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António Manuel Hespanha

Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

Direitos, estados, pessoas, coisas, contratos, ações e crimes

2015
Este livro constitui uma descrição do direito comum europeu, tal como ele
vigorou em Portugal dos meados do séc. XVI aos meados do séc. XVIII.
Tratava-se de uma sofisticada construção de juristas letrados, a partir da
qual se estabeleciam regras para a vida de todos os dias. Mas também de
uma imagem consistente do homem e da sociedade. A sociedade da
Europa latina assentou duradouramente sobre este modelo de vida, com o
qual se media a si mesma e passou, desde esta altura, a medir também
outras sociedades do mundo.

O livro foi escrito a pensar nos investigadores de história geral e nos


arquivistas, cujas dúvidas, ao lidar com as figuras do discurso dos juristas,
não tem sido adequadamente respondidas. Que lhes seja útil e que outros
também o possam aproveitar.

António Manuel Hespanha (n. 1945) é historiador e jurista, com obra nas
áreas da história moderna e contemporânea e da teoria do direito.

Copyright © by António Manuel Hespanha

Como os juristas viam o mundo. 1550-1750. Direitos, estados, pessoas, coisas,


contratos, ações e crimes
Edição impressa:
ISBN-13: 978-1508797524
ISBN-10: 1508797528

Lisboa 2015
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

1 Introdução.
1.1 Apresentação.
1.1.1 “Uma sociedade construída sobre o direito”.
§ 1. Será útil para a historiografia geral ter em conta as leituras jurídicas da
sociedade, neste caso da sociedade da primeira época moderna ? Este livro parte de uma
profunda convicção de que sim. Tradicionalmente, em contrapartida, os historiadores tendem
a achar que não, sobretudo porque acham que o direito lida com formas e formalidades, ao
passo que a história deve tratar do estofo e miolo das relações humanas. Na minha opinião,
esta ideia tem pouco de correto e, por isso, pensei que era útil propor aos historiadores este
desafio de, por uma vez, olharem o mundo da forma como os juristas o faziam.
§ 2. Certamente que a visão jurisdicista do mundo corresponde a uma construção
intelectual. O mundo dos juristas, mais do que “O Mundo”, é o seu mundo, embora eles
tendam a crer piamente que fora desse seu mundo não há mais mundo (quod non est in
libris non est in mundo). Isto não tem nada de singular. Passa-se com os economistas, com
os matemáticos e os físicos, com os médicos, e também com os poetas. Todos criam muito
mais do que descrevem e todos têm a tendência para desvalorizar esses momentos
fundamentalmente criadores das suas versões do mundo. Os historiadores – que, também
eles, criam o passado à medida que o contam –aspiram a encontrar, na sua pureza original,
na sua verdade em bruto, as coisas “como elas realmente se passaram” e frequentemente
desconfiam destas narrativas em segunda mão, sobretudo se elas são muito senhoras de si.
E as dos juristas, de facto, são arrogantemente autossuficientes, envolvendo a sociedade
numa armadura de conceitos e de fórmulas que explicam tudo e se explicam a si mesmos.
No entanto – afastada que for a antipatia que tais certezas pomposas nos suscitam -, estas
construções intelectuais não apenas revelam bastante bem aspetos muito importantes do
funcionamento das sociedades, como nos dizem muito acerca da própria lógica com a qual
constroem as suas imagens do mundo. Com o rigor analítico do seu saber – comparando,
definindo, distinguindo, e prosseguindo nisto até à exaustão - os juristas fornecem
minuciosos planos de pormenor da organização e do funcionamento da sociedade. E,
depois, ao discutir e justificar as suas conclusões, revelam o universo de pontos de vista, de
argumentos e de razões que podiam convencer os seus contemporâneos. Ou seja, os
juristas descrevem muito detalhadamente o mundo e muito exaustivamente as razões que
movem o mundo; o seu mundo, claro, e as suas razões para o movimento do mundo. Porém,
como o seu saber é organizado para intervir, como é um saber prático, como visa dirigir
comportamentos, e dirigi-los pelo convencimento, as suas proposições e as suas razões têm
que suscitar os consensos, propondo coisas possíveis, se possível agradáveis, baseadas em
razões prováveis. O enraizamento da visão jurídica do mundo pressupõe este contínuo
trânsito entre a “cultura” de um grupo e a “natureza” de todos, estas permanentes
apropriação cultural da “natureza” e “naturalização da cultura”1.
§ 3. Um colega informático com quem trabalhei, há anos, em projetos de construção
de sistemas periciais na área do direito costumava dizer que o direito era o software das

1 Abordei estes temas, do ponto de vista da história do direito, em Cultura jurídica europeia […],

cit., maxime, cap. 2; do ponto de vista da teoria do direito, em O caleidoscópio do direito […], cit., caps.
1.1. e 11.4.
Introdução.
sociedades. A afirmação parecia-me exagerada, sobretudo se se considerasse que o direito
era apenas a lei. Mas havia aí bastante de verdade. Se conhecermos o direito, em toda a
complexidade dos seus diversos níveis e interações internas, podemos perceber
razoavelmente bem o rumo que as coisas tomam no mundo da vida. Percebemos, pelo
menos, a regra, aquilo que acontece o mais das vezes (id quod plerumque accidit). Que
acontece porque uma norma jurídica o impõe, que acontece porque queremos evitar essa
imposição, ou que acontece porque o direito nos foi criando quadros mentais que nos levam
a fazer de certa forma os cálculos de vida ou a agir e a reagir segundo certos padrões.
§ 4. Nem se julgue que isto é específico dos nossos Estados de direito. Noutras
épocas da cultura europeia esta conformação da interação social pelo saber dos juristas foi,
porventura, ainda mais forte, porque o direito compreendia então esferas normativas que
hoje já lhe escapam, como a religião, a moral, a prudentia, a virtude. Claro que há os
transgressores, ou mesmo uma cultura da transgressão. Mas, mesmo estes, por regra,
procuram uma causa regular de justificação, uma versão alternativa do direito. E os juristas –
que têm um horror à rebeldia pura ou ao mero arbítrio – são muito generosos em formular
normas que isentam de outras normas. No mundo que vamos descrever neste livro, para
além das normas excecionais, da correção do direito estrito pela equidade e pela graça, da
derrogação de uma norma pelo costume de fazer as coisas de outro modo, encontraremos a
dispensa da lei que, num caso particular, permitia que, legalmente, se não cumprisse a lei. O
direito estava, assim, por todo o lado, prevendo, disciplinando, regulando, enquadrando a
indisciplina, orientando o olhar, propondo nomes para as coisas, educando a avaliação. Uma
“sociedade construída sobre o direito”, tal como escreveu Aaron Gurevič (Categories of
Medieval culture, 1985).
§ 5. Por outro lado, tal como acontece com todos os especialistas, os juristas viam
coisas lá só deles, mas que acabavam por indiciar questões que tocavam a todos, mas de
que nem todos se apercebiam. Ao escrever este livro, verifiquei que, para os juristas
portugueses dos finais do séc. XVI, havia uma questão dramática relativa ao equilíbrio e
continuidade da sociedade portuguesa. A “questão da independência” ? A crise do império
oriental ? A “ameaça judaica” ? Não. A mais viva polémica entre os grandes juristas da
época – em que eles perdem a habitual compostura e se ameaçam mutuamente com o
Inferno – era … a renovação da enfiteuse. Este tema, que não tem interessado por demais
os historiadores da sociedade e do poder, era descrito por estes especialistas no estudo e
decisão das grandes tensões da comunidade como uma questão crítica, em que a sociedade
podia soçobrar. Um delas explica que, vistas bem as coisas, a sociedade portuguesa era
uma grande e única enfiteuse, pois todos os bens e rendimentos eram concessões de
outrem, dependentes de renovação; e, por isso, tudo o que dissesse respeito à renovação da
enfiteuse afetava todo o tecido social, não só porque os prazos eram muito comuns, mas
também porque a sua estrutura era semelhante à de muitas outras cedências precárias de
bens e direitos. Tudo quanto afetasse a estabilidade das expetativas de foreiros afetava, pela
semelhança estrutural da questão, todo o tecido social. Outros discordavam, realçando antes
os interesses dos senhorios concedentes em disporem livremente dos seus bens. Mas os
seus argumentos também evidenciavam a suprema importância da questão. Provavelmente,
sem o estudo desta discussão – que encerra aspetos bastantes técnicos -, a valorização
adequada desta tensão política e social não seria possível. E o mesmo acontecerá com
outras questões sociais encobertas por detrás de discussões aparentemente livrescas e
formalistas dos juristas letrados

4
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1.1.2 Como reconstruir o direito antigo ?
§ 6. Este uso do direito como fonte de informação sobre as sociedades modernas
debate-se, porém, com a dificuldade de que, sendo o direito um domínio carregado de
tecnicismos, os historiadores não juristas costumam encontrar-se de mãos vazias para
entender as fontes jurídicas. Nas mais das vezes, procuram livros de direito atual para
colmatarem os seus défices de informação. O que – já lá voltarei – é o pior dos remedeios,
pois os leva a aprisionar o passado nas categorias do direito de hoje. Aos meus alunos ou
aos meus orientandos costumo indicar alguns remédios para isto. Aconselhava-lhes a leitura
das Institutiones iuris de Pascoal de Melo2; ou então, as anotações a elas, de Lobão3. Mas
este recurso também coloca delicados problemas de anacronismo.
§ 7. Pascoal de Melo era um assumido reformista, sem grande respeito pelos juristas
portugueses que tinham escrito antes dele. Frequentemente, a versão que dá do direito
português difere completamente do que antes dele constituía a opinião comum. E, por isso,
não pode ser tomado como uma fonte segura para o direito anterior, nem porventura mesmo
para o direito doutrinário mais praticado na segunda metade do séc. XVIII. Destacava muito
o direito do reino (direito “municipal”, como preferia chamar-lhe), sobretudo para sublinhar
que o direito comum não era universal, mas apenas um deesenvolvimernto de um outro
direito municipal, o romano. Como também dava muito mais força à ideia de que a tradição
devia ser filtrado pela razão. O seu tratamento do direito sucessório pode servir de exemplo
deste seu forte pendor para a subversão da tradição. Aí, ele afasta-se da doutrina comum
até então, ao defender o primado da ordem sucessória natural, baseada nos sentimentos de
amor e de piedade, sobre a disposição sucessória voluntária, reduzindo o testamento a uma
forma subsidiária de dispor dos bens. Porém, havendo disposição testamentária, defende o
primado da vontade do testador sobre as formalidades “supersticiosas” dos romanos
(necessidade de instituição de herdeiro e de deserdação expressa). Por seu lado, o desfavor
do direito canónico e da validade (simplificada) das deixas piedosas rompe com a tradição
canonística de privilegiar os “testamento eclesiástico” e as deixas a favor da alma. No direito
processual, nota-se o mesmo corte: afasta o sistema romano (e do direito comum clássico)
de ações processuais tipificadas, com regimes processuais específicos (quanto ao libelo, aos
prazos, à prova, aos efeitos), com base no princípio de direito pátrio de que, no libelo, não se
tinha que indicar o nome da ação, mas apenas expressar o que se pedia (pedido) e com que
fundamento (causa de pedir). Escolhemos estes dois exemplos, por não serem tão evidentes
como a completa autonomização do direito público ou do direito criminal, mais
frequentemente referida. Mas este estilo de renovação, de reforma e de recusa do direito
anterior encontra-se por toda a sua obra. Lobão, muito mais conservador e apegado à
jurisprudência tradicional, pode compensar um tanto o reformismo de Pascoal. Mas também
não deixa de adaptar à sua cultura jurídica e à sua mundividência a lição dos antigos juristas.

2 Pascoal [José] de Melo [Freire dos Reis], 1738-1798, Institutiones iuris civilis lusitani, Coimbra, Typ. regalis
Academiae scientiarum, 1789 (1 e 2:http://www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/7835.pdf; 3 e 4,
http://www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/7703.pdf). Versão portuguesa (de Miguel Pinto de Menezes):
http://www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1563.pdf; Id., Institutiones iuris criminalis lusitani, Coimbra, Typ. Regalis
Academiae scientiarum, 1794. Versão portuguesa (de Miguel Pinto de Menezes):
http://www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1012.pdf.
3 Manuel de Almeida e Sousa (de Lobão), 1744-1817, Notas de uso practico, e criticas, addições, illustrações
e remissões [a Mello], Lisboa, Imprensa Nacional, 1818.

5
Introdução.
1.1.3 Uma tradição jurídica, na Europa ?
§ 8. Estas ilusões acerca da tradição, que aqui conto desta forma breve e apenas
exemplificativa, são, afinal, a manifestação, no plano da prática da investigação, de um
conhecido problema teórico: a crítica da ideia de continuidade. A confiança nas categorias
jurídicas do presente ou a necessidade de as justificar levaram a crer que a história do direito
ocidental se podia descrever como um processo contínuo de construção da dogmática de
hoje, em que os conceitos estruturantes atuais ou sempre tinham existido ou se tinham
progressivamente desenvolvido. Com isto, o direito atual poderia reivindicar-se de uma
história, se não de dois mil anos, pelo menos de um milénio4.
§ 9. No entanto, houve, ao menos, esta rutura a que agora me refiro, a do iluminismo
jurídico. Podemos avaliar a sua dimensão desde logo pelo novo estilo de livros jurídicos que
trouxe para primeiro plano, as Institutiones ou manuais elementares5, de que as de Pascoal
de Melo são um magnífico exemplo. Trata-se de livros totalmente distintos dos anteriores
livros jurídicos. Para começar, no formato (in octavo) e no volume (apenas umas poucas
centenas de páginas pouco densas). Depois, na estrutura do discurso, organizado e
argumentado de forma sistemática, com os títulos a começar por uma definição, cujos
elementos se iam analisando em sucessivos parágrafos. Finalmente, no conteúdo, pautado
por uma atitude frequentemente problematizadora das fontes de autoridade e crítica em
relação ao direito estabelecido. Para justificar a rutura com o direito vigente, usa-se às vezes
a retórica da necessidade de retorno às fontes, ou a um mítico direito romano clássico ou
aos autores renascentistas, que já o tinham procurado. Mas, noutros contextos, mesmo este
direito exemplar é apresentado como produto de possíveis superstições. Apesar de os
compêndios serem a exceção nos primeiros anos da reforma, eles apareceram na
generalidade das cadeiras “sintéticas”, que eram as centrais na formação dos estudantes, e
com isto moldaram a cultura jurídica das gerações vindouras. O direito – tal como os livros
jurídicos – nunca mais serão o que tinham sido. O “romanismo” do séc. XIX – visível tanto na
pandectística como na doutrina francesa posterior à codificação – têm muito pouco a ver com
o “romanismo” dos juristas do direito comum.
§ 10. A rutura iluminista é, portanto, um primeiro óbice a que se fale de uma tradição
jurídica na Europa. Realmente, esta não foi a única rutura que perturbou a linearidade do
tempo jurídico ocidental. Apesar da discrição com que isso aparece nas fontes, a “receção”
do direito romano fora também uma rutura, marcada por uma extensa descontinuidade no
enquadramento das práticas sociais pelo direito e seu saber. Os magistrados medievais já
não eram os magistrados romanos, nem os bizantinos. O processo já não se estruturava
como no tempo dos pretores. Os contratos já não estavam condicionados pelos formalismos
do direito clássico. A família ou o testamento obedeciam a outras lógicas. A punição dos
crimes já não obedecia às peculiaridades do processo – quase extrajurídico – dos romanos.
Os juristas continuavam a referir-se aos institutos, aos magistrados, às peripécias
processuais do direito romano clássico, que encontravam no textos do Digesto, mas o
sentido das suas reflexões já não era o de encontrar soluções normativas. Justamente, um

4 Cf. António Manuel Hespanha, Cultura jurídica europeia […], cit., maxime 3.5 e 3.6.
5 Cf. sobre este género literário: Klaus Luig, “Institutionslehrbücher des nationalen Rechts im 17.
und 18. Jahrhundert”, Ius commune, 3(1970) - http://data.rg.mpg.de/iuscommune/ic03_luig.pdf;
Johannes-Michael Scholz, “Penser les Institutes hispano-romaines”, Quaderni fiorentini per la storia del
direito moderno, 8(1979), 137-178 (http://www.centropgm.unifi.it/quaderni/13/letture.pdf);

6
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
outro problema metodológico do trabalho do historiador é o de saber o que estavam estes
juristas a fazer quando se perdiam em divagações e distinções ligadas a institutos jurídicos
que já não existiam6: estavam presos a antigas rotinas textuais ?; ocupavam-se de
investimentos meramente simbólicos, que demonstrariam a sua erudição e o seu saber ?;
construíam estratégias de ampliação do campo de indeterminação do direito e, com isso,
aumentavam importância social dos juristas, como decisores dos litígios ?; preparavam
distinções e desenvolvimentos dogmáticos ?
§ 11. Mesmo depois da reforma dos estudos de Coimbra, a tradição jurídica letrada
luso-brasileira não se unificou completamente, pois é possível identificar, ao lado de uma
fileira de juristas que aceitam globalmente a reforma iluminista e a combinam, depois, com
as inovações do Code civil francês de 1794 (como Melo Freire e Coelho da Rocha), uma
outra que permanece mais fiel à tradição da praxística, combinada com a influência do
conservador código prussiano de 1794 (como Rocha Peniz, Lobão, Correia Teles e Teixeira
de Abreu).
1.1.4 Pluralidade de direitos, pluralidade de tradições.
§ 12. Se suspendermos a visão de uma tradição jurídica ocidental, muitos direitos e
muitas tradições aparecerão no espaço europeu. Desde logo, as tradições dos direitos locais
não letrados, a que já o jurista Odofredo, no séc. XIII, se referia como chocantemente alheias
ao espírito do direito dos académicos (“escritos por burros”, Odofredo, In Dig. Vet., I. 3 de
leg. et senatuscons.). Por outro, as tradições jurídicas reinícolas que, partindo embora do
direito comum, incorporavam fontes importantes do direito dos reinos, como o Liber judicum,
as Siete Partidas, as Ordenações portuguesas ou as Leis de Toro. Ou ainda as tradições de
julgar de um tribunal superior, como o alegado direito anglo-saxão a que se referia a tradição
jurisprudencial inglesa; ou como os estilos da Casa da Suplicação ou das diversas relações
portuguesas, nomeadamente quando este estilo tivesse sido objeto de recolha, de
tratamento doutrinal e de publicação, como aconteceu com o estilo da Casa da Suplicação,
tratado por Manuel Mendes de Castro7 ou João Martins da Costa8. Abaixo destas tradições
jurídicas à medida das realidades políticas oficiais dos reinos, as tradições dos direitos
“populares”, nomeadamente das comunidades marginais ao mundo do direito oficial e
letrado, a que os contemporâneos chamavam de “direito dos rústicos” (iura rusticorum)9 e de
que ainda falaremos.
§ 13. Em suma, a ideia de uma tradição jurídica europeia, se pode fazer algum
sentido no âmbito de uma história mundial do direito, dificulta a visão muitos elementos de
diferenciação que são necessários para contar uma história do direito ocidental. Para além

6 O que levanta uma questão a montante: o que é “existir”, para uma norma ou um princípio
jurídico. Num certo sentido, estes institutos ou figuras dogmáticas romanos a que os juristas europeus
continuam a referir-se existem, embora não com normas que se aplicavam na prática (em que prática é
que não se aplicavam ? não na prática discursiva, pois continuavam a ser figuras do discurso dos
juristas …).
7 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana, advocatis, judicibus, utroque foro quotidie

versantibus […], cit..


8 João Martins da Costa, Styli, supremique Senatus consulta […], cit..

9 V. Bartolomé Clavero, “Gracia y Derecho entre Localización, Recepción y Globalización […]”, em

que critica um meu possível fascínio pela tradição jurídica letrada); v., em todo o caso, a minha Cultura
jurídica europeia [cit.], maxime 7.2.6 a 7.2.11, onde levo em conta os seus reparos

7
Introdução.
das vantagens historiográficas de rigor, o sublinhar da pluralidade de tradições jurídicas
(nomeadamente, na Europa) evita que a história do direito europeu se oriente no sentido de
legitimar uma política de unificação (globalização) do direito privado europeu com base numa
alegada tradição jurídica comum10.
1.1.5 A tradição livresca do direito comum tardio da Europa do Sul.
§ 14. Este meu projeto de escrever uma espécie de “manual” da fase epigonal do
direito comum da Europa sul-ocidental transformou em perplexidades concretas algumas das
dificuldades metodológicas que eu já tinha identificado em abstrato. Contarei, de seguida,
como foi que certas questões teóricas me apareceram agora sob a forma de indecisões de
método.
§ 15. O objetivo do meu projeto era, como disse, o de facultar um panorama do direito
tal como ele aparece na literatura jurídica portuguesa anterior ao iluminismo, tal como era
presumivelmente aplicado nos tribunais e tal como era vivido pela generalidade das pessoas.
Dada a pluralidade de tradições jurídicas na história do direito europeu e, por isso, a
pluralidade de esferas em que elas se desenvolvem e às quais se referem, é preciso definir o
âmbito de validade deste direito de que me vou ocupar.
§ 16. Parece importante salientar, desde já, que me refiro a um direito culto, a um
direito de uma elite de juristas letrados. A doutrina jurídica que lhe corresponde está muito
estreitamente dependente da doutrina do direito comum continental europeu (ius commune),
essa imponente massa doutrinal e dogmática que dominava a cultura jurídica das faculdades
de direito e dos tribunais letrados na Europa Ocidental. Lendo as referências dos escritores
portugueses constata-se que, no universo desta tradição literária, estavam muito presentes
os autores italianos dos sécs. XII a XIV e os que, mais recentemente, tinham escrito sobre
direito no ambiente das universidades e dos tribunais das grandes monarquias do Sul da
Europa, nomeadamente da Espanha, de Portugal, dos Estados papais e, bastante menos, da
França. Os autores alemães rarissimamente aparecem e, ainda menos, os ingleses. Não
ignorando que existiam diferenças regionais nesta doutrina jurídica, ela apresentava-se, no
seu conjunto, como um património comum e individualizador das duas grandes penínsulas
da Europa ocidental e, parcialmente, também do reino de França. Em termos culturais, este
território correspondia ao da Europa católica pós-tridentina, simplificando, da Europa do Sul.
§ 17. Para caraterizar com mais rigor este universo literário de referência, recorri a um
breve estudo estatístico de há uns anos acerca das citações de um tratado sobre as
especificidades que o autor considerou como as mais notáveis do direito português11. Entre
os autores aí mais citados aparecem os principais decisionistas portugueses de seiscentos
(nomeadamente, Álvaro Valasco, Jorge de Cabedo e Melchior Febo), o comentarista Manuel
Barbosa, os grandes tratados monográficos italianos da viragem dos sécs. XVI para XVII
(Prospero Farinacio, Giulio Claro, Roberto Maranta, Giacomo Menochio), a par com Bártolo.

10 Cf. Reinhard Zimmermann, Roman law, contemporary law, European law. The civilian tradition

today, Oxford University Press, 2001. Sobre o tema, mas sem intenções atualistas tão claras, Peter
Stein, Roman Law in European History, New York, NY, Cambridge University Press. 1999. Crítica de
Zimermann, Tommaso Pavone, “A Critical Review of Reinhard Zimmerman’s Roman Law,
Contemporary Law”, 2014, in http://tommasopavone.yolasite.com/resources/Zimmerman-
Roman%20Law,%20Contemporary%20Law,%20European%20Law%20%28Critical%20Review%29.pdf
.
11 António Manuel Hespanha, “Direito moderno e intertextualidade. […]”, cit..

8
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
Num quadro sinóptico, o conjunto dos autores citados, ventilados pela nação do autor citado
e o século da sua morte 12, distribui-se assim:

Sécs. XI- Séc. Séc. Séc. Séc. Séc. Total Total


XII XIII XIV XV XVI XVII autores citações
Espanhóis 2 117 14 25 133
Italianos 3 7 66 60 354 77 64 567
Portugueses 86 320 20 406
Outros
(sobretudo, 7 4 22 5 12 39
franceses)

§ 18. Deduzo deste breve exame que o universo de referências dogmáticas deste
direito de que me ocupo é o universo de livros jurídicos impressos no Sul da Europa na
segunda metade do séc. XVI e na primeira do séc. XVII: os últimos dos comentadores e os
pós-comentadores italianos, os mais importantes juristas castelhanos, catalães, napolitanos
e romanos, alguns franceses e praticamente nenhuns alemães ou norte-europeus. Embora
Bártolo e Baldo (bem como os mais clássicos dos seus mestres ou contemporâneos) ainda
sejam muito citados, o aparecimento da imprensa jurídica na viragem do séc. XV para o XVI
tinha mudado a face do arquivo textual dos juristas. Claramente, os “modernos” tinham
varrido as gerações anteriores de “autoridades”. O novo mundo da edição jurídica era agora
povoado de autores profissionalmente ativos nas universidade e nos tribunais superiores dos
principados modernos, autores de coleções de consilia ou de decisiones. Os novos
repositórios do saber jurídico são agora os grandes tratados enciclopédicos como os dos
cardeais Domenico Toschi (Conclusionum practicae, 1605 a 1608) e Giambattista de Luca
(Theatrum iustitiae et veritatis, 1669-77) ou, no ambiente ibérico, os tratados de justiça e do
direito, de Domingo de Soto, Luís de Molina, ou as obras congéneres de Francisco Suarez,
Fernão Rebelo ou Baptista Fragoso, para além dos juristas “dicionaristas”, como o português
Agostinho Barbosa.
§ 19. É de presumir que a literatura citada muito raramente fosse toda ela
efetivamente compulsada pelos juristas ou pelos juízes. Guias dos estudos jurídicos para
esta época13 dão indicações sobre os livros que um jurista devia ter à mão. E as suas listas
são muito mais curtas do que a daquilo que aparece citado. Os livros eram caros, de difícil
transporte e relativamente frágeis. Era normal que não estivessem em todas as bibliotecas
de juristas, mesmo nas daqueles que escreviam. É certo que muitos deles (na verdade
quase todos) estavam ligados a instituições com boas livrarias, como os colégios
universitários ou os grandes tribunais da corte. Mas é muito provável que, na sua busca de
“autoridades”, usassem obras de referência, como os repertórios, os vocabulários ou os
dicionários. Ou que reproduzissem as citações doutrinais que encontravam em obras de uso

12 Escolhemos a data da morte porque, ao utilizar o século como intervalo, esta é a mais próxima
do momento da grande divulgação da sua obra.
13 No contexto dos livros usados em Portugal, Francisco Bermúdez de Pedraza, 1576-1655, Arte

legal para estudiar la Iurisprudencia, cit.; António de Sousa de Macedo, 1606-1682, Perfectus doctor in
quacumque scientia maxime in iure canonico & civili. […], cit., 1643; Jerónimo da Silva Araújo,
Perfectus advocatus, hoc est, tractatus de patronis, sive advocatis, theologicus, juridicus, historicus, et
poeticus […], cit..

9
Introdução.
mais comum, como, no caso português, os comentários impressos às Ordenações14 ou as
recolhas de decisões dos altos tribunais do reino, publicadas entre o séc. XVI e os meados
do séc. XVII15. Como o estilo discursivo usado na época se estruturava a partir de tópicos –
ou seja, curtos textos que traduziam sucinta e expressivamente, uma ideia apoiada por uma
“autoridade”-, esta leitura fragmentada (pouco arrazoada) das obras era suficiente para a
generalidade das discussões jurídicas. Uma discussão longa de um tema, cuja
fundamentação exigisse a leitura de um livro ou de um largo capítulo, raramente aparece.
§ 20. É justamente este estilo de trabalho dos juristas seiscentistas que sugere e
facilita a elaboração de um livro como este. Numa primeira aproximação, é possível partir
também de repertórios, de coleções de decisões e de comentários às Ordenações. O
embraço que então surge é o de como passar desta narrativa atomizada para um corpo
expositivo articulado. Mas a essa cruz já me referirei. Num caso ou noutro, haverá que
buscar algum complemento em obras monográficas. Se se trata de prerrogativas régias ou
da sua doação dificilmente se passará sem ter que se recorrer ao tratado de Domingos
Antunes Portugal sobre as doações régias; se se trata de ações e de processo, não se
passará sem consultar a Practica de Manuel Mendes de Castro; ao descrever o direito
criminal será quase obrigatório consultar o comentário às leis de Toro de António Gomez. E,
para questões mais substanciosas de teoria, de filosofia ou de teologia do direito, os tratados
enciclopédicos de Luís de Molina ou de Baptista Fragoso são sempre muito prestantes. Foi o
que fiz. Com um plano expositivo na cabeça e um razoável conhecimentos das sedes
materiae e dos institutos-chave, lancei mão sobretudo de dois repertórios: o Liber utilissimus
[…]¸ de António Cardoso do Amaral (1610), já com algum princípio de estruturação
sistemática nas suas entradas, mais encostado ao direito comum (e, sobretudo, ao direito
canónico) do que ao direito do reino; e o Promptuarium juridicum, de Bento Pereira (1644),
mais rico em referências ao direito praticado nos grandes tribunais e à literatura decisionista
que o analisava. Subsidiariamente, usei os dicionários de Agostinho Barbosa (os Tractati
varii, de 1631, e o Repertorium juris civilis et canonici, de 1689). Essas foram as portas de
entrada em literatura mais monográfica, por vezes necessária.
§ 21. Ter começado por esta literatura permitiu-me, creio eu, fazer o mesmo que
faziam os juristas da época. E, com isso, encontrar algo de muito próximo daquilo que eles
encontravam. Numa obra deste género, em que queremos dar conta do direito mais
praticado e não de alguma subtileza mais singular, procurar usar os métodos usuais dos
utilizadores da literatura estudada presumivelmente ajuda a identificar o direito que
efetivamente vigorava na esmagadora maioria das situações.
§ 22. Com os meios que hoje temos, o trabalho estes materiais torna-se, porém, mais
fácil e mais produtivo do que o era há quatrocentos anos. As referências para as fontes são
facilmente identificadas e conferidas, pois essas fontes estão hoje quase todas on-line, o
mesmo acontecendo com quase toda a bibliografia citada. A ocorrência de conceitos ou
expressões técnicas deteta-se com os motores de busca hoje correntes. Tirei partido de tudo

14 Nomeadamente, o de Manuel Barbosa, Remissiones doctorum ad contractus, ultimas


voluntates, et delicta spectantes in librum quartum, et quintum […], cit.; o de Manuel Mendes de Castro,
Practica lusitana […], cit.; ou o de Manuel Álvares Pegas, Commentaria ad Ordinationes […], cit, este
último já monumental, mas cujo uso era facilitado pela existência de um índice que, só por si, já
bastaria para colher muitas referências: Manuel Álvares Solano do Vale, Index generalis […], cit..
15 Cf. Gustavo Cabral, Os decisionistas portugueses entre o direito comum e o direito pátrio, São

Paulo, Faculdade de Direito da USP, 2013.

10
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
isso para enriquecer o meu corpus literário: procurei dar indicações precisas de fontes e de
lugares, converti os antigos modelos de citar nos hoje usados, citei frequentemente nas
próprias palavras, traduzindo do latim quando isso fosse muito necessário, mas deixando
frequentemente o texto original para colher o saber original e habituar ao latim.
1.1.6 Um direito doutrinal.
§ 23. Um outro esclarecimento refere-se ao facto de que a ordem jurídica que vou
descrever não era um conjunto de leis, mas um corpo de doutrina. Isto surpreenderá muito
os leitores para quem o direito seja a lei. Como explicarei, isso não se passa, de forma
nenhuma, com a ordem jurídica moderna, em que a presença cada vez mais frequente da
lei, produto da vontade rei, não atribuía a esta legislação real quase nenhum protagonismo.
Mesmo em campos como o direito penal, normalmente vistos como muito dependentes da
vontade reguladora dos reis, as leis apenas concretizavam aspetos de detalhe que a doutrina
tinha deixado imprecisos. Havia crimes sem lei e, ainda mais, penas sem lei (dependentes,
portanto, do arbítrio do julgador, o arbitrium iudicis). Se lermos, por exemplo, o comentário de
António Gomez às leis de Toro, logo verificamos que, apesar de ele o organizar segundo a
ordem dessas leis, toda a substância do seu trabalho está na determinação do regime
doutrinal dos crimes e das penas, como estava estabelecido pela literatura do direito comum.
E é isso que faz com que esta doutrina seja seguida por cima das fronteiras dos reinos.
Noutros casos, procurar direito legal é mesmo inútil, porque ele não existe. Como se verá, as
referências do principal da doutrina dos contratos é apenas doutrina, com remissões mais ou
menos forçadas para um direito romano que já não correspondia em quase nada – senão em
frases e brocardos - à dogmática jurídica moderna. E, por isso mesmo, é muito útil que uma
descrição do direito da época moderna coloque esta doutrina do direito – que assusta pela
sua magnitude e pela sua natureza aparentemente hermética – ao alcance dos historiadores
sem formação jurídica (e, também, dos juristas sem formação histórica). Já agora, também
os apressados tradutores que confundem law com lei, dar-se-ão conta, se tiverem paciência
para ler o livro, do disparate a que o anglicismo conduz.
1.1.7 O impacto social do direito letrado.
§ 24. Ainda sobre o âmbito do direito aqui descrito. Este direito vigorava nos livros,
claro está. E, por isso, modelava a cabeça de quem os lia – professores da universidade,
estudantes, juízes e advogados letrados Eventualmente seriam lidos em diagonal por alguns
escrivães e procuradores com poucos estudos jurídicos, talvez apenas com estudos
preparatórios para a universidade, ou mesmo apenas sabendo ler e escrever. Este mundo
era muito restrito, do ponto de vista social. Socialmente e politicamente, era o mundo de uma
certa elite que frequentava livros. Geograficamente, era um mundo quase exclusivamente
urbano. No entanto, este saber possuía certos trunfos para se disseminar.
§ 25. Por um lado era um direito vazado num discurso feito de – como se diria hoje –
sound bytes, de brocardos, curtas frases que condensavam expressivamente uma regra, que
ficavam no ouvido, e que se tornavam num instrumento muito acessível e eficaz também na
comunicação oral. Mesmo que não se fosse capaz de reproduzir toda a argumentação que
levava à conclusão, ou que não se pudesse identificar a fonte da sua autoridade, o brocardo
valia pela sua expressividade e por ser comumente aceite. Estes átomos do discurso letrado
colonizavam, assim, como vírus a comunicação fora do círculo restrito dos leitores de livros,
tal como as breves jaculatórias e os versículos disseminavam entre os crentes o saber
religioso contido nos livros santos. Um pouco mais extensas do que os brocardos eram as
fórmulas ou cláusulas, com as quais os notários formalizavam nos documentos escritos a
descrição de situações ou vontade das partes, de modo a que elas pudessem valer em
11
Introdução.
direito. Também aqui, este saber formular estava bem longe de conter o saber jurídico.
Muitos escrivães não saberiam dar conta do porquê de descrever as coisas assim, com
aquelas formulações quase sagradas. As partes, muito menos. Mas estas formas
estereotipadas de escrever iam embebendo o discurso vulgar e insinuando o saber técnico
que estava por detrás delas.
§ 26. Por outro lado, o suporte escrito garantia a esta literatura uma enorme difusão
espacial. Embora os livros de direito desta época – normalmente volumosos in folio - não
fossem muito transportáveis, nem o material de que eram feitos fosse muito resistente a
certos climas e a muitas pragas, o certo é que encontramos livros de direito nas periferias,
não apenas do reino, mas ainda do império16. Isto garantia o conhecimento da tradição
jurídica letrada nos confins mais afastados, mesmo independentemente de aí existiram
juristas. O livro era um comunicador autónomo, valendo pelo conteúdo ou mesmo apenas
pelo seu aspeto grave e misterioso17. De alguma forma, a distância, a raridade e o
hermetismo ainda redobrava a sua eficácia comunicativa. A ideia de que toda a realidade e
todo o saber relevante estavam nos livros era expresso também num brocardo: quod non est
in libris (ou in actis, nos laudos processuais) non est in mundo”. Os juristas têm os livros e os
papéis como atributos caraterísticos. E, nesses livros e nesses papéis, com os quais eles
enchem os baús-estantes que costumavam acompanhar nas viagens os juízes de fora e
corregedores -, é este direito erudito que está contido e que, por isso, viaja com eles. Uma
escrita em latim, é certo. Mas então, porventura mais do que hoje, o latim apenas velava a
compreensão dos textos. As curtas frases de que o discurso jurídico era feito traduziam-se
com facilidade, tanto mais que o vernáculo fora assimilando muitas palavras originariamente
técnicas. Mas a sua vestimenta latina ainda dava mais autoridade ao conteúdo, aproximando
o direito dos saberes religiosos.
§ 27. De qualquer modo, o direito de aqui trato não era todo o direito da sociedade
moderna. Nas periferias (não necessariamente em sentido apenas espacial) do centro e nas
periferias dos impérios existiam muitos outros direitos, que esta literatura erudita claramente
procura desvalorizar – nomeadamente sob a etiqueta de “direito dos rústicos”18 ou,
eventualmente sob a etiqueta um pouco mais respeitosa de “direitos próprios” - e que, por
isso, tendem a ser ignorados pela historiografia jurídica. Periferias do centro eram, por
exemplo, os pequenos concelhos do interior de Portugal, providos apenas de juízes
ordinários (ou “pela Ordenação”), frequentemente analfabetos (v. § 711), aconselhados por
assessores também de poucas letras, tipicamente os próprios escrivães ou procuradores, os
rábulas e pequenos advogados de província, com magros conhecimentos de direito culto.
Nessas terras do fim do mundo, as visitas de magistrados letrados eram muito esparsas e de
curta duração. O corregedor ouvia as queixas que ousassem exprimir-se, manuseava os
registos dos escrivães, avocava uma ou outra causa, mas não perturbava muito as

16 Cf., sobre bibliotecas de juristas, Nuno Camarinhas, “Bibliotecas particulares de magistrados no


século XVIII”, cit.; no “império”, Álvaro de Araujo Antunes, Espelho de cem faces […], cit.; alguns dados
sobre uma região “de fronteira”: Ivan Furmann, Cultura jurídica e transição entre colônia e império: a
experiência da ouvidoria de Paranaguá e Curitiba, cit..
17 Isto explica a existência de bibliotecas jurídicas “de aparato”, em que a desproporção entre o

número e tipo de livros e as virtualidade locais da sua utilização é evidente. Cf. Álvaro de Araujo
Antunes, Espelho de cem faces […], cit..
18 Cf. António Manuel Hespanha,"Savants et rustiques. La violence douce de la raison juridique",

cit..

12
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
quotidianas dinâmicas jurídicas locais. Em todo o caso, deixava alusões ao direito letrado,
recomendava o uso das Ordenações, puniria um ou outro desrespeito mais abusivo do
direito real e, com isto, recordava que um outro direito existia, o qual, na pior das hipóteses,
podia descer sobre a vida destas modestas comunidades. Se não estava presente, o
Leviathan jurídico era uma ameaça impendente. Periferias do império eram, por exemplo, os
sertões brasileiros, semelhantes, na sua vida jurídica, àquelas zonas extremas do império
espanhol tão bem descritas recentemente por Alejandro Agüero19, onde este direito letrado
chegava pelas mesmas mediações de juristas de poucas letras, estudantes fracassados de
direito, práticos de escrita que também exercitavam nas escrivaninhas dos tribunais locais.
1.1.8 Que ordem expositiva ?
§ 28. Passando a questões mais concretas. Elaborar uma descrição geral de uma
ordem jurídica exige muito mais do que colecionar pequenas notas sobre institutos isolados
uns dos outros. Importa dar às matérias um seguimento que pareça lógico, respeitando
proximidades e distâncias entre as matérias. Aqui é que surgem os grande problemas
quando se está a descrever um direito diferente do nosso. Porque, ao descrever, se está, de
facto, a ordenar, a estabelecer sequências, a marcar as tais proximidades e distâncias, de
acordo com padrões de ordem que são os do narrador. E, com isto, a impor-se a
compreensão que temos hoje do ordenamento jurídico àquela que foi a dos que o viveram. A
ousar redefinir, por sobre o ombro dos autores-fonte, aquilo que pode ser inter-relacionado
ou, pelo contrário, não tem sentido que o seja. Tive que enfrentar essa questão, logo desde o
início.
§ 29. A tentação era grande de organizar a exposição segunda aquela ordem que nos
é familiar, a da pandectística alemã (parte geral, obrigações, direito reais, família e
sucessões); outros já o fizeram20. Porém - mesmo descontando os problemas que iria ter ao
querer incluir na descrição os temas daquilo a que hoje chamamos direito público -, esta
sistematização não teria nada a ver com a organização das exposições gerais feitas na
época, que sugeriam lógicas de encadeamento muito diferentes, com as suas
consequências na proximidade ou distância entre figuras e institutos. Na verdade, também
os antigos juristas oscilaram bastante nos modos de organizar a descrição do direito21. Eles
próprios tinham encontrado nas suas fontes sugestões diversas. A ordem de organização
das Institutiones não era a mesma do Digesto e esta também não era a antiga ordem do
Edictum do pretor que terá organizado os comentários dos juristas clássicos22. As fontes de
direito canónico (nomeadamente as Decretais e o Sexto) sugeriram novos planos
expositivos, a que se somaram ainda o das Partidas e, entre nós, o das Ordenações.
Realmente, o sistema “tripartido” de Gaio-Justiniano (pessoas, coisas, ações) tinha as suas
inconsistências. Desde logo, não dividia o direito em três partes, mas em quatro (i. Justiça e

19 Alejandro Agüero, “El testimonio procesal y la administración de justicia penal en la periferia de

la Monarquía Católica, siglos XVII y XVIII”, cit..


20 Por exemplo, Helmut Coing, Europäisches Privatrecht, Vol. 1: Älteres Gemeines Recht (1500–

1800), cit.. Trad. castelhana de António Pérez Martin, Derecho privado europeu […], Madrid, Fundación
Cultural del Notariado, 1996.
21 Sobre a ordem expositiva na tradição jurídica europeia ocidental, v. Mario Losano, Sistema e

struttura nel diritto, I: Dalle origini alla Scuola Storica, Giappichelli, Torino 1968 (trad. port., Sistema e
estrutura no direito. I. Das origens à Escola Historica, S. Paulo, Martins Fontes, 2008), maxime, 9 ss..
22 Reconstituição do Edictum: Otto Lenel (1849-1935), Edictum Perpetuum, 1883.

13
Introdução.
direito. Pessoas. ii. Coisas; testamentos iii. Herança; obrigações ex contratu. iv. Obrigações
ex delicto; ações). Depois, a sua lógica não era clara para os juristas modernos, que tinham
dificuldades em explicar algumas das suas opções. Quando esta ordem expositiva começa a
parecer lógica, isso deve-se ao facto de que se pressupunha que distinguir pessoas, coisas e
ações (ou obrigações) correspondia a identificar os elementos estruturais da relação jurídica
(sujeitos, objetos, vínculo relacional). Porém, originariamente, parece que a sistematização
era meramente “temática” e não “estrutural”23. Não antecipava uma sistematização derivada
de uma análise estrutural do direito (sujeitos, objeto, relação jurídica). Era antes uma
organização por temas (como os índices temáticos, por oposição aos sistemáticos),
racionalmente inconsistente, mesmo com a tripartição anunciada. Isso não chocava os
juristas de então porque, apesar da lógica “sistemática” da literatura “elementar” ou
“institucional”, não se tinha em vista uma exposição demonstrativa, ordenada a definitione e
desenvolvida ex genere et diferentia. Assim, os juristas seiscentistas, como em geral não se
preocupavam com uma exposição sistemática das matérias, escapavam a esta indecisão, ou
seguindo a “ordem legal” (i.e., a dos livros e títulos da compilação de referência para eles) ou
desistindo de uma exposição sistemática e optando por descrições sob a forma de
dicionários. Sistemáticas são as exposições dos grandes teólogos juristas ibéricos do séc.
XVI. Mas elas mesmas não têm nem raízes nem ecos na literatura jurídica mais quotidiana e,
por isso, deviam parecer algo estranhas ou rebuscadas aos juristas comuns.
§ 30. Perante estas hesitações e dificuldades, acabei por optar por um plano
expositivo próximo do das Institutiones, por ter uma raiz forte nos textos, desde logo nos
comentários a esse livro do Corpus iuris civilis. E, depois, por ter sido o primeiro modelo a
ser usado pelos juristas da época moderna que tentaram descrições gerais do direito24. O
modelo das Institutiones não é, porém, muito consistente para nós – nem o foi para os
juristas que o usaram na época moderna -, sinal de que alberga lógicas expositivas do
passado que ainda faziam sentido para os juristas pós-clássicos ou bizantinos, mas que já
pareciam bizarras para os juristas setecentistas (como Arnold Vinnius, por exemplo, que
tenta, no entanto, justificar as incongruências). Para além disso, a ordem das instituições não
permitiria incluir as questões dogmáticas sobre fontes de direito (a não ser como uma
espécie de proémio ao livro I) ou as questões de direito penal, a menos que se inserissem na
sequência da secção dedicada às obrigações que nascem de delitos. Tivemos, portanto, que
improvisar um pouco, seguindo sempre a arrumação que nos parecia ser mais sugerida pela
literatura jurídica moderna. O que me agradou nesta arqueologia da ordem – a que, em todo
o caso, não prestei tanta atenção como o tema merece, porque isso desviaria a intenção
desta obra – foi chegar a resultados que, sendo consistentes com as fontes, quebrem as
evidências de hoje acerca de como falar do direito e como expor ordenadamente as suas
matérias. É justamente nesses momentos em que as fontes nos surpreendem e nos
propõem vizinhanças e relações temáticas insuspeitadas que nos damos conta do caráter
situado e arbitrários da nossa maneira de encadear as matérias jurídicas e, por detrás disso,
do nosso modelo implícito de ordem do direito. Pensei então nos juristas com deficiente
formação histórica e em como lhes fará bem pôr aqui à prova as suas construções e
categorias pretensamente perenes.
§ 31. No âmbito de cada instituto, é difícil escapar ao método geométrico, que começa

23 Ou seja, direito que tratava de pessoas, direito que tratava de pessoas, direito que tratava de

ações ou obrigações.
24 Sobre o modelo das Institutiones v. as obras citadas de Klaus Luig e J.-M. Scholz.

14
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
pela definição e pela regra, como proposições breves (“regula est, quae rem quae est
breviter enarrat”, D.,50,17,1), nas quais como que se contém já toda a natureza da coisa. Em
todo o caso, convém ter presente que este não era, para os juristas antigos, um método tão
evidente ou tão garantidamente eficaz como hoje nos parece. Um texto do Digesto alerta
para isso: “omnis definitio in iure civili periculosa est: parum est enim, ut non subverti possit”
[no direito da cidade, toda a definição é perigosa, pois é raro que não possa ser desmentida]
(D., 50.17.202). Mas, sobretudo, não era um modo geralmente usado de expor o regime de
um instituto jurídico. Se folhearmos, por exemplo, o Promptuarium iuridicum, de Bento
Pereira (1664)25 verificaremos que as entradas são concebidas como um repositório pouco
“ordenado” de curtos textos que tratam daquele tema, com uma sequência lógica ou
sistemática mínima dentro de cada entrada (por exemplo, quoad essentiam et qualitates,
quoad species, quoad valorem, quoad formam). Raramente o primeiro texto é uma definição
de que os seguintes sejam desenvolvimentos. Isto acontece mais frequentemente no Liber
utilissimus, de António Cardoso do Amaral (1610)26, em que a abertura da entrada é, quase
sempre, uma definição, seguindo-se uma divisão ex genere et differentia, com alguma
sequência “lógica”. Ou seja, o fio do raciocínio na exposição de uma matéria não era o
nosso. Mateus Gribaldo Mopha27 descreve-o da seguinte forma: 1) praemitto, 2) scindo, 3)
summo, 4) casumque figuro, 5) perlego, 6) do causas, 7) connoto, 8) et obiicio28. No início,
não estava uma definição, da qual se procedesse dedutivamente, mas um texto de
autoridade que havia que explicar, também (mas não apenas) com definições e deduções.
No fim, um espaço para discutir opiniões divergentes, deixando claro que a estrutura do
discurso apontava para um outro “regime de verdade”: problemático, não axiomático.
§ 32. Neste conflito de ordenações, o índice temático – que é uma espécie de
dicionário, ordenado arbitrariamente pela ordem alfabética – pode ser um recurso para
encontrar os temas, mas não é, seguramente, uma via para os compreender como membros
de um conjunto logicamente coerente.
1.1.9 Os vários níveis da “descrição”.
§ 33. Apresentei este livro, inicialmente, como uma descrição. E, antes do mais, foi
isso que tive em vista, porque creio que um livro destes – que ponha à disposição do leitor
uma descrição precisa e clara dos institutos jurídicos – é muito útil para os historiadores, hoje

25 Bento Pereira, S.J. 1606-1681, Promptuarium juridicum quod scilicet in promptu exhibebit rite
ac diligenter quaerentibus omnes resolutiones circa universum jus Pontificiu[m], Imperiale, ac Regium,
secundum quod in tribunalibus Lusitaniae causaer decidi solent […], cit..
26 António Cardoso do Amaral, 15??-16??, Liber utilissimus iudicibus et advocatis, cit..

27 De methodo ac ratione studendi libri tres, Lugduni, apud Antonium Vincentium, 1541.
28 Nela se contêm todas as operações anteriormente descritas: 1) introdução à análise do texto
considerado, primeira interpretação literal; 2) divisão do texto nas suas partes lógicas, com a definição
de cada uma das figuras aí referidas e sua concatenação lógica, através das noções dialéticas de
género, espécie, etc.; 3) com base nesta ordenação lógica, re-elaboração sistemática do texto; 4)
enunciação de casos paralelos, de exemplos, de precedentes judiciais; 5) leitura "completa" do texto,
i.e., leitura do texto à luz do contexto lógico e institucional construído nos estádios anteriores; 6)
indicação da natureza do instituto (causa material), das suas características distintivas (causa formal),
da sua razão de ser (causa eficiente) e das suas finalidades (causa final); 7) ulteriores observações,
indicação de regras gerais (brocarda) e de opiniões de juristas célebres (dicta); 8) objeções à
interpretação proposta, denotando o caráter dialético das opiniões sobre problemas jurídicos, e
réplicas, com larga utilização do instrumental da dialética aristotélico escolástica.

15
Introdução.
que a história do direito está cada vez presente nas suas narrativas. No entanto, tentei que
fosse uma descrição densa, tendo em conta os vários níveis de sentido, mesmo aqueles que
estão tão profundamente enraizados que são normalmente tidos como assentes e nem
sequer aparecem explicitamente.
§ 34. A busca destas “pré-compreensões” permite, desde logo, entender os institutos
jurídicos do passado naquilo em que o seu regime jurídico parece estranho do ponto de vista
do imaginário que hoje temos deles. Um exemplo é o do regime hostil e restritivo das
doações no direito moderno. Na verdade, a doação era implicitamente considerada como um
ato subversivo da ordem. Haveria uma ordem do mundo, em que as pessoas e as coisas
estavam ordenadas entre si. Essa ordem do mundo era estável e, até certo ponto,
indisponível. A sua alteração era excecional e, por vezes impossível. Cada um tinha as suas
coisas (ius suum) e o direito protegeria esse quinhão primordial (patrimonium). As alterações
da ordem patrimonial eram possíveis, mas excecionais e sempre carecendo de uma causa.
Daí que uma liberalidade fosse sempre subversiva da ordem estabelecida, suspeita de
invalidade e estivesse sujeita a um atento escrutínio pelo direito. Mesmo se, nesta época, as
causas para dar fossem muito mais alargadas do que hoje geralmente se entende serem.
Este modelo ontológico parece explicar os traços do regime jurídico da doação,
nomeadamente, o instituto da insinuação, as proibições de doar, a eficácia natural e civil das
doações remuneratórias, as quais, ou eram válidas mesmo no caso em que doações
puramente liberais não o seriam ou, mais radicalmente, eram consideradas como o
cumprimento (pagamento) de contratos não beneficiais.
§ 35. Este procura das lógicas submersas ou ocultas dos institutos jurídicos é também
muito interessante para quem tenha em vista revelar o modo como esses pressupostos hoje
escondidos ainda deformam a dogmática jurídica atual. O caso do discurso jurídico sobre as
mulheres é um bom exemplo de como a cultura jurídica de hoje (no direito letrado ou no
direito da vida quotidiana) ainda é marcada por uma argumentação baseada num
entendimento do feminino que hoje já não ousa exprimir-se, mas que aparece
completamente argumentado e institucionalizado nos juristas do direito comum.
§ 36. Finalmente, explicitar as “pré-compreensões” perdidas do saber jurídico do
passado alerta-nos para o facto de que também o nosso saber jurídico está assente em
lógicas que, num futuro mais ou menos próximo, se irão perder e deixar de valer como
fundamento das soluções. No passado antevemos, por isso, o futuro das nossas certezas.
§ 37. Comecei por tentar identificar esses níveis submergidos de sentido que dessem
uma significação global do instituto. Porém, tive sempre muito presente que estava a lidar
com uma tradição histórica, marcada por ruturas, descontinuidades e sobreposição de
matrizes culturais que inevitavelmente rompiam essa coerência da regulação de uma
situação da vida. Isto, hoje, é quase sempre notado e tido como um obstáculo importante a
uma construção harmónica dos institutos jurídicos. Porém, não perturbava muito os juristas
anteriores à pandectística, que tinham uma conceção tópica, e não sistemática, da sua arte e
que, por isso, lidavam bem com o coexistência de pontos de vista divergentes, limitando-se a
alinhá-los como opiniões diversas ou a encaixá-los tranquilamente uns nos outros como
regras e exceções (limita … amplia). Antes do séc. XVIII, raros são os autores que
contextualizam as opiniões divergentes com o acaso de contextos diversos da história do
direito. Mantive, na descrição, esta estrutura aberta da dogmática de cada instituto, embora
tenha procurado relacionar as divergências com filões doutrinais ou culturais diferentes que
afloram no arquivo textual dos juristas modernos (a tradição do direito romano clássico, o
filão justinianeu, o contributo da canonística, etc.). Este foi o maior desafio do meu trabalho e
a sua principal fonte de prazer. Entender as razões das fraturas na construção jurídica de
16
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
então. Mas o que consegui fazer, procurando não exagerar nesta tentativa de arqueologia do
sentido e manter-me no limite daquilo que a letra dos textos podia provar, ficou quase
sempre muito aquém daquilo que seria necessário para identificar as raízes das
“inconsistências” dogmáticas da doutrina jurídica moderna. Seja como for, a identificação de
alguns tópicos orientadores de cada instituto pode ser uma ferramenta útil para o historiador
que procure perceber a lógica (ou as lógicas) que estavam pro detrás da valorização e
regulação das situações jurídicas.
1.1.10 A “contextualização”.
§ 38. Muitos dirão que, lidando apenas com a literatura jurídica, vão fazer falta os
“contextos”.
§ 39. Desde logo, há necessidade de esclarecer de que contextos se está a falar.
Continuo muito convencido de que, tratando-se de contextualizar textos, os contextos mais
relevantes são … outros textos. Isto sobretudo porque os textos são elaborados a partir de
arquivos de elementos textuais: a língua, os argumentos, as estratégias de argumentação,
as conclusões já validadas antes, os conceitos. Estes são os materiais com que se constrói
um texto novo. E com os quais, portanto, as “ideias” e os “interesses” se têm que vestir para
que se possa falar deles no texto. Então, o primeiro contexto a ter em conta nos textos é o
seu contexto textual ou intertexto. Isto significa que partimos da ideia de que a fonte mais
imediata do sentido de um texto é a das representações a partir das quais se interiorizou o
“mundo exterior”29. A primeira manifestação deste contexto textual é a tradição literária em
que as narrativas analisadas se inserem, incorporando tanto os elementos de conteúdo
como os elementos relativos ao suporte (a chamada “bibliografia material”30).

