou
conheço pela luz natural, sem a ajuda de dor.
do corpo, e que compreende também 29. Do mesmo modo, também, em-
muitas outras que pertencem apenas bora haja espaços nos quais não
ao corpo é que aqui não mais estão encontro nada que provoque e que
incluidas sob o nome de natureza: mova meus sentidos, não devo concluir
como a qualidade que ele tem de ser daí que esses espaços não contêm em
pesado, e várias outras semelhantes, si nenhum corpo; mas vejo que, tanto
das quais não falo tampouco, mas nisso como em várias outras coisas
somente das coisas que Deus me deu, semelhantes, acostumei-me a perverter
como sendo composto de espírito e de e a confundir a ordem da natureza,
corpo. Ora, essa natureza me ensina porque, tendo estes sentimentos ou
realmente a fugir das coisas que cau- percepções dos sentidos sido postos em
sam em mim o sentimento da dor e a mim apenas para significar ao meu
dirigir-me para aquelas que me comu- espírito que coisas são convenientes ou
nicam algum sentimento de prazer; nocivas ao composto de que é parte, e
mas não vejo que, além disso, ela me sendo até aí bastante claras e bastante

17% Não estarei mdo longe demais ao conceder 177 Distinção. das ordens. “A natureza” designa
esta “verdade” no sentimento? Não redundará isso somente a substância composta, a zona de mistura
em justificar os “prejuízos da infância” e os erros de da alma e de corpo; e seu “ensinamento” em nada
uma Física “fenomenológica”, como a de Aristó- concerne ao conhecimento: limita-se à informação
telese dos escolásticos? biológica.
146 DESCARTES

distintas, sirvo-me delas, no entanto, impelidos pela natureza, como acon-


como se fossem regras muito certas, tece com os doentes, quando desejam
pelas quais possa conhecer imediata- beber ou comer coisas que os podem
mente a essência e a natureza dos cor- prejudicar. Dir-se-à talvez aqui que a
pos que existem fora de mim, da qual, causa de se enganarem elesé que sua
todavia, nada me podem ensinar senão natureza é corrompida; mas isso não
algo muito confuso e obscuro! 72, afasta a dificuldade, porque um
30 Mas acima já examinei suficien- homem doente não é menos verdadei-
temente como, não obstante à sobe- ramente criatura de Deus do que um
rana bondade de Deus, ocorre que haja homem que goza de plena saúde; e,
falsidade nos juízos que formulo dessa portanto, repugna tanto à bondade de
maneira. Somente ainda se apresenta Deus que ele tenha uma natureza enga-
aqui uma dificuldade relativa às coisas nadora e falível quanto o outro. E
que a natureza me ensina que devem como um relógio composto de rodas e
ser seguidasou evitadas e, também no contrapesos não observa menos exata-
que concerne aos sentimentos interio- mente todas as leis da natureza quando
res que ela pôs em mim; pois parece- é mail feito, e quando não mostra bem
me ter reparado nelas algumas vezes a as horas, do que quando satisfaz intei-
existência do erro. é, assim, que sou ramente ao desejo do artífice; da
diretamente enganado por minha natu- mesma maneira também, se considero
reza! 7º. Como, por exemplo, o gosto o corpo do homem como uma máqui-
agradável de algum alimento ao qual na, de tal modo construída e composta
se tenha misturado veneno pode convi- de ossos, nervos, músculos, veias, san-
dar-me a tomar este veneno e, assim, gue e pele que, mesmo que não hou-
