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Como a principal faculdade de direito do país violou o corpo de uma mulher negra por 30

anos

Jacinta Maria de Santana teve o corpo embalsamado, exposto como curiosidade científica e
utilizado em trotes estudantis no Largo São Francisco. Amâncio de Carvalho, autor do experimento
racista, é nome de rua e de uma sala na USP

Jacinta Maria de Santana sentiu-se mal. Era uma mulher pobre, sem ocupação fixa e habituada a
perambular pelo centro da capital paulista. A familiaridade com a região, entretanto, não atenuaria
os infortúnios reservados a ela naquela manhã de segunda-feira, 26 de novembro de 1900.

Jacinta respirava com dificuldade. O abdômen lhe parecia cada vez mais pesado. Atônita e
nauseada, tombou no início da Rua Dutra Rodrigues, a setecentos metros da Estação da Luz.

Por volta das dez horas, sua presença foi comunicada às autoridades. Marcondes Machado,
médico legista da Polícia Civil, e Pinheiro Prado, delegado da 1ª Circunscrição, compareceram ao
local.

Jacinta foi introduzida num carro que partiu rumo ao hospital da Santa Casa de Misericórdia, no
distrito da Consolação. Morreu pelo meio do caminho. No necrotério, Marcondes Machado
apontaria uma causa mortis: “lesão cardíaca”.

E isso é literalmente tudo o que se sabe sobre a protagonista desta reportagem.

Jacinta não foi fotografada em vida. As pessoas que compunham seu círculo social nunca foram
identificadas. Seus gostos, pensamentos, crenças e dizeres permanecem incógnitos, assim como
seu endereço — se é que tinha um. Todos os atributos que lhe conferiam humanidade foram
descartados em prol de uma transformação iniciada naquela mesma segunda-feira.

Ao meio-dia, seu corpo foi entregue a Amâncio de Carvalho, professor de medicina legal da
Faculdade de Direito de São Paulo, no Largo São Francisco. Para o catedrático, Jacinta se resumia
a uma “preta de cerca de trinta anos, hóspede habitual da polícia por sua desmedida
intemperança”.

O cadáver tinha o ventre inchado pelo acúmulo de líquido no peritônio, membrana que recobre as
paredes do abdômen e a superfície dos órgãos digestivos. A condição, geralmente associada à
cirrose hepática, despertou no médico alguma ansiedade. Amâncio tinha planos para aquele corpo
e receava que as avarias fossem diminuir suas chances de êxito.

Certa vez, Amâncio embalsamara uma criança. Durante trinta dias, a pequena múmia havia
permanecido no necrotério da polícia, à vista de todos os funcionários e imune à decomposição. O
professor, não satisfeito com os resultados da experiência, decidira aperfeiçoá-la num cadáver
adulto — o cadáver de Jacinta.
Única fotografia conhecida de Jacinta, tirada em 1929; deitada num caixão, veste um hábito franciscano | Foto: Diário
Nacional/Biblioteca Nacional

Pelas mãos da medicina e do direito, a andarilha negra convertia-se, assim, em um misto de peça
de estudo, brinquedo estudantil e atração de freak show — um objeto inanimado a ser exposto por
três décadas aos alunos de uma das mais importantes instituições de ensino do país. Após 120
anos de esquecimento, sua história acaba de ser resgatada por uma pesquisadora paulista.

“Venho estudando alguns jornais publicados por entidades negras ao longo do século XX.
Meu objetivo é compreender quais discursos eles veiculavam sobre os grupos desviantes e
a questão criminal”, explica Suzane Jardim, historiadora e mestranda em Ciências Sociais
pela Universidade Federal do ABC. “Até os anos 1970, a militância dessas entidades era muito
voltada ao disciplinamento de corpos e mentes. Uma autoproteção contra armadilhas racistas e
punitivistas, que criou linhas invisíveis, colocando seus membros como ‘negros de bem’, em
oposição aos demais negros, associados ao crime e à marginalidade.”

