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A representação da personagem feminina em Azul Corvo,

de Adriana Lisboa
GENIANE DIAMANTE FERREIRA*

Resumo. Este artigo analisa como são representadas as personagens femininas no


romance Azul Corvo (2014), de Adriana Lisboa. O artigo traz suscintamente o
percurso do movimento feminista no Brasil para entendermos o contexto de
produção da obra sob estudo. Faz-se, então, uma análise das personagens
principalmente sob a perspectiva dos estudos de Bourdieu e Touraine que falam,
respectivamente, de como se processa a dominação masculina e de como se dá a
superação desta artificial e imposta autoridade masculina. Conclui-se que a obra tem
características da quarta onda do movimento feminista e que suas personagens
femininas veem e se comportam no mundo como sujeito independente de seu gênero.
Elas tomam como descontruída a oposição binária, hierárquica e não natural entre o
feminino e o masculino e são atrizes de (sua própria) história.
Palavras-chave: movimento feminista; dominação; superação; personagem
feminina; sujeito.
The representation of the female character in Azul Corvo, by Adriana Lisboa
Abstract. This article analyzes how the female characters are represented in the
novel Azul Corvo (2014), by Adriana Lisboa. The article briefly presents the course
of the feminist movement in Brazil to understand the context of production of the
work under study. Then, an analysis of the characters is made, especially from the
perspective of Bourdieu and Touraine's studies, which are respectively about how
male domination is handled and how this artificial and enforced masculine authority
is overcome. It is concluded that the book has characteristics of the fourth wave of
the feminist movement and that its female characters see and behave in the world as
a subject independent of its gender. They take as unbound the binary, hierarchical
and unnatural opposition between the feminine and masculine and are actresses of
(their own) history.
Key words: feminist movement; domination; overcoming; female character;
subject.

*
GENIANE DIAMANTE FERREIRA é professora de Língua Inglesa e Literatura em Língua Inglesa
na Universidade Estadual de Maringá e Mestra em Letras (UEM).

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1. Vida e obra de Adriana Lisboa contexto patriarcal decadente das décadas
Adriana Lisboa nasceu em 1970 no Rio de finais do século XX, como, entre outras,
Janeiro, onde morou durante a maior parte Nélida Piñon, Sônia Coutinho, Lya Luft e
da vida. É autora de treze livros – Helena Parente Cunha, as obras de
romances, poesia, contos e obras para Adriana Lisboa refletem sobre a busca da
crianças e jovens – que receberam prêmios identidade no contexto de um mundo
como o José Saramago, o Moinho Santista globalizado, sem aprofundar as questões
e o Prêmio de Autor Revelação da FNLIJ. de gênero.
Seus livros foram traduzidos em dezessete A autora busca abordar questões como
países. pertencimento, história política recente do
país e imigração, inserindo o indivíduo,
Desde criança seus pais sempre a apoiaram
no campo da literatura. No entanto, aos 18 independentemente de ser homem ou
anos, decidiu ir para a França onde mulher, nesse contexto desolador e
trabalhou como cantora de MPB. Depois caótico. (COQUEIRO, 2013)
cursou Música na Uni-Rio e fez mestrado 2. As ondas do feminismo
em Literatura Brasileira e doutorado em A história do feminismo no Brasil não é
Literatura Comparada pela UERJ. Além muito conhecida, talvez porque tenha sido
de escritora, Adriana Lisboa trabalha pouco contada. Os períodos mais notórios
como tradutora há mais de dez anos. são as lutas dos anos 30, em virtude da
Desde 2007, mora nos arredores de reivindicação ao voto e dos anos 70, em
Boulder, no estado do Colorado (estado virtude das conquistas mais famosas e
em que se passa a história de “Azul recentes.
Corvo”). Entretanto, o movimento feminista pode
Lisboa pertence ao grupo das autoras ser compreendido, em sentido amplo,
contemporâneas brasileiras. Entretanto, como todo gesto ou ação que resulte em
diferentemente de muitas ficcionistas protesto contra a opressão e a
mulheres que abordam em suas obras os discriminação da mulher, ou que exija a
conflitos e a problemática dos gêneros no ampliação de seus direitos civis e