29 Desenvolvi a ideia numa versão anterior de Cultura jurídica europeia (Florianópolis, 2006), cap.
3.2.4: “Insistimos, pelo contrário, em que as práticas de que a história se ocupa são práticas de
homens, de alguma forma decorrentes de atos de cognição, de afetividade, de avaliação e de volição.
Em qualquer destes níveis da atividade mental pressuposta pela ação se encontram momentos
irredutíveis de escolha, em que os agentes constroem versões do mundo exterior, as avaliam, optam
entre formas alternativas de reação, representam os resultados e antecipam as consequências futuras.
Todas estas operações pertencem à esfera do mundo interior. São operações irredutivelmente
intelectuais, baseadas em representações construídas pelo agente, eventualmente a partir de
estímulos (de muito variada natureza) recebidos do exterior. No entanto, estes são reprocessados por
mecanismos puramente intelectuais, constituídos por utensílios mentais como grelhas de apreensão e
de classificação, sistemas de valores, processos de inferência, baterias de exemplos, modelos típicos
de ação, etc. Enfim, tudo representações. Quando, por exemplo, Karl Polanyi insiste no carácter
"antropologicamente embebido" do mercado não está a salientar outra coisa senão que as "leis do
mercado" não constituem lógicas de comportamento forçoso, decorrentes ou de uma lógica das coisas
ou de uma razão económica, mas modelos de ação que se fundam sobre sistemas de crenças e de
valores situados numa cultura determinada (de uma época, de um grupo social) […]o mundo não pode
ser apreendido senão como um texto 29 e que, portanto, a relação entre "realidade" e representação
tem que ser necessariamente entendida como uma forma de comunicação intertextual, está apenas a
insistir nesta ideia de que todo o contexto da ação humana, ao qual esta ação necessariamente
responde, é algo que já passou por uma fase de atribuição de sentido 29. A realidade, ao ser
apreendida como contexto de ação humana, foi consumida pela representação.”. Remeti então para a
ideia de pan-textualidade (Cf. Peter Zyma, Textsoziologie. Eine kritische Einführung, Stuttgart, Metzler,
1980. (cap. "Gesellschaft als Text").
30 Cf. D. F. McKenzie, Bibliography and the Sociology of Texts: The Panizzi Lectures 1985,

London, The British Library, 1986

17
Introdução.
§ 40. Esta perspetiva do contexto, aqui valorizada, visa reagir contra várias formas de
mecanicismo objetivista que tendem a explicar a ação humana apenas ou
predominantemente a partir de um jogo de determinantes puramente externas, sejam elas a
necessidade fisiológica, as leis do mercado, os ritmos dos preços, as curvas de natalidade,
as estruturas de produção, os interesses, as tensões sociais. Na perspetiva que aqui
valorizo, tudo isto é relevante, certamente; mas tudo isto apenas chega ao texto através da
mediação discursiva e enquadrado pelos constrangimentos da comunicação textual.
§ 41. Isto parece-me ser assim em geral, Mas avulta ainda mais quando lidamos com
o saber dos juristas. Já antes nos referimos à confiança que os juristas têm no seu saber, ao
qual de bom grado sacrificam os saberes dos outros, mas mesmo noções de senso comum
acerca de como é o mundo. No seu discurso, encontramos, lado a lado, coisas empíricas e
objetos cuja realidade ocorre apenas no plano das ficções que o seu discurso permite –
pessoas “fabricadas” (personae fictae), coisas imateriais, direitos incomensuráveis (ab
ínferos ad coelum), pessoas que são coisas e coisas que podem ser pessoas. Têm conceitos
próprios e definitivos para as coisas mais incontroversas da vida quotidiana – nascimento,
morte, ausência, honra, valor, interesse e dano. Realmente, constroem um mundo à parte a
partir do qual validam o seu saber e justificam as suas opções. Este mundo tem que ter
alguma relação com o mundo da vida – já o dissemos -, porque o discurso dos juristas é
orientado para a ação. E o discurso do direito está equipado com não pouco canais através
dos quais este ambiente externo irrita e remodela a sua gramática. Porém, os argumentos do
interesse, da utilidade, da conveniência, nunca aparecem no discurso dos juristas sem uma
tradução “em termos de direito”. Em termos puros, como meras conveniências da vida, são
juridicamente irrelevantes. Por isso é que, num estudo como este, a nossa atenção tem que
estar desperta para causalidade interna aos textos, tanto como para os mecanismos que a
tornam sensível às mutações do ambiente não textual.
§ 42. Esta ideia que tenho da maneira mais adequada de contextualizar os discursos
explica a atenção que darei à identificação das fontes textuais e à história da tradição literária
de cada ponto, incluindo a história das palavras e dos conceitos jurídicos, mas também a dos
textos ou dos livros sobre o tema. Neste livro, esta preocupação com a contextualização
interna tem reflexos limitados, dado o caráter sinótico da descrição. Mas aponta-se uma linha
de orientação.
§ 43. Quanto à contextualização mais tradicional, referida à história dos contextos
sociais e políticos dos institutos jurídicos, ela não deixa de ser apontada, mas sempre
avaliando de que modo é que ela é recebida na tradução jurídica do mundo que estes
juristas construíam e com a qual trabalhavam.
1.1.11 O aparato crítico e os instrumentos de leitura.
§ 44. Pretendo que este livro seja útil. Por isso, abundo nas referências cruzadas,
tendo numerado os parágrafos para tornar essas referências mais exatas. Estruturei a
exposição miudamente, de modo a que o índice sistemático seja fino e permita encontrar
mesmo os detalhes. A busca por palavras, na edição eletrónica, ou o recurso ao índice
temático permite buscas ainda mais finas.
§ 45. No aparato crítico, procurei ser abundante na referências de fontes, mas não
tive uma preocupação tão sistemática de indicar bibliografia secundária sobre cada instituto.
Isso ampliaria muito as referências do texto, além de que, hoje em dia, essas referências
podem ser encontradas com muita facilidade usando a internet. Num caso ou noutro, de
acordo com sensibilidades de momento, cito alguma monografia. Quanto às fontes, procurei
ser preciso nas citações. Usei as edições que tive à mão e que me pareceram mais úteis.
18
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
Por isso, cito, não pelas páginas (isto ocorrerá eventualmente, mas apenas quando só há
uma edição), mas pela organização interna da obra (livro, capítulo, parágrafo, número, etc.).
Sempre que a obra esteja on-line (o que é cada vez mais frequente), indico o site.
§ 46. O mito da tradição, no que ele implica de redução da história a uma narrativa
linear e orientada para a justificação do presente, é um dos fatores mais importantes de
falsificação da história da cultura jurídica. Daí que muitas questões de teoria da história
jurídica tenham que ser explicitadas para que uma exposição do direito do passado não o
reduza a uma antecipação do direito de hoje. Mas não basta afixar isto num programa
teórico. É preciso que esta preocupação se traduza, depois, em cautelas metodológicas
concretas. Afastando evidências contemporâneas sobre o quadro das fontes de direito31,
temos que procurar eleger como campo de observação aqueles universos normativos sobre
que trabalhavam os juristas da época. Recusando a facilidade de contar a história de acordo
com os nossos enredos, temos que buscar o fio de discurso que encontramos subjacente à
literatura de então. Evitando uma leitura atualizadora dos textos, temos que respeitar os seus
sentidos embebidos, mesmo os mais profundos, por muito estranhos que sejam ao que hoje
consideramos sensato na maneira de pensar o direito. Arriscando o desconforto de
desvalorizar a nossa “razão jurídica”, temos que reconhecer que o discurso mais antigo
sobre o direito era sustentado por um regime de verdade mais flexível, que se contentava
com a verosimilhança ou com a probabilidade. Com isto, não estaremos apenas a fazer
melhor história do direito. Mas ainda a contribuir para uma reflexão dos juristas sobre os
limites do seu saber.
1.1.12 O modelo corporativo do direito e do poder.
§ 47. Os fundamentos interpretativos deste livro continuam a ser, no essencial,
baseados no “modelo corporativo”, que descrevi no meu livro (e tese de doutoramento) As
vésperas do Leviathan [...], cit., de 1976. O livro foi objeto de recensões 32 e foi tido em conta
e analisado em textos de âmbito mais vasto 33. Paolo Grossi publicou, entretanto, o seu livro
de descrição global da ordem jurídica medieval, que esclareceu a arquitetura geral desse
sistema de poder34. Entretanto, uma análise político-jurídica centrada na dispersão do poder
foi ganhando espaços, culminando por ser aplicada … mesmo à França 35.

31 Para uma crítica do elenco estabelecido de fontes de direito, v. o meu livro Pluralismo e direito

democrático, São Paulo, Annablume, 2013.


32 Ius commune, 1990, 433-435 (R. Rowland); The Journal of Modern History, 63.4(1991) 801-802

(B. Clavero); The American Historical Review, 97.1(1992) 221-222 (C. A. Hanson); The journal of
modern history, 67.(1995) 758-759 (Julius Kirchner); Latin American Review, 31.1(1996) 113-134; Ann.
Econ. Soc. Civ., 46.2(1991) N° 2 (mars-avril) 1991, 502-505 (J. F. Schaub).
33 Jean-Frédéric Schaub, “La penisola iberica nei secoli XVI e XVII: la questione dello Stato”, Studi

Storici, anno 36(1995, gennaio-marzo); Id., ”L’histoire politique sans I’État: mutations et reformulations”,
Historia a debate, 3(1993), 217-235; Id., "Le temps et l'État: vers un nouveau régime historiographique
de l'ancien régime français", Quad. fior. st. pens. giur. mod., 25(1996) 127-182; Angelo Torre, “Percorsi
della pratica. 19661995”, Studi storici, 1995, 799-829 (mais crítico); Roberto Bizzochi, “Storia debile,
storia forte”, Storia, 1996, 93114
34 Paolo Grossi, L’ordine giuridico mediovale, Bari, Laterza, 1995.

35 Jean-Frédéric Schaub, La France espagnole: Les racines hispaniques de l'absolutisme français,

Paris, Seuil, 2003. Nota-se, sobretudo nos historiadores mais atentos ao legado das ideias políticas
renascentistas – nomeadamente, à tradição dos “políticos”, oriunda de Maquiavel, uma tendência para

19
Introdução.
§ 48. Os espaços ultramarinos, sem distinções de maior, ainda se abriam mais a esta
dispersão de jurisdições. Por um lado, a distância, o isolamento e as solidariedades que
estes geram, faziam nascer aí corpos suplementares – municípios, ayuntamientos com os
seus cabildos, comunidades nativas autónomas, senzalas de povos deslocados, novas
guildas profissionais ou novas corporações territoriais. A própria Igreja não escapava a este
movimento de cissiparidade, que autonomizava congregações, que desenhava comunidades
de fiéis, que florescia em irmandades. Ao passo que o mundo doméstico se reforçava em
fazendas, engenhos, encomiendas, mesclando os núcleos familiares de sangue com
parentescos políticos (peões, gaúchos, escravos, libertos, criaturas, apaniguados, jagunços).
Também este mundo gozava de liberdades corporativas, que, a seu tempo, se haviam de
fazer ouvir (tal como na metrópole) contra as intromissões do centro (como acontece nas
colónias americanas da Inglaterra), ou que hão-de procurar encontrar o seu lugar nas
primeiras ordens constitucionais, aparentemente liberais, mas também profundamente
permeáveis à re-institucionalização das realidade corporativas coloniais. Assim, a imagem de
centralização ainda é mais desajustada quando aplicada ao império ultramarino. No caso
português, alguns módulos (Timor, Macau, costa oriental da África) viveram em estado de
quase total autonomia até ao séc. XIX. Mas mesmo a Índia, que era objeto de um controlo
tornado muito remoto pelos nove meses que demorava a comunicação com a metrópole.
Apesar de, como já se sugeriu, a teoria da ação política relativa ao ultramar fosse algo mais
permissiva. Por um lado, tendeu-se, por vezes, a ver nas “conquistas” algo semelhante a um
património do rei, que ele administraria como coisa sua – administratio domestica, segundo
as flexíveis normas da oeconomia). Por outro lado, nestes territórios de fronteira e de guerra
viva, tendiam a predominar os padrões de uma administração militar, baseada na
extraordinaria potestas. Nada porém que, segundo cremos, possa justificar a subversão dos
modelos corporativos do governo, caracterizados pela periferização do poder e pela
ausência de um poder central assimilável ao Estado que virá depois.
§ 49. A historiografia anglo-saxónica – que tem sido, em geral, pouco sensível aos
desenvolvimentos da historiografia ibérica e italiana sobre as instituições políticas e jurídicas
da época moderna – desperta finalmente para a centralidade do “modelo corporativo” na
interpretação da história do mundo colonial. Um livro recente de Lauren Benton e Richard
Ross explora as diversas dimensões do direito e do poder nos espaços coloniais,
destacando a centralidade do conceito de iurisdictio na compreensão do modelo político
moderno, tal como se vinha assumindo na Europa, desde os finais dos anos setenta. Por sua
vez, um vigoroso artigo de Alejandro Cañeque explica os atrasos e perplexidades da história
política colonial pela insuficiente atenção que é dada, nos estudos de história colonial, a uma
história institucional liberta do paradigma estadualista36. Todavia, esta rutura coperniciana da

revalorizar o papel dos príncipes e das coroas. Para além de constituir o natural ricochete da insistência
na importância dos poderes periféricos, esta tendência explica-se por uma especial valorização da
política quinhentista italiana e de alguns “ republicanos ” do resto do continente (França. Inglaterra). No
plano prático-institucional, esta tentativa de trazer de novo o Estado para o primeiro plano (bringing the
State back in) defronta-se com dificuldades de prova.
36 Lauren Bentos & Richard J. Ross (eds.), Legal Pluralism and Empires, 1500–1850, New York,

NYU Press, 2013 (comentário: Antonio Manuel Hespanha, “The Legal Patchwork of Empires”, Rechts
Geschichte. Zeitschrift des Max-Planck-Instituts für europäische Rechtsgeschichte, 22(2014), 303-314;
Alejandro Cañeque, “The Political and Institutional History of Colonial Spanish America”, History
Compass, 11/4 (2013), 280–291
(https://www.academia.edu/5670467/The_Political_and_Institutional_History_of_Colonial_Spanish_Ame

20
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
história colonial já estava muito clara na obra de alguns historiadores norte-americanas, com
destaque para Tamar Herzog37.
§ 50. O mais interessante, nesta avaliação contraditória, é que – tal como acontece na
América Latina ou mesmo na América do Norte – é depois das ruturas revolucionárias que
se vê ainda mais claramente a vitalidade destes poderes, agora em luta contra a afirmação
dos novos Estados pós-coloniais. Em muitos casos, isto conduz a uma pulverização das
unidades políticas coloniais (e não por causa da força centrípeta das comunidades nativas,
mas pela força desagregadora dos cabildos municipais dominados pelas elites coloniais). A
ponto de se falar, no processo de constituição das identidades nacionais latino-americanas,
de uma transição da vecindad para a ciudadanía38. Mas não é menos significativa – como
vem notando a melhor historiografia constitucional latino-americana (Bartolomé Clavero,
Marta Lorente, Carlos Garriga, António Aninno, François-Xavier Guerra, Annick Lampière) –
a extraordinário supervivência da Constituição de Cádis na América Latina, a mesma que
não resistiu mais de três anos na metrópole. Isto não pode ser separado (como tem sido
notado) da sua permeabilidade à estrutura corporativa, ainda mais arcaica, das sociedades
latino-americanas. Porém, mesmo o pensamento político das primeiras décadas da
Revolução norte-americana está tingido deste corporativismo. Também aí, o que dispara a
revolta é a ofensa pelo Coroa de direitos particulares, de indivíduos e de corpos. Isto traduz-
se no próprio texto de algumas das primeiras constituições (como a da Virgínia), em que a
influência de William Blackstone, ele mesmo um jurista inglês tradicionalista, transparece
com alguma frequência. A família segue sendo um corpo político (que integra filhos, criados
e escravos) e são-no também as nações índias. E, na verdade, a revolta com que a Coroa se
confronta é uma revolta de corpos (as colónias, com as suas assembleias) e pouco de
indivíduos. O debate que se seguirá entre federalistas e republicanos continua a traduzir a
mesma preocupação com a distribuição de poder. Bartolomé Clavero, nomeadamente, fez a
demonstração deste aspeto ao estudar a secção I da Constituição da Virgínia (de
29.08.1776) (“ That all men are by nature equally free and independent and have certain
inherent rights, of which, when they enter into a state of society, they cannot, by any compact,
deprive or divest their posterity; namely, the enjoyment of life and liberty, with the means of
acquiring and possessing property, and pursuing and obtaining happiness and safety”).
Segundo ele, apesar da aparente clareza das palavras utilizadas - dir-se-ia, da familiaridade
e banalidade de expressões como “all men” - seria necessário mergulhar nas fontes textuais,
nomeadamente nos Commentaries on the laws of England, de William Blackstone (Oxford,
1765), ou no Le droit des gens ou principes de la loi naturelle, de E. de Vattel (Londres,
1758). Isso cortaria de forma absoluta a continuidade entre o sentido originário do texto e
toda a tradição que, ulteriormente, o virá a reivindicar. Pois, inserida na economia da obra de
W. Blackstone, a referência a “all men” relacionar-se-ia, não com as liberdades individuais,
mas com as liberdades corporativas da commom law de então, o qual excluía, desde logo, a
liberdade dos criados (submetidos ao patrão; cf. Blackstone,1 cap. 14), a liberdade das

rica).
37 Tamar Herzog já incorporava as mais recentes novidades da historiografia jurídica e

institucional europeia, desde o seu livro sobre a audiência de Quito (Upholding justice. Society, State,
and the Penal System in Quito (1650-1750), cit.).
38 Principalmente, em Tamar Herzog, Defining nations. Immigrants and citizens in early modern

Spain and Spanish America […], cit.; agora, convergente, Tamar Herzog, Frontiers of Possession.
Spain and Portugal in Europe and the Americas, cit..

21
Introdução.
esposas (submetidas aos maridos, cf. Blackstone,1 cap. 15): a liberdade dos filhos
(submetidos aos pais, cf. Blackstone,1 cap. 16), a liberdade dos órfãos ou do os a
“incapazes” (submetidos aos tutores, cf. Blackstone,1 cap. 17); apenas se retinha da ideia da
liberdade dos sujeitos aquilo que era funcional em relação às reivindicações das
comunidades coloniais - elas mesmas corporativamente imaginadas como “pessoas”
[persons, corporations] - em relação à Coroa britânica.
§ 51. Esse é o sentido mais forte do texto que publiquei no livro dirigido por João
Fragoso, Maria Fernanda Bicalho e Maria de Fátima Gouvêa, O Antigo Regime nos Trópicos.
A dinâmica imperial portuguesa (sécs. XVI-XVIII), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
200139. A própria produção teórica brasileira já abordara o tema, nomeadamente nos livros
de António Carlos Volkmer 40. Mas, naturalmente, que há prestigiados autores,
nomeadamente no Brasil, que não partilharam este ponto de vista e que o expressaram de
forma enfática41.
§ 52. Apesar desta longa continuidade de vitalidade corporativa no ultramar –
nomeadamente no ultramar americano (e, até, norte-americano; embora, aí, as próprias
matrizes europeias já levassem consigo fortes elementos desagregadores do corporativismo
– individualismo, republicanismo moderno, contratualismo) – é claro que se notou no
ultramar, desde Macau ao Brasil, o impacto da política da disciplina. Mas, antes dos meados
do séc. XVIII42, o modelo corporativo não é superado, nem como projeto, nem como prática.

39 Cf. A. M. Hespanha, “A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos


correntes”, António Manuel Hespanha, “A Constituição do Império português. Revisão de alguns
enviesamentos”, cit., 163-187; nesse volume, ainda, interessantes contribuições para uma nova história
da administração colonial brasileira: Maria Hebe Mattos, “A escravidão moderna nos quadros do
império português: o Antigo Regime em perspetival Atlântica”, 141-161; Maria Fernanda Bicalho, “As
câmaras e o governo do Imperio”, 189-221; Maria de Fátima Gouvêa, “Poder político e administração
na afirmação do complexo atlântico português (1645-1809)”, 285-316. Cf. também, sobre o tema, Pedro
Cardim, “O governo e a administração do Brasil sob os Habsburgo e os primeiros Bragança”, Hispania.
Revista del Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, Madrid, vol. 64/1, no 216 (Enero-Abril
2004) pp. 117-156; Alexandre Martins Viana, Antigo Regime no Brasil. Soberania, justiça, graça e fisco
(1643-1713), Editora Prisma, 2014.
40 Antonio Carlos Wolkmer, A. C. Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma Nova Cultura do

Direito, São Paulo, Alfa-Ômega, 1994; Idem, “Pluralidade Jurídica na América Luso-Hispânica”, em
Antonio Carlos Wolkmer (org.) Direito e Justiça na América Indígena: Da Conquista à Colonização,
Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1998. ps. 75/93. A que eu juntaria, pelo parentesco entre direito
periférico e direito informal, o estimulante estudo de Keith S. Rosen, “The Jeito: Brazil's Institutional Bypass
of the Formal Legal System and Its Developmental Implications”, cit..
41 V. Laura de Melo e Souza, O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa

do século XVIII, 2006. Em jeito de resposta, António Manuel Hespanha, “Depois do Leviathan”, em
Almanack Braziliense, nº 5 (2007) – revista eletrónica
(http://www.almanack.usp.br/neste_numero/index.asp?numero=5); mais recentemente, avaliando a
questão, Francisco Carlos Cosentino, "Uma leitura de António Manuel Hespanha", em Cultura histórica
& património, 2.1(2013), 72-88; e, de um ponto de vista também divergente do que aqui expresso, José
Jobson de Andrade Arruda, “Modalidades imperiais e capitalismo comercial: um confronto histórico-
conceitual”, comunicação apresentada ao Segundo Congresso Latino Americano de História
Econômica (Fevereiro 2010). Para seguir a discussão, v. dossier de textos em http://ua-hi-
2013.blogspot.pt/2013/10/guiao-do-lab-1-o-antigo-regime-nos.html.
42 Sobre esta rutura - já destacada em Ângela Barreto Xavier e António Manuel Hespanha, “A

Representação da Sociedade e do Poder” - cit., v. Alexandre Martins Viana, “Algumas implicações de

22
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
A questão mantem-se em aberto; sendo certo que tem implicações profundas para a história
colonial. Neste plano, creio que os pontos de vista defendidos neste livro fazem mais justiça
à capacidade de ação política dos grupos coloniais, abundantemente documentada na
documentação.

1.1.13 Conclusão.
§ 53. Um livro destes faz-se mais facilmente depois de um largo percurso pela
história do direito, da sociedade e da cultura da época moderna. Escrevendo para diversos
públicos de historiadores fiz quatro décadas de peregrinações que me levaram a estudar
muitos aspetos das sociedades modernas, com especial destaque para a portuguesa e para
algumas das que habitavam o chamado império português. Ao escrever este livro, dei-me
conta de como ainda havia muitos espaços temáticos não trilhados. Apesar disso, tecer
conjuntamente o que sabia facilitou-me a tarefa de explorar o que faltava saber. Parece-me
que o quadro geral – que procurei não sobrecarregar de referências que não adiantassem
muito à compreensão global ou que abrissem para relacionamentos ainda pouco
sedimentados – enriquece a compreensão da sociedade portuguesa e das sua projeções no
além-mar. O próprio quadro das sociedades meridionais da Europa Ocidental parece-me que
pode ganhar mais nitidez, pois o direito constitui um dos cimentos que, justamente nestes
séculos, lhe dá uma certa unidade, por cima dos despiques entre as grandes monarquias.
Por outro lado, o direito é seguramente um dos fatores de uma diferenciação com a outra
Europa- a do centro e do norte - que também se torna mais nítida e mais ampla por esta
altura e que, segundo creio, está na origem das incompreensões mútuas dos nossos dias.
Admito que obras como esta contribuam para uma revalorização historiográfica das culturas
da Europa do Sul, hoje a caminho de se tornarem em cultura subalternas e exóticas, com o
seu quê de subversivo em relação às alegadas racionalidade, funcionalismo, sensatez e
universalidade das “culturas do norte”. Neste sentido, este livro estaria a contribuir para uma
reabilitação de modelos de conhecer, de valorizar e de ordenar, diferentes dos que
aparentemente (de facto, só aparentemente …) se vão estabelecendo globalmente.
Justamente por descrever uma espécie de paleo-epistemologia do Sul, numa altura em que
ela se consolidava numa literatura erudita poderosa e se expandia para fora da Europa. Esse
esplendor será breve, uma espécie de fogacho de história. Mas, combinado com outras
epistemologias ainda mais “a Sul”43, terá contribuída para estas alternativas culturais que
tanto irritam os que aspiram a um mundo padronizado. Não entendo este meu trabalho como
uma empresa de militância cívica ou cultural; no entanto, não me contraria nada se ele puder
ter algum préstimo desmistificador nas lutas civilizacionais dos nossos dias.
§ 54. Agradeço, por fim, aos que, na fase final de escrita, me ajudaram a esclarecer
dúvidas, me deram informações bibliográficas ou me fizeram leituras críticas de partes do
livro. Envolvo-os a todos num abraço fraterno.

‘Moderno’ em ‘Estado Moderno’”, cit., Id., “‘Absolutismo’: Os limites de uso de um conceito liberal”, cit.,
e Andréa Slemian, “A primeira das virtudes: justiça e reformismo ilustrado na América portuguesa face à
espanhola”, cit..
43 Cf. Boaventura de Sousa Santos, Maria Paula Meneses (orgs.), Epistemologias do Sul, cit..

23
Introdução.
1.2 Abreviaturas.
alv. Alvará
António Delgado da Silva, Collecção da Legislação
Portugueza desde a última Compilação das Ordenações,
A.D.S. Lisboa, Typografia Maigrense, 1829, em
http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verobra.php?id_obra=7
3
adn. Adnotatio
ar. Aresto
ass. Assento
av. Aviso
C. Código de Justiniano
c. cânone, causa
C.J.Can. Corpus iuris canonici
C.J.Civ. Corpus iuris civilis
C.L. Carta de lei
C.R. Carta régia
cf. Confira
Clem. Clementinas
col. coluna
cons. Consultatio
D. Digesto
dec. Decisio
decr. Decreto
Decretales Deccretais de Gregório IX
Decretum Decreto de Graciano
disp. Disputatio
dist. Distinctio
Extr. Comm. Extravagantes comuns
Extr. Joh. Extravagantes de João XXI
Fin. final
gl. glosa
I. Instituições de Justiniano
Ibid. Ibidem
Id. Idem
i.e. Id est, isto é
José Justino de Andrade e Silva, Collecção chronológica
de legislação de legislação portugueza (1603-1711),
J.J.A.S. Lisboa, 1854-1859
(http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verobra.php?id_obra=
63).

24
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
L. Lei
liv. Livro
N. Novelas
n. número
obs. Observatio
Ord. fil. Ordenações filipinas
pg. página
pt. parte
Per totu(a)m no todo
punct. punctum
pr. Principium ou proemium
qu. Quaestio
Reg. Regimento
rubr. Rubrica
scl. Scilicet, isto é
Sex. Sextum (Liber)
t. Tomo
tract. Tractatus
v. Vide, ver (veja)
v.g. Verbi gratia, por exemplo
vol. Volume
in cap. In caput, no início.

25
Introdução.
1.3 Indicações sobre fontes.
1.3.1 Sistematização e forma de citação do Corpus Iuris Civilis.
Instituições (533 d.C.) - 4 livros (personae, Código (534 d. C.) - 12 livros 46:
res, obligationes, actiones):
divididos títulos, estes em constituições ou
divididos em títulos e estes, por vezes, em leis e estas, por vezes, em parágrafos;
parágrafos;
citação: C[odex Iustinianit.], [liv.] 9, [tit.] 7,
citação: I[nst.], [liv.] 1, [tit.] 10, [parag.]
[constituição] 5, [parag.] 1 47;
pr[oemium] 44;
cit. antiga: (Cod. Iust.), l[ex]. 1, Si quis
cit. antiga: (Inst.), l[ex]. pr., De nuptiis 45. imperatori maledixerit.
Digesto (ou Pandectas) (533 d.C.) - 50 Novelas (534-565 d.C.):
livros 48: divididas em constituições ou leis;
divididos em títulos (salvo os livros 30 a 32, a mais importante das colecções medievais
De legatis et fideicommissis), estes em de novelas é o Liber Authenticum, composto
fragmentos (ou “leis”) e estes, por vezes, em por 134 novelas latinas.
parágrafos;
citação: D., 2,1,3: D[ig.], [liv.] 2, [tit.] 1, [frag.]
3, [parag.] - (frag. não dividido em parágr.);
citação antiga: l. Imperium 49, ff 50 De
iurisdictione 51; D., 1,1,10,1: D[ig.], [liv.] 1,
[tit.] 1, [frag.] 10, [parag.] 1 (frag. dividido em
parágr.);
citação antiga: l. Iustitia, ff De iustitia et de
iure; D., 31,6: D[ig.], [liv.] 31, [frag.] 6,
[parag.] - (livro não dividido em títulos 52);
citação antiga: l. grege, ff De legatis et
fideicommissis.

1.3.2 Sistematização e sistemas de citação do Corpus Iuris Canonicis.


Decretum (c. 1140). Decretais (1234) - 5 livros.
divisão: divididas em títulos e capítulos.
1ª parte - 101 distinctiones; citação: c. [nº do capítulo], X (ou in X), nº do

44 O proemium ou principium é, de facto o primeiro parágrafo. O parágrafo 1 é, portanto, o

segundo na ordem do texto.


45 De nuptiis é a epígrafe do tít. 10 do livro 1 das Institutiones.

46 Na Idade Média, os três últimos livros do Código eram frequentemente agrupados nos

chamados tres libri, formando, juntamente com outras fontes menores (Institutiones, Authenticum e
Libri feudorum) o Volumen parvum (livrinho).
47 Como antes se disse, o parágrafo 1 é, de facto, o segundo na ordem do texto.

48 Na Idade Média, o Digesto aparecia dividido em Digestum Vetum (livs. 1-24,3,2); Digestum

novum (livs. 39-50) e Digestum Infortiatum (livs. 24,3,3-38).


49 Primeira palavra da “lei”.

50 O nome grego do Digesto começava pela letra Π (pi) que, manuscrita se assemelhava a dois f.

E foi assim que os copistas medievais a copiaram.


51 Epígrafe do título.

52 E fragmento não dividido em parágrafos.

26
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2ª parte - 36 causae, divididas em tit. ou suas primeiras palavras.
quaestiones; ex.: c. 1, X, V, 7 (= c. 1, in X, De haereticis)
3ª parte (De consecratione) - 5 distinctiones.
citação: Sextum (= Liber sextum Decretalium) (1298)
1ª parte - c. [nº do cânone], d. [nº da dist.] - 5 livros.
ex.: c. 13, d. XXXVIII dividido em títulos e capítulos.
2ª parte - c. [nº do cânone], C. [nº da causa], citação: igual ao anterior, sendo a sigla VI ou
q. [nº da quaestio] in VI
ex.: c. 8, C. XII, q. 2
3ª parte (De consecratione) e 2ª parte, Clementinas (Clementis V constitutiones)
Tractatus De poenitentia. - c. [nº do cânone], (1314) - 5 livros.
d. [nº da dist.], De cons. (ou De poen.). divididas em títulos e capítulos.
ex.: c. 46, d. 1, De poen. citação: igual ao anterior, sendo a sigla
citação antiga: a indicação dos números dos Clem. ou in Clem.
cânones, distinctiones ou quaestiones é
substituída pela das suas primeiras Extravagantes de João XXII (1234).
palavras, o que obriga a recorrer a índices divididas em títulos; sigla - Extrav. Iohann.
que acompanham as edições. XXII

Extravagantes comuns (séc. XV).


divididas em títulos; sigla - Extrav. Comm.

1.3.3 Fontes de história jurídica on-line.


Direito romano Corpus iuris civilis Corpus iuris civilis - http://droitromain.upmf-
grenoble.fr/ (muito prático, contendo muitas
outras importantes fontes de direito romano);
(ed. Krueger et al); http://www.hs-
augsburg.de/~harsch/Chronologia/Lspost06/Ius
tinianus/ius_intr.html (Bibliotheca Augustana,
Augsburg);
http://www.archive.org/details/corpusiuriscivil03
krueuoft; http://www.digital-
collections.de/index.html?c=autoren_index&l=e
n&ab=Iustinianus+%26lt%3BImperium+Byzanti
num%2C+Imperator%2C+I.%26gt%3B
(Bayerische Staatsbibliothek);
Trad. francesa: (Portail Numérique d'Histoire du
Droit) -
http://www.histoiredudroit.fr/corpus_iuris_civilis.
html
Trad. ingl.:
http://www.iuscivile.com/materials/digest/receiv
ed.shtml (correcções).
Guia de traduções de fonts jurídicas romanas:
http://libguides.bodleian.ox.ac.uk/content.php?p
id=286813&sid=2366763
(Índice e Esteban Daoiz, Iuris ciuilis septimus tomus
reportório) continens absolutissimum indicem et summam
[do Corpus Iuris Civilis e da Glosa Ordinária],
Venetiis, 1610 (PDF) -
http://books.google.com.br/books?id=ddCwTCJ
2ZLwC&printsec=frontcover&hl=pt-
PT#v=onepage&q&f=false
Institutiones Gaii https://archive.org/stream/gaiinstitutiones00gaiu
uoft#page/n5/mode/2up
Codex Codex Theodosianus - http://webu2.upmf-
theodosianus grenoble.fr/Haiti/Cours/Ak/Codex_Theod.htm

27
Introdução.
Direito canónico Corpus iuris C.J.Can. (pesquisável por palavra) -
canonici http://digital.library.ucla.edu/canonlaw/ ou
http://digital.library.ucla.edu/canonlaw/toc.html;
http://web.colby.edu/canonlaw/tag/gregory-ix/;
https://archive.org/details/corpusjuriscanon00ca
th;
Decreto de Graciano: http://geschichte.digitale-
sammlungen.de/decretum-
gratiani/online/angebot
Decretais de Gregório IX:
http://books.google.pt/books?id=YXE8AAAAcA
AJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=one
page&q&f=false;
http://www.lex.unict.it/liber/accedi.asp;
http://books.google.pt/books?id=ktk9AAAAcAA
J&hl=pt-PT&source=gbs_book_other_versions;
http://purl.pt/24947/3/#/18;
Extravagantes de João XXIII::
http://biblelight.net/Extravagantes.htm
Biblia cum Glossa http://lollardsociety.org/?page_id=409
ordinaria http://www.arsedendi.org/?page_id=26
Direito comum Glosadores e Glossa ordinaria: http://www.jura.uni-
comentadores muenchen.de/fakultaet/lehrstuehle/lepsius/linkli
ste/linkliste_1.html;
Bártolo: várias obras disponíveis em
http://books.google.pt/books
Baldo: várias obras disponíveis em
http://books.google.pt/books
Direito ibérico Forum judicum (= Cod. Recesvindianus (Liber iudicum):
medieval Codex http://libro.uca.edu/vcode/visigoths.htm (trad.
reicesvindianus) inglesa);
http://www.documentacatholicaomnia.eu/03d/0
506-
0506,_AA_VV,_Leges_Romanae_Visigotorum_
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http://pt.scribd.com/doc/25252840/Fuero-
Juzgo-Parte-3-Forum-Judicum-Latin;
http://www.brepols.net/publishers/pdf/Brepolis_
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Historica); http://www.mgh.de/dmgh/ (idem).
Las Siete Las Siete Partidas del Rey Don Alfonso El
Partidas Sabio [...],Partida Primera, Madrid, Imprenta
Real, 1807
(http://books.google.pt/books?id=xKoKAAAAQ
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PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=one
page&q&f=false); II (Partidas segunda e
terceira)
(http://books.google.pt/books?id=8F9HAAAAYA
AJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=one
page&q&f=false);
http://books.google.pt/books?id=WhNaAAAAcA
AJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=one
page&q&f=false); III (Partidas quarta, quinta,
28
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
sexta e sétima)
(http://books.google.pt/books?id=p7aI__5n9cY
C&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=one
page&q&f=false)
El fuero Real I, Madrid, Pantaleon Aznar, 1781, I
(https://books.google.pt/books?id=fz0_AAAAcA
AJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=one
page&q&f=false); II
(https://books.google.pt/books?id=bd9GFv6DC
AkC&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=one
page&q&f=false); III (Partidas 4 a 7)
Direito português Portugalliae http://pt.scribd.com/doc/25252840/Fuero-
monumenta Juzgo-Parte-3-Forum-Judicum-Latin ;
historica http://purl.pt/12270
Colleccão de http://purl.pt/307.
livros ineditos da
historia
portugueza dos
reinados de D.
Dinis. D. Afonso
IV, D. Pedro I e
D. Fernando,
vols. V/VI
Legislação Ordenações [Ed. S. Vicente de Fora (maior)]:
portuguesa de filipinas 1:
Antigo Regime https://books.google.pt/books?id=13pFAAAAcA
AJ&pg=PA351&lpg=PA351&dq=regimento+do+
Desembargo+do+Pa%C3%A7o&source=bl&ots
=ZmGKHo-
47Z&sig=_YjEfCnqsEHD_J9Oo4DenkacZ9k&hl
=pt-
PT&sa=X&ei=M7GvVJqHGMesU7LOgagF&red
ir_esc=y#v=onepage&q=regimento%20do%20
Desembargo%20do%20Pa%C3%A7o&f=false;
2:
https://books.google.pt/books?id=xHdFAAAAcA
AJ&dq=regimento%20do%20Desembargo%20
do%20Pa%C3%A7o&hl=pt-
PT&source=gbs_similarbooks;
3:
https://books.google.pt/books?id=yHdFAAAAcA
AJ&dq=regimento%20do%20Desembargo%20
do%20Pa%C3%A7o&hl=pt-
PT&source=gbs_similarbooks;
4:
https://books.google.pt/books?id=NnpFAAAAcA
AJ&dq=regimento%20do%20Desembargo%20
do%20Pa%C3%A7o&hl=pt-
PT&source=gbs_similarbooks;
5:
https://books.google.pt/books?id=N3pFAAAAcA
AJ&dq=regimento%20do%20Desembargo%20
do%20Pa%C3%A7o&hl=pt-
PT&source=gbs_similarbooks

29
Introdução.
[Cândido Mendes de Almeida]:
1 a 5:
http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/24273
3;
[Colecção de legislação antiga e moderna.
Ordenações filipinas]:
1:
https://books.google.pt/books?id=4aRFAAAAcA
AJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=one
page&q&f=false;
2:
https://books.google.pt/books?id=gq9RAAAAcA
AJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=one
page&q&f=false;
3-4:
https://books.google.pt/books?id=WV5OAAAAY
AAJ&dq=regimento%20do%20Desembargo%2
0do%20Pa%C3%A7o&hl=pt-
PT&source=gbs_similarbooks
[Colecção de legislação antiga e moderna. Leis
extravagantes]:
1 (LL.AA., 1603-1656):
https://books.google.pt/books?id=MK9RAAAAc
AAJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=one
page&q&f=false;
2 (LL.AA., 1657-1750):
https://books.google.pt/books?id=SK9RAAAAc
AAJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=one
page&q&f=false;
3 (LL.AA., 1750-1756):
https://books.google.pt/books?id=gq9RAAAAcA
AJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=one
page&q&f=false;
4 (LL.AA., 1757-1761):
https://books.google.pt/books?id=ea9RAAAAcA
AJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=one
page&q&f=false;
5 (DD. 1603-1750):
https://books.google.pt/books?id=gq9RAAAAcA
AJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=one
page&q&f=false;
Legislação http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/;
portuguesa de http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php
Antigo Regime ?id_parte=84&id_obra=65;
http://legislacaoregia.parlamento.pt/Pesquisa/?
q=juristas&f=geral&ts=1
Regimento do Desembargo do Paço, de
17.5.1591, anexo a Ordenações filipinas, Livro I
30
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
(existem outros Regimentos, de 27.6.1582 e
30.10.1641, comentado por Manuel Álvares
Pegas, Commentaria […], cit. tom. 7, ps. 553 e
ss.).
Legislação (em http://net.fd.ul.pt/legis/
PDF) de 1820 a
1910.
Legislação régia José Justino de Andrade e Silva Collecção
(1603-1711) Chronologica da Legislação Portugueza (1603-
1711) (em http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/)
Legislação régia Joaquim Inácio de Freitas, Collecção
Chronologica de Leis Extravagantes,
Posteriores à Nova Compilação das
Ordenações do Reino, Publicadas em 1603,
1819 (1603-1761), “Collecção de legislação
Antiga e Moderna” -
http://iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/apresentacao.php
Legislação (1750- António Delgado da Silva, Collecção da
1820) Legislação Portugueza, 1828 (em
http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/
Legislação régia João Pedro Ribeiro, Indice Chronologico
(sumários) (1603- Remissivo da Legislação Portugueza Posterior
1805) à Publicação do Codigo Filippino com hum
Appendice, 1805 (em
http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/)
Legislação régia Duarte Nunes de Leão, Leis Extravagantes e
(1521-1603) Repertório das Ordenações, 1569 (em
http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/)
Legislação régia Livro das Leis e Posturas, sec. XV (em
(sécs. XIV e XV) http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/)

Direito judicial Assentos Collecção Chronologica dos Assentos das


Casas da Supplicação e do Civel, 1791 (em
http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/)
Direito Doutrina “Biblioteca digital” – doutrina jurídica
contemporâneo portuguesa do sec. XIX (c. de 800 títulos):
http://www.fd.unl.pt/ConteudosAreas.asp?Area
=BibliotecaDigital
Doutrina Visconde de Santarém, Memórias e Alguns
Documentos para a História e Teoria das
Côrtes Geraes, 1924
Cortes e http://debates.parlamento.pt/?pid=mc
Parlamentos -
Cortes e
Parlamentos
Cortes e http://debates.parlamento.pt/?pid=r1
Parlamentos -
Diários do
Congresso da
República (1911-
1926)
Cortes e http://debates.parlamento.pt/?pid=r2
Parlamentos -
Diárioss da
Assembleia
Nacional e
31
Introdução.
Câmara
Corporativa
Direito brasileiro Doutrina Civilística brasileira-
contemporâneo http://www.civilistica.com.br/link0201.html
Digesto brasileiro ou extracto e commentario
das ordebnações e leis posteriores até ao anno
de 1842, Rio de Janeiro, Eduardo e Henrique
Laemmert, 1843.
Geral Recursos http://cluster4.lib.berkeley.edu:8080/ERF/servle
eletrónicos t/ERFmain?cmd=searchSub&subjectId=75&res
(Direito) TypeId=12
Grandes acervos Biblioteca digital da Faculdade de Direito da
digitalizados Universidade de Coimbra: Doutrina jurídica dos
sécs. XVI-XIX – c. uma centena de obras
(geralmente em PDF):
http://bibdigital.fd.uc.pt/website/autor/c1.htm
Biblioteca digital da Faculdade de Direito da
UNL: http://fd.unl.pt
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra:
http://almamater.uc.pt/index.asp?f=BGUCD
Biblioteca Nacional de Lisboa:
http://purl.pt/index/geral/PT/index.html
Bilbioteca Virtual Miguel de Cervantes:
http://www.cervantesvirtual.com/
Brasiliana – USP: http://www.brasiliana.usp.br/
Gallica – Bibliothèque numérique de la
Bibliothèque Nationale de France:
http://gallica.bnf.fr/ -
Liberty Library of Constitutional Classics:
http://www.constitution.org/liberlib.htm:
http://www.constitution.org/liberlib.htm
Library of Congress (USA):
http://www.loc.gov/library/libarch-digital.html
The online Library of liberty:
http://oll.libertyfund.org/?option=com_staticxt&It
emid=27
Universidade de São Paulo: acervo de obras
digitalizadas: http://www.obrasraras.usp.br/
University of California (Berkeley) - Literatura
jurídica medieval e moderna:
http://www.law.berkeley.edu/library/robbins/over
view_collection.html
Hathi Trust Dogotal Library -
http://www.hathitrust.org/
The Online Book Page -
http://onlinebooks.library.upenn.edu/search.htm
l

32
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2 As jurisdições e o direito.
§ 55. Iniciar esta exposição pela teoria da jurisdição pode parecer estranho, de tal
modo hoje ligamos a jurisdição à atividade de julgar, um sector muito particular do exercício
do poder, em que apenas se aplicam a casos concretos normas de comportamento já
estabelecidas, na generalidade, pelo legislador. Como adiante se explicará, não era essa a
maneira de ver as coisas na sociedade medieval e moderna. Não apenas a jurisdição não
era considerada como uma simples tarefa de aplicação de um direito já estabelecido a casos
concretos, como esta realização concreta do direito era tida como a primeira manifestação
da ordem política. Por isso, a jurisdição era o exercício do poder, governar era julgar e o juiz
– no sentido alargado daquele que estabelece a ordem nos casos concretos da vida - era a
figura central da política. Cristo era juiz e os juízes terrenais imitavam essa função divina de
governo53.
§ 56. Realmente, esta ideia da centralidade da justiça e do ato de julgar na instituição
e manutenção da ordem brotava de uma conceção mais geral sobre a ordem do mundo e da
vida. De facto, a imagem da vida é, nestes tempos, se não a imagem de um grande processo
universal (que culminava num grande juízo, o Juízo Final), pelo menos a imagem de uma
sequência de atos “judiciais”, em que impulsos opostos tentam ganhar reciprocamente a
primazia perante um juiz que julga dos seus méritos (a consciência). "Juízo", "foro da
consciência", “acusação”, “defesa”, “culpa” e mais algumas expressões colhidas do mundo
judicial ajudam a descrever estes processos psicológicos e morais de decisão que
preenchem a vida das pessoas: "Em primeiro lugar – escreve o jurista teólogo Baptista
Fragoso54 -, encontramos a nossa consciência, que de quando em quando faz as vezes e o
ofício do juiz e, por isso, se as ações praticadas são retas, absolve e defende a vontade,
enquanto autora delas, e se são más, a acusa e censura [...] Outras vezes, a consciência faz
as vezes de testemunha, depondo tanto contra nós como a nosso favor [...]. Do mesmo
modo, também faz as vezes de Deus, o verdadeiro Juiz [...]". Foro da consciência, tribunais
dos costumes, pleitos de amores, tantos são os exemplos que nos oferecem as fontes
literárias acerca desta matriz judiciária de apreensão do real e da assimilação do governo a
uma cadeia de decisões judiciais.
§ 57. Estes capítulos iniciais, sobre as teorias da jurisdição, das fontes de direito e dos
oficiais e magistrados, são, por isso, as sedes da reflexão dos juristas medievais e modernos
sobre o poder político. Do qual falam com os conceitos e figuras discursivas que são próprios
do seu saber – iurisdictio, imperium, potestas, officium, magistratus – e não com aqueles
com que nós hoje usamos para o mesmo efeito – soberania, poder político, etc.. Isto cria-nos
a impressão de que estão a falar de tecnicidades do direito e do processo, de questões de
detalhe sobre a competência dos magistrados ou sobre a maneira de processar as lides.
Porém, se se olhar para além das palavras usadas, os temas que estão a ser discutidos são
muito mais gerais e fundamentais: eles estão a falar do poder de uns sobre os outros e das
modalidades do seu exercício.

53 É o que sugere Gabriel Álvares de Valasco, no seu tratado Judex Perfectus seu de Judice Perfecto Christo
Iesu, 1662. Sobre a centralidade da justiça na representação medieval e moderna do poder, v. António Manuel
Hespanha, “Justiça e administração …”, cit. (inspirado na ideia central de Pietro Costa, Iurisdictio […], cit.).
54 Cf. Regimen […], pt. 1, p. 469, ns. 41 e 42.

33
As jurisdições e o direito.
2.1 A ideia de jurisdição.
§ 58. Para Bártolo - que continua valer, no ius commune tardio, como texto de
referência - o sentido genérico de jurisdição era – como sugeria a própria palavra (dictio iuris)
– o “poder introduzido pela autoridade pública, que compreende a faculdade de dizer o
direito e de estatuir a equidade55 56. Desde a obra clássica de Pietro Costa, Iurisdictio:
Semantica del potere politico nella pubblicistica medievale (1100 –1433), de 1969) que se
vem salientando que a palavra jurisdição (iurisdictio) exprimia aquilo que era considerado
como o núcleo da função política: julgar e ser julgado. Pois o ato de julgar comportava, não
apenas o momento decisiva da determinação do direito de cada um, mas ainda a
obrigatoriedade de as partes obedecerem àquilo que o juiz declarasse acerca daquela
situação jurídica. No ato de julgar, o direito – a formalização da ordem política - era
declarado e feito cumprir. Por isso é que a instituição da jurisdição era um ato supremo da
comunidade política, pelo qual ela atribuía a alguém a função de realizar a ordem, fazendo
leis, punindo os contraventores, mas sobretudo, determinando qual era o equilíbrio
estabelecido pela república para cada caso concreto.
§ 59. A identificação da função de julgar como o momento nuclear em que o poder
político se exerce teve o condão de evidenciar a dispersão dos polos de poder na sociedade
europeia pré-contemporânea e, consequentemente, o artificialismo de um modelo
centralizado do poder, como aquele que foi introduzido pela teoria política estadualista do
séc. XIX, mas que não era o da teoria política e jurídica desses dias57. Por outro lado, tem-se
salientado que este momento de determinação periférica e contextualizada da ordem não
pode ser tido como um assunto meramente privado, que apenas disciplina as relações entre
as partes do litígio, pois este é decidido segundo critérios que são tidos como “públicos”, ou
seja, fixados pela comunidade, para além de que a solução encontrada se incorpora no
direito e serve de padrão para outras decisões. Esta perspetiva da centralidade do momento
jurisdicional promoveu, a partir da década de 197058, uma profunda revisão da história
política e institucional da Europa moderna, constituindo (mas uns quarenta anos depois) uma
das propostas fortes para a renovação da história colonial norte-americana.

55Cf. Bártolo, Opera […] omnia. Dig Vet, Venetiis, 1590 (http://books.google.com.br/books?id=E-
QbpiN8k-oC&printsec=frontcover&hl=pt-PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false), ad 1. 2,
Rubr: “Arbor iurisdictionum”, pg. 44 v. Sobre a arbor iurisdcitionum de Bártolo e a relação dos tipos de
jurisdição com as de juristas anteriores, v. Jesus Vallejo, “Power hierarchies …”, pg. 19 e n. 39.
56 “Iurisdictio in genere sumpta [est] potestas de publico intoducta, cum necessitate iuris dicendi, &

equitatem statuendae … Et dicitur iurisdictio a iuris, & ditio, quod est potestas […] sic dicitur iurisdictio
quasi iuris potestas”, ibid., a.
57 Sobretudo no sul da Europa, a teoria política dominante não foi até meados do séc. XVIII (pelo

menos) o “estadualismo” de Jean Bodin e dos “políticos” (a maior parte deles, com as suas obras no
Index librorum prohibitorum), mas o “corporativismo” da política católica – de autores como o Cardeal
Belarmino (1542-1621) e Francisco Suarez (1548-1617), vulgarizados pelos grandes jus-
enciclopedistas dos finais do séc. XVI (v.g. Domenico Toschi) - insistindo na natureza compósita dos
corpos políticos e, por isso, no caráter limitado dos poderes do Estado (do príncipe).
58 Cf. Lauren Benton and Richard J. Ross (eds.), Legal Pluralism and Empires, 1500-1850, New

York, NYU Press, 2013: “The study of jurisdictional politics does not depend on a general definition of
‘law.’ Nor does it require distinctions between ’state‘ and ’non state‘ law. The jurisdictional claims of a
wide range of authorities, from a guild or merchant ship captain to a conquistador or trading company,
can be analysed without they being defined neatly as public or private” (p. 6).

34
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 60. A definição de jurisdição que ocorre nas fontes de direito comum diz respeito a
este âmbito muito inclusivo de governo da cidade e corresponde ao que acaba de se dizer:
“a jurisdição é o poder público de conhecer causas e de as julgar, que não existe com base
no consentimento dos particulares, mas apenas daquele que tem autoridade púbica, seja ele
o príncipe, ou o povo59. Por vezes, este poder esgota-se numa ordem, pura e simples, como
que alheia ao direito, como no caso de o poder de reprimir os homens maus (prima gladii
potestas contra facinorosos homines), da competência exclusiva de quem não responde
senão perante o povo; outras vezes, assume a forma de uma declaração genérica do direito,
como quando se fazem leis (potestas statutaria vel legislativa); mais frequentemente,
exprime-se num julgamento em que, a pedido das partes, o juiz declara qual é o direito
naquele caso. Aqui, confluem o interesse público na certificação jurídica da situação e os
interesses privados contrapostos das partes. O juiz satisfazia um e outros, ou
desempenhando o seu officium nobile, ao promover oficiosamente os atos necessários à
satisfação do interesse público, ou correspondendo aos pedidos das partes no âmbito do seu
officium mercenarium de satisfazer os interesses destas (§ 548.). Seja como for, qualquer ato
de jurisdição implicava algum poder de dar ordens ou de constranger, quanto mais não fosse
a autoridade mínima (modica coertio) que faz com que os atos judiciais sejam reconhecidos
e obedecidos pelas partes. Daí que, se podia haver ordens que não estavam precedidas de
uma averiguação jurídica (merum imperium), não podia, em contrapartida, haver atos
judiciais sem que o magistrado não tivesse algum poder de mandar (imperium qui inest
iurisdictioni). 60
2.2 Espécies e graus.
§ 61. Esta relação entre iurisdictio e imperium foi uma matéria muito trabalhada pelos
primeiros glosadores, a propósito da “árvore das jurisdições” (arbor iurisdictionum), gravura
muito frequente nos comentários ao título 2.1. De iurisdictione, do Digesto, que continha os
textos sobre a jurisdição e sobre o império nos quais se baseia a dogmática do ius commune
sobre este tema61. Bártolo refere-se a estas classificações e graduações da jurisdição na
sequência do seu comentário a texto.
§ 62. Segundo ele, império62 era a jurisdição que se exercia através do “ofício nobre”
do juiz, em que este agia em nome do povo – ou do magistrado superior numa república
(imperador, rei, supremo órgão governo de uma cidade que não reconhecesse superior) - e

59“Jurisdictio est publica de causis cognoscendi, et judicandi potestas, quae non privatorum
consensu datur, sed eo tantum, qui habet publicam auctoritatem, sive sit princeps, sive populus”,
Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., liv. 3, cap. 44, n. 12.
60 Sobre este assunto, bem como sobre os temas tratados nos capítulos seguintes, v. António

Manuel Hespanha, “Justiça e administração […]”, cit., maxime, ps. 151 ss..
61 D.2.1.1, Ulpianus libro primo regularum: Ius dicentis officium latissimum est: nam et bonorum
possessionem dare potest et in possessionem mittere, pupillis non habentibus tutores constituere, iudices litigantibus
dare; D.2.1.3, Ulpianus libro secundo de officio questoris: Imperium aut merum aut mixtum est. Merum est imperium
habere gladii potestatem ad animadvertendum facinorosos homines, quod etiam potestas appellatur. Mixtum est
imperium, cui etiam iurisdictio inest, quod in danda bonorum possessione consistit. Iurisdictio est etiam iudicis dandi
licentia. A gravura é reproduzida de uma edição do Digesto de 1574.
62 “Imperium, est iurisdictio, quae officio iudiciis nobili exercetur, et ponitur in deffinitione

iurisdictione pro genere, & verba officium nobili, ponuntur ad differentiam iurisdictionis simplicis, quae
exercetur officio iudicis mercenario … Et dicitur imperium, quia ex imperio, authoritate iudicis procedit,
et non ex aliquo iure, quod resideat apud partem” (ibid., b).

35
As jurisdições e o direito.
por causa da utilidade pública. Distinguia-se da jurisdição em sentido específico, que se
exercia por meio do ofício mercenário do juiz, em que este agia a requerimento das partes
que tivessem algum direito a requerer que ele agisse.
§ 63. Por sua vez, o império dividir-se-ia – continua Bártolo - em império simples
(merum) e império misto (mixtum).
§ 64. O primeiro era aquele que o juiz exercia oficiosamente (pelo seu ofício nobre),
por iniciativa própria ou com base numa simples denúncia (accusatio), em vista
exclusivamente (puramente, meramente) da utilidade pública. Segundo Bártolo, tinha seis
graus63. O império máximo (maximum) era o que continha faculdade de fazer leis, de reunir
concílios gerais, prerrogativa exclusiva dos papas64, de tornar públicos os bens dos
condenados. O maior (maius) incluía o poder de condenar à morte ou de tirar a vida (gladii
potestas). O grande (magnus) consistia na imposição de pena que comportasse a expulsão
da cidade (degredo, deportação, deportatio). O pequeno (parvum) permitia desterrar
(relegare) e açoitar ou aplicar outra pena corporal aflitiva. O menor (minus) permitia a
coerção módica (modica coertio) que competia a qualquer magistrado, para conduzir a lide
judicial ou, por exemplo, para conhecer de crimes leves e impor-lhes penas. O mínimo
(minimum) continha a faculdade de impor multas.
§ 65. O império misto era o poder que o magistrado tinha de atuar por sua iniciativa
(de exercer o seu “oficio nobre”) tendo em vista interesses privados65. Dizia-se misto por
conter uma parte de império (atuação por iniciativa própria) e uma parte de jurisdição
(satisfação de interesses privados)66. Continha cinco graus67. O império misto máximo
(maximum) era o que competia ao Príncipe, relativo à utilidade pública suprema ou a atos
livres e voluntários (atos de graça) dirigidos a um particular68. O maior (maius) consistia no
poder, exclusivo do príncipe, para conhecer dos recursos contra uma sentença proferida por
um juiz de quem não se pudesse apelar. O império misto grande (magnum) consistia na
faculdade de conhecer daquelas causas que exigiam uma ordem do juiz baseada num
conhecimento pleno da substância da questão (plena cognitio), tal como as restitutiones in
integrum, as missiones in possessionem ex secundo decreto, a expulsão da posse. O
império misto pequeno (parvum) era a faculdade de decidir causas que exigissem um
conhecimento pleno da situação, mas que apenas declarassem o direito, sem dar qualquer

63 Alguns autores contavam apenas quatro graus, juntando o maius ao magnum e o minus ao

parvum. Cf. ibid., c.-i.


64 Por analogia, incluía o poder de reunir cortes gerais (parlamentum), a que corresponderia a

faculdade de ter tribunais curiais coletivos (senatus).


65 “Mixtum imperium est, quod officio iudicis nobili exercetur, privatam rescipiens utilitatem … Et

dicitur mixtum, quasi ex diversis constitutum, scilicet ex império & iurisdictione … Imperio partem, eo
quod officio iudicis nobili expeditur. Capit autem a iurisdictione partem, quia privatam utilitatem respicit.
Et nota quod illud dicitur mixtum, quod participat de duobus”, ibid., k.
66 O império diz respeito à utilidade pública e exerce-se pelo ofício nobre do juiz, que ele

desempenha oficiosamente (ou por acusação). A jurisdição (dizer o direito numa causa concreta) diz
respeito à utilidade dos particulares e exerce-se pelo ofício mercenário do juiz), ibid., 1,2,1 (de iur. omn.
iud.); 1,3,5: Os atos de mero império provêm apenas da autoridade do juiz, sem que haja qualquer
autoridade das partes para os exigir.
67 Ibid., l.q..

68 Compreendia os atos de graça, como a concessão de privilégios, a nomeação para ofícios ou

benefícios, as legitimações, os perdões, etc..

36
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
ordem, como pôr na posse de bens atribuída por direito, notificar alguém para entrar na
posse ex secundo decreto, etc.. O império misto menor (minus) consistia na faculdade de
decidir uma causa sumariamente. O império misto mínimo (minimum) era o que incluía a
resolução das causas sem o seu conhecimento, como ratificar manumissões e
emancipações.
§ 66. A jurisdição simples era aquela que o juiz exercia a pedido das partes pelo ofício
do juiz mercenário, em vista da utilidade privada69. Também ela tinha graus, que a doutrina
dominante computava em seis, que espelhavam os do império. A máxima (maxima)
respeitava a questões “árduas” e de natureza importante, como as ações de estado (status),
que punham em causa a fama das pessoas (questões famosas)70. A jurisdição maior (maior)
envolvia a decisão de causas civis em que a condenação podia dar lugar a punição in
corpore (como a prisão por dívidas). A jurisdição grande (magna) permitia julgar causas de
mais de trezentos áureos, não podendo ser delegada. A pequena jurisdição (parva) incluía o
conhecimento de causas até trezentos áureos, podendo ser sempre delegada. A menor
(minor) e a mínima (minima) não estavam definidas pelo direito, dependendo do arbítrio do
juiz.
§ 67. Nesta mistura de jurisdição e império, havia atos em que sobrelevava o império -
como nos decretos ordenando estipulações pretórias ou entrega de bens; noutros, a
componente jurisdicional (privada, digamos) era maior do que a imperial – como na
nomeação de juízes/árbitros ou no uso da modica coertio inerente ao exercício da jurisdição.
§ 68. Estas graduações do império eram sobretudo escolásticas, embora pudessem
servir para interpretar textos das fontes romanas sobre o âmbito da jurisdição de um
magistrado. Que decorressem das fontes romanas, nem sempre era claro. Por vezes, como
que obedeciam a uma espécie de simetria: por exemplo, os graus da jurisdição parece que
deviam corresponder, no nome e no número, aos do império, o que explica que de alguns
deles se dissesse explicitamente que não estavam definidos pelo direito71. Por isso, as
classificações das espécies e graus de jurisdição foram variando bastante nos primeiros
juristas do direito comum72; na época a que nos referimos, a base de reflexão é a “árvore de
jurisdições” da glosa acursiana ou a de Bártolo; mas as incertezas dogmáticas anteriores
continuavam a suscitar perplexidades, como se a matéria fosse um mar encapelado, onde
mesmos os mais peritos poderiam naufragar73. Por isso, o que sobrevive na literatura mais
comum é apenas aquela parte da dogmática que parecia mais consensual e que era mais
necessária para resolver questões práticas, como a da interpretação das doações régias de
jurisdição74, a da determinação dos poderes de certos magistrados (v. cap. § 548.) ou a da

69 Ibid., r.
70 Ibid., s.
71 O texto de Bártolo também avisa que certos poderes podiam caber em dois graus diferentes,
conforme a perspetiva em que fossem encarados. Assim, a tortura podia ser pena, e então, pertencia
ao mero império; mas se servisse como meio de obter uma prova, já pertencia à jurisdição. A mesma
ambiguidade existia com a prisão, com a modica coertio e com a excomunhão, ibid., z..
72 Cf. Jesus Vallejo, “Power hierarchies …”, cit..

73 “In iurisdictione pelago nemo versatus est, qui naufragium non fecerit” (Domingos Antunes

Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., liv. 3, cap. 44, n. 1).


74 Domingos A. Portugal avisa, cautamente, que, naquele mar, só vai tratar da matéria da

jurisdição que se relaciona com as doações régias (Tractatus de donationibus […], cit., liv. 3, cap. 44, n.