O primeiro contato com o episódio de Jacinta, relata Suzane, ocorreu por meio desses periódicos:
“Um texto de 1929, descrevendo o enterro de uma múmia, chamou a minha atenção. Senti um
imenso desconforto, pois o caso me parecia surreal”. Foi o início de uma busca pela identidade
daquele corpo embalsamado — seu verdadeiro nome, as circunstâncias de sua morte, as
sucessivas violações a que fora submetido e as forças em disputa na cerimônia fúnebre tardia.

A historiadora Suzane Jardim descobriu a história de Jacinta por acaso | Foto: Luan Batista

“Esse episódio tem gerado bastante choque entre meus colegas, sobretudo por não ser
amplamente conhecido”, diz a pesquisadora. “Todos concordam que é um exemplo a ser
trazido para reportagens, salas de aula, debates públicos. Trata-se de um fragmento
simbólico da história brasileira, com vários elementos importantes para a compreensão do
racismo em nosso país.”

Direito e medicina a serviço do branqueamento

Ao cravar seu bisturi no ventre de Jacinta, Antônio Amâncio Pereira de Carvalho já contava com
meio século de vida e a mais alta estima da elite nacional. Considerado um dos melhores cirurgiões
do Brasil, vendia-se como um especialista em “moléstias nervosas e das vias respiratórias”,
atendendo pacientes de alto poder aquisitivo num consultório próximo à Praça da Sé.

O sucesso como profissional autônomo coroava uma longa trajetória de acenos ao Estado. Em
1887, sua amizade com João Maurício Wanderley, o Barão de Cotegipe, lhe valera um cargo de
médico legista na Polícia Civil. O Barão, único senador do Império a votar contra a Lei Áurea,
argumentava que a libertação dos escravizados conduziria o país a um cenário de crise econômica
e desordem generalizada. “Espírito de primeira grandeza”, escrevera Amâncio, referindo-se ao
amigo em artigo publicado pelo Correio Paulistano no dia 13 de fevereiro de 1892. “Possuía a
qualidade rara do vidente, prognosticando fatos que sem longa detença se consumarão.”

Amâncio de Carvalho, o embalsamador de Jacinta, em retrato de 1900 | Imagem: Archivo Illustrado/Biblioteca Nacional

Com o fim da escravatura, o discurso científico se impunha como principal ferramenta de


legitimação do racismo. Os cânones da medicina legal, especialidade que põe os
conhecimentos médicos a serviço da Justiça, eram unânimes em apontar que uma nação
com tanta influência da raça negra estava destinada ao caos. Tal perspectiva, segundo
especialistas ouvidos pela Ponte, tinha raízes na obra do médico italiano Cesare Lombroso (1835-
1909), que associava a prática de delitos às características físicas dos supostos delinquentes.

“Lombroso proporcionou uma virada paradigmática ao apontar as causas da criminalidade nos


próprios criminalizados, invertendo as equações jurídicas no tocante às sentenças”, afirma Luciano
Góes, advogado negro e doutorando em direito pela Universidade de Brasília. “Em seus termos,
quem tinha competência técnica para definir a absolvição ou condenação de alguém era o médico
legista, com acesso ao corpo do acusado. Nunca o juiz, que ficava restrito ao processo e às provas.”

No Brasil, esse pensamento se institucionaliza e ganha força com Nina Rodrigues (1862–1906),
professor da Faculdade de Medicina da Bahia e crítico ferrenho da mestiçagem. “Esse método
não extinguiria o elemento negro da nossa população”, explica Luciano. “Pelo contrário, transmitiria
sua degeneração aos brancos. Baseando-se em Lombroso, Nina Rodrigues vai frisar que o corpo
negro é inferior, primitivo, criminoso nato.”

O embalsamador de Jacinta seguia pelo mesmo caminho.

“Amâncio de Carvalho exerceu um papel fundamental no desenvolvimento da medicina legal,


considerando-se que foi ele quem introduziu seu estudo na Faculdade de Direito de São Paulo”,
afirma Robinson Henriques Alves, doutor em História da Ciência pela PUC e professor da
Universidade Municipal de São Caetano do Sul. “Ele também foi presidente honorário da Sociedade
Eugênica de São Paulo. Noutras palavras, defendia o embranquecimento da nação brasileira, ideal
que legitimava a exposição do cadáver de uma moça negra em pleno Largo São Francisco.”