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políticos, seja por iniciativa individual, fundante do feminismo brasileiro. Quanto
seja de grupo. à segunda obra, a peça traz a personagem
Mariana, que reivindica direitos
De qualquer forma, o movimento
mencionados no livro de Nísia.
feminista pode ser dividido em ondas.
Constância Lima Duarte, em seu texto A característica mais marcante da primeira
“Feminismo e Literatura no Brasil”, onda é o fato de ela não ter nascido no
explica que chamamos ‘ondas’ as fases Brasil. Ela aparece advinda de clamor
dos movimentos feministas, pois estas não europeu que encontra lugar entre as
são estanques mas, na verdade, “começam mulheres brasileiras, já que tais
difusas e imperceptíveis e, aos poucos (ou reivindicações coadunavam com as
de repente) se avolumam em direção ao questões da mulher brasileira. Nísia
clímax – o instante de maior envergadura, Floresta tem suma importância neste
para então refluir numa fase de aparente momento histórico, uma vez que é ela
calmaria, e novamente recomeçar” quem traduz culturalmente estas ideias e a
(DUARTE). partir disso, as ondas subsequentes são,
São quatro os momentos destas ondas: por assim dizer, nativas, já com o clamor
1830, 1870, 1920 e 1970. Há, desta forma, genuíno das mulheres brasileiras. É a
um espaço de mais ou menos cinquenta primeira onda que, de certa forma, levanta
anos entre elas. Estes intervalos não são mulheres para estas questões.
impassíveis, mas também preenchidos de A segunda onda, nos anos 1870, já aparece
pequenas movimentações (que dão origem em meio a um espantoso número de jornais
às ondas anteriormente mencionadas). e revistas de feição nitidamente feminista,
Passemos, desta forma, a ver as como O Sexo Feminino, Echo das Damas,
características de cada uma delas, seu O Domingo, O Jornal das Damas. Neles
contexto histórico, bem como as escritoras eram encontrados romances, receitas e
de cada um destes períodos. dicas de moda, mas também, clamor pelo
ensino superior e trabalho remunerado
Nos anos de 1830, temos a abertura das para mulheres.
primeiras escolas públicas femininas; até
então só havia conventos como local de Esta é a característica fundamental desta
educação para mulheres. Além disso, segunda onda: inúmeros periódicos que
temos também o surgimento dos primeiros tinham como principal objetivo convencer
jornais dirigidos às mulheres. Entre outras, as mulheres de seus direitos (propriedade,
duas autoras relevantes devem ter seus trabalho profissional, voto, entre outros). É
nomes destacados: Nísia Floresta um período em que algumas mulheres
Brasileira (1810-1885), que escreveu objetivam conscientizar as outras acerca
Direitos das mulheres e injustiça dos de sua posição na sociedade. Os primeiros
homens, em 1832 e Ana Eurídice passos deste protesto formam caminhos
Eufrosina de Barandas que publicou, em que se espalham de tal forma que as
1845, a peça A philosopha por amor. publicações não se concentram apenas nos
grandes centros, mas também em muitos
Quanto ao livro de Nísia, embora tenha outros pontos do país.
sido praticamente a tradução de
Vindications of the Rights of Woman, de É nesta década também que encontramos
Mary Wollstonecraft, tem significativa as primeiras brasileiras em curso
importância no Brasil, uma vez que debate universitário e é permitido às mulheres de
acerca do direito das mulheres ao trabalho classe baixa trabalhar em fábricas ou como
e à instrução e é considerado hoje o texto prestadoras de serviço doméstico. Por

