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A minha experiência prisional

Mário Soares

Senhor Reitor
Senhores Professores
Caros Amigos

Ouviram duas doutas conferências sobre os complexos problemas


do direito prisional ou penitenciário e agora vão ouvir algumas consi­
derações práticas de um, antigamente, “perigoso cadastrado”. No fundo
é o que me pedem. Dizer qual foi a minha experiência de prisioneiro,
relapso antifascista, nos tempos da ditadura.
Quero começar por agradecer o honroso convite que me foi formu­
lado pela Universidade Católica - que tanto aprecio - e, em especial,
pelo Professor Paulo de Albuquerque que foi quem realmente me con­
venceu a aceitar fazer esta “revisitação” a um passado esquecido.
Queria, ainda, felicitar a Universidade por esta iniciativa, por estas tão
densas jornadas, pela qualidade excepcional dos participantes e pela
importância e oportunidade dos temas tratados.
É de salientar que não foram só penalistas os convidados para fazer
intervenções de fundo. Foram também professores de letras, de medi­
cina, sociólogos e psicólogos que nos trouxeram os seus contributos,
numa perspectiva de interdisciplinaridade extremamente significativa e
interessante. Estive muito atento às dissertações que pude ouvir.
Apreciei muito o que disseram e senti-me um pouco deslocado no
debate uma vez que venho tratar de uma questão diferente. Venho falar-
vos - foi o tema que me propuseram - modestamente, da minha expe­
riência prisional.
332 DIREITO E JUSTIÇA

O problema das prisões - e do seu funcionamento - está hoje na


ordem do dia. Em todo o mundo. O que é um triste sinal dos tempos.
Depois de termos assistido - como assistimos - às trágicas revelações
que se fizeram após a II Grande Guerra, as atrocidades praticadas pelos
fascistas e, sobretudo, pelos nazis nos campos de concentração e de
extermínio de Mussolini e de Hitler, pensámos que tínhamos conhecido
o horror máximo. Comparados com elas, as prisões de Franco e Salazar,
que não eram pêra nada doce, pareciam um horror menor, se é que há
uma escala na ordem dos horrores. Passado o pós-guena, a humanidade
verificou, com espanto, que não conhecia tudo. E soubemos então dos
gulags soviéticos denunciados por Soljenitzine e por outros dissidentes.
Houve então um sério debate, visto que uma parte da intelectuali­
dade ocidental se recusava a reconhecer que a “pátria do socialismo”
cometesse tais atrocidades, iguais ou piores do que as dos nazis. Mas
não foi possível ocultar a verdade por mais tempo. Veio à tona de água,
com irrefutável evidência. E também - destruído o muro de Berlim —
o que se passava nas chamadas “democracias populares”, que não
tinham nada de democráticas nem de populares, nos regimes comunis­
tas asiáticos, por exemplo, sob os Khmers Vermelhos, Pol Pot e tantos
outros criminosos de direito comum.
Pensámos então, de novo, que tínhamos visto tudo. Mas não.
Estamos agora a assistir a um novo horror, inesperado - e daí a enorme
actualidade destas jornadas. Estamos a assistir à invasão e ocupação
ilegal do Iraque - uma ditadura abominável, é verdade - por um pode­
roso exército anglo-americano, sem paralelo no seu imenso poderio
militar, mas, note-se, que não teve o aval das Nações Unidas e foi feita
ao arrepio do Direito Internacional, com o pretexto de “libertar” um
país soberano de um ditador e de um regime execráveis. Mas há tantos
no mundo. E porque meios? Pela violência mais cruel, à bomba,
matando indiscriminadamente, a população civil, destruindo impune­
mente museus e bibliotecas de um inestimável valor civilizacional, com
o pretexto de impor a democracia e um indisfarçável cheiro a petróleo.
E como estão a ser tratados os prisioneiros resultantes da invasão? No
respeito dos Direitos Humanos tão proclamados? Nada disso. Há dois
anos há prisioneiros islâmicos na base americana de Guantanamo, em
Cuba, sem quaisquer direitos, sem advogados, num verdadeiro “campo
de concentração”. E agora, no Iraque, perto da capital, Bagdade, des-
cobriu-se haver prisioneiros submetidos às maiores e mais humilhantes
violências física e - pasme-se - sexuais.
A MINHA EXPERIÊNCIA PRISIONAL 333

Um caricaturista, às vezes, num só traço, põe em evidência o que as


pessoas, sem a ajuda da caricatura, levariam muito tempo para perce­
berem. O caricaturista do Le Monde, Plantu, publicou uma caricatura
que eu achei admirável: um militar americano punha a bota na cabeça
de um prisioneiro islâmico, deitado no chão. E intimava-o “Repita: de-
mo-cra-cia!”... Ou seja: ensinar a democracia com a bota militar em
cima da cabeça dos iraquianos!...
De modo que a situação, para os penalistas, é realmente extrema­
mente complexa. Como fazer prevalecer o Direito sobre a força bruta,
quando os Estados Unidos, que têm a palavra liberdade sempre na
boca, calcam aos pés os Direitos Humanos, sempre que estão em jogo
os interesses do “império”? Foram os americanos - não se lembram -
que lançaram a campanha dos Direitos Humanos para pôr na defensiva
os soviéticos, perante a corajosa denúncia dos dissidentes a nível mun­
dial, insistindo que havia falta de respeito por esses direitos essenciais
na União Soviética. Agora, com o maior desplante, fazem exactamente
a mesma coisa. E, realmente, inaceitável! Daí considere ser extrema­
mente oportuno realizar na Universidade Católica estas Jornadas sobre
o Direito Penal e os Sistemas Prisionais, sem fazer abstracção do que
se passa no mundo, em particular no nosso Mundo Ocidental.
Devo dizer que me parece um pouco pretensioso o título que foi
dado a esta modesta palestra: falar da minha experiência prisional. Não
nego que tenho uma certa experiência prisional, mas em comparação
com a maior parte das pessoas que conheci, com uma vivência das pri­
sões políticas - passamos agora das cadeias comuns para as políticas -
devo reconhecer, com humildade, que a minha experiência é bastante
modesta e benigna. Estive preso doze vezes e conheço três diferentes
estabelecimentos prisionais: o Aljube, na zona velha de Lisboa, em pri­
meiro lugar, uma cadeia muito dura e sem o mínimo de condições.
Entre parêntesis direi que quis, depois do 25 de Abril, transformar o
Aljube num museu. No entanto, os serviços do Ministério da Justiça
levantaram dificuldades que não me foi possível vencer. Foi pena. É um
lugar histórico de sofrimento e tortura por onde passaram milhares e
milhares de antifascistas ao longo de várias décadas.
Fechado o parêntesis, conheci Caxias, onde estive mais tempo e por
diversas vezes, no chamado reduto norte. Hoje é uma prisão onde estão
prisioneiros comuns. Finalmente, a Penitenciária de Lisboa, onde habi­
tei uma célula individual, incomunicável. Estes foram os três estabele­
cimentos prisionais que conheci - para além de várias esquadras de
334 DIREITO E JUSTIÇA