Amâncio: violar os pobres para enaltecer os ricos

A Faculdade de Direito de São Paulo foi fundada por decreto imperial no dia 11 de agosto de 1827
e incorporada à USP (Universidade de São Paulo) em 1934. Ao longo de dois séculos, encarregou-
se de formar boa parte da elite política, jurídica e intelectual do país. Foi nesse “celeiro de pessoas
públicas” que estudaram 55 ministros do Supremo Tribunal Federal e 13 presidentes, de Prudente
de Morais a Michel Temer. O pedido de impeachment que derrubou Dilma Rousseff, em 2016, foi
elaborado por três ex-alunos da São Francisco — Janaína Paschoal, Miguel Reale Júnior e Hélio
Bicudo. O apresentador Luciano Huck, que sonha em chegar ao Planalto, também estudou na
instituição. Washington Luís, último presidente efetivo da República Velha, esteve entre os
formandos da turma de 1891, ano em que Amâncio ingressou no corpo docente. Outros cinco
chefes do Executivo tiveram aulas com o embalsamador — Rodrigues Alves, Artur Bernardes, Júlio
Prestes, José Linhares e Nereu Ramos. Os escritores Monteiro Lobato, Oswald de Andrade e
Antônio de Alcântara Machado também foram seus alunos.

Fachada da Faculdade de Direito, no Largo São Francisco, centro de São Paulo, o “celeiro de pessoas públicas” da
elite paulista | Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Pistas sobre o conteúdo de suas aulas podem ser vislumbradas nos artigos que escreveu para
a Revista da Faculdade de Direito de São Paulo. Amâncio descrevia os cadáveres como livros a
serem cortados, abertos, lidos e decifrados. Dedicava especial atenção àqueles que se
encontrassem putrefatos: em 1899, chegou a publicar um estudo de 27 páginas sobre os efeitos
da decomposição nos corpos dos suicidas e vítimas de assassinato. Dois anos depois, se
debruçaria novamente sobre o tema — desta vez, para justificar suas experiências com Jacinta.

“Quando a ciência chega a essa altura, quando dominadora dos mares, da terra e do espaço,
domina também o despertar da morte representado nessas múltiplas transformações da matéria
orgânica, a que se denomina putrefação”, sentenciou no dia 1º de dezembro de 1901, em artigo
publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo. “É o caso para se divinizá-la, pois, realmente, ela faz
o que só se reputava obra divina.”

O milagre científico de Amâncio, posto à prova em Jacinta, consistia num método de


embalsamamento baseado em injeções hipodérmicas de álcool metílico. “Assim comecei o
trabalho”, relatou o médico. “À proporção que os dias corriam e os meses passavam, mais
aumentava minha perseverança, mais me orgulhava por cultivar uma ciência que conseguira já,
como neste caso, suspender a ação das leis da natureza.”

Amâncio tinha um sonho: erigir em São Paulo um panteão onde se venerariam os corpos daqueles
que mais teriam se distinguido enquanto vivos — em suas próprias palavras, os “nobres”, os “ricos”,
os “heróis”, os “tipos de bravura militar”, os “vultos gloriosos na ciência e na política”, os “que tudo
merecem da pátria”. Como exemplos, citava seu velho amigo Barão de Cotegipe, o Barão de Rio
Branco, o primeiro presidente da República brasileira, Deodoro da Fonseca, e seu sucessor,
Floriano Peixoto. “Por que não conservá-los, embalsamados, mumificados, como exemplos
capazes de imitação?”, questionava.

“Estamos falando de uma época marcada por valores positivistas”, analisa Suzane Jardim.
“O culto aos grandes nomes vem ao encontro de um ideal que privilegiava personagens
individuais, em detrimento dos fenômenos sociais que os haviam originado. A contradição
maior, porém, é que o sucesso dessa empreitada passava necessariamente pelo uso de
corpos que representavam o extremo oposto daquilo que se queria preservar.”

