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DR.

TAVARES AFFONSO

- Seis Cartas e Um Bilhete Postal Dirigidos Ao Prof. Doutor Egas Moniz -

José Gurgo e Cirne*

*Licenciado em Antropologia e Serviço Social, pós-graduado em Família e Sistemas Sociais, mestre em


Antropologia Social e Cultural. Possui o Diploma de Estudos Avançados em Antropologia e frequentou
também Estudos Avançados em História das Idades Média, Moderna e Contemporânea. É membro do
CRIA – Centro em Rede de Investigação em Antropologia, sob cuja égide se encontra a realizar o
doutoramento em Antropologia.

1
Entre os meses de Julho de 2006 e Novembro do mesmo ano, publicou o jornal “O
Concelho da Murtosa” uma série de cinco artigos, da autoria do recém-falecido Pe.
Manuel Joaquim Tavares Cirne (19.04.2020), nosso saudoso professor de Francês,
ainda que por breve tempo, no antigo Seminário de Calvão, no início do ano lectivo de
1972-73. (Ressalve-se que, apesar do mesmo apelido, nenhum laço de parentesco
conhecido nos unia.) Tais artigos já vinham sendo publicados sob o título genérico de
“Achegas para a História do Bunheiro”, mas, no caso em particular, o seu autor
acrescentou-lhe a seguinte epígrafe: “Os Rebimbas Tavares Originários do Celeiro”
(Achegas nºs 65-1; 65-2; 65-3: 65-4; e 65-5).
A pretexto da publicação desses artigos, tivemos o ensejo de trocar alguma
correspondência com o seu autor, de que guardamos treze cartas manuscritas suas, em
resposta pelo menos a outras tantas da nossa própria lavra. São aquelas todas datadas da
Casa Diocesana de Nª Senhora do Socorro, em Albergaria-a-Velha, onde o Pe. Cirne
assumira funções de orientador espiritual, sendo a mais antiga de 06.11.2006 e a mais
recente de 14.09.2009. Quando pensámos dar início à redação do presente artigo,
voltámos a contactar o Pe. Cirne, de que resultou a marcação de um encontro, que se
veio a efectivar com a nossa deslocação à referida Casa Diocesana, naquela que viria a
ser, mal o sabíamos então, a nossa conversa de despedida.
Sucede que, em simultâneo, dávamos início à nossa colaboração com a revista “Terras
de Antuã”, ainda dirigida pelo Dr. Delfim Bismarck Ferreira, com a publicação de um
artigo intitulado “Episódio da Vida Política de Há Cem Anos”, que saiu no nº 3 (2009)
daquele anuário e versava a figura do Dr. António Tavares Afonso e Cunha. Com vista
à elaboração de tal artigo, socorremo-nos dos bons ofícios da Dra. Rosa Maria
Rodrigues, actual directora da revista “Terras de Antuã”, que, em complemento, nos
cedeu fotocópias de várias cartas autógrafas do Dr. Tavares Afonso, que se encontram
no espólio da Casa-Museu Egas Moniz e que hoje aqui damos à estampa.
Entretanto, será bom reavivar o que, sobre a personalidade em causa, escreveu o Pe.
Cirne na sua “Achega nº 65-2”, publicada no jornal “O Concelho da Murtosa” de
Agosto de 2006. Dizia ele:
Para começar, escolhi o Dr. António Tavares Afonso e Cunha, um homem íntegro,
depreciado por vicissitudes adversas da sua vida malsucedida, ou má sorte, e caído no
esquecimento do público em geral.
É certo que a Câmara Municipal de Estarreja lhe dedicou uma rua na Póvoa; e temos
testemunhos coevos dos colegas vereadores em sua defesa, reagindo contra certa
corrente política, que pretendeu amesquinhá-lo, afastando-o dela.
Também a Junta de Freguesia do Bunheiro, com acerto e justiça, deu o seu nome a
uma das principais artérias da sua Terra.
E acrescentava, sem peias:
Ora, eu posso apresentar razões comprovativas de que ele foi um grande homem:
inteligente, expedito e oportuno, honrado e fiel à sua palavra, um administrador
competente (como o reconheceram os seus pares), um advogado hábil, conhecedor da
Lei e honesto na sua aplicação (que nunca pactuou com a injustiça), um cristão

2
sincero, um educador atilado, um bunheirense devotado ao bem da sua Terra Natal, um
pensador sensato, que nos honra a quantos nascemos no Bunheiro.
Aceito que outros tenham opinião diferente. Porém, a minha é esta, que passo a
explanar com factos da sua vida e alguns escritos seus.
De seguida, acrescenta um resumo dos seus traços biográficos:
O Dr. António Tavares Afonso e Cunha, filho de Manuel José Pereira de Sousa e de
Joana Maria Tavares, nasceu no lugar do Celeiro, em 15 de Junho de 1870, sendo
baptizado no dia 19 seguinte, pelo tio paterno, Pe. José Joaquim Pereira de Sousa (Pe.
José Zarelho). Teve por padrinhos os tios maternos António Tavares Afonso e Cunha e
Maria Ana Tavares Afonso e Cunha, já identificados.1
Desconheço onde terá feito os seus estudos preparatórios, mas pode-se afirmar com
segurança que neles teve influência preponderante o tio materno Pe. Domingos
Tavares Amador, professor de nomeada em Aveiro, o qual, com a extinção da Diocese
em 1882, regressou à casa paterna, onde faleceu em 8 de Junho de 1889 – período
correspondente aos ditos estudos do sobrinho.
Quanto aos seus estudos académicos, elucida:
António Tavares Afonso e Cunha matriculou-se na Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra, em Outubro de 1888.
Tenho o registo de cada um dos seus exames dos cinco anos do seu Curso de Direito e
em todos, seguidos, a classificação, que mereceu aos Lentes, foi de «aprovado nemine
discrepante», o que equivale em linguagem corrente a «distinto».
Formou-se em 17 de Junho de 1893 e foi-lhe passada carta em 30 de Janeiro de 1894.
No que respeita ao exercício da profissão, para além da sua competência, enaltece
também a sua singularidade:
Que foi um advogado competente, conhecedor das leis e dos homens, de bom senso e
equidade, é opinião generalizada de quem o conheceu e apontou como exemplar aos
mais novos.
Porém, no exercício da Advocacia, procedeu, com frequência, de uma forma tão
estranha, que a generalidade dos advogados classificará de loucura.
Conheci uma pessoa, que o consultou sobre determinada questão, na qual se julgava
injusta e abertamente prejudicada pelo seu opositor. Depois de ter ouvido,
pacientemente, o queixoso e concordando que a razão estava do seu lado, ajudou-o a
ponderar o valor entre os gastos, que teria de suportar, e o lucro, que lhe adviria, se
ganhasse a questão, o que é sempre uma incógnita. Que tentasse tudo por chegar a
uma conciliação razoável. Lembrou-lhe pessoas de influência junto do adversário, que
o chamassem à razão e o dissuadissem da sua ambiciosa pretensão, que poderia passar
por entre as malhas da Lei, mas nunca amarfanha o grito da consciência. Poderia

1
Faleceu em 7 de Março de 1956, como consta do assento de óbito nº 82/1956 da Conservatória do
Registo Civil de Estarreja, segundo a amável informação que, desde já, agradecemos à sua conservadora,
a Exma. Sra. Dra. Helena Pinheiro.

3
conseguir-se, com reflexão e bom senso, resolver a contenda, de forma aceite por
ambos. E rematou o seu conselho, dizendo: «Mesmo que fiques algo prejudicado,
lembra-te que vale mais uma fraca acomodação do que uma boa demanda».
Enquanto político e autarca, informa que:
Ele aparece a fazer parte da Vereação Municipal, sempre por eleição, em três fases ou
épocas: 1908-1909; 1919-1922; 1923-1925.

1ª Fase
Nesta, foi eleito Presidente da Câmara, em sessão extraordinária de 30 de Novembro
de 1908, sucedendo a Francisco Barbosa do Couto Cunha Sotto Maior. Presidiu às
sessões até à de 13 de Janeiro de 1909, inclusive, sendo, a partir dela, substituído na
presidência pelo Vice-Presidente Bacharel Artur Augusto de Oliveira Valente.
Na sessão ordinária de 10 de Fevereiro de 1909, o referido Vice-Presidente comunicou
aos vereadores presentes – segundo o teor da acta - «que ao Presidente desta Câmara,
Dr. António Tavares Afonso e Cunha, havia sido intimada a decisão do Supremo
Tribunal Administrativo, que o exclui do cargo de vereador desta Câmara, motivo
porque o mesmo não tem comparecido às últimas sessões».
Não se conhece o motivo desta tomada de posição do Supremo Tribunal
Administrativo. Inclino-me a atribuí-la a influências políticas 2, até porque, em cerca de
um mês, o Dr. António Tavares não tinha tempo de cometer irregularidades, que
impusessem a sua exclusão de vereador, eleito pelo povo e escolhido para Presidente
da Câmara pelos demais vereadores, e nem o dito Tribunal tinha tempo de as julgar.

