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UNIVERSIDADE DE AVEIRO

O clamor sufocado na história literária portuguesa:


Maria Teresa Horta

MESTRADO EM ESTUDOS EDITORIAIS


História e cultura do livro

Fabiana Sofia Moreira Lopes

Aveiro, 2023
«Comigo me desavim,
Sou posto em todo perigo;
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.»
Sá de Miranda, Comigo me desavim

Resumo
Este artigo visa o estudo do período de censura português, incidindo sobre as ações de
censura e de subversão à condição da mulher portuguesa. Para o efeito, o artigo avaliará a
obra Minha Senhora de Mim (1974), bem como a sua autora Maria Teresa Horta, de modo a
demonstrar como este livro foi uma fonte de inspiração para a produção de Novas Cartas
Portuguesas (1972) escrita por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da
Costa. A seleção de tais obras deve-se à sua importância na história literária portuguesa, dado
que as mesmas contribuíram para a emancipação literária e feminina no seio do Estado
português.
Assim, os subsequentes parágrafos procuram investigar a matriz literária de Maria
Teresa Horta, que navega pelo questionar incessante das fronteiras outrora impostas entre a
mulher e a sociedade e entre o vocábulo e o corpo.

Palavras-chave: Censura literária; Estado Novo; Maria Teresa Horta; Minha Senhora de
Mim; Novas Cartas Portuguesas.

Abstract
This paper aims to study the Portuguese censorship period, focusing on the actions of
the censorship and the gender subversion of Portuguese women. To do so, this paper will
assess the work Minha Senhora de Mim (1974), as well as its author Maria Teresa Horta so as
to demonstrate how this book served as inspiration for the creation of Novas Cartas
Portuguesas (1972) by Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta and Maria Velho da Costa.
Such works were selected due to their importance in Portuguese literary history, given that
they led to literary and feminine emancipation within the Portuguese state.
Thus, the ensuing paragraphs aim to probe the literary matrix of Maria Teresa Horta,
who sails through the incessant questioning of the limits formerly enforced between the
women and society, and the word and body.

Keywords: Estado Novo; Literary censorship; Maria Teresa Horta; Minha Senhora de Mim;
Novas Cartas Portuguesas.

i
Introdução
Realizado no âmbito da unidade curricular de História e Cultura do Livro, o
seguinte artigo propõe o estudo de caso de Maria Teresa Horta e da sua obra Minha
Senhora de Mim (1974) de modo a demonstrar o percurso da censura literária no Estado
Novo e analisar como Maria Teresa Horta procurou contradizer o papel da mulher e os
limites da sexualidade definidos pelo ideário político e religioso do seu tempo.
A censura propagou-se a partir de diversos modos em Portugal, sendo que o
artigo focar-se-á na censura literária. Deste modo, expor-se-á uma breve história pelo
qual o livro passou no período censório. Passando para a oposição feminina à censura,
dado que o papel da mulher e a sua condição na sociedade são temas célebres na escrita
de Maria Teresa Horta. Paralelamente, transpor-se-á para uma apresentação concisa da
autora Maria Teresa Horta. Para tal efeito, serão ostentados determinados versos e
estrofes com o intuito de explanar o objetivo de Maria Teresa Horta e a compreensão
elaborada nas entrelinhas da sua obra. Consequentemente, devido às temáticas redigidas
pela autora, sucederá uma exposição no artigo relativamente à censura que as obras da
autora sofreram.
Em última instância, o artigo pretende ilustrar como a censura da obra Minha
Senhora de Mim (1974) instigou a escrita do livro Novas Cartas Portuguesas (1972).
Para concluir, a problemática do presente artigo será: pode a censura incitar a
emancipação literária?

1. Censura literária

A Censura era uma máquina poderosa, terrível, na sua eficácia de compreensão,

de condicionamento, de deturpação e silenciamento da informação e do pensamento

livre. Manipulando mentalidades, era uma máquina que acabou por ofuscar, sobrepor e

até ocultar a realidade (…). (Rolim, s/d, p.3).