Os barões idolatrados por Amâncio, diz a pesquisadora, jamais seriam utilizados como cobaias em
experimentos científicos. Esse papel sempre esteve reservado aos excluídos: “Para preservar a
memória dos grandes, era necessário abusar daqueles que a ordem vigente desejava
esquecer. É um caso muito ilustrativo de como o Brasil se mantém ainda hoje, valendo-se de
corpos negros e pobres como escada para o progresso”.

Um freak show no coração de São Paulo

Há mais de duzentos anos, os vínculos entre progresso científico e violação de corpos negros
evocam um mesmo nome: Sarah Baartman, nascida no território da atual África do Sul e levada à
Europa para ser exposta como aberração. Em 1810, percorrendo o circuito londrino de freak shows,
Sarah recebeu a alcunha que ofuscaria para sempre sua verdadeira identidade: apresentava-se
como a Vênus Hotentote, em referência à deusa romana do amor e ao vocábulo hottentot, termo
depreciativo associado aos khoisan, o seu grupo étnico.

Caricatura de Sarah Baartman, jovem sul-africana exibida como aberração em circos e congressos científicos europeus
no século XIX | Imagem: William Heath/Wikimedia Commons

A imagem supostamente exótica e voluptuosa de Sarah cristalizou no imaginário ocidental uma


série de estereótipos referentes à negritude feminina. Frequentemente comparada aos
orangotangos, a jovem possuía lábios vaginais hipertrofiados e era portadora de esteatopigia,
condição genética caracterizada pelo acúmulo de gordura nas nádegas. Comuns entre as mulheres
de sua etnia, tais atributos foram lidos pela sociedade europeia do século XIX como traços
anômalos. Nos circos britânicos e congressos científicos franceses, a khoisan tinha o corpo
observado, apalpado e milimetricamente medido por homens brancos, sempre divididos entre o
fascínio, a repulsa e a excitação.

Sarah morreu aos 26 anos, entregue à pobreza, ao alcoolismo e à prostituição. Seu cérebro,
esqueleto e genitália foram expostos por décadas no Museu de História Natural de Paris e
devolvidos ao continente africano somente em 2002, após intensa mobilização dos povos khoisan.
Desde então, sua memória tem sido reivindicada pelos mais diversos grupos, a começar pela
indústria cultural. O franco-tunisiano Abdellatif Kechiche, diretor de Azul é a Cor Mais Quente,
realizou um filme sobre ela em 2010. Seis anos depois, rumores davam conta de que Beyoncé a
interpretaria num longa-metragem hollywoodiano. Kim Kardashian foi acusada de fetichizá-la
quando apareceu na capa da revista Paper com uma taça de champanhe equilibrada sobre o
traseiro. E sua trajetória, afirma Suzane, também encontra ecos na existência de Jacinta.

“Ambas sofreram um processo de despersonalização que as transformou em meros corpos-


objetos, desprovidos de qualquer humanidade”, observa. “Creio que são dois ótimos exemplos de
como a sociedade lidou com mulheres negras, tanto na Europa quanto no Brasil — um país que
sempre se vendeu como democracia racial, mas tem episódios nefastos como esse em seus
anais.”

Ao ser exibida pela primeira vez, no mesmo domingo em que Amâncio enaltecia barões e militares
nas páginas do Estadão, Jacinta já estava morta há pouco mais de um ano. O pedestre que
caminhasse pela Rua Quinze de Novembro, no centro da cidade, avistaria seu cadáver na vitrine
da Charutaria do Commercio, em meio a isqueiros, cachimbos, cigarros, fumos importados e outros
produtos de luxo. O freak show parece não ter despertado muita atenção da imprensa, embora
alguns jornais mencionassem brevemente a “grande curiosidade” e as “enormes aglomerações”
provocadas pela múmia no centro da cidade.

“Não encontrei nenhuma nota que revelasse incômodo com a exposição do corpo na charutaria”,
relata Suzane. “Jacinta provavelmente não era tida como ‘uma de nós’. Seu cadáver não gerava
reações de empatia ou desconforto, pois nem sequer era visto como humano.”

Dias depois, Jacinta foi levada à Faculdade de Direito. Ali permaneceria por três décadas. Amâncio
a mantinha trancada num armário, à esquerda de sua mesa na Sala 7, onde os estudantes do
quinto ano assistiam às aulas de medicina legal.