me enganar. É verdade, todavia, que vesse nele nenhum espírito, não deixa-
nisto a natureza pode ser escusada, ria de se mover de todas as mesmas
pois ela me leva somente a desejar o maneiras que faz presentemente, quan-
alimento no qual encontro um sabor do não se move pela direção de sua
agradável, e não a desejar o veneno, vontade, nem, por conseguinte, pela
que lhe é desconhecido; de maneira
ajuda do espírito, mas somente pela
que disso não posso concluir outra
disposição de seus órgãos, reconheço
coisa senão que minha natureza não
facilmente que seria tão natural a este
conhece inteira e universalmente todas
as coisas: do que, certamente, não hã corpo, sendo, por exemplo, hidrópico,
que espantar, posto que o homem, sofrer a secura da garganta que costu-
sendo de uma natureza finita, não pode ma significar ao espírito o sentimento
também ter senão um conhecimento de da sede, e dispor-se por esta secura a
uma perfeição limitada. mover seus nervos e suas outras partes
31. Mas nós nos enganamos tam- da forma requerida para beber e assim
bém bastante fregientemente mesmo aumentar seu mal e prejudicar-se a si
nas coisas às quais somos diretamente mesmo, quanto lhe é natural, quando
não tem nenhuma indisposição, ser le-
178 Longe de ser “natural”, o emprego dos aaaos vado a beber para sua utilidade por
sensíveis com vistas 20 conhecimento é, pois, uma semelhante secura da garganta. E,
extrapolação ilegítima em relação ao ensinamento
da “natureza”. A falta só cabe a mim. ainda que, no concernente ao uso ao
17º Não haverá, todavia, erros mevitáveis e aos qual o relógio foi destinado por seu
quais me conduz o ensinamento da natureza? Acei- artífice, eu possa dizer que ele se des-
ta-lb é pôr em causa, através da infalibilidade desta,
a bondade de Deus. Tomamos, assim, 2 um pros via de sua natureza quando não marca
blema de Teodiçéia. bem as horas; e que, do mesmo modo,
MEDITAÇÕES 147
considerando a máquina do corpo hu- homem, tomada desse modo, seja Fali-
mano como formada por Deus para ter vel e enganadora'*?.
em si todos os movimentos que costu- 33. Para começar, pois, este exame,
meiramente estão aí, eu tenha motivo noto aqui, primeiramente, que há gran-
de pensar que ela não segue a ordem de de diferença entre espírito e corpo, pelo
sua natureza quando a garganta está fato de ser o corpo, por sua própria
seca e que beber prejudica-lhe à con- natureza, sempre divisível e o espírito
servação: reconheço, todavia, que este inteiramente indivisível. Pois, com efei-
último modo de explicar a natureza é to, quando considero meu espírito, isto
muito diferente do outro!8º, Pois esta é, eu mesmo. na medida em que sou
não é outra coisa senão uma simples apenas uma coisa que pensa, nao
denominação, a qual depende inteira- posso aí distinguir partes algumas,
mente do meu pensamento, que com- mas me concebo como uma coisa
para um homem doente é um relógio única e inteira. E, conquanto, o espi-
mal feito com a idéia que tenho de um rito todo pareça estar unido ao corpo
homem são e de um relógio bem feito, todo, todavia um pé, um braço ou
e a qual não significa nada que se qualquer outra parte estando separada
encontre na coisa da qual ela é dita; ao do meu corpo, é certo que nem por isso
passo que, pela outra maneira de expli- haverá aí algo de subtraído a meu espí-
car a natureza, entendo algo que se rito. E'as faculdades de querer, sentir.
