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E DITORIAL

HOMENAGEM A BUSTOS RAMÍREZ


J EAN P IERRE M ATUS A CUÑA *

No dia 07 de agosto de 2008, o Direito Penal e a América Latina


perdem JUAN BUSTOS RAMÍREZ, uma das mais proeminentes vozes do
direito penal contemporâneo, colocando em luto penalistas de todo o
mundo. Em homenagem a esse grande homem, o Instituto Transdisciplinar
de Estudos Criminais gostaria do compartilhar com os nossos leitores
algumas memórias e registros do Professor chileno Dr. JEAN PIERRE MATUS
ACUÑA, recebidos em correspondência a nós encaminhada.
“Com profundo pesar, devo informar a todos os senhores que,
justamente no momento em que se concluía a edição do número 05
da nossa Revista (Revista de Política Criminal,
http://www.politicacriminal.cl), o Prof. Dr. JUAN BUSTOS
RAMÍREZ, membro do nosso comitê editorial, faleceu.
Há quase 20 anos conheci JUAN BUSTOS, quando organizava um
Seminário de Direito Penal na Universidade Católica do Chile.
Don JUAN, que possuía nessa data uma Cátedra de Direito Penal
na Universidade Autônoma de Barcelona e estava preparando o
seu retorno ao Chile, depois de quase duas décadas de exílio,
aceitou, com prazer, o convite que nós, estudantes, lhe fizemos,
permitindo-nos usar seu nome como ‘gancho’ para entusiasmar

* Diretor do Centro de Estudos de Direito Penal, Fac. Ciências Jurídicas e Sociais U. de Talca –
Santiago do Chile.

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outros painelistas e participando, ativamente, das discussões e


demais atividades que foram organizadas.
Desde então, apoiou-nos em nossa formação acadêmica sem
qualquer outro interesse, senão o de ajudar-nos. Facilitou o meu
ingresso aos Estudos de Doutorado na Universidade onde era
Catedrático, colocou-me em contato com o Prof. TIEDEMANN, em
Freiburg i. Br., para que eu tivesse a ‘necessária’ estadia na
Alemanha, visitando suas bibliotecas, e até nos permitiu arrendar
o seu apartamento em Barcelona, nos primeiros anos de nossa vida
no exterior.
Posteriormente, com a sua instalação definitiva no Chile e seu
ingresso na vida política, nossos contatos se fizeram cada vez mais
esporádicos. Porém, sempre que foi necessário, encontrou tempo
para participar das atividades acadêmicas a que lhe convidávamos
e seguiu dando-me o seu apoio pessoal, a ponto de, como ex-
bolsista da Fundação Alexander von Humboldt, e apesar de suas
múltiplas obrigações como deputado, escrever-me o parecer que
me permitiu retornar à Alemanha, até menos de um mês.
Então, pude comprovar novamente que a sua valia como
criminalista colocava-o entre os mais, senão o mais, importante
dogmático chileno da atualidade, apesar dos longos anos
transcorridos desde a sua definitiva instalação no Chile e a sua
entrada no Parlamento, o que necessariamente reduziu o tempo de
que ele dispunha para escrever textos científicos. Todavia,
permanece na memória dos cultores da disciplina a sua
internacionalmente reconhecida tradução do Direito Penal Alemão
de HANS WELZEL – em colaboração com outro recentemente
falecido professor, Don SERGIO YÁÑEZ –, que até hoje continua
sendo objeto de reimpressões; o seu Direito Penal Chileno, Parte
Especial, escrito com a colaboração de SERGIO POLITOFF e
FRANCISCO GRISOLÍA, no início dos anos 1970; os seus numerosos
artigos sobre a matéria, escritos nos anos do exílio na Europa e
publicados no Anuário de Direito Penal e Ciências Penais e nas
mais prestigiosas revistas espanholas e latino-americanas; o seu
próprio Manual de Direito Penal, com um tomo dedicado à Parte
Especial e outro à Geral, escrito na Espanha e sobre o direito penal

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espanhol, que teve várias edições e que, inclusive, atualmente, é


desenvolvido por outro chileno, formado por Don JUAN, e a quem
ajudou generosamente em sua carreira acadêmica, HERNÁN
HORMAZÁBAL M., hoje Catedrático em Girona (Espanha). Porém, a
sua atividade formadora como Catedrático não se limitava a
apoiar os chilenos que lhe solicitavam, como Mª INÉS HORVITZ e
HÉCTOR HERNÁNDEZ, entre os que eu conheço pessoalmente e hoje
encontram destaque em âmbito nacional, mas também a outros
colegas latino-americanos, como JULIO MAZUELOS do Peru;
ALEJANDRO SLOKAR, da Argentina; ODONE SANGUINÉ, do Brasil –
para nomear apenas aqueles que estiveram comigo em Barcelona –;
e os destacados professores espanhóis, como CELIA SUAY, JOSÉ CID
e a recentemente habilitada Catedrática ELENA LARRAURI.
Don JUAN mostrou a todos nós, com o seu rigor científico, as
suas extraordinárias publicações e a sua capacidade para
apreender e desenvolver idéias originais, qual era o verdadeiro
caminho da vida acadêmica. E mesmo que estejamos muito
distantes das metas que ele alcançou, muitos de nós lhe devem por
nos ter iniciado nesse caminho e todos nós lhe devemos o orgulho
que sentimos quando ouvimos falar, entre os principais
criminalistas do mundo, sobre as idéias desse nosso compatriota,
que já não são parte do ‘direito penal chileno’, mas sim patrimônio
da ciência penal internacional”1.

1 Tradução do espanhol de Fabio Roberto D’Avila.

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LAS RECIENTES REFORMAS PENALES
EN COLOMBIA: UN EJEMPLO DE
IRRACIONALIDAD LEGISLATIVA *
J UAN O BERTO S OTOMAYOR A COSTA **

1 – I NTRODUCCIÓN
Aproximarse a los problemas del derecho en América Latina supone casi
siempre una empresa difícil, por las dificultades que surgen al advertir sus
altos índices de ineficacia y la consiguiente brecha entre derecho y realidad1,
que en algún grado convierte al primero no en un hecho más o menos cierto
que acompaña la convivencia de un número importante de individuos sino
en un objetivo político a alcanzar, en un futuro que de acuerdo con los
vaivenes de los acontecimientos del presente se podrá visualizar más o
menos lejano o cercano pero siempre como un proyecto de futuro.
De otra parte, si bien puede admitirse la existencia de ciertas
características comunes al derecho en Latinoamérica, también es posible
encontrar diferencias importantes entre países o grupos de países, que
hacen difícilmente trasladables las perspectivas de un lugar a otro. En tal
sentido suele destacarse por su complejidad el caso colombiano, pues se
trata de un país en el que durante muchos años ha sido posible la
coexistencia – inclusive en las convulsionadas décadas del 70 y 80 – de altos

*
Este trabajo fue realizado en gran parte durante la estancia de investigación del autor en el Área de
Derecho penal de la Universidad de Málaga, financiada por el Ministerio de Educación y Ciencia
de España (Programa de Estancias de Profesores e Investigadores Extranjeros en régimen de año
sabático en España). En la recopilación legislativa el autor recibió la colaboración de Susana
Escobar Vélez, investigadora del Grupo de Estudios Penales de la Universidad EAFIT (Medellín,
Colombia).
** Universidad EAFIT Medellín, Colombia.
1 Al respecto, GARZÓN VALDÉS, E., “Las funciones del derecho en América Latina”, en Derecho, ética

y política, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1993.

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índices de violencia generalizada, con una tasa de crecimiento económico a


veces superiores a la media regional y la estabilidad del régimen político2.
En Colombia ha sido posible la coexistencia de una “confrontación
interna de larga duración”3 con el modelo constitucional del Estado de
Derecho, que le otorga al conflicto colombiano unas características
singulares. Como lo explica PÉREZ TORO, la pervivencia de la guerra
durante gran parte de la historia del país muestra hoy “un conflicto que se
desarrolla en un tiempo que no pareciera ser el suyo, pues si bien subsisten
evidentemente motivos aludidos que – suele plantearse – son propios de
otro tiempo (las causas remotas) y se mantiene la vía armada como método,
ambas circunstancias conviven con el ritmo de un mundo cambiante y
siempre diferente desde el punto de vista de grandes transformaciones
técnicas, culturales y poblacionales, y del ‘acercamiento’ – por lo menos
comunicacional – de las sociedades”4. De ahí que resulte válido entender
que en materia de derecho penal, como en tantos otros ámbitos de la vida
pública, Colombia vive de manera simultánea en varios siglos de la historia:
por un lado, le toca enfrentar los dilemas del presente y enfrentar los retos
que plantea el desarrollo tecnológico y la globalización económica. Pero, al
mismo tiempo, le corresponde resolver los problemas propios de
construcción del Estado, por lo tanto más cercanos a los vividos en Europa
durante los siglos XVI y XVII5.
Por momentos pareciera que no existe aún el Estado sino la guerra, dada
la incapacidad del primero para imponerse de forma coercitiva sobre al
poder económico y sobre la voluntad de lo individuos. Y por ello, desde
este punto de vista, el derecho (en especial el constitucional y el penal) se
muestra como un instrumento de la guerra o en el mejor de los casos como

2 Cfr. PALACIO, G. y ROJAS, F., “Empresarios de la cocaína, parainstitucionalidad y flexibilidad del


régimen político colombiano (narcotráfico y contrainsurgencia en Colombia)”, en PALACIO, G.
(Comp.), La irrupción del paraestado (ensayos sobre la crisis colombiana), Bogotá, ILSA-CEREC, 1991,
pp. 70-71.
3 PÉREZ TORO, W. F., “Guerra y delito en Colombia”, en EP, 2000 (16), p. 14.

4 PÉREZ TORO, W. F., “Guerra y delito…”, p. 15.


5 APONTE, A., “Derecho penal de enemigo vs derecho penal del ciudadano. El derecho penal de

emergencia en Colombia: entre la paz y la guerra”, en DE GIORGI, R. (a cura di): Il Diritto e la


differenza. Scritti in onore di Alessandro Baratta, LECCE, Pensa Multimedia, 2002, p. 257; en igual
dirección, PÉREZ TORO, W. F., “Guerra y delito…”, p. 14; SANTOS, B. de S. Y GARCÍA VILLEGAS, M.,
“Colombia: el revés del contrato social de la modernidad”, en SANTOS, B. de S. Y GARCÍA
VILLEGAS, M., El caleidoscopio de las justicias en Colombia, Tomo I, Bogotá, 2001, p. 37; UPRIMNY, R.,
“Las transformaciones de la administración de justicia en Colombia”, en SANTOS, B. de S. Y
GARCÍA VILLEGAS, M., El caleidoscopio…, Tomo I, p.312.

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expresión de los desesperados intentos estatales de lograr a toda costa el


monopolio de la coacción (que explica la permanente tendencia a establecer
excepciones a las garantías constitucionales). Lo paradójico es que a pesar
de lo anterior el derecho, como lo explica UPRIMNY, se manifiesta también
como parte de un proyecto de construcción de ciudadanía a partir de los
derechos fundamentales: “Estas lógicas en conflicto – estado de excepción y
proyecto de ciudadanía – tienen una incidencia directa en la justicia y
explican, tanto la tendencia a la sobre-criminalización y restricción de
garantías, como la despenalización y constitucionalización de derechos”6.
En otras palabras, el derecho penal en Colombia es un arma de guerra –
y en tal sentido es un derecho ilegítimo – que, como todas, se utiliza para
aniquilar o en todo caso vencer al adversario; pero también, al mismo
tiempo, es una herramienta necesaria en la construcción de un proyecto de
ciudadanía, en cuanto mecanismo de protección de los derechos del
individuo. Pero precisamente esta ambivalencia del derecho penal lo
convierte en una herramienta demasiado peligrosa, por los riesgos siempre
ciertos y latentes de manipulación.
Esta problematicidad y complejidad de la situación colombiana se refleja
directamente también, por supuesto, tanto en las cifras de criminalidad y
violencia existentes en el país como en la política legislativa penal, de
manera muy particular en las dos últimas décadas.

2 – L AS C IFRAS DE C RIMINALIDAD EN C OLOMBIA


La primera dificultad que surge al aproximarse a la compleja realidad
colombiana se presenta en algo aparentemente tan simple como la
determinación de aquello que debe entenderse por criminalidad, por cuanto
en algunas ocasiones las categorías penales se muestran insuficientes y a
veces hasta contraproducentes para abarcar algunos de los hechos que
suceden en Colombia. Por ejemplo, si alguien aprehende a una persona y
exige una suma de dinero por su liberación, se trata simplemente de una
conducta de secuestro extorsivo prevista en el art. 169 del CP; sin embargo,
cuando un grupo de rebeldes retiene a varios militares o policías después de
un combate, surge la duda de si el caso amerita el mismo tratamiento legal o
si por el contrario se trata de eventos que deberían ser abarcados por otro

6 UPRIMNY, R., “Las transformaciones…”, p. 312.

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tipo de categorías, como la toma de rehenes o prisioneros de guerra, por


ejemplo, propias del derecho internacional humanitario7.
Otra dificultad muy importante tiene que ver con la ausencia de
información estadística confiable. En un país que vive un largo conflicto
interno la información sobre la criminalidad – en tanto involucra al mismo
tiempo datos sobre la conflictiva realidad política nacional – ha adquirido
una importancia que va mucho más allá del necesario conocimiento de la
realidad a efectos de evaluar y ajustar las políticas estatales de acuerdo con
sus resultados efectivos. Muy por el contrario, en Colombia, por lo menos
en los gobiernos del presidente Uribe Vélez, las estadísticas sobre temas
relacionados con la seguridad deben pasar por un “Consejo de Seguridad”
antes de ser publicadas y presentadas a la opinión pública8. No debe
sorprender que luego más del 60% de la población de las más grandes
ciudades del país no confíe en los informes de seguridad9.
En principio los únicos datos generales disponibles acerca de la
extensión de la criminalidad en Colombia provienen de algunas encuestas
de victimización, entre ellas las oficiales realizadas por el DANE en 1985,
1991, 1995 y 2003 (esta última referida solo a las ciudades de Bogotá, Cali y
Medellín)10. Pese a las limitaciones de este tipo de estudios11, las encuestas de

7 Así, OROZCO ABAD, I., “Soberanía interior y garantismo: sobre la guerra y el derecho en
Colombia”, en SOTOMAYOR ACOSTA, J. O. (Coordinador), Garantismo y derecho penal, Bogotá,
Temis, 2006, pp. 37-56; en especial, pp. 50-54.
8 En septiembre de 2004 el entonces director del DANE, César Caballero, debió renunciar por

negarse a cumplir la orden gubernamental de no publicar, sin la presentación previa a un


“Consejo de Seguridad”, los resultados de una encuesta de victimización realizada en las
ciudades de Bogotá, Medellín y Cali. En el comunicado de prensa expedido por la presidencia de
la república a raíz de dicha renuncia, se explica: “el Gobierno Nacional adoptó como
procedimiento no divulgar información relacionada con el tema de seguridad a la opinión
pública, antes de ser conocida y analizada por el Consejo de Seguridad que dirige el Presidente de
la República y en el que participan el Ministro de Defensa, los Comandantes de las Fuerzas
Armadas, la Policía Nacional y el Director del DAS” [este comunicado se encuentra publicado en
http://www.presidencia.gov.co/sne/2004/septiembre/15/25152004.htm].
9 Véase en tal sentido, FSD, “Criminalidad y victimización en las ciudades más grandes de

Colombia”, Encuesta anual, noviembre de 2006, consultado en


http://www.seguridadydemocracia.org.
10 Cfr. DANE, “Encuesta de victimización”, 2003, en http://www.dane.gov.co. También cabe

mencionar las realizadas por FSD, “Criminalidad y victimización…” y los datos ofrecidos por
GORDON ATEHORTÚA, L. y KURY, H., “Victimización como hecho cotidiano. Un estudio
victimológico en Colombia”, en RDPC, 2006 (18), pp. 401-532.
11 Cfr. SOZZO, M., “¿Contando el delito? Análisis crítico y comparativo de las encuestas de

victimización en Argentina”, en Cartapacio, No, 5, Buenos Aires, 2003, pp. 1-143, consultado en:
http://www.cartapacio.edu.ar pp. 30 y ss.; SILVA GARCÍA, G. y PACHECO, I., “El crimen y la
justicia en Colombia según la misión Alesina”, en REI, 2001 (5), pp. 191-192; DÍEZ RIPOLLÉS, J. L. y

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victimización realizadas resultan suficientes al menos para constatar dos


hechos especialmente relevantes: en primer lugar, el bajísimo número de
denuncias, lo cual se corresponde con una valoración negativa tanto de la
policía como de la justicia penal en general12. De otra parte, también llama la
atención el alto porcentaje que los delitos contra el patrimonio económico –
en especial el hurto/robo – tienen en la percepción ciudadana de la
criminalidad: en las encuestas de 1985 y 1995 constituyen una proporción
superior al 90% del total de delitos percibidos13 y en la de 2003 (referida sólo
a Bogotá, Cali y Medellín) excede el 86%14. Por supuesto tales datos no
pueden entenderse como indicativos de la extensión de la criminalidad real
en el país15, pero sí de los hechos que la mayoría de la población sigue
identificando como delictivos, los cuales se corresponden con los delitos
tradicionales (homicidio, lesiones personales, secuestro, hurto, etc.),
quedando al margen el grupo de delitos que protegen bienes jurídicos
colectivos (socieconómicos, medioambientales, etc.) e inclusive hechos tan
graves como el desaparecimiento de personas, que no siempre es visto en sí

otros, Delincuencia y víctimas (Encuestas de victimización en Málaga), Valencia, Tirant lo Blanch,


1996, pp. 18-22.
12 Según el DANE, “Encuesta de victimización”, 2003, en Bogotá se abstiene de denunciar el 72,52%

de los ciudadanos afectados por alguna acción delictiva, en Medellín el 71,92% y en Cali el
84,65%; en Bogotá, el 43,05% del total de víctimas que no denunciaron explicaron que no lo
hicieron porque “las autoridades no hacen nada”, razón que alegó el 41,10 por ciento en Cali y el
23 por ciento en Medellín. Aún más, de conformidad con una anterior encuesta de hogares (1991),
aún frente a un delito tan grave como el homicidio, como comenta RUBIO, M., “Crimen con
misterio. La calidad de la información sobre criminalidad y violencia en Colombia”, Bogotá,
CEDE, Universidad de los Andes, 1998, p. 14 [consultado en: http://economia.uniandes.edu.co],
“más de la mitad de los hogares que habían sido víctimas manifestaron no haber hecho nada y
únicamente el 38% reportó haber puesto la respectiva denuncia”. Por supuesto de este hecho no
puede deducirse, como parece insinuar este autor, que el 62% de homicidios restante no llega a
conocimiento del sistema penal, pues bien se sabe que se trata de un delito investigable de oficio y
por las cifras que ofrece el INMLCF es de suponer que la mayoría de ellos al menos alcanza a ser
conocido por la fiscalía, así en la mayoría de casos el autor del hecho nunca llegue a ser conocido
y mucho menos procesado. El dato, sin embargo, sí resulta suficiente para indicar el grado de
desconfianza de la mayoría de los encuestados hacia el sistema judicial en general, así como
también la poca confiabilidad de los datos policiales sobre la criminalidad, los cuales suelen
reflejar sobre todo el número de denuncias recibidas, cosa que por demás en Colombia lo más
común es que se haga directamente en la fiscalía.
13 Ver RUBIO, M., “Crimen sin sumario. Análisis económico de la justicia penal colombiana”, Bogotá,

CEDE, Universidad de los Andes, 1998, pp. 14-18, en http://economia.uniandes.edu.co


[consultado el 27/06/2007].
14 Ver DANE, “Encuesta de victimización”, 2003, en http://www.dane.gov.co
15 En esta confusión parece incurrir RUBIO, M., “Crimen sin sumario…”, pp. 14 y ss.; un contundente

análisis crítico del manejo de datos por parte de este autor ha sido realizado por SILVA GARCÍA G.,
y Pacheco, I., “El crimen y la justicia…”, pp. 188-196. pp. 188-196.

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mismo como un delito16. Así mismo, en un país acostumbrado a una


permanente presencia militar en las calles y veredas no resulta descabellado
pensar que otra serie de conductas delictivas como la detención arbitraria o
el allanamiento ilegal tampoco resultan valoradas como delictivas por un
sector importante de la población17, amén de las conocidas falencias de las
encuestas de victimización en materia de delitos sexuales, delitos sin
víctima, etc.18
Ante tales dificultades, quizás sea preferible acudir a datos sectoriales
relacionados con algunas de las formas más graves de criminalidad, los
cuales suelen considerarse un poco más ajustados a la realidad, pues al fin y
al cabo se trata de delitos más visibles y de los que más han llamado la
atención sobre la realidad colombiana por los altísimos niveles alcanzados
en algunos momentos.
En el caso del homicidio se tienen como muy confiables19 las cifras
recopiladas por el Instituto Nacional de Medicina Legal y Ciencias Forenses,
según las cuales durante 2005 se presentaron 17.331 casos de posibles
homicidios dolosos, que representan un descenso de 1557 casos en
comparación con el año 2004 (es decir, 8.2%); ello significa para ese año una
tasa de homicidios equivalente a 38 casos por cada cien mil habitantes, que
representa también una disminución estadística significativa en
comparación con el año anterior, cuya tasa aproximada de homicidios
ascendió a 4220.
Según las estadísticas de la policía nacional21, la tasa de homicidios ha
tenido en los últimos años la evolución que se señala en la tabla 1.

16 Cfr. SILVA GARCÍA, G. y PACHECO, I., “El crimen y la justicia…”, p. 192.


17 Según estadísticas de la CCJ, “Colombia: 2002-2006: situación de derechos humanos y derecho
humanitario”, p. 4 [consultado en http://www.coljuristas.org], “Entre el 7 de agosto de 2002 y el
30 de junio de 2006, por lo menos 6.912 personas fueron detenidas arbitrariamente en Colombia
(cinco personas en promedio cada día)”.
18 SOZZO, M., “¿Contando el delito?..., pp. 29-35; Silva García, G. y Pacheco, I., “El crimen y la

justicia…”, pp. 191-192.


19 Así, Rubio, M., “Crimen con misterio…”, p. 6.
20 Ver INMLCF, “Homicidios. Colombia 2005”, en Forensis. Datos para la vida, Bogotá, 2005, pp. 53-

75. En valores porcentuales las cifras de homicidios de la policía para el año 2005 no difiere
mucho de las del INMLCF, aunque dicha diferencia fue mayor en el año 2004.; según los registros
policiales la tasa de homicidios durante 2005 se situó en 39 y la de 2004 en 45; cfr. Policía
Nacional, “Estadística delincuencia y contravencional”, RC, 2005 (48), pp. 98 y ss.
21 Policía Nacional, “Estadística delincuencial…”, p. 15; los datos correspondientes al año 2006 se

citan de acuerdo con la información policial recogida en http://www.eltiempo.com, julio 17 de


2007. Debe tenerse en cuenta que en las cifras anteriores no aparecen registradas las muertes
producidas en casos de “homicidios colectivos”, que la policía registra por aparte; en este tipo de

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Tabla 1: Homicidios 2000 – 2006

Año 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2000-


2006

Homicidios 26.540 27.840 28.837 23.523 20.167 18.111 17.479 162.497

Fuente: Policía Nacional


Como puede apreciarse, las cifras de muertes violentas presentan una
importante tendencia a la baja a partir de 2002, si bien conforme a las datos
más recientes la tendencia no parece seguir la misma línea (o al menos no en
la misma proporción) existente hasta 200522. Aún así, las cifras de muertes
violentas en Colombia se mantienen en niveles alarmantes comparadas con
las de otros países23.
Lo mismo cabría decir respecto de otras formas de criminalidad violenta,
si se analizan los datos disponibles sobre secuestros, desapariciones
forzadas y desplazamiento interno. En efecto, no es ningún secreto que
Colombia tiene la tasa de secuestros más alta del mundo y aunque las cifras
parecen indicar un significativo descenso de los niveles apreciables en el
período comprendido entre 1998 y 2002 (época de auge de la práctica de
secuestros masivos por parte de los grupos insurgentes), lo cierto del caso es
que según los propios datos oficiales, entre 2002 y 2006 se produjeron en
Colombia 7630 secuestros (ver tabla 2).

hechos, según la información policial, murieron en 2005 un total de 252 personas, frente a 263 que
lo hicieron en 2004 en las mismas circunstancias.
22 Según fuentes policiales citadas en http://www.eltiempo.com, julio 17 de 2007 a junio de 2007 se

tenía noticia de 94 homicidios más que en los primeros seis meses del 2006.
23 Cfr. PECAUT, D., “Presente, pasado y futuro de la violencia”, en AP, 1997 (30), p. 1; para el caso

europeo y en particular español, DÍEZ RIPOLLÉS, J. L., “Algunos rasgos de la delincuencia en


España a comienzos del siglo XXI”, en REIC, 2006 (4), p. 3, disponible en
http://www.criminologia.net.

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Tabla 2: Secuestros 2002 – 2006

Año 2002 2003 2004 2005 2006 2002-


2006

Secuestros 2.882 2.121 1.440 800 687 7.630


Fuente: Fondelibertad.

Las cifras de desaparecidos son igual de graves; los registros de


ASFADDES dan cuenta de 7136 desaparecidos en el período 1977-2004,
presentando en los últimos años la evolución que se evidencia en la tabla 3.

Tabla 3: Desparecidos 2000 – 2004

Año 2000 2001 2002 2003 2004 2000-


2004

Desaparecidos 767 1.609 1.362 1.189 148 5.075


Fuente: ASFADDES

Cabe aclarar que estos datos no excluyen una importante cifra negra,
pues en muchos lugares del país no funcionan oficinas del INMLCF y las
necropsias corren a cargo de médicos rurales, pero bien se sabe que no son
pocas las poblaciones colombianas que ni siquiera cuentan con este servicio.
Así mismo, no es descabellado pensar que en las zonas rurales la
confrontación interna produzca numerosos hechos que no son recogidos
por las estadísticas, no sólo por la razón antes mencionada sino, sobro todo,
porque los mismos se producen en zonas de fuerte presencia guerrillera o
paramilitar24; tal situación sólo recientemente ha comenzado a salir a la luz
pública, a raíz de las denuncias sobre la existencia de un número

24 Cfr. RUBIO, M., “Crimen con misterio…”, p. 25, nota 69. Así también lo resalta ASFADDES,
“Análisis Coyuntural. Estadísticas de la Desaparición Forzada en Colombia” [consultado en
www.asfaddes.org.co].

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incalculable de fosas comunes, que constituyen el retrato macabro de la


silenciosa guerra colombiana25.
El drama del desplazamiento forzado interno viene a ser otra prueba
fehaciente de la violencia en los campos colombianos; según ACNUR, “El
problema de los desplazados internos en Colombia es una de las situaciones
más graves del mundo. El Gobierno de Colombia estima que hay entre 2,5 y
3 millones de Desplazados Internos en el país, siendo 1.796.508 los
registrados en el Sistema Único de Registro (SUR), hasta el 30 de abril de
2006. Según datos de la Consultoría para los Derechos Humanos y el
Desplazamiento (CODHES) 3.662.842 personas han sido desplazadas por la
violencia hasta el 25 de octubre de 2005 y día a día esta cifra aumenta,
producto de la violencia política asociada al conflicto armado interno”26.
Si bien es cierto que la mayoría de homicidios no son atribuibles
directamente a la confrontación armada, no se puede negar su incidencia en
los índices de violencia en Colombia, ya que su valoración no se puede
restringir al número de muertes causadas por el enfrentamiento entre los
distintos actores armados, de por sí ya relevante27, sino que debe extenderse

25 Véase http://www.eltiempo.com, “Colombia busca a 10.000” muertos”, abril 24 de 2007; según el


informe de este diario, hay entre 10.000 y 31.000 personas en fosas comunes, “de las que no ha
quedado rastro después de los últimos años de guerra (el primer dato es de la Fiscalía, el segundo
es de la Comisión Colombiana de Juristas)... la Fiscalía ha recibido 3.710 denuncias de sitios en
donde hallarlas; pero la mayoría no se ha podido explorar por falta de recursos: se han
encontrado 533 cuerpos y lo más dramático es que solo 13 han sido identificados plenamente, es
decir, con ADN”.
26 Véase, http://www.acnur.org/crisis/colombia, donde se pueden consultar, además, cifras e

importantes documentos sobre el problema del desplazamiento interno en el país, entre ellos una
importante sentencia de la Corte Constitucional (T-025/2004), en la cual declara la situación de los
desplazados como un “estado de cosas inconstitucional”.
27 Conforme a los datos del INMLCF, “Colombia. Homicidios 2005”, p. 60, del total de 17.331

muertes violentas ocurridas en 2005, 2.004 son atribuibles de forma directa al conflicto armado
(enfrentamiento, acción ofensiva, actos de terrorismo, homicidio con fines políticos); no obstante,
el número de muertes sin conocimiento del móvil es muy alto (11.138), lo cual hace suponer que
las muertes directas atribuibles al conflicto armado sean incluso mayores. Para la CCJ, “Colombia:
2002-2006…”, pp. 1-2, entre julio de 2002 y julio de 2006, “se registraron 11.084 personas
asesinadas o desaparecidas por fuera de combate (o sea en su casa, en la calle o en su trabajo), por
violencia sociopolítica… Si se incluyen las personas que perdieron la vida en medio de combates,
el total de personas muertas o desaparecidas por violencia sociopolítica en el mismo período fue
de casi veinte mil personas: 19.875. Se registraron 8.791 personas que perdieron la vida en medio
de combates. Esto significa que en total durante el período en estudio el promedio de personas
muertas o desaparecidas por violencia sociopolítica fue de cerca de catorce personas cada día,
semejante al promedio diario registrado durante los seis años precedentes…”.

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también a las permanentes violaciones de derechos humanos28 y a todas


aquellas que podrían denominarse consecuencias indirectas (flujo de armas
de fuego entre la población, conformación de bandas de delincuencia
común, etc.) y de impacto espacial, como lo han señalado algunas
investigaciones29. También es indudable la influencia en estas cifras de la
criminalidad organizada derivada del tráfico de drogas y que en atención a
los recientes datos estadísticos parece reflejarse de manera especialmente
intensa en algunos municipios, incluidas sus capitales, de los
departamentos de Antioquia, Valle y Risaralda30. Aún más, la relación del
conflicto interno y la situación de violencia es aún mayor si a lo anterior se
suma el hecho de que tanto los grupos insurgentes como los paramilitares
acuden cada vez más al tráfico de drogas para financiar sus actividades; por
ello, como destaca PECAUT31, en la situación colombiana actual resulta muy
difícil trazar una frontera entre la violencia política y aquella que no lo es,
mas en todo caso se puede estimar que la violencia puesta en obra por los
protagonistas organizados constituye por lo menos el marco de la violencia
generalizada existente.
Como señalan algunos analistas, todas estas cifras corresponden a las de
un país en guerra32 (cualquiera sea el nombre que se le quiera dar). Por este
motivo, las cifras de criminalidad deben ser leídas con mucha cautela, pues
no sólo está siempre latente la cuestión de su confiabilidad, sino también el
riesgo de juicios precipitados sobre los éxitos o fracasos de determinados
programas o políticas. Si alguna enseñanza deja el largo conflicto
colombiano es que en no pocas ocasiones las cifras suelen obedecer más a
los vaivenes y lógicas propias de la confrontación (con sus ofensivas,
retiradas, treguas, diálogos, indultos, etc.) que a transformaciones reales en
el plano institucional.

28 Cfr. ACNUDHC, “Informe de la Alta Comisionada de las Naciones Unidas para los Derechos
Humanos sobre la situación de los derechos humanos en Colombia”, 2006, [consultado en
http://www.hchr.org.co], pp. 5 y ss.; también el informe de la CCJ, “Colombia: 2002-2006…”, pp.
1-13.
29 Cfr. SÁNCHEZ, F., DÍAZ, A. M. y FORMISANO, M., “Conflicto, violencia y actividad criminal en

Colombia: un análisis espacial”, Documento CEDE 2003-05, Bogotá, Universidad de los Andes,
2003 (consultado en http://economia.uniandes.edu.co), p. 34.
30 Cfr. datos del INMLCF, “Homicidios. Colombia 2005”, pp. 67-71. Esto también es destacado por

FRANCO Agudelo, S., “Una aproximación a los contextos explicativos de la violencia en


Colombia”, en Forensis. Datos para la vida, Bogotá, 2005, pp. 41-43.
31 PECAUT, D., “Presente, pasado y futuro…”, p. 1.
32 Así, RUBIO, M., “Crimen con misterio…”, p. 31.

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3 – L A C ALIDAD DE LA R ESPUESTA I NSTITUCIONAL


La problemática de la violencia en Colombia se torna aún más grave
cuando se tiene en cuenta la calidad de la respuesta institucional y muy
particularmente de la justicia penal, caracterizada por los elevados índices
de impunidad, inclusive en aquellos casos que se consideran de especial
gravedad, como el homicidio, el secuestro, la desaparición forzada, etc. En
efecto, pese a las dificultades que hacen que hoy sea casi imposible saber la
verdadera magnitud de la impunidad en Colombia33, los analistas coinciden
en que esta no sólo es muy alta sino persistente34. Para el caso del homicidio,
según RUBIO, “La probabilidad de que un homicidio sea condenado, del
11% en los sesentas apenas sobrepasa en la actualidad el 4%”35. Como es de
suponer, la situación no es más alentadora cuando se mira hacia el
secuestro, la desaparición forzada y otros hechos de similar gravedad36.
Lo anterior ha derivado en una profunda crisis del sistema de justicia
penal en Colombia, que por tal motivo se ha visto sometido en los últimos
años a permanentes reformas de muy diferentes signos, como se refleja con
claridad en la profusa producción legislativa de carácter penal que se
comentará más adelante.
Aunque los problemas son múltiples, lo primero que salta a la vista es
una clarísima falta de capacidad investigativa de la justicia penal, pues un
número importante de delitos no logran siquiera superar la fase de
investigación previa, inclusive tratándose del homicidio. Tal situación está
produciendo lo que con carácter general algunos denominan como proceso

33 RESTREPO, E. M. y MARTÍNEZ CUÉLLAR, M., “Impunidad penal: mitos y realidades”, Documento


CEDE 2004-4, Bogotá, Universidad de los Andes, 2004 [consultado en
http://economia.uniandes.edu.co]; UPRIMNY, R., “La justicia colombiana en la encrucijada”, p. 2,
en http://www.djs.org.co [consultado el 21/06/2007].
34 En general sobre el tema y desde distintos puntos de vista, entre otros, PECAUT, D., “Presente,

pasado y futuro…”, pp. 34-36; RESTREPO, E. M. y MARTÍNEZ CUÉLLAR, M., “Impunidad penal…”,
pássim; UPRIMNY R., “La justicia colombiana…”, p. 2; RUBIO, M, “Crimen sin sumario…”, pp. 11 y
ss.; RODRÍGUEZ, C., UPRIMNY, R. y GARCÍA VILLEGAS, M., “Entre el protagonismo y la rutina:
análisis sociojurídico de la justicia en Colombia”, pp. 44-49, en http://www.djs.org.co
[consultado 21/06/2007]; GAITÁN DAZA, F., “Multicausalidad, impunidad y violencia: una visión
alternativa”, en REI, 2001 (5), pp. 78-105.
35 RUBIO, M., “Crimen sin sumario…”, p. 40.
36 Cfr. RESTREPO, E. M., SÁNCHEZ TORRES, F. y MARTÍNEZ, M., “¿Impunidad o castigo? Análisis e

implicaciones de la investigación penal en secuestro, terrorismo y peculado”, Bogotá, Documento


CEDE 2004-09, Universidad de los Andes, 2004, pp. 1-39, en http://economia.uniandes.edu.co
[consultado el 27/06/2007]; CCJ, “Colombia 2002-2006…”, pp. 1-13; ACNUDHC, “Informe…”,
pp. 5-27.

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de trivialización del sistema judicial colombiano, que en el caso de la justicia


penal “significa la dedicación prioritaria del aparato judicial a casos de fácil
solución, esto es, aquellos en los que la identidad del acusado y las
circunstancias del delito están esclarecidas desde un comienzo y, por tanto,
dan generalmente lugar a resoluciones de acusación por parte de la Fiscalía
y a sentencias condenatorias por parte de los jueces penales. Entra tanto, el
sistema penal no dedica tiempo y recursos suficientes a la investigación y
condena de casos difíciles, esto es, precisamente aquellos que generan
mayor inestabilidad en la sociedad colombiana – v. gr. homicidios comunes,
esto es, los cometidos por criminales comunes o personas envueltas en
disputas personales, que (…) constituyen la gran mayoría de los homicidios
cometidos en Colombia. Esta tendencia es acentuada por la imposición de
criterios cuantitativos de eficiencia en la justicia penal”37.
La superación de esta situación se ha convertido en uno de los mayores
retos de la justicia penal, así como también uno de los temas más polémicos
entre los analistas, por cuanto algunos, como RUBIO, consideran que dicha
situación es atribuible en alguna medida a ciertos mecanismos de la
legislación procesal penal que desde el código de 1987, en su afán por
descongestionar los despachos judiciales, restringió la apertura de sumarios
a aquellos incidentes penales que tuvieran un sindicado conocido38. Al
respecto no parece haber muchas dudas en el sentido de que estas
disposiciones procesales se crearon fundamentalmente con el objetivo de
descongestionar los despachos judiciales (y posteriormente a la fiscalía),
frente a la gran cantidad de expedientes con sindicado N.N. Tampoco se
puede negar el sentido eficientista con el que se empezaron a utilizar dichos
criterios, excluyendo el número de procesos “pendientes” para mostrar una
supuesta mayor eficiencia del sistema penal y de alguna manera ocultar su
inoperancia investigativa39.
Al margen de tan burda maniobra, salta a la vista que no es este tampoco
el problema de fondo; al fin y al cabo dicho mecanismo lo único que hace es

37 RODRÍGUEZ, C., UPRIMNY, R. y GARCÍA VILLEGAS, M., “Entre el protagonismo y la rutina…”, pp.
48-49. Para SILVA GARCÍA, G. y PACHECO, I., “El crimen y la justicia…”, pp. 196-197, no es cierto
“que los delitos menores sean los más fáciles y que los graves (como el homicidio) sean más
difíciles. La dificultad no depende del tipo de infracción sino de los rastros del delito y de sus
circunstancias específicas, de la posibilidad de probar los hechos y de la acción de los sujetos
procesales”.
38 RUBIO, M., “Crimen sin sumario…”, p. 22. Críticos de los planteamientos de este autor, SILVA

GARCÍA, G. y PACHECO, I., “El crimen y la justicia…”, pp. 197.


39 Ello lo resalta también RUBIO, M., “Crimen sin sumario…”, pp. 20-26.

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trasladar la congestión de los despachos judiciales y de la fiscalía a la policía


judicial y a las unidades de investigación previa, aunque ciertamente con la
ganancia para la imagen del sistema de que la actividad de estas últimas
instancias no genera cifras negativas. Pero por supuesto la acumulación de
investigaciones previas y por tanto el número de delitos que la justicia penal
no logra esclarecer continúan, razón por la cual el sistema cada cierto
tiempo se deshace de los mismos mediante la expedición de reglas
especiales de prescripción40.
El problema de fondo lo constituye en definitiva la precaria capacidad
investigativa del sistema judicial, que tarde o temprano siempre se hace
visible, independientemente del momento procesal o preprocesal en que
ello ocurra. Y dicha debilidad investigativa es la que en realidad explica la
evolución reciente del sistema penal colombiano, tanto en una perspectiva
funcional como formal. Por ejemplo, revela la deficiencia anotada antes en
el sentido de que la justicia penal sólo parece funcionar en aquellos casos de
muy pocas exigencias probatorias (tal como sucede en los casos de
flagrancia y del pequeño comercio callejero de drogas, lesiones y homicidios
en accidentes de tránsito, etc.), o de cierta clase de delitos en los que el
imputado es identificado desde un comienzo (como sucede en la
inasistencia alimentaria, violencia intrafamiliar, etc.). Por el contrario, los
casos delincuenciales en los que se desconoce al posible autor difícilmente
llegan a ser resueltos, independientemente de la gravedad del delito.
Lo más grave es que también en el plano formal el sistema se ha ido
acomodando a la situación denunciada y poco a poco se han comenzado a
introducir mecanismos legales que intentan compensar el déficit de
investigación existente con beneficios por confesión, sentencia anticipada (o
aceptación de cargos), negociación de penas, al tiempo que crece la
utilización indiscriminada del sistema de las recompensas. De esta manera
se ha ido institucionalizando un sistema procesal penal de corte eficientista,
que a su vez está generando una negativa influencia en el derecho penal
sustantivo y a lo que mucho parecen estar contribuyendo las recientes
reformas procesales, como se comentará más adelante.

40 La más reciente fue introducida por el art. 531 transitorio del nuevo código de procedimiento
penal (Ley 906/2004), que prevé no sólo la reducción en una cuarta parte de los términos de
prescripción para todos los hechos ocurridos antes de la entrada en vigencia de dicho código, sino
la prescripción de las investigaciones previas (con algunas excepciones que no incluyen el
homicidio simple) con más de cuatro años.

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Lo que no resulta correcto es atribuir estas dificultades a un asunto de


mera eficiencia del sistema penal, que podría entonces subsanarse con el
aumento de la planta de personal de la fiscalía; y mucho menos a un vicio
formal sobre la apertura o no de sumarios, solucionable con un cambio de
legislación41. En ambos casos, se tratan como causas los que parecen más
bien efectos de la grave crisis de la justicia penal colombiana, pues se
desconoce la incidencia de la confrontación interna y de una realidad que
no se ha querido asumir: que “la soberanía ha permanecido en vilo, en
disputa por largos períodos. Es decir, se mantienen por tiempo indefinido
los estados de guerra, permitiendo que en varias regiones del territorio
nacional se configuren órdenes alternativos de facto con pretensiones
también soberanas. En estos espacios se definen formas particulares y no
convencionales de hacer y representar la política, de usar los recursos
colectivos y de fuerza; se trazan fronteras y se delimitan territorios
exclusivos; se instalan autoridades y mandos alternativos; se establecen
circuitos de poder a través de los cuales se mantiene, en los espacios
controlados de esta manera, la capacidad para tomar decisiones soberanas:
desplazar población no confiable y concitar obediencia y acato de quienes
allí residen, bien sean estos ciudadanos corrientes o representantes y
administradores del poder público”42.
En consecuencia, frente a ciertos comportamientos de los grupos
involucrados en el conflicto armado no se trata muchas veces ni siquiera de
dificultades para identificar a los autores, pues algunos hechos son
reivindicados por grupos o personas que por lo general tienen en su contra
órdenes de captura vigentes. Que la mayoría de las veces dichas capturas no
sea posible cumplirlas en la práctica no puede atribuirse a deficiencias de la
legislación o la estructura judicial del país, pues aunque parezca demasiado
obvio es preciso recordar que las indagaciones para revelar la identidad de
los posibles delincuentes o para proceder a una captura requieren más de la
actividad policial que de la judicial43. Pero aún más, en Colombia ni siquiera
la actividad policial ordinaria se muestra eficaz en tal labor y de ahí la
tendencia a su militarización y la permanente pretensión – hasta ahora sin

41Esta parece ser sin embargo la posición de RUBIO, M., “Crimen sin sumario…”, pp. 37-45.
42 URIBE DE HINCAPIÉ, M. T., “Las soberanías en vilo en un contexto de guerra y paz”, en EP, 1998
(13), p. 19.
43 SILVA GARCÍA, G., “Una revisión del análisis económico del derecho. Una lectura crítica a

propósito de la obra Crimen e Impunidad”, en REI, 2000 (2), p. 191.

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éxito – de otorgarle funciones de policía judicial a las fuerzas militares, que


con frecuencia ha convertido a la propia justicia penal en objeto de control44.
Al no reconocerse la naturaleza del conflicto, de forma equivocada se ha
buscado una solución jurídico-penal al problema de la guerra, con todas las
consecuencias negativas que ello representa, tanto desde el punto de vista
del conflicto (que por supuesto no puede ser resuelto) como de la justicia
penal, que termina utilizada como instrumento de guerra. Esta situación se
ha hecho más compleja en los últimos años a consecuencia de la
redefinición de que ha sido objeto el delincuente político en el país, que de
guerrillero rebelde ha pasado a ser considerado terrorista y en últimas un
delincuente común perteneciente al crimen organizado45, que ha implicado
el traslado del problema de la guerra al derecho penal, ya no por vía de la
excepción sino del derecho ordinario46. En estas condiciones, la policía se
muestra inoperante en su función principal de prevención y control de la
criminalidad, porque preparados para la lucha contrainsurgente y la
persecución de las grandes mafias del narcotráfico, los órganos de
investigación policial resultan muy poco eficaces en la protección de los
ciudadanos y en la investigación de los delitos47.
Estas circunstancias no hacen más que profundizar la crisis del sistema
de justicia penal, puesto que sus niveles de eficiencia no mejoran pese a los
esfuerzos reformistas y todos los recursos invertidos; y porque orientada de
forma prioritaria a reafirmar el poder estatal frente a quienes lo cuestionan,
la justicia penal abandona sus propias funciones y por ello choca
constantemente con el modelo constitucional, lo que de alguna manera ha
propiciado el protagonismo de la justicia constitucional en Colombia.

44 De lo cual ilustra el dramático caso de La Rochela; sobre ello, SUÁREZ NIÑO, A., “Colombia: la
masacre de la Rochela y la justicia interamericana”, en JD, 2007 (58), pp. 124-136.
45 Cfr. OROZCO ABAD, I., Combatientes, rebeldes y terroristas. Guerra y derecho en Colombia,

Bogotá, Temis – IEPRI, 1992.


46 Al respecto, APONTE, A., Guerra y derecho penal de enemigo. Reflexión crítica sobre el eficientismo penal

de enemigo, Bogotá, Ibáñez, 2006, pp. 370-424; sobre la evolución legislativa en esta materia véase
también a PÉREZ TORO, W. F., VANEGAS YEPES, A. L. y ALVAREZ MARTÍNEZ, C. M., Estado de derecho
y sistema penal (la emergencia permanente de la reacción penal en Colombia), Medellín, Diké e Instituto
de Estudios Políticos de la Universidad de Antioquia, 1997, pp. 53 y ss.
47 Al respecto, APONTE, A., Guerra y derecho penal de enemigo…pp. 486-519. Destaca la militarización y

deficiencias de la policía colombiana, GUERRERO PERALTA, O. J., “La policía en el Estado de


Derecho latinoamericano: el caso Colombia”, en AMBOS, K., GÓMEZ COLOMER, J. L. y VOGLER, R.
(editores), La policía en los estados de derecho latinoamericanos: un proyecto internacional de
investigación, BOGOTÁ, Gustavo Ibáñez, 2003, pp. 195-237; también, GORDON ATEHORTÚA, L. y
Kury, H., “Victimización como hecho cotidiano…”, pp. 403-407.

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4 – R EFORMAS L EGALES , D EBILIDAD P OLÍTICA Y


P ROTAGONISMO J UDICIAL
Ante una confrontación armada interna tan larga que sigue aún hoy
desangrando el país con su larga estela de muertes, secuestros,
desaparecidos, desplazados, etc.; ante una compleja realidad social que
genera una gran masa de excluidos y unos altos índices de criminalidad
violenta atribuibles a las mafias del narcotráfico y la delincuencia común; y
ante los pobres resultados del sistema de justicia penal, el Estado ha optado
por la vía de la reformas legales como solución, como si la ley tuviera la
fuerza suficiente para transformar por sí sola la realidad que pretende
regular. El número de reformas del sistema de justicia penal en los últimos
años ha sido de tal magnitud (en calidad y cantidad) que raya en el
paroxismo. Para sólo dar unos cuantos ejemplos suficientes para
dimensionar el problema, en los últimos veinte años en Colombia han
regido cuatro códigos de procedimiento penal (decreto 050/1987, decreto
2700/1991, ley 600/2000 y ley 906/2004), dos códigos penales (decreto
100/1980 y ley 599/2000), dos códigos de menores (decreto 2737/1989 y ley
1098/2006), sin incluir las innumerables reformas parciales. Y en general,
sólo de 2000 a 2006 se expidieron más de cincuenta leyes penales,
incluyendo los convenios y protocolos internacionales relacionados con la
materia48.

48 En los últimos años Colombia ha incorporado a su ordenamiento jurídico: la Convención sobre la


prohibición del empleo, almacenamiento, producción y transferencia de minas antipersonal y
sobre su destrucción (ley 554/2000); Convención Interamericana sobre asistencia mutua en
materia penal (ley 636/2001); Convención Interamericana sobre Desaparición Forzada de
Personas (ley 707/2002); Convención Interamericana contra la fabricación y el tráfico ilícitos de
armas de fuego, municiones, explosivos y otros materiales relacionados (ley 737/2002); Estatuto
de Roma de la Corte Penal Internacional (ley 742/2002); Protocolo para la Represión de Actos
ilícitos de violencia en los aeropuertos que presten servicio a la aviación civil internacional (ley
764/2002); Protocolo Facultativo de la Convención sobre los Derechos del Niño relativo a la venta
de niños, la prostitución infantil y la utilización de los niños en la pornografía (ley 765/2002);
Convención de las Naciones Unidas contra la Delincuencia Organizada Transnacional y el
Protocolo para Prevenir, Reprimir y sancionar la Trata de Personas, especialmente Mujeres y
Niños, que complementa la Convención de las Naciones Unidas contra la Delincuencia
Organizada Transnacional, (ley 800/2003); Convenio Internacional para la Represión de los
Atentados Terroristas Cometidos con Bombas (ley 804/2003); Convenio Internacional para la
Represión de la Financiación del Terrorismo (Ley 808/2003); Convenio para la Represión de Actos
Ilícitos contra la Seguridad de la Navegación Marítima (ley 830/2003); Convención Internacional
Contra la Toma de Rehenes (ley 837/2003); Convención de las Naciones Unidas contra la
corrupción (ley 970/2005); Convenio sobre blanqueo, detección, embargo y confiscación de los
productos de un delito (ley 1017/2006); Convención Interamericana contra el Terrorismo (ley
1108/2006).

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Este hecho es un simple reflejo de la crisis de gobernabilidad que el país


enfrenta en los últimos años49 y por ello ilustra al mismo tiempo el déficit de
legitimación del sistema político colombiano, reflejado en el paulatino
deterioro de los partidos políticos en razón de su desideologización,
burocratización y corrupción, que los ha desconectado por completo de la
sociedad. El ingreso de dinero de las mafias del narcotráfico a la campaña
del luego presidente Samper y los denunciados vínculos de algunos
congresistas con grupos paramilitares constituyen sólo los escándalos más
relevantes de un sistema político que ha perdido buena parte de su
credibilidad ante la opinión pública.
El fuerte presidencialismo colombiano ha convertido al Congreso de la
república en un simple tramitador de las propuestas gubernamentales, sin
que hasta el momento haya sido posible construir una oposición que lleve a
cabo un efectivo control político. Cuando no es que buscando congraciarse
con una sociedad cada vez menos identificada con el sistema político en
general y los partidos en particular, los políticos colombianos se dedican a
presentar proyectos y a aprobar leyes que consideren rentables ante una
indiferente opinión pública, entre las cuales las de contenido penal suelen
ser siempre las favoritas.
No sorprende entonces que este deterioro de la política coincida con una
época caracterizada por un elevado protagonismo judicial y muy
particularmente de la justicia constitucional50. Protagonismo que se atribuye
también a la expedición de la Constitución de 1991, que no sólo amplió de
forma considerable el catálogo de derechos sino que creó la denominada
acción de tutela, mecanismo que permite a cualquier persona solicitar a los
jueces la protección de sus derechos fundamentales. Esta Constitución
reafirmó al mismo tiempo un sistema difuso y público, ampliamente
democrático, de control constitucional, que permite a los ciudadanos
demandar ante la Corte Constitucional la inconstitucionalidad de una ley,
situación que ha llevado al máximo tribunal de lo constitucional a participar
activamente en la configuración del modelo de justicia existente, con todas
las consecuencias positivas y negativas que ello suele acarrear.

49 Cfr. RODRÍGUEZ, C., UPRIMNY, R. y GARCÍA VILLEGAS, M., “Entre el protagonismo y la rutina…”,
pp. 7-9; URIBE DE HINCAPIÉ, M. T., “Crisis política y gobernabilidad en Colombia 1980-1995”, en
EP, 1996 (7/8), p. 39-59; OCAMPO, J. A., “Economía, conflicto y gobernabilidad en Colombia”, en
EC, 2004 (302), pp. 25-49.
50 Sobre el tema, UPRIMNY, R. “La justicia colombiana…”, pp. 1-6; RODRÍGUEZ, C., UPRIMNY, R. y

GARCÍA VILLEGAS, M., “Entre el protagonismo y la rutina…”, pp. 24-33.

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El balance de la jurisprudencia constitucional en esta materia es sin


embargo contradictorio, pues en lo que toca estrictamente con el tema
penal, la Corte Constitucional ha defendido tanto posiciones de defensa de
las garantías penales fundamentales51, como también muchas otras veces ha
asumido posiciones totalmente contrarias, sobre todo cuando se trata de
leyes penales expedidas con fines promocionales o que tienen que ver con el
control del orden público o la criminalidad organizada, materias en las
cuales ha sido ampliamente generosa con el poder punitivo52. Mas en todo
caso, bien a través del control constitucional o de la revisión de acciones de
tutela, lo cierto es que a la Corte Constitucional le ha correspondido
pronunciarse de forma permanente sobre un número tal de asuntos que
tocan con la interpretación de las normas penales, que no resulta exagerado
afirmar que en Colombia no se puede conocer hoy en día a cabalidad la
legislación penal vigente prescindiendo de la jurisprudencia constitucional.
Este protagonismo judicial sucede en una realidad especialmente
problemática como la colombiana y en momentos de un creciente desdén de
los ciudadanos hacia la política, que ha conducido a ciertos sectores sociales

51 Entre otras, las sentencias sobre la despenalización del consumo de drogas (C-221/1994), la
permisión de algunos casos de eutanasia (C-239/1997), la defensa técnica (C-049/1996), la
limitación de la detención preventiva (C-774/2001) y más recientemente la admisión de algunos
supuestos de justificación del aborto (C-355/2006). Los fallos más trascendentales de los últimos
años han sido la declaración de inconstitucionalidad de la ley 684/2001 (“Estatuto para la
seguridad y defensa nacional”) y del acto legislativo 02/2003 (“Estatuto antiterrorista”), mediante
lo cuales se pretendió imponer un “estado de excepción” permanente, lo que de hecho implicaba
un cambio en el modelo de Estado (sentencias C-251/2002 y C-816/2004, respectivamente). Así
mismo debe mencionarse la sentencia C-370/2006, que limitó los alcances de la denominada “ley
de justicia y paz” (ley 975/2005).
52 También sólo a manera de ejemplo, la Corte Constitucional declaró ajustadas a la Constitución las

penas de 60 años de prisión (C-565/1993); la conversión en ordinaria y permanente de buena


parte de la legislación dictada en vigencia del estado de sitio conforme a la Constitución anterior,
entre otras la que permitió en su momento la existencia de “jueces sin rostro” (C-053/1993); la
legalización de las “cooperativas” de seguridad privada (C-572/1997); el disparate dogmático y
constitucional que supone el delito de “enriquecimiento ilícito de particulares” (C-319/1996), etc.
Un amplio análisis de la jurisprudencia de la Corte Constitucional en materia penal puede verse
en OROZCO ABAD, I. y GÓMEZ ALBARELLO, J. G., Los peligros del nuevo constitucionalismo en materia
criminal, Bogotá, IEPRI – Ministerio de Justicia y del Derecho, 1997; además, LOPERA MESA, G. P.,
“El principio de proporcionalidad en el control de constitucionalidad de las leyes penales
sustantivas (Una aproximación a su empleo en la jurisprudencia constitucional colombiana)”, en
NFP, 2005 (67), pp. 13-63; APONTE, A., Guerra y derecho penal de enemigo…, pp. 523-570; REYES
CUARTAS, J. F., “El papel de la Corte Constitucional en la protección de las garantías penales en
Colombia”, en SOTOMAYOR ACOSTA, J. O. (Coordinador), Garantismo y derecho penal, pp. 181-196;
CALLE CALDERÓN, A. L., “La Corte Constitucional y las garantías penales”, en SOTOMAYOR
ACOSTA, J. O. (Coordinador), Garantismo y derecho penal, pp. 217-222.

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a esperar y a veces a exigir del poder judicial respuestas a problemas cuya


solución normalmente corresponde al plano de la política53. Y dado el
compromiso de un sector de la judicatura nacional con la defensa de los
derechos ciudadanos, lo anterior ha derivado, como explica UPRIMNY, en
que “el aparato de justicia, que no tiene origen popular, sea a veces
percibido como más democrático que los órganos políticos elegidos por
voto, con lo cual ha operado un cierto desplazamiento, bastante paradójico,
de la legitimidad democrática del sistema político al sistema judicial”54.

5 – O RIENTACIÓN P OLÍTICO C RIMINAL Y R ASGOS


I DEOLÓGICOS DE L AS R ECIENTES R EFORMAS P ENALES
La alta complejidad y conflictividad de la realidad colombiana se
evidencia en una legislación contradictoria y de muy variado contenido,
reflejo de la falta de consenso en torno a la orientación del sistema penal
colombiano55. Ello supone una dificultad adicional al momento de valorar la
profusa legislación penal colombiana, pues son pocas las leyes que pueden
ser asignadas de manera fácil o en su integridad a un determinado modelo
político criminal. Lo más usual, sobre todo cuando se trata de códigos o de
leyes de amplia cobertura, es que confluyan diferentes corrientes
ideológicas y políticas, dejando de lado, claro está, los fines manifiestos de
las reformas, casi nunca coincidentes con aquellos que emergen una vez se
analiza su contenido. No obstante y sólo a efectos de ofrecer un panorama
global sobre las leyes más recientes, se pueden destacar algunas tendencias
orientadoras del derecho penal actual.
a. Actualización Legislativa
La primera tendencia la integran aquellas leyes orientadas a la
actualización legislativa, entre las que habría que ubicar en primer lugar las
diferentes codificaciones. Desde 2000 se han expedido en el país un código
penal (ley 599/2000), dos códigos de procedimiento penal (ley 600/2000 y
ley 906/2004) y el código de la infancia y la adolescencia (ley 1098/2006).
También habría que incluir en esta misma orientación a la ley reguladora

53 UPRIMNY, “La justicia colombiana…”, pp. 5-6.


54 UPRIMNY, “La justicia colombiana…”, p. 6.
55 UPRIMNY, “La justicia colombiana…”, p. 5; en general, pp. 1-6; de igual opinión, APONTE, A.,

Guerra y derecho penal de enemigo…, p. 646.

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del habeas corpus (ley 1095/2006)56 y algunas cuantas leyes que reformaron el
CP, como el art. 42 de la ley 633/2000, que mantuvo la vigencia después de
la expedición del nuevo CP de la exención de responsabilidad penal por el
pago o acuerdo de pago de las sumas adeudadas por concepto de IVA o
retención en la fuente, a su vez reformado por el 21 de ley 1066/2006; la ley
685/2001 (código de minas), en cuyos arts. 159 a 165 se amplían los
supuestos del delito de explotación de yacimiento minero y otros materiales
(actual art. 338 CP) y se crea una pena accesoria de inhabilidad especial; la
ley 747/2002 que modificó sustancialmente el delito de trata de personas
(ya no restringido a la prostitución); y finalmente la ley 750/2002, que
consagra la prisión domiciliaria y el trabajo comunitario para la “mujer
cabeza de familia”57.
1. El “Código Penal de La Constitución” (ley 599/2000)
El CP de 2000 surgió inicialmente de la necesidad de unificar la
legislación penal, ante la gran cantidad de leyes especiales y
complementarias del CP de 1980 hasta entonces vigentes58. No obstante, el
proyecto presentado por el fiscal general de la nación no se circunscribió a
simplemente recopilar la dispersa legislación existente sino que introdujo
importantes modificaciones tanto en la parte general como especial,
argumentando fundamentalmente la necesidad adecuar la legislación penal
a los postulados de la Constitución de 1991 y a las “necesidades de
modernización y adecuación de la legislación para una sociedad cambiante
que ha evolucionado considerablemente desde la década del ochenta”59. Y
aunque en ningún momento se explicitaron los artículos del CP anterior
considerados contrarios a la nueva carta constitucional o se expusieron las
transformaciones sociales que ameritaban la modificación de las normas

56 La acción de habeas corpus fue regulada en el CPP de 2000, en sus arts. 4 y 382 a 389. No obstante,
dichos artículos fueron declarados inconstitucionales mediante la sentencia C-760/2001, por
considerar la Corte Constitucional que dicha acción debía ser objeto de ley estatutaria.
57 Dado que la ley justificaba dicha medida en la protección de la familia y muy en especial de los

hijos menores de edad, la Corte Constitucional la declaró exequible (C-184/2003), “en el


entendido de que, cuando se cumplan los requisitos establecidos en la ley, el derecho podrá ser
concedido por el juez a los hombres que, de hecho, se encuentren en la misma situación que una
mujer cabeza de familia, para proteger, en las circunstancias específicas del caso, el interés superior
del hijo menor o del hijo impedido”.
58 Sobre la evolución de la legislación penal en Colombia véase a VELÁSQUEZ, F., Manual de derecho

penal, parte general, 3ª edición, Medellín, Comlibros, 2007, pp. 193-205.