Notícia anuncia a exibição do corpo de Jacinta na Faculdade de Direito | Imagem: Gazeta de Notícias/Biblioteca
Nacional

O corpo exalava mau cheiro, a ponto de causar enxaqueca entre os alunos das primeiras filas. A
despeito da presença extravagante, ninguém sabia seu verdadeiro nome. Alguns se referiam a ela
como Benedita; outros tantos, como Raimunda. Mas, para a maioria dos alunos e funcionários,
Jacinta era apenas a “múmia da faculdade”.

Exotismo, subserviência e exclusão social marcavam as lendas que a comunidade acadêmica tecia
sobre suas origens. Dizia-se que havia sido uma “princesa ou rainha africana, trazida daquele
continente como raridade”; uma “preta cujo ofício era vender laranjas”; uma “mulatinha órfã”; uma
“ex-escrava”; uma “negrinha de vinte e poucos anos, encontrada morta na rua”; ou até mesmo a
“serviçal que durante anos seguidos foi empregada de Amâncio”.

O álcool era um elemento comum a muitos desses relatos. No jornal catarinense O Estado, Jacinta
era descrita como uma mulher “que tinha o hábito de beber” e “perambulava, quase sempre
embriagada, pelas ruas do Centro e da Luz, permanecendo com especialidade no Largo do Palácio
e no Largo São Francisco”. O Diário Nacional, de São Paulo, apontava, em tom jocoso, que a
mumificação teria sido o resultado da “constante bebedeira em que vivia a pretinha celebrizada”.

“Tudo o que era dito sobre ela não passava de um amontoado de estereótipos sobre as mulheres
negras da época”, afirma Suzane. “Jamais saberemos quem Jacinta de fato foi em vida. Temos
apenas o retrato de uma mulher selvagem e incivilizada, que só não aparece como desviante
quando posta em subordinação.”

Beijada e arremessada

Uma diferença, entretanto, marcou as trajetórias de Sarah Baartman e Jacinta: a maneira como
seus corpos foram vistos pelo meio social.

“Os discursos sobre Sarah eram revestidos de neutralidade científica”, aponta Suzane. “Acreditava-
se que sua imagem era útil como prova de determinadas convicções. Ela tinha um corpo nada
parecido com o dos europeus e encarnava uma ideia de excepcionalidade. Não era uma figura
banal como Jacinta, semelhante a tantas outras negras que circulavam por São Paulo.”

Essa visão, constata a pesquisadora, foi determinante para que a brasileira se transformasse em
mero brinquedo.

Na Faculdade de Direito, Jacinta era utilizada como cabide e castiçal — os estudantes, segundo
relatos, costumavam enfiar chapéus em sua cabeça e velas em suas mãos. Durante os trotes,
calouros teriam sido obrigados a beijá-la na boca. Não raras vezes, afirmava o Diário Nacional, seu
cadáver era encontrado “nas mais estranhas posições que o espírito de seus algozes inventava”.

Às 22 horas de uma sexta-feira, 4 de outubro de 1907, um grupo de estudantes invadiu a sala de


Amâncio, deixando sobre a mesa três cartas fictícias. Na primeira, a múmia informava ao
embalsamador sua decisão de cometer suicídio. Na segunda, implorava à polícia que ninguém
fosse responsabilizado pelo ato. Na terceira, confessava seu amor platônico pelo aluno Benedicto
Galvão, que em 1940 se tornaria o primeiro negro a presidir a seccional paulista da Ordem dos
Advogados do Brasil.

Quando Benedito Galvão (foto) era estudante, o cadáver de Jacinta foi usado num trote racista contra ele | Foto: OAB-
SP
Jacinta, então, foi retirada do armário, enrolada num manto e arremessada pela janela. Na manhã
de sábado, populares a encontrariam com o braço quebrado no início da Avenida Brigadeiro Luís
Antônio, a cem metros do Largo São Francisco. A polícia, que inicialmente tomara a múmia pelo
“corpo de uma preta que os seus assassinos, depois de matarem, haviam carbonizado”, não tardou
a solucionar o caso: “tratava-se não de um crime, mas sim de uma magnífica pilhéria”, noticiaria
o Correio Paulistano no domingo.

