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ASPECTOS DA CULTURA JURÍDICA BRASILEIRA':'

THE:\IISTOC LES BRAND.:i.O CAVALCANTI* *

A formação da nossa cultura jurídica tem suas origens no direito con-


tinental europeu. Ela se desenvolveu, adaptando-se às particularidades e
aos progressos de uma nova civilização, à medida que a nacionalidade
adquiria caractcrísticas próprias. Nela, a influência portuguesa era pre-
ponderante, embora não lhe fosse estranha a participação de correntes
imigratórias e a preocupação de integrar a estrutura constitucional ao
pênsamento político do continente. Daí a influência do direito constitu-
cional norte-amcricano.
Essas contribuições C\.ternas, entretanto, não foram nem homogêneas,
semelhantes, constantes, nem tampouco simultâneas, no tempo e no es-
paço. Elas não se distribuíram por igual entre os diversos compartimen-
tos da ciência jurídica.
Por outro lado, a sua assimilação não se fez sempre de forma integral,
tendo ocorrido, na maioria das vezes, um processo de transformação que,
em alguns casos, tornou irreconhecíveis as instituições importadas, tais
os traços particulares que lhes imprimiu nossa cultura jurídica.
Este é aliás, um aspecto normalmente observado em todos os países
receptores de idéias e de instituições. Verifica-se, também, nessas oca-
siões, um fenômeno de mimetismo, de imitação, em virtude do qual,
somente após um período de ajustamento e de adaptação às condições
peculiares de cada país, os modelos transplantados podem produzir os
efeitos desejados.
Poderíamos mencionar diversas instituições que sofreram profunda
transformação, antes de serem assimiladas. Basta lembrar, a enfiteuse, no
direito privado, a federação, em direito constitucional, ou ainda, o habeas-
corpus, em matéria processual.
O direito comparado, aliás, em muito tem contribuído para demons-
trar as dificuldades de uma identificação perfeita das instituições, das
estruturas e dos tipos jurídicos nos diversos países em que são implantados.
~ão é necessário procurar muito longe as origens da nossa cultura ju-
rídica, pois suas fontes, de natureza legislativa e doutrinária, podem ser
encontradas, logo após a Independência, na legislação política e consti-
n:cional, revelando, incontestavelmente, uma nítida ascendência européia.

* Conferência pronunciada na Universidade de Poitiers (1954), quando da re-


cepção do título de doutor hOlloris callsa daquela universidade. O presente texto,
traduzido por Ana Lúcia de Lyra Tavares - pesquisadora do INDIPO - foi
publicado, originalmente, em francês, pela Dott. A. Giuffre. l\filano. em 1956.
** Ex-diretor do Instituto de Direito Público e Ciência Política da Fundação Ge-
tulio Vargas.