59 “Exposición de motivos”, en LÓPEZ MORALES, J., Antecedentes del nuevo Código Penal, Bogotá,

Editorial Doctrina y Ley, 2000, p. 11.


Gaceta del Congreso, No. 139, Bogotá, 1998.

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penales, lo cierto del caso fue que se presentó y aprobó, casi sin discusión
alguna60.
En general puede decirse que se trata de un código ecléctico, tanto en su
orientación político criminal como en su parte dogmática, aunque con un
predominio, en el primer caso, de una concepción ampliamente
intervencionista en materia penal y con una fuerte presencia de las
funciones simbólicas del derecho penal. Sobresale también su excesivo
tecnicismo, a lo cual suma una muy descuidada redacción, propia de la
forma improvisada como se elaboró61.
a) En lo tocante a la estructura del delito, se reformularon muchos de los
conceptos centrales de la teoría del delito (error, autoría, participación,
omisión impropia, dolo eventual, culpa, inimputabilidad, comunicabilidad
de circunstancias, entre otros)62, a veces de forma innecesaria y casi siempre
de espaldas a los desarrollos de la propia doctrina nacional63, hasta el punto
que algunos de los cambios y normas introducidos parecieran orientarse
más a zanjar debates sobre la teoría del delito que a resolver problemas
concretos de la aplicación de la ley colombiana.
b) Respecto de la parte especial, pese a que supuestamente la tipificación
de conductas se hizo consultando el principio de intervención mínima64, el

60 Un análisis crítico de la génesis y tramitación de la reforma emprendida por el entonces fiscal


general ALFONSO GÓMEZ MÉNDEZ, que incluyó la propuesta de tres códigos (penal, procedimiento
y ejecución penal, aunque finalmente este último no alcanzó a aprobarse), en GROSSO GARCÍA, M.
S., La reforma del sistema penal colombiano, Bogotá, Gustavo Ibáñez, 1999.
61 Así también lo destaca, VELÁSQUEZ, F., Manual…, p. 204.
62 Sobre algunas de las más importantes modificaciones de la parte general, desde distintos puntos

de vista, Procuraduría General de la Nación, La reforma al sistema penal, Bogotá, 1999; VELÁSQUEZ,
F., “La teoría de la conducta punible en el nuevo código penal”, en NFP, 2000 (63), pp. 15 y ss.; el
mismo, “La teoría del error en el proyecto de código penal colombiano de 1998”, en ARROYO
ZAPATERO, L. y BERDUGO GÓMEZ DE LA TORRE, I. (Directores), Homenaje al Dr. Marino Barbero
Santos. In Memoriam, Cuenca, U. de Castilla-La Mancha y U. de Salamanca, 2001, pp. 1375-1387;
CADAVID QUINTERO, A., “El delito imprudente en el proyecto de reforma a la legislación penal”,
en NFP, 1999 (61), pp. 57-87; GÓMEZ PAVAJEAU, C. A., Estudios de dogmática en el nuevo código penal,
Bogotá, Gustavo Ibáñez, 2002; DÍAZ Y GARCÍA CONLLEDO, M., “La problemática de la
codelincuencia en el código penal colombiano (complicidad y acuerdo previo; el ‘interviniente’
del art. 30, párrafo final)”, en DPC, 2005 (77) pp. 57 a 61; ARIAS HOLGUÍN, D. P. y SOTOMAYOR
ACOSTA, J. O., “Consideraciones críticas sobre la recepción en Colombia de la teoría de los delitos
de infracción del deber”, en DPCRI, 2006 (15), pp. 133-190; y ESCOBAR VÉLEZ, S., El “actuar en
lugar de otro” en el código penal colombiano (Aproximación al fundamento, ámbito de aplicación
y problemas más relevantes de la fórmula del art. 29 inciso 3), Cuadernos de Investigación, No.
44, Medellín, Universidad EAFIT, 2006.
63 De otra opinión, VELÁSQUEZ, F., “La teoría de la conducta punible…”, p. 30.
64 “Exposición de motivos”, p. 13.

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CP refleja una tendencia expansiva importante, que se concreta en la


creación de alrededor de sesenta nuevos delitos, así como la conversión en
delitos de más o menos unas quince conductas antes tratadas como
contravenciones (o faltas); sin contar como tales a una gran cantidad de
delitos que se encontraban dispersos en la legislación penal complementaria
y que fueron incorporados también al código penal prácticamente sin
excepción (incluyendo muchos provenientes de la anterior legislación de
orden público).
c) El CP de 2000 también se caracteriza por la dureza de su sistema de
sanciones65, pues si bien rebajó en su momento la pena máxima de prisión a
los 40 años, aumentó al mismo tiempo la pena mínima de un buen número
de delitos y extendió de forma generalizada la pena de multa, en la mayoría
de casos como complementaria de la prisión y de montos muchas veces
impagables. A ello se suma un nuevo sistema de determinación de la pena
que tiende a la imposición del grado máximo66.
2. Las Reformas al Proceso Penal (leyes 600/2000 y 906/2004)
En la línea de las reformas realizadas en alguna medida con una
perspectiva de actualización legislativa debe mencionarse la expedición de
los códigos de procedimiento penal. El CPP de 2000 (ley 600) se presentó
por el entonces fiscal general de la nación Alfonso Gómez Méndez junto con
el actual CP y el fallido proyecto de código de ejecución de penas, por lo
que surge en el mismo contexto del ya comentado estatuto sustantivo. Por
su parte la ley 906/2004 fue aprobada a partir de una previa y quizás
innecesaria67 reforma constitucional (acto legislativo 03/2002), que instauró
un sistema de tendencia acusatoria y oral. Las razones por las cuales se
presentó a consideración del Congreso una reforma integral al
procedimiento penal a menos de un año de la entrada en vigencia del
código de procedimiento penal anterior son un verdadero misterio, que al
parecer tiene que ver con razones partidistas y rivalidades personales entre
los fiscales que lideraron ambas propuestas y no tanto con razones de

65En igual sentido, VELÁSQUEZ, F., Manual…, p. 204.


66 Sobre el nuevo sistema de determinación de la pena, POSADA MAYA, R. y HERNÁNDEZ BELTRÁN,
H. M., El sistema de individualización de la pena en el derecho penal colombiano, Medellín, Diké-
Universidad Pontificia Bolivariana, 2001.
67 Cfr. UPRIMNY, R., “El desafío de la reforma al procedimiento penal: ¿ajustes puntuales o

reestructuración integral de la Fiscalía y de la investigación criminal en Colombia?”, Ministerio de


Justicia y del Derecho y Universidad Nacional de Colombia, Foro Reforma Integral al Sistema Penal,
Bogotá, Imprenta Nacional de Colombia, 1999, pp. 33-56; CALLE CALDERÓN, A. L., “Acerca de la
reforma procesal penal. Una primera aproximación”, en NFP, 2005 (67), pp. 153-154.

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fondo, las cuales sólo se adujeron después para justificar la reforma. Los dos
estatutos regulan de manera comprensiva los distintos aspectos usuales de
un código procesal penal, aunque dadas las diferencias de perspectiva los
cambios desde el punto de vista de la dogmática procesal entre ellos son de
mucha importancia.
Como se trata sólo de destacar la orientación político criminal y los
rasgos ideológicos de las reformas, quizás sea suficiente con resaltar, por
sus desastrosos efectos en la legislación sustantiva, la creciente autonomía
del proceso penal como mecanismo de control68, en tanto pareciera que
ahora el objetivo de la persecución penal no fuera ya (o al menos no sólo) la
imposición de una pena por el delito cometido, sino procesar a quien se cree
que lo ha cometido. Tal hecho se manifiesta principalmente a través de un
predominio de la detención preventiva como objetivo concreto de la
persecución penal, que la está convirtiendo en un equivalente funcional de
las medidas de seguridad predelictuales, con un claro predominio de las
nociones de peligrosidad y defensa social69.
Lo anterior está provocando a su vez, de manera indirecta, un
generalizado y desmesurado incremento del mínimo de las penas, toda vez
que los dos códigos de procedimiento penal vigentes (leyes 600/2001 y
906/2004), hacen depender la procedencia de la detención preventiva de
que el delito imputado tenga una pena mínima igual o superior a los 4 años
de prisión; cosa parecida ocurre con la detención domiciliaria, que sólo
procede por delitos sancionados con una pena mínima de 5 años. Pues bien,
para obligar a la detención preventiva (o evitar la procedencia de la
detención domiciliaria) en desarrollo de la tendencia legislativa que se
comenta, el legislador penal colombiano ha optado por el camino más fácil:
ha aumentado la pena mínima de los delitos hasta el tope exigido por la ley
procesal para imponer la medida cautelar. El resultado: un inimaginable
endurecimiento punitivo con fines exclusivamente procesales, que se
comentará más adelante.

68 Lo cual no es ninguna novedad, aunque antes, como ha ocurrido en otros lugares, se había dado
en el marco de la legislación penal de emergencia; al respecto, MUÑAGORRI, I., “Algunas notas
sobre el proceso penal como momento de criminalización y de control social, con comentarios a la
reciente normativa española”, en BERGALLI, R. y BUSTOS, J., El poder penal del Estado. Homenaje a
Hilde Kaufmann, Buenos Aires, Desalma, 1985, pp. 299-319, en especial, pp. 303-305.
69 Cf. HERNÁNDEZ, T., La ideologización del delito y de la pena, Caracas, Universidad Central de

Venezuela, 1977; TERRADILLOS, J., Peligrosidad social y Estado de Derecho, Madrid, Akal, 1981; y
SOTOMAYOR ACOSTA, J. O., Inimputabilidad y sistema penal, Bogotá, Temis, 1996, pp. 119-129.

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La otra gran característica de las recientes reformas procesales es la


búsqueda de la condena a cualquier precio. Esta tendencia se acentuó en el
nuevo CPP de 2004, que consagró tanto la posibilidad de acuerdos entre la
fiscalía y el procesado como el principio de oportunidad, pero sus bases ya
se encontraban en el CPP de 2000, que al igual que su homólogo penal del
mismo año convirtió en legislación ordinaria y permanente gran parte de la
legislación de emergencia anterior, entre otras la orientada a promover la
colaboración del procesado, es decir, a facilitar su condena: beneficios por
colaboración eficaz (art. 413), reducción de pena por confesión ((art. 283) y
la sentencia anticipada (art. 40).
Como es fácilmente apreciable, esta configuración del proceso penal
actual ha sido la opción escogida por el legislador colombiano para
enfrentar (y ocultar) la tantas veces mencionada incapacidad investigativa
del Estado. En realidad, se trata de una política legislativa muy torpe desde
el punto de vista práctico, ya que al déficit investigativo que por supuesto
persiste habrá que agregar ahora los costos políticos de la desnaturalización
del proceso penal, que paulatinamente deja de funcionar alrededor de la
contradicción probatoria (es decir, deja de ser proceso) para hacerlo en
torno a la confesión, la delación o la aceptación de cargos.
En definitiva, estos estatutos procesales parecer reflejar cambios
cualitativos en la política penal, que por su repercusión en otras reformas
legislativas más recientes se analizarán con mayor detalle más adelante
como una orientación político-criminal autónoma.
3 – El Nuevo Código de La Infancia y La Adolescencia (ley 1098/2006)
El recién expedido CIA (ley 1098/2006) constituye un buen ejemplo de
los vaivenes de la política legislativa penal en Colombia, porque a
diferencia de las leyes más recientes, en términos generales satisface un
buen porcentaje de demandas de mayores garantías en el ámbito de
responsabilidad penal juvenil70, no obstante su severidad en materia de
privación de libertad, las dudas sobre el tratamiento de los menores

70 El nuevo CIA reemplaza al anterior código del menor (decreto 2737/1989), que permanecía
anclado en la ideología de la situación irregular; cfr. LONDOÑO BERRÍO, H. L. y SOTOMAYOR
ACOSTA, J. O., “El código del menor: ¿una nueva política criminal?”, en NFP, 1990 (49), pp. 16-40;
SOTOMAYOR ACOSTA, J. O., “Responsabilidad o irresponsabilidad penal del menor en Colombia:
un falso dilema”, en ED, 1998 (130), pp.143-156; GALLEGO GARCÍA, G. M., “El tratamiento jurídico-
penal del menor en Colombia, en JD, No. 29, Madrid, 1997, pp. 94-104; y HALL GARCÍA, A. P.,
“Aproximación al problema de la responsabilidad penal del menor en Colombia”, en RIDP, 2004
1-2 (75), pp. 231-262.

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vinculados al conflicto armado y de los rasgos de populismo punitivo


apreciables en los casos de delitos contra menores (arts. 199 y 200). Ello no
deja de llamar la atención por cuanto el código fue tramitado en medio de
una serie de leyes claramente orientadas al endurecimiento punitivo (leyes
890/2004 y 1142 de 2007 por citar sólo dos ejemplos).
Según la exposición de motivos, el nuevo CIA pretende actualizar la
legislación sobre la materia conforme a las exigencias de la Convención de
los Derechos del Niño que Colombia había aprobado años atrás (ley
12/1991), tras varios intentos fallidos con anterioridad. Este compromiso
internacional y sobre todo el hecho de que el proyecto hubiese sido el
producto de un trabajo colectivo durante varios años de un grupo de
organizaciones nacionales e internacionales, gubernamentales y no
gubernamentales, reunidas bajo la “Alianza por la Niñez Colombiana”71,
hizo posible la aprobación de una legislación que en términos generales
satisface los estándares internacionales sobre la materia, no obstante el
complicado trámite en el Congreso de la república, que implicó algunas
modificaciones sustanciales, sobre todo en lo atinente a la regulación de las
medidas privativas de la libertad (art. 187).
En el marco de la denominada doctrina de la protección integral72 (art. 7),
se pueden mencionar como rasgos relevantes en el tema de la
responsabilidad penal para adolescentes, los siguientes:
a) Están sometidos al sistema de responsabilidad penal para adolescentes
las personas entre 14 y 18 años al momento de realizar el hecho.
b) Se consagran como sanciones aplicables al adolescente la
amonestación, imposición de reglas de conducta, prestación de servicios a la
comunidad, libertad asistida, internación en medio semi-cerrado y
privación de libertad en centro de atención especializado (art. 177) y a
diferencia del sistema anterior, en el art. 178 se establecen los criterios para
definir su aplicación.
c) Según el art. 187, la privación de la libertad en centro de atención
especializada sólo es aplicable, en principio, a las personas entre los 16 y los
18 años de edad, responsables de delitos “cuya pena mínima establecida en

71 Los interesantes antecedentes del proyecto de CIA son relatados de forma minuciosa en la
“Exposición de motivos”, en GC, 2005 (551), pp. 25-26 [consultable también en
http://www.secretariasenado.gov.co].
72 Ver GARCÍA MÉNDEZ, E., Derecho de la infancia-adolescencia en América Latina. De la situación

irregular a la protección integral, Bogotá, Forum Pacis, 1994.

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el Código Penal sea o exceda de (6) años de prisión”. No obstante, dicha


medida podrá imponerse incluso a los sujetos de 14 años en adelante,
cuando su responsabilidad sea por homicidio doloso, secuestro o extorsión,
eventos en los que la sanción tendrá una duración de 2 a 8 años. Aunque
según el mismo artículo, en cualquier caso una parte de la sanción privativa
de libertad “podrá ser sustituida por el establecimiento de presentaciones
periódicas, servicios a la comunidad, el compromiso de no volver a
delinquir y guardar buen comportamiento, por el tiempo que fije el juez”.
d) Las mejores y más importantes novedades del CIA se encuentran en el
aspecto procesal, ámbito en el que se regulan de forma detallada las
garantías procesales en el sistema de responsabilidad penal de adolescentes
(arts. 151 a 162), bajo el entendido de que los derechos del adolescente
acusado de cometer o participar en un delito “son, como mínimo, los
previstos por la Ley 906 de 2004” (art. 151).
b. El nuevo rumbo de la justicia penal en Colombia: el proceso como
condena y la condena sin proceso
1. El proceso como condena
Como se indicó antes, uno de los rasgos distintivos de las reformas
procesales ha sido la transformación del proceso penal en objetivo
prioritario de la intervención penal, es decir, en un fin en sí mismo. A dicha
inversión del papel del proceso mucho ha contribuido el rol que ha asumido
desde su creación la fiscalía general de la nación, pues, en medio de una
notable precariedad investigativa estatal y de los desafíos de la criminalidad
organizada de las mafias del narcotráfico, a partir de las reformas de 1991 se
hizo especialmente notoria la desmedida acumulación de poderes en cabeza
de la fiscalía general de la nación, cuya actividad se convirtió en eje de la
justicia penal y generadora de una ideología que trasciende el ámbito
estrictamente judicial. En efecto, de la mano de un manejo ligero e
irresponsable de los asuntos atinentes a la criminalidad por parte de los
medios de comunicación, una fiscalía que también tenía a su cargo
funciones jurisdiccionales como la de ordenar capturas, allanamientos,
detenciones, entre otras, terminó asumiendo un rol casi policivo de “lucha
contra la criminalidad”, lo cual no sólo al interior de la institución misma
sino en el imaginario social, terminó reduciendo la justicia penal a la
actuación de su ente investigador; luego, una detención es vista ya como la
satisfacción del objetivo penal y una libertad provisional (es decir, sin

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levantamiento de los cargos) comenzó a ser percibida como sinónimo de


fracaso e impunidad.
El resultado de esta política es bastante previsible: según datos del
INPEC73 a mayo de 2007 había un total de 60.139 reclusos en Colombia, de
los cuales 43.657 tienen la calidad de detenidos, es decir, el 72.59%; además,
los altos índices de hacinamiento carcelario han empezado ya a disparar las
alarmas de los organismos internacionales de defensa de los derechos
humanos y de algunas instituciones estatales74.
Claro que el amplio número de detenidos no es ninguna novedad en los
sistemas penales latinoamericanos75 y muchos menos en el colombiano76. Lo
nuevo está en que en los últimos años las normas penales sustantivas
colombianas se han ido acomodando a esta realidad, hasta el punto que hoy
en día la fijación de la pena abstracta de una figura delictiva por parte del
legislador, no se hace con base en los tradicionales criterios del grado de
injusto y de culpabilidad, o inclusive de la necesidad de pena, sino en
atención a su repercusión sobre los presupuestos de la detención preventiva
o la libertad provisional, o inclusive la detención domiciliaria, de
conformidad con las normas procesales vigentes.
La legislación procesal, no obstante, conserva ese carácter ambivalente
característico del derecho penal colombiano en general, que impide afirmar
que se esté ante una situación irreversible. En efecto, la primera restricción
al abuso de la detención preventiva la hizo la Corte Constitucional, que
mediante la sentencia C-774 de 2001 estableció que para la imposición de la
detención preventiva “no sólo es necesario que se cumplan los requisitos
formales y sustanciales que el ordenamiento impone, sino que se requiere,

73 Dichas cifras se pueden consultar en http://www.inpec.go.co, aunque debe aclararse que el


INPEC manipula las cifras al presentar diferenciados el número de sindicados, condenados en
primera instancia y condenados en segunda instancia, cuando sólo los últimos tienen la calidad
de condenados.
74 Consultar los informes de la ACNUDHC, “Centros de reclusión en Colombia: un estado de cosas

inconstitucional y de flagrante violación de derechos humanos”, informe del 31 de octubre de


2001 [disponible en: http://www.hchr.org.co]; Defensoría del Pueblo, “Análisis sobre el actual
hacinamiento carcelario y penitenciario en Colombia”, Bogotá, 2003, consultado en
http://www.defensoria.org.co; y Procuraduría General de la Nación, “El sistema de prisiones
colombiano opera bajo niveles de presión crecientes; los derechos humanos de las personas
privadas de libertad en riesgo”, en http://www.procuraduria.gov.co [consultado 16/07/2007].
75 Cfr. CARRANZA, E. y otros, El preso sin condena en América Latina y el Caribe, San José, ILANUD,

1998.
76 Al respecto la sentencia T-153/1998, en la cual la Corte Constitucional declaró la situación de las

cárceles colombianas como un “estado de cosas inconstitucional”.

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además, y con un ineludible alcance de garantía, que quien haya de


decretarla sustente su decisión en la consideración de las finalidades
constitucionalmente admisibles para la misma”77. De manera que, en
opinión del tribunal constitucional, para la imposición de la detención
preventiva no basta que se trate de un determinado delito o que este tenga
prevista una cantidad de pena exigida por la ley, pues siempre habrá que
acreditar su necesidad en el caso concreto, y en tal sentido decretó la
constitucionalidad condicionada del art. 357 de la ley 600/2000.
Esta exigencia que puede parecer elemental en sistemas con un mayor
grado de respeto de la presunción de inocencia, tiene en el caso colombiano,
por lo reseñado antes, una trascendencia extraordinaria, al cuestionar uno
de los pilares básicos del eficientismo actual. Igual valoración cabe hacer de
un importante cambio introducido por la ley 906/2000, al despojar a la
fiscalía de sus poderes jurisdiccionales, entre ellos el de decretar la
detención preventiva y reafirmar en sus arts. 295 y 296 el principio de
libertad y la finalidad estrictamente procesal de las restricciones a la misma.
Conforme al nuevo sistema, por regla general sólo el juez de control de
garantías puede decretar la medida de aseguramiento previa solicitud del
fiscal (art. 308), quien deberá aportar “los elementos de conocimiento
necesarios para sustentar la medida y su urgencia, los cuales se evaluarán
en audiencia permitiendo a la defensa la controversia pertinente” (art. 306).
Se trata de una efectiva pérdida de poder de la fiscalía en el proceso, que
podría significar una quiebra importante de la línea ideológica que se
comenta. Por ello no es de extrañar que el manejo de la libertad en el
proceso haya sido foco de tensión en los primeros años de funcionamiento
del nuevo estatuto procesal78 y también objeto de los primeros signos de
contrarreforma (ley 1142/2007).
2) La condena sin proceso
La orientación a una condena sin proceso se ha hecho más visible a partir
de la entrada en vigencia de la más reciente reforma al proceso penal (ley
906/2004), de la que se ha afirmado que adoptó como modelo el proceso
norteamericano y no otro precisamente por su orientación eficientista79. Así

77 Un amplio análisis de la jurisprudencia en esta materia, en LONDOÑO BERRÍO, H. L., “La detención
preventiva en las jurisprudencias de la Corte Constitucional y de la Corte Suprema de Justicia
(Reflexiones a propósito de la sentencia C-744 de 2001)”, en NFP, 2003 (65), pp. 191-270.
78 Cfr. APONTE, A., Guerra y derecho penal de enemigo…, pp. 415.
79 CALLE CALDERÓN, A. L., “Acerca de la reforma procesal penal…”, pp. 157-158. Sobre algunas

características del proceso penal norteamericano, SCHÜNEMANN, B., “¿Crisis del procedimiento
penal? (¿Marcha triunfal del procedimiento penal americano en el mundo?)”, en, el mismo, Temas

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lo demuestran, además, los primeros datos que se conocen sobre el


funcionamiento del nuevo sistema, tanto en su fase I (Bogotá y eje cafetero)
como en la fase II (Medellín, Valle y otros), como se puede apreciar en las
siguientes gráficas80.
Gráfica 1: Porcentaje de sentencias condenatorias
Fuente: CEJOSPA

Gráfica 2: Porcentaje de sentencias con aceptación de cargos

actuales y permanentes del Derecho penal después del milenio, Madrid, Tecnos, 2002, pp. 288-302; y
GUERRERO PERALTA, O. J., “El difícil encuentro entre el proceso penal anglosajón y el proceso
penal continental”, en ADCL, 2006, pp. 1047-1069.
80 Tomadas de CEJ, “Observatorio ciudadano del sistema acusatorio”, pp. 45 y 54, en

http://www.cej.org.co.

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Fuente: CEJOSPA
Según estos datos, el nuevo sistema penal acusatorio ha comenzado a
funcionar como una máquina de producción de condenas, con lo cual, en
razón del alto porcentaje de sentencias con aceptación de cargos (como
puede apreciarse en la gráfica 2), el sistema está cumpliendo a cabalidad
con el objetivo para el que al parecer fue creado: producir condenas sin
proceso81.
A esta máquina eficientista hay que sumarle el nuevo motor que en tal
sentido puede significar el principio de oportunidad (arts. 321 a 330), que
pese a su todavía escasa aplicación82 amenaza con aumentar aún más la
selectividad del sistema penal colombiano, con el riesgo adicional que un
mecanismo como este supone en un país en el que la utilización (y no
utilización) estatal del derecho penal con fines políticos no es ninguna
novedad83.
Como el problema de la justicia penal colombiana es sin embargo
estructural y no de las formas del proceso o de configuración formal de la
ley sustantiva, lo que parece estar sucediendo es simplemente la
acomodación del nuevo sistema acusatorio a la realidad existente. No ha
habido cambios en los resultados pues al igual que el “viejo sistema” en la
práctica el sistema acusatorio sólo está funcionando para los casos de
flagrancia o con imputado conocido, es decir, para los casos más fáciles de
resolver desde el punto de vista investigativo.
En otras palabras, el sistema se muestra especialmente eficiente con la
criminalidad de bagatela84, frente a la cual la verdad es que todos los
sistemas penales suelen funcionar demasiado bien. Por el contrario, el
problema de fondo, es decir, la debilidad investigativa generalizada y muy

81 Así por lo demás lo expresa la gran impulsora e ideóloga de la reforma, la Corporación Excelencia
en la Justicia, en CEJ, “Observatorio ciudadano…”, p. 46: “El 80%, aproximadamente, de
sentencias con aceptación de cargos representa un gran avance en comparación con la proporción
de sentencias anticipadas en el sistema anterior que sólo alcanzaba el 29%. Este resultado indica que
el modelo se está desarrollando de la manera en que fue concebido pues se esperaba que un alto número de
procesos concluyera de esta manera” (cursivas fuera de texto).
82 Según los datos de CEJ, “Observatorio ciudadano…”, p. 40, entre enero de 2005 y junio de 2006, se

ha dado aplicación al principio de oportunidad en 904 ocasiones.


83 Llama la atención sobre este aspecto, CALLE CALDERÓN, A. L., “Acerca de la reforma procesal

penal…”, pp. 162-165.


84 Así lo corroboran los datos del Consejo Superior de la Judicatura, “Sistema penal acusatorio. 2

años de expedición del código de procedimiento penal”, Documento SA-0101, pp. 13-14
[disponible en www.ramajudicial.gov.co].

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particularmente frente a las manifestaciones más graves de la criminalidad


se mantiene intacta. No es de extrañar, en consecuencia, que a menos de dos
años de su puesta en vigencia el sistema ya presente importantes signos de
congestión en la fase de indagación85, tal como sucedía en el sistema
anterior. Por ello es de temer que el afán eficientista por mostrar resultados
inmediatos ponga en riesgo algunos evidentes logros del sistema en materia
de garantías procesales, cuya realización efectiva presupone la existencia de
proceso, que es lo que casi no hay todavía.
3) La consolidación de la tendencia: las leyes 890/2004 y 1142/2007
Esta tendencia se ha consolidado con la expedición de las leyes 890/2004
y 1142/2007. La primera de ellas aumentó el máximo de la pena de prisión
hasta los 60 años en caso de concurso de delitos y hasta los 50 para delitos
en particular (arts. 1 y 2). Pero lo verdaderamente increíble fue el aumento
generalizado de penas previsto en el art. 14, que ordenó para todos los
delitos un incremento de la pena mínima en una tercera parte y del máximo
en la mitad. Si un aumento generalizado de penas como este es en sí mismo
cuestionable en un país cuyo sistema de penas no se caracteriza
precisamente por su moderación, el asunto raya en lo demencial cuando se
conocen los motivos tenidos en cuenta para proponer y aprobar dicho
incremento: la negociación y preacuerdos de pena entre la fiscalía y el
procesado86.
Se trataba simple y llanamente de “aceitar” de manera adecuada la
máquina eficientista de producción de condenas en que desde un comienzo
se ha querido convertir el proceso acusatorio, para lo cual se requería
entonces disponer de unas penas lo suficientemente altas para constreñir al
imputado a negociar o a la aceptación de cargos. O simplemente con el
argumento de que al finalizar las rebajas la pena siga siendo de alguna
manera proporcional al delito cometido87.

85 Como informa la CEJ, “Observatorio ciudadano…”, p. 52.


86 “Exposición de motivos”, en GC, 2003 (345) [consultada en:
http://www.secretariasenado.gov.co].
87 Véase la intervención en tal sentido del representante Navas Talero, ponente del proyecto, en la

plenaria de la Cámara de Representantes, en GC, 2004 (391), [consultada en


http://www.secretariasenado.gov.co]. Pese a la irracionalidad tanto de las medidas adoptadas
como de los argumentos, la ley ha superado en términos generales las evaluaciones de la Corte
Constitucional (sentencias C-193/2005, C-194/2005, C-823/2005, entre otras). Con una agravante
adicional: la ley 890/2004, a diferencia de lo ocurrido con el sistema acusatorio (ley 906/2004)
cuya implementación ha sido gradual, entró a regir de inmediato en todo el país, con lo cual las
penas se aumentaron para todos los delitos y en todo el territorio, aun cuando los hechos fueran

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De otra parte, como ya se indicó, la orientación a la detención preventiva


está provocando a su vez otro aumento considerable y generalizado de
penas: así sucedió en la misma ley 890/2004 en relación con algunos delitos
contra la administración de justicia (entre ellos el falso testimonio), cuyas
penas mínimas se incrementaron a los 4 ó 6 años con la sola finalidad de
hacer posible la detención preventiva o de excluir la libertad provisional o
la detención domiciliaria. En esta misma línea se deben mencionar la ley
813/2003 en relación con el hurto de automotores, que con ese fin pasó de
considerarse un supuesto de hurto agravado (art. 241-6) a convertirse en un
caso de hurto calificado (o robo); la ley 1028/2006, que incluyó el delito
autónomo de hurto de hidrocarburos en el CP (antes incluido en la
temporal ley 782/2002); un aumento de penas en el mismo sentido se hizo
mediante la ley 1032/2006 para algunos delitos como la prestación, acceso o
uso ilegal de los servicios de comunicaciones (art. 257), violación de
derechos patrimoniales de autor y otros (art. 271) y usurpación de derechos
de propiedad industrial y de obtentores de variedades vegetales (art. 306);
así como en la más amplia y reciente ley 1142/2007, cuyo solo nombre es
indicativo de la ideología que inspira su contenido: “Ley de convivencia y
seguridad ciudadana”.
Esta última ley 1142/2007 supone un paso muy importante en la
institucionalización de la ideología eficientista que se analiza. En primer
término, porque con toda claridad se trata de una reforma que se hizo con la
única pretensión de facilitar la detención en el sistema acusatorio, quizás
como reacción a la posición un poco más estricta (al menos en comparación
con la que tenían los propios fiscales conforme al sistema anterior) que al
respecto han asumido algunos jueces de garantías, de conformidad con las
exigencias de la jurisprudencia constitucional. Pero no se crea que se trata
de un objetivo oculto o algo por el estilo; todo lo contrario, la propuesta
reivindica abiertamente tal ideología, hasta el extremo de calificar como
“impunidad” la no imposición de la detención preventiva88.

juzgados conforme a la ley 600/2000, que no prevé posibilidad de negociación entre fiscalía y
defensa y que consagra para la sentencia anticipada una rebaja de pena menor a la del nuevo
CPP; situación que ha dado lugar a graves problemas de aplicación práctica, por la evidente
desigualdad punitiva entre las personas juzgadas conforme al “viejo” y el “nuevo” sistema
procesal. Cfr. CSJ, Sentencias de 14/12/2005 y 7/02/2006.
88 Véase la exposición de motivos de los autores de la iniciativa, el ministro del interior y el fiscal

general de la nación, en GC, 2006 (250) [consultada en: http://www.secretariasenado.gov.co].

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Entre los muchos aspectos retrógrados de la ley hay dos especialmente


destacables: la reforma de algunos tipos y en especial el aumento
considerable de la pena mínima (entre los 4 y los 6 años), con el objetivo ya
indicado, en delitos como la inasistencia alimentaria, hurto calificado, hurto
agravado, receptación, delitos electorales, porte de armas y otros más. Y con
idéntica finalidad se reforma el CPP en cuanto a los criterios a tener en
cuenta para imponer la detención preventiva; y aunque el Congreso
finalmente no aprobó la propuesta original de establecer un catálogo de
delitos en los cuales “se presume el peligro para la comunidad” (art. 20 del
proyecto original), de todas maneras la reforma reduce los poderes del juez
de garantías y sobre todo exime a la fiscalía del deber de acreditar ante el
juez los presupuestos materiales que justifican su solicitud de detención
preventiva.
c. Endurecimiento punitivo y supresión de garantías con fines políticos.
Las reformas tendientes al fortalecimiento de la detención preventiva son
una buena muestra del endurecimiento punitivo que caracteriza la
legislación penal colombiana actual, casi siempre acompañado de la
limitación y a veces hasta supresión de algunas de las tradicionales
garantías del derecho penal liberal. Sin embargo, esta particularidad no
puede atribuirse sólo a los cambios en el procedimiento penal, ya que son
apreciables también otras fuentes, entre ellas la utilización política de la ley
penal como instrumento de lucha contrainsurgente.
Como se explicó antes, en los últimos años la tendencia en Colombia ha
sido la de integrar en el derecho ordinario la llamada legislación de
emergencia, sobre todo a raíz de las mayores exigencias impuestas por la
Constitución de 1991 y por la jurisprudencia de la Corte Constitucional a la
declaración de conmoción interior. Ello ha dado lugar a la práctica
desaparición de la legislación excepcional característica de la situación
anterior, en la medida en que la utilización del derecho penal con tales fines
se lleva a cabo ahora a través de la legislación ordinaria, y no por medio de
las clásicas y hasta míticas figuras de la rebelión o la sedición, sino de
delitos “comunes” como el terrorismo, secuestro, extorsión, concierto para
delinquir, porte ilegal de armas, etc. En consecuencia, la más importante
legislación “de enemigo” de fechas recientes es el CP de 2000, al convertir
en legislación permanente buena parte de la anterior legislación de estado
de sitio. Basta mirar las penas previstas para los delitos mencionados para

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darse cuenta de que no se trata de figuras concebidas para tratar la


criminalidad común sino para enfrentar punitivamente al enemigo. Se trata,
por consiguiente, de un derecho penal político, con unas particularidades
muy propias de la situación colombiana89.
En esta dirección deben mencionarse las leyes 733/2002 y 1121/2006,
que aumentaron las penas y/o incorporaron agravantes, suprimieron
subrogados penales y prohibieron la amnistía y el indulto para los delitos
de secuestro, terrorismo y extorsión. En esta misma línea de endurecimiento
punitivo con fines políticos habría que incluir también los fallidos90 estatutos
de seguridad y defensa nacional (ley 684/2001) y antiterrorista (acto
legislativo 2/2003): el primero de ellos pretendió instaurar un estado de
“excepción” permanente y el segundo no sólo darle rango constitucional al
otorgamiento de funciones de policía judicial a las fuerzas armadas, sino
también a la interceptación de correspondencia y comunicaciones privadas
y a las detenciones y allanamientos sin orden judicial, cuando se realizan
“para prevenir la comisión de actos terroristas”.
d. Populismo legislativo
La otra fuente de incrementos punitivos desmesurados la constituye el
populismo legislativo de los congresistas colombianos. Según comenta
LARRAURI, la expresión “populismo punitivo” creada por BOTTOMS “se
refiere a cuando el uso del derecho penal por los gobernantes aparece
guiado por tres asunciones: que mayores penas pueden reducir el delito;
que las penas ayudan a reforzar el consenso moral existente en la sociedad;
y que hay unas ganancias electorales producto de este uso”91. Conforme a
esta noción, en ningún caso podría incluirse como populismo punitivo la
comentada utilización del derecho penal con fines políticos o procesales,
pues si bien en ellos se produce un endurecimiento del derecho penal y la
reducción de garantías, las mayores penas no buscan propiamente reducir
el delito sino golpear directamente al “enemigo” o simplemente detener a
las personas. No obstante, en el país se ha dado otro tipo de legislación en la
que, en diferente grado, parecieran vislumbrarse algunas características del
populismo punitivo. Tal podría ser el caso de leyes como la 679/2001, que

89 Véase el completo análisis realizado por APONTE, A., Guerra y derecho penal de enemigo…pp. 335-
519.
90 Ambos estatutos fueron declarados inconstitucionales por la Corte Constitucional, mediante las

sentencias C-251/2002 y C-816/2004.


91 LARRAURI, E., “Populismo punitivo… y como resistirlo”, en JD, 2006 (55), p. 15.

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creó los delitos de “Utilización o facilitación de medios de comunicación


para ofrecer servicios sexuales de menores” (art. 219A) y “Omisión de
denuncia” (de abusos sexuales con menores) (art. 219B); la ley 745/2002,
que tipificó como contravención el consumo de drogas en presencia de
menores92; la ley 777/2002 que aumentó la pena del delito de tráfico de
moneda falsa (art. 274); la ley 882/2004, que reformó el tipo de violencia
intrafamiliar (art. 229); la ley 919/2004 que consagró el delito de
comercialización de componentes anatómicos humanos; ley 985/2005 que
modifica el delito de trata de personas (art. 188A); en este grupo cabe incluir
así mismo algunas normas del CIA como el art. 199 que prohíbe la
aplicación de la suspensión condicional de la ejecución de la pena, la
libertad condicional, la detención domiciliaria, rebajas de pena, etc.,
“cuando se trate de los delitos de homicidio o lesiones personales bajo
modalidad dolosa, delitos contra la libertad, integridad y formación
sexuales, o secuestro, cometidos contra niños, niñas y adolescentes”93.
Los delitos en los que las víctimas son menores son los que más parecen
jalonar esta tendencia, que sin embargo no alcanza aún la trascendencia que
tiene en otros lugares, dado el mar de leyes penales y de exacerbación
punitiva de otros muy diversos signos existentes en Colombia. De todas
maneras se debe matizar el uso de la expresión, o tal vez hablar de un
populismo punitivo “a la colombiana”, pues el fenómeno parece obedecer a
razones que nada tienen que ver con las que lo han originado en otros
países94: no es resultado del desmonte de un Estado de bienestar impensable

92 La Corte Constitucional, mediante la sentencia C-101/2004 declaró la inconstitucionalidad del


procedimiento previsto para dicha contravención, razón por la cual nunca pudo ser aplicada. La
norma ha sido sin embargo recogida de nuevo en la reciente ley 1153/2007, que regula el
“tratamiento de las pequeñas causas en materia penal”.
93 El mismo CIA prevé en su art. 48 inc. 2 la publicación en algunos espacios de radio y televisión “y

por lo menos una vez a la semana”, los nombres completos y foto reciente “de las personas que
hayan sido condenadas en el último mes por cualquiera de los delitos contemplados en el Título
IV, ‘Delitos contra la Libertad, Integridad y Formación Sexuales’, cuando la víctima haya sido un
menor de edad”. A su vez el Concejo de Bogotá, sin ninguna competencia para ello y
supuestamente en “desarrollo” de este artículo del CIA autorizó la publicación de las fotografías
de abusadores de niños en muros y vallas de la capital, en lo que antes de ponerse en práctica ya
se conoce como el “muro de la infamia”.
94 Sobre el particular GARLAND, D., La cultura del control. Crimen y orden social en la sociedad

contemporánea, Barcelona, Gedisa, 2005, pp. 31-70. También, para el caso europeo, WACQUANT, L.,
Las cárceles de la miseria, Madrid, Alianza, 2000, pp. 75-156; ALBRECHT, P.- A., “El derecho penal en
la intervención de la política populista”, en Instituto de Ciencias Criminales de Frankfurt (Ed.), La
insostenible situación del Derecho penal, Granada, Comares, 2000, págs. 471 a 487; DÍEZ RIPOLLÉS, J.
L., “El nuevo modelo penal de la seguridad ciudadana”, en RECPC, 2004 (06-03), pp. 1-6;
LARRAURI, E., “Populismo punitivo…”, pp. 15-17.

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en un país como Colombia, ni es tampoco la respuesta a un aumento real de


la criminalidad, mucho menos a un aumento de confianza en el sistema
penal y ni siquiera a una política criminal orientada realmente a un mayor
control de la delincuencia.
e. “Derecho del conflicto armado interno”.
Uno de los aspectos que más dificulta el análisis del derecho penal en
Colombia es el de su coexistencia con una situación de conflicto armado,
circunstancia que – como ya se dijo – ha dado lugar a la existencia de una
legislación “de enemigo”. Pero esta misma coexistencia ha convertido a la
paz en un objetivo más del derecho, de donde ha surgido algo así como un
“derecho del conflicto armado interno”, mediante el cual se busca de alguna
manera “regular” la confrontación95. En muchas ocasiones estas dos caras
del derecho se mezclan y confunden, aunque en otras se pueden claramente
deslindar. Este último podría ser el caso por ejemplo, entre la reciente
legislación con implicaciones penales96, de las leyes 759/2002, 782/2002 y
971/2005. Por el contrario la ley 975/2005 es un buen ejemplo de confusión
de ambas perspectivas.
1) Ley 759/2002, “Por medio de la cual se dictan normas para dar
cumplimiento a la Convención sobre la Prohibición del Empleo,
Almacenamiento, Producción y Transferencia de minas antipersonal y sobre
su destrucción y se fijan disposiciones con el fin de erradicar en Colombia el
uso de las minas antipersonal”. Esta ley si bien implicó la creación de dos
nuevos delitos en el CP (arts. 367A y 367B) con penas muy severas, pretende
ir más allá de la simple criminalización de las conductas del adversario, en
tanto propugna la erradicación del uso de las minas antipersonal con miras
a la protección de la población civil97. Con tal fin impone obligaciones al
propio Estado, en los términos previstos en la Convención de Ottawa
(aprobada mediante la ley 554/2000).
2) La ley 782/2002, que “prorroga la vigencia de la Ley 418 de 1997,
prorrogada y modificada por la Ley 548 de 1999 y se modifican algunas de

95 Cfr. APONTE, A., Guerra y derecho penal de enemigo…pp. 292-331; y PÉREZ TORO, W. F., “Orden
jurídico, negociación, paz y reinserción. La constante imbricación entre política y derecho en
Colombia”, en EP, 2005 (27), pp. 67-100.
96 Referencias legislativas más amplias en PÉREZ TORO, W. F., “Orden jurídico, negociación…”,

pp.74-95, en especial.
97 Véase el informe de HRW, Mutilando al pueblo. El uso de minas antipersonal y otras armas

indiscriminadas por parte de la guerrilla en Colombia, julio de 2007, [consultado en


http://www.hrw.org].

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sus disposiciones”, fija el marco jurídico de las negociaciones de paz con los
grupos armados ilegales. Entre múltiples aspectos esta ley permite la
suspensión de las órdenes de captura de los representantes y voceros de los
grupos que inicien un proceso de negociación con el gobierno, así como el
indulto por delitos políticos en favor de los miembros de grupos ilegales
que culminen dicha negociación o se desmovilicen de manera individual.
3) La ley 971/2005, aprobada por iniciativa del Defensor del pueblo,
reglamenta el mecanismo de “búsqueda urgente” de personas
desaparecidas previsto en el CPP (ley 600/2005).
4) Finalmente, habría que mencionar también la polémica ley 975/2005,
conocida como “ley de justicia y paz” pero que en realidad no parece
satisfacer las exigencias de la una ni de la otra98. La ley fue producto del
proceso de negociación del gobierno del presidente Uribe Vélez con algunos
grupos paramilitares y pese a que la Corte Constitucional, mediante la
sentencia C-306/2006, declaró la inconstitucionalidad (o la
constitucionalidad condicionada) de algunos de sus disposiciones más
polémicas, se teme que genere la impunidad de graves violaciones a los
derechos humanos, dado que con el procedimiento previsto será
prácticamente imposible llevar a cabo una investigación que vaya más allá
de los hechos que las personas involucradas hayan querido confesar. En
efecto, ya se comentó que la debilidad investigativa del Estado colombiano
constituye uno de los mayores problemas de su aparato de justicia penal,
por el gran número de delitos graves que no alcanza a superar la fase de
investigación previa; pues si eso es así en el campo de la justicia ordinaria,
no se puede esperar que en un lapso de tiempo mucho más breve y sin
recursos técnicos ni humanos se puedan esclarecer dolorosos episodios que
no han podido investigarse durante años99, la mayoría de las veces ocurridos
en regiones muy apartadas de las ciudades donde se realizan los “juicios”.

98 La ley ha sido criticada desde diversos sectores, en especial por los organismos nacionales e
internacionales defensores de derechos humanos: HRW, “Colombia: librando a los paramilitares
de sus responsabilidades”, enero de 2005 [disponible en http://www.hrw.org]; Amnistía
Internacional, “Colombia: la Ley de Justicia y Paz garantizará la impunidad para los autores de
abusos contra los derechos humanos”, abril 26 de 2005 [disponible en http://www.amnesty.org];
ACNUDHC, “Consideraciones sobre la ley de ‘Justicia y Paz’”, junio 27 de 2005; CCJ, “Sin paz y
sin justicia”, Boletín No. 6, junio 29 de 2005; CIDH, “La CIDH se pronuncia frente a la aprobación
de la ley de justicia y paz en Colombia”, julio 15 de 2005 [los tres últimos documentos están
disponibles en http://www.coljuristas.org].
99 En este sentido, GONZÁLEZ ZAPATA, J., “Verdad, justicia, paz y reparación en la mitología penal. A

propósito de la ley 975 de 2005”, en EP, 2005 (27), p. 50; así también lo han manifestado las
organizaciones citadas en la nota anterior.

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Que de un trámite casi administrativo como el previsto en la ley puedan


derivarse amnistías e indultos para quienes no tengan procesos judiciales
abiertos o condenas, o para quienes sólo puedan ser acusados de delitos
políticos (rebelión, sedición y asonada), concierto para delinquir, utilización
ilegal de uniformes e insignias, instigación a delinquir, o fabricación, tráfico
y porte de armas y municiones (art. 69), parece más propio del tipo de leyes
de “perdón y olvido”. Pero además, el hecho de que algunos de los más
graves crímenes cometidos por los grupos paramilitares puedan terminar
con una pena máxima de 7 años de prisión no deja de entrañar una
gravísima desigualdad y desproporcionalidad, cuando al tiempo que el
gobierno impulsaba la aprobación de esta ley, presentaba al Congreso las ya
mencionadas leyes de incrementos punitivos100, entre ellas la ley 890/2004
que aumentó los mínimos y máximos de las penas para todos los delitos y
después la ley 1142/2007, que entre otras disposiciones aumenta la pena del
hurto calificado por la violencia contra las personas, de 8 a 16 años de
prisión (art. 37). Que un ladronzuelo que realiza un hurto callejero con
intimidación pueda recibir más del doble de pena que los autores de
algunos de los hechos más dolorosos de la reciente historia nacional
(homicidios colectivos, la mayoría de ellos en condiciones de indefensión de
la víctima, desmembración de cuerpos, desapariciones de personas y un
largo etcétera) es algo tan desproporcionado que jurídicamente resulta muy
difícil de justificar.
Si el logro de la paz legitima o no este tipo de leyes es un interrogante
realmente complejo, que no puede tener una respuesta sin matices. El
problema de la ley 975/2005 es que ella ni siquiera supone el logro de la
paz, pues “se trata de una ley que se expide no al final sino en medio de la
guerra”101, a lo cual habría que agregar el hecho de no implicar ni siquiera el
desmonte real y efectivo de las estructuras paramilitares, dado que permite
la desmovilización individual, sin que ella signifique ningún compromiso
respecto de las organizaciones armadas respectivas102.
Todo parece indicar que esta ley constituye más bien un nuevo uso de la
legislación penal como mecanismo de guerra, porque cabe recordar que ello

100 Este hecho también lo resalta GONZÁLEZ ZAPATA, J., “Verdad, justicia, paz…”, p. 58.
101 GONZÁLEZ ZAPATA, J., “Verdad, justicia, paz…”, p. 45.
102 Como lo manifestaron en su momento, entre otros, la ACNUDHC, junio 27 de 2005, p. 2 y la CCJ,

“Sin paz y sin justicia”, p. 2. De hecho ya se informa del surgimiento de “nuevos” grupos
paramilitares, en http://www.elespectador.com, “El vuelo de las águilas negras”, 27 de enero de
2007; http://www.eltiempo.com, “Grupos criminales ligados a narcotráfico y paramilitarismo
tienen copada media Colombia de nuevo”, julio 16 de 2007.

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se puede dar por la utilización por parte del Estado tanto de mecanismos
positivos como negativos; vale decir, tanto cuando se usa la ley para golpear
directamente al adversario, como también cuando a través de la ley se crean
mecanismos que aseguran inmunidad frente al sistema penal institucional,
bien de los propios agentes estatales o de sus aliados, a través de
instrumentos tales como la justicia penal militar, la obediencia debida o
leyes especiales como la 975/2005.

6 – E L P ROCESO DE T OMA DE D ECISIONES


a. Actitudes sociales, medios de comunicación y grupos de presión.
En Colombia no aparece de forma clara y directa una conexión entre la
legislación penal recientemente aprobada y las inquietudes y demandas
sociales. En efecto, en principio cabría suponer que al clima de
radicalización existente en buena parte de la población en el tema del
conflicto armado se corresponderían posiciones igualmente duras y
beligerantes frente al control de la criminalidad, más aún teniendo en
cuenta que al menos en las tres más grandes ciudades la gente manifiesta
sentirse insegura103. Y no es que exista un alto grado de tolerancia social ni
nada que se le parezca, pues precisamente los índices de criminalidad y
violencia en general indican lo contrario; lo que se quiere poner de presente
es que dicha intolerancia, inseguridad y radicalización no se está
traduciendo en demandas punitivas concretas, como parece indicarlo el ya
comentado altísimo porcentaje de hechos que no se denuncian. Tampoco es
usual en el país la existencia de movimientos de vecinos o de víctimas de
delitos que se asocien en demandas de una mayor punición o protección.
Quizás los más relevantes sean los creados por las víctimas o familiares de
víctimas de violaciones de derechos humanos (desaparecidos, presos
políticos y otros), pero en estos casos se trata de demandas que más bien
parecieran ir a contra vía de la gran mayoría de desarrollos legislativos
recientes, si bien algunas de estas asociaciones participaron en la fase
prelegislativa de la ley 971/2005 (mecanismo de búsqueda urgente de
desaparecidos).
Quizás el único caso que vale la pena comentar de propuestas
claramente punitivas es el de la fundación “País Libre”, dedicada al tema
del secuestro y autora de la única ley penal de iniciativa popular hasta
ahora aprobada en Colombia, la llamada “ley antisecuestro” (ley 40 de

103 Cfr. DANE, “Encuesta de victimización”, 2003, ya citada.

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1993), que fue la primera en consagrar penas de 60 años de prisión en


Colombia; no obstante, en los últimos años no han surgido leyes penales
con un origen ni siquiera parecido, muy seguramente porque las
circunstancias que dieron lugar a la aprobación de la ley 40/1993 como una
ley de origen “popular” fueron bastante particulares y difíciles de repetir104.
Tampoco podría decirse con carácter general que los medios masivos de
comunicación hayan influido de manera significativa en la fase
prelegislativa de las reformas penales de mayor trascendencia, pese a la
actitud sensacionalista que suele caracterizar su cubrimiento del tema de la
criminalidad y que en el último tiempo ha tenido como blanco principal a
los delitos sexuales, aunque no se excluye que el cubrimiento de
determinados sucesos por los medios masivos de comunicación haya
motivado alguna que otra propuesta legislativa particular105.
Pareciera en todo caso que la influencia de los medios masivos de
comunicación social fuese mayor en el ámbito judicial, ya que en no pocas
ocasiones ha sido evidente el papel de algunos de ellos como
condicionantes de decisiones judiciales, sobre todo cuando se trata de casos
ampliamente ventilados ante la opinión pública o que adelantan los más
altos tribunales. Tal interés es por lo general muy explícito cuando
involucra escándalos políticos, tal como sucedió con el ingreso de dinero de
mafias del narcotráfico a la campaña del presidente Samper y con el actual
procesamiento por la Corte Suprema de Justicia y la fiscalía general de la
nación de un importante grupo de políticos (la mayoría congresistas
pertenecientes a la coalición de gobierno) por posibles vínculos con los
grupos paramilitares.

104 La fundación “País Libre” fue creada por el periodista Francisco Santos Calderón, después del
secuestro del cual fue víctima por parte de las mafias del narcotráfico. Su creación y el impulso de
la mencionada ley se debieron fundamentalmente al hecho de contar con el apoyo del diario El
Tiempo (de propiedad de la familia Santos), de notable influencia en el ámbito gubernamental y
político en general; de hecho en la actualidad dos miembros de dicha familia ocupan altos cargos
en el gobierno: el mismo Francisco Santos es el actual vicepresidente de la república y su primo
Juan Manuel Santos es el ministro de defensa y ya antes había sido designado a la presidencia y
ministro de Hacienda. Un interesante análisis de las circunstancias que han rodeado la legislación
contra el secuestro en Colombia, en LOPERA MESA, G. P., “La lucha antisecuestro en Colombia (o
el extravía de la razón punitiva)”, en JD, 1998 (31), pp. 89-98, en especial 92-93.
105 Por ejemplo, en la exposición de motivos de la la ley 919/2004 que creó el delito de tráfico de

componentes anatómicos humanos, se alude a hechos difundidos por medios de comunicación


nacionales e internacionales; cfr. GC, 2003 (348) [consultable en
http://www.secretariasenado.gov.co].

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Luego, no se da en Colombia el fenómeno apreciable en otros países y


que DÍEZ RIPOLLÉS denomina “protagonismo de la plebe”106, pues aunque es
innegable que la confrontación armada interna ha producido una evidente
radicalización de la sociedad y mucha laxitud en el uso de la violencia, tales
circunstancias se presentan, como se comentó atrás, acompañadas de una
gran desconfianza hacia las instituciones policiales y penales, a las que
precisamente no suele recurrir mucha gente en demanda de protección, ni
siquiera tratándose de los delitos más graves. Es posible además que en
razón de su prolongación en el tiempo, la situación de violencia
generalizada termine pareciendo casi “banal”107 para la sociedad y en
especial para los grupos sociales vulnerables, más preocupados por la
supervivencia diaria en medio de las apremiantes circunstancias
económicas; también puede suceder que por ello la sociedad haya ido
incorporando algunas formas de violencia a su funcionamiento, dando
lugar a lo que se conoce como cultura de la violencia108, que explicaría al
menos en parte la preocupante desinstitucionalización de la función penal
apreciable en Colombia. Mas en todo caso la situación parece estar muy
alejada de la cultura del control a la que se refiere GARLAND109, escenario en
el cual resultan impensables leyes como las de “descongestión”, rebajas de
penas, despenalización, indultos, etc., tan frecuentes en la historia
legislativa colombiana y cuyo ejemplo más reciente es la ley 1153/2007, que
regula “el tratamiento de las pequeñas causas en materia penal”; leyes que
en Colombia todavía son posibles quizás porque a diferencia de sus
gobernantes y legisladores la gran mayoría de la población (74%) atribuye la
inseguridad a causas sociales como la pobreza, el desempleo y la falta de
programas para ocupar el tiempo libre110, opinión que muy poco favorece la
aparición de programas de acción no expertos111.

106 Díez Ripollés, J. L., La racionalidad de las leyes penales, Madrid, Trotta, 2003, pp. 36-41.
107 Cfr. PECAUT, D., “Presente, pasado y futuro…”, p. 37.
108 PECAUT, D., “Presente, pasado y futuro…”, p. 2.
109 GARLAND, D., La cultura del control…, pp. 275-312.
110 Cfr. FSD, “Criminalidad y victimización…”, p. 21. Según esta encuesta realizada en las seis

ciudades más grandes del país, en promedio la gente considera como la principal causa de la
inseguridad de sus ciudades, las siguientes: pobreza (41%), falta de programas para ocupar el
tiempo libre de los jóvenes (25%), falta de justicia (15%), falta de policía (14%), falta de empleo
(8%) y otros (3%). En ciudades como Cali el porcentaje de quienes valoran a la pobreza como la
principal causa alcanza el 64% y en Cartagena la cifra de quienes consideran que es el desempleo
llega al 21%; la falta de policía tuvo el porcentaje más alto en Cúcuta, donde llegó al 24%, aun
cuando en todo caso muy por debajo a la suma de las causas sociales.
111 Según explica DÍEZ RIPOLLÉS, J. L., La racionalidad de las leyes penales, pp. 40-41, algunos de los

factores sociales que fomentan el “protagonismo de la plebe” serían: el consenso social sobre las

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Lo anterior no excluye la intervención activa de algunos grupos de


presión en la génesis de algunas leyes penales muy particulares. Por
ejemplo, para nadie es un secreto que los intereses de las empresas
aseguradoras han estado detrás de las múltiples reformas al tratamiento
jurídico penal del hurto de automotores112, en razón de los altos costos que
está generando la alta siniestralidad a causa de este delito; así como también
ha sucedido con las empresas de telefonía en relación con las
modificaciones del delito de fraude en las telecomunicaciones (ley
1032/2006) y con otras particularmente interesadas en la represión de
ciertas conductas lesivas de la propiedad industrial o intelectual (ley
1032/2006).
También se ha evidenciado la participación en la fase prelegislativa de
algunas leyes penales de organizaciones no gubernamentales. Por ejemplo,
ya se dijo que el CIA fue producto de un programa de acción conjunto de
entidades estatales como la procuraduría general de la nación, la defensoría
del pueblo, el Instituto Colombiano de Bienestar Familiar y una serie de
organizaciones no gubernamentales encabezada por algunas agencias de las
Naciones Unidas, como la UNICEF. De igual manera la ley 971/2005 que
reglamenta el mecanismo de búsqueda urgente de desaparecidos,
presentada al Congreso por la defensoría del pueblo, fue a su vez producto
del trabajo de la Comisión Nacional de Búsqueda, en la cual tienen
representación, además de algunos organismos gubernamentales, la
asociación de familiares de detenidos desaparecidos (ASFADDES) y la
Comisión Colombiana de Juristas como representante de las organizaciones
defensoras de derechos humanos. Se sabe también que la Corporación
Excelencia en la Justicia tuvo una activa participación en la promoción y
elaboración del proyecto que culminó en la ley 906/2004 (sistema
acusatorio); así mismo, en la ley 747/2002 sobre la trata de personas y de

medidas a tomar; la confianza en la efectividad de las actuaciones de los poderes públicos;


ausencia de preocupaciones sociales más importantes; y pocos márgenes de arbitrio en la
aplicación del derecho. De todos ellos, los tres primeros claramente no se dan en Colombia.
112 Desde el CP de 1980 el hurto se entiende agravado cuando recae sobre vehículo automotor,

norma que permaneció en esencia igual en el CP de 2000; con el objetivo declarado de prevenir el
hurto de automotores, se aprobó la ley 738/2002, que sancionaba con la misma pena del delito de
receptación a “Quien comercie con autopartes usadas de vehículos automotores y no demuestre
su procedencia lícita” (ley declarada inexequible por la Corte Constitucional, mediante la
sentencia C-205/2003); por su parte la ley 813/2003 convirtió dicha circunstancia en calificante del
hurto (lo cual implicó un automático aumento punitivo y posibilidades de detención preventiva);
finalmente, la ley 1142 de 2007 aumentó la pena para esta modalidad del hurto calificado,
quedando de 7 a 15 años de prisión, lo cual excluye la detención y prisión domiciliarias.