Em clima de chacota, as autoridades devolveram Jacinta à Sala 7 da Faculdade de Direito. Dias


depois, Amâncio teria ameaçado reprovar toda a classe nos exames finais. “Os estudantes
tremeram, portanto, pela sua voluntária falta, e foram ficando tristes”, relatou o Diário Nacional. “E
o resultado de toda a brincadeira foi o mestre perdoar os seus alunos, esquecendo-se da sua
posição de ofendido.”

Sepultura cristã

Amâncio morreu em 17 de julho de 1928, vitimado por um ataque cardíaco. Na ocasião, os


obituários o retrataram como um “professor bondoso”, destacando sua “complacência para com os
discípulos pouco estudiosos”. Um ex-aluno discursou em seu enterro: “Não conheci inteligência
mais dadivosa do que a tua”. José Joaquim Melo Neto, professor de direito administrativo e futuro
governador paulista, disse sobre o colega: “Parecia um verdadeiro e antigo aluno da academia.
Todas as tradições eram por ele conhecidas e respeitadas”.

Mas ninguém se lembrou de Jacinta.

“Tenho uma hipótese”, afirma Suzane. “A experiência de Amâncio nunca foi reconhecida como um
grande avanço científico. Creio nisso por não ter encontrado nenhuma referência significativa à sua
fórmula de embalsamamento em periódicos médicos, jurídicos e afins. Com o tempo, a múmia deve
ter perdido toda e qualquer utilidade, transformando-se num objeto ordinário.”

Em abril de 1929, Emília da Silva Carvalho, viúva de Amâncio, solicitou à direção da faculdade que
lhe entregasse os restos mortais de Jacinta. Alegava que a múmia era parte de seu patrimônio
familiar e que pretendia dar a ela uma “sepultura cristã”. O pedido foi acatado dois meses depois,
com apoio do Centro Acadêmico XI de Agosto, entidade que desde 1903 representa os alunos da
instituição.

Às 15 horas do dia 6 de junho, uma quinta-feira, a porta da Sala 7 se abriu para o velório da
andarilha. Jacinta, vestida num hábito franciscano, foi cercada por alunos, professores e
funcionários. Todos assistiam atentamente à missa que Frei Nicolau celebrava em latim. José de
Barros, bedel da faculdade, tomou a palavra para relembrar a trajetória do cadáver, comparada
pela Folha da Manhã aos enredos do escritor norte-americano Edgar Allan Poe: Jacinta, segundo
o jornal, teria sido “um corvo” a entrar na vida dos jovens paulistanos “pelas janelas da alegria
acadêmica”.
Alunos da Faculdade de Direito carregam o caixão de Jacinta
em junho de 1929 | Foto: Diário Nacional/Biblioteca Nacional

O sepultamento ocorreu na Rua Cardeal Arcoverde, em Pinheiros, zona oeste da cidade, dentro do
aristocrático Cemitério São Paulo, inaugurado três anos antes. Uma sepultura perpétua, concedida
por José Pires do Rio, prefeito da capital paulista, aguardava Jacinta no local. A lápide, porém, não
trazia seu verdadeiro nome, e sim um dos apelidos que ganhara nos corredores da Faculdade de
Direito — Raimunda.

A administração municipal propagandeou o enterro como uma “homenagem aos pretos de São
Paulo”. Pelo menos seis entidades negras participaram da cerimônia: a Sociedade dos Homens de
Cor, o Centro Cívico Palmares, o Grêmio Dramático e Recreativo Kosmos e a Associação dos
Homens Pretos, além dos jornais O Progresso e Clarim d’Alvorada.

“Essas associações surgiram como uma rede de fortalecimento”, explica Suzane. “Tinham o
objetivo de garantir trabalho e instrução a seus membros, além de promover eventos onde eles não
fossem discriminados. Também discutiam questões raciais ignoradas pela grande imprensa e
demandavam políticas públicas voltadas à população negra.”