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outro lado, apesar de parecer uma Não podemos deixar de mencionar
vantagem para elas tal ‘permissão’ legal, também Maria Lacerda de Moura (1887-
já que é justificada pela necessidade de 1945) que, ao publicar Em torno da
obtenção de renda, o que ocorre educação, em 1918, iniciava sua luta pela
verdadeiramente é a conveniência ao completa libertação da mulher, já que
mercado, que precisa de mais mão de obra preconizava que a instrução era
e, é claro, de baixo custo, uma vez que a indispensável para sua (re)construção. Sua
remuneração às mulheres era inferior, obra, A mulher é uma degenerada?, teve
condição que perdura até hoje. tanta repercussão e polêmica que teve três
edições, desafiando a sociedade
O nome de maior destaque desta fase é o fortemente patriarcal da época.
de Josefina Álvares de Azevedo (1851-?),
que dirigiu o jornal A Família, encenou a No campo literário, já vemos um grande
peça O Voto Feminino e viajou o Brasil aumento de autoras femininas. Dentre
para conquistar adeptas à causa. É ela elas, podemos citar Gilka Machado (1893-
quem primeiro questiona a construção do 1980), que em 1918 publicou um livro de
gênero feminino, questão estudada até os poemas eróticos, Meu Glorioso Pecado;
dias de hoje. Rosalina Coelho Lisboa (1900-1975), que
em 1921, conquistava o primeiro prêmio
A terceira onda, chamada por Duarte de no concurso literário da Academia
‘rumo à cidadania’, ocorre nos anos de Brasileira de Letras, com o livro Rito
1920 e é caracterizada por uma Pagão; Rachel de Queiroz, com O Quinze,
movimentação inédita de mulheres em 1930, cuja personagem feminina exibe
mais ou menos organizadas que traços de emancipação e prefere viver
clamam alto pelo direito ao voto, ao sozinha, "pensando por si", a aceitar um
curso superior e à ampliação do campo casamento tradicional; Mariana Coelho,
de trabalho, pois queriam não apenas que em 1933 publicou A evolução do
ser professoras, mas também, Feminismo: subsídios que representa uma
trabalhar no comércio, nas repartições, importantíssima e lúcida contribuição à
nos hospitais e indústrias (DUARTE).
história intelectual da mulher brasileira; e
Assim, em 1927, o governador do Rio Adalzira Bittencourt (1904-1976),
Grande do Norte, Juvenal Lamartine, antes advogada, escritora e feminista, que, em
mesmo de a União fazê-lo, aprovou uma 1946, organizou no Palace Hotel do Rio de
lei em seu Estado dando o direito ao voto Janeiro a Primeira Exposição do Livro
às mulheres. A eleição da primeira prefeita Feminino.
– da América do Sul –, Alzira Soriano
Vemos, desta forma, um grande avanço
(1897-1963), em 1929, no município de
quanto aos estudos feministas e direitos da
Lajes, interior do Rio Grande do Norte foi
mulher já nesta terceira onda. É a partir de
notícia no mundo todo.
1970, entretanto, que vemos as maiores
Mais tarde, em 1932, o presidente em conquistas para as mulheres. Segundo
exercício do Brasil, Getúlio Vargas, dá o Duarte (2003), está é “a onda mais
direito ao voto feminino nas mesmas exuberante, a que foi capaz de alterar
condições das do masculino, mas elas só o radicalmente os costumes e tornar as
exercem nas eleições de 1945. Isto ocorre reivindicações mais ousadas em algo
muito em virtude da campanha liderada normal”.
por Bertha Lutz (1849 – 1976), que, com O ano de 1975, conclamado como o Ano
outras companheiras, fundou a Federação Internacional da Mulher, foi logo
Brasileira pelo Progresso Feminino. estendido por todo o decênio (de 1975 a