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migrantes, la representante que presentó el proyecto de ley contó con la


asesoría de la Fundación Esperanza. Y aunque no precisamente como
promotores de la ley, la propuesta gubernamental de “ley de justicia y paz”
(ley 975/2005) movilizó a múltiples organizaciones nacionales e
internacionales de defensa de los derechos humanos.
En todo caso debe reconocerse que la movilización de grupos y
organizaciones sociales suele ser más notoria en el control de
constitucionalidad de las leyes penales, aprovechando no sólo el carácter
público del mismo sino también que el examen de constitucionalidad ante
la Corte incluye la posibilidad de intervención ciudadana. Se corrobora así
lo dicho antes respecto del paulatino traslado a la Corte Constitucional de
demandas y espacios que tradicionalmente han pertenecido a la política y
por tanto al órgano legislativo, que explica el ya comentado protagonismo
judicial.
b. La fase legislativa penal
1) Iniciativa legislativa
La gran reformadora de la legislación penal colombiana en los últimos
seis años ha sido la fiscalía general de la nación, en cuanto autora de las
leyes penales de mayor alcance (que en algunos casos ha presentado en
“coalición” con el gobierno nacional, a través del Ministerio del Interior y
Justicia, para asegurar su aprobación): C.P y CPP de 2000, CPP de 2004
(sistema acusatorio), ley 890/2004 (aumento general de penas), ley
1142/2007 (“ley de convivencia y seguridad ciudadana”) y ley 1153/2007
(ley de “pequeñas” causas).
Lo anterior ha dado a las reformas penales en Colombia los rasgos
ideológicos y particularidades comentados atrás. Ahora bien, a la luz de los
resultados obtenidos quizás deba valorarse de manera negativa la
asignación constitucional de iniciativa legislativa a la fiscalía general de la
nación113. En primer término por cuanto no se puede perder de vista que la
fiscalía en Colombia, inclusive después de la reforma de 2004, sigue siendo
la encargada de investigar y acusar a los posibles responsables de la
comisión de un delito; luego, las reformas impulsadas por ella en algunos
casos parecen obedecer a una visión sesgada de los problemas penales y
procesales. Por ejemplo, las reformas legislativas orientadas a la detención

113En relación con las reformas de 2000 véanse las enjundiosas críticas de GROSSO GARCÍA, M. S., La
reforma del sistema penal…, pp. 76 y ss.

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preventiva en buena medida lo que han hecho ha sido otorgarle amparo


legal a algunas de las prácticas que los fiscales han venido construyendo
por su propia cuenta y que está propiciando la conversión del proceso penal
en un medio autónomo de prevención, en claro detrimento de sus funciones
constitucionales de garantía. En realidad, pareciera que la fiscalía estuviera
asumiendo en la práctica las funciones de prevención que en teoría
corresponderían a la policía, pero además valiéndose de una nueva
herramienta: la reforma legal.
Lo anterior se hace aún más grave si se tiene en cuenta que según el art.
249 de la Constitución la fiscalía pertenece a la rama judicial. Pero por lo
visto se trata de un ente de carácter “judicial” que no sólo se ha convertido
en el más importante legislador penal, sino que en muchos aspectos
depende claramente del ejecutivo: por ejemplo, el fiscal general es elegido
por la Corte Suprema de Justicia de terna conformada por el presidente de
la república. Y según una de las últimas reformas – impulsada por supuesto
por el gobierno nacional, a solicitud de la propia fiscalía – el fiscal general
debe “suministrar al Gobierno información sobre las investigaciones que se
estén adelantando, cuando sea necesaria para la preservación del orden
público” (art. 251-6 de la Constitución, reformado por el acto legislativo
3/2002).
Como si lo anterior fuera poco, más de quince años después de la
creación y puesta en funcionamiento de la fiscalía, los fiscales delegados de
todos los rangos continúan por fuera de la carrera judicial, lo cual, por una
parte, les sitúa en una situación de evidente precariedad al interior de la
entidad; y por otra, ha convertido a esta última en un apetecido botín
burocrático de los partidos y grupos políticos, en especial – aunque no sólo
– en sus órganos de dirección nacional y regional.
El gobierno nacional, por su parte, mantiene prácticamente el monopolio
sobre la legislación penal de más clara orientación política; de estas leyes la
única que no fue producto de la iniciativa gubernamental fue el frustrado
estatuto para la “seguridad y defensa nacional” (ley 684/2001), cuya
iniciativa correspondió al senador Vargas Lleras, uno de los líderes de la
actual coalición de gobierno y reconocido por sus conservadoras posiciones
en materia de libertades públicas. En cuanto a las leyes que “regulan” el
conflicto interno, el gobierno también ha sido el autor de las dos leyes con
mayor relevancia política, esto es, las que permiten los diálogos de paz y la

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desmovilización de combatientes (leyes 782/2002 y 975/2005). Sin embargo,


leyes de corte humanitario como la que busca la erradicación de las minas
antipersonal (ley 975/2002) y la que reglamenta el mecanismo de búsqueda
urgente de desaparecidos (ley 971/2005) fueron producto de la iniciativa
parlamentaria en el primer caso y de la defensoría del pueblo en el segundo.
Por el contrario, la legislación populista tiene origen en el órgano
legislativo, la gran mayoría de las veces producto de iniciativas de
congresistas que actúan de manera autónoma. Debe aclararse de todas
maneras que este populismo parlamentario se expresa no sólo en el ámbito
de las iniciativas legislativas sino también, y en muy alto grado, durante la
fase deliberativa, tanto en las respectivas comisiones como en las plenarias.
El mejor ejemplo de ello lo constituye lo sucedido con la ley 679/2001,
orientada a la prevención de la explotación sexual de menores a través de
redes de información global. En el proyecto original presentado a la Cámara
por un grupo de representantes se proponía con tal fin una serie de medidas
de muy diversa índole, pero no se incluía ninguna modificación al CP. Sin
embargo, en la ponencia para primer debate en la Cámara baja se decidió
“enriquecer”114 el proyecto con tres nuevos delitos, con penas de 3 a 5 años
de prisión, que se convirtieron en prisión entre 5 y 10 años durante el
trámite en el Senado. Cosa parecida ocurrió durante el trámite legislativo de
las leyes 747/2002 (trata de personas), 1032/2006 (usurpación del derecho
de obtentor de variedades vegetales) y con el ya mencionado CIA.
2) ¿Deliberación?
La fase deliberativa del proceso legislativo penal en Colombia es de una
pobreza extrema y en algunos casos se podría afirmar inclusive que no
existe. Por lo general se actúa como si la aprobación de las leyes penales no
requiriese de una motivación específica, resultando suficiente la existencia
de una ratio legis general para justificarlas, aunque en concreto no aparezca
clara su necesidad o idoneidad, las cuales simplemente se presumen. Por
poner sólo el ejemplo de la ya mencionada ley 679/2001, la adición de tres
nuevas normas de carácter penal (que en el caso del hoy art. 219A significó
un nuevo delito con una pena de hasta 10 años de prisión) se hizo sin

114 Cfr. GC, 1999 (302) [consultable en http://www.secretariasenado.gov.co].

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motivación alguna, pues se consideró por parte de los ponentes que “la
redacción de estos tipos habla por sí misma”115.
Hoy en día lo apreciable es que en relación con las propuestas más
relevantes (por ejemplo, CPP, ley 890/2004, acto legislativo 02/2003, ley
975/2005, ley 1121/2006 y ley 1142/2007), el Congreso haga casi de simple
tramitador de las propuestas presentadas por el gobierno (de ahí que el
fiscal general de la nación prefiera presentar sus propuestas debidamente
respaldadas por el ministerio del interior y justicia), con la excepción de
aquellas leyes con una orientación política más clara, como la de “justicia y
paz” (ley 975/2005) o el “estatuto antiterrorista” (acto legislativo 02/2003) y
otras en las que los aspectos políticos involucrados suelen generar debates
por la oposición. Luego, la “aproximación simplista a la realidad y la
pérdida de oportunidades de reelaboración reflexiva y compartida de los
análisis” que suelen entenderse como manifestaciones propias del
“protagonismo de la plebe”116, en Colombia son más bien características del
populismo legislativo de sus congresistas.

7 – ¿C ONTENER L A I RRACIONALIDAD L EGISLATIVA A CTUAL ?


Ante una realidad tan compleja como la colombiana resulta difícil hablar
de propuestas concretas que puedan incidir en una mayor racionalidad de
la legislación penal, pues la situación actual pareciera ser el cúmulo de una
gran cantidad de factores de muy diversa índole. De hecho, si alguna
conclusión cabe sacar al analizar la intensa actividad legislativa de los
últimos seis años es la de que el camino no parece estar por el lado de las
reformas legales.
Salta a la vista que cualquier propuesta relacionada con el sistema de
justicia penal colombiano no puede hacerse por fuera de la situación política
existente y más concretamente del conflicto armado interno en el que el país
se encuentra inmerso desde hace más de cincuenta años, el cual ha
repercutido en el sistema de justicia en general y de manera principal en la
justicia penal. Es un dato cierto que tanto las acciones de los grupos
insurgentes como las prácticas contrainsurgentes derivadas de las mismas
han ocasionado un grave debilitamiento del Estado, que a su vez ha
degenerado en un largo y profundo proceso de desinstitucionalización, que

115 Cfr. GC, 2000 (488), p. 11 [consultable en http://www.secretariasenado.gov.co].


116 DÍEZ RIPOLLÉS, J. L., La racionalidad de las leyes penales, pp. 36-37.

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afecta de manera grave a la justicia penal, deslegitimada por la


imposibilidad de su ejercicio en algunos sectores del territorio nacional, el
surgimiento de grupos de justicia privada y otras fórmulas extralegales (y
en muchas ocasiones inclusive ilegales) de resolución de los conflictos, altas
tasas de impunidad, etc. Este es uno de los factores más influyentes en la
poca efectividad del sistema penal colombiano y por ello difícilmente
podría avanzarse en su mejoramiento mientras no se resuelva el problema
de la confrontación armada interna, vía que debería empezar por un
acuerdo humanitario inmediato que implique la liberación de rehenes,
secuestrados, presos políticos y que debería extenderse a todas aquellas
medidas tendientes a disminuir los efectos del conflicto en la población
civil. Este cese del conflicto (cualquiera que sea el tiempo y la forma en que
se logre) deberá ir acompañado, por supuesto, de otra serie de medidas
económicas, sociales y políticas que haga posible la superación de un
conflicto tan largo y doloroso.
El problema está en que el presente no permite ser optimista en este
sentido, por lo que surge el interrogante de si son posibles algunas medidas
adicionales tendientes, para decirlo de manera un poco más realista, a una
contención o disminución de la irracionalidad legislativa existente en la
actualidad. En este orden de ideas quizás pudieran ser útiles algunas
medidas en particular:
1) En primer lugar valdría la pena insistir en la propuesta ya formulada
por un sector de la doctrina penal colombiana117, en el sentido de exigir para
las leyes penales el trámite de las leyes estatutarias, de conformidad con lo
dispuesto en el art. 152 de la Constitución política. Hasta ahora la
jurisprudencia de la Corte Constitucional ha sido reacia a dicha exigencia
con argumentos harto discutibles y contradictorios118, en los que se
desconoce el papel del derecho penal (sustantivo y procesal) como
mecanismo de protección de derechos fundamentales, empezando por el
derecho a un debido proceso legal, que según la propia jurisprudencia
constitucional es un derecho de aplicación inmediata y merecedor de la
acción de tutela (arts. 85 y 86).

117Cfr. VELÁSQUEZ, F., Manual…, p. 55.


118Cfr. Corte Constitucional, sentencias C-013/1993; C-313/1994; C-226/1994, C-424/1994, C-
055/1995; C-193/2005. Ampliamente al respecto, PACHECO PÉREZ, J. E., La reserva de ley estatutaria
en materia penal en Colombia: un análisis crítico de la jurisprudencia constitucional, trabajo de grado,
Medellín, Universidad de Antioquia, 2001.

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Esta reserva de ley estatutaria es posible que pueda al menos dificultar


no sólo el populismo legislativo sino las reformas legales permanentes, en
tanto obligaría a consensos políticos de mayor alcance al exigir su
aprobación por mayoría absoluta y su trámite en una misma legislatura (art.
153). Adicionalmente, la revisión previa del proyecto de ley por parte de la
Corte Constitucional impediría la entrada en vigencia de normas
inconstitucionales, aspecto que redundaría en una más eficaz salvaguardia
de los derechos fundamentales y evitaría algunos problemas de aplicación
temporal de la ley que la declaración de inconstitucionalidad suele generar.
2) De otra parte, valdría la pena pensar seriamente en la posibilidad de
establecer ciertas exigencias en la motivación de las leyes penales (sin
perjuicio de que dichas exigencias puedan extenderse a algunas otras
materias o a todas en general), inclusive hasta implicar la obligatoriedad de
ciertos requisitos básicos, que estarían plenamente justificados dado el
carácter altamente aflictivo de la intervención penal. En particular, pareciera
imprescindible que todo proyecto de ley penal acredite por lo menos su
necesidad e idoneidad respecto de los objetivos perseguidos; así mismo
debería prever los resultados esperados, de manera que facilite su
evaluación posterior.
3) Acorde con lo anterior y dado el rumbo actual de la legislación penal
colombiana, resulta imperioso que la exposición de motivos de las leyes sea
objeto del juicio de constitucionalidad de las leyes penales, dado que sólo
así podrán ser correctamente evaluadas la necesidad, idoneidad y
proporcionalidad de los medios penales propuestos, acorde con los más
recientes desarrollos doctrinales respecto de la aplicación del principio de
proporcionalidad en el análisis de constitucionalidad de las leyes penales119.
4) Finalmente, la experiencia colombiana ha demostrado la
inconveniencia de otorgarle iniciativa legislativa al fiscal general de la
nación, con mayor razón si según la propia Constitución la fiscalía
pertenece a la rama judicial. Por tal motivo debería suprimirse dicha
facultad, sin perjuicio de la posibilidad de que cualquier juez o fiscal (y no
sólo el fiscal general de la nación) pueda sugerir al gobierno nacional o
directamente al Congreso de la república alguna reforma particular de la
legislación penal.

119Véase a LOPERA MESA, G. P., “Principio de proporcionalidad y control constitucional de las leyes
penales”, en JD, 2005 (53), pp. 39-53; más ampliamente, de la misma autora, Principio de
proporcionalidad y ley penal. Bases para un modelo de control de constitucionalidad de las leyes
penales, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 2006.

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A BREVIATURAS
ACNUDHC – Alta Comisionada de las Naciones Unidas para los Derechos Humanos en
Colombia
ADCL – Anuario de Derecho Constitucional Latinoamericano
AP – Análisis Político
ASFADDES – Asociación de Familiares de Detenidos Desaparecidos
CCJ – Comisión Colombiana de Juristas
CEJ – Corporación Excelencia en la Justicia
CEJOSPA – Corporación Excelencia en la Justicia Observatorio del Sistema Penal
Acusatorio
CIA – Código de la Infancia y la adolescencia
CIDH – Comisión Interamericana de Derechos Humanos
CP – Código Penal
CPP – Código de Procedimiento Penal
CSJ – Corte Suprema de Justicia
DANE – Departamento Administrativo Nacional de Estadística
DPC – Derecho Penal y Criminología (Bogotá)
DPCRI – Derecho Penal Contemporáneo. Revista Internacional
EC – Economía Colombiana
ED – Estudios de Derecho
EP – Estudios Políticos
FSD – Fundación Seguridad y Democracia
GC – Gaceta del Congreso
HRW – Human Rights Watch
INMLCF – Instituto Nacional de Medicina Legal y Ciencias Forenses
INPEC – Instituto Nacional Penitenciario y Carcelario
JD – Jueces para la Democracia
NFP – Nuevo Foro Penal
RC – Revista Criminalidad
RDPC – Revista de Derecho Penal y Criminología (Madrid)
RECPC – Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología
REI – Revista de Economía Institucional
REIC – Revista Española de Investigación Criminológica
RIDP – Revue Internationale de Droit Pénal

61
CONSTITUIÇÃO, BEM JURÍDICO E CONTROLE
SOCIAL: A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA
OU DE COMO “LA LEY ES COMO LA
SERPIENTE; SOLO PICA A LOS DESCALZOS”
L ENIO L UIZ S TRECK *

Resumo: A discussão do direito penal no Estado democrático de


Direito exige novos paradigmas. Na medida em que o Estado
sofreu sensíveis alterações, o direito deve acompanhar esses
giros copernicanos que atravessam as diversas disciplinas
jurídicas, em especial o direito penal. Daí a presente discussão:
o que fazer com o direito penal.

1 – P RÉ - JUÍZOS E P REJUÍZOS EM F ACE DA (B AIXA ) C OMPREENSÃO


DO S ENTIDO DA C ONSTITUIÇÃO
Em Cem Anos de Solidão, GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ conta que, em
Macondo, o mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e
para mencioná-las precisava-se apontar com o dedo. A Constituição do
Brasil também é muito recente. Olhando a imensidão de seu texto, colhe-se
a nítida impressão de que algumas coisas ainda não têm nome; parcela
considerável dos juristas limitam-se – quando o fazem – a apontá-las com o
dedo... A ausência de uma adequada pré-compreensão (Vorverständnis)
impede o acontecer do sentido. GADAMER sempre nos ensinou que a
compreensão implica uma pré-compreensão que, por sua vez, é pré-
figurada por uma tradição determinada em que vive o intérprete e que
modela os seus pré-juízos.

* Doutor e Pós-Doutor em Direito; Professor do Mestrado e Doutorado em Direito da UNISINOS –


RS e da UNESA – RJ; Professor visitante da Universidade de Coimbra (Acordo Internacional
CAPES-GRICES – UNISINOS e FDUC); Procurador de Justiça do Ministério Público do Rio
Grande do Sul – Brasil.

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A tradição nos lega vários sentidos de Constituição.


Contemporaneamente, a evolução histórica do constitucionalismo no
mundo (mormente no continente europeu) coloca-nos à disposição a noção
de Constituição enquanto detentora de uma força normativa e compromissória,
pois é exatamente a partir da compreensão desse fenômeno que poderemos
dar sentido à relação Constituição-Estado-Sociedade. Mais do que isso, é do
sentido que temos de Constituição que dependerá o processo de
interpretação dos textos normativos do sistema.
Sendo um texto jurídico (cujo sentido, repita-se, estará sempre
contido em uma norma que é produto de uma atribuição de sentido1 –
Sinngebung) válido tão-somente se estiver em conformidade com a
Constituição, a aferição dessa conformidade exige uma pré-compreensão
que funciona como um processo de antecipação de sentido, numa co-pertença
“faticidade-historicidade do intérprete e Constituição-texto infraconstitucional”.
Um texto jurídico (um dispositivo, uma lei, etc.) jamais é interpretado
desvinculado da antecipação de sentido representado pelo sentido que o
intérprete tem da Constituição.
Destarte, uma “baixa compreensão” acerca do sentido da
Constituição – naquilo que ela significa no âmbito do Estado Democrático
de Direito – inexoravelmente acarretará uma “baixa aplicação”,
problemática que não é difícil de constatar na quotidianidade das práticas
dos operadores do Direito em terrae brasilis. Por isto, pré-juízos inautênticos
(no sentido de que fala GADAMER) acarretam sérios prejuízos ao jurista.
Vale aqui o alerta de que até mesmo algumas posturas que se
consideram críticas no campo jurídico, embora busquem superar o
formalismo normativista (para o qual o texto é uma mera entidade
lingüística), terminam por transferir o locus da produção do sentido do
objetivismo para o subjetivismo, da coisa para a mente/consciência (subjetividade

1 Texto e norma não existem separadamente. Este é o ponto de estofo da própria compreensão do
fenômeno hermenêutico: não basta distinguir texto e norma. Esta simples distinção transforma a
norma em um mero enunciado lingüístico, enfim, paradoxalmente, em um “mero texto”. O texto
só é na (sua) norma e a norma só é no (seu) texto. Nem cisão e nem identificação (equiparação): apenas a
diferença, pois. Daí que o texto não existirá (ou subsistirá) como texto, ou, em outras palavras, o
texto não existe na sua “textitude” (em si). A norma é que será condição de possibilidade do texto.
A norma será sempre o produto da interpretação do texto (atribuição de sentido – Sinngebung). E
este “produto” ocorre na applicatio (GADAMER). É momento uno; indivisível. Não interpretamos
em partes.

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assujeitadora e fundante)2, da ontologia (metafísica clássica) para a filosofia da


consciência (metafísica moderna). E, por aí, estacionam. E congelam sentidos
(de preferência, por intermédio de súmulas ou até mesmo em verbetes que
são reproduzidos em compêndios e manuais, na maioria das vezes de
duvidosa cientificidade, cuja serventia maior é servir de base para os
cursinhos de preparação para concursos3 e para as faculdades de direito,

2 Nada mais, nada menos que o velho problema da discricionariedade positivista (lembremos do
debate DWORKI-HART). O direito continua refém do esquema sujeito-objeto, apostando tudo no
protagonismo dos juízes (essa questão vem desde OSCAR VON BÜLLOW, atravessando os séculos até
chegar na escola instrumentalista do processo no Brasil e na permanência do caráter inquisitivo
do processo penal). O “drama” da discricionariedade aqui criticado é que esta transforma os
juízes em legisladores. E mais do que transformar os juízes em legisladores, o “poder discricionário” –
que KELSEN e HART “delegaram” a eles, juízes – propicia a “criação” do próprio objeto de “conhecimento”,
típica problemática que remete a questão ao solipsismo próprio da filosofia da consciência no seu mais
exacerbado grau. Ou seja, concebe-se a razão humana como “fonte iluminadora” do significado de tudo o
que pode ser enunciado sobre a realidade. As coisas são reduzidas aos nossos conceitos e às nossas
concepções de mundo. As “coisas” ficam à dis-posição de um protagonista (no caso, o juiz, enfim,
o Poder Judiciário).
Veja-se, nesse exato sentido, recente decisão do Supremo Tribunal Federal, que, em uma de suas
Turmas, por maioria de votos, indeferiu habeas corpus em que se alegava falta de demonstração da
urgência na produção antecipada de prova testemunhal de acusação, decretada nos termos do art.
366 do Código de Processo Penal, ante a revelia do paciente/réu (Art. 366 do CPP: “Se o acusado,
citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o
curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas
urgentes e, se for o caso, decretar a prisão preventiva, nos termos do art. 312”). O STF deixou
assentado que a determinação de produção antecipada de prova está ao alvedrio do juiz, que pode
ordenar a sua realização se considerar existentes condições urgentes para que isso ocorra (Cf. HC 93.157,
23.09.2008 – grifei). O Min. Ricardo Lewandowski (relator) votou vencido, concedendo a ordem,
porque vislumbrou ofensa ao dever de fundamentar as decisões judiciais e às garantias do
contraditório e da ampla defesa, uma vez que a decisão que determinou a produção de prova
esteve “fundamentada” tão-somente no fato de o paciente não ter sido localizado (nas palavras do
Ministro, “a decisão fora determinada de modo automático”). Como se pode perceber, em pleno
Estado Democrático de Direito, que consagra o sistema acusatório, o STF fortalece o
protagonismo judicial, apostando na “boa escolha” discricionária do magistrado.
3 O assunto “concursos públicos” mereceria uma análise apartada. De todo modo, reproduzindo um

determinado imaginário, algumas perguntas beiram ao folclórico, como a que foi feita em
concurso público de âmbito nacional, pela qual o examinador queria saber a solução a ser dada na
hipótese de um gêmeo xifópago ferir o outro...! Com certeza, gêmeos xifópagos (na verdade, o
enunciado da questão referia “xipófagos” – sic), encontrados em qualquer esquina, andam
armados e são perigosos (a propósito, o que os gêmeos xifópagos acharam do referendum sobre o
desarmamento? Votaram sim ou não?) Pois não é que a pergunta voltou a ser feita, desta vez em
concurso público de importante carreira no Estado do Rio Grande do Sul? A questão de direito
penal que levou o número 46 dizia: “André e Carlos, gêmeos xipófagos (sic), nasceram em 20.01.79.
Amadeu é inimigo capital de André. Pretendendo por (sic) fim a (sic) vida de André, desfere-lhe um tido
mortal, que também acerta Carlos, que graças a uma intervenção cirúrgica eficaz, sobrevive”. E seguiam
várias alternativas. Sintomas da crise, pois.

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sem esquecer que parcela considerável das decisões judiciais – sentenças e


acórdãos – são “reproduções das reproduções”).
Numa palavra, as condições de possibilidades para que o intérprete
possa compreender um texto implicam (sempre e inexoravelmente) a
existência de uma pré-compreensão (seus pré-juízos) acerca da totalidade
(que a sua linguagem lhe possibilita) do sistema jurídico-político-social.
Desse belvedere compreensivo, o intérprete formulará (inicialmente) seus
juízos acerca do sentido do ordenamento (repita-se, o intérprete jamais
interpreta em partes – lembremos das três subtilitatae tão bem criticadas por
GADAMER – intelligendi, explicando e applicandi)4. E sendo a Constituição o
fundamento de validade de todo o sistema jurídico – e essa é a
especificidade maior da ciência jurídica –, é de sua interpretação/aplicação
(adequada ou não) que exsurgirá a sua (in)efetividade.
Calham, pois, aqui, as palavras de KONRAD HESSE, para quem resulta
de fundamental importância para a preservação e a consolidação da força
normativa da Constituição a interpretação constitucional, a qual se encontra
necessariamente submetida ao mandato de otimização do texto
constitucional5. Trata-se, pois, de problema fundamentalmente
hermenêutico, muito bem detectado, aliás, por PAULO BONAVIDES6, para
quem, “para agravar a crise das Constituições, verificou-se o emprego de
uma metodologia interpretativa que caiu prisioneira do formalismo e do
jusprivatismo. Foi, portanto, um equívoco, segundo MÜLLER, a recepção de
regras artificiais de interpretação elaboradas pelo positivismo e recolhidas da
herança romanista de SAVIGNY, fazendo da realização do Direito e da concretização
da norma simples operação interpretativa de textos de norma”.
Assim, a pergunta que se impõe é: como é possível olhar o novo
(texto constitucional de 1988), se os nossos pré-juízos (pré-compreensão)
estão dominados por uma compreensão ainda arraigada a um modelo
liberal-individualista de direito e que reproduz os standards7 de uma época

4 Por isso GADAMER vai sustentar que essa cisão/divisão é incorreta (metafísica): na verdade,
sempre aplicamos (o que ele chama de applicatio).
5 Cfe. HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional. Madrid, Centro de Estudios Constitucionales,

1983.
6 Cfe. BONAVIDES, Paulo. Direito Constitucional. São Paulo, Malheiros, 1996, p. 34.
7 A cultura standard do direito toma proporções inimagináveis. É a “indústria” que mais cresce no

mundo jurídico. É uma proliferação de “conceitos sem coisas”. De quadros sinópticos à


esquematizações, tudo visando a simplificar “as coisas” para os alunos e profissionais em geral.
Verbi gratia, a pergunta que deve ser feita é: qual é a importância acadêmico-científica (ou até
mesmo “prática”) de publicações que meramente reproduzem expressões do senso comum

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que deveria estar ultrapassada pela reflexão jus-filosófico-penal-


constitucional?

2 – A C RISE DO D IREITO (P ENAL ) E A C ONSTITUIÇÃO


Passados vinte anos desde a promulgação da Constituição, não há
indicativos de que tenhamos avançado no sentido da superação da crise por
que passa a operacionalidade do Direito em terrae brasilis. Persistimos
atrelados a um paradigma penal de nítida feição liberal-individualista8, isto
é, preparados historicamente para o enfrentamento dos conflitos de índole
interindividual, não engendramos, ainda, as condições necessárias para o
enfrentamento dos conflitos (delitos) de feição transindividual (bens
jurídicos supra-individuais), que compõem majoritariamente o cenário
desta fase de desenvolvimento da Sociedade brasileira9. Isto é, não podemos

teórico (ou que expressam “contundentes obviedades”), como, por exemplo, que a interpretação
doutrinária é aquela realizada por estudiosos do direito, “os quais emitem suas opiniões pessoais
(sic) sobre a lei” e que interpretação judicial é aquela realizada pelos aplicadores do direito, ou
seja, pelos juízes (sic)? Pergunta-se: hermenêutica jurídica seria algo tão singelo (ou simplista)
quanto proferir uma “opinião pessoal”? Alguém duvida que a interpretação judicial é feita pelos
juízes e tribunais? Mais: qual é a importância reflexiva contida na assertiva, constante em um
importante manual de direito penal, de que o desenvolvimento mental incompleto é aquele que
ainda não se concluiu e o desenvolvimento retardado é o que não pode chegar à maturidade
psíquica? E o que o autor queria dizer com o enunciado “o motivo torpe é aquele que, por sua
manifesta repugnância, ofende os princípios da moralidade social”? Ou com a “proposição”: a
torpeza é uma “qualidade” (sic) que ofende a nobreza do espírito humano? Veja-se a
definitividade do “conceito” de grave ameaça, caracterizada em um importante manual como “o
prenúncio de um acontecimento desagradável...” E o campo penal é o locus privilegiado desse
tipo de afirmações. Veja-se mais: “coisa alheia” no crime de furto “é aquela que não pertence à
pessoa” e “coisa móvel” é aquela que se desloca de um lugar para outro; agressão atual, na
caracterização da legítima defesa, é “aquela que está acontecendo” e a iminente é a “que está por
acontecer”; “aquele que escreveu a carta não pode ser sujeito ativo do crime de violação de
correspondência”; “a água do mar não pode ser objeto de furto...”. A lista é interminável... Por
derradeiro, observe-se que os exemplos sempre tratam de delitos que dizem respeito ao “andar de
baixo”, reproduzindo o imaginário liberal-individualista. Os “melhores” e “conhecidos”
exemplos são de furto, homicídio e roubo. Não há muitos exemplos sobre os crimes de lavagem
de dinheiro, gestão temerária ou tráfico de influências ou até mesmo sobre alta corrupção. Talvez
até mesmo pela falta de julgados a respeito...!
8 Deixo aqui de analisar a crise nos demais campos do direito.
9 Observe-se como tem fundamento a frase “o código civil é feito para os que têm e o código penal é

feito para os que não têm”. Historicamente, sempre foi mais fácil e rápido elaborar um código
penal. Vejamos: Constituição de 1824, Código Criminal já em 1830; com proclamação da
República e mesmo antes da nova Constituição, já tínhamos um novo código penal em 1890;
novas “clientelas” exigiram nas décadas de 40 (do século XX) em diante, não só um Código novo
(1940) como também um conjunto de leis “ad hoc”. Enquanto isso, no “campo cível”, mantivemos
as Ordenações Filipinas (1603) até o ano de 1916; e a história se repetiu (como uma farsa) com o
advento da Constituição de 1988: novamente passaram-se quase 30 anos para “mexer” com as

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pensar que é possível alterar o foco do direito penal se continuarmos pensando


que os bens jurídicos que devem ser protegidos são os de feição meramente
interindividual (ou, para usar uma expressão em voga, bens jurídicos de
“carne e osso”).
Reflitemos a respeito: o primeiro código (penal) brasileiro foi o do
Império. Outorgada a Constituição em 1824, permanecemos com as
Ordenações Filipinas até o ano de 1830, quando foi editado o Código
Criminal, nitidamente direcionado a uma clientela: escravos e congêneres
(aliás, havia uma inconstitucionalidade que jamais pôde ser decretada,
porque não havia controle jurisdicional de constitucionalidade no Império:
a Constituição aboliu as penas de galés e açoites; já o Código permitia
açoitar escravos e a condenação às galés...). Proclamada a República em
1889, já no ano seguinte tínhamos um novo Código, agora dirigido a uma
nova clientela: ex-escravos e congêneres (basta ver os tipos penais mais
importantes). Em nenhum deles houve a “preocupação” com o “andar de
cima” da sociedade. Afinal, centenas de anos de escravidão marcaram
indelevelmente o sentido de classe do direito, em especial o direito penal.
Como ocorre até os dias atuais, o establishment jamais legisla “contra si
mesmo”10. Por isso, a ausência histórica de punições mais efetivas contra
crimes contra o erário público, corrupção, etc. E não esqueçamos a relevante
circunstância de que criminalizar a pobreza é um eficaz meio de controle social.
Mutatis mutandis, a preocupação maior sempre foi com a proteção da
propriedade privada e dos interesses lato sensu das camadas dominantes,
questão que ficou bem visível no Código de 1940, que surge em pleno
Estado Novo, agora com a preocupação de atingir a um outro tipo de
“clientela”: um Brasil que aos poucos se urbanizava e que passava pela
segunda fase do processo de substituição de importações (não esqueçamos
que até 1930 o Brasil se sustentava na base da economia agrário-

questões do “sujeito-proprietário-de-mercadorias-da-modernidade” que agora ingressa na “pós-


modernidade” e no neoliberalismo.
10 Nesse sentido, vale a pena examinar o projeto de lei nº 3977/08, de autoria do deputado Renato

Amary, que tramita no Congresso Nacional. O projeto altera os arts. 11, 12, parágrafo único, 21 e
23 da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, e art. 18 da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985,
determinando a existência de dolo para a configuração de ato de improbidade administrativa;
prevê também a prescrição do processo judicial de improbidade em 5 (cinco) anos; além disso, o
projeto inclui a aferição pelo juiz do motivo, circunstâncias e conseqüências do ato improbo.
Vale lembrar também que menos de dez por cento dos projetos de lei que tramita(ra)m nos
últimos anos no Congresso Nacional tratam dos crimes do “andar de cima”; isto é, cerca de
noventa por cento dos projetos preocupam-se com a criminalização dos delitos interindividuais (a
maioria buscando enrijecer o tratamento penal).

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exportadora). Inspirado no modelo fascista, o Código Penal apontou


efetivamente para o “andar de baixo”, com especial preocupação com os
crimes contra o Estado, o “livre desenvolvimento” do trabalho, a “proteção
dos costumes”, etc., mas sempre dando ênfase à propriedade privada: o
furto recebeu uma qualificadora de chave falsa, uma vez que as pessoas
guardavam dinheiro em suas casas, problemática também presente (e
protegida) pela qualificadora da escalada, etc., sendo que o furto qualificado
recebeu uma duplicação de pena (2 a 8 anos). Até o esbulho recebeu
proteção penal. De registrar que, em tempos de “proteção da moral pelo
Estado”, houve a aposta em uma espécie de behaviorismo criminal, isto é,
passou-se a punir vícios e comportamentos sociais. Afinal, o Estado estava
preocupado em “consertar o homem”, criando para tanto, ao lado do
Código Penal, a Lei das Contravenções Penais (aqui é interessante notar o
modo como aparece o componente de “classe” no direito criminal: enquanto
se punia criminalmente a mendicância, também se punia, na área cível, o
pródigo; com isso, cria-se um elo entre o mendigo e o pródigo; o primeiro
denuncia o sistema injusto, a divisão em classes, etc.; já o segundo
decepciona o sistema, d’onde se pode dizer que o pródigo é o “lumpen da
burguesia” nacional).
Ao (atual) Código Penal de 1940 foram sendo acrescidas uma série de
leis, sendo que parcela considerável sem qualquer sistematicidade. Na
medida em que o crime se organizava e mudava de feição, foi-se legislando
de forma ad hoc, como, por exemplo, a lei do Colarinho Branco (Lei
7.492/86), a da Lavagem de Dinheiro (Lei 9.613/98), do Crime Organizado
(Lei 9.034/95), dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/90).

3 – A E FETIVA C ONFISSÃO DE Q UE , H ISTORICAMENTE ,


C RIMINALIZAMOS A P OBREZA E M ANTEMOS UM D IREITO
P ENAL DE “C LASSE ”
Já é de certa forma um lugar-comum qualificar o Direito Penal (e em
especial o Direito Penal brasileiro) como conservador e ideológico, típico de
um modelo de Estado em que a produção das leis (e do Direito em geral)
segrega a pobreza, afastando-a da sociedade civil (composta por pessoas
“de bem”?), a pretexto de garantir a almejada “paz social”.
Colocando a questão em outros termos, não há como dizer que o
Direito Penal “clássico” não seja mesmo refém de um paradigma liberal-

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individual-patrimonialista, que o colocou a serviço da proteção do


patrimônio, da propriedade e, sobremodo, dos proprietários.
Os exemplos são inúmeros e já foram, quase todos, bem explorados
por qualquer doutrina crítica. Fala-se de um emaranhado legislativo que
estabelece ações penais públicas e incondicionadas para crimes de nítido
cariz patrimonial e individual, como o furto privilegiado (art. 155, § 2º, do
Código Penal) e a alteração de marca em gado alheio (com pena de até 03
anos de detenção! – art. 162 do Código Penal); ou públicas (ainda), mas
condicionadas à representação, em casos como o de tomar refeição em
restaurante sem dispor de recursos para pagamento (art. 176 do Código
Penal). Isso para não falar na nossa sempre lembrada Lei das Contravenções
Penais (Decreto-Lei nº 3.688 de 1941), que criminalizou o modo-de-ser da
escumalha, que perturba o trabalho alheio com algazarra (art. 42, I, da LCP),
que se finge de funcionário público (art. 45 da LCP), que se entrega à
ociosidade sem renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência (art.
59 da LCP), que se embriaga (art. 62 da LCP) e que mendiga, (certamente)
por ociosidade e cupidez (art. 60 da LCP). E isso tudo, também, sempre
mediante a ciosa atuação pública e incondicionada do Ministério Público
(art. 17 da LCP).
Essas infrações todas, sem exceção, são representativas de uma
experiência de um Estado protoliberal e da nítida oposição entre Estado e
sociedade civil (cidadania) que a caracteriza. A garantia da segurança (e é
para isso que se “contrata” o Estado legal-liberal-formal-burguês) passa,
inexoravelmente, pela proteção dos bens jurídicos vida/integridade pessoal
(os crimes “de carne e osso” estão todos lá) e, como visto, do patrimônio
(em especial, o individual).
Pois bem. A questão fica mais interessante (e mais “jurídica” do que
“sociológica”) quando se contrasta este estado de coisas com o advento da
Constituição de 1988, que inaugurou, no Brasil, o marco de um Estado
Democrático (e Social) de Direito. Isso significa dizer, em síntese, que a
nossa realidade passou a ser tomada por um acentuado deslocamento do
centro de decisões do Legislativo e do Executivo para o plano da justiça
constitucional, que passa a zelar (e a legitimar-se) pela busca dos altos
objetivos da República, entre eles, a erradicação da pobreza e a redução das
desigualdades sociais (art. 3º, III, da CR). Entre os fatores que colaboraram
para esse deslocamento está o tipo de Constituição do pós-segunda grande
guerra, com nítido cariz principiológico, quando o direito passou a abarcar
o mundo prático até então rejeitado pelo positivismo.

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Se nos quadros de um modelo de Direito Liberal fazia algum sentido


o privilégio da defesa do patrimônio e segurança individuais – e isso já
estava presente em JOHN LOCKE –, agora nós devemos (deveríamos) ter em
mente a presença de novos bens jurídicos, típicos da tradição que se forja no
Estado Democrático de Direito, no qual não há (mais) oposição entre Estado
e Sociedade. A defesa do Estado (isto é, de um Estado que passa da
condição de “inimigo” para a de “amigo dos direitos fundamentais”, bem
entendido) é a defesa da cidadania. E, no interior desta “reviravolta”, é
evidente que as baterias do Direito Penal deve(ria)m ser voltadas para
aquelas condutas que se coloquem como entrave à concretização do projeto
constitucional.
Neste contexto, surge (desvela-se, em sentido hermenêutico) uma nova
criminalidade a ser combatida, aquela que atinge bens jurídicos supra-
individuais, que afetam à toda a coletividade. Fala-se no enfrentamento de
crimes como a sonegação de tributos e a lavagem de dinheiro (todos estes
com lesividade meta-individual).
Nesse sentido, vale lembrar que Constituição (se não é uma mera
“carta de intenções”), efetivamente determina ao Legislativo e ao Judiciário
que orientem o seu agir para esta direção, dando proteção suficiente aos bens
jurídicos que foram catalogados em destaque (não só a ordem econômico-
financeira, mas também o ambiente e a infância e juventude, por exemplo).
E, afinal, se o Direito Penal é a última ratio, a mais grave das redes
sancionatórias do aparato estatal, o mínimo que se espera (e aí DWORKIN
tem razão, quando cobra coerência e integridade do Direito) é que trate
desigualmente os crimes desiguais. Exemplificando, para ficar mais claro: se
o patrimônio individual é algo a ser protegido (e segue sendo a propriedade
um direito fundamental, algo que se lembra para evitar mal-entendidos –
art. 5º, XXII, da CR), inclusive via Direito Penal, então não pode haver
dúvida de que o tratamento deve ser ainda mais rigoroso quando a
lesividade atinge o patrimônio da coletividade. Ou por outra: se segue
sendo criminalizada a violação da honra (também direito fundamental, a
propósito – art. 5º, X, da CR), não se espera menos das condutas que
agridam direitos da infância e juventude (a quem se prometeu “absoluta
prioridade”, nos termos do art. 227, caput, da CR).
Contudo, a “baixa constitucionalidade” do Legislativo e dos
operadores do direito faz com que a sua almejada integridade seja uma quimera.
Uma rápida pesquisa nos principais sítios eletrônicos dos Tribunais do
Brasil nos dá provas incontornáveis disso. Com efeito:

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3.1 A Legislação e Suas Incongruências: Uma Breve


Comparação Entre os Tipos Penais
Não é necessária uma pesquisa muito aprofundada para que se
encontre incongruências no ordenamento jurídico-penal brasileiro. A partir
da simples leitura da Parte Especial do Código Penal já se deduz, de plano,
a preferência do legislador na penalização dos crimes patrimoniais quando
em comparação com os crimes praticados contra a pessoa. Veja-se,
exemplificativamente, que ao crime de homicídio simples é cominada uma
pena mínima abstrata inferior à estabelecida para o crime de roubo
qualificado pelo resultado lesão corporal grave. Ainda, ao crime de
homicídio qualificado é cominada pena muito inferior à relativa ao crime de
roubo qualificado pelo resultado morte: neste a pena abstrata varia de 20 a
30 anos de reclusão; naquele, de 12 a 30 anos. Ou seja, à “qualificadora de
subtração de coisa alheia móvel” no crime de homicídio (ou, se assim se quiser,
homicídio praticado com o motivo de obtenção de vantagem patrimonial), comina-se
uma pena abstrata no mínimo 08 anos mais grave do que a pena prevista à prática
de homicídio qualificada por qualquer circunstância qualificadora prevista
(mediante paga ou promessa de recompensa, com emprego de tortura ou qualquer
outro meio cruel, v.g.) no artigo 121, § 2o, do Código Penal.
Permanecendo, ainda, nas disposições concernentes aos títulos I e II
do Código Penal, ao crime de furto qualificado é cominada pena abstrata
muito superior à sanção prevista ao crime de lesão corporal de natureza
grave. Ou seja: a subtração de bem patrimonial do interior da residência da
vítima realizada por mais de uma pessoa ou com abuso de confiança (veja-
se que, nesse último caso, pode-se enquadrar, conforme o caso concreto, a
subtração de objetos da residência por empregado da
residência/estabelecimento) implica sanção superior à ofensa à integridade
corporal de que resulte debilidade permanente de membro, sentido ou função.
Indo além, em relação ao furto simples, a sanção é superior (duas
vezes maior) à definida para o crime de exposição ou abandono de recém
nascido, sem falar que ao furto é cominada pena de reclusão. Importante
observar, ademais, que a conduta de adquirir – com finalidade comercial –
coisa que deveria saber produto de crime recebe apenamento superior à
conduta que – mediante dolo direto – causa lesão corporal gravíssima com
deformidade permanente, perda de membro ou aborto.
Por fim, resta escancarada a preferência do legislador quanto ao bem
jurídico primordial quando se tem como parâmetro de comparação as

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sanções cominadas aos crimes de redução à condição análoga à de escravo


(pena de 02 a 08 anos de reclusão) e o crime de extorsão mediante seqüestro
com duração de mais de 24 horas (pena de 12 a 20 anos de reclusão). De
registrar, ademais, que o crime de supressão ou alteração de marcas de
animais (art. 162) é apenado com 6 meses a 3 anos de detenção e multa,
pena máxima superior à cominada aos crimes de subtração de incapazes
(art. 249 ), violência doméstica nas hipóteses do § 10 (art. 129), maus-tratos
(art. 136), violação de domicílio – quando praticada durante a noite ou em
lugar ermo, ou com emprego de violência ou de arma, ou, ainda, por duas
ou mais pessoas (art. 150, § 1°); atentado ao pudor mediante fraude (art.
216); assédio sexual (art. 216-A). O apenamento máximo excede, ainda, as
penas previstas a crimes contra a ordem tributária (art. 2° da Lei 8.137/90),
a crimes ambientais (arts. 32; 45; 50 da Lei 9.605/98), a crimes cometidos
contra criança e adolescente (arts. 228; 229; 230; 231; 232; 234; 235; 236; 242;
243; 244 da Lei 8.069/90) e a crimes ocorridos em licitações (arts. 93; 97; 98
da Lei 9.666/93).
Considere-se, ademais, que o Brasil é o único país do mundo em que
a fraude à licitação é considerada “crime de menor potencial ofensivo”. Este
e tantos outros, tornando-se despicienda a sua enumeração.
Nesse mesmo contexto de descritério de resposta penal – tendo por
perspectiva a importância do bem jurídico protegido – exsurgem, na
legislação esparsa, exemplos ainda mais desveladores da política de
criminalização utilizada em terrae brasilis. No Código de Defesa do
Consumidor são previstas, como crimes, as condutas de: omitir dizeres ou
sinais ostensivos sobre a nocividade ou periculosidade de produtos, nas
embalagens, nos invólucros, recipientes ou publicidade ou deixar de alertar,
mediante recomendações escritas ostensivas, sobre a periculosidade do
serviço a ser prestado; deixar de comunicar à autoridade competente e aos
consumidores a nocividade ou periculosidade de produtos cujo conhecimento seja
posterior à sua colocação no mercado, deixar de retirar do mercado, imediatamente
quando determinado pela autoridade competente, os produtos nocivos ou perigosos;
executar serviço de alto grau de periculosidade, contrariando determinação
de autoridade competente; fazer ou promover publicidade que sabe ou
deveria saber ser capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma
prejudicial ou perigosa a sua saúde ou segurança. Entretanto, a pena para
todos esses delitos é de 6 meses a 2 anos, patamar abstrato bem inferior ao
estabelecido para o crime de furto (até mesmo) simples. Importante,
observar, embora evidente, que se está diante de tipos penais que lidam

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com defeitos, e não meros vícios, do produto, e que visariam, portanto, à


punição de condutas de que decorressem problemas de segurança dos
produtos liberados para o consumo.
Já as condutas de “fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir
informação relevante sobre a natureza, característica, qualidade,
quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, preço ou garantia de
produtos ou serviços” implicam um apenamento bem inferior ao que corresponde
a qualquer apropriação indébita, furto ou estelionato, para ficar apenas nesses.
Do mesmo modo, para o legislador, fazer ou promover publicidade que
sabe ou deveria saber ser enganosa ou abusiva é menos relevante que a
apropriação de uma fita de vídeo de locadora (há vários julgados
reconhecendo ser este um caso de apropriação indébita – sic).
Interessante notar, ademais, que, segundo o art. 241 do Código Penal
(acréscimo feito em 2003), apresentar, produzir, vender, fornecer, divulgar ou
publicar, por qualquer meio de comunicação, inclusive rede mundial de
computadores ou internet, fotografias ou imagens com pornografia ou
cenas de sexo explícito envolvendo criança ou adolescente, acarreta uma
pena de 02 a 06 anos, estabelecida na mesma base das penas cominadas aos
tradicionais crimes contra o patrimônio. Veja-se, nessa resposta penal, o grau de
concretização da previsão constitucional de asseguramento – com prioridade
absoluta – da dignidade e respeito à criança e ao adolescente e da determinação de
sua proteção contra toda forma de negligência, discriminação, exploração e
violência (art. 227 da Constituição Federal).
Aliás, o crime de adulteração de chassis ou sinal de veículo
automotor, fruto de eficiente lobby das seguradoras de veículos, tem um
apenamento de 3 a 6 anos e multa (reclusão). Essa pena mínima é maior do
que às cominadas aos crimes de lesão corporal permanente com perda de
membro – 2 a 8 anos –, de instigação ao suicídio, se vier a ocorrer a morte –
2 a 6 anos – e de infanticídio – 2 a 6 anos (detenção). De todo modo, para
proteger a família e, portanto, a propriedade privada, o legislador teve especial
preocupação para com a bigamia: 2 a 6 anos de reclusão.
E não pára por aí: mesmo que a criança e o adolescente recebam
especial proteção do Estado – e aqui insisto: basta ver a Constituição a
respeito –, o legislador parece mais uma vez estar com os olhos voltados
para a propriedade privada, enfim, para os bens jurídicos de cariz
interindividual. Veja-se, nesse sentido, o teor dos artigos 240 e 243 do
Estatuto da Criança e do Adolescente e a completa desproporção do

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preceito secundário em relação à importância do bem jurídico protegido


(observe-se que a ordem de proteção cariz constitucional): “Art. 240.
Produzir ou dirigir representação teatral, televisiva, cinematográfica,
atividade fotográfica ou de qualquer outro meio visual, utilizando-se de
criança ou adolescente em cena pornográfica, de sexo explícito ou vexatória
(Redação dada pela Lei nº 10.764, de 12.11.2003): Pena – reclusão, de 2 (dois)
a 6 (seis) anos, e multa”. E o § 1° estabelece que “Incorre na mesma pena
quem, nas condições referidas neste artigo, contracena com criança ou
adolescente. (Renumerado do parágrafo único, pela Lei nº 10.764, de
12.11.2003)”. Já o art. 243. pune, com uma pena de seis meses a dois anos e
multa, aquele que “Vender, fornecer ainda que gratuitamente, ministrar ou
entregar, de qualquer forma, a criança ou adolescente, sem justa causa,
produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica,
ainda que por utilização indevida”.
Ampliando a análise, a gestão temerária de instituição financeira tem
tratamento absolutamente idêntico ao do furto qualificado. Já de acordo
com o Código Eleitoral, dar, oferecer, prometer, solicitar ou receber, para si
ou para outrem, dinheiro, dádiva, ou qualquer outra vantagem, para obter
ou dar voto e para conseguir ou prometer abstenção, ainda que a oferta não
seja aceita, tem a mesma cominação de pena do que a prevista para o crime
de furto simples, sendo inferior à sanção estabelecida para a prática de
estelionato.
Examinemos, agora, alguns incisos do art. 1º do recepcionado e
alterado (depois da Constituição) Decreto-Lei 201/67 (que dispõe sobre a
responsabilidade dos Prefeitos Municipais) e que dizem respeito àquilo que
está na manchete de todos os jornais cotidianamente: a dilapidação do
erário:
“III – desviar, ou aplicar indevidamente, rendas ou verbas
públicas;
XI – adquirir bens, ou realizar serviços e obras, sem
concorrência ou coleta de preços, nos casos exigidos em lei;
XIII – nomear, admitir ou designar servidor, contra expressa
disposição de lei;
XVII – ordenar ou autorizar a abertura de crédito em desacordo
com os limites estabelecidos pelo Senado Federal, sem fundamento
na lei orçamentária ou na de crédito adicional ou com
inobservância de prescrição legal; (Inciso acrescido pela Lei 10.028,
de 19.10.2000)

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XVIII – deixar de promover ou de ordenar, na forma da lei, o


cancelamento, a amortização ou a constituição de reserva para
anular os efeitos de operação de crédito realizada com
inobservância de limite, condição ou montante estabelecido em
lei”; (Inciso acrescido pela Lei 10.028, de 19.10.2000)
Pois bem: todas as condutas acima elencadas recebem a pena de
detenção de três meses a três anos. Em síntese, uma singela comparação
com as penas previstas para a adulteração de chassis de automóvel ou para
o furto qualificado parece indicar os objetivos da legislação penal em terrae
brasilis. Ou seja, é mais grave furtar galinhas (1 a 4 anos) do que exportar –
e aqui apresento mais desproporções – para o exterior peles e couros de
anfíbios e répteis em bruto, sem a autorização da autoridade ambiental
competente (1 a 3 anos). Do mesmo modo, é mais grave praticar estelionato
do que provocar, pela emissão de efluentes ou carreamento de materiais, o
perecimento de espécimes da fauna aquática existentes em rios, lagos,
açudes, lagoas, baías ou águas jurisdicionais brasileiras, com a vantagem de
o crime ambiental poder ser substituído por multa. A mesma comparação
vale para o crime de destruição de floresta de preservação permanente,
sempre com a vantagem da substituição por multa.
A análise vai ao absurdo, se analisarmos o crime de receber ou
adquirir, para fins comerciais ou industriais, madeira, lenha, carvão e outros
produtos de origem vegetal, sem exigir a exibição de licença do vendedor,
outorgada pela autoridade competente, e sem munir-se da via que deverá
acompanhar o produto até final beneficiamento, cuja pena é de detenção de
seis meses a um ano e multa. Também a construção, a reforma, a ampliação,
a instalação, em qualquer parte do território nacional, de estabelecimentos,
obras ou serviços potencialmente poluidores, sem licença ou autorização
dos órgãos ambientais competentes, ou contrariando as normas legais e
regulamentares pertinentes, têm cominação abstrata de pena valorada de
forma semelhante a uma contravenção penal (1 a 6 meses de detenção ou
multa).
E o que dizer do conteúdo do art. 97, parágrafo único11, do Estatuto do
Idoso, que determina como pena para o caso de morte do idoso o máximo

11 Lei 10.741/2003, art. 97: Deixar de prestar assistência ao idoso, quando possível fazê-lo sem risco
pessoal, em situação de iminente perigo, ou recusar, retardar ou dificultar sua assistência à saúde,
sem justa causa, ou não pedir, nesses casos, o socorro de autoridade pública: Pena – detenção de 6
(seis) meses a 1 (um) ano e multa. Parágrafo único. A pena é aumentada de metade, se da omissão
resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.

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de 3 anos, pena que é inferior até mesmo ao cometimento de um estelionato


simples...! De qualquer modo, isto não deve gerar muita surpresa,
mormente se levarmos em conta o apenamento cominado ao já mencionado
crime de adulteração de chassis de automóvel...!

3.2 Algumas Decisões Judiciais em Terrae Brasilis Que


Reforçam a Tese da “Criminalização da Pobreza” e da
“Pobreza da Criminalização”
Historicamente, no Brasil, nunca se tratou os chamados crimes de
colarinho branco como se tratam os crimes do “andar de baixo”. Para fins
de mera exemplificação da asserção, a Lei 4.729/65 estabelecia penas de
detenção de 06 meses a 02 anos ao crime de sonegação fiscal. Ou seja, a
desproporcionalidade era tanta que às condutas que configuravam crimes-
meio para a prática da sonegação fiscal (tais como a falsificação e o uso de
documento falso) era cominada, no Código Penal, sanção autônoma bastante
superior à cominada à pratica do crime-fim. Então, apenas em 1990, a Lei 8.137
agravou as penas, tendo sido, contudo, o aumento da sanção acompanhado
da previsão de punibilidade ante o pagamento do tributo antes do
recebimento da denúncia. Na (des)proteção da ordem tributária, em
retrocessos e avanços legislativos, revogados e reeditados artigos que
consagravam a mesma previsão de extinção da punibilidade pelo
pagamento, chegou-se ao art. 9º da Lei 10.684/03 em que se determina a
suspensão da pretensão punitiva – com o parcelamento – e a extinção da
punibilidade – com o pagamento dos débitos oriundos de tributos e de
contribuições sociais.
Aliás, em caso emblemático, quando do julgamento de Marcos Valério
– Recurso Especial nº 942.769 – MG (2007/0046519-5), o Superior Tribunal
de Justiça decidiu pela extinção da punibilidade de crime de sonegação
fiscal pelo pagamento das parcelas não recolhidas em momento posterior ao
recebimento da denúncia, consagrando o entendimento que o pagamento do
tributo a qualquer tempo enseja o fim da possibilidade de responsabilização penal.
Para evitar mal-entendidos, advirto desde logo: não considero que é
inadequado ou incorreto defender que, efetivamente, esse é o caminho a ser
seguido pelo direito penal contemporâneo. O que devemos discutir – e todo
o presente texto aponta nessa direção – são as razões pelas quais esse
tratamento jamais foi pensado em favor das camadas desfavorecidas
socialmente.

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Vejamos: o (mero) parcelamento do débito oriundo de crimes contra a


ordem tributária e previdência extingue a punibilidade (art. 9º da Lei
10.684/0312), benefício que se resiste em estender ao autor de um furto que
reparou o dano à vítima:
“Apropriação de contribuições previdenciárias. Parcelamento
do débito. Extinção da punibilidade. Pacificou-se no Superior
Tribunal de Justiça a compreensão segundo a qual, nos crimes contra a
ordem tributária, o parcelamento antecedente à denúncia extingue a
punibilidade” (REsp nº 249.812/SP, 6ª Turma, Rel. Min. Paulo
Gallotti, j. 17.05.01, v.u., DJU 18.02.02, p. 525, in Boletim IBCCRIM,
112/593).
“Apelação-Crime – Furto Simples – Princípio da Insignificância –
Inaplicabilidade – Decreto Condenatório Mantido – Autoria e
Materialidade Demonstradas – Dosimetria da Pena
(...)
3. Arrependimento Posterior – Como o bem objeto do furto foi
devolvido à vítima, antes do oferecimento da denúncia, incidiu a redutora
prevista no art. 16 do CP. Impossibilidade de analogia com o Direito
Tributário – o qual permite a extinção da punibilidade com a reparação do
dano –, porque a situação em comento tem previsão na lei penal.
(...)
Apelo improvido. De ofício, corrigido erro material, para
redimensionar a pena privativa de liberdade aplicada ao réu em 8
meses de reclusão” (Apelação-Crime nº 70015163355, 8ª Câmara
Criminal do TJRS, Rel. Fabianne Breton Baisch. j. 23.08.2006,
unânime).
Aliás, em exemplo que também põe a lume a clientela do direito
penal no Brasil, enquanto o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
decidiu que o furto de objetos avaliados em R$ 37,00 (trinta e sete reais) não
é insignificante, o Tribunal Regional Federal da Quarta Região (que
compreende o Estado do Rio Grande do Sul) pacificou jurisprudência no
sentido de que é bagatelar, para fins criminais, a sonegação de R$ 2.500,00
(dois mil e quinhentos reais), em tributos, para o crime de descaminho:

12 Lei 10.684/03, Art. 9º É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos
nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-
Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa
jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de
parcelamento.

