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DEPOIMENTO:

DES. LADISLAU FERNANDO RÖHNELT*

Nasci na cidade de Pelotas, no ano de 1919. Quando nasci, ainda eram sentidas as
grandes dores causadas pela Primeira Grande Guerra Mundial. Como Lord Byron, os povos
ainda se perguntavam por que tanto sofrimento por tão pouco. Era, também, o tempo em que
muitos aqui e lá fora ainda choravam as perdas de entes que aos milhares, senão aos milhões,
foram calcinados pelas terríveis febres da Gripe Espanhola.

Meu pai, a quem perdi em 1929, era um dos notários da cidade, às vezes tratado,
naquela época, por “tabelião de notas”, visto que fora este, na verdade, o antecessor do
notário. Daí por que a denominação reapareceria, de quando em vez, na memória do povo.

Minha mãe, mulher de afazeres domésticos, descendente de pequenos fazendeiros,


proprietários de terras no interior, do Município de Herval (hoje Herval do Sul), consagrou
sua existência a criar quatro filhos, três homens e uma mulher, um dos qual falecido ainda
mocinho, na flor da idade, com apenas dezoito anos. Os demais ainda vivem; dois residem em
Pelotas, ao passo que eu, por exigência da carreira de Promotor, vim parar em Porto Alegre,
onde estou desde 1957, porém sem ter perdido nunca a saudade da querência.

Fiz as primeiras letras no colégio de Dona Lucila Calero, de quem guardo as mais
afetuosas recordações, apesar de lembrar, ainda, as vezes em que ela me pôs de joelhos sobre
grãos de milho, por alguma travessura que tivesse feito.

Daí passei ao Ginásio Gonzaga, estabelecimento de ensino primário, mantido por uma
ordem religiosa católica, já então muito conceituado e procurado em razão da boa qualidade
do ensino que transmitia aos jovens; consta-me que ainda hoje é tão bom quanto antes.

De lá me transferi para o Ginásio Pelotense, um colégio público de grau secundário,


mantido pelo município, dotado de um seleto quadro de professores, dos quais recebi as
melhores informações acerca do estado das ciências da época, as quais, mais tarde, me seriam
muito úteis aos meus estudos universitários. O Pelotense era um ginásio aberto aos dois sexos,
o que me ensejou conhecer e relacionar-me por muito tempo com Rosah Russomano, aquela
que seria depois uma das mais eminentes constitucionalistas do País, de saudosa memória,
graças a cuja inteligência o Brasil jurídico foi enriquecido com obras de apreciável valor
cientifico.

Quando completei o curso secundário, estava em vigor a chamada Reforma


Capanema, implantada pelo Governo Vargas na área da educação; a meu ver, a mais
inteligente, frutuosa e nacional reformulação da política educativa, o que pode ser avaliado por
seus frutos na geração de talentos nos vários campos da cultura brasileira.

*
Depoimento cedido por escrito em maio/2000.
De acordo com essa reforma, o estudante, antes de ingressar na universidade, deveria
passar pelo curso pré: eram três - o pré-jurídico, o pré-medico e o pré-técnico. Assim, quem
quisesse seguir a carreira jurídica, teria, antes, de cursar o pré-jurídico de dois anos.

Foi o que fiz. Como esses cursos só funcionassem, no começo da reforma, nas capitais
dos estados, vim frequentar o pré-juridico em Porto Alegre, malgrado as dificuldades próprias
de um moço nascido de família pobre. Minhas adversidades foram tanto maiores depois da
morte de meu pai, falecido ao redor dos cinquenta anos; enquanto ele viveu, a renda do
cartório bastava, ainda que mal, para que a família tivesse um padrão de vida parecido com o
da classe média inferior. Após sua morte, até esse pouco acabou, ficamos todos ao desamparo,
pois ainda não era tempo da previdência, nem das pensões. Não imagino o que seria de nós, se
acaso nos tivesse faltado a generosa assistência da vó materna, na companhia de quem fomos
morar e aos cuidados de quem nos foi possível continuar estudando.

O pré-juridico foi-me um encanto. Nele ouvi lições inesquecíveis de mestres


inesquecíveis em Economia Política, em Biologia, Lógica, Filosofia, Psicologia, História
Universal, Sociologia, Ética, Literatura.

Ali tive, também, a ventura de conhecer e conviver com jovens que já despontavam
como promissoras lideranças culturais, dentre os quais devo mencionar Galeno Lacerda e
Carlos Galves.

Ao fim dos dois anos de pré, regressei à minha cidade natal e cursei a Faculdade de
Direito, uma escola superior não-oficial, mantida pelo idealismo de grupo intelectual
empenhado em promover a interiorização do ensino universitário e corrigir, tanto quanto
possível, os males de sua concentração nas capitais, dentre eles o da elitização da cultura.

Foi-me difícil, em razão da pobreza, manter-me na Faculdade e vencer carências de


vida, que não eram poucas, nem tão leves.