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1985), dada a situação deficitária da de contos aparentemente distintos mas que
condição feminina, e tantas as metas para se estruturavam em torno de encontros e
eliminar a discriminação. O dia 8 de março desencontros amorosos. Além disso, Piñon
é então declarado, pela ONU, o Dia foi a primeira mulher a tomar posse como
Internacional da Mulher e, ao passo que presidente da Academia Brasileira de
nos outros países as mulheres Letras.
reivindicavam igualdade entre sexos e O movimento e estudos feministas no
direitos, no Brasil, devido ao seu momento Brasil continuam a produzir muitos
histórico, além desta luta, ainda se estudos teóricos e obras literárias e esta
combatia a ditadura militar e a censura. quarta onda tem apontado para outras
A redemocratização do país era mais correntes de discussão como a questão da
evidente, mas, ainda assim, também houve mulher negra, lésbica etc. Assim, o
debates acerca da sexualidade, do aborto e percurso destes estudos tem tido efeitos
do planejamento familiar, dada a recém sobre demandas prementes como as de
tecnologia anticoncepcional. Em virtude justiça social na atualidade e da
desta novidade na ciência, temas como a (re)construção da ideia de gênero e suas
desvinculação entre sexo e amor ou entre consequências.
sexo e compromisso também foram Duarte fala de “tempos pós-feministas”,
levantados. não no sentido de ‘ultrapassado’, mas de
‘posterior’, com lutas diversas, já que a
Neste momento, o Movimento Feminino
presença das mulheres na construção da
pela Anistia tem como porta-voz o jornal
sociedade é, hoje, inegável. Entretanto, há
Brasil Mulher, lançado em 1975 e, já no
ainda resquícios resistentes à mudança e
ano seguinte, aparece o periódico Nós
que funcionam em favor das estruturas
Mulheres. Ambas publicações
patriarcais de pensamento, como a
apresentavam temas como o aborto, a
violência contra a mulher e o
mulher na política, o trabalho feminino, a
reconhecimento profissional, para nomear
dupla jornada e a mulher nas artes,
apenas dois.
discussões novas para a época.
3. A figura da mulher na obra
Como resultado, já no final dos anos 1970
e ao longo dos anos 1980, o movimento 3.1 Fábula de Azul Corvo
feminista já estava bem articulado com O livro “Azul Corvo” conta a história de
discussões em universidades, criação de Evangelina, uma adolescente que, ao
Grupos de Trabalho e publicação de perder a mãe, vai aos Estados Unidos em
trabalhos. busca do pai e é acolhida por um ex-
namorado da mãe. O enredo se passa tanto
Também autoras muito profícuas (algumas
no Rio de Janeiro, como no estado do
ainda publicando) de obras literárias foram
Colorado, nos Estados Unidos e também
se despontando. Podemos citar, por
há cenas na praia em Barra do Jucu. Quem
exemplo, Lygia Fagundes Telles, Clarice
narra a história é a própria personagem,
Lispector, Sônia Coutinho, Hilda Hilst,
mas já mais tarde, aos 22 anos.
Helena Parente Cunha, Marina Colasanti,
Lya Luft, entre muitas outras. Destaque Evangelina, ou “Vanja”, embora tenha
especial deve ser dado à Nélida Piñon, que nascido no Novo México, sente-se uma
tomou parte na redação do Manifesto dos brasileira e pertencente ao Rio de Janeiro,
1000 contra a censura e a favor da principalmente à praia de Copacabana,
democracia no Brasil e que, em 1981, aonde foi morar desde os dois anos de
publicou Sala de Armas, livro composto idade.