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“Furto – Princípio da Insignificância – Inexistente – Rompimento de


Obstáculo – Exame Que Não Exige as Condições da Lei Processual –
Ausência de Prova da Participação do Apelado – Absolvição – Pena –
Furto Qualificado – Inexistência de Isonomia Com o Roubo – Multa –
Aplicação Obrigatória – Tentativa – Dosimetria – Furto Qualificado e
Privilégio – Possibilidade
I – A avaliação dos bens furtados importou em valor similar a
um terço do salário mínimo da época, afastando, desta forma, o
reconhecimento de fato de bagatela ou insignificante. Ele não
atinge o patamar exigido pelo Quarto Grupo Criminal desta Corte,
exemplos: ‘Para configurar-se o crime bagatelar, o valor da res deve ser
desprezível, ínfimo, inexpressivo, e este é aquele que se situa em patamar
inferior a dez por cento do salário mínimo, ou, quando muito, alcança esse
percentual, índice que foi superado’; ‘Princípio da insignificância não
aplicável no caso concreto... Res furtivae de valor significativo, R$
37,00, correspondente a pouco mais de 20% do salário mínimo da época
dos fatos’, etc.
(...)” (Apelação Crime nº 70024760969, 7ª Câmara Criminal do
TJRS, Rel. Sylvio Baptista Neto. j. 17.07.2008).
“Penal – Processo Penal – Descaminho – Denúncia Rejeitada Após
Recebimento – Impossibilidade – Princípio da Insignificância – Elemento
Objetivo Atendido – Antecedentes na Conduta – Aplicabilidade
(...)
3. De acordo com a orientação adotada pela 4ª Seção desta Corte,
aplica-se o princípio da insignificância quando o valor do tributo iludido
não exceder a R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais)” (Recurso em
Sentido Estrito nº 2005.71.18.003480-9/RS, 8ª Turma do TRF da 4ª
Região, Relª Cláudia Cristina Cristofani. j. 09.01.2008, maioria, DE
16.01.2008)13.
Além disso, a responsabilidade penal da pessoa jurídica, que veio
para ampliar a proteção do meio ambiente, apesar da norma do texto do art.
225, § 3º, da CR, não transcende a produção doutrinária:
“Crime Contra o Meio Ambiente – Denúncia Ofertada Contra Pessoa
Jurídica – Ente que Não Pode Ser Responsabilizado Pela Prática de Crime
– Ausência de Vontade Própria – Recurso Provido

13 De registrar que, recentemente, o parâmetro da insignificância na Justiça Federal passou para R$


10.000,00 (STF: HC nº 92.438/PR)

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‘A pessoa jurídica, porque desprovida de vontade própria,


sendo mero instrumento de seus sócios ou prepostos, não pode
figurar como sujeito ativo de crime, pois a responsabilidade
objetiva não está prevista na legislação penal vigente’” (RCR nº
03.003801-9, de Curitibanos, Rel. Maurílio Moreira Leite, j.
01.04.2003).
“Crime Contra o Meio Ambiente (Art. 54, § 2º, Inc. V, da Lei nº
9.605/98) – Materialidade e Autoria Comprovadas – Crime Formal e de
Perigo – Desnecessidade da Ocorrência Efetiva do Dano, Bastando a
Potencialidade Lesiva que Possa Causar – Culpabilidade do Responsável
Pela Empresa Evidenciada – Delito Configurado – Condenação Mantida
– O crime de poluição é delito formal, que se consuma com a
possibilidade de dano, pois, uma vez consumado, afeta de tal
maneira o meio ambiente que, dificilmente, as suas características
primitivas poderão ser recuperadas, advindo daí a necessidade de
evitá-lo o quanto possível.
Pena Acessória – Reparação do Dano Ambiental – Fixação conforme
os prejuízos sofridos pelo ofendido ou pelo meio ambiente e não
de acordo com as condições pessoais do réu. Recurso parcialmente
provido” (Apelação Criminal nº 2006.015166-6, 2ª Câmara
Criminal do TJSC, Rel. Irineu João da Silva. unânime, DJ
12.07.2006).
E a “vadiagem”, se (isoladamente) não leva mais à condenação
criminal, continua sendo reprimida pelo aparato penal, escamoteada como
fundamento para prisões preventivas:
“Habeas Corpus Liberatório com Pedido de Liminar – Excesso de
Prazo na Conclusão da Instrução Processual Causada Exclusivamente
Pelo Réu – Paciente que falseou sua verdadeira identidade com a
única intenção de prejudicar o andamento da instrução criminal,
levando o Magistrado a deflagrar as diligências necessárias.
Elemento de extrema periculosidade, contumaz em práticas
delitivas. Vadiagem devidamente comprovada. Custódia do paciente
necessária como forma de resguardar a ordem pública. Excesso de
prazo absorvido pelo juízo de razoabilidade. Instrução criminal
encerrada. Inteligência da Súmula nº 52 do STJ. Processo preste a
ser sentenciado. Constrangimento ilegal descaracterizado. Ordem
denegada. Decisão unânime” (Habeas Corpus nº 200530055422
(61412), Câmaras Criminais Reunidas do TJPA, Rel. Raimunda do
Carmo Gomes Noronha. j. 27.04.2006).

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Por fim, se também não encontramos condenação alguma por


“mendicância” (ufa!), descobrimos que o Superior Tribunal de Justiça já
pacificou que o fornecimento de bebidas alcoólicas para crianças não é
crime (é, na melhor das hipóteses, contravenção penal – art. 63, I, da LCP),
conclusão à qual se chegou através de uma interpretação “léxico-gráfica”
das disposições do ECA:
“Estatuto da Criança e do Adolescente – Negativa de Vigência ao Art.
243 da Lei 8.069/90 – Fornecimento de Bebida Alcoólica a Menor –
Denúncia Rejeitada – Não Incidência da Súmula 7/STJ
(...)
2. A distinção estabelecida no art. 81 do ECA das categorias
‘bebida alcoólica’ e ‘produtos cujos componentes possam causar
dependência física ou psíquica’ exclui aquela do objeto material
previsto no delito disposto no art. 243 da Lei 8.069/90; caso
contrário, estar-se-ia incorrendo em analogia in malam partem
(Precedentes do STJ).
3. Recurso conhecido, porém, improvido” (REsp 942288/RS,
Relator(a) Ministro Jorge Mussi, Órgão Julgador T5 – 5ª Turma
Data do Julgamento 28.02.2008 Data da Publicação/Fonte DJ
31.03.2008).
Por último, vale referir, na especificidade da operacionalidade
cotidiana do direito penal, alguns exemplos decorrentes de recursos-crime
que chegaram à 5ª Câmara Criminal do TJRS, que dão uma amostra da crise
de paradigma de dupla face que atravessa o Direito e a dogmática jurídica:
Exemplo 1) cidadão foi processado criminalmente porque, na noite de
natal, foi a um baile e pagou o ingresso com um cheque que teria sido objeto
de furto. O ingresso custou R$ 6,00. O cheque foi passado no valor de R$
60,00. O Promotor de Justiça pediu a prisão preventiva do acusado
(imagine-se o grau de “periculosidade” do citado cidadão, a ponto de o
Ministério Público querer vê-lo recolhido à prisão). Felizmente, o Juiz não
atendeu ao pleito. Entretanto, condenou o réu a 2 anos de reclusão!
Examinado o processo em grau de recurso, constatou-se que sequer estava
provado que o cheque era produto de furto. Mais ainda, nem de longe
estava provado que o cheque tinha sido preenchido pelo acusado.
Exemplo 2) cidadão foi condenado a 02 anos de reclusão por ter
furtado um par de tênis usado, um relógio, uma calculadora e uma
sombrinha, tudo avaliado em menos de R$ 50,00. O réu negou a autoria; seu

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advogado, entretanto, “confessou” o delito em nome do réu. Em segundo


grau, foi absolvido, porque sequer havia prova da existência do fato.
Quanto à autoria? Nem de longe havia provas.
Exemplo 3) cidadão foi processado porque teria furtado uma garrafa
de vinho e alguns metros de mangueira plástica e um facão. Foi preso
preventivamente. Ficou recolhido mais de 06 meses. Ao final, o Juiz o
condenou a 04 meses de reclusão, pelo delito de receptação, do qual não
havia prova alguma. Em segundo grau, o réu foi absolvido.
Exemplo 4) cidadão foi processado pelo crime de estelionato, porque
teria comprado mercadorias em uma loja (um limpador de pára-brisas),
pagando com um cheque de R$ 130,00, recebendo R$ 80,00 de troco.
Segundo a acusação, o cheque seria furtado. Foi condenado a 1 ano e 10
meses de reclusão. Permaneceu preso preventivamente por 10 meses. Como
não foi dado direito ao acusado de recorrer em liberdade, quando o
processo chegou ao segundo grau (apelação), já estava preso há quatorze
meses. Resultado do julgamento: foi absolvido, porque não havia provas
Exemplo 5) cidadão, depois de discutir com sua esposa, tentou
suicídio. Não conseguiu o intento. Quando saiu do hospital, foi denunciado
por porte ilegal de arma (afinal, o “réu” (?) não tinha autorização legal para
ter a arma em sua casa). Foi condenado a 1 ano de detenção. Em segundo
grau, foi absolvido. É preciso dizer mais?
Poder-se-ia acrescentar ainda outros exemplos, como o caso de dois
cidadãos condenados a 2 anos de reclusão por terem “subtraído”, das águas
de um bucólico açude no interior do Estado Rio Grande do Sul, 9 peixes
tipo “traíra”, avaliados em R$ 7,50, ou do cidadão que ficou preso por
ordem da justiça de Tubarão, SC, pelo período de 60 dias, por ter tentado
furtar R$ 10,00, cuja cédula jamais foi encontrada; ou, ainda, do casal
catarinense que ficou 46 dias preso preventivamente, por tentar furtar um
par de chinelos...
Simbolicamente, tais questões podem ser compreendidas a partir de
dois julgamentos do Superior Tribunal de Justiça: um negando habeas corpus
para acusado de furto de uma garrafa de vinho avaliada em R$ 40,00; outro,
em tempo não distante, absolvendo acusado de crime de descaminho de
valor que ultrapassa mil dólares.

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Releva registrar, ainda, pesquisa realizada pela Procuradora da


República ELA CASTILHO14, cujos dados dão conta de que, de 1986 a 1995,
somente 5 dos 682 supostos crimes financeiros apurados pelo Banco Central
resultaram em condenações em primeira instância na Justiça Federal. A
pesquisa revela, ainda, que 9 dos 682 casos apurados pelo Banco Central
também sofreram condenações nos tribunais superiores. Porém – e isso é de
extrema relevância – nenhum dos 19 réus condenados por crime do colarinho
branco foi para a cadeia! A pesquisa em questão ressalta, ainda, que o número
de 682 casos apurados é extremamente pífio, em face dos milhares de casos de
crimes do colarinho branco que ocorrem a todo ano no país! Mais do que isso – e
já que o tema é “CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA” – há que se registrar
que o montante do prejuízo causado à população (ao Estado-Sociedade) por
esses 682 casos (e isso “naquela época” de baixa descoberta da corrupção)
foi maior que a soma dos valores furtados, apropriados e roubados no
mesmo período15.
Aliás, constata-se, a partir do censo penitenciário realizado em junho
de 2008 pelo Departamento Penitenciário Nacional16, que os crimes mais
apenados em terrae brasilis são aqueles cometidos pelas classes menos
abastadas, tais como roubo majorado, simples e qualificado pelo resultado
morte, tráfico ilícito de entorpecentes, furto simples e qualificado, homicídio
e porte/posse ilegal de arma. Não há qualquer menção – na verdade devem
se enquadrar na categoria “outros crimes” (portanto, sem relevância
estatística) – a crimes praticados contra a ordem financeira e tributária. No
mesmo sentido, pesquisa publicada no jornal Folha de São Paulo (cf. Prisões
de São Paulo têm 50% mais detentos do que vagas, 13 de out. 2008, p. C1),
revela que de uma população prisional de 158.447 presos existentes no
Estado de São Paulo, apenas 1.747 possuem ensino superior ou pós-
graduação.

14 Consultar CASTILHO, Ela Volkmer de. O controle penal dos crimes contra o sistema financeiro nacional.
Belo Horizonte, Del Rey, 1998.
15 A situação, aliás, repete-se também nos Estados Unidos. Segundo COLEMAN, as cifras anuais

concernentes à sonegação fiscal, a fraudes nos sistemas de saúde e à violação às leis antitruste
alcançam 500 bilhões de dólares, ao passo que, nos crimes convencionais, o valor atinge 13,3
bilhões de dólares, cifra que não atinge, portanto, sequer 3% do dano patrimonial causado pela
mencionada criminalidade de elite (Cf. COLEMAN, James Wiliam. A Elite do Crime: Para entender o
crime do colarinho branco. 5. Ed. Barueri: Manole, 2005).
16 Disponível em: http://www.mj.gov.br/depen/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE
94C6840068B1624D28407509CPTBRNN.htm

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Novamente vem a discussão: não devemos nos preocupar,


primordialmente, com a questão de que “devemos ou não estender a pena
de prisão – efetiva – aos crimes do colarinho branco”. Devemos nos debruçar,
sim, sobre o modo como as Instituições olham para os crimes do “andar de baixo” e
do “andar de cima”. E pensar nisso à luz da coerência e da integridade da
legislação e da jurisdição.
Numa palavra: parcela considerável das decisões acima apontadas –
que servem apenas de amostragem – apenas reforçam o caráter discriminatório
e estigmatizador do direito penal. Assim, se de um lado existe a legislação que
inadequadamente deixa de hierarquizar os bens jurídicos a serem protegidos
pelo direito penal, de outro há o Judiciário e o Ministério Público que
reproduzem essa crise paradigmática. E é nesse sentido que o uso contínuo
e aprofundado da jurisdição constitucional poderia, de um lado, proceder a
uma verdadeira filtragem hermenêutico-constitucional (ver adiante nota 32)
dos tipos penais incongruentes e desproporcionais, e, de outro, na
impossibilidade do uso da jurisdição constitucional em face dos seus
limites, denunciar (veementemente) as anomalias, fazendo uma
Appelentscheidung (apelo ao legislador).

4 – C ONSIDERAÇÕES F INAIS
Se os Códigos de 1830, 1890 e 1940 continham essa característica de
proteção aos bens jurídicos de cariz (proto) liberal-individualista, parece
razoável concluir que, a partir de 1988, deveria ter havido uma “virada” na
legislação penal, na linha do que indica o constitucionalismo
compromissório e social. Entretanto, não foi isso que ocorreu. Dito de outro
modo, continuamos mergulhados em uma crise que envolve a concepção de
bem jurídico em pleno Estado Democrático de Direito17. Urge, pois, um
redimensionamento na hierarquia dos bens jurídicos como forma de
adaptá-los à sua dignidade constitucional18. Afinal, como bem lembra
FIGUEIREDO DIAS, “os bens jurídicos protegidos pelo direito penal devem
considerar-se concretizações dos valores constitucionais expressa ou

17 Sobre o assunto, consultar STRECK, Lenio Luiz e FELDENS, Luciano. Crime e Constituição: a
legitimidade da função investigatória do Ministério Público. 1ª. e 2ª. Edições. Rio de Janeiro, Forense,
2003.
18 Nesse tom, anota MARIA DA CONCEIÇÃO FERREIRA DA CUNHA que “seria inconstitucional criar

uma ordem de bens jurídico-penais de forma a inverter a ordem de valores constitucional”. Cfe.
CUNHA, Maria da Conceição Ferreira da. Constituição e Crime: Uma Perspectiva da Criminalização e
da Descriminalização. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 1995, p. 328.

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implicitamente ligados aos direitos e deveres fundamentais”, hipótese a lhes


garantir dignidade jurídico-penal19.
Na mesma linha, LUIZ LUISI lembra que as Constituições surgidas no
segundo pós-guerra albergam uma série de preceitos destinados a alargar a
incidência do direito criminal no sentido de fazê-lo um instrumento de
proteção de direitos coletivos, cuja tutela se impõe para que haja uma justiça
mais autêntica, ou seja, para que se atendam as exigências de justiça
material20. Dito de outro modo, parece não restar dúvida que, na atualidade,
– e a assertiva é de MIR PUIG – o direito penal vai abrindo espaço no sentido
de que deve ir estendendo sua proteção a interesses menos individuais,
porém de grande importância para amplos setores da população, como o
meio ambiente, a economia social, as condições de alimentação, o direito ao trabalho
em determinadas condições de segurança social e material – enfim, o que se vem
denominando de interesses difusos21.
Estando isto claro, vale registrar, no particular, a existência de uma
grave controvérsia acerca da extensão e das funções desse conceito (bem
jurídico) a partir do dissenso surgido entre a postura dos penalistas liberais,
que defendem uma compreensão demasiadamente restrita do conceito, e
aqueles que defendem o reconhecimento jurídico-penal de bens supra-
individuais, cuja posição quanto à funcionalidade dessa instituição jurídica
assenta-se em uma concepção organizativa, interventiva e vinculada à
realidade social. Essa contenda não foi ainda suficientemente percebida e
apreendida pelo conceito dogmático de bem jurídico, e este conflito acarreta
uma confusão quanto aos bens que devem prevalecer numa escala hierárquica, para
fins de serem relevantes penalmente e, portanto, merecedores de tutela dessa

19 Cfe. FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra: Coimbra, 2001. pp. 47-
48.
20 Cfe. LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. Porto Alegre, Sérgio Fabris Editores, 2003, p.

57.
21 Cfe. PUIG, Santiago Mir. Derecho Penal: parte general. 5ª. Ed. Barcelona, Reppertor, 1998, p. 135. No

mesmo sentido, veja-se MIGUEL POLAINO NAVARRETE (Derecho penal, parte general. Tomo III. Teoría
jurídica del delito. Volumen I. Barcelona, Editora Bosch AS, 2000, p. 131), para quem “la sociedad o
comunidad, global y genericamente considerada, aparecen reconocidas como sujeto pasivo de
bienes jurídicos que son afectados por delitos que atentan a la propia comunidad social, em
cuanto titular de intereses colectivos. Así acontece, v.g., en tipos de delitos que afectan a bienes
colectivos, como el orden público, la seguridad, el trafico rodado, la fé pública o la salud pública,
frente a comportamientos típicos ya de lesión, ya de peligro o riesgo general o concreto.”

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natureza22. Ou seja: quais são os bens jurídicos suscetíveis de receber


proteção penal?
A transferência desta – ainda não resolvida – controvérsia para as
práticas legislativas e judiciais faz com que surjam leis (v.g., Leis 10.259/01
e 10.741/03) em que bens jurídicos que claramente traduzem interesses de
grandes camadas sociais são rebaixados axiologicamente e equiparados a
outros bens de relevância individual, privilegiando-se os bens jurídicos
interindividuais, questão sutilmente presente, por exemplo, na legislação
que trata dos crimes de sonegação fiscal no Brasil, como é possível perceber
até mesmo na recente Lei 10.684/03, sancionada já no governo Luis Inácio
Lula da Silva, mas que repetia legislação anterior. Se é correto ou não tratar
a sonegação de tributos como crime (grave), isso é uma questão que
dispensa uma reposta imediata; importante é saber as razões pelas quais
admitimos um direito penal que trata o furto qualificado de forma mais grave que a
sonegação de tributos ou lavagem de dinheiro...!
O que tem ocorrido de concreto nesse aspecto e dado margem ao
aquecimento do debate entre penalistas de apego exacerbado ao liberalismo
(ou, se se quiser, com apego ao conceito liberal-individualista de bem
jurídico) e os que buscam a guarida penal de bens supra-individuais, é que
estes buscam introjetar na concepção de bem jurídico-penal a idéia de que
uma série de bens de feição coletiva necessitam de proteção penal, enquanto
aqueles resistem a tanto, colocando-se contra a extensão da função de
proteção penal aos bens de interesse da comunidade, sob o argumento de
que tal concepção implicaria uma “indesejada ampliação das barreiras do
direito penal”. De certo modo, continuam a pensar o direito a partir da idéia
segundo a qual haveria uma contradição insolúvel entre Estado e Sociedade
ou entre Estado e indivíduo.
Tais considerações, à evidência, acarretam compromissos e
inexoráveis conseqüências no campo da formulação e da aplicação das leis.
Para tanto, parto da premissa – e não há, ou não deveria haver nenhuma
novidade em dizer isto – de que a Constituição brasileira de 1988 apresenta
uma diretiva para o Estado (e suas políticas, inclusive criminais). Logo, em
assim sendo, continuo a insistir (e acreditar) que todas as normas da
Constituição têm validade, o que ocorre nas que estabelecem a busca da

22 Nesse sentido, ver STRECK, Lenio Luiz e COPETTI, André. “O direito penal e os influxos
legislativos pós-Constituição de 1988: um modelo normativo e eclético consolidado ou em fase de
transição?”. In: Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS. São Leopoldo,
Editora Unisinos, 2003, pp. 255 e segs.

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igualdade, a redução da pobreza, a proteção da dignidade, etc. Tais normas


comandam a atividade do legislador (inclusive e logicamente, do legislador
penal).
Esse comando (ordem de legislar) traz implícita – por exemplo, no
campo do direito penal – a necessária hierarquização que deve ser feita na
distribuição dos crimes e das penas, razão pela qual o estabelecimento de
crimes, penas e descriminalizações não pode ser um ato absolutamente
discricionário, voluntarista ou produto de “cabalas”. Tampouco o direito
penal pode ficar à mercê de leis de conveniência, elaboradas sem qualquer
prognose23.
Em outras palavras, não há liberdade absoluta de conformação
legislativa nem mesmo em matéria penal, mormente quando a lei
descriminaliza condutas consideradas ofensivas a bens fundamentais.
Nesse sentido, se de um lado há a proibição de excesso (Übermassverbot), de
outro há a proibição de proteção deficiente (Untermassverbot)24.
Não há, pois, qualquer blindagem que “proteja” a norma penal do
controle de constitucionalidade. A norma penal não está blindada à
sindicabilidade constitucional. A vigência de um texto jurídico penal não
implica, automaticamente, a sua validade, problemática que coloca na
mesma trincheira, paradoxalmente, em determinadas situações, penalistas
de orientação dogmática e acentuadamente positivista-normativista25 e
aqueles defensores de posturas mais clássico-liberais.

23 Um bom exemplo de lei de conveniência é a alteração produzida na legislação de tóxico, por


intermédio da Lei 11.343/06. Enquanto, de um lado, aumentou-se a pena mínima para traficantes,
ao mesmo tempo estabeleceu-se a possibilidade de redução da pena em até 2/3 para acusados
primários. Isto é, se o legislador pretendia aumentar a pena mínima, é porque deveria ter algum
motivo; mas, paradoxalmente, concede a possibilidade de diminuição de pena praticamente
inédita no Código Penal, apenas concedida ao furto privilegiado.
24 Isto significa dizer que, quando o legislador não realiza essa proteção via direito penal, é cabível a

utilização da cláusula “proibição de proteção deficiente” (Untermassverbot). Tais questões ficam


bem claras a partir da discussão da descriminação do aborto na Alemanha, problemática
igualmente debatida no plano da justiça constitucional na Espanha e em Portugal. No Brasil, o
Supremo Tribunal Federal, por intermédio de voto do Min. Gilmar Mendes (acompanhado pelo
Min. Ayres Brito) aplicou pela primeira vez a tese no julgamento do Recurso Extraordinário nº
418.376; a tese voltou a ser aplicada na ADIn 3510.
25 Os penalistas de perfil positivista-normativista – majoritários no plano da produção jurídica

standard no Brasil – são aqueles ligados aos movimentos de lei e ordem, mas que, paradoxalmente
não incluem no rol de suas “preocupações repressivistas” as condutas que ofendem bens jurídicos
supra-individuais (pelo menos não o fazem sob a ótica da Constituição).

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Não pretendo discutir ou pôr em xeque o papel da concepção liberal-


individualista-iluminista do direito penal. Isso, aliás, é conquista moderno-
contemporânea. O que se questiona é a resistência de determinados setores
desse campo do conhecimento em estender o braço do direito penal em
direção aos bens supra-individuais. Esta é uma questão dramática: se não se
admite a extensão do braço do direito penal aos delitos de cariz supra-
individual (o que implica rediscutir o tratamento dado, v.g., à sonegação de
tributos26, para falar apenas neste delito), então, por uma questão de respeito
à igualdade, também devemos estar prontos e dispostos a não mais tratar os
delitos inter-individuais (cometidos sem violência) contra o patrimônio como uma
questão de direito penal. Não esqueçamos: o direito do Estado Democrático de
Direito deve respeitar a coerência e a integridade. Leis de conveniência e
discriminatórias são inconstitucionais.
Ora, nenhum campo do direito está imune a essa vinculação
constitucional. Conseqüentemente, na medida em que a Constituição figura
como o alfa e o ômega do sistema jurídico-social, ocorre uma sensível
alteração no campo de conformação legislativa. Nesse (novo) contexto, a
teoria do bem jurídico, que sustenta a idéia de tipos penais no direito penal,
igualmente passa a depender da materialidade da Constituição. Não pode
restar qualquer dúvida no sentido de que o bem jurídico tem estrita relação
com a materialidade constitucional, representado pelos preceitos e
princípios que encerram a noção de Estado Democrático e Social de Direito.

26 Observe-se, por exemplo, que, na medida em que o legislador utiliza o direito penal de forma
diferenciada para os crimes de sonegação de tributos, o que pode ser visto pelo art. 9º da Lei
10.684, poder-se-ia propor – como aliás, venho fazendo de há muito (por todos, veja-se acórdãos
70.018.891.119, 70.016.803.967 e 297.019.937, todos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande
do Sul), na medida em que a fórmula adotada pela Lei 10.826/03 (pagamento do valor sonegado –
portanto, de forma indireta, subtraída/apropriada/obtida ilicitamente) se mostre eficaz para a
proteção do bem jurídico, a extensão dessa fórmula aos demais crimes contra o patrimônio, desde que
cometidos sem violência ou grave ameaça...! Ou seja, poder-se-ia também permitir que o ladrão e o
estelionatário devolvessem a res furtivae – até em suaves prestações (espécie de REFIS da patuléia) –
extinguindo-se, ipso facto, a punibilidade, nos mesmos termos dos crimes fiscais! Ou isso ou
teremos que assumir que, efetivamente, praticamos – e permito-me insistir nessa tecla – um
direito penal “de classe”...! No fundo, a previsão do art. 9º da Lei 10.684/03 nada mais faz do que
estabelecer a possibilidade de converter a conduta criminosa em pecúnia, favor que é negado a
outras condutas. Neste ponto, calha registrar a objeção feita por FERRAJOLI – corifeu do garantismo
penal – a “monetarização” do direito penal:
“ningún bien considerado fundamental hasta el punto de justificar la tutela penal puede ser
monetarizado, de modo que la previsión misma de delitos sancionados con penas pecuniarias
evidencia o un defecto de punición (si el bien protegido es considerado fundamental) o, más
frecuentemente, un exceso de prohibición (si tal bien no es fundamental). (Cfe. FERRAJOLI, Luigi,
Derecho y Razón – Teoria del Galantismo Penal. 2ª ed. Madrid: Trotta, p. 477.)

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Não há dúvida, pois, que as baterias do direito penal do Estado


Democrático de Direito devem ser direcionadas para o combate dos crimes
que impedem a concretização dos direitos fundamentais nas suas diversas
dimensões. Neste ponto, aliás, entendo que é neste espaço que reside até
mesmo uma obrigação implícita de criminalização, ao lado dos deveres
explícitos de criminalizar constantes no texto constitucional. Nesse sentido,
aliás, veja-se o art. 5, XLIII, da Constituição Federal, que determina a
criminalização das condutas que consubstanciem prática de tortura, tráfico
ilícito de entorpecentes e drogas afins e terrorismo. Veda, inclusive, a tais
crimes, assim como aos crimes definidos como hediondos, a fiança e a
concessão de graça ou anistia política. Adequada ou não, tal previsão é do
constituinte originário.
Insisto: ocorreu uma sensível alteração no papel do direito e do
Estado, que ocorre exatamente quando o Estado, de potencial opositor a
direitos fundamentais27, passa a ser o seu protetor, circunstância facilmente
constatável nos textos constitucionais forjados a partir do segundo pós-
guerra.
Nesse sentido, considero correta a assertiva de ROXIN, para quem o
legislador deve recorrer, subsidiariamente, à contravenção e à multa
administrativa, em vez da incriminação e à pena, somente quando a
perturbação social pode ser anulada com a sanção menos onerosa. É
evidente que esse limite é difícil de traçar. Entretanto, assevera, no campo
nuclear do direito penal as exigências de proteção subsidiária de bens jurídicos
requerem necessariamente um castigo penal em caso de delitos de um certo peso!
Em contrapartida, diz ROXIN, ainda que em princípio se incluam condutas
como o furto e a fraude (estafa) neste “âmbito nuclear” de exigência de
punição por parte do direito penal, nada se oporia a que os casos de
bagatelas neste campo (p. ex., furto de gêneros comestíveis) fossem tratados
como contravenções28.
Observe-se, desse modo, que a discussão dos limites entre condutas
que devem ser consideradas como crimes e as que devem ser epitetadas
como contravenção, primeiramente é de tipo quantitativo; entretanto,
quando se ultrapassa o terreno das condutas insignificantes (sem relevância
penal) – assim entendidas na tradição jurídica – a discussão necessariamente

27 Nesse sentido, ver a interessante abordagem feita por PAULO FERREIRA DA CUNHA, no seu A
Constituição do Crime. Coimbra: Coimbra Editora, 1998, pp. 89 e 90.
28 Cfe. ROXIN, Claus. Derecho Penal – Parte General, Tomo I. Madrid, Civitas, pp. 72 e 73.

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assumirá foros qualitativos. E é neste ponto que a Constituição deve ser o topos
conformador dos critérios de aferição do conceito de “delitos puníveis com
pena de prisão, substituíveis por restritivas de direito ou não, e as condutas
que podem ficar no âmbito contravencional ou no terreno da transação
penal”. Nesse sentido, veja-se a lição de MAURACH e ZIPF, que, com
fundamento da jurisprudência do Bundesverfassungsgericht, assinalam que el
legislador debe respetar los limites establecidos por el derecho constitucional en sus
decisiones relativas a penalizar o amenazar con multas a ciertos tipos de conducta,
pois que la idea de justicia, inserta en el principio de Estado de Derecho, exige que el
tipo y la consecuencia jurídica (pena o multa) estén ‘adecuadamente armonizados
entre si’ (BVerfGE 27, 18, 29). Nesse mesmo contexto, na definição entre uma
e/ou outra sanção – seguem os autores – resta claro que sería inadmisible
desde el punto de vista del derecho constitucional, que ciertos ilícitos
indudablemente pertenecientes al núcleo del derecho penal fueren castigados con
multa y, a la inversa, que contravenciones propias del ilícito administrativo, lo
fueren con pena criminal. Em complementação, sustentam, em referência à
dicção do Tribunal Constitucional alemão, que aun cuando no se pueda trazar
una línea divisoria exacta para el mencionado núcleo, ‘basándose em la escala de
valores contenida em la ley fundamental’, es posible ‘indagar com certeza suficiente’
cuál ilícito pertenece inequívocamente a este núcleo y cuál no (BVerfGE, loc. cit.)29.
Ora, é evidente que, se por um lado, um crime não é um crime porque
o tipo penal, ontologicamente (sic)30, refletiria a essência (sic) da coisa
designada (concepção realista das palavras de Platão, a partir da qual, por
exemplo, na palavra estupro estaria a “essência” da “estuprez” – sic), por
outro, também parece evidente que um delito não tem sua concepção de
ofensividade alterada simplesmente porque recebeu nova denominação (no caso,
veja-se o exemplo do epíteto de menor potencial ofensivo atribuído pela Lei
10.259). Para não ir muito longe, até mesmo a semiologia de SAUSSURE
poderia dar uma resposta ao problema. Afinal, como dizia o mestre
genebrino, se queres saber o significado de um significante, pergunta por aí...!
Para ficar no exemplo dos crimes de “menor potencial ofensivo”(sic):
perguntemos por aí se o cidadão considera que a exposição a perigo da vida
de um idoso ou a sua privação de alimentos é uma infração de natureza,

29 Cfe. MAURACH, Reinhart; ZIPF, Heinz, Derecho Penal – Parte General 1, Buenos Aires, Astrea,
tradução da 7ª edição alemã, 1994, p. 23.
30 Quem utiliza a expressão “ontologicamente” deve estar se referindo, à evidência, à ontologia

clássica, com o que voltaríamos no tempo no mínimo um milhar de anos.

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quiçá, levíssima, a ponto de poderem ser transacionadas por cestas básicas


(sic).
Em tempo de Constituição compromissória, parece razoável afirmar
que o legislador não pode se guiar por pragmatismos inconseqüentes que
destroem a diferença. Esse pragmatismo vira ceticismo, porque, na medida em
que cada ato humano tem um conteúdo fático, torna-se absolutamente problemático
o processamento da validade desse ato. Com efeito, se elimino o elemento
diferencial que identifica cada ato (valorado como delito), caio no cinismo,
uma vez que “tanto faz qual o delito que cometo”...
Isto porque, muito embora o direito penal deva ser utilizado apenas
como ultima ratio, parece evidente que existem situações e hipóteses em que
o bem jurídico não estaria suficientemente protegido, mormente em uma
comparação com outras formas de proteção31. Deveria causar espanto à
comunidade jurídica o fato de o legislador não abrir mão do direito penal
para combater delitos menos relevantes (CRIMINALIZAÇÃO DA
POBREZA) – no que pertine a sua danosidade social – como o furto e
apropriação indébita, e, nos casos de crimes mais graves como os de cariz
supra-individual, agir de modo absolutamente contrário.
Por derradeiro: qual é o papel do direito penal no Estado Democrático
de Direito? O direito penal não trata de “coisas boas”. Isso é evidente. Nem
é, tampouco, instrumento de transformação da sociedade ou do individuo.
A concepção de um direito garantidor é uma conquista da humanidade.
Mas, em tempos de novos paradigmas, ficamos no entremeio de uma
aporia: os penalistas (e não somente eles) são praticamente uníssonos (com
exceção dos discursos law and order) em apontar o direito penal como
discriminatório, seletivo, estigmatizador e “protetor dos interesses das camadas
dominantes”. Aliás, já não há qualquer novidade em dizer isso. Ou seja, tem
razão o camponês salvadorenho, citado por JESUS DE LA TORRE, quando diz
que “la ley es como la serpiente; solo pica a los descalzos”. Assim, dizer que
o direito penal, historicamente, criminaliza a pobreza parece, hoje, uma
obviedade...; o problema é: o que fazer com ele? Extingüi-lo? Redefini-lo?

31 Ressalte-se, aqui, que há autores que chegam a colocar em dúvida essa “alternativa” entre direito
penal e outras medidas aptas para proteção do bem jurídico, pela simples razão de que,
relativamente aos bens constitucionais “significativos”, a sanção penal deve ser adotada mesmo que
se pudessem conseguir os interesses da disciplina recorrendo a outras sanções; em caso contrário
acentuar-se-ia o papel pragmático do direito penal e instrumental da pena, com prejuízo de sua
função estigmatizante e da reafirmação do valor tutelado. DOLCINI, Emilio e MARINUCCI, Giorgio,
Constituição..., p. 184.

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Por que punir os crimes contra a propriedade individual (cometidos sem


violência) e não punir com o mesmo rigor os crimes que lesam bens
jurídicos supra-individuais? Por que, por exemplo, não estender as benesses
legislativas (cestas básicas, pagamento do prejuízo, etc.) também à patuléia
em geral?
Talvez tenhamos que enfrentar essa criminalização da pobreza e
passar a falar da “pobreza da criminalização” dos setores que, de fato,
colocam em xeque os bens jurídicos mais relevantes. E, para tanto, não é
preciso pensar em estender as graves penas aos crimes do “andar de cima”.
A aplicação da Constituição no plano penal por certo não exige que se use o
direito penal como uma vingança dos setores dominados da sociedade
contra a histórica criminalização dos pobres32. Parece evidente que não. Mas,
com certeza, a Constituição não abre mão do direito penal. Ou seja, a Constituição
não extingue o direito penal. Ora, se isso é assim, se estamos de acordo que
HOBBES e FREUD possam ter parcela de razão, então podemos afirmar que
“não é proibido proibir”. O dilema é: como fazer isso sem que o direito penal se
torne autoritário/arbitrário e ao mesmo tempo não mais seja um direito penal “de
classe”?
Neste curto período de vigência da nova Constituição e nos limites do
permitido pelos instrumentos postos à disposição pela jurisdição
constitucional, penso que já deveríamos ter feito muito mais. Os juristas não
somos legisladores. Mas a doutrina e a jurisprudência podem e devem ter

32 Não é novidade dizer que os presídios são “máquinas de triturar seres humanos”, como bem
aponta MARCOS ROLIM: manter um preso no Brasil não sai por menos de R$ 1,5 mil mensais e
construir uma nova vaga custa em torno de R$ 40 mil. Chegamos a meio milhão de presos; o
déficit estimado é superior a 250 mil e há 500 mil mandados por cumprir (Cf. Mudar o paradigma,
in Zero Hora, 12 de out 2008, p.18). A questão levantada diz respeito ao futuro de nossa política
criminal. Continuar prendendo como agora, fará com que continuemos a colocar na cadeia percentual
enorme de pessoas que cometem crimes que não colocam em xeque (em risco) bens jurídicos relevantes.
Observem-se, a propósito, dados do censo penitenciário realizado, em junho de 2008 pelo
Departamento Penitenciário Nacional (órgão do Ministério da Justiça) no sentido de que o sistema
prisional do Estado de São Paulo opera, atualmente, com uma população 50% acima de sua
capacidade – 96.540 vagas para 145.096 presos (Cf. Prisões de São Paulo têm 50% mais detentos do
que vagas, in Folha de São Paulo, 13 de out. 2008, p. C1). Nesse mesmo sentido, cumpre
mencionar levantamento feito recentemente pela Brigada Militar do Estado do Rio Grande do Sul
(e publicado no jornal Zero Hora do dia 05 de outubro de 2008) que revela a absoluta superlotação
de todos os 06 pavilhões do Presídio Central de Porto Alegre. O Pavilhão C, por exemplo, que
conta com 254 vagas, alberga 1.037 presos, o que configura uma superlotação equivalente a
308,3%. Porém, o que parece ainda mais preocupante é que dos 4.705 detentos que compõem a
população do cárcere, há uma maior quantidade de presos provisórios (2.606) do que de presos
condenados (2.099).

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um papel muito mais relevante nesse processo de institucionalizar a


integridade, a coerência e a igualdade no direito33, em especial no direito
penal, que lida com conflitos resultantes de resquícios de um país de
modernidade tardia que não passou pela etapa do Welfare State”. E ainda
não se encontrou uma explicação maior para a criminalidade do que as
disparidades sociais. Talvez por isso a criminalidade de países como a
Suécia não seja maior do a criminalidade na Somália, como já bem explicava
ALESSANDRO BARATTA: de uma ponta à outra, as distâncias sociais são
muito pequenas...!
O grande desafio talvez seja – para utilizar uma frase do psicanalista
ALFREDO JERUSALINSKI – “como conter o gozo da sociedade sem ser
tirânico”. É nesse fio da navalha que caminha o jurista/penalista do Estado
Democrático de Direito. É verdade que, quando a Constituição determina

33 A partir da jurisdição constitucional, esse é o caminho que venho trilhando. Nesse sentido, alguns
exemplos de construção de soluções para os “impasses” desse direito penal, constantes em
acórdãos especialmente da 5ª Câmara do TJ-RS e em pareceres à disposição no site
www.leniostreck.com.br (deixo de relatar as soluções que venho apontando no campo do processo
penal – em especial poderia falar da luta pela obrigatoriedade da presença de advogado no
interrogatório, tese que vinha sendo admitida quase que isoladamente por duas Câmara do TJ-RS
e rejeitada pelo STJ; como se sabe, somente em 2004 é que os juízes passaram a admitir a tese, mas não em
face do princípio da ampla defesa previsto na Constituição, e, sim, porque foi determinado por lei
ordinária, o que apenas demonstra que preferimos obedecer à lei do que a Constituição). Assim: I – a
extensão dos benefícios concedidos aos sonegadores em geral para os crimes contra o patrimônio
(tese não aceita pelos tribunais superiores e sem apoio na doutrina); II – nos casos de furto
qualificado pelo concurso de pessoas, a aplicação da causa especial de aumento do roubo (1/3) –
tese, aliás, rejeitada pelos tribunais superiores e sem apoio na doutrina penal; III – a redefinição
do preceito secundário do artigo 180, § 1º, do Código Penal por uma questão de
desproporcionalidade na punição de condutas que exigem o dolo direto e de condutas que
exigem o dolo eventual; IV – a inconstitucionalidade da reincidência, igualmente sem apoio da
expressiva maioria da doutrina e rejeitada em especial pelo STJ; V – a não recepção constitucional
das contravenções penais com base no princípio da secularização do direito; VI – a aplicação da
técnica da Teilnichtigerklarung ohne Normtextreduzierung (nulidade parcial sem redução de texto)
para os casos de porte de arma e disparo de arma de fogo sem que haja comprovação de bem
jurídico violado (princípio da presunção da inocência); VII – a inconstitucionalidade (não
recepção) de delitos como casa de prostituição, ato obsceno, dano e todos os demais que tenham
relação com uma indevida utilização do direito penal no Estado Democrático de Direito; VIII – a
aplicação da técnica da verfassungskonforme Aulegung (interpretação conforme a Constituição) no
art. 299 do CP; IX – a releitura constitucional do artigo 25 do Dec-Lei – 3.688/41; X – nulidade
parcial sem redução de texto do crime previsto no art. 89, caput, da Lei 8.666/93, com a exigência
de ofensa ao bem jurídico para a tipo penal; XI – a aplicação da técnica verfassunsgskonforme
Auslegung (interpretação conforme à Constituição) quando da invocação às súmulas 21 e 52 do
Superior Tribunal de Justiça, que dizem respeito à prejudicialidade das alegações de excesso de
prazo quando do encerramento da instrução. Trata-se, pois, de uma necessária filtragem
hermenêutico-constitucional, feita a partir, modo geral, da utilização do princípio da proibição de
excesso (Übermassverbot).

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que um dos objetivos da República é erradicar a pobreza, não significa que


isso será alcançado utilizando o direito penal; mas isso também não quer dizer
que a pobreza continue a ser criminalizada como se estivéssemos no Século XIX ou
nos anos 40 do Século XX. Certamente alguma coisa mudou com o advento
do novo paradigma constitucional...! Como bem diz o poeta mexicano
ERACLIO ZEPEDA, quando as águas da enchente cobrem a tudo e a todos, é
porque de há muito começou a chover na serra. Nós é que não sabíamos!

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ORIENTAÇÃO POLÍTICO-CRIMINAL DO
ESTADO BRASILEIRO: UMA ANÁLISE DE LEIS
PROMULGADAS NO PERÍODO DE 1998 A 2002 *
C AMILA C ARDOSO DE M ELLO P RANDO * *

Sumário: 1 – Introdução; 2 – Políticas criminais de defesa social e


políticas criminais alternativas; 3 – Contexto estrutural do
desenvolvimento das políticas criminais; 4 – Diagnóstico da
produção legislativa no período de 1998-2002; 4.1 Crimes de
colarinho branco; 4.2 Crimes vinculados às demandas de
movimentos políticos de esquerda; 4.3 Crimes vinculados a
grupos sociais vulneráveis perante o sistema penal; 4.4 Crimes
vinculados à política do espetáculo; 4.5 Leis despenalizadoras;
5. Considerações finais

Resumo: O texto é resultado de parte de uma pesquisa realizada


ao longo de um semestre, a partir da análise da produção
legislativa referente à matéria penal e processual penal, no
período de 1998 a 2002, e tem como marco teórico a
Criminologia Crítica. A pesquisa parte da compreensão de que
a produção legal referente ao direito penal e processual penal é
um importante referente na compreensão da estrutura política
do Estado. Para essa análise, o texto apresenta as leis
promulgadas nesse período, à luz das duas principais
orientações político-criminais: as políticas de defesa social e as
políticas alternativas.

Palavras-Chave: política legislativa; criminologia crítica; direito


penal.

* Este texto é resultado de uma pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos de Direito Penal e
Criminologia no ano de 2007. A pesquisa legislativa foi realizada pelos seguintes acadêmicos:
Camila Petry, Eliana Brissac, Helena Fávero, Maria de Fátima Tadeu.
** Doutoranda em Direito na UFSC. Mestre em Direito pela UFSC. Bolsista do CNPq.

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I NTRODUÇÃO
No período da atividade legislativa do ano de 1998 a 2002 foram
estudadas 24 leis promulgadas, que versam sobre temas relativos à matéria
penal e processual penal. O objetivo desta pesquisa foi apontar o
movimento que o Estado brasileiro contemporâneo vem realizando no
desenvolvimento de orientações político-criminais.
A delimitação temporal da pesquisa justifica-se por ser esse um
período recente de nossa história, no qual a nova ordem jurídica
constitucional, implementada em 1988, já cumpre mais de uma década de
construção.
Para tal objetivo o texto se propõe a, primeiramente, revisar as
principais linhas de política criminal, contextualizadas a partir da estrutura
político-econômica desenvolvida a partir da década de 1970.

1 – P OLÍTICAS C RIMINAIS DE D EFESA S OCIAL E P OLÍTICAS


C RIMINAIS A LTERNATIVAS
É possível delimitar duas orientações político-criminais principais,
embora cada uma delas apresente, de acordo com o contexto em que se
desenvolve, aspectos particulares e, inclusive, por vezes, híbridos.
De um lado, subsistem as políticas-criminais de defesa social. Para
essas políticas, a função do sistema penal é a realização da defesa da
sociedade contra os indivíduos perigosos1. Esta orientação tem como base o
discurso da ideologia da defesa social. BARATTA aponta que o discurso
fundador e oficial do sistema penal moderno é o discurso da ideologia da
defesa social, cujos princípios formadores advêm das Escolas Clássica e
Positiva2. Estes princípios constituem a formação de um sistema penal cuja
função declarada é a de garantir a defesa da sociedade contra o delinqüente,
e também, em alguma medida, garantir a defesa do delinqüente contra o
poder do Estado (ANDRADE, 1997, BARATTA, 1998, ZAFFARONI, 2003).

1 Cf. a sustentação do modelo de justiça penal de defesa social em ENRICO FERRI, [s.d.].
2 A Escola Clássica surgiu no Século XVIII, acompanhando a formação política do Estado de Direito.
Ela foi responsável pela construção de princípios tais como a culpabilidade, a igualdade, e a
legitimidade de punição do Estado. Estes princípios visavam à delimitação do poder punitivo do
Estado e compuseram o discurso da segurança jurídica desenvolvida posteriormente pelo Direito
Penal. A Escola Positiva surgiu no Século XIX, já vinculada a um Estado de perspectiva mais
intervencionista, em um período de crise econômica e social. Esta Escola deu ensejo à formação de
princípios tais como o da periculosidade, o da prevenção e do bem e do mal, que compuseram,
por sua vez, o discurso etiológico da Criminologia Positivista.

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As políticas de defesa social costumam apontar para a necessidade de


reproduzir intervenções penais, mais ou menos repressivas, mais ou menos
delimitadas pelo estatuto jurídico-penal, para a realização da ordem e para
o combate da criminalidade produzida por uma minoria perigosa presente
na sociedade. Daí se depreendem, exemplificativamente, desde as primeiras
propostas de ENRICO FERRI, autor da Escola Positiva (FERRI, [s.d.]) passando
pela chamada Nova Defesa Social, proposta por MARC ANCEL (ANCEL, 1979)
culminando atualmente, por exemplo, com a organização do Movimento de
Lei e Ordem (WACQUANT, 2001).
Evidentemente, essas políticas apresentam características diferentes,
algumas mais preocupadas com uma delimitação do poder de intervenção
do Estado, outras menos interessadas na produção de limites. Variações
estas que se conformam com os modelos diversos de organização política
estatal. Entretanto, todas têm em comum a previsão de legitimação da
função punitiva do Estado, especialmente vinculada à noção de prevenção e
de defesa da sociedade de bem.
As estratégias para estas funções podem ser denotadas nas diversas
construções de justificativas para a aplicação da pena, instrumento legal de
punição do sistema penal. A começar pela própria função retributiva da
pena. Embora ela se ampare na aplicação de pena como resposta e
retribuição necessária e, praticamente, moral, à realização de um delito, ela
guarda consigo uma função mediata de que, em se realizando a atividade
retribucionista, o Estado está garantindo a ordem social.
De outro lado, as justificativas prevencionistas da pena, sejam quais
forem as estratégias para tal, também reproduzem a função de garantia de
ordem e pacificação social através do sistema repressivo penal. Desde a
explicação de que a pena serve para ressocializar ou intimidar o condenado,
até a explicação de que a pena serve para intimidar a sociedade ou reforçar
os valores da ordem jurídica, todas perpassam uma luta contra a
criminalidade e uma busca pela manutenção da ordem.
Opondo-se às políticas de defesa social, têm-se as denominadas
Políticas Criminais Alternativas, que baseadas no discurso da Criminologia
da Reação Social e da Criminologia Crítica3, reorientam o funcionamento do

3 A Criminologia da Reação Social, surgida entre as décadas de 1960 e 1970, promove uma ruptura
no conhecimento etiológico da Criminologia Positivista. A partir de então, a Criminologia tem
como objetivo, não mais a busca das causas da criminalidade ou das características do criminoso,
e sim o estudo do funcionamento do processo de criminalização levado a cabo pelo sistema penal.

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sistema penal no sentido da minimização da produção da violência


repressiva e da menor dessocialização do condenado. Elas partem do
pressuposto de que o sistema penal moderno produz um processo de
criminalização seletivo e violento, o qual reproduz uma ordem social
desigual. Deste modo, a velha luta da defesa social, da sociedade de bem
contra a sociedade de mal, passa a ser entendida como a forma de
intervenção estatal na seleção de indivíduos excluídos do processo social,
cultural e econômico, agravando-se o processo de exclusão e mantendo-se o
status quo vigente.
Abolicionismos penais, minimalismos penais e garantismo são
exemplos de proposições de políticas alternativas que partem da
deslegitimação do funcionamento atual do sistema penal. Enquanto as
propostas abolicionistas e minimalistas apóiam-se na total deslegitimação
do sistema penal e projetam a possibilidade da construção de uma ordem
política que possibilite a solução alternativa aos conflitos, a proposta
garantista compreende a necessidade de um sistema repressivo que,
todavia, deve se dar sob orientações diferentes das atuais.
O abolicionismo penal (ou abolicionismos, porque as propostas são
variadas) busca uma análise mais cultural do funcionamento do sistema
penal e propõe alternativas para soluções de conflitos, que sejam
alternativas à utilização do direito penal e do modo repressivo de operação
do sistema punitivo (HULSMAN, 1997a, 1997b, SCHEERER, 1997). Já as
propostas do minimalismo penal procuram estratégias para utilização
reduzida do sistema penal, através de alternativas à pena privativa de
liberdade, de reconstrução da teoria do delito, de descriminalização de
condutas que não sejam consideradas socialmente danosas e de
minimização do processo de seleção dos grupos vulneráveis ao sistema
(BARATTA, 1987). O garantismo penal também busca uma ordem jurídico-
penal limitadora do poder punitivo do Estado, reduzida a fatos
considerados mais importantes no âmbito da produção de danos sociais e
especialmente preocupada em reforçar as garantias jurídicas do indivÍduo
processado e condenado diante da força do Estado (FERRAJOLI, 2002).
Embora o garantismo e o minimalismo penal adotem estratégias
pragmaticamente semelhantes, aquele se diferencia deste em dois aspectos.

A Criminologia Crítica, por sua vez, assimila este novo paradigma e acrescenta a ele a perspectiva
da sociedade de conflito e a perspectiva do materialismo histórico, buscando, a partir de então, o
entendimento do funcionamento do sistema penal, vinculado às estruturas econômicas e políticas
respectivas.

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Em primeiro lugar, pela negação da abolição do sistema penal e, em


segundo lugar, pela crença garantista de que a utilização do direito penal
seria capaz de assegurar a proteção dos direitos fundamentais, afirmando,
portanto, um garantismo com predominância penal, no dizer de
ALESSANDRO BARATTA. Já, segundo o minimalismo, a garantia dos direitos
fundamentais deve se dar sem a predominância penal, e sim constitucional,
uma vez que não se ignora a característica estrutural deste Direito ser, por
excelência, o campo de negação e supressão de direitos (BARATTA, 2000,
p.48).

2 – C ONTEXTO E STRUTURAL DO D ESENVOLVIMENTO DAS


P OLÍTICAS C RIMINAIS
Essas orientações político-criminais devem ser entendidas no contexto
contemporâneo e na inserção do Estado brasileiro neste recorte histórico,
especificamente desenvolvido a partir da década de 1970.
A economia mundial, principalmente a partir de meados da década
70, apresentou profundas transformações, tendo como característica
principal a
“privatização do mercado mundial de capitais, decisiva para
que, a partir desta época, a hegemonia na economia mundial
passasse das mãos dos governos nacionais articulados a empresas
produtivas para as multiempresas internacionais, capitaneadas
pelo que se pode chamar de capital financeiro” (SINGER, 2000,
p.48)4.
No novo contexto de reestruturação do capital, desenvolveu-se a
política neoliberal. O Brasil inseriu-se neste contexto, muito embora não se
possa afirmar que a política brasileira tenha adotado ipsis literis o
receituário, uma vez que ela mantém, em alguma medida, o braço das
políticas assistencialistas.

4 Na concepção de SINGER, a globalização é compreendida como um fenômeno antigo, que se


desenvolve enquanto característica intrínseca ao desenvolvimento do capitalismo. Contudo, no
presente trabalho, o termo globalização econômica é entendido enquanto fenômeno recente,
característico do período do capitalismo financeiro.

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A adoção das práticas políticas neoliberais5 atingiu níveis


importantes de assimilação na década de 90, com o Governo Collor. O País
tornou-se vulnerável à grande flutuação do capital financeiro que tem como
objetivo a maior circulação com custo zero. O que significa que ele busca
tanto mercados de trabalho em que o nível de extração de mais-valia seja
mais intenso, quanto planos fiscais vantajosos. As multinacionais, grandes
detentoras de capital financeiro, buscam investir em países periféricos que
lhes ofereçam maiores possibilidades de lucro. Entretanto, esse
investimento representa mais uma extração de valor do que qualquer tipo
de transferência de controle, de pesquisa tecnológica ou planejamento
estratégico (SINGER, 2000, 250-255), o que torna as relações de dependência
do Brasil ainda maiores, agravada pelo aumento da dívida externa a partir
da política da alta taxa de juros (funcional ao capital financeiro) e do
aumento das desigualdades sociais.
Não é incorreto afirmar, pois, que concomitante ao processo de
globalização econômica, estende-se o processo de desigualdade e crises.
Assim, afirma MELLO: “com ela, reacendem-se, pari passu, as crises de
caráter mundial, as epidemias de superprodução e de subconsumo; projeta-
se o desemprego estrutural, a massificação da miséria, da fome, da violência
e da exclusão social” (MELLO, 1999, p.260). Os países ricos, que representam
15% da população mundial, controlam mais de 80% do rendimento global.
Estabelecendo esses dados em termos populacionais, os 20% mais pobres
dispõem de apenas 0,5% do rendimento mundial, enquanto os 20% mais
ricos dispõem de 79% (MELLO, 1999, p.260).
No entanto, este processo de agravamento da desigualdade social não
é privilégio dos antigamente chamados países de Terceiro Mundo. A
miséria tem se massificado em todas as latitudes e longitudes do planeta.
Diz-se, pois, que a miséria também se globalizou. Para sustentar essa
afirmação MELLO demonstra que “em Nova York, as pessoas

5 As idéias que compuseram a política neoliberal – que atingiu seu ponto propulsor máximo com o
Consenso de Washington, impondo uma “nova ordem mundial”, em novembro de 1989 – surgem
a partir do final da Segunda Guerra Mundial e têm como marco a obra de FRIEDRICH HAYEK, “O
caminho da servidão”. Posteriormente, fundou-se a Sociedade de Mont Pèlerin, que teve como
um dos integrantes KARL POPPER, que preparou as bases políticas para um novo capitalismo,
sustentando a idéia de que a desigualdade era um valor positivo, imprescindível às sociedades
ocidentais. Finalmente, em 1989, liderado por MARGARET THATCHER e RONALD REAGAN, impôs-se
o receituário neoliberal aos países subdesenvolvidos, qual seja: a contenção de gastos públicos
bem como a redução drástica do Estado; a máxima abertura das importações e a entrada do
capital de risco.

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marginalizadas vivendo em becos, pontes e parques chegam, hoje, a 10% da


população total da cidade, muitas vezes sob condições materiais e
expectativa abaixo do nível da Somália” (MELLO, 1999, p.260).
Essa sociedade, que acompanha a reestruturação do capital e o
redirecionamento político, deixa de ser marcada pela predominância da
produção, ao qual corresponderia o capital produtivo, tomando como locus
central o consumo. Enquanto de um lado estão os consumidores, que
servem ao funcionamento e reprodução da sociedade, de outro estão
aqueles que, embora aspirem ao consumo, já que estão inseridos em uma
sociedade consumista, não podem fazê-lo, quedando imóveis e à margem
das conquistas mundiais da “humanidade”.
Delineia-se, assim, uma nova dicotomia, representada pelos signos
excluídos/incluídos. Configura-se um universo que não se constitui
simplesmente pela oposição entre explorados e exploradores. Faz-se
presente a dicotomia entre incluídos e excluídos, sendo esses últimos
aqueles que desejam ser explorados para assim ter um acesso mínimo ao
consumo, de cujo processo estão à margem. Quando não conseguem nem
ascender a um círculo de produtividade e de aceitação cultural, a eles são
projetadas formas diversas de contenção, como por exemplo, a contenção
realizada pelo sistema penal (BAUMAN, 1999, p.113-126; WACQUANT, 2001,
p.96-104).
Sob este panorama da globalização econômica, a política estatal
adquire também contornos próprios. Ao Estado, desprovido, em grande
medida, de seu poder tanto econômico quanto político, é demandada uma
necessidade de resposta à precarização da estabilidade econômica e, por
vezes, política, do País. Busca-se, no Estado, alguma perspectiva de
segurança, seja para a instabilidade econômica, seja inclusive para a
insegurança diante do aumento de delitos relacionados ao aumento do grau
de desigualdade social, como os delitos contra o patrimônio privado.
A resposta estatal a esta situação de instabilidade tem sido descrita
como uma resposta de caráter punitivo, através de um aumento da
criminalização de condutas, seja com um caráter simbólico, seja
instrumental. De um lado, o aumento punitivo estatal busca uma
legimitidade do exercício político através da produção de sensação de
segurança. O Estado, legislando penalmente, e realizando algumas decisões
judiciais condenatórias, oferece à população a imagem de que está
respondendo às demandas, de modo que, por mais que as normas não

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tenham eficácia ou que as decisões não alterem o estado da situação, ao


menos garantem um tempo de maior legitimidade para o exercício de poder
do Estado (BAUMAN, 1999, WACQUANT, 2001).
De outro lado, a produção legislativa e prática judicial referente ao
controle de algumas condutas praticadas pelos grupos sociais mais
selecionados e vulneráveis, como a criminalização da mão-de-obra do
tráfico de drogas, ou outros crimes contra o patrimônio, produz também
um efeito instrumental de controle social dos grupos marginalizados.
Especialmente porque, com a finalidade de produzir também uma função
simbólica de sensação de segurança, o Estado vem produzindo a quebra de
garantias individuais em nome da defesa da sociedade de bem, como
propugnam as políticas de defesa social.
Essa resposta à violência urbana, formulada de forma casuística e
sensacionalista constitui, até o momento, a faceta da política do espetáculo
do Estado atual. Uma política de pressupostos equivocados, fundada na
sensação de insegurança, sem formulações racionalizadas de propostas que
contemplem o contexto urbano atual em que se desenrola o cenário de
violências. Uma política que objetiva provocar uma sensação de segurança
de cunho simbólico, conquistada através da promoção da polícia nas ruas e
das legislações penais duras. Uma política que promove a eleição de
candidatos com discursos de endurecimento do aparelho repressivo do
Estado, diante da promessa de exterminar os males que aterrorizam a
população dos centros urbanos. Uma política vinculada a um Estado que,
enfraquecido em suas esferas de políticas públicas, sociais e econômicas,
ignora a realização de violências institucionais (produzidas pela própria
atuação repressiva estatal) e violências estruturais (produzidas pela
reprodução de desigualdade social, traduzida atualmente nos índices de
desemprego e instabilidade) e elege como bode expiatório do processo de
insegurança a sua faceta visível: os bandidos que ocupam as ruas das
cidades ameaçando os cidadãos de bem, que produzem e consomem e que
têm o direito (eles sim) de desejar uma sociedade “segura” (BAUMAN, 1999;
ZAFFARONI, 1999; WACQUANT, 2001)6.
Diante dessa construção do Estado contemporâneo, é possível
denotar também, constituindo este cenário, o crescimento do discurso

6 Estas políticas de quebra de garantias individuais e de expansão penal do Estado são denominadas
atualmente de Movimento de Lei e Ordem. Pois neste binômio, as políticas buscam fazer valer a
lei aos indivíduos vulneráveis ao controle penal e garantir a ordem para a sociedade de bem (cf.
FRANCO, 2000).

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político de esquerda, na perspectiva da referência aos direitos das chamadas


minorias, não representadas politicamente. Este discurso é assimilado
gradativamente pelo discurso estatal, especialmente a partir do movimento
de redemocratização do Estado e da organização dos movimentos sociais
em torno de bandeiras emancipatórias.
Todavia, o que se constata é que esses movimentos, ao formularem
demandas diante do Estado, não conseguem escapar à lógica punitiva, de
modo que acabam por demandar uma expansão ainda maior do sistema
punitivo, agora para solucionar os conflitos e a vitimização de alguns
grupos sociais. Estas demandas repercutem na criminalização, por exemplo,
de crimes de colarinho branco, ou de crimes que têm como vítima atores
sociais pertencentes aos chamados grupos das minorias, como, por
exemplo, a criminalização do assédio sexual ou do racismo.
Não se leva em consideração que, por este modo, acabam por expor
ainda mais esses grupos ao processo criminalizador e seletivo do Estado.
Reproduz-se o modelo de defesa social e de sociedade dividida entre o bem
e o mal, relegitimando o funcionamento do sistema penal, e se desconsidera
o dado de seletividade estrutural do sistema, o que os torna potenciais
vítimas do funcionamento punitivo (ANDRADE, 2003; SINGER,1998).
Esse quadro contemporâneo das demandas político-sociais e das
orientações estatais é determinante na compreensão das políticas criminais
adotadas recentemente. Senão, vejamos as análises que se seguem.