polícia e das instalações da PIDE, por onde também passei, em trânsito


- ao longo de trinta e dois anos, tantos foram os que vivi, desde os
dezassete anos, de uma actividade política permanente anti-ditatorial e
que mereceu a consequente repressão policial.
Estive ainda, quase um ano, deportado na ilha de S. Tomé, sem jul­
gamento e por tempo indeterminado, em 1968, um ano de grandes
acontecimentos a nível europeu. E fui, depois, no consulado de
Marcello Caetano, expulso, arbitrariamente, do território nacional.
Fiquei exilado em França do Verão de 1970 a Abril de 1974. Como
terra de exílio, só tenho a dizer bem da França que me acolheu, gene­
rosamente, nos anos de De Gaulle e de Pompidou. Era difícil, naquela
altura, escolher qualquer outro país de exílio na Europa. A Espanha era
impossível, sob Franco. Não oferecia quaisquer garantias, embora em
passagens eventuais nunca tivesse tido problemas. A Alemanha ou o
Reino Unido eram possíveis, mas com línguas menos familiares. Na
Itália, passei algumas temporadas. Fixei-me, contudo, no país mais
conhecido e que me deu um excelente acolhimento, França, em cujas
Universidades fui professor, para ganhar a vida, e aprendi muitíssimo.
Além destas prisões, havia, outras naquele tempo - que eu me lem­
bre - que eram importantes e onde haviam muitos presos. A prisão do
Forte de Peniche, onde se cumpria pena, era um tipo de depósito prisi­
onal de alta segurança, como a PIDE dizia, para cumprimento de pena
e não para presos preventivos, à espera de julgamento. Foi de Peniche
que fugiu Álvaro Cunhal e alguns outros seus camaradas. Uma prisão
do Porto, cujo nome não recordo, donde fugiu Palma Inácio; e, final­
mente, o Tarrafal, o famigerado campo de concentração e morte lenta,
em Cabo Verde, onde tive a sorte de, realmente, nunca ter ido parar
(embora fosse ameaçado) porque era a pior e mais dura de todas. Tenho
um amigo, o Edmundo Pedro, resistente, antifascista bem conhecido e
socialista, que esteve lá dez anos, desde os seus dezasseis anos, nunca
tendo sido sequer julgado. Foi apanhado numa rusga, pela polícia, em
Alcântara e mandaram-no para o Tarrafal, dez anos, onde estava tam­
bém seu pai, Gabriel Pedro, um revolucionário de rija têmpera. Até
resolverem, dadas as pressões internacionais exercidas no final da
guerra, porem-nos na rua, sem qualquer explicação. Os primeiros dez
anos da juventude de Edmundo Pedro, dos dezasseis ao vinte e seis
anos, foram passados no tenebroso Campo de Concentração do
Tarrafal, tórrido e insalubre, sem julgamento prévio nem culpa for­
mada!
A MINHA EXPERIÊNCIA PRISIONAL 335