R. Cio pol., Rio de Janeiro. 23(2):11-20. mai./ago. 1980


Destaca-se, neste período, mais do que o anglo-saxão, a influência do
constitucionalismo continental europeu, com ênfase em Benjamin Cons-
tant e a inovação do seu poder moderador, além de instituições francesas
que inspiraram a criação do nosso Conselho de Estado. Este, entretanto,
não conseguiu alcançar na área do judiciário a perfeição do seu homônimo
francês.
Bem mais tarde, em 1889, sob a República, seria a vez do diretor nor-
te-americano.
No direito administrativo, a ser examinado mais adiante, observa-se
que a obra do Visconde de Uruguai, ~em dúvida a mais importante desta
fase, fundamenta-se nos autores franceses.
No direito privado, há dois textos que se mantiveram quase meio século:
o Código Comercial e o Regulamento Processual n.O 737, ambos de 1850;
este último, perfeito no fundo e na forma, peça que devemos, certamente,
à capacidade deste grande brasileiro de coração que foi José Clemente
Pereira. Neste campo, salienta-se, também, José da Silva Lisboa, mais
tarde Visconde de Cairu. Figura extraordinária de estadista, ele inspirou
a abertura dos portos ao comércio exterior, escreveu notável tratado de
direito comercial e iniciou o ensino da economia política no Brasil.
Se acrescentarmos a estes nomes, os de Pimenta Bueno (o Marquês de
São Vicente), Lafayette, Ribas, e, talvez o maior de todos, Teixeira de
Freitas, teremos completado o quadro representativo de nossa cultura
jurídica nos dois principais ramos do direito público e direito privado,
com personalidades que se projetaram mesmo em países de tradição
jurídica.
O interesse pelos estudos de direito manifestou-se, no Brasil, desde
cedo, com a criação dos cursos jurídicos, logo após a Independência e a
efetiva contribuição prestada por juristas portugueses de grande valor,
neste magistério.
A expressão mais remota de nossa criação jurídica pode ser encontra-
da no direito comercial e no direito constitucional, e isto a despeito de
contingências que impediam a livre manifestação de idéias e opiniões em
um meio naturalmente restrito e de poucas perspectivas.
Não se pode censurar os nossos legisladores e doutrinadores por se
terem inspirado em modelos estrangeiros, nem mesmo por copiá-los, mes-
mo porque nossos textos se caracterizam pela objetividade perfeita dos
conceitos e pelo realismo das soluções apresentadas.
São evidentes e inegáveis as contribuições alienígenas, predominando
dentre elas a das antigas ordenações portuguesas e a dos doutrina dores
lusos, sábios e claros nas suas exposições.
Nessa mesma época, nasceu e se desenvolveu entre nós o direito ad-
ministrativo, não no sentido em que é tido atualmente, mas calcado, de
preferência, na lição dos criadores desta disciplina, especialmente na dos
franceses e italianos, que já haviam tratado da matéria no começo do
século passado.

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Em 1883, introduzia-se nos currículos a cadeira de direito administra-
tivo, na gestão do Ministro Nicolau de Campos Vergueiro e sob sua ini-
ciativa, evidenciando a preocupação dos homens dessa época com o pro-
gresso e a vontade de orientar a cultura nacional para novos rumos e
civilizações mais avançadas.
Merece realce, também, a contribuição do Conselho de Estado, não
somente pelo seu aspecto político, como pelos elementos culturais que
ele forneceu neste campo. Basta compulsar os trabalhos desse Conselho
para se verificar que nele foram elaborados os estudos mais completos
e detalhados, os projetos de lei mais interessantes na área administrativa:
trabalhos focalizando problemas agrários e que originaram a famosa Lei
de 1850 e o seu regulamento; análises orçamentárias e fiscais, instituições
de montepios; criação das Caixas Econômicas, concessões de portos e
estradas de ferro, com especificação de privilégios de zona, garantia de
juros, princípios básicos sobre o contencioso administrativo, e tantas
outras manifestações da cultura e do saber jurídicos.
Isto se explica pelo fato de que faziam parte desse Conselho indivi-
dualidades como José Nabuco, Pimenta Bueno, Uruguai, Itaboraí, Rio
Branco, Euzébio de Queiroz, Bernardo Pereira de Vasconcelos, José Cle-
mente Pereira, Jequitinhonha, Olinda, Sinimbu, para citar somente alguns
dos mais eminentes.
Entretanto, ninguém pode ter elevado tão alto a cultura jurídica neste
período de nossa formação como Teixeira de Freitas, civilista, autor de
um dos trabalhos mais completos e interessantes sobre o direito civil, o
seu esboço do Código Civil, consagrado no estrangeiro, com o Código
Civil argentino, no qual Velez Sarsfield inseriu, apenas, algumas adapta-
ções às condições daquele país. Ao nome de Teixeira de Freitas devemos
associar o de Nabuco de Araújo, para mencionarmos, somente, dois dos
mais destacados.
A República não diminuiu o ritmo dos nossos estudos jurídicos, não
se podendo dizer que tenha havido um declínio neste campo da nossa
cultura, apesar das modificações verificadas no quadro das instituições
jurídicas.
Entre os nossos constitucionalistas, destaca-se Rui Barbosa, o grande
construtor do direito constitucional republicano, principal responsável
pelo seu desenvolviinento e pelo seu progresso, pois foi ele, através dos
seus reiterados apelos ao Poder Judiciário e das suas teses jurídicas, quem
indicou as soluções para as mais importantes controvérsias sobre a apli-
cação de nossa Constituição republicana.
Na realidade, foi Rui Barbosa o inspirador desta primeira Constituição,
sendo de sua iniciativa, graças a sua excepcional visão de estadista de
notável cultura, a sugestão para a reforma e revisão deste documento,
além da adaptação do texto, à luz da experiência, às nossas condições
peculiares e aos reclamos nacionais.
Em razão disso, multiplicaram-se as decisões importantes do Supremo
Tribunal Federal e nomes de valor surgiram no direito constitucional re-