2ª Fase
Os vereadores eleitos em 25 de Maio de 1919, fizeram o compromisso de honra em 13
de Agosto do dito ano e foi-lhes conferida a posse de vereadores da Câmara Municipal
de Estarreja, «que hão-de gerir e administrar o mesmo concelho desde o dia treze de
Agosto de mil novecentos e dezanove até trinta e um de Dezembro de mil e novecentos e
vinte e dois».
Na lista, aparece em 1º lugar o Bel. José Maria de Abreu Freire, de Avanca; e, em 2º, o
Bel. António Tavares Afonso e Cunha, do Bunheiro.
E continua o Secretário: … «e logo se procedeu em escrutínio secreto à eleição do
Presidente, Vice-Presidente e Secretários desta Câmara Municipal e o resultado foi o
seguinte: Presidente – Dr. José Maria de Abreu Freire; Vice Presidente – Dr. Manuel
Maria Vaz, da Murtosa; 1º Secretário – Capitão Manuel Maria da Silva Abreu; 2º
Secretário – José Bernardino Pereira – e assumiram o compromisso de honra,
obrigando-se a cumprir as Leis da República.

2
Cf. O nosso artigo publicado no nº 3 de “Terras de Antuã” (2009:99-104).

4
«Em seguida, a dita Câmara procedeu, por escrutínio secreto, à eleição da sua
Comissão Executiva, da qual resultou a eleição, como efectivos: Dr. António Tavares
Afonso e Cunha, do Bunheiro; Dr. José Fortunato do Amaral Cirne, de Salreu;
Joaquim Maria de Resende, de Pardilhó; Joaquim Manuel da Silva Gravato, da
Murtosa; Capitão Manuel Maria da Silva Abreu, de Avanca; José Domingues de
Andrade Júnior, de Fermelã; e Vitorino Tavares de Sousa, do Bunheiro».
Foi durante a sua presidência da Comissão Executiva que a Câmara Municipal mandou
erigir o monumento de homenagem aos mortos da I Grande Guerra. Ao facto se refere
também o Pe. Cirne quando diz o seguinte:
Em 21 de Junho de 1922, no exercício da sua função de Presidente da Comissão
Executiva, o Dr. António Tavares Afonso e Cunha dirigiu um ofício ao Prof. Doutor
Egas Moniz, elogiando o discurso, que fizera na inauguração do Monumento Aos
Mortos da Grande Guerra, e pedindo se dignasse cedê-lo à Câmara Municipal, que
desejava mandá-lo publicar, juntamente com uma fotografia do Autor3.

3ª Fase
Há uma terceira fase, em que participou temporariamente.
A acta da tomada de posse, entrada em exercício e declaração de compromisso de
honra dos cidadãos eleitos é de 2 de Janeiro de 1923. Em princípio, o mandato
prolongar-se-ia até 1925.
Nesta sessão, aparece, em primeiro lugar, o Dr. José Luciano Pires de Castro Corte-
Real e, em segundo, o Dr. António Tavares Afonso e Cunha. O regulamento do
exercício do poder é igual ao do período anterior.
A última sessão, em que participou, foi a de 26 de Setembro desse ano de 1923.
Houve eleições para o biénio de 1924-1925, mas ele não se propôs. E compreende-se,
porque nesta altura já se encontrava à frente da Companhia de Curtumes Antuã.
Na sua “Achega nº 65-3”, publicada no jornal “O Concelho da Murtosa” de Setembro
de 2006, o Pe. Cirne não hesita em evocar o Dr. António Tavares Afonso e Cunha, a
propósito da sua actuação à frente dos destinos da Companhia de Curtumes Antuã,
como “Um Homem de Valor, Digno da Gratidão dos Bunheirenses”. E não se coíbe de
entrar em minudências particulares e recordações pessoais, ao contar que:

3
Trata-se do opúsculo intitulado “Do Valor e da Saudade”, editado pela Câmara Municipal de Estarreja
em 1922. “Discurso proferido na inauguração do obelisco de homenagem aos soldados do concelho de
Estarreja mortos na Grande Guerra, em 17 de Junho de 1922.” No dizer de João Lobo Antunes, “Este
elogio ao «soldado marinhão» é, lido hoje, de insuportável lamechice, mas decerto o seu estilo
correspondia ao gosto da época e às expectativas da audiência” (Antunes, 2011:107). Continha ainda a
“Correspondência trocada entre o Presidente da Comissão Executiva da Câmara Municipal, sr. dr.
António Tavares Afonso e Cunha, e o sr. dr. António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz, a propósito da
presente edição”, cujas missivas são respectivamente de 21 e de 25 de Junho.

5
Desde criança, ouvi frequentemente falar da falência dum Banco4, que o Dr. António
Tavares tivera na Póvoa de Estarreja, perdendo o meu Avô, em consequência, o
capital, que nele depositara, pertencente a um filho emigrante no Brasil.
E contavam que indo lá, acompanhado por uma Filha, com intenção de reforçar a
conta, encontraram-no, ao balcão, de braços cruzados e muito acabrunhado.
Depois da saudação habitual, o meu Avô disse ao que ia. E a resposta dele,
amargurada, foi esta: «O Banco já não dá, nem recebe».
Perante o espanto e consternação do meu Avô e da Filha, ele continuou: «Vieram os lá
de cima e levaram tudo: valores e livros. Caímos na falência».
Mas é de todo conveniente, neste ponto, não confundir a casa bancária Tavares Affonso,
Lda., com sede em Lisboa, na Praça Luís de Camões, nº 48-3º Esq., e com filial em
Estarreja, com a Companhia de Curtumes Antuã5. E foi esta que faliu, não a casa
bancária.
Fundada em 1922, a Companhia de Curtumes Antuã teve inicialmente sede na Praça da
Liberdade, nºs 28 e 29, na filial da casa bancária Pinto e Sotto Mayor, no Porto, com a
prerrogativa de a sua direcção poder “estabelecer agências ou quaisquer outras formas
de representação no país ou no estrangeiro”. Contudo, há indícios de que já em 1926
tinha mudado a sua sede também para Lisboa, o que se confirma no ano de 1927,
quando aparece domiciliada na mesma Praça Luís de Camões, nº 46 – 3º Esq.
Já então faziam parte da sua Direcção, além do Dr. António Tavares Afonso e Cunha, o
Prof. Doutor António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz e o capitão António
Bernardino Ferreira. Mas, ao contrário do que se possa julgar, nem o Prof. Doutor Egas
Moniz6, nem o capitão António Bernardino Ferreira7 participaram na sua fundação.
Não deixa, porém, de estranhar a existência, anterior mesmo à constituição legal da
Companhia de Curtumes Antuã, do seguinte

Instrumento de Venda

4
Trata-se, com efeito, da Firma Tavares Afonso, Lda. - Administrações -, sociedade de âmbito e capitais
familiares, que era também representante da Companhia de Seguros Equidade.
5
O Dr. António Tavares Afonso e Cunha, enquanto director da Fábrica de Curtumes Antuã, costumava
receber, na sede desta, os clientes da Firma Tavares Afonso, Lda. Era habitual os lavradores, no regresso
da Feira de Santo Amaro (até porque ficava em caminho), lá tratarem dos seus negócios financeiros. Daí
a confusão que acabou por se instalar entre ambas as firmas.
6
Pelo contrário, aquando da constituição da Sociedade de Produtos Lácteos, em Avanca e casas do Dr.
José Maria de Abreu Freire (parente de Egas Moniz), em 10 de Março de 1923, com um capital social de
300.000$00, o Dr. António Tavares Afonso e Cunha foi um dos seus cinquenta signatários. A sua
laboração teve início em 1 de Abril de 1924 e a firma seria depois adquirida pela Nestlé, em 1934.
(Não confundir com a Sociedade Avancanense, Lda., fundada em 9 de Maio de 1920 e com interesses
em Angola, da qual o Dr. António Tavares Afonso e Cunha foi igualmente sócio, sendo dela gerente o Dr.
António de Abreu Freire, também médico e parente de Egas Moniz.)
7
Tal como Egas Moniz (Negócios Estrangeiros), embora mais tardiamente, veio igualmente a integrar o
governo de Sidónio Pais (Interior).