37
As jurisdições e o direito.
possibilidade de um magistrado delegar a sua jurisdição noutro.
§ 69. Este facto de os juristas se ocuparem de classificações que não encontravam
correspondência no direito, nem no direito vigente na sua época, nem mesmo no direito de
referência (direito romano), levanta a questão de saber o que explica a continuada atenção
que estas categorias suscitaram e os efeitos discursivos que tiveram. Pode pensar-se que,
quaisquer que tenham sido os motivos da sua contínua evocação, este escalonamento dos
poderes dos magistrados favorecia uma imagem hierarquizada dos aparelhos políticos,
desde o máximo ao mínimo, e que isto facilitava uma ordenação dos magistrados em
pirâmide, clarificando a sua hierarquia e dependências mútuas. E que, combinando esta
ordenação em árvore com outras distinções (como a que diferenciava a jurisdição ordinária
da jurisdição delegada), este tratamento dogmático da iurisdictio viria a permitir que as
magistraturas e jurisdições de origem régia, no futuro, crescessem e se ramificassem mais
do que as de origem tradicional (cf. § 82)75.
2.2.1 O legado da ideia de imperium.
§ 70. É oportuno notar, neste momento um sentido nuclear ligado à palavra imperium
que talvez seja determinante para entender a sua ulterior semântica no vocabulário político
da Europa.
§ 71. A palavra imperium76 usou-se, no mais antigo vocabulário institucional romano,
para evocar o poder daqueles magistrados que, nas fases constituintes da comunidade
política, exerceram o poder, estabelecendo, como que arbitrariamente, as regras da vida em
comum (reis, cônsules). Ou a quem, mais tarde, o povo tivesse dado esse poder constituinte
(-reconstituinte). O seu poder estava fora da ordem (extraordinaria potestas). Outros
magistrados administravam sectorialmente essa ordem (tinham uma simples potestas).
Outros ainda – referimo-nos aos pretores - combinavam o poder de declarar a ordem
(iurisdictio) e, eventualmente, de a modificar para melhor a realizar nos casos concretos. Mas
dispunham também de imperium para dar ordens que forçassem as partes a criar condições
novas de aplicação do direito. Ou seja, imperium parece evocar o exercício de um poder que
não está condicionado por uma constituição (pelo direito, como constituição), ou porque não

1). Sobre doações régias de jurisdições e direitos reais, cap. 6.9.2.1.2. Exemplo de uso em matéria de
interpretação de doações: concedido o castelo, com a sua jurisdição, entende-se concedido o mero e
misto império (Domingos A. Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., liv. 3, cap. 44, n. 13). Outras
regras de interpretação – restritivas dos poderes doados, decorriam sobretudo do direito pátrio,
nomeadamente da legislação quatrocentista (v.g.: só vêm nas doações aquelas coisas que são
explicitamente referidas (Ord. fil.,2,45,7; 12, 14 e 156); a doação de jurisdições, como exorbitante do
direito comum, é de restringir e não de ampliar, Domingos A. Portugal, Tractatus de donationibus […],
cit., liv. 3, cap. 44, n. 4; doado o castelo. não se entende doada a jurisdição, pois são coisas separadas,
ibid., ns. 5-8; a jurisdição não se adquire por prescrição, nem sequer imemorial, ibid., n. 17; a
concessão de jurisdições sempre se entende ser feita cumulativamente, ibid., n. 33). Note-se que a
exigência de um ato público (cláusula expressa em doação régia) para que uma jurisdição se transfira é
consistente com a definição publicística de jurisdição (de publico introducta), sempre presente na
dogmática do direito comum.
75 Cf. António Manuel Hespanha, “Représentation dogmatique …”, cit.; com objeções, Jesus

Vallejo, “Power hierarchies …”, cit..


76 Sobre a aceção de potestas e imperium no mais antigo vocabulário político romano, v. o artigo

“Imperium”, na Pauly-Wissowa, Realencyclopädie der Classischen Altertumswissenschaft […], cit., vol.


9.2; de onde basicamente recolhi o que se diz no texto.

38
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
há constituição77 ou porque ela está a ser estabelecida justamente pela vontade do
magistrado imperial. Nas “cidades” (ou reinos), que correspondiam a comunidades naturais,
isso apenas aconteceria na sua fase primordial ou constituinte (v.cap. 2.4.1.1); em momentos
ulteriores, o governo consistia em declarar e cumprir esse direito imanente à vida coletiva,
tendo, por isso, um caráter jurisdicional. Nas unidades políticas “artificiais”, agregados de
múltiplas e diversas comunidades naturais, essa constituição imanente não existia e, por
isso, o governo tinha que provir de ordens de quem tinha o poder de comandar. Isto
acontecia, tipicamente na guerra e nos períodos que se seguiam à conquista, em que a
ordem do vencedor e do conquistador eram o produto da vontade de um magistrado com
poderes imperiais (imperator, proconsul).
§ 72. Concluindo, imperium conotava inorganicidade ou heterogeneidade
constitucional da unidade política, arbitrariedade do mando, voluntarismo do poder,
disponibilidade dos laços políticos, predomínio da oportunidade. Embora este poder imperial
superior experimentasse também as dificuldades que decorriam de, no interior do “império”
existirem comunidades organizadas cuja autonomia e autorregulação era prudente respeitar,
por razões de oportunidade e de economia de poder. Era isto que acontecia nas províncias
do império romano, em que a s comunidades de colonos se organizavam naturalmente em
cidades (constituídas à semelhança de Roma) e em nações estrangeiras reconhecidas pelo
poder romano (nationes foederatae), que apenas caía sem limitações sobre os elementos
políticos inabsorvíveis (hostes). De qualquer modo, visto do ponto de vista do seu topo, o
poder era imperial.
§ 73. Esta era a situação nos impérios compósitos da idade moderna. O império era
constituído por “conquistas”, cuja identidade política não era pura e simplesmente ignorada
ou apagada, mas cujo reconhecimento era juridicamente livre, apenas obedecendo às
possibilidades da conjuntura. E nele existiam também comunidades de colonos que, pelo
convívio, naturalmente se constituíam em réplicas das comunidades naturais da metrópole.
§ 74. Esta é também a lógica político-institucional do “império” português. Nos
meados do séc. XVII, o jurista e conselheiro do rei João Pinto Ribeiro sublinhava esta
estrutura compósita das conquistas portuguesas: "Vencidos [os reis do Oriente], não os
despojavam dos reinos e senhorios que possuíam. Ou os deixavam neles com toda a
majestade real, impondo-lhes algum tributo, por razão da guerra, ou restituíam o reino a
algum rei amigo a que injustamente estava usurpado. Mostraram os nossos capitães o ânimo
livre e desinteressado com que procediam nas terras descobertas ou vencidas. A nenhuma
mudaram seu antigo nome, a nenhuma o deram de uma cidade ou província de Portugal [...].
Nunca os sereníssimos reis de Portugal se intitularam de alguma província sujeita, se não foi
a da Guiné e do senhorio do comércio”78. Isto fazia com que o poder imperial do rei tivesse
que se acomodar com aqueles outros que a oportunidade tinha levado a reconhecer.
§ 75. Esta pluralidade de prerrogativas políticas (iurisdictiones) reivindicada pelos reis
de Portugal79 (mas também de Espanha80) estava expressas no seu longo título, que

77 Como na guerra; e, por isso, o imperium é a autoridade típica dos magistrados militares.
78 “Desengano ao parecer enganoso que deu a El-Rey de Castella Filipe IV certo ministro contra
Portugal”, 1645 (cit. António Vasconcelos de Saldanha, Vincere reges et facere […], cit., 184)..
79 “Pela Graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-Mar em África,

Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, etc.”.
Sobre a titulação dos reis de Portugal, António Vasconcelos de Saldanha, Vincere reges et facere […],
cit., 178, 288 ss..

39
As jurisdições e o direito.
enumerava uma série de referencias políticas heterogéneas, cada qual remetendo para
diferentes direitos sobre diferentes comunidades ou diferentes territórios. Por vezes estas
referências remetiam para modelos conhecidos e de conteúdos precisos (por exemplo, “rei”),
por vezes para uma situação genérica e vaga de senhorio (“Senhor da Guiné”), por vezes
para um domínio impreciso (“Senhor da conquista, da navegação e do comércio”) sobre
territórios bastante indeterminados (“Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia”). No fim, a partícula “etc.”
permitia cobrir outras virtuais reivindicações políticas81.
§ 76. Em todo o caso, o reconhecimento desta multiplicidade de poderes não tirava ao
poder do rei de Portugal o seu caráter imperial, permitindo-lhe adequar o governo à
frequentemente referida “mobilidade” das coisas do ultramar. Por isso, as magistraturas
delegadas (v. cap. 2.3) ou extraordinárias eram mais frequentes e mais centrais no governo
do império. As atribuições e competências eram mais casuísticas e conjunturais. Os
princípios gerais mais frequentemente substituídos por normas pragmáticas (“pragmáticas”,
leis orientadas para objetivos práticos, ligados às necessidades da ação política). O
julgamento (iudicium), como processo ponderado e argumentado de decisão (v. cap. 7.1.5),
capitulava mais frequentemente perante o alvitre. O governo comissarial consistia numa
atividade mais levemente regulada, sobretudo dependente da mobilidade das situações. A
política ganhava por isso tonalidades maquiavélicas, de exploração das conjunturas e de
aproveitamento de uma vasta gama de relações e de oportunidades políticas. Mas,
paradoxalmente, esta atomização do modelo de decisão, em vez de constituir um fator de
generalização e de homogeneização da política, ainda multiplicava o casuísmo e a
contextualização do governo.
§ 77. Por outro lado, o caráter artificial desta composição que era o império tornava
necessária uma política de promoção da unidade, de que o projeto da “União de Armas”
contido no Grande Memorial (1624) do Conde Duque de Olivares é um exemplo extremo (e,
por isso, fracassado)82. Eram mobilizadas categorias discursivas para exprimir esta ideia
centralista. Catolicidade (catolicidad) – significando universalidade – era um destes tópicos;
monarquia – significando o governo de um só – era outra. Combinando as duas, surgia a
ideia de Monarquia Católica, essa entidade política unificada que explicava a multiplicidade
as entidades políticas que subsistiam no universo politico tinham que convergir para uma
unidade harmónica, para manifestar a qual existiam também símbolos no tesouro
iconográfico da época, como, por exemplo, a romã.

80 “Pela Graça de Deus, Rei de Castela, de Leão, de Aragão, das Duas Sicílias, de Jerusalém, [de

Portugal,] de Navarra, de Granada, de Toledo, de Valência, da Galiza, de Maiorca, de Sevilha, da


Sardenha, de Córdova, da Córsega, de Múrcia, de Jáen, dos Algarves, de Algeciras, de Gibraltar, das
Ilhas de Canária, das Índias Orientais e Ocidentais, Ilhas e Terra Firme do Mar-Oceano, Conde de
Barcelona, Senhor da Biscaia e de Molina, Duque de Atenas e de Neopátria, Conde de Rossilhão e da
Cerdanha, Marquês de Oristano e de Gociano, Arquiduque de Áustria, Duque da Borgonha, do
Brabante e de Milão, Conde de Habsburgo, da Flandres e do Tirol, etc.”.
81 Estas cláusulas vagas eram frequentes nas descrições ou reclamações de direitos e de

jurisdições. Nas doações régias, concediam-se terras com “todas as suas entradas e saídas”,
significando direitos potenciais sobre espaços vizinhos.
82 “Tenga Cf. Majd. Por el negocio más importante de su Monarquía el hacerse rey de España;

quiero decir, señor, que no se contente Cf. Majd con ser rey de Portugal, de Aragón, de Valencia,
conde de Barcelona, sino que trabaje y piense con consejo maduro y secreto por reducir estos reinos
de que se compone España al estilo y leyes de Castilla, sin ninguna diferencia […]”, John H. Elliott and
José F. de la Peña, Memoriales y cartas del Conde Duque de Olivare […], cit., 1, pg. 96.

40
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 78. O fracasso final do projeto de Olivares – que realçava a ideia de uma
naturalidade comum, de uma pátria de todos, de um príncipe partilhado, de um só exército e
de um só tesouro – tornou, porém, claro que a ideia de um senhorio comum funcionava
bastante bem no plano eclesiástico83, mas ainda não podia ser transferido da Igreja para as
comunidades seculares.
2.3 Jurisdição ordinária e delegada.
§ 79. Outra importante distinção dogmática que permaneceu no direito comum tardio
foi a contraposição entre jurisdição ordinária e delegada, um ponto importante para se
determinar se um magistrado podia ou não delegar as suas atribuições noutro84. Também
importante, no plano da explicação histórica, pelas virtualidades que o conceito de jurisdição
delegada criou à expansão da jurisdição real.
§ 80. A jurisdição ordinária provinha diretamente da titularidade de um ofício ordinário
(v.g., iudex ordinarius) que contivesse poder próprio (jurisdição). Era, por isso, um poder
originário, que decorria do próprio estatuto (suo iure) do cargo tal como estava fixado pelo
direito, fosse este o costume ou a lei do príncipe. Por isso, a jurisdição ordinária continha
atribuições gerais, a serem exercidas sobre um tipo abstrato de questões, no âmbito de uma
comunidade política ou território. Já a jurisdição delegada provinha de um ato de vontade de
um magistrado delegante, não residindo originariamente no magistrado delegado, que
apenas as obtinha por direito de outro (alieno iure)85. Certas espécies de jurisdição não
podiam ser delegadas. Desde logo, a jurisdição máxima (merum imperium maximum, prima
gladii potestas), que apenas competia ao príncipe e não podia ser dele separado (pois
“aderia aos seus ossos”), nem mesmo por delegações especial86. Mais em geral, também o
mero império não era delegável, apenas competindo aos magistrados ordinários, ou seja, a
quem a república tivesse entregado diretamente essas atribuições por lei (originariamente,
na época romana mais antiga, a lex de imperio, mais tarde as leis ordinárias, por fim, as leis
reais); por isso, atribuições como o julgamento de causas criminais ou o exercício de atos de
mando no decurso dos processos87 não podiam ser exercidas por juízes delegados. Como a
delegação era um ato pessoal, fundado na confiança entre delegante e delegado, ela não
podia ser estendida por subdelegação (subdelegatio iurisdictionis), nem por extensão a

83 Mesmo aqui, é importante descontar alguns mitos do alegado centralismo gregoriano; v.

However, on the myths of ecclesiastical Gregorian centralism, Leandro Duarte Lust, "Colunas de São
Pedro […]”, cit.; Amedeo de Vincentiis, “La sopravvivenza come potere […]”, cit..
84 Se um magistrado cometia a realização de atos jurisdicionais a um não magistrado, falava-se

em mandatio iurisdictionis (e iurisdictio mandata).


85 D.1,21 De officio eius, cui mandata est iurisdictio.

86 Cf. Domingos A. Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., liv. 3, cap. 44, n. 14. Parece que

a delegação especialíssima de poderes destes não estava totalmente excluída, embora apenas
naqueles casos em que existisse um fortíssimo laço de confiança pública no magistrado delegado. Em
Roma, certos poderes imperiais foram concedidos especialmente a certos magistrados, de muita
confiança politica, como o prefeito do pretório e da cidade, os procônsules e os pretores (governadores)
das províncias, de tal modo que o império não lhes competia por causa da jurisdição do seu ofício, mas
por uma especial concessão, Domingos A. Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., liv. 3, cap. 44,
n. 15. Esta será a fonte inspiradora da delegação de poderes dos vice-reis e, em menor grau, dos
governadores de províncias.
87 Cf. g., decretos de entrega de bens (missiones in possessionem).

41
As jurisdições e o direito.
outros atos ou situações por acordo das partes (prorrogatio iurisdictionis). Do mesmo modo
que se extinguia pela morte ou substituição no cargo do delegante. Enfim, a jurisdição
delegada era uma forma pontual e precária de conferir poder, por oposição aos poderes
conferidos estável e genericamente ao magistrados ordinários.
§ 81. O rigor desta separação entre jurisdição ordinária e delegada atenua-se muito
com o impacto dos poderes imperial e real sobre a doutrina do direito. Desde os primeiros
glosadores que se afirmava, por um lado, que o delegado do príncipe podia subdelegar, o
que já permitia a expansão (ramificação) da jurisdição delegada. Por outro lado, também
cedo se começou a defender que lei do príncipe podia ser tida como fonte de jurisdição
ordinária. Isto permitia que a lei régia criasse magistraturas ordinárias, dotadas de jurisdição
ordinária88. Era isto que explicava que o senhor das terras, a quem, nos termos da lei,
fossem concedidas jurisdições, fosse juiz ordinário, podendo delegar as suas atribuições
(num ouvidor). Também lhes podia ser concedido o poder de castigar os crimes (coercitio
delictorum) pois esse poder coercivo fazia parte da jurisdição (mixtum imperium)89 e esta era
concedível, embora apenas por doação expressa90.
§ 82. Um advertência final sobre a relevância deste quadro dogmático na expansão
das estruturas administrativas das épocas medieval e moderna. A ideia de que a jurisdição
era um poder de governo estabelecido pela comunidade e atribuído a magistrados ordinários
faziam com que a máquina político-administrativa estivesse firmemente ancorada na
tradição. As magistraturas eram as que eram e os seus poderes também. A extensão deste
aparelho apenas podia ocorrer, precária e pontualmente, por meio da delegação, com todas
as limitações que esta tinha. O reconhecimento da lei do rei como uma nova fonte de
legitimidade das jurisdições e magistraturas, bem como o reconhecimento de que os
delegados do rei são magistrados ordinários, pelo menos para o efeito de poderem
subdelegar, rompem estas barreiras e vai permitir que, ao lado da anquilosada estrutura
política tradicional, surja uma nova estrutura, que pode crescer e crescer rapidamente (Cf.
adiante § 544.)91.
2.3.1 O público e o privado.
§ 83. Um frequente anacronismo é o de procurar no direito romano ou na tradição
dogmática do direito comum as raízes da distinção contemporânea entre direito público e
direito privado. Por isso, vale a pena abordar esse tema depois de se ter exposto a
dogmática da jurisdição.
§ 84. A distinção entre direito público e direito privado figurava no Corpus iuris civilis92.

88 Cf., v.g., Ord. fil.,2,35 e 2,45.


89 “Mixtum imperium jure proprio magistratui competit, quia jurisdictioni adhaeret et inest, et est
conjunctum cum jurisdictione, ita ut ab ea separari nequeat”, Domingos A. Portugal, Tractatus de
donationibus […], cit., liv.3, cap. 44, n. 16.
90 “Quatenus vero respicit coercionem delictorum concedi potest speciali donatione”, Domingos A.

Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., liv.3, cap. 44, n. 14.


91 António Manuel Hespanha, “Représentations …”, cit..

92 Síntese sobre a distinção no direito romano: Max Kaser, “’Ius publicum’ und ‘Ius privatum’”, cit..

Sobre a tradição da distinção na tradição romanística: Francesco Calasso, “Ius publicum e ius privatum
nel diritto comune classico”, cit.; G. Chévrier, “Les critères de la distinction du droit privé et du droit
public dans la pensée savante médiévale”, cit.; Dieter Wyduckel, Ius publicum […], cit.; Paolo
Cappelinni, “Privato e pubblico [diritto intermedio]”, cit.; J. W. F. Allison, A Historical and

42
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
O Digesto incluía um texto de Ulpiano que afirma que há dois pontos de vista (positiones)
acerca do estudo do direito (“Huius studii […]”), a do direito público e a do direito privado. O
direito público considera o equilíbrio das coisas de Roma, enquanto que o privado considera
a utilidade dos particulares, pois algumas utilidades são públicas e outras privadas. Continua
indicando os institutos que formam o direito público: as coisas sagradas, os sacerdotes e os
magistrados (“Huius studii duae sunt positiones, publicum et privatum. Publicum ius est quod
ad statum rei Romanae spectat, privatum quod ad singulorum utilitatem: sunt enim quaedam
publice utilia, quaedam privatim. Publicum ius in sacris, in sacerdotibus, in magistratibus
consistit”, D.,1,1,1,2) [Há duas perspetivas desta matéria de estudo. O direito público é o que
respeita ao equilíbrio das coisas de Roma, o privado o relativo à utilidade dos particulares,
pois, na verdade, há utilidades públicas e outras particulares. O direito público consiste no
relativa às coisas sagradas, aos sacerdotes e aos magistrados93]. As Institutiones recolheram
este texto (v. I.,1,1,3), mas omitiram a referência ao conteúdo do direito público,
provavelmente porque o âmbito do direito público (ou da perspetiva pública do direito) era
mais vasta.
§ 85. Por detrás do significado da palavra “público” nestes textos jurídicos estava o
seu sentido – já contido na etimologia: de populicus, populus - de algo que se relacionava
com todos os cidadãos, com o povo. Em alguns casos, os juristas usavam a palavra
puramente com este seu sentido corrente, como quando falavam de fama pública ou de
coisa pública. Outras vezes, o sentido era mais elaborado, pois incluía a referência às
consequências dessa relacionação com o povo. Assim, a pessoa pública era aquela que
tinha alguma autoridade aos olhos do povo94; documento público era o que gozava de uma
confiança geral, por ser elaborado por um oficial público; pública era a instituição que não
podia ser modificada por um pacto dos privados em virtude de ter sido estabelecida em
função de um interesse de todos.
§ 86. Este âmbito do significado de público fazia com que a distinção entre direito
público e direito privado contida nos dois textos referidos não fosse tão clara como mais
tarde pareceu ser à doutrina oitocentista do direito público. As dificuldades de uma distinção
substancial e cortante começavam pela ambiguidade da palavra positiones, um termo usado
na teoria retórica com um sentido técnico, que parece remeter mais para uma atitude, um
ponto de vista, uma perspetiva, um aspeto, uma matéria de estudo (Huius studi […]) do que
para uma distinção substancial entre duas partes do direito. Depois, a claridade da distinção
sofrei com as incertezas do conteúdo de cada uma das categorias. O texto do Digesto
enumerava as questões que integrariam o direito público: coisas sagradas, sacerdotes e
magistrados. Mas o certo é que outros textos do Digesto indicavam como sendo de direito

Comparative Perspective on English Public Law […], cit.; Gérard Giordanengo, “De l'usage du droit privé et
du droit public au Moyen Âge” […], cit.; Italo Birocchi, “La distinzione, ius publicum/ius privatum' nella dottrina
della scuola culta […]”, cit.; Gabor Hamza, “The classification into branches of modern legal systems
and roman law traditions”, cit.; Aloys Winterling, Politics and Society in Imperial Rome […], cit.; Juan
Manuel Blanch Nougués & Carmen Palomo Pinel, “Ius publicum y ius priuatum en la experiencia
histórica del derecho. Un ejemplo insólito en las distinciones de Bártolo expuestas a través de
esquemas”, em Revista General de Derecho Romano, 18(2012).
93 Prefiro uma tradução muito ao pé da letra, para evitar a atração para formulações que

favoreçam a assimilação com os conceitos de hoje.


94 Cf. I.,1,21: “defensores civitatum (una cum eiusdem civitatis religiosissimo antistite vel apud

alias publicas personas) vel magistratus”.

43
As jurisdições e o direito.
público matérias que não diziam respeito nem às coisas sagradas, nem aos sacerdotes, nem
aos magistrados; como o testamento95, as tutelas96, os dotes97, as coisas afetas ao uso de
todos os cidadãos98, as ações criminais99, bem como todas aquelas normas jurídicas que
não podiam ser modificadas por pactos entre privados100.
§ 87. Em suma, os juristas romanos parece que não tinham construído um conceito
de direito público como um direito regulando as especiais relações entre a república e os
cidadãos, regulado por princípios sistemicamente opostos aos que regulavam as relações
entre cidadãos101. Nem tinham também desenvolvido conceitos e figuras próprias e
específicas desta parte do direito. A sua construção dogmática alicerçava-se em figuras que
hoje designaríamos de direito privado. As questões que hoje chamaríamos de direito público
- como a propriedade pública, os poderes dos magistrados e as suas limitações, o direito
ligado à religião, o tratamento jurídico específico do interesse público – não ocupavam os
juristas, porque pareciam mais relacionadas com a mutável oportunidade em situações
concretas do que com princípios jurídicos permanentes102, desses que derivariam da
natureza das coisas. Daí, talvez, que o texto citado de Ulpiano só em relação ao direito
privado afirme que ele pode ser colhido de preceitos de direito natural103.
§ 88. O Digesto, ao recolher a doutrina jurídica anterior, assumia essa mesma
desvalorização do “direito público”, que nele não ocupa uma posição relevante104. Em
contrapartida, no Código – e, sobretudo, nos seus últimos três livros (livros 10, 11, 12) ou, na
designação medieval, Tres libri –, é que se iriam concentrar os temas que, no futuro,
constituirão o direito público. Os glosadores mantiveram esta ideia de indistinção substancial
entre direito público e privado, explicando a ocorrência da oposição público-privado nos
textos apenas como uma questão de método de ensino, relacionada justamente com o facto
de, na codificação justinianeia, as matérias de direito público e de direito privado terem sedes
diferentes (respetivamente, os Tres libri e o Digesto)105. Embora Bártolo e Paulo de Castro

95 Cf. D. 28, 1, 3.
96Cf. I,1,25: “nam et tutelam et curam placuit publicum munus esse”.
97Que os tornavam inalienáveis, mesmo com o consentimento da mulher (C.,5,13 De rei uxoriae
actione, 15; I., 4,6,12).
98 E que, por isso, não podiam ser objeto de transação entre particulares (I,3,19: 2. Idem iuris est,

si rem sacram aut religiosam, quam humani iuris esse credebat, vel publicam, quae usibus populi
perpetuo exposita sit […] dari quis stipuletur […] sed protinus inutilis est”).
99 Cf. I,4,18: “Publica iudicia neque per actiones ordinantur nec omnino quidquam simile habent

ceteris iudiciis de quibus locuti sumus, magnaque diversitas est eorum et in instituendis et in
exercendis. 1. Publica autem dicta sunt, quod cuivis ex populo exsecutio eorum plerumque datur”.
100 Cf. D.50,17,45,1.

101 O conceito mais próximo disto era o de imperium.

102 Cícero justifica desta forma o facto de Quintus Mucius Sacevola se recusar a dar pareceres

sobre questões de direito público (Cicero, Pro Balbo, 19, 45), citado por J. W. F. Allison, A Continental
Distinction in the Common Law: A Historical and Comparative[…], pg. 110.
103 D.1,1,1,2: “[…] Privatum ius tripertitum est: collectum etenim est ex naturalibus praeceptis aut gentium
aut civilibus”.
104 Cf. J. W. F. Allison, A Continental Distinction in the Common Law: A Historical and Comparative

[…], cit., 109 ss. (com referência aos pressupostos filosóficos da distinção).
105 Cf. Gabor Hamza, “The classification into branches of modern legal systems and roman law

44
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
tivessem sugerido uma distinção categorial e mutuamente exclusiva entre as duas partes do
direito, como mundos dogmáticos distintos, dominados por interesses contrapostos – o
público e o privado -, isto não foi seguido pelos juristas que escreveram depois. Baldo é
típico nesta prudência em distinguir de forma nítida o direito privado do público com recurso
ao critério dos interesses prosseguidos por um ou pelo outro. Na distinção, tudo seria apenas
uma questão de grau: “illud est publicum quod continet publicum bonum principaliter et per
prius” 106. Também na hierarquização dos interesses a ponderar, a utilidade principal (utilitas
principalis), que devia ser atendida, nem sempre era a pública, decorrendo a decisão sobre
qual ela fosse das circunstâncias do caso107. Em contrapartida, a qualidade pública de uma
das partes da relação jurídica não era invocada como critério distintivo, pelo menos principal.
§ 89. A noção de ius publicum funciona então como um tópico que pode servir para
justificar um feixe diverso de soluções jurídicas. Serve, por exemplo:
§ 90. (i) para justificar uma especial (mas não exclusiva nem mesmo decisiva)
relevância do interesse da comunidade, que justificaria a derrogação de algum princípio de
direito ou a ineficácia da vontade de particulares (por exemplo, de se escusarem de serem
tutores, v. cap. 3.3.2.1); v.g., suspendendo a eficácia da vontade das partes em certas
circunstâncias em que se manifestava um especial interesse de todos.
§ 91. (ii) para justificar a inapropriabilidade por particulares de certas coisas
relacionadas com interesses comuns (v. cap. 4.2.2);
§ 92. (iii) para justificar as atribuições dos magistrados, nomeadamente daquelas que
eles exercem oficiosamente, sem carecer de um pedido das partes (potestas a publico
introducta […]); v.g., legitimando a coerção penal (“gladii potestats ad animadvertendum
facinorosos homines”), a imposição fiscal (“ius fiscale dicitur ius publicum”, Cujacius) (v. cap.
2.2).
§ 93. Ou seja, perante certas questões cuja solução não era consistente com os
princípios do direito comum – os tais que decorriam do direito natural ou das gentes ou do
sistema do direito civil comum –, a invocação da utilidade pública, do direito que se ocupava
do estado da coisa pública, podia explicar essa particularidade ou excecionalidade da
solução. Mas, no fundo, a invocação do “público” não era estruturalmente diferente de outros
lugares (loci) argumentativos – como a equidade, a utilitas, a excecional proteção devida a
uma pessoa (favor) - que explicavam porque é que certos casos exigiam que se afastassem
os princípios do direito civil. Por outro lado, a natureza “pública” de um caso não era o único
argumento que podia justificar a especialidade da sua solução (por exemplo, a sua mais forte
sujeição à autoridade de um magistrado), pois isso podia explicar-se, por exemplo, pela
especial natureza dos poderes desse magistrado (o seu imperium, a sua extraordinaria
potestas).
§ 94. Porém, esta sensibilidade a algumas questões que irão ser resolvidas com a
criação de uma dogmática específica para o direito público não leva ainda a uma summa
divisio do direito que justifique a quebra da sua unidade dogmática e se reflita na ordem da

traditions”, cit., III (p. 450).


106 J. W. F. Allison, A Historical and Comparative Perspective on English Public Law […], cit., pg.

113. Boa síntese da doutrina medieval sobre o tema em Gérard Giordanengo, “De l'usage du droit privé
et du droit public au Moyen Âge”, cit., pg. 3 ss..
107 Cf. Gérard Giordanengo, “De l'usage du droit privé et du droit public au Moyen Âge”, cit., pg. 3.

45
As jurisdições e o direito.
exposição 108.

§ 95. Nos juristas portugueses dos sécs. XVI e XVII, a atenção pelo conceito de direito
público é diminuta e limita-se a recordar os pontos de vista do direito comum clássico. A ideia
de que o direito público tem autonomia dogmática – que se manifesta nos juristas franceses
da época e que será um tópico central no discurso publicista de Pascoal de Melo – não
aflora.
§ 96. Melchior Febo trata do assunto numa decisão109, adotando a prudência que
caraterizara os medievais em relação à possibilidade de uma distinção rigorosa entre direito
público e direito privado. A discussão, que é interessante, versava a natureza pública ou
privada de um contrato feito pelo rei. Partindo da distinção escolástica acerca das causas,
Febo dizia que o decisivo não era quem tinha celebrado o contrato – a sua causa eficiente -,
mas a finalidade visada com ele – a sua causa material110. O critério de distinção entre
público e privado, em matéria de natureza das coisas ou dos contratos, era, para ele, o tipo
de interesses protegido. Porém, esse critério nunca permitiria uma classificação nítida,
porque todo o direito visaria simultaneamente a satisfação de interesses públicos e privados,
apenas se podendo estabelecer uma gradação da hierarquia entre eles nos objetivos de
cada norma. Umas normas visavam principalmente (ou diretamente) o interesse público, e
por isso constituíam direito público, outras principalmente interesses particulares, sendo
portanto de direito privado111. Porém, em todas as normas havia algo de interesse público;
mesmo na regulação dos pactos, o respeito da confiança era de direito das gentes e, por
isso, ia para além do mero interesse particular dos contraentes112. A dificuldade da distinção
fazia com que Febo acrescentasse uma terceira categoria de direito, o direito misto, no qual
incluía o que regulava as ações penais, em que se prosseguiam, ao mesmo tempo, o
interesse público em punir e o interesse privado em indemnizar os danos113.
§ 97. Este critério de distinção servia para fundamentar a inderrogabilidade do direito
público por pactos dos particulares114, bem como a impossibilidade de renunciar a um direito
ou faculdade que tivesse sido concedida a um particular por razões de interesse público115. E
de pouco mais servia a ideia de direito público. Agostinho Barbosa, nos seus tratados sobre

108 O direito público não cabe, por exemplo, na sistematização tripartida das matérias jurídicas

(pessoas, coisas e ações).


109 Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 114.

110 Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 114, ns. 2 e 3.


111 Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 114, n. 15 (“Tunc versatur ius publicum quemquam
ratio principaliter tendit ad bonum commune”.
112Cf. Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 114, n. 26.

113 “Ius vel est publicum, vel privatum, vel mixtum. Publicum est quod directe pertinet ad statum

regni, vel respublicae; privatum est quod pertinat ad statum privatum uniuscusque; mixtum utrumque
includit, v.g. omnis quaestio criminalis habet ius mixtum, nempe publicum ex parte judicis punientis,
privatum ex parte partis damnum particulare subeuntis”, Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 114,
ns. 8 a 12.
114 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Ius”, n. 3 (“Ius publicum non derogatur
pacto aliquorum privatorum, cum ad utilitatem communem expectet [...]”.
115 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Ius”, n. 5 (“Iuri suo privato, & suae actioni, et

exceptioni, & legum auxilio potest quicumque regulariter renunciare, cum id faciat sine incommodo
alterius, vel iuris publici”).

46
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
lugares comuns116, ignora a palavra público, quer como substantivo (appelativum), quer
como argumento (locus communis)117.
§ 98. Só a partir dos finais do séc. XVII, aparecem na literatura jurídica europeia obras
explicitamente intituladas de Institutiones iuris publici118. Doravante, o direito público já não é
apenas um tópico, casuisticamente invocado para motivar uma decisão, mas um sistema
dogmático, dotado de princípios e definições próprias, que também passa a merecer uma
exposição à parte, caraterizado por regular as relações entre os detentores de um poder
público e os particulares.
§ 99. Em Portugal, o culminar desse processo de emergência do direito público
manifesta-se com a obra de Pascoal de Melo.
§ 100. Como os novos Estatutos da Universidade de Coimbra explicavam, os princípios
de direito representavam "a applicação, accomodação, e extensão, que dos principios
geraes do mesmo Direito Publico universal tem feito os Supremos Legisladores da
Monarquia Portugueza, para satisfazerem nestes Reinos, e nos seus Domínios aos
importantíssimos fins da mesma Legislação Universal da Natureza”119. Pascoal de Melo
reconhece isso mesmo. Abre o Livro I das suas Institutiones iuris civilis lusitani com o
reconhecimento da autonomia e primazia do direito público sobre o privado120, prosseguindo
com a descrição dos direitos do soberano e, brevissimamente, dos direitos dos súbditos.
Trata-se de uma moldura conceptual construída sobre a ideia de ume relação jurídica entre o
soberano e os súbditos. O elenco dos temas neste novo ramo do direito corresponde, em
parte, ao dos dois primeiros títulos das Instituições de Justiniano, que, por sua vez,
correspondem aos 22 títulos do Livro I do Digesto (fontes de direito, oficiais públicos). Mas a
autonomização destes temas num novo livro representa uma modificação estrutural na
maneira de conceber o direito público, não mais como um agregado de temas próximos ou
como uma partição meramente didática, mas como um corpo sistemático orientado por
princípios específicos em relação aos do direito privado. Pascoal de Melo consegue uma
correspondência temática entre o seu livro de Direito público e os primeiros títulos das
exposições tradicionais do direito baseadas na estrutura das Institutiones e do Digestum por
meio de uns subterfúgios. Trata das fontes de direito a propósito do poder de legislar. E dos
magistrados e ofícios, a propósito do poder de criar magistrados. Segundo os critérios de

116 Agostinho Barbosa, Tractatus varii […], cit..


117 Sobre a literatura francesa contemporânea, cf. Italo Birocchi, “La distinzione, ‘ius publicum/ius
privatum' nella dottrina della scuola culta […]”, cit.
118 Ph. R. Vitriarius, Institutiones Iuris Publici Romano-Germanici, 1691; Johannes Friedrich

Chardel, Discursus de Primis Juris Publici Principiis: Occasione Hujus Studij Duae Sunt Positiones,
1711; Ignaz Schwartz, Institutiones iuris publici universalis naturae et gentium, 1760.
119 Estatutos, 2,6,2,4, pg. 454.

120 “Como o Direito Público ocupa o primeiro lugar na cidade também deve ser tratado em

primeiro lugar”, Prefácio aos estudantes; “Todo o direito e público, ou particular […] Ocupar-nos-emos
de um e outro, mas cumpre tratar primeiro do público que é sem dúvida a espécie mais nobre e
excelente do direito” (Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 1,1,1); “O direito público
respeita à sociedade em geral, e determina os direitos dos Imperantes e dos cidadãos. O supremo
direito, no qual naturalmente se contem todos os mais, pertence ao Imperante, e por ele pode e deve
proteger a Nação e realizar todos os atos, sem os quais não se podem obter convenientemente a
segurança interna e externa dos cidadãos e a salvação do povo, que é a suprema lei” (Institutiones iuris
civilis […], cit., 1,1,2).

47
As jurisdições e o direito.
hoje, ficavam de fora algumas instituições, como o poder municipal e o poder senhorial, que
irão ser tratadas no livro II, Das pessoas.
§ 101. Esta autonomização do direito público torna-se comum entre os professores
contemporâneos de direito pátrio na Faculdade de Leis de Coimbra 121.
2.4 A jurisdição dos concelhos, da coroa e da Igreja.
2.4.1 Os concelhos.
2.4.1.1 Os fundamentos doutrinais da autonomia de governo das comunidades
territoriais
§ 102. A questão das relações entre o espaço e o poder fora objeto de reflexão desde a
Antiguidade. Aristóteles tinha relacionado o carácter dos homens com os dados geográficos
e climáticos; na Política, existiam também algumas sugestões sobre esta interdependência
entre as características do meio físico e o sistema constitucional das cidades. Na Idade
Média, por sua vez, imaginou-se uma relação íntima entre os vínculos da natureza e os
vínculos políticos. Por natureza, entendia-se não apenas os laços familiares, mas também os
laços que ligavam alguém ao torrão que o vira nascer, à sua “pátria”. Isto explica a
naturalidade com que era aceite a ideia de que um grupo vivendo conjuntamente num
território tivesse um governo próprio e autónomo, que incluiria a capacidade de estabelecer
as suas próprias leis. “Os povos - tinha escrito Baldo122 - existem por direito das gentes [=
direito natural], pelo que o governo dos povos é de direito natural; mas este governo não
pode existir sem leis nem estatutos. Portanto, pelo mesmo facto de que os povos existem,
têm os povos em si mesmos a capacidade de governo, tal como qualquer animal se rege
pelo seu espírito e alma”. Baldo tomava “povo” no sentido geral de comunidade territorial,
mesmo de âmbito menor do que o reino. Daqui decorria que esta capacidade de se governar
a si mesmo (iurisdictio) e de editar as suas normas jurídicas próprias (iura propria, direitos
próprios; statuta, estatutos) era geralmente atribuída a qualquer comunidade humana com
identidade territorial própria, desde a aldeia ao reino (aldeia123, cidades124, comarca125,

121 Objeto de ensino separado, logo no início do ensino de direito pátrio (Ms. 1824, 1988 e 1989
da Livraria do ANTT: "Systema de Direito Público de Portugal Feiro pelo D.or José Joaq. Vieira
Godinho, lente na Cadeira de Direito Pátrio na Univcrsidade de Coimbra, D.or na, Faculdadcs de
Cânones e Leis: Collegial do Real Colleção de S. Pedro na mesma Universdadc. etc. Escripta por seu
discípulo José Alvares da Fonseca e Costa no anno de 1777 e corregida no de 1778").
122 Citado por F. Calasso, Medioevo dei diritto, cit., 501.

123 Pagus ou villa era a povoação onde não havia nem governo nem tribunal próprio, ou seja, o

agregado desprovido de autonomia jurisdicional. Quanto muito, podia existir algum magistrado ou
oficial, com poderes delegados pelos magistrados da circunscrição político-administrativa em que se
inserisse. Em Portugal, aldeias eram os “casais”, “lugares” ou, mesmo, as freguesias (que apenas
tinham organização político-administrativa eclesiástica). No entanto, as Ordenações (Ord. fil.,1,65,73/4)
previam a existência de juízes vintaneiros ou pedâneos, delegados dos juízes ordinários do concelho,
em aldeias maiores, com atribuições judiciais sobre causas de pouco valor.
124 As cidades eram as circunscrições com autonomia de governo. O direito conhecia uma

gradação entre elas, consoante o âmbito dessa autonomia (cf. António Manuel Hespanha, As vésperas
[…], ed. de 1986, cit., II.3). Na época moderna, o título de cidade era atribuído apenas a certos
aglomerados urbanos dotados de certa grandeza, definida por diversos critérios, dos quais se
destacava o ser sede de bispado (cf. António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., ed. de 1986,
II.3). Em termos mais gerais, porém, cidade era qualquer povoação com jurisdição separada, ou seja,

48
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
província126). No espaço de um reino, esta generosa atribuição de prerrogativas políticas
colocava a questão de compatibilizar a jurisdição dos corpos territoriais inferiores com a
jurisdição real.
§ 103. Francisco Suarez no seu tratado sobre as leis127 aborda esta compatibilização
distinguindo dois tipos de comunidades, as perfeitas, que se bastavam a si mesmas128, e as
imperfeitas, que necessitavam do concurso de outras para o desempenho das suas funções
sociais. Só as primeiras disporiam de um poder legislativo ilimitado (pleno). Quanto às
segundas, o princípio geral era o de que todas as comunidades territoriais “cidades” teriam
capacidade de legislar (i.e., de editar estatutos), desde que proporcionada ao âmbito da sua
jurisdição (ou seja, relativamente aos seus vizinhos, às coisas situadas no seu território, aos
atos aí praticados, aos crimes aí cometidos) e que respeitasse as competências legislativas
reservadas ao príncipe129. De qualquer modo, prossegue Suarez - agora em polémica com a
posição de Baldo antes citada no sentido da existência de uma jurisdição natural em todos
as comunidades territoriais -, os estatutos das cidades que tenham reconhecido um superior
e para ele tenham trespassado o seu poder político originário necessitavam de aprovação do
príncipe; aprovação que podia ser conferida caso a caso, por lei geral ou pelo uso e costume
longamente praticados. Como se vê, Suarez, contemporâneo das grandes monarquias da
Época Moderna, não pode já aceitar uma doutrina tão generosamente pluralista e
descentralizadora como a de Baldo; daí que exclua dos poderes de estatuição das
comunidades as matérias reservadas ao príncipe (regalia). Mas, sobretudo, que exija o
acordo deste para conferir validade aos estatutos locais. Em todo o caso, como se contenta
com um acordo tácito, indiciado por um uso longo e inveterado dos estatutos sem oposição
do príncipe, isto equivale a admitir que este tem que respeitar o direito longamente usado
nas comunidades locais, ou seja, a sua organização, os seus costumes, os seus estatutos (v.
cap. 2.5.6) 130.

com autonomia de governo e de jurisdição; a que correspondia, no plano institucional, um órgão de


governo coletivo (em Portugal, uma câmara e juízes). Logo, o que a doutrina jurídica dizia, em geral,
para as civitates aplica-se, entre nós, aos concelhos (oppida, ou terras “com jurisdição separada”).
125 A comarca correspondia ao âmbito territorial da jurisdição de um corregedor (“correição”).

Rigorosamente, não compreendia as terras isentas de correição. Mas, na linguagem vulgar, a palavra
correição designava um território contínuo encabeçado pelo cabeça de correição (cujos limites
coincidiam com os da provedoria respetiva), ainda que dentro dele existissem terras senhoriais isentas
(António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., ed. de 1986, II.3). Por extensão, também acontecia
chamar-se comarca às ouvidorias senhoriais.
126 A “província” era, em geral, a circunscrição atribuída à jurisdição de um magistrado. Em todo o

caso, o termo aplicava-se também a uma circunscrição com uma identidade apenas “natural”,
proveniente das características do ambiente físico e do temperamento das suas gentes. Em Portugal,
as províncias (Entre Douro e Minho, Trás-os-Montes, Beira, Estremadura, Alentejo e Algarve) não
tinham expressão institucional, salvo, a partir dos meados do séc. XVII, no domínio militar
(governadores [de armas] das províncias). Cf., sobre o conceito de província, António Manuel
Hespanha, As vésperas […],ed. de 1986, cit., II.3, sobre a sua identidade corográfica, Ana Cristina
Nogueira da Silva e A. M. Hespanha, “O quadro espacial” […], cit...
127 Tractatus de legibus […], cit..

128 E a que corresponderiam os reinos e aquelas cidades (como as repúblicas de Veneza, de Génova, etc.)
que não reconheciam superior (qui superiorem non recognoscunt).
129 Cf. Suarez, Tractatus de legibus […], cit., III, c. 9, n. 17.
130 As mesmas restrições se notam quanto à questão de saber se o direito ou os estatutos locais

49
As jurisdições e o direito.
2.4.1.2 Posturas, costumes locais e lei
§ 104. Em Portugal, todas estas questões foram tratadas pelos juristas. Porque, apesar
de não se conhecerem, aqui, pretensões de autonomia absoluta das cidades (dos concelhos)
em relação à coroa, o que é certo é que não eram raros os conflitos em tomo das
prerrogativas da coroa e dos seus magistrados (nomeadamente, dos corregedores) quanto
aos ordenamentos jurídicos locais (posturas, costumes).
§ 105. Quanto à capacidade estatutária das cidades, a questão estava resolvida nas
próprias Ordenações. Na verdade, o tit. 1,66,pr. dispunha que competia aos vereadores (à
câmara) ter o “carrego de todo o regimento da terra [...], porque a terra e os moradores dela
possam bem viver”, especificando depois (§ 28 ss.) que “proverão as posturas, vereações e
costumes antigos da cidade, ou villa; e as que virem são boas, segundo o tempo, façam-as
guardar, e as outras emendar. E façam de novo as que cumprir ao prol e bom regimento da
terra”. Claro que se podia pôr a questão (doutrinal) de saber se este poder estatutário era
originário ou dependente de concessão régia. Mas, fosse como fosse, ele estava
estabelecido na lei, impondo-se aos oficiais régios. De facto, as Ordenações também
dispunham que “as posturas, e vereações, que assim forem feitas [i. e., com audição da
câmara, segundo um processo estabelecido no § 28], o corregedor da comarca não lhas
poderá revogar, nem outro oficial ou desembargador nosso, antes as façam cumprir e
guardar” (§ 29). O rei, esse sim, poderia alterá-las se as julgasse inconvenientes, como podia
alterar a lei; por isso se determinava que os corregedores, no caso de depararem com
algumas posturas, “prejudiciaes ao povo e bem comum” dessem disso conta ao rei,
presumindo-se que ele escreveria à câmara insinuando a revogação delas, ou mesmo que
as revogaria ele próprio. O rei proveria pelo Desembargo do Paço, o seu tribunal “de Graça”.
§ 106. Apesar deste reconhecimento da capacidade estatutária dos concelhos, o direito
continha certas regras limitativas. Por um lado, as posturas não poderiam contemplar
matérias cuja regulamentação estava reservada ao rei (regalia), como a criação de
monopólios (estancos) ou a imposição de tributos gerais. Por outro lado, estando a
capacidade de autogovemo dos concelhos ordenada ao bem particular da terra, não
poderiam estes editar normas de âmbito geral. Por fim, as posturas não poderiam ofender
direitos concedidos em geral, nem tomar ilícito o que, aliás, fosse lícito131. É a partir destas
regras que se estabelece a casuística daquilo que as câmaras podiam ou não regular por
postura132. O carácter aparentemente humilde dos temas regulados não nos deve iludir
quanto à importância destas normas nas comunidades locais. De facto, que há de mais
decisivo para a vida de comunidades agrárias do que essas questões de águas, de pastos,
de regimentos dos mercados e das atividades económicas de que tratam as posturas?
§ 107. Uma outra questão era a de saber se as posturas podiam contrariar a lei geral.
As Ordenações (Ord. fil.,1,66,29) declaram nulas as posturas que “forem feitas, não
guardada a forma” nelas estabelecidas (i. e., as feridas de vício formal, quanto ao seu
processo de feitura: v. g, não votadas em câmara). Mas não estende o mesmo princípio às

podem revogar a lei geral. Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., II.4.
131 Mas admitia-se que, obtido o acordo geral, nos termos prescritos nas Ordenações (Ord.

fil.,1,66,28), se estabelecessem penas e multas, se proibisse ou obrigasse à venda, se estabelecessem


regimes obrigatórios de pasto, de rega, etc.. Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., II.4.
132 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 5 (ad Ord. fil.,1,66,28), c. 4; João

Baptista Fragoso, Regimen […], 1, 1, 7, d. 19,§ 1.

50
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
que contradigam, na substância, o disposto na lei régia. Em todo o caso, a doutrina
interpretava esta disposição extensivamente, extraindo daqui o princípio de que as posturas
“não podiam contradizer as leis superiores”133. No entanto, a ficção de que as posturas
vigoravam com o acordo tácito do rei, uma vez feitas com o concurso dos juízes locais,
representantes do monarca, jogava neste caso a favor do direito local, mesmo que este
fosse contrário à lei geral. De facto, a postura que contrariasse a lei era como que uma
derrogação de uma norma geral num âmbito local, feita com o acordo tácito do rei, mantendo
com o direito do reino a mesma relação que, em termos gerais, o direito próprio mantinha
com o direito comum-. O mesmo se podia dizer dos costumes
2.4.1.3 Jurisdição concelhia e jurisdição senhorial.
§ 108. A jurisdição dos concelhos também se impunha à jurisdição dos senhores das
terras, donatários da coroa (v., a seguir, cap. 2.4.3). Como a jurisdição local era dos
concelho e não do rei, ele não a podia doar. Portanto, a jurisdição senhorial sobre as terras
cujo senhorio tivesse sido doado era apenas a faculdade de o senhor (ou os seus ouvidores)
conhecerem por apelação das decisões dos juízes das terras, dando recurso, por sua vez,
para o tribunal da corte134.
2.4.1.4 Magistrados e oficiais dos concelhos.
§ 109. Um outro aspeto do autogoverno era constituído pela autonomia concelhia na
escolha dos magistrados e oficiais locais, bem como pela forma autónoma e plena com que
estes desempenhavam as suas funções. Explicar uma e outra coisa supõe, no entanto, uma
breve descrição das magistraturas, órgãos e ofícios dos concelhos.
§ 110. Podemos sistematizar os oficiais locais em várias categorias. A primeira será a
dos oficiais de governo. Deles fazem parte, desde logo, os oficiais de governo, que integram
a câmara concelhia.
§ 111. Comecemos pelos vereadores. De acordo com as Ordenações Filipinas (Ord.
fil.,1,66), competia, em geral, aos vereadores “ter cargo de todo o regimento da terra, e
porque a terra, e os moradores della possão bem viver” (Ord. fil.,1,66, pr.)135. Os vereadores
eram eleitos pelos homens bons do concelho pelo sistema dos pelouros descrito nas
Ordenações136, embora a prática se afastasse, por vezes, do sistema legal. Basicamente, o

133 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 5 (ad Ord. fil.,1,66,28), c. 7, n. 2.
134 V. Ord. fil.,2,45, 50 e 3,71; cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9 (ad Ord.
fil.,2,28, rubr), n. 82 ss. (p. 306). O princípio de que aos senhores cabia apenas a jurisdição de recurso
fora já estabelecido em Portugal por uma lei de 1372. Cf., sobre isto, António Manuel Hespanha,
História das instituições [...], cit., 283.
135 Competência que a lei (Ord. fil.,1,66), seguidamente, miudamente especifica, em atribuições

do domínio político (defesa das jurisdições do concelho, n. 13; elaboração ou modificação de posturas,
n. 28 ss.); do domínio económico - no sentido alargado que a palavra tem na linguagem política
moderna (guarda e gestão dos bens do concelho, ns. 2, 6, 12; supervisão das obras do concelho, n. 24;
fomento da arborização, n. 26; garantia do abastecimento, n. 8; tabelamento dos preços e dos salários,
n. 32 s.); do domínio financeiro (decidir sobre despesas do concelho e fazê-las escriturar, propor aos
corregedores ou Desembargo do Paço o lançamento de fintas, gerir fundos especiais, ns. 35 ss., 40
ss., 44 ss.); do domínio judicial (julgar os feitos de almotaçaria e de injúrias verbais, n. 5). Para
enumeração exaustiva e comentário, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 5 (ad Ord. fil., 1,
66).
136 Ord. fil.,1, 67. “Pelouros” eram bolinhas de cera nas quais se metia um papelinho com o nome

51
As jurisdições e o direito.
sistema era o seguinte: seis “eleitores”, escolhidos de entre os mais aptos pela elite local,
elaborava uma lista das pessoas “que mais pertencentes lhes parecerem para os carregos
do concelho”137. Confrontadas as listas e apurados os que mais votos tinham para cada
magistratura ou ofício, os seus nomes eram escritos numa nova lista (“pauta”) e tirados à
sorte os conjuntos de magistrados ou oficiais para o próximo triénio. Os não sorteados
ficavam para os triénios seguintes, até se esgotarem os nomes constantes da “pauta” (cf.
Ord. fil.,1,67). Como se vê, este sistema garantia aos notáveis locais (meliores terrae, “gente
da governança”) a ocupação ou distribuição das magistraturas por apaniguados seus.
Nalgumas terras, normalmente nas mais importantes, a escolha final parece ter passado a
ser, frequentemente, feita na corte (Desembargo do Paço), para onde eram enviadas as
pautas138. Noutras terras vigoravam costumes locais diferentes. Noutras, ainda, eram os
senhores que nomeavam as justiças, embora esta faculdade carecesse de doação régia
expressa.
§ 112. Quer a escolha fosse local ou não, os vereadores e as “justiças” do concelho,
uma vez investidos, tinham uma área autónoma de competência prevista na lei e garantida
pelo direito contra a usurpação. E, na legislação e jurisprudência seiscentista e setecentista,
são frequentes as determinações no sentido de se respeitar a autonomia desta área
jurisdicional. Tais determinações dirigiam-se, nomeadamente, aos corregedores ou aos
poderosos locais, assim como - por ocasião das guerras da Restauração e da consequente
tendência para a militarização da administração, pelo menos nas zonas de guerra - aos
governadores de armas das províncias. Mas também existem testemunhos de
independência das câmaras em relação aos donatários, inclusivamente àqueles que as
nomeavam ou confirmavam.
§ 113. Os três139 vereadores, com os juízes e, eventualmente, com os mesteres,
formavam a câmara. Ao lado dos vereadores, e eleitos pelo mesmo sistema, existiam os
almotacés140, com competência especializada no domínio do abastecimento e da
regulamentação edilícia. Eleito era, ainda, o procurador do concelho141, a quem competia
agir em nome deste em juízo ou fora dele142.
§ 114. Estes ofícios concelhios eram “honorários”. Ou seja, desempenhados por
titulares eventuais (e não de carreira) escolhidos pelos povos e não remunerados. O
interesse do desempenho dos cargos estaria, então, no prestígio que traziam. Mas também,
num plano menos imaterial, nas possibilidades de, usando da situação de preeminência
social e política que eles garantiam, obter vantagens económicas diversas143.

de um conjunto de juízes, vereadores, etc.


137 Ou seja, para juízes, para vereadores, para procurador, para tesoureiro, para escrivão da

câmara, para juiz e escrivão dos órfãos (onde fossem feitos por eleição) ou para quaisquer outros
oficiais que costumassem ser eleitos (Ord. fil.,1, 67, pr.).
138 Sobre a evolução do sistema de eleições e justiças durante os séculos XVII e XVIII, Cf.

António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., II.4.


139 Nas terras mais pequenas era muito comum haver apenas dois vereadores (e um só juiz, em

vez de dois).
140 Ord. fil.,1,69.

141 Ord. fil.,1,69.


142 Ord. fil.,1,70,2.
143 Sobre os tipos de vantagens auferidas pelos magistrados camarários, v. António Manuel

52
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 115. A panóplia dos oficiais “políticos” do concelho (na aceção do termo na Época
Moderna) era completada com os escrivães da câmara e escrivães da almotaçaria e com
uma série de funcionários subalternos. Quanto ao escrivão da câmara144, era o escrivão
ordinário do concelho, encarregado de reduzir a escrito o expediente da vereação. O
escrivão da almotaçaria, por sua vez, era o funcionário encarregado de escrever perante os
almotacés, nomeadamente em matéria de coimas e achadas, de almotaçaria, de pesos e
medidas145.
§ 116. Um outro grupo de funcionários locais era o dos oficiais de justiça.
§ 117. Dele faziam parte, desde logo, os juízes, cujas funções146 ultrapassavam aquilo
que hoje se entende ser a função jurisdicional. De facto, para além das funções de
administração da justiça147, os juízes tinham atribuições no domínio da manutenção da
ordem148, da defesa da jurisdição real149, da contenção dos abusos dos poderosos, da polícia
(nomeadamente, das estalagens); das batidas aos lobos; para além de deverem assistir os
vereadores e almotacés150 no exercício da sua jurisdição especial em casos de injúrias a
almotacés. A legislação extravagante vai progressivamente confiar-lhes novas atribuições,
nomeadamente aos juízes de fora, que, com os corregedores, são, em Portugal, os pivots
periféricos da administração real151.

Hespanha, As vésperas [...], cit., II,4.


144 Ord. fil.,1,71.

145 Dos restantes funcionários da administração concelhia ocorrentes nas fontes, referiremos,

como oficiais menores ou executivos, o meirinho do concelho, encarregado de fazer executar as


decisões dos órgãos dos concelhos e de fazer observar as posturas e regimentos locais; o porteiro do
concelho, encarregado das relações entre a câmara e o público ou outros órgãos; o tesoureiro do
concelho (Ord. fil.,1,70), encarregado de arrecadar as receitas do concelho e de efetuar as suas
despesas; os recebedores, cobradores, mordomos. Como oficiais especializados, os escrivães e
almoxarifes das achadas, que se encarregavam, em alguns concelhos, de parte das funções dos
escrivães da almotaçaria (escrivaninha do gado achado nos lugares e tempos defesos), os escrivães e
recebedores das feiras - provavelmente, ou oficiais encarregados de escreverem e receberem as taxas
concelhias pagas pelos feirantes, ou oficiais encarregados da escrituração e arrecadação das sisas
(inclino-me para a primeira hipótese) -, os oficiais das fontes (escrivães, mestres, olheiros) ou das
obras (escrivães, meirinhos, vedores).
146 Ord. fil.,1,68.

147 No domínio das funções jurisdicionais, competia aos juízes a jurisdição ordinária do concelho,

julgando definitivamente dentro das suas alçadas (valores destas: Ord. fil., I,68,4 ss.) e dando apelação
e agravo, daí para cima, para a Relação do distrito. Além do título das Ordenações que vimos citando,
há legislação avulsa sobre os juízes. A principal pode ser encontrada em Manuel Fernandes Thomaz,
Repertorio geral […], s.v. “juiz”.
148 Ord. fil.,1, 68, ns. 3 ss., 13 a 15 e 39 ss..

149 Ibid., n. 16 ss..

150 Ibid., n. 23 ss.


151 Cf., por exemplo, a provisão de 13.1.1580, que os encarrega do lançamento das sisas; o
regimento de 23.1.1643 (art.º 10.°), que lhes comete a superintendência da cobrança do real de água;
a CR de 15.12.1644 que lhes comete a substituição dos provedores nas terras da rainha. No séc. XVIII,
com a intensificação da política de controlo da periferia, chovem sobre eles novos encargos: vigilância
do contrabando, da edição de panfletos satíricos, julgamento dos feitos da alfândega na falta de juiz
próprio, inspeção dos passaportes, arrecadação do subsídio literário, delegados locais do intendente de
polícia, julgamento dos feitos das coutadas, etc..