3 – D IAGNÓSTICO DA P RODUÇÃO L EGISLATIVA NO P ERÍODO


DE 1998-2002

Das 24 leis analisadas7, promulgadas no período legislativo de 1998 a


2002, pode-se delinear em que sentido o Estado tem se movimentado
recentemente, na produção referente a opções político-criminais.
Em primeiro lugar, denota-se um movimento de expansão do sistema
penal. Seja através de leis de crimes de colarinho branco, através de leis
criminalizadoras de grupos sociais mais vulneráveis, através da
criminalização vinculada a movimentos políticos de esquerda, de leis penais
com finalidades de espetacularização, e através, mesmo, de leis

7 Leis 9.605, 9.609, 9.613, 9.615, 9.677, 9.695, 9.714, 9.777/98; 9.807, 9.841/99; 9.975, 9.983, 10.028,
9.985, 10.149/2000; 10.268, 10.300, 10.259, 10.217, L.Complementar 105/2001; 10.455, 10.409,
10.467, 10.610/2002.

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despenalizadoras, que passam a processar um número maior de condutas


antes não criminalizadas.
Esse movimento expansionista do sistema penal representa um
movimento estatal que tende a privilegiar o espaço penal como espaço, em
princípio, de solução de conflitos.
Todavia, esta finalidade declarada de solução de conflitos é
fragilizada ao se analisar, em cada uma das leis, as motivações e mesmo o
processo pelo qual foram elaboradas. Tanto a rapidez de formulação e a
precariedade técnica de muitas destas leis, quanto a falta de sistematicidade
da ordem jurídico-penal revelam a pouca ou nenhuma importância dada
pelo legislador a aspectos de eficácia social e instrumental das leis
promulgadas.
Pela análise das motivações e dos contextos em que as leis foram
publicadas, identifica-se como fundamento das criminalizações o senso
comum da punição como recurso principal para enfrentar as crises
institucionais. Deste modo, o legislador não demonstra preocupação em
tornar as leis compatíveis com o ordenamento jurídico constitucional ou, ao
menos, compatíveis com a possibilidade de aplicação normativa destas leis.
Enquanto o interesse principal na produção destas leis é a produção
de uma resposta imediata a algumas demandas da população, torna-se
perceptível que a atividade legislativa tem se pautado, em grande medida,
em uma preocupação de ordem eleitoreira e simbólica. Embora estas leis, na
maioria, sejam ineficazes para o cumprimento das funções declaradas, ao
menos no terreno da produção simbólica de funcionamento do Estado elas
têm se sustentado.
Elas cumprem uma
“função positiva de estabilização social normativa, em conjunto
com o direito penal simbólico (nos casos dos crimes econômicos –
que é o nosso caso –, os ecológicos, etc.), o qual teria uma função
meramente política, atuando na psicologia do povo, produzindo
determinados efeitos úteis, isto é, a legitimação do poder político
conversível em votos e a legitimação do direito penal” (SANTOS,
p.56).
Neste movimento de expansão do sistema penal também se observa
que grande parte das leis penais tem se voltado para os crimes econômicos,
deslocando-se dos bens jurídicos individuais para os bens jurídicos
coletivos e difusos, seja na criminalização da lavagem de dinheiro, na

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proibição de funcionamento de alguns bingos, na criminalização de


condutas realizadas contra as Finanças Públicas e contra o comércio
internacional que afetam a administração pública estrangeira. Trata-se de
um alargamento da “proteção dos bens jurídicos”, via sistema penal,
objetivando a proteção de interesses difusos, como a ordem econômica e
social, o meio ambiente e outros8.
No período anterior a 1998, houve a produção de legislações penais
significativas, de endurecimento e de quebra de garantias. Elas vinculavam-
se, no plano da criminalização primária9, especialmente, a condutas
realizadas pelos grupos sociais mais marginalizados. Veja-se o exemplo da
lei de crimes hediondos (e a inclusão do homicídio qualificado) e da lei do
crime organizado.
O que se constata é que no período de 1998-2002, o legislador
preocupou-se em realizar um processo de criminalização mais intenso em
relação às condutas de grupos sociais incluídos na esfera de produção e
consumo, como é o caso, por exemplo, da lei de lavagem de dinheiro (Lei
9.613/98). Essa produção vinculou-se, em grande medida, a condutas
atreladas à circulação de capital, de modo que tal movimento sinaliza um
posicionamento estatal diante das políticas internacionais de capital
estrangeiro, buscando atrair a confiança dos investidores.
As duas políticas de criminalização primária, uma referente aos
grupos mais vulneráveis, outra referente aos grupos incluídos econômica e
politicamente, representam partes de um todo. Quer-se dizer, tratam de um
contexto que se interpenetra e que se retroalimenta.

8 Sobre a crítica à criminalização de condutas que ferem bens jurídicos “coletivos” e a função
limitadora do bem jurídico na teoria do delito, ao invés da função tradicional da fundamentação
da criminalização, cf. BARATTA, Alessandro. Funções instrumentais e simbólicas do Direito Penal.
Lineamentos de uma teoria do bem jurídico. Trad. Ana Lucia Sabadell. Universidade de Saarland.
Alemanha. Mimeo. BARATTA também entende que esta extensão dos bens jurídicos corresponde a
um verdadeiro desvio de funções, atribuindo a indivíduos concretos a responsabilidade por
lesões que antes tem relação com o déficit de desenvolvimento de políticas públicas que deveriam
ser realizadas pelo Estado, veja-se o caso das lei de crimes ambientais (BARATTA, Alessandro.
Integración-Prevención: una “nueva” fundamentación de la pena dentro de la teoria sistémica.
Doctrina Penal .Buenos Aires, n. 29, pp.3-26 ene./mar.1985.)
9 Entende-se como criminalização primária a seleção de condutas a serem tipificadas em lei;
enquanto a criminalização secundária é representada pela seleção de indivíduos violadores da lei
penal. (cf. BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à
sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 1998; ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A
ilusão de segurança jurídica. Do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1997.)

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Senão, veja-se. De um lado se produz a sobrecriminalização dos


grupos marginalizados, com o aumento do encarceramento. Os políticos de
plantão se arvoram como os únicos capazes, e decididos, a enfrentar essa
guerra, numa atuação “suprapartidária”. A população, por sua vez,
amedrontada, legitima a quebra de garantias em nome da segurança e da
ordem. A multiplicação das infrações puníveis e o aumento das penas
aumentam a popularidade dos governos, que se apresentam como severos e
apazes. Assim, a espetaculosidade das operações punitivas torna-se patente.
E junto delas, realiza-se uma função instrumental da criminalização, através
do controle punitivo de alguns setores marginalizados da população.
De outro lado, participando da cadeia de produção de desigualdade,
tem-se a reprodução, em larga escala, do capital, proveniente de atos ilícitos
e de mercados ilegais, que concorrem com os capitais lícitos de investimento
no mercado. Neste jogo de circulação do capital transnacional, o País
apresenta medidas, inclusive criminalizadoras, que atraem a confiança dos
investidores. Para tanto, produzem-se leis que alimentam, na medida
necessária, uma confiança de investimento e que ao mesmo tempo não
assustam os investidores, que por vezes, mesmo com recursos ilícitos, são
bem-vindos.
Exemplo corrente é a criminalização da lavagem de dinheiro, em que
a regulação dá-se de maneira a oferecer muitas garantias no procedimento
de criminalização. Porque, como assinala CASTILHO
“A estrutura do mercado financeiro global mostra que o
dinheiro das drogas, das armas e do tráfico de seres humanos não
é o principal inimigo do sistema financeiro e sim a evasão fiscal
lícita e ilícita. Não há interesse global para a cooperação jurídica
contra a lavagem de dinheiro, porque os ativos ilícitos, embora
eticamente reprováveis, também apareceriam; se houvesse
interesse, não existiriam os paraísos fiscais, as restrições à
cooperação em matéria tributária e à quebra do sigilo bancário”
(CASTILHO, 2004, p.57).
Assim, vale anotar que as leis relativas a crimes de colarinho branco
apresentam recursos muito mais garantidores, e por vezes duvidosos10, do
que aquelas que criminalizam as condutas de grupos vulneráveis. Garante-

10 Caso que pode ser exemplificado na previsão de extinção de punibilidade nos crimes de
apropriação indébita previdenciária, quando ocorre confissão espontânea e pagamento da dívida
(Lei 9.983/2000).

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se, assim, o funcionamento seletivo do sistema penal perante a


criminalização primária, agravando ainda mais a seletividade na
criminalização secundária.
Nestes termos, é oportuno lembrar as lições de ZAFFARONI:
“os órgãos legislativos, inflacionando as tipificações, não fazem
mais do que aumentar o arbítrio seletivo dos órgãos executivos do
sistema penal e seus pretextos para o exercício de um maior poder
controlador. A seletividade estrutural do sistema penal – que só pode
exercer seu poder regressivo legal em um número insignificante das
hipóteses de intervenção planificadas – é a mais elementar demonstração
da falsidade da legalidade processual proclamada pelo discurso jurídico-
penal. Os órgãos executivos têm ‘espaço legal’ para exercer poder
repressivo sobre qualquer habitante, mas operam quando e contra
quem decidem” (ZAFFARONI, 1991, p.27).
Em tal contexto, a produção legislativa reforça as políticas de defesa
social, pautando-se, principalmente, no prevencionismo simbólico. Para
seguir a análise, didaticamente, podem-se agrupar as leis em cinco quadros
distintos, embora interdependentes: 1. Crimes de colarinho branco; 2.
Crimes vinculados às demandas dos movimentos políticos de esquerda; 3.
Crimes vinculados a grupos sociais vulneráveis perante o sistema penal; 4.
Crimes vinculados à política do espetáculo; 5. Leis despenalizadoras.

3.1 Crimes de Colarinho Branco


Algumas leis, como a que protege o sigilo das operações financeiras
(Lei Complementar 105/2001) e a que tipifica condutas praticadas contra a
administração pública estrangeira (Lei 10.467/2002), realizam uma função,
mesmo que simbólica, de proteção do capital estrangeiro. Como já
afirmado, trata-se de uma forma de o Estado brasileiro acenar para a
confiança do capital estrangeiro nos investimentos nacionais.
Elas constituem a maioria das leis promulgadas durante estes cinco
anos e, portanto, apontam para uma maior criminalização orientada para
condutas realizadas por grupos sociais menos vulneráveis à seletividade
penal e para condutas vinculadas diretamente à circulação do capital
produtivo e financeiro. Embora a prática judicial não demonstre a
aplicabilidade constante destes dispositivos, eles têm uma função
importante na construção simbólica do funcionamento estatal.

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Mas vale anotar que, entre estas leis, existem preceitos processuais
que beneficiam os atores sociais envolvidos nestas condutas típicas. Se eles
já, dificilmente, são selecionados pelo sistema penal, quando o são, têm à
disposição, dependendo da conduta típica, instrumentos que garantem a
absolvição ou impedem a própria denúncia, como, por exemplo, o chamado
acordo de leniência criado por lei (Lei 10.149/2000).
Percebe-se, analisando o processo penal relativo à grande parte destas
condutas, que o Estado preocupa-se sobremaneira na garantia dos direitos
dos envolvidos durante o processo punitivo. O que não significa uma
atitude equivocada, mas evidencia a seletiva forma de criminalização.

3.2 Crimes Vinculados às Demandas de Movimentos


Políticos de Esquerda
A proteção aos direitos fundamentais através da criminalização de
condutas são exemplos da expansão do sistema penal. (DELMAS-MARTY,
2004, p. 3-23).
Enquadram-se nesta categoria, especialmente, a lei de crimes
ambientais (Lei 9.605/98), a lei que criminaliza a exploração sexual de
menores (Lei 9.975/2000) e a nova tipificação da exploração de trabalho
escravo (Lei 9.777/98).
Vislumbra-se, no processo legislativo de algumas destas novas leis, a
participação mais ativa das organizações da sociedade civil. Por exemplo, a
origem do PL 929/95 (que criminaliza condutas vinculadas à exploração de
trabalho escravo) se deve ao Fórum Contra a Violência, cabendo a sua
redação ao grupo de trabalho formado por representantes das seguintes
instituições: CONTAG, CPT, Secretaria de Fiscalização do Ministério do
Trabalho, Ministério Público do Trabalho, Comissões de Direitos Humanos
e de Agricultura e Subcomissão de Trabalho Escravo da Câmara dos
Deputados.
Entretanto, as demandas formuladas pelos movimentos da esquerda
política e das representações das minorias apresentam um critério ambíguo
de luta emancipatória, porque embora se manifestem pela afirmação dos
direitos destes grupos, buscam como um dos recursos de proteção destes
direitos, a esfera penal.
Como apresentado pelos estudos da Criminologia Crítica, o
funcionamento do sistema penal, estruturalmente violento e seletivo, não
consegue afirmar ou positivar direitos. Pelo contrário, o sistema punitivo

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tende a reproduzir as relações de hierarquia durante o processo de


criminalização, vitimizando duplamente os sujeitos que deveriam estar
sendo protegidos pelo recurso punitivo11.
Além da sobrevitimização destes atores durante o processo punitivo,
torna-se incoerente pensar que estes movimentos emancipatórios, que
foram também autores das críticas das instituições de controle punitivo do
Estado, na década de 1980, hoje não consigam formular alternativas para a
solução de seus conflitos e recorram à velha fórmula do “mais do mesmo”.
Retrata-se a demanda punitiva dos movimentos sociais e, mais uma
vez, a ampliação do sistema penal. Embora essas condutas possam ser
reduzidamente aplicadas na prática judicial, elas servem, ainda, à função
simbólica de reafirmar o funcionamento do próprio Estado diante das
demandas coletivas.
O que importa denotar são questões de três ordens.
Em primeiro lugar, embora na feitura legislativa muito comumente
tenha-se visado à criminalização igualitária das condutas tipificadas em lei,
o processo seletivo estrutural leva à utilização destes diplomas legais como
mais um recurso punitivo estendido a grupos sociais mais vulneráveis. Por
exemplo, no que toca à criminalização de condutas lesivas ao meio
ambiente, embora se possam identificar atores pertencentes a grupos
dominantes, estabelecidos política e economicamente, os processos de
criminalização acabam recaindo seletivamente sobre os grupos mais
vulneráveis que, eventualmente, incidem nas condutas típicas.
Em segundo lugar, as atividades de exploração de trabalho escravo,
de prostituição ou mesmo de lesões ambientais fazem parte, genericamente,
da produção e reprodução do capital financeiro, muitas vezes de origem
ilícita. Portanto, são condutas que se entrecruzam na sustentação do modelo
de reprodução atual do capital e que não poderiam ser visualizadas
independentes, umas das outras, como o faz o sistema penal, sob pena de
absoluta ineficácia no gerenciamento destas situações.

11 ANDRADE exemplifica esta ambigüidade nas demandas feministas pelo recurso punitivo. A autora
demonstra que a tentativa de solução desta opressão masculina no âmbito penal apenas agrava o
processo de desigualdade, uma vez que, durante o processo e a investigação, as vítimas de crimes
sexuais tornam-se as suspeitas perante o julgamento. Elas devem, perante uma instituição que
funciona a partir de uma lógica patriarcal, demonstrar que são mulheres honestas e que merecem
a tutela do Estado. Caso contrário, serão, também pelo recurso punitivo, consideradas culpadas.
Cf. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema Penal Máximo e Cidadania Mínima. Códigos da
violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

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Em terceiro lugar, essas criminalizações deslocam o foco da atenção


para políticas de controle, que não produzem efeitos reais. Neste sentido,
afirma BARATTA, referindo-se à utilização do sistema punitivo pelos
movimentos ambientalistas:
“(...) sabemos (...) que a grande maioria dos prejuízos ecológicos
não provêm de comportamentos irregulares desde o ponto de vista
das normas administrativas e penais, mas sim de comportamentos
regulares que fazem parte de um sistema de produção e de
exploração dos recursos naturais, que se desenvolve
independentemente das necessidades reais dos produtores e de
todos os indivíduos. Portanto, tal como no campo da droga,
também no da ecologia a intervenção do sistema penal produz
uma concentração da atenção e dos recursos em políticas de
controle que não têm por objeto as situações em que realmente
surgem os problemas que se pretende resolver, contribuindo por
fim para diminuir e não aumentar a defesa dos direitos humanos”
(BARATTA, 1993, p.59).

3.3 Crimes Vinculados a Grupos Sociais Vulneráveis


Perante o Sistema Penal
Na produção legislativa do período dos cinco anos analisados, como
já apontado, a criminalização dirigiu-se especialmente para os crimes de
colarinho branco. Mas pode ser encontrada a persistência de criminalização
de condutas de grupos de classes populares, como ocorre no caso da lei de
entorpecentes (Lei 10.409/2002) e da lei de crime organizado (Lei
10.217/2001).
A lógica punitiva dessas criminalizações diferencia-se dos crimes de
colarinho branco, sob o fundamento de que em tais casos se está diante de
grupos que apresentam alta periculosidade para o convívio social. Ou seja,
embora a criminalização se estenda aos crimes de colarinho branco,
mantém-se a perspectiva de uma sociedade composta por um grupo social
perigoso que deve ser controlado.
Tal perspectiva se transparece no funcionamento punitivo. Enquanto
nos crimes de colarinho branco, o Estado se preocupa em oferecer o máximo
de garantias possíveis ao indivíduo, bem como busca apresentar algumas
alternativas de criminalização, nos crimes relacionados às condutas de

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grupos sociais de classe baixa, a regra é a diminuição máxima de garantias


individuais em nome de uma situação de emergência.
Nesse âmbito, o direito penal realizado é o direito penal máximo em
detrimento dos direitos do indivíduo criminalizado. Como afirma
FERRAJOLI,
“(...) a ‘questão penal’, representada pela atual modificação na
estrutura do paradigma liberal-garantista do direito penal, induz a
novas criminalizações que sobrecarregam e obstaculizam o
sistema, diminuindo substancialmente as garantias. É uma dupla
falência, que se manifesta de um lado na crise de eficiência e, de
outro, na crise de garantias, e por isso agride ambas funções de
tutela que justificam o direito penal: as funções de tutela social, a
defesa das partes ofendidas contra os crimes, e as funções de
garantia individual, a tutela dos indiciados contra as punições
injustas” (FERRAJOLI, Ap. CARVALHO, 2001, p.86).
A lei de crimes organizados enquadra-se nesta categoria. Ela surge
como uma das panacéias penais que promete o combate, mais
especificamente, às organizações vinculadas ao tráfico de drogas. De tal
demanda, formula-se uma lei que autoriza a quebra de garantias
individuais, bem como se utiliza de procedimentos duvidosos (como a
infiltração de agentes), que relembram algumas práticas inquisitoriais.
Tais leis se enquadram na fórmula beligerante do sistema penal
contemporâneo, vinculado aos movimentos de lei e ordem. Em nome de
uma defesa da sociedade de bem, legitima-se a ampliação dos poderes de
intervenção do Estado para o combate do mal.
Desta forma, elas cumprem importante papel na realização da função
instrumental do sistema penal ao, diretamente, possibilitar o controle sócio-
penal de grupos sociais marginalizados do processo produtivo e social.

3.4 Crimes Vinculados à Política do Espetáculo


Na produção de outras leis, a faceta mais visível da política criminal é
a produção do espetáculo, ao tornar o sistema penal local de melhor
visibilidade do funcionamento do Estado. Seja para fins políticos
eleitoreiros, a partir dos quais deputados e senadores propõem alguns
projetos de leis relacionados a temas de grande apelo midiático; seja para

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que o aparato estatal, a despeito de não obter sucesso nas políticas sociais e
econômicas, demonstre que está atuando em defesa da sociedade.
São leis que possuem rara aplicabilidade prática, mas que
correspondem à reação imediata do Legislativo em relação às demandas da
sociedade.
Entre elas pode se exemplificar três de interessante casuísmo
legislativo. A Lei 9.695/98 classificou como crime hediondo a alteração de
substâncias químicas na produção de medicamentos. Ela foi produzida logo
após a venda de anticoncepcionais produzidos com farinha, fato que foi
exaustivamente alarmado pela mídia.
No mesmo sentido, a Lei 9.983/2000 tipificou a conduta de inserção
de dados falsos no sistema de informação público. Não por acaso, havia se
tornado escândalo, meses antes, o famoso caso da alteração dos dados do
painel eletrônico do Senado, na contagem de votos.
A Lei 10.300/2001, por sua vez, previu a proibição de venda, compra
e utilização de minas terrestres no território brasileiro. Embora muito
distante de uma preocupação real com o contexto brasileiro, a lei foi
promulgada no embalo das campanhas contra as minas terrestres
promovidas pela Princesa de Gales, que à época do projeto de lei (1997) teve
sua morte exaustivamente reproduzida pela mídia.
Assim, o legislador penal utiliza-se do apelo populista e traz o Direito
Penal como a grande solução. A absurda produção legislativa penal leva a
uma percepção distorcida da pena, dando a essa uma finalidade simbólica,
retirando o seu real caráter de excepcionalidade.

3.5 Leis Despenalizadoras


De todas as leis de temas penais e processuais penais deste período,
apenas duas tratavam da despenalização: a lei que amplia a possibilidade
de aplicação de penas restritivas de direito (Lei 9.714/98) e a lei que cria os
Juizados Especiais Federais Criminais (Lei 10.259/2001), estendendo o
tratamento dos crimes de menor potencial ofensivo para condutas em que a
cominação abstrata de pena seja de até 2 anos.
Os discursos que as fundamentam aproximam-se das políticas
criminais alternativas, ao propor alternativas à aplicação da pena privativa
de liberdade, e no caso dos Juizados Especiais, alternativas inclusive ao
processo penal.

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Na contra corrente das leis criminalizadoras e penalizadoras dos


cinco anos, tais leis se propõem a diminuir o número de encarcerados, que
aumenta gradativamente, no sistema penitenciário brasileiro. Entretanto,
elas esbarram em alguns problemas de ordem teórica e mesmo pragmática.
Segundo FERRAJOLI (2002, p.382), se o legislador ao configurar um
delito prevê para ele uma sanção pecuniária, coloca de manifesto que não
considera que a conduta ilícita seja lesiva a bens fundamentais e que o
direito penal é um instrumento desproporcionado para preveni-lo. Esta
proposição esclarece a contradição exposta por essas leis. Ao legislador, por
exemplo, propor como penas restritivas de direito, as prestações pecuniárias
e a perda de bens e valores, ou nos Juizados Especiais, propor a aplicação de
multa antes da propositura da denúncia, evidencia-se que estas condutas
assim tratadas não precisariam, necessariamente, da intervenção penal, de
modo que o princípio da intervenção mínima do sistema penal restaria
lesado nestas hipóteses.
Isto significa que o legislador não ousa propor descriminalizações de
conduta, em respeito ao princípio da lesividade e da intervenção mínima,
princípios estes defendidos pelas Políticas Alternativas. É de se pensar que
não seria uma boa estratégia política a realização de descriminalizações,
diante de um público envolto com as demandas por maiores punições.
No que toca a aplicação prática destas leis despenalizadoras, também
se constata que a clientela do sistema penitenciário continua tendo o mesmo
destino, contrariando as propostas legais despenalizadoras.
Embora a lei tenha ampliado a possibilidade de concessão de penas
restritivas de direito, as práticas judiciais demonstram, paulatinamente, que
não abandonaram os princípios da defesa social, buscando sempre arrefecer
as penas destinadas aos indivíduos identificados como “perigosos” à ordem
social. Como esta identidade de periculosidade encontra-se, por razões
políticas e históricas, vinculada a determinados estereótipos relativos à
classe social, gênero e etnia, a clientela carcerária permanece a mesma, pois
o juiz entende que, analisadas a personalidade, conduta social e
antecedentes, do condenado (vide art. 59 da CP), essas pessoas não têm
direito à substituição de pena.
Acrescente-se ainda que, diversamente do proposto, o sistema
punitivo tende a ter como conseqüência a sua ampliação. O campo de
intervenção do sistema penal tem aumentado com a maior possibilidade de

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substituição de penas privativas (e também com o procedimento


implementado pela Lei dos Juizados Especiais Criminais).
Primeiro, porque se penalizam condutas que anteriormente, embora
tipificadas, eram pouco criminalizadas pelo sistema penal, visto que não
eram “merecedoras” de penas tão graves como as penas privativas de
liberdade.
Segundo, porque se produzem alterações legais que elevam as penas
de crimes, tornado-as superiores a dois anos (nos casos de crimes de menor
potencial ofensivo, de procedimento do Juizado Especial) ou a quatro anos
(nos casos passíveis de substituição da pena privativa por restritiva, durante
a condenação), para que mantenham a aplicação das penas privativas.
Exemplo é a Lei 9.677/98, que visa manifestamente a produzir o combate à
falsificação de medicamentos, produtos terapêuticos e alimentos e que eleva
a pena de todas as condutas relacionadas a estas situações, retirando-as da
competência dos Juizados Especiais.

4 – C ONSIDERAÇÕES F INAIS
A partir das considerações apresentadas, observa-se que neste
período de produção legislativa houve um aumento de criminalizações e,
portanto, houve um processo de expansão do sistema penal, dando
continuidade ao processo que vem ocorrendo desde final da década de
1980. Das 24 leis promulgadas, apenas duas delas trataram da
despenalização, e nenhuma delas tratou da descriminalização de condutas.
Entre as criminalizações, sobressaltaram-se as condutas realizadas por
grupos de classe social alta, normalmente menos vulneráveis ao sistema
punitivo, e as condutas violadoras de direitos humanos, vinculadas às
demandas de movimentos políticos de esquerda.
Este indicativo poderia conduzir à seguinte conclusão: o sistema
penal tem se democratizado e produzido uma aplicação mais igualitária,
bem como tem conseguido contribuir com a proteção aos direitos humanos.
Tal conclusão seria viável caso não se estivesse tratando aqui do
sistema punitivo do Estado. Porque, embora esta movimentação estatal
tenha produzido um reflexo simbólico importante, os efeitos reais destas
criminalizações não são observados na aplicação da produção legal.
Em primeiro lugar, porque em diversas leis a técnica legislativa é
bastante sofrível e acaba por comprometer a própria eficácia normativa

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destas. Por exemplo, CALLEGARI, ao analisar a lei de lavagem de dinheiro,


afirma que o problema, como sempre, é a pressa do legislador em editar leis
que, após sua promulgação, dificilmente serão aplicadas. A solução passa
para as mãos do Poder Judiciário, que, ao enfrentar a péssima técnica
legislativa, acaba não dando efetividade à lei, ou seja, não consegue aplicá-
la. E complementa: “a lei acaba misturando disposições penais e
processuais, alterando regras já existentes, esquecendo garantias, tudo
objetivando sua aplicação, mas, na realidade, provoca o contrário, sua falta
de aplicação pela péssima redação” (2000, p.200).
Em segundo lugar, porque ao se compreender, a partir da
Criminologia Crítica, que a seletividade é um dado estrutural do sistema
penal, não se pode argumentar logicamente que o aumento legal da
criminalização de grupos sociais menos vulneráveis leva a, objetivamente,
uma aplicação judicial igualitária. Visto ainda que a própria legislação, ao
descrever os procedimentos de criminalização trata, por si, de estabelecer
diferenciais que levam a maior ou menor possibilidade de punição. Veja-se
o exemplo da previsão de extinções de punibilidade para o caso dos crimes
de lavagem de dinheiro.
E em terceiro lugar, mas não menos importante, porque o sistema
penal tem como técnica a despolitização dos conflitos. A partir da técnica
legislativa, não se pode depreender a íntima relação existente entre a
legislação de entorpecentes, por exemplo, e a legislação de lavagem de
dinheiro. Ou a relação entre a exploração sexual infantil e os crimes
envolvendo capital estrangeiro.
Produz-se assim casos como diariamente se presencia: o controle
diário, orientado por um sistema punitivo máximo e violador de garantias,
da mão-de-obra do tráfico de drogas e a impunidade constante de ações de
lavagem de dinheiro. Enquanto a população amaldiçoa o traficante de
drogas, morador da periferia, o dinheiro produzido por este mercado ilegal
circula facilmente entre os canais de reprodução de capital.
Está-se, pois, apontando, a partir deste período de produção
legislativa, a utilização do instrumento punitivo como produtor simbólico
da ordem social e como fator importante de despolitização dos conflitos
sociais, de modo a perpetuar a reprodução diária das estruturas
hierárquicas na sociedade.

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120
DOLO E SIGNIFICADO
P AULO C ÉSAR B USATO *

Resumo: O artigo trata da superação do modelo de dolo que é


utilizado em direito penal. O modelo que busca a afirmação do
dolo como realidade ontológica está superado. Porém, isso não
significa negar o componente volitivo do dolo, como querem
majoritariamente as teses normativas. O dolo, na realidade,
pode ser identificado e compreendido através de um processo
de comunicação. O dolo é, na verdade, o sentido do dolo. O
sentido que se atribui a um comportamento, portanto, está
intimamente ligado ao processo de sua própria demonstração
que é compreendido a partir da filosofia da linguagem.
Palavras-Chave: Dolo – Direito penal – Filosofia da linguagem
aplicada.

I NTRODUÇÃO
A transformação semiótico-significativa da filosofia afetou todos os
campos do conhecimento humano em um ponto comum, a redefinição dos
fenômenos mentais, essencialmente cognitivos, através da categoria central
da semiótica, o signo, com o que toda atividade mental se redefine como
atividade semiótica1.
A partir disso, se pode falar que, em direito penal, os elementos
subjetivos da teoria do delito estão merecendo uma revisão. Entre eles,
desde logo, destaca-se o dolo. Chegou o momento de revisar o dolo como
categoria delitiva que esteve sempre ancorada ou em uma pretensão de

* Promotor de Justiça no Ministério Público do Paraná, Professor de Direito Penal e Criminologia da


Universidade Estadual de Ponta Grossa e da UNIFAE, doutor em Problemas Actuales del Derecho
Penal pela Universidad Pablo de Olavide, em Sevilla, Espanha.
1 BELLO, Gabriel. “El agente moral y su transformación semiótica”. In: Acción Humana. Coord. de

Manuel Ruiz, Barcelona: Ariel, 1996, pp.184-212.

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verdade psicológica intangível ou em um processo de atribuição com graves


problemas de legitimação.
O problema é que a atribuição da realização de um delito doloso
supõe, como regra geral, a imposição de uma pena mais grave ao seu autor
do que a realização de um delito imprudente. Ainda assim, se pode afirmar
que a imputação de responsabilidade penal sempre estará vinculada à
demonstração do dolo ou da imprudência no caso concreto que se tem em
conta2.
É de todos sabido3 que dentro da análise do dolo, a doutrina em geral,
especialmente a alemã, tem trabalhado majoritariamente com uma
concepção tripartida de dolo, apontando a existência do dolo direto,
representado pela orientação da conduta dirigida a um fim almejado, o dolo
direto de segundo grau, que identifica e orienta os efeitos colaterais
necessários da conduta do agente4 e o dolo eventual que informa os efeitos
colaterais possíveis, porém incertos, da conduta do sujeito.

2 Trata-se da afirmação do princípio de culpabilidade em sua expressão de responsabilidade penal


subjetiva, que é nota distintiva do direito penal em face de outras dimensões da antijuridicidade.
Veja-se, a respeito do tema, nosso BUSATO, Paulo César e MONTES HUAPAYA, Sandro. Introdução ao
direito penal. Fundamentos para um sistema penal democrático. 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2007.
3 “Dentro dos aspectos sobre os quais existe unanimidade doutrinária se encontra a relação das

diferentes classes de dolo possíveis. Estas como se sabe, são: Dolo direto de primeiro grau –
requer que o autor persiga a realização do resultado. Assim, nesta classe de dolo predomina o
elemento volitivo. O sujeito quer o resultado produzido ou que tentou realizar. Dolo direto de
segundo grau – exige que o autor represente o resultado como conseqüência necessária ou
inevitável de sua atividade. Nesta classe de dolo, pois, não se exige a vontade dirigida ao
resultado e, porém, ninguém discute o caráter doloso dos fatos cometidos. Dolo eventual – como
terceira classe do dolo não se discute, mas as divergências surgem ao determinar seu conceito [...]
ou seja, em que elementos terão que concorrer necessariamente para poder qualificar fatos como
dolosos”. In CORCOY BIDASOLO, Mirentxu. “El limite entre dolo e imprudência” in Comentários a la
Jurisprudencia Penal del Tribunal Supremo. Barcelona: José Maria Bosch Editor, 1992, pp. 48-49.
Ciente ou não da análise tripartida, a doutrina brasileira em geral acomodou-se à denominação
legal em que incorreu o Código (art. 18, inciso I – art. 15 do CP de 1940). Assim, os autores vêm
repetindo uma idéia de que o Código assumiu uma concepção bipartida do (direto e eventual)
associada respectivamente com a teoria da vontade e a teoria do consentimento cujas subdivisões
e variantes sequer são mencionadas. Há, no entanto, exceções, como SANTOS, Juarez Cirino dos. A
moderna teoria do fato punível. 4ª ed., Curitiba – Rio de Janeiro: ICPC-Lumen Juris, 2005, pp. 64 e ss
e BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito penal. Parte Geral. 11ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007,
p. 270, que não só apresentam algumas das teorias sobre o dolo, como também a concepção
tripartida.
4 Por exemplo, nos casos de atentados terroristas em que, além do destinatário do atentado, morrem

outras pessoas, que se encontravam perto, como a morte do motorista do chefe de Estado contra
cujo automóvel se dirige o ataque.

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No que tange, porém, à fundamentação do dolo a doutrina costuma,


de regra, apresentar as teses distinguindo entre concepções cognitivas (que
fundam o dolo tão-somente no conhecimento do resultado) e volitivas (que
ao conhecimento acrescentam, como exigência para a configuração da
tipicidade subjetiva mais grave, a vontade)5.
As discussões entre as duas correntes são ácidas e muito detalhadas6,
sempre a partir da busca por um elemento diferenciador (nas concepções
tripartidas) ou aglutinador (nas teorias unitárias) entre o dolo direto e o
dolo eventual.
Mas, a mais importante questão não é saber se a vontade deve ou não
ser acrescentada ao conhecimento, mas quando se poderá dizer que o
indivíduo que atuou o faz dolosamente, intencionalmente ou conhecendo a
possível ou provável provocação do resultado?
Na praxe forense, o que se pode identificar é que mitos, julgamentos e
condenações são impostos a partir de uma constatação de que o sujeito
atuou dolosamente, mas a discussão sobre os fundamentos nos quais se
sustentam tais afirmações sobre o dolo não mereceram, de parte dos juízes,
uma especial atenção. Mas, como é possível afirmar este dolo no juízo de
condenação? Com base em que espécie de considerações se pode dizer que
alguém atuou com conhecimento – e para alguns com vontade – vinculados
à realização do fato delitivo?
Tradicionalmente, se costumava buscar a resposta a esta pergunta no
que são as teorias ontologicistas do dolo, vinculadas ao causalismo ou ao
finalismo. De modo mais recente, aparece também uma tendência a admitir
como válida – justamente a partir das críticas à impossibilidade de
demonstração do fenômeno volitivo no âmbito psíquico do sujeito – a
condição de simples atribuição do dolo, em uma perspectiva puramente
normativa7, especialmente nas propostas funcionalistas.

5 Para um panorama entre as teorias do dolo, veja-se, por todos, ROXIN, Claus. Derecho penal. Parte
General. Tomo I. Trad. de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de
Vicente Remesal, Madrid: Civitas, 1997, pp. 430-446.
6 Veja-se, a respeito RAGUÉS I VALLÉS, Ramón. El dolo y su prueba en el proceso penal. Barcelona:

J.M.Bosch Editor, 1999.


7 Nesse sentido refere DÍEZ RIPOLLÉS ao afirmar que “o dilema básico, à margem de matizações que

agora não procedem, é se nos atemos, ou devemos nos ater, a uma configuração realista,
naturalista, de tais elementos, ou é necessário dar-lhes, ou se lhes dá, um conteúdo
fundamentalmente normativo”. In DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis. Los elementos subjetivos del delito.
Valencia: Tirant lo Blanch, 1990, p. 21. no mesmo sentido, RAGUÉS I VALLÉS, Ramón. El dolo... op.
cit., especialmente p. 190.

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Por um lado, há quem afirme que o dolo é um fenômeno real, algo


que existe no mundo ontológico e que só se pode descrever. Por outra parte,
há quem considere inacessível o dolo como dado real e admita que o dolo é
simplesmente algo que se atribui ao autor de um fato delitivo. De maneira
dominante, aqueles autores que afirmam que o dolo se resume em
conhecimento adotam uma postura atributiva-normativa da própria
estruturação geral da teoria do delito, enquanto que aqueles que dotam o
sistema de imputação de uma ancoragem ontológica, também de regra,
adicionam a vontade ao conhecimento como elementos componentes do
dolo.
Ocorre que esta regra não é absoluta. É que nem sempre aqueles que
entendem ser o dolo somente conhecimento reconhecem nele somente uma
atribuição, mas pretendem necessária sua demonstração empírica.
Tampouco todos aqueles que pugnam pela necessidade de inclusão da
vontade como elemento que compõe o dolo são adeptos da necessidade de
sua demonstração empírica, entendendo-o desde um ponto de vista
atributivo-normativo. Em função disso, o ângulo de visão que se propõe no
presente trabalho leva a uma discussão que, em certa medida, altera o
formato do debate doutrinário costumeiramente posto.
A abordagem que aqui se faz visa a propor a discussão do dolo a
partir de um novo ponto de vista, que não mais classifica as teses entre
volitivas e cognitivas, mas sim entre ontológicas e normativas, para, afinal,
propor a adoção de uma terceira via, que é a significativa.
Esta proposta cobra sentido não só por constituir uma nova
abordagem do tema, como também por deixar mais evidente a insuficiência
da pretensão legislativa expressa no Código Penal brasileiro, de “definir os
contornos do dolo”. Ou seja, mesmo que o código afirme o dolo, verbis
“quando o sujeito quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”, resta
imprescindível, de qualquer modo, perquirir os critérios pelos quais se pode
afirmar que o sujeito assim agiu.
Segundo parece, a opção ontológica – traduzida na afirmação de que
o dolo é uma entidade que existe como fenômeno psíquico – careceu
sempre de demonstração para confirmar sua validade e a opção normativa
– consistente em afirmar que o dolo é pura atribuição –, sofreu com a falta
de legitimidade.
Do que se trata neste escrito é buscar na comunicação de sentido um
referente significativo válido e capaz de oferecer uma nova opção teórica

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para o reconhecimento do dolo e uma justificação coerente de seu


fundamento.

1 – O D OLO O NTOLÓGICO
As teorias do delito de fundo ontológico, assim consideradas aquelas
que se sustentam sobre a determinação ontológica de suas categorias
fundamentais8, pretenderam reconhecer o dolo através da afirmação de
determinados dados de natureza psicológica, cuja existência no momento
de realização do delito fica demonstrada no processo9. Na verdade, tal
concepção arranca desde os primórdios da formulação da estrutura analítica
do sistema de imputação, a ponto de ser comum na doutrina a afirmação de
que “sempre se sustentou o caráter eminentemente psicológico do dolo”10.
Tanto é assim que para o causal-naturalismo, o dolo era uma forma de
culpabilidade que representava o vínculo de ordem subjetiva entre o autor e
o fato delitivo que permitia a imputação (Zurechenbarkeit) do ato11. De forma
também ontológica, para o finalismo, o dolo, como elemento subjetivo da
própria ação típica, configurava sua nota distintiva. A ação delitiva era
fundamentalmente orientada a um fim, que poderia ser justamente a
intenção de realização de um delito, ou seja, consciência e vontade
orientadas à realização de um propósito delitivo12.
O dolo, aqui, se situa na cabeça do autor. Ou seja, o dolo é uma
realidade ontológica e existe como dado psicológico que compete ao jurista
identificar.

8 Aqui poderíamos incluir o que se chamou de teorias causais-naturalistas ou finalistas do delito.


9 Nesse sentido KÖHLER afirma que “na concepção do delito chamada clássica, a imputação
subjetiva consiste na relação psíquica do autor com a conduta típica objetiva e formalmente
antijurídica, por meio das modalidades justapostas de “dolo” e “imprudência”. KÖHLER, Michael.
La imputación subjetiva. El estado de la cuestión. Trad. de Pablo Sánchez-Ostiz Gutiérrez, Madrid:
Civitas, 2000, p. 77.
10 DONNA, Edgardo Alberto. “El concepto objetivado de dolo” in La ciencia del Derecho penal ante

el nuevo siglo. Libro Homenaje al prof. Dr. Don José Cerezo Mir. Madrid: Tecnos, 2002, p. 672.
11 VON LISZT, Franz. Tratado de Derecho penal. Tomo II, Trad. de Luis Jiménez de Asúa, 4a ed. Madrid:

Editorial Reus, 1999, p. 389. Entre os autores brasileiros, é interessante citar uma passagem de
BASILEU GARCIA, que, apoiado nas lições de CARRARA, afirma que o dolo pressupõe “no agente,
condições psíquicas que lhe permitissem avaliar o ato a ser praticado. O dolo o faria passar, do
estado geral de imputabilidade, nele produzido pela sua capacidade de entender e de querer, a
um estado especial de imputabilidade, referente a determinado fato”. GARCIA, Basileu. Instituições
de Direito penal. vol. I, tomo I, 3ª ed., São Paulo: Max Limonad, 1956, p. 249.
12 WELZEL, Hans. Derecho penal alemán. Trad. de Juan Bustos Ramírez e Sergio Yáñez Pérez, 4ª ed.,

Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1997, p. 40 e pp. 72-73.

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Dentro das concepções finalistas do dolo, se costuma apontar a teoria


oferecida por ARMIN KAUFMANN como uma das mais desenvolvidas, na
medida em que supõe, de um lado, a pretensão de ser uma teoria unitária
do dolo e de outro, o que o próprio KAUFMANN qualifica de preservação de
uma perspectiva ontológica com alto grau de objetivação13.
Para KAUFMANN, “dolo e imprudência se diferenciam com ajuda
daquele critério que já ontologicamente caracteriza a ação: a vontade de
realização”14, pelo que suas propostas encaixam perfeitamente com a teoria
final da ação.
KAUFMANN trabalha com sua perspectiva de uma teoria dos
elementos negativos do tipo, com a qual pretende identificar a qualidade da
ação a partir de existência ou não de uma pretensão de evitação15. Com isso,
estabelece que o dolo termina quando “o agente, a respeito de umas
conseqüências secundárias não desejadas que trata de evitar, realiza uma
‘vontade’ evitadora que domina o fato”16.
Evidentemente, desde logo se pode objetar, contra a proposta de
KAUFMANN, como faz HASSEMER17, que “não parece evidente que quem
reduz a periculosidade de sua ação só por isso mereça um tratamento
menos severo, dado que, de qualquer modo, desde seu ponto de vista, atua
de modo perigoso, ou seja, que – apesar da conduta evitadora – atua com
má vontade”.

13 “Para o problema aqui discutido deve-se eliminar toda a classe de valorações, pela única razão de
que a questão está proposta ontologicamente. Mas tampouco dogmaticamente faz prosperar a
questão o recurso a uma valoração como elemento de diferenciação: este recurso contém em si
mesmo um problema: o saber quando deve ser valorado algo ‘como dolo’. Mas acontece que,
dogmaticamente, do que se trata é da determinação do que é dolo, e porque o dolo está sujeito a
um juízo de valor”. KAUFMANN, Armin. “El dolo eventual en la estructura del delito”. Anuario de
Derecho Penal y Ciencias Penales, trad. R.F. Suárez Montes, Madrid: Instituto Nacional de Estudios
Jurídicos, 1969, p. 188.
14 HASSEMER, Winfried. “Los elementos característicos del dolo”. ADCP, trad. de María del Mar Díaz

Pita, Madrid: Centro de Publicaciones del Ministerio de Justicia, 1990, p.910.


15 “A vontade de realização tem, pois, seu limite em si mesma. Não é preciso nenhum critério

valorativo proveniente de fora para delimitá-la, e com isso delimitar o nexo final; tampouco é
necessário um recurso ao sentimento, que só pode ser entendido como atitude jurídica ou
antijurídica ante o fato. Se contemplarmos a vontade de realização em seu âmbito total, então
resulta claro que a mesma pode dirigir-se, ao mesmo tempo, à realização de vários objetivos, e
que, portanto, podem ser propostas, ao mesmo tempo, tanto a obtenção de um objetivo desejado
como a evitação de um resultado acessório”. KAUFMANN, Armin. “El dolo eventual”... op. cit., p.
198.
16 Cf. HASSEMER, Winfried. Los elementos característicos del dolo... Op. cit., p.910.
17 HASSEMER, Winfried. Los elementos característicos del dolo... Op. cit., p. 912.

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Mas, há outro problema, ainda mais grave. É que para determinar o


dolo a partir destas considerações, seria necessário acudir, de qualquer
maneira, à mente do sujeito, para conhecer sua representação a respeito da
situação concreta e conhecer, em essência, seu plano. Ademais, a ação de
evitação pode acabar não se concretizando ainda que esteja na vontade do
sujeito, o que conduz a resultados injustos18. A solução, como observa
HASSEMER, é elegante, mas perigosa:
“Quem, como ARMIN KAUFMANN, objetiviza os limites do dolo
somente sobre a ação de evitação, limita com isso o possível
recurso da determinação do dolo àquilo que o agente tem em sua
mente durante e com sua ação: a atividade [...] Isso é uma solução
elegante e simples, mas também perigosa e, a princípio,
inadequada. [...] porque o dolo [...] reside sem dúvida no lado
interno do pensar e o querer (‘da vontade de realização’) e não no
lado externo da ação e a causação: a atividade de evitação. Ou seja,
uma teoria do dolo esquematicamente objetivada só pode ser exata
quando o indicador externo (a ação de evitação) representa
completamente aquilo que precisamente deve refletir (a exclusão
da vontade de realização); quando fracassa essa representatividade
do indicador externo não poderá tirar-se nenhuma conclusão da
ação evitadora em relação à vontade de realização. Aí residem ao
mesmo tempo a elegância e a periculosidade de uma objetivação
concentrada sobre um único indicador [...] atividade de evitação.”19
Fica claro na opinião de HASSEMER, aqui compartilhada, que a decisão
a respeito do dolo não pode deixar de ter em conta a intenção do agente,
ainda que, claro, para isso tenha que acudir a elementos externos. O exigível
é que estes elementos externos estejam conformes àquela intenção subjetiva.
Não basta estar presente a intenção que dirige a ação se ela, ao final, não fica
refletida na atuação.

18 “Contra esta teoria se objeta que conduz a resultados inaceitáveis, dependentes além do mais das
peculiaridades de cada caso: quem realiza uma vontade de evitação, que desde seu ponto de vista
suprime qualquer risco adicional, não atua dolosamente [...] porque não leva em consideração a
possibilidade de um dano; quem, apesar de uma vontade ativa de evitação, observa um risco
adicional e, porém, atua, tem por isso um dolo referido a esse risco adicional [...]; quem não
diminui um risco insignificante – evitável – deve responder, segundo esta teoria, por dolo,
enquanto que àquele que reduz ao mesmo grau de risco em um risco elevado – evitável – só se
pode imputar a título de imprudência”. HASSEMER, Winfried. “Los elementos característicos del
dolo”... Op. cit., p. 911.
19 HASSEMER, Winfried. Los elementos característicos del dolo... Op. cit., p. 914.

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Por outro lado, é necessário ter em conta que justamente por ser
imprescindível a referência aos elementos externos, o dolo guarda estreita
relação com o processo penal, ou seja, com a teoria da prova. O dolo se
resume ao dolo que se pode demonstrar. Comenta DÍEZ RIPOLLÉS20 que
dentro desta proposta, os elementos subjetivos do delito seriam “realidades
psíquicas previamente dadas e suscetíveis de descobrimento a partir de um
processo de averiguação”.
Por isso, o dolo sempre dependerá de uma demonstração objetiva da
intenção subjetiva. Deste modo, a idéia do que fundamenta o dolo está
completamente conectada com sua demonstração, definitivamente, com sua
prova. Quando se propõe um dolo como realidade ontológica, não é
possível esquecer que é necessário demonstrar quais são os meios que
tornam possível a identificação do dolo como tal realidade.
A demonstração do dolo como realidade psicológica, porém, revelou-
se totalmente impossível. E isso não deriva unicamente de uma
impossibilidade física de acesso à intenção subjetiva, mas também e,
principalmente, em face de que a verdade real no processo penal não
existe21. Mas a impossibilidade deriva não só da falta de instrumentos
jurídicos aptos a realizar tal tarefa, mas, por sua própria característica: os
fenômenos psíquicos resultam inacessíveis.
Na opinião de RAGUÉS I VALLÉS é nesse ponto que aparece uma
enorme dificuldade já que
“Para afirmar a validade desta perspectiva, à sua plena
legitimidade deve-se acrescentar a possibilidade de averiguar
aqueles dados psicológicos aos quais se vincula uma correta
‘determinação do dolo’. De não ser possível tal averiguação, a
perspectiva se encontra em tal encruzilhada que leva a duvidar
seriamente de sua validade.”22
E é justamente esta realidade que não se logrou afirmar.

20 DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis. Los elementos... Op. cit., p. 32.


21 Veja-se, a respeito disso, MUÑOZ CONDE, Francisco. La búsqueda de la verdad real en el proceso penal.
2ª ed., Buenos Aires: Hammurabi, 2003.
22 RAGUÉS I VALLÉS, Ramón. El dolo... Op. cit., p.212.

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Há defensores da idéia de afirmação da realidade do dolo através de


contribuições das ciências naturais23 ou através da confissão do acusado24.
Evidentemente, nem uma nem outra perspectiva resultam adequadas.
No que se refere a contar com a declaração do acusado, parece
evidente que no processo penal a confissão não deverá ser a regra e, por
outro lado, não se pode ter segurança de que o acusado diz a verdade, ainda
quando esteja assumindo a responsabilidade pelo fato delitivo.
De outro lado, com o recurso às ciências empíricas, tampouco se pode
afirmar o dolo, essencialmente por duas razões: a falta de coincidência para
com o conceito de dolo utilizado pela ciência jurídica, que inclui uma
dimensão de conhecimento e vontade não coincidente com a perspectiva de
verificação psicológica25 e, por outro lado, a completa falta de uniformidade
entre as propostas a respeito do dolo que derivam de diferentes correntes
doutrinárias da psicologia e da psiquiatria, as quais nem mesmo em seu
próprio âmbito científico lograram unificar-se sobre o tema26.
A conclusão é que não se pode obter, desde o ponto de vista das
ciências naturais, nada mais que cálculos sobre probabilidade ou
possibilidade de existência de determinado fato psíquico.
Isso conduz a que a admissão do dolo como realidade psíquica, ainda
que amparado por conceitos das ciências naturais, não possa chegar a mais
que deixar aberta a porta para certo grau de insegurança em sua afirmação.
Ou seja, a constatação do dolo como realidade empírica é completamente
impossível, pelo que toda afirmação sobre o dolo contém certo grau de
valoração, gerando justamente a indeterminação que a pretensão de
verdade própria das concepções ontológicas pretende extirpar.

23 Por exemplo, SCHEWE, Günter. “‘Subjektiver Tatbestand’ un Beurteilung der


Zurechnungsfähigkeit’’, en Festschrift für Richard Lange zum 70. Günter warda et alli (eds.) Berlin-
New York, 1976, p. 695 ou FREUND, Georg. Normative Probleme der ‘Tatsachenfeststelung.
Heidelberg, 1987, p. 35.
24 Así AMBROSIUS, Jürgen. Untersuchungen zur Vorsatzabgrenzung. Berlin: Neuwied, 1966, p. 65.
25 Como afirma RAGUÉS “seria um contrasenso solicitar a um perito que verificasse a concorrência

de uns fenômenos psíquicos cuja existência se tem por impossível desde a ótica de sua disciplina
científica”. RAGUÉS I VALLÉS, Ramón. El dolo... Op. cit., p.218.
26 Cf. DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis. Los elementos... Op. cit., p. 258 e também RAGUÉS I VALLÉS, Ramón. El

dolo... Op. cit., p.221.

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2 – O D OLO N ORMATIVO
Os problemas de prova que afetam a concepção ontológica do dolo
levaram parte da doutrina27 a admitir que o dolo não é uma realidade
psicológica, mas o resultado de uma atribuição28. O fato já tinha sido
percebido e advertido por HASSEMER, em sua obra sobre os fundamentos do
direito penal, com um exemplo que espanca qualquer dúvida:
“Se pergunta como pode o juiz constatar a intenção de defraudar,
falsificando um documento. E agora se pergunta como pode o juiz
constatar tal intenção em um processo, como pode produzir o
dado intenção de defraudar. O juiz pode observar os livros de
comércio, os informes fiscais, os dados de um computador (ou
fazê-los serem observados, caso necessário, por peritos ou se
certificar das observações feitas por testemunhas). Ninguém pode,
porém, observar uma intenção de defraudar, que somente se pode
imputar (...).”29
Ou seja, o dolo não é algo que existe, que seja constatável, mas sim o
resultado de uma avaliação a respeito dos fatos que faz com que se impute a
responsabilidade penal.
Para esta tendência, o que se faz para determinar o dolo não é mais
que atribuir ou imputar a alguém o conhecimento e a vontade de realização
do fato delitivo. É que “os segmentos de realidade que são manejados já não
podem qualificar-se como realidade empírica, senão como realidade
valorada, dado o papel determinante das perspectivas axiológicas em sua
configuração e comprovação”30. Ou seja, se não é possível afirmar mais que
a possibilidade de existência real do dolo, o dolo será sempre, ao menos em
parte, produto de uma valoração.
Obviamente, esta perspectiva encontra receptividade nas propostas
teóricas que defendem a separação entre as ciências naturais e as ciências
sociais. Na perspectiva kelseniana de uma ciência referida a valores, fica sem

27 Para ficar tão-somente com dois exemplos, veja-se HASSEMER, Winfried. Introdução aos
Fundamentos do Direito Penal. Trad. de Pablo Rodrigo Alflen da Silva, Porto Alegre: Sérgio Fabris
Editor, 2005, p. 298 e FLETCHER, George. Basics Concepts of Criminal Law. New York-Oxford:
Oxford University Press, 1998, p. 82-85.
28 Trata-se da segunda mudança, que aparece concomitantemente com a perspectiva de rejeição do

elemento volitivo, no direito penal moderno, consoante alude EDGARDO DONNA, em DONNA,
Edgardo Alberto. El concepto objetivado de dolo… Op cit., p. 672.
29 HASSEMER, Winfried. Fundamentos del Derecho penal. Trad. de Francisco Muñoz Conde e Luis

Arroyo Zapatero, Barcelona: Bosch, 1984, p. 227.


30 DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis. Los elementos... Op. cit., pp. 73-74.

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sentido tentar buscar nas ciências naturais conceitos jurídicos. Por isso,
sustentou KELSEN31 que categorias como a vontade ou intenção, por
pertencerem ao tipo de injusto não podem ser tomadas como realidades a
serem demonstradas, mas simplesmente como fatores que incumbe ao juiz
reconhecer com o objetivo de estabelecer as responsabilidades penais
correspondentes.
A partir disso, muitos autores seguiram esta tendência, reconhecendo,
desde distintos pontos de vista, que o dolo se reduz a uma forma de
atribuição.
Nesse sentido, por exemplo, DETLEF KRAUΒ32 defende que é a
valoração social de uma expressão objetiva da ação que delimita o dolo e a
imprudência. Também HRUSCHKA33 afirma que quando dizemos que
alguém atua dolosamente, o que fazemos é emitir um juízo que não é
passível de descrição, mas de adscrição.
Uma construção bastante debatida no Brasil, especialmente em face
da tradução de um livro sobre a matéria34, é a de PUPPE, para quem a
questão sobre o dolo resulta ser completamente normativa, devendo ser
completamente recusada a idéia de dolo psicológico35.
Em seu peculiar método de propor o tema, GEORGE FLETCHER36
também adota um conceito normativo de dolo, ao comentar que a
atribuição de ordem subjetiva foi abordada desde distintos pontos de vista,
desde uma teoria psicológica e desde uma teoria “moral”. A teoria psicológica é
a que “busca saber em que medida o delito se encontra refletido na
consciência do sujeito”, enquanto que a teoria moral se baseia em
considerações de justiça para afirmar a responsabilidade do sujeito pelo ato

31 KELSEN, Hans. Hauptprobleme der Staatsrechtslehre: entwickelt aus der Lehre vom Rechtssatze, Tübingen:
J.C.B. Mohr, 1923, p. 156-157.
32 KRAUΒ, Detlef. “Der psycologische Gehalt subjektiver Elemente im Strafrecht’’. In: Festschrift für

Hans Jürgen Bruns zum 70. Wolfgang Frisch und Werner Schmid (eds.), Köln – Berlin – Bonn –
München: Heymann, 1978, p. 26-27.
33 HRUSCHKA, Joachim. “Über Scwierigkeiten mit dem Beweis des Vorsatzes”. In: Strafverfahren im

Rechtsstaat. Festschrift für Theodor Kleinknecht. Karl Heinz Gössel, Hans Kaufmann (eds.). München:
C.H. Beck, 1985, pp. 200-201.
34 Refiro-me a PUPPE, Ingeborg. A distinção entre Dolo e Culpa. Trad. de Luís Greco, São Paulo:

Manole, 2002.
35 “Essa compreensão afinal de contas psicológica do dolo deve ser rechaçada, hoje com ainda maior

razão do que no início do século XX. Pois, neste meio tempo, consolidou-se o conceito normativo
de culpabilidade, e o dolo sequer é compreendido como momento da culpabilidade, e sim como
aspecto subjetivo do injusto”. PUPPE, Ingeborg. A distinção entre Dolo e Culpa... Op. cit., p. 67.
36 FLETCHER, George. Basics Concepts... Op. cit., p. 82.

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delitivo. “A pergunta não é se o delito está refletido na mente do agente,


mas se apesar das imagens que representam na consciência do agente, ele
ou ela podem ser considerados culpados pelo ato delitivo. A abordagem
não é descritiva, mas valorativa”37. E entre as duas propostas, FLETCHER se
inclina claramente pela teoria moral, que ele entende ser a mais acertada38.
Claro está que o principal problema de negar a realidade do dolo é o
risco de gerar decisões arbitrárias. O problema está em que se admite,
assim, a possibilidade e incongruência entre a realidade psicológica interna
da intenção do agente e a atribuição que se lhe faz. Nesse sentido, MUÑOZ
CONDE está de acordo com DÍEZ RIPOLLÉS em que “qualquer tipo de
valoração (seja puramente normativa ou produto de propostas psicológico-
normativas ou interacionistas) é necessário partir da realidade psíquica a
que se referem os elementos subjetivos” e, por isso, adverte que “qualquer
construção jurídica à margem de ou fingindo a realidade é grave fonte de
arbitrariedades e deixa a porta aberta à maior insegurança, científica ou
jurídica”39.
Assim, o que aparece na perspectiva normativa do dolo é uma “crise
de legitimidade”40, que conduz à necessidade de critérios concretos que
ofereçam justificações adequadas para a atribuição do dolo e que possam
levar mais além dos resultados que se possa obter mediante a perspectiva
psicológica do dolo.
Dentro destas perspectivas normativas, resulta, pois, essencial, a
concreta determinação de critérios seguros para a afirmação do dolo. Muitas
teorias se apresentaram com o objetivo de oferecer tal justificação. Uma das
que resulta mais interessante, sem dúvida, foi a proposta de HASSEMER, com
a chamada teoria dos indicadores externos, que une a dimensão material e a
dimensão processual do dolo41. Trata-se de uma postura que, ao mesmo
tempo em que não deixa sem resposta a encruzilhada entre conhecimento e
vontade, adianta-se em demonstrar a existência de algo mais a ser
discutido.

37 FLETCHER, George. Basics Concepts... Op. cit., p. 83.


38 FLETCHER, George. Basics Concepts... Op. cit., p. 85.
39 MUÑOZ CONDE, Francisco. Prólogo a DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis. Los elementos... Op. cit., p.13.
40 Nesse sentido RAGUÉS I VALLÉS, Ramón. El dolo... Op. cit., p. 302 e ss.
41 É de todo conveniente notar a oportunidade e a atualidade da proposta de HASSEMER, na medida

em que cada vez mais se aprimoram os estudos relacionando a aproximação das disciplinas do
direito penal e do processo penal, antes estudadas de modo demasiado compartimentalizado.