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Suzana, sua mãe, nunca lhe contou sobre o na verdade) e binária entre homem e
pai, mas, ao saber que está doente e prestes mulher (masculino x feminino).
a morrer, dá à filha algumas informações
Deste modo, a divisão parece estar na
sobre seu passado biológico. Assim, aos
‘ordem das coisas’, pois o construído é
13 anos, órfã, Vanja decide abandonar sua
naturalizado, o que provoca uma atitude
tia Elisa, irmã adotiva de Suzana, com
‘natural’, com reconhecimento e
quem morava, e partir em busca de suas
legitimação, deixando de lado as
raízes nos Estados Unidos, local
condições sociais, prementes para a
desconhecido para ela, de onde é seu pai.
compreensão integral neste contexto. Sem
Lá encontra Fernando, um ex-namorado levar em conta o contexto histórico e
de sua mãe e começa uma vida nova. social, a força da dominação masculina
Apresentam-se, então, novos desafios, dispensa justificação, é uma visão que se
como a escola, a língua, novas amizades impõe como neutra e se aplica a todas as
etc. Fernando, ex-guerrilheiro do Araguaia coisas do mundo e ao próprio corpo.
e agora guarda da biblioteca municipal, (BOURDIEU, 2005)
tem 50 anos. Deste encontro inesperado
Assim, o Bourdieu ressalta que tal visão
nasce uma verdadeira amizade de ajuda e
que se impõe com o rótulo de neutra não o
respeito mútuo, apesar da personalidade
é. Ao contrário: a dominação é produto de
fechada e desiludida de Fernando. Vanja
um trabalho incessante de reprodução
conhece também Carlos, seu vizinho de 9
praticada por agentes (masculinos) e
anos, que acaba por torna-se um novo
instituições (igreja, pela moral patriarcal;
amigo.
família, com a experiência precoce da
Depois de algum preparo, em um dado divisão do trabalho; escola, que transmite
momento, Vanja, ajudada por Fernando e pressupostos da representação patriarcal;
Carlos, saem em viagem à procura de seu Estado, que reforça o patriarcado no meio
pai. Encontram sua mãe, avó de Vanja, que público).
a coloca em contato com Daniel, que agora Para corroborar com a ideia de
mora na África. Ela mantém contato com ‘construção’, Judith Butler, em sua obra
o pai, mas acaba morando com Fernando, Problemas de Gênero, ensina que atos,
até a morte dele. Carlos passa então a viver gestos e desejos produzidos são
com Vanja na mesma casa no Colorado. A performativos, advindos de fabricações
busca da menina é, por fim, mais manufaturadas (discurso) e estes criam a
importante que o próprio ‘achamento’, ilusão de um núcleo organizado. Deste
tendo, a partir desta caminhada, formado modo, a verdade interna do gênero é uma
sua identidade. produção, efeito de um discurso.
3.2 A mulher em Azul Corvo A partir de tal construção com aparência
Pierre Bourdieu, em sua obra A de natural, há, então, a incorporação da
Dominação Masculina (2005), percorre dominação:
um longo caminho perpassando inúmeros As divisões constitutivas da ordem
pontos da sociedade para demonstrar social e, mais precisamente, as
como este construto patriarcal se ergueu e relações sociais de dominação e de
é sustentado desde então. exploração que estão instituídas entre
os gêneros, se inscrevem, assim,
Inicialmente, ele critica a construção progressivamente em duas classes de
social dos corpos, ou seja, a constituição habitus diferentes, sob a forma de
da sexualidade que, como é vista hoje, hexis corporais opostos e
leva-nos à posição ‘natural’ (naturalizada, complementares e de princípios de

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visão e de divisão, que levam a tanto, ele estuda publicações, faz
classificar todas as coisas do mundo e entrevistas em que as participantes falam
todas as práticas segundo distinções sobre suas experiências, esperanças etc.
redutíveis à oposição entre o
masculino e o feminino. Indo contra a imposição da construção
(BOURDIEU, 2005, p. 41, grifos natural da oposição binária e hierárquica
nossos) de gêneros, as mulheres aparecem, então,
Desta forma, a dominação masculina, tida como já mencionado, como atrizes da
como resultado natural da oposição binária (sua) história, se afirmando “como tais, se
entre o masculino e o feminino se inscreve dão por objetivo principal a construção de
em todo o pensamento ou relação e disso si mesmas enquanto sujeitos livres e
depreendem consequências também pensam que é através da sexualidade que
tratadas por Bourdieu, como a se realiza este esforço de construção”
masculinidade ligada à nobreza – já que às (TOURAINE, 2007, p.24).
mulheres ficam as tarefas que requerem Assim, vemos que tanto cronologicamente
abnegação e docilidade; o corpo da mulher quanto a respeito dos temas concernentes
fica exposto à objetificação operada pelo à mulher, Azul Corvo pertence à quarta
olhar masculino e as construções onda do feminismo. Como vimos
econômicas, políticas e de poder repetem anteriormente, estas ondas vieram como
o modelo binário na construção da reação à imposição de uma autoridade
história, para citar algumas delas. masculina e a consequente construção de
O movimento feminista vem, então, uma sociedade patriarcal, cujos fortes
requerer, entre outras demandas, o traços ainda prevalecem.
trabalho de des-historicização, para Suzana, uma das principais personagens
ultrapassar os dualismos enraizados na da obra ora sob estudo mostra essa
sociedade: liberdade, pois na narrativa da filha, esta
é preciso reconstruir a história do afirma que viajavam juntas, encontravam
trabalho histórico de des- os amigos dela, ela saía à noite para dançar
historicização ou (...) a história da e tomar cervejas, tinha namorados, fumava
(re)criação continuada das estruturas maconha e “ouvia Janis Joplin: Freedom’s
objetivas e subjetivas da dominação just another word for nothing left to lose,
masculina, que se realiza Nothing don’t mean nothing honey, if it
permanentemente (...) e através da ain’t free, now now. (Nada significa nada
qual a ordem masculina se vê se não for livre)” (LISBOA, 2014, p. 43),
continuamente reproduzida através canção bem significativa neste contexto.
dos tempos (BOURDIEU, 2005, p.
100-1). O modelo de superioridade dos homens
em relação às mulheres começa a ruir e
Deste modo, necessário se faz entender
passa-se da mulher para o outro para a
como as mulheres superam ou podem
mulher para ela mesma. Tal é o
superar tal dominação. O estudo de
comportamento das personagens
Touraine, em seu livro O Mundo das
femininas de Azul Corvo.
Mulheres (2007) busca definir a
significação histórica da ação das Sua relação com os homens era ‘ditada’
mulheres e as opiniões contra as quais essa por ela, sem estar subjugada ou
ação se encontra. O autor também objetiva vitimizada: “Minha mãe cresceu no Texas.
pesquisar as mulheres como sujeito – Um dia, e ela nunca me disse por que, e eu
atrizes – e descobrir que movimentos de algum modo achei que não devia
mostram uma mudança cultural. Para perguntar, rompeu relações com o pai e se