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publicano, desde Barbalho até Pedro Lessa, passando por Pisa e Almeida,
Epitácio Pessoa e tantos outros.
São aspectos da cultura nacional que mostram o interesse dos homens
de ciência, professores e juristas, pelos nossos principais problemas, re-
veiando a sabedoria com que decidiam e fundamentavam suas conclusões.
Outra obrü relevante do saber jurídico em nosso País foi o projeto
do Código Civil, de Clóvis Bevilacqua, jurista, filósofo, e:\.emplo de eru-
d'ção e de bondade, cujo trabalho reflete toda a influência da antiga es-
cola do Recife.
O Código Civil não é um documento árido, mas um instrumento de
base científica, de fundo filosófico e sociológico, denotando um conheci-
mento profundo das mais modernas concepções do direito de sua época.
Durante anos, os debates em torno do Código Civil proporcionaram
grandes demonstrações de cultura jurídica nas faculdades de direito, nas
diversas instituições e no parlamento. E, se eles prejudicanIn, em parte,
a unidade de elaboração do autor do projeto, não chegaram a desfigurar
sua obra, que permanece íntegra em seus fundamentos.
Observa-se, contudo, durante o longo período da história republicana,
uma certa displicência, beirando o marasmo, na atualização dos antigos
re~mlamentos. Entretanto. esta inércia do direito ante os fatos se verifica-
va~ em particular, junto aos nossos políticos e às nossas instituições parla-
mentares, pois que a literatura jurídica e as discussões acadêmicas
ganbyam em intensidade.
O fa!o é que a obra legislativa ficou paralisada de 1891 a 1930, em
set::lres ess;;nciais à vida jurídica, sobretudo em relação à legislação co-
mercial, à, leis de sociedades anônimas, ao Código Penal e à legislação
indispensável ao nosso desenvolvimento econômico (em matéria de mi-
n:'.5. de riquezas do subsolo, de águas, de florestas, de caça, etc). Não se
pode, contudo, dizer que tenha ocorrido um hiato na nossa cultura jurí-
dica, uma vez que ela continuou a mobilizar nosso meio intelectual. A
verdade é, porém, que este período não produziu, no plano legislativo, os
efeitos esperados.
É impossível examinar-se o desenvolvimento jurídico brasileiro sem
considerar a escola do Recife, um dos movimentos mais profundos e de
grande repercussão no nosso cenário cultural.
Sílvio Romero denominou escola do Recife este brilhante movimento
intelectual da bela cidade do Nordeste que, revolucionando seus meios
culturais, exerceu grande influência em toda aquela região. Esta escola,
inicialmente de natureza poética e puramente literária, enveredou, em
seguida, pelo campo da crítica, passando, posteriormente, ao da filoscfia
e ao do direito, tendo como figura mais representativa Tobias Barreto,
mesriço genial, poliglota, utilizando correntemente o latim - do qual
foi professor - o alemão, o francês, o italiano, o russo e o grego.
Foi nessa cidade, em que a efervescência intelectual chegou a extre-
mos, que se defrontaram a velha tradição jurídica portuguesa e a filoso-
fia de incontestável cunho jusnaturalista.