6
«Em nove de Junho de mil novecentos e vinte e um, nesta vila de Estarreja e meu
cartório, perante mim Manuel Rodrigues Gomes, notário nesta comarca e as
testemunhas idóneas, minhas conhecidas, no fim designadas, compareceram os
Excelentíssímos Senhores António Caetano Lopes Fonseca com sua esposa Dona
Eduarda Virgínia Calheiros Pereira Fonseca, proprietários, moradores nesta vila, os
quais disseram – que eram legítimos senhores e possuidores de um pinhal situado na
Arrotinha, freguesia de Beduído, desta comarca, a partir do Norte com a estrada, Sul
com herdeiros de Francisco Barbosa, Nascente com o caminho e Poente com a
“Empresa Antuã”8: que este prédio está livre de hipotecas, penhoras e arrestos, foros
e, em geral, de toda e qualquer responsabilidade: que assim do mesmo prédio faziam
venda, para sempre, aos senhores Doutor António Caetano de Abreu Freire Egas
Moniz, casado, médico, das Congostas, freguesia de Avanca, Doutor António Tavares
Afonso e Cunha, solteiro, maior, advogado, desta vila e António Bernardino Ferreira,
casado, oficial do Exército, da Póvoa de Baixo, freguesia de Beduído e todos desta
comarca, pelo preço de vinte escudos, quantia que, em moeda corrente, já receberam
dos compradores, de que lhes davam quitação: que nos mesmos compradores, pois,
cediam e transferiam o domínio, direito e acção, usufruto e administração que até hoje
têm tido no prédio vendido, do qual, com suas pertenças, dependências e partes
integrantes, os compradores tomarão posse como e quando quiserem, obrigando-se
eles outorgantes à evicção nos termos de direito. – Assim o disseram e outorgaram, do
que dou fé. (…) Foram testemunhas continuamente presentes Adriano Augusto
Rodrigues da Silva, escrivão de direito e Alfredo Mendes Barata, oficial de diligências,
ambos casados, residentes nesta vila, os quais vão assinar com ambos os outorgantes,
depois de lido este instrumento em voz alta aos mesmos outorgantes, na presença das
testemunhas, por mim notário, que também assino. Foram praticadas seguidamente,
num só acto, as formalidades legais.»

Quanto à Companhia de Curtumes Antuã, a sua escritura de constituição e respectivos


estatutos foram publicados no Diário do Governo de 17 de Junho de 1922. A duração da
sociedade seria por tempo indeterminado, “contando-se para todos os efeitos o seu
começo desde 1 de Janeiro de 1922”. O seu capital social foi inicialmente fixado em
500.000$00, representado por 5.000 acções de 100$ cada uma, o qual se achava
8
Segundo tudo indicia, a Empresa Antuã era também uma empresa familiar, ao que julgamos,
predecessora da Fábrica de Curtumes Antuã. Provam-no os abonos feitos pelo Dr. António Tavares e sua
irmã Maria Luciana em 28 de Fevereiro, 6 e 26 de Março e 8 de Abril de 1918, no total de 2.000$00, por
lapso inscritos no livro-razão da firma Tavares Afonso, Lda., que uma nota manuscrita corrige:
“Transportado para os livros da Empresa Antuã.” Por outro lado, entre Janeiro, Fevereiro e Outubro de
1912, o Dr. António Tavares adquiriu, na Póvoa de Cima (Teixugueira), cinco propriedades que mandou
cercar e cultivar com diversas árvores, predominantemente eucaliptos, cuja área total se aproximava
dos dois hectares e onde, em Janeiro de 1918, tinha já investido para cima de 1.607$00.
Provam-no ainda as seguintes entradas do livro-razão da firma Tavares Afonso, Lda., a saber: em 5 de
Agosto de 1917, “Empréstimo à «Empresa Antuã» do capital do Dr. Júlio Seabra, recebido a fls. 40 –
150$00”; em 13 de Janeiro de 1919, “Nesta data o sr. António Bernardino Ferreira depositou em nome
da “Empresa Antuã”, de Estarreja, no Banco Português e Brasileiro, o juro do 1º ano do abono dos 5
contos (da Maria Luciana), na importância de – 250$00”; em 15 de fevereiro de 1915, “Por conta da
despesa com esta propriedade, dois carros de lixo da fábrica para estrume – 1$000.”

7
integralmente subscrito e já realizado aquando da escritura de constituição. Poderia, no
entanto, ser elevado a 1.000.000$00 quando a Direcção o entendesse conveniente,
depois de ouvido o Conselho Fiscal. Ressalvava-se, porém, que em caso de aumento de
capital, os anteriores accionistas teriam preferência na subscrição das novas acções,
segundo as condições estipuladas pela direcção.

Escritura de Constituição

«Em vinte e nove de Julho de mil novecentos e vinte e dois, nesta vila de Estarreja e
moradas do Doutor António Tavares Afonso e Cunha, para onde foi reclamada a minha
presença, ante mim Manuel Rodrigues Gomes, notário nesta comarca e as testemunhas
idóneas, minhas conhecidas, no fim designadas, compareceram os senhores Dom Juan
de Guinea Y. Basterra, casado, engenheiro, morador na rua Duque de Loulé, palacete
Bijou, da cidade do Porto, cidadão espanhol que declarou prescindir de intérprete por
conhecer e falar o idioma português; Doutor José Marques Pereira Barata, casado,
engenheiro, da Quinta da Costeira, freguesia de Beduído, desta comarca de Estarreja;
Doutor Guilherme Eugénio de Souto Alves, solteiro, maior, advogado, desta vila de
Estarreja; Doutor António Tavares Afonso e Cunha, solteiro, maior, proprietário,
morador nesta casa; Manuel Maria Esteves de Oliveira, casado, industrial, residente
nesta vila; Manuel Soares Ferreira, casado, negociante, desta mesma vila; João Carlos
da Silveira Pinto Camelo, casado, farmacêutico, do lugar da Igreja, freguesia de
Avanca, desta comarca; Doutor António de Abreu Freire, viúvo, médico, do lugar da
Aldeia, da mesma freguesia de Avanca; José Maria Dias Pereira, casado, proprietário,
da Póvoa de Baixo, freguesia de Beduído, desta comarca; Ezequiel da Silva Pinho,
casado, negociante, desta vila; José Marques de Oliveira e Silva, casado, negociante,
desta mesma vila; Augusto José Ferreira, casado, comerciante, da Praça, freguesia de
Beduído, desta comarca; Francisco de Oliveira Marques, casado, negociante, desta
vila; Manuel Pereira de Sousa, casado, cirurgião-dentista, morador nesta vila, e
Avelino dos Santos Leitão, solteiro, maior, negociante, residente nesta mesma vila,
sendo todos meus conhecidos. E por todos os outorgantes foi dito – que ao abrigo das
respetivas disposições legais, haviam constituído uma sociedade anónima, de
responsabilidade limitada, (que será regida pelas seguintes disposições digo cujos
estatutos) digo limitada, que será regida pelos seguintes Estatutos, os quais reduzem à
presente escritura, afim de surtirem todos os seus efeitos, pela maneira seguinte:
Capítulo primeiro – Denominação. Sede. Objecto e duração. Artigo primeiro – Em
harmonia com a respetiva legislação vigente e nos termos dos presentes Estatutos é
fundada uma sociedade anónima de responsabilidade limitada, que adopta a
denominação de “Companhia de Cortumes (sic) Antuã”. Artigo segundo – Esta
sociedade tem a sua sede e foro jurídico no Porto na praça da Liberdade, vinte e oito e
vinte e nove, filial da casa bancária Pinto & Soto Maior, podendo a direcção
estabelecer agências ou quaisquer outras formas de representação no país ou no
estrangeiro. Artigo terceiro – A sociedade tem por objetivo: Primeiro: a preparação de
camurças, couros, peles e mais artigos similares e derivados englobados na
generalidade sob a denominação de indústria de cortumes (sic). Segundo – efectuar
toda a espécie de contratos e operações comerciais e financeiras, que directa ou
indirectamente digam respeito ou interessem ao seu objeto. Terceiro – promover
quaisquer empreendimentos e explorar qualquer outro ramo de negócio, excepto
bancário, podendo para esse efeito adquirir e transacionar, mediante os meios legais,