Note-se: o Tarrafal, um pouco desactivado no pós-guerra, nos anos


50, foi reactivado em 1961, por causa das guerras coloniais. Lá estive­
ram notáveis nacionalistas africanos .
Claro que eu fui sempre preso político, uma categoria muito parti­
cular de prisioneiros. Porque para haver presos políticos é preciso haver
um regime ditatorial. Em democracia, não há - ou raramente, em con­
dições especialíssimas - presos políticos. Digamos, para sermos mais
precisos, que não é normal que haja presos políticos, em democracia.
Porque a categoria de “crime político” não existe, como não existem os
chamados “delitos de opinião”. Pode haver crimes por actos terroristas
ou por revoltas violentas, com intenção política mais ou menos explí­
cita, mas tais crimes consistem nos actos violentos e concretos pratica­
dos, punidos por lei, e não nas intenções políticas que eventualmente os
possam ter ditado.
Também estive, que me lembre, pelo menos uma vez, numa cela em
Caxias onde só estavam presos comuns. A ideia, inabitual e inédita,
tanto quanto pude averiguar, foi por a polícia política, a Pide, que sabia
não ter provas consistentes para me levar a julgamento, ter resolvido
aplicar-me, em tempo de prisão preventiva, uma dose suplementar de
humilhação, sujeitando-me na cadeia de Caxias, a um tratamento só
dado aos presos comuns. Foi, aliás, uma experiência extraordinária
para mim, devo dizer-lhes. Os especialistas de Direito Penal que me
escutam têm uma ideia, necessariamente teórica, do que é estar preso.
Ora, permitam-me que lhes diga, que a prisão é uma escola, para o mal
e para o bem. É uma escola que eu considero, em certos aspectos,
insubstituível. Explicar-vos-ei porquê.
Realmente, fui metido nessa cela onde estavam vinte e dois presos
ditos comuns, numa cela exígua para o número de detidos, dormindo
em beliches em três andares, sem mais espaço para andar, do que para
dar três ou quatro passos, com uma só janela gradeada, uma mesa com
bancos corridos onde se comia e um compartimento, minúsculo dentro
da cela, para as dejecções e lavagens necessariamente sumárias. Não se
podia sair da cela a não ser para um banho semanal de água fria, gelada,
e meio hora diária, para desentorpecer as pernas e andar numa espécie
de saguão aberto, com guardas republicanos armados, em cima, a
vigiar. Os meus companheiros de cela eram tipos estranhos. Alguns
estrangeiros, indocumentados, outros portugueses, pequenos traficantes
à espera de julgamento, outros paranoicos apanhados com droga e coi­
sas assim. Pequena ou média criminalidade. Um deles, lembro-me bem.
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que dormia no beliche por baixo do meu, tinha entrado no país, clan­
destinamente, numa peregrinação, estava convencido de que tinha uma
relação especial com Nossa Senhora de Fátima. Foi apanhado e como
não tinha identificação nem ninguém que se interessasse por ele, estava
“depositado” em Caxias, há meses, não se lembrava bem há quantos.
Quando me “depositaram” a mim, naquela estranha sala, apareci-
lhes, calculo, “como um bicho raro”. Os guardas tratavam-me por tu, o
que não era frequente relativamente aos presos políticos, salvo os rurais
ou os operários. Era a ordem certamente que tinham para fazerem com­
preender aos meus companheiros de cela que estava ao nível deles. O
que era verdade. Fui recebido, aliás, com uma certa hostilidade. Nas
celas colectivas, como era o caso, havia sempre um chefe de sala,
designado pelo chefe dos guardas. É quem tem a responsabilidade da
disciplina e dá ordens aos outros prisioneiros, em nome dos guardas,
claro, e para ganhar a confiança deles. No meu tempo era assim. Soube
que nessa sala havia um “cadastrado” qualquer, com cara de “poucos
amigos”, que era o chefe de cela e me foi apresentado pelos guardas
como tal. A primeira coisa que me disse, foi: “Você, chegou hoje, toca-
lhe limpar a cela, é a regra. Tem aí uma vassoura, um balde e um esfre­
gão. Quero a retrete bem limpa”. Percebi que era a primeira prova, para
medir forças. Que havia ali uma hostilidade patente e tensões diversas.
Nas outras prisões políticas em que havia estado, a regra, entre os “pre­
sos”, era a solidariedade, a confiança e a partilha. Naquela, a hostili­
dade, a intriga, a desconfiança de todos contra todos. Obedeci e, pela
primeira vez na vida, com toda a naturalidade de que fui capaz, limpei
uma retrete. Julgo mesmo que a limpei bem, escrupulosamente.
O que foi extraordinário e exaltante, para mim, é que entrei naquela
cela com a desconfiança absoluta, de certo preparada pelos guardas,
dos meus companheiros de prisão, até porque me sentiam diferente
deles (estava bem vestido, tinha visitas da minha Mulher, do meu Pai e
dos meus Filhos, do meu advogado, recebia bons cigarros, bolos, doces
e fruta, que distribuía, regularmente, por todos e, sobretudo, por que
tratava os guardas com correcção, mas de cima para baixo, lembrando-
lhes os meus direitos e a lei sempre que era necessário) e, ao fim de
quatro ou cinco dias, tinha rigorosamente na mão a cela toda, a come­
çar pelo seu famigerado chefe. Acreditem que não estou a gabar-me, ao
fim de tantos anos, seria ridículo. Estou a relatar objectivamente uma
experiência - imaginem! - que considero gratificante, porque prova
que uma pessoa que não se deixa humilhar em situações adversas - e
A MINHA EXPERIÊNCIA PRISIONAL 337

se mantém psicologicamente firme - pode voltar a seu favor uma


experiência em que à partida tinha tudo contra si. Em São Tomé, aliás,
em circunstâncias muito diversas, vivi um fenómeno semelhante.
Notem que os meus companheiros de prisão estavam permanente­
mente em luta uns contra os outros. Não tinham um horizonte e descar­
regavam as tensões desse modo. Tentei percebê-los, conhecê-los, saber
por que estavam ali. Um por um. Sempre numa posição amigável, ao
nível deles, prestando-lhes pequenos serviços. Estavam todos muito
confusos e amedrontados. Mesmo os aparentemente mais fortes. Escrevi
cartas, aos estrangeiros, dirigidas aos cônsules dos diferentes países a
que pertenciam, informando-os da situação em que se encontravam e
pedindo-lhes auxílio. Algumas deram resultado. Os cônsules, em menos
de oito dias, começaram a visitá-los. Foi o meu primeiro sucesso. O
estatuto deles na cadeia mudou, como se percebe. A partir daí passei a
ser o advogado e o consultor benévolo de todos, mesmo do chefe da
sala. Pediam-me opiniões e pequenos favores. Escusado será dizer que
passaram a não me deixar fazer nada, nem limpezas nem sequer a cama
no meu beliche, que aliás era dificílima de fazer, no terceiro plano. Os
meus companheiros prisionais ofereciam-se sempre para fazer esses tra­
balhos por mim. Saí dali dois meses depois, creio, com a sensação de ter
conseguido dar volta por cima à situação. Por isso disse que a prisão, às
vezes, pode ser uma boa escola sobre nós próprios e sobre os outros e.
quando se é capaz de resistir a situações duras e adversas, pode até tor­
nar-se exaltante. Foi o que me aconteceu sempre. Sobretudo depois dos
longos e duríssimos interrogatórios da P1DE.
Durante os anos mais duros do fascismo, a justiça penal política, se
lhe posso chamar assim, era, antes de mais, uma justiça de classe.
Exemplifico: era raríssimo que os lincenciados fossem espancados e
sujeitos a torturas físicas. Essas estavam reservadas para os camponeses,
os operários e as pessoas de um nível social modesto. Eu nunca fui
espancado, nas doze vezes que passei pela cadeia. Pelo contrário, sem­
pre me trataram, salvo raras excepções, com alguma deferência. Acho
que ao Dr. Álvaro Cunhal também nunca lhe bateram. Esteve preso onze
anos seguidos, quase sempre incomunicável, mas não foi espancado.
Devo dizer que fui cerca de 16 anos advogado e defendi inúmeros
presos políticos, alguns que foram sujeitos a torturas e espancamentos
terríveis. Um dos quais - como vou contar a seguir - em pleno
Tribunal Plenário de Lisboa. Mas mais duro do que estar preso eram os
interrogatórios, feitos quase sempre à noite, a altas horas, na tenebrosa
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sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso. Quando um preso era