Em Portugal, a censura introduzida no período da Ditadura Militar – maio de


1926 a abril de 1933 – era dirigida a publicações não periódicas, sendo que a censura
começa a afetar a publicação de livros quando se consolida no período do Estado Novo.
Um dos modos pelos quais a censura era aplicada à literatura revê-se na divulgação do
título dos livros, ou seja, os autores viam-se coagidos a divulgar o título da sua obra à

1
Direção-Geral de Censura à Imprensa a mesmo ser analisado. De igual modo, a censura
pode ser praticada depois, isto é, com base em denunciações ou as subsequentes ações
de vigilância por parte da PIDE, ou até em comunicações feitas por livreiros, tipógrafos
e funcionários de diversos estabelecimentos (Azevedo, 1997, p.53). Como afirma
Cândido de Azevedo: “(…) as tipografias estavam obrigadas, (…), a enviar ao
Secretariado Nacional de Informação um exemplar dos livros nelas impresso, antes de
postos a circular sempre que neles fossem versados assuntos políticos, económicos ou
sociais.” (Azevedo, 1997, p.53). Porém, tais atos são considerados insuficientes e em
novembro de 1933, o diretor da Direção-Geral de Censura à Imprensa propõe
determinadas medidas que farão com que a censura aos livros se torne ainda mais
repressiva. Além disso, são implementados critérios que procuram censurar livros
considerados perigosos para o público. Normas como: “todas as publicações nacionais
ou estrangeiras que versem assuntos pornográficos”, bem como, publicações que “(…)
visem à preservação dos costumes pela propagação de doutrinas não integradas nos
princípios de uma moral sã ou propagação de ideias de carácter sexual, pseudo-
científicas ou não, contra a honra e o pudor da mulher, a moral da família, ou que por
qualquer meio tendam à subversão da sociedade portuguesa.”, entre outras (Azevedo,
1997, p. 55).
Segundo o investigador José Brandão, entre os anos de 1933 a 1974, o regime
ditatorial português censurou 900 obras. Entre as quais encontram-se obras de autoras
como Natália Correia, Fiama H. P. Brandão, Rosa Luxemburgo, Carmina Ferreira, Nita
Clímaco, Carmen de Figueiredo, Maria Archer, Maria da Glória, entre outras. Após uma
análise à listagem de José Brandão1, conclui-se que as temáticas relacionadas com a
sátira política, com o erotismo, educação sexual e com o humor são as mais censuradas.
Assim, os escritores debatem entre a possibilidade de verem as suas obras
censuradas, resultando no ato de autocensura. Como Ferreira de Castro descreve:

Escrever assim é uma verdadeira tortura. Porque o mal não está apenas no que a

censura proíbe mas também no receio do que ela pode proibir. Cada um de nós coloca,

ao escrever, um censor imaginário sobre a mesa de trabalho – e essa invisível e

incorpórea presença tira-nos toda a espontaneidade, corta-nos todo o élan, obriga-nos a

1
Na listagem do investigador revê-se o título da obra, nome do autor, a editora e por fim a data ou de
publicação, ou de proibição. A lista pode ser consultada aqui para mais informações: https://bibliblo-
gue.files.wordpress.com/2012/04/200412livrosproibidos33_74.pdf

2
mascarar o nosso pensamento, quando não a abandoná-lo (…).” (as cited in Azevedo,

1997, p.12).

2. A oposição ao papel da mulher


Apesar do papel restrito que a mulher tinha na sociedade portuguesa do Estado
Novo, ela era igualmente louvada, visto que “(…) o trabalho da mulher fora de casa
desagrega este, separa os membros da família, torna-os um pouco estranhos uns aos
outros (…).” (Neves & Calado, 2001, p.308). Tais palavras proferidas por Salazar num
dos seus discursos recomendam a limitação da mulher ao lar. Porém, tal estatuto é visto
igualmente como o superior, visto que a mulher usufrui do poder de desagregar ou de
compor o seio familiar.
Segundo Vanda Gorjão, em Mulheres em Tempos Sombrios: Oposição feminina
ao Estado Novo (2002), a resistência por parte das mulheres

[…] foi diferente da conduzida pelos homens. Fortemente condicionada pela pertença

de género, a actividade oposicionista feminina foi vivida pelas mulheres e

percepcionada pelos homens em função do que na altura era a condição da mulher na

sociedade portuguesa […]. (Gorjão, 2002, p.21).