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mudou para o Novo México” (LISBOA, sujeito na sociedade, como vemos
2014, p. 36). problematizado no trecho a seguir:
A filha afirma que ela decidiu romper com Minha mãe ganhava a vida dando
seu pai (de Suzana), depois o pai de Vanja, aulas de inglês para os mexicanos que
o namorado americano antes de Fernando, migravam de volta para o Novo
Fernando e os namorados de Barra do México – tempos depois de os
americanos terem migrado para lá,
Jucu: “Minha mãe gostava de romper
como ela gostava de dizer. Quem era
relações com os homens e desaparecer de estrangeiro ali? Quem era local?
suas vidas” (LISBOA, 2014, p. 37). (LISBOA, 2014, p. 37)
Vemos, desta forma, que a figura de Como dissemos, ela constrói seu próprio
Suzana, principalmente esta entre as outras caminho: “Minha mãe não era de caminhar
personagens, apresenta traços tratados por por cima dos próprios passos. Quando ia
Touraine, como a desconsideração das embora, ia embora, quando abandonava,
ideologias da dominação, a oposição à abandonava”. (LISBOA, 2014, p. 42),
visão unilateral, a construção de si para si assim como outras personagens mulheres
(amor para consigo mesma) e, acima de da obra.
tudo, a não oposição aos homens, pois ser
sujeito é que é, sim, natural, independente Vejamos: Dolores, irmã de Carlos, toma a
do gênero. decisão de abandonar a família para casar.
Manuela, namorada de Fernando, também
Também, sua sexualidade é livre e ela não é guerrilheira, imagem diferente da mulher
tem crises quanto a isso, ao contrário, há a frágil e dócil. Isabel, ex-aluna e amiga de
presença natural do sexo e seu corpo não Suzana e June, também amiga de Suzana,
define mais suas funções: “Minha mãe são apresentadas como mulheres livres e
dizia que nós mulheres também devíamos até Florence, uma senhora, mãe de Daniel,
olhar pra bunda dos homens que avó paterna de Vanja, também é retratada
passavam” (LISBOA, 2014, p. 276, grifo de forma independente e autônoma.
nosso).
Apenas na personagem Elisa, tia de Vanja
Por outro lado, Vanja, metonímia de uma e irmã adotiva de Suzana, é que podemos
nova geração de mulheres, também se identificar alguns traços – resquícios – de
mostrava independente: ela decide sair em uma dominação patriarcal. Apesar de ser
busca do pai, aos treze anos, num mundo independente no que tange a questão
desconhecido com a ajuda de um econômica – trabalhava desde os dezesseis
desconhecido. Ainda, demonstra coragem anos – estava sempre em busca de um
e agência diante da morte da mãe: “A namorado, como se precisasse disso para
minha vida ia seguir em frente, porque eu sentir-se completa.
mandava nela, e não ela em mim”
Tendo em vista tais representações
(LISBOA, 2014, p. 61).
femininas em Azul Corvo, que podemos
Ainda, Suzana, assim como sua filha, afirmar que as personagens não mais
Vanja, apresenta um novo paradigma de tentam afirmar sua condição, ou mesmo
uma reflexão autônoma sobre si; e o reivindicam algo. Elas simplesmente
‘desequilíbrio’ (quando há) se dá no que tomam isso como um direito que lhes é
tange ao indivíduo, ao sujeito, e não natural. Não há mais questionamentos,
relacionado ao gênero. A afirmação da pois creem que sua posição como mulher
subjetividade é feita pela própria mulher e na sociedade já está conquistada e suas
esta condição (do gênero) não faz diferenças e oscilações referem-se à sua
diferença, mas apenas sua posição como condição de sujeito (como o