chamado à PIDE nunca sabia quando regressava, quanto tempo demo­
ravam os interrogatórios, que frequentemente se prolongavam por
vários dias. Também tenho essa experiência pessoal e directa e posso
testemunhar que não era nada fácil de aguentar. A orientação do pro­
cesso era toda ela dirigida com um único objectivo: obter a confissão
do arguido.
Realmente a PIDE era considerada uma organização tenebrosa de
malfeitores. Mas não era eficaz. Conseguia êxitos pela violência exer­
cida sobre os presos - obrigando-os a confessar o que tinham e o que
não tinham feito. Não tinham um bom serviço de informações nem
uma especial argúcia investigatória. Toda a prova residia sobre a con­
fissão. Por isso, quando os presos não falavam - foi sempre o meu
caso - não havia matéria para os levar a Tribunal.
Muitas das confissões obtidas, resultavam do medo que a PIDE
infundia e dos maus-tratos a que sujeitava os presos. O temor das ame­
aças de violência levava os detidos a, por vezes, sucumbir. Desde que
começassem a falar, depois diziam tudo o que os agentes queriam,
mesmo falsidades. A experiência prisional e de advogado de presos
políticos, ensinou-me que havia duas espécies de presos: aqueles que
falavam, perdiam o senso da honra, e depois denunciavam os camara­
das e diziam tudo aquilo que os investigadores lhes ordenavam; e aque­
les que não falavam ou falavam, dizendo apenas coisas acessórias,
recusando-se a denunciar os camaradas. E havia aqueles ainda que
tendo-se “ido abaixo na PIDE” - como se dizia - chegados a Tribunal
negavam as confissões, alegando terem-nas feito sob coacção.
Além do tenor e da violência para obter as confissões necessárias, a
PIDE utilizava, com frequência, como instrumentos de tortura: o isola­
mento, em celas de reduzidas dimensões, quase sem luz, os chamados
“curros” do Aljube (onde estive uma vez, quase todo um mês), as célu­
las individuais de Caxias e as da Penitenciária; e a tortura do sono.
Conheci, pessoalmente, como preso, todas essas modalidades.
A tortura do sono consistia em obrigar o preso a não dormir, dias e
noites seguidos, com focos de luz sobre os olhos e um ou dois agentes
em permanência, que se revezavam de quatro em quatro horas, dando
ao preso a sensação que ficaria nessa situação, indefinidamente, até
confessar. Um cliente meu e velho amigo - o dirigente comunista
Octávio Pato - que viveu ainda bastantes anos após o 25 de Abril
esteve quinze dias a fazer de estátua sem o deixarem dormir um minuto
A MINHA EXPERIÊNCIA PRISIONAL 339

e sem se poder sentar. No final saiu dali, por ter tido uma síncope de
que podia, aliás, ter morrido. Não morreu, felizmente, mas ficou com
sequelas. Resistiu e não disse nada, nem sequer como se chamava. Por
meu lado, estive, modestamente, três dias e quatro noites seguidas
sujeito á tortura do sono. Não foi nada fácil. As pernas começaram a
inchar-me e a ter problemas de visão.
Passou-se isto, depois da revolta do Quartel de Beja, que teve lugar
em 31 de Dezembro de 1961. Um dos dirigentes mais importantes
dessa revolta, no plano civil, foi Fernando Piteira Santos, um resistente
e um intelectual muito conhecido, nos meios da Oposição, que depois
do 25 de Abril foi director-adjunto do jornal Diário de Lisboa.
Procurado em casa, depois da revolta ter falhado, conseguiu fugir, não
se deixando prender. Refugiou-se em Algés, em cada do velho profes­
sor Dentinho, amigo dele. A PIDE andava, desesperada, a ver se con­
seguia descobrir o paradeiro do Piteira Santos. Um belo dia lembraram-
se de uma armadilha simples. Um agente da PIDE telefonou à mulher
do Piteira, muito cedo, de manhã, uma voz que ela não conhecia. Disse
assim: “Esteia, não faça perguntas. O Fernando (o primeiro nome do
marido), acaba de ser preso”. Desligaram. Mas puseram o seu telefone
em escuta. A Esteia, aflita, desatou a chorar e lembrou-se de me telefo­
nar a mim, advogado e amigo íntimo do casal. Seriam sete da manhã:
“Mário, não lhe dizia que o Fernando ia ser preso? Porque é que Vocês
não o ajudaram a ir para o estrangeiro?” Compreendi, imediatamente, a
armadilha e limitei-me a recomendar-lhe calma. Prometi passar por
casa dela, logo que pudesse. Disse à minha mulher: “Vou-me já embora
porque vou ser preso, com certeza. A PIDE escutou as chamadas. E
realmente assim fiz. Tinha estado com o Piteira na véspera, deixei-o em
casa do professor Dentinho e sabia que se ele tivesse sido preso, não
haveria ninguém para avisar a mulher. Nesse dia tinha um julgamento.
Telefonei ao meu colega de escritório Soromenho para ele me substituir
no julgamento. Combinámos almoçar no York Bar, para lhe dar os por­
menores do julgamento. Erro fatal. Não previ que o telefone do
Soromenho também estivesse em escuta. Prenderam-me à entrada do
York Bar e conduziram-me imediatamente à sede da PIDE, na Rua
António Maria Cardoso. Muito perto. Levaram-me para o célebre 4o
andar, às celas para interrogatórios. E perguntaram-me de chofre:
“onde está o Dr. sabe". Respondi: “Não sei, mas ainda que soubesse,
não vos diria. Não sou denunciante.” Responderam, calmamente: "O
Senhor vai-se lembrar. Temos todo o tempo para que o Senhor se lem-
F

