Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Mário Soares
Senhor Reitor
Senhores Professores
Caros Amigos
que dormia no beliche por baixo do meu, tinha entrado no país, clan
destinamente, numa peregrinação, estava convencido de que tinha uma
relação especial com Nossa Senhora de Fátima. Foi apanhado e como
não tinha identificação nem ninguém que se interessasse por ele, estava
“depositado” em Caxias, há meses, não se lembrava bem há quantos.
Quando me “depositaram” a mim, naquela estranha sala, apareci-
lhes, calculo, “como um bicho raro”. Os guardas tratavam-me por tu, o
que não era frequente relativamente aos presos políticos, salvo os rurais
ou os operários. Era a ordem certamente que tinham para fazerem com
preender aos meus companheiros de cela que estava ao nível deles. O
que era verdade. Fui recebido, aliás, com uma certa hostilidade. Nas
celas colectivas, como era o caso, havia sempre um chefe de sala,
designado pelo chefe dos guardas. É quem tem a responsabilidade da
disciplina e dá ordens aos outros prisioneiros, em nome dos guardas,
claro, e para ganhar a confiança deles. No meu tempo era assim. Soube
que nessa sala havia um “cadastrado” qualquer, com cara de “poucos
amigos”, que era o chefe de cela e me foi apresentado pelos guardas
como tal. A primeira coisa que me disse, foi: “Você, chegou hoje, toca-
lhe limpar a cela, é a regra. Tem aí uma vassoura, um balde e um esfre
gão. Quero a retrete bem limpa”. Percebi que era a primeira prova, para
medir forças. Que havia ali uma hostilidade patente e tensões diversas.
Nas outras prisões políticas em que havia estado, a regra, entre os “pre
sos”, era a solidariedade, a confiança e a partilha. Naquela, a hostili
dade, a intriga, a desconfiança de todos contra todos. Obedeci e, pela
primeira vez na vida, com toda a naturalidade de que fui capaz, limpei
uma retrete. Julgo mesmo que a limpei bem, escrupulosamente.
O que foi extraordinário e exaltante, para mim, é que entrei naquela
cela com a desconfiança absoluta, de certo preparada pelos guardas,
dos meus companheiros de prisão, até porque me sentiam diferente
deles (estava bem vestido, tinha visitas da minha Mulher, do meu Pai e
dos meus Filhos, do meu advogado, recebia bons cigarros, bolos, doces
e fruta, que distribuía, regularmente, por todos e, sobretudo, por que
tratava os guardas com correcção, mas de cima para baixo, lembrando-
lhes os meus direitos e a lei sempre que era necessário) e, ao fim de
quatro ou cinco dias, tinha rigorosamente na mão a cela toda, a come
çar pelo seu famigerado chefe. Acreditem que não estou a gabar-me, ao
fim de tantos anos, seria ridículo. Estou a relatar objectivamente uma
experiência - imaginem! - que considero gratificante, porque prova
que uma pessoa que não se deixa humilhar em situações adversas - e
A MINHA EXPERIÊNCIA PRISIONAL 337
e sem se poder sentar. No final saiu dali, por ter tido uma síncope de
que podia, aliás, ter morrido. Não morreu, felizmente, mas ficou com
sequelas. Resistiu e não disse nada, nem sequer como se chamava. Por
meu lado, estive, modestamente, três dias e quatro noites seguidas
sujeito á tortura do sono. Não foi nada fácil. As pernas começaram a
inchar-me e a ter problemas de visão.
Passou-se isto, depois da revolta do Quartel de Beja, que teve lugar
em 31 de Dezembro de 1961. Um dos dirigentes mais importantes
dessa revolta, no plano civil, foi Fernando Piteira Santos, um resistente
e um intelectual muito conhecido, nos meios da Oposição, que depois
do 25 de Abril foi director-adjunto do jornal Diário de Lisboa.
Procurado em casa, depois da revolta ter falhado, conseguiu fugir, não
se deixando prender. Refugiou-se em Algés, em cada do velho profes
sor Dentinho, amigo dele. A PIDE andava, desesperada, a ver se con
seguia descobrir o paradeiro do Piteira Santos. Um belo dia lembraram-
se de uma armadilha simples. Um agente da PIDE telefonou à mulher
do Piteira, muito cedo, de manhã, uma voz que ela não conhecia. Disse
assim: “Esteia, não faça perguntas. O Fernando (o primeiro nome do
marido), acaba de ser preso”. Desligaram. Mas puseram o seu telefone
em escuta. A Esteia, aflita, desatou a chorar e lembrou-se de me telefo
nar a mim, advogado e amigo íntimo do casal. Seriam sete da manhã:
“Mário, não lhe dizia que o Fernando ia ser preso? Porque é que Vocês
não o ajudaram a ir para o estrangeiro?” Compreendi, imediatamente, a
armadilha e limitei-me a recomendar-lhe calma. Prometi passar por
casa dela, logo que pudesse. Disse à minha mulher: “Vou-me já embora
porque vou ser preso, com certeza. A PIDE escutou as chamadas. E
realmente assim fiz. Tinha estado com o Piteira na véspera, deixei-o em
casa do professor Dentinho e sabia que se ele tivesse sido preso, não
haveria ninguém para avisar a mulher. Nesse dia tinha um julgamento.