encontra verdadeiramente nas coisas e, conceber, etc. nao podem propria-
portanto, não deixa de ter alguma mente ser chamadas suas partes: pois o
verdade. mesmo espírito emprega-se todo em
32. Mas, certamente, embora em querer e também todo em sentir, em
relação ao corpo hidrópico trata-se conceber, etc. Mas ocorre exatamente
apenas de uma denominação exterior, o contrário com as coisas corpóreas ou
quando se diz que sua natureza está extensas: pois não hã uma sequer que
corrompida, pelo fato de que, sem ter eu não faça facilmente em pedaços por
necessidade de beber, não deixa de ter meu pensamento, que meu espírito não
divida mui facilmente em muitas par-
a garganta seca e árida; todavia, com
tes e, por conseguinte, que eu não reco-
respeito à totalidade do composto, isto
nheça ser divisível. E isso bastaria
é, do espírito ou da alma unida a este
para ensinar-me que o espírito ou a
corpo, não se trata de pura denomina-
alma do homem é inteiramente dife-
ção, mas, antes, de verdadeiro erro da
rente do corpo, se já não o tivesse
natureza, pelo fato de ter sede, quando
suficientemente aprendido alhures” º2,
lhe é muito nocivo o beber;e, portanto, 34. Noto também que o espírito não
resta ainda examinar como a bondade recebe imediatamente a impressão de
de Deus não impede que a natureza do todas as partes do corpo, mas somente
do cérebro, ou talvez mesmo de uma
180 Antes de passar à justificação de Deus, Des- de suas menores partes, a saber, aquela
cartes afastará uma solução inaceitável. Trata-se de
compreender por “minha natureza” o corpo mate-
rial como máquina. Portanto, já não procede falar 181 Após o malogro da solução materialista, a difi-
de falha na natureza, assim como não procede dizer culdade subsiste, pois, totalmente.
que um relógio é “falivel'” quando não marca a hora tt? O que vai desculpar Deus é a consideração das
certa: não hã patologia das máquinas, Mas esta dificuldades suscitadas de faro pela união entre a
solução, que consiste em reduzir a substância com- alma e o corpo. Dat por que Descartes, aqui, come-
posta humana ao corpo físico (ou ao animal-má- ça pondo em evidência a incompatibilidade dos dois
quina), é evidentemente incompatível com à união termos a unir: q divisível e o indivisível; união,
substancial. Em Descaries, a psicofisiologia huma- aliás, que jamais poderemos compreender, mas ape-
na não é materialista. nas'constatar e descrever.
148 DESCARTES

onde se exerce a faculdade que cha- mas somente algumas de suas partes
mam o senso comum, a qual, todas as que passam pelos rins ou pelo pescoço,
vezes que está disposta da mesma isso excite, não obstante, os mesmos
maneira, faz O espírito sentir a mesma movimentos no cérebro que poderiam
coisa! º2, embora as outras partes do nele ser excitados por um ferimento
corpo possam estar diversamente dis- recebido no pé, em decorrência do que
postas, como o testemunha uma infini- será necessário que o espírito sinta no
dade de experiências, que aqui não é pé a mesma dor que sentiria se aí tives-
necessário relatar! 84, se recebido um ferimento. E cumpre
35. Noto? além disso, que a natu- julgar algo semelhante a respeito de
reza do corpo é tal que nenhuma de todas as outras percepções de nossos
suas partes pode ser movida por outra sentidos! * 5,
parte um pouco distanciada, que não 36. Enfim, noto que, como de todos
possa sê-lo também da mesma forma os movimentos que se verificam na
por cada uma das partes que estão parte do cérebro do qual o espírito re-
entre as duas, ainda que esta parte cebe imediatamente a impressão, cada
mais distante não aja de modo algum. um causa apenas um certo sentimento,
Como, por exemplo, a corda ABCD nada se pode desejar nem imaginar
que está inteiramente tensa, se chegar- nisso de melhor, senão que esse movi-
mos a puxar e mexer a última parte D, mento faça o espírito sentir, entre
a primeiraA não se mexerá de maneira todos os sentimentos que é capaz de
diferente da que poderíamos fazê-la causar, aquele que é mais próprio e
mexer-se, se puxássemos uma das par- mais ordinariamente útil à conserva-
tes médias B ou C, e a última D, no ção do corpo humano quando goza de
entanto, permanecesse imóvel. E, da plena saúde! 3, Ora, a experiência nos
mesma maneira, quando sinto uma dor leva a conhecer que todos os senti-
no pé. a medicina me ensina que esse mentos que a natureza nos deu são tais
sentimento se comunica por meio de como acabo de dizer; e, portanto, nada
nervos dispersos no pé, que se acham se encontra neles que não torne paten-
estendidos como cordas desde esse tes o poder e a bondade de Deus, que
lugar até o cérebro, quando eles são os produziu! *?,
puxados no pé, puxam também, ao 37. Assim, por exemplo, quando os
mesmo tempo, o lugar do cérebro de
nervos que estão no pé são movidos
fortemente, e mais do que comumente,
onde provêm e onde chegam, € aí exci-
seu movimento, passando pela medula
tam Certo movimento que a natureza
instituiu para fazer sentir dor ao espíri- *ES O sistema nervoso é apresentado como um
to, como se essa dor estivesse no pé. feixe de fios que partem da periferia para o centro.