340 DIREITO E JUSTIÇA

bre.” Os polícias revezando-se de 4 em 4 horas e repetiam sempre a


mesma pergunta. Polida mas friamente. O dia foi bastante duro. A noite
bastante pior. Ao cabo de 4 dias entrei em desespero. Comecei a ter
medo de não aguentar e a ouvir sons confusos. Percebi que só podia
sair daquela situação, provocando um espancamento. Disse a um
agente que pretendia falar com o inspector superior Sacchetti, ao tempo
um dos personagens máximos da PIDE, muito temido. Devem ter-se
convencido que eu ia finalmente falar. Meia hora depois apareceu o ins­
pector Sacchetti com um ar muito sorridente: — “Então, já se lem­
brou?” Desesperado, dei um pulo sobre ele par o agredir, acusando-o,
com todos os nomes que me ocorreram, de me torturar. Lembro-me
que ele ostentava um emblema na lapela de aluno do Colégio Militar. E
eu perguntei-lhe: “ Foi isso que lhe ensinaram no Colégio Militar?”
Esquivou-se e empurrou-me contra a parede e os outros dois agentes
caíram sobre mim violentamente para me conter. Mas não me espanca­
ram, como eu desejava para ver se me punham a dormir. Sacchetti saiu
da sala sem uma palavra.
A verdade é que mais ou menos uma hora depois, mandaram-me
recolher ao Aljube, como diziam na gíria. Fui levado para um dos tais
“curros”, de ominosa memória, de quinze palmos de comprimento por
cinco de largura com uma tábua dura e uma manta por cima, era tudo
quanto tinha. Mas que me pareceu o paraíso: podia finalmente dormir.
Estive ali vinte e nove dias seguidos enquanto o primeiro astronauta,
soube depois, dava não sei quantas voltas ao Planeta. Dormi como um
justo. Que outra coisa podia fazer? Não tinha nada para ler, nem a
Bíblia, que pedi, sem êxito. Disseram-me que constava que eu não era
católico... O rancho era sinistro - um caldo e um pedaço de peixe ou
carne a boiar. O pão escuro e duro. E de manhã, um púcaro de estanho
com uma espécie de água escura a que chamavam café. No primeiro
dia que lá entrei, estava de tal modo cansado, que pus o sobretudo a
servir de travesseiro, me deitei vestido e adormeci imediatamente.
Muitas horas depois, não sei quantas, um guarda com cara de poucos
amigos, acordou-me e disse-me uma frase que não mais esqueci:
“Caramba, dormir tanto até apodrece!” Mas quando fechou a cela,
constatei que não tinha apodrecido. Estava bem disposto, com fome, e
contente comigo. Era, assim, naquele tempo a justiça política e a
repressão que se usavam...
Não devo esquecer que tive uma grande experiência das cadeias polí­
» ticas do Estado Novo, na medida em que defendi dezenas, senão cente-

I
i
3

A MINHA EXPERIÊNCIA PRISIONAL 341

nas, de arguidos políticos. Comunistas, em grande quantidade; esquer­


distas; maoistas; militares de várias revoluções, por exemplo os da Sé e
de Beja, mas também os da Guiné, figuras lendárias como Palma Inácio,
e, ainda, fui advogado do caso Humberto Delgado (que suscitou sobre
mim inúmeras perseguições, me levou duas vezes à cadeia e à deporta­
ção, sem julgamento prévio e por prazo indeterminado, em São Tomé).
Defendi inúmeros nacionalistas africanos, como a mulher de Joaquim
Pinto de Andrade, muitos jovens dos processos estudantis, mulheres e
homens de todas as categorias sociais. Sem nunca cobrar um tostão,
mesmo para as despesas processuais, como era de regra.
Isso deu-me uma grande experiência da justiça penal salazarista.
Conheci heróis e os que se foram abaixo, sem propriamente traírem e
observei os seus comportamentos, presos, nas cadeias, onde os ia visi­
tar regularmente e nos julgamentos. Conheci naturalmente as famílias,
e ajudei-as quanto pude. Li os processos em que participaram, organi­
zados pela P1DE e copiei-os, na sua maioria.
Foi numa dessas visitas que fui também ao Forte de Peniche visitar
um arguido, em cumprimento de pena, o célebre Capitão Fernando
Queiroga, da revolta da Mealhada, em Outubro de 1947, salvo erro. Era
uma figura curiosíssima, aventureiro, no estilo do Capitão Henrique
Galvão que também conheci bem e muitos anos depois visitei no
Brasil. Fernando Queiroga revoltou uma unidade militar de carros de
assalto, no Porto. E como não teve os apoios que esperava e outras uni­
dades comprometidas não se revoltavam, resolveu atravessar a Ponte e
ir por aí abaixo, em direcção a Tomar, sede da revolta, que também não
se mexeu. Na Mealhada, acabou-se-lhe a gasolina, ficou imobilizado
perante tropas saídas de Coimbra, fiéis ao Governo. Rendeu-se. Foi jul­
gado e condenado. Fui visitá-lo a Peniche, quase no final da sua pena.
Fui eu quem lhe trouxe, clandestinamente, um livro interessantíssimo
que escreveu na prisão, “Portugal oprimido”, que mais tarde foi publi­
cado no Brasil. É um testemunho vibrante da opressão salazarista - e
do seu sistema de repressão política - contado ao vivo, na primeira
pessoa.
Também, como já disse, fui advogado da família de Delgado (da
viúva e dos três filhos), após o seu assassinato, de início envolto em
grande mistério. Realmente consegui desvendar a imensa teia do crime
- como provo no livro que publiquei no exílio, em 1972, intitulado
“Portugal Baillonné” no original francês. Há nele um capítulo que
conta a “história de um Crime”, onde se narra, passo a passo, toda a
1