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3 – A T ESE DOS I NDICADORES E XTERNOS DE H ASSEMER : U MA


P ERSPECTIVA P ROCEDIMENTAL S OBRE O D OLO
Para conjugar a demonstração alcançável objetivamente de critérios
de determinação da subjetividade, HASSEMER oferece um interessante ponto
de partida com sua teoria dos indicadores externos.
Sendo necessário delimitar uma fronteira entre dolo e imprudência,
este objetivo não se pode alcançar através da valoração que o sujeito faz a
respeito da possibilidade de ocorrência do resultado. Isso é assim
simplesmente porque tais dados são, desde logo, inalcançáveis, pelo que é
preciso renunciar, a priori, a definições ontológicas do dolo42. HASSEMER43
sustenta que saber “que tipos de comportamentos dolosos devem se
diferenciar, quais devem ser separados dos não dolosos, quais devem ser
sancionados penalmente, todas estas perguntas não podem ser discutidas
desde um ponto de vista ontológico, mas somente desde uma perspectiva
deontológica, ou seja, são questões abertas às expectativas de justiça
historicamente variáveis”.
Como conseqüência, a atribuição de responsabilidade dolosa depende
de uma valoração, da adoção de critérios normativos. E é aqui que
HASSEMER aproveita para desenvolver um ponto de partida que sugere a
tese do próprio KAUFMANN, o da valoração dos elementos objetivos.
Sublinha DÍAZ PITA que HASSEMER “não persegue uma averiguação
de características concretas que desenhem o dolo e faltem na imprudência.
É a ratio da penalidade do dolo que constitui o ponto de partida de sua
tese”44. Ou seja, ele abre mão de discutir “o que é” o dolo, propondo tão-
somente discutir a razão pela qual se castigam mais gravemente os crimes
considerados dolosos, quando comparados aos imprudentes.
O trabalho de HASSEMER começa por buscar as razões pelas quais
uma conduta dolosa é mais desvalorada que uma conduta imprudente.
“Quem não pode responder a esta pergunta, não poderá fundamentar os
limites do dolo em critérios normativos aceitáveis”45. É que categorias como

42 HASSEMER, Winfried. Los elementos característicos del dolo... Op. cit., p. 914.
43 HASSEMER, Winfried. Los elementos característicos del dolo... Op. cit., p.914.
44 DÍAZ PITA, María del Mar. El dolo eventual. Valencia: Tirant lo Blanch, 1994, p. 190. Além deste

trabalho, na doutrina espanhola há várias contribuições importantes sobre o dolo, nos trabalhos
de Feijóo Sánchez, Laurenzo Copello e Ragués I Vallès, por exemplo.
45 HASSEMER, Winfried. Los elementos característicos del dolo... Op. cit., p. 914.

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dolo e imprudência guardam entre si diferentes graus de desvaloração das


condutas às quais elas se associam46.
Comenta HASSEMER47 que, a partir da concepção de ENGISH, que já no
ano de 1930 identificava a distinção do nível de reprovabilidade da lesão
dolosa ou imprudente com base na “atitude (do agente) em relação ao
mundo dos bens jurídicos”, desenvolveram-se distintas teorias do dolo. Tais
teorias, por certo, aperfeiçoaram e desenvolveram as propostas de ENGISH
em distintas teses, que, entretanto, mantêm em comum a idéia de renunciar
à dissociação entre o elemento cognitivo e volitivo no dolo, unificando
ambos em um mesmo marco conceitual, a par de reconhecerem que o dolo
reside no âmbito interno do agente e aceitarem indistintamente a assunção
de conceitos abstratos para a descrição do dolo, seja sob o critério de decisão
a favor da lesão de bens jurídicos, decisão contra os bens jurídicos ou
negação explícita realizada pelo agente48.
Disso extrai HASSEMER a conclusão de que estes conceitos não fazem
mais do que pôr em evidência que o substrato do dolo é interno ao
indivíduo, bem como a clara idéia de relevância do elemento “vontade”, já
que o mero conhecimento não é suficiente para encher de conteúdo uma
atitude de “decisão”49.
Mas as tentativas de buscar a intenção na vontade interna do agente,
em geral, padeceram de incapacidade de demonstração, enquanto que as
tentativas de descrição com base na periculosidade da atitude padeceram de
falta de correspondência com a real intenção.
Para a solução do problema, HASSEMER propõe que, se o dolo escapa
ao campo de contemplação do observador, não pode ser descrito, pelo que a
aproximação do tema deve ocorrer de modo indireto, através de dados

46 Assim também ocorre em outros sistemas, como os do Common Law, mesmo que nestes existam
categorias intermediárias como a recklessness. Vide, a respeito, PIÑA ROCHEFORT, Juan Ignacio. La
estructura de la teoría del delito en el ámbito jurídico del “Common Law”. Granada: Comares, 2002,
pp. 78 e ss.
47 HASSEMER, Winfried. Los elementos característicos del dolo... Op. cit., p. 915.
48 HASSEMER, Winfried. Los elementos característicos del dolo... Op. cit., p. 915-916.
49 “Para a caracterização conceitual do dolo (e a demarcação de seus limites para com a

imprudência) ressalta a necessidade e o caráter central dos elementos volitivos. Que o agente – de
um modo cognitivo – só estava informado do acontecer, que só tinha a exata representação da
periculosidade de sua ação e sua omissão é um argumento demasiado débil e não basta para a
aceitação de uma ‘assunção pessoal’”. HASSEMER, Winfried. Los elementos característicos del dolo...
Op. cit., p. 918.

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objetivos que cumpram os seguintes requisitos: seu caráter observável, sua


exaustividade e sua relevância para o elemento subjetivo em questão50.
Esta necessidade de indicadores, segundo HASSEMER51, não pode ser
resumida em um único dado como a “ação de evitação” (como queria
KAUFMANN) ou o “perigo desprotegido”, inclusive porque a idéia de
conhecimento a respeito do fato não basta para o dolo, ainda que seja
imprescindível para dotar de conteúdo a vontade.
Evidentemente, os indicadores externos são tantos e tão amplos que
não seria possível esgotá-los. Trata-se, na realidade, da análise de todas as
circunstâncias que estão ao redor do atuar. HASSEMER52 observa que “a
ordenação sistemática dos indicadores resulta de sua missão e da estrutura
de seu objeto, ou seja, eles hão de possibilitar uma conclusão fiável a
respeito da existência do dolo”, para cujo objetivo hão de seguir os
seguintes passos: demonstrar o perigo da situação concreta para o bem
jurídico, a representação do agente a respeito desse perigo e sua decisão a
respeito da realização do mesmo. Mas, neste trabalho de identificação, é
necessário ter em conta que tão-somente a situação de perigo oferece dados
descritíveis, os dois seguintes passos só podem ser realizados por meio de
deduções derivadas dos indicadores53.
Em resumo, HASSEMER entende que o dolo é uma “decisão a favor do
injusto”54, mas entende também que o dolo é uma instância interna não
observável, com o que sua atribuição se reduz à investigação de elementos
externos que possam servir de indicadores e justificar sua atribuição. Por
isso, estes indicadores só podem ser procurados na mesma ratio do dolo,
que se explica em três sucessivos níveis: a situação perigosa, a representação
do perigo e a decisão a favor da ação perigosa55.
Desta construção de HASSEMER parece derivar algo muito importante
que, porém, o autor não trata de explorar: a idéia de transmissão de um
significado. HASSEMER atribui, ao combinar os indicadores externos e os
critérios (valorativos) de delimitação do dolo, a identificação deste à

50 HASSEMER, Winfried. Los elementos característicos del dolo... Op. cit., p. 925.
51 HASSEMER, Winfried. Los elementos característicos del dolo... Op. cit., p. 927.
52 HASSEMER, Winfried. Los elementos característicos del dolo... Op. cit., p. 929.
53 Tanto é assim que existem autores, como MUÑOZ CONDE, que sustentam que o elemento subjetivo

do tipo depende sempre de uma dedução, já que não é simplesmente observável. MUNÕZ CONDE,
Francisco e GARCÍA ARÁN, Mercedes. Derecho penal. Parte General, 6.ed., 2004, p. 267.
54 HASSEMER, Winfried. Los elementos característicos del dolo... Op. cit., p. 931.
55 HASSEMER, Winfried. Los elementos característicos del dolo... Op. cit., p. 931.

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possibilidade de sua atribuição, mas não trata de explicar o processo


justificante de tal identificação. Ao afirmar que o dolo, embora seja um
fenômeno interno ao sujeito, demanda, para sua afirmação, da comprovação
de indicadores externos que justifiquem sua atribuição, HASSEMER assume a
idéia de que somente diante da expressão externa, compatível com a ratio
incriminadora subjetiva dolosa, é possível afirmar a existência do dolo. Vale
dizer: o dolo “é” sua própria demonstração, sua expressão significativa.

4 – O D OLO E O S IGNIFICADO DO D OLO


Não resta, pois, nenhuma dúvida de que a identificação do dolo não
pode vir da descrição de um processo psicológico, mas somente da
identificação do que HASSEMER qualifica de “indicadores externos”. O dolo,
definitivamente não “é” um fato, mas uma atribuição, ou seja, a exata
atribuição de uma decisão contrária ao bem jurídico, na qual se expressam
simultaneamente conhecimento e vontade.
Isso põe em evidência o erro, em especial das concepções finalistas,
mas também de todas as que nelas estão inspiradas, ao sustentarem um
dolo substancial que é a nota distintiva da ação, quando, na realidade, a
ação não “é” uma realidade ontológica, mas simplesmente a representação
de um sentido de atitude dolosa que permite uma adscrição. É necessário
ainda, porém, delimitar o que dá sentido doloso a uma determinada
realização.
Segundo parece, a identificação do sentido do dolo passa por uma
melhor resolução sobre dois pontos: a situação do dolo na teoria do delito e
o oferecimento de uma melhor compreensão teórica do próprio sentido ou
significado do dolo.

4.1 O Dolo Como Atribuição e a Teoria do Delito Ancorada


em Pretensões Normativas
As dificuldades em estabelecer um concreto sentido de atribuição do
dolo deriva, em grande medida, da ordenação das categorias do delito
segundo a proposta finalista. É que a proposição welzeliana de finalidade
como nota distintiva da ação levou boa parte da doutrina a admitir, sem
espaço para discussão, que o dolo é elemento exclusivo da conduta típica e,

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por isso, é algo vinculado às predeterminações ontológicas defendidas pelo


próprio WELZEL56.
A melhor forma de tentar mudar de perspectiva, através da negação
do dolo como categoria psicológica, passa necessariamente por uma revisão
das predeterminações ontológicas do tipo. É necessário negar o tipo
subjetivo como condicionante ontológico e, a partir disso, não há por que o
dolo figurar no substrato da organização do sistema de imputação.
Outrossim, é importante notar que, neste aspecto – organizacional das
categorias do delito – o advento do funcionalismo pouco inovou, em
qualquer de suas vertentes.
Com ROXIN, ao menos aparece um dolo livre de amarras, como um
aspecto subjetivo capaz de influenciar indistintamente o tipo e a
culpabilidade. Para ele, “a delimitação entre dolo e imprudência expressa
não só uma diferença de injusto, mas também uma diferença importante de
culpabilidade, que justifica a distinta punição de ambas as formas de
conduta”57. É de notar que embora o dolo figure em mais de uma categoria
do delito, não deixa de ser condicionante do tipo, já que, na mesma obra,
ROXIN refere que “a separação do dolo e da imprudência é uma delimitação
segundo o tipo de injusto”58.
De outro lado, a proposta funcionalista sistêmica de JAKOBS mantém
intacta a posição organizacional do dolo na teoria do delito, ao sustentar
que “ao tipo subjetivo pertencem precisamente aquelas circunstâncias que
convertem a realização do tipo objetivo em ação típica; ou seja, dolo e
imprudência”59 e, por outro lado, ancorada na idéia de róis e papéis
desempenhados por sistemas psicofísicos, promove uma completa
objetivização do referido elemento subjetivo60, levando, por um lado, ao
completo desprezo do componente humano do sistema de imputação, e por
outro, a uma normativização completamente artificial.

56 “O legislador está sempre sujeito a determinados limites imanentes ao direito positivo. A primeira
limitação se encontra nas estruturas lógico-objetivas que atravessam integralmente a matéria
jurídica...” WELZEL, Hans. Más Allá del Derecho Natural y del Positivismo Jurídico. Trad. de Ernesto
Garzón Valdéz, Córdoba: Universidad Nacional de Córdoba, 1962, p. 35.
57 ROXIN, Claus. Derecho penal. Parte General… cit., p. 427.
58 ROXIN, Claus. Derecho penal. Parte General… cit., p. 426.
59 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte General. 2ª ed., corrigida, trad. de Joaquín Cuello Contreras e

José Luis Serrano Gonzáles de Murillo, Madrid: Marcial Pons, 1997, p. 309.
60 Nesse sentido o comentário que aparece em DONNA, Edgardo Alberto. El concepto objetivado de

dolo... Cit., p. 677, quem critica também a HERZBERG, BOTTKE e PUPPE, em face do que ele qualifica
de uma objetivização do conceito de dolo.

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Entretanto, a doutrina vem dando mostras crescentes de que persiste


em busca de soluções melhores. O próximo passo, consoante se evidencia
de uma tendência crescente de admissão dos seus postulados61, parece ser a
assunção da filosofia da linguagem como teoria de base para a reformulação
dos fundamentos do sistema de imputação penal, especialmente no que
tange aos seus elementos subjetivos62. Esta tendência possui como ponto de
referência fundamental a obra de TOMÁS S. VIVES ANTÓN.
A proposta do Prof. VIVES é de reorganizar o sistema de imputação a
partir de dois pilares: a norma e a ação, as quais, conjugadas, convertem a
teoria do delito em um conjunto de pretensões normativas em face do
sentido de um tipo de ação.
Quando se propõe uma teoria do delito que distribui as pretensões
normativas entre o tipo de ação – expresso em uma pretensão conceitual de
relevância e uma pretensão de ofensividade –, a antijuridicidade formal –
expressa em uma pretensão de ilicitude que inclui instâncias de imputação
da antinormatividade –, uma culpabilidade como pretensão de reprovação e
uma punibilidade como pretensão de necessidade de pena, como faz VIVES
ANTÓN63, fica melhor evidenciado que o dolo não é mais do que uma
atribuição.

61 Além do próprio VIVES e de CARLOS MARTINEZ-BUJÁN PÉREZ, TAMBÉM ENRIQUE ORTS BERENGUER,
JOSÉ LUIS GONZÁLEZ CUSSAC, JUAN CARLOS CARBONELL MATTEU e, em Portugal, MARIA
FERNANDA PALMA, estes dois últimos com trabalhos referidos especialmente à questão do dolo.
62 Nesse sentido o comentário de MARIA FERNANDA PALMA: “Por que é que uma realidade

psicológica análoga à dolo é decisiva para a atribuição de um mais grave merecimento da conduta
em termos de culpa? [...] A resposta a esta questão orienta-nos para uma abordagem do
pensamento filosófico sobre o comportamento intencional a que se tem dedicado a chamada
filosofia da acção, em articulação com a filosofia da linguagem. Essa abordagem é decisivamente
elucidativa em alguns aspectos essenciais: o aspecto da desarticulação entre a intencionalidade e
uma vivência explicitamente consciente e causal de um estado mental anterior à acção, a
referenciação do comportamento intencional a uma racionalidade implícita no agir constatável
exteriormente e a essencial coincidência entre o reconhecimento da linguagem de um
comportamento e a sua identificação social”. PALMA, Maria Fernanda. “Dolo eventual e culpa em
Direito penal”. In Problemas Fundamentais de Direito Penal. Lisboa: Universidade Lusíada, 2002, pp.
49-50.
63 Veja-se um resumo sobre a distribuição das categorias do delito segundo as propostas de VIVES

ANTÓN em MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. “La ‘concepción significativa de la acción’ de


T.S.VIVES e sus correspondencias sistemáticas con las concepciones teleológico-funcionales del
delito”. En Libro Homenaje al Dr. Marino Barbero Santos. Coord. Adán Nieto Martín, Cuenca:
Ediciones da Universidad de Castilla – La mancha y Ediciones Universidad de Salamanca, 2001.
Há edição brasileira: MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. “A ‘concepção significativa da ação’ de
T.S.VIVES e suas correspondências sistemáticas com as concepções teleológico-funcionais do delito”. Trad.
de Paulo César Busato, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

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VIVES64 exige, para o reconhecimento do “tipo de ação”, uma


pretensão de relevância no sentido da determinação de que uma ação
humana em concreto é uma das que interessam ao direito penal. Mas esta
pretensão de relevância é verificável mediante o cumprimento de dois
pontos: uma pretensão conceitual de relevância, que expressaria a idéia de
tipicidade e uma pretensão de ofensividade, que representaria a idéia de
antijuridicidade material65. E logo, fecha o injusto com a antijuridicidade
formal, que corresponde a uma pretensão de ilicitude que se traduz na
verificação da falta de ajuste do comportamento significativo em relação ao
ordenamento jurídico66. É neste ponto onde VIVES67 situa o dolo e a
imprudência, sendo o primeiro identificado segundo um compromisso de
atuar por parte do autor. O dolo, para VIVES, resulta um dolo neutro68, ou
seja, é a intenção de realizar o fato antijurídico.
Quando se separa, de um lado, o dolo e a imprudência na pretensão
de ilicitude, e do outro, os elementos do tipo e a própria ação na pretensão
de relevância, fica clara a mescla que as concepções finalistas fizeram entre
os planos conceitual e substantivo de análise. Conforme observa VIVES, “a
atribuição de intenções ao sujeito, ou a qualificação de sua conduta como
não intencional não desempenham necessariamente um papel na
delimitação conceitual da ação”69.
A ação – seja comissão ou omissão – tem seu aspecto conceitual ou de
definição analisado no tipo de ação que é onde se lhe identificam critérios
de sentido.
O dolo e a imprudência, por outro lado, são instâncias de imputação
da antinormatividade, vinculadas ao plano substantivo e não conceitual da
atribuição de conduta ao sujeito.

64 VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos del Sistema Penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1996, p.
484.
65 VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos ... Op. cit., p. 484.
66 VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos ... Op. cit., p. 485.
67 VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos ... Op. cit., p. 485.
68 Com idêntica opinião BORJA JIMÉNEZ, Emiliano. “Algunas reflexiones sobre el objeto, el sistema y

la función del Derecho penal”. En Homenaje al Dr. Marino Barbero Santos. Coord. Adán Nieto
Martín, Cuenca: Ediciones de la Universidad de Castilla la Mancha y Ediciones Universidad
Salamanca, 2001, p. 885.
69 VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos ... Op. cit., p. 24

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Assim, para a concepção significativa da ação, que aqui se subscreve70,


a “intenção subjetiva” corresponde à atribuição concreta de intenções ao
sujeito e não define, por si mesma, a ação, mas sim a imputação. Ou seja, a
identificação da intenção subjetiva cumpre a tarefa de possibilitar a
atribuição ao agente de um compromisso com a ação ofensiva realizada,
mas não faz parte da própria ação, no que refere à sua definição.
Definitivamente, a definição da existência de uma ação
conceitualmente relevante para o direito penal precede a análise de se esta
ação relevante efetivamente infringe a norma. Nesse sentido, VIVES não
deixa dúvidas, ao afirmar que “a determinação da intenção entra
freqüentemente em jogo depois que a ação se acha definida e serve ao
interesse substantivo de ajuizá-la”71.
Mas, se é certo que o dolo é uma atribuição, resta algo por
complementar: qual é o fundamento segundo o qual se justifica a atribuição
do dolo? Sob que critérios é aceitável reconhecer a atribuição de uma
atuação dolosa a alguém?
Neste ponto também é VIVES ANTÓN quem apresenta o melhor
critério.
Partindo da análise das distintas formas de dolo segundo os critérios
identificadores da categoria, quais sejam, um elemento intelectual (o saber)
e outro volitivo (o querer), VIVES sustenta que se o querer fosse um processo
psicológico, teria que ser um elemento comum a todas as espécies de dolo, o
direto de primeiro grau, em que o sujeito efetivamente quer o resultado, o
direto de segundo grau, onde o sujeito não quer, mesmo que seja indiferente
ao resultado e o dolo eventual, onde o sujeito quer o risco e não o resultado72.
Das três distintas situações, VIVES entende que a nota comum é uma
“decisão contra o bem jurídico”73, expressa em um compromisso com a lesão –
ou perigo – de tal bem.

70 Para detalhes, ver BUSATO, Paulo César. Direito penal e Ação Significativa. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2005, cuja versão espanhola, de breve publicação, já está no prelo pela editora Tirant lo
Blanch.
71 VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos... Op. cit., p. 233.
72 VIVES comenta: “não se vê bem que elemento ou estado psicológico pode ser comum a quem mata

seu inimigo porque deseja sua morte (dolo direto de primeiro grau), a quem, com absoluta
indiferença à vida de seu motorista, coloca una bomba no carro de um Chefe de Estado, com a
segurança de que também morrerá aquele (dolo direto de segundo grau) e a quem, por satisfazer um
afã de risco, joga roleta-russa com os amigos a que mais aprecia e que, por conseguinte, menos
deseja que morram (dolo eventual)”. VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos... Op. cit., p. 234.
73 VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos... Op. cit., p. 234.

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No mesmo sentido a opinião de CARBONELL MATTEU, que, se filiando


expressamente ao pensamento de VIVES, afirma que “se a ação é significado,
o dolo significa compromisso com esse significado. O dolo supõe, neste
caso, intenção e pode ser definido como o compromisso do agente com o
significado do seu atuar”74.
Mas ainda não termina aqui a tarefa do intérprete para a identificação
do dolo, já que resta por determinar quando se pode falar de um
compromisso com a decisão contra o bem jurídico. Todas as concepções
normativas do dolo – ou seja, as definições de dolo como atribuição ou
adscrição – têm que justificar a validade do critério empregado para esta
determinação.
A verificação do dolo, para VIVES, depende de se a ação realizada põe
ou não de manifesto um compromisso de atuar do autor. Para isso, VIVES75
entende que é necessário pôr em relação as regras sociais que definem a
ação como uma das que interessam ao direito penal em relação às
competências do autor, ou seja, as técnicas que o autor domina. Assim, em
um procedimento puramente axiológico e não através do intento de buscar
inacessíveis dados psicológicos, “poderemos determinar o que o autor
sabia”76. Em resumo: “só podemos analisar manifestações externas; mas,
através destas manifestações externas podemos averiguar a bagagem de
conhecimento do autor (as técnicas que ele dominava, o que ele podia e o
que não podia prever ou calcular) e entender, assim, ao menos
parcialmente, suas intenções expressadas na ação”77.
Afinal, abandona-se completamente a idéia, errônea, de pretender
descrever quando há dolo e se substitui pelo intento de compreensão sobre o nível
de gravidade refletido na contradição entre a ação realizada e a norma, que é,
sem qualquer dúvida, a tarefa de adscrição do dolo. Na verdade é “desse
modo, e não através da indagação de inacessíveis e pouco significativos
processos mentais, que podemos determinar o que o autor sabia”78.
Por outro lado, é importante notar que, embora não seja este o foco
com que se pretende demonstrar as vantagens da adoção da idéia de um
dolo significativo, que a proposta de VIVES inclui a vontade como um

74 CARBONELL MATTEU, Juan Carlos. “Sobre tipicidad e imputación: reflexiones básicas en torno a la
imputación del dolo y la imprudencia”. In: Estudios penales en recuerdo del Prof. Ruiz Antón.
Valencia: Tirant lo Blanch, 2004, p. 150.
75 VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos... Op. cit., p. 237.
76 VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos ... Op. cit., p. 237.
77VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos ... Op. cit., p. 237.
78 CARBONELL MATTEU, Juan Carlos. Sobre tipicidad e imputación… Cit., p. 151.

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elemento do dolo. Para ele o “dolo como compromisso supõe a necessidade


de conhecimento, de saber, mas também um grau de vontade: a intenção
que pode entender-se como um querer, não naturalístico, mas normativo”79.
A vontade é, aqui, “fundamentalmente, o entendimento da ação legitimada
pela linguagem social e por uma lógica reconhecida e comum de atribuição
de significado”80. E a referência à linguagem social quer dizer que esta
linguagem é partilhada inclusive pelo próprio autor, razão pela qual suas
motivações e representações não são desprezadas no processo de
atribuição81.
A postura de inclusão da vontade no conceito de dolo é importante
para estabelecer limites entre o dolo e a imprudência, pois, do contrário, a
mera indiferença perante o direito, própria da culpa, poderia caracterizar
uma responsabilidade dolosa82.
Tendo em conta que a presença do dolo serve para determinar um
grau de reprovabilidade da conduta distinto da imprudência, este objetivo
se cumpre melhor através da compreensão do que da descrição. E a
compreensão do significado ou sentido do dolo resulta de um processo de
comunicação.

4.2 O Processo de Comunicação e o Sentido ou Significado


do Dolo
O dolo, enquanto afirmação jurídica de um desvalor contido na
decisão contrária ao bem jurídico – não é uma entidade ontológica, mas a
atribuição de uma condição jurídica que deriva da identificação de um
significado. A fonte que o intérprete utiliza para atribuir o dolo são os
elementos externos identificados por HASSEMER e sua caracterização
depende da identificação de um compromisso do autor de atuar contra o
bem jurídico.
Mas, o que é o processo que se desenvolve com o objetivo de afirmar
o dolo? É o processo de comunicação de um sentido.
Em seu estudo sobre o dolo, DÍEZ RIPOLLÉS avança, ainda que
somente em certa medida, explicando este processo, qualificando-o de

79 CARBONELL MATTEU, Juan Carlos. Sobre tipicidad e imputación… Cit., p. 151.


80 PALMA, Maria Fernanda. Dolo eventual e culpa em Direito penal... Cit., p. 57.
81 A nota a respeito de interpessoalidade da concepção de dolo aparece também, em certa medida,

na opinião de KÖHLER. Vide, a respeito, KÖHLER, Michael. La imputación subjetiva... Cit., p. 86.
82 Nesse sentido PALMA, Maria Fernanda. Dolo eventual e culpa em Direito penal... Cit., p. 49.

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perspectiva interacionista83. O autor entende “oportuno acudir aos


fundamentos da filosofia da linguagem em suas pesquisas relacionadas com
o âmbito jurídico, fundamentalmente a teor de sua qualificação dos
conceitos jurídicos como adcritivos e não descritivos”84.
Com efeito, já HABERMAS tinha percebido a crescente aceitação dos
postulados da chamada hermenêutica filosófica, principalmente à raiz do
“visível fracasso das ciências sociais convencionais, que não puderam
cumprir suas promessas teóricas e práticas”85, o que levou a um fenômeno
batizado por PAUL RABINOW e WILLIAM SULLIVAN de “giro interpretativo”86.
Assim, a filosofia do segundo WITTGENSTEIN e as idéias a respeito do
processo de comunicação de HABERMAS, convertem-se em ferramentas
imprescindíveis para a realização do necessário processo de identificação do
“sentido” ou “significado” de determinadas categorias próprias das ciências
sociais, especialmente, “no trabalho de constatar os elementos que foram
definidos como constitutivos da conduta criminal”87.
Em seu trabalho de investigação, DÍEZ RIPOLLÉS alude a estas
concepções metodológicas como baseadas em uma idéia de busca da
verdade no consenso, tomando por referência a chamada teoria consensual da
verdade de HABERMAS, que se baseia na idéia de que “só pode atribuir-se um
predicado a um objeto se qualquer pessoa que pudesse participar desse
discurso fizesse o mesmo”88. Com isso, a pretensão de verdade se
transportaria à possibilidade de afirmar um juízo, não com base no que eu
penso ou no que pensa outro, mas “ao juízo de todos aqueles com que eu
pudesse entrar em discurso se minha história vital fosse extensiva à história
da humanidade”89.
É, portanto, o interacionismo o que determina a verdade possível, ou
a verdade legitimada sobre determinado objeto. Isso se baseia em que
somente a linguagem é capaz de dotar de sentido as coisas e é a forma pela
qual se estabelece o processo de comunicação que torna possível

83 DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis. Los elementos... Op. cit., pp. 191 e ss.
84 DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis. Los elementos... Op. cit., p. 192.
85 HABERMAS, Jürgen. “Ciências sociais reconstrutivas versus Ciências sociais compreensivas”. In:

Consciência Moral e Agir Comunicativo. Trad. de Guido A. de Almeida, Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1989, p. 38.
86 HABERMAS, Jürgen. Ciências sociais reconstrutivas... Op. cit., p. 38.
87 DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis. Los elementos... Op. cit., p. 192.
88 DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis. Los elementos... Op. cit., p. 193.
89 DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis. Los elementos... Op. cit., p. 194.

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demonstrar a existência de alguém através da existência de outro. É a


interatividade, que deriva da comunicação, que determina a inclusão do outro
no meu quadro (Bild) de mundo, o que faz esta perspectiva centrar-se na
essência da valorização do ser humano e contrapor-se, essencialmente, às
perspectivas normativas que deslocam o humano do centro da construção e
o substituem pela própria norma. Daí decorre a legitimação do fundamento
comunicacional.
HABERMAS propõe que a comunicação, como processo de
entendimento sobre objetos, se estabelece segundo níveis de
intersubjetividade que são transcendentes em relação ao nível meramente
linguístico. Ele chama de hermenêutica o exercício de captar o significado do
processo de comunicação90. HABERMAS afirma:
“Podemos descrever, explicar ou predizer um ruído
equivalente a uma expressão vocal de uma frase falada, sem ter
nem a menor idéia do que essa expressão significa. Para captar (e
formular) seu significado, é necessário participar de algumas ações
comunicativas (reais ou imaginadas) no curso das quais se
empregue de tal modo a frase mencionada que ela seja inteligível
para os falantes e ouvintes e para os membros eventualmente
presentes da mesma comunidade lingüística.”91
A compreensão do sentido depende, pois, de uma participação em
um atuar comunicativo onde “um falante fala com um ouvinte sobre algo,
expressando o que ele tem em sua mente”92. Então, a pessoa que comunica
algo fala sobre o objeto que tem em sua mente, com outra pessoa, sobre algo
no mundo.
Disso deriva que o processo de comunicação se estabelece em uma
tripla dimensão, imprescindível para a hermenêutica do sentido: “a) como
expressão da intenção do falante, b) como expressão para o estabelecimento
de uma relação interpessoal entre falante e ouvinte, c) como expressão de
algo no mundo”93. Estas três dimensões é que podem ser entendidas como o
sentido derivado do processo de comunicação.
Em resumo:

90 HABERMAS, Jürgen. Ciências sociais reconstrutivas... Op. cit., p. 39.


91 HABERMAS, Jürgen. Ciências sociais reconstrutivas... Op. cit p. 39-40.
92 HABERMAS, Jürgen. Ciências sociais reconstrutivas... Op. cit., p. 40.
93 HABERMAS, Jürgen. Ciências sociais reconstrutivas... Op. cit., pp. 40-41.

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“Quando o falante diz algo dentro de um contexto cotidiano,


ele se refere não somente a algo no mundo objetivo (como a
totalidade daquilo que é ou poderia ser), mas ao mesmo tempo a
algo no mundo social (como a totalidade das relações interpessoais
reguladas de modo legítimo) e a algo no mundo próprio, subjetivo,
do falante (como a totalidade das vivências manifestáveis, às quais
tem um acesso privilegiado).”94
Evidentemente, a transmissão de uma mensagem não se estabelece
somente falando, mas com todas as formas de atuação. A ação de falar pode
transmitir uma mensagem tal como um gesto ou um movimento. Mas, o
sentido de qualquer mensagem dependerá sempre da presença da
identificação da tripla dimensão referida por HABERMAS, ou seja, a
referência ao mundo subjetivo, ao mundo objetivo e ao mundo social, ou
seja, ao mundo de inter-relação, de regras compartidas. Isso fica
demonstrado claramente quando VIVES95 expõe a proposta de HABERMAS,
referente à ação comunicativa de um sentido, dizendo que ela “se constitui,
não só em virtude de planos de ação mais complexos que (o agente) tenha
efetivamente tido, mas também em virtude de interpretações que um terceiro
faz e sob as quais (o agente) poderia ter realizado sua ação”. Estas interpretações
são obviamente os elementos que se tem em conta para a atribuição do
qualificativo “doloso” a uma determinada conduta.
Assim é com a intencionalidade, que não se constitui subjetivamente,
mas através de convenções, assim como as palavras, ou seja, a
intencionalidade é resultado de um processo de atribuição que corresponde
à mensagem que a ação do sujeito produz. Na precisa observação de MARIA
FERNANDA PALMA96, “a intencionalidade e as suas formas não podem deixar
de revelar uma atribuição de significado em nome da linguagem social, não
existindo, como refere WITTGENSTEIN, linguagens privadas que determinem
a compreensão do mundo inerente a uma ação que interfere no mundo dos
outros”.
Trata-se de valorar as regras que estão por trás da comunicação de
um sentido, com o que se trata, em última análise, de verificar as
circunstâncias nas quais se realiza a ação, um sintoma claro da união quase
inseparável que existe entre o dolo e sua prova.

94 HABERMAS, Jürgen. Ciências sociais reconstrutivas... Op. cit., p. 41.


95 VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos... Op. cit., p. 195.
96 PALMA, Maria Fernanda. Dolo eventual e culpa em Direito penal... Cit., p. 57.

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Assim, a afirmação de que o dolo tem importante dimensão


processual, seguidamente repetida pelos juristas, tem sua razão claramente
exposta: é que se trata de uma categoria cuja apreensão e conseqüente
possibilidade de atribuição depende de uma compreensão cênica que deriva
precisamente do caráter pragmático do Processo Penal. É HASSEMER quem
explica:
“A classificação da semiótica – teoria da linguagem e de seu uso
– é muito útil, se se quer conhecer os limites aos quais a lei em si
pode vincular o juiz. Na ‘sintaxe’ ou sintática trata-se das relações
dos signos lingüísticos entre si, de gramática, de lógica, de formas
e de estruturas. Na semântica, trata-se da relação dos signos
lingüísticos com a realidade, de significado, de experiência, de
realidade. Na pragmática trata-se da relação dos signos lingüísticos
com seu uso em situações concretas, de ação, de comunicação, de
retórica, de narração. (...) Podem-se incluir a compreensão do texto e
o direito penal material no âmbito da semântica; a compreensão
cênica e de direito processual penal no âmbito da pragmática. Na
primeira, trata-se do significado, da relação de um texto (lei) com
uma relação produzida (o caso); na segunda, trata-se da
transformação, do uso da linguagem em atuação, em comunicação,
em cena.”97
No âmbito da semântica, somente cabe relacionar o tipo (lei) com a
ação realizada, firmando um significado, uma ação significativa. A etapa
seguinte, de análise de pretensão de antinormatividade inclui,
necessariamente, a dimensão processual. O dolo é sua prova e a prova é
compreensão, interpretação do sentido, do significado do atuar doloso. A
categoria do dolo passa a ser uma categoria argumentativa, pragmática. Ou
seja, ao menos no que refere ao dolo, é preciso passar a ter em conta uma
“pragmática jurídico-penal”.
Mas, uma vez que o estabelecimento de um sentido depende da
validade do processo de comunicação, e isso, por seu turno, depende de
basear-se em regras compartilhadas, determinadas pela inclusão de todos
no discurso, fica claro que a opção pela linguagem como mecanismo de
legitimação da atribuição de um sentido doloso de uma conduta figura
como uma proposta humanista e respeitosa à idéia de alteridade.

97 HASSEMER, Winfried. Introdução aos Fundamentos do Direito Penal... Op. cit., pp. 245-246.

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C ONSIDERAÇÕES F INAIS
O dolo não pode ser considerado uma categoria ontológica,
representada por uma realidade psicológica, entre muitas razões, pela
impossibilidade de sua identificação, o que gera um nível de insegurança
das decisões que não tem por que entender-se menor que o obtido em um
processo de atribuição.
O dolo não existe, se atribui.
Para a atribuição do dolo, porém, é necessário o estabelecimento de
critérios que possam ter mais validade que aqueles obtidos pelas teorias
subjetivas ou ontológicas do dolo.
A tese de HASSEMER, de verificação dos elementos externos, é uma
das teorias normativas cuja elaboração conduz, obrigatoriamente, a uma
análise da idéia de sentido, já que o que justifica o dolo, segundo tal teoria, é
uma idéia central de capturar uma realidade subjetiva através da avaliação
de elementos objetivos.
A comunicação entre o objetivo e o subjetivo conduz, de modo
necessário, a uma dupla revisão, por um lado, da organização da teoria do
delito, que permita retirar as vinculações entre o dolo e a dimensão
substantiva da imputação; e por outro, a identificação de uma nota
distintiva que permita afirmar que a uma determinada conduta se lhe pode
afirmar dolosa.
Para isso, o recurso adequado é o brilhante trabalho de VIVES ANTÓN,
no qual se organiza a teoria do delito segundo distintas pretensões
normativas, separando o dolo do tipo de ação e, ademais, identificando-o
com o compromisso de atuar contra o bem jurídico.
Finalmente, para determinar a existência de tal compromisso, parece
necessário acudir aos fundamentos do processo de comunicação de um
sentido que deriva de propostas da filosofia da linguagem que propõe,
através da pragmática, a dimensão comunicativa que une o dolo e sua
prova em uma conjunção entre o direito penal e o processo penal que
resulta, por um lado, tão demonstrável quanto é possível nas demais
propostas e, por outro, encontra-se melhor legitimado, uma vez que se
baseia em uma proposição inclusiva – no sentido de inclusão do outro –,
que é a verdade do discurso.

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150
O FANTASMA DE LINDBERGH E CATIVEIRO
COM MORTE EM SÃO PAULO
C ARLOS R OBERTO B ACILA *

Resumo: O presente trabalho demonstra que as pessoas, em


geral, interpretam as regras jurídicas por meio de metarregras –
mecanismos que as influenciam na aplicação da lei, tais como
regras, princípios, traumas, preconceitos – e que metarregras
fundamentais (as ilegítimas) são os estigmas. Este fator –
estigma – faz com que o projeto de atuação das pessoas seja,
desde o início, comprometido, porque tem o seu eixo
deturpado.
Palavras-Chave: Estigmas; Metarregras.
Abstract: This study shows that the people, in general, interpret
legal rules through meta-rules – mechanisms that affect law
enforcement, such as rules, principles, trauma, prejudice – and
that fundamental meta-rules (the illegitimate ones) are the
stigmata. This element – stigma – affects people action from the
start, since its axis is distorted.
Key words: Stigmata; Meta-Rules.

Há três anos foi publicado o livro Estigmas: Um Estudo Sobre os


Preconceitos1 no qual procurei trazer alguma contribuição ao estudo da
Criminologia desenvolvendo basicamente três temas que necessitavam de
uma melhor precisão conceitual e de um conceito universal para que
pudessem ser visualizados nas discussões do dia-a-dia do Sistema Penal, de
maneira bastante prática e objetiva. Nada disto teria sido possível sem as
sólidas bases dos autores que serviram de sustentação para a tese que

* O autor é Doutor em Direito e Professor de Direito Penal da Universidade Federal do Paraná e


Facinter e Delegado de Polícia no Paraná.
1 BACILA, Carlos Roberto. Estigmas: Um Estudo Sobre os Preconceitos. 2ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2008.

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sustentei. Na verdade, a minha humilde participação consistiu em ligar os


pontos de concepções de fantásticos escritores que ousaram em discutir
sobre os preconceitos em um nível mais profundo. Em primeiro lugar,
atentando para o fato de que os estudiosos não haviam estabelecido as
precondições em que os estigmas se estabeleciam2, nem tampouco o seu
conceito científico, procurei enfrentar tal missão obtendo os seguintes
resultados: 1) após fazer uma releitura da História sob a óptica dos
estigmas, concluí que: 1) os estigmas não têm fundamento raciona;. 2) após
estudar praticamente todas as maneiras de preconceitos, tais como os que se
focam na raça, pobreza, religião, sexo, aparência física, profissão, maneira
de ser, necessidades especiais, idade, idealismo e tantos outros, formulei um
conceito que penso que terá grande utilidade nos estudos gerais e de casos:
2) estigmas têm aspecto objetivo e subjetivo e o estigma pode ser conceituado
como uma característica objetiva que recebe uma valoração social negativa.
O aspecto objetivo é perceptível pelos sentidos: pobreza, comportamento,
cor da pele, sexo, atividade religiosa, necessidade especial. O aspecto
subjetivo é a avaliação ruim que se faz do portador da marca objetiva: se é
pobre é suspeito de crimes contra o patrimônio; se é mulher não é “sujeito o
bastante para certos direitos e feitos”; se é portador de necessidade especial
“não deve realizar tão bem tal trabalho”; se tem antecedentes criminais
“deve agir sempre de maneira perigosa e mentirosa”; se não é adepto da
minha religião “deve estar no caminho do mal”; se não tem uma crença
religiosa “deve ser um tolo”, etc. Daí, culminei com mais uma conclusão,
isto é, 3) estigmas constituem uma espécie de metarregras. Metarregras são
regras práticas da sociedade, tais como: – cumprimentar as pessoas quando
as encontramos (bom-dia, boa-tarde, olá), cantar parabéns no dia do
aniversário, a necessidade de pedir licença para passar próximo de outra
pessoa, o dever de pedir desculpas quando ofendemos alguém, etc.
Denominam-se “metarregras” porque estão além das regras legais
(formais), daí metarregras. Se temos muitas metarregras favoráveis às boas

2 GOFFMAN, Erving. Estigma – notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4.ed. Tradução de
Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan S.A., 1988, p.11. Na
verdade esta constatação de GOFFMAN é tão surpreendente ao atingirmos o Século XXI, depois de
tanta luta e discussão em torno dos preconceitos que transcreverei para o leitor o trecho em que
GOFFMAN constata tal lacuna no que se refere aos ESTIGMAS: “Atualmente, o termo é
amplamente usado de maneira um tanto semelhante ao sentido literal original, porém é mais
aplicado à própria desgraça do que à sua evidência corporal. Além disso, houve alterações nos
tipos de desgraças que causam preocupação. Os estudiosos, entretanto, não fizeram muito esforço
para descrever as precondições estruturais do estigma, ou mesmo para fornecer uma definição do
próprio conceito” (GOFFMAN, E. Op. cit., p. 11).

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relações sociais e que se solidificaram na história da humanidade


provavelmente por questões práticas, tais como demonstrar que se vem em
paz ao dizer “Bom-dia!” e que portanto têm base em valores racionais, por
outro lado, temos metarregras que não são racionais ou não tem
fundamento histórico plausível, como os estigmas que foram acima
descritos “se é portador de necessidade especial não serve para o trabalho”;
outro exemplo: “um negro nunca será presidente dos Estados Unidos”. Ou
então, uma afirmação que observei num programa de televisão: “Se Hilary
Clinton vencesse as prévias contra Obama, ela venceria as eleições com
votação mais expressiva do que ele”, insinuando o debatedor que a
descendência de Obama o impediria de ser votado, etc.”.
O objetivo deste sucinto escrito é analisar um caso sob a ótica dos
conceitos que desenvolvi e verificar que tais abordagens são mesmo
pragmáticas conforme mencionei acima. Estes conceitos servem para as
relações sociais de uma maneira geral e também para o sistema penal, mais
especificamente falando. Assim, aplicando o conceito de estigmas como
metarregras, estudei os casos dos mais famosos serial killers, demonstrando
que, em todos os casos estudados, eles foram descobertos no início de suas
atividades criminosas, antes de matar a maioria de suas vítimas, contudo,
em decorrência de não apresentarem os principais estigmas, foram
liberados das investigações policiais. Outros ainda jamais foram
descobertos, provavelmente porque, embora tenham deixado pistas, não
apresentavam estigmas e tornaram-se invisíveis para as investigações.
Lindemberg: o caso brasileiro. Contudo, selecionei um caso mais
recente, logo após uma série de especialistas na área tecerem seus
comentários. Trata-se do cárcere privado efetuado num conjunto
habitacional de Santo André3, no Estado de São Paulo, e que teve como
autor Lindemberg Alves (22 anos) que no dia 13 de outubro de 2008 invadiu
o apartamento de sua ex-namorada Eloá Cristina Pimentel (15 anos) e lá
rendeu, além de Eloá, sua amiga Nayara e mais dois adolescentes Iago e
Vitor. Estes últimos foram libertados algumas horas após a incursão de
Lindemberg no apartamento, mas teriam sofrido agressões de Lindemberg,
o que foi mais um indício do que estaria para suceder. Ele também agrediu
Eloá, demonstrando que não tinha freios para agir. Avisou que só sairia
morto e que não iria para a prisão. No dia seguinte, Nayara também foi

3 Informações obtidas na revista Época, número 544, de 20 de outubro de 2008. Editora Globo, p.
124-130.

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libertada. Neste mesmo dia (terça-feira, dia 14) Lindemberg forneceu mais
uma prova do que era capaz de fazer. Ele atirou na direção da multidão.
Mais tarde, ele atirou novamente. Este tipo de agressão, que coloca em risco
a vida de pessoas em geral e também dos policiais, pode ser uma indicação
de que a polícia deva invadir o cativeiro e procurar salvar a refém que ali se
encontra e cessar mais riscos. A explicação é lógica: se o risco está
aumentando, para que esperar que as coisas piorem? Evidentemente que se
o autor do cárcere privado estiver calmo, então as regras recomendam que
se mantenha a situação estável para tentar desenvolver a ‘Síndrome de
Estocolmo’, uma técnica para propiciar simpatia entre seqüestrador e refém
gerada pela crise, mas que se torna discutível no caso em discussão já que
ambos se conhecem bem e foi justamente a relação continuada que
propiciou a crise. Porém, é preciso pensar que o comandante da operação
tinha informações que poderiam recomendar aguardar mais, embora, os
indícios iniciais (agredir os dois primeiros reféns, agredir Eloá, atirar duas
vezes contra pessoas, afirmar que só sairia morto e que não seria preso) não
eram nada bons. Entretanto, não há como esconder a realidade. O segundo
fato que chama a atenção é trazer novamente para o local uma refém que já
havia sido libertada. Nayara é uma adolescente de quinze anos e quando
saiu do cativeiro a polícia conseguiu diminuir o risco, retirando um refém
do cativeiro. Mas trazê-la novamente para a área do conflito e permitir que
ela voltasse para o cativeiro, talvez tenha sido o primeiro caso no mundo
em que a polícia fez a reinserção de um refém num cativeiro. No dia em que
isto ocorreu eu estava lecionando e comentei com meus alunos: como é que
ficaria a situação de Nayara se ela fosse ferida? Como explicar que a polícia
deixou que ela voltasse para o cativeiro? Infelizmente, horas depois ela
levou um tiro na cabeça, sobrevivendo por muito pouco. Algumas outras
coisas ainda não me parecem claras, por exemplo, o representante do
Ministério Público garantiu a integridade de Lindemberg, mas frisou o
suficiente que isto dependeria da salvação das reféns? Outra alegação do
promotor, interessante, no sentido de que a munição dos policiais para a
invasão do cativeiro era de borracha, se comprovada, traz outro fato inédito,
que seria utilizar deliberadamente armas inferiores contra um agressor com
arma de fogo e munição real. Se isto fez parte do evento, poderia ter
permitido que Lindemberg matasse Eloá e ainda atirasse contra a cabeça de
Nayara, o que de fato ocorreu. Enfim, o resultado final foi o seguinte: os
dois primeiros reféns teriam sofrido algumas violências menos graves.
Lindemberg atirou contra a população duas vezes. Nayara foi feita refém,
conseguiu sair, a polícia reinseriu a adolescente no cativeiro e depois ela

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levou um tiro na cabeça, mas sobreviveu. Eloá sofreu violências durante o


tempo em que ficou refém e no final levou um tiro na cabeça e outro na
perna e morreu horas depois. O que contribuiu para que tanta coisa
acontecesse desta maneira?
É preciso esclarecer que respeito muito as SWATs brasileiras, as
polícias táticas mais treinadas de todas e, em especial, a polícia paulista. Se
eu tivesse que voltar a atuar num grupo anti-seqüestro4, seria obrigatória a
solicitação para participar de treinamentos nos grupos da polícia civil e
militar de São Paulo, tendo em vista a capacidade e seqüência de operações
que estes bons policiais realizam. Estes policiais treinam muito, com polícias
do mundo inteiro e pensar em insinuar que no caso concreto faltou preparo
seria um desatino muito grande. Policiais de outros países também vêm
aprender como os nossos grupos táticos. Outro ponto que devemos ressaltar
é o fato de que erros podem acontecer em situações de tamanha gravidade,
como por exemplo o erro de um tiro, ou outra precipitação qualquer, etc.
Então, dois aspectos devem ser salientados: não se discute preparo e
capacidade dos policiais que atuaram no caso e nem tampouco a
possibilidade de erros. Eu mesmo poderia ter cometido erros mais graves
no lugar daqueles profissionais, basta imaginar estar na mesma situação e
verificar a imensa dificuldade para lidar com a vida e a morte numa fração
de segundos. Não obstante, o que me proponho a fazer é uma análise
científica de fatores que podem ter levado os policiais a cometerem alguns
equívocos que não são nem um pouco comuns nestas situações: 1) tolerar
sem reação que o autor dos crimes atirasse duas vezes contra pessoas nas
ruas; 2) reinserção de refém no cativeiro, mesmo sabendo que o autor é
violento e havia agredido os dois rapazes e a outra refém; 3) ingressar no
cativeiro com munição imprópria. Se isto ocorreu, foi fator que pode ter
colaborado para que ele tenha conseguido atingir as duas reféns na cabeça,
matando uma delas e ainda tenha lutado contra os policiais.
O que procurarei fazer agora é uma análise sob a ótica das
metarregras estigmas e a sua influência numa atuação tão desastrosa de
pessoas tão bem preparadas.

4 Integrei como Delegado de Polícia o Grupo TIGRE da Polícia Civil do Paraná, fundei a Delegacia
contra Seqüestros de Crianças (SICRIDE), atuei em plantões no interior do Estados nos quais tive
que lidar com seqüestros sem policiais treinados para isto e trabalhei por duas vezes na Delegacia
de Homicídios na Capital do Estado. Além disto, treinei com policiais de outros estados
brasileiros, da América Latina, Estados Unidos e Europa. Contudo, se tivesse que retornar para
esta área deveria efetuar novos treinamentos, pois novas técnicas foram aprendidas.

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Estigma da Mulher. Se os reféns fossem executivos que estivessem


apanhando do seqüestrador a administração da crise por parte da Polícia
seria outra? Os cuidados com o seqüestrador seriam outros? A proteção da
vítima seria outra? A resposta policial diante de todas as violências e
indícios de riscos do autor seria outra? Penso que sim. Que outros cuidados
teriam sido tomados com tão fortes indícios de periculosidade do autor,
indícios estes que constituíam crimes sendo praticados dentro do cativeiro,
além do próprio artigo 148 do Código Penal: lesões corporais, disparo de
arma de fogo com dolo eventual, etc. Então, por que houve tanta aceitação
passiva do que estava acontecendo a ponto de deixar uma refém voltar para
o cativeiro? Acredito que tudo isto ocorreu porque se estava reproduzindo
um cenário que sempre foi aceitável na maioria dos casos policiais: a
violência doméstica. O ex-namorado queria retomar o namoro à força. Isto
deve ter sido um motivo de subestimar-se o autor do cárcere privado,
deixando de adotar os procedimentos padrões que, convenhamos, saíram
bastante da rotina anti-seqüestro. Mas estes erros são compatíveis com a
tolerância do sistema penal com violências brutais de maridos, namorados e
ex-alguma coisa das mulheres. Foi assim, por exemplo, com Maria da Penha
Maia, que no ano de 1983 teve contra si duas tentativas de homicídio, na
primeira vez com disparos de arma de fogo e na segunda vez com choques
elétricos, até que ela ficou tetraplégica5. Por isso a lei Maria da Penha (Lei
11.340/2006) que trata de violências domésticas tem este nome. Por ser fato
notório o descaso das Delegacias, Quartéis, Promotorias, Magistrados6 e
outros diante das violências contra as mulheres, deixo de mencionar as
estatísticas e também a cifra oculta de delitos contra as mulheres. O fato é
que, quantas Marias da Penha foram torturadas e sofreram lesões até a
morte e cárcere privado diante da aceitação do sistema penal? O estigma da
mulher como sujeito passivo denominei de “vítima aceitável”7. O que quero

5 HERMANN, Leda Maria. Maria da Penha com Nome de Mulher. Campinas: Servanda, 2007, p. 13 e
segs.
6 Sobre a influência das metarregras/estigmas nas decisões dos magistrados, veja-se, por exemplo, o

excelente trabalho de ALMEIDA, Camila Martins de. Estigmas como Metarregras da Atuação
Jurisdicional. In: Revista Jurídica Themis. Edição n. 19 – Curitiba: Centro Acadêmico Hugo Cimas,
2007/2008, p. 141-149. Sobre os estigmas e a questão das drogas: RANGEL, Paulo e Carlos Roberto
Bacila. Comentários Penais e Processuais Penais à Lei de Drogas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. Se
pensarmos bem, de que adianta tanto progresso na dogmática penal e processual penal se a
seleção de pessoas para o sistema penal é vinculada a estigmas?
7 BACILA, Carlos Roberto. Estigmas: Um Estudo Sobre os Preconceitos. Op. cit., p. 125 e seguintes. Por

outro lado, na qualidade de autora, convencionei designar a mulher de ‘autor insuspeito’. O


simbolismo em torno de ser ‘autor insuspeito’ é que a mulher perde a qualificação de ser humano

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dizer com isto é que uma lesão praticada em situação doméstica,


desafortunadamente, por mais atroz que seja, é mais aceitável do que
qualquer outra. Novidade? Nenhuma. Só que se os policiais tivessem
orientação em suas academias de que na atividade policial não se deve
deixar conduzir por metarregras estigmas, se isto fizesse realmente parte da
consciência policial, haveria tanto descuido no caso em discussão? Acredito
que não. As mesmas precauções usuais em outras crises policiais seriam
adotadas e, se houvesse falhas, o que é humano e aceitável, seriam as falhas
comuns que acontecem, como, por exemplo, numa troca de tiros na
tentativa de defender o refém atingir o próprio refém.
Estigma do Criminoso. Conforme declarações do comandante da
Operação, Lindemberg: “Não possuía antecedentes criminais”. Na ausência
do estigma do criminoso o tratamento policial relaxou. Se Lindemberg tivesse
praticado alguns furtos e roubos, ele seria considerado um delinqüente que
merecia toda a energia policial. Não seria como um jovem adolescente que
precisava de todas as chances para sair vivo e responder pelos seus atos.
Responderia sim pela sua conduta de vida. A aparência também pode ter
contribuído para o relaxamento diante das violências cometidas por
Lindemberg, isto é, ele não tinha a ‘típica expressão de criminoso’. O
Sistema Penal de Hitler, por exemplo, defendeu a pena de morte para
pessoas que apresentassem horríveis defeitos corporais, independentemente
de terem praticado crimes graves ou não8. O nazismo tornou oficiais regras
de estigmas (e fez toda a Alemanha perecer com isto), enquanto que
atualmente, no sistema penal os estigmas atuam como metarregras.
Por outro lado, quando não recaem estigmas sobre o suspeito, ele
torna-se “invisível” para o crime. Assim, por exemplo, o serial killer de
Grenn River em Seatle, nos Estados Unidos, foi descoberto logo após matar
as três primeiras vítimas, mas como ele era branco, casado, empregado,

pleno, isto é, não seria ‘tão capaz’ de praticar um crime tanto quanto o homem, na visão
estigmatizadora (Op. cit., p. 122 e segs.).
8 Assim como queriam os nazistas condenar as pessoas pela conduta de vida, raça, aparência, etc.
(CONDE, Muñoz Francisco. Edmund Mezger e o Direito Penal de seu Tempo. Estudos Sobre o
Direito Penal no Nacional-Socialismo. Tradução de Paulo César Busato. Rio de Janeiro: Editora
Lumen Juris, 2005, p. 180. Na referida página, transcreve-se parte do acordo dos Promotores
Gerais da Baviera, no ano de 1944: “Nas diferentes visitas aos centros penitenciários se observam
sempre reclusos que, por sua constituição corporal, nem sequer merecem o nome de pessoas;
parecem abortos do inferno. Seria desejável que se lhes fotografasse. Também deveria ponderar-
se sua eliminação, independentemente da gravidade do delito e da pena a que hajam sido
condenados. Só devem exibir-se as fotografias que permitam ver claramente a deformidade.”).

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possuía automóvel, etc., não foi levado a sério. Precisou matar em torno de
setenta mulheres (note bem: mulheres + prostitutas) e esperar décadas até a
ciência descobrir o método de leitura do DNA9 para “descobrir” o autor.
Mas se as suspeitas fossem levadas a sério na época, uma testemunha que
quase foi morta por ele e o reconheceu, e a vigilância sobre o assassino
teriam produzido provas suficientes para incriminá-lo e proteger as vítimas
potenciais.
Com isto, quero dizer que na ausência do estigma do criminoso,
Lindemberg fez o que quis e ficou “invisível para o crime”. Afinal, ele “não
era parecido com um criminoso”.
Escolhi o título para este artigo como o “Fantasma de Lindbergh...”
para relembrar o trágico seqüestro do recém-nascido filho de Charles
Augustus Lindbergh que fez a mais famosa travessia aérea de Nova York a
Paris no avião monomotor Spirit of St. Louis. No referido seqüestro,
Lindbergh assumiu a investigação paralela ao trabalho policial10, mas depois
de um empenho descomunal dele e da polícia e de pagamento de resgate
descobriu-se que o seu filhinho morrera logo após o seqüestro. O suspeito
de tão monstruoso crime, Bruno Richard Hauptmann, foi preso e
condenado à morte na cadeira elétrica. Ele jurou inocência e as autoridades
públicas, incluindo o governador do estado, prometeram que a pena seria
comutada se ele declarasse a culpa. Mas Hauptmann preferiu morrer
alegando inocência. Até hoje existem fortes dúvidas sobre sua autoria. A
expressão “fantasma”, no caso do famoso aviador, faz alusão aos inúmeros
desencontros e fracassos que envolveram as pessoas e as instituições
públicas envolvidas, relembrado até hoje como um trauma norte-americano.
No caso brasileiro de Lindemberg, o “fantasma” simboliza as metarregras
estigmas que influenciaram a tragédia paulista, como verdadeiros
fantasmas a assombrar a atuação das autoridades públicas.

9 Acredito que no Paraná um dos primeiros casos de utilização do exame de DNA para investigação
policial foi feito quando eu presidia o Inquérito Policial de investigação do desaparecimento de
Leandro Bossi da cidade de Guaratuba e pude comprovar que a criança que havia sido localizada
e noticiada amplamente na imprensa nacional como Leandro Bossi, na verdade, não era filho dos
pais de Leandro, gerando grande comoção social ao constatar-se que se não tratava de Leandro
Bossi.
10 Sobre o tema: DOUGLAS, John e OLSHAKER, Mark. Mentes Criminosas & Crimes Assustadores. 2.ed.

Tradução de Octávio Marcondes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, p. 158-247.

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C ONCLUSÃO
1) Nas academias de polícia a inclusão de um estudo sobre as
metarregras/estigmas e o seu induzimento em erro da polícia nas
investigações e operações seria muito útil para incrementar o nível de
acertos e de solução de casos graves, protegendo as vítimas atuais ou
potenciais. A quantidade de casos para estudo é imensa, como por exemplo
literatura sobre serial killer e o caso acima tratado. 2) Na ausência de estigma
não se deve subestimar o suspeito; na presença, deve-se respeitar os direitos
humanos e conferir as mesmas oportunidades que outras pessoas,
desconstituindo ou negando o estigma. 3) A vítima deve ser protegida
sempre, independentemente de sua condição. No caso comentado, dever-se-
ia negar o estigma da mulher como ‘vítima aceitável’ por tratar-se de
conflito de relações afetivas.
Gostaria de dedicar este artigo aos meus grandes amigos de São
Paulo, Doutoras Maria Thereza Rocha de Assis Moura, Maria Elizabeth
Queijo e Ana Choukr e Doutores Maurício Zanóide, Fauzi Hassan Choukr,
Vicente Maggio, Baldan e Badaró.