8
mercadorias, bens móveis e imóveis, privilégios e garantias, mediante prévia
deliberação social. Artigo quarto – A duração da sociedade é por tempo
indeterminado, contando-se para todos os efeitos o seu começo desde um de Janeiro de
mil novecentos e vinte e dois. Capítulo segundo – Organização financeira. Secção
primeira – Capital – Artigo quinto. O capital social é formado desde já em quinhentos
mil escudos, representado por cinco mil acções de cem escudos cada uma, o qual se
acha integralmente subscrito e já realizado. Parágrafo primeiro – O capital social
poderá ser elevado a um milhão de escudos quando a direção o entender conveniente,
depois de ouvido o conselho fiscal. Parágrafo segundo – Em caso de aumento de
capital, os anteriores accionistas terão preferência na subscrição das novas ações,
segundo as condições estipuladas pela direcção. Secção segunda – Acções –
Accionistas – Obrigações. Artigo sexto – Todas as acções são nominativas e poderão
ser convertidas em títulos ao portador, até ao limite que a Direcção julgar conveniente.
Parágrafo único – Os títulos poderão ser de uma, cinco ou dez acções, conforme desejo
do accionista, manifestado no ato da subscrição. Artigo sétimo – As acções são
indivisíveis em relação à sociedade, que só reconhecerá um proprietário por cada uma.
Artigo oitavo – A sociedade poderá emitir obrigações por proposta da Direcção e com
voto favorável do conselho fiscal. Parágrafo único – Os accionistas terão preferência
na aquisição das obrigações nos termos prescritos no parágrafo segundo do artigo
quinto. Artigo Nono – Fica a sociedade autorizada a adquirir acções e obrigações
próprias e a realizar sobre elas todas as operações legais, sempre que a direcção o
julgue conveniente para o interesse da sociedade. Secção terceira – Lucros. Artigo
décimo – Os lucros líquidos, verificados durante o ano social, terão a aplicação
seguinte: Primeiro – Cinco por cento para fundo de reserva legal, enquanto não estiver
preenchido ou quando for preciso reintegrá-lo, podendo a direcção criar quaisquer
outros fundos que julgue convenientes (para) digo convenientes; Segundo – dividendo
pelos acionistas até seis por cento sobre o capital; Terceiro – seis por cento para
distribuir pelos membros efectivos da direcção em partes iguais; Quarto – dez por
cento para o gerente contratado; Quinto – o saldo restante terá a aplicação que a
assembleia geral determinar sob proposta da direcção e com o respectivo parecer do
conselho fiscal.= Capítulo terceiro – Assembleia geral. Artigo décimo primeiro – A
assembleia geral compõe-se de todos os accionistas possuidores dum mínimo de
cinquenta acções, equivalentes a um voto, que estejam averbadas ou hajam sido
depositadas com dois meses de antecedência, pelo menos, na sede da sociedade.
Parágrafo primeiro – A mesa da assembleia geral compõe-se de: um presidente, um
vice-presidente, dois secretários e dois vice-secretários eleitos trienalmente de entre os
accionistas elegíveis, sendo permitida a reeleição. Parágrafo segundo – qualquer
accionista com direito a voto pode fazer-se representar na assembleia, devendo o
mandato ser provado por carta cuja assinatura o presidente da assembleia geral
poderá fazer reconhecer quando o julgue conveniente, ou por outro qualquer
documento legal de procuração, não podendo o mandato ser substabelecido. O
documento do mandato deve ser entregue na sede da sociedade dez dias, pelo menos,
antes da data da reunião. Artigo décimo segundo – A assembleia geral, exceptuando os
casos previstos pelo segundo período do artigo décimo sexto, constitui-se com a
presença, digo décimo terceiro, constitui-se com a presença ou representação de um
mínimo de dez accionistas que representem pelo menos uma quinta parte do capital
social. A assembleia geral reunirá ordinariamente no primeiro trimestre de cada ano
social, podendo reunir-se extraordinariamente quando a direcção ou o conselho fiscal
o entenderem ou por efeito de requerimento em que se mencione o fim da reunião e que
deverá ser firmado por um grupo de oito accionistas que representem, pelo menos, um

9
quarto do capital social. Artigo décimo terceiro – A assembleia geral ordinária é
competente para deliberar sobre contas, relatórios, pareceres e propostas
apresentadas pelos corpos gerentes. À assembleia geral extraordinária compete
deliberar sobre a notificação dos Estatutos, dissolução e notificação da sociedade,
devendo as suas resoluções ser tomadas por um número de accionistas que
representem, pelo menos, metade do capital. Capítulo quarto – Administração e
fiscalização – Artigo décimo quarto – A Administração da sociedade compete a uma
direcção, que será composta de três membros efectivos e três substitutos, possuidores
de um mínimo de cinquenta acções cada um, eleitos trienalmente com a faculdade de
reeleição e que deverão caucionar a sua gerência com o depósito prévio de cinquenta
acções na caixa da sociedade. Parágrafo primeiro – A direcção elegerá de entre os
seus membros um para presidente, que será o director delegado. Parágrafo segundo –
A direcção deverá reunir ao menos uma vez por mês, Parágrafo terceiro – Cada
membro da direcção receberá mensalmente a quantia de cinquenta escudos, além do
que fica exposto (na al) digo exposto no número terceiro do artigo décimo, recebendo o
director delegado cem escudos mensais. Artigo décimo quinto – Compete á direcção:
Primeiro: designar na sua primeira reunião o respectivo presidente e director
delegado, distribuindo os serviços pelos seus membros, se assim o julgar mais
conveniente para os interesses da mesma, conforme o disposto nos artigos segundo e
terceiro e no parágrafo primeiro do artigo quinto dos presentes estatutos. Terceiro –
nomear e demitir quaisquer empregados, fixando os seus vencimentos, salários,
benefícios e cauções; Quarto – representar a sociedade nas suas relações com
terceiros ou em juízo, acompanhando e resolvendo sobre quaisquer pleitos e
procedimentos judiciais, concernentes aos interesses da sociedade, podendo renunciar
a quaisquer direitos e privilégios e constituir mandatários para a prática dos actos que
necessários forem. Parágrafo único – Os documentos de responsabilidade deverão ser
assinados por dois directores ou por um deles e qualquer outra entidade a quem a
direcção expressamente confiar esse poder. Quinto – Compete ainda à direcção
fiscalizar a escrita da sociedade e a marcha dos trabalhos nas suas fábricas ou
instalações, expedindo todas as instruções, regulamentos e ordens atinentes à melhor
organização dos serviços, à determinação das funções dos empregados e demais
pessoal e praticar todos os actos indispensáveis á defesa e garantia dos interesses e
direitos da sociedade, e finalmente contratar e nomear o gerente, mediante contrato em
que se estipulem as condições de segurança e vantagens que se julgue úteis para os
interesses mútuos. Artigo décimo sexto – Ao concelho fiscal, que se compõe de três
membros efectivos e três suplentes, competem as atribuições designadas pela lei.
Parágrafo único – O concelho fiscal reunirá pelo menos uma vez por mês, e cada um
dos seus membros perceberá como remuneração de serviços a quantia de vinte escudos
por cada secção. Capítulo quinto – Dissolução e liquidação – Artigo décimo sétimo – A
sociedade dissolve-se e liquida-se nos termos legais. Capítulo sexto – disposições
diversas – Artigo décimo oitavo – O ano social começará para todos os efeitos a contar
desde um de janeiro de mil novecentos e vinte e dois. Artigo décimo nono – A sociedade
toma a seu cargo o pagamento da contribuição industrial dos corpos gerentes, seus
empregados e assalariados. Artigo vigésimo – Dentro de trinta dias, a contar da data
da escritura de constituição da sociedade reunir-se-ão os seus accionistas em
assembleia geral para se proceder á eleição da respetiva mesa e do concelho fiscal.
Artigo vigésimo primeiro – A direcção no primeiro triénio fica constituída pelos
seguintes accionistas: Efetivos – Doutor António Tavares Afonso e Cunha, Dom Juan
de Guinea Y. Basterra e Doutor Guilherme Eugénio de Souto Alves. Substitutos –
Augusto José Ferreira, José Marques de Oliveira e Silva, João Carlos da Silveira Pinto

10
Camelo. – E que desta forma ficava constituída a sociedade de que se trata e haviam
por outorgados os Estatutos por que há-de ser regida. Assim o disseram e outorgaram,
do que dou fé. – Os outorgantes apresentaram-me dois documentos, que no meu
cartório vão ser, para os devidos efeitos, arquivados: a) uma guia pela qual me
provaram ter sido hoje feito, na tesouraria da Fazenda Pública deste concelho, o
depósito a que se refere o artigo cento e sessenta e dois, número três, do Código
Comercial; b) e uma certidão passada em catorze do mês corrente na Repartição do
Comércio pela qual se prova não estar ali inscrita qualquer sociedade com
denominação idêntica à de que se trata, ou alguma por tal forma semelhante que possa
induzir em erro. – Foram testemunhas continuadamente presentes José Soares da Silva,
casado, negociante e António Miranda, casado, negociante ambos desta vila, os quais
vão assinar com todos os outorgantes depois de na presença dos mesmos outorgantes e
testemunhas esta escritura ser lida em voz alta por mim notário, que também assino. O
selo devido, no valor de dois mil duzentos cinquenta e três escudos, foi pago por meio
de guia arquivada no final deste livro. Foram praticados seguidamente, num só ato, as
formalidades legais. Ressalvo: a rasura a linhas vinte e quatro e vinte e cinco de folhas
trinta, que diz… “Augusto José Ferreira, casado, comerciante, da Praça”; a emenda a
linhas cinco de folhas trinta e duas, que diz “seguinte” e a emenda a linhas vinte e
quatro da página retro, que diz “foi”. – Juan de Guinea Y. Basterra. José Marques
Pereira Barata. Guilherme Eugénio de Souto Alves. Manuel Maria Esteves de Oliveira.
Manuel Soares Ferreira. José Carlos da Silveira Pinto Camelo. António de Abreu
Freire. José Maria Dias Pereira. Ezequiel da Silva Pinho. José Marques de Oliveira
Pereira. Augusto José Ferreira. Francisco de Oliveira Marques. Manuel Pereira de
Sousa. Adelino dos Santos Leitão. José Soares da Silva. António Miranda. Em fé. O
Notário. Manuel Rodrigues Gomes.»