342 DIREITO E JUSTIÇA

trama que levou Delgado à morte e a história sinistra do seu assassinato


- e o da sua fiel Secretária brasileira, Arajair Moreira Campos - em
Espanha, às mãos de criminosos agentes da PI DE, a mando de Salazar.
Foi o ministro dos Estrangeiros do tempo, Franco Nogueira, que teve a
imprudência de dizer em Londres: - “O corpo do General Delgado
apareceu, em Espanha e é aos espanhóis que compete explicar e desco­
brir como isso aconteceu.” Esta declaração deixou os espanhóis furio­
sos. E começaram a filtrar alguma informação, que chegou ao advo­
gado espanhol (que havia constituído, para me auxiliar em Espanha)
Mariano Robles Romero Robledo. Foi a ponta da teia, que me permitiu
deslindar quase tudo, tendo aberto também um processo em Itália, com
a ajuda do grande penalista italiano Giulliano Vassalli. Em Portugal é
que nunca foi possível abrir qualquer processo - quer no consulado de
Salazar quer de Caetano. Abriu-se e condenaram-se os Pides, agentes
materiais do crime, depois do 25 de Abril. O autor moral do crime -
Salazar - já tinha morrido há muito!
Como já disse, durante 32 anos de vida oposicionista intensíssima
fui preso doze vezes. Mas só fui levado a julgamento e condenado à
pena sofrida, uma só vez (no célebre julgamento da Comissão Central
do MUD Juvenil, onde foram igualmente arguidos e condenados,
Zenha, Pomar, Rui Grácio, José Borrego, o operário Oscar Reis e
alguns outros). Isto mostra o que era a justiça penal política salazarista!
De todas as outras vezes estive sempre em prisão preventiva.
Aqui devo dizer que uma das coisas que mais me choca no processo
penal de hoje, em plena democracia, é o tempo imenso em que os
arguidos podem estar em prisão preventiva. Há que encurtar drastica­
mente os prazos. Na altura da ditadura havia três meses de prisão pre­
ventiva prorrogáveis, por dois períodos de quarenta e cinco dias cada,
com autorização do juiz. Ou seja: seis meses , no máximo, de prisão
preventiva! Os prazos eram cumpridos à risca, apesar de só no fim do
Salazarismo, por pressão internacional, se ter reconhecido o direito ao
“habeas corpus”. Eu fui um dos primeiros a requerer o “habeas corpus”
(o meu advogado foi o Dr. José Magalhães Godinho) no fim de seis
meses de prisão preventiva. Fui restituído à liberdade por ordem do
Supremo Tribunal de Justiça. É certo que uma semana depois me pren­
deram de novo e me deportaram para S. Tomé sem julgamento e por
tempo indeterminado.
Foi assim que eu fui parar a S. Tomé - não vou descrever-vos essa
arbitrariedade de que fui vítima porque demorava muito tempo e seria
A MINHA EXPERIÊNCIA PRISIONAL 343

maçador - mas apenas sublinhar que a deportação foi outra espécie de


prisão que sofri. Não era propriamente uma prisão: estava com resi­
dência fixa, à força, numa área ultra restrita da cidade de S. Tomé, que
é mais pequena do que Algés. Não podia praticamente movimentar-me.
As pessoas que se atreviam a falar-me eram sujeitas a pressões e ame­
aças. Estive ali aproximadamente oito meses , muito inconfortáveis, e
ainda hoje lá estariam se Salazar não tivesse caído da cadeira. O seu
sucessor, Marcelo Caetano, meu antigo professor de Direito
Administrativo, resolveu - para ganhar uma imagem de “liberal” -
fixar o prazo da minha deportação em um ano, contando a prisão
sofrida em Lisboa, por isso, regressei, em 12 de Novembro de 1968,
chegando a tempo de assistir ao aniversário do meu Pai, que faria 90
anos em dezassete de Novembro. Disseram-me depois, amigos comuns
- os drs. Fernando Abranches Ferrão e José Ribeiro dos Santos - que
Marcelo Caetano teria gostado que eu lhe tivesse agradecido. Não o fiz,
com efeito. Por duas razões: Porque a justiça não se agradece, é um
dever para quem a pratica; depois, porque não fui justiçado, ao fim de
quase nove meses de deportação, autorizaram o meu regresso, com a
mesma arbitrariedade, com que tinham decretado antes a deportação.
Aliás, a meu ver, o motivo profundo porque Caetano me mandou vir foi
para consolidar internacionalmente, a sua imagem de “liberal” e não
para fazer uma reparação em relação à injustiça de que fora vítima.
Ainda hoje estou convencido de que procedi como devia. A mascarada
da “primavera caetanista” foi totalmente comprovada nas pseudo-elei­
ções de 1969 - uma fraude e uma farsa - e eu fui forçado a abando­
nar o território nacional. Mas para Portugal foi pior: foi uma ocasião
perdida, sem remédio, que custou milhares de mortos, de feridos, de
estropiados para sempre, além de longos atrasos para repor Portugal no
caminho do desen
Permitam-me ainda que lhes diga duas palavras sobre a minha
deportação, que constituiu uma experiência muito dura mas cheia de
ensinamentos. Há um romance de um escritor italiano Cario Levi que
se chama “Cristo parou em Eboli”, talvez algum dos presentes o tenha
lido. É um livro muito interessante. Conta a história de um italiano
antifascista, no tempo de Mussolini, médico, a quem foi fixada resi­
dência numa aldeia paupérrima no sul de Itália e vai para lá em perfeito
isolamento, talvez para morrer. Chega e mau grado todas as suspeições,
das calúnias de que foi precedido e das medidas policiais de controlo,
começa a tratar toda aquela gente, tão carente, a tratá-los com humani-
344 DIREITO E JUSTIÇA