Mas, já que esses nervos devem passar Por isso, qualquer que seja o nível do nervo de onde
se desencadeia o movimento (pé, perna, coxa, rins),
pela perna, pela coxa, pelos rins, pelas ele chegará sempre ao mesmo ponto.
costas e pelo pescoço, para estender-se *68 8 Seja qual for o ponto de partida da tração exer-
desde os pés até o cérebro, pode ocor- cida sobre ela, a glândula só pode, portanto, receber
um único movimento, O que acarreta uma limitação
rér que, embora suas extremidades que considerável da integração nervosa. Deus precisou
se acham no pé não sejam movidas, “escolher, para O conjunto dos movimentos indife-
rençaveis de cada nervo, a-sinalização mais útil ao
homem,
+83 A glândula pineal, !87 Essa solução do problema, conforme ao princi-
t8* Somente ao nível da glândula pode o espírito pio do melhor, possibilita todavia o erro. Mas ela
receber as impressões sensoriais, e o sentimento só surge agora como o preço inevitável do mal mini-
varia em fimção da variação na disposição dessa mo, tornando-se, pois, compatível com a bondade
pequena glândula. de Deus.
MEDITAÇÕES 149

da espinha dorsal até o cérebro, provo- dor como se ela estivesse no pé e o sen-
ca uma impressão no espírito que lhe tido será naturalmente enganado; por-
faz sentir algo, istoÉ, dor, como estan- que o mesmo movimento no cérebro
do no pé, pela qual o espírito é adver- não podendo causar no espírito senão
tido é excitado a fazer o possível para o mesmo sentimento e este sentimento
afugentar sua causa, como muito peri- sendo muito mais frequentemente exci-
gosa e nociva para o pé. tado por uma causa que fere o pé, do
38. É verdade que Deus podia esta- que por alguma outra que esteja alhu-
belecer a natureza do homem de tal rés, é bem mais razoável que ele leve
sorte que esse mesmo movimento no ao espírito a dor do pé do que a dor de
cérebro fizesse com que o espírito sen- alguma outra parte'**8. E, embora a
tisse uma coisa inteiramente diferente: secura da garganta nem sempre prove-
por exemplo, que o movimento se nha, como de ordinário, do fato de que
fizesse sentir a si mesmo, ou na medida beber é necessário para a saúde do
em que está no cérebro, ou na medida corpo, mas algumas vezes de uma
em que está no pé, ou ainda na medida causa inteiramente contrária, como
em que situado em qualquer outro experimentam os hidrópicos, todavia é
lugar entre o pé e o cérebro, ou, enfim, muito melhor que ela engane neste
qualquer outra coisa, tal como ela caso do que se, ao contrário, ela enga-
possa ser; mas nada disso teria contri- nasse sempre quando o corpo está bem
buído tão bem para a conservação do disposto; e, assim, em relação às ou-
corpo quanto aquilo que lhe faz sentir. tras coisas.