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descentramento ou o exílio, que não são deslocamento e a crise de identidade de
objeto de estudo neste artigo), não de nossa época não se refere ao gênero – este,
mulher. construto do discurso – mas simplesmente
ao sujeito em si.
4. Considerações finais
Com base na pesquisa desenvolvida para
este estudo, concluímos que o romance Referências
Azul Corvo, de Adriana Lisboa tem Adriana Lisboa. Disponível em:
características da quarta onda do <http://www.adrianalisboa.com/> Acesso em 08
movimento feminista. Isto porque suas jul. 2016.
personagens femininas veem e se BOURDIEU, P. A Dominação Masculina. Trad.
comportam no mundo como sujeito Maria Helena kühner. 4º ed. Rio de Janeiro:
independente de seu gênero. Elas já não Bertrand Brasil, 2005.
têm uma luta pela desigualdade, mas BUTLER, J. Problemas de Gênero: feminismo e
tomam como descontruída a oposição subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar.
binária, hierárquica e não natural entre o Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
feminino e o masculino e são atrizes de CHARTIER, R. O Mundo como representação.
(sua) história. Estudos Avançados.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext
Isso se demonstra quando da análise das &pid=S0103-40141991000100010. Acesso em 18
personagens femininas, principalmente de mai. 2016
Suzana e sua filha, Evangelina, que se CHARTIER, R. À Beira da Falésia. A História
mostram como mulheres que constroem entre certezas e inquietudes. Trad. Patricia
seu próprio caminho e que se comportam Chittoni Ramos. Porto Alegre: Ed. Universidade,
2002.
como mulheres para si, fugindo da
objetificação de ser mulher para o outro. COQUEIRO, W. S. A representação da
Além disso, as personagens masculinas identidade feminina no mundo globalizado do
século XXI: uma leitura de Azul-Corvo de
atestam tal entendimento, uma vez que Adriana Lisboa. Todas as Musas. Ano 04, n. 02,
também veem com naturalidade a conduta p. 145-153. Jan-jul., 2013.
livre e independente das personagens
DUARTE, C. L. Feminismo e Literatura no
femininas, sem quaisquer Brasil.
questionamentos. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext
&pid=S0103-40142003000300010 Acesso em 07
Segundo Chartier, ao representar, faz-se a jul. 2016
própria construção do que é representado.
Assim, é importante ressaltar que Azul LISBOA, A. Azul Corvo. 1. ed. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2014.
Corvo ratifica as reivindicações dos
movimentos feministas ao retratar TOURAINE, A. O Mundo das Mulheres.
Petrópolis: vozes, 2007.
mulheres reais do século XXI, de forma
natural, com liberdade sexual, de
expressão e agência, independentes e Recebido em 2018-05-29
emancipadas, mostrando que o Publicado em 2018-09-18

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