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Clóvis Bevilacqua, que também integrava essa escola, identifica três
períodos na sua evolução: o primeiro, de 1862 a 1868; o segundo, de
1868 a 1882, e, daí em diante, um terceiro e último período.
É interessante observar-se no desenvolvimento dessa corrente a subs-
tituição das influências literárias, principalmente aquelas importadas da
Europa, pelas de caráter científico, sociológico e jurídico, em especial a
do evolucionismo que, naquele momento, prodimanaya no estudo das
ciências sociais.
Os grandes juristas-filósofos tiveram uma formação literária extrema-
mente rica e a escola do Recife sofreu, exatamente nos primeiros tempos.
a influê!1cia do grande poeta que foi Victor Hugo, modelo para Tobias
e para muitos de sua geração, como Maciel l'vIonteiro, Castro Alves,
Franklin Távora e mesmo Alvares de Azevedo.
Se percorrermos a bibliografia dos discípulos deste renomado movimen-
to não encontraremos, nessa fase, nenhuma obra jurídica, mas inúmeros
trabalhos literários de valor, sobretudo poéticos. Não deixava, entretanto,
de ser uma expressão de cultura que, afinal de contas, constituía a base
da formação jurídica de jurisconsultos como Araripe Júnior, Aristides
Milton, Rui Barbosa e Inglês de Sousa.
Durante a fase de transição, essa tendência literária ficou mais acen-
tuada ainda, embora, desta vez, com algumas incursões no campo da
História e menos ênfase no da poesia.
Na segunda fase, já se percebe algum interesse de Tobias Barreto pela
filosofia e é desta época o seu livro sobre a religião em face da filosofia,
no qual se observa uma nítida influência de Augusto Comte e da litera-
tura alemã, que já se lhe tornava familiar.
Durante a terceira fase, iniciada em 1882, Tobias se desligou da escola,
passando a ser somente professor da faculdade de direito, através de con-
curso de grande repercussão. Depois de notabilizar-se como poeta, ele
inicia sua vida de filósofo e de jurista. Foi notável a sua atuação ao
introduzir a literatura jurídica e a filosofia alemãs em nosso meio cultu-
ral. Segundo Virgílio de Sá Pereira, foi o germanismo de Tobias que
impediu a penetração das idéias positivistas no Norte, embora ele tenha
sido um grande leitor de Littré, de Augusto Comte e de Spencer que,
entretanto, não chegaram a influenciá-lo profundamente.
No campo jurídico propriamente dito, Tobias formou uma corrente
contrária ao direito natural, abriu as comportas da sociologia à análise
do fenômeno jurídico e adotou o pensamento de Von Jhering em suas linhas
fundamentais, adaptando-o à sua concepção segundo a qual o direito con-
siste na harmonia das forças sociais, assegurada pelo poder coercitivo do
Estado. O direito natural. diz ele, não existe. O que existe é uma lei
natural do direito, expressão tão simples quanto dizer-se: "não há uma
linguagem natural, mas uma lei natural da linguagem; não há uma indús-
tria natural, mas uma lei natural da indústria; não há uma arte natural,
mas uma lei natural da arte."