Com isto, o papel das mulheres, conquanto limitado, leva a que o papel das
autoras se torne revolucionário. A escrita2, utilizada previamente como instigadora da
censura, opera, durante o Estado Novo, como uma arma política.
Deste modo, as ideias de revolução propagavam-se pelo estado português e as
mulheres, revendo nos livros a sua função de conhecimento, de cultura e de informação,
resolvem utilizá-los como o fio condutor para a sua emancipação intelectual e material.

3. A poetisa do corpo: Maria Teresa Horta


Quanto à escrita de Maria Teresa Horta 3, é possível declarar que ela incide sobre
o corpo humano com o intuito de abordar o amor erótico e sensual. Com isto, revê-se
2
Torna-se imprescindível mencionar que a literatura presentemente aludida diz respeito à função de
oposição que a escrita fornecia às autoras e não a uma literatura tão-somente feminina. Por outras
palavras, tal como explicita Ana Pedrosa: “[…] era difícil às mulheres fugirem ao estigma: a arte, com
uma masculinidade implícita, resistia à ideia da mulher como criadora, sendo necessária diferenciá-la. Daí
que falar-se de uma autoria “feminina”, diferenciando-a da literatura por si mesma, a estigmatize e
menorize, já que se parte do princípio de que a arte é masculina.” (Pedrosa, 2017, p.63).

3
subsequentemente uma sucinta referência aos dados biográficos de Maria Teresa Horta,
nascida no ano de 1937, em Lisboa. Perpetuamente interessada nas artes, desde o
cinema ao teatro4, a autora encontra nas palavras a sua libertação. Salientando-se para
além da sua matriz literária, Maria Teresa Horta embarca na luta em prol dos direitos
femininos; aliás, a escritora foi membro do Movimento Feminista em Portugal.5
A autora enceta a sua produção literária com a obra “Espelho Inicial” (1960)
sendo hábil a fragmentar a ideia da identidade feminina. Seguem-se outras oito obras só
na década de setenta, década essa em que principia o ofício das letras; todas elas
orquestradas envolta da temática política e erótica. Repartindo-se entre essas duas
temáticas, Maria Teresa Horta divide as suas obras em dois géneros: a ficção e a poesia.
Assim, a sua escrita “(…) luta contra o patriarcado, pelos direitos das mulheres,
reconhecendo-lhes o direito à sexualidade e à participação política.” (Pedrosa, 2017,
p.347).

3.1. Minha Senhora de Mim


Originalmente publicada em 1971, a obra Minha Senhora de Mim (1974) foca-se
na mulher como indivíduo, como entidade pensadora e como um ser sexual. Na
plenitude da sua matriz literária é possível examinar o recurso à intertextualidade. Isto é,
os diálogos que Maria Teresa Horta elabora com a poesia trovadoresca, particularmente
com as cantigas de amigo – para fornecer à figura feminina o lugar central de narrador e
não somente de sujeito poético. De modo a exemplificar expõe-se o seguinte terceto:

Comigo me desavim
minha senhora
de mim
(Horta, 1974, p.13)

3
Distinguida com o Prémio D. Dinis pela obra As Luzes de Leonor (2011), bem como aplaudida pelo
Prémio Consagração de Carreira que lhe é atribuído em 2014 pela Sociedade Portuguesa de Autores. De
igual modo, Maria Teresa Horta recebe o Prémio Autores SPA/ Melhor Livro de Poesia em 2017 com o
livro Anunciações (2016) e com a obra Estranhezas (2018) é-lhe conferido o Prémio Literário Casino da
Póvoa/ Correntes d’Escrita no ano de 2021.
4
Em 1962, Maria Teresa Horta elabora a curta-metragem “Verão Coincidente” com António Macedo,
baseada num poema por si redigido. Relativamente ao teatro, Maria Teresa Horta publica a peça “O
Delator” na antologia Novíssimo Teatro Português (1965).
5
Ademais, a autora portuguesa participa no movimento literário intitulado “Poesia 61” e no movimento
em prol da renovação da música moderna portuguesa.