53
As jurisdições e o direito.
§ 118. Os juízes podiam ser, como se sabe, oficiais honorários - não letrados, eleitos
pelos povos de acordo com o processo previsto nas Ordenações a que já nos referimos, não
remunerados - ou oficiais de carreira - letrados, e de nomeação régia. No primeiro caso,
estamos perante os juízes ordinários; no segundo, perante os juízes de fora. Contrariamente
a uma ideia corrente, as justiças de uma esmagadora maioria dos concelhos eram, ainda nos
séculos XVII e XVIII, justiças honorárias. Nos meados do séc. XVII, havia 65 juízes de fora
num total de mais de 850 concelhos de Portugal continental, o que corresponde a dizer que
apenas 8% das terras com jurisdição separada tinham justiças de carreira. Nos restantes
concelhos existiam os dois juízes da Ordenação, não letrados e honorários152 Durante a
segunda metade do século XVIII, o número dos juízes de fora aumenta, mas nunca
ultrapassando a quota de 20 %.
§ 119. Das estruturas do oficialato da justiça local faziam ainda parte, os tabeliães e
escrivães, os contadores, distribuidores e inquiridores e outros oficiais menores (porteiros,
carcereiros, etc.). A função dos tabeliães ou escrivães era a de reduzir a escrito os atos
jurídicos ou judiciais. As Ordenações distinguiam os tabeliães das notas, encarregados de
redigir os instrumentos jurídicos que carecessem de fé pública (Ord. fil.,1,78), e os tabeliães
judiciais153, encarregados da redação dos atos judiciais praticados perante os juízes locais
(Ord.fil.,1,79)154. Embora a maior parte dos atos jurídicos não fosse reduzida a escrito155, os
tabeliães desempenhavam, neste mundo local, um importante papel de difusão de fórmulas
e princípios (em versão vulgarizada) da cultura jurídica local (v. Restrições da
naturalidade.3.1.2.2). O mesmo papel de mediação que, no domínio da cultura religiosa, era
desempenhado pelos párocos. Não admira, portanto, que as fontes da época os descrevam
frequentemente como verdadeiros centros do poder institucional local, enquanto assessores
dos juízes e consultores jurídicos dos particulares. Os contadores (Ord. fil.,1,91) são os
oficiais encarregados de contarem as custas dos processos. Os inquiridores (Ord. fil.,1,86)
inquirem as testemunhas. Os distribuidores (Ord.fil.,1,85), por sua vez, têm a função de
distribuir as escrituras ou os feitos entre os vários tabeliães do concelho, para evitar que a
concorrência entre eles promova formas de angariação de clientes contrárias à deontologia e
ao interesse geral. Trata-se, em todos os casos, de ofícios de carreira, de tipo patrimonial
(como os dos tabeliães) e de rendas exclusivamente emolumentares. Apareciam, finalmente,

152 Um dos argumentos tradicionais das teses que descrevem o sistema político moderno como

“centralizado” é justamente a da substituição dos juízes ordinários por juízes de fora, de nomeação
régia. O que acaba de ser dito mostra até que ponto tais teses são, pelo menos neste particular,
infundadas. Para os finais do séc. XVIII, v. Nuno Gonçalo Monteiro, “As comunidades territoriais”, cit.,
pg. 310.
153 O exercício da profissão estava sujeito a exame pelo Desembargo do Paço, destinado a

verificar “se bem escrevem, e bem leem, e se são pertencentes para os officios” (“Reg. dos
desembargadores do Paço”, no fim do liv. I das Ord. fil., n. 71), sendo-lhes passada carta pelo mesmo
tribunal (n. 56), embora o depósito do seu sinal público seja feito na relação do distrito (Ord. fil.,1,44;
cf., ainda, para as terras senhoriais, Ord. fil.,2,45,16).
154 Uma ideia do tipo de atos praticados pelos tabeliães e notários e da frequência de cada um

destes tipos na época a que nos reportamos pode ser formada a partir da publicação Index das notas
de vários tabeliães de Lisboa entre os anos de 1580 e 1747, Lisboa 1931-1935,4 vols.; ou em “lndice
dos livros de notas do escrivão Christovam d' Azevedo”, Boletim de trabalhos históricos. Arquivo
Municipal Alfredo Pimenta, 18(1956), 188; 19(1957),183; 23(1963) 1005; 24(1964) 100; 25(1965) 147.
155 Sobre o tema e suas consequências histórico-culturais, António Manuel Hespanha, As

vésperas [...], cit., 439 ss..

54
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
outros oficiais subalternos das justiças concelhias. Os carcereiros (Ord. fil.,1,77) eram os
mais frequentes. Mas, no mesmo ramo de atividade, existiam também os levadores dos
presos, encarregados do transporte dos presos, nomeadamente para as cadeias comarcãs.
Mais raros eram os escrivães das aldeias e os escrivães dos testamentos, espécie de
desdobramento dos escrivães notariais e judiciais do concelho, com funções nas aldeias
mais distantes ou isoladas (v. Ord. fil.,1,78,20).
§ 120. Aderindo a este mundo dos oficiais locais, os advogados, quer os formados em
Direito, quer os procuradores ou advogados do número (v. cap. 7.1.8), que, na linha dos
antigos vozeiros medievais, asseguravam a representação judiciária no processo judicial
tradicional e não letrado156. Do mesmo tipo eram os chegadores das demandas ou
avindores, cuja função era a de promover o acordo entre as partes157.
§ 121. Um outro ramo do oficialato local, ainda próximo do anterior, é o dos órfãos (v.
cap. 3.3.2.1.). As Ordenações dispunham, de facto, que em todas as terras com mais de 400
vizinhos houvesse magistrados encarregues da cura dos interesses dos órfãos, em
homenagem à ideia de que ao poder competia a proteção daqueles que, em virtude de uma
diminuição da sua capacidade (capitis deminutio) ou de condições sociais concretas, não
estavam capacitados para assumir pessoalmente a defesa dos seus interesse (incapazes,
pessoas coletivas, pobres, viúvas, órfãos, dementes, pródigos, ausentes e, até, defuntos)158.
O principal dos oficiais dos órfãos era o juiz dos órfãos, eleito nos termos em que os eram os
juízes ordinários. A ele competia organizar o cadastro dos órfãos e vigiar a administração
dos seus bens pelos respetivos tutores (ns. 3 e 22), organizar os inventários de menores (n.
4 ss.), prover quanto à criação, educação e casamento dos órfãos (n. 10 ss.) e julgar os
feitos cíveis em que fossem parte órfãos, dementes ou pródigos e os feitos sobre inventários
e partilhas em que houvesse menores (n. 46 ss.)159. Auxiliares dos juízes dos órfãos são os
escrivães dos órfãos (Ord. fil.,1,89) que deviam manter o registo dos órfãos (n. 3), escrever
nos inventários (n. 4), nos assentos das tutorias (n. 4), nos contratos sobre bens dos órfãos
até certa valia (n. 5).
§ 122. Passando para o domínio fiscal, encontramos, ainda nos quadros do oficialato
local, os ofícios das sisas. Os oficiais das sisas estão, em geral, previstos nos regimentos
das sisas dos séculos XV e XVI160. Em virtude do regime de encabeçamento das sisas - pelo
qual os concelhos (na verdade, apenas cerca de um terço deles) tinha contratado com a
coroa o lançamento e cobrança das sisas a troco da prestação de uma quantia fixa anual
(“cabeção das sisas”) - toda a atividade de lançamento e de cobrança das sisas, bem como a
própria atividade contenciosa daqui decorrente, era da responsabilidade dos órgãos

156 V. Ord. fil., 1,48. Cf. sobre estes últimos oficiais e sobre a apreciação que deles fazia a

doutrina erudita, Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit..


157 Cf. o regimento que lhes foi dado em 20.1.1519, citado por José Anastácio de Figueiredo,

Synopsis chronologica, 1, 231/2.


158 Cf., para o nosso direito, os comentários de Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., t. 7

(ad I,87), João Baptista Fragoso, Regimen […], pt. 1, liv. 6, d. 15.
159 Dava apelação para a Relação do distrito (Ord. fil., I,88,46).

160 Artigos das sisas, de 27.9.1476 (em José Roberto […] Soisa, Systema […], cit., vol. 1, cit., pp.

205); Regimento do encabeçamento das sisas de 5.6.1572 (ibid., 278 ss.). Sobre a problemática da
data e edição destes regimentos, José Anastácio de Figueiredo, Synopsis […], cit., tom. 1, 109 e 236
ss.

55
As jurisdições e o direito.
concelhios, que deviam promover o processo de arrendamento, repartição e cobrança do
tributo (Regimento de 1572, c. 1 ss.), por intermédio de oficiais por eles apresentados161. Na
falta destes, os agentes da administração ativa, no domínio das sisas, eram, portanto, os
próprios oficiais do concelho, recorrendo-se também às justiças concelhias para a execução
dos revéis no pagamento do tributo (Regimento de 1476, c. 31)162.
§ 123. Neste capítulo das sisas, o caso de Lisboa é particular. Aí, as sisas eram
cobradas em repartições especiais (“casas”, “Sete casas”) cada qual dedicada a certos tipos
de mercadoria. Do mesmo modo, os seus aparelhos administrativo-burocráticos são também
diferentes (e mais completos)163.
§ 124. Um último grupo de oficiais locais é constituído pelos oficiais militares.
§ 125. A organização das milícias locais, ou ordenanças, data dos finais do século XVI
(regimento de 10.12.1570)164. Aí se dispunha que, sob o comando supremo do capitão-mor
(normalmente, o alcaide-mor da terra), servisse a antiga milícia concelhia, agora organizada
em companhias de ordenança às ordens de capitães, alferes e sargentos, eleitos pelos
oficiais da câmara e gente da governança (n. 1 ss.). Estamos, como se vê, perante uma
organização militar - de resto pouco efetiva antes das guerras da Restauração165 - de
carácter miliciano, sujeita a oficiais honorários e em que as tropas locais não estavam
integradas em qualquer cadeia permanente e organizada de comando.
§ 126. Isto também valia quanto aos alcaides-mores dos castelos (cf. Ord. fil.,1,74),

161 Para a escolha dos juízes das sisas cf. cap. 31 dos Artigos de 1476.
162 Detalhes suplementares em António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., II.4 e II.5 a).
163 Descrição detalhada em António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., II.4.
164 Publicado em Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 12, pp. 264 ss. (com
diplomas complementares); José Roberto […] Soisa, Systema […], cit., vol. 5, pp. 183 ss. (com outros
diplomas dos sécs. XVI, XVII e XVIII sobre a organização militar). Cf. também Mapa. Memória da
administração pública brasileira (http://linux.an.gov.br/mapa/?p=4768).
165 Logo nas cortes de Tomar de 1580, quer a nobreza, quer os povos, pedem a extinção dos

alardos e dos ofícios das ordenanças pelas “vexações” e “opressões” que traziam aos povos (cap. XXX
III do povo e XIII da nobreza). Também Manuel Severim de Faria recomendava a isenção de serviço
militar como um dos privilégios com os quais se podiam motivar os lavradores para aumentar as suas
culturas (cf. “Arbitrios pera a abundancia de pam em Portugal”, intr. e notas de Vitorino Magalhães
Godinho, em “Rev. de hist. econ. e soc.”, 5(1980), 108). São as grandes reformas militares de D. João
IV que modificam radicalmente a organização honorária da milícia (regimentos das ordenanças,
retomando a regulamentação sebástica, de 1642; criação da Junta dos Três Estados controlo
financeiro e logístico das tropas; decreto de 18.1.1643 e regimento de 9.5.1654, Col. chron. leg.
(J.J.A.S.), vol. respetivo; regimento do Conselho de Guerra, de 22.12.1644 - cf. Manuel Álvares Pegas,
Commentaria […], cit., tom. 12, pp. 279 ss. e Col. chron. leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo.; regimento das
fronteiras, de 29.7.1645 - cf. José Roberto […] Soisa, Systema […], cit., tom. 5, pp. 416 ss.; regimento
dos governadores de armas de 1.1.1650 e de 1.6.1678 - fundamental que, com os que instituem o
Conselho de Guerra e a Junta dos Três Estados, cria uma estrutura permanente de comando e
controlo financeiro e logístico, Col. chron. leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo, 59; Manuel Álvares Pegas,
Commentaria […], cit., tom. 12, pp. 284 ss.; José Roberto […] Soisa, Systema […], cit., tom. 5, pp. 180
ss. O carácter revolucionário desta nova estrutura militar fica expresso nos problemas políticos e
militares que causou e que levaram à extinção, em plena guerra, dos governadores de armas, a pedido
dos povos (em 13.3.1654; cf. Col. chron. leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo).

56
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
pois a sua importância efetiva decaíra muito com as novas conceções de estratégia166.
2.4.1.5 Dimensões do autogoverno
§ 127. A amplitude do autogoverno dos concelhos mede-se também pelo grau de
autonomia do exercício das atribuições destes oficiais. Daí que importe fazer o balanço da
sua autonomia ou dependência institucional.
§ 128. Começando pelos juízes. Os juízes concelhios eram os juízes ordinários na área
concelhia. Isto quer dizer que lhes competia, em geral, a jurisdição sobre todas as causas,
excluídas apenas as que fossem da competência de um juiz especial (como, v. g., o juiz dos
órfãos ou o juiz das sisas). Esta jurisdição era exercida com grande autonomia. De facto, não
tinham que receber ordens de qualquer magistrado régio (ou senhorial, no caso de terras de
donatários), nomeadamente do corregedor. Este apenas podia, em relação aos juízes,
verificar se estes cumpriam os seus regimentos, administrando a justiça honestamente e nos
termos das Ordenações (cf. Ord. fil., 1,58,1-6). Mas das sentenças dos juízes apenas se
podia recorrer, nos termos do direito, para as Relações respetivas, recurso que era
obrigatório, oficiosamente (“por parte da justiça”), nas causas crime de maior gravidade, que
não podiam, portanto, ser definitivamente sentenciadas a nível local. Isto quer dizer que, em
Portugal (ao contrário do que acontecia em Castela ou em França), as justiças concelhias
funcionavam (salvo no crime) de modo independente, com recurso a magistrados eleitos
localmente e jurisdicionalmente autónomos. E, como a competência jurisdicional dos juízes
superava amplamente as matérias propriamente judiciais, tal autonomia de decisão era
também o sinal de uma autonomia jurisdicional de âmbito mais vasto.
§ 129. A autonomia dos concelhos na eleição dos seus magistrados é um outro dos
pontos que caracterizam a autonomia local, mas menos decisivo do que o anterior. Na
realidade, que as magistraturas concelhias fossem formalmente nomeadas por uma entidade
estranha ao concelho (em geral, o rei ou o senhor) não diz grande coisa sobre onde residiam
efetivamente os centros de decisão, nem impedia que, depois de eleitas, estas gozem da
ampla autonomia jurisdicional antes mencionada, ficando desvinculadas da entidade que as
tinha designado e, em contrapartida, sujeitas ao controlo dos restantes órgãos concelhios167.
§ 130. Um outro aspeto da autonomia da vida institucional local era o do provimento
dos ofícios municipais. Embora houvesse uma polémica sobre o assunto, a doutrina
dominante entendia que, ainda que a concessão dos ofícios camarários pudesse ser do rei,
as câmaras gozavam, em princípio, do privilégio de os prover, privilégio que apenas podia
ser revogado nos termos gerais (ou seja, ocorrendo uma justa causa relacionada com a
suprema utilidade pública)168.
§ 131. Por último, um importante fator de autonomia ou dependência política eram as
finanças. Neste plano, a base da autonomia concelhia consistia em que o concelho pudesse
fazer frente aos seus gastos com recurso às receitas próprias. Apesar de, durante os séculos
XVII e XVIII, ter havido momentos de crise financeira que atingiram também os concelhos, o
certo é que as instituições concelhias dispunham de uma capacidade de resistência à crise

166 Cf. António Manuel Hespanha (org.). “Nova História Militar de Portugal – séculos XVI-XVII”,
cit..
167 Cf., sobre este ponto, António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., II.5.
168 Cf. alv. 28.2.1634 (JJAS). Detalhes em António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., II.5 e
Cf. 3.V.

57
As jurisdições e o direito.
maior do que as da administração central. Nestas, de facto, o volume dos gastos (com
salário ou mercês e despesas fixas de funcionamento) era relativamente grande e
incomprimível. Enquanto que, nos concelhos, como uma administração honorária ou paga
com emolumentos, as despesas fixas eram muito menores, pelo que o aparelho político-
administrativo se podia adaptar melhor aos períodos de penúria169.
2.4.1.6 O controlo do centro.
§ 132. Existiam, é certo, vínculos institucionais que colocavam os concelhos sob um
certo controlo da coroa. Estes vínculos consubstanciavam-se na ação de algumas das
magistraturas da administração periférica da coroa, nomeadamente na área do governo
político, da justiça e da fazenda.
§ 133. No domínio do governo político, os concelhos estavam sujeitos à tutela do
Desembargo do Paço, que a exercia por intermédio dos corregedores (cf. Ord. fil.,1,58)170.
Eram estes magistrados que superintendiam na administração política dos concelhos,
verificando se ela decorria de acordo com as leis e regimentos. Esta superintendência
decorria, no entanto, sob a forma de uma tutela externa e não de um verdadeiro poder de
direção; daí que os corregedores, se podiam verificar a legalidade da administração do
concelho, não podiam, no entanto, dar instruções aos seus órgãos, nem tão pouco avocar as
suas competências171. Em face do que acaba de ser dito, parece lícito concluir-se que a
eficácia dos corregedores como instrumentos de subordinação político-administrativa do
reino era relativamente modesta, pelo menos em confronto com outras experiências
europeias de constituição de níveis periféricos da administração régia. Experiências que,
como veremos, são a fonte de inspiração da nova política da administração inaugurada nos
meados do século XVIII (v. cap. 2.4.3)172.
§ 134. Outro instrumento régio de controlo da administração real eram os provedores,
encarregados de tutelar a cura dos órfãos e de outras entidades que o direito considerava
feridas de incapacidade, de que o rei era um supremo protetor (confrarias, capelas, hospitais,
cativos, defuntos e ausentes) (cf. Ord. fil.,1,62). Em relação aos órgãos concelhios, tutelavam
a atividade dos juízes dos órfãos (Ord. fil.,1,62,34/5); dos tabeliães, em matéria de “resíduos”
i.e., de bens deixados por morte para os quais não houvesse sucessor) (v. cap. cap. 5.3.1.5);
dos tesoureiros dos concelhos em matéria de rendas concelhias (Ord. fil.,1,62, 67 ss.); e dos
restantes oficiais concelhios em matéria de obras (cf. Ord.fil.,1,62,71)173. Como contadores,
estavam encarregados da inspeção das finanças dos concelhos, nomeadamente para
garantir que estes pagavam à fazenda real a “terça de obras” (v. Ord. fil.,1,62,67 ss.; 72 ss.).

169 Nuno Gonçalo Monteiro, “As comunidades territoriais” […], cit., pp. 322 ss..; Luís Nuno

Rodrigues, “Um século de finanças municipais […]”, cit..


170 Cf., para mais detalhes, António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit. II.5 c).

171 Salvo nos casos em que isto era permitido por lei, como, v.g., no caso da avocação das ações
judiciais em que fossem partes poderosos locais ou, em geral, em relação a qualquer ação, enquanto
estivesse na terra (Ord. fil.,1,58, 22-23).
172 Nas terras senhoriais isentas de correição, este controlo da coroa não tinha lugar. Nem os

ouvidores senhoriais aí assumiam as funções dos corregedores. Na verdade, entendia-se que apenas
tinha sido doado o privilégio de isenção de correição real, mas não o de os ouvidores senhoriais
exercitarem os poderes de correição.
173 Cf., para mais detalhes e indicações de fontes, António Manuel Hespanha, As vésperas [...],

cit., II. 4.

58
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 135. Tal como acontecia com os corregedores, as relações entre os diversos níveis
desta estrutura não eram, porém, de hierarquia administrativa (de “direção”), mas antes de
tutela, em que o funcionário de escalão superior se limita a controlar a atividade do de
escalão inferior por meio da reapreciação dos seus atos aquando de recurso ou da inspeção
ou residência.
§ 136. Também dos juízes de fora se poderia dizer - e efetivamente isso foi dito - que
desempenham a mesma função de controlo, tanto no plano do direito como no do governo
(já que eles presidiam à câmara). Não sublinharemos, no entanto, este aspeto, pois o
estatuto do juiz de fora é igual, no que respeita à sua autonomia em relação a cadeias
hierárquicas, ao do juiz ordinário, estando ambos apenas sujeitos a um controlo indireto, ou
através dos mecanismos do recurso, ou através da sindicância periódica destinada apenas a
verificar da observância das obrigações impostas pelo regimento174. Também a tentativa de
transformar os juízes de fora em supervisores dos juízes eleitos das terras vizinhas não
vingou até muito tarde. D. João I ensaiara-o, com o argumento de que era provável que
estes últimos não “pudessem fazer direito”. Mas, face às reações, desiste do seu intento (cf.
Ord. af.,2,59,6). Durante o século XVIII, formou-se a prática de alguns juízes de fora
exercerem jurisdição sobre concelhos vizinhos menos importantes (concelhos anexos ou
“concelhinhos”), prática que é coonestada, para os casos em que existisse, pelo alv. de
28.1.1785 (Coll. Chron. Leg. [A.D.S.], loc. respetivo.). Apesar disso, o juiz de fora apenas de
forma muito indireta servia o controlo dos poderes periféricos pelo poder central.
2.4.1.7 O poder municipal nos fins do Antigo Regime
§ 137. O pombalismo175 significou, no plano do imaginário e das estratégias de poder, a
abertura – que depois se continuará no liberalismo político - de estratégias de
“racionalização” e de disciplina da sociedade e de centralização e estadualização do poder.
Ou seja, de construção de uma sociedade regida por normas abstratas, visando o interesse
geral e disciplinada por um poder único e exclusivo, de que todos os outros eram meros
reflexos ou manifestações. Foi por isso que, se, no plano da organização social, reagiu muito
fortemente contra todas as formas de “irracionalidade”, no plano da organização política e
procurou exterminar todas as manifestações de pluralismo político, reduzindo os anteriores
polos políticos (pelo menos os mais visíveis) a simples delegações do poder do centro.
§ 138. O poder municipal não constituía uma exceção.
§ 139. O modo negativo como se encarava a administração concelhia, movida por
interesses particulares, dominada pelo arbítrio e pelo irracionalismo, privada das luzes das
novas ciências da sociedade, está bem expresso, por exemplo, em todos os preâmbulos
legislativos onde se procede a reformas territoriais176 ou em que se instituem juízes de fora.
Num alvará de 4.2.1773, em que se cria um lugar de juiz de fora, referem-se as

174 Sobre a residência (sindicância ou inspeção) dos juízes de fora e dos corregedores, feita por
um desembargador nomeado pelo rei, v. Ord. fil.,1,58, 31 ss.; 1, 60.
175 Cf. José Manuel Subtil, O Terramoto Político (1755-1759) - Memória e Poder […], cit..;

também, José Sebastião da Silva Dias, “O sentido político do pombalismo” […], cit..
176 Existem tentativas de micro-reformas territoriais durante todo o período pombalino, muitas

vezes relacionadas com planos de fomento económico (v.g., do Alto Douro e Trás-os-Montes duriense,
em 6.4.1759; Açores, em 2.8.1766; Algarve, em 18.2.1773). Só mais tarde, por volta de 1790, se
projeta uma reforma territorial geral (cf. Ana Cristina Nogueira da Silva, O Modelo Espacial do Estado
Moderno […], cit.).

59
As jurisdições e o direito.
perturbações, “que costumam nascer do governo de juízes ordinários, e de magistrados
naturais das mesmas terras, nos quais, além de faltar a ciência do direito para a boa direção
dos negócios, acrescem as paixões, que costumam produzir o amor e o ódio, em grave dano
do bem comum dos povos”. Noutro, de 23.7.1766, em que se regula a administração dos
baldios pelas câmaras, denuncia-se a irracionalidade e egoísmo dos critérios utilizados,
“repartindo-se entre si, seus parentes e amigos, os vereadores, e mais pessoas que
costumam andar nas governanças, por foros e pensões muito diminutas; praticando estas
lesivas alienações debaixo de pretextos na aparência úteis, e na realidade nocivos ao
progresso, e aumento da lavoura, e criação dos gados, à subsistência dos povos, e aos
importantes objetos, a que foram aplicadas as rendas dos concelhos”. Num outro (de
28.8.1766, em que se revoga a isenção de correição do couto do mosteiro de Arouca),
relatam-se de forma pitoresca os abusos dos poderosos e a incompetência e dependência
das justiças locais: “se acha administrada a justiça por juízes ordinários, não só leigos;
ficando os delitos mais graves sem a competente satisfação por falta das precisas
averiguações, e dos justos procedimentos; e nas causas cíveis preterida toda a ordem do
judicial; e as decisões dellas sujeitas às paixões da afeição, ou ódio; mas ainda rústicos, que
apenas sabem pôr o seu nome, e por isso dirigidos pelos advogados, escrivães, e outros
oficiais de justiça da vila, que se têm coadonado com outras pessoas seculares, e
eclesiásticas poderosas para satisfazerem as suas paixões, e interesses; de sorte que por
um abuso neles inveterado de não observarem as leis, divinas, e humanas, nem
obedecerem às minhas justiças, se têm precipitado em tais atrocidades”.
§ 140. Se consultarmos a literatura reformista dos finais do século, o quadro de críticas
é ainda mais expressivo. “O governo económico de um povo - escrevia um dos magistrados
encarregados da reforma territorial, em 1795177 - pede um manejo muito delicado, cheio de
diversas combinações, e de uma muito regulada prudência, de que são incapazes (falo
ordinariamente) os vereadores, e mais pessoas de que se compõem as tais câmaras para se
lhe abandonar a regalia de legislarem sobre objectos de tanta importância. Uma semelhante
liberdade, concedida pelas nossas leis, é incompatível com o sistema de um governo
monárquico, e própria somente ou dos antigos povos livres das cidades hanseáticas ou os
cantões suíços, em que cada um deles goza da autoridade suprema; mas alheia e
insuportável dentro de uma nação polida, em que o rei é o único legislador”. E, depois destas
considerações em que se aponta aquilo com que o racionalismo e o estadualismo
emergentes não podiam contemporizar (irracionalidade administrativa, pluralismo político),
remata-se com uma proposta radical, mas muito característica: as câmaras deveriam ficar,
desde logo, privadas de toda a jurisdição, “reduzidas a simples corpos representativos,
aonde se debateriam os interesses públicos, económicos e políticos, e os seus assentos
seriam enviados ao magistrado territorial, a quem tocaria a sua execução”178.
§ 141. Às críticas nem sequer escapavam os concelhos sujeitos a juízes de fora179, o
que prova aquilo que antes se disse sobre a incorreção que seria considerar estes
magistrados, com o estatuto que tinham, como instrumentos de centralização do poder. Um
outro publicista da mesma época, autor de uma memória sobre a comarca de Leiria180,

177 José de Abreu Bacelar Chichorro, Memoria economico-politica da província da Extremadura


[1795], cit., 101.
178Cf. ibid., 102.

179 Cf. ibid., 93.

180 Lourenço José dos Guimarães Moreira, “O espírito da economia política […] principalmente

60
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
segue a mesma linha, censurando a generosidade com que as leis e ordenações tinham
atribuído às câmaras uma jurisdição, nomeadamente uma capacidade de legislar, “mais
própria para o governo das cidades livres da Holanda ou dos cantões suíços, cada um dos
quais tem o seu poder legislativo, do que para Portugal, aonde não pode haver outro
legislador que não seja o mesmo soberano”. O projeto, aqui, é o de “incumbir S. Magestade
a direcção geral da Economia Publica a hum Ministro de Estado que por meio dos
intendentes provinciais faça observar, em todo o reino, as suas reais determinações nesta
matéria. Estes ministros poderiam ter nas diferentes vilas dos seus distritos uns comissários
ou subdelegados, que observando as suas instruções e cumprindo as ordens dos soberanos,
se não afastassem jamais do uniforme plano que tivesse formado para o nosso governo
interior. As câmaras ficariam sendo, então, o que elas deveriam ser: uns corpos
representativos da cidade ou vila, para requererem e procurarem tudo o que pertencesse ao
público”.
§ 142. Mas, mesmo reduzidas as câmaras a isto, o plano ainda lhes guardava uma
última gota de fel: “Os comissários, que seriam as pessoas mais inteligentes das terras,
passariam depois a camaristas, ou vereadores, já instruídos das intenções de S. Majestade.
As novas Luzes instruiriam os seus colegas; o povo conheceria, então, os verdadeiros
interesses. A nação inteira reuniria os seus esforços para o bem: ela encheria de bençãos o
monarca, autor da sua felicidade” 181. Em todo o caso, estes ousados planos não terão
execução antes das reformas liberais (de 1832). No período pombalino e mariano, os
progressos de facto institucionalizados acabam por ser pequenos. São, é certo, criados
muitos lugares de juízes de fora (cerca de 40 entre 1750 e 1800). São ensaiadas, como se
disse, algumas reformas territoriais. Proíbe-se que os vereadores mais velhos (“juízes pela
Ordenação”) dos concelhos em que há juízes de fora conheçam definitivamente das causas
durante a ausência deles, devendo esperar o seu regresso para que lhes seja posto termo
(alv. 5.9.1774). Em todo o caso, a providência de maior vulto é tomada em 1785 (alv. de
18.1), quando se estabelece que os juízes ordinários dos concelhos sujeitos à tutela de um
juiz de fora não possam despachar os feitos, por si ou por assessores, antes devendo
mandá-los “aos juízes de fora, a qualquer das villas, em que existirem, para os
despacharem”, limitando-se a publicar as sentenças. Se efetivamente aplicada, esta
providência limitaria as atribuições dos juízes ordinários ao âmbito das decisões de mera
gestão burocrática e executiva do processo. Em contrapartida, uma providência um pouco
posterior, isenta os concelhos da suprema inspeção do lntendente-Geral da Polícia, então
criado e erigido em peça chave da polícia interior do reino (aviso de 29.1.1798).
2.4.2 A administração da Coroa.
§ 143. A ação política requer a disponibilidade de meios: financeiros, logísticos,
institucionais, humanos, para não falar de outros habitualmente menos notados, como os
meios simbólicos (saberes, discursos, iconografias). O presente capítulo visa justamente
averiguar a estrutura de uns desses meios os aparelhos administrativos da coroa, quer da
administração central (curial, palatina, cameral), quer da administração periférica. Nele
procuraremos distinguir os seus vários ramos, o tipo de atividade político-social que levavam
a cabo, as suas dependências. Observaremos, depois, a importância quantitativa de cada

em Leiria” […], cit.; v. ainda José Cf. Capela (org.), Política, administração, economia e finanças
públicas portuguesas (1750-1820) […], cit., 241-242.
181 ibid., 28.

61
As jurisdições e o direito.
ramo e as principais assimetrias regionais182. Afinal, procuraremos fazer um balanço da
influência do funcionamento do aparelho político-administrativo no desenho do sistema do
poder.
2.4.2.1 O modelo jurisdicionalista do poder.
§ 144. A expressão “administração da coroa” corresponde, nesta sociedade de poderes
concorrentes que é a sociedade de Antigo Regime, à área de ação do poder do príncipe.
§ 145. Esta área não é, como veremos, homogénea; mas a sua organização interna
também pouco tem a ver com as sistematizações - “por matérias” - que hoje fazemos da
atividade governativa. É certo que, já desde o século XVI, se podem identificar grandes
zonas de atuação dos agentes da coroa (nomeadamente, a “justiça”, a “fazenda”, a “milícia”).
Mas esta classificação, aparentemente temática, não é mais do que o resultado de uma
tipologia mais funda de atos de governo, que decorre da imagem do rei (das imagens do rei)
e das correspondentes representações sobre a finalidade das suas atribuições e o modo de
as levar a cabo. Estas imagens constituem, para toda a Época Moderna, uma constante;
mas a sua combinação e hierarquização vão evoluindo, provocando novos entendimentos da
atividade governativa da coroa, alguns deles com tradução institucional, processual e de
pessoal político. É este complexo imaginário e as tipologias de organização e processamento
administrativos que lhe estão conexas que descreveremos nos parágrafos seguintes.
2.4.2.1.1 A Justiça.
§ 146. É sabido, desde a clássica obra de E. Kantorowicz, que, no rei, coexistem vários
corpos. Mas aplicam-se-lhe, também, várias imagens: a de senhor da justiça e da paz, a de
senhor da graça, a de chefe da casa (de grande ecónomo), a de protetor de religião, a de
cabeça da república e, como tal, de seu racionalizador e disciplinador. Cada uma destas
imagens lhe atribuía certas funções e lhe garantia certas prerrogativas. Mas cada uma delas
implicava tecnologias próprias de governar: (i) formas de organização dos aparelhos de
governo; (ii) técnicas de processamento dos assuntos; (iii) categorias intelectuais de cálculo
político; (iv) perfis de agentes político-administrativos.
§ 147. Todas as fontes doutrinais medievais e da primeira época moderna nos falarão
da justiça como primeira atribuição do rei. Na verdade, e de acordo com a teoria corporativa
do poder e da sociedade, a função suprema do rei era “fazer justiça” - i. e., garantir os
equilíbrios sociais estabelecidos e tutelados pelo direito -, do que decorreria
automaticamente a paz183. A justiça era, portanto, não apenas uma das áreas de governo,
mas a sua área por excelência (remota iustitia, regna latrocinia [abandonada a justiça, os
reinos são organizações de ladrões], havia escrito S. Agostinho, Civitas Dei., 4,4). Tal como
no domínio da teoria escolástica das virtudes ela desempenhava um lugar central, também
na teoria tradicional do governo a justiça era “a arte das artes e alma do governo”184, o

182 Para este efeito, socorremo-nos dos dados averiguados, para os meados do século XVII, no

meu trabalho As vésperas do Leviathan [...], cit. (alguns dos dados só foram publicados na ed. de autor,
de 1986, agora em https://drive.google.com/?utm_source=pt-
PT&utm_medium=button&utm_campaign=web&utm_content=gotodrive&usp=gtd&ltmpl=drive&authuser
=0#folders/0BxG11aEdnDQ2Zlh1aVdidXBiVDQ
183 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., Cf. 2; também, António Manuel

Hespanha, “Justiça e administração entre o Antigo Regime e a Revolução”, cit., 137.


184 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 1, in proem., gl. 23, n. 2.

62
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
primeiro cuidado do príncipe, que, para a realizar, deve atribuir a cada um - república ou
particulares - aquilo que lhe é devido185, respeitando, ademais, nessa atribuição, uma
particular metodologia organizacional, processual e intelectual que garantisse a ponderação
adequada dos vários pontos de vista.
§ 148. Esta conceção jurisdicionalista do poder186 não se esgotava, no entanto, na
composição de conflitos de interesses (i.e., naquilo que nós hoje identificamos com o “termo
justiça”), integrando também algumas das prerrogativas que, nos nossos dias, incluiríamos
na “administração ativa”. O conceito chave era, para este efeito, o de merum imperium, em
que a doutrina do ius commune clássico (séculos XII-XIV) incluía as atribuições que o juiz
exercia oficiosamente tendo em vista a utilitas publica (“ubicumque concernit et respicit
publicam utilitatem”, Asinio, século XVII) (v. caps. 2.1 e 2.2). Aqui se incluía, desde logo, o
poder de editar leis (potestas leges ferendi), a punição dos criminosos (ius gladii), o comando
dos exércitos, a expropriação por utilidade pública e o poder de impor tributos. Com a
afirmação progressiva de outras áreas de governo (nomeadamente, da “política”), algumas
destas atribuições passam a ser ligadas a outras imagens do rei e inseridas, portanto,
noutros modelos de ação política. Mas pode dizer-se que, até muito tarde, esta sua
vinculação ao modelo de agir jurisdicional não foi fundamentalmente abalada. E isto explica
muito do estatuto prático (nos planos institucional, ideológico e pessoal) destas atividades
políticas no Antigo Regime.
§ 149. Exercer o poder na área da justiça era, essencialmente, realizar um “juízo”
(iustum iudicium), ou seja, levar a cabo um processo regulado e metódico de decisão,
ouvidos todos os interessados, ponderados todos os argumentos e cumpridos todos os
requisitos de competência e processuais estabelecidos (v. cap. 7.1.5). Neste sentido,
iudicium opõe-se a arbitrium, tal como - no plano das qualidades anímicas que estão no
centro da atividade - a ratio (razão, ponderação) se opõe à voluntas (impulso arbitrário). E,
como o poder é essencialmente fazer justiça, os meios do seu exercício devem ser,
fundamentalmente, iudicia, i. e., juízos proferidos pelas entidades competentes, de acordo
com processos estabelecidos, orientados por modelos de raciocínio adequados (rectae
rationes) e cultivados, sobretudo, por uma “arte de encontrar o equitativo”, a jurisprudentia.
Não é, por isso, de admirar que, até muito avançado o século XVIII, e exercício da política,
mesmo da “alta política”, estivesse embaraçado nos meandros da justiça e fosse coisa, antes
de tudo, de juristas. Pois, como escrevia, já na segunda metade do século XVII, António de
Sousa Macedo, “o fim ou objecto da jurisprudencia, não he so a decisam das demandas,
como cuidam os imperitos, mas igualmente o Politico decoro do governo na paz, as legitimas
conveniencias da Republica na guerra, a justa razão de Estado com os Estrangeiros, a
decente soberania com os Vassalos, e tudo quanto pertence à direcção do Príncipe perfeito”
(Armonia politica […], 1651).
§ 150. A área da “justiça” é, assim, a área em que dominam os órgãos ordinários de
governo (“tribunais”, “conselhos”, “magistrados”, “oficiais”), com competências bem
estabelecidas na lei, obedecendo a um processo regulado de formação da decisão,
normalmente dominados por juristas que, na resolução das questões, preferem as razões da
justitia e da prudentia aos arbitria da oportunidade e da conveniência.

185 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 1, disc. 1, § 2, n. 18.
186 Sobre ela, António Manuel Hespanha, “Justiça e administração entre o Antigo Regime e a
Revolução”, cit., 95 ss.

63
As jurisdições e o direito.
2.4.2.1.2 A Graça.
§ 151. Potenciando a justiça está a Graça, que consiste na atribuição de um bem que
não competia por justiça, nem comutativa, nem distributiva (i e., que não era, por qualquer
forma, juridicamente devido)187. Tal como a graça divina não destrói a natureza (antes a
aperfeiçoa188), também a graça régia não subverte a justiça (antes a completa). Era o que se
passava com a dispensa do direito (quando, por exemplo, se manda que não se aplique uma
lei a certo caso concreto, quando se declara maior um menor, quando se perdoa um crime
ou, em geral, quando se pratica qualquer dos atos de dispensa do direito previstos no
regimento do Desembargo do Paço); pois então o que se estava a realizar era uma forma
suprema de justiça, removendo a generalidade da norma em homenagem às peculiaridades
do caso e às suas particulares exigências de justiça189. Apesar desta ligação entre a graça e
uma ordem objetiva superior do justo e de tudo o que daqui pode decorrer quanto ao
carácter não inteiramente gratuito dos catos de graça190, esta é, fundamentalmente, um dom,
dependente da liberalidade régia, na outorga do qual o rei nem é obrigado a ouvir senão a
sua consciência, nem a obedecer a qualquer formalidade ou “figura de juízo”. Pelo contrário,
aqui, o sigilo da decisão é a regra principal, já que as próprias Escrituras recomendavam que
não se deixasse que uma mão soubesse das liberalidades feitas pela outra. A “Graça” é,
portanto, o mundo do governo informal, orientado por deveres de consciência ou por deveres
morais, em que as decisões se tomam no círculo mais íntimo da atividade real (a “câmara”),
pela mão de “escrivães da puridade” [i.e., do segredo] ou “secretários” [idem]. No caso
português, algumas matérias “de graça” tinham um tratamento mais autónomo e regulado.
Era, desde logo, o caso (de fronteira) dos assuntos de graça em matéria de justiça, que eram
instruídos para decisão régia pelo Desembargo do Paço. E do domínio particularmente
sensível de assuntos que envolviam relações com o poder eclesiástico, cuja decisão era
preparada pela Mesa da Consciência e Ordens. As restantes matérias de graça eram
decididas informalmente pelos secretários do rei (secretários da câmara, mais tarde,
secretários de Estado), embora o reconhecimento de um direito a mercês (“ação”) tenha
progressivamente aproximado a gestão da liberalidade régia das tecnologias organizativas
da justiça, com a sua consequente formalização191.
2.4.2.1.3 O governo económico.
§ 152. A terceira área de governo era a oeconomia , que correspondia à imagem do rei
como “chefe da casa”, marido da república e pai dos vassalos. A doutrina moderna foi
particularmente expressiva sobre esta proximidade entre governar a cidade e governar a

187 Cf., sobre o tema, António Manuel Hespanha, “Justiça e administração entre o Antigo Regime

e a Revolução”, cit., 140 ss.


188 S. Tomás, Summa theol.., 1a.2ae, qu. 112 1c.

189 Cf. S. Tomás, Summa theol, 1a-2ae, qu. 88 10 ad 2; João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit.,

III, disp. IV, 11,2,32 [p. 418].


190 Cf. António Manuel Hespanha, “ Les autres raisons de la politique […] ”, cit.. Aí se explica

como existe, na economia moral das sociedades de Antigo Regime, uma “economia da graça” que gera
deveres de dar e deveres de retribuir. O que acaba por ter muita importância para a explicação de
mecanismos políticos práticos, como o regime das “mercês” em Portugal.
191 Cf. os vários “regimentos das mercês”, nomeadamente o de 19.1.1671, Col. Chron. Leg.

(J.J.A.S.), 186 ss..

64
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
família192. A assimilação entre um e outro ofício era profunda e de sentido não metafórico,
autorizando, nomeadamente, que as regras do governo doméstico valessem para o governo
da cidade e que a literatura dirigida ao pai de família (Hausväterliteratur) tivesse, afinal, uma
intenção claramente política.
§ 153. “A casa dos príncipes - escreve Baptista Fragoso - é a cidade; a cidade constitui
o fim da casa. Por isso é preciso que aqueles que vão dirigir as coisas públicas se exercitem
antes nas coisas económicas ou domésticas”193. O característico deste governo doméstico
era o facto de que, não existindo no interior da família (tal como ela era entendida então)
interesses contrapostos entre si ou oponíveis aos do interesse familiar, faltava aqui a
dualidade de interesses que caracteriza as matérias de justiça e, por isso, a decisão decorria
de considerações de mera oportunidade. A gubernatio era, assim, uma expressão geral,
aplicável a toda a atividade decisória que apenas envolvesse a ponderação de vantagens (e
não de interesses protegidos), quer se aplicasse no âmbito da família (gubernatio filiorum et
uxoris), de uma “universidade” (gubernatio communitatem monialium, por exemplo) ou da
república (gubernatio reipublicae). Podia-se falar, assim, de uma potestas dominica, sobre a
própria família (potestas domestica, maritalis, patria), sobre os servos e escravos (potestas
despotica ou herilis), todas elas decorrentes do poder de administração (administratio) do
pater sobre a sua própria casa (potestas oeconomica). De resto, a transladação do conceito
de administratio do plano do governo económico para o plano do governo político era
facilitado pelo aparecimento da palavra, referida a atividades políticas, em dois títulos do
Corpus iuris (D., 50, 8, De administratione rerum ad civitates pertinentium; C., 11, 30, De
administratione rerum publicarum), bem como pela confusão entre autoridade e propriedade,
entre regnum e domus, entre rex e pater, que a episteme política medieval e moderna
colhera dos textos de Aristóteles194.
§ 154. No centro deste domínio da atividade do príncipe estavam os atos relativos ao
“governo económico” do reino, entendido como rei domesticae guberntio ou dispensatio
domus, seu administratio rei familiaris, quae consistit praesertim in acquisitione, &
conservatione pecuniae (administração da casa, ou das coisas familiares, a qual consiste
principalmente na aquisição e conservação do dinheiro). Ou seja, a gestão dos bens e
interesses da coroa. Isto englobava, desde logo, os atos de gestão dos bens e rendas de
que o rei era administrador. Em primeiro lugar, dos bens e rendas da coroa do reino. Depois,
dos bens e rendas afetados à corte e casa real. Seguidamente, dos bens e rendas das casas
anexas à real, como, em Portugal, a Casa das Rainhas (na primeira metade do século XVI e
depois de 1643), a Casa do Infantado e a Casa de Bragança (depois de 1654). Depois, dos
bens das ordens, de que o rei era administrador a partir dos meados do século XVI. E,
finalmente, dos bens próprios da coroa, como os reguengos, as matas, as lezírias, etc., bem
como das capelas do padroado real195 (cf. caps. 2.4.3.3.2 e 4.2.2.2.). Mas deste governo
“económico” - a que com o aproximar do estadualismo iluminista, se irá chamando cada vez

192 Cf. António Manuel Hespanha, “Justiça e administração entre o Antigo Regime e a Revolução”,

cit., 142, e bibl. aí cit., sobretudo os trabalhos de Daniela Frigo.


193 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., liv. 1, “Proem.”, 7.

194 Nomeadamente da Economia doméstica - em que, entre as espécies do governo económico

(i.e., da casa [oikos]), se enumeram o governo real, dos delegados do rei, do Estado de homens livres
e do cidadão privado (cf. liv. II, cap. I).
195 Sobre as capelas da coroa, Joaquim Veríssimo Serrão, Livro das Igrejas e Capelas do

padroado do reis de Portugal […], cit..

65
As jurisdições e o direito.
mais “político” - faziam ainda parte todos os atos necessários à realização do bem estar geral
do reino, nomeadamente, a garantia do seu abastecimento, pelo controlo das importações e
exportações, ou a sua “boa polícia” interior. Manifestação curiosa deste poder de governo é o
que se invoca, nas Ord. fil.,2,3, para justificar a punição pelo rei dos clérigos que o não
tivessem sido suficientemente pela jurisdição eclesiástica competente: “isto não por via de
jurisdição, nem de juízo, mas por usar bem de suas cousas, e afastar de si os malfeitores, e
que não houvessem delle sustentação, nem mercê”.
§ 155. Pertenciam, assim, ao governo económico todas aquelas decisões que, por se
deixarem circunscrever ao âmbito da casa do príncipe, podiam ser objeto de avaliações de
mera oportunidade. Neste sentido, a transladação para o plano da república dos princípios e
tecnologias de governo da “casa” constitui uma forma de trânsito da típica administração
jurisdicionalista das monarquias medievais e primo-modernas para o governo “político” das
monarquias da última fase do Antigo Regime.
§ 156. Zona típica da informalidade, a oeconomia é-o também da reserva e do recato
(segredo) com que as coisas familiares devem ser tratadas. O critério de decisão é, aqui, o
da discricionariedade de um “prudente pai de família”, ao qual cumpre adequar livremente os
meios disponíveis à busca do sustento e engrandecimento da casa. “Sustento” e
“engrandecimento” devem ser objetivos sublinhados neste momento, pois com eles se está a
apontar para uma gestão que não se limita a conservar, mas a prever, a prover e a
promover; isto é, para uma administração ativa. Coisa que, não sendo novidade ao nível
doméstico ou mesmo da comunidade, o era ao nível do reino. O processamento dos
assuntos é o da gestão informal exercida diretamente ou por meio de agentes livremente
escolhidos e livremente descartáveis (juntas, comissários), agindo na discreção da “casa” a
coberto do segredo que, também nos assuntos familiares, deve ser a regra. “Secretários”,
“criados”, “validos”, “intendentes”, “juntas” são, por sua vez, os suportes desta administração
doméstica.
2.4.2.1.4 O governo político.
§ 157. A ideia de que, para além de guardião dos interesses particulares e de chefe de
família, o príncipe encarnava também, como sua cabeça, um interesse superior de toda a
república tem uma antiga tradição nas fontes jurídicas. Já os glosadores tinham aproximado,
no dito mnemónico de “Christus-fiscus”, esta ideia de que, tal como Cristo, cabeça do corpo
místico da Igreja, resumia em si a comunidade dos fiéis e representava os seus interesses,
assim o “fisco”, a pessoa pública do príncipe, tinha legitimidade para impor o interesse da
república, em termos tais que perante ele cedessem os direitos dos particulares. A tradição
jurídica medieval partiu daqui para reconhecer ao príncipe uma extraordinaria potestas que
lhe permitiria derrogar o direito e violar direitos dos particulares “publica et magna causa
interveniente”. Mas, quando a nova geração de politólogos em que se inclui Nicolau
Maquiavel e Jean Bodin, começaram a falar de “razão de Estado” e de “soberania”, isto é, de
razões e poderes próprios da república, essencialmente distintos das razões e poderes dos
privados, começou também a surgir a ideia de que o governo da polis podia exigir que o
príncipe, ex officio [por sua iniciativa] e figura iudicii non servata [não observadas as
formalidades do juízo], editasse comandos ad consequendam publicam utilitatem [para
realizar a utilidade pública], livremente avaliada pelo príncipe. Estamos chegados ao conceito
de governo político e, a curto prazo, ao de ius publicum, um especial ramo do direito em que,
pela primeira vez, o príncipe e os particulares passavam a ocupar lugares não equilibrados

66
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
no iudicium196.
§ 158. Não se pode, contudo, dizer que o conceito de governo político fosse muito
popular na literatura moderna peninsular sobre o governo, sendo conhecida a conta em que
eram tidos os “políticos” e o estilo de governo que eles propugnavam197. Apesar disso, há
temas em que a invocação das prerrogativas políticas do rei tinha tradição. O primeiro é,
decerto, o da punição criminal. Outro é o da regia protectio; para justificar o seu poder de
castigar os clérigos, o rei não podia invocar a sua jurisdição, pois a ela escapavam os
eclesiásticos. Daí que fosse obrigado a invocar um poder económico, ou mesmo político (cf.,
muito impressivamente, Ord. fil.,2,3). Progressivamente, o conceito de governo político vai-se
estendendo e abrangendo, sucessivamente, um domínio mais vasto. No período iluminista,
encontramo-lo já plenamente desenvolvido198. Considera-se, então, que ele engloba todas as
medidas necessárias à defesa externa e interna do reino (“o príncipe deve oficiosa e
ativamente [“pro sua virili parte”] libertar a cidade dos seus inimigos internos e externos e
fazer em tudo aquilo que julgue necessário, sem que nunca pudesse ser compelido a prestar
contas disso”. Aqui se incluiria o ius gladii, a potestas legislatoria, o ius fisci, o ius circa sacra,
o ius asylii, a potestas circa agriculturam, commercium et res nauticas, o ius militare. Mas,
mesmo neste final do século XVIII, não falta quem reaja contra esta extensão das
prerrogativas régias a título de poder camerario, arcano, absoluto199.
§ 159. Seja como for, os finais do Antigo Regime constituem uma época em que,
claramente, a imagem do príncipe como caput reipublicae, como pessoa pública, se
sobrepõe às restantes. E em que o governo assume as características de uma atividade
dirigida por razões específicas (as razões do Estado), tendente a organizar a sociedade,
impondo-lhe uma ordem e defendendo-a do caos originário. Inaugura-se, por outras
palavras, uma era de “disciplina”, de “administração ativa”, com quadros legitimadores,
métodos e agentes muito distintos dos da passiva administração jurisdicionalista. Agora, o
governo legitima-se, planificando reformas e levando-as a cabo, mesmo contra os interesses
estabelecidos. Carece-se de eficácia e o controlo sobre os aparelhos administrativos é uma
condição para isso. Daí que a administração devesse ser transformada num instrumento
racional e adequado, liberto de todos os constrangimentos de tipo corporativo. Que os
oficiais devessem ser disciplináveis e livremente amovíveis, tal como se enfatiza na
legislação pombalina sobre os ofícios (nomeadamente, a lei de 23.11.1770). Que os
procedimentos administrativos não devessem ser cogentes para o soberano, e muito menos
utilizáveis pelos particulares para atrasar a ação reformadora (por exemplos, por meio de
embargos dos atos régios: cf. CR. 2.11.1627, alv. 16.2.1642, alv. 10.7.1644). Que o segredo
(arcana imperii) e a surpresa se tornassem um instrumento indispensável de governo.
§ 160. Esta classificação das matérias de governo permanece fundamentalmente
válida como arrumação intelectual da atividade político-administrativa até aos finais do Antigo
Regime. Ainda em 1793, Francisco Coelho de Sousa Sampaio classifica os tribunais em “de
Graça, de Justiça, da Fazenda, de Economia, e Commercio”200. Há que notar a completa

196 Cf. António Manuel Hespanha, “Justiça e administração entre o Antigo Regime e a Revolução”,
cit., 144 s..
197 Cf., para Portugal, Martim de Albuquerque, “Política, moral e direito”, cit..

198 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit. 1,1,2.

199 Cf. António Ribeiro dos Santos, Notas ao plano do Novo Codigo, cit..

200 Prelecções de direito pátrio […]}, cit., 1, 191)

67
As jurisdições e o direito.
autonomização da fazenda em relação à economia, explicável pela existência, desde há
muito, de órgãos nela especializados (Vedores da Fazenda e, depois, Conselho da Fazenda)
e o acrescento do “comércio”, por razões idênticas (Junta do Comércio), a que acresce, aqui,
o enorme interesse pelo tema, sobretudo num reino que vivia substancialmente dele, a partir
do advento do mercantilismo201. Embora, no mesmo autor, já se note a hegemonia da
política e da economia sobre todas as restantes áreas, quando escreve, numa frase de
antologia: “He certo, que todos os Magistrados são políticos, e Economicos; porque toda a
administração da Justiça se dirige a economisar [!] e civilisar os povos, e promover a
segurança publica [!]” (ibid., 1, 191 n. a), pois por “polícia” entende “a auctoridade que os
princepes tem para estabelecerem e proverem os meios, e subsidios, que facilitem, e
promovão a observancia das suas Leis” (ibid.,1 138) e considera, consequentemente, que
“todos os magistrados ordinários do reino exercem algum ramo da Polícia, e Economia,
mesmo considerados na particular acepção” (ibid.,1 193).
§ 161. Claro que, neste contexto, a hierarquia dos atos de governo passa a ser
totalmente diferente. A justiça perde, naturalmente a primazia para o “direito legislativo”, a
que se seguem o “direito inspectivo”, o “direito de polícia”, o “direito executivo” e o “direito de
impor tributos”202, numa pirâmide que vai do estabelecimento abstrato da ordem à sua
execução concreta e material203.
§ 162. Num plano menos teórico e mais atento à realidade institucional, a partir desta
ideia de que todo é governo político, uma classificação mais caracterizadamente temática e
institucional passou a impor-se e a explicar, inclusivamente, uma maior especialização
orgânica. Já se notou a autonomização da “fazenda” em relação à “economia”. O mesmo se
passou com o governo do Ultramar que, depois de andar junto com o da fazenda, se
autonomizou, primeiro e por pouco tempo, em 1604 (a 1606) e, definitivamente, em 1642.
Também os assuntos de Estado - ou seja, fundamentalmente, as relações externas - se
separaram dos de justiça, com a criação do Conselho de Estado, em 1569, e, depois, das
respetivas Secretarias204. O mesmo se passando com os da Guerra, a partir de 1640. E,
basicamente, foi esta a matriz de distribuição da matéria de governo que presidiu ao elenco
das Secretarias de Estado, até ao fim da monarquia: Reino, Justiça, Fazenda, Guerra,
Negócios Estrangeiros, Marinha e Ultramar.

201 Noutros autores aparece o ramo da milícia, que este não considera por o julgar fora do âmbito
da sua obra (embora, de seguida, enumere os seus principais órgãos, cf. 198 ss.). É de notar a
dificuldade que transparece na classificação da Mesa da Consciência (cf. 196).
202 Cf. índice do voI. I da mesma obra.

203 Numa outra obra celebérrima, pouco anterior (Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, I),
esta hierarquia já se manifestava, embora as matérias de polícia e de economia não obtivessem este
destaque. Polícia é definida, não como a atividade complexiva do Estado, mas por uma enumeração
das matérias aí incluídas (económicas, sumptuárias, funéreas, sanitárias, edilícias, criminais,
urbanísticas, educativas, de precedência e etiqueta, sobre vadios e mendigos, sobre colégios e
universidades (ibid., 1,10). Significativamente, os oficiais agrupados neste sector são todos os
magistrados locais que, no âmbito da polis tinham estas atribuições como naturais. A única exceção é o
Intendente Geral de Polícia (criado em 25.6.1760), cujos choques com os magistrados políticos
tradicionais não deixam de ser referidos e lamentados (ibid., 1,10,23).
204 Os assuntos de Estado são definidos, no alv. de 29.11.1643, como “contratos, cazamentos,

alianças, instruções, avizos publicos, ou secretos, que se derem a quaisquer embaixadores,


comissarios, agentes, rezidentes, agentes, e quaisquer poessoas [...] que se despacharem dentro ou
fora do Reino, e negócios que forem da qualidade referida” (ANTT, ms. 2608).