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Confesso que não sou adepto da escola do Recife, hoje, bastante ul-
trapassada, mas não se pode negar a este mestiço genial uma dialética
inconfundível, além da força de irradiação de uma cultura que encon-
trou neste meio, urna verdadeira legião de homens de talento, de coragem
intelectual e de liberdade de espírito. Desta forma, ele pôde fortalecer as
bases de urna reação que se organizava, talvez imbuído de um senti-
mento filosófico não muito seguro, mas que, evidentemente, abria novos
horizontes ao desenvolvimento da inteligência, da educação, do estudo,
da pesquisa e da elaboração científica.
Cíévis Bevilacqua, possivelmente o discípulo mais humilde dessa es-
cola - que teve a felicidade suprema de realizar, mais tarde, em obra
duradoura, as aspirações intelectuais de sua juventude - indica como
maiores representantes daquele movimento: Graça Aranha. Fausto Car-
doso, Viveiros de Castro, Virgílio de Sá Pereira, Souza Bandeira, Abelar-
do Lôbo, Gumercindo Bessa e, ainda, Sílvio Romero. A numeração dos
seguidores seria interminável: Martins Júnior, Soriano, l\li1let, Phaelante
e muitos outros.
Pode-se dizer que essa corrente foi essencialmente urna escola de cultu-
ra, geradora de um sólido pensamento jurídico, humanizado, vivo, em
dimens20 ampla, sem se limitar à letra fria dos textos, mas transfigu-
rando-se na feliz definição do seu chefe - na expressão de vida, de
harmonia e de equilíbrio social, na qual o Estado intervém pela sua força
coercitiva para obrigar o respeito às leis criadas pelo próprio homem.
O direito, na concepção de Tobias, reveste-se de uma aura poética.
mas impre~nado de profundo sentido social, objetividade e realismo, ins-
pirados pela escola alemã e pela teoria evolucionista.
A.borda\·am-se, então, os grandes problemas, combatia-se o direito
natural, menos por proselitismo do que pela necessidade de renovação
da cultura, por uma curiosidade científica insaciável que incidia sobre
todos os l'~mos àa ciência social, com ênfase na antropologia, na psicolo-
gia e em algumas das ciências naturais indispensáveis à explicação do fe-
nômeno da evolução das espécies. O Norte do Brasil viveu anos de in-
tensa elaboração cultural, em clima de trabalho e de estudos, que não
prejudicavam a vida boêmia agitada, tão a gosto dos poetas românticos
e dos estudantes de letras da época.
Sílvio Romero considera que após essa primeira fase há um período de
transição em que surge o realismo na literatura, com os nomes de Celso
l\lagalh5es, Souza Pinto e Inglês de Sousa, mais tarde consagrado corno
comercialista.
A segunda fase da escola do Recife se caracteriza pela transformação
dessa atmosfera literária em científica, orientada para os estudos jurídicos,
mas ainda sob o aspecto mais filosófico do que propriamente técnico.
Todas as escolas, então, se desafiam, apoiadas em filósofos de diversas
tendências, desde Augusto Comte e Littré, até Cousin Vacherot e Renan.
O confronto entre o tomismo do velho professor Autran e o materialismo

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do provecto Tobias não escapa a essas polêmicas. Foi neste período que
apareceu Sílvio Romero.
A terceira fase começa em 1882. Toda a cultura científica e humanista
se cristaliza no pensamento jurídico que passa a constituir-se, realmente,
na grande expressão da escola do Recife. Desde essa época, Tobias, de
sua cátedra, começava a formar numerosos discípulos, fascinados pelo
gênio do mestre e pelo seu poder de persuasão ao transmitir as novas
idéias.
Em São Paulo, as tendências foram outras. Ao mesmo tempo que Haeckel
dominava o pensamento da escola do Recife, a influência de Kant se
fazia sentir diretamente na escola de São Paulo, onde o ensino da filo-
sofia se baseava em livro que reunia seus artigos.
O ataque de Lafayette, sob o pseudônimo de Labieno, contra Sílvio
Romero, em uma série de artigos intitulados Vindiciae, ilustra bem esta
rivalidade entre escolas. Com extraordinária virulência, este kantista con-
victo refuta o monismo materializado de Sílvio, mostra suas incoerências,
suas contradições e seus equívocos, sobretudo quanto à sua afirmação
sobre o monismo de Kant e a associação deste ao sistema filosófico de
Spencer.
Foi através do desenvolvimento da escola de São Paulo que se confi-
guraram as falhas da posição de Tobias e de seus discípulos. Por mais
que se tente subordinar as concepções jurídicas à evolução da técnica, ao
progresso científico, que, sem dúvida, repercutem no direito, não se pode
negar entretanto a supremacia de sua base ética.
Não é difícil conciliar tais considerações de ordem técnica com os
a priori éticos que devem pautar toda norma jurídica. Nenhuma relação
humana pode ser legitimada ou reconhecida se não está subordinada a
injunções de ordem moral, a não ser que se situe num plano materialista,
contrário aos fundamentos da civilização ocidental.
Ninguém ousaria atribuir ao positivismo jurídico propósitos de agres-
são à ordem moral. Ao conceituar o direito como o interesse juridica-
mente protegido, lhering refere-se, naturalmente, a um interesse legítimo,
fundado em concepções de ordem moral, sem as quais nenhuma civiliza-
ção pode sobreviver.
Ora, o direito desenvolveu-se, precisamente, ao mesmo tempo que a
técnica, acompanhando-a e procurando harmonizá-la com as exigências
e os interesses morais e sociais dos grupos humanos. O direito comercial
nasceu da evolução dos sistemas de transportes e de comunicações, assim
como o direito aeronáutico; o direito administrativo acompanha a téc-
nica administrativa, e assim por diante.
O direito implica uma idéia de relação, por conseguinte, de equilíbrio.
Fora disto, não se contesta o direito fundamental, que tem o homem, de
viver livremente ou de ter respeitados seus direitos fundamentais de
criatura humana e de ser superior. O que busca o direito moderno,
entretanto, é conferir outra dimensão aos preceitos de sociabilidade, além
de submeter o homem a uma disciplina social.