Em 1926, na sequência de uma 2ª emissão de acções, a Companhia de Curtumes Antuã


detinha já um capital social de Esc. 2.500.000$00, em vinte e cinco mil acções de cem
escudos cada uma. Os respectivos títulos são datado de Lisboa, em 28 de Dezembro de
1926, estando assinados pelos seus directores, a saber e na seguinte ordem: António
Tavares Affonso e Cunha, Egas Moniz e António Bernardino Ferreira. Conclui-se assim
que, só aquando do aumento de capital da Companhia é que os dois últimos passaram a
integrar a referida sociedade.
Em 1927, a Companhia de Curtumes Antuã mantinha ainda o mesmo capital social de
2:500.000$00, tendo a sua sede, no entanto, passado a ser na Praça Luís de Camões, nº
46, 3º Esq., em Lisboa. E pela Portaria nº 4.949 do Ministério do Comércio e
Comunicações, publicada no “Diário do Governo” nº 152-1ª Série de 19 de Julho de
1927 e escritura de 1 de Setembro do mesmo ano, foi a mesma autorizada a fazer uma
emissão de 25 mil obrigações no valor nominal de 100$00 cada uma. (Segundo a
respectiva Tabela de Amortizações, estas iniciar-se-iam em Janeiro de 1928 e
terminariam em Janeiro de 1957.) Aquando da sua emissão, no respectivo panfleto
publicitário, a sociedade garantia o seguinte:
Os haveres da Companhia estão inteiramente livres, não pesando sobre eles qualquer
ónus – como sejam – hipotecas, penhor, ou quaisquer outros encargos que possam
diminuir o seu valor. (…) Os «coupons» serão pagos, nos respectivos vencimentos: em
Lisboa, na sede da Companhia; em Estarreja, no escritório da Fábrica; e no Porto, na

11
filial do Banco Português e Brasileiro. Lisboa, 28 de Dezembro de 1927. Os
administradores: Dr. Egaz Moniz, Dr. António Tavares Affonso e Cunha e António
Bernardino Ferreira.
Quanto às circunstâncias da falência da Fábrica de Curtumes Antuã, acrescenta o Pe.
Cirne, ainda na sua “Achega nº 65-3”, publicada no jornal “O Concelho da Murtosa” de
Setembro de 2006, o seguinte:
Desconheço a data precisa, em que se deu a falência, mas aconteceu ainda na década
de 1920. Ignoram-se também os trâmites pormenorizados, que levaram ao lamentável
desfecho. O assunto não está devidamente estudado; e estudá-lo será louvável. Porém,
duvido que existam dados, para que se possa levar a cabo.
Todavia, há pontos certos para se dar um parecer aceitável sobre a questão:
1º - A falência não foi determinada pela Direcção, mas por uma entidade superior.
2º - Se existia descalabro económico, ele era da responsabilidade da Direcção «in
solidum», que reunia todos os meses, devia examinar a escrita mensalmente e, por isso,
estava a par do movimento da Empresa.
3º - O Conselho Fiscal tinha obrigação de reunir, pelo menos, uma vez por mês, para
examinar a situação económica da Empresa e se pronunciar sobre ela.
4º - Não se pode atribuir ao Dr. António Tavares a culpa da derrocada da Empresa,
apodando-o de administrador inábil, como «Gerente Delegado». E, de facto, não
consta que alguém se tenha atrevido a fazê-lo. Não utilizou o capital em seu proveito,
não o desviou, nem o esbanjou. E o desenvolvimento técnico da indústria não lhe dizia
respeito, exclusive e directamente.
5º - Perante a extinção da Sociedade, o menos que se pode dizer, é que os colegas
dessa altura o abandonaram9. Foi vítima da falta do cumprimento dos deveres de cada
um dos responsáveis.
Sobre o comportamento do Dr. António Tavares em todo o processo de falência da
Companhia de Curtumes Antuã, o Pe. Cirne classifica-o do seguinte modo: “Único,
Insólito, Espantoso!” E acrescenta, a seu respeito:

9
Seria injusto deixar de referir aqui o nome do médico Dr. António de Abreu Freire, antigo Governador
Civil de Aveiro, que sempre permaneceu seu fiel amigo – amizade extensiva à família e depois
prolongada pelo seu genro, o também médico Dr. António de Oliveira Duarte. Antigos colegas em
Coimbra, ao terminar o curso, legou-lhe a sua capa de estudante, que outros eram os tempos e mesmo
a lavoura, que de resto sempre acarinhou, já não sustinha o lustre dos brasões das casas grandes de
Avanca. E enquanto o Dr. António Tavares não se “exilou” em Estarreja, foi sempre convidado presente
nos jantares de S. Mateus (padroeiro da freguesia), que todos os anos organizava na sua casa do Celeiro,
na freguesia do Bunheiro. Aí se deslocavam, por essa ocasião, para além de outros amigos seus, também
a dona da pensão onde estava hospedado (a famosa “República”), D. Ana Mortágua, que por essas
alturas assumia a liderança da cozinha. (A propósito, aquando da revolta militar que levou, ainda que
por breve tempo, à instauração da chamada “Monarquia do Norte” (1919), estando os Paços do
Concelho de Estarreja sob a mira das tropas revoltosas, alguma gente boa da Praça também encontrou
refúgio na sua casa do Celeiro.)

12
Ele, por seu turno, em vez de recorrer aos meandros, que a Lei oferece em tais
circunstâncias – e conhecia muito bem, como advogado – tomou uma decisão insólita,
excepcional, singular, que define a nobreza do carácter, de quem a praticou.
Tinha empenhado a sua palavra, pedindo a pessoas amigas que investissem na
iniciativa (que vislumbrava de progresso feliz) e muitos o fizeram pela confiança, que
lhes merecia.
Perante a derrocada, em vez de se refugiar na Lei, como fizeram os outros 10, decidiu
vender tudo quanto possuía, para atenuar os prejuízos daquelas pessoas, que, a seu
pedido, tinham depositado as suas esperanças na empresa, pioneira da indústria no
concelho de Estarreja.
E ficou na miséria! E nunca mais voltou à Terra Natal!
Com efeito, para acorrer aos encargos decorrentes da falência da Companhia de
Curtumes Antuã, procedeu inclusive à dissolução da Firma Tavares Afonso, Lda., como
o prova a seguinte procuração, passada – imagine-se, em seu próprio nome! – pelo
Conselheiro Júlio Martins Lobo de Seabra:
«Júlio Martins Lobo de Seabra, Desembargador da Relação de Lisboa, casado e
morador em Lisboa, Calçada de Santos, 3-3º Esq., por si e na qualidade de pai e
administrador de sua filha menor Camila Júlia Correia Mendes de Seabra ou Camila
Júlia de Seabra, que como tal assina a concordata que a Firma Tavares Afonso
Limitada efectuou com os seus credores e já está homologada, – constitui seu bastante
procurador o Exmo. Sr. Dr. António Tavares Afonso e Cunha, para receber as quantias
que lhes foram fixadas na referida concordata, ou quaisquer outras que venham a ter
que receber de qualquer origem ou proveniência, passando delas quitação e podendo
substabelecer em quem entender o que tudo se dá por válido e firme. – O procurador
constituído é advogado, solteiro e morador em Estarreja. – Lisboa, em 1931, Júlio
Martins de Seabra.
No verso pode ler-se: “Reconheço a letra e assinatura da procuração retro. Lisboa, 1
de Abril de 1931.” Ostenta rubrica e selo branco do notário Tavares de Carvalho.»