dade, carinho e eficiência médica. Ao princípio, foi hostilizado pela


população, mas a pouco e pouco, foi ganhando a confiança das pessoas
e nos anos finais do fascismo, começou a ser adorado, como um mito,
como se fosse um novo Cristo que viera a Eboli para pregar a boa nova
e fazer o bem.
Guardadas as devidas proporções, comigo em S. Tomé passou-se
algo de semelhante. Cheguei lá com a desconfiança, preparada, de toda
a gente. Quando desembarquei no aeroporto, com um fato de inverno
lisboeta, escuro, de flanela, e uma barba por fazer, de vários dias, com
a população toda de branco, curiosa da chegada do avião, sob um calor
tórrido, tive a sensação estranha de ser uma mosca caída num prato de
sopa. Ficou toda a gente temerosa, com a aparição insólita daquele
“moscardo” que desembarcou no aeroporto. Toda a gente pensava -
creio - “Quem é este tipo? Porque o mandaram para cá, “deportado”,
coisa que há décadas não acontecia? Que mal poderia trazer à terra?”
As coisas começaram a normalizar-se quando o Secretário da Câmara,
Aprígio Malveiro, meu antigo colega de liceu, ousou abraçar-me com
naturalidade. Dois oficiais milicianos, meus antigos alunos - um deles
foi o Eduardo Fortunato de Almeida - também tiveram a coragem de
me cumprimentar cordialmente. Contudo, a PIDE, dirigida pelo ins-
pector Nogueira Branco, começou a apertar o cerco. Dias depois, pou­
cos ousavam falar comigo, embora me acolhessem com simpatia. Era
um isolamento difícil. Fiquei numa pensão, a única que havia em S.
Tomé, de um tal senhor Reis, que vim a saber depois ser informador da
PIDE. E a pouco e pouco consegui furar o bloqueio, com paciência,
imaginação, e bastantes cumplicidades que se manifestaram, sobretudo,
na população local.
A Rádio Brazaville, que se ouvia em S. Tomé, ajudou muito. Falava
de mim, com frequência, da injustiça da minha situação, sempre com
simpatia e das manifestações de solidariedade da Amnistia
Internacional, das Ligas de Defesa dos Direitos Humanos e das
Associações de Advogados, de todo o mundo. Vivi em S. Tomé o Maio
de 1968, pela Rádio Brazaville. Parecia que a velha ordem repressiva ia
desabar... Um dia o inspector da PIDE, Nogueira Branco, chamou-me à
sede local da PIDE e disse-me (não posso esquecer!): “Estou furioso
com a sua presença aqui. Cada dia que passa nesta ilha o Senhor sobe
na consideração da população e eu desço. O Senhor aparece como
vítima e eu como carrasco!” Ele tinha perfeita consciência da situação
- pensei eu. A consciência das pessoas é, no fundo, essencial para se
A MINHA EXPERIÊNCIA PRISIONAL 345

dar a volta às coisas e vencer as injustiças. É extraordinário o peso da


consciência e da verdade. Tem um valor incalculável para dar a volta às
situações injustas! Algumas vezes as pessoas não têm ideia disso. É
preciso passar por tais situações - e ser capaz de as vencer - para
adquirir uma inabalável confiança em si mesmo e nas convicções que
sempre se defendeu. Nesse sentido, a minha deportação, tambe'm foi
urna grande lição, para os combates difíceis que iria travar no pós-25 de
Abril.
Esqueci-me de referir que foi o Inspector Sacchetti quem me man­
dou também para S. Tomé. Depois de ter estado três frigidíssimos
meses preso em Caxias, incomunicável, chamou-me à sede da António
Maria Pereira e disse-me:” Você é como um limão que não deita suco,
aperta-se mas não deita suco!” E prosseguiu : “O Senhor tem andado a
brincar com esta Polícia (referia-se ao caso Delgado e ao chamado pro­
cesso dos “Bailei Rose”). Acabou-se. O Senhor Presidente do Conselho
(Salazar) não quer ouvir falar mais de si. Vou enviá-lo esta noite para
S. Tomé.” Fiquei estupefacto! Nem conseguia lembrar-me bem onde
era S. Tomé. E disse-me com ar irónico, num tom vagamente profético:
“Acabou-se! Ninguém vai mais lembrar-se do advogado Mário Soares.
Será como uma pedra que se atira a um poço. Nos primeiros tempos,
haverá, à superfície da água, uma ligeira turbulência, é natural, mas
depois tudo se acalma. Ninguém mais se vai lembrar de si!” Sorriu,
fez-me uma vénia, rodou sobre os calcanhares e foi-se embora. Nunca
mais o vi. Contudo, o pior, para mim, é que, naquele momento, acredi­
tei na profecia de Sacchetti.
Fui, realmente, naquela noite para S. Tomé, num avião da TAP.
acompanhado pelo sub-inspector Abílio Pires. E lá fiquei quase nove
meses, alguns dos quais, em condições duríssimas. Entretanto, o
mundo deu muitas voltas. Salazar, caiu da cadeira, um sinal que não
augurou nada de bom para o regime. Caetano, investido pelo Presidente
da República, como sucessor, foi um compasso de espera, não passou
disso. Mas fez-me regressar. Foi um regresso, em S. Tomé, pode dizer-
se, triunfal: toda a gente fez questão em ir despedir-se de mim ao aero­
porto. Sinal da incerteza dos tempos. Dir-se-ia que o Cristo de Eboli
tinha passado também por S. Tomé. Digo-o, obviamente, com profunda
ironia...
Regressei a Lisboa. Uma parte da Esquerda recebeu-me com
alguma desconfiança, temia que eu tivesse feito um entendimento
tácito com Caetano. O Centro e a Direita estavam aborrecidos comigo
346 DIREITO E JUSTIÇA