68
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2.4.2.2 Administração periférica da coroa
§ 163. Decisivo para a avaliação dos equilíbrios do aparelho político-administrativo é,
mais do que o estudo dos órgãos centrais da administração da coroa, o estudo das suas
extensões periféricas. Ou seja, dos prolongamentos pelos quais a coroa entrava em contacto
com as estruturas político-administrativas locais, nomeadamente concelhias. O que acaba de
ser dito representa uma certa inovação em relação ao tratamento corrente desta questão dos
equilíbrios do sistema do poder, pois não é raro que se considere como sintoma decisivo do
crescimento do poder da coroa, o desenvolvimento dos conselhos e tribunais palatinos, sem
curar de avaliar os meios institucionais que estes teriam para, na periferia, conhecer,
controlar e dirigir os poderes políticos autónomos.
§ 164. As intenções de controlo da vida política e administrativa periférica verificavam-
se, fundamentalmente, nos três campos da atividade político-administrativa dos sistemas de
poder da época moderna: a justiça, a fazenda e a milícia.
2.4.2.2.1 Os oficiais de justiça.
§ 165. Neste domínio, a administração régia apoia-se sobre dois tipos de funcionários,
os juízes de fora e os corregedores.
2.4.2.2.1.1 Os juízes de fora.
§ 166. Os juízes de fora são, tal como os juízes eleitos, os magistrados ordinários dos
concelhos, tendo, em princípio, atribuições iguais205. Porém, dada, sobretudo, a formação
letrada desta magistratura, a doutrina - e a própria lei - estabeleciam alguma distinção entre
uns e outros206 e dos padrões oficiais e letrados de julgamento. Embora também se pudesse
dizer que, sendo estes juízes nomeados pela coroa, se instituiriam, deste modo, laços mais
apertados de dependência e redes mais eficazes de comando entre os magistrados locais e
a administração central. Não sublinharemos no entanto, este segundo aspeto, pois o estatuto
do juiz de fora é igual ao do juiz da terra, no que respeita à sua autonomia em relação a
cadeias hierárquicas207. Dir-se-ia, até, que aos juízes de fora é garantida uma maior
autonomia do que aos juízes ordinários. Na verdade, algumas das normas das Ordenações
sobre o controlo das justiças locais pelos corregedores, não se aplicavam aos juízes de fora,
umas por disposição expressa da lei nesse sentido, outras por entendimento doutrinal
pacífico208. Por outro lado, entendia a doutrina que os corregedores não podiam - fora dos

205 Sobre as origens e evolução dos juízes de fora, cf. António Manuel Hespanha, História das

instituições [...], cit., 254 s. e bibliografia aí citada. Sobre a sua jurisdição, v. Ord. fil.,1,65.
206 As principais diferenças do regime dos juízes de fora em relação aos juízes ordinários eleitos

são: (i) eram nomeados pelo rei, depois de aprovados no Desembargo do Paço (leitura de bacharéis:
exame pelos desembargadores da Casa da Suplicação, votação pela mesa do Desembargo do Paço,
Reg. Des. Paço, § 6); (ii) tinham, como adiante se dirá no texto, jurisdição privativa em relação aos
corregedores; (iii) tinham uma maior alçada, Ord. fil.,1,65,6 e 7; (iv) usavam varas brancas, enquanto
que os juízes da terra as usavam vermelhas; (v) não eram inspecionados pelos corregedores. Sobre
esta diferença de regime, Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., v. ad Ord. fil.,1,65, rubr., n.
26. (p. 5).
207 Sobre a residência (sindicância ou inspeção) dos juízes de fora e dos corregedores, feita por

um desembargador nomeado pelo rei, v. Ord. fil.,1,6. Doutrina: por todos, Nicolau Coelho Landim,
Nova, et scientifica tractatio […] I. De syndicatu judicum […], cit..
208 Assim, não poderiam exercer em relação aos juízes de fora as atribuições de Ord. fil.,1,58, 5 e

69
As jurisdições e o direito.
casos expressamente previstos na lei209 - conhecer por ação nova ou avocar as causas das
terras em que houvesse juiz de fora, ao contrário do que acontecia com as causas dos juízes
ordinários210.
§ 167. O facto de o juiz de fora ser um oficial estranho à terra fazia dele um elemento
descomprometido em relação às relações locais de poder e de influência. É justamente isto o
que se quer dizer quando, no discurso oficial, se referem as vantagens que adviriam para a
administração da justiça e para a pacificação das terras da existência de um oficial de justiça
forâneo e estranho aos “bandos” locais. E não é raro que o frequentador das fontes da
época, nomeadamente dos livros de vereações das terras onde havia juízes de fora,
encontre exemplos dos confrontos entre estes e os grupos de pressão locais. Que o juiz de
fora representava, de facto, um elemento perturbador dos arranjos políticos locais, isso
parece um facto. O que já pode, porém, ser problematizado é que a sua ação revertesse
politicamente a favor do fortalecimento do poder da coroa. Pois em relação a este oficial
letrado podem aplicar-se as conclusões que R. Ajello tirou - na base do seu estudo sobre o
caso napolitano - para o oficialato togado meridional. Ou seja, a ausência de um controlo
efetivo sobre a sua atividade, quer por parte dos particulares, quer por parte do poder, dado
o carácter fortemente corporativo desse grupo de oficiais e o facto de os mecanismos de
controlo serem, eles próprios, movimentados pelos membros do mesmo corpo. Como
conclusão - sujeita à verificação por meio de estudos monográficos baseados na análise das
fontes locais -, dir-se-ia que mais do que longa mão do poder central, o juiz togado é um
elemento de enfraquecimento das estruturas locais que, se joga indiretamente a favor da
coroa, reverte imediatamente a favor do fortalecimento da rede burocrática de que juízes de
fora, corregedores e provedores fazem parte e que filtra toda a comunicação entre o centro e
a periferia e - pelo menos em tempo de paz - adquire, assim, o controlo de mais um
instrumento fundamental de governo - a informação sobre o país.
§ 168. Seja como for, há uma restrição fundamental ao relevo que a historiografia
tradicional tem dado à criação dos juízes de fora como fatores de centralização, quer ao que
acaba de ser dito quanto ao seu papel de fator de dissolução da vida jurídica. Tal restrição
relaciona-se com o número extremamente reduzido das terras que tinham juiz de fora. Na
verdade, a rede dos juízes de fora é absolutamente insuficiente para que possa ter o impacto

34 (cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 4, ad Ord. fil., 1,58, gl. 10, n.º 1 [pg. 543] e
literatura aí citada).
209 Feitos em que fossem parte juízes, alcaides, procuradores, tabeliães, fidalgos, abades, priores

ou, em geral, quaisquer pessoas poderosas (Ord. fil., 1,58,22).


210 V. Ord. fil.,1,58,23. e Reg. do Desembargo do Paço, § 45. Pegas vai mesmo ao ponto de

duvidar da possibilidade de o corregedor avocar os feitos do juiz de fora no âmbito do n. 22 (feitos de


poderosos) (cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 4, ad I,58, gl. 24 (p. 554) e a
literatura aí citada, nomeadamente Tomé Valasco, Allegationes […], all. 77, n. 9 ss. A possibilidade de
o corregedor conhecer por ação nova as causas nas terras em que não houvesse juiz de fora tem
origem numa lei de 17.7.1527 em que, respondendo a um pedido dos povos no sentido de os
corregedores não avocarem as ações dos juízes das terras, o rei decide em contrário “havendo
respeito que nas outras cidades villas e lugares de suas correições onde não houver juízes de fora se
seguiria mais oppressão as partes de os corregedores não conhecerem das auções novas pellos juízes
não serem letrados e serem naturais da terra e não poderem com tanta brevidade nem tão livremente
fazer justiça nem o dereyto das partes lhe sera tambem guardado” (José Anastácio de Figueiredo,
Synopsis chronologica, cit., 1, 328).

70
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
centralizador que a historiografia corrente lhe atribui211.
2.4.2.2.1.2 Os corregedores.
§ 169. Um outro oficial da administração real periférica era o corregedor, magistratura
criada no século XIV, inicialmente com jurisdição apenas delegada ou comissarial,
abrangendo os assuntos e a área territorial contida na carta régia de delegação212. No século
XVII, os corregedores constituem já uma magistratura ordinária, com uma competência
contida em geral nas Ordenações (ou legislação extravagante) e exercendo-se sobre um
território determinado por providências legais ou por usos bem estabelecidos. São nomeados
pelo rei por períodos trienais213.
§ 170. O principal núcleo das atribuições dos corregedores dizia respeito a matérias de
justiça. Neste domínio, competia-lhes inquirir das justiças locais (mas não dos juízes de fora,
ns. 5 e 34) e dos seus oficiais (n. 2 ss.), conhecer por ação nova ou avocar os feitos em que,
pelo poder das partes, os juízes se pudessem sentir coactos (n. 22), avocar os feitos dos
juízes ordinários no raio de duas léguas (n. 23) 214, defender a jurisdição real e a ordem
pública (n. 11, 15, 18,36 ss.), inspecionar as prisões (n. 14), conhecer dos agravos das
decisões interlocutórias das justiças locais (n. 25), devassar sobre certos crimes graves (n.
32 ss.), dar cartas de seguro (n. 40), conhecer dos agravos vindos das justiças senhoriais
com fundamento em negação de recurso (Ord.fil.,2,45,28).
§ 171. No domínio político, competia-lhes tutelar em geral o governo dos concelhos,
verificando se as eleições dos juízes e oficiais dos concelhos se faziam na forma da
Ordenação (Ord. fil.,1,58,4)215, autorizando fintas (até certa quantia, n. 43), propondo ao rei a
reforma de posturas (que, no entanto, não podem revogar por si, n. 17), tutelando a
administração financeira do concelho (n. 16).
§ 172. No domínio da polícia, deviam inquirir dos médicos, cirurgiões (Ord. fi!.1,58, n.
32), de outros oficiais locais (que não estivessem sujeitos à inspeção dos provedores ou
contadores) (n. 34), promover a população (n. 42), curar do estado das obras públicas da
comarca (estradas, pontes, fontes, casas do concelho, picota, etc., n. 43), promover o plantio
de árvores (n. 46), inspecionar os castelos (n. 13), vigiar o contrabando de ouro e prata, bem
como de cereais panificáveis (n. 35).
§ 173. A circunscrição de exercício das competências dos corregedores eram as
comarcas. Algumas das antigas ouvidorias de ordens militares foram, na prática,
transformadas em comarcas com a incorporação da administração das ordens na coroa. Já
nos finais do Antigo Regime, a lei de 17.7.1790, ao extinguir as ouvidorias senhoriais, dá

211 Cf. dados em António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 171 ss..
212 Sobre a origem e desenvolvimento desta magistratura, António Manuel Hespanha, História das
instituições [...], cit., 252 ss. e literatura aí citada.
213 Sobre os corregedores. Fonte legal: Ord. fil., 1,58, além de outra legislação extravagante que

pode ser encontrada, em geral, em Thomaz, 1843, s.v. “corregedor”; doutrina: Manuel Álvares Pegas,
Commentaria [...], cit., tomo 4, ad Ord. fil.,1,58 (com muitas indicações bibliográficas).
214 Sobre a interpretação deste preceito, Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo

3, ad I,58, gl. 24 (p. 554).


215 A provisão de 12.8.1750 manda-os informar sobre as pessoas mais capazes de andar na

governança.

71
As jurisdições e o direito.
origem à criação de uma série de novas comarcas216 217.
§ 174. O corregedor era, logo a seguir ao provedor e contador, o oficial mais bem pago
da administração real periférica, com uma renda anual cuja média para todo o país é de
cerca de 180000 rs., variando relativamente pouco de comarca para comarca. Cerca de 60%
das suas rendas são constituídas por salários, o que, em certa medida, dá a ideia da sua
dependência em relação à coroa em termos reais.
§ 175. O carácter genérico das atribuições dos corregedores, fazia deles os
magistrados ordinários da administração real periférica. A sua competência apenas cedia
perante outros magistrados cuja competência fosse privativa218. O facto de os corregedores
constituírem a magistratura ordinária ao nível da comarca, faz com que seja em geral neles
que confluam as atribuições da administração real periférica não previstas nas Ordenações.
Não apenas as criadas por legislação extravagante, mas ainda as providências isoladas,
cometidas caso a caso pelo rei ou pelos tribunais da corte, nomeadamente pelo Desembargo
do Paço, entidade com quem os corregedores se correspondiam, a montante, nas matérias
de governo. E, assim, apesar da concorrência dos provedores e contadores, os corregedores
desempenham o papel de “primeiros magistrados das comarcas”, para utilizar uma
expressão então corrente.
§ 176. Note-se, porém, que esta superintendência do corregedor sobre o conjunto da
vida político-administrativa da comarca se exerce, na maior parte dos casos, sob a forma de
tutela, e não sob a de um verdadeiro poder hierárquico. Tanto em relação à atividade das
câmaras, como à dos oficiais cuja inspeção lhe competia, o corregedor apenas podia
verificar se ela decorria de acordo com os respetivos regimentos. Mas não podia, em
contrapartida, dar-lhes instruções ou substituir-se-lhes, salvo nos casos em que isto era
permitido por lei (como, por exemplo, a avocação das causas “dos poderosos”).
§ 177. Por outro lado, o impacto da ação dos corregedores fica muito diminuído pelo
facto, de este nunca ter abrangido duas áreas-chave - as finanças e a milícia. Ao contrário do
que aconteceu em França com os intendentes - cuja esfera de ação abrangia a
administração direta (e não apenas de controlo) em domínios como o recrutamento militar, a
administração da justiça, a repartição da “taille” e a cobrança de outros impostos, a
regulamentação da agricultura, etc. -, os corregedores portugueses mantiveram-se sempre
como uma magistratura acantonada sobretudo nos domínios do controlo do funcionamento
da justiça e da tutela política dos concelhos. A razão desta modéstia relativa das funções dos
corregedores parece-me radicar num dado estrutural relacionado com o modelo financeiro
português. Enquanto que, em França, na Prússia e na Áustria, a coroa dependia quase
exclusivamente das receitas internas do reino e tinha, portanto, um interesse vital em
organizá-lo e o controlá-lo, em Portugal o grosso das receitas da coroa vinha do ultramar ou
das alfândegas. As receitas internas, em contrapartida, quase não cresciam desde os
meados do século XVI e eram cada vez menos importantes no contexto orçamental global. A

216 Cf. mapas em Ana Cristina Nogueira da Silva, O modelo espacial […], cit., 40; Nuno Gonçalo
Monteiro, “As comunidades territoriais”, cit., 313.
217 Sobre a graduação das comarcas, v., supra.

218 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 4, (ad ORD. FIL.,1,58), gl. 12, n. 5 (p.

546). Privativa era, por exemplo, a competência dos provedores e contadores, pelo que os
corregedores não podiam, em princípio, intrometer-se em matérias de fazenda, a não ser quando a lei
expressamente o determinasse ou nas faltas do provedor (v. Ord. fil.,1,58,10).

72
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
guerra da Restauração e a queda, contemporânea, das receitas externas podia ter
modificado a situação da administração interna. Só que, em Portugal, o esforço de
mobilização dos recursos financeiros e militares internos foi canalizado por novas
magistraturas independentes dos corregedores. Na área fiscal, foram criados os
administradores do real d'água e os tesoureiros das décimas, quaisquer destes isentos da
supervisão do corregedor e sujeitos aos provedores e à Junta dos Três Estados. Na área
militar, a superintendência regional veio a caber aos governadores de armas das províncias.
§ 178. Em face do que acaba de ser dito, parece lícito concluir que a eficácia dos
corregedores como instrumentos de subordinação político-administrativa do reino era
relativamente modesta, pelo menos em confronto com outras experiências europeias de
constituição de níveis periféricos da administração régia. Em contrapartida, é ainda aqui de
realçar a importância que a existência desta guarda avançada da administração letrada pode
ter tido no reforço do papel político da camada burocrática, sobretudo quando - como
acontece na segunda metade do século XVIII - o poder régio se começa a interessar por um
conhecimento mais detalhado do país, preparatório de um seu controlo mais efetivo. Então,
os magistrados que, como corregedores, tinham calcorreado a província, aparecem no
primeiro plano, como detentores quase exclusivos de uma informação coro gráfica,
económica e política vital para a transformação da administração do remo.
§ 179. O corregedor dispunha dos oficiais auxiliares costumados. Escrivães,
contadores, distribuidores e inquiridores (sendo estes três ofícios exercidos normalmente em
acumulação), chanceleres, executores, caminheiros, meirinhos e porteiros.
§ 180. Outro funcionário da administração real periférica - de difícil classificação nos
quadros da tríade de que partimos (justiça, fazenda, milícia) - era o provedor.
2.4.2.2.1.3 Os provedores.
§ 181. Os provedores exerciam as suas atribuições em circunscrições - as provedorias
em geral coincidentes com as comarcas219.
§ 182. Os provedores - que, normalmente, acumulavam as suas funções com as de
contador - tinham duas grandes áreas de competência. A primeira era a da tutela dos
interesses cujos titulares não estivessem em condições de os administrar por si nem
controlar a administração que deles fosse feita - defuntos, ausentes, órfãos, cativos; mas
também o de pessoas coletivas que, por razões teóricas ou práticas, a eles devessem ser
equiparados - confrarias, capelas, hospitais, concelhos. A segunda era constituída pelas
matérias de finanças220.
§ 183. No domínio dos resíduos, os provedores controlavam o cumprimento das deixas
testamentárias no que respeita a legados pios (Ord. fil.,1,62,1). Para isso, organizavam um
rol dos testamentos (n. 4), tomavam as contas aos testamenteiros (ns. 5, 10, 11), apuravam
os resíduos dessas deixas, consignando-os ao resgate dos cativos do bispado (ns. 7 e 9)
(sobre o direito testamentário, v. cap. 5.2.).
§ 184. No domínio dos órfãos, o provedor superintendia sobre a administração da

219 Cf. mapa das provedorias em Nuno Gonçalo Monteiro, “As comunidades territoriais”, cit., 311.
220 Fonte legal: Ord. fil.,1, 62; as atribuições dos provedores relativas a capelas, hospitais,
albergarias, confrarias, gafarias, obras, terças e resíduos estavam regulamentadas no reg. manuelino
de 27.9.1514 (em José Roberto R. M. C. Soisa, Systema dos regimentos reais 1783, 1, 37 ss.; sobre
este regimento, v. Figueiredo, Synopsis chronologica, 1790, 1, 176 ss.) e na lei de 6.7.1596.

73
As jurisdições e o direito.
fazenda dos órfãos e sobre a atividade dos juízes dos órfãos (Ord. fil.,1,62,1, n. 28), em
relação ao qual tinha jurisdição cumulativa (enquanto estivesse na terra) e de quem recebia
os agravos (n. 34), dando apelação para a jurisdição competente (em princípio, a Relação da
área, n. 34) (sobre o direito dos órfãos e sua tutela, v. cap. 3.3.2).
§ 185. No campo da curatela dos ausentes, administrava os bens destes e entregava-
os a quem os reclamasse (Ord. fil.,1,62,1, n. 38), dando apelação e agravo para a justiça
ordinária (ibid.).
§ 186. No que toca às capelas, hospitais, albergarias e gafarias, tutela a administração
dos que não sejam de fundação ou administração eclesiástica, nem estejam sob proteção
imediata do rei (n. 39 ss.)221.
§ 187. No domínio da fazenda, compete aos provedores: (i) Quanto às contas dos
concelhos, verificar os livros de receitas e despesas dos escrivães e tomar-lhes as contas
(ns. 68-72), tomar as terças e entregá-las aos respetivos recebedores (ibid.), cuidar do
arrendamento das rendas reais e da cobrança das que não tenham sido arrendadas (reg. de
17.10.1516, caps. 60 e 74 ss.), prover sobre os pagamentos a fazer pelos almoxarifes (cap.
78), tomar as contas aos almoxarifes e aos recebedores (cap. 81), julgar certas questões
relativas ao arrendamento de rendas reais, dando apelação e agravo para o Conselho da
Fazenda, a quem também prestam contas (caps. 85 e 149). (ii) Quanto a obras, prover na
reparação das fortificações (n. 71); lançar fintas para obras em igrejas até certo montante (n.
77). (iii) Quanto à defesa dos direitos reais (v. cap. 4.2.2.2), fazer o tombo dos bens da coroa
(Reg. de 17.10.1516, caps. 94/95), averiguar da legitimidade dos direitos reais, controlar o
direito a tenças (cf. D., 24.9.1623) e superintender na cobrança dos reais d'água (reg.
23.1.1643).
§ 188. Os provedores estavam, assim, integrados numa estrutura sectorial da
administração real bastante mais especializada do que aquela a que pertenciam os
anteriores magistrados, embora o conjunto das suas competências fosse bastante
heteróclito. De qualquer modo, a importância política dessas competências era bastante
mais reduzida, embora ainda incluísse zonas como o controlo das contas concelhias.
§ 189. Os rendimentos dos provedores eram os mais elevados de entre os oficiais das
comarcas, ultrapassando geralmente os dos corregedores. Cerca de 50% eram constituídos
por salários. Os rendimentos dos escrivães da provedoria são também elevados (média,
cerca de 80 000 rs.), sendo quase integralmente de natureza emolumentar, pois a parte
salarial corresponde apenas à retribuição dos processos em que são parte os resíduos (cf.
Ord.fil,1,63,5).
§ 190. A montante, os provedores correspondiam-se com a Mesa da Consciência e
Ordens, para onde davam apelação em matéria de defuntos e ausentes (cf. pr. 2.4.1727); em
matéria de resíduos, com o Provedor-Mor das Obras e Resíduos, para manifesto das
entregas feitas aos mamposteiros dos cativos, ou com a Casa da Suplicação, para efeito de
apelação e agravo das decisões sobre testamentaria (Ord. fil., 1,62,18 e 19) e, com esta
última, nos feitos de órfãos (Ord. fil.,1,88,46); com o Desembargo do Paço, em matéria de
supervisão das contas dos concelhos (Ord. fil.,1,62,65) e com Conselho da Fazenda em
assuntos relativos à fazenda real (nomeadamente, arrendamento de rendas reais, contas

221Estes últimos tinham eventualmente, jurisdições particulares - tal era o caso do Hospital de
Todos-os-Santos, da Misericórdia de Lisboa, das Capelas de D. Afonso IV (em Estremoz, Torres
Vedras e Vieiros [Aviz]).

74
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
dos almoxarifes, etc.).
§ 191. A jusante, entravam em contacto com os juízes dos órfãos (Ord. fil.,I,62,34 e
35); com os tabeliães, que, em matéria de resíduos, lhes deviam fornecer a lista dos
testamentos; com os mamposteiros dos cativos, a quem entregavam as somas destinadas
aos cativos (Ord. fil.,1,62,12 e 16); e com os almoxarifes, sobre matérias de fazenda e de
terças dos concelhos (Ord. fil.,1,62,68).
§ 192. As relações entre os diversos níveis desta estrutura não eram, porém, de tipo
diferente daquelas que encontrámos no sector da justiça, pelo que não se pode falar, em
rigor, de relações de hierarquia político-administrativa, mas antes de relações de tutela, em
que o funcionário de escalão superior se limita a controlar a atividade do de escalão inferior
através da reapreciação dos seus atos aquando de recurso ou da inspeção ou residência.
§ 193. Desta estrutura administrativa faziam parte, além dos provedores, outros-
oficiais. Em primeiro lugar, os oficiais da provedoria - escrivães (Ord. fil.,1,63), chanceleres
(Ord. fil., 1,62,80), porteiros (Ord. fil., 1,63). No domínio dos resíduos, o funcionário principal,
ao nível regional, é o mamposteiro dos cativos, encarregado de arrecadar os bens ou valores
consignados ao resgate dos cativos penas, esmolas, resíduos ou deixas testamentárias.
Nomeado pelo rei através da Mesa da Consciência e Ordens, dependia desta para efeito de
residência (§§41, 3, 8 do Reg.), e do Corregedor da Corte, para efeitos de recurso (§5 do
Reg.). Existia um por bispado, podendo cada um deles nomear mamposteiros menores nas
terras do bispado (§3)222. Cada mamposteiro dispunha de um escrivão próprio (de nomeação
régia, §4), de um solicitador ou procurador (§7 e Ord. fil.,1,64), de recebedores e de
tesoureiros. Existiam ainda depositários dos resíduos, encarregados de guardar os resíduos
arrecadados pelo provedor (v.g., aos testamenteiros negligentes, Ord. fil.,1,62,12), enquanto
este os não entregava ao mamposteiro. No domínio dos órfãos, existiam os oficiais a que já
nos referimos, ao tratar do oficialato local. Aos oficiais do domínio da fazenda referir-nos-
emos, globalmente, de seguida, pois se trata de um outro ramo bastante diferenciado desta
administração periférica da coroa, que vimos brevemente descrevendo.
2.4.2.2.2 Os oficiais da fazenda.
§ 194. A fazenda constitui um domínio bem caracterizado da administração real
periférica223. Não apenas pela especificidade do seu objeto, mas ainda porque, aqui, os laços
de dependência são mais apertados, aproximando-se mais do modelo da hierarquia
administrativa em sentido próprio.
§ 195. Isto acontece, sobretudo, porque a construção dogmática tradicional do ofício (v.
cap. 2.6) não atingira esta zona, sendo aqui os cargos configurados como comissões reais.
Uma consequência deste diferente modelo da construção dogmática dos ofícios consiste no
facto de, nesta área, a inspeção e controlo dos oficiais não obedecer ao modelo da
“residência”, efetuando-se pelos modelos mais efetivos da “instrução” e da “prestação de
contas”, importados da administração eclesiástica e mesmo da administração privada ou
dominial224. Outra consequência diz respeito ao modelo de retribuição. Embora não tenham

222 A redenção dos cativos era urna obra de misericórdia atribuída à Ordem da Santíssima

Trindade, por quem foi demitida à coroa em 1562 (cf. alv. de 10.3 desse mesmo ano). Regimento dos
mamposteiros de 11.5.1560, José M. C. C. e Soisa, Systema dos regimentos reais [...], cit., v. 486 ss.
223 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 181 ss.., 212 ss..

224 Assim, os contadores vinham de dois em dois anos a Lisboa prestar contas ao Conselho da

75
As jurisdições e o direito.
desaparecido as rendas emolumentares, encontram-se aqui oficiais que dependem quase
exclusivamente do salário (v. g., almoxarifes, feitores, juízes das alfândegas). Já no caso dos
escrivães, o sistema emolumentar mantém-se, como também era de esperar.
§ 196. O oficial que assegurava a ligação entre a administração financeira central e a
correspondente administração periférica era o provedor, enquanto contador225. A ele já nos
referimos.
§ 197. Abaixo dele, como funcionário executivo da fazenda, estava o almoxarife, cargo
que resulta da integração de todas as funções de recebimento e pagamento a nível local,
antes do século XV dispersas por almoxarifes particulares de cada ramo226. As suas funções
eram: (i) receber as rendas dos rendeiros e as quantias entregues aos recebedores das
sisas ou dos direitos reais ou entradas nas “távolas” (repartições de cobrança) dos vários
tributos ou rendas (Reg., caps. 104, 111); (ii) pagar as despesas inscritas nas suas folhas
(tenças, ordenados dos “filhos da folha” - I.e., oficiais com salários assentados na folha
daquela repartição -, etc.) (cap. 106 ss.), arrecadando 1 % de cada despesa para obras pias
(cap. 206); (iii) decidir, na falta do contador, dos feitos cíveis e crimes em que fossem partes
os rendeiros (cap. 149), dando apelação e agravo para o Conselho da Fazenda.
§ 198. Dentro da administração da fazenda destacava-se, pela importância da sua
rede, a administração alfandegária, englobando as alfândegas (marítimas), os portos secos
(alfândegas terrestres) e os portos molhados (alfândegas fluviais da raia), onde se cobravam
as dízimas de entrada das mercadorias227.
§ 199. O principal oficial das alfândegas era o feitor, que superintendia no serviço de
vigilância (fiscal) da fronteira, auxiliado pelos seus guardas (Reg. de 1688, caps. 2 e 39).
Além deste, existiam os juízes, que julgavam as causas relativas aos direitos alfandegários e
ainda aqueles em que fossem partes os oficiais da alfândega, dando agravo e apelação para
o provedor da comarca (L. 13.5.1693) ou para o Conselho da Fazenda (Reg. cit., cap 48).
Como oficiais auxiliares, existiam: os escrivães da alfândega, que escreviam nos feitos dos
respetivos juízes; os escrivães das guias, que passavam as guias que deviam acompanhar
as mercadorias cujo despacho não fosse feito na alfândega de entrada, mas no lugar de
venda (ibid., caps. 14, 18-20); os alcaides das sacas que, tal como os guardas da alfândega,
vigiavam o trânsito ilegal de mercadorias e o contrabando (“saca”); os escrivães dos
anteriores; os seladores das alfândegas, que selavam as mercadorias que pagavam direitos
de entrada, para permitir o controlo desse pagamento e evitar a dupla tributação; os
procuradores das alfândegas, que defendiam os interesses do fisco nas causas relativas a

Fazenda (Reg. 17.10.1516, cit., cap. 85); recebiam deste os cadernos de assentamentos por onde os
almoxarifes haviam de fazer os pagamentos e vigiavam o cumprimento das instruções neles contidas
(ibid., cap. 78); tomavam anualmente as contas aos almoxarifes (ibid., cap. 81), etc. Quanto a estes,
além de sujeitos a este controlo, deviam pedir instruções aos contadores, no caso de dúvida (ibid.,
116); enquanto que, a jusante, exerciam uma idêntica atividade de inspeção e instrução sobre
escrivães e recebedores (v.g., ibid., 104).
225 Lista das contadorias, em 1516: Santarém, Leiria, Alenquer, Setúbal, Évora, Beja, Coimbra,

Viseu, Guarda, Algarve, Porto, Guimarães, Moncorvo (Reg. 17.10.1516, cap. 34, em José M. C. C. e
Soisa, Systema dos regimentos reais [...], cit., 1, 24). No século XVII, aparecem, a mais, as de Viana,
Esgueira, Lamego, Pinhel, Castelo Branco, Tomar, Estremoz e Ourique.
226 Fonte legal: Ordenações da fazenda, de 17.10.1516, em José M. C. C. e Soisa, Systema dos

regimentos reais [...], cit., 1, 62 ss.


227 Rede aduaneira, v. António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit. 216.

76
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
direitos aduaneiros (esta competência podia também recair no feitor); os almoxarifes e
recebedores, que arrecadavam as rendas e efetuavam os pagamentos; os porteiros,
meirinhos, etc.228.
§ 200. O resto da administração fiscal e financeira era constituído por um número
relativamente elevado de oficiais especializados encarregados da cobrança dos vários
tributos. Destacamos, dentre estes, os oficiais das jugadas, tributo em trigo, milho, vinho e
linho que recaíam sobre certas terras (“terras jugadeiras”)229 (v. cap. 4.2.2.4; v. § 1152). O
aparelho administrativo deste ramo era desigual, consoante a importância do tributo nas
várias regiões230.
§ 201. Uma particularidade destes ofícios é o facto de parte das suas rendas serem
geralmente pagas em géneros, no que se aproximam dos ofícios de administração dominial
da coroa (dos pauis, lezírias, montados, etc.), pertencentes a uma estrutura administrativa
mais arcaica, porventura decalcada na administração “obediencial” da igreja231, e.provinda
da época em que as receitas da coroa eram constituídas, principalmente, por rendas
dominiais e em que os modelos administrativos vigentes na sua arrecadação eram os
modelos da administração dominial,
§ 202. Outros oficiais da administração fiscal-financeira são: os do consulado ou “dos
3%”232 - escrivães, recebedores -, que aparecem em Lisboa, Caminha, Vila do Conde,
Aveiro, Buarcos, Setúbal, Lagos, Vila Nova de Portimão, Faro e Tavira; os do direito do sal
ou “direito novo”233 - escrivães, feitores, recebedores - que aparecem em Aveiro e Setúbal; os
dos milheiros da sardinha de Setúbal; os do estanco das cartas de jogar (meirinho - aparece
em Santarém); os da moeda - das casas da moeda de Lisboa e do Porto; os das
almadravas; etc..
2.4.2.2.3 Os oficiais da milícia.
§ 203. Sobre a administração militar234 dependente da coroa já foi dito o principal. Salvo
alguns pequenos núcleos de soldados pagos em pontos nevrálgicos da defesa da costa, ela
é inexistente antes das guerras da Restauração. Com exceção, é claro, dos alcaides dos

228 Sobre a alfândega de Lisboa, que tinha, como já se viu, uma organização particular, v. o Foral

da Alfândega de Lisboa, de 15.10.1587, em José M. C. C. e Soisa, Systema dos regimentos reais [...],
cit., 2, 1 ss. Comentário e decisões judiciais em Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 9,
ad 2,26, § 9 e 20, 33; 2,28, rubr..
229 Sobre as jugadas - tributo sobre cuja aplicação havia muitas questões práticas, quer quanto às

terras por que era devido, quer quanto às isenções pessoais (v. Ord. fil.,2,33) - há uma vastíssima
literatura. Para a descrição sistemática, Francisco Coelho de Sousa Sampaio, Prelecções de direito
pátrio […], cit., pg. 102. Para a doutrina anterior: verdadeiro tratado sobre o tema, com muita
jurisprudência, regimento das jugadas de Santarém de 25.3.1559, foral novo e regimento das jugadas
de Coimbra, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 9, ad Ord. fil.,2,33, rubr., pg. 357 ss.;
Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., pt. 1, dec. 188; pt. 2, dec. 64.
230 Os ofícios das sisas eram locais (v. supra). Em Lisboa, as sisas eram lançadas e cobradas nas

“casas de Lisboa”, sobre as quais, v. António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., II.4.2.
231 Sobre este tipo administrativo, Cf. R. Durand, Le cartulaire du Baio-Ferrado du monastère de

Grijó (XI-XIII siècles), Paris, 1971, XLVII.


232 Sobre o consulado, v. António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., II.4.

233 Reg. 20.5.1640, José M. C. C. e Soisa, Systema dos regimentos reais [...], cit., v. 655 ss.

234 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas […}, cit., 218 ss..

77
As jurisdições e o direito.
castelos (Ord. fil.,1,74); mas, na época moderna, as alcaidarias já eram postos mais
honoríficos do que operacionais.
2.4.2.2.4 Administração dos próprios da coros da coroa
§ 204. Ao lado da administração periférica votada à cobrança dos tributos, a coroa
dispunha de outras estruturas administrativas votadas à administração dos seus bens
próprios; ou seja, daqueles bens de que os reis detinham o domínio a partir do ato original de
conquista ou por outro modo de aquisição (compra, doação, troca, etc.)235.
§ 205. Se se destaca este ramo da administração não é tanto por se querer insistir
numa distinção que, ainda nesta época, é razoavelmente anacrónica - a distinção entre
direitos públicos da coroa e património privado do rei (v. cap. 4.2.2.2) - mas porque o regime
destes funcionários tem traços específicos, denotando um maior arcaísmo e uma maior
proximidade, até na designação dos oficiais, em relação às formas de administração do
património régio em vigor na idade média. Um traço, entre outros: o da existência frequente
de salários em géneros.
§ 206. Os principais ramos deste sector da administração dominial são os seguintes.
§ 207. A administração das lezírias e pauis do Tejo, que cuidava do arrendamento das
lezírias e pauis reais de Albacetim, Ota, Rio Maior, Ribeira, Asseca, Redinha, Malveira,
Benavente, Muge, Salvaterra e Alcoelha e da polícia das respetivas valas, marachões e
tapadas236. Uma vez que não eram cultivadas diretamente, as lezírias eram repartidas pelos
lavradores que as quisessem arrendar (Reg. das lezírias, n. 1; Reg. dos pauis, n. 1). Sobre
os quais ficavam a impender certas obrigações, quer quanto ao cultivo, quer quanto à
conservação das obras de irrigação e de hidráulica, quer ainda quanto ao aproveitamento de
novas terras e juncais (Reg. das lezírias, ns. 6 ss.; Reg. dos pauis, ns. 3 ss.). O principal
oficial das lezírias era o provedor e contador, que superintendia sobre o seu arrendamento e
polícia (Reg. das lezírias, n. 40). Abaixo dele, o almoxarife, com funções de tesoureiro, de
polícia e de justiça, competindo-lhe, neste último plano, conhecer de todas as causas das
lezírias e daquelas em que fossem partes os seus lavradores que tinham, portanto, privilégio
de foro (Reg. das lezírias, 41). Além destes, outros oficiais menores - mestres das valas
(Reg. das lezírias, n. 50), recebedores (ibid., n. 51), guardadores (ibid., n. 54), alcaides (ibid.,
n. 56), etc..
§ 208. Importância semelhante têm os oficiais da administração dos montados de
Campo de Ourique, zona de pastagem pertencente à coroa onde vinham pastar os gados do
termo e, ainda, no Inverno, gados das comarcas do interior alentejano e beirão237. A
utilização dos pastos e da água (além da lenha e mato para os pastores) obrigava ao
pagamento de uma percentagem (normalmente, 1 %; para as varas de porcos, 2%) das
cabeças do rebanho (“monta”). Esta “monta” era feita em data e lugar certo, todos os anos,
sob a presidência do ouvidor dos montados, auxiliado pelos seus oficiais - escrivães,

235 António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 224 ss..


236 Reg. das lezírias de 24.11.1576, em José M. C. C. e Soisa, Systema dos regimentos reais [...],
cit., 2, 289 ss.; reg. dos pauis, ibid., 315 ss. O carácter real das lezírias decorria quer do direito comum,
quer do direito pátrio (Ord. fil.,2,26). No campo do Mondego, havia também um provedor dos
marachões, com os seus oficiais (Reg. 8.9.1606, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 9,
ad Ord. fil.,2,33, gl. 33, ou Col. Chron. Leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo, 178.
237 Cf. Reg. de 19.1.1699, em Col. chron. leg. (J.J.A.S.), pg. 424.

78
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
meirinhos, procuradores (c. 6). Nos concelhos, havia os juízes do verde, que marcavam as
coutadas de cada vizinho (zonas em que a pastagem dos gados foreiros era vedada) (c. 21)
e julgavam as coimas; eram auxiliados pelos escrivães do verde (c. 23).
§ 209. De âmbito geográfico mais geral era a administração das matas reais, destinada
a regular o desbaste da madeira e a impedir a caça furtiva238. O território do reino estava
dividido em montarias ou coutadas, em cada uma das quais existia um monteiro-mor ou juiz
das coutadas, que superintendia na guarda das matas. O julgamento dos feitos relativos a
elas era da competência dos almoxarifes (no caso das montarias) ou dos juízes das
coutadas, que davam apelação e agravo para o juízo do Monteiro-Mor da corte, integrado
pelo Monteiro-Mor e por dois desembargadores extravagantes da Casa da Suplicação (Reg.,
cit.., ps. 114 e 124).
§ 210. Próxima da anterior, a administração dos pinhais - nomeadamente, do pinhal de
Leiria -, regulamentada em 1597 (A. 26.7)239, e destinada a fazer observar as normas sobre
aproveitamento da lenha e madeira.
2.4.2.3 A administração central
§ 211. Do ponto de vista do poder da coroa, o polo unificador de todos os ramos da
administração periférica anteriormente descritos devia ser constituído pelos órgãos da
administração central ou palatina. Dedicaremos, portanto, as páginas seguintes a uma sua
rápida descrição.
§ 212. Na corte - Casa Real, Tribunais da Corte e Casa do Cível - encontramos, no
século XVII, cerca de 600 oficiais240. Número que, se bem que corresponda apenas a cerca
de 5% do conjunto dos oficiais do reino, revela um assinalável desenvolvimento da
administração central. As rendas (salários e emolumentos) por eles recebidas ascendiam, na
mesma época, a mais de 42 contos, o que correspondia a c. 22% das rendas dos oficiais de
todo o reino; enquanto que os salários que lhes eram pagos (cerca de 24 contos no conjunto)
constituíam quase metade (39%) dos salários totais. Do ponto de vista tipológico, também se
verifica aqui uma grande exuberância, pois encontramos cerca de 220 categorias (ou
designações) dos ofícios, o que corresponde a aproximadamente 1/3 das existentes para
todo o reino. Tudo isto corroboraria um fenómeno de “intensificação” da administração
central comum às monarquias peninsulares, que já foi salientado por anteriores análises
(v.g., a de J. Vicens Vives).
§ 213. Os ofícios da corte constituem, no entanto, um conjunto bastante heterogéneo,
agrupado em organismos diversos, que descreveremos em seguida.
2.4.2.3.1 Casa Real.
§ 214. Existe, desde logo, o núcleo da Casa Real241. Ao lado dos oficiais maiores da

238 Cf. reg. 20.3.1605, em Col. chron. leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo A organização dos monteiros é

extinta em 1800 (alv. 21.3, §28).


239 Cf. A Arala Pinto, O pinhal do rei. Subsídios, Alcobaça, 1938-1939,2 vols. Novo regimento em

25.7.1751 (em Col. Chron. Leg. (A.D.S.).


240 Todos os seguintes elementos quantitativos podem ser conferidos em António Manuel

Hespanha, As vésperas […], cit., ps. 160 ss. (com quadros e gráficos).
241 Para indicações bibliográficas sobre a Casa Real e os seus oficiais, v. António Manuel

Hespanha, As vésperas […], cit., 228.

79
As jurisdições e o direito.
casa real - mordomo-mor, estribeiro-mor, aposentador-mor, camareiro-mor, porteiro-mor,
vedor, armeiro-mor, monteiro-mor, almotacé-mor (cf. Ord. fil.,1,18), correio-mor, cevadeiro-
mor, provedor-mor das obras do paço, meirinho-mor (Ord. fil.,1,21) -, os ofícios da guarda, os
físicos, cirurgiões e boticários, os ofícios da cozinha e copa, os reis de armas e seus oficiais,
os músicos e inúmeros artífices.
2.4.2.3.2 Secretários.
§ 215. Os secretários (da câmara, de despacho, de Estado) apoiavam o rei nas
decisões correntes em matéria de graça e de governo242. Constituem a sequência dos
oficiais que, desde a idade média, preparavam o despacho (ou “desembargo”) do rei. Na
segunda metade do século XVI, com o desenvolvimento da administração sinodal, os
secretários asseguram, frequentemente, a ligação entre o rei e um dos conselhos palatinos
(v.g., o secretário “de Estado”, com o Conselho de Estado; o “da Índia”, com a repartição da
Índia do Conselho da Fazenda ou, enquanto este existiu (1604-1614), com o Conselho da
Índia; o “da Fazenda”, com o Conselho da Fazenda). Com D. João III e D. Sebastião
aconteceu frequentemente que um destes secretários ganhasse um ascendente no
despacho corrente (v.g., os Carneiros ou os Câmaras).
§ 216. Trata-se de um cargo com um regime institucional fluido, oscilando entre o de
simples auxiliares privados de despacho - oral ou escrito - do monarca e o de ministros com
competência para coordenar um ramo mais ou menos extenso da administração. Em geral,
coexistiam vários tipos de secretários (os “da câmara”, os “dos conselhos”). A designação
secretário “de Estado” apenas aparece durante o domínio filipino, provavelmente por
simpatia com a designação de idênticos funcionários espanhóis.
§ 217. O número e designações dos secretários de Estado variou ao longo de todo o
século XVII e XVIII. Em 1604, eram quatro - negócios de Estado e Justiça; matérias de
Consciência e Ordens; negócios da Fazenda; petições e mercês -, cada uma das quais
correspondente, como se vê, à área de atribuições de um dos conselhos do Paço; só a
última era transversal, preparando o despacho de quaisquer tipos de mercês. Em 1607,
ficaram reduzidas a duas; mas em 1631 foi criada uma nova secretaria “da Índia e
Conquistas”. Estas secretarias funcionavam em Madrid; em Lisboa, existiam também
secretários dos vice-reis ou governadores, parecendo que dois foram mais ou menos
permanentes, o “de Estado” e o “das mercês”.
§ 218. Com D. João IV, atribuíram-se inicialmente todas as competências a um só
secretário, a que se chama “de Estado”, mas, logo em 1643 (alv. 29.11), desdobrou-se esta
secretaria em duas, a “de Estado” e a “das mercês e expediente” (Reg. em B.N.L., ms. 8),
segundo uma repartição de competências constante do mesmo alvará. Pelos finais do século
XVII, criou-se a “secretaria da assinatura”, encarregada do processamento da parte final dos
diplomas régios.
§ 219. Em 1736 (alv. de 28.7243), foi reestruturada a orgânica das secretarias (agora
“secretarias de Estado”, criando três - a do Reino, a da Marinha e Ultramar e a dos Negócios
Estrangeiros e Guerra). Esta última é desdobrada em 1787. A da Fazenda é criada em 1788
(dec. 15.12). Com isto, atinge-se a especialização da alta administração central que

242 Cf. bibliografia em António Manuel Hespanha, História das instituições [...], cit., 342 e António

Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 243 ss..


243 Em Collecção de legislação extravagante […]. Leis e alvarás, lI, 458.

80
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
encontramos nos finais do Antigo Regime e que presidirá ainda, basicamente, à repartição
dos ministérios no constitucionalismo monárquico. A partir dos meados do século XVIII,
aparece a figura do “ministro assistente ao despacho”, espécie de coordenador da ação dos
restantes secretários244.
§ 220. Em 12.3.1663, dá-se regimento ao cargo de escrivão da puridade, restabelecido
a favor do valido do monarca, o Conde de Castelo Melhor, mas que não lhe sobreviveu.
§ 221. O governo pelos secretários régios - do mesmo modo que o governo por “juntas”
eventuais, que se tomou habitual no período dos Áustria, tanto em Portugal como em
Espanha - desvalorizava os conselhos palatinos e corroía o seu poder. Daí que fossem
frequentes as pressões no sentido de exigir a intervenção dos conselhos para a produção de
atos executórios.
2.4.2.3.3 Conselho de Estado.
§ 222. Mais institucionalizado era o Conselho de Estado245, criado pelo Cardeal D.
Henrique, ao tomar posse da regência, em 1562, para tratar de “assuntos de Estado”, ou
seja - tal como são definidos, no alv. de 29.11.1643 - “contratos, cazamentos, alianças,
instruções, avizos publicos, ou secretos, que se derem a quaisquer embaixadores,
comissarios, agentes, rezidentes, agentes, e quaisquer poessoas [...] que se despacharem
dentro ou fora do Reino, e negócios que forem da qualidade referida” (A.N.T.T., ms. 2608).
§ 223. O seu primeiro regimento é já de 8.9.1569, de acordo com o qual o conselho
devia reunir três vezes por semana, despachando os assuntos que lhe fossem propostos
pelo rei ou nos quais os conselheiros acordassem, destacando-se expressamente os
assuntos da fazenda. Em 1624, dá-se-lhe novo regimento (referido no de 1645), mandando-
se reunir pelo menos duas vezes por semana. Ele devia, nomeadamente, assessorar o vice-
rei no despacho das matérias que cabiam na sua alçada246. D. João IV dá-lhe novo
regimento em 31.3.1645247, espaçando ainda mais as reuniões (todas as segundas-feiras),
mas encomendando aos seus membros, como principais ministros do reino, a maior
liberdade de opinião. Na sua função de consulta, o Conselho de Estado sofria a concorrência
de “juntas” informais, como a “Junta noturna”, órgão restrito e quotidiano de consulta
instituído por D. Luísa de Gusmão, talvez inspirada pela Junta de la Noche formada pelos
principais validos de Filipe II.
§ 224. Com D. Pedro lI, o Conselho de Estado reúne-se regularmente (semanalmente),
embora, na sua função de conselho, fosse progressivamente substituído pelo “Gabinete do
rei”, constituído pela rainha, validos, desembargadores e eclesiásticos. Esta tendência de
transferir para um “gabinete” de secretários as tarefas de conselho e de coordenação política
acentua-se cada vez mais. Por isso - e segundo Merêa -, a atividade do Conselho decaiu
muito desde os finais do reinado de D. João V. não havendo conselheiros em 1754. Pombal
reestruturou o Conselho em 1760 e nomeou cinco conselheiros; mas, não tendo estes sido
substituídos por morte, o Conselho estava de novo reduzido aos secretários de Estado. Em

244 Sobre a estrutura e funcionamento das secretarias de Estado no séc. XVIII, José Manuel
Subtil, “Governo e administração”, cit., 177 ss..
245 Cf. bibliografia e fontes em António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 247 ss.

246 Reg. do Arquiduque Alberto, caps. 6 e 7; Reg. do Conde de Basto, de 18.7.1633, Col. chron.

leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo, pg. 318 ss., art. 16.


247 José M. C. C. e Soisa, Systema dos regimentos reais [...], cit., VI, 472.

81
As jurisdições e o direito.
1796, D. Maria nomeou 14 conselheiros e deu aos ministros de Estado a categoria de
conselheiros natos (aviso de 4.7). Parece ter deixado de reunir em 1801.
2.4.2.3.4 Conselho de Portugal.
§ 225. Um outro órgão de governo central foi o Conselho de Portugal248.
§ 226. Constituía um dos privilégios oferecidos por Filipe II de Espanha às cortes de
Almeirim de 1579. Teve um regimento um 1586, alterado em 1602 e, provavelmente, de
novo por volta de 1633. Embora só agora comecem a ser feitos estudos de detalhe sobre
este órgão, a sua importância política parece ter sido diminuta, ocupando-se sobretudo das
trivialidades da administração, sendo os assuntos de maior vulto remetidos ao Consejo de
Estado. Na literatura memorialista da época249, a discussão sobre as vantagens ou
desvantagens da existência do Conselho gira em torno da questão de saber se ele embaraça
ou facilita o despacho das pretensões dos requerentes portugueses. Em contrapartida, no
horizonte nunca aparece a sua ligação à questão da autonomia de governo portuguesa.
Nestes termos, a alternativa ao Conselho de Portugal, que esteve em prática por alguns
anos, de encaminhar diretamente os papéis de Lisboa do Vice-Rei para um secretário
(Fernão de Matos, Diogo Soares) podia apresentar vantagens, por extinguir um dos passos
do percurso burocrático.
§ 227. Em Lisboa, por sua vez, existiram, durante o período filipino, governadores e
vice-reis, com poderes constantes do regimento de cada um.
2.4.2.3.5 Desembargo do Paço.
§ 228. Para as “matérias de graça que tocassem à justiça” - de facto, a generalidade
dos assuntos relativos à administração civil do reino - existia o Desembargo do Paço. Com
ele se correspondiam os corregedores, quanto à generalidade das suas atribuições. Por ele
se despachavam também as decisões finais sobre as “leituras de bacharéis”, que habilitavam
para o desempenho das magistraturas letradas (“lugares de letras”), as quais eram também
despachadas por este tribunal. Nele, finalmente, se confirmavam as eleições dos concelhos
e os respetivos oficiais. Mas a sua atividade de controlo raramente configurava uma
intervenção diretiva, antes se cifrando quase sempre num controlo de tipo tutelar250.
§ 229. Segundo uma notícia coeva251, o seu serviço ocupava o presidente, 2
desembargadores, 7 escrivães (“Alentejo”, “Beira”, “Entre Douro e Minho”, “Lisboa”, “Mesa,
letrados e ofícios” e dois extravagantes), 1 médico, 1 cirurgião, 1 porteiro e 4 moços de
recados. Setenta anos depois, a sua orgânica interna aparece, no entanto, bastante alterada
- aumenta para nove o número dos desembargadores, reduzem-se a cinco as escrivaninhas
(repartições ou secretarias) - “Justiça”, “Corte, Estremadura e Ilhas”, “Beira”, “Alentejo”,
“Minho e Trás-os-Montes” -, e aumenta o número de oficiais menores (10)252.

248 Cf. bibliografia e fontes em António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 249 ss.
249 Cf. g. na Historia portugueza e de outras provincias do ocidente […], de Manuel Severim de
Faria, cod. 241 B.N.L..
250 Literatura, fontes e ulteriores desenvolvimentos em António Manuel Hespanha, As vésperas

[...], cit., 250 ss. Por último, com antecipações dos resultados de um importante trabalho de
investigação em curso, José Manuel Subtil, “Governo e administração […]”, cit., 163.
251 Cod. 11543 da B.N.L., fls. 168-170.

252 João Martins da Costa, Domus Suplicationis […], cit., III, 585. Para a segunda metade do

82
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2.4.2.3.6 Casas da Suplicação e do Cível.
§ 230. As Casas da Suplicação e do Cível constituíam o desdobramento do tribunal da
corte para as matérias de justiça253.
§ 231. A sua competência era, em termos gerais, o julgamento em última instância, dos
pleitos judiciais. A Casa do Cível exercia esta competência nas comarcas e ouvidorias de
Entre Douro e Minho, de Trás-os-Montes, da Beira (salvo Castelo Branco) e nas de Esgueira
e Coimbra (da Estremadura). A Casa da Suplicação nas restantes comarcas do reino (cf.
Ord. fil.,1,6,12), nas ilhas (durante certo período sujeitas às relações do Brasil)254, no
ultramar (até à criação das respetivas Relações) e quanto a certos juízos privilegiados e
especiais. Esta competência não era exercida indiscriminadamente por todos os
desembargadores; antes estava repartida por certos núcleos (cf. Ord. fil.,1,6 ss.255), pois
existiam vários núcleos da Casa da Suplicação256.
§ 232. a) Os Desembargadores dos Agravos eram os julgadores dos agravos das
justiças de Lisboa ou de certos juízes de graduação mais elevada e, sobretudo, dos agravos
e apelações cíveis do distrito da Casa257, conhecendo:
(i) os agravos cíveis vindos da Casa do Cível, bem como os agravos vindos de certos juízes da Corte
(corregedores da Corte) ou de juízos particulares (Juiz da Índia e da Mina, Conservador dos Alemães,
Conservadores das Universidades de Coimbra e Évora, Ord. fil.,1,6,pr.);
(ii) os agravos cíveis (por instrumento de agravo ou cartas testemunháveis) vindos das justiças do distrito da
Casa (Ord. fil.,1,6,4);
(iii) quaisquer agravos vindos das justiças da área de Lisboa (Ord. fil.,1,6,6);
(iv) os agravos de decisões individuais, quer interlocutórias, quer definitivas, de qualquer desembargador da
Casa ou do corregedor dos feitos cíveis (ibid.,7-9);
(v) as apelações cíveis de certos juízos especiais de Lisboa (juízes dos órfãos, ouvidor da alfandega, provedor
dos resíduos, conservador da moeda) ou das justiças do distrito da Casa (Ord. fil.,1,6,12);
§ 233. b) Os Corregedores dos feitos crimes (para detalhes, Ord. fil.,1,7), além de
exercerem, na Corte, as atribuições que competiam aos corregedores e, em matéria crime,
aos juízes das terras (ordinários ou de fora), eram os julgadores dos agravos crime do distrito
da Casa, julgando:
(i) as ações novas da Corte, em matéria crime (Ord. fil.,1,7,pr. );
(ii) os agravos crime das justiças do distrito (Ord. fil.,1,7,15);

século XVIII, José Manuel Subtil, “Governo e administração”, cit..


253 Não existem monografias atualizadas sobre o tema, pelo que uma investigação de fundo teria

que começar pelos textos legais (para a Casa da Suplicação, Ord. fil., 1, 5-34; para a Casa do Cível,
Ord. fil., 1, 35-46; legislação extravagante abundante em Manuel Fernandes Thomaz, Reportorio geral
[…], s.v. “Relação [...]”, “Casa da Suplicação”, “Casa do Cível”, “Desembargadores”) e pelos
comentários doutrinais: antes de todos, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomos 2 e 3 (v.
os “estilos” da Casa do Cível, em tomo IV, ps. 13 ss.), João Martins da Costa, Domus Supplicationis
[…], cit.. Literatura secundária em António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit.. Com organigrama,
José Manuel Subtil, “Governo e administração”, pg. 170.
254 A Relação da Baía foi criada em 1609 (Regimento, 7.3.1609), extinta em 5.4.1626 e

novamente restabelecida em 1652 (Regimento em 12.9.1652). A Relação do Rio foi criada em


16.1.1751 (Regimento em 13.10.1751).
255 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas […], ed. 1986, 1, 330 ss..

256 Sobre a sua hierarquia simbólica, António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 228 ss..

257 Para detalhes, Ord. fil.,1,6.

83
As jurisdições e o direito.
(iii) os agravos crimes das justiças da área da Corte, não estando esta em Lisboa (pois então irão, como
vimos, aos desembargadores dos agravos) (Ord. fil.,1,7,16);
§ 234. c) Os Corregedores dos feitos cíveis (para detalhes, Ord. fil.,1,8) eram os
julgadores em primeira instância das ações cíveis da corte ou a elas avocadas, onde
exerciam ainda as funções dos corregedores, em matéria cível (ibid., pr.). Conheciam:
(i) as ações novas da Corte em matéria cível, dando agravo para os desembargadores dos agravos (Ord.
fil.,1,8,l,pr. e 2);
(ii) as ações novas em que sejam partes os prelados isentos (Ord. fil.,1,8,3);
(iii) as ações cíveis avocadas à Corte pelo rei (Ord. fil.,1,8,5);
(iv) as ações cíveis dos que tiverem a Corte por foro privilegiado (órfãos, viúvas, pobres) (Ord. fil.,1,8,6);
(v) os agravos cíveis (por petição) das justiças da área da Corte, não sendo de Lisboa (pois neste caso, eles
vão aos desembargadores dos agravos, tal como no caso dos agravos por instrumento ou carta
testemunhável) (Ord. fil.,1,8,9);
§ 235. d) Os Ouvidores do crime (para detalhes, Ord. fil.,1,11) julgavam:
(i) as apelações crimes do distrito da Casa (Ord. fil.,1,11,pr.);
§ 236. e) Os juízes dos feitos da Coroa (Ord. fil.,1,9), julgavam:
(i) as ações novas de Lisboa ou da Corte relativas, direta ou indiretamente, à "posse ou propriedade" de
direitos da Coroa (Ord. fil.,1, 9,pr.), ainda que esta não fosse parte nelas;
(ii) ações do mesmo tipo, vindas por apelação ou agravo das comarcas do distrito da Casa.
§ 237. f) O juiz dos feitos da Fazenda (Ord. fil.,1,10) julgava:
(i) em geral, todas as ações (novas, por agravo ou por apelação), que dissessem respeito à Fazenda
(nomeadamente, cartas de ofícios, rendas reais, agravos de sentenças dos oficiais da Fazenda); a fronteira
com as atribuições próprias do Conselho da Fazenda era um tanto casuística. Como norma geral, poderia
dizer-se que os agravos ou apelações das sentenças dos oficiais da Fazenda iam aos seus juízes da Casa da
Suplicação, enquanto que as súplicas de outros atos iam ao Conselho da Fazenda. A partir de 1608 (alvs. de
4.1 e de 27.1; cf. ainda alvo 23-12-1642258), os juízes da Fazenda despachavam no Conselho da Fazenda e
não na Casa da Suplicação.
(ii) as apelações e agravos das sentenças do provedor e oficiais da alfândega de Lisboa (Ord. fil.,1,10,9);
(iii) os feitos sobre injúrias feitas aos rendeiros ou recebedores de rendas reais, quer por ação nova, quer por
apelação (Ord. fil.,1,10,12).
§ 238. Na Casa do Cível, existiam núcleos correspondentes259.
2.4.2.3.7 Conselho da Fazenda.
§ 239. Um outro tribunal do Paço é o Conselho da Fazenda, tribunal criado em 1591,
na sequência da reforma filipina da administração superior da fazenda, e em substituição dos
anteriores vedores da fazenda, cujas atribuições herda260. Embora o cargo já existisse antes,
o primeiro regimento conhecido dos vedores da fazenda é o de 17.10.1516, integrado no

258 Collecção chronologica de leis extravagantes [...], cit., 1, 77 e 485.


259 Cf. também José Manuel Subtil, “Governo e administração” […], cit.
260 Literatura e fontes em António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 236 ss. Dado o seu
paralelismo com a evolução portuguesa, ainda que manifestando uma sistemática precocidade, tem
interesse recordar os traços gerais da alta administração financeira castelhana. O Consejo de Hacienda
existia desde 1532, com atribuições e estrutura semelhantes ao português. A cobrança e administração
dos serviços (millones) votados em cortes corria pela Comissión de millones, criada por 1590, integrada
no Consejo em 1658, e correspondente, nas suas funções, à nossa Junta dos Três Estados. O reforço
da via governativa em matéria de fazenda leva à criação, desde 1714, de uma Secretaria de Estado e
Despacho especializada, marginalizando o respetivo conselho.

