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Sexismo na linguagem: algumas notas

http://www.envio.org.ni/articulo/1149

Não é necessário o uso de @ para incluir as mulheres. Tem soluções


mais criativas para transformar a linguagem. E quando
transformarmos a linguagem transformaremos a realidade.

Teresa Meana Suárez

Lembro com tanta nitidez que parece que foi ontem, mas faz quase
trinta anos. Seria aproximadamente 1973 e estávamos numa
assembléia na Faculdade de Filosofia, em Oviedo. Havia muita gente
e muita confusão e alguém -um homem, claro- gritou: Caralho! Isto é
uma assembléia ou o que? Outro -um fascista, claro- advertiu:
Cuidado com as palavras, tem senhoritas presentes!

Foi exatamente assim e, naturalmente, a advertência do fascista foi


acolhida com um certo regozijo geral. Como naqueles tempos de forte
luta contra a ditadura de Franco as assembléias tinham turnos
intermináveis de falas, passou-se um longo tempo, com as mais
diversas intervenções. No final, se levantou Begoña -uma amiga
feminista- e falou: Eu só quero dizer uma coisa: Caralho! A mim,
feminista, desde que me lembro, aquilo me fascinou. Senti que
Begoña acabava de nos devolver a todas a voz, a existência. Éramos
de novo pessoas -como eles- e não “senhoritas” e tínhamos direito a
palavra. A todas as palavras. Na luta por existir, se queríamos
ser reconhecidas e nomeadas no “seu” mundo, tínhamos que
adotar a “sua” linguagem. Begoña acabava de afirmar em voz
alta: a língua também era nossa. Conto esse fato para tentar explicar
o apaixonante processo, o caminho recorrido neste mais de vinte e
cinco anos de atuação do movimento feminista no tema do sexismo
na linguagem. Um trajeto em que nos conscientizamos de que tomar
a parte da língua que nos negava equivalia a aceitar o silêncio.
Também aprendemos, como assinala Christiane Olivier, que se
utilizamos a linguagem considerada “universal”, que é o
masculino, falamos contra nós mesmas.

SILENCIADAS, DESPREZADAS
Na luta por essa linguagem que nos representasse às mulheres e que
enfrentasse o sexismo lingüístico, passamos por diferentes etapas. No
princípio tratamos apenas de detectá-lo. Nunca o havíamos notado
e não éramos conscientes de como a linguagem nos
discriminava. Começaram a surgir os estudos e os trabalhos sobre o
tema.

Concretizamos o sexismo em dois efeitos fundamentais: o


silêncio e o desprezo. Por um lado, o ocultamento das
mulheres, nosso silêncio, nossa não existência. Estávamos
escondidas detrás dos falsos genéricos: esse masculino que,
havíamos aprendido na escola, “abarca os dois gêneros”. E também
estávamos ocultas detrás do salto semântico. Devemos a Álvaro
García Meseguer a definição desse erro lingüístico devido ao sexismo:
expressado naquilo de “todos na vila baixaram até o rio para recebê-
los, ficando na aldeia apenas as mulheres e as crianças. Então, quem
baixou? Somente os homens?

Por outro lado estava o desprezo, o ódio em direção às


mulheres. Se manifestava nos duplos aparentes
(governante/governanta, verdureiro/verdureira, frio/fria, etc.), nos
vazios léxicos, nos adjetivos, advérbios, refrãos e frases feitas,
etcétera., etc., etc.

SURGEM MIL E UMA SOLUÇÕES

Depois de detectar o sexismo na linguagem, começaram a aparecer


diferentes recomendações para um uso não sexista da língua. Desde
meados dos anos 80 o feminismo avança em estratégias para
combater tanto o silêncio como o desprezo, e as soluções vão se
aperfeiçoando e se redigindo novas instruções. Até 1994 aparece na
Espanha o livro Nombra, elaborado pela Comissão Assessora para a
Linguagem do Instituto da Mulher, verdadeiramente esclarecedor e
útil.

As possibilidades que nos coloca são realmente variadas, criativas e


diversas. Frente aos difíceis e contínuos (o/a, o (a), o-a) nos oferecem:
a utilização de genéricos reais (vítimas, pessoas, vizinhança -e não
vizinhos-, 'população valenciana' -e não 'valencianos'). Também o
recurso aos abstratos (a redação e não os redatores, a legislação e
não os legisladores). Mudanças também nas formas pessoais dos
verbos ou dos pronomes (no lugar de Na Pré-história os homem
viviam... podemos dizer os seres humanos, as pessoas, as mulheres e
os homens e também na Pré-história se vivia... ou na Pré-história
vivíamos...).

