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«E o teu nome é Liberdade!

Sinto-me uma privilegiada e não tenho vergonha de o admitir, pois estou a


partilhar um bocadinho desse privilégio. Pequenino, é certo, mas daqui a uns tempos
dar-me-ão razão. É verdade. Eu e vós, leitores de O Postal do Algarve, somos uns
privilegiados porque temos aqui acesso a um livro que ainda não está publicado.
Tinha pensado escrever este mês sobre aquele que eu julgava ser o último livro
de poesia de Fernando Cabrita (Olhão, 1954), galardoado com o «Prémio Nacional de
Poesia Mário Viegas - 2008» pela Câmara Municipal de Santarém e publicado em 2009
pela editora Gente Singular (a imagem que acompanha este texto é a capa deste livro,
sobre uma pintura do próprio Fernando Cabrita). Mas fui surpreendida com o recente
anúncio da atribuição de um novo prémio a este autor.

Ode à Liberdade (e outros poemas)


Este é o título vencedor da 3ª edição em língua portuguesa do «Prémio
Internacional de Poesia Palavra Ibérica 2010», que a Câmara Municipal de Vila Real de
Santo António e o Ayuntamiento de Punta Umbría, em colaboração com «Sulscrito –
Círculo Literário do Algarve», instituíram para «promover a criação literária e o
conhecimento da poesia nas duas línguas» (como se lê na página electrónica da
CMVRST). Este prémio tem uma edição em língua espanhola, cujo vencedor
(vencedora, por sinal) já havia sido divulgado: a mexicana Aída Monteón.
Devido à gentileza de Fernando Cabrita, pude ler e partilho aqui convosco este
seu (agora é que é!) último livro de poesia.

«E o teu nome é Liberdade!»


«Liberdade» é a última palavra do poema principal (os poemas que se seguem –
do subtítulo E Outros Poemas não são menores, só porque mais pequenos), todo ele
construído e desenvolvido à sua volta. O modo como o poeta se relaciona com ela e a
enreda com os outros (posicionando-se, necessariamente, como intermediário) é de uma
riqueza profunda.
A educação, os gostos, as referências (literárias, históricas, culturais), os pedaços
de vida, as lutas, enfim, o que moldou o narrador e faz dele quem ele é está reflectido
em cada verso do poema. É um prazer descortinar as citações que fazem parte do
imaginário que partilha connosco, a obrigar-nos a aceitar que somos cidadãos do
mundo. É assim que nos lembra importantes lutas que se travaram pela liberdade, como
a resistência à escravatura no Brasil, nos Estados Unidos da América ou em África, e
nos faz sentir que podemos ser personagens de ficção, como Robin dos Bosques ou
Lawrence da Arábia:
e estiveste em cada Quilombo dos Palmares a quebrar grilhetas,
em cada Cabana de cada Pai Tomás,
em cada cubata incendiada a apagar as labaredas,
e tiveste Sherwood por morada,
e Wadi Rum por caminho,

Nem sempre estas menções são tão explícitas como as do exemplo, mas
revelam-se inteligentes desafios aos nossos próprios referentes, renovando as palavras,
mas deixando o suficiente para percebermos qual a ligação que está a estabelecer. As
fontes são as mais variadas: a Bíblia (recordando milagres de Cristo: «E como
desejamos ver-te caminhando para nós/ por sobre as águas»), a história («às mães tristes
da Plaza de Mayo», referindo-se às mães argentinas que nessa praça esperam notícias
dos filhos desaparecidos durante a ditadura), a pintura («aos fuzilados de Goya», numa
referência aos fuzilamentos de 3 de Maio, que Goya pintou), a poesia lusófona («É
preciso de novo inventar todos os amores com carácter de urgência», fundindo Vinicius
– «É preciso inventar de novo o amor» – e Eugénio – «É urgente o amor»), a música
(«Cantaste com Verdi no coro dos escravos», relembrando a área «Va pensiero» cantada
pelos escravos hebreus na ópera Nabucco) e muito mais.

«Sem ti somos Orfeu sem Eurídice»


As referências a clássicos da literatura (e aos da antiguidade – que me são tão
queridos – em particular), que já marcavam a «Ode à Casa» (poesia do livro anterior),
continuam neste poema, não nos deixando esquecer a força que emana das raízes da
nossa cultura europeia, que nos cria imagens e sentidos:
Sem ti somos Orfeu sem Eurídice,
Argos sem Ulisses,
folhas sem árvore,
seres só de lama, sem coração que nos valha.
Sem ti somos a pequenez das coisas que não prestam,
a mais miserável das insignificâncias.
Tristão sem Isolda,
rosa de Hélder a desfolhar-se antes de murchar,
gazela de pernas quebradas
que a manada abandona na solidão da planície.
E porque a Liberdade é sem Tempo, todo este se funde e reflui em personagens,
lugares, sentimentos, porque «É preciso de novo,/ porque é sempre preciso,/ e nunca é
tarde,/ e nunca é cedo, /e toda a hora é a hora,/ porque a todo o instante palpitas em cada
pedra/ de cada casa,/ de cada aldeia, de cada cidade,/ de cada mundo conhecido/ e de
cada mundo ainda por inventar.»
O poema é lindíssimo. Apetece ler e reler. Deixar a fantasia seguir pela mão que
nos guia através da história e dos tempos, dos livros e da música, e nos obriga a
recordar. Porque este é um poema para gente bem acordada e, quem o não está, ficará.
Em tempos de crise é bom termos na liberdade uma aliada, pois, «vencedora e triunfal»,
é uma inspiração: «Frente a cada tirania ergueste a tua espada fresca de futuro».
Aguardo, expectante, a chegada às livrarias da edição bilingue.

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