Vicente Ferreira, militante conhecido pela oratória rebuscada, discursou à beira do túmulo com voz
firme e lágrimas nos olhos. Lamentando que Jacinta tivesse padecido de “excessivo amor ao
álcool”, comparou a nebulosa vida da andarilha à de dois poetas românticos — Castro Alves e
Álvares de Azevedo, ambos formados pela Faculdade de Direito e mortos por tuberculose na faixa
dos vinte anos. A pregação terminou com um elogio à figura das “mães pretas”, como eram
conhecidas as escravizadas que amamentavam os filhos dos senhores brancos.

“Os representantes das associações não estavam ali para homenagear Jacinta, mas sim para
agradecer a bondade da elite, que deu um enterro pomposo a uma negra desvalida”, aponta
Suzane. “Todo esse clima cristão, essa aderência às normas e padrões sociais, essa ausência de
embate com os brancos, integram a lógica do ‘negro de bem’ que venho pesquisando.”

Racista homenageado, vítima esquecida

Jacinta foi enterrada a cinco quilômetros da rua cujas placas ostentam o nome de seu
embalsamador.

A antiga Rua do Curtume, na Vila Mariana, zona sul da capital paulista, era um lugar modesto, onde
galpões, armazéns e pequenos comércios se instalavam junto às casas dos trabalhadores, muitos
deles imigrantes europeus. Em 18 de agosto de 1928, foi rebatizada pela Prefeitura, e desde então
chama-se Rua Doutor Amâncio de Carvalho. Seus cinco quarteirões, enfileirados entre as avenidas
23 de Maio e Conselheiro Rodrigues Alves, hoje pouco remetem às origens proletárias —
restaurantes, pizzarias, spas, escritórios, sex shops, clínicas estéticas e lojas de artefatos
decorativos dominam a região. O distrito da Vila Mariana, que homenageia o médico, é o
segundo mais branco da capital paulista, com 7,9% de pessoas negras, quase empatado
com Pinheiros, que tem 7,3%, segundo o Censo Demográfico do IBGE (Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística).

A antiga Rua do Curtume, na Vila Mariana, um dos distritos mais


brancos da capital paulista, foi rebatizada como Rua Doutor Amâncio de Carvalho | Foto: Fausto Salvadori/Ponte

No Largo São Francisco, a quatro quilômetros dali, o nome do médico se faz presente em outra
placa. Há pelo menos 78 anos, os corredores da Faculdade de Direito contam com uma sala
chamada Amâncio de Carvalho — possivelmente, a mesma em que o cadáver de Jacinta
permaneceu exposto até 1929. Devido à pandemia do novo coronavírus, o prédio encontra-se
fechado para visitação.

Na Vila Mariana, os pedestres transitam pelas esquinas como se Amâncio ainda não tivesse
nascido. No mundo acadêmico, sua obra tem sido igualmente ignorada — hoje, são quase
inexistentes as dissertações e teses a mencioná-lo. “O rápido desenvolvimento da ciência nesses
últimos cem anos contribuiu para que o interesse em seu trabalho tenha decrescido, apesar do
grande reconhecimento que ele teve em vida e de seu papel histórico na institucionalização da
medicina legal”, afirma Robinson Henriques Alves.

Da memória de Jacinta, não restam nem mesmo placas em vias públicas ou referências
acadêmicas esparsas. Em busca de informações sobre ela, a Ponte esteve três vezes no
Cemitério São Paulo, mas não encontrou qualquer dado sobre Jacinta. Um funcionário do setor
administrativo disse que o terreno não possui nenhuma lápide registrada em nome da Faculdade
de Direito e que na década de 1930 a Prefeitura teria removido os túmulos individuais para dar
espaço a mausoléus familiares. Nesse processo, a administração municipal poderia ter descartado
o corpo da jovem negra, ignorando o caráter “perpétuo” da sepultura concedida em 1929.

No acervo do Arquivo Histórico Municipal, próximo ao metrô Tiradentes, a reportagem localizou os


livros de registros do Cemitério São Paulo. Em 6 de junho de 1929, e também nas datas seguintes,
a documentação não faz qualquer referência a Jacinta.