84
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
conjunto dos Regimentos e ordenações da Fazenda261. Aí se prevê a existência de três
vedores, cada qual com o seu escrivão, com competências repartidas entre si (cap. 26-29),
dispondo de atribuições no domínio da administração da fazenda real e da jurisdição,
voluntária ou contenciosa, relativa a assuntos da fazenda262. O facto de os três vedores
terem competências delimitadas, superintendendo cada qual num pequeno núcleo de
funcionários, deve ter levado a uma quase completa independência de cada um. De tal modo
que, em 20.11.1591, Filipe I, constatando que, na prática, o que existia eram três tribunais
distintos, aplicou a este domínio da administração o regime sinodal, integrando os três
vedores num conselho, sujeito a um vedor presidente, ao mesmo tempo que juntava aos
vedores não letrados dois outros que o eram. Surgiu, então, o Conselho da Fazenda,
integrando um vedor-presidente, dois vedores não letrados e outros dois letrados (Reg.
20.11.1591, Soisa,1 241-245).
§ 240. A promulgação das Ord. fil. (1603), que previam a existência de um Juiz dos
feitos da fazenda (ao lado do, já existente, Juiz dos feitos da coroa) na Casa da Suplicação,
vem tirar quase todas as atribuições de jurisdição contenciosa ao Conselho da Fazenda, que
passa para o Juiz dos feitos da fazenda da mesma Casa. O grupo de pressão dos juristas
impusera o princípio de que as matérias de justiça, mesmo em questões da fazenda, deviam
caber a tribunais de justiça. A solução era, no entanto, gravosa para os interesses da
fazenda real, que não apenas se via sujeita à apreciação de juízes não especializados,
como, sobretudo, era enleada no eficaz sistema de defesa dos direitos dos particulares
observado na ordem judicial comum. Assim, os anos que se seguem, praticamente até aos
meados do século XVII, são o palco de um despique entre “financeiros” e juristas, de que são
sintomas sucessivas providências legislativas, a propósito da separação de competências
quanto à jurisdição contenciosa em matérias de fazenda entre a Casa da Suplicação e o
Conselho da Fazenda263.
§ 241. A tendência para governamentalizar a administração da fazenda264, furtando-o
ao controlo de um conselho, levou, durante o domínio dos Áustrias, à tentativa da outorga da

261 José M. C. C. e Soisa, Systema dos regimentos reais [...], cit., 1, 1-49.
262 No domínio da administração, competia-lhes: arrecadar as rendas reais (cap. 3); administrar o
comércio ultramarino (incluindo as rendas da Madeira) e decidir sobre temas com ele conexos (como o
abastecimento, defesa e obras das conquistas), cap. 6; tomar as contas aos almoxarifes e contadores
das comarcas, bem como a outros oficiais que lhas devessem (vedores da fazenda do Algarve e do
Porto, contador-mor de Lisboa, recebedores e rendeiros), passando as respetivas cartas de quitação,
caps. 6 e 30. ss:; administrar os bens próprios do rei (lezírias, paços, casas, armazéns, terecenas,
fortalezas), cap. 6; preparar a decisão real em todos os assuntos de graça que tocassem a fazenda,
nomeadamente tenças, ordenados, padrões, dada de jurisdições, etc., caps. 7, 9, 50, 51-54; dar
condicionalmente - por cartas de “se assim é” - rendas reais, caps. 11, 20; dar ofícios das sisas e
direitos reais, caps. 21-33. No domínio da jurisdição voluntária, cabia-lhes: arrendar e aforar
propriedades (cap. 3); arrendar rendas reais (caps. 3, 10, 52); despachar, por si ou por consulta ao rei,
todas as cartas em matéria de fazenda (cap. 5). No domínio da jurisdição contenciosa, estava-lhes
atribuído o conhecimento: dos recursos (eventualmente, de acções novas) em matéria de sisas, cap.
23; dos feitos em que fossem parte os rendeiros de rendas da coroa, cap. 23; dos erros dos oficiais da
fazenda, cap. 24; das apelações das decisões de almoxarifes, recebedores e rendeiros, cap. 25; e, em
geral, de “todas as cousas que pertencem à nossa fazenda, & della dependerem por qualquer via que
seja”, quer por ação nova, quer por apelação, cap. 23.
263 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 236 ss.

264 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 239.

85
As jurisdições e o direito.
gestão financeira a Juntas várias. Mas o Conselho da Fazenda mantém-se como órgão
ordinário. Por 1641-1642, na sequência da votação dos subsídios para a defesa do reino
pelas cortes reunidas nesse ano265, cria-se a Junta dos Três Estados, encarregada de
superintender ao lançamento e cobrança das contribuições que integravam estes subsídios
(décimas, real d'água, novos direitos, tributo das caixas de açúcar, mais tarde, “usuais”). A
Junta mantém-se até aos finais do Antigo Regime (8.4.1813)266.
§ 242. As próximas grandes modificações267do regime da alta administração da
fazenda só se verificam no tempo de Pombal, com a reforma de 22.12.1761268, que unificou
toda a administração não contenciosa da fazenda no Tesouro Real do Reino ou Erário
Régio, deixando para o Conselho da Fazenda apenas as atribuições contenciosas, até que o
alv. de 17.12.1790 (A.D.S., 629) une as duas instituições numa só. Além de evidentes razões
de ordem prática, subjaz às reformas josefina e mariana a ideia iluminista da unidade do
Estado, bem como a mais nítida inclusão das questões da fazenda entre as matérias “de
governo”, libertas de todas as peias da administração jurisdicional269.
§ 243. O Conselho da Fazenda era, portanto, o órgão da corte que controlava - por
processos que ultrapassavam já, em muitos casos, a simples via do recurso uma extensa
área administrativa - a Casa Real (através da sua Mordomia-mor), a Casa dos Contos, a
Contadoria-mor da Corte e Reino, a Casa da Moeda, as Casas da Alfândega de Lisboa, a
Casa da Índia e da Mina, os Armazéns da Guiné e da Índia, as alfândegas e portos secos do
reino, os contadores, os feitores régios e os almoxarifados do reino, dos próprios e dos
mestrados, etc.
§ 244. Em todo o caso, a própria organização da fazenda pública e da sua
contabilidade dificultavam este controlo pois vigorava a regra do pluralismo orçamental e a
da consignação de receitas a certas despesas, pelo que a fazenda se repartia numa
pluralidade de fundos dotados de grande autonomia e afetados a certas finalidades ou
despesas pré-fixadas. O que reduzia bastante o poder de disposição deste órgão central270.
2.4.2.3.8 Mesa da Consciência e Ordens.
§ 245. Para as matérias tocantes à “consciência” e para o governo das ordens militares
de que o rei era grão-mestre - existia a Mesa da Consciência e Ordens271.
§ 246. A Mesa da Consciência é criada em fins de 1532 por D. João III com o encargo
de o aconselhar sobre os assuntos que “tocavam à obrigação da sua consciência”. Parece
que ter funcionado sem regimento até 1558 (24.11). Novos regimentos surgem em 1608:
primeiro, o do Presidente da Mesa (12.8.1608); depois (23.8), o da Mesa272. É-lhe atribuída a

265 Sobre elas, António Manuel Hespanha, “A "Restauração" portuguesa […]”, cit...
266 Fontes suplementares: António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 239.
267 Cf. lista dos seus oficiais, denotando algumas reformas internas, no reg. 29.12.1753 (Colecção
de legislação extravagante. Leis e Alvarás, tomo III, 188).
268 Colecção de legislação extravagante. Leis e Alvarás, tomo IV, 398-429.

269 Sobre esta última fase da alta administração financeira, v. José Manuel Subtil, “Governo e

administração […]”, cit., 171 ss., 181 s.


270 V António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 130 s.

271 Bibl. e fontes, António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 251 ss.

272 O primeiro publicado em Collecção chronologica de legislação (J.J.A.S.), vol. respetivo, 228
ss.; o segundo, em Collecção chronologica de legislação (J.J.A.S.), vol. respetivo, 231 ss.

86
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
tutela da administração espiritual e temporal das ordens militares (n. 16); a tutela das
provedorias e mamposterias dos cativos (n. 16) e dos defuntos e ausentes (n. 16); o governo
da Casa dos órfãos de Lisboa (n. 17); o provimento e governo das capelas de D. Afonso IV e
D. Beatriz (n. 17); o provimento das mercearias dos reis e infantes passados (n. 17); a
administração do Hospital das Caldas e de outros hospitais, gafarias e albergarias de
proteção real (n. 17); a superintendência da administração da Universidade (n. 18); o
provimento dos ofícios relativos às repartições que tutelava, bem como dos das terras das
ordens (ns. 18 ss. e n. 26); o governo espiritual das conquistas (n. 23; correndo, entre 1604 e
1614, o seu governo temporal pelo Conselho da Índia, então criado); bem como, em geral,
todas as coisas que toquem à consciência do rei (n. 27). No domínio contencioso, era
tribunal de recurso nas matérias de foro privilegiado dos cavaleiros das ordens (n. 10), bem
como a instância por onde se passavam os perdões e cartas de fiança dos privilegiados (ns.
43 ss.) ou se concediam autorizações para a alienação ou sub-rogação dos bens das
comendas (n. 42).
§ 247. As reformas do Erário régio promovidas por D. José I, a partir da lei de
22.12.1761, tendentes, sobretudo, à centralização da administração financeira, levam a que,
por Alv. de 20.6.1774, se extingam os contos dependentes da Mesa, quer quanto às rendas
das Ordens, quer quanto às dos cativos, integrando-se tudo no Erário273.
§ 248. Em 22.4.1808 cria-se uma Mesa da Consciência no Rio de Janeiro (cf. também
Av. 12.5.1809, sobre os ordenados dos seus membros).
§ 249. Embora tenha estado projetada a sua reforma nos finais do século XVIII, a Mesa
só foi extinta em 16.8.1833274.
2.4.2.3.9 Conselho da Índia e Conselho Ultramarino.
§ 250. As matérias de governo das conquistas correram, até 1604, pela Mesa de
Consciência. Então, reconhecendo-se a falta de um tribunal especializado para as coisas “da
Índia” (como existia em Espanha, desde 1524), é criado o Conselho da Índia, a que se dá
regimento em 25.7.1604275. Nele eram tratadas, todas as matérias, qualquer que fosse a sua
natureza, relativas ao ultramar, tirando as Ilhas e Norte de África, nomeadamente:
provimento dos bispados, ofícios da justiça, guerra e fazenda; despachos de parte vindos do
ultramar; mercês de serviços do ultramar; etc. O despacho de naus e armadas, bem como a
administração das rendas do ultramar, continuava, porém, a correr pelo Conselho da
Fazenda, a fim de evitar a pulverização da gestão financeira, objetivo que a coroa já então
prosseguia.
§ 251. A criação do Conselho da Índia deve ter provocado reações, especialmente por
parte dos deputados da Mesa da Consciência, que viam as suas prerrogativas severamente
restringidas. Assim, o novo conselho resiste apenas dez anos, sendo extinto em 1614 e

273 Collecção chronologica de legislação (A.D.S.), vol. respetivo, 776.


274 Relatório de Pascoal de Melo sobre a sua reforma, em Manuel Paulo Merêa, “Um relatório
notável” […], cit.. Sobre os seus funcionários, cf. António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 253;
José Manuel Subtil, “Governo e administração”, 169.
275 Collecção chronologica de legislação (J.J.A.S.), vol. respetivo, 87. Cf., para mais pormenores,

António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 255 ss. (e bibl. aí citada). Sobre tipologia de
despachos, v. Marcello José Gomes Loureiro, “O Conselho Ultramarino e sua pauta: aspetos da
comunicação política da monarquia pluricontinental (1640-1668) – notas de pesquisa”,
http://nuevomundo.revues.org/65830.

87
As jurisdições e o direito.
distribuídas as suas competências pela Mesa da Consciência e pela repartição da Índia do
Conselho da Fazenda; embora tenham permanecido razões objetivas para a sua
reconstituição. Com a Restauração, restabelece-se o Conselho (agora, Conselho
Ultramarino), a que é dado regimento em 1642 [ou 1643 ?]276. Ao mesmo tempo, é extinta a
repartição da Índia do Conselho da Fazenda, cujo vedor passa a ser o presidente do novo
Conselho, assessorado por mais dois conselheiros de capa e espada e por um letrado. O
novo Conselho não recupera, porém, as atribuições espirituais relativas ao ultramar, que
continuam na Mesa da Consciência. No resto, o regimento corresponde ao de 1604, embora
a competência do novo conselho em matéria de fazenda seja porventura um pouco alargada.
§ 252. Em 28.7.1736277é criada, como já se viu, a Secretaria de Estado dos Negócios
da Marinha e Domínios ultramarinos, que faz a ligação entre o Conselho e o rei e tende,
progressivamente, a assumir as competências governativas do Conselho278. Em 30.8.1833 o
Conselho é extinto.
2.4.2.4 Conselho de Guerra.
§ 253. O governo militar do reino correu, durante a primeira metade do século XVII, ou
pelos órgãos normais de governo (nomeadamente, pelo que toca ao reino, pelo Desembargo
do Paço e secretarias régias, e, pelo que toca às conquistas, pelos conselhos da Fazenda e
da Índia), ou pelo Consejo de Guerra, de Madrid. A Guerra da Restauração exigiu uma maior
coordenação do governo militar. Assim, logo três dias depois da revolução, em 11.12.1640,
cria-se o Conselho de Guerra. Dificuldades de funcionamento levam à sua reforma em 1643
(Reg. 22.12.1643). A sua competência abrangia tudo o que se referia à defesa do reino,
embora a administração financeira da milícia competisse, como vimos, à Junta dos Três
Estados279. O Conselho dispunha ainda de competência disciplinar de última instância sobre
os militares. A jusante, correspondia-se com os governadores de armas das províncias,
criados na mesma altura. Com a criação da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros
e Guerra, em 1736, o Conselho de Guerra perde bastante importância como órgão de
governo, embora tenha mantido as suas competências jurisdicionais e consultivas até à sua
extinção em 1834.
2.4.2.5 Tribunais eclesiásticos.
§ 254. Finalmente, embora quase sem impacto nas matérias político-administrativas
internas, refiram-se dois outros tribunais, que tratavam de assuntos da esfera religiosa: o
Conselho Geral do Santo Ofício (cf. cap. 2.4.4.4) 280 e o Tribunal da Bula da Cruzada (v. cap.
2.4.4.4.)281.

276 Reg. 14.7.1642 [ou 1643?], Col. chron. leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo, 151; Collecção

chronologica de leis extravagantes [...]. Leis e alvarás, 1, 431.


277 Collecção chronologica de leis extravagantes [...]. Leis e alvarás, 2,458.

278 Pelo alv. 16.6.1763, recebe a competência contenciosa do Conselho da Fazenda.

279 Col. Chron. Leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo, pg. 10. Literatura e fontes, António Manuel

Hespanha, As vésperas [...], cit., 256 ss..


280 Sobre o Conselho Geral do Santo Ofício, v., José Pedro Paiva & Giuseppe Marcocci, História

da Inquisição Portuguesa, 1536-1821, cit..


281 O Tribunal da Bula da Cruzada cobrava e administrava os rendimentos
provenientes da Bula da Cruzada, regularmente concedida aos soberanos portugueses a
partir de Gregório XIV (bula Decens esse videtur, de 6.4.1591), destinados à conservação e

88
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 255. Estes órgãos da administração central dividiam entre si, como vimos, as várias
matérias do governo.
2.4.3 Jurisdição senhorial.
2.4.3.1 Introdução
§ 256. Tratar das jurisdições senhoriais implica tratar do chamado “poder senhorial”282.
§ 257. A historiografia político-institucional tradicional desvalorizou, em regra, a
importância dos poderes senhoriais. Primeiro, pela resposta que dava à questão da
existência ou não de um regime “feudal” em Portugal. Depois, pela leitura que fazia da
legislação e da política da coroa em relação aos senhorios durante a Época Moderna (i.e.,
grosso modo, a partir de D. João II).
§ 258. Comecemos por uma breve alusão à questão do “feudalismo” vs.
“senhorialismo”. A expressão “feudalismo” foi utilizada, ainda no século XVIII, para descrever
o sistema político português. Iluministas e liberais servem-se, nomeadamente, dela (com do
adjetivo “gótico”) para classificar aquilo que, no plano político, consideravam contrário ao
modelo político das nações “polidas e iluminadas”. Pascoal de Melo, por exemplo, usa-a,
com um tom fortemente negativo, para classificar as prestações forais. Mas é no século XIX,
na sequência da obra do espanhol Francisco de Cárdenas (Ensayo sobre la historia da la
propriedad territorial en España, 1873-1875) e do ensaio de Alexandre Herculano, “Da
existência ou não do feudalismo nos reinos de Leão, Castela e Portugal” (Opúsculos), que o
debate se situa no campo historiográfico. Herculano e Gama Barros283, fundando-se na não
obrigatoriedade do serviço militar nobre, na não hereditariedade das concessões de terras
aos senhores, no uso excecional da palavra “feudo”, na permanência de laços de
vassalagem “geral” ligando todos os “naturais” do reino diretamente ao rei e na consequente
existência de direitos reais inseparáveis da pessoa do rei (regalia majora), negavam a
existência de feudalismo em Portugal. Já no século XX, Paulo Merêa e Torquato de Sousa
Soares aderiram a estes pontos de vista, ficando estabelecida, entre nós, a opinião de que o
modelo português (em geral, ibérico) de organização política na Idade Média era específico -
um modelo “senhorial”, mas não “feudaI”. Deve notar-se que esta visão historiográfica se
adequava bem à ideologia dominante nos círculos conservadores portugueses dos séculos
XIX e XX, pois sublinhava um alegado papel unificador, regulador e arbitral da coroa,
semelhante ao que ela desempenhava no “cartismo” ou ao que cabia ao Estado, quer no
modelo liberal, quer na conceção autoritária de Estado do corporativismo. Estes pontos de
vista contribuíram para disseminar a ideia da reduzida relevância do poder senhorial no
conjunto do sistema político português, já na Idade Média, mas, sobretudo, na Época
Moderna.

defesa dos fortes do norte de África. O tribunal foi criado em 1591, tendo-se regulado pelo
regimento do correspondente tribunal de Castela e por disposições avulsas até 1634, data
em que lhe é dado um regimento (reg. 10.5.1634, Collecção chronologica de legislação
(J.J.A.S., vol. respetivo, pg.10), que se mantém em vigor até ao século XIX. Os seus
comissários eram apresentados pelo Papa e nomeados pelo rei.
282 Para Portugal, o panorama mais recente do regime senhorial na Época Moderna é o dado por

Nuno Gonçalo Monteiro, “Os concelhos e as comunidades” (com indicações bibliográficas; v. outra
bibliografia em António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 380 ss.).
283 Em História da Administração Pública [...], tom. 1, ps. 162 ss..

89
As jurisdições e o direito.
§ 259. Os anos sessenta do séc. XX são marcados, em Portugal, pela historiografia
marxista. Em 1963, Álvaro Cunhal publica um ensaio sobre história medieval portuguesa284;
aí, as especificidades do modelo jurídico são pouco consideradas, defendendo-se, com base
nos traços do modelo económico-social, o carácter feudal da sociedade portuguesa
medieval; apesar de clandestino até 1974, este texto influencia a medievística subsequente
(A. H. Oliveira Marques, Armando de Castro, António Borges Coelho, e eu próprio). No plano
dos mecanismos de apropriação do produto económico, começa-se a realçar (por vezes com
algum exagero) o peso do quinhão senhorial285. Mas, no plano jurídico-político, é só na
minha História das Instituições, em 1982, que, pela primeira vez, se trata com detalhe a
armadura jurídica dos senhorios e se ensaia um movimento de revalorização do poder
senhorial, enquanto componente do sistema político português da Época Moderna286. Pouco
depois, José Mattoso287 reavalia de forma nova a questão do feudalismo na monarquia
medieval, salientando a importância do modelo ideológico feudal (fidelidade vassalática, par
serviço-benefício, linhagem) na organização interna dos grupos sociais dominantes. A
importância destes valores tem sido confirmado, para a Época Moderna, por investigações
mais recentes, de que se destacam as de Nuno Monteiro288.
§ 260. É este o pano de fundo, caracterizado por ingredientes teóricos e ideológicos,
que explica o evoluir das ideias sobre a importância do poder senhorial na historiografia
portuguesa. Noutro lugar289, avaliei de forma mais detalhada os argumentos em que se
baseia a posição tradicional do declínio do regime senhorial em Portugal a partir do século
XV. Para aí remeto os leitores, aproveitando aqui apenas a conclusão geral.
§ 261. É, porventura, no plano simbólico ou ideológico que a tese da decadência do
poder senhorial nos inícios da Época Moderna melhor se justifica. Na verdade, a doutrina
deste período - é certo que na esteira de tópicos anteriores - atribui ao rei um papel central e
eminente no seio do sistema do poder político. A própria legislação estava impregnada deste
conceito do poder real. Não apenas nas suas fórmulas (que exprimem a superioridade, o
senhorio eminente e o poder “absoluto” do rei); mas também nos seus conteúdos, quando
considera como essencialmente reais certos direitos (Ord. fil.,2,26), certos tratamentos (v.g.,
“Nosso Senhor”, Ord. fil.,2,45,3), certas prerrogativas (v.g., nobilitar e conceder cartas de
brasão, Ord. fil.,2,26; ter “relação” ou “decidir por acórdão”, Ord. fil.,2,45,4; exercer a
correição, Ord. fil.,2,45,8, etc.). Embora seja difícil encontrar uma destas prerrogativas que
não tenha sido dispensada em favor de algum senhor, não se pode ignorar o seu papel na
conformação de uma certa visão do poder.

284 “La lutte de classes en Portugal à la fin du moyen âge”, Recherches internationales à la

lumière du marxisme, 37, (1963) pp. 93-122; trad. port. 1974.


285 E, consequentemente, a importância das lutas anti-senhoriais dos finais do Antigo Regime (cf.

Albert Silbert, “O feudalismo português e a sua abolição”, cit., ).


286 A inspiração teórica vinha de Max Weber e de Otto Brunner; mas levava-se também a cabo

uma revisão da teoria marxista, sublinhando a importância dos fatores não económicos na
caracterização dos modelos sociais, nomeadamente no “feudalismo tardio”. Cf. António Manuel
Hespanha, História das instituições [...], cit., 1,92 ss.); desenvolvi muito o tema, acrescentando dados
empíricos, em As vésperas […], cit..
287 José Mattoso, Identificação de um país […], cit.,1 47 ss.

288 Cf., como síntese, Nuno Gonçalo Monteiro, “Os concelhos e as comunidades”.

289 António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit..

90
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 262. Porém, mesmo este plano simbólico também é mais complexo, pois ele
compreende também o papel aí reservado aos elementos nobiliárquicos e senhoriais na
exaltação do poder real. De facto, a ideologia moderna sempre estabeleceu uma relação
íntima entre a monarquia e os estratos senhoriais, como elementos interdependentes, de tal
modo que a força e prestígio da primeira repousava na força e prestígio dos segundos. O
casticismo e aristocratismo da sociedade barroca peninsular reforçarão ainda o peso
simbólico dos estamentos nobiliárquicos-senhoriais290.
§ 263. Por muita atenção que o simbolismo mereça, como elemento conformador das
relações políticas, o que é certo é que o núcleo das relações políticas se formaliza ao nível
institucional. E, a este nível, os mecanismos praticados do poder contradizem
frequentemente, como veremos mais detidamente, as mais rotundas das afirmações
doutrinais.
§ 264. Concentremo-nos, por isso, nas questões institucionais, descrevendo os traços
mais característicos do regime jurídico e político dos senhorios. Começaremos por definir o
âmbito ou conteúdo dos poderes senhoriais. Seguidamente, procuraremos averiguar a
importância ou extensão - em termos geográficos, demográficos, económicos, estratégicos -
dos domínios senhoriais.
2.4.3.2 O regime político-jurídico dos senhorios.
§ 265. A caracterização dos senhorios portugueses da Época Moderna decorre do
regime jurídico da sua constituição, do seu âmbito e da sua transmissão.
§ 266. Nos seus aspetos jurídico-institucionais, o regime senhorial português entronca
numa antiga tradição de textos jurídicos, que se inicia nos Libri feodorum [livros dos feudos],
uma coletânea de direito feudal lombardo dos séculos XI e XII, normalmente editada
conjuntamente com o Código de Justinianeu. Na Península, o primeiro tratamento do direito
dos feudos aparece nas Siete partidas (c. 1265, bem conhecidas em Portugal no século
XIV). Aí se define o feudo como “bien fecho que el Senhor faze a algun ome, porque se torne
su vassalo; e el faze omenaje del ser leal” (Part., IV, 26)291. O passo seguinte fixa-se no foro
de Espanha e na prática castelhana das concessões feudais: a “terra” seria o
correspondente ao “feudo de câmara”, a concessão de uma prestação económica,
livremente revogável; já a “honra” seria o correspondente à concessão irrevogável (salvo o
caso de falta grave dos deveres do feudatário [comisso]) de bens de raiz. Ao contrário do
que acontecia no direito feudal comum, os vassalos castelhanos não estariam obrigados a
serviços concretos, especificados no pacto feudal, mas apenas a uma obrigação genérica de
serviço leal. Esta ideia da especialidade do regime vassalático peninsular fez curso. S.
Tomás (De rebuspublicis et principum institutione292) também a corrobora, afirmando que,

290 Sobre estes aspetos, como elementos do complexo de mecanismos políticos da corte, António
Manuel Hespanha, “Une autre administration […]”, cit...
291 A definição dos feudistas era a seguinte: “o feudo é uma concessão livre e perpétua de uma

coisa imóvel, ou equivalente, com a transmissão do domínio útil, retendo a propriedade, com prestação
de fidelidade e exibição de serviços” (Curtius, Baldo).
292 Cf.
https://books.google.pt/books?id=iFg9AAAAcAAJ&pg=PA270&lpg=PA270&dq=De+rebuspublicis+et+pri
ncipum+institutione&source=bl&ots=49pZ4W-Ppt&sig=x2tetuVox5weej2vOgRyDhFn-iA&hl=pt-
PT&sa=X&ei=Mp-
3VPyeK4T_UL6KgdAJ&redir_esc=y#v=onepage&q=De%20rebuspublicis%20et%20principum%20instit

91
As jurisdições e o direito.
nas Espanhas, e principalmente em Castela, todos os principais vassalos do rei se
chamavam ricos-homens, pois o rei daria a cada barão uma quantia, de acordo com os seus
méritos, não tendo a maior parte deles jurisdições ou meios militares que não os concedidos
pelo rei. De onde decorreria a sua dependência, nomeadamente económica, em relação a
este. Não é líquido que esta imagem literária de um regime senhorial mais dependente da
coroa aqui do que no resto da Europa correspondesse à situação real. Num mundo escasso
em registos cuidados das situações vividas, era fácil esta disseminação de imagens baseada
unicamente na autoridade dos textos em que apareciam. O que é certo é que ela se
perpetuou, nomeadamente nos textos legais e doutrinais portugueses dos finais da Idade
Média e da Época Moderna.
§ 267. Em Portugal, é a Lei Mental (Ord. man.,2, 17; Ord. fil.,2,35) que fixa, desde os
inícios do século XV, o regime das concessões vassálicas, em termos bastante próximos das
concessões feudais do direito comum. Aplica-se apenas às concessões com obrigações de
serviço nobre, excluindo - tal como a doutrina do direito comum - as concessões contra uma
prestação económica (como as enfitêuticas, cf. Ord. fil.,2,35,7; v. cap. 4.3.3). Quanto ao
serviço, adota o “costume de Espanha” referido nas Partidas, estabelecendo (Ord. fil.,2,35,3)
que o donatário não seria obrigado a “servir com certas lanças, como por feudo, porque
[elRei] queria que não fossem havidas por terras feudatárias, nem tivessem a natureza de
feudo, mas fosse obrigado a servir, quando por elle fosse mandado”. Quanto à devolução
sucessória, afastou-se o direito feudal lombardo compilado nos Libri feudorum, que permitia
a divisibilidade dos feudos, e adotou-se293 a solução da indivisibilidade e primogenitura.
Depois, consagrou-se a exclusão da linha feminina, em consonância, também, com a
solução das Partidas. A Lei Mental favoreceu, por fim, o princípio de que os bens da coroa,
embora doados, nunca perdessem essa natureza, não podendo ser alienados pelos
donatários sem licença régia Ord. fil.,2,35,3). Pouco depois, no tempo de D. João II,
estabeleceu-se a regra de que as doações deviam ser confirmadas, quer à morte do
donatário, (confirmação por sucessão), quer por morte do rei (confirmação de rei a rei). Dois
outros títulos das Ordenações (Ord. af.,2,24; II, 40; Ord. man.,2,15; 2,26; Ord. fil.,2,26; 2,45)
interessam à definição das relações feudo-vassálicas na Época Moderna. O primeiro lista os
direitos reais, ou seja, os direitos próprios do rei (v. cap. 4.2.2.2); o segundo fixa o princípio
de que tais direitos, bem como as jurisdições, não podem ser tituladas senão por carta294,
fixando, suplementarmente, algumas regras de interpretação destas cartas (Cv.cap. 6.9.2.1.2
)295.

utione&f=false.
293 Decerto por atracão exercida pelo regime da sucessão da coroa e do princípio aristotélico,

recebido pelo direito comum, bem como pelos direitos feudais franco e siciliano, de que “as dignidades
e jurisdições não se dividem”.
294 Excluindo, portanto, a possibilidade de aquisição por prescrição, admitida pelo direito comum.

295 Sobre a Lei Mental, para além das sínteses de António Manuel Hespanha, História das
instituições [...], cit., 286 n. 526 e Marcello Caetano, História do direito português [1140-1495] cit., 513
ss., v. José Anastácio de Figueiredo, Synopsis chronologica [...], cit.,1 26, 167 e João Pedro Ribeiro,
Indice chronologico […], cit., 91, 110/111; Manuel Paulo Merêa, “Génese da “Lei Mental”, cit.; José
Mattoso, Identificação de um país, cit.. A Lei Mental, com as declarações e interpretações a que foi
sujeita, pode ler-se em Ord. man.,2,17, donde passou, pouco modificada, para as seguintes (Ord.
fil.,2,35). Fontes doutrinais: Manuel da Costa, In celeberrimas iuris Cesarei leges, & paragraphos
Commentarii, & de maoiratu bonorum patrimonialium, et de regni successione [...], cit.; Domingos
Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit.; Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit.,

92
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 268. Na prática, a Lei Mental constituiu uma moldura jurídica muito complacente,
sendo frequentemente dispensada, no sentido de autorizar a sucessão por linha feminina.
Também a política de confirmações foi sempre generosa, mesmo nos momentos de maior
tensão política. À sua sombra, as casas nobres puderam perpetuar-se (amparadas pelo
princípio da indivisibilidade, por vezes reforçado com a instituição de morgados dos bens da
coroa).
§ 269. Todo este regime entrou em crise nos finais do século XVIII, embora tal crise
tivesse sido prenunciada pela política de centralização do poder. A lei de 19.7.1790 aboliu as
justiças senhoriais e as isenções de correição; os restantes direitos reais, nomeadamente, os
direitos de foral e as banalidades, são abolidos na sequência da revolução liberal.
§ 270. Vejamos, porém, mais detalhadamente, os traços mais característicos do regime
jurídico dos senhorios.
2.4.3.3 O que era um senhorio e qual o seu conteúdo institucional.
§ 271. Segundo uma definição da época, “chamam-se senhores aqueles que estão
constituídos em alguma dignidade ou poder; a quem foi concedida alguma terra, jurisdição
ou império; ou em relação aos quais o povo é súbdito” 296.
§ 272. Nesta definição, o elemento chave é poder ou os seus equivalentes na
linguagem jurídico-política da época - iurisdictio, imperium.
2.4.3.3.1 Jurisdição
§ 273. Por iurisdictio (jurisdição) entendia-se, como se disse, o “poder instituído pela
república de dizer o direito e decidir em equidade [enquanto pessoa pública]”297. Quanto ao
imperium, ele é definido como o “poder [de usar a espada] para coagir os facínoras” 298.
Aperfeiçoamentos conceituais sucessivos levaram a que o imperium acabasse por ser
sinónimo de poder de coerção de que um magistrado pode usar oficiosamente, ou em vista
da utilidade pública (merum imperium) ou da utilidade de um particular (mixtum imperium) (v.
acima cap. 2.1)299.

tomos 10 e 11; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., Liv. 2. Exemplos textuais, John
Gilissen, Introdução histórica ao direito [...], cit., 193 ss.
296 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 12, ad Ord. fil.,2,45, rubr., gl. 1, n. 2.

297 Para Portugal, Cf., a definição estreitamente inspirada nesta, de Domingos Antunes Portugal

(Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, c. 44, n. 12).


298 Cf. D.2,1,3 (note-se que o conceito de “espada” se foi desmaterializando, abarcando qualquer

tipo de coerção usada ex officio pelo magistrado).


299 É nestes termos que Domingos Antunes Portugal descreve o conteúdo dos dois conceitos: “O

mero império [...] consiste no poder supremo de gládio [...]. Assim, diz respeito à coerção dos
criminosos, como, por exemplo, à condenação ou deportação e a outras coisas relativas à punição dos
delitos e à composição dos litígios [...]. O misto império compete aos magistrados por direito próprio,
pois adere e está compreendido na jurisdição [...], cit., por esta razão se dizendo misto, pois está
misturado com a jurisdição de tal modo que não se podem separar. E como nesta mistura umas vezes
se salienta o império e noutras a jurisdição, costuma-se falar de dois graus de misto império, no
primeiro dos quais se compreendem aquelas atribuições em que o império suplanta a jurisdição, como
mandar fazer estipulações pretórias ou entregar a posse [...] e no segundo aquelas em que a jurisdição
suplanta o império, como dar juízes aos litigantes” (Domingos Antunes Portugal, Tractatus de
donationibus [...], cit., 13, c. 44, n. 16).

93
As jurisdições e o direito.
§ 274. Em suma, senhor era quem dispunha de um poder ou jurisdição sobre outrem
conferido pela república. Tal era o uso da palavra segundo o direito feudal e o direito
comum300.
§ 275. O direito comum e feudal tendiam a conceber a jurisdição senhorial como
ordinária, i.e, decorrente da própria natureza política da sociedade. Os dados específicos do
direito português posterior à Lei Mental levavam, porém, a que os nossos juristas
realçassem, pelo contrário, o carácter delegado da jurisdição senhorial, considerando os
senhores como lugar-tenentes do rei301. No século XVIII, quando se insiste ainda mais no
primado (ou, mesmo, no carácter exclusivo) do poder real em relação a todos os outros
poderes, refere-se que era justamente esse carácter delegado dos poderes dos senhores
portugueses que levara D. Duarte a sublinhar na Lei Mental o carácter não feudal das
doações régias.
2.4.3.3.2 Direitos reais
§ 276. Para além das jurisdições, o rei podia também conceder direitos seus, direitos
reais (ou regalia) (v. cap. 4.2.2.2) Em rigor, isto não importava a aquisição pelo donatário da
qualidade de senhor. Mas apenas da de donatário. Estas distinções exigem algumas
precisões suplementares sobre o conceito de direitos reais.
§ 277. As fontes jurídicas dos direitos comum ou régio continham enumerações dos
direitos reais (regalia). Isso acontecia com o texto Quae sint regalia, dos Liber feudorum,
incorporados na versão medieval do Corpus iuris, e com as Ordenações (Ord.fil.,2,26;
Regimento da fazenda de 1516, c. 237).
§ 278. Basta uma leitura do tit. 26 do livro 2 das Ordenações para nos darmos conta do
carácter heterogéneo dos direitos aqui considerados302. Referem-se à criação de
magistrados e oficiais, de guerra e de justiça; à autorização de duelos; à cunhagem de
moeda; ao lançamento de pedidos, fintas e tributos; à exigência de serviços na paz e na
guerra303; ao domínio das estradas, dos portos304, do mar adjacente e das suas ilhas305, bem

300 Senhor é Cristo, senhores são os reis ou os príncipes, senhor é o pater em sua casa em

relação à sua mulher, filhos e criados. Fora disto, a palavra não se devia usar em termos genéricos: “A
ninguém se deve chamar meu Senhor, ou Senhor meu, nem nosso Senhor, por serem estes títulos
próprios de Deus no Céu, e do Rei na terra, e assim aos Donatários da Coroa, e Senhores de terras, só
se pode escrever Senhor de tal terra, porque ainda que destas o seja, não é das pessoas” (escreve
Manuel Álvares Pegas). Cf., sobre a diferença entre rei e senhor e a explicação de porque é que os reis
de Portugal se intitulavam apenas “senhores” da Guiné, João de Barros, Décadas da Ásia […], cit.,1 liv.
6, cap. I.
301 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 10, Ord. fil.,2,35, ns. 11 e 43.

302 Para uma detalhada explicação do conteúdo deste título, cf., por todos, o respetivo comentário

de Manuel Alvares Pegas (Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9, ad Ord. fil.,2,35, n. 1
ss.); também Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, c. 42; Jorge de
Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 42 ss.).
303 Aqui se fundava o direito às terças dos concelhos, à expropriação por utilidade pública e à

requisição de bens pela mesma razão.


304 Por aqui se justificavam as décimas das alfândegas.

305 Aqui fundavam alguns a pretensão portuguesa e castelhana ao monopólio do comércio com o

ultramar.

94
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
como das salinas306 e das pescarias307; ao domínio das minas308; à exigência de portagens e
barcagens; ao domínio dos tesouros, dos bens vagos (res nullius) ou que tivessem
vagado309, dos bens dos condenados a confisco e dos infames, bem como os bens que o
direito penal considerava perdidos para a coroa; às heranças vacantes, etc (v. cap.
5.3.1.5)310.
§ 279. No caso português, a lista do tit. Ord. fil.,2,26 terminava por uma cláusula geral -
“e assim geralmente todo o encarrego assi real, como pessoal, ou misto, que seja imposto
pela lei, ou por costume longamente aprovado” (Ord. fil.,2,26,33). Assim, os juristas311
procuravam substituir estas enumerações, incompletas, por uma definição. E, assim,
definiam os direitos reais como os direitos que competem ao rei enquanto pessoa pública.
Distinguiam, assim, os direitos que os particulares (ou o rei, enquanto particular) tinham uns
em relação aos outros em virtude de pactos, daqueles direitos que o rei tinha em relação aos
vassalos por imposição da lei ou costume. Estavam, em todo o caso, conscientes de que, no
caso destes últimos, não se tratava de uma categoria homogénea, pois uns procediam “do
supremo poder do rei”, outros de um “domínio universal” que este teria sobre o reino, outros
do direito originário de conquista, outros de pactos antigos, da prescrição ou costumes
longamente usados. Alguns recordam a distinção romana entre aerarium, património
destinado à “defesa do estado da república, sua dignidade e salvação”, e fiscum, votado às
despesas pessoais ou particulares do príncipe. Mas quase todos reconhecem que as
classificações romanas não tinham relevo prático-institucional.
2.4.3.3.3 As categorias dos bens e direitos do rei. Bens privados, fiscais e da coroa.
§ 280. Jorge de Cabedo, escrevendo nos finais do século XVI312, dividia os direitos
reais em (i) uns que “procedem do supremo poder do príncipe, competindo ao rei ou em
razão da jurisdição ou do poder que tem” (aqui incluindo a criação de capitães de terra e

306 Aqui se fundava o direito de pôr tributos no sal, bem como o domínio real das salinas,
salgados e sapais (que muitas vezes eram dadas em sesmaria, para secagem e cultivo, Jorge de
Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 53).
307 Aqui se fundavam as sisas do pescado e os impostos das almadravas.

308 Aqui se fundava a cobrança de quintos ou outros tributos sobre a mineração.


309 Caso típico é o das capelas ou morgados a que faltasse sucessor dentro da ordem de
sucessão definida pelo instituidor (Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, 51, n. 3).
310 Destes direitos, os juristas distinguiam entre direitos reais reservados ao príncipe e aqueles

que ele podia transferir para outrem. Entre os primeiros contavam-se os sinais de supremo poder,
como a feitura de leis gerais, a reunião de cortes, a criação de magistraturas, a justiça suprema
(nomeadamente a revisão de sentença ou a justiça em última instância), o uso do poder extraordinário
(potestas extraordinaria) e a concessão de medidas de graça. Porém, alguns autores, na sequência da
doutrina feudalizante do direito comum, entendessem que o rei podia conceder estes direitos a
vassalos, desde que o não fizesse perpetuamente (cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec.
66), mais comum era opinião no sentido da sua inseparabilidade da pessoa do príncipe, “a cujos ossos
adeririam”.
311 Cf., para Portugal, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 42; Domingos Antunes

Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, caps. 41 e 43; Manuel Álvares Pegas, Commentaria
[...], cit., vol. 10, pg. 13; vol. 11, pg. 2; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 1,4,1 ss.;
Francisco C. S. Sampaio, Prelecções [...], cit., 3, 83.
312 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 42.

95
As jurisdições e o direito.
mar, de magistrados e de oficiais; a autorização de justas e duelos; a cunhagem de moeda,
Cabedo, ibid., dec. 42, n. 4); (ii) e outros que “procedem do domínio universal do rei e lhe
competem em razão de tal domínio”313. Com esta classificação ex causa efficiente combina-
se uma outra ex causa finale, baseada nas finalidades para que tais direitos estavam
atribuídos. Distinguia então entre (i) os que “competem ao rei como senhor da coroa do
reino, que são desta e de que ele não é senão administrador, visando o sustento do estado
da coroa”314 e (ii) os que “o rei tem enquanto privado”315 316.
§ 281. Domingos Antunes Portugal317 mantém, basicamente, a mesma sistematização,
opondo aos bens privados do rei os seus bens públicos, reais ou fiscais. Depois de
aproximar esta classificação da distinção romana entre aerarium e fiscum e de salientar o
seu carácter meramente académico, identifica os bens públicos com os bens da coroa,
salientando a inalienabilidade destes318 e enumerando as suas principais classes: cidades,
vilas e castelos (n. 9 ss.), reguengos (ns. 26-29), maninhos (n. 80), sesmarias (n. 91,
remetendo para Ord. fil.,4,43,13) e outros (n. 93)319.
§ 282. A nitidez desta bipartição, que faria incluir nos bens da coroa todo o património
real é, no entanto, perturbada pelos dados legais, que se prendiam com o regime especial
(quanto à alienação, à indivisibilidade e às regras de sucessão) introduzido pela Lei Mental
(Ord. fil.,2, 35). Por um lado, as ordenações em que está transcrita a Lei Mental exigem a
incorporação formal de certos bens nos “próprios da coroa” (Ord. fil.,2,36)320, de onde
decorria que, se não fossem incorporados, não seriam da coroa do reino e não estariam,
portanto, sujeitos ao regime da Lei Mental. Por outro lado, as mesmas Ordenações
estabeleciam que certos bens - que, nesta classificação de Portugal aparecem incluídos nos

313 Inclui aqui os rios, as vias públicas, os tributos.


314 Incluem os pastos, defesas, montados, matas, baldios, coutadas, granjas e casas de que a
coroa tem o domínio direto ou útil.
315 Conforme diz, esta distinção inspirava-se nas Siete Partidas, 2, 17, 1.

316 Entre os primeiros, alguns seriam reservados ao rei, que não os poderia alienar (Jorge de

Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 42, n.5).


317 Domingos Antunes Portugal, Tractatus [...], cit., liv. 2, c. 41 ss.; e liv. 3, c. 43, 1 ss.. Pondera

que “hoje os príncipes não costumam ter erários distintos e todas as rendas se recolhem juntamente
[...], cit., não se devendo estabelecer nenhuma diferença entre o erário público e o privado [...]
esquecido o nome de erário, se lhe substitui o de fisco, que entre nós e os castelhanos se diz câmara
real [...]” (Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, c. 43, n. 6). “Quanto ao
foro - escreve também (Manuel Álvares Pegas (Commentaria [...], cit., tomo 10, pg. 14, n. 2) - nada
interessa se o património do príncipe é privado ou público, nem mesmo quanto à possibilidade de ser
protegido pelo Juiz dos Feitos da Coroa”.
318 “Enquanto que o príncipe pode usar e abusar livremente das coisas que pertencem ao seu

património privado, aliená-las livremente [...] e transmiti-las aos herdeiros, ainda que não sucedam no
principado [...], cit., já aquelas coisas que não são do príncipe, mas da majestade ou coroa, não
transitam para os herdeiros e ficam sempre no império e principado, sendo apenas devidas aos que
sucedem no reino” ( liv. 3, c. 43, ns. 7-8).
319 Enumera as vias, rios, portos, ilhas, bens vagos, bens dos condenados e dos proscritos,

padroados, bens dos infames, multas e penas.


320 Ou seja, nos livros de tombo do património da coroa existentes na Torre do Tombo. Sobre a

incorporação, v. Ord. fil.,2,36; Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 10, pg. 16, n. 8; Ord.
fil.,2,46; 2, 35, 22.

96
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
bens da coroa - não estavam sujeitos à Lei Mental, podendo ser alienados pelos donatários
ou partilhados pelos herdeiros destes, e estando sujeitos ao regime do direito comum. Tal
era o caso dos bens dados pelo rei em enfiteuse (que estavam isentos da Lei Mental,
regendo-se pelo regime normal da enfiteuse; cf. Ord. fil.,2,35,7 e 4,41) e dos reguengos
doados em propriedade plena, gratuitamente ou com a obrigação de pagamento de alguma
pensão (que podiam ser livremente alienados, Ord. fil.,2,17). Portugal, muito apegado a uma
classificação bipartida de longa tradição no direito comum, não cria uma categoria específica
para estes últimos bens, limitando-se a dizer que, embora sejam da coroa do reino, não se
regulam pela Lei Mental321.
§ 283. São estes grãos de areia que obrigam juristas seguintes a introduzir alguma
complexidade suplementar na classificação.
§ 284. Tratamento interessante é também o de Manuel Álvares Pegas, no seu tratado
sobre a Lei Mental, incluído nos tomos 10 e 11 do comentário às Ordenações.
§ 285. Manuel Álvares Pegas começa por distinguir, tal como o seu contemporâneo
Domingos Antines Portugal, entre património privado (“enquanto pessoa orgânica”) e público
(“enquanto rei, e a que chamam domínio da coroa e cuja propriedade respeita à majestade e
à coroa”)322. No entanto, como ele reconhece, as questões que se punham na prática diziam
apenas respeito ao património público e, dentro deste, à distinção entre bens da coroa do
reino, a que se aplicava a Lei Mental, e bens reais a que esta não se aplicava. Do que se
tratava, portanto, era de introduzir uma ulterior distinção no seio do património público do
príncipe, distinguindo entre “bens patrimoniais e reais dei Rei” e “bens da coroa"323. E cita
Diogo Marchão Themudo: “Ha uns bens da Coroa sujeitos à disposição da Lei Mental; outros
são bens da Coroa, patrimoniais, que não são sujeitos à Lei Mental: os primeiros são
aqueles que são bens da Coroa por sua natureza, como jurisdições, direitos reais, tributos, e
aqueles que pela sua real, ou verbal incorporação, são bens da Coroa, e não do Fisco, nem
do Príncipe patrimoniais, como os bens vacantes, e confiscados, e os bens dos próprios. E
todos os mais por qualquer maneira adquiridos à Coroa, como Capelas, e Morgados, prazos
vacantes, que ainda que se chamem da Coroa, não são daqueles bens que estão sujeitos à
Lei Mental, ainda que sejam do Rei, e do seu Fisco como Rei, porque somente são as ditas
Jurisdições, direitos reais e tributos, e o mais que pela real, ou verbal incorporação são
verdadeiramente da Coroa [...] inalienáveis e indivisíveis, sujeitos à dita Lei Mental”324.
§ 286. Passando à enumeração dos bens da coroa, Manuel Álvares Pegas vai-os
arrumando numa ou noutra categoria. Era claro que estavam sujeitos à Lei Mental, as

321 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 43, ns. 26 e 29;
Jorge de Cabedo já se deparara com este problema de os reguengos poderem ser divididos. Mas
considera de problemática legalidade - em face dos preceitos das Ordenações (Ord. fil.,2,35, 17-18) -
uma sentença recente que o admitia (Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 27, n. 5).
322 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 10, pg. 14, ns. 1-2. No tomo anterior,

Pegas complica um pouco as coisas, justamente em face da necessidade de encontrar um lugar


adequado para certos bens que nem eram puramente privados, nem bens da coroa, no sentido da Lei
Mental: “Do património público do príncipe fazem parte várias espécies: bens fiscais, bens pertencentes
ao príncipe em reconhecimento e sinal de suprema dignidade, como os tributos e censos, os bens da
coroa e os reguengos” (Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9, ad Ord. fil.,2 30, rubr, pg.
329).
323 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 10, pg. 14, n. 4.

324 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 10, pg. 18

97
As jurisdições e o direito.
cidades, vilas e castelos325,os montes maninhos (ibid., n. 21), as jugadas (ibid., n. 23), os
direitos reais enumerados na Ord. fil.,2,26, os foros, rendas e direitos reais concedidos de
juro e herdade (ibid., n. 24; cf. Ord. fil., II,35,6), os padroados (ibid., n. 25; cf. Ord. fil., II,35,5),
as jurisdições (ibid., n. 26), as alcaidarias (ibid., n. 31), as décimas das ilhas (ibid., n. 34).
Claramente isentos da Lei Mental – e, por isso, livremente transmissíveis e divisíveis -
estavam os bens vagos (ibid., n. 8), os bens confiscados (ibid., n. 16), as sesmarias (ibid., n.
13), os ofícios (ibid., n. 30), os direitos a desembargos régios ou as ações por serviços (ibid.,
n. 40)326.
2.4.3.3.4 A doutrina iluminista sobre o património régio.
§ 287. No texto, antes citado, de Diogo Marchão Themudo já se encontra in nuce a
distinção que mais tarde será feita por Pascoal de Melo Freire, ao contrapor, no âmbito dos
bens reais, os bens do erário público (ou da coroa do reino) aos bens fiscais (dominiais ou
reguengos). Pascoal de Melo327 procura aproximar-se da distinção romana entre erário
público (= bens da coroa) e fisco do príncipe (= reguengos e direitos reais). Mas, nesta época
de apogeu de uma conceção “pura” da monarquia e de identificação do soberano com a
própria república, este teórico do absolutismo iluminado não deixa de pôr reticências à
distinção, que está subjacente aos conceitos romanos, entre “povo” (ou “república”) e
príncipe, cada qual titular do seu património público. E, assim, adverte que a distinção
romana não costuma existir de forma tão marcada nas monarquias pura, tal como também já
entre os romanos, na época do império e do dominado, se corrompera328. Na verdade,
incorporando-se a república no monarca, os respetivos patrimónios fundiam-se também, não
sendo a distinção entre erário e fisco senão uma questão de palavras. É isto que explica,
quando esclarece que, na linguagem corrente, a distinção entre bens da coroa e fiscais se
baseava num uso da linguagem vulgar, que não no rigor do direito. Na verdade, a palavra
fisco era usada para designar os bens que tinham vindo à coroa in malam partem (i. e., por
motivos maus, como a punição de crimes e indignidades), enquanto que se reservava a
expressão “bens da coroa do reino” para os bens incorporados por qualquer outra causa. E,
assim, uns e outros deviam ser considerados da mesma forma quanto ao seu regime
jurídico.
§ 288. Aparentemente, o que Pascoal de Meio pretende é um alargamento do regime
dos bens da coroa a todos os bens fiscais, no âmbito de uma estratégia que o leva a também
a considerar os ofícios como bens da coroa, sujeitos portanto às normas da Lei Mental
(nomeadamente quanto à necessidade de confirmação da sua doação).
§ 289. Esta homogeneização dos direitos reais e a subjacente identificação entre
imperante e república, encontra-se, já sem quaisquer hipotecas à tradição romana, em
Francisco de Sousa Sampaio: “por direitos reais entendemos todos os direitos, faculdades,
ou possessões, que pertencem ao Sumo Imperante, como tal, e como representante da
sociedade” 329. Nestes direitos se compreenderiam, indistintamente, os direitos que lhe

325 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 10, pg. 14, n. 5.
326 Isto significa que estes direitos em relação à coroa podiam ser livremente transmitidos pelos
seus titulares (cf., em todo o caso, Ord. fil.,4, 14).
327 Institutiones iuris civilis, cit., 1,4,1.

328 Institutiones iuris civilis, cit., 1,4,1.

329 Prelecções […], 2, tits. 26 ss.

98
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
competiam em função da dignidade real, em função da representação que tinham da
sociedade (direitos majestáticos essenciais) ou em função de quaisquer pactos ou costumes
(direitos adventícios, maxime, bens da coroa)330. Nos primeiros compreendiam-se os direitos
inerentes à jurisdição régia331 e os direitos que advêm ao rei como representante da
sociedade332. Nos direitos adventícios (dominiais ou “da coroa”), compreendem-se já, sem
qualquer distinção, os bens “fiscais, reguengos, jugadeiros, e em geral todos os
dominiais”333. A categoria de bens “do erário” é reservada para os tributos gerais e terças,
aplicados à satisfação das necessidades públicas (ibid.). O que se dá, portanto, é a
integração, na categoria única de “bens da coroa” de todos os bens e direitos reais; com a
única exceção daqueles que, por estarem votados à utilidade pública, têm uma
disponibilidade limitada, embora não deixem de ser do rei334.
§ 290. Alguns anos depois, António Ribeiro dos Santos é ainda mais claro e preciso ao
ligar intimamente a ideia de direitos reais à ideia da unidade do poder ou majestade. Daí que
António Ribeiro dos Santos distinga, cuidadosamente, a nova da antiga conceção dos
direitos do rei: “direitos reaes ou majestaticos [...], ou são os direitos geraes, que emanam da
natureza da sociedade civil, e do supremo poder, que nella ha; ou são os direitos
particulares, que provém da constituição fundamental do reino”335. Os primeiros são
definidos, a partir da própria ideia de majestade ou soberania (ibid., 5), pelo direito público
universal ou pelo direito público constitucional (i. e., pela constituição fundamental do reino).
Os segundos, que decorrem do “direito público puramente civil”, englobam “os direitos
feudais, fiscais e tributários que se deviam aos príncipes, não tanto em razão da majestade,
que por sua mesma natureza necessariamente os exigisse, como de senhorio feudal” (ibid.,
7). “Os direitos majestáticos - acrescenta - são os que emanam da mesma natureza da
sociedade civil e são necessários, íntimos e essenciais à soberania e, como tais, perpétuos e
invariáveis. Pelo contrário entre os direitos reais ha muitos, que são direitos, pelo assim
dizer, adventicios, temporarios e variaveis” (ibid., 7). A confusão entre um e outro tipo de
regalia teria sido normal nos tratadistas anteriores336, justamente porque lhes faltava esta
nova noção da unidade do poder, de que agora arranca a clareza da distinção337.
§ 291. Se os direitos reais decorrem da majestade, já se entende que, uns, nunca

330 Ibid., 2, 26, 99, n. b.


331 Criação de magistrados, lançamento de tributos gerais, expropriações e requisições,
moedagem (Ord. fil., 2,92).
332 Aqui se compreendiam, em geral, as rei nullius ou comuns: as coisas vagas, as estradas, as

rendas das pescarias, os portos de mar, os veios de metal, as presas (Ord. fil.,2,104).
333 ibid., 2, 26, 103, n. I.

334 Antes era costume dizer que eram dos povos.

335 Cf. António Ribeiro dos Santos, “Sobre os tributos”, manuscr. B.N.L, FG, cod. 4677, pg. 8.
336 Cf. António Ribeiro dos Santos, Notas ao plano do Novo Codigo […], “Direitos reais”, 8/9.
337 Também Pascoal de Melo os definia correspondentemente no titulo respetivo do Projecto do

Novo Código: “Ao soberano poder e majestade, que recebemos de Deos todo-poderoso, de reger e
governar nossos reinos e estados, estão inerentes certos direitos reaes ou magistérios, necessarios
para procurar e manter a felicidade e segurança publica dos mesmos reinos, estados e vassalo deles
[...]” (António Ribeiro dos Santos, Notas ao plano do Novo Codigo […], cit., “Direitos reais”, 13). Mas,
como nota Ribeiro dos Santos. não deixa de sucumbir perante a confusão comum aos tratadistas
anteriores entre direitos reais “naturais” e direitos reais “positivos”.

99
As jurisdições e o direito.
possam ser separados da pessoa do rei338; e que, outros, se presumam na sua titularidade,
salvo concessão expressa339. E que, todos, ainda que concedidos, nunca saíam,
essencialmente, da esfera de prerrogativas do soberano. É o que explica Pascoal de Melo
nas lnstitutiones: “A jurisdição não é própria dos senhores, que apenas a têm do rei; nisto se
distinguem essencialmente as jurisdições régia e feudal”340. Daqui decorre que a jurisdição
apenas se possa exercer em nome do rei e de acordo com o seu arbítrio e de tal modo que
ele a possa limitar ou revogar [...]”341. Por outro lado, defende-se agora, contra a doutrina
anterior342, que o rei pode sempre revogar as concessões destes poderes, mesmo feitas por
contrato, pois o regime da irrevogabilidade contratual de direito comum não vigora quando os
contratos têm por objeto direitos públicos e da coroa do reino.
2.4.3.4 Donatários e senhores
§ 292. Temos, portanto, que na categoria geral de donatários da coroa, cabiam
situações diversas, nem todas subsumíveis na categoria de senhorio. Assim, podia haver:
§ 293. (i) Pessoas a quem o rei tinha concedido, em propriedade, bens não incluídos
nos bens da coroa (reguengos, lezírias, sesmarias, morgados, capelas); eram proprietários
plenos (ou alodiais), podendo livremente transmitir343 a outrem, inter vivos ou mortis causa, o
domínio pleno ou domínio útil destes bens.
§ 294. (ii) Pessoas a quem o rei tinha concedido bens344, contra o pagamento de um
foro, com finalidade de exploração agrícola (ad habitandum ou ad excolendum)345; tratava-se
de situações enfitêuticas normais, reguladas pelo direito comum e não pela Lei Mental (cf.
Ord. fil.,2,35, 7; v. cap. 4.3.3).
§ 295. (iii) Pessoas a quem o rei tinha concedido bens da coroa (tais como foros e

338 Enumeração das coisas que não podem ser doadas nem mesmo expressamente, em
Institutiones iuris civilis, cit., (2,3,40, seguindo um critério casuístico e de raiz legislativa que Ribeiro dos
Santos, coerentemente, rejeita, António Ribeiro dos Santos, “Sobre os direitos reais”, manuscr. B.N.L,
FG, cod. 4677, pp.21 ss.).
339 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2,3, 42.

340 Cf. ibid., 2,3,40.

341 Ibid., 2,3,39 nota. E continua (dando uma nova interpretação à distinção entre concessões de

bens da coroa e concessões feudais): “por isso as palavras meri et mixti imperio, do direito romano, e
altae et bassae iurisdictionis, do direito feudal […] devem ser interpretadas segundo o espírito da nossa
lei, e não significam hoje outra coisa senão a doação da simples jurisdição”, Melo, Institutiones iuris
civilis [...], cit., 2,3,39 nota. Sobre isto, cf. também Francisco C. S. Sampaio, Prelecções [...], cit., III, t.
45, § 169 e nota b.
342 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 3,41 nota, pg. 64, in fine, abona-se em

Jorge de Cabedo, Decisiones […] pt. 2, dec. 38, max., n. 6); mas esta decisão refere-se a uma coisa
diferente - a inalienabilidade, por doação ou contrato, de uma regalia majora, a correição.
343 Salvo no caso dos bens vinculados (morgados e capelas).

344 Estes bens são da coroa, mas não estão sujeitos ao regime especial de inalienabilidade e

indivisibilidade prescrito na Lei Mental (cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 11, c. 28,
pg. 62).
345 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 8, ad Ord. fil.,2,1,16; tomo 10, ad Ord.

fil.,2,35, rubr., c. 4 (p. 12 ss.); tomo 10, ad Ord. fil.,2,35, rubr., c. 39 (p. 301 ss.), max. ns. 32 e 54; tomo
10, c. 41, pg. 322 ss.; tomo 11, c. 29, pg. 62; Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus
[...], cit., pt. 2, c. 43, ns. 24 ss..

100
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
outras rendas perpétuas, direitos de foral, monopólios, relegos, barcagens e portagens,
tributos, direitos de padroado); tratava-se, então, de donatários da coroa, sujeitos ao regime
estabelecido na Lei Mental.
§ 296. (iv) Donatários de jurisdições, comportando, nomeadamente, o poder de julgar;
tratava-se, aqui sim, de senhorios.
§ 297. (v) Donatários de bens das ordens militares; não sendo bens da coroa, apesar
da incorporação nesta da administração das ordens militares nos meados do século XVI,
discutia-se, ainda na segunda metade do século XVII, sobre se estavam sujeitas à Lei
Mental346. Já na segunda metade do século XVIII, entendia-se que as comendas eram bens
da coroa, sujeitos ao regime da Lei Mental347. Por vezes, as comendas continham, para além
de dízimas e terças348, capitanias de castelos e jurisdição civil e militar. Neste último caso,
podiam ser consideradas como senhorios.
§ 298. Como delegados ou vigários do rei, os senhores estavam, por direito comum,
sub-rogados nos seus poderes e direitos. Sempre, todavia, com a limitação de que nunca
poderiam exercer aqueles direitos reais inseparáveis da pessoa do rei, a que acima nos
referimos (regalia maiora, regalia quae ossibus principis adhaerent).
§ 299. Em todo o caso, o regime português dos senhorios continha limitações maiores
na aquisição, exercício e transmissão dos direitos senhoriais. É disto que se tratará em
seguida.
2.4.3.5 A constituição dos senhorios.
§ 300. Um dos pontos em que o direito pátrio se afastara do direito comum e mesmo do
direito dos reinos vizinhos da Hispania349 fora o dos títulos de constituição dos senhorios.
§ 301. Enquanto que o direito comum, refletindo o acentuado pluralismo político do
feudalismo da Europa central-ocidental, era muito favorável ao alargamento do poder
senhorial, o direito português, sobretudo a partir dos fins do século XIV, tendia para uma
acentuada parcimónia no que respeita aos títulos de constituição de senhorios.
§ 302. A partir da Lei Mental, o princípio que, como vimos, vigorava nesta matéria era o
de que a aquisição de direitos reais ou de bens da coroa tinha que ser titulada por um cata
escrito e expresso (doação, sentença, inquirição), princípio que se fundava no texto das
Ordenações350.
§ 303. Este princípio comportava consequências várias.

