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e Expressão
António Nunes
Na sua fase ainda romântica António Nunes publicou o livro de poemas Devaneios (1938),
que seriam, de facto, meros devaneios ou exercícios poéticos. Na fase posterior, de
orientação neo-realista, publicou Poemas de Longe (1945).
Obras de António
Nunes
Pedro da Silveira, poeta açoriano e estudioso da literatura cabo-
verdiana, coadjuvado por Francisco José Tenreiro, pensou ainda
em reunir todos os poemas de António Nunes da fase
modernista. Poemas seria o título do livro e teria a seguinte
organização: “iniciação”, com os poemas correspondentes a 1940-
1942; “Poemas de Longe”, os aparecidos em caderno impresso sob
esta designação; “Versos de Lisboa”, três poemas alheios à cabo-
verdianidade; e “Outros Poemas”, contemporâneos ou posteriores
ao Poemas de Longe. Contudo, por razões várias, o projecto não se
concretizou.
O sujeito poético, num acto de cumplicidade com o leitor, explica a razão da sua tristeza falando dos
passeios que tinha com a amada pela Praça (aos domingos), do emprego –
que era a garantia da realização dos seus sonhos – e dos versos
que lhe dedica. Pensa que, devido à publicação dos seus escritos, a que foi a amada, ainda que por es
cassos momentos, lembrar-se-á dele (“nesta cidade enorme”), imaginando-o “nalgum cinema
[…] / Talvez nalgum café […]/ Talvez no rio coalhado/ de barcos e
de velas […] ”, em companhia feminina “E no íntimo talvez então sinta/ a desolação de continuar/ na
cidade pequena/ da ilha/ lá ao longe […] ”.
Toda a estruturação de Poemas de Longe obedece a uma lógica, em que o
primeiro poema apenas faz a introdução das recordações que estão ligadas entre
si em cadeia, como como contas de um rosário e o último anuncia um amanhã
de esperança.
Identifica-se com “Puxim Mêndi” – menino de Engenho que vai para a cidade da Praia Maria no
camião do senhor Júlio, retoma a lembrança da antiga namorada e da sua fuga, em “Moça do
Sobrado” – “O moço Poeta que de ti se enamorou um dia/ de repente fugiu como uma sombra”
– e imagina-se regressando ao ponto de partida.
Na sequência do regresso, segue o “Manú Santo” que correu Mundo mas quer tornar a
embarcar. O sujeito poético antevê o futuro em “A Tua Casa” e dirige-se à antiga namorada:
“Mas a Vida vincou-te, como vinca a todos…”. Segue-se “Titina” e “Maninho di Nha Noca” que
“na ânsia de ver Mundo/ fugiu ainda menino a bordo de um vapor”. Segue “Juca” e, por último,
o poema “Terra”, em que o sujeito poético pede para lhe contar “aquela história/ de meus
irmãos/ hoje perdidos/ no mundo grande […]”.
A fechar, o “Poema de amanhã, é uma esperança-certeza, uma antevisão dum futuro melhor –
a independência de Cabo Verde:
Poema mamã
Mamãi!
sonho que, um dia,
em vez dos campos sem nada,
do êxodo das gentes nos anos de estiagem
deixando terras, deixando enxadas, deixando tudo,
das casas de pedra solta fumegando do alto,
dos meninos espantalhos atirando fundas,
das lágrimas vertidas por aqueles que partem
e dos sonhos, aflorando, quando um barco passa,
dos gritos e maldições, dos ódios e vinganças,
dos braços musculados que se quedam inertes,
dos que estendem as mãos,
dos que olham sem esperança o dia que há-de vir
– Mamãi!
sonho que, um dia,
estas leiras de terra que se estendem,
quer sejam Mato Engenho, Dacabalaio ou Santana,
filhas do nosso esforço, frutos do nosso suor,
serão nossas.
E, então,
o barulho das máquinas cortando,
águas correndo por levadas enormes,
plantas a apontar,
trapiches pilando
cheiro de melaço estonteando, quente,
revigorando os sonhos e remoçando as ânsias
novas seivas brotarão da terra dura e seca,
vivificando os sonhos, vivificando as ânsias, vivificando a Vida!...
O poema estrutura-se em duas partes, segundo os momentos temporais. Do passado, que
se prolonga até ao presente, e do futuro, por antecipação, com recurso a uma prolepse.
Os dois momentos são introduzidos pelo vocativo “Mamãi”, assim mesmo, na língua
materna, numa identificação com as suas origens.
Passam-se os anos e o sonho de António Nunes torna-se realidade. Corsino Fortes, Poeta
Militante, na manhã de 5 de Julho, anuncia ao seu confrade, num tempo sem espaço, que o dia
chegara:
Poema bom dia António Nunes
António! sob o olho do carvão dos séculos
Há sons & aves de solidão
Que ano a ano
Burilam o coração da ilha
Como o dia E o diamante
E do carvão do corpo
E do carvão dos séculos nasce a Estrela da Manhã
– Manuel Brito-Semedo