Outras vezes podemos substituir o suposto genérico homem ou


homens pelos pronomes nós, nosso, nossa, nosso ou nossos (É
bom para o bem-estar do homem... substituído por É bom para o
nosso bem-estar...). Outras vezes podemos mudar o verbo da terceira
para a segunda pessoa do singular ou para a primeira do plural sem
mencionar o sujeito, ou colocar o verbo na terceira pessoa do singular
precedida pelo pronome se ('Se recomenda aos usuários que utilizem
corretamente o cartão' ... substituído por 'Recomendamos que utilize
seu cartão corretamente...' ou 'Se recomenda o uso correto do
cartão'). Ou ainda as mudanças do pronome impessoal ('Quando um
se levanta' ficaria 'Quando alguém se levanta' ou 'Ao levantarmos' e
também mudaríamos 'O que tenha passaporte ou Aqueles que
queiram...' por 'Quem tenha passaporte...' ou 'Quem queira...').

Também temos recomendações para corrigir o uso androcêntrico da


linguagem e evitar que não se nomeiem as mulheres como
dependentes, complementos, subalternas ou propriedades dos
homens (Os nômades se transportavam com seus utensílios, gado e
mulheres, Se organizavam atividades culturais para as esposas dos
congressistas. Às mulheres lhes concederam o voto depois da
Primeira Guerra Mundial), oferecendo-nos múltiplas e variadas
soluções. E assim mais, muito mais.

A LINGUAGEM NÃO É NEUTRA

Já existiam duas posturas distintas no movimento feminista acerca


dessas questões. As que defendem a posição de que as mulheres
devemos apropriar-nos do genérico e considerar específico aos
homens. Por exemplo: num centro de ensino seríamos –mulheres e
homens- professores, e se nos referimos a Juan, diríamos professor
homem e a Ana poderíamos dizer ela é o melhor professor do
instituto. A outra posição é das que pensamos que o genérico não é
universal. Seguindo com o exemplo anterior: eles e nós seríamos o
professorado ou as professoras e professores.

A primeira postura se expressa assim: O genérico, o neutro, o


universal é patrimônio de todos. Deve-se denunciar a falsa
universalidade, mas também se deve reivindicar a participação das
mulheres no universal. Nós pensamos que não é certo que o
genérico seja patrimônio comum. Os vocábulos em masculino
não são universais por não englobar às mulheres. É um fato
que nos excluem. Diz-se que são universais porque o masculino
se ergueu ao longo da história na medida do humano. Assim
os genéricos se confundem com os masculinos.

QUEREMOS NOMEAR A DIFERENÇA

Ademais, pensamos assim porque queremos nomear o feminino,


nomear a diferença. Dizer meninos e meninas ou mães e pais não é
uma repetição, não é duplicar a linguagem Duplicar é fazer uma cópia
igual à outra e este não é o caso. A diferença sexual já está dada, não
é a língua quem a cria. A linguagem apenas a nomeia, uma vez que
existe. Nomear essa diferença é não respeitar o direito à existência e
à representação dessa existência na linguagem.

García Meseguer diz que de uma maneira simplista as duas posições


poderiam se resumir em torno das recomendações de Nombra e aos
inconvenientes que trás em adotá-las. A uma corrente –onde me
incluo- importariam mais as mulheres que a linguagem, e a
outra corrente importaria mais a linguagem que as mulheres. De
qualquer maneira, a todos esses esforços feitos devemos avanços
incríveis, também, coincidências e acordos em torno da detecção do
sexismo e ao lugar das mulheres na linguagem, a invisibilidade nos
genéricos, a denúncia dos homens representando os
conceitos da humanidade e de universalidade, a crítica a
invasão do pensamento androcêntrico e da cultura patriarcal
como referentes e tantas descobertas mais. E a todos os esforços
devemos as extensas análises de dicionários, meios de comunicação,
textos literários, linguagem coloquial e teses, artigos, livros,
conferências, mesas redondas, apaixonantes e apaixonadas
conversas sobre este problema, tanto na língua castelhana como em
outras línguas.