346 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 10, ad. Ord. fil.,2,35, rubr., c. 41, ns. 33 ss.

(pg. 333). Também, com uma decisão, ibid., pg. 19.


347 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,2,3,47.

348 Referimo-nos, não às terças "dos concelhos”, mas às terças das dizimas eclesiásticas,

concedidas aos reis de Castela e de Portugal pelo Papa (Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2,
dec. 63).
349 Quanto ao regime do direito comum acerca dos poderes senhoriais v., por todos, Domingos

Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, c. 45; também, Jorge de Cabedo,
Decisiones [...], cit., pt. 2, d. 41, n. 7. Para um confronto entre o direito castelhano e o direito português
quanto a este tema, v. Bartolomé Clavero, Mayorazgo […], cit.
350 Ord. fil.,2,45; 2,17.

101
As jurisdições e o direito.
§ 304. A primeira dizia respeito à admissibilidade da prescrição351 como título aquisitivo
de prerrogativas político-jurisdicionais.
§ 305. A opinião dominante na doutrina portuguesa era a da imprescritibilidade contra a
coroa dos direitos reais, jurisdições e bens da coroa. Neste sentido militaria o texto expresso
da lei352 353. O direito próprio afastar-se-ia, deste modo, do direito comum, segundo o qual as
jurisdições e regalia podiam, em geral, ser adquiridas por prescrição centenária ou
imemorial354. O panorama doutrinal (e, ainda mais, o jurisprudencial) não era, no entanto,
líquido. Por um lado, uma corrente minoritária defendia a prescritibilidade das jurisdições
(mesmo da correição) e direitos reais, embora requeresse a posse imemorial355. Por outro
lado, há provas de que as posições “senhorialistas” desta corrente exerciam forte influência
na prática burocrática e jurisprudencial seiscentista e setecentista: em decisões transcritas
por Pegas relativas a títulos de direitos senhoriais, a posse ou costume imemoriais são
admitidos como título suficiente356. Mesmo um procurador da coroa tão cioso da defesa dos
direitos e jurisdições reais como Tomé Pinheiro da Veiga parece ter admitido a regra de que
a posse imemorial supriria a doação ou sentença como título de jurisdições ou regalias.
§ 306. A segunda consequência do princípio da doação expressa é a de que nunca se
podia entender que, perante doações genéricas (como, v.g., “doo a F. a minha vila de N.” ou
“doo a minha terra de N. com todos os direitos que aí tenha ou possa ter”), aí sejam doados,
automaticamente, os direitos reais ou as jurisdições. Solução que, como se disse,
contrariava a doutrina do direito comum clássico que considerava, quer os direitos reais, quer
as jurisdições como acessórios do território (“a jurisdição adere ao território como a neblina
sobre o lago”, iurisdictio cohaeret territorio sicut nebula super paludem)357 e, logo,
tacitamente doados com ele.
§ 307. A questão não ficava porém resolvida com o referido princípio, pois se colocava
o problema de saber que significado se devia atribuir a uma doação feita nesses termos
genéricos (que, diga-se de passagem, eram correntes no formulário da chancelaria régia). A

351 Sobre a prescrição, v. cap. 4.3.2.1.10.


352 Quanto à correição, Ord. fil.,2,45,10 (que negava o valor a qualquer posse, nova ou antiga, e a
qualquer costume, ainda que imemorial); quanto aos direitos reais, Ord. fil.,2,45,34 e 35 (que
condenavam e invalidavam para efeito de usucapião qualquer posse de cobrar direitos para além do
foral e sentença); e, em geral, Ord. fil.,2,45,55 e 56 (que estabelecia a irrelevância de qualquer posse,
uso ou costume contrário à letra da ordenação que estabelecia o conteúdo dos direitos jurisdicionais
dos senhores).
353 Cf., neste sentido, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2. d. 9, n. 2; ibid., d. 12, n. 1 e d.

41 per totam; Álvaro Valasco, Quaestiones […], cit. qu. 8, n. 21 ss.; Manuel Barbosa, Remissiones […],
cit., ad Ord. fil.,2,45, 10; Melchior Febo, Decisiones [...], cit., d. 13, per totam; Manuel Mendes de
Castro, Practica […], cit., pt. 2. c. 37, n. 12; João Baptista Fragoso, Regimen […], cit., liv. 3, d. 7, n. 46
ss..
354 Cf. para o regime do direito comum, Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus

[...], cit., liv. 3, c. 45.


355 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 12, pg. 130; Domingos Antunes

Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., pt. 2, c. 45 per totum; Álvaro Valasco, Decisiones […], cit.,
cons. 141, n. 4 ss.
356 Cf Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 12, pg. 149 ss, 158 ss.

357 Para a discussão da questão, v., por todos, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit.,

tomo 9 (ad Ord. fil.,2,28, rubr.), n. 77 ss..

102
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
opinião comum dos juristas portugueses seiscentistas distinguia diversas situações, de
acordo com a fórmula utilizada na doação.
§ 308. Se esta fosse a da “doação de toda a jurisdição, com mero e misto império”,
dever-se-iam entender como doados todos os poderes necessários ao governo da terra
(jurisdição), bem como a dada dos ofícios, pois, nos quadros do direito comum, isso
implicaria a sub-rogação do senhor na posição jurídico-política do concedente, salvo quanto
àqueles poderes que fossem inerentes ao soberano, como atributos do seu poder supremo
ou regalia maiora (nas quais se incluía, nomeadamente, a correição e o conhecimento
definitivo das apelações e agravos).
§ 309. Se a fórmula utilizada na doação fosse a da doação da jurisdição, a doutrina
entendia, de acordo com os dados das Ordenações (Ord. fil.,1,65; Ord. fil.,2, 45), que fora
doada a jurisdição para conhecer das apelações vindas das justiças da terra, quer em
matéria cível, quer em matéria crime. A solução do direito português - que concordava com o
direito castelhano, mas não com o direito comum, em que a concessão da jurisdição
conferiria poderes para julgar em primeira instância, dando apelação para o príncipe -
baseava-se no facto de a concessão da jurisdição não poder prejudicar a autonomia
jurisdicional das terras, reconhecida, como vimos, pelo direito358.
§ 310. No caso de doação genérica dos direitos reais, a doutrina entendia que se
considerariam como doados aqueles direitos (contidos na carta de foral da terra) que os reis
normalmente concediam de forma genérica (mas não os que rarissimamente eram
concedidos por essa forma). O que remetia para uma interpretação das doações de acordo
com o estilo da chancelaria e dava origem a uma detalhada casuística, que se pode
encontrar nos comentaristas e decisionistas da época, mas que não tem merecido muita
atenção dos historiadores359.
§ 311. Em conclusão, a despeito de todas as prevenções legais contra o
reconhecimento dos direitos senhoriais sem título constitutivo formal (doação, sentença,
inquirição), a doutrina dominante abria a porta à legitimação de situações tituladas de forma
menos rigorosa. Por um lado, enquanto admitia a eficácia da prescrição imemorial como
prova do título; depois, enquanto abria mão do princípio de que as doações de jurisdições ou
de direitos reais deviam ser expressas, admitindo a sua concessão por fórmulas genéricas,
que alguns dos autores tendiam a interpretar de forma bastante generosa.
2.4.3.6 Conteúdo das doações
§ 312. A determinação do conteúdo das doações decorre já do que ficou dito na secção
anterior. Resta agora, particularizar um pouco mais. Fá-lo-emos, considerando, caso por
caso, as jurisdições ou direitos reais mais importantes ou mais comummente incluídos nas
doações.
§ 313. Comecemos pelas jurisdições.
2.4.3.6.1 Correição
§ 314. Nos termos da lei Ord. fil.,2,45,8 e 9), a correição não estava incluída nas

358 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9 (ad Ord. fil.,2,28, rubr.), n. 82 ss. (p.
306).
359 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9 (ad Ord. fil.,2,28, rubr.), n. 85 ss.;

Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, d. 12, n. 4.

103
As jurisdições e o direito.
doações, a não ser que expressamente doada. No entanto, não faltam os casos de doação
da correição, quer durante o século XVI, quer durante o século XVII, quer a senhorios
eclesiásticos, quer a senhorios laicos.
§ 315. A isenção da correição tinha como efeito, pela negativa, proibir a entrada do
corregedor régio nas terras dos donatários e, pela positiva, sub-rogar o ouvidor senhorial nas
funções desse magistrado real. Assim, no caso de doação da correição, os ouvidores
senhoriais exercitariam todos os poderes dos corregedores, incluídos os relativos ao
conhecimento de feitos por ação nova ou por via de agravo (Ord. fil.,1,65, 22 ss.).
2.4.3.6.2 Apelações
§ 316. Como já vimos, a jurisdição senhorial é, em Portugal, uma jurisdição de segunda
instância, já que a de primeira instância pertence às justiças concelhias. O conhecimento dos
recursos das sentenças dos juízes das terras constitui, portanto, a sua manifestação. Mas
mesmo quanto aos recursos, as justiças senhoriais não podiam, salva doação expressa -
que é corrente em relação às principais casas senhoriais -, conhecer dos agravos; pois estes
deviam subir diretamente (“omisso medio”) aos corregedores ou aos desembargadores dos
agravos das Casas da Suplicação ou do Cível (cf. infra)360.
§ 317. Das suas decisões, as justiças senhoriais têm que dar recurso para o tribunal da
corte. No caso de o título conter uma referência expressa à doação das apelações ou dos
agravos (normalmente, quando era doada uma coisa, era doada a outra), o senhor ficava
com o poder de conhecer dos agravos e, quanto aos feitos cíveis, eles terminariam no
ouvidor, não havendo possibilidade de recurso para a corte361.
2.4.3.6.3 Jurisdição
§ 318. Como já se disse, a doação da jurisdição era dominada pelo princípio do
carácter intermédio da jurisdição senhorial, que ressalvava, para baixo, a jurisdição dos
juízes das terras e, para cima, o direito real de apelação (Ord. fil.,2,45, 50 e 3,71). A
jurisdição senhorial era exercida ou pessoalmente pelo senhor ou pelos ouvidores
senhoriais, providos trienalmente. Devendo estes residir na terra de que são ouvidores, com
jurisdição sobre outras terras do mesmo senhor num raio de 5 léguas (Ord. fil.,2,45, 32; 41 e
42). Por vezes, os senhores obtinham o privilégio de os juízes de fora de terras próximas
serem seus ouvidores, o que os dispensava de pagar a um ouvidor próprio; outras vezes,
obtinham licença para que o seu ouvidor residisse na cidade mais próxima, onde a facilidade
de recrutar pessoa competente era maior.
2.4.3.6.4 Dada das justiças.
§ 319. A dada (apresentação ou confirmação)362 das justiças das terras (juízes,

360 A distinção entre apelação e agravos é, basicamente, a seguinte: as apelações são recursos
quanto à decisão de fundo; os agravos são recursos quanto a aspetos formais ou de processo. Cf. cap.
7.1.14.
361 Sobre as dúvidas quanto a este ponto, António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., n. III.

5. b).
362 São coisas diferentes. A “dada” consiste na nomeação definitiva pelo senhor. A

“apresentação” consiste na proposta de nomeação feita pelo senhor, mantendo-se a confirmação pelo
corregedor ou Desembargado do Paço. Na “confirmação”, mantém-se a escolha (ou “eleição”) pelo
concelho, substituindo-se o senhor ao corregedor ou Desembargo do Paço na ratificação da escolha.

104
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
vereadores e restantes oficiais dos concelhos) não pertencia, em princípio aos senhores,
pois os concelhos tinham o direito da sua eleição, devendo a confirmação ser feita pelo
corregedor ou pelo Desembargo do Paço (Ord. fil.,2,45,2). Em muitas terras, porém, os
senhores tinham o privilégio, por uso imemorial ou por doação, de fazer, apresentar ou
confirmar as justiças.
2.4.3.6.5 Dada dos ofícios.
§ 320. Os senhores não podiam, salva doação, dar os ofícios das suas terras, nem
sequer os dos encarregados de exercer a justiça senhorial (Ord. fil.,2,45,3). Isto decorria do
carácter real do direito de criar ou prover os ofícios, que era considerado sinal da suprema
dignidade do rei (Ord. fil.,2,26). Tal regra era geral e, portanto, válida para a criação de juízes
de fora (Ord. fil.,2,45,13), de oficiais da fazenda ou encarregados de conhecer dos direitos
reais (Ord. fil.,2,45,31), de oficiais da milícia363, de meirinhos e alcaides (Ord. fil.,2,45,14) e
de tabeliães (Ord. fil.,2 45,15). Se a concessão da nomeação dos ofícios de fazenda ou dos
direitos reais era muito rara, a concessão da dos tabeliães e ofícios de justiça já era bastante
comum. De qualquer modo, para além de outras limitações, os donatários estavam
impedidos de vender ou arrendar os ofícios, pelo menos sem licença régia (cf. Ord. fil.,2
45,1,95,pr.).
2.4.3.6.6 Foros, tributos e direitos reais.
§ 321. Aqui, a regra era a de que a sua doação genérica trespassaria para o donatário
aqueles foros, direitos e tributos que estavam contidos no foral, salvo os que o rei não
costumava doar364. Remetia-se, portanto, para uma interpretação dos termos genéricos da
doação conforme ao estilo da chancelaria, o que obrigava a uma averiguação casuística dos
usos quanto à doação de cada uma das várias categorias de direitos reais365.
2.4.3.7 Transmissão dos direitos senhoriais.
§ 322. A transmissão dos direitos senhoriais era, como se viu, regulada pela Lei
Mental, que estabelecia a forma de sucessão nos bens da coroa.
§ 323. A Lei Mental insere-se, como se viu, numa tradição jurídica europeia, com
precedentes próximos no direito das Partidas e com precedentes longínquos na dogmática
do ius commune (v. cap. 4.2.2.3). Todas as suas disposições (inalienabilidade, vinculação,
indivisibilidade, sucessão por primogenitura e varonia) se integram nos modelos clássicos
que esta literatura propôs às conjunturas sociais e políticas europeias desde o século XII ao
século XVIII. Modelos puramente teóricos, cuja relação com a conjuntura sociopolítica era
equívoca ou contraditória; modelos que, porém, permanecem como “constrangimentos
latentes” que sobre determinam as estratégias políticas dos vários grupos sociais.
§ 324. Provavelmente, mais do que a resposta aos problemas da conjuntura
portuguesa da baixa Idade Média, a Lei Mental representa o produto das representações que
os juristas - dominados por esquemas categoriais próprios (e socialmente aleatórios) -

363Cf. Alv. 19.11.1631, em Col. Chron. Leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo.


364 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 12, ad Ord. fil.,2,45,34; Domingos
Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3. c. 43, n. 47 ss.; João Baptista Fragoso,
Regimen […], cit., liv. 1, d. 7, n. 55 ss. (p. 349).
365 Para uma análise detalhada de cada tipo de direitos, v. António Manuel Hespanha, As

vésperas [...], cit., n. III.5.

105
As jurisdições e o direito.
tinham dos problemas sociais do momento e do modo mais correto de os resolver.
§ 325. Como já vimos brevemente, os princípios estabelecidos pela Lei Mental para a
transmissão dos direitos senhoriais eram vários.
§ 326. O primeiro era o da primogenitura e masculinidade: a sucessão deferia-se
obrigatoriamente, por linha masculina, ao filho mais velho do donatário. O que implicava um
certo tipo de indivisibilidade dos bens senhoriais por morte deste366.
§ 327. A primogenitura parece expandir-se na área europeia a partir do século XII,
sobretudo nas sucessões nobres (v. cap. § 916). Tem-se insistido no seu interesse para a
conservação do poder das famílias, maxime das grandes famílias; mas os argumentos
“sociais” não parecem suficientemente trabalhados, pois a maior parte dos objetivos sociais
da primogenitura eram assegurados pelo regime da indivisão familiar, de resto tradicional
nos direitos germânicos.
§ 328. A primogenitura acabava por ser, apenas, uma das formas de encabeçar num
só a totalidade dos bens, mantidos unidos pelo princípio da indivisibilidade.
§ 329. No sentido da indivisibilidade, destaca-se a permanência de certos tópicos
oriundos do discurso jurídico letrado, nomeadamente o princípio de que as jurisdições e as
dignidades não se dividem (dignitates et jurisdictiones non dividuntur). Bem como a sua
ilustração mais eminente, a da indivisibilidade da coroa, bem estabelecida desde cedo e
longamente justificada nas Partidas (II,15,2). Os costumes feudais não eram, a este
propósito, unânimes. O direito feudal lombardo consagrava a divisibilidade (Lib. feudorum,1
8); mas o direito feudal franco ou siciliano consagravam a indivisibilidade.
§ 330. Em Portugal, o costume de não dividir os castelos e as honras, ou seja, os bens
que importavam o exercício de poder é detestável desde os meados do século XIII. Tanto
quanto se pode saber pelos estudos existentes, em Portugal o princípio da sucessão
indivisível e primogenitural desenvolve-se a partir deste século, sobretudo em dois domínios:
(i) o da transmissão de bens com jurisdição anexa367; a fonte era, decerto, a lei Praeterea,
dos Lib. feud. (II, 55, pr. e 1); (ii) o da transmissão de bens cujas rendas estão vinculadas a
certo objetivo unitário (capela, hospital). Na segunda metade do século XIV, já é frequente
assegurar a indivisibilidade dos bens da coroa doados, ou por uma cláusula da doação ou
pela sua integração num morgado368.
§ 331. O argumento corrente para justificar o sistema era o da necessidade de manter
o poder das famílias369, no qual se apoiava o próprio poder da coroa370. Parece, no entanto,
que este objetivo de evitar a usura do poder económico se acompanhava de um objetivo de

366 Note-se, de passagem, que existem dois tipos de indivisibilidade do património familiar. Um

deles é o da indivisibilidade que corresponde a um direito global de toda a família sobre os bens
(Gesamtvermögen, patrimónios em mão comum), em que todos os familiares são incluídos
globalmente na herança. Um outro é o da indivisibilidade em que os bens se concentram num dos
herdeiros, normalmente o primogénito e em que os restantes familiares são excluídos da herança.
Apesar de se tratar de dois tipos de devolução sucessória que conduzem à indivisão, têm significados
estruturais opostos (cf. John Gilissen, Introdução histórica ao direito [...], cit., 673 ss.).
367 Exemplos em Henrique da Gama Barros, História […], cit., vol. 8, 254-260.

368 Henrique da Gama Barros, História […], cit., vol. 8, 245, 270-271, 282.

369 Henrique da Gama Barros, História […], cit., vol. 8, 267, 279).

370 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., pg. 41, n. 2.

106
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
natureza simbólica. A adoção da indivisibilidade e primogenitura tinham, antes de mais, o
efeito de evocar o sistema linhagístico em uso na sucessão da coroa e das dignidades. Por
aí se explica, porventura, que a doação de bens puramente patrimoniais (i.e., que não
continham jurisdição nem regalia: reguengos, sesmarias, armazéns, casas, em propriedade)
não estivesse sujeita à regra da indivisibilidade. A progressiva importância dos elementos
simbólicos ligados ao esquema primogenitural puro leva a que sectores nobiliárquicos (mas
não os juristas) insistam na exclusão da linha transversal - o que aumentava
significativamente o risco biológico da extinção da estirpe - e na consagração do direito de
representação em favor do neto, filho do primogénito pré-morto, que, então, afastaria o
secundogénito371.
§ 332. Do ponto de vista dos interesses da família, a sucessão linhagística excluía da
sucessão a parentela, nomeadamente os filhos segundos, enquanto que a masculinidade
excluía as mulheres. As tensões decorrentes desta severa restrição do universo dos
sucessores potenciais foram parcialmente absorvidas pela generosidade com que o direito
reconheceu os direitos a alimentos e o dote a favor dos filhos e filhas (mesmo dos
consanguíneos e naturais) excluídos da sucessão372. Estes eram compensados pelo
pagamento de uma soma em dinheiro, eventualmente obtida pelo empenhamento de bens
da coroa; por bens patrimoniais; pela obtenção de ofícios, de títulos ou mesmo de morgados
ou novos lotes de bens da coroa (eventualmente por doação, autorizada pelo rei, de certos
bens da coroa já possuídos); ou, finalmente, pela obtenção de uma situação confortável na
vida militar, eclesiástica ou universitária.
§ 333. Do ponto de vista da coroa, o reforço do modelo linhagístico também
apresentava riscos, pois fomentava a constituição de casas muito poderosas, defendidas da
usura das partilhas. Tanto mais que, nos bens da coroa, não existia preceito paralelo àquele
que proibia ou dificultava a acumulação de morgados (Ord. fil., 4,100,5). E, na verdade,
quase todas as grandes casas senhoriais acabam em conflito (e subsequente confisco) com
a coroa - Vila Real e anexas (século XVII), Aveiro (século XVIII) ou, no século XV, a própria
casa de Bragança.
§ 334. A fonte inspiradora do princípio da transmissão dos bens da coroa por linha
masculina pode encontrar-se ou num texto do Digesto (D., 50, 17,2 - que excluía as
mulheres das magistraturas e ofícios da cidade - ou numa lei dos Libri feudorum (I, 8) que
excluía as filhas da sucessão dos bens feudais, no caso de o contrário não estar
convencionado no pacto de investidura (cf. ainda II, 9; II, 30; II, 50; IV, 114). Também as
Partidas excluíam a linha feminina na doação de terras. A ideia que estava na base desta
exclusão era a da incapacidade das mulheres para a prestação dos serviços (militar ou de
autoridade) que correspondiam à concessão feudal (Cf. § 775).
§ 335. A exclusão da linha feminina aumentava extraordinariamente o risco biológico.
Daí que pudesse ter representado uma eficaz medida de retomo dos bens à coroa, sendo,
consequentemente, visto com maus olhos pela nobreza que, ainda em 1645, tenta sem êxito
obter a sua revogação. O seu alcance só não foi grande porque, na prática, a já referida
política permissiva em matéria de confirmações lhe introduzia sistemáticas derrogações.

371 Sobre a questão, v. cap. 5.4.6. A solução vem a ser adotada por D. João IV - a pedido das

cortes de 1641 (cap. 27 da nobreza e 26 do clero); cf. Capítulos gerais, pp. 55, 76 e 81. Cf. António
Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., III.5.
372 João Baptista Fragoso, Regimen […], liv. 3, pg. 149, ns. 46. Cf. cap. 5.3.1.1.

107
As jurisdições e o direito.
§ 336. O segundo princípio estabelecido pela Lei Mental era o da inalienabilidade dos
bens da coroa, proibindo as suas alienações intervivos, salva autorização régia373. Na
prática, as alienações (nomeadamente, as compras e vendas) eram frequentes, embora
sempre autorizadas pelo rei374. Com a proibição das alienações visava-se evitar as doações
de donatários a seus criados e, assim, a constituição de hierarquias feudais. O episódio da
reação de D. João I às tentativas do Condestável de doar terras aos que com ele serviam é
sintomática do cuidado posto pelos reis neste ponto.
§ 337. O terceiro princípio da Lei Mental era o do carácter não feudal das concessões
de bens da coroa (Ord. man.,2,17,2). Com este princípio - sublinhado, como já vimos, pela
literatura da época (cf. supra) - obtinham-se alguns resultados práticos. O primeiro deles era
o de distinguir as obrigações dos donatários das dos feudatários. Na verdade, o serviço
feudal tinha um carácter pessoal, mas limitado aos termos do pacto de enfeudação375. Em
contrapartida, entendia-se que os serviços dos donatários, embora também de natureza
pessoal, eram ilimitados, consubstanciados numa promessa genérica de obediência (Ord.
man.,2,17,3 - “e esta nom sera por ser obrigado servir com certas lanças, porque queremos
que nom sejam avidas por terras feudaes, nem ajam natura de Feudo, mas ser obrigado a no
servir, quando lho nós mandarmos376). Eles serviriam enquanto vassalos naturais, sem
limitações na guerra defensiva e tantum intra vires (apenas até ao limite do que pudessem)
na guerra ofensiva377.
§ 338. O segundo resultado era o de vincar carácter em princípio temporário da doação
de bens da coroa, contra o carácter perpétuo da enfeudação.
§ 339. O terceiro resultado era o de que, em oposição à natureza em princípio divisível
do feudo, só afastada no caso de concessões que contivessem dignidades ou em que o
pacto fixasse o contrário, as doações de bens da coroa eram indivisíveis, como já vimos
(Ord. man.,2,12; 14; 25).

373 Proibição da venda, Ord. man.,2, 17,16; Ord. fil.,2,35, 19. Proibidas estavam também a

imposição de censo ou pacto de retrovender (Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 11, c.
228, pg. 551) ou o emprazamento perpétuo, nas doações temporárias “enquanto for nossa mercê”,
Ord. man.,2,17,22; Ord. fil.,2,35,20). No entanto, podem-se vender os frutos (ibid., pg. 548, c. 220) ou
arrendar por menos de 10 anos (ibid., pg. 556, c. 234), trocar por outros bens da coroa, com
autorização do rei (ibid., ) ou empenhar para pagamento de dote ou arras (Ord. man.,2,17, 17; Ord.
fil.,2,35,20).
374 Cf. exemplos em António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., n. III.5.

375 O feudo podia ser simplex ou conditionatum, este último incluindo encargos ou cláusulas

modais (moderatio exercitii); outros feudistas distinguem entre o feudum francum, livre de serviços, e o
non francum, obrigado a certo serviço (Baldo, Commentaria […], 1524, pg. 4, col. 2, n. 38; pg. 5, col.1
n. 53; João Baptista Fragoso, Regimen […], liv. 3, III, d. 8, n. 15); mas os feudistas propendiam para
entender como natural o carácter oneroso da concessão feudal (Mario Giurba, Repetitiones de
successione feudorum […], cit., “Prael.”, n. ns. 31, 42 ss.).
376 A fonte é a C.R. de 8.4.1434 (Monumento henricina, vol. 5, 9 ss..

377 Pascoal de Melo, cuja obra reflete a orientação centralizadora e anti senhorial dos finais do

séc. XVIII, considerem que, sendo as doações de bens da coroa sempre remuneratórias de serviços,
os donatários estavam sempre obrigados a eles, mesmo em maior medida do que os outros cidadãos
(Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 3, 28). É esta consideração que leva à criação, na
segunda metade do séc. XVIII, de um imposto de décimas sobre as rendas dos bens da coroa (“quinto
dos donatários”).

108
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 340. O quarto resultado, de acordo, pelo menos, com a interpretação dos finais do
Antigo Regime, era de que os poderes dos donatários não eram próprios, mas delegados
pelo rei que, por isso, os podia restringir e retomar378.
§ 341. Um quinto princípio estabelecido pela Lei Mental era o de que os bens da coroa,
mesmo doados, nunca perdiam essa natureza nem se radicavam no património do donatário,
pelo que as doações careciam de confirmação periódica. Mais do que possibilitar uma
reapreciação da oportunidade da doação feita, a confirmação tinha como objetivo verificar os
requisitos da sucessão e provocar o reconhecimento pelo donatário da autoridade real. Na
verdade, cedo se consagrou a opinião - feita equivaler pela doutrina a um dever deontológico
do rei ou mesmo a um costume do reino - de que o rei devia confirmar as doações dos seus
antecessores. O regime da confirmação era diferente consoante o donatário tivesse tido os
bens doados “em sua vida somente” ou “de juro e herdade”. No primeiro caso, entendia a
doutrina dominante que, morto o donatário, a doação não aproveitava ao seu herdeiro por se
tratar de uma concessio personalis. Pelo que a graça a impetrar por este era, não a
confirmação da anterior doação, mas a concessão de uma nova doação. Aparte estas
confirmações por sucessão, D. João II379 introduzira o costume das confirmações de rei a rei,
de acordo com o qual os donatários deviam pedir a confirmação das suas doações no início
do novo reinado. O fundamento desta forma de confirmação seria o facto de o rei dever
deixar o reino íntegro ao seu sucessor380.
§ 342. Finalmente, a última consequência da distinção entre feudo e doação régia era a
de que os feudos se regulavam pelo direito feudal, contido nos Libri feudorum,
nomeadamente quanto à interpretação e integração das suas cláusulas, enquanto que as
doações régias se regulavam pelo direito pátrio, legislado ou consuetudinário, embora o
direito feudal vigorasse como direito subsidiário381.
2.4.3.8 A política da coroa quanto aos senhorios
§ 343. Um tópico recorrente nos juristas e politólogos da baixa Idade Média e da Época
Moderna era o do dever do príncipe de recompensar os serviços dos seus vassalos. Dever a
que corresponderia uma virtude, a da liberalidade, que distinguiria os príncipes excelentes382.
Isto explica o fundamental da política régia quanto às doações de bens da coroa, bem como
às suas confirmações.
§ 344. A conjuntura política das primeiras décadas do século XV fora, de resto, propícia
à alienação de terras. D. João I e de D. Afonso V, pressionados pela conjuntura política,
alienaram uma boa parte do fundo territorial da coroa. D. João I chegou a ter que comprar
terras que antes doara a fim de poder beneficiar os seus filhos. Nos reinados seguintes, a
situação manteve-se estacionária. Nem foram muitas as terras que regressam à coroa, pois
mesmo as das (poucas) casas extintas foram doadas de novo; nem se doaram de novo
terras que sempre tivessem sido da coroa. Até porque, neste último caso, estas doações
deparavam com a resistência dos povos e dos concelhos que, muitas vezes, invocaram ou

378 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 3, 39.
379 Nas cortes de Évora de 1481, Garcia de Resende, Chronica [...], cap. 29.
380 Para detalhes, António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., III.5; doutrina dos finais do
séc. XVIII, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2,3,32 ss..
381 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit..

382 Sobre a liberalidade régia, António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit..

109
As jurisdições e o direito.
privilégios de serem regalengos ou usos prescritos nesse sentido.
§ 345. Na segunda e terceira dinastias (e mesmo nos primeiros reinados da quarta), a
política de confirmações das doações de bens da coroa foi muito liberal. De facto, não só foi
muito frequente a concessão do privilégio de indicação de sucessor fora dos limites impostos
pela Lei Mental (“Carta para tirar as suas doações fora da Lei Mental” 383), como era praxe
invariável, quando os donatários morriam sem sucessor válido à face da lei, confirmarem-se
os seus senhorios em parentes, por vezes um tanto longínquos. Desde o século XV, que os
casos de revogação de doações se justificaram sempre por faltas muito graves aos deveres
do donatário, nomeadamente por traição384. Durante os séculos XVI e XVII, a confirmação
régia verificou-se na esmagadora maioria dos casos, mesmo em situações de extrema
tensão política, como foram a crise de 1580 e a Restauração385. De resto, um dos artigos das
capitulações de Tomar dava uma garantia de princípio aos donatários em relação à
confirmação dos bens da coroa, mesmo quando faltassem sucessores legítimos à face da
Lei Mental; embora, mais tarde386, o rei tenha restringido o alcance dessa garantia.
§ 346. Tudo isto confirma a asserção doutrinal de que havia no reino o costume de os
reis manterem as doações feitas pelos seus antecessores387. Nas cortes de 1641, a nobreza
e clero pretenderam transformar esta prática liberal em lei388. Mas o rei, reconhecendo
embora a justeza do princípio da conservação das casas nobres, respondeu de forma
evasiva. Na segunda metade do século XVIII, esta doutrina sobre as confirmações levou
uma volta completa, no sentido de as tomar livres e absolutamente dependentes da vontade
do rei, como supremo juiz dos méritos e serviços dos donatários389.
§ 347. Em contrapartida, não era vulgar em Portugal a venda de senhorios. Os
exemplos que se nos deparam são, por isso, excecionais. No século XV, surgem-nos, isso
sim, casos de terras doadas como satisfação de dívidas da coroa. E, como também era uma
quase dívida a remuneração de serviços, esta proibição de venda de senhorios e jurisdições
podia ganhar contornos menos nítidos. No século XVII, os Áustrias vendem algumas terras.
Depois da Restauração, a ideia de realizar dinheiro com a venda de senhorios não se
perdeu. Num arbítrio de 1683, o rei é aconselhado a procurar “pessoas que comprem
jurisdições, logares, reguengos, officios, capazes de se poderem vender“. De D. Pedro II,
encontramos pelo menos uma venda de terra.
§ 348. Esta situação de um país em que apenas cerca de um terço das terras é da
coroa fixa-se, assim, no decurso do século XV e permanece praticamente inalterada - se não
considerarmos a incorporação na coroa da administração das terras das ordens militares,

383 Sentido desta dispensa, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2,3,30.
384 Cf. exemplos em António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., III.5. Regime da reversão à
coroa, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2,3,31.
385 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., n. III.5.

386 Pela lei de 12.1.1587, na Collecção chronologica de [...] leis [...] delrey D. Sebastião, Coimbra

1819.
387 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones […], cons. 167, n. 5; Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt.

2, dec. I ss. (max., dec. 19, 1 ss.); Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., pt. 2,
c. 7, n. 25; Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., t. 12, ad Ord. fil.,2,45,12, gl. 14, ns. 4 e 5 (p.
167).
388 Cf. caps. 28 da nobreza e 16 do clero.

389 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2,3,31 ss..

110
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
nos meados do século XVI - durante os sécs. XVI e XVII. Isto não obstante a exortação de
Filipe II, no seu testamento, aos seus sucessores no sentido de não alienarem bens da
coroa, exortação que era acompanhada pela revogação de todas as doações por ele feitas; o
seu sucessor encarregou-se de as renovar e de lhes acrescentar algumas. Só na segunda
metade do século XVII, com a perda para a coroa de algumas casas senhoriais
(nomeadamente, a de Vila Real) e com a criação das Casas do Infantado e das Rainhas,
surgem outros domínios territoriais da família real que estabelecerão um equilíbrio novo entre
o poder territorial dos dinastas e o poder territorial dos senhores. A integração do mestrado
do Crato na Casa do Infantado, bem como a extinção, durante o século XVIII, das casas da
Feira, de Aveiro e da Atouguia constituem pontos importantes, embora tardios, deste
movimento de redução das terras do reino ao senhorio real, movimento que culminará com a
extinção das jurisdições senhoriais pela lei de 13 de Julho de 1790390.
2.4.3.9 O regime senhorial nos últimos anos do Antigo Regime
§ 349. Os juristas portugueses dos finais do Antigo Regime eram fortemente
influenciados pela literatura política, social e jurídica que, por toda a Europa, preparava
profundas reformas na sociedade e no poder. Ideias-chaves desta literatura eram a da
exaltação da unidade do poder (i.e., o reforço da ideia monárquica e “a construção do
Estado”) e a da generalidade e abstração do direito e da justiça, no seio de um processo
(eventualmente correspondente a um projeto) de racionalização global dos mecanismos
sociais e políticos. Todas as formas de particularismo político (jurídico ou judiciário), como
todos as manifestações de desigualdade e de “irracionalidade”, tornaram-se odiosas, embora
com algumas se tivesse que condescender para salvaguardar as formas de governo
estabelecidas391.
§ 350. O regime senhorial constituiu, para os juristas mais avançados da época, uma
pedra dessas pedras de escândalo. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão)392 inicia um título
das suas Notas a Melo (1814) dedicado aos direitos senhoriais com as seguintes palavras:
“Os Grandes do Reino, os Senhores Donatários da terras com jurisdição, muitas vezes são
fáceis em ampliar os seus Direitos, e terríveis aos seus vassalos, e súbditos, e concorrendo
com este espírito a prepotência deles, e de seus obsequiosos Ministros, todo o Direito arma
contra eles a sua presunção para se julgar extorquido dos súbditos por força, e violência,
qualquer Direito ou tributo de que não mostrem justo título”393.
§ 351. Era este o espírito, de que também se encontram traços evidentes em Pascoal
de Melo, em Pereira e Sousa, em Francisco Coelho Sampaio, que explica a insistência em

390 Sobre a política senhorial da coroa durante o século, XVI a XVIII, v. António Manuel

Hespanha, As vésperas […], III.5; e Nuno Gonçalo Monteiro, “Os concelhos e as comunidades” (que
inclui cartografia dos domínios senhoriais).
391 Cf., sobre o impacto dos novos ideais, individualistas, contratualistas e racionalistas e as

tensões que provocava com as instituições estabelecidas, António Manuel Hespanha e Ângela Barreto
Xavier, “A Representação da Sociedade […]”, cit..
392 Trata-se de um jurista tendencialmente conservador, do ponto de vista social e político, autor

de obras de defesa das posições senhoriais (Manuel de Almeida e Sousa de Lobão, Discurso […]
sobre os direitos dominicaes […], Lisboa, 1819; Manuel de Almeida e Sousa de Lobão, Discurso sobre
a reforma dos foraes[…], Lisboa, 1825).; cf. António Manuel Hespanha, “O jurista e o legislador […],
cit..
393 Manuel de Almeida e Sousa, Notas […], cit., 2, 3,17 e 18, rubr..

111
As jurisdições e o direito.
dois tópicos que, se não são novos, são pelo menos expressos com um vigor novo neste
final do Antigo Regime.
§ 352. O primeiro é o da natureza graciosa, precária e revogável das doações régias e
da sua dependência em relação ao bem público, arbitrariamente avaliado pelo monarca. Este
princípio foi sobretudo invocado na segunda metade do século XVIII, não tanto para
efetivamente revogar doações, mas antes para justificar o direito da coroa a extinguir ou
reduzir certos direitos (nomeadamente, tributários) seus, mesmo que daí resultasse prejuízo
para os donatários. Isto acontece, por exemplo, com a lei de 4.2.1773, que extingue direitos
de portagem. Suscitando um donatário, em tribunal, a dúvida se ela teria lugar mesmo nas
terras senhoriais, pelo prejuízo que daí adviria aos donatários, a Casa da Suplicação
determinou, por assento, que sim, pois os bens da Coroa não perdiam, pela doação, a sua
natureza e “o Principe, doando, não fica ligado para não poder alterar a doação, quando
concorre o bem comum dos Povos, pois a sua graça é limitada com a reserva da Alta
Superioridade e Real Senhorio, que sem exceção tem em todos os que vivem no continente
dos seus domínios e debaixo da sua Real Protecção, para poder em benefício do Estado e
utilidade comum dos Vassalos, com a repulsa de qualquer interesse particular, fazer nova
Legislação que ligue a todos em geral sem excepção”394.
§ 353. O segundo tópico era o do carácter limitado dos poderes senhoriais,
nomeadamente, a sua estrita dependência dos termos da carta de concessão, caraterística
que a doutrina iluminista realçará muito mais do que a anterior395. Este princípio é sobretudo
afirmado em relação aos direitos reais contidos nos forais e concedidos aos senhores por
doações genéricas (cf. supra), afirmando enfaticamente a doutrina que não podiam ser
cobrados senão os direitos expressamente contidos na carta de foral, não excluídos na carta
de doação396.
§ 354. Em 19 de Julho de 1790, finalmente, é promulgada a “celebérrima constituição”
sobre os poderes senhoriais. Fundando-se na obscuridade e confusão do regime jurídico dos
senhorios e na necessidade de promover que o exercício da justiça fosse igual e uniforme,
esta lei:
§ 355. (a) Abolia as isenções de correição, por “prejudiciais aos donatários e ruinosas
aos povos” (art. III), e as respetivas ouvidorias isentas de correição (art. IV); as anteriores
ouvidorias, com privilégio de correição, das casas anexas à Casa Real seriam transformadas
em comarcas, postas sob a autoridade de corregedores nomeados pela Rainha e pelos
Infantes, com a jurisdição geral dos corregedores (cf. Ord. fil.,1,58; art. XXII);
§ 356. (b) Abolia as restantes ouvidorias (titulares de mera jurisdição intermédia),
estabelecendo um regime geral de apelação para as Relações (arts. V e VI); no território das
anteriores ouvidorias, sendo suficientes, criava comarcas (art. VII); nos restantes, substituía

394 Ass. de 24.4.1778, Collecção chronologica dos Assentos da Casa da Suplicação e do Cível,
Coimbra, 1817,474. A frase provinha do preâmbulo do alv. de 29.9.1768, que limitava os privilégios da
Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira, em Guimarães. Em todo o caso, a lei de 19.7.1790, a que
nos referiremos, prevê uma reparação pelos prejuízos (“particulares”) causados aos donatários pela
extinção da jurisdição senhorial. O mesmo acontece com os projetos de reforma dos forais, dos inícios
do séc. XIX (cf. António Manuel Hespanha, “O jurista e o legislador {…]”, cit.).
395 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2,3,39.

396 Cf., em sentido destoante, Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Discurso […], cit., § 84; sobre

o tema, António Manuel Hespanha, “O jurista e o legislador {…]”, cit..

112
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
os ouvidores, “se parecer necessário” (art. VIII), por juízes de fora, “com graduação ou sem
ela”397, cabendo a sua apresentação ou consulta aos donatários (art. XXXVIII); no caso de se
manterem os juízes ordinários, a sua nomeação caberia, em princípio, aos donatários (art.
XXXIX).
§ 357. c) Extinguia os pequenos coutos (art. XL).
§ 358. d) Anunciava e promovia uma reforma territorial, “em benefício da justiça, e
comodidade dos vassalos” (art. IX-XI).
§ 359. O principal objetivo da lei era, como se dizia no seu preâmbulo, promover que o
exercício da justiça fosse igual e uniforme, ou, como glosava Pascoal de Melo, “extinguir
todos aqueles privilégios que, inventados com incómodo dos cidadãos, tomam a
administração da justiça difícil e desigual, tomando assim todos os cidadãos em geral iguais
e sujeitos, nesta parte, ao direito comum”398.
§ 360. A consecução deste desiderato - típico do novo pathos universalizante e
racionalizante do pensamento político e jurídico iluminista - traduzia-se, fundamentalmente,
na abolição da justiça (em segunda instância) dos donatários, devendo, daqui para o futuro,
todos os recursos dos juízes das terras, serem uniformemente dirigidos às relações do
distrito399. Além disto, uniformizava-se ainda - qualquer que fosse o titular do direito de
nomear ou apresentar (“consultar”) os corregedores, juízes de fora ou juízes ordinários
criados em substituição dos antigos ouvidores - o estatuto (condições de provimento,
atribuições) de toda a magistratura, independentemente da qualidade real ou senhorial das
terras. Sendo a jurisdição dos donatários, em Portugal, uma jurisdição de recurso, bem se
pode dizer que a lei de 1790 punha fim a ela400.
§ 361. Têm-se dividido as opiniões sobre a importância desta lei401.
§ 362. Do ponto de vista da política do direito e da justiça402, ela tem uma importância
central, constituindo a manifestação legislativa sistemática do princípio, tão destacado pelo
pensamento político iluminista, de que a administração de toda a justiça403 era inseparável
da pessoa do rei, devendo ser, além disso, igualmente aplicada a todos os cidadãos, sob a
égide do direito, do processo e da ordem judiciária comuns404. Escrevendo por esta altura405,

397 A “graduação” era a distinção de diversas categorias de magistrados régios: correição de


primeiro banco, correição ordinária, juiz de cabeça de comarca, juiz de primeira entrância.
398 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 3,61.

399 Note-se que, no Algarve, funcionava uma Junta de Justiça, para onde se recorria (cf. Dec.

15.5.1790, Col. Chron. Leg. (A.D.S.), 605).


400 Pascoal de Melo não deixa de notar o carácter singular da faculdade genérica de apurar as

pautas e de nomear as justiças atribuídas aos donatários pela nova lei, por serem contrárias às
Ordenações (Ord. fil.,2,45, 2 e 13; 1, 66, 30; 1, 67).
401 Cf., por último, Nuno Gonçalo Monteiro, “Os concelhos e as comunidades”, no sentido de

desvalorizar a sua importância prática.


402 E mesmo, lendo em conta a centralidade destes temas no pensamento político da época, do

imaginário político em geral


403 E não somente a justiça suprema, por via de recurso ordinário ou extraordinário, como antes

se defendia, nos quadros da teoria corporativa da sociedade e do poder.


404 Persistem diversas limitações a este principio, pois se mantém, até ao fim do Antigo Regime,

jurisdições especiais (do clero, dos estrangeiros, dos militares, etc.).

113
As jurisdições e o direito.
Francisco de Sousa Sampaio afirma enfaticamente que “Uma das partes integrantes do
Sumo Império é a judiciária (p. II, §61) [...] não pode por consequência separar-se esta parte
judiciária da pessoa do monarca sem alteração na forma da Monarquia [...]”406. Daí que
Pascoal de Melo apelide a lei de 1790 de “celebérrima constituição”.
§ 363. Do ponto de vista estritamente jurídico (ou seja, independentemente das
modalidades da sua aplicação prática), a substituição dos ouvidores por corregedores ou por
juízes de fora também não era banal, pois além de pôr termo, como vimos, à jurisdição
senhorial, entregava a justiça a um magistrado estatutariamente independente do senhor
(ainda que apresentado por este), enquanto que o ouvidor era um oficial senhorial, dispondo
de competência apenas delegada e, por isso, avocável pelo senhor (V. Ord. fil.,2,52: o
senhor pode conhecer pessoalmente das causas, mesmo tendo ouvidor )..
§ 364. O que não se sabe ainda exatamente é qual o relevo prático, nos finais do
século XVIII, do exercício das jurisdições senhoriais. Se, como ultimamente foi
plausivelmente defendido407, a jurisdição senhorial integrava um conjunto de dispositivos de
domínio político das terras que facilitavam, nomeadamente, a aquisição e consolidação de
direitos de natureza patrimonial, não seria facto de somenos a sua abolição. Mas só o estudo
detalhado da grande massa documental produzida na sequência desta lei - tanto sobre os
aspetos de reforma territorial como sobre as questões jurisdicionais provocadas pela sua
entrada em vigor - poderá fazer luz sobre o tema.
2.4.4 A Igreja.
2.4.4.1 A Igreja como sociedade eclesial
§ 365. A importância da Igreja como polo político autónomo é enorme na Época
Moderna.
§ 366. De facto, de todos os poderes que então coexistiam, a Igreja é o único que se
afirma com bastante eficácia desde os âmbitos mais humildes, quotidianos e imediatos,
como as famílias e as comunidades, até ao âmbito internacional, onde convive, como poder
supremo, com o Império, nos espaços políticos em que este é reconhecido como poder
temporal eminente408. De um extremo ao outro, a influência normativa ou disciplinar da Igreja
exerce-se continuamente. No plano da ação individual, pela via da cura das almas, a cargo
dos párocos, pregadores e confessores. No plano da pequena comunidade, pela via da
organização paroquial. No plano corporativo, por meio das confrarias específicas de cada
profissão. Nos âmbitos territoriais intermédios, por meio da disciplina episcopal. Nos reinos,
por mecanismos tão diversificados como a relevância temporal do direito canónico ou as
formas tão estreitas de cooperação entre os “dois gládios”. No plano ecuménico, pelo poder
espiritual do Papa.
§ 367. Esta contínua presença da Igreja na organização política e institucional do
mundo terreno era ainda reforçada pela efetividade da administração eclesiástica, muito mais
implantada e capilar do que a administração secular.

405 As suas Preleções [...] foram impressas em 1793, mas devem ter sido escritas antes, pois a lei

de 1790 ainda aí não vem referida.


406 Francisco C. S. Sampaio, Prelecções […], III, §69, nota b.

407 Nuno Gonçalo Monteiro, “Os concelhos e as comunidades”, cit..

408 O que, como se sabe, não existia em Portugal.

114
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 368. A dimensão externa, mundana, do poder espiritual da Igreja explica a
importância que os momentos jurisdicionais adquirem na teoria e na prática eclesial.
§ 369. Até ao século XIII, muito permanecia de uma conceção puramente espiritual da
Igreja, que a concebia como a congregação daqueles que estivessem em união com Cristo,
na graça de Deus (ecclesia triumphans), ou que por isso lutassem (ecclesia militans)409. Mas
esta união com Cristo, para além de ser potencialmente universal (“católica”)410, dependia
apenas de uma disposição interior, sendo, por isso, externamente invisível. Os filhos da
Igreja eram, então, inumeráveis e externamente indistinguíveis. A enumeração que S. Tomás
faz deles dá bem conta disso411. Na verdade, Cristo era a cabeça de todos os homens (e de
todos os anjos), pelo que “o corpo da Igreja era constituído pelos homens que existiram
desde o princípio do mundo até ao seu fim” (ibid., “resp”.): tanto pelos que estavam de facto
(in actu) em estado de graça, como pelos que apenas podiam vir a estar (in potentia, mesmo
que, de facto, nunca o viessem a estar!). Até os infiéis eram potencialmente membros da
Igreja, pois podiam estar predestinados por Cristo para a salvação (ibid., ad prim.). Mas,
além dos homens, faziam ainda parte da Igreja os anjos e os bem-aventurados (ibid., a. 4).
Já se vê que, com esta extensão - e, sobretudo, com esta indefinibilidade -, a Igreja não
podia obter nenhuma tradução institucional.
§ 370. Do ponto de vista institucional, o que existiam eram as dignidades eclesiásticas
terrenas instituídas por Cristo, nomeadamente o Papa, a quem competia dirigir uma parte da
Igreja, a Igreja militante, constituída pelos homens que, neste mundo, caminhavam para
Cristo. Neste sentido, para fins institucionais e disciplinares, mais do que a Igreja,
interessavam os ofícios eclesiais instituídos (o papado, o episcopado)412. A Igreja tendia a
ser definida como o conjunto dos fiéis que estavam unidos misticamente a Cristo, por via de
uma sua união formal ao seu vigário na Terra, o Papa. Com isto, com a exigência desta
comunhão visível com a Igreja visível, a congregação dos crentes adquire uma dimensão
externa: os membros da Igreja podem ser identificados, contados, distinguidos dos que o não
são; são formalmente admitidos (nomeadamente pelo batismo, como janua Ecclesiae, “porta
da Igreja”) e podem ser formalmente expulsos (pela excommunicatio, excomunhão, privação
da comunicação)413. E é isto que permite que à Igreja sejam aplicados os quadros do

409 I. e., que estivessem a caminho - um caminho cheio de perigos e de quedas - da salvação

(homines viatores).
410 Dela estavam excluídos apenas os predestinados à condenação (cf. S. Tomás Summa

theologica, 1a.2ae, qu. 8, a. 3, “resp.”, in fine.


411 Cf. Summa theologica, 1a.2ae, qu. 8, a. 3.

412 E, por isso, nos teólogos anteriores ao século XIV, a atenção prestada à Igreja, como corpo

institucional, é muito pequena; basta compulsar um índice temático da Summa theologica, de S. Tomás
de Aquino, em que as entradas relativas à Igreja são relativamente muito poucas (mesmo se
considerarmos que a obra ficou incompleta). Também os tratados teológicos De Ecclesia apenas
começam a surgir nos inícios do século XIV. Cf., sobre a eclesiologia em S. Tomás e na época
seguinte, Otto Hermann Pesch, Tomás de Aquino […], cit., 449 ss.
413 Tudo isto se relaciona, em todo o caso, com questões teológicas mais vastas, nomeadamente,

a da natureza da graça, dos sacramentos e, concretamente, do sacramento do batismo. Quanto a este


último ponto, uma conceção espiritualista da Igreja, “desmaterializava” o batismo, considerando que, ao
lado do batismo institucional (“pela água”, baptismum fluminis), existia um batismo espiritual que
consistia apenas na pura vontade (votum baptismi), dirigida pela chama da graça (logo, baptismum
flaminis, batismo pela chama), de se abrir à salvação (cf. S. Tomás, Suma theol., 1a.2ae, qu. 68, a. 2;
qu. 69, a. 7; bem como o texto de Santo Agostinho, aí citado [q. 68, a. 2, “sed contra”], falando da

115
As jurisdições e o direito.
pensamento político-institucional estabelecidos para as outras comunidades (ou corpos) de
homens.
§ 371. Esta jurisdicionalização da Igreja estava em marcha desde a Idade Média. Mas,
a partir da Reforma, a teologia polémica dos católicos contra a “religião da interioridade”,
contra o carácter fundamentalmente pessoal e interior da fé e da salvação, proposta pelos
luteranos, tinha incentivado a valorização das dimensões visíveis e institucionais da Igreja,
nomeadamente da ligação institucional e jurisdicional ao Papa como único e indispensável
sinal visível da comunhão com Cristo e, logo, de pertença à Igreja.
§ 372. Em alguns teólogos mais exigentes e mais conhecedores da antiga tradição
teológica sobre a igreja, a complexidade originária do conceito de Igreja ainda aflorava. Para
Francisco Suarez (que ainda bebe, de muito perto, em S. Tomás), a Igreja é “o corpo político
e moral composto pelos homens que professam a verdadeira fé de Cristo” (corpus quoddam
politicum, seu morale ex hominibus veram fidem Christi profitentibus compositum)414. Isto
ainda se acentua quando, em seguida, Suarez exclui do seu campo de reflexão a Igreja
triunfante e declara ocupar-se apenas da Igreja dos homens, no seu trânsito terrestre catual
(Igreja “militante”) (ibid.). Todavia, ainda entende a Igreja como excedendo aquela que seria
composta apenas pelos homens que se encontram em união (visível) com o Vigário de Cristo
(i.e., os “católicos”, no sentido comum da palavra), continuando a defini-la em função de uma
união espiritual com Cristo415. Por isso, Suarez condena conceções mais exclusivamente
jurisdicionalistas que então já se faziam ouvir entre os teólogos católicos que
hipervalorizavam, na sequência de Trento, os aspetos externos e visíveis da pertença à
Igreja, como o reconhecimento e obediência ao Papa, o batismo formal e a prática externa
dos sacramentos e dos ritos da fé. Para ele, ainda fazem parte da Igreja os excomungados e
os cismáticos, os não batizados que aspirem ao batismo (ibid., n. 13 ss., n. 17 ss.); mas não
os que se acomodam à disciplina externa da Igreja, embora sem fé (ibid., n. 23)416. Porém, já
o Compendium salmanticense de teologia moral417, obra típica da teologia vulgar da Contra-

possibilidade de um “sacramento invisível”). Em contrapartida, uma consideração jurisdicionalista da


Igreja tendia a reservar o carácter sacramental para o batismo institucional (baptismum fluminis): “um
só Deus. uma só fé, um só batismo; e assim, só o batismo fluminis é sacramento. O batismo flaminis, et
sanguinis (i.e., pelo martírio) não são sacramentos, chamando-se batismos porque substituem e fazem
as vezes do batismo fluminis quanto ao efeito, sempre que o sujeito não pode receber o sacramento do
batismo in re (i.e., em si mesmo)” (Francisco de Larraga, Promptuario de la theologia moral […], cit.,1
tract. 2, § 1, pp. 47-48); esta era a doutrina dominante depois de Trento (cf. sess. 7, can. 5); cf. Antonio
de San Jose, Compendium salmanticense […], cit., tract. 23, cap. unic. Quanto aos restantes
sacramentos, o concílio de Trento (sess. 7, can. 10) condenou a proposição de que qualquer fiel podia
administrar os sacramentos, apesar de, segundo os Evangelhos, Cristo ter dado a todos os homens o
poder de batizar, de administrar a eucaristia e de perdoar os pecados, (Mat., 28, 19; Luc.,22, 19, João,
20, 23). Cf., v. g.. Sebastião de Abreu, lnstitutio parochi [...], cit., liv. 9, sec. I2,n. 19 (p. 486).
414 Francisco Suarez, Opus de triplici virtute, fide, spe et charitate […], cit., tract. I (“de fide”), disp.

9, n. 3.
415 “Nimirum omnes, qui fidem habent, ecclesia membra essent; vero qui illa carent extra

ecclesiam constitui”, ibid., n. 6.


416 Embora aqui pareça estar a pensar apenas nos que estão em fase de doutrinação para

receberem o batismo formal (catecúmenos) e não ao “homo nutritus in sylva” (selvagem) que recebeu o
dom da graça independentemente de qualquer contacto com a Igreja institucional.
417 António de San Jose, Compendium salmanticense [...], cit.. Trata-se de uma obra de

vulgarização teológica, organizada em perguntas e respostas e constituindo uma súmula do famoso

116
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
Reforma, define a Igreja militante como a “congregação dos fiéis batizados, reunidos para
prestar culto a Deus, cuja cabeça invisível é Nosso Senhor Jesus Cristo nos céus, e a visível
o Sumo Pontífice na terra”418. Nenhuma referência à fé como vínculo à Igreja; em
contrapartida, inclusão da referência ao batismo e à obediência ao Papa419. Em obras
ulteriores de teologia vulgar, este encerramento jurisdicionalista da Igreja acentua-se ainda,
identificando-se rigorosamente a Igreja militante (da triunfante já quase não se fala) com os
homens que reconhecem o Papa e a ele obedecem420. Neste sentido, já pouco separa a
Igreja de um senhorio, ou seja, de uma república humana que reconhece o mesmo senhor e
que está sujeita à sua jurisdição421. O único traço distintivo passa a ser, apenas, a natureza
especial desta jurisdição que, ao contrário das jurisdições temporais, se ocupa de coisas
espirituais. Uma vez que operava neste plano diferente, a jurisdição eclesiástica podia dirigir-
se a homens que já estavam sob outras jurisdições e pretender, assim, um domínio universal
(“católico”)..
§ 373. Este progressivo encerramento da Igreja numa estrutura institucionalmente
fechada facilitava a instauração de mecanismos disciplinares sobre os fiéis. Permitia à Igreja
institucional identificar os seus “súbditos”, reclamar o monopólio da administração da graça
(por meio dos sacramentos, “sinais de uma coisa sagrada”, enquanto santifica os homens”),
impor-lhes uma disciplina, puni-los e, finalmente excluí-los. Esta “contabilização dos fiéis” (a
que correspondia, no fundo, uma contabilização da graça, que “aprisionava Deus” nas
estruturas de salvação institucionalmente definidas pela Igreja) traduzia-se, nomeadamente,
no arrolamento dos crentes, por ocasião da sua entrada na Igreja (registos de batismo) e,
depois, por ocasião da reparação periódica do vínculo da fé, mediante a confissão dos
pecados, a contrição, a absolvição (róis de confessados) e, finalmente, a extrema unção.
Com estes instrumentos, a Igreja controlava a entrada na Igreja e a permanência nela. Com
o controlo dos restantes sacramentos, por sua vez, impedia-se que “Deus irrompesse
anárquica e desordenadamente na história”, ou seja, que os homens cressem que
acontecimentos ocorridos fora do controlo da Igreja pudessem ser instrumentos utilizados
por Deus para dar sinal de si e para salvar os homens.
§ 374. Em todo o caso, esta circunscrição dos fiéis a um número finito e contado
reduzia também as pretensões ecuménicas da Igreja no plano jurisdicional, pois obrigava a
reconhecer que quem estivesse fora do grémio dos fiéis escapava à jurisdição da Igreja. Isto

“Curso teológico” dos carmelitas descalços de Salamanca (Collegii salmanticensis fratrum


discalceatorum [...] cursus theologicus D. Thomae complectens. Segoviae, 1634-1637).
418 Tomo 2, tract. 41, §2, n. 71.