Sepultamentos registrados pelo Cemitério São Paulo em 6 de junho de 1929. O


manuscrito não menciona Jacinta, enterrada como Raimunda naquele mesmo dia | Foto: Arquivo Histórico Municipal

Estima-se que, em 95 anos, o cemitério tenha recebido cerca de 140 mil mortos, incluindo Amâncio,
sua esposa, os filhos, o genro, a nora, um neto e uma bisneta. Ao contrário do túmulo esquecido
de Jacinta, o mausoléu que guarda os ossos do médico pode ser localizado sem dificuldades.
“Essa notícia me chateou, como se fosse um desrespeito a uma colega próxima”, revela Suzane.
“Mas a verdade é que esse sumiço é só mais uma prova do descaso e dos silêncios que moldam
toda a história do Brasil”.

Mausoléu que abriga os restos mortais de Amâncio de Carvalho e sua


família permanece até hoje no Cemitério São Paulo, mas o túmulo de Jacinta sumiu | Foto: Daniel Salomão
Roque/Ponte

Nos anos 1950, a andarilha já havia sido reduzida a uma simples lenda urbana, que veteranos
relembravam ocasionalmente em confraternizações da Faculdade de Direito. O desembargador
Márcio Pereira Munhoz, ex-secretário da Educação e Saúde Pública de São Paulo, chegou a citá-
la numa celebração oficial, que marcava o cinquentenário da formatura de 1907. Sobre o episódio
em que seus colegas arremessaram o cadáver negro pela janela, o ex-aluno disse, nostálgico:
“Embora não houvesse boates na época, e não bebêssemos uísque, não éramos santos”.

O perfil dos professores e alunos da São Francisco mudou lentamente ao longo dos anos. Em
1992, a advogada Eunice Prudente tornou-se a primeira mulher negra a ser admitida no corpo
docente da instituição — e até hoje, a única. Já o XI de Agosto seria presidido por uma aluna negra
apenas em outubro de 2019, quando a chapa liderada por Letícia Chagas venceu as eleições do
centro acadêmico.

Em entrevista à Ponte, Letícia, egressa de escolas públicas, contou nunca ter ouvido falar em
Jacinta e Amâncio: “O episódio me deixou chocada, mas não surpresa”, diz. “A São Francisco tem
uma trajetória racial bastante problemática, e acredito que isso tudo faça parte de sua dinâmica
histórica, da maneira como lida com os corpos negros.”

Letícia ingressou na faculdade em 2018, ano em que as cotas raciais foram incorporadas ao
vestibular da USP, última universidade pública do estado de São Paulo a adotar políticas
afirmativas. “A gente não corresponde ao estereótipo de aluno da São Francisco. É comum que as
pessoas perguntem se a gente estuda mesmo lá”, observa. “Para além disso, todas as nossas
salas têm o nome de algum ex-aluno ou professor. E praticamente todos são homens brancos”.

Ela cita duas exceções: o abolicionista Luiz Gama (1830-1882) e o primeiro professor negro da
faculdade, Rubino de Oliveira (1837-1891), homenageado com um auditório em setembro do ano
passado. A renomeação de salas, uma pauta central de sua gestão no XI de Agosto, tem esbarrado
na resistência de alunos e professores, inclusive os que se identificam como progressistas.

“Um dos meus momentos mais difíceis enquanto presidente do centro acadêmico foi a reunião em
que apresentei a proposta de resgatar outras figuras históricas da faculdade”, lembra. “As figuras
negras sempre existiram, embora fossem minoria, e para homenageá-las era preciso remover
nomes de homens brancos”.

Integrantes da Associação dos Antigos Alunos do Largo São Francisco teriam alegado, segundo
ela, que o projeto violava as tradições da faculdade e afugentaria patrocínios. Um professor
argumentou que a iniciativa abria precedentes para revisionismos antidemocráticos, como
eventuais homenagens a defensores da ditadura militar. “Ele se apropriou de uma bandeira da
esquerda para deslegitimar um avanço”, constata Letícia.

“De qualquer forma, é necessário pensar nas figuras que a São Francisco homenageia”, aponta a
estudante negra. “Investigando os nomes de outras salas, tenho certeza que a gente descobrirá
histórias tão macabras quanto essa, ou talvez até piores.”

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