Contudo, como diz o Pe. Cirne, é verdade que:

A Família sempre o amparou; e o sobrinho Dr. José Tavares Afonso e Cunha, em


conversa ocasional, confidenciou-me que todos os meses lhe enviava um cheque para a
sua subsistência.
Todavia, foi uma ferida, que lhe ficou sempre a sangrar, o desabar dum projecto bem
estudado, com recurso aos princípios da Economia Política, um choque esmagador no
seu orgulho de profissional, competente e sério.
Alguns amigos do quilate daquelas pessoas, para quem «o ter vale mais que o ser»,
esqueceram-no. Não podia deixar de sofrer com tal isolamento. E, como pessoa,
inteligente e sensível, sofria.
10
A propósito, existem rumores credíveis de um secreto divórcio entre D. Elvira e Egas Moniz, que urgia
averiguar. Tudo, porém, o Dr. António Tavares perdoou e não renegou aquele que continuou a
considerar seu amigo, como aqui se comprova.

13
Em situações destas, recorrer aos valores sobrenaturais é um arrimo dum valor
insubstituível. Talvez o tenha feito, porque era um homem cristão, convicto e
praticante.
Todavia, por azar e cúmulo da desgraça, eis que um padre 11 (talvez não
intencionalmente, mas abusivamente), utilizou-se do ambão para comentar de forma
equívoca a falência da Empresa, a qual pôde ser interpretada desfavoravelmente ao
Dr. António Tavares, como tendo obrigação de indemnizar os accionistas
prejudicados:
«Não se aflijam, que ele tem por onde pagar». Foi uma frase de duplo sentido, que o
amachucou e lhe barrou a entrada na Igreja, para sempre.
E termina o Pe. Cirne, concluindo que tal interdito ou anátema o tornaram vítima – se
esse nome pode ser atribuído a alguém de tão vincada conduta moral – dos seguidores
da Igreja Evangélica, que aliás possuíam um templo nas imediações da sua residência 12,
em Estarreja. Igualmente deverá ser descartada, por notória ingenuidade, a seguinte
história (talvez usada como explicação acessível aos elementos das gerações mais novas
da família), que o Pe. Cirne não deixa de evocar:
Contaram-me que, numa ocasião caiu na rua13, por qualquer circunstância, e quem o
socorreu foi um evangélico, quando tinham já passado outras pessoas, que não se
dignaram aproximar-se dele.
Tudo concorreu para deixar a Igreja Católica, na qual nasceu, foi educado e viveu
quase toda a vida. Aderiu à Igreja Evangélica14 e nela veio a falecer.
Esta situação fez sofrer muito a família, de modo especial, a irmã Maria Luciana
(sempre muito amigos), a qual lhe suplicava que ponderasse a decisão, que tomara tão
à margem da linha em que foram criados.
«Não te aflijas, Maria! Tu vais por um caminho, eu vou por outro, mas havemos de nos
encontrar ambos no Céu», era a resposta que lhe dava, convicto, e com a ternura de
irmão, com que sempre a tratara e para a consolar.
Para sustentar as suas afirmações, na “Achega” nº 65-4, publicada no jornal “O
Concelho da Murtosa, de Outubro de 2006, o Pe. Cirne esclarece:

11
Pe. Donaciano de Abreu Freire, filho de um bunheirense, primo direito da avó paterna do autor deste
artigo, grau familiar que nos permite alegar equidistância na análise da questão. A propósito, dizia o
reverendo Pe. Donaciano de Abreu Freire (apelido materno que usou, em simultâneo com a alcunha de
“Morgado”, de idêntica origem), que de nada tinha mais medo do que da pena do Dr. António Tavares…
(Atribuem-se-lhe geralmente os louros pela criação da Misericórdia de Estarreja, mas lamenta-se que a
referida instituição de caridade omita qualquer menção oficial ao nome do Dr. António Tavares, quer
como integrante do seu Núcleo Organizador de Beduído (1923), quer como seu doador desinteressado.)
12
Pessoa geralmente bem informada, asseverou-nos que tal templo, ainda hoje existente, serviria
também como refúgio da oposição política, pelo que chegou a estar na mira da PIDE/DGS.
13
Na cidade do Porto, onde era costume deslocar-se pela Páscoa, para cumprir a desobriga da confissão,
na igreja de Stº António (ou dos Congregados), logo à direita e à saída da estação ferroviária de S. Bento.
14
Preferimos ver nesta atitude, em vez duma conversão, uma adesão aos valores primitivos do
Evangelho, na senda dos princípios da filosofia estóica, de que está eivado o Cristianismo e que veio a
influenciar também o Direito Romano, no qual bebeu à saciedade o nosso Direito Moderno.

14
Pude ler algumas das suas cartas, que dirigiu ao seu sobrinho José Tavares Afonso e
Cunha, tanto quando este cursava os Estudos Preparatórios em La Guardia, como
quando passou a frequentar a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
São dum valor excepcional, porque espontâneas, de índole familiar, sem intenção de
que o público as venha a conhecer e as critique. Nelas, revela com simplicidade a sua
vida interior, em diversas manifestações: amor à Família, pedagogia sensata nos
conselhos, que dá ao Sobrinho estudante, e no comportamento exigente com ele;
interesse pelos carenciados e vivência manifesta da Fé Cristã; a sua relevante craveira
intelectual e um critério de valores muito ajustado.
E na última “Achega”, a nº 65-5, publicada no jornal “O Concelho da Murtosa” de
Novembro de 2006, o Pe. Cirne conclui:
O pouco que ficou escrito é bastante para aquilatar e comprovar a riqueza dos valores,
resumidamente apontados nas últimas quatro “Achegas”, de um Homem excepcional,
que, vítima da maldade, e talvez da traição, dos homens, se manteve de pé, na defesa
da sua dignidade e honradez.
A nossa Freguesia deve-lhe muito. Para deixar um exemplo, lembro a construção do
nosso cemitério com a sua história, cheia de entraves, tanto da parte das Autoridades
Civis, como dos proprietários dos terrenos a ele destinados (cf. “Achegas” 38/1-2-3).
E, por favor, não esqueça o Povo do Bunheiro que é a ele que deve a conservação da
sua venerável Residência Paroquial, contra a tirania usurpadora da Primeira
República.
Na sua biografia de Egas Moniz (2010), o mais desapaixonado e rigoroso de quantos
escritos se têm produzido sobre o Prémio Nobel, o Prof. Doutor João Lobo Antunes, a
dado passo, diz sobre o biografado o seguinte:
Uma outra iniciativa empresarial não foi tão bem-sucedida. Tratou-se da criação, em
1930, do Banco Antuã, para apoiar o desenvolvimento da região, que teve vida curta e
lhe trouxe grandes dissabores. Egas terá entrado com 200 contos e foi acusado num
processo de falência fraudulenta, pois o sócio principal fugiu para o Brasil com os
bens da sociedade. Em carta a José António de Almeida 15, Egas lamentava ter sido
«muito maltratado pelo tribunal colectivo». «Vexaram-me e, contudo, devem saber que
os factos alegados contra mim eram falsos», queixava-se. Era seu advogado o Dr.
António Bustorff Silva e Egas foi absolvido. No entanto, teve de reembolsar os
depositantes, para o que teve de contrair um empréstimo avalizado pela cunhada
Estefânia Macieira» (Antunes, 2011:136).
Ao longo da sua obra, o insigne e já defunto biógrafo não faz qualquer referência à
Companhia de Curtumes Antuã. No entanto, menciona a gorada tentativa de criação de
um Banco Antuã. Salvo resultado de melhor pesquisa, não estaria Lobo Antunes 16 a
confundir a casa bancária Tavares Afonso, Lda., com a própria Companhia de Curtumes
15
Advogado de Ovar e conservador do Registo Predial na mesma cidade, então vila (cf. Antunes,
2011:303.)
16
Enquanto vivo, fizemos chegar às suas mãos, no Hospital de Stª Maria, uma cópia da escritura de
constituição e respectivos estatutos da Companhia de Curtumes Antuã, com vista à correcção de uma
eventual edição futura da obra, que o mesmo cortesmente agradeceu.

