Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
12 R.C.P. 2/80
Em 1883, introduzia-se nos currículos a cadeira de direito administra-
tivo, na gestão do Ministro Nicolau de Campos Vergueiro e sob sua ini-
ciativa, evidenciando a preocupação dos homens dessa época com o pro-
gresso e a vontade de orientar a cultura nacional para novos rumos e
civilizações mais avançadas.
Merece realce, também, a contribuição do Conselho de Estado, não
somente pelo seu aspecto político, como pelos elementos culturais que
ele forneceu neste campo. Basta compulsar os trabalhos desse Conselho
para se verificar que nele foram elaborados os estudos mais completos
e detalhados, os projetos de lei mais interessantes na área administrativa:
trabalhos focalizando problemas agrários e que originaram a famosa Lei
de 1850 e o seu regulamento; análises orçamentárias e fiscais, instituições
de montepios; criação das Caixas Econômicas, concessões de portos e
estradas de ferro, com especificação de privilégios de zona, garantia de
juros, princípios básicos sobre o contencioso administrativo, e tantas
outras manifestações da cultura e do saber jurídicos.
Isto se explica pelo fato de que faziam parte desse Conselho indivi-
dualidades como José Nabuco, Pimenta Bueno, Uruguai, Itaboraí, Rio
Branco, Euzébio de Queiroz, Bernardo Pereira de Vasconcelos, José Cle-
mente Pereira, Jequitinhonha, Olinda, Sinimbu, para citar somente alguns
dos mais eminentes.
Entretanto, ninguém pode ter elevado tão alto a cultura jurídica neste
período de nossa formação como Teixeira de Freitas, civilista, autor de
um dos trabalhos mais completos e interessantes sobre o direito civil, o
seu esboço do Código Civil, consagrado no estrangeiro, com o Código
Civil argentino, no qual Velez Sarsfield inseriu, apenas, algumas adapta-
ções às condições daquele país. Ao nome de Teixeira de Freitas devemos
associar o de Nabuco de Araújo, para mencionarmos, somente, dois dos
mais destacados.
A República não diminuiu o ritmo dos nossos estudos jurídicos, não
se podendo dizer que tenha havido um declínio neste campo da nossa
cultura, apesar das modificações verificadas no quadro das instituições
jurídicas.
Entre os nossos constitucionalistas, destaca-se Rui Barbosa, o grande
construtor do direito constitucional republicano, principal responsável
pelo seu desenvolviinento e pelo seu progresso, pois foi ele, através dos
seus reiterados apelos ao Poder Judiciário e das suas teses jurídicas, quem
indicou as soluções para as mais importantes controvérsias sobre a apli-
cação de nossa Constituição republicana.
Na realidade, foi Rui Barbosa o inspirador desta primeira Constituição,
sendo de sua iniciativa, graças a sua excepcional visão de estadista de
notável cultura, a sugestão para a reforma e revisão deste documento,
além da adaptação do texto, à luz da experiência, às nossas condições
peculiares e aos reclamos nacionais.
Em razão disso, multiplicaram-se as decisões importantes do Supremo
Tribunal Federal e nomes de valor surgiram no direito constitucional re-
14 R.C.P. 2/80
Clóvis Bevilacqua, que também integrava essa escola, identifica três
períodos na sua evolução: o primeiro, de 1862 a 1868; o segundo, de
1868 a 1882, e, daí em diante, um terceiro e último período.
É interessante observar-se no desenvolvimento dessa corrente a subs-
tituição das influências literárias, principalmente aquelas importadas da
Europa, pelas de caráter científico, sociológico e jurídico, em especial a
do evolucionismo que, naquele momento, prodimanaya no estudo das
ciências sociais.
Os grandes juristas-filósofos tiveram uma formação literária extrema-
mente rica e a escola do Recife sofreu, exatamente nos primeiros tempos.
a influê!1cia do grande poeta que foi Victor Hugo, modelo para Tobias
e para muitos de sua geração, como Maciel l'vIonteiro, Castro Alves,
Franklin Távora e mesmo Alvares de Azevedo.