4
Nestes versos, Maria Teresa Horta utiliza o poema Comigo me Desavim de Sá de
Miranda como inspiração para a sua escrita.
Publicada na coleção “Cadernos de Poesia” e composta por cinquenta e nove
poemas, Minha Senhora de Mim (1974) propõe uma (re)leitura da tradição literária
portuguesa. Assim, ao alterar a entidade central dos poemas medievais, Maria Teresa
Horta transfigura

[…] a relação entre os sexos da forma como o Estado Novo a preconizava, instala um

novo modelo de estrutura social, ou sugeria-o, desafiando a moral instituída. […] Maria

Teresa Horta, através da produção simbólica geralmente atribuída aos homens,

reclamou para si e para as outras mulheres um lugar social. (Pedrosa, 2017, p.360).

No decorrer da ditadura do Estado Novo, Maria Teresa Horta faz-se escutar para
poder contestar o lugar da mulher na sociedade patriarcal da época, ultrapassando assim
a poesia da resistência, para criar uma poesia de avanço (Pedrosa, 2017, p.348).
Acrescente-se ainda que, para além do protagonismo dado às mulheres, os poemas desta
obra revelam-se inovadores e ousados pelo tom imperativo empregue nos versos. O
poema intitulado “O meu desejo” é o que melhor retrata tal temática:

Afaga devagar as minhas


pernas

Entreabre devagar os meus


joelhos

Morde devagar o que é


negado

Bebe devagar o meu


desejo
(Horta, 1974, p.79)

5
No versejar dístico de Maria Teresa Horta, o tom imperativo torna-se cristalino,
o sujeito poético feminino é a entidade que ordena e o homem é quem obedece à ação.
Por conseguinte, a poetisa demonstra que é necessário que a mulher se aproprie do seu
“eu” intrínseco: ela é a única ‘proprietária’ de si mesma. No poema “Regresso” lê-se:

Regresso para mim


e de mim falo
e desdigo de mim
em reencontro
(Horta, 1974, p.9)

Ou seja, é indispensável o ato de indagar por si próprio, visto que assim é


possível alterar o presente e o futuro, mantendo em mente os obstáculos do passado.
Deste modo, a poetisa revolta-se contra as condições morais, sociais e éticas que
aprisionam a mulher no Estado Novo. Os seus poemas tornam-se num “(…) veículo de
actos políticos indispensáveis: afinal, eles mesmos são actos políticos, é a apropriação
da linguagem que funciona como desafio ao instituído.” (Pedrosa, 2017, p.366).
É pertinente, no seguimento das ideias apresentadas, questionar o porquê da
utilização do corpo da mulher, por parte de Maria Teresa Horta, como símbolo de
resistência. Tal pode ser fundamentado pelo facto de que o corpo da figura feminina
atua como um agente dependente de interpretações e opressões sociais, como se uma
ponte se criasse para a subordinação da sua figura através da suposta inferioridade da
condição corpórea feminina. Conforme refere Simone de Beauvoir: “A sujeição da
mulher à espécie, os limites das suas capacidades individuais, são factos de extrema
importância; o corpo da mulher é um dos elementos essenciais da situação que ela
ocupa neste mundo.” (Beauvoir, 2008, p.67). De igual forma, as autoras Ana Gabriela
de Macedo e Ana Luísa Amaral declaram que a “(…) questão do corpo, bem como a
sua reputação e auto-representação articula-se com a problematização da identidade,
tendo-se por isso tornado um debate fulcral no feminismo contemporâneo.” (Amaral &
Macedo, 2005, p.25). Ou seja, a representação de sensações corpóreas é a forma que
Maria Teresa Horta elege de modo a desafiar o estatuto da mulher no período do Estado
Novo.