MULHERES ESCRITORAS: HEROÍNAS MEMORÁVEIS E OCULTAS


Mais do que o falar, o escrever para as mulheres tem sido visto como
a usurpação de um direito que não lhes pertence e, ademais, como
uma prática inútil, como aquilo não lhes corresponde. Disse Virginia
Woolf: Creio que passará ainda muito tempo até que uma mulher
possa sentar-se a escrever um livro sem que surja um fantasma que
deve ser assassinado, sem que apareça uma pedra no meio do seu
caminho.

Do livro de Yadira Calvo À mulher pela palavra, me permito mostrar


algumas histórias. A de Fanny Burney queimando todos os seus
originais e colocando-se a fazer trabalho de ponto como penitência
por escrever. A de Charlotte Brönte deixando de lado o manuscrito de
Jane Eyre para descascar batatas. A de Jane Austen escondendo os
papéis cada vez que entrava alguém, pela vergonha de que a vissem
escrever. A de Katherine Anne Porter declarando haver tardado vinte
anos para escrever uma novela. Era sempre interrompida por alguém
que, em algum momento aparecia no meu caminho. Porter calculava
que só pode empregar uns dez por cento de suas energias para
escrever. Os outros noventa por centro usei para poder manter minha
cabeça fora d´água, dizia.

Recordo essa foto de María Moliner remendando meias com um ovo


de madeira, enquanto escrevia sua obra, Dicionário do uso do
castelhano ia nascendo entre panelas e coadores. Leio as queixas de
uma Katherine Mansfield reprovando a seu marido: Estou escrevendo
mas tu gritas: São cinco horas, onde está meu chá? Ou o doce
lamento de uma cubana do século passado que não assinou suas
obras: Quantas vezes lentamente/ com plácida inspiração/ formei
uma oitava na minha mente/ e minha agulha inteligente/ remendava
uma calça! Por isso disse Virginia Woolf a propósito da duquesa de
Newcastle: Sabia escrever na sua juventude. Mas suas fadas, caso
tenham sobrevivido, se transformaram e hipopótamos.

Outro fato gravíssimo: a atribuição das obras das mulheres a


outros, e em especial a seus maridos. Esse deve ter sido um
fenômeno muito freqüente pois temos muitas referências.
Desde o artigo publicado em 1866 por Rosalía de Castro As literatas:
carta a Eduarda, onde a escritora faz essa advertência, até as
palavras de Adela Zamudio, escritora boliviana do século XX: Se
alguns versos escreve /de alguns esses versos são,/ que ela apenas
os subscreve/ (Permita-me que me assombre.)/ Se é alguém não é
poeta,/ Por que tal suposição?/ Por que é homem!

Estão também os fatos históricamente comprovados: o célebre caso


de María Lejarraga, autora das obras assinadas por seu marido
Gregorio Martínez Sierra. E o fato de que foi o marido quem proibiu a
Zelda Fitzgerald de publicar seu Diário porque ele o necessitava para
seu próprio trabalho. E as primeiras obras de Colette que apareceram
assinadas com o nome de seu marido, que inclusive cobrou o dinheiro
de sua venda. Alguém dirá que vou muito atrás e que a
humanidade mudou nos últimos vinte séculos. Pois bem, no
ano 2000 e na Espanha só dez por cento dos livros publicadas
foram escritos por mulheres.

MUDAR A LINGUAGEM, MUDARÁ A REALIDADE

Não obstante, existem mulheres capazes de escalar a encosta do


proibido, de roubar da vida esses dez por cento de energia
necessários para manter a cabeça fora da água. E a mantém. E
escrevem. E editam. E aquí seguimos todas as demais. Lutando e
celebrando os novos êxitos. Estendendo a rede para que todas as
mulheres da terra tenham direito à voz, à palavra. Sabendo que
vemos o mundo através do tecido formado pela língua e motivadas
pela certeza de que a linguagem sexista, a que aprendemos,
contribui para a perpetuação do patriarcado. Sabendo também que
quando tenhamos uma linguagem que nos represente mudará a
realidade. Por isso seguimos adiante. E não adormecemos mais às
meninas com contos de fadas. Dizemos que as boas meninas vão
para o céu e as más vão para todos lugares. E que colorín colorado,
esta historia no ha acabado.

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