Vi-me obrigado a trabalhar à noite, até madrugada adentro, como revisor no jornal
“Diário Popular”, ainda hoje em circulação e o mais importante da metade sul do Estado. Pela
manhã, assegurava-me mais um pequeno ganho no emprego de locutor, em uma empresa
radiofônica conhecida na cidade por “Voz do Poste”, eis que seus alto-falantes estavam
instalados em postes de luz e árvores.

No período de vida acadêmica, estive na presidência do Grêmio Acadêmico “Ferreira


Viana”, graças à confiança dos colegas; fui presidente da Federação Acadêmica, entidade que
agregava os estudantes das várias escolas superiores existentes à época (Direito, Agronomia,
Veterinária, Odontologia, Farmácia), à frente da qual empreendi campanha, aliás exitosa, em
prol da fundação da Casa do Estudante.

Uma vez diplomado, interessei-me por fazer carreira no Ministério Público. Por essa
época (década de 40), o sistema estatutário estadual previa os chamados “cargos interinos”,
nos quais se ingressava sem concurso, mas com obrigação de prestar o próximo que fosse
aberto sob pena de, não o fazendo ou sendo reprovado, ser exonerado.

Foi assim, desse modo, que me tornei Promotor de Justiça (ou Promotor Público,
como era denominado o cargo): interino de início; depois efetivo, por aprovação em concurso.
Comecei a ser Promotor na Comarca de Rosário. Ali, pela primeira vez, vi o direito
vivo, o direito saído das ideias para os fatos da vida.

Em razão da presença naquele município, do Frigorífico Swift, um grande empregador


que atraía milhares de trabalhadores, homens e mulheres, até adolescentes, de todos os pontos
do Estado, sobretudo nos meses de safra verde, eram inúmeras as questões trabalhistas e
acidentárias em curso na Justiça local. Dessas questões deveria participar o Promotor em
defesa do empregado. Um decreto do Governo Vargas, desejando talvez remediar o injusto
social, ou amenizar os perniciosos efeitos das desigualdades sociais no plano das disputas
judiciais, tornou obrigatória a intervenção do Ministério Público em defesa dos empregados,
nas lides trabalhistas ajuizadas naquelas comarcas onde ainda não estavam instaladas as Juntas
de Conciliação e Julgamento.

Estava lá em Rosário quando desabou sobre o mundo o fantástico holocausto


atômico. Conversava com amigos na mesa do café da manhã, na sala de refeições do hotel,
quando o rádio anunciou que o Governo Americano autorizara o ataque aéreo às cidades
japonesas de Hiroxima e Nagasaki com bombas atômicas, matando e mutilando mais de cento
e cinquenta mil inocentes civis, dentre estes velhos e crianças, a pretexto de encurtar a guerra,
quando, na verdade, o Japão estava exausto e sem forças para continuá-la. Nesse dia infausto,
o mundo chorou com pena da humanidade japonesa, inclusive o povo da camponesa cidade
de Rosário.

Depois, subindo os degraus da carreira, passei por Pinheiro Machado, Jaguarão, São
Gabriel e por fim Dom Pedrito, numa ronda de onze anos pelo Interior do Estado, até que,
em 1957, vim promovido para esta Capital, tendo servido em Varas criminais, cíveis, de
família e falências.

Já na condição de Procurador de Justiça, exerci o cargo de Corregedor do Ministério


Público, a chefia da Defesa Judicial do Estado enquanto não se criou a Procuradoria-Geral do
Estado, a cujo órgão se transferiu a incumbência daquela representação. Mais de uma vez
assumi a Chefia do Ministério Público
nos impedimentos ocasionais do seu titular, na condição de seu substituto constitucional.

Uma vez nomeado Desembargador, a Presidência lotou-me na Segunda Câmara Cível,


da qual era então seu Presidente o saudoso Desembargador Júlio Martins Porto. Reencontrei-
me, ali, com o eminente magistrado, já falecido também, Emilio Maya Gischkow, com quem
já trabalhara, ainda Promotor, na Comarca de Dom Pedrito, depois, como Procurador do
Estado, na Segunda Vara da Fazenda Pública.

Aí estive por três anos, talvez. Ao fim desse período, removi-me, atendendo ao apelo
da Presidência do Tribunal, para a Segunda Câmara Criminal, a cuja presidência cheguei e
mantive-me até me aposentar.
Antes, porém, eleito Vice-Presidente do Tribunal de Justiça, sendo Presidente o
falecido Desembargador Bonorino Butelli, respondi duas ou três vezes pela Presidência da
Corte.
Não lembro bem em que época, o Pleno do Tribunal elegeu-me para representá-lo no
Tribunal Regional Eleitoral, onde fui Vice-Presidente e Corregedor, mais tarde seu Presidente
por quatro anos.

Além das funções jurisdicionais, desempenhadas no âmbito das Câmaras Separadas e


Reunidas, exerci encargos administrativos por honrosa escolha dos membros integrantes do
Pleno, como a presidência da Comissão de Concursos, da Comissão de Biblioteca,
Jurisprudência e Informática.

Ai está contada minha passagem pela Magistratura do Rio Grande do Sul; começou e
terminou simples, tão simples como comecei e como existo ainda hoje.

Porto Alegre, maio de 2000.

Ladislau Fernando Röhnelt

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