Telefonei ao meu colega de escritório Soromenho para ele me substituir
no julgamento. Combinámos almoçar no York Bar, para lhe dar os por
menores do julgamento. Erro fatal. Não previ que o telefone do
Soromenho também estivesse em escuta. Prenderam-me à entrada do
York Bar e conduziram-me imediatamente à sede da PIDE, na Rua
António Maria Cardoso. Muito perto. Levaram-me para o célebre 4o
andar, às celas para interrogatórios. E perguntaram-me de chofre:
“onde está o Dr. sabe". Respondi: “Não sei, mas ainda que soubesse,
não vos diria. Não sou denunciante.” Responderam, calmamente: "O
Senhor vai-se lembrar. Temos todo o tempo para que o Senhor se lem-
F
I
i
3
Zenha. Mas eu sabia que a decisão tinha que ser minha, fosse qual
fosse, porque não podia, a posteriori, desculpar-me com ninguém.
Resolvi partir. O meu empregado de escritório, o fiel Raul, informou-se
dos aviões disponíveis. Não havia nenhum. Estávamos no primeiro de
Agosto. Decidi partir, com a minha Mulher e os meus dois Filhos, no
meu próprio cano, um Renault 16.
Parti, angustiado e triste. Não sabia o que me poderia esperar. À
morte de meu Pai, minha grande referência, toda a vida, somava-se
agora a incerteza quanto ao futuro - para os meus e para mim.
Rodámos toda a noite, que me pareceu soturna e inóspita como nunca.
Revezavamo-nos ao volante, porque todos conduzíamos. Atravessámos
a fronteira da França às primeiras horas da manhã.
Fixei-me em Paris, terra acolhedora de exílio. Dois meses depois
tinha o meu primeiro emprego: professor associado na Universidade da
Alta Bretanha - Rennes. Depois acumulei com Vincennes e, mais
tarde, com a Sorbonne - Paris IV.
Um ano depois, estava perfeitamente adaptado, com uma pequena
casa alugada onde vivia sozinho, embora passasse com a minha Mulher
e os meus Filhos todas as férias. Estabeleci uma larga rede de contac
tes políticos, socialistas mas também de outros partidos, com as Ligas
do Direitos Humanos, os adversários das guerras coloniais, com jorna
listas, intelectuais, artistas e universitários franceses, espanhóis e gre
gos exilados em França. E, especialmente, uma rede de futuros mili
tantes socialistas, emigrantes e exilados em França - e um pouco por
toda a parte na Europa - e também uma rede de excelentes contactes
com os diversos movimentes nacionalistas africanos, criando laços fra
ternos de solidariedade com alguns dos seus dirigentes. Caetano come
teu um eiTO ao forçar-me a ir para o exílio. Não fui. no exílio, como
porventura esperaria, um elemento perturbador para a Oposição, como
Humberto Delgado havia sido. Essa lição tinha-a aprendido. Pelo con
trário, fui um elemento aglutinador e de unidade.
Em 1972 publiquei na Calmann-Levy o “Portugal Baionné” que
teve algum sucesso e foi traduzido em várias línguas: inglês, espanhol,
alemão, italiano e grego. Viajei imenso. Publicava regularmente arti
gos. Sentia-me como peixe na água. Era a primeira vez que vivia numa
sociedade democrática - e aprendi enormemente. Amadureci, política
e culturalmente.
Por isso, muitas vezes, não me impedi de pensar: "por muitos anos
que vivesse não teria tempo de agradecer a Marcello Caetano, ter-me
348 DIREITO E JUSTIÇA
expulso de Portugal”. Sem o exílio, não teria sido o que fui. É o que
costumo chamar dar a volta por cima às situações difíceis que a vida
nos prepara...
Termino. Já vos ocupei demais, com estas notas dispersas - e
espontâneas - sobre “a minha experiência prisional”. Volto à profecia
do inspector Sacchetti quando me mandou para S. Tomé (em 1968)
convencido que eu era como uma pedra atirada a um poço. Enganou-
se. Seis anos depois voltei triunfalmente a Lisboa com os meus cama
radas do “comboio da Liberdade”. Menos de um mês depois, era
Ministro dos Negócios Estrangeiros do I Governo Provisório. Em Abril
de 1975, líder do maior partido português - o PS - nas primeiras elei
ções livres realizadas em Portugal, nos últimos 50 anos. Em Abril de
1976, confirmada a vitória socialista nas primeiras eleições legislativas,
nos termos da Constituição da República, recém votada, fui designado
primeiro ministro do I Governo Constitucional da II República. E,
assim, por diante, ora na Oposição ora no Governo, até Janeiro de 1986
em que fui eleito, por voto directo e secreto dos portugueses,
Presidente da República Portuguesa, por sinal o primeiro civil desde a
I República.
Nunca esperei tanto. E quando penso como isto foi possível, nesta
revisitação da minha experiência prisional, que a Universidade Católica
me propôs que fizesse, respondo: porque procurei sempre ser coerente
comigo próprio e com as minhas convicções, sincero, autêntico, solidá
rio com os mais pobres e necessitados, com sentido do serviço público,
i fiel à República, ao Socialismo e à Liberdade.
i
Muito obrigado!
5 BIBLIOTECA £
6 5
C.E.R.C.
Centro de Estudos de Religiões e Culturas
Cardeal Hõffner