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Homossexuais no Estado Novo – os anos de silêncio

Neste espaço dedicado aos livros, já aqui fiz uma homenagem (a Saramgo), já
trouxe ficção (de António Manuel Venda) e poesia (de Frederico Lourenço). Hoje trago
um ensaio sobre a realidade portuguesa, vivida pelos homossexuais (de ambos os
sexos), durante o fascismo. O livro chama-se, pois, Homossexuais no Estado Novo
(Sextante Editora, 2010) e é da autoria da jornalista no Público São José Almeida, que
irá participar no debate «A homossexualidade durante a Ditadura», no próximo sábado,
9 de Outubro, às 21.30h, no Pátio de Letras, em Faro. Neste evento vão estar também
presentes o psicólogo Nuno Santos Carneiro (cuja tese de doutoramento «Ser, pertencer,
participar: construção da identidade homossexual, redes de apoio e participação
comunitária» serviu de base ao livro “Homossexualidades” – uma psicologia entre ser,
pertencer e participar, publicado em 2009, numa edição Livpsic) e Fabíola Cardoso, a
primeira presidente do Clube Safo, uma associação que se define como de «apoio e
defesa dos direitos das mulheres lésbicas».
Depois de ler este livro, não me espanta nada que o estudo que esteve na base
desta publicação, intitulado “Homossexuais perseguidos no Estado Novo”, tenha ganho
o primeiro prémio no concurso para Portugal, da Comissão Europeia, “Pela
Diversidade. Contra a Discriminação”.
É um estudo sério, não panfletário, com alguma exaustividade: São José
Almeida consulta textos de diversa natureza, desde literários, leis, teses académicas, cita
a história, faz entrevistas a académicos, a personagens intervenientes na época, a
activistas dos direitos dos homossexuais, a vítimas do sistema judicial que vigorou
tantos anos em Portugal… um trabalho que, se não deve ser entendido como «a História
da Homossexualidade», como a sua autora modestamente afirma (p.22), constitui, sem
dúvida, um importante capítulo para a reconstituição do que foi essa realidade no nosso
país.
A prática jornalística de São José Almeida não será alheia ao modo como
conduziu a investigação e montou o livro, pleno de excertos de entrevistas que dão um
rosto humano a leis, a “tratamentos” médicos, a relações sociais; com frases curtas e
incisivas, que não cansam; numa linguagem acessível, mas exacta.
Aprende-se muito com este estudo. Confesso que sabia apenas alguma coisa
sobre o modo como os poetas António Botto e Judith Teixeira tinham sido (mal)
tratados, mas não tinha ideia do panorama concreto que se viveu no Estado Novo.
E não trata só de personagens famosas da nossa cultura, ou de privilegiados
social e economicamente: fala também da gente do povo, mais vulnerável a todo o tipo
de arbitrariedades, nomeadamente à violência por parte da polícia: se um rico podia sair
com uma «multa» (extorsão por parte dos agentes), já um pobre era espancado (cf.
p164). Só que não era assim tão simples, pois, tirando raras excepções, mesmo a
posição social não impedia a prisão e a chantagem (de que o actor João Villaret foi
vítima durante anos – p.162).
Também o Algarve é referido: como centro gay, menciona Albufeira nos anos
60, «desde que [o cantor britânico] Cliff Richard comprou lá uma casa» (citando
Fernando Dacosta, na p.170); como local de degredo, lembra Castro Marim: «O juiz-
conselheiro Bernardo Fischer Sá Nogueira desmente categoricamente que tenha
aplicado alguma vez uma pena de degredo a duas lésbicas, que por isso tenham sido
enviadas para Castro Marim – um dos locais de degredo de homossexuais, desde a
Idade Moderna, a par do Brasil e das colónias africanas». O juiz explica que se tratava
de uma curandeira, denunciada por dois médicos, a quem ele decidiu ameaçar com
desterro em Castro Marim, caso reincidisse nas actividades. «Passou então a correr o
boato que eu tinha desterrado duas mulheres para Castro Marim e como Castro Marim
tinha sido um local de degredo homossexual, pensaram que o caso era de acusação
homossexual. Mas não.» (pp.80-81)
A consulta de arquivos da PIDE, na Torre do Tombo, permitiu a São José
Almeida destrancar páginas vergonhosas, nunca até agora examinadas.
Senti falta de um índice remissivo onde pudesse procurar personagens e assuntos
específicos, bem como de uma bibliografia agrupada no final. A opção pelas notas no
fim de cada capítulo, onde as referências bibliográficas estão incluídas, não é uma
solução prática para um livro desta natureza, que facilmente se constitui um importante
documento de consulta. Mas tudo isto são pormenores facilmente resolvidos numa
próxima edição.

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