Se percorrermos a bibliografia dos discípulos deste renomado movimen-
to não encontraremos, nessa fase, nenhuma obra jurídica, mas inúmeros
trabalhos literários de valor, sobretudo poéticos. Não deixava, entretanto,
de ser uma expressão de cultura que, afinal de contas, constituía a base
da formação jurídica de jurisconsultos como Araripe Júnior, Aristides
Milton, Rui Barbosa e Inglês de Sousa.
Durante a fase de transição, essa tendência literária ficou mais acen-
tuada ainda, embora, desta vez, com algumas incursões no campo da
História e menos ênfase no da poesia.
Na segunda fase, já se percebe algum interesse de Tobias Barreto pela
filosofia e é desta época o seu livro sobre a religião em face da filosofia,
no qual se observa uma nítida influência de Augusto Comte e da litera-
tura alemã, que já se lhe tornava familiar.
Durante a terceira fase, iniciada em 1882, Tobias se desligou da escola,
passando a ser somente professor da faculdade de direito, através de con-
curso de grande repercussão. Depois de notabilizar-se como poeta, ele
inicia sua vida de filósofo e de jurista. Foi notável a sua atuação ao
introduzir a literatura jurídica e a filosofia alemãs em nosso meio cultu-
ral. Segundo Virgílio de Sá Pereira, foi o germanismo de Tobias que
impediu a penetração das idéias positivistas no Norte, embora ele tenha
sido um grande leitor de Littré, de Augusto Comte e de Spencer que,
entretanto, não chegaram a influenciá-lo profundamente.
No campo jurídico propriamente dito, Tobias formou uma corrente
contrária ao direito natural, abriu as comportas da sociologia à análise
do fenômeno jurídico e adotou o pensamento de Von Jhering em suas linhas
fundamentais, adaptando-o à sua concepção segundo a qual o direito con-
siste na harmonia das forças sociais, assegurada pelo poder coercitivo do
Estado. O direito natural. diz ele, não existe. O que existe é uma lei
natural do direito, expressão tão simples quanto dizer-se: "não há uma
linguagem natural, mas uma lei natural da linguagem; não há uma indús-
tria natural, mas uma lei natural da indústria; não há uma arte natural,
mas uma lei natural da arte."
16 R.C.P. 2/80
do provecto Tobias não escapa a essas polêmicas. Foi neste período que
apareceu Sílvio Romero.
A terceira fase começa em 1882. Toda a cultura científica e humanista
se cristaliza no pensamento jurídico que passa a constituir-se, realmente,
na grande expressão da escola do Recife. Desde essa época, Tobias, de
sua cátedra, começava a formar numerosos discípulos, fascinados pelo
gênio do mestre e pelo seu poder de persuasão ao transmitir as novas
idéias.
Em São Paulo, as tendências foram outras. Ao mesmo tempo que Haeckel
dominava o pensamento da escola do Recife, a influência de Kant se
fazia sentir diretamente na escola de São Paulo, onde o ensino da filo-
sofia se baseava em livro que reunia seus artigos.
O ataque de Lafayette, sob o pseudônimo de Labieno, contra Sílvio
Romero, em uma série de artigos intitulados Vindiciae, ilustra bem esta
rivalidade entre escolas. Com extraordinária virulência, este kantista con-
victo refuta o monismo materializado de Sílvio, mostra suas incoerências,
suas contradições e seus equívocos, sobretudo quanto à sua afirmação
sobre o monismo de Kant e a associação deste ao sistema filosófico de
Spencer.
Foi através do desenvolvimento da escola de São Paulo que se confi-
guraram as falhas da posição de Tobias e de seus discípulos. Por mais
que se tente subordinar as concepções jurídicas à evolução da técnica, ao
progresso científico, que, sem dúvida, repercutem no direito, não se pode
negar entretanto a supremacia de sua base ética.
Não é difícil conciliar tais considerações de ordem técnica com os
a priori éticos que devem pautar toda norma jurídica. Nenhuma relação
humana pode ser legitimada ou reconhecida se não está subordinada a
injunções de ordem moral, a não ser que se situe num plano materialista,
contrário aos fundamentos da civilização ocidental.