39. Da mesma maneira, quando 42. E certamente essa consideração
temos necessidade de beber, nasce daí me serve muito, não somente para
certa secura na garganta que move reconhecer todos os erros a que minha
seus nervos €, por intermédio deles, as natureza está sujeita, mas também
partes interiores do cérebro; e esse para evitá-los ou para corrigi-los mais
movimento faz com que o espírito facilmente: pois, sabendo que todos os
experimente o sentimento da sede por- meus sentidos me significam mais
que, nessa ocasião, nada há que nos ordinariamente o verdadeiro do que o
seja mais útil do que saber que temos falso no tocante às coisas que se refe-
necessidade de beber, para a conserva- rem às comodidades ou incomodi-
ção da saúde; e assim quanto aos dades do corpo, e podendo quase sem-
outros. pre me servir de vários dentre eles para
40. Donde é inteiramente manifesto éxaminar uma mesma coisa e, além
que, não obstante a soberana bondade disso, podendo usar minha memória,
de Deus, a natureza do homem, en- para ligar e juntar os conhecimentos
quanto composto do espírito e do presentes aos passados, e meu entendi-
corpo, não pode deixar de ser, algumas mento, que já descobriu todas as cau-
vezes, falível e enganadora. sas de méus erros, não devo temer
41. Pois, se há alguma causa que
excite, não no pé, mas em qualquer "88 “Iustificação” da ilusão dos amputados. Po-
uma das partes do nervo que está ten- der-se-ia perguntar se Deus é inteiramente descul-
pado. Afinal de contas, por que colocou ele os
dido desde o pé até o cérebro, ou dados do problema da união de maneira que não
mesmo no cérebro, o mesmo movi- haja solução perfeita? A Meditação Quarta, porém,
nos ensinou que ignoramos quais são os fins de
mento que se faz ordinariamente quan- Deus:e que a imperfeição do pormenor pode contri-
do o pé está mal disposto, sentir-se-ã a buir para a perfeição do conjunto.
150 DESCARTES

doravante que se encontre falsidade elas me aparecem e quando, sem


nas coisas que me são mais ordinaria- nenhuma interrupção, posso ligar o
mente representadas pelos méus senti- sentimento que delas tenho com a
dos'22, E devo rejeitar todas as dúvi- sequência do resto de minha vida,
das desses dias passados como estou inteiramente certo de que as per-
hiperbólicas e ridículas, particular- cebo em vigília e de modo algum em
mente esta incerteza tão geral no que sonho. E não devo de maneira alguma
diz respeito ao sono que eu não podia duvidar da verdade dessas coisas se,
distinguir da vigília: pois agora encon- depois de haver convocado todos os
tro uma diferença muito notável no meus sentidos, minha memória e meu
fato de que nossa memória não pode entendimento para examiná-las, nada
jamais ligar e juntar nossos sonhos uns me for apresentado por algum deles
com os outros e com toda a segiiência que esteja em oposição como que me
de nossa vida, assim como costuma for apresentado pelos outros. Pois, do
juntar as coisas que nos acontecem fato de que Deus não é enganador
quando despertos. E, com efeito, se segue-se necessariamente que nisso
alguém, quando eu estou acordado, me não sou enganado.
aparecesse de súbito e desaparecesse 43, Mas, como a necessidade dos
da mesma maneira, como fazem as afazeres nos obriga amiúde a nos
imagens que vejo ao dormir, de modo determinar antes que tenhamos tido o
que eu não pudesse notar nem de onde lazer de examiná-las tão cuidadosa-
viesse, nem para onde fosse, não seria mente, é preciso confessar que a vida
sem razão que eu consideraria mais do homem está sujeita a falhar muito
um espectro ou um fantasma formado frequentemente nas coisas particula-
no méu cérebro e semelhante àqueles res; e, enfim, é preciso reconhecer a
que aí se formam quando durmo do
imperfeição e a fraqueza de nossa
que um verdadeiro homem. Mas quan-
natureza!
*º.
do percebo coisas das quais conheço
distintamente o lugar de onde vêm e
+46. Embora nos proporcione o fundamento da ver-
aquele onde estão, e o tempo no qual dade é nos desvende os mecanismos do erro, a
Metafísica não nos fornece, igualmente,o meio mfa-
18º O mundoé restabelecido na-sua verdade: dis- lível de não falhar, De resto, ela nos ensinou tam-
pomosdos meios de evitar ao máximo o erro. bêm a medir mais exatamente a nossa finitude.

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