B IBLIOGRAFIA
ALMEIDA, Camila Martins de. Estigmas como Meta-Regras da Atuação Jurisdicional. In:
Revista Jurídica Themis. Edição n. 19 – Curitiba: Centro Acadêmico Hugo Cimas,
2007/2008.
BACILA, Carlos Roberto. ESTIGMAS: Um Estudo Sobre os Preconceitos. 2ª edição. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2008.
Cem Horas de Agonia. Época, número 544, de 20 de outubro de 2008. Editora Globo.
CONDE, Muñoz Francisco. Edmund Mezger e o Direito Penal de seu Tempo. Estudos
Sobre o Direito Penal no Nacional-Socialismo. Tradução de Paulo César Busato. Rio de
Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005.
DOUGLAS, John e OLSHAKER, Mark. Mentes Criminosas & Crimes Assustadores. 2ª ed.
Tradução de Octávio Marcondes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
GOFFMAN, Erving. Estigma – notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed.
Tradução de Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. Rio de Janeiro: Guanabara
Koogan S.A., 1988.
HERMANN, Leda Maria. Maria da Penha com Nome de Mulher. Campinas: Servanda,
2007.
RANGEL, Paulo e Carlos Roberto Bacila. Comentários Penais e Processuais Penais à Lei de
Drogas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

159
CONSIDERAÇÕES SOBRE O
CONTROLE PENAL DAS DROGAS
M ARCELO M AYORA *

Resumo: A alternativa adotada pelo Brasil para o controle de


algumas substâncias entorpecentes é o proibicionismo. Desse
modo, a questão é remetida ao sistema penal, que, ao abordar a
partir do código crime-pena condutas absolutamente
singulares, é incapaz de considerar o contexto simbólico no
qual está inserido o fenômeno, impedindo uma abordagem que
abarque as especificidades culturais de cada caso. O artigo
procura criticar a opção proibicionista, inserindo-a no contexto
punitivo global, de modo a contribuir para a redução dos danos
causados pela chamada “guerra contra as drogas”.
Palavras-Chave: drogas – proibicionismo – contexto punitivo

I – A C ONTEMPORANEIDADE , AS T OXICOMANIAS E A O PÇÃO


P ROIBICIONISTA
Sem adentrar na discussão a respeito dos termos utilizados para
designar a contemporaneidade, fato é que estamos vivendo um momento
novo, caracterizado pelo esgotamento da Modernidade enquanto período
histórico, bem como das instituições forjadas naquele período.
Com a “morte de deus” e com o “desencantamento do mundo”, a
razão científica e as utopias revolucionárias assumiram o papel de
promover a ilusão a respeito da possibilidade de um outro mundo, em
busca do ideal de felicidade prometido pela Modernidade. Ocorre que no
início do Século XXI, sabe-se que a racionalidade científica, ao mesmo
tempo em que resolve alguns problemas, cria outros de conseqüências
desastrosas. Ademais, as utopias políticas que prometiam um mundo
melhor estão sepultadas.

*
Advogado criminalista. Especialista e Mestrando em Ciências Criminais pela PUCRS.

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O mal-estar na civilização – diagnosticado por FREUD no início do


século, que provinha de uma limitação exagerada do gozo em nome da
segurança, gerando sentimento de culpa – atualmente possui características
diferentes, o que faz com que autores da psicanálise como MELMAN falem
em uma “nova economia psíquica”, que não se baseia mais no recalcamento
dos desejos, mas, ao contrário, na obrigação de satisfazê-los. Conforme o
autor:
“Estamos no exato ponto de abandono de uma cultura, ligada à
religião, que obriga os sujeitos ao recalque dos desejos e à neurose,
para nos dirigir a uma outra em que se propagandeia o direito à
expressão livre de todos os desejos e à plena satisfação deles.”1
No mesmo sentido, refere BAUMAN:
“Os mal-estares da modernidade provinham de uma espécie de
segurança que tolerava uma liberdade pequena demais na busca
pela felicidade individual. Os mal-estares da pós-modernidade
provêm de uma espécie de liberdade de procura do prazer que
tolera uma segurança individual pequena demais.”2
O sujeito contemporâneo experimenta uma liberdade inédita, pois
desprovido de caminhos únicos a seguir e portador de infinitas
possibilidades de escolha. Ocorre que há um efeito negativo nisso tudo, pois
a ausência de limites leva à frustração, fragilizando nosso psiquismo.
Conforme LIPOVETSKI, “a sociedade hipermoderna é propriamente aquela
que multiplica ao infinito as ocasiões de experiência frustrante, ao mesmo
tempo que deixa de proporcionar os antigos dispositivos institucionalizados
para debelar esse mesmo mal”3.
As toxicomanias estão inseridas nesse contexto, com as peculiaridades
que lhes são inerentes. Fugindo desde já de qualquer visão moralista ou
demonizadora das drogas, cumpre salientar que, assim como a violência, o
uso de drogas é inerente ao fato social, constitui a civilização, não é um
resto que pode ser extirpado mediante o controle social, seja ele de qualquer
tipo. Conforme RUTH GAUER, “a questão do uso de drogas pode ser
considerada universal uma vez que são pouquíssimas as culturas que não se
utilizam de alucinógenos”4. Partir de tal pressuposto é fundamental para
não se recair no sonho ilustrado normalizador e moralizador e,
conseqüentemente, buscar ações possíveis redutoras de danos.

1 MELMAN, Charles. O homem sem gravidade. RJ: Companhia de Freud, 2003, p. 107.
2 BAUMAN, Zigmunt. Mal-estar na pós-modernidade. SP: Jorge Zahar, 2003, p. 10.
3 LIPOVETSKI, Gilles. A sociedade da decepção. SP: Manole, 2007, p. 14.
4 GAUER. Ruth Maria Chittó. Uma leitura antropológica do uso de drogas. In: Drogas: abordagem

interdisciplinar. Fascículos de Ciências Penais. Porto Alegre: Fabris, 1990.

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Na obra Mal-estar na civilização, discorrendo sobre as formas que as


pessoas utilizavam para evitar ou suportar a dor psíquica decorrente do
próprio viver, FREUD já analisava a problemática das drogas:
“O serviço prestado pelos veículos intoxicantes na luta pela
felicidade e no afastamento da desgraça é tão altamente apreciado
como um benefício, que tanto indivíduos quanto povos lhes
concederam um lugar permanente na economia de sua libido.
Devemos a tais veículos não só a produção imediata de prazer,
mas também um grau altamente desejado de independência do
mundo externo, pois se sabe que com auxílio desse ‘amortecedor
de preocupações’ é possível, em qualquer ocasião, afastar-se da
pressão da realidade e encontrar refúgio num mundo próprio, com
melhores condições de sensibilidade. Sabe-se igualmente que é
exatamente essa propriedade dos intoxicantes que determina seu
perigo e a sua capacidade de causar danos. São responsáveis, em
certas circunstâncias, pelo desperdício de uma grande cota de
energia que poderia ser empregada para o aperfeiçoamento do
destino humano.”5
Trata-se de reconhecer que o fenômeno não pode ser abordado
apenas desde a perspectiva do controle penal, pois é complexo e cumpre
funções positivas do ponto de vista societal.
Na contemporaneidade ocorreu uma transformação significativa na
questão da drogadição. Nos anos 60 e 70 o uso de substâncias entorpecentes
estava inserido em um campo simbólico contracultural, de negação da
ordem posta e da busca por um mundo novo, através das possibilidades de
sensibilidade e percepção da realidade proporcionada pelas drogas. O
desejo de um mundo novo se articulava com a demanda de transformação,
com a busca de um outro hábitat possível no real do mundo. A construção
simbólica se articulava, pois, com o metabolismo mágico das drogas,
oferecendo então para estas um chão seguro onde as individualidades
pudessem fincar seus pés no real6.
A ética transdisciplinar proporciona um local de diálogo entra a
ciência e a arte e, nesse rumo, ninguém melhor do que CAIO FERNANDO
ABREU para contribuir no debate, eis que em suas obras estão as impressões
de quem vivenciou o desencantamento do momento abordado. O autor
realiza análise que tem incrível potencial para compreensão do ponto
nevrálgico no qual se diz que “o sonho acabou”, descrevendo com precisão

5 FREUD, Sigmund. Mal-estar na civilização. RJ: Imago, 1997, p. 27.


6 BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade. A psicanálise e as novas formas de subjetivação. RJ:
Civilização Brasileira, 2000.

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a crise da contracultura diante da perda do ideal que iluminava tal projeto


libertário. Em um conto chamado O Mofo, dois amigos dialogam sobre o
passado:
“(...) ai que gracinha nossos livrinhos de Marx, depois Marcuse,
depois Reich, depois Castañeda, depois Laing embaixo do braço,
aqueles sonhos tolos colonizados nas cabecinhas idiotas, bolsas na
Sorbonne, chás com Simone e Jean Paul nos 50 em Paris, 60 em
Londres ouvindo here comes the sun here comes the sun little
darling, 70 em Nova York dançando disco-music no Studio 54, 80 a
gente aqui, mastigando essa coisa porca sem conseguir engolir
nem cuspir nem esquecer esse azedo na boca. Já li tudo, cara, já
tentei macrobiótica psicanálise drogas acupuntura suicídio ioga
dança natação cooper astrologia patins marxismo candomblé boate
gay ecologia, sobrou só esse nó no peito, agora faço o quê?”7
Atualmente, vivemos num mundo sem ideologias, sem deus e sem
projeto, e a nova economia psíquica impõe ao sujeito uma outra forma de
subjetivação. Na sociedade do espetáculo, o que interessa é a imagem, a
performatividade na cena social. A interioridade é silenciada em detrimento
de uma existência espetacular. Desta forma, “o sujeito desdobra-se nas
idéias de exterioridade e teatralidade. Voltada para a existência espetacular,
a individualidade se configura pelos gestos constitutivos de seu
personagem e de seu mise-en-scène”. O presenteísmo faz com que a memória
reste esquecida, e com ela a experiência. Por outro lado, perde-se a
dimensão do devir, pois o que importa é a imediatez do momento8.
Ademais, ao tecer comentários sobre características da atualidade,
não se pode olvidar da cultura do consumo, que faz com que as pessoas
vivam cercadas de objetos, coisificando inclusive relações humanas. O
imperativo do consumo oferece todo o tipo de possibilidades imagináveis,
exceto a possibilidade de não consumir, ao mesmo tempo em que o prazer
proporcionado pelos objetos adquiridos é fugaz, pois logo outro mais
avançado já foi lançado no mercado. Além disso, podemos notar que as
expectativas de consumo são parecidas em todas as classes sociais – se é que
ainda é possível falar nesses termos – ou seja, todos querem mais ou menos
as mesmas coisas, não obstante as maiores ou menores possibilidades de
obtê-las.
É nesse contexto que se pode compreender as toxicomanias. As
drogas perderam o potencial simbólico, contestador e contracultural de

7 ABREU. Caio Fernando. Morangos Mofados. RJ: Agir, 2005, p. 27.


8 Ibidem.

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outrora, sendo atualmente decorrência lógica do próprio modo socialmente


aceito de viver. Conforme BIRMAN:
“De caminho experimental para a busca de outros horizontes
existenciais para as individualidades, as drogas passaram a ser os
meios privilegiados para aquelas lidarem com o que há de
insuportável em suas misérias psíquicas e com o mal-estar da
contemporaneidade.”9
Além disso, a rápida difusão dos psicofármacos e o direcionamento
biologizante da psiquiatria, calcado em uma lógica etiológica, geraram uma
nova forma de o Ocidente se relacionar com a dor psíquica. Desta forma, o
sofrimento inerente à vida humana, decorrente de perturbações como
desilusões de amor, estresse no trabalho ou morte de um ente querido
(luto), é equacionado a partir de medicalização. Ocorre que sofrer também é
uma experiência necessária e enriquecedora, não sendo recomendável que a
pessoa passe por tal momento dopado. MELMAN, ao analisar a psiquiatria
diante da nova economia psíquica, refere o seguinte:
“Os médicos, e em particular os psiquiatras, infelizmente se
tornaram servidores do poder. (...) Mas entre nós, os médicos,
antes de estarem a serviço do doente, estão hoje a serviço do
imperativo social. O qual, retomemos nosso exemplo, diz que o
paciente não tem nem o tempo, nem o direito, nem a possibilidade
de fazer um luto: é preciso que ele esteja no seu posto de trabalho.
E, se não está, é porque está doente, então lhe damos drogas.
Drogas que o impedem de fazer seu luto, que o mumificam. (...) O
que o poder quer doravante obter dos médicos é isso. (...) Não é
necessário que a ordem seja explícita. É próprio doente que
formula espontaneamente uma tal demanda, que lhe é inspirada
por todo um sistema que faz pressão sobre ele. A mãe de família
vem ver o psiquiatra e ele diz: ‘Mas é preciso que eu cuide dos
meus filhos. É preciso que eu cuide do meu marido, senão ele vai
me deixar! E tenho minha mãe que está doente...’ E respondemos
sua demanda.”10

9 BIRMAN, p. 239.
10 MELMAN. Ob. cit., pp. 101/102. No mesmo sentido, refere Birman: “Nesse contexto, a
psicofarmacologia fornece os instrumentos básicos para que essas individualidades possam se
inscrever nos trâmites brilhosos da cultura do narcisismo. Os psicofármacos, pelo enorme efeito
antidepressivo e tranqüilizante, visam a transformar esses miseráveis e sofredores em seres
efetivos da sociedade do espetáculo. Com isso, silenciam-se as cavilações pesadas e as ruminações
‘excessivamente interiorizadas’ dos deprimidos, e eles são transformados em seres ‘legais’ do
universo espetacular” (BIRMAN. Ob. cit., p. 247). Ainda que a arte muitas vezes transgrida o
“clima” de uma época, em outras traduz poeticamente aquilo o que em determinada

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Daí dizer que o fenômeno do narcotráfico, construído pela


criminalização da venda de certas drogas, é uma continuidade do já exposto
– medicalização psiquiátrica – pois o que está em jogo é evitar a dor
psíquica. Novamente BIRMAN:
“É por esse viés que podemos apreender as relações secretas e
perigosas entre as ditas drogas pesadas e as supostas drogas
medicamentosas, isto é, entre a indústria do narcotráfico e a
grande indústria farmacêutica. É verdade que a primeira se
inscreve numa rede mafiosa, embora apresente uma face legal e
visível, enquanto a segunda é legalizada e permeada pelos valores
humanistas da medicina. Entretanto, é evidente que as duas se
complementam de maneira harmoniosa e quase perfeita, pois em
ambas é o evitamento de qualquer sofrimento psíquico pelo sujeito
que está em pauta, nas condições atuais do mal-estar na
civilização.”11
Apesar de tal afirmação ser adequada desde certo aspecto, parece
necessário relativizá-la. É que a drogadição não possui sentido único, mas
um sentido fluído. Por isso, o ato adquire sentido apenas quando o
relacionamos com o sujeito que o está praticando, bem como o situando na
temporalidade. O uso de drogas insere-se em contextos simbólicos,
referentes aos diferentes grupos humanos que as utilizam, o tipo de droga
que é utilizado e o contexto no qual o ato é praticado. Com a crise da
contracultura, a drogadição não tem mais o sentido de outrora, mas isso não
significa que possua um único sentido, tampouco nenhum sentido.
Ocorre que a alternativa adotada pela grande maioria dos países do
mundo para o controle de algumas substâncias entorpecentes é o
proibicionismo, que parte de um pressuposto de que o direito é instrumento
de engenharia social. Desse modo, a questão é remetida ao sistema penal,
que, ao abordar a partir do código crime-pena condutas absolutamente
singulares, é incapaz de considerar o contexto simbólico no qual está
inserido o fenômeno da drogadição, impedindo uma abordagem complexa.
O controle penal das drogas está inserido no mesmo projeto
audacioso das ciências criminais, que por sua vez está inserido no projeto

temporalidade as pessoas estão vivenciando e sobre o que os intelectuais estão teorizando. Neste
sentido, o “pedido de socorro” de Arnaldo Antunes parece refletir bem essa mumificação da
existência contemporânea: “Socorro não estou sentindo nada, nem medo, nem calor, nem fogo,
nem vontade de chorar, nem de rir. (...) Socorro alguém me dê um coração, que este já não bate
nem apanha, por favor, alguma emoção pequena, qualquer coisa, qualquer coisa que se sinta, têm
tantos sentimentos deve ter algum que sirva”.
11 BIRMAN, p. 243.

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da Modernidade, de “dominar a natureza humana, controlando sua


agressividade e suas paixões, para conquistar uma condição social de
convívio pacífico, sem violência e delitos”12. O narcisismo do direito penal
chega ao extremo de acreditar que pode impor às pessoas o ideal de
abstinência em relação aos prazeres proporcionados pelas substâncias
psicoativas. Consoante MARIA LÚCIA KARAM, “pregar a abstinência do
consumo de substâncias psicoativas como forma ideal de evitar danos a elas
relacionados equivale a pregar a abstinência sexual como forma ideal de
evitar doenças sexualmente transmissíveis”13.
Os mensageiros da “bondade” revelada pela “Verdade” da qual são
portadores pretendem “melhorar a humanidade”, livrar os “fracos” do
demônio concretizado na figura da droga e do traficante14. Conforme SALO
DE CARVALHO, “o ideal ascético de pureza, abstinência e tédio, ao pressupor
sua virtude em garantir à humanidade maior segurança e imunidade aos
riscos, define nova perspectiva moralizadora e anti-secular”15. O
proibicionismo só pode ancorar-se em visão moralizante, pois, do ponto de
vista da saúde pública, não é possível sustentar os critérios utilizados para
definir quais substâncias são proibidas16.
Nesse sentido, antes de se realizar a crítica ao modelo de
criminalização adotado, necessário questionar a própria idéia de
criminalização17. Tal recurso interpretativo é válido para que não se parta de

12 CARVALHO. Antimanual de Criminologia. RJ: Lumen Juris, 2008, p. 166.


13 KARAM, Maria Lúcia. Políticas de drogas: alternativa à repressão penal. In: Revista Brasileira de
Ciências Criminais, n.47. SP: RT, 2004, p. 367.
14 Tais afirmações têm clara inspiração na filosofia de Nietzsche, na utilização das ferramentas do

filósofo como forma de abordar os problemas.


15 CARVALHO. A Política Criminal de Drogas no Brasil. Ob. cit., p. 290.
16 Crê-se que tal perspectiva moralizante e demonizadora das drogas é o caldo de cultura no qual a

proibição legitima-se. Contudo, sabe-se que as funções reais do proibicionismo em muito diferem
das funções expressas, pois, em realidade, a proibição tem como escopo principal proporcionar às
agências punitivas um espaço de poder ilimitado (poder configurador) no qual é possível
controlar de maneira eficaz as denominadas “classes perigosas”, representadas atualmente pelos
grupos de jovens moradores das periferias do Brasil e do mundo.
17 Neste sentido, vale citar que o Brasil está implantando um novo modelo de gerenciamento de

produtos controlados, chamado de Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados,


desenvolvido pela Anvisa e pela Secretaria Nacional Antidrogas. Na última revista do Conselho
Federal de Farmácia há um informativo sobre o sistema, cujos principais pontos seguem
transcritos: “– Introdução: o modelo de controle adotado, atualmente, pelo Governo brasileiro, herdado pela
Anvisa, baseado somente na publicação de regulamentos técnicos, sem a implementação de uma estrutura
técnico-operacional capaz de acompanhar os avanços tecnológicos, dificulta o cumprimento de metas e
acordos internacionais de monitoramento e controle de consumo desses produtos. É necessário, portanto,
responder de forma efetiva à sociedade, fortalecendo a ação de inspeção dos órgãos competentes, frente ao uso
abusivo e indiscriminado dos medicamentos entorpecentes, psicotrópicos e seus precursores. Tal demanda
motivou a Anvisa a iniciar o desenvolvimento do Sistema Nacional para Gerenciamento de Produtos

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uma resposta positiva em relação à necessidade de proibição, pois a


proposta de ‘melhoramento da humanidade’ – que tem como pressuposto
uma concepção linear de tempo cujo ponto culminante é a “felicidade” – na
qual está inserido o direito penal, parece ter produzido insustentável
situação de violência. Nessa passada, vale citar as lições de ZAFFARONI:
“(...) pode-se afirmar que a história do poder punitivo é a das
emergências invocadas em seu curso, que sempre são sérios
problemas sociais. (...) o poder punitivo pretendeu resolver o
problema do mal cósmico (bruxaria), da heresia, da prostituição,
do alcoolismo, da sífilis, do aborto, da rebelião, do anarquismo, do
comunismo, da dependência de tóxicos, da destruição ecológica,
da economia informal, da especulação, da ameaça nuclear, etc.
Cada um desses conflitivos problemas dissolveu-se, foi resolvido
por outros meios ou não foi resolvido por ninguém, mas nenhum
deles foi solucionado pelo poder punitivo. Entretanto, todos
suscitaram emergências em que nasceram ou ressuscitaram as
mesmas instituições repressoras para as quais em cada onda

Controlados (SNGPC), que é um instrumento informatizado para captura e tratamento de dados sobre
produção, comércio e uso de substâncias ou medicamentos sujeitos a controle especial. Em sua fase inicial, o
Sistema possibilitará um controle efetivo da movimentação da dispensação (entradas e saídas) dos
medicamentos sujeitos ao controle especial, conforme o regime da Portaria nº SVS/MS 344/98 e Portaria
SVS/MS 06/99, e suas atualizações, nas drogarias e farmácias comerciais do País. – Objetivos: gerar
informação fidedigna e atualizada sobre a comercialização e uso de medicamentos e substâncias sobre
controle especial; aperfeiçoar o processo de escrituração em drogarias e farmácias comerciais; dinamizar as
ações e fiscalização da vigilância sanitária dirigida por dados, informação e conhecimento; permitir a
rastreabilidade de produtos e substâncias controladas; permitir o monitoramento permanente. – O sistema: o
desenho informático do SNGPC adotado nesta versão privilegia a adoção de padrões na transmissão de
dados proporcionando meios de realizar a escrituração das movimentações, de forma totalmente digital e
buscando a integração com os sistemas de gerenciamento já existentes nas farmácias. Para garantir esta
característica, foi estabelecido um padrão de transmissão de dados, com o qual os sistemas das farmácias e
drogarias deverão ser compatíveis para permitir a transmissão eletrônica à Anvisa. Cada estabelecimento
deverá ter um programa de computador que irá adaptar um software já existente, de acordo com os manuais
disponíveis no hotsite do SNGPC. O Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados
(SNGPC) vai possibilitar a transmissão eletrônica, via internet, que é adaptável a qualquer tipo de
estabelecimento e condições de operação. Basta, apenas, a existência de um computador com capacidade de
conexão e uma linha telefônica. O responsável pela farmácia ou drogaria deverá repassar dados sobre
compra, venda, transferência e até perda de medicamentos, com detalhes como nome do médico prescritor e
do estabelecimento distribuidor, forma farmacêutica, concentração, quantidade na embalagem, lote, classe
terapêutica, estado físico e unidade de medida dos produtos. O SNGPC é constituído por um ambiente de
recebimento de dados da Anvisa. Estes dados deverão conter as movimentações diárias de medicamentos e
substâncias sujeitas a controle especial que deverão ser enviadas eletronicamente para a Anvisa” (Revista
Pharmacia Brasileira, publicação do Conselho Federal de Farmácia. Ano XI, número 63, janeiro e
fevereiro de 2008). Não se desconhece que trata-se de modelo que recém está sendo implantado.
Contudo, em razão da tecnologia empregada, pode, no mínimo, indicar que existem outras
possibilidades para o controle das drogas, aptas a produzir menos custos humanos e mais
efetividade reguladora do que a guerra.

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emergente se apelara, e que não variam desde o século XII até a


presente data.”18
Enquanto subsistema do sistema penal, o controle penal das drogas
deve ser questionado em seu próprio fundamento, ou seja, é necessário
perguntar se a proibição, diante de tudo o que já se sabe sobre a atuação das
agências punitivas, é a melhor forma de gestão da problemática.

II – O C ONTEXTO P UNITIVO
Antes de adentrar na problemática do proibicionismo e de suas
conseqüências, necessário inseri-la em um contexto maior, que diz respeito
à atual configuração da resposta punitiva em âmbito mundial, caracterizada
por diversas transformações, tanto de grau quanto de qualidade. É vasta a
literatura criminológica que denuncia que a punição contemporânea possui
funções diferentes daquelas observadas no passado. Isso porque, conforme
JACK YOUNG:
“A transição da modernidade à modernidade recente pode ser
vista como um movimento que se dá de uma sociedade inclusiva
para uma sociedade excludente. Isto é, de uma sociedade cuja
tônica estava na assimilação e na incorporação para uma que
separa e exclui.”19
A análise macrocriminológica mais difundida, ancorada em fatores
econômicos presentes no atual momento do capitalismo – globalização
neoliberal – dispõe que em uma sociedade na qual nem todos podem ser
assimilados ao mercado de trabalho – existindo, em razão disso, parcelas da
população que estão “sobrando” e que por isso são “descartáveis” – a
punição perde sua função corretiva de disciplinar os trabalhadores20. Por
este motivo, diz-se que estamos em uma fase pós-corretiva ou pós-
panóptica, na qual a função da pena não é mais ressocializar as massas

18 ZAFFARONI, Eugênio Raul; BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro. I. RJ: Revan. 2ª ed. 2003. p. 68.
19 YOUNG, Jack. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente.
Tradução de Renato Aguiar. RJ: Revan, ICC, 2002, p. 23.
20 Sobre o outro desviante na sociedade inclusiva, Young refere: “Trata-se de uma sociedade que

não abomina o ‘outro’, nem o vê como inimigo externo, mas muito mais como alguém que deve
ser socializado, reabilitado, curado, até ficar como ‘nós’” (YOUNG, Ob. cit., p.21). No mesmo
sentido, BAUMAN ressalta: “O controle panóptico teve uma importante função: as instituições
panópticas foram todas concebidas como casas de correção. O propósito ostensivo da correção era
tirar os internos do caminho da perdição moral em que embarcaram por vontade própria ou para
a qual foram empurrados sem culpa direta, desenvolver hábitos que por fim lhes permitiriam
retornar ao convívio da ‘sociedade normal’, interromper a ‘decadência moral’, combater e extirpar
a preguiça, a inépcia ou o desrespeito pelas normas sociais, todas essas aflições que se
combinavam para tornar os internos incapazes de uma ‘vida normal’” (BAUMAN, Zigmunt.
Globalização: as conseqüências humanas. Tradução de Marcus Penchel. RJ: Jorge Zahar, 1999, p. 117).

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desviantes para posterior inclusão na exploração capitalista, mas incapacitar


ou conter as massas excluídas que são inúteis de um ponto de vista
organicista e principal fonte das desordens do mundo contemporâneo.
Tomando como exemplo a prisão californiana de Pelican Bay, BAUMAN
refere o seguinte:
“Nesse contexto, a idéia de prisão de Pelican Bay como
continuação das primitivas casas industriais de correção, cujas
ambições, experiências e problemas não resolvidos se refletiam no
projeto do Panóptico, parece muito menos convincente. Nenhum
trabalho produtivo é feito dentro dos muros de concreto da prisão
de Pelican Bay. Também não se pretende um treinamento para o
trabalho: não há nada no projeto da prisão que permita tal
atividade. Com efeito, para os condenados, Pelican Bay não é
escola de coisa alguma – sequer de uma disciplina meramente
formal. Toda a questão do Panóptico, o propósito supremo de
vigilância constante, era garantir que o interno realizasse certos
movimentos, seguisse uma rotina, fizesse determinadas coisas.
Mas o que os internos de Pelican Bay fazem em suas celas
solitárias não importa. O que importa é que fiquem ali. A prisão de
Pelican Bay não foi projetada como fábrica de disciplina ou do
trabalho disciplinado. Foi planejada como fábrica de exclusão e de
pessoas habituadas à condição de excluídas.”21
Na América Latina sabemos que a pena nunca cumpriu as funções as
quais se propôs discursivamente, tendo sido sempre apenas um fato de
poder22. A questão que se alterou diz respeito à outrora necessária
legitimação discursiva, ou seja, notório que a pena nunca cumpriu função
ressocializadora, mas em outros tempos necessitava legitimação a partir
desse argumento. Na contemporaneidade sequer a legitimação discursiva é
necessária, pois “o poder político não dispõe de força para conceder
hegemonia a algum discurso coerente; por sua vez, o poder econômico não
precisa dele, porque, pela primeira vez, é exercido sem qualquer mediação
do poder político”23.
Diante da crise do Estado Social, ou seja, da incapacidade estatal em
promover aos cidadãos as condições mínimas de sobrevivência, há uma
tendência em direcionar o tratamento da questão da pobreza à resposta
penal, a partir do encarceramento massivo e dos mecanismos de controle

21 BAUMAN. Ob. cit., p. 121.


22 ZAFFARONI, Eugênio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal
Brasileiro. RJ: Revan, 2003, p. 99.
23 Ibidem, p. 268.

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social ligados ao sistema penal, como a enorme discricionariedade


verificada na atuação da polícia, sobretudo nas periferias, tudo indicando
que estamos caminhando rumo ao que WACQUANT denominou de
“ditadura sobre os pobres”24. Conforme o mesmo autor, o paradoxo da
penalidade neoliberal é o seguinte:
“Pretende remediar com ‘mais Estado’ policial e penitenciário o
‘menos Estado’ econômico e social que é a própria causa da
escalada generalizada de insegurança objetiva e subjetiva em todos
os países, tanto do Primeiro como do Segundo Mundo.”25
Crê-se que no Brasil as teorias sobre a crise do Estado Social devem
ser estudadas e aplicadas com cautela, eis que é complicado pensar que algo
que nunca existiu possa ter entrado em crise. Ao contrário da situação dos
países europeus, que tiveram uma época “dourada” em termos de atuação
do Estado Social, em nosso país tal modelo de atuação estatal nunca foi
construído. Aliás, diante dos diversos programas sociais implementados
nos últimos anos, possível afirmar que o Estado Social brasileiro nunca foi
tão presente quanto atualmente. Assim, a equação “menos Estado Social”
“mais Estado Penal”, não se aplica de maneira absoluta, pois nosso Estado
Punitivo expande-se paralelamente à expansão do Estado Social.
Não obstante, a “ditadura sobre os pobres” pode ser observada
empiricamente com um simples olhar sobre a população carcerária,
constituída por aquela parcela da população sobre a qual recai o estereótipo
de criminoso – eventuais prisões em relação aos delitos de colarinho branco
servem para confirmar a regra. Em realidade, estamos assistindo a uma
escalada punitiva, que concretiza-se com uma atuação policialesca genocida
e com um encarceramento massivo, sendo os selecionados colocados em
presídios superlotados e que apresentam condições inaceitáveis. Em nossa
cidade, a poucos minutos de nossa “Escola de Criminologia”, temos o
Presídio Central de Porto Alegre, que segrega 4.235 homens amontoados
em 1.565 vagas.
Por outro lado, considerando que o maior poder do sistema penal não
reside na pena – desde a constatação de SUTHERLAND a respeito da cifra
oculta sabe-se que apenas uma parcela ínfima dos crimes cometidos são
apurados, passam por toda a persecução e resultam na aplicação de uma

24 WACQUANT, Löic. As prisões da miséria. Tradução de André Telles. RJ: Jorge Zahar, 2001, p. 7. No
mesmo sentido, leciona Rivera Beiras: “La tendência es clara: gestion punitiva de la pobreza, mercado
econômico de total flexibilización, criminalización cada vez mayor de la disidencia y reducción del Estado.
(RIVERA BEIRAS, Iñaki. Historia y legitimación del castigo. Hacia donde vamos? In: Sistema Penal
y Problemas Sociales. Org. BERGALI, Roberto. Valência: Tirant lo bllanch, 2003, p. 125.
25 WACQUANT. Ob. cit., p. 7.

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pena26 – mas sim no poder de vigiar e controlar movimentos27, claro está que
é sobre a parcela menos favorecida da população que tal poder atua
constantemente, por meio de verificações policiais sobre o corpo (revistas) e
observação constante de determinadas áreas.
O paradoxo é que tal fenômeno ocorre com a aprovação daqueles
sobre quem toda sua violência recai, pois:
“Nas sociedades mais desfavorecidas pela globalização, como
as latino-americanas, a exclusão social constitui o principal
problema, pois não costuma ser controlada por repressão direta,
mas sim neutralizada, o que aprofunda as contradições internas. A
mensagem vindicativa é funcional para reproduzir conflitos entre
excluídos, pois os criminalizados, os vitimizados e os policizados
são recrutados nesse segmento, ocorrendo uma relação inversa
entre a violência dos conflitos entre eles e a capacidade de coalizão
e protagonismo desses mesmos atores.”28
A problemática da proibição da venda de drogas e da conseqüente
formação de um mercado ilegal em torno do produto, bem como do
controle penal que atua sobre este, está inserida no contexto punitivo
exposto, mas possui especificidades que merecem abordagem própria.

III – O P ROIBICIONISMO E O T RÁFICO DE D ROGAS


A conseqüência de qualquer proibição da venda de determinado
produto que possui um mercado correspondente sempre foi o surgimento
de um empreendimento ilícito, que conduz suas atividades empresariais à
margem dos marcos regulatórios estatais, sendo sua repressão realizada
através da atuação das agências punitivas. Tal negócio deve ser,
obviamente, organizado – assim como qualquer outra sociedade empresária
que pretenda lucro – surgindo daí a expressão “crime organizado”.
Em relação ao tráfico de drogas, produziu-se conhecimento no
mundo inteiro sobre o funcionamento da atividade. Sabemos como e onde
se dá a produção, como é feita a distribuição e como é realizada a venda a
varejo. Também sabemos que é condição sem a qual o negócio não funciona
a corrupção de agentes públicos, mormente de policiais, estejam eles nas
fronteiras nacionais por onde a droga tem que passar, estejam eles

26 SUTHERLAND, Edwin. El Delito de Cuello Blanco. Madrid: La piqueta, 1999.


27 ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA, SLOKAR. Ob. cit., p. 98.
28 ZAFFARONI, Eugênio Raul. O Inimigo no Direito Penal. Tradução de Sérgio Lamarrão. RJ, Revan,

2007, p. 72.

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reprimindo o traficante varejista29. Portanto, o modus operandi do tráfico de


drogas é informação banalizada.
No Brasil, a venda final do produto para o consumidor acontece
principalmente em “firmas” organizadas nas periferias. Ocorre uma
distribuição de tarefas, com chefes e funcionários, cada um com específica
função. É sabido que no Rio de Janeiro cada favela possui um “dono”,
ligado a uma organização mais ampla, sendo as mais conhecidas o
“Comando Vermelho”, o “Terceiro Comando” e os “Amigos dos Amigos”30.
Em São Paulo, não obstante tenha surgido como movimento de resistência
em relação ao genocídio em andamento nos cárceres daquele estado, sabe-se
que o Primeiro Comando da Capital (PCC) também comanda diversos
pontos de vendas de droga, havendo, inclusive, ajuda mútua entre
Comando Vermelho e Primeiro Comando da Capital31. No Rio Grande do
Sul e, mais especificamente, em Porto Alegre, não se possui tanto
conhecimento sobre o comércio de drogas, mas, em primeira análise, é
possível afirmar que existem mais grupos atuando, sendo a organização
menos centralizada e mais fragmentada, havendo um ou mais grupos
atuando em cada localidade.
A questão complexifica-se na medida em que o tráfico de drogas
representa meio de subsistência de parcela considerável da população

29 Nesse sentido, MICHEL MISSE nos fornece importante chave de leitura sobre a questão da
corrupção policial e do tráfico de drogas, utilizando o conceito de ‘mercadorias políticas’: “Se
todo mercado informal está necessariamente sujeito ao custo político de sua insubmissão à
regulamentação estatal, o mercado informal que negocia com mercadorias ilícitas é
fundamentalmente constituído, em seus custos e em seus benefícios, pela lógica de sua dupla
ilegalidade. É um mercado criminalizado mais amplo que surge necessariamente quando seu
núcleo informal mais visível se expande. Não há como dissociar, funcionalmente, a expansão
regular do comércio de mercadorias ilegais, o emprego da violência na base das relações de poder
e a expansão do mercado potencial de mercadorias políticas. Diferentes redes sociais de violência
e transação atravessam seja o ‘território’, seus agentes criminais e sua população, seja os agentes
encarregados pelo Estado de prover a ordem pública e a preservação efetiva do monopólio do
emprego legítimo de violência. Enquanto ‘agência formal’, o Estado não foge, entretanto, às
mesmas condições econômicas que podem impor a seus agentes o estabelecimento de um
mercado informal de serviços e mercadorias, cujo fundamento seja exatamente o controle,
individualizado e ilegal, dos meios de administração da violência que a posição de agente do
Estado dá acesso. A ‘economia da corrupção’ constitui, assim, outras redes de economia informal
ilegal, que, diferentemente das redes de tráfico, negocia com ‘mercadorias políticas’ ilícitas e não
apenas com mercadorias econômicas criminalizadas” (MISSE, Michel. Crime e Violência no Brasil
Contemporâneo. Estudos de Sociologia do Crime e da Violência Urbana. RJ: Lumen Juris, 2006, p.
199.
30 Sobre o tema, entre várias outras obras, ver: BARCELOS, Caco. Abusado. O Dono do Morro Dona

Marta. RJ: Record, 2003.


31 CALDEIRA, César. Crack no Rio de Janeiro. In: Revista de Estudos Criminais, n.17. Sapucaia do Sul:

Notadez/!TEC, 2005, p. 122.

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pobre. Além disso, dada a completa ausência do braço social do Estado na


maioria das comunidades, que conhecem apenas o braço armado da
atuação estatal, e da conseqüente negatividade da imagem de que goza o
Estado em tais locais, somada à ajuda material muitas vezes prestada pela
organização dos traficantes, ocorrem fenômenos que não devem ser
desconsiderados, tampouco analisados sob a ótica da simplificação
moralista, como o caso do traficante que foi aplaudido ao sair preso de cerco
realizado pela Brigada Militar na Vila Areia, em Porto Alegre32.
O recrutamento dos funcionários do empreendimento ilícito ocorre
nas camadas mais pobres da população. Contudo, é reducionismo crer que
se trata apenas da opção pelo lucro fácil. Nesse sentido, as lições da
antropóloga ALBA ZALUAR são fundamentais para entendermos como se dá
essa dinâmica:
“Todavia, a repetição de certos arranjos e associações
simbólicas relacionando o uso da arma de fogo, o dinheiro no
bolso, a conquista das mulheres, o enfrentamento da morte e a
concepção de um indivíduo completamente autônomo e livre
adquiriam uma forma que permitia vincular a violência a um etos
de masculinidade que, posteriormente, consideramos um etos
guerreiro, tal como exposto por N. ELIAS. Nesse etos, era central a
idéia de chefe, ou de um indivíduo absolutamente livre, que se
guiava apenas ‘por sua cabeça’. (...) Junto a outras crianças e
adolescentes morrem numa ‘guerra’ pelo controle do ponto de
venda, mas também por quaisquer motivos que ameacem o status
ou o orgulho masculino dos jovens em busca de virilidade – do
‘sujeito homem’ como afirmam.”33

32 Reportagem veiculada no site Clicrbs. Acesso em 10 de novembro de 2007.


33 ZALUAR, Alba. Um debate disperso. Violência e crime no Brasil da redemocratização. In: São Paulo
em Perspectiva, n.13, 1999, p. 12. No mesmo sentido, o capítulo “Não filma eu chorando”, do livro
“Cabeça de porco”, de Luis Eduardo Sores, Celso Athaide e MV BILL (SOARES, Luis Eduardo;
ATHAÍDE, Celso; MV Bill. Cabeça de Porco. RJ: Objetiva, 2005, p. 134/139). Ainda, a entrevista de
Juliano VP, personagem que representa o traficante Marcinho VP, importante membro do
Comando Vermelho: “Noventa por cento das pessoas da favela ganham o salário mínimo. Ninguém
consegue viver com isso. A cesta básica custa 114 reais. O tráfico funciona como inibidor dessas
necessidades. (...) Eu sou um cara de harmonia. Sou um profissional do meu trabalho. Eu me sinto
preocupado e não poderoso. Quero paz no meu morro e não quero que ninguém venha tomá-lo.
Não sou um Robin Hood, sei que faço o errado. Acho que os pobres da favela representam hoje
um novo Quilombo dos Palmares, a encarnação de Zumbi, e somos perseguidos injustamente.
Quero passar a todos os jovens – do movimento ou não – a idéia de justiça social. Como eu sou
nascido e criado no morro e ajudo os mais necessitados, acabo reconhecido pelo meu trabalho. Eu
gosto de guerrear, mas quando é necessário. Se for preciso, não posso pensar duas vezes”
(BARCELOS, Ob. cit., p. 344). Ainda, na arte podemos encontrar exemplos desse “etos guerreiro”,
sobretudo no funk, tal como neste dos Mcs Cidinho e Doca, que fez sucesso recentemente: “Morro

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Trata-se, portanto, de uma questão cultural profunda, sobre a qual a


atuação do sistema penal apenas agudiza o sentimento de não-
pertencimento, ou de pertencimento a outro etos cultural. Diante da
violência e da perseguição constante sofrida por esses jovens por parte dos
órgãos repressivos, sua identidade estigmatizada é reforçada, produzindo
um distanciamento cada vez maior de qualquer possibilidade de integração.
Ademais, não apenas no plano simbólico são nefastos os efeitos do sistema
penal, pois é na repressão ao tráfico de drogas que se encontra a maior
explicação para o inaceitável número de homicídios que ocorrem no Brasil.
Tais mortes ocorrem, seja em razão das guerras entre grupos de traficantes
pelos pontos de venda, seja em razão dos assassinatos policiais, que
acontecem quando a propina não fica acertada ou quando há uma demanda
repressiva específica, geralmente orientada pela mídia.

IV – A E XCEÇÃO P ERMANENTE NA “L UTA C ONTRA O M AL ”


A história do poder punitivo é caracterizada pelo constante apelo à
produção de emergências, problemas sérios e urgentes que só podem ser
resolvidos a partir de sua atuação. Tais questões não surgem por acaso, mas
são acompanhadas pela construção social do perigo e, conseqüentemente,
do perigoso, ou seja, daquele mal que deve ser extirpado da sociedade,
“custe o que custar”. Conforme ZAFFARONI:
“La ideologia que rige este proceso no es unitária em cuanto a
la proclamación de sus fines políticos, es decir que, puede ser la
‘construcción del comunismo’ o la ‘defensa de la nación como
unidad biológica y espiritual’ o del ‘Estado como organismo
econômico-social’ de ‘occidente’ o de lo que fuere. Lo único que
tienen en común es una ‘lucha’, uma ‘guerra’ y una ‘necesidad’ de
defensa em función de un principio superior al que queda
sometido el hombre que, com su dignidad de persona desaparece,
ya sea porque discursivamente se niega su calidad de tal o porque
se proclama su supressión temporal como tal en función de um
resurgimiento ‘mejor’ de su personalidad en el futuro. (...) se crea,
(inventa em lo plano do real) o se magnífica um peligro social
existente, se lo extrae de contexto y se lo hace ‘penal’, se absolutiza
‘la lucha’ o la ‘guerra’ contre ese perigo y se subordina todo a esa
‘guerra’.”34

do Dendê é ruim de invadir, nós com os alemão vamos nos divertir. Porque no Dendê eu vou
dizer como é que é, aqui não tem mole nem pra DRE. Pra subir aqui no morro até a BOPE treme,
não tem mole pro exército, civil, nem pra PM”.
34 ZAFFARONI. Hacia um realismo jurídico penal marginal. Caracas: Monte Ávila Latinoamericana

Editores, 1993.

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A emergência atual é a luta contra as drogas, cuja face mais violenta é


representada pela política criminal de guerra às drogas. Por tratar-se de
uma guerra, os instrumentos utilizados escapam aos limites do Estado
Democrático de Direito, sendo violados princípios básicos de direito penal.
A tipificação dos crimes é realizada mediante uma antitécnica que abarca
condutas absolutamente díspares em um mesmo tipo, equiparando autoria
e participação, assim como atos preparatórios e condutas consumadas.
Nota-se que, em realidade, a ação não tem importância em razão da
magnitude da lesão ao bem jurídico, mas apenas revela o inimigo. No que
tange a cominação das penas, a proporcionalidade é desconsiderada, pois
ocorre uma desvinculação em relação ao bem jurídico. Para exemplificar,
tendo como parâmetro as penas abstratas, o tráfico de drogas possui a
mesma gravidade atribuída ao estupro. Segue-se a persecução com a
equiparação do tráfico de drogas aos crimes hediondos, acarretando todas
as conseqüências em sede de execução penal previstas na Lei 8.072/90,
alterada pela Lei 11.464/07. Além disso, são utilizadas de maneira
completamente desregulada as prisões cautelares, fazendo com que os
flagrados praticando tráfico de drogas comecem a cumprir a pena desde o
início do processo judicial.
Mas, para além do alargamento da persecução em sede judicial, o fato
é que a política de guerra às drogas orienta principalmente a atuação da
polícia. Nesse sentido, nem sempre é necessário prender o inimigo e
submetê-lo ao Poder Judiciário, pois, no mister de minar as forças dos
adversários, basta matá-los. Isso explica a enorme quantidade de pessoas
que a polícia brasileira mata por ano, sendo as mortes justificadas pelo
simples fato da vítima ser traficante.
Tudo isso demonstra que a repressão ao tráfico de drogas ocorre no
marco de um estado de exceção, no qual o direito está suspenso. GIORGIO
AGAMBEM, ao elaborar sua teoria sobre o estado de exceção, dispõe que este
se tornou paradigma de governo:
“Diante do incessante avanço do que foi definido como uma
‘guerra civil mundial’, o estado de exceção tende cada vez mais a
se apresentar como paradigma de governo dominante na política
contemporânea. Esse deslocamento de uma medida provisória e
excepcional para uma técnica de governo ameaça transformar
radicalmente – e, de fato, já transformou de modo muito
perceptível – a estrutura e o sentido da distinção tradicional entre
os diversos tipos de constituição. O estado de exceção apresenta-

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se, nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre


democracia e absolutismo.”35
Consoante SALO DE CARVALHO:
“Importante perceber, pois, que o processo de naturalização da
exceção, com a minimização de direitos e garantias a determinadas
(não) pessoas, adquire feição eminentemente punitiva, atingindo
diretamente a estrutura do direito e do processo penal, os quais
passam a ser percebidos como instrumentos e não como freio aos
aparatos de segurança pública. Assim, dado o papel
essencialmente repressivo que adquirem os Estados na atualidade,
fato que levou inclusive a sua resignificação e adjetivação como
Estado Penal, os históricos instrumentos de contenção das
violências públicas (direito e processo penal) são convertidos, com
ruptura do seu sentido garantidor, em mecanismos agregadores de
beligerância.”36
Não se trata, portanto, de punir o fato praticado – tráfico de drogas –
mas destruir a organização criminosa responsável pela venda do produto,
que é composta tanto pelo chefe quanto pelos “aviões”, servindo estes de
instrumentos a partir dos quais informações sobre os líderes são obtidas,
inclusive mediante tortura. O “dique” representado pelo direito penal como
barreira à força do poder punitivo que tende sempre a alargar-se, é muito
frágil no direito penal das drogas, justamente porque o fundamento de sua
existência é a “guerra”. Como em qualquer guerra, sabe-se que não haverá
vencedores, mas apenas mortos e feridos.
O que parece claro é que a repressão às drogas ocorre às margens do
Estado Democrático de Direito, no marco de um estado de exceção, por
todos os argumentos que foram expostos. Cumpre abordar de maneira
complexa a questão, levando em consideração que a circulação de drogas na
sociedade pode eventualmente causar danos a alguma pessoa, mas sem
esquecer que a opção proibicionista pode e deve ser questionada, visto que
o direito penal sempre potencializou os problemas a que se propôs resolver.

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35 AGAMBEM, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci Poleti. SP: Boitempo, 2004, p.13.
36 CARVALHO, Ob. cit., p. 84.

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178
PRISÃO PREVENTIVA, DURAÇÃO
RAZOÁVEL DO PROCESSO E REPARAÇÃO
POR DANOS MORAIS E MATERIAIS
N ESTOR E DUARDO A RARUNA S ANTIAGO *

Sumário: Introdução; 1 – Prisão preventiva; 2 – A


responsabilidade do Estado por ato judicial: breves
considerações; 3 – A cláusula constitucional de reparação por
erro judiciário: conceito; 4 – À guisa de conclusão: a reparação
do dano pelo excesso de prazo na prisão preventiva.
Referências.
Resumo: Trata-se de trabalho em que se desenvolve a idéia de
conseqüência direta entre a decretação de prisão preventiva e a
demora na constrição da liberdade do cidadão. Levanta-se a
hipótese de o acusado que tenha cumprido a prisão provisória
obter indenização por danos morais e materiais do Poder
Público, em razão da aplicação das regras constitucionais que
prevêem o erro judiciário e a demora razoável na condução do
processo. A discussão passa, necessariamente, pela
responsabilidade do Estado por ato jurisdicional, ainda que
lícito.
Palavras-Chave: Prisão provisória. Reparação. Dano moral. Dano
material. Demora razoável do processo. Erro judiciário.

I NTRODUÇÃO
Uma das conseqüências da decretação de prisão preventiva menos
vista e debatida em doutrina e jurisprudência é a possibilidade de

* Doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre e
Especialista em Ciências Penais (UFMG). Professor de Direito e Processo Penal do Curso de
Direito da Faculdade Christus. Professor Adjunto de Direito Processual Penal da Universidade
Federal do Ceará (UFC). Professor de Cursos de Pós-Graduação. Coordenador dos Cursos de Pós-
Graduação da Fundação Escola de Advocacia do Estado do Ceará (FESAC-OAB/CE). Advogado
criminalista. E-mail: nestorsantiago@globo.com.

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indenização por danos morais e materiais em decorrência de erro judiciário


consistente na demora da constrição cautelar.
Este é o objeto de análise neste breve artigo que, longe de querer ser
conclusivo, pretende lançar algumas luzes e, também, espancar algumas
dúvidas sobre o tema ora proposto.
Deixa-se claro, desde logo, que não se pretende revisar conceitos
básicos de prisão provisória ou reparação por dano. Entretanto, sempre que
possível ou necessário, a menção a estes institutos jurídicos será feita.
Num primeiro momento, impende mostrar aos leitores alguns
aspectos sobre a prisão provisória, que nem sempre são adequadamente
abordados. Posteriormente, considerações sobre pontos relevantes da
responsabilidade civil do Estado também serão feitos, a fim de aclarar a
abordagem do tema. Finalmente, teceremos nossas conclusões, tendo em
vista o princípio constitucional da demora razoável do processo e da
cláusula, igualmente constitucional, da reparação do dano em virtude de
erro judiciário.

1 – P RISÃO P REVENTIVA
Assim como no Processo Civil, o Processo Penal prevê medidas
cautelares, a fim de garantir o resultado prático do processo. A decretação
destas referidas medidas deve, então, ter profunda e íntima relação com o
objeto central do debate levado a juízo, sob pena de serem desproporcionais
àquilo que se propõe. Servem, portanto, de instrumento, de modo e meio
para se atingir a medida principal1. E estas medidas cautelares podem ser
restritivas de liberdade (prisão cautelar ou processual) ou patrimoniais
(seqüestro, arresto, etc.)
Embora haja divergências na doutrina acerca das espécies de prisão
cautelar, entende-se majoritariamente que são cinco: prisão preventiva,
prisão temporária, prisão em flagrante, prisão decorrente de sentença de
pronúncia e prisão decorrente de sentença penal condenatória recorrível. As
três primeiras são utilizadas no curso do processo ou do inquérito policial;
as duas últimas, quando há manifestação judicial, total ou parcial, acerca do
mérito da causa2.

1 Cf. RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 559.
2 Entretanto, não é irrazoável se pensar que elas podem ser reduzidas a três espécies, pois é inegável
que a prisão decorrente de sentença penal condenatória recorrível e a prisão decorrente de
sentença de pronúncia têm caráter nítido de prisão preventiva. Contudo, este não é o

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Cumpre salientar que estas medidas cautelares restritivas de


liberdade sejam decretadas pelo juiz, sempre mediante provocação do
titular da ação penal, do assistente do Ministério Público3 ou da autoridade
policial encarregada da investigação dos fatos delituosos. É o que determina
o inciso LXI do art. 5° da Constituição Federal de 1988 (CF), exigindo que a
prisão – exceto a em flagrante, por óbvio – somente seja concretizada
mediante ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária
competente4.
Assim, depara o aplicador da norma com a necessidade imperiosa de
fundamentação da prisão como corolário do devido processo penal, sob
pena de nulidade e conseqüente relaxamento da prisão, em face de inegável
inconstitucionalidade (art. 5°, LXV, da CF). Nada obstante, a mesma sanção
que se aplica ao ato viciado encontra eco no inciso IX do art. 93 da CF. O
mesmo inciso LXI do art. 5° da CF, ressalta a necessidade de a medida
restritiva da liberdade ser emanada de juiz competente, reforçando o
princípio do juiz natural, que também é sustentáculo do devido processo
penal (art. 5°, LIII, da CF). Aliás, um dos aspectos mais marcantes da prisão
cautelar é a sua jurisdicionalidade, ressaltada por instrumentos normativos
internacionais recepcionados pelo ordenamento jurídico brasileiro, como é o
caso, por exemplo, da Convenção Americana de Direitos Humanos
(CADH), itens 2 e 3 do art. 7°.
De qualquer forma, é importante ressaltar que somente justificará a
decretação da medida cautelar se ela for necessária e urgente para
resguardar o conteúdo dos processos de conhecimento e de execução,
mesmo porque se trata de restrição de liberdade ambulatória de caráter

posicionamento mais recente do Supremo Tribunal Federal. Cf. ainda, RANGEL, op. cit., p. 609, em
que fala sobre a natureza jurídica da prisão decorrente de sentença penal condenatória recorrível
como execução provisória de pena, baseando-se, para seu raciocínio, na Súmula 716 do STF.
3 Sobre a legitimidade do assistente do Ministério Público requerer a prisão preventiva,
desenvolveremos o assunto em outro trabalho mais abrangente.
4 Na doutrina, discute-se a possibilidade de decretação da prisão preventiva ex officio no curso do
inquérito policial. Entende-se que a regra contida no art. 311 do CPP é inadequada ao sistema
acusatório, adotado pela CF; por isso, a decretação de ofício pelo juiz somente seria válida no
curso da ação penal. Neste sentido, cf. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 5. ed.
Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 429-430; RANGEL, op. cit., p. 589; CRUZ, Diogo Tebet da.
Decretação de prisão preventiva ex officio. Violação ao princípio da inércia da jurisdição e ao
princípio acusatório Boletim IBCCrim, São Paulo, a. 14. n. 163, p. 14, jun. 2006. Em sentido
contrário: TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v.
3, p. 589; NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 2. ed. São Paulo:
RT, 2006, p. 562.

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excepcional, acessória ao provimento principal e que dele depende para sua


manutenção. Embora não seja antecipação de pena, antecipam-se os efeitos,
que somente podem ser oriundos de uma ordem emanada de autoridade
judiciária.
Como a prisão provisória tem natureza jurídica de medida cautelar
restritiva de liberdade, impende demonstrar que os requisitos de
cautelaridade – fumus comissi delicti e periculum libertatis – devem estar
sempre presentes, de modo a fundamentar a restrição excepcional de
liberdade. Sim, excepcional, pois a regra é a liberdade, e não o
encarceramento. O Poder Judiciário não pode se pautar pelo clamor público
para a decretação de prisão preventiva, sob pena de utilizar a restrição de
liberdade para fazer justiça. Obviamente, o Direito Processual Penal, assim
como o Direito Penal, somente podem ser chamados a atuar quando outros
meios de controle social forem ineficazes para proteger a sociedade. Em
outras palavras, aplica-se também ao Direito Processual Penal o princípio
da intervenção mínima, na vertente do princípio da subsidiariedade.
Portanto, o periculum libertatis – observados nas situações de garantia da
ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução
criminal e garantia de aplicação da lei penal – são os limites legais para a
decretação da prisão provisória5.
Identifica-se o fumus comissi delicti na prisão preventiva pela
verificação de indícios suficientes de autoria e prova da existência do crime
(art. 312 do Código de Processo Penal – CPP). Remansosa jurisprudência se
formou no sentido de que havendo elementos para decretação da prisão
preventiva, haverá, também, para o oferecimento da denúncia6. Daí, correto

5 Há que se fazer menção ao art. 30 da Lei nº 7.492/86, que trata da decretação de prisão preventiva
em crimes contra o sistema financeiro nacional em razão da magnitude da lesão causada. Vale
notar que o entendimento atual do Supremo Tribunal Federal aponta na direção da
impossibilidade de decretação da medida cautelar restritiva baseado, unicamente, na magnitude
da lesão causada, que é elemento do tipo penal (cf. HC n. 86.620/PE. 1ª Turma. Relator Ministro
Eros Grau. Brasília, 13.dez.2005. DJU I, 17.fev.2006, p. 59).
6 Cf. a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça:

“RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO TENTADO. PRISÃO EM


FLAGRANTE RELAXADA. DECRETADA A PREVENTIVA. DENÚNCIA NÃO OFERECIDA.
AUSÊNCIA DE INDÍCIOS SUFICIENTES DA AUTORIA. PLEITO MINISTERIAL DE
CONCESSÃO DE LIBERDADE PROVISÓRIA. INDEFERIMENTO. AUSÊNCIA DE
MOTIVAÇÃO CONCRETA. EXCESSO DE PRAZO. CONFIGURAÇÃO. CONSTRANGIMENTO
ILEGAL EVIDENCIADO.
1. A prisão provisória é uma medida extrema e excepcional, que implica sacrifício à liberdade
individual, sendo imprescindível, em face do princípio constitucional da inocência presumida, a
demonstração dos elementos objetivos, indicativos dos motivos concretos autorizadores da

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o entendimento de que a prisão preventiva, p. ex., não deve ser decretada


durante o inquérito policial, reservando-se a este momento pré-processual
de caráter inquisitivo a prisão temporária (Lei nº 7.960/89) e a prisão em
flagrante (artigos 301 a 310, Código de Processo Penal).

2 – A R ESPONSABILIDADE DO E STADO POR A TO J UDICIAL :


B REVES C ONSIDERAÇÕES
O § 6° do art. 37 da CF e o art. 43 do Código Civil (CC) prevêem a
responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas de direito público, bem
como das de direito privado prestadoras de serviços públicos. Elas
responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a
terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de
dolo ou culpa. Assim, a idéia de divindade do poder do soberano, veiculada
no período do Absolutismo (the king can do no wrong), hoje está totalmente
superada.
Como lembra JOSÉ AFONSO DA SILVA, não se discute a existência ou
não de dolo ou culpa do agente de forma a caracterizar o direito do
particular ao ressarcimento pelo Estado, pois esta obrigação é oriunda da
doutrina do risco administrativo, que o isenta do ônus da prova do aspecto
subjetivo da conduta: “basta que comprove o dano e que este tenha sido
causado por agente da entidade imputada”7. Ou seja, “basta a demonstração
do nexo de causalidade entre o dano e ato da administração”8.
Tal regra é salutar para a consecução do princípio da segurança
jurídica e, conseqüentemente, do princípio da proteção da confiança dos
cidadãos para com o Estado. Ademais, o prejuízo causado ao particular não

medida constritiva. 2. Na hipótese em tela, não se vislumbra presentes nem os indícios da autoria,
tanto que ainda não oferecida a denúncia exatamente por essa razão, tampouco a necessidade da
prisão, seja para garantia da ordem pública, da aplicação da lei penal ou para fins de instrução. 3.
Também assiste razão à súplica no que se refere ao excesso de prazo para a formação da culpa,
uma vez que, ao que consta dos autos, até o momento – já transcorridos quase 10 meses da prisão
dos Recorrentes –, não foi sequer oferecida a denúncia, inexistindo qualquer justificativa plausível
para tanto. 4. Recurso conhecido e provido para deferir a liberdade provisória aos ora Pacientes,
com a conseqüente expedição do alvará de soltura, se por outro motivo não estiverem presos, sem
prejuízo de eventual decretação de custódia cautelar, devidamente fundamentada.” (BRASIL.
Superior Tribunal de Justiça. Recurso Ordinário em Habeas Corpus n. 20.118/PA. 5ª Turma.
Relatora Ministra Laurita Vaz. Brasília, 19.out.2006. Publicado no DJU I, 20.nov.2006, p. 344.). Na
doutrina pátria, cf. por todos, TOURINHO FILHO, op. cit., p. 485.
7 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. rev. e atual. São Paulo:

Malheiros, 2005, p. 674.