3.2. A censura em Maria Teresa Horta

6
Relativamente à publicação de Minha Senhora de Mim (1974) de Maria Teresa
Horta6, a censura tenta sufocar as temáticas relacionadas com o desejo carnal expostas
na mesma, pois embora consistisse em “(…) matéria literária aceitável de um ponto de
vista masculino, (…) [tais temáticas] dificilmente seriam admissíveis quando
apresentadas segunda uma perspetiva feminina.” (Flores, 2015, p.46).
Quando Minha Senhora de Mim (1974) é primeiramente impressa pelas
Publicações Dom Quixote dirigida por Snu Abecassis, Maria Teresa Horta é detida pela
PIDE e acusada de ofensa à “(…) moral tradicional da nação (...)” (Pedrosa, 2017,
p.367). Com efeito, a obra Minha Senhora de Mim (1974) começa a ser confiscada em
livrarias e bibliotecas para proibir a sua divulgação.
A notícia que a obra Minha Senhora de Mim (1974) é censurada pelo governo de
Marcelo Caetano leva à ocorrência de um ataque físico e violento por parte de três
homens contra Maria Teresa Horta. Em 2016, numa entrevista a Ana Raquel Fernandes
para a Revista Café com Letras, posteriormente publicada pela Revista Caliban, a autora
recorda:

Quando Minha Senhora de Mim foi publicado logo no início dos anos 70, foi também

imediatamente apreendido, e eu espancada na rua, insultada pelo telefone a qualquer

hora do dia e da noite, violência que acabou por nos levar, a mim, a Maria Isabel Barreno

e a Maria velho da Costa, à escrita de Novas Cartas Portuguesas. (Horta, 2016).

4. A modernização de Lettres Portugaises


A ideia para a escrita de uma obra a seis mãos surge em maio de 1971 num dos
almoços semanais de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da
Costa.
A obra modernizada e redigida pelas “Três Marias” inclui 120 textos que
confluem de modo a denunciar a condição feminina no percurso ditatorial (Pedrosa,
2017, p.376). Redigida na forma de cartas (prosaicas e poéticas), monólogos, contos,
ensaios e, além disso, uma transcrição do Código Penal Português, a obra Novas Cartas

6
Outrossim, a escritora Maria Teresa Horta encontrava-se familiarizada com o processo de censura, visto
que uma das suas primeiras obras O Delator (1962), que narra a história de um grupo de jovens que
arquitetam um ataque a um regime autoritário, fora proibida dois anos após a sua publicação.

7
Portuguesas7 (1972) versa temas proibidos como a guerra colonial, o adultério, a
discriminação, o aborto, a imigração, a violação, o poder patriarcal e a liberdade. 8
Em Lettres Portugaises (1669) de Claude Barbin a imagem da mulher encontra-
se vinculada ao “(…) estereótipo de mulher abandonada, suplicante e submissa,
alternando entre a adoração e o ódio, e praticando um discurso de paixão avassaladora
por aquele [o cavaleiro] que se apaixonara também, mas partira depois, para não mais
regressar.” (Amaral, 2010, p. XVI). Por oposição, “(…) no lugar da idolatria, da
anulação de si (…)” (Faustino, 2014, p.19) a obra Novas Cartas Portuguesas (1972)
demonstra “(…) a desconstrução do domínio masculino, a ridicularização da
masculinidade tirânica.” (Faustino, 2014, p.19).
Com a divulgação, a obra é proibida pelos Serviços de Censura, sendo que após
examinar, o censor retira as seguintes conclusões:

Este livro é constituído por uma série de textos em prosa e versos ligados à

história Mariana, mas em que se preconiza sempre a emancipação da mulher em todos

os seus aspectos, através de histórias e reflexões. […]

Algumas das passagens são francamente chocantes por imorais […],

constituindo uma ofensa aos costumes e à moral vigente no País. […]

Concluindo: Sou do parecer que se proíba a circulação no País

do livro em referência, enviando-se o mesmo à Polícia Judiciária para

efeitos de instrução do processo crime. (Despacho de 26 de maio de

1972 as cited in Azevedo, 1997, p.121).