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A escola do Recife teve, portanto, um papel essencial, mas os seus
defensores - imbuídos de uma filosofia já superada - estavam longe
de imaginar que o positivismo jurídico se imporia como solução de situa-
ções, naquela época, ainda imprevisíveis.
Se nos ativermos à evolução do nosso direito. verificaremos que a
cultura jurídica brasileira contemporânea nada tem a invejar à dos povos
mais avançados.
É certo que tentamos assimilar tendências diversas, correntes que se
ajustassem às nossas condições particulares, e, para tanto, procuramos no
estrangeiro freqüentes inspirações para nossa formação jurídica, embora
não se possa dizer que tenhamos copiado, servilmente, os modelos aliení-
genas. O Código Civil, por exemplo, é, inegavelmente, fruto de nossa cria-
ção, representando uma construção jurídica elaborada sem a mínima
preocupação de reproduzir aqueles modelos.
),Jão me furtarei. porém, a uma ligeira crítica às normas atuais de nos-
sas faculdades de direito, quando, a exemplo da orientação de certos paí-
ses que preparam juristas em três anos, não consideram o direito inter-
nacional como imprescindível à formação intelectual dos juristas. Na ver-
dade, o pensamento jurídico brasileiro está em dia com os mais impor-
tantes e recentes ensinamentos do direito moderno, qualquer que seja
o seu ramo.
Há, efetivamente, uma crise do direito, não somente quanto ?i sua apli-
cação, mas também no seu processo de evolução e isto, talvez, cm virtude
das guerras, das soluções conjunturais, da precariedade da vida contem-
porânea. É evidente que se delineia um novo direito, mas ele só será
bem caracterizado quando desaparecer o perigo das guerras, o temor das
grandes transformações sociais e, sobretudo, quando o pensamento con-
temporâneo puder se cristalizar e se fixar em uma concepção filosófica
que assegure maior estabilidade a todas as manifestações da vida humana.
Estas dificuldades repercutem de modo particular no Brasil, situado
entre dois mundos, ou pelo menos, entre duas civilizações, à procura de
um direito próprio, de instituições peculiares que não sejam simples de-
calques de modelos de outros países, levianamente transplantados.
É fato notório que sofremos, desde o início de nossa civilização, a in-
fluência continental européia. inicialmente a portuguesa. seguida da fran-
cesa. da italiana e da alemã. todas se manifestando nos nossos direito
civil, direito comercial, direito penal. direito administrativo e, mais re-
centemente, no chamado direito social.
Não se pode, no entanto, desconhecer a penetração entre nós do direi-
to público norte-americano desde a implantação da Constituição de 1891.
O mesmo sistema de controle da constitucionalidade das leis. pelo judi-
ciário, foi adotado no Brasil, rompendo-se, assim, com a tradição imperial.
O direito administrativo sofreu o mesmo choque, embora um pouco
mais tarde, uma vez que ele surgiu da renovação de nossos métodos admi-
nistrativos. A tradição européia foi, em certos pontos, superada pela téc-
nica dos sistemas administrativos norte-americanos, mas, se encararmos