porque manifestamente não fiz o jogo de Caetano. Compreendi, desde


o início, que a “primavera caetanista” era uma fraude. Voltei ao meu
trabalho de Oposição, pura e dura, ao Caetanismo. Participei activa-
mente nas eleições farsa de 1969, que se saldaram por um roubo. Fiz
depois uma viagem pelas Américas, do Sul e do Norte. Regressei por
Paris e fixei-me em Roma em cujos arredores acabei o “Portugal
Amordaçado”. Entretanto, meu Pai faleceu, com 92 anos. Nesse dia
mesmo decidi voltar a Portugal, arriscando, obviamente, a prisão. Mas
deixaram-me entrar e assistir ao funeral do meu Pai.
No dia seguinte recebi um estranho telefonema da PIDE. Ao tele­
fone, estava o inspector Álvaro Pereira de Carvalho, um dos responsá­
veis pelo assassinato do general Humberto Delgado, mas eu então não
sabia. Foi ele próprio que confessou no julgamento que ocorreu no
Tribunal de Santa Clara, depois já do 25 de Abril.
Propunha-se essa personagem encontrar-se comigo num café no
Saldanha chamado Paulistana. A resposta, surgiu-me, imediata: “E
impossível. O Senhor Inspector pode convocar-me para ir à PIDE. E eu
vou, porque sei que é uma autoridade policial. Pode vir a minha casa
prender-me. E eu abro-lhe a porta, pela mesma razão. Mas encontrar-se
comigo num café, jamais. Não tenho nem quero ter relações pessoais
consigo.”
O tom do inspector mudou radicalmente. “Queria ser cordial mas
passo a ser intimativo. Convoco-o para vir à sede da PIDE às 12 horas.”
Lá estarei, respondi.
Na sede da PIDE, fui conduzido ao seu gabinete no Io andar - não
era o sítio habitual dos meus tão conhecidos interrogatórios - mandou-
me entrar, mas não me mandou sentar. Disse-me, num tom ríspido:
“Fui mandatado pelo Governo da Nação para lhe comunicar que tem
quatro horas, a partir de agora, para abandonar o território português”.
Note-se que não tinha qualquer base legal para o fazer. Não impendia
sobre mim nenhum processo de que tivesse sido notificado.
Perguntei-lhe: “E se não cumprir?” Respondeu: “Será preso mas,
desta vez, não cometeremos o erro de o enviar para S. Tomé. Irá para
muito mais longe.” Pensei em Timor e no Tarrafal. Voltei a perguntar:
“Já estou detido ou ainda posso sair?” A pergunta, pareceu-me, que o
surpreendeu. Disse: “Tem quatro horas, logo pode sair.”
Assim fiz. Desci o Chiado a pé e dirigi-me ao meu escritório,
seguido, discretamente, por um agente da PIDE. Tinha lá vários amigos
à minha espera. Todos me aconselharam a ir-me embora, excepto o
A MINHA EXPERIÊNCIA PRISIONAL 347

Zenha. Mas eu sabia que a decisão tinha que ser minha, fosse qual
fosse, porque não podia, a posteriori, desculpar-me com ninguém.
Resolvi partir. O meu empregado de escritório, o fiel Raul, informou-se
dos aviões disponíveis. Não havia nenhum. Estávamos no primeiro de
Agosto. Decidi partir, com a minha Mulher e os meus dois Filhos, no
meu próprio cano, um Renault 16.
Parti, angustiado e triste. Não sabia o que me poderia esperar. À
morte de meu Pai, minha grande referência, toda a vida, somava-se
agora a incerteza quanto ao futuro - para os meus e para mim.
Rodámos toda a noite, que me pareceu soturna e inóspita como nunca.
Revezavamo-nos ao volante, porque todos conduzíamos. Atravessámos
a fronteira da França às primeiras horas da manhã.
Fixei-me em Paris, terra acolhedora de exílio. Dois meses depois
tinha o meu primeiro emprego: professor associado na Universidade da
Alta Bretanha - Rennes. Depois acumulei com Vincennes e, mais
tarde, com a Sorbonne - Paris IV.
Um ano depois, estava perfeitamente adaptado, com uma pequena
casa alugada onde vivia sozinho, embora passasse com a minha Mulher
e os meus Filhos todas as férias. Estabeleci uma larga rede de contac­
tes políticos, socialistas mas também de outros partidos, com as Ligas
do Direitos Humanos, os adversários das guerras coloniais, com jorna­
listas, intelectuais, artistas e universitários franceses, espanhóis e gre­
gos exilados em França. E, especialmente, uma rede de futuros mili­
tantes socialistas, emigrantes e exilados em França - e um pouco por
toda a parte na Europa - e também uma rede de excelentes contactes
com os diversos movimentes nacionalistas africanos, criando laços fra­
ternos de solidariedade com alguns dos seus dirigentes. Caetano come­
teu um eiTO ao forçar-me a ir para o exílio. Não fui. no exílio, como
porventura esperaria, um elemento perturbador para a Oposição, como
Humberto Delgado havia sido. Essa lição tinha-a aprendido. Pelo con­
trário, fui um elemento aglutinador e de unidade.
Em 1972 publiquei na Calmann-Levy o “Portugal Baionné” que
teve algum sucesso e foi traduzido em várias línguas: inglês, espanhol,
alemão, italiano e grego. Viajei imenso. Publicava regularmente arti­
gos. Sentia-me como peixe na água. Era a primeira vez que vivia numa
sociedade democrática - e aprendi enormemente. Amadureci, política
e culturalmente.
Por isso, muitas vezes, não me impedi de pensar: "por muitos anos
que vivesse não teria tempo de agradecer a Marcello Caetano, ter-me
348 DIREITO E JUSTIÇA

expulso de Portugal”. Sem o exílio, não teria sido o que fui. É o que
costumo chamar dar a volta por cima às situações difíceis que a vida
nos prepara...
Termino. Já vos ocupei demais, com estas notas dispersas - e
espontâneas - sobre “a minha experiência prisional”. Volto à profecia
do inspector Sacchetti quando me mandou para S. Tomé (em 1968)
convencido que eu era como uma pedra atirada a um poço. Enganou-
se. Seis anos depois voltei triunfalmente a Lisboa com os meus cama­
radas do “comboio da Liberdade”. Menos de um mês depois, era
Ministro dos Negócios Estrangeiros do I Governo Provisório. Em Abril
de 1975, líder do maior partido português - o PS - nas primeiras elei­
ções livres realizadas em Portugal, nos últimos 50 anos. Em Abril de
1976, confirmada a vitória socialista nas primeiras eleições legislativas,
nos termos da Constituição da República, recém votada, fui designado
primeiro ministro do I Governo Constitucional da II República. E,
assim, por diante, ora na Oposição ora no Governo, até Janeiro de 1986
em que fui eleito, por voto directo e secreto dos portugueses,
Presidente da República Portuguesa, por sinal o primeiro civil desde a
I República.
Nunca esperei tanto. E quando penso como isto foi possível, nesta
revisitação da minha experiência prisional, que a Universidade Católica
me propôs que fizesse, respondo: porque procurei sempre ser coerente
comigo próprio e com as minhas convicções, sincero, autêntico, solidá­
rio com os mais pobres e necessitados, com sentido do serviço público,
i fiel à República, ao Socialismo e à Liberdade.

i
Muito obrigado!

Lisboa, 8 de Maio de 2004

5 BIBLIOTECA £
6 5
C.E.R.C.
Centro de Estudos de Religiões e Culturas
Cardeal Hõffner

Universidade Católica Portuguesa

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