O livro é censurado em maio de 1972, retirado do mercado e destruído no espaço


de três dias. O discurso libertador das “Três Marias” origina um processo judicial, pois
obra passa a ser considerada “(…) pornográfica e atentatória da moral pública (…).”

7
O “livro maldito”, como foi apelidado, floresce da adaptação do romance Lettres Portugaises (1669) de
Claude Barbin que fora traduzido inicialmente por Eugénio de Andrade numa edição da editora Assírio e
Alvim no ano de 1969.
8
Ademais, a obra é publicada pelos Estúdios Cor, sob a direção literária de Natália Correia que, mesmo
sendo “(…) instruída a retirar partes da obra, publica-a na íntegra.” (Cabreira, 2018, p.114). Posto isto, a
obra questiona primeiramente a noção de autoria, dado que até hoje não é do conhecimento geral qual das
três escritoras escreveu quais trechos; sendo que assim as autoras subvertem-se contra a autoridade social
e contra a ditadura (Almeida, 2010).

8
(Pedrosa, 2017, p.374). Diante disso, o livro é enviado para a instituição da Polícia
Judiciária a pedido da Direção-Geral de Informação e daí floresce o processo-crime.9
Outrossim, a publicação da obra tem consequências significativas para o
movimento feminista e na luta contra a censura, particularmente contra a censura
literária. Isto é, a censura sofrida pela obra e pelas autoras contribui para uma
consciencialização dos limites impostos à mulher. Neste sentido, o ato progressista de
Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa põe em causa a
literatura e os valores sociais, morais e éticos do Estado Novo, “(…) fazendo da própria
escrita um acto social.” (Pedrosa, 2017, p.377).

Conclusão
A censura imposta durante o Estado Novo foi uma ferramenta utilizada para
iludir os cidadãos quanto a aparência do país, jamais mostrando a realidade nele vivida.
Deste modo, para proteger as figuras principais do regime, a censura persuadia as ideais
dos portugueses.
Mediante o exposto, este artigo procurou compreender a censura imposta pelos
órgãos em poder levou a um condicionamento da literatura, nomeadamente da literatura
feminina. Ademais, a censura literária vivida em Portugal levou, não só à proibição de
livros como, igualmente, a uma interrupção no desenvolvimento cultural da época. Com
isto, várias escritoras, como o caso de Maria Teresa Horta, procuraram romper com os
ditames literários da época para que as liberdades de expressão, de criatividade,
artística, e literária pudessem existir.
A importância da literatura para a Revolução dos Cravos é exemplificada através
da oposição escrita pelas “Três Marias”. A resistência à censura literária e ao papel da
mulher é, assim, elaborada através da utilização do livro como objeto físico e como
meio de propagação, conduzindo à interligação da literatura com o movimento
feminista. Por outras palavras, a literatura e o movimento feminista conseguem destruir
“(…) a ordem simbólica das estruturas da sociedade patriarcal.” (Pedrosa, 2017, p.349)
auxiliando a libertação comum da sociedade portuguesa.

9
Diversos meios de comunicação internacionais como o Le Nouvel Observateur e o The Times seguem e
divulgam o julgamento que acaba por dar origem a manifestações de protesto junto às embaixadas e
consulados portugueses na capital londrina e parisiense, assim como na cidade nova-iorquina. Por
conseguinte, várias figuras como Simone de Beauvoir, Iris Murdoch, Stephen Spence, Doris Lessing,
entre outros nomes, demonstram o seu apoio pelas “Três Marias”, levando a que o processo-crime fosse
votado como a primeira causa feminista internacional pela National Organazation for Women (NOW).

9
Por último, retorquindo à questão acima colocada, a proibição da obra Minha
Senhora de Mim (1974) de Maria Teresa Horta e o ataque do qual foi alvo, provocam a
escrita do livro Novas Cartas Portuguesas (1972) que mais tarde surge como um
arquétipo da revolução feminina contra a censura literária. Deste modo, a censura,
devido ao seu carácter extremamente opressivo, age como o fio condutor que incentiva
a emancipação literária e a subversão à condição da mulher no Estado português.

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Referências Bibliográficas e Eletrónicas
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