15
Antuã? Haverá nisso reminiscências do processo de falência daquela? Ou teria Egas,
aquando da dissolução da referida casa bancária, vislumbrado uma oportunidade de
captar os seus antigos clientes e outros adventícios, uma vez que os “manos Pintos” 17,
no dizer do Dr. Tavares Afonso, praticavam usura demasiado elevada junto dos seus
conterrâneos?
Seja como for, interessa ressalvar que o Dr. António Tavares e Egas Moniz foram
coevos. O primeiro, como vimos, nasceu em 15 de Junho de 1870 e faleceu em 7 de
Março de 1956, quase a perfazer 86 anos. Egas Moniz, quatro anos mais novo, pois
nasceu em 28 de Novembro de 1874, veio a falecer antes, em 13 de Dezembro de 1955,
com 81 anos completos. No que respeita a política, enquanto jovens, batalharam em
campos opostos: o Dr. António Tavares era Regenerador e Egas Moniz militava no
partido Progressista. E, dos ecos dessas refregas, está repleta a imprensa local da
época…
Enquanto estudantes, o Dr. António Tavares Afonso e Cunha matriculou-se, como
acima vimos, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em Outubro de
1888. Formou-se em 17 de Junho de 1893, tendo-lhe sido passada a carta de conclusão
do curso em 30 de Janeiro de 1894. Por sua vez, Egas Moniz ingressou no 1º ano de
Medicina, precisamente em 1894, mas já levava três anos de vida coimbrã, onde desde
14 de Outubro de 1891 cursava estudos preparatórios (Antunes, 2011:41). É natural que
ambos se conhecessem.
Refere ainda o seu biógrafo que quando concluiu o 1º ano de Medicina, por razões
económicas, Egas cogitou na hipótese de concorrer a professor de liceu. Mas terá sido
um parente seu, José Maria de Abreu Freire 18, quem o dissuadiu de tal ideia, pois
augurava-lhe melhor futuro como professor universitário (idem:45). Egas acabaria
assim por se formar em 1899. Regressado a Avanca e Pardilhó “esperavam-no foguetes,
archotes e a Filarmónica Pardilhoense”19 (idem:49). Defendeu depois a tese de
licenciatura em 1900. Em 1901 prestou provas de doutoramento e em 1902 entrou para
o quadro docente como professor substituto.
Já no fim da vida, apesar de maçon (em 1910 fez a sua iniciação na maçonaria, na Loja
Simpatia e União, em Lisboa)20 e não crente, terá acedido aos rogos da esposa e aceitou
que o seu funeral tivesse a presença de um clérigo apenas. O que pouca gente saberá é
17
Alfredo e António Vieira Pinto, murtoseiros. António viria a fundar, juntamente com Cândido Sotto
Mayor, primeiro (1914-1926) a Casa Bancária Pinto e Sotto Mayor, que se transformou depois em
banco.
18
Segundo visconde de Baçar, em Castelões de Cambra. O primeiro do título, em tempo de el-rei D. Luís,
foi Fernando António de Almeida Tavares e Oliveira, que morreu solteiro e sem descendência. “Sua irmã
Dona Maria Miquelina de Almeida casou, em Avanca, com o capitão de Ordenanças João de Resende
Valente de Sá Abreu Freire, com solar e capela no lugar do Outeiro. A sucessão da Casa de Baçar
transmitiu-se aos filhos desta irmã, o Dr. José Maria de Abreu Freire, que foi segundo visconde, juiz de
direito de Bragança e também morreu solteiro, e António Tomás de Sá Resende de Abreu Freire, avô
paterno do Dr. Azevedo Bourbon, que foi o primeiro oficial do Registo Civil do concelho da Murtosa” (cf.
Cunha, 1965:116-117).
19
Ao contrário de constituir uma excepção, como parece ser, esta era mesmo a regra para quem
acabava de se formar. (Pelo menos em Pardilhó.) A título de exemplo, quando em 1908 se formou em
direito Caetano Tavares Afonso e Cunha, primo direito do Dr. António Tavares, igual recepção lhe foi
dispensada pela Filarmónica Pardilhoense.

16
que, para a sua inumação, foi transportada, num carro de bois, desde a sua Quinta do
Marinheiro, a terra que lhe havia de cobrir a campa rasa.21 E assim mesmo o confirmou
o “Diário de Lisboa” ao dar a notícia do seu funeral, informando em título que “O corpo
de Egas Moniz repousará numa campa simples no meio de terra recolhida na sua
propriedade de Avanca” (Antunes, 2011:309).
Quanto ao Dr. António Tavares, embora tivesse adquirido, em 1922, uma campa “na
quarta secção do cemitério paroquial” do Bunheiro, que o mesmo mandara construir
enquanto presidente da Junta de Paróquia, veio, no entanto, a ter a sua última morada
no cemitério paroquial de Beduído, onde já tinha sido inumado, em 1909, na “sepultura
nº 15 do canteiro norte-poente”, o seu tio e padrinho, em terreno que o próprio adquiriu
posteriormente, em 1911, mas que entrementes a Junta de Freguesia alienou, não
sabendo onde o mesmo se encontra sepultado…

(I)

Amº Egas:
25-12-1932
- Do coração te desejo e à Sra. D. Elvira alegres festas do natal (Natal), e todas as
venturas e prosperidades dum ano novo mais feliz.
- Escrevo-te duma cama do Hospital do Carmo (Porto), quarto nº 9, onde estou desde 13
do c/. – Na sexta-feira fizeram-me a intervenção cirúrgica de esmagamento de cálculo
na bexiga, mas sem êxito, por ser tão duro que o instrumento resvalava ao apertá-lo, e
só à volta conseguiu reduzi-lo, saindo ainda assim grande quantidade de resíduos
semelhantes a caliça triturada.
- Hoje disse-me o médico que bem queria poupar-me ao martírio da operação de barriga
aberta (tão cheia e gorda ela era) mas não se podia fazer a extracção por outro processo.
Que podia aproveitar fazê-la a seguir, mas disse-lhe que primeiro queria voltar a casa,
pois preciso de me preparar para a poder fazer, que (não) é mais sem dúvida que uma
simples intervenção.
- A intervenção de há três anos quase não custou nada a suportar também com anestesia
geral, mas esta tem-me sido torturante.
- Esperava lá para quarta-feira sair, mas tiraram-me hoje a sonda, e fiquei com uma tal
irritação dolorosa da bexiga a fazer as micções, que estas não se completavam.
- Sem normalizar não devo ter alta, e estou a ver que isto ainda leva dias.

20
Instituto Camões. http://cvc.instituto-camoes.pt/ciencia/p12.html Ciência em Portugal – Personagens
e Episódios. [07.08.2020]
21
Assim o escutámos de um familiar nosso, de Avanca, também já falecido, que o ouvira da boca do
próprio carreteiro encarregado do transporte.

17
- Em cima de todas as desventuras ainda mais esta infelicidade da operação, cuja cura
em mim se torna de efeitos martirizantes!
- E se eu escapo dela, o que ainda virá mais?!
- Com a vinda do ministro22 ao Norte e com a atitude deste o entusiasmo com o
consórcio23 baixou. Diz-me, porém, o Leite 24 que é medida que não está inteiramente
posta de parte, e que continua a mexer com mais elementos.
- Se a fábrica não se aguenta é outro problema para mim sem solução.
- Olha lá, e não haverá pela medicina um tratamento preventivo que me fizesse
desaparecer esta gordura, para tornar a operação mais fácil?
- Nas comidas há 3 anos que venho fazendo dieta apertadíssima, comendo mesmo
pouco e coisas pouco nutritivas, mas baixas de … (palavra ilegível).
- Sempre o mesmo amº certo,
Tavares Affonso

(II)

Amº Egas:
Estarreja, 31-10-1939
Por acaso li n’ O Século o artigo junto que do mesmo recortei para veres no caso de
ainda o não teres lido. Talvez te possa aproveitar para referência em qualquer nova
edição do Júlio Diniz25. E a propósito sugere-se-me a lembrança da passagem do
ofertório no fim do rosário que o romancista nas noites de inverno ouvia evocar à alma
generosa do Senhor Rei qº., com as suas benemerências tinha formado médico uma
pessoa ou antepassado do familiar.
Uma nova edição enriquecida com a romantização deste episódio aumentava de
interesse a sua leitura.
Quem foi o médico formado pela beneficência régia? Sabe-se q. era de Ovar, e foi
exercer clínica para Lamego, pois nesta época o grande comércio de sardinha entre Ovar
e o Douro tinha estreitado relações entre as populações vareiras e de Lamego. Diz-se
ainda hoje no Douro que a D. Antónia Ferreirinha ou seus antepassados iniciaram a sua
avultada fortuna com o negócio então muito lucrativo da sardinha, que ia de Ovar para o
Douro.

22
Desconhece-se quem seja a personalidade e a pasta que representa.
23
Parte-se do princípio de que o autor esteja a referir-se à Fábrica de Curtumes Antuã.
24
Desconhece-se a pessoa em causa, que, no entanto, se presume próxima e conhecida do autor.
25
“Júlio Dinis e a Sua Obra”, Egas Moniz, Livraria Civilização, Porto, 1924, com inéditos do romancista e
uma carta-prefácio do Prof. Ricardo Jorge. (Originalmente publicado em 2 volumes.)