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o problema de modo mais objetivo, veremos que prevalece um certo ecle-
tismo na seleção das concepções destes dois sistemas jurídicos diversos.
Conv~m manter uma certa prudência nas definições assim adotadas,
poi~ que, mesmo nos EUA, esboça-se uma evolução mais tolerante em rela-
ção ao direito administrativo europeu, tendo os americanos se convencido
de que não existe a pretendida incompatibilidade entre o sistema de
Comntol1 Law e aquele direito, atribuindo certos equívocos a informa-
ções incorretas fornecidas por autores de língua inglesa no trato das ins-
tituições administrativas francesas.
Na verdade, não somente a Inglaterra, mas também os EUA multipli-
cal'am suas instâncias administrativas, o que os conduzirá, fatalmente, ao
regime francês da especialização da jurisdição administrativa. É preciso,
portanto, analisar a evolução jurídica e suas regras antes de se efetuar
um transplante de instituições estrangeiras, o que, sem dúvida, exige
sólida base científica e cultural.
Finalmente, é necessário ressaltar a facilidade de adapt2.ção, em nosso
País, de concepções e instituições contemporâneas, assim como a criação
de institutos realmente úteis ao nosso contexto.
Lm exemplo disto é a estrutura de nosso sistema federativo, que retra-
ta as transformações sofridas, desde o início do regime republicano, por
um processo de racionalização, historicamente identificável e decorrente
das exigencias de um equilíbrio político que, se ainda não foi por nós
atingido, tem, também, desafiado a capacidade de muitos povos avançados.
No campo do direito público, observa-se que a ciência política não
vem exercendo a influência que seria desejável, não tendo sido, até agora,
aplicados os seus princípios essenciais, o que deverá se constituir em
próxima etapa a ser vencida neste complexo ramo do conhecimento ju-
rídico.
No que diz respeito às garantias das liberdades públicas e dos direitos
individuais, merece menção especial a doutrina brasileira do habeas-corpus,
certamente uma das mais interessantes adaptações de um instituto tra-
dicional às contingências nacionais.
Como prolongamento desta doutrina, a criação do mandado de segu-
rança, revestido de traços próprios, sem relação com instituições seme-
lhantes, como o mandado de garantia, do direito espanhol, o amparo
mexicano ou os diversos writs do direito anglo-saxão, revela, também.
contribuição original que requer um processo de ajustamento às condi-
ções de nosso país para transformar-se, realmente, num instrumento de
equilíbrio e de proteção de direitos.
Não terminaríamos tão cedo a enumeração dos exemplos de nossa re-
ceptividade às modernas criações do pensamento jurídico, bastando, por
ora, lembrar a teoria da imprevisão, nos contratos civil e administrativo,
a transformação do dirigismo contratual. a aplicação da teoria do risco
em direito civil e em direito administrativo.
Estas são, portanto, as expressões mais concretas de nossa cultura ju-
rídica contemporânea. Se ela abandonou um pouco o terreno filosófico e
esqueceu o romantismo da escola do Recife, não deixou, entretanto, de

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se preocupar com as soluções positivas, com o realismo jurídico, com a
técnica e as finalidades práticas do direito, ainda que este realismo con-
tinue imerso em grande idealismo, inspirado na concepção do direito
como fator social, como produto da vida em comunidade, destinado a
proteger mais o homem do que a própria sociedade.
A cultura jurídica, por ser mais objetiva e menos abstrata, mais téc-
nica do que filosófica, não deixa de ser uma cultura de nossa época,
onde não somente os fatos, mas também os princípios essenciais à elabo-
ração do direito devem corresponder a uma concepção humana, em que
o sentido espiritual não deve ser o último a ser considerado.
Eis alguns dos aspectos que me pareceram mais específicos, vistos por
prismas diversos, de modo a permitir a identificação das linhas essenciais
de nossa cultura jurídica contemporânea, eminentemente latina e bra·
sileira.

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