Ninguém ousaria atribuir ao positivismo jurídico propósitos de agres-
são à ordem moral. Ao conceituar o direito como o interesse juridica-
mente protegido, lhering refere-se, naturalmente, a um interesse legítimo,
fundado em concepções de ordem moral, sem as quais nenhuma civiliza-
ção pode sobreviver.
Ora, o direito desenvolveu-se, precisamente, ao mesmo tempo que a
técnica, acompanhando-a e procurando harmonizá-la com as exigências
e os interesses morais e sociais dos grupos humanos. O direito comercial
nasceu da evolução dos sistemas de transportes e de comunicações, assim
como o direito aeronáutico; o direito administrativo acompanha a téc-
nica administrativa, e assim por diante.
O direito implica uma idéia de relação, por conseguinte, de equilíbrio.
Fora disto, não se contesta o direito fundamental, que tem o homem, de
viver livremente ou de ter respeitados seus direitos fundamentais de
criatura humana e de ser superior. O que busca o direito moderno,
entretanto, é conferir outra dimensão aos preceitos de sociabilidade, além
de submeter o homem a uma disciplina social.
18 R.C.P. 2/80
o problema de modo mais objetivo, veremos que prevalece um certo ecle-
tismo na seleção das concepções destes dois sistemas jurídicos diversos.
Conv~m manter uma certa prudência nas definições assim adotadas,
poi~ que, mesmo nos EUA, esboça-se uma evolução mais tolerante em rela-
ção ao direito administrativo europeu, tendo os americanos se convencido
de que não existe a pretendida incompatibilidade entre o sistema de
Comntol1 Law e aquele direito, atribuindo certos equívocos a informa-
ções incorretas fornecidas por autores de língua inglesa no trato das ins-
tituições administrativas francesas.
Na verdade, não somente a Inglaterra, mas também os EUA multipli-
cal'am suas instâncias administrativas, o que os conduzirá, fatalmente, ao
regime francês da especialização da jurisdição administrativa. É preciso,
portanto, analisar a evolução jurídica e suas regras antes de se efetuar
um transplante de instituições estrangeiras, o que, sem dúvida, exige
sólida base científica e cultural.
Finalmente, é necessário ressaltar a facilidade de adapt2.ção, em nosso
País, de concepções e instituições contemporâneas, assim como a criação
de institutos realmente úteis ao nosso contexto.
Lm exemplo disto é a estrutura de nosso sistema federativo, que retra-
ta as transformações sofridas, desde o início do regime republicano, por
um processo de racionalização, historicamente identificável e decorrente
das exigencias de um equilíbrio político que, se ainda não foi por nós
atingido, tem, também, desafiado a capacidade de muitos povos avançados.
No campo do direito público, observa-se que a ciência política não
vem exercendo a influência que seria desejável, não tendo sido, até agora,
aplicados os seus princípios essenciais, o que deverá se constituir em
próxima etapa a ser vencida neste complexo ramo do conhecimento ju-
rídico.
No que diz respeito às garantias das liberdades públicas e dos direitos
individuais, merece menção especial a doutrina brasileira do habeas-corpus,
certamente uma das mais interessantes adaptações de um instituto tra-
dicional às contingências nacionais.
Como prolongamento desta doutrina, a criação do mandado de segu-
rança, revestido de traços próprios, sem relação com instituições seme-
lhantes, como o mandado de garantia, do direito espanhol, o amparo
mexicano ou os diversos writs do direito anglo-saxão, revela, também.
contribuição original que requer um processo de ajustamento às condi-
ções de nosso país para transformar-se, realmente, num instrumento de
equilíbrio e de proteção de direitos.
Não terminaríamos tão cedo a enumeração dos exemplos de nossa re-
ceptividade às modernas criações do pensamento jurídico, bastando, por
ora, lembrar a teoria da imprevisão, nos contratos civil e administrativo,
a transformação do dirigismo contratual. a aplicação da teoria do risco
em direito civil e em direito administrativo.
Estas são, portanto, as expressões mais concretas de nossa cultura ju-
rídica contemporânea. Se ela abandonou um pouco o terreno filosófico e
esqueceu o romantismo da escola do Recife, não deixou, entretanto, de
20 R.C.P. 2/80