18
Rocha Martins, paciente e erudito investigador, eventualmente pode ter coligido
apontamentos da administração da Casa Real donde constem os subsídios ou mesadas
dados ao estudante seu protegido. Também no arquivo da secretaria da Câmara
Municipal de Lamego deve constar o processo de nomeação do médico de Ovar para
seu facultativo de partido.
Ainda por vezes noto nos jornais apelidos de pessoas de Lamego que são de conhecidas
e antigas famílias de Ovar.
Desculpa a sugestão, que é em si maçadora, mas boa na intenção.
Os meus respeitosos cumprimentos à Senhora D. Elvira e um abraço do amº certo e
grato,
António Tavares Affonso e Cunha

(III)

Amº Egas:
Estarreja, 6-5-1945.
Tens passado por todas as fases e modalidades dos extraordinários talentos, e esta
última, de médico romântico da velhice é das mais curiosas e interessantes, mesmo
admirável.
Agradeço a oferta da “anciania”26, termo bem mais simpático que o pejorativo
“velhice”, para quem nunca durante a vida pensou em ser velho.
Não sei pelo quê, mas parece-me ter vindo a pressentir já há anos, esta tua nova
descoberta, cúmulo de delicadeza, e por isso não pode deixar de te felicitar e à Senhora
D. Elvira o sempre
Mtº Amº
António Tavares Affonso e Cunha

(IV)

Amº Egas:
Estarreja, 28/5/1951
26
Termo cunhado por Egas Moniz aquando da sua conferência inaugural (12.12.1944) como presidente
da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, a qual dirigiu entre 1944 e 1946 e que se intitulou
precisamente “Anciania” (cf. Antunes, 2011:264-265). Pelo teor da carta (ainda que o termo esteja
escrito com minúscula), depreende-se que a mesma foi publicada e um exemplar oferecido ao seu
signatário. Com efeito, o trabalho surge referenciado na bibliografia de Egas Moniz, entre os seus artigos
científicos, como tendo sido editado em 1944 pela “Imprensa Médica” (idem: 351).

19
Há muito que não tenho querido, com as minhas notícias, perturbar o ritmo da tua vida
de constante trabalho.
Hoje, porém, como que sinto o dever de abrir uma excepção.
A propósito da próxima eleição para (a) Presidência da República 27, correm já muitos
boatos, entre eles, da oposição liberal propor o Dr. Manuel Monteiro 28, que não
conheço, ou o teu nome.
Dizem-me que o Exército se encontra dividido quanto ao actual regime republicano.
Eu de maneira nenhuma tenho a pretensão de te dar conselhos, porque infelizmente
nunca para mim próprio tive.
Sendo o resultado da futura eleição consequência d’esta divisão, a recidiva é de temer.
Sem perigo de receio, para qualquer outro presidente, contigo não acontecerá o
mesmo…
És naturalmente cidadão português de projecção mundial incomparável às máximas
consagrações29, digo incomparável, o que deve despertar ódios dos concorrentes às
máximas consagrações.
A de Chefe de Estado, já em nada vem aumentar a celebridade que gozas, e não vale a
pena pô-la a correr risco de ser denegrida pelo atentado político. Longe de prestigiar a
vítima, a estupidez do crime pode afrouxar o brilho da luz irradiado da sua memória.
Fazendo votos que esta minha maneira amiga de ver se transmita também ao
pensamento da Senhora D. Elvira, da minha muito particular e respeitosa estima, não é
ela senão a expressão sincera da muita amizade do
Reconhecidíssimo
António Tavares Affonso e Cunha

(V)

Amigo Egas:

27
Aquando das eleições presidenciais de 1951, na sequência da morte do marechal Carmona, em 18 de
Abril desse ano, Egas Moniz foi “procurado por oposicionistas ao Estado Novo para se candidatar à
presidência da República” (cf. Antunes, 2011:299). Egas, no entanto, viria a alegar falta de saúde para se
poder lançar nesse desafio e não anuiu ao pedido. “Infelizmente, a minha falta de saúde é neste
momento incompatível com o desejo”, disse. Declarou, no entanto, o seu apoio ao candidato almirante
Quintão Meireles (idem:300). Este, por sua vez, acabaria por desistir…
28
Julgamos tratar-se do Dr. Manuel Joaquim Rodrigues Monteiro (1879-1952), primeiro governador civil
de Braga após a implantação da República, deputado eleito por Barcelos (Partido Democrático), juiz do
Supremo Tribunal Administrativo, ministro da Justiça e, depois, do Fomento, presidente da Câmara dos
Deputados e Presidente do Tribunal Internacional de Alexandria (predecessor do Tribunal Internacional
de Justiça, criado após a II Guerra Mundial, sediado em Haia, na Holanda).
29
As palavras em itálico estão sublinhadas no original, pelo que se depreende tratar-se duma ressalva,
que aliás as segue.

20
Não fui pagar-te as visitas, porque dia a dia estou a mexer-me menos.
Acabo de ler, pela 2ª vez, as “Conferências Médicas e Literárias”. Não sei se já te
agradeci a amabilidade das ofertas. Caso negativo, já está fora de prazo, e supõe-se.
De grande elevação e beleza espiritual, encontro-lhe(s) o defeito de impressão dispersa
como a todos os mais trabalhos em separata do mesmo género.
Merecem, ainda que com algum sacrifício, a concentração em volume de estante, para
de futuro não se perderem com facilidade, por descaminhos.
Seria o que eu faria, é uma lembrança sem ideia de sugestão.
Nunca tive bons conselhos para mim, e não pretendo de maneira nenhuma dá-los aos
outros.
Com os meus cumprimentos para a Senhora D. Elvira, abraça-te o
Amº
Estarreja, 13/11/1952
António Tavares Affonso e Cunha
(Aos 83 anos)
(VI)

Amº Egas:
Estarreja, 28/6/1955
Acabo de ter a notícia da morte do Álvaro 30, que me fez passar um mau bocado de
antigas recordações, e de ilusões desfeitas.
A vaga aberta no quadro do pessoal serventuário d’essa tua casa, deve ocasionar-te
dificuldades em ser substituído. Ao pranteá-lo associa-se-me também a lembrança do
Joaquim31, a quem farás favor de transmitir este meu pesar, pela falta do companheiro
de vida íntima (sic!).
Ocorrência de tributo que todos temos de pagar, e que ao completar em 15 do corrente
85 anos, sinto agravar-se-me como nunca calculei.
Há mais de um mês que permanecia na cama, sem diagnóstico (de) quando terminava.
Sobreveio-me erisipela nos pés com dores, presentemente já muito atenuadas, o que me
dá a esperança de que ainda escapo deste acidente. Se voltarei a poder andar, ainda que
só sem sair de casa, ainda é problema sem equação.
Vejo pelos jornais que continuas a estar presente à presidência das sessões da Academia
das Ciências, prova garante de perfeita saúde espiritual.

30
Criado de Egas Moniz, na Casa do Marinheiro.
31
Idem.

21
Quanto a mim, se por vezes sinto desânimo, outras anima-me a esperança de ainda
assistir à sucessão deste Kalifado da vida nacional.
Os meus respeitos cumprimentos à Senhora D. Elvira, e para ti a estima de apertado
abraço do
Mtº Amº
António Tavares Affonso e Cunha

(Bilhete Postal)

Exmo. Senhor
Dr. Egas Moniz
Avenida Cinco de Outubro – 73
Lisboa

Amº Egas: A noite passada, Compª de Lxª com a Revista “É de Gritos”.


Casa à Cunha.
Em cena faz-se referência a várias descobertas, e ao mencionar a de Egas Moniz,
estalou espontânea, vibrante, e prolongada manifestação apoteótica. Não estive no
teatro. Narrou-ma quem bem conhece o teu feitio afectivo. Se a ela tivesses assistido,
senti-la-ias como das melhores prestações. Com a representação da autoridade local,
algo contrariada por não adivinhar a surpresa, foi o que se chamou mais uma vez de
acabamento do mundo. Felicito-te efusivamente.
Estarreja, 25-11-1950.
Antº Tavs. Affº e Cª

NB: Todas as cartas, à excepção do Bilhete Postal, manuscrito a tinta, são redigidas em
papel pautado, à lápis e também pela mão do signatário.

Fontes
Arquivo da Casa-Museu Egas Moniz.

22
Arquivo Distrital de Aveiro.
Arquivo da Família Tavares Affonso.

Bibliografia
Antunes, João Lobo. 2011. Egas Moniz – uma biografia, Lisboa, Gradiva (3ª Ed.).
Cirne, Pe. Manuel Joaquim Tavares Cirne. 2006. “Achegas para a História do
Bunheiro”, in O Concelho da Murtosa (Julho-Novembro).
Cunha, José Tavares Afonso e. 1965. Notas marinhoas (Vol. I), Murtosa, Livraria
Ramos.

23

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