8 RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 361.

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pode ser minimizado ante a impessoalidade do ato estatal. Corrobora esta


assertiva a necessidade de o Estado se haver do direito de regresso para
responsabilizar o agente público pelo ato lesivo, sempre em obediência ao
due process of law. Daí, a demanda deverá ser proposta diretamente contra o
Estado que, por meios próprios, será ressarcido pelo agente público que
praticou o ato prejudicial ao particular.
Esta regra também se aplica com relação aos atos oriundos do Poder
Judiciário. À primeira vista, pode parecer que o disposto no § 6º do art. 37
da CF, tem alcance limitado ao Poder Executivo. Mas, basta observar a
redação do caput do art. 37 (“A administração pública direta e indireta de
qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: ...”) para
chegar à lógica conclusão que ao Poder Judiciário também é cabível o
princípio da responsabilidade civil da Administração Pública, tout court.
Se assim não fosse, haveria inexplicável desigualdade de tratamento
entre os atos praticados pelo Judiciário e pelos outros; em outras palavras,
os membros deste Poder ganhariam carta branca do Estado para agirem
conforme suas pretensões, sem se preocupar com os efeitos oriundos de
suas ações ou omissões. Portanto, a regra vincula a atuação de qualquer
agente público do Poder Executivo, Judiciário ou Legislativo, resguardando
o particular de prejuízos que lhe sejam causados.
Entretanto, este entendimento somente ganhou maior força na
doutrina nos últimos anos do século passado9. Até então, vingava a idéia de
que os atos jurisdicionais, por serem soberanos e revelarem a independência
da magistratura, estavam afastados do princípio da responsabilidade dos
atos estatais, exceto se expressamente previstos em lei, como é o caso, por
exemplo, do art. 133 do Código de Processo Civil (CPC), do art. 630 do
Código de Processo Penal (CPP) e do inciso LXXV do art. 5° da CF, que
determina, expressamente, a responsabilidade do Estado e conseqüente
reparação por danos morais e materiais em razão de erro judiciário ou pela

9 Contudo, em decisão de 2004, o STF reafirmou o entendimento de que o Estado somente seria
responsável por atos de seus juízes nos casos expressamente declarados em lei, e que o decreto de
prisão preventiva não se confunde com o erro judiciário (BRASIL. Supremo Tribunal Federal.
Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 429.518/SC. 2ª Turma. Relator Ministro Carlos
Velloso. Julgamento em 5.out.2004. Publicado no DJU I, 28.out.2004, p. 49).

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prisão além do tempo determinado na sentença. Para acrescentar, há quem


enxergue uma distância entre a responsabilidade civil pela atividade
jurisdicional e a dos demais agentes públicos10.
Ora, o exercício da soberania e da independência dos magistrados
envolve responsabilidade pelos atos praticados, e a ausência de reparação
pelo dano causado por atos judiciais levaria ao enriquecimento ilícito por
parte do Estado, o que é, de todo, inadmissível. Como anota GUILHERME
COUTO DE CASTRO, o dever de indenizar em razão de erro judiciário é
evidente. Mas ressalva o autor uma condição para implementação da
indenização: a inexistência de coisa julgada material, “que é verdade
jurídica para todos os efeitos, e, sem que seja rescindida, não pode ser
reaberta a questão, por via indireta, sob a tese de que se trata de erronia”11.
Ousa-se discordar. Quando se aponta erro judiciário – que nada tem a
ver com injustiça na decisão – não se deseja desconstituir a coisa julgada
material, mas, tão-somente, determinar o Estado a arcar com o prejuízo
causado pelo erro. E a decisão permanece íntegra e inatacável, não havendo
necessidade, desta forma, de haver desconstituição da coisa julgada por
ação rescisória ou revisão criminal.
Por outro lado, seria descabido argumentar que dispositivos
infraconstitucionais tivessem o poder de limitar o alcance dos dispositivos
constitucionais determinantes da reparação do dano em razão de ato estatal
incorporado em erro judiciário. Haveria total inversão da pirâmide
normativa, que estabelece a norma constitucional como hierarquicamente
superior a qualquer outra. Assim, as previsões normativas legais que
determinam a responsabilidade judicial somente reforçam os preceitos
normativos constitucionais no tocante à reparação do dano, mormente pelo
fato de serem ditas normas constitucionais auto-aplicáveis, independentes
de qualquer regulamentação posterior.

3 – A C LÁUSULA C ONSTITUCIONAL DE R EPARAÇÃO POR E RRO


J UDICIÁRIO : C ONCEITO
Como se sabe, o conceito é absolutamente necessário para se ter uma
idéia do objeto que se vai analisar. Assim, não será científico perquirir

10 Embora discordemos in totum do posicionamento do autor, cf. RIZZARDO, op. cit., p. 380-381.
11 CASTRO, Guilherme Couto de. A responsabilidade civil objetiva no direito brasileiro. 3. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2005, p. 64.

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chegar à conclusão deste breve trabalho sem antes se ater à dimensão


jurídica da cláusula constitucional que determina a reparação por erro
judiciário e pelo excesso de prazo no encarceramento. Primordial, pois,
investigar o que o legislador constituinte entende por “erro judiciário”,
para, empós, adentrar no aspecto ligado ao excesso de prazo na prisão
preventiva.
Primeiramente, deve-se desmistificar a idéia de que “erro judiciário”
está ligada, tão-somente, ao direito e ao processo penal. A própria dicção da
cláusula constitucional dá este mote, ao distinguir erro judiciário de excesso
de prazo na prisão. Como lembra DERGINT, se a jurisdição é una e
indivisível, “a ela deve corresponder um único e homogêneo sistema de
responsabilidade estatal”12, nada havendo que justifique o tratamento
diferenciado entre o erro judiciário penal do não-penal.
Este mesmo autor conceitua o instituto como “o equívoco da sentença
judicial, seja no âmbito criminal, seja no âmbito cível”. Justifica o erro
judiciário com base na falibilidade humana, mas de pronto afasta deste
conceito os erros in judicando e in procedendo, posto serem inerentes à
atividade judicial, em que o juiz não desenvolve suas funções de forma
anômala13.
De pronto, pode-se apontar uma imperfeição no conceito acima
formulado: o conceito de erro judiciário não pode ser limitado à sentença
judicial. Em outras palavras, ele pode ser evidenciado em outras
manifestações judiciais durante o processo.
Lembra Cretella Júnior que:
“Judiciais (= judiciários) são todos os desempenhos do Poder
Judiciário, específicos ou não, sem se indagar da natureza
intrínseca, contenciosa ou voluntária, do desempenho. Tudo o que
promana do Poder Judiciário é atividade judicial, orgânica ou
formalmente considerada. Não, porém, sob o aspecto material ou
substancial, que é a atividade considerada, em si e por si,
independentemente da fonte da qual emana.”14

12 DERGINT, Augusto do Amaral. Responsabilidade do estado por atos judiciais. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1994, p. 166.
13 Ibid., p. 164-165.
14 CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à constituição de 1988: artigo 5° (LXVII a LXXVII) a 17. Rio de

Janeiro: Forense Universitária, 1989, v. 2, p. 826.

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Os administrativistas, de forma corajosa, buscaram conceituar ou


balizar os limites do erro judiciário; contudo, não conseguiram chegar a um
consenso. ODETE MEDAUAR chega à conclusão que seria considerado erro
judiciário passível de reparação o “ato judicial típico, que é a sentença ou
decisão, que enseja responsabilidade civil da Fazenda Pública, nas hipóteses
do art. 5°, LXXV, da CF/88”15. Mais adiante, esclarece que os atos
administrativos praticados pelo Poder Judiciário “equiparam-se aos demais
atos da Administração e, se lesivos, empenham a responsabilidade civil
objetiva da Fazenda Pública”16.
HELY LOPES MEIRELLES, aferrado a uma visão extremamente
tradicional e arcaica, afirma que “a responsabilização do Estado por danos
oriundos de atos jurisdicionais ainda não encontrou guarida, apesar de rica
elaboração doutrinária em sentido favorável”17. Apega-se este autor ao
entendimento de que a responsabilidade civil do Estado está
umbilicalmente vinculada ao erro judiciário de natureza penal, numa leitura
pouco recomendável do art. 630 do CPP.
DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO entende que os atos
jurisdicionais típicos (sentença e acórdão) não são passíveis de indenização.
“Para que fossem prejuízos indenizáveis, seria necessário que se comprovasse
que teriam sido causados antijuridicamente, hipótese em que passariam a
existir prejuízos de direito”18. Ou seja, a responsabilidade pelo ato
jurisdicional ilícito – neste caso, erro judiciário – deveria ser provada pelo
jurisdicionado, ou por qualquer administrado que tenha sofrido o prejuízo.
Apesar de não concordarmos com a opinião do autor, parece-nos que deixa
claro que o erro judiciário é aquele oriundo de ato ilícito do juiz – o que, por
si só, não satisfaz a conceituação do objeto em estudo.
Ante a ausência de unanimidade acerca do conceito de erro judiciário,
torna-se oportuno resolver o impasse. Sem maiores pretensões, erro
judiciário é a realização ou não-realização de ato judicial, lícito ou ilícito, que cause
dano ao jurisdicionado ou a terceiro.
Não se pode isolar do conceito de erro judiciário a prisão além do
tempo determinado na sentença. A prisão excessiva é prisão indevida e

15 MEDAUAR, Odete. Direito administrativo brasileiro. 9. ed. São Paulo: RT, 2005, p. 653.
16 Ibid., p. 653.
17 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 31. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 437-438.
18 MOREIRA NETO, Diego de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 14. ed. Rio de Janeiro:

Forense, 2005, p. 590.

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ilegal, sendo inconcebível pensar que um ato judicial eivado de erro como é
a prisão indevida ou por excesso de prazo não possa ser considerada erro
judiciário.
Pode-se perceber claramente que o legislador constituinte foi
extremamente cauteloso ao diferenciar as situações somente por uma
questão de interpretação do texto constitucional, de forma a evitar que o
Estado se eximisse de responsabilidade pelas prisões realizadas ou
mantidas fora de seus aspectos legais formais. Entretanto, se a prisão é
ilegal, o erro judiciário é evidente, pelo que deve existir a indenização. E não
há argumentos de soberania ou de independência dos atos judiciais que
justifique a negativa, como se o Poder Judiciário fosse constituído por
semideuses ou de extraterrestres: significaria a legitimação do arbítrio e da
restrição indevida de liberdade.

4 – À G UISA DE C ONCLUSÃO : A R EPARAÇÃO DO D ANO P ELO


E XCESSO DE P RAZO NA P RISÃO P REVENTIVA
Em atenção ao implícito princípio constitucional da economia
processual, a Emenda Constitucional nº 45, de 2004, acrescentou ao texto
constitucional a necessidade de o processo ser breve, em atenção ao
princípio da dignidade da pessoa humana: “a todos, no âmbito judicial e
administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios
que garantam a celeridade de sua tramitação” (inc. LXXVIII do art. 5° da
CF). É inadmissível que o provimento jurisdicional seja demorado, pois,
como já se disse, justiça tardia é injustiça.
Os tempos de hoje são o da velocidade – dromos, em grego. Há quem
diga que vivemos em uma dromocracia, e não numa democracia. E este
sentimento de pressa, de velocidade, reflete no texto constitucional e
também na legislação infraconstitucional.
Todavia, quando o assunto é prisão cautelar, o legislador
infraconstitucional trata o assunto com parcimônia19. Sobre prisão
temporária, a Lei nº 7.960/89 cuida dos prazos de 5 e de 30 dias,
prorrogáveis por igual período. Em termos de prisão preventiva, o único

19 Contudo, há Projeto de Lei do Deputado Moreira Franco, dando nova redação ao artigo 311 do
Código de Processo Penal, estabelecendo que o prazo de prisão preventiva durante o inquérito
policial será de 30 dias, e de 120 dias durante a instrução criminal, prorrogável por igual prazo em
caso de extrema e comprovada necessidade. (Íntegra disponível em
<http://www.camara.gov.br/sileg/integras/401537.pdf>. Acesso em 19 fev. 2007, 18:12).

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dispositivo legal que prevê a duração da prisão preventiva é o art. 8° da Lei


nº 9.034/95, que estabelece 81 dias de prazo para o encerramento da
instrução criminal20. Ora, por analogia (art. 3° da CPP), esta regra deve se
estender para todos os casos de prisão preventiva, e não somente aos casos
de crimes praticados por organização criminosa.
Mas o estabelecimento de regra de duração da prisão faz com que
surjam exceções, por óbvio. A primeira a ser mencionada é que “eventuais
atrasos na conclusão da instrução, se não imputáveis à defesa, não deverão
ter o condão de ampliar o aludido prazo”21. A segunda é que “não há
constrangimento ilegal por excesso de prazo [na manutenção da prisão
preventiva] quando a complexidade da causa, a quantidade de réus e de
testemunhas justificam a razoável demora para o encerramento da ação
penal”22. Neste último caso, a fiscalização constante da defesa e do
Ministério Público, como custos legis, é essencial a fim de evitar abusos na
custódia cautelar sob o pretexto de dificuldades no encerramento da
instrução. A terceira e última se refere à superação do excesso de prazo na
prisão preventiva pelo encerramento da instrução criminal.
Seguindo a regra e as exceções, o Supremo Tribunal Federal (STF)
proferiu diversas decisões sobre o tema, sempre, logicamente, mirando nos
princípios constitucionais implícitos e explícitos.
No julgamento do Habeas Corpus nº 86.850/PA, decidiu-se que se o
excesso de prazo não é imputável ao acusado, é inadmissível que a prisão
provisória perdure sem nenhuma limitação, devendo ser a mais breve
possível, com base no princípio da razoabilidade. No caso analisado, o
paciente permaneceu sob custódia cautelar por mais de dois anos, sem que
tivesse sido realizada a oitiva de testemunhas arroladas pela acusação. Isto
porque a juíza responsável pelo processo redesignou a data de audiência
somente para um ano e oito meses depois de frustrada a audiência para
oitiva das testemunhas arroladas pela acusação23.
Em julgamento de outro Habeas Corpus no STF, decidiu-se pela
liberação do acusado preso preventivamente em razão da demora
injustificada para encerramento do processo criminal, sem justificativa

20 Sobre a construção jurisprudencial do prazo legal de prisão preventiva, cf. por todos, OLIVEIRA,
op. cit., p. 426-429.
21 Ibid., p. 427
22 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 89.168/RO. 1ª Turma. Relatora Ministra

Carmen Lúcia. Brasília, 26 set. 2006. DJU I, 20.out.2006, p. 426.


23 2ª Turma. Relator Ministro Joaquim Barbosa. Brasília, 16 maio 2006. DJU I, 06 nov. 2006, p. 50.

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plausível ou sem que se pudessem atribuir a ele as razões para o


retardamento daquele fim. Neste caso, fundamentou-se a Ministra Carmen
Lúcia nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da
razoável duração do processo (art. 5º, inc. III, e LXXVIII, da Constituição da
República). Lembrou, ainda, que “a forma de punição para quem quer que
seja haverá de ser aquela definida legalmente, sendo a mora judicial,
enquanto preso o réu ainda não condenado, uma forma de punição sem
respeito ao princípio do devido processo legal”24.
Por último, há que se mencionar que o fato de a prisão preventiva ter
sido decretada em razão de crime hediondo não autoriza a demora na
realização da instrução criminal: “a duração prolongada, abusiva e
irrazoável da prisão cautelar do réu, sem julgamento da causa, ofende o
postulado da dignidade da pessoa humana e, como tal, consubstancia
constrangimento ilegal, ainda que se trate da imputação de crime grave”25.
Ora, o excesso de prazo na duração da prisão preventiva configura,
inegavelmente, violação direta ao princípio da demora razoável da duração
do processo, como corolário do princípio da economia processual. Entende-
se que, quando se fala em “processo”, fala-se, implicitamente, em
procedimento. Assim, a realização de qualquer procedimento no curso da
ação penal deve atender aos postulados constitucionais da razoabilidade, da
proporcionalidade, do devido processo legal e, principalmente, da
dignidade da pessoa humana, sob pena de ser ilegal – e, por que não dizer?
– inconstitucional.
Como foi abordado linhas atrás, o conceito de prisão por tempo
superior ao determinado na sentença, i.e., por excesso de prazo, está
inserido no conceito de erro judiciário, indenizável sob os aspectos material
e moral. Nas três decisões acima citadas como exemplos, a constatação no
excesso de prazo na formação da culpa e conseqüente liberação do acusado
em razão da ilegalidade da prisão leva, inexoravelmente, à conclusão de
que se trata de erro judiciário, nos termos do conceito acima elaborado.
E não há sofisma algum neste raciocínio: a partir do momento que o
conceito de “prisão além do tempo determinado na sentença” é inserido no
conceito de erro judiciário, estabelece-se um limite processual, além do qual

24 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 87.721/PE. 1ª Turma. Relatora Ministra
Carmen Lúcia. Brasília, 15 ago. 2006. DJU I, 07 dez. 2006, p. 52.
25 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 87.241/RJ. 1ª Turma. Relator Ministro Cezar

Peluso. Brasília, 21 mar. 2006. DJU I, 28.abr.2006, p. 8.

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a prisão torna-se ilegal e indevida. Ora, se o mais é ilegal, o menos – prisão


preventiva com prazo excessivo – também o será. Ademais, a Súmula 716,
STF, implicitamente reconhece que a prisão provisória excessiva redunda na
possibilidade de progressão de regime prisional antes do trânsito em
julgado da sentença penal condenatória26.
Baseado em acórdão da 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de
São Paulo, CAHALI entende que seria perfeitamente cabível a indenização
por danos morais e materiais em razão de prisão preventiva legal, embora
cumprida em excesso de prazo, com posterior absolvição do acusado27. Mas,
ao mesmo tempo, lembra que o Estado de Direito, em reforço à garantia dos
direitos individuais do cidadão, não pode compactuar com a restrição
injusta à liberdade individual e, portanto, deve responsabilizar-se pelos
danos causados28.
Entende-se incabível limitar-se o direito à indenização somente nos
casos de absolvição: independentemente do resultado final do processo, se
excessivo o lapso de tempo da custódia cautelar, cabível a reparação do
dano, pois não se cogita da legitimidade da prisão, mas, sim, de sua
duração indevida.
Concluindo, o respeito à duração da prisão preventiva, calcado
supinamente nos princípios constitucionais da razoabilidade, da demora
razoável do processo, da dignidade da pessoa humana e do devido
processo legal, evita o erro judiciário e a decorrente responsabilidade civil
objetiva do Estado em reparar o dano moral e material, nos termos dos
artigos 953 e 954 do Código Civil29.

R EFERÊNCIAS
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 19. ed. São Paulo:
Malheiros, 2005.

26 Súmula 716, STF: “Admite-se a progressão de regime de cumprimento de pena ou a aplicação


imediata de regime menos severo nela determinada, antes do trânsito em julgado da sentença
condenatória”.
27 CAHALI, Yussef Said. Dano moral. 3. ed. São Paulo: RT, 2005, p. 790.
28 Ibid., p. 775.
29 CAHALI (ibid., p. 772) aponta que, ao contrário do novo codificador, que “permaneceu estático no

tempo e omisso em definir a natureza do dano indenizável, manteve-se atrelado ao direito


anterior, que, (...) já reconhecia, no caso a ocorrência de dano moral, especialmente após a
Constituição de 1988”.

191
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O UT ./D E Z . 2008

CAHALI, Yussef Said. Dano moral. 3. ed. rev., ampl. e atual. conforme o Código Civil de
2002. São Paulo: RT, 2005.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 11. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2004.
CASTRO, Guilherme Couto de. A responsabilidade civil objetiva no direito brasileiro. 3. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2005.
CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à constituição de 1988: artigo 5° (LXVII a LXXVII) a 17.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, v. 2, 1989.
CRUZ, Diogo Tebet da. Decretação de prisão preventiva ex officio. Violação ao princípio
da inércia da jurisdição e ao princípio acusatório Boletim IBCCrim, São Paulo, a. 14. n.
163, p. 14, jun. 2006.
DERGINT, Augusto do Amaral. Responsabilidade do estado por atos judiciais. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1994.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005.
GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005.
MEDAUAR, Odete. Direito administrativo brasileiro. 9. ed. São Paulo: RT, 2005.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 31. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
MOREIRA NETO, Diego de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 14. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2005,
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 2. ed. São Paulo:
RT, 2006.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 5. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
RANGEL , Paulo. Direito processual penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. rev. e atual. São
Paulo: Malheiros, 2005.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 3.

192
Jurisprudência Comentada:

TIPO PENAL OBJETIVO. SOCIEDADE


COMUNICACIONAL. TEORIA DA
IMPUTAÇÃO OBJETIVA. RISCO PERMITIDO.
PROIBIÇÃO DE REGRESSO. IMPUTAÇÃO
AO ÂMBITO DE RESPONSABILIDADE DA
VÍTIMA. RESULTADO NORMATIVAMENTE
IMPUTÁVEL AO SUJEITO. ELEMENTOS
SUBJETIVOS DO TIPO.
(Habeas Corpus nº 46.525, do
Superior Tribunal de Justiça)

R ENATA J ARDIM DA C UNHA R IEGER *


R AFAEL C AMPARRA P INHEIRO **

Resumo: O objeto de estudo é o Habeas Corpus nº 46.525, julgado


pelo Superior Tribunal de Justiça. Em um primeiro momento, o
acórdão trata da problemática da acusação genérica, exigindo
detalhamento na inicial acusatória. Logo depois, discute a
moderna teoria da imputação objetiva, esbarrando na confusão
aplicativa dos institutos. Diante disso, analisou-se a melhor
forma de sistematizar a referida doutrina na atual sociedade
comunicacional. Defendeu-se o exame da imputação objetiva
sob o ângulo da imputação do comportamento e do resultado.
Aquela concretiza-se em três instituições dogmáticas, quais
sejam, o risco permitido, a proibição de regresso e a imputação
ao âmbito de responsabilidade da vítima. Uma vez verificada a
tipicidade da conduta, deve-se averiguar se o resultado

*
Advogada, especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade IDC, integrante do
grupo de estudos de Direito Penal da mesma instituição, sob a coordenação do Prof. Me. Daniel
Gerber.
**
Advogado, especialista em Direito Público pela Faculdade IDC, integrante do grupo de estudos
de Direito Penal da mesma instituição, sob a coordenação do Professor Me. Daniel Gerber.

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produzido é normativamente imputável ao sujeito. E, apenas


depois disso, devem ser analisados os elementos subjetivos do
tipo.
Palavras-Chave: Tipo penal objetivo. Sociedade Comunicacional.
Teoria da imputação objetiva. Risco Permitido. Proibição de
Regresso. Imputação ao âmbito de responsabilidade da vítima.
Resultado normativamente imputável ao sujeito. Elementos
subjetivos do tipo.

I – I NTRODUÇÃO
No julgamento do Habeas Corpus nº 46.525, o Superior Tribunal de Justiça
trancou ação penal que tramitava contra integrantes da Comissão de Formatura
do Curso de Medicina da Universidade de Cuiabá (UNIC), pela prática, em
tese, de homicídio culposo. Na exordial acusatória, abordou-se que havia
indícios de que a vítima fora jogada na piscina por seus colegas e que os
acusados não foram diligentes e não obedeceram às normas de segurança
necessárias para a realização do evento.
O acórdão traz uma vasta fundamentação doutrinária e jurisprudencial.
E a sua análise possibilita uma discussão atual e necessária sobre importantes
institutos do direito penal e processual penal.

II – D ENÚNCIA V AGA E I MPRECISA : A GRESSÃO AO A RT . 41


DO C ÓDIGO DE P ROCESSO P ENAL E AOS P RINCÍPIOS DO
D EVIDO P ROCESSO L EGAL , DA A MPLA D EFESA E DO
C ONTRADITÓRIO
Em um primeiro momento, analisou-se, com acuidade, a problemática da
acusação genérica. Nesse contexto, trancou-se a ação penal ao constatar-se que a
denúncia desrespeita o art. 41 do Código de Processo Penal e inviabiliza o
exercício da ampla defesa.
O art. 41 da Lei Adjetiva Penal prevê que a inicial acusatória conterá,
sempre, “a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a
qualificação do acusado ou esclarecimento pelos quais se possa identificá-lo, a
classificação do crime e, quando necessário, o rol de testemunhas.”
A forma verbal utilizada pelo legislador nesse dispositivo (conterá)
indica o caráter cogente da norma processual. É, portanto, vedado o
oferecimento de denúncias que não demonstrem a conduta tida como delituosa.

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Apenas uma descrição detalhada do fato criminoso na peça vestibular


possibilita o devido processo legal de garantias e o exercício do contraditório e
da ampla defesa. E isso não ocorreu no caso ora em análise. A denúncia recaiu
sobre uma pluralidade de sujeitos (os integrantes da Comissão de Formatura)
sem descrever minimamente a participação de cada um. Nessa senda, foi
adequado o trancamento da ação penal pelo Superior Tribunal de Justiça,
evitando-se o prosseguimento de uma ação temerária que afrontava
gravemente os postulados processuais constitucionais no Estado Democrático
de Direito.

III – A A TIPICIDADE DA C ONDUTA E A T EORIA DA


I MPUTAÇÃO O BJETIVA
Em um segundo momento, analisou-se a atipicidade da conduta narrada
na exordial acusatória. Aqui, verifica-se a maior vantagem do acórdão, qual
seja, trazer a discussão sobre a moderna doutrina da imputação objetiva para os
Tribunais Superiores brasileiros1.
Como é cediço, desde a edição da Lei n° 7.209/84, responsável pela
reforma na Parte Geral do Código Penal, a doutrina majoritária afirma que o
finalismo é a teoria adotada pelo Ordenamento Jurídico Brasileiro. Esta teoria
constitui-se, vale dizer, em verdadeira ferramenta de sistematização do direito
penal e representa um progresso com relação ao causalismo.
Diversos juristas entendem que a adoção do finalismo inviabiliza a
aplicação da teoria da imputação objetiva2. Ocorre que, giza-se, o intérprete não
está adstrito ao comprometimento do legislador com esta ou aquela doutrina,
não havendo, portanto, óbice para aplicação da teoria da imputação objetiva no
Ordenamento Jurídico Brasileiro. Ademais, são as técnicas interpretativas da
realidade que conduzem a atividade legiferante (e judicante) e não o contrário,

1 Importante salientar que a decisão não necessitaria adentrar na discussão acerca dos axiomas que
norteiam a teoria da imputação objetiva. Isso porque a atipicidade da conduta é flagrante pela
ausência de culpa por parte dos denunciados, o que é fundamental para a consolidada teoria
finalista (culpa, tecnicamente, caracteriza-se pela ausência de previsibilidade subjetiva de um
resultado objetivamente previsível, situação que, in casu, resta totalmente afastada, haja vista a
impossibilidade de previsão do resultado por parte dos denunciados e de qualquer pessoa
consciente). Entretanto, é exatamente aí que reside a importância da decisão. Rompendo com
paradigmas até então absolutos, o julgamento do presente habeas corpus inaugura, ao menos de
forma cristalina, a recepção da moderna teoria da imputação objetiva pelos Tribunais Superiores
brasileiros.
2 Neste sentido: TJRS, Embargos de Declaração nº 70018883355, 2ª Câmara Criminal, Rel. Marco

Aurélio de Oliveira Canosa, Julgado em 09.08.2007 TJRS, Apelação Crime nº 70009953985, 2ª


Câmara Criminal, Rel. Marco Aurélio de Oliveira Canosa, j. em 30.11.06.

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sob pena de se estagnar o desenvolvimento jurídico-acadêmico e,


conseqüentemente, sociocultural.
Mais, a teoria finalista e a da imputação objetiva não são incompatíveis.
Esta “corrige” aquela. A teoria da imputação objetiva reformula a tipicidade
objetiva consagrada pelo finalismo, ameniza o rigor da teoria da equivalência
dos antecedentes causais e exige, para o tipo objetivo, além da conexão
naturalística, a necessidade de que essa conexão, segundo critérios de política
criminal, seja imputada ao sujeito como “obra sua”. Nesse contexto, a teoria da
imputação objetiva dá inegável seguimento à linha evolutiva garantista que se
exterioriza nos degraus galgados desde BELING, com a inserção do tipo penal de
garantia (tipo descritivo), passando por MAYER (ratio cognoscendi) e MEZGER
(ratio essendi), até a inserção do elemento finalístico da ação por obra de WELZEL
(positivismo teleológico).
Com isso, para esta doutrina pós-finalista, nem todo o processo causal
interessa ao Direito Penal e nem todo o nexo causal implica um nexo jurídico. A
tradicional análise mecânico-natural passa a constituir apenas o primeiro
momento na apuração da imputação objetiva: presente o vínculo causal, parte-
se para um segundo momento, em que se verifica a existência de critérios
eminentemente normativos3. Em outras palavras, a constatação da causalidade
é um limite mínimo, mas não suficiente, para a análise da tipicidade, o que se
mostra extremamente pertinente e necessário na atual sociedade
comunicacional, de riscos maximizados e inerentes às atividades humanas
cotidianas.
Falta, ainda, é verdade, um lineamento preciso quanto aos elementos
fundamentais da teoria. Verificam-se importantes divergências entre os seus
principais defensores e isso dificulta a aplicação de seus institutos, gerando
instabilidade doutrinária e jurisprudencial. Na decisão ora em análise,
confirmando o diagnóstico, explicitam-se a falta de sistematicidade, a confusão
entre os postulados da teoria da imputação objetiva e da teoria finalista e,
principalmente, a confusão aplicativa dos próprios institutos reitores da teoria
da imputação objetiva.
Destaca-se, contudo, que se concorda com a deliberação final, qual seja, a
atipicidade da conduta narrada na exordial acusatória. Apesar disso, discutir-
se-á a melhor forma de tratar os institutos dessa teoria que, de certo modo,
reestruturou o próprio conceito analítico de crime. Não se pretende (apenas)
fomentar discussão de mero academicismo penal; visa-se, especialmente, a

3 D’ÁVILA, Fábio Roberto. Crime Culposo e a Teoria da Imputação Objetiva. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2001, p. 41.

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possibilitar o influxo de idéias que tornem o direito aplicado um instrumento


mais ágil e justo em futuras decisões, capaz de fazer de cada causa jurídica uma
verdadeira luta política4 de reconhecimento do direito fundamental ao processo
justo e de vedação da responsabilização objetiva – do direito penal do autor, de
tristes lembranças.
O ideal é analisar a imputação objetiva sob o ângulo da imputação do
comportamento e do resultado5. Aquela consiste em comprovar que a conduta
responde aos parâmetros normativos gerais do tipo objetivo. Essas
características gerais concretizam-se em três instituições dogmáticas, a saber:
risco permitido, proibição de regresso e imputação ao âmbito de
responsabilidade da vítima.
Entende-se que elas não podem ser analisadas isoladamente, mas sim em
verdadeiras escalas sucessivas. A ordem de exame, como alerta CÂNCIO MELIÁ,
responde a uma classificação progressiva do mais genérico ao mais específico;
eis que, em cada uma das instituições, vão se inserindo mais dados do contexto
do comportamento analisado. A comprovação sucessiva dessas escalas conduz,
em caso negativo (não há risco permitido, nem proibição de regresso e nem
imputação ao âmbito de responsabilidade da vítima), à afirmação da tipicidade
do comportamento6.
Uma vez verificada a tipicidade da conduta, deve-se averiguar se o
resultado produzido é normativamente imputável ao sujeito como obra sua.
Verifica-se, aqui, se o resultado está no âmbito de proteção da norma.
Apenas depois disso, devem ser analisados os elementos subjetivos do
tipo. A imputação objetiva, ressalta-se, não prescinde da análise desses
elementos. Reconhece-se, apenas, que o problema valorativo é anterior à teoria
do dolo e da culpa. A “má intenção” do sujeito não é relevante, nesta teoria,
enquanto não haja a realização de um tipo penal objetivo, caracterizado, reitera-

4 BAUMAN, Zigmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Tradução de Plínio Dentzien.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 73 e ss.
5 Conforme referido, a teoria da imputação objetiva não apresenta linearidade entre seus principais

autores. CLAUS ROXIN entende que tudo converge à imputação do resultado. GÜNTHER JAKOBS e
CÂNCIO MELIÁ, por sua vez, conferem maior importância à imputação do comportamento. Nesse
sentido, conferir: ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar,
2006. JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no Direito Penal. Trad. André Luis Callegari. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2000. MELIÁ, Manuel Câncio e CALLEGARI, André Luis.
Aproximação à Teoria da Imputação Objetiva no Direito Penal. Revista da AJURIS. Porto Alegre,
ano XXXI, nº 95, setembro de 2004, p. 341 – 364, p. 347
6 MELIÁ, Manuel Câncio e CALLEGARI, André Luis. Aproximação à Teoria da Imputação Objetiva no

Direito Penal. Revista da AJURIS. Porto Alegre, ano XXXI, nº 95, setembro de 2004, p. 341-364, p.
347

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se, pela produção ou incremento de um risco não permitido – ou não tolerado –


pelo ordenamento jurídico e realização desse risco no resultado efetivamente
causado.
Na decisão, essa sistemática não foi observada, o que dificulta, em parte,
o entendimento dos argumentos trazidos e pode ter gerado alguma confusão
entre os institutos. Após citar-se que não foi demonstrado o nexo de
causalidade entre a conduta narrada e o resultado produzido, referiu-se que a
vítima pode ter se autocolocado em risco, pois possivelmente ingerira
substâncias psicotrópicas. Abordou-se que “o fato de ter vindo a óbito em razão
da ingestão das substâncias psicotrópicas não tem relação direta com a conduta
dos acusados”.
A fundamentação é válida, mas, ressalta-se, apenas porque os jovens não
foram acusados de ter jogado a vítima na piscina. A acusação limitou-se à falta
de diligência e de obediência às normas de segurança necessárias para a
realização do evento.
O instituto de autocolocação em perigo (ou atribuição ao âmbito de
responsabilidade da vítima) opera nos casos em que o titular de um bem
jurídico (“vítima”) empreende conjuntamente com outro (“autor”) uma
atividade que pode gerar a lesão deste bem. A relevância do comportamento da
“vítima” decorre do direito à liberdade, constitucionalmente consagrado no art.
5º, II.
A doutrina refere que essa autonomia acarreta uma preferente atribuição
de responsabilidade em relação aos possíveis danos causados a seus bens e
interesses7. Em outras palavras, quando as conseqüências são assumidas
volitiva e integralmente pelo próprio agente que as padece, mediante sua
própria conduta, não se deve imputar essas conseqüências àquele que tenha
participado na criação ou incremento do risco8.
Nesse contexto, mesmo que restassem provados o nexo causal e a criação
de um risco pelos acusados, a vítima teria atribuição preferente de
responsabilidade, pois provavelmente utilizara substâncias entorpecentes.
Reitera-se que, se os jovens fossem acusados do constrangimento de atirar a
vítima na piscina, tornar-se-iam garantes e assumiriam um dever de proteção.

7 KREBS, Pedro. Teoria jurídica do delito: noções introdutórias: tipicidade objetiva e subjetiva.
Barueri, SP, Manole, 2006, p. 140/143.
8 TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 232/233.

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Nesta hipótese, a imputação ao âmbito de responsabilidade da vítima não seria


legítima9.
Posteriormente, referiu-se, no acórdão, que os acusados não criaram um
risco não permitido, “uma vez que é inviável exigir de uma Comissão de
Formatura um rigor na fiscalização das substâncias ingeridas por todos os
participantes de uma festa”. Ademais, “é fato corriqueiro, de todos sabido, que
há uso e abuso de substâncias entorpecentes promovidas por jovens, inclusive e
principalmente no âmbito universitário em todo o país”.
De forma aparentemente contraditória com a afirmação acima transcrita,
aplicou-se, na decisão, o princípio da confiança. Aduziu-se que, “no caso
concreto, não poderia a Comissão de Formatura prever o comportamento da
vítima, que, conforme consta da própria denúncia, somente veio a afogar-se
acidentalmente em virtude de ter ingerido substâncias psicotrópicas,
comportando-se de forma contrária ao direito, inexistindo indicação na
denúncia de que aparentemente isso pudesse ser antevisto”.
O princípio da confiança significa que, apesar da experiência de que
outras pessoas cometem erros, se autoriza a confiar em seu comportamento
correto, desde que não existam indícios de que assim não irá ocorrer. E, de
acordo com a premissa do acórdão (de que é normal a utilização de substâncias
entorpecentes), havia indícios de que a vítima (e todos os demais participantes
da festa) poderiam usar drogas.
Ora, ou é corriqueira a utilização de substâncias entorpecentes e era
provável que a vítima utilizasse, ou não é corriqueira e não era provável a
utilização pela vítima. Neste ponto, o acórdão parece ter pecado pela falta de
coerência. Reforça-se, contudo, que isso não ocorreu pelo fato de não haver, na
denúncia, descrição da participação dos membros da comissão no fato que
ocasionou a morte da vítima.
A decisão trata, ainda, da previsibilidade da conduta, que é atinente aos
elementos subjetivos do tipo. Em sendo verificadas excludentes da tipicidade
objetiva, a teoria da imputação objetiva prescinde dessas discussões.
Em suma, pareceu acertada a conclusão acerca da ausência de nexo
causal entre a conduta e o resultado. Em havendo esse nexo, a melhor solução é
a imputação ao âmbito de responsabilidade da vítima, sendo inadequadas as
discussões acerca do princípio da confiança e dos elementos subjetivos do tipo.

9 MELIÁ, Manuel Câncio e CALLEGARI, André Luis. Aproximação à Teoria da Imputação Objetiva no
Direito Penal. Revista da AJURIS. Porto Alegre, ano XXXI, nº 95, setembro de 2004, p. 341-364,
353/354

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Por fim, importa ressaltar que somente o debate jurídico, político e


acadêmico será capaz de minimizar as objeções à teoria pós-finalista da
imputação objetiva, de inegável contribuição à teoria do delito. Por certo, a
jurisprudência pátria sobre o tema ainda está em fase embrionária, tecendo
considerações iniciais sobre o assunto. Entretanto, é imperioso evoluir, fazendo-
se abordagens mais amplas capazes de encampar o verdadeiro ideal de
desvalor do resultado, tão caro aos imperativos de liberdade na sociedade de
riscos (pós)moderna.

A CÓRDÃO
Processual Penal – Habeas Corpus – Homicídio Culposo – Morte por
Afogamento na Piscina – Comissão de Formatura – Inépcia da Denúncia – Acusação
Genérica – Ausência de Previsibilidade, de Nexo de Causalidade e da Criação de Um
Risco Não Permitido – Princípio da Confiança – Trancamento da Ação Penal –
Atipicidade da Conduta – Ordem Concedida
1. Afirmar na denúncia que “a vítima foi jogada dentro da piscina por
seus colegas, assim como tantos outros que estavam presentes, ocasionando seu
óbito” não atende satisfatoriamente aos requisitos do art. 41 do Código de
Processo Penal, uma vez que, segundo o referido dispositivo legal, “A denúncia
ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas
circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se
possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das
testemunhas”.
2. Mesmo que se admita certo abrandamento no tocante ao rigor da
individualização das condutas, quando se trata de delito de autoria coletiva,
não existe respaldo jurisprudencial para uma acusação genérica, que impeça o
exercício da ampla defesa, por não demonstrar qual a conduta tida por
delituosa, considerando que nenhum dos membros da referida comissão foi
apontado na peça acusatória como sendo pessoa que jogou a vítima na piscina.
3. Por outro lado, narrando a denúncia que a vítima afogou-se em virtude
da ingestão de substâncias psicotrópicas, o que caracteriza uma autocolocação
em risco, excludente da responsabilidade criminal, ausente o nexo causal.
4. Ainda que se admita a existência de relação de causalidade entre a
conduta dos acusados e a morte da vítima, à luz da teoria da imputação
objetiva, necessária é a demonstração da criação pelos agentes de uma situação de
risco não permitido, não-ocorrente, na hipótese, porquanto é inviável exigir de
uma Comissão de Formatura um rigor na fiscalização das substâncias ingeridas
por todos os participantes de uma festa.

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5. Associada à teoria da imputação objetiva, sustenta a doutrina que


vigora o princípio da confiança, as pessoas se comportarão em conformidade com
o direito, o que não ocorreu in casu, pois a vítima veio a afogar-se, segundo a
denúncia, em virtude de ter ingerido substâncias psicotrópicas, comportando-
se, portanto, de forma contrária aos padrões esperados, afastando, assim, a
responsabilidade dos pacientes, diante da inexistência de previsibilidade do
resultado, acarretando a atipicidade da conduta.
6. Ordem concedida para trancar a ação penal, por atipicidade da
conduta, em razão da ausência de previsibilidade, de nexo de causalidade e de
criação de um risco não permitido, em relação a todos os denunciados, por
força do disposto no art. 580 do Código de Processo Penal. (STJ, HC nº 46.525 –
MT, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, j. em 21.03.2006).

Relatório
Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA: Trata-se de habeas corpus substitutivo
de recurso ordinário, com pedido de liminar, impetrado em favor de Marcelo
André de Matos – denunciado, juntamente com outras pessoas integrantes da
Comissão de Formatura do Curso de Medicina da Universidade de Cuiabá
(UNIC), pela suposta prática do delito tipificado no art. 121, § 3º, c.c. o art. 29,
ambos do Código Penal –, impugnando acórdão da Primeira Câmara Criminal
do Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso, que denegou a ordem ali
impetrada (HC 11.662⁄2005), nos termos da seguinte ementa (fls. 427⁄428):
“Habeas Corpus – Homicídio Culposo em Concurso de Pessoas –
Afogamento – Pretendido Trancamento da Ação Penal por Ausência de Justa
Causa – Pretextado Exame Aprofundado de Provas – Inviabilidade na Via
Eleita – Denúncia Que Preenche os Requisitos Legais – Ausência de Justa
Causa Indemonstrada – Indícios de Culpa In Omittendo Que Autorizam o
Prosseguimento da Ação Penal e Exigem Farta Instrução Criminal,
Respeitados o Contraditório e a Ampla Defesa
Impossível a análise aprofundada de provas, no augusto âmbito do
habeas corpus, visando ao trancamento de ação penal que apura a
morte de jovem, por afogamento, em circunstâncias não esclarecidas,
em confraternização realizada para número expressivo de pessoas, em
que se atribui conduta culposa dos pacientes, membros da comissão
organizadora, pela falta dos cuidados e medidas necessárias para festa
de tamanha magnitude.
Se a denúncia preenche os requisitos legais, descrevendo os
indícios da existência de fato típico e antijurídico que possa ter
decorrido de conduta culposa dos pacientes, na forma omissiva, não

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há que se falar em falta de justa causa para o prosseguimento da ação


penal, indemonstrada, desde logo, havendo necessidade de apuração
dos fatos em instrução criminal segura, observados os princípios do
contraditório e da ampla defesa.
Writ indeferido”.
Sustenta a impetrante, inicialmente, falta de justa causa para a
instauração da ação penal, em face da ausência do nexo de causalidade entre a
morte da vítima e alguma omissão penalmente relevante que possa ser
atribuída ao paciente, sendo os fatos narrados na denúncia caluniosos e
tendenciosos, pois alguns jamais ocorreram e outros não condizem com a
verdade.
Afirma, também, que “não houve quebra do dever de cuidado por parte
do paciente e de seus colegas, notadamente porque, diante das circunstâncias, o
evento era imprevisível” (fl. 12), sendo que a profundidade da piscina não
apresentava risco para qualquer pessoa adulta, a vítima recebeu os primeiros
socorros imediatamente, a dosagem alcoólica em seu sangue não a impediria de
ter reação para evitar o afogamento e ela entrou na piscina por livre e
espontânea vontade.
Assevera, ainda, que “a condição de simples membro da Comissão de
Formatura é insuficiente para impingir ao paciente a condição de acusado, pois
seria o estabelecimento de uma culpa em abstrato” (fl. 16), aduzindo que “não há
ação imputável objetivamente ao paciente (teoria da imputação objetiva), pois a
festa realizada constitui um ‘risco juridicamente irrelevante’ e, mais que isso,
um ‘risco permitido’, que não tem qualquer nexo com o curso causal que levou
ao resultado” (fl. 22).
Alega, por outro lado, que a denúncia é inepta, pois não houve a
individualização da participação de cada denunciado, não atendendo, portanto,
às exigências do art. 41 do Código de Processo Penal.
Ao final, requer, em sede de liminar, a suspensão da Ação Penal nº
118/2004, com as audiências para interrogatório marcadas para os dias 26 e 27
de setembro de 2005 e, no mérito, o seu trancamento definitivo.
O pedido formulado em sede de cognição sumária foi por mim deferido
para suspender o andamento da ação penal em relação a todos os denunciados,
membros da referida comissão de formatura, até o julgamento do mérito da
presente impetração, dispensadas as informações (fls. 460/461).
O Ministério Público Federal, por meio de parecer exarado pelo
Subprocurador-Geral da República Durval Tadeu Guimarães, opinou pela
denegação da ordem (fls. 467/470).

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É o relatório.

Voto
Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA (Relator): Busca o Ministério Público a
responsabilização criminal dos membros da Comissão de Formatura
mencionada no relatório, da qual faz parte o paciente, sob a alegação de que
não foram diligentes e não obedeceram às normas de segurança necessárias
para a realização da festa de confraternização do Curso de Medicina da
Universidade de Cuiabá, onde havia cerca de setecentas pessoas, concorrendo,
assim, para o resultado morte da vítima.
Narra a denúncia que:
“Há indícios nos autos que revelam que a vítima foi jogada dentro
da piscina por seus colegas, assim como tantos outros que estavam
presentes, ocasionando seu óbito.
Sabe-se também que os acusados disponibilizaram para os
participantes da festa grande quantidade de bebidas alcoólicas, sem o
menor controle, assim como substâncias ilícitas, entorpecentes e
psicotrópicas, agindo com imprudência e negligência.
Outrossim, também não se preocuparam em obter alvará de
autorização, necessário nos casos de realização de eventos de grande
magnitude, visto que estavam presentes na festa cerca de 700 pessoas.
O crime em comento deve ser enquadrado como crime de
homicídio na modalidade culposa, onde todos os representantes da
comissão de realização de eventos deram causa ao resultado por
imprudência e negligência” (art. 18, II, do CP).
Inicialmente, penso que a afirmação contida na denúncia de que “a
vítima foi jogada dentro da piscina por seus colegas, assim como tantos outros
que estavam presentes, ocasionando seu óbito”, não atende satisfatoriamente
aos requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal, uma vez que, segundo o
referido dispositivo legal, “A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato
criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou
esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e,
quando necessário, o rol das testemunhas”.
Ainda que se admita certo abrandamento no tocante ao rigor da
individualização das condutas, quando se trata de delitos de autoria coletiva,
não existe respaldo jurisprudencial para uma acusação genérica, que impeça o
exercício da ampla defesa, por não demonstrar qual a conduta tida por

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delituosa, considerando que nenhum dos membros da referida comissão foi


apontado na peça acusatória como sendo pessoa que jogou a vítima na piscina.
Nesse sentido são os seguintes precedentes deste Superior Tribunal:
“Habeas Corpus – Direito Processual Penal – Crimes Contra o Meio
Ambiente – Trancamento da Ação Penal – Inépcia da Denúncia e Falta de
Justa Causa Parciais – Ocorrência
1. A denúncia que, em parte, sobre desatender o artigo 41 do
Código de Processo Penal, não descrevendo a conduta de cada qual
dos denunciados, vem desacompanhada de um mínimo de prova que
lhe assegure a viabilidade, autoriza e mesmo determina o julgamento
de falta de justa causa para a ação penal.
2. Ordem parcialmente concedida” (HC 37.695/SP, Rel. Min.
Hamilton Carvalhido, 6ª T., DJ de 26.09.2005, p. 464)
“Habeas Corpus – Direito Processual Penal – Nulidade – Inépcia da
Denúncia – Caracterização
1. A denúncia, na letra do artigo 41 do Código de Processo Penal,
deve conter ‘a exposição do fato criminoso, com todas as suas
circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos
quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando
necessário, o rol das testemunhas.’
2. Violado o estatuto legal de sua validade, pela imputação de
participação isolada, vaga e indefinida, incluidamente estranha às
demais acusações deduzidas, que impede o exercício do direito de
defesa constitucionalmente assegurado (Constituição da República,
artigo 5º, inciso LV), é de se ter como manifesto o vício que grava a
denúncia, compromete o processo e obsta o prosseguimento da ação
penal.
3. Ordem concedida” (HC 17.877/PB, Rel. Min. Hamilton
Carvalhido, 6ª Turma, DJ de 10.02.2003, p. 235)
“Criminal – HC – Peculato e Corrupção Passiva – Inépcia da Denúncia –
Deficiência Evidenciada – Liame Entre o Paciente e as Condutas Apontadas
Como Ilícitas Não Apontado – Ordem Concedida
Não obstante o entendimento de que, na hipótese de concurso de
agentes, é prescindível a exata individualização das condutas dos
envolvidos, não se pode aceitar acusação fundada, basicamente, na
condição de delegado do paciente, à época dos fatos apurados, sem a
indicação de consistente liame entre o paciente e as condutas
apontadas como ilícitas.

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Evidenciando-se o apontado prejuízo à defesa, que se sujeitava a


vagas acusações, deve ser reconhecida a inépcia da denúncia no que
concerne ao paciente.
Ordem concedida para trancar a ação penal em relação ao paciente,
por inépcia da denúncia” (HC 16.924/SP, Rel. Min. Gilson Dipp, 5ª T.,
DJ de 22.10.2001, p.340)
“Penal – Processual – Ação Penal – Falta de Justa Causa – Inépcia da
Denúncia – Habeas Corpus Concedido Pela Origem – Exame de Fatos e
Provas – Recurso Especial
1. É inepta a denúncia que, deixando de descrever a conduta do
acusado, bem como os fatos supostamente típicos a ele imputados,
inviabiliza o pleno exercício do direito constitucional da ampla defesa.
2. Pretensão de exame de provas estranha ao âmbito do Recurso
Especial. Incidência da Súmula 07⁄STJ.
3. Recurso Especial não conhecido” (REsp 201.259/SP, Rel. Min.
Edson Vidigal, 5ª Turma, DJ de 27.08.2001, p.367).
Por outro lado, nos termos do art. 13 do Código Penal, “o resultado, de
que depende a existência do crime somente é imputável a quem lhe deu causa”,
entendendo-se esta como a “ação ou omissão sem a qual o resultado não teria
ocorrido”.
Desse modo, uma vez identificado o resultado, no caso, a morte da
vítima, que constitui elemento indispensável à formulação típica do homicídio
culposo, é imprescindível relacioná-lo com a ação realizada pelo agente,
mediante um vínculo causal, cuja ausência acarreta a impossibilidade de
imputação.
Na hipótese dos autos, não restou demonstrada a presença do nexo de
causalidade na acusação feita pelo Ministério Público, no sentido de que os
denunciados são responsáveis pelo homicídio culposo ocorrido, por não terem
sido diligentes, deixando supostamente de obedecer às normas de segurança
necessárias para a realização da festa.
A ausência do nexo causal se confirma na assertiva constante da própria
denúncia, ao dizer que, "considerando-se a profundidade, altura e o biótipo da
vítima, a perícia concluiu também que a piscina não apresentava riscos para
uma pessoa em condições normais independentemente de saber ou não nadar,
assim como as condições apresentadas pela vítima baseadas na dosagem
alcoólica não impediriam a mesma de reagir para evitar o afogamento,
concluindo que a mesma afogou-se em virtude de ter ingerido substâncias
psicotrópicas" (fls. 65⁄66).

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Portanto, infere-se da narração da peça inicial acusatória que houve


consentimento do ofendido na ingestão de substâncias psicotrópicas. Em casos tais,
ocorre a exclusão da responsabilidade, pois se trata de autocolocação em risco, consoante
afirma abalizada doutrina (D’ÁVILA, Fábio Roberto. Crime Culposo e a Teoria da
Imputação Objetiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p.71).
Desse modo, o fato de a vítima ter vindo a óbito em razão da ingestão de
substâncias psicotrópicas não tem relação direta com a conduta dos acusados, o
que afasta a possibilidade de aplicação da teoria da imputação objetiva.
É oportuno ressaltar as palavras do 2º voto vogal integrante do acórdão
(fl. 440):
“Portanto, nesse aspecto há que se dizer que se a vítima sofreu o
acidente porque estava drogada, infelizmente o fez spont própria, não
havendo qualquer elemento nos autos que pudesse incriminar ao
menos um dos membros daquela infeliz Comissão de Formatura! De
se ressaltar ainda que nem mesmo que a vítima estava drogada se
pode afirmar, porque a perícia não realizou o exame de urina
necessário para se verificar se ela se utilizara ou não de drogas. Eis o
laudo pericial: ‘Em função da falta de um histórico clínico e da coleta
de urina (exame de uso de substância psicotrópica) da vítima, não foi
possível identificar a causa do afogamento nas condições existentes’
(fl. 102). E a culpa de tal exame não ser realizado não é dos pacientes.
Nesse aspecto também a conclusão é: se frasco de lança-perfume foi
encontrado no local, que culpa teria a comissão? Será que se esperaria
que os pacientes ficassem na portaria fazendo revista nos convidados
para apreender possíveis drogas? É isso que se espera de uma
Comissão de Formatura? Com todo o respeito, a resposta é não!
Então, quem trouxe a droga? Se ao menos uma das testemunhas
ouvidas houvesse apontado um membro, pelo menos, da comissão,
ainda poderíamos falar de indícios. Mas isso não ocorreu. Então, se a
droga foi motivo da morte da vítima, e também isso não se sabe, que
nexo de causalidade haveria entre a conduta dos estudantes e o fato
em si? Nenhum...”
Segundo leciona DAMÁSIO DE JESUS, “A imputação objetiva requer uma
relação direta entre a conduta e o resultado, e que a afetação jurídica se encontre
em posição de homogeneidade com o comportamento primitivo, inexistindo
quando aquele (evento) vem a ser causado, em fase posterior, pelo próprio
sujeito passivo, terceiro ou força da natureza (resultado tardio)” (O risco de
tomar uma sopa. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, n.16, out.-nov.
2002, p.11).

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No mesmo sentido:
“... é necessário precisar se há uma relação de risco entre a conduta
e o resultado produzido, i.e., há que se determinar, sob o aspecto
normativo, se o risco criado pelo sujeito é o mesmo que se realizou na
produção do resultado, ou, em outros termos, se o evento pode ser
explicado pela violação da norma de cuidado, uma vez que, se a
norma infringida não guarda relação com o resultado, este não é
imputável. Se não existe a relação risco-resultado, a questão se resolve
em termos de tentativa ou atipicidade. Com outras palavras, é
indeclinável a verificação ex post facto se o fim de proteção da norma
incriminadora violada tinha realmente a destinação de impedir a
produção de um resultado normativo como o provocado pelo agente.
O evento jurídico deve ser plasmado pelo risco causado pelo autor. Se
produzido por outros riscos, como pela conduta de um terceiro, pela
própria vítima ou por força da natureza, há exclusão da imputação
objetiva” (DÍAZ, Claudia López. Introducion a la imputación objetiva.
Bogotá: Centro de Investigaciones de Derecho Penal y Filosofia del
Derecho, Universidad Externado de Colombia, 1996, p.49 e 174. Apud
JESUS, Damásio de. O risco de tomar uma sopa. Revista Síntese de
Direito Penal e Processual Penal, n.16, out.-nov. 2002, p.11).
Ainda que se admita a existência de relação de causalidade entre a
conduta dos acusados e a morte da vítima, à luz da teoria da imputação objetiva
necessária é a demonstração da criação pelos agentes de uma situação de risco
não permitido, não-ocorrente, na hipótese, uma vez que é inviável exigir de
uma Comissão de Formatura um rigor na fiscalização das substâncias ingeridas
por todos os participantes de uma festa.
Ademais, uma eventual falta de atendimento aos pressupostos
necessários para a organização da festa por parte da Comissão de Formatura
está fora dos limites do que a doutrina denomina de risco juridicamente
relevante, caracterizando um risco permitido, isto é, um risco geral da vida,
pois, conforme registrado no primeiro voto vogal, “é fato corriqueiro, de todos
sabido, que há uso e abuso de substâncias entorpecentes nas festas promovidas
por jovens, inclusive e principalmente no âmbito universitário, em todo o país”
(fl.447).
Portanto, de acordo com SELMA PEREIRA DE SANTANA:
“... a tradicional observação da relação causal naturalística passa a
constituir o primeiro momento na apuração da imputação objetiva.
Uma vez constatado o vínculo causal, o passo seguinte será a
verificação da existência de critérios de natureza normativa,

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consistentes eles na criação ou incremento de um perigo não


permitido, que se materializa na lesão a um bem juridicamente
tutelado, dentro do alcance do tipo, uma vez que as normas só podem
coibir condutas que gerem ou aumentem riscos não permitidos a bens
juridicamente tutelados (Atualidades do delito culposo. Boletim
IBCCrim, São Paulo, vol. 10, n. 114, p. 6, maio 2002. Apud JESUS,
Damásio de. Momento de verificação da presença da imputação
objetiva. In Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, nº 02, ano
16, fev.⁄2004, p.37).
Ainda como ensina CLAUS ROXIN:
“... a imputação ao tipo objetivo pressupõe que no resultado se
tenha realizado precisamente o risco proibido criado pelo autor. Por
isso, está excluída a imputação objetiva, em primeiro lugar, se, ainda que o
autor tenha criado um perigo para o bem jurídico protegido, o resultado
normativo produziu-se, não como efeito desse perigo, mas sim em conexão
casual com o mesmo” (Derecho Penal: Parte Geral, v.I, p.373. Apud JESUS,
Damásio de. O risco de tomar uma sopa. Revista Síntese de Direito Penal
e Processual Penal, n.16, out.-nov. 2002, p.11)
Associada à teoria da imputação objetiva, sustenta também a doutrina
que vigora o princípio da confiança, segundo o qual as pessoas se comportarão
em conformidade com o direito, enquanto não existirem pontos de apoio
concretos em sentido contrário, os quais não seriam de afirmar-se diante de
uma aparência suspeita (pois se trata de um critério vago, passível de aleatórias
interpretações), mas só diante de uma reconhecível inclinação para o fato
(ROXIN, Claus. Teoria da Imputação Objetiva. Revista Brasileira de Ciências
Criminais, ano 9, abr.-jun. 2002, Ed. Revista dos Tribunais, pp.11-31, p.14).
Desse modo, no caso concreto, não poderia a Comissão de Formatura
prever o comportamento da vítima, que, conforme consta da própria denúncia,
somente veio a afogar-se acidentalmente em virtude de ter ingerido substâncias
psicotrópicas, comportando-se de forma contrária ao direito, inexistindo
indicação na denúncia de que aparentemente isso pudesse ser antevisto.
De outro ângulo, vale destacar a doutrina do já citado Professor CLAUS
ROXIN, o qual sustenta que só é imputável aquele resultado que pode ser finalmente
previsto e dirigido pela vontade. Logo, os resultados que não forem previsíveis ou
dirigíveis pela vontade não são típicos. “Equipara-se a possibilidade de
domínio através da vontade humana (finalidade objetiva) à criação de um risco
juridicamente relevante de lesão típica de um bem jurídico. Esse aspecto é
independente e anterior à aferição do dolo ou da culpa” (Apud PRADO, Luiz

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Regis. Teoria da Imputação Objetiva do Resultado: Uma Abordagem Crítica.


Revista dos Tribunais, ano 91, v.798, abril de 2002, pp.447⁄448).
Assim, à luz da citada doutrina, antes e independentemente de se aferir a culpa
dos denunciados, constata-se a inexistência de previsibilidade do resultado, o que
acarreta a atipicidade da conduta e o conseqüente trancamento da ação penal.
A matéria já foi tratada por esta Corte em caso semelhante, assim
ementado:
“Recurso em Habeas Corpus – Homicídio Culposo – Afogamento –
Culpa Presumida e Responsabilidade Penal Objetiva – Inexistência –
Trancamento da Ação Penal – Recurso Provido
A responsabilidade penal é de caráter subjetivo, impedindo o
brocardo nullun crimen sine culpa que se atribua prática de crime a
presidente de clube social e esportivo pela morte, por afogamento, de
menor que participava de festa privada de associada e mergulhou em
piscina funda com outros colegas e com pessoas adultas por perto.
Inobservância de eventual disposição regulamentar que não se traduz
em causa, mas ocasião do evento lesivo.
Recurso provido” (RHC 11.397/SP, Rel. Min. José Arnaldo da
Fonseca, 5ª Turma, DJ de 29.10.2001, p.219).
Pelo exposto, concedo a ordem impetrada para trancar a ação penal em
relação a todos os denunciados, com base no art. 580 do Código de Processo
Penal, em razão da inépcia da denúncia, por fazer acusação sem um mínimo de
individualização das condutas dos acusados, bem como em razão da
atipicidade da conduta narrada, pela ausência de previsibilidade, de nexo de
causalidade e de criação pelos pacientes de um risco não permitido.
É como voto.

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