419 Embora, em seguida, se matizasse um pouco, admitindo que os não batizados pudessem

fazer parte de uma Igreja invisível (o que, todavia, não lhes permitiria participar dos sacramentos);
também os hereges e cismáticos seriam membros de direito, mas não de facto, da Igreja.
420 Entre tantos exemplos, Cf. Sebastião de Abreu [jesuíta, professor de teologia na Universidade

de Évora], lnstitutio parochi seu speculum parochorum, Évora, 1700. Encontram-se estas definições no
comentário ao Credo (“Creio na Igreja, una, santa, católica e apostólica [...]”).
421 Note-se que o próprio poder papal se ia também temporalizando. Com o progresso da

conceção jurisdicionalista da Igreja e com a consequente e progressiva contaminação da teoria da


Igreja por uma teoria do Papado concebido à maneira de um poder temporal, o Papa tende a conceber-
se, cada vez mais, como um soberano entre os outros, perdendo a sua dimensão ecuménica e
situando-se ao mesmo nível dos outros soberanos, no palco da política mundana. Cf., sobre isto, o
decisivo livro de Paolo Prodi, Il soverano pontifice [...], cit..

117
As jurisdições e o direito.
era claro com os pagãos, em relação aos quais a Igreja apenas podia pretender a liberdade
de anunciar o Evangelho422. Mas era mais discutido e mais difícil de aceitar em relação aos
hereges e cismáticos, em relação aos quais a Igreja pretendia levar a cabo uma política de
reunião ou de submissão. Daí que alguns teólogos afirmem que, embora fora da Igreja, os
hereges estavam sujeitos à sua tutela; porque, tal como o membro cortado do corpo,
continuavam a “pertencer” ao corpo de que foram membros423.
2.4.4.2 Os clérigos
§ 375. Como todas as sociedades humanas, a Igreja era uma sociedade ordenada e
hierarquizada. A grande distinção entre os seus membros - uma distinção que se foi tomando
cada vez mais estruturante424 - era a distinção entre clérigos e leigos. Um famoso jurista
quinhentista autor de uma obra de referência estabelece aí a distinção nos seguintes termos:
“Os leigos, que também se podem dizer populares, são aqueles a quem é lícito possuir bens
temporais, casar, advogar causas e julgar. Os clérigos são aqueles que foram dedicados aos
ofícios divinos e aos quais convém preservar de todo o estrépito”425.
§ 376. Já o Diccionario de autoridades, da Real Academia Espanhola (1726) enfatizava
mais um elemento formal ou externo da distinção, o de se ter recebido a prima tonsura: “todo
o que foi admitido pelo bispo e deputado juridicamente para o serviço da Igreja, mediante a
primeira tonsura, ainda que não tenha recebido outra ordem superior”. E acrescentava,
valorizando agora a imposição do sacramento da ordem (ou ordenação)426, que
“ordinariamente, entende-se como o clérigo secular que tem ordens maiores” (s.v. “Clerigo”).
Outros427 destacam a hierarquia relativa dos dois estados: “Do clérigo se diz que é um
soldado espiritual [...] e apesar de ser filho de um qualquer artífice ou ínfimo plebeu,
enquanto clérigo consagrado a Deus, é maior e superior aos soldados deste mundo, mesmo
que príncipes e reis seculares” (n. 1).
§ 377. A definição do estado clerical não era apenas importante para marcar as
hierarquias dentro da sociedade eclesial, mas ainda para delimitar o âmbito dos privilégios
(sobretudo jurisdicionais) do clero. E, neste plano, ele consistia numa dedicação, formal e
definitiva, ao serviço divino.
§ 378. A formalização desta dedicação efetuava-se ou pelo sacramento da ordem (ou
ordenação), num dos seus diversos graus, ou pela colação (i.e., a nomeação para) de um
benefício (i.e., ofício eclesiástico), ou pela profissão numa ordem religiosa, masculina ou
feminina428. Das dignidades e ofícios eclesiásticos diremos mais tarde. A ordenação era o
sacramento em virtude do qual um leigo era ligado ao ministério da Igreja, recebendo o
poder de consagrar e administrar o sacramento da eucaristia (Trento, sess. XXIII, cap. III). A
ordenação (ou ordem) tinha sete graus: três maiores ou sacros (presbítero, diácono e
subdiácono) e quatro menores ou não sacros (acólito, exorcista, leitor e ostiário [porteiro])429.

422 A questão torna-se candente com a expansão e a missionação.


423 Francisco Suarez, Opus de triplici virtute [...], cit., tract.1 disp. 9, n.23.
424 Até ao movimento de revalorização do estado laical com o concílio do Vaticano II.
425 Giovanni Paulo Lancelloti, lnstitutiones iuris canonici, cit.,14.
426 E, dentro deste, a imposição de ordens maiores ou sacras (v. infra).

427 Como António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Clericus”.
428 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Clericus”, n.2.
429 Para fazer corresponder os graus da ordem (i.e., a hierarquia da igreja militante) à hierarquia

118
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
E não era acessível a todos. Dela estavam (e continuam a estar, na Igreja Católica)
excluídas as mulheres. Mas, para além disso, existiam múltiplos impedimentos (ou
“irregularidades”) à sua receção. Os canonistas identificavam três tipos de irregularidades:
morais (crime430 431, infâmia432, demência, embriaguez, esponsais433, mancebia pública, falta
de vocação); físicas434 (sexo435, doença contagiosa [nomeadamente, lepra], falta de vista436,
privação de algum membro, aleijão ou defeito do corpo); sociais (ilegitimidade de
nascimento, impureza de sangue437, profissão de cómico438, falta de idade439, falta de
ciência440. As irregularidades relativas ao nascimento eram averiguadas nas habilitações de
genere; as restantes eram-no nas habilitações de vita et moribus. Para além da inexistência
de impedimentos, a imposição do sacramento da ordem dependia da titularidade, pelo
ordenando, de meios de subsistência. Assim, ninguém podia ser ordenado sem “título”, ou
seja, sem possuir previamente e de forma pacífica um benefício, um património pessoal ou

dos anjos (i.e., da igreja triunfante: anjos, arcanjos, tronos, dominações, virtudes, principados,
potestades, querubins, serafins, Decreto, 2ª parte, C. 23, qu. 3 de poenit., dist. 2, c.. 45), alguns
canonistas falavam de nove graus, juntando um superior (o episcopado) e um inferior (a prima tonsura).
Outros, pelo contrário, consideravam que o episcopado era uma dignidade e a primeira tonsura, uma
preparação para a ordem. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. Cf. “Ordo”, n. 3.
430 Bastava a suspeita forte, indiciada pelo facto de se ter sido pronunciado.

431 Era esta interdição de efundirem sangue que impedia os clérigos de condenarem em pena de

sangue (António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Ordo”, n. 26; Bernardino Carneiro, Elementos
de direito ecclesiastico [...], cit., 57).
432 Decorrente de heresia, cisma ou apostasia; de condenação em crime civil que a importasse (v.

g., lesa-majestade); de descender de herege relapso; de se ter envolvido em duelo, como duelista ou
padrinho; de condenação por sedição, libertinagem ou usura (cf. Bernardino Carneiro, Elementos de
direito ecclesiastico [...], cit., 61 e bibl. cit.).
433 Os casados com mulher virgem podiam ordenar-se, desde que declarassem publicamente

guardar castidade e adotassem vestes religiosas; o mesmo podia fazer quem se encontrasse separado
da mulher por adultério desta. Em contrapartida, não podiam ser ordenados os casados por duas vezes
ou os casados com mulher que tivesse sido “conhecida” por qualquer outro homem. Cf. António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Ordo”, n. 17. A ordenação impedia a celebração do matrimónio
(Extrav. Jo. XXII, liv. VI, cap. un.).
434 Sobre elas, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. "Ordo”, nº 10 e ss.

435 “Ordinari potest homo masculus”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit.,s.v.“Ordo”, n. 9.

436 Bastava a cegueira do olho esquerdo, para evitar que o sacerdote virasse a cara ao cálice e à

hóstia durante a consagração, quando o missal está do lado esquerdo. A perda de um dedo, salvo o
polegar, não era irregularidade.
437 Cf. CR 17.5.1612 (mandando executar um breve de Paulo V que excluía os cristãos novos do

sacramento da ordem); revogado pelas LL de 25.5.1773 e 15.12.1774 (e breve de Pio VI, de


14.7.1779).
438 Abolido pelo alv. 17.7.1771, art.º X.

439 Variava com as ordens e com as dioceses (em Lisboa e Évora, por exemplo, não se podia

receber a primeira tonsura antes dos sete anos; o diaconato exigia os 23 anos e a ordem presbiteral, os
25).
440 Saber ler e escrever, para a primeira tonsura; saber latim, para as ordens menores;

licenciatura em teologia ou cânones, para o episcopato (em princípio). Cf. Conc. Trento, sess. XXII,
cap. 2, sess. XXIII, cap. IV e XI, de reformat.; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Ordo”,
n. 10.

119
As jurisdições e o direito.
uma pensão de que se sustentasse441. Apenas se excecionavam desta regra os professos
em ordens religiosas, os jesuítas ou os missionários.
§ 379. Enquanto titulares de uma especial dignidade, os clérigos ordenados deviam
manter regras estritas no viver, que incluíam a abstenção de jogos seculares e da caça, a
não frequência de tabernas ou do teatro, um comportamento moral irrepreensível, um porte
discreto, a mansidão de costumes442, o uso de vestes clericais, a prática da tonsura ou
“coroa aberta” e outras normas variáveis de região para região quanto ao hábito corporal443.
§ 380. À profissão em ordens religiosas nos referiremos adiante.
§ 381. Apesar da tentativa de formalizar a entrada no estado clerical por uma qualquer
solenidade (ordenação, profissão, colação de benefício) que permitisse traçar fronteiras
distintas numa classificação que tantas e tão importantes consequências práticas trazia,
permanecia uma certa zona de mobilidade em que a pertinência ao estado clerical acabava
por se decidir quase unicamente em função de critérios externos, como o uso do hábito e da
tonsura. De facto, quanto aos clérigos menores, o uso de hábito e tonsura condicionava a
produção de um dos mais importantes efeitos do estado clerical – a isenção jurisdicional444.
§ 382. Como o uso de hábitos religiosos estava rigorosamente interdito aos seculares,
pode dizer-se, portanto, que a face visível do estado clerical consistia mesmo no uso do
hábito (ou seja, que, ao contrário do que se diz na sabedoria popular, o hábito fazia mesmo o
monge).
2.4.4.3 O direito eclesiástico.
§ 383. Para desempenhar a sua missão (de condutora, de mãe e de mestra), a Igreja
dispunha, quer de normas disciplinares, quer de uma malha jurisdicional e político-
institucional visando a sua aplicação. Comecemos pelas primeiras.
§ 384. O primeiro núcleo das normas com que a Igreja disciplinava a sociedade
moderna estava contido no património doutrinal ou dogmático da Igreja, integrando as obras
dos teólogos. Dentro destas, salientam-se as normas morais, visando o aperfeiçoamento
individual. Nos âmbitos do comportamento para consigo mesmo (monastica), do
comportamento no seio da família (oeconomia), ou ao comportamento no seio da república
(politica). A cada um destes grupos correspondia um capítulo da teologia moral, corpo
literário vastíssimo, que vai desde as grandes sínteses (como a segunda parte da Summa
theologica, de S. Tomás de Aquino, (1225-1274), até aos comentários monográficos ou aos
“manuais de confessores”445, espécie de repertórios dos “casos de consciência” para uso dos
confessores446.

441 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Ordo”, n. 30.
442 Estava-lhes, por isso, vedado o porte de armas ou os desafios e duelos.
443 Na Península não podiam, por exemplo, usar barba nem bigode.
444 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Ordo”, n. 94. Os clérigos menores casados

(uma vez só e com mulher virgem) gozavam de privilégio clerical apenas no foro criminal (Trento, sess.
XXIII de reformat. cap. 6), se andassem de hábito e tonsura e fossem destinados pelo bispo ao serviço
em alguma igreja (Trento, sess. XXIII de reformat., cap. 6).
445 Sobre os manuais de confessores, v., para Portugal, Francisco Bethencourt, “As artes da

confissão […]”, cit..


446 A principal fonte para o estudo da teologia moral deste período continua a ser a parte II da

Summa theologica, de S. Tomás de Aquino (há edições modernas, bilingues e traduzidas em francês,

120
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 385. Nos séculos XVII e XVIII, a teologia moral atingiu um alcance e uma finura de
análise casuística impressionantes. Estava-se, pelo menos no Sul da Europa, perante uma
sociedade “integrista”, em que se visava - apesar de uma certa laicização do pensamento
teológico operado com a escolástica tomista - uma direção integral da vida inspirada na
moral cristã e em que, portanto, os atos mais mínimos e mais íntimos estavam
detalhadamente regulados, quase não havendo lugar para ações indiferentes do ponto de
vista do destino sobrenatural de cada um. Este ambiente integrista explica também a
influência do discurso teológico sobre outros universos normativos, como, designadamente,
o direito secular. Por outro lado, teologia moral (como também o direito) da Época Moderna é
dominada pela ideia de que cada ato concreto está tão individualizadamente ligado ao seu
contexto que mal pode ser regulado por fórmulas gerais. O resultado era uma exuberante
literatura casuística, descrevendo com minúcia as mais diversas situações morais e
propondo para cada uma delas um juízo particular. Trata-se do “molinismo”, designação
proveniente do nome de um dos grandes teólogos morais da época, o jesuíta castelhano
Luís de Molina (1536-1600).
§ 386. A capacidade que esta produção doutrinal tinha de influenciar os
comportamentos quotidianos era enorme. Não porque as fontes originais do pensamento
teológico fossem diretamente acessíveis à generalidade das pessoas. Pelo contrário, elas
constituíam um universo literário bastante hermético, escrito em latim e pleno de referências
que apenas um erudito podia decifrar. Mas a cultura teológica tinha uma intenção
eminentemente prática e dispunha de uma série de mediações que a faziam acessível à
massa dos fiéis, desde a pregação até à liturgia e à direção de consciência447.
§ 387. Destas, a pregação, nomeadamente a pregação dominical, constituía um
eficacíssimo instrumento de disciplina das comunidades de crentes448. Outra, a confissão,
preceito pelo menos anual para cada fiel, por meio da qual se exercia uma disciplina
personalizada e se atingiam os níveis mais íntimos da conduta de cada um. Se a pregação
podia “entrar por um ouvido e sair pelo outro”, a confissão implicava o risco da não
absolvição e das penas canónicas que daí decorriam. Nos casos mais graves, como a
privação dos sacramentos ou a excomunhão, estas penas expunham quem violasse os
preceitos canónicos a situações de marginalização social que eram mais graves do que
muitas das penas seculares. Pense-se na vergonha pública que constituiria, nesses tempos,
a impossibilidade de se casar pela igreja, de se ser padrinho, de frequentar a igreja, de
receber os sacramentos ou a visita pascal, de ser enterrado canonicamente. Finalmente, a
disciplina eclesiástica dispunha de um outro instrumento de implementação, as visitas feitas
pelo bispo ou vigário-geral a cada paróquia da diocese, ocasião para proceder a uma
devassa geral da vida da comunidade, quer quanto aos aspetos do culto, quer quanto a
matérias de disciplina (como, por exemplo, a existência de pecadores públicos - adúlteros,
prostitutas, homossexuais, jogadores, usureiros)449.

italiano e espanhol). Mas, nos séculos XVI e XVII, produziram-se sumas que exerceram grande
influência em Portugal e na Espanha. Sobre as principais e sobre a teologia moral da época, v.
Melquíades Andrés (dir.), Historia de la teologia española, cit..
447 Cf. Adriano Prosperi, Tribunali della coscienza. Inquisistori, confessori, missionari […], cit..

448 Sobre a eficácia disciplinadora da pregação (parenética), cf. João Francisco Marques, A

parenética portuguesa e a Restauração […], cit., maxime,110 ss.


449 Cf., para Portugal, Isaías da Rosa Pereira, “As visitas paroquiais como fonte histórica” […], cit.;

Franquelim Neiva Soares, A arquidiocese de Braga no século XVI. Visitas pastorais […], cit.; Joaquim

121
As jurisdições e o direito.
§ 388. Embora o universo dogmático e disciplinar da teologia admitisse interpretações
destoantes, podia dizer-se que, no conjunto, ele ratificava - nesta época em que a dimensão
profética da Palavra se acantonava em movimentos místicos sempre suspeitos de
heterodoxia - a ordem social e política estabelecida. Em todo o caso, os poderes civis não
deixavam de se preocupar com o seu controlo. Domínios de difícil intervenção eram a
pregação e a confissão. Mas já quanto às visitas e aos abusos que as autoridades
eclesiásticas aí podiam praticar, as Ordenações (2,1,13) previam uma intervenção
moderadora do rei, como protetor dos seus vassalos, contra as medidas punitivas tomadas
pelos prelados que não respeitassem, na forma ou na substância, os preceitos do direito
canónico450.
§ 389. A segunda fonte de disciplina eclesiástica dos comportamentos era o direito, o
seu direito, o direito canónico, conjunto de normas cuja observância estava garantida pela
ameaça de sanções do foro externo.
§ 390. Que a Igreja dispusesse, em vista da missão sobrenatural, de poderes de
constrangimento sobre os crentes em matérias espirituais e que dispusesse deles de forma
exclusiva era indiscutível. Na verdade, isso correspondia a um princípio de boa ordem da
sociedade que reclamava que, para cada domínio, existisse um e um só princípio
ordenador451, sob pena de confusão. A lei divina fora instituída para ordenar o homem para
Deus, enquanto a lei humana visava a ordenação dos homens uns em relação aos outros.
Daí que os príncipes temporais não pudessem estabelecer nada acerca das coisas
espirituais e divinas, pois o seu poder não lhes fora concedido em vista da felicidade da vida
futura. Pelo que este domínio ficaria exclusivamente sujeito aos pastores espirituais,
nomeadamente ao Sumo Pontífice, gozando de absoluta imunidade perante a jurisdição
civil452.
§ 391. Mas já não era evidente que a Igreja pretendesse a regulamentação de matérias
temporais e, muito menos, que pretendesse abranger sob o seu poder os não crentes. Daí
que estas questões tivessem sido muito discutidas durante toda a Idade Média e Moderna,
tanto mais que elas se relacionavam com instantes problemas de natureza política. A
primeira questão relacionava-se com as relações (ou hierarquia) entre os poderes espiritual e
temporal e a segunda com questões como a dos direitos civis ou políticos de judeus e infiéis,
a da liberdade de crença ou a da partilha do mundo não cristão entre os soberanos
cristãos453. Este tema é foi abordado noutro capítulo (v. cap. 2.5). Limitamo-nos, por isso, a
algumas indicações complementares.
§ 392. As fontes sagradas não eram claras quanto à primazia ou não do poder

de Carvalho, e José Pedro Paiva, “Repertório das visitas pastorais [...], cit.; 1990.
450 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Tractatus de manu regia […], cit.; Francisco Salgado de

Somoza, Tractatus de regia protectione […], cit..


451 Cf. S. Tomás, De regimine principum, n. 3 (trad. castelhana em
http://catalog.hathitrust.org/Record/006525684).
452 É a doutrina tradicional (S. Tomás, Summa theol., 2a.2ae, qu. 99, art. 3), reafirmada pelo

concílio de Trento (sess. 25, c. 20); sobre o tema, João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 1, liv. 2,
disp. 4, epit., n. 264 ss..
453 Sobre esta última questão, v. João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 1, liv. 1, disp. 2, § 4,

ns. 191 ss. (judeus), 225 ss. (pagãos); também, Serafim de Freitas, De iusto imperio lusitanorum
asiatico, cit..

122
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
espiritual sobre o temporal. Por um lado, parecia que, considerando a hierarquia entre o
Criador e a Criação, entre o bem eterno e o mundano, entre o espiritual e o temporal454, a
Igreja podia pretender um domínio superior do mundo, que lhe permitisse tutelar o poder dos
reis, limitando-o ou corrigindo-o, sempre que se afastasse dos ditames de Cristo ou do seu
Vigário na Terra. Esta superioridade do poder espiritual constituía a linha orientadora de uma
série de cânones recolhidos no Decreto de Graciano (distinc. 1, 10), sendo aceite pela maior
parte dos canonistas medievais e modernos455.
§ 393. Mas, por outro lado, Cristo parecia ter sido bem claro quanto à separação das
esferas dos poderes espiritual e secular, nomeadamente ao distinguir, no célebre dito sobre
os tributos (redite quae sunt Caesaris, Caesari, & quae sunt Dei, Deo, dai a César o que é de
César e a Deus o que é de Deus, Mateus, 22), os direitos de Deus dos direitos do Imperador.
E esta ideia de separação nítida entre as duas esferas (dizendo de outro modo, de
autonomia do poder temporal) obtinha tradução (pelo menos alegórica) noutros passos das
Escrituras. No século V (494 d.C.), o papa Gelásio I, em carta dirigida ao Imperador
Anastácio, formulou a célebre doutrina “dos dois gládios”456, pela qual atribuía uma mútua
autonomia, nos respetivos campos, às duas esferas políticas. Ambos visariam a felicidade;
mas o poder temporal, contemplando mais diretamente a felicidade terrena, teria como fim a
paz da república “distinta do espiritual, e separada, e não dependente, tendo em vista uma
consecução mais cómoda e melhor do governo económico e político”457. Quanto ao Sumo
Pontífice, apenas potencialmente (in habitu) gozaria do poder temporal, contra os opressores
dos fiéis ou da fé458.
§ 394. O primado do poder real no temporal incluía também o poder de governo sobre
os clérigos, pois estes, como membros da república, deveriam observar as normas civis
diretivas (mas não punitivas), estabelecidas em vista do bem comum; o que abrangia a sua
sujeição às leis de tabelamentos dos preços, de requisição de bens, de serviço militar
defensivo e, mesmo, de certos tributos (pro expensis communis)459.
§ 395. Com a valorização da natureza em face da graça e do direito civil em face do

454 A dignidade da Igreja estaria para a dos reis, como o sol estaria para a lua, ou como a alma

estaria para o corpo (João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt 1, liv. 2, disp. 4, epit., ns. 269 e 302;
pt. 2, liv. 1, d. 1, § 12, n. 283).
455 Desde o português Álvaro Pais no seu De planctu Ecclesiae, até alguns dos teólogos juristas

da Segunda Escolástica (Gabriel Vasquez de Menchaca, Torquemada), passando pelos grandes


canonistas italianos dos sécs. XII e XIII (Cardeal-Hostiense, Abade Panormitano, João de Andrea).
Uma das fontes jurídicas invocadas era o cânone Grandi non immerito (Liber sextum,1 8,2), relativo à
deposição de D. Afonso III.
456 “São, de facto, dois, Augusto Imperador, os poderes porque se rege principalmente o mundo:

a autoridade dos sagrados Pontífices e o poder real” (c. duo sunt quippe, Decretum,1, d. 96, c. 10). Cf.
nesta distinctio, outros textos sobre o tema. O Gen. falava da criação de dois luzeiros no céu, donde
Inocêncio III derivara a ideia de dois poderes (“Deus fez dois grandes luzeiros, ou seja, instituiu duas
dignidades, quais são a autoridade pontifícia e o poder real”, cit. João Baptista Fragoso, Regimen [...],
cit., Pt. 2, Ib. 1, disp. 1, § 12, n. 283); os Evangelistas insistiam na ideia de que “o Filho de Deus não
veio ao mundo para julgar o mundo, mas para o salvar” (João, 3; Luc.,7).
457 Francisco Salgado de Somoza, Tractatus de regia protectione […], cit., pt. 1, cap. 1, n. 53.

458 Francisco Salgado de Somoza, Tractatus de regia protectione […], cit..; Luís de Molina,

Tractatus […],1 disp. 29.


459 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 1, liv. 2, disp. 4, epit., n. 303.

123
As jurisdições e o direito.
direito canónico, reforçou-se ainda entre os juristas e os teólogos o peso da ideia da
autonomia, na esfera temporal, do poder dos reis, não tanto em relação a Deus - de quem
eles eram vigários e cujos ocultos desígnios realizam (como pastores ou como castigos) -
mas em relação ao Papa e à Igreja. Em todo o caso, esta autonomia não era ilimitada.
§ 396. Na verdade, e por um lado, em face da já referida hierarquia respectiva dos
bens espiritual e temporal, o príncipe devia governar de modo a não se desviar da
observância dos preceitos de Deus; embora a especificidade do governo temporal pudesse
justificar, ou a regulamentação de atos indiferentes do ponto de vista sobrenatural, ou
mesmo a autorização de atos condenáveis deste ponto de vista, desde que da sua proibição
adviesse maior mal ou perigo460. Em princípio, porém, o governo temporal estava limitado
pela disciplina da Igreja, pelo menos em termos de se não poder admitir que as leis civis
autorizassem atos pecaminosos461 ou que, pela complacência dos poderes temporais, a
religião e os fiéis corressem perigo462.
§ 397. Por outro lado, os príncipes temporais só limitadamente - i.e., enquanto o
exigisse o bem da república, sem qualquer prejuízo do múnus clerical - podiam exercer o seu
poder sobre os eclesiásticos463.
§ 398. Assim, e apesar de uma percetível tendência para a desvinculação do poder civil
em relação ao religioso (“secularização”)464, o direito canónico constituiu, não apenas uma
fonte importantíssima de regulação autónoma da comunidade dos fiéis no domínio espiritual,
como um instrumento da Igreja militante para a tutela do governo temporal do mundo.
§ 399. Uma parte das normas de direito canónico (como os Dez Mandamentos)
estavam contidas nas próprias Escrituras, constituindo o chamado “direito divino”. Outras

460 É o caso da permissão da prostituição, do divórcio, da usura, do teatro profano ou dos cultos
não cristãos (nomeadamente, judaico).
461 Daí o disposto em Ord. fil.,3,64, sobre a não-aplicação do direito comum (mas não do direito

próprio) sempre que dela resultasse pecado.


462 Assim, o príncipe cristão estaria obrigado a impedir a divulgação de doutrinas que pudessem

perturbar a fé dos fiéis, ou de confissões e práticas religiosas que, pela sua perfídia ou aberração,
escandalizassem ou corrompessem os costumes. Escrevendo nos finais do séc. XVI, João Baptista
Fragoso - que, assume uma posição tolerante para com os judeus (João Baptista Fragoso, Regimen
[...], cit., pt. 1, liv. 1, disp. 2, § 4, n. 191 ss.) - afirmava que “os impérios e os reinos são corroídos se as
pessoas públicas por temeridade ou audácia chegarem a pensar que para a conservação da República
e consecução da paz pública nada se deve acautelar no domínio da religião, antes se devendo permitir
que cada um viva como quiser e siga o que entender mais conveniente em matéria religiosa [...] O qual
erro, como muito pernicioso, deve ser erradicado completamente e por nenhumas razões permitido ao
magistrado [...]” (ibid., n. 213); o que levava ao ideal expresso numa inscrição que teria visto em Paris,
“unus Deus, una fides, unus Rex, una lex”.
463 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., ibid., n. 303; Ord. fil.,2,1 a 3.

464 Em Portugal e em Espanha existiam, pelo menos a partir do séc. XVII, fortes correntes

“regalistas”, defendendo as prerrogativas do monarca em relação à Igreja. Para além de tirarem partido
de argumentos doutrinais como os referidos no texto, apoiavam-se nos dados do direito pátrio,
estabelecido em concordatas sobretudo dos sécs. XV e XVI, pelas quais os reis peninsulares teriam
adquiridos direitos e isenções particulares em relação ao direito canónico comum (cf., para Portugal, o
tratado sobre o poder real, de Gabriel Pereira de Castro, Tractatus de manu regia […], cit.). Com o
pensamento político iluminista, a isenção do poder temporal viria a ser fundada em argumentos
doutrinais novos (cf. António Ribeiro dos Santos, De sacerdotio et imperio [...], cit.; Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis [...], cit., 1, 5).

124
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
tinham sido promulgadas por papas, por concílios e por sínodos, integrando o direito “da
tradição”. Esta tradição fora sendo recolhida, a partir do século XII, numa monumental
coleção, mais tarde designada por Corpus iuris canonici, uma das fontes principais, não
apenas do direito da Igreja, mas também dos próprios direitos seculares465.
§ 400. O direito canónico vigorava, naturalmente, para as matérias espirituais (in
spiritualibus), com o âmbito muito mais vasto que estas tinham na Época Moderna (incluindo,
por exemplo, o regime do casamento, o dos pactos e contratos jurados com invocação de
Deus ou dos santos). Mas, para além disso, de acordo com um critério trabalhosamente
estabelecido durante a Idade Média e fixado finalmente pelo grande jurista Bártolo de
Saxoferrato, aplicava-se ainda às matérias temporais (in temporalibus), sempre que a
solução preconizada pelo direito secular conduzisse a pecado (“critério do pecado”)466. É
este o critério recolhido nas Ordenações portuguesas467 (“... mandamos que seja julgado [o
caso, de que se trata], sendo materia que traga pecado, por os Sagrados Canones. E sendo
matéria, que não traga pecado, seja julgado pelas Leis Imperiaes, posto que os Sagrados
Canones determinem o contrario [...]”, Ord. fil.,364, pr.).
§ 401. Mas, qualquer que fosse a delimitação teórica estabelecida entre os domínios de
vigência dos direitos secular e canónico, o que é certo é que este último - nomeadamente o
“direito divino” - gozava de uma indesmentível força expansiva sobre a ordem jurídica civil, o
que - como se disse - se compreendia numa sociedade que se entendia a si mesma como
dirigida para o objetivo sobrenatural da salvação e para uma antecipação na terra, tão efetiva
quanto possível, da “cidade divina”.
2.4.4.4 A jurisdição.
§ 402. Uma das mais importantes prerrogativas da Igreja era o facto de dispor de
jurisdição privilegiada (“foro eclesiástico”), exercida por tribunais próprios, perante a qual
podia chamar mesmo os leigos (v. cap. 2.4.4.4). Não é preciso encarecer a importância
política desta reserva jurisdicional, pois não será difícil imaginar que, nos seus tribunais, as
decisões fossem mais favoráveis à Igreja e aos eclesiásticos. Ou, pelo menos, que isto fosse
imaginado pelos leigos que aí fossem chamados. Mas, fosse como fosse, a existência de um
foro especial evitava a intromissão do poder secular (mesmo que só como aplicador do
direito canónico) na vida interna da Igreja.
§ 403. A competência dos tribunais eclesiásticos compreendia as questões puramente
eclesiásticas, quer ratione personae, quer ratione materiae468.

465 A edição oficial conjunta do Corpus Iuris Canonici é de 1582. Manteve-se em vigor até 1917,

embora atualizado pelos novos cânones e decretais (ius novissimum). Sobre a sistematização interna
de cada uma das suas partes, v. 0.
466 Era o que acontecia, por exemplo, com a admissão, pelo direito civil, da usura ou da

prescrição aquisitiva de má-fé.


467 É só com a lei “da Boa Razão” (de 18.8.1769) que o direito canónico deixará de se aplicar no

foro civil. Mas a disciplina eclesiástica sobre certas matérias, que hoje nos parecem como
essencialmente seculares, como o casamento ou o registo pessoal, manteve-se até muito mais tarde.
O registo civil só é definitivamente estabelecido com o Código Civil de 1867, enquanto que os
casamentos celebrados canonicamente só deixarão de ser regulados, mesmo à face do direito secular,
pelo direito canónico em 1975.
468 Sobre a situação da doutrina setecentista sobre as relações entre a Igreja e a Coroa em

Portugal, Manuel Augusto Rodrigues, “Tendência regalistas e episcopalistas […]”, cit.. Para uma

125
As jurisdições e o direito.
§ 404. As primeiras eram aquelas em que uma das partes fosse um eclesiástico, salvo
nos casos em que estes deviam responder perante as justiças civis469.
§ 405. As segundas compreendiam as questões relativas à disciplina interna da Igreja.
Incluíam, em primeiro lugar, aquilo a que os canonistas chamavam iurisdictio essentialis. Ou
seja: (i) causas em matéria espiritual, da competência do provisor da diocese; (ii) causas em
matérias relativas à fé470; (iii) causas sobre disciplina interna da Igreja; (iv) causas relativas
ao matrimónio (como sacramento que era), como, v. g., anulação, depósito da mulher por
sevícias, separação de pessoas, bigamia471, etc.. Para além desta, incluíam a iurisdictio
adventicia: (i) causas sobre coisas sagradas (Ord. fil.,2,1,l0); (ii) causas sobre bens
eclesiásticos, cuja natureza não fosse controversa472; (iii) causas sobre dízimos, pensões e
foros eclesiásticos; (iv) casos de usurpação da jurisdição eclesiástica; (v) causas contra
leigos nos casos de devassas e visitações (Ord. fil.,2,13)473; (vi) causas contra delinquentes
seculares asilados nas igrejas (Ord. fil.,2,5).
§ 406. A Igreja pretendia, além disso, a competência sobre outras matérias: como as
que envolvessem pecado (com base, um tanto forçada, em Ord. fil.,3,64; por exemplo, a
violação de juramentos, v. g., em contratos); aquelas em que as justiças seculares não
atuassem (denegatio iustitiae); as causas em que existissem partes miseráveis (inopiae
litigantium causa); e, em geral, todas as causas em que os litigantes recorressem,
espontaneamente, às autoridades eclesiásticas, “prorrogando a sua jurisdição”, como se
dizia tecnicamente. No séc. XVIII, porém, a doutrina civilística, imbuída já de estatalismo, não
reconhecia a jurisdição da Igreja nestas causas meramente civis474.
§ 407. Restavam, ainda, para a jurisdição eclesiástica as questões de “foro misto”
(causae mixti fori) que não tivessem sido avocadas por um tribunal laico, de acordo com a
regra da alternativa475.

perspetival mais geral J.-Ph. Genet (coord.), État moderne […], cit.. Fontes doutrinais sobre a jurisdição
eclesiástica: além de Manuel Mendes Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (= liv. 2), Antonio
Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., pt. 1, caps. 50 ss..
469 V. Ord. fil.,2,1: eclesiásticos sem superior no reino (Ord. fil.,2,1, pr.; magistrado competente:

Corregedor dos feitos cíveis), eclesiásticos que residissem na corte (Ord. fil.,2,1,4: idem), membros das
ordens menores (Ord. fil.,2,1,4; 2,1,27: competência das justiças ordinárias laicas), questões sobre
bens da coroa ou “reguengos” (património fiscal do rei) (Ord. fil.,2,1,17 ss.: competência das justiças
especializadas nestas matérias); outros casos: Ord. fil.,2,1,1; 2,1,5; 2,1,20. No domínio criminal, os
eclesiásticos gozavam de uma isenção geral, salvo para os crimes de lesa-majestade (Ord. fil.,2,1, pr.;
2,1,4/27). Para além das fontes citadas, podem ver-se os respetivos comentários de Manuel Álvares
Pegas, Commentaria [...], cit., e, para o período iluminista, de Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis
[...], cit., 1,1,13 ss.
470 Em que o vigário-geral apenas recebia as denúncias, remetendo-as ao Tribunal do Santo

Ofício, cuja competência nestas matérias era exclusiva.


471 V. Ord. fil.,5,19, pr..

472 Se o fosse, a competência era da justiça secular: Ord. fil.,2,1, 5 ss..

473 Que obrigava a observar o processo canónico devido (cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria

[...], cit., t. 8, pg. 142, com bibl.) Sobre o tema v., Joaquim de Carvalho, “A jurisdição episcopal sobre
leigos […]”, cit..
474 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 1,5,24.

475 As causae mixti fori compreendiam: questões sobre obras pias (Ord. fil.,1,62,39-40-42), sobre

capelas ou associações religiosas (Ord. fil.,1,62,39), sobre casos de concubinato (Ord. fil.,2,1,13; 2,9),

126
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 408. No âmbito da jurisdição eclesiástica, havia também especialidades jurisdicionais.
§ 409. Para o julgamento dos membros da capela real ou dos clérigos que residissem
na corte, bem como para o das questões relativas à existência476 de um direito de padroado,
era competente o capelão-mor, que dava recurso para o Juiz dos Feitos da Coroa da Casa
da Suplicação477. Para o julgamento de membros das ordens militares (Cristo, Santiago,
Avis, Malta, esta gozando de um regime um tanto particular478), existia um ramo jurisdicional
específico. Com efeito, os cavaleiros das ordens apenas estavam isentos da jurisdição
temporal em matéria crime (e, mesmo aqui, apenas se gozassem de uma renda
suficiente)479. Neste caso, a competência jurisdicional de primeira instância pertencia ao Juiz
dos cavaleiros das Três Ordens Militares, nas questões que surgissem na corte, ou, nas
restantes, aos ouvidores junto da Mesa mestral de cada ordem. A segunda instância era a
Mesa da Consciência e Ordens (v. cap. 2.4.2.3.8). A terceira, o rei, como grão-mestre das
ordens militares. 480
§ 410. Uma outra jurisdição eclesiástica especial era o Tribunal do Santo Ofício da
Inquisição, que gozava de competência exclusiva em matéria de heresia, apostasia,
blasfémia e sacrilégio, bem como de certos crimes sexuais (sodomia, Venus nefanda
[inominável, ímpio]) (Regimentos de 15.3.1570, 22.10.1613, 22.10.1640 e 1.9.1774; alvará
18.1.1614) (v. cap. 2.4.2.5). Os tribunais de primeira instância eram os de Coimbra, Lisboa e
Évora, no continente; Goa, na Índia. Como instância de recurso, o Conselho Geral. Junto de
cada um destes tribunais existia um Juízo do Fisco, que decidia as questões relativas ao
confisco dos bens dos condenados (e certas questões incidentais, como os crimes de falso
ou de resistência), bem como as questões em que uma das partes fosse um oficial da
Inquisição ou um seu privilegiado (familiar do Santo Ofício). Os Juízos do Fisco de Lisboa e
Coimbra decidiam em definitivo das questões de confisco, mas o de Évora estava submetido
ao de Lisboa (Regimento de 10.7.1620, ch. 25). Como foros privativos dos oficiais e
privilegiados da Inquisição, estes tribunais davam recurso para o Conselho Geral (ibid., ch.
46).
§ 411. Um outro ramo especial da jurisdição eclesiástica era o da Bula da Cruzada, que
conhecia das questões a esta relativas, como o arrendamento das suas rendas ou, em geral,

sobre delitos mixti fori (lenocínio, incesto, envenenamento, blasfémia, usura, Ord. fil.,2,9), sobre
testamentos. A competência dos tribunais laicos eclesiásticos era concorrente com a dos tribunais
seculares: a partilha fazia-se segundo as regras da preventio (conhecia o tribunal que primeiro tomasse
conhecimento do litígio [“prevenisse”, viesse antes]) ou da alternativa (competência alternava, por
certos períodos, entre os tribunais eclesiástico e temporal). Os casos mixti fori foram abolidos pelo
decreto nº 24, de 16.5.1832. Para além das fontes citadas, v. os respetivos comentários em Manuel
Álvares Pegas, Commentaria [...], cit..
476 Para outros aspetos, v. Ord. fil.,2,1,1.

477 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., “Praefatio”; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...],
cit.,1,5,23).
478 Os cavaleiros de Malta, por sua vez, seguiam a regra geral dos eclesiásticos, gozando de uma
isenção geral em" matéria cível e crime (Leis de 18.9.1602,6.12.1612, art. 6). Cf. Manuel Mendes de
Castro, Practica Lusitana […], cit., pt. 1, c. 24, n. 10; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit.,
4,3, 54.
479 V. Ord. fil.,2,12, 1-2 [fonte: Lei de 11.2.1536, em Duarte Nunes de Leão, Col leg. Extrav., cit.,

11.3.4.].
480 António Manuel Hespanha, As vésperas [...] [ed. de 1986], cit., l, 459 n. 162.

127
As jurisdições e o direito.
todos os litígios que daí decorressem (Regimento da Bula da Cruzada, de 10.5.1634, ns. 11,
12 e 16481). A instância jurisdicional era a Junta ou Tribunal da Bula da Cruzada482, que
conhecia, portanto, dos recursos (de apelação ou agravo) dos Comissários da Bula, bem
como dos recursos das decisões dos Provedores, quando atuassem como juízes especiais
dos oficiais e pessoas privilegiadas da Bula (alvará de 28.9.1761).
§ 412. Mesmo prescindindo destes casos especiais, vale a pena refletir sobre a enorme
extensão da jurisdição dos tribunais da Igreja. De facto, a eles podiam ser trazidas não
apenas as questões em que uma das partes fosse a Igreja, uma comunidade religiosa ou um
eclesiástico (ainda que a outra parte o não fosse), como uma vastíssima série de questões
entre seculares que caíam na competência material do foro eclesiástico.
§ 413. Mas, para além da competência contenciosa reservada a que nos referimos, a
Igreja dispunha ainda de uma competência jurisdicional voluntária, para aqueles casos em
que as partes, por sua livre vontade, quisessem resolver os litígios perante um tribunal (ou
entidade) eclesiástico (jurisdição “arbitral” ou “voluntária”) 483. Estudos recentes têm revelado
a extraordinária importância destes mecanismos de resolução de conflitos, o modo como a
Igreja os promovia, incitando os fiéis a uma resolução “amigável e fraterna” (compositio
fraterna, correctio charitativa), sob a sua égide, em vez de uma resolução conflitiva perante
os tribunais de justiça. O que, naturalmente, contribuía para aumentar o poder disciplinar da
Igreja e dos eclesiásticos - nomeadamente dos párocos, mediadores naturais nas pequenas
comunidades de crentes -, tanto quanto minava o impacto da justiça secular (v. § 2020).
§ 414. A estas prerrogativas de foro, acresce o facto de que os lugares eclesiásticos
gozavam, ainda, de imunidade. Uma das suas manifestações mais importantes era a do
“direito de asilo” (Ord. fil.,2,5), apesar das suas múltiplas limitações (não valia para os crimes
mais graves, nem para os crimes dolosos)484, a que correspondia, no plano positivo, a
competência das autoridades eclesiásticas para punirem os asilados (cf. supra). Bem como,
num plano já um tanto diverso, a imunidade fiscal que, constituindo embora uma regra de
direito comum, tutelada por uma das excomunhões da Bula da Ceia (Bula in coena Domini,
excomunhões 5 e 18), estava limitada, em face do direito pátrio, aos casos de isenção
expressa485.
2.4.4.4.1 As pequenas vitórias do outro gládio
§ 415. A situação privilegiada da Igreja era vista com preocupação pela coroa, que
tentava atenuá-la de diversas formas.
§ 416. Uma delas era o beneplácito régio, instituído ainda durante a primeira dinastia,
que obrigava a que as “cartas de Roma” fossem sujeitas, antes da sua publicação, à
aprovação régia (cf. Ord. af,2,12). Mas o controlo da comunicação direta com Roma era

481 Cf.
http://www.governodosoutros.ics.ul.pt/?menu=consulta&id_partes=116&id_normas=39133&accao=ver.
482 Arquivo: http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=4206562.

483 Cf., sobre os processos de mediação de conflitos, António Manuel Hespanha, Lei, justiça,

litigiosidade […], cit., nomeadamente os estudos de N. Castan, M. Clanchy e E. Powell.


484 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit..

485 Era o caso da dízima, da portagem e da sisa (Ord. fil.,2,11,1; 2,1, 19); mas os eclesiásticos

estavam sujeitos a jugadas, salvo privilégio (Ord. fil.,2,33, 8; 57,1; 33, 25). Sobre o tema, António
Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit..

128
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
ainda procurado por outras formas; assim, a coroa proibia que se pedissem diretamente a
Roma privilégios sobre bens ou benefícios eclesiásticos (cf. Ord. fil.,2, 13; 14; 19), como
forma de evitar, ou que o Papa chamasse a si a concessão de benesses que, de outro modo,
sairiam da mão do rei, ou que se gerassem conflitos entre beneficiados da Cúria romana e
beneficiados por qualquer entidade eclesiástica (bispos, cabidos, abades de ordens)
portuguesa.
§ 417. Outra prerrogativa régia era a de proteger os seus súbditos naturais contra as
violências dos eclesiásticos (a regia protectio, cf. Ord. fil.,2,1,13; 2,3), bem como a de punir
pela justiça os criminosos que não o tivessem sido devidamente pela justiça eclesiástica. O
texto das Ordenações (Ord. fil.,2,3) em que o rei reivindica esta possibilidade é um modelo
de cautelas, denunciador da debilidade das prerrogativas régias perante a Igreja e os
eclesiásticos486. O rei, depois de multiplicar as declarações de que não está a usar das suas
prerrogativas de justiça - que ofenderiam as isenções jurisdicionais da Igreja -, invoca
apenas os seus poderes de gestão dos seus bens (as suas atribuições “domésticas”) para
poder tirar aos clérigos malfeitores os bens que dele tivessem.
§ 418. Outra forma de penetração real era o direito de padroado, ou seja, a faculdade
de apresentar dignidades eclesiásticas em inúmeras capelanias (v. cap. 4.2.1.1.2). Este
direito, que existia também em favor de outras entidades eclesiásticas ou seculares,
possibilitava a constituição de redes clientelares e, deste modo, a organização de círculos
próprios de poder que não deixavam de introduzir fissuras no bloco do poder eclesiástico.
§ 419. O controlo da coroa ainda se consubstanciava numa série importante de
interdições que recaíam sobre a Igreja e os eclesiásticos. Uma das mais importantes era a
proibição de adquirir bens de raiz (por parte da Igreja ou de instituições religiosas, mas não
por parte de clérigos, Ord. fil.,2,18) (v. cap. 4.3.3.3). Embora, na prática, esta norma não
fosse praticada, ela não deixou de constituir, em certos contextos de crise das relações entre
a Coroa e a Igreja (como no período olivarista, a propósito da tributação da Igreja), uma
forma de pressão. Para além disso, impendiam sobre a Igreja outras interdições: proibição
de aceitar penhores (Ord. fil.,2,24); de possuir bens nos reguengos (Ord. fil.,2,16;13, 6).
Quanto aos clérigos, várias interdições: de sucederem em bens da coroa e nos morgados
(Ord. fil.,2,16; v. cap. 5.4); de porte de armas (Ord. fil.,2,1,26); de exercício do comércio (Ord.
fil.,4,16); de exercício da advocacia (Ord. fil.,3,28,1); de terem cargos de tabelião (Ord.
fil.,1,80,4); de pedir benefícios ou juízes apostólicos para Roma (Ord. fil.,2,13,1; L.
10.12.1515; L. 3.11.1512); de atacar os privilégios do reino em relação à Santa Sé (Ord. fil.,
11,15; L. 27.5.1516).
§ 420. Em contrapartida, a Igreja obtinha proteção das autoridades temporais que,
além de reconhecerem a sua autonomia político-institucional nos termos referidos, tutelavam
o exercício do seu múnus, pastoral e profético, auxiliavam a manter a disciplina eclesiástica e

486 Vale a pena transcrever uns passos: “ [...] quando em seus reinos, e senhorios alguns clérigos

de ordens menores, ou sacras, ou beneficiados, comendadores e outros religiosos, e pessoas de


jurisdição eclesiástica, fossem culpados em malefícios, e julgados pelo eclesiástico, e não fossem
punidos, como por direito, e justiça deverião ser, e o dito Senhor soubesse em certo, elle não como
juiz, mas como seu rei, e senhor, por os castigar, e evitar que tais malefícios se não cometessem, os
lançaria de seus moradores, e tiraria as terras, e jurisdições, castelos, ofícios [...], cit., que dele, ou de
seus antecessores de graça, ou enquanto fosse sua mercê tivessem [...]. E isto não por via de
jurisdição, nem de juizo, mas por usar bem de suas cousas, e afastar de si os malfeitores, e que não
houvessem dele sustentação, nem mercês [ou]”.

129
As jurisdições e o direito.
asseguravam a punição temporal dos crimes religiosos (prov. de 4.2.1496; Ord. fil.,1,6,9;
2,8).
2.4.4.5 Uma malha político-administrativa. Benefícios, padroados e comendas.
§ 421. A malha do oficialato da Igreja não tinha equivalente na época. Desde Roma até
a uma paróquia perdida, a Igreja dispunha de uma malha de oficiais e instituições que
cobriam eficazmente o território e garantiam com uma eficácia absolutamente excecional
para a época as diversas funções que lhe competiam, desde as puramente espirituais, até às
do foro externo, como a realização da justiça ou a cobrança dos tributos eclesiásticos.
§ 422. Neste último domínio, dispomos, de resto, de impressivos exemplos da eficácia
comparada dos aparelhos administrativos eclesiástico e secular. Um deles refere-se à
décima militar, criada, logo a seguir à Restauração, para o financiamento da guerra. A sua
fonte inspiradora era a dízima eclesiástica, equivalente a um décimo da produção, cobrada
em todas as paróquias. Apesar de se ter montado uma complexa estrutura para o
lançamento e cobrança do novo imposto, a administração secular nunca conseguiu atingir
nem a metade do que se estimava ser o rendimento da dízima a Deus.
§ 423. Mas, para além deste aspeto da eficácia, a Igreja criou um enorme repositório
de princípios, máximas e conceitos relacionados com a administração. Não admira, por isso,
que a teoria jurídica e as técnicas de organização do oficialato da Igreja tenham constituído a
matriz intelectual sobre que assentou a administração civil, nomeadamente nos aspetos não
jurisdicionais (pois, nestes últimos, a influência do direito romano foi maior).
§ 424. O conceito mais geral para designar um cargo eclesiástico é o de oficio (v. cap.
2.6). O oficio consistia na administração de uma “coisa ou assunto eclesiástico” (res
ecclesiastica). Ao ofício correspondia, portanto, uma função e a atribuição dos poderes
(jurisdição) correspondentes. Assim, à colação (ou dada, entrega) de um ofício correspondia
a atribuição de uma jurisdição487.
§ 425. Como, na estrutura administrativa da Igreja, ao desempenho de uma função
correspondia a perceção de uma renda, de um “benefício”, esta última designação passou,
progressivamente a substituir a primeira, tanto mais que se multiplicavam os casos em que a
função associada à perceção da renda se tinha extinguido. Assim, ofício e benefício passam
a constituir sinónimos, designando a mesma coisa, embora sob perspetival diferentes. Em
certos casos, à jurisdição (ordinária) correspondia uma certa primazia ou preeminência,
nomeadamente nos atos litúrgicos ou capitulares (“no coro ou no capítulo”); falava-se, nestes
casos, de uma dignidade. Em contrapartida, se esta primazia era meramente honorífica, não
comportando qualquer jurisdição (i.e., não se unindo a qualquer ofício), falava-se de uma
simples pessoa (personatus). No caso de esta primazia se limitar à perceção de um
rendimento, falava-se de uma prebenda ou conezia488. Os ofícios (ou benefícios) podiam
ainda ser seculares (exercidos no “mundo”) e regulares (i.e., importando a vida em

487 Se o ofício era “perpétuo” (no sentido de indisponível por quem o dá), a jurisdição era

ordinária; se era precário, a jurisdição era delegada.


488 Falava-se também de pensão ou porção a respeito de uma prestação periódica imposta sobre

o rendimento de certo benefício pelo titular da sua colação (i.e., por aquele a quem competia prover
esse benefício) a favor de uma pessoa eclesiástica ou leiga (cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão),
Tratado pratico compendiario das pensões ecclesiasticas [...], cit., § 21 ss.). As pensões podiam ser
impostas pelo Papa, pelos bispos, pelos grão-mestres das ordens militares e pelos reis (como grão-
mestres ou padroeiros).

130
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
comunidade sob uma regra ou cânon), simples ou curados (i.e., envolvendo a cura de almas
e administração de sacramentos). Todos estes estatutos podiam estar regulados ou no
direito canónico comum (nomeadamente, no C.I.Can.) ou no direito canónico particular,
constante de normas diocesanas particulares, escritas ou costumeiras489.
§ 426. A concessão dos ofícios eclesiásticos fora inicialmente papal. Mas, por direito
comum, os bispos tinham adquirido um direito (intentio fundata), cumulativo com o do Papa,
de concessão dos benefícios da sua diocese. Para evitar conflitos de competência, vigorava
a regra da “alternativa”, pela qual cada uma destas entidades concedia os ofícios durante
seis meses intercalados do ano490.
§ 427. Da concessão ou colação de benefícios deve distinguir-se a apresentação, ou
direito de propositura. Em certos casos, a apresentação dos benefícios eclesiásticos podia
caber a outra entidade, eclesiástica ou leiga, nos termos do direito de padroado.
§ 428. O padroado era, segundo S. Tomás de Aquino, “o direito de apresentar clérigo
para um benefício eclesiástico” (v. cap. 4.2.1.1.2). O principal tratadista português da Época
Moderna define-o como um direito honorífico, oneroso e útil sobre alguma igreja ou renda
eclesiástica que compete a alguém que, com o consentimento do ordinário, erigiu uma igreja
ou benefício ou os dotou ou que herdou esse direito de quem o tenha dotado”491 492.
§ 429. Tal direito dizia-se honorífico, pois encerrava certas honras, como a de
apresentar (i. e., indicar ao titular do direito de nomeação ou colação, normalmente o bispo)
o titular do benefício (normalmente o reitor ou capelão da Igreja), a de ter a precedência nos
atos de culto (como as procissões, os ofícios, a bênção, etc.), a de ter direito a preces, a
cadeira especial na Igreja ou no coro, a ter sepultura em lugar de destaque, etc.493.
§ 430. Dizia-se oneroso, porque sobre o patrono recaía o ónus de defender a igreja ou
capela do seu padroado e de impedir que os seus bens se dilapidassem494.
§ 431. Dizia-se útil, pois o patrono, sua mulher e família tinham direito a ser socorridos
pelos rendimentos da Igreja se caíssem na miséria495. O Concílio de Trento (sess. 25, cap. 9)
proibiu os patronos de se imiscuírem na perceção dos rendimentos do benefício, deixando-
os na livre disposição do beneficiado.
§ 432. O padroado podia ser eclesiástico, leigo ou misto496, consoante o benefício fosse
dotado com bens da Igreja ou com bens de leigos. Os padroados não podiam ser vendidos,

489 Sobre este tema, v., v. g., Agostinho Barbosa, De canonicis [...], cit., cap. IV; mais recente, útil

como roteiro, Bernardino Carneiro, Elementos de direito ecclesiastico […], cit., § 121 ss.
490 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 2, liv. 1, disp. 20, § 1, ns. 1 ss. (pp. 655 ss.).

491 Cf. Bento Cardoso Osório, Praxis de patronatu [...], cit., res.1 n. 3 e 4. O Concílio de Trento
(sess. 25, cap. 9) exigiu, pelo menos, documento autêntico ou posse imemorial para prova do direito de
padroado, mandando considerar como nulos todos os padroados fundados noutros títulos, salvo
quando os seus titulares fossem os reis ou imperador.
492 Sobre o padroado, fontes de direito canónico clássico, Decreto, lI, c. 16, qu. 7; Decretais, Ib. 6;

Trento, sess. 24 e 25. Literatura portuguesa: Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit.; Bento Cardoso
Osório, Praxis de patronatu [...], cit..
493 Cf. Bento Cardoso Osório, Praxis de patronatu [...], cit., res.1 ns. 7 a 11

494 Cf. Bento Cardoso Osório, Praxis de patronatu [...], cit., res.1 n. 12.

495 Cf. Bento Cardoso Osório, Praxis de patronatu [...], cit., res.1 n. 14.

496 Cf. Bento Cardoso Osório, Praxis de patronatu [...], cit., res. 2, n. 1.

131
As jurisdições e o direito.
mas transmitiam-se por herança497.O Concílio de Trento, no sentido de libertar as igrejas e
benefícios dos direitos de padroado, extinguiu a possibilidade de transmissão mortis causa
dos padroados, apenas excetuando aqueles de que fossem titulares os reis ou
imperadores498.
§ 433. Apesar de a apresentação do beneficiado pertencer ao patrono, a sua colação
pertencia ao ordinário499. Nos padroados eclesiásticos, o direito de apresentação era
partilhado com a Santa Sé500.
§ 434. Ao benefício ou igreja sobre o qual impendia o direito de padroado podia ser
dado um comendador, ou seja, alguém encarregado de os proteger. Nesse caso, ficam
impendendo sobre os mesmos bens eclesiásticos tanto os direitos do patrono como os do
comendador. No entanto, o comendador não fazia suas as rendas do padroado, a não ser
que isso tivesse sido previsto no ato da instituição da comenda, assim como não adquiria o
direito de apresentação dos beneficiados501. Apesar destes princípios, os conflitos entre
padroeiros e comendadores não foram raros, existindo diplomas de composição geral,
estabelecendo a repartição das rendas do benefício por uns e outros.
§ 435. O padroado régio, que concedia aos reis de Portugal, a apresentação dos
benefícios e ofícios das igrejas do reino, teve origem no início da monarquia. Honório III, na
bula Cum fidelis memoriae, de 21.12.1220, confirma a D. Afonso II o padroado das Igrejas do
Reino. No início do séc. XVI, Leão X, por bulas de 1514 e 1516, alarga este direito às Igrejas
do ultramar502. Seguiram-se a instituição das dioceses, na África, na Ásia e na América.
§ 436. Logo no início do séc. XVII, o Papa começou a enviar para o oriente vigários
apostólicos diretamente dependentes da congregação da Propaganda Fidei, criado em 1622,
disputando aos reis de Portugal o seu direito de padroado503.
2.4.4.5.1 Bispos
§ 437. O ofício eclesiástico central era o de bispo504. O próprio Papa se intitulava bispo
de Roma, tratando de irmãos os restantes bispos (ao passo que tratava os reis por filhos). A

497 Cf. Bento Cardoso Osório, Praxis de patronatu [...], cit., res. 2, n. 6.
498 O padroado real português manteve-se, portanto.
499 A colação de benefício sem a apresentação do patrono é anulável, Jorge de Cabedo, De

patronatibus [...], cit., c. 1, n. 3 ss. No caso de o direito de apresentação não ser exercido no prazo de
quatro meses (padroados leigos) ou de seis meses (padroados eclesiásticos) a contar da vacatura do
benefício, o direito caduca para o Ordinário (ibid., n. 9; Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit.,
XI, pg. 176, n. 6.
500 A apresentação é do patrono se o benefício vagar nos meses de Março, Junho, Setembro e

Dezembro; nos restantes é da Santa Sé (Conc. Trento, sess. 24, cap. 18; Francisco Salgado de
Somoza, Tractatus de regia protectione […], cit., pt. 3, c. 9, n. 99). Além disso, em qualquer dos casos,
o provimento deve ser feito, no caso do padroado eclesiástico, por concurso (Ibid., ).
501 Cf. Bento Cardoso Osório, Praxis de patronatu [...],cit., res.1, n,s 1 e 2., ps. 90-91.

502 Cf. Jorge de Cabedo, De patronatu […], cit.; Bento Osório, Praxis de patronatu regio[…], cit.;

José Joaquim Lopes Praça, Ensaio sobre o padroado portuguez […], cit.; Bernardino Carneiro,
Elementos de direito ecclesiastico […], cit., § 212 ss..
503 Luís (D.) de Sousa, Demosntratio juris patronatos […] Innocencio XI, anno MDCLXXVII, oblata,

Nova Goa, 1861.


504 Para Portugal, José Pedro Paiva, Os bispos de Portugal e do Império (1495-1777), cit..

132
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
diocese era, portanto, a célula básica da administração da Igreja.
§ 438. Os bispos gozavam da jurisdição ordinária na sua diocese. As suas
competências505 eram: (i) a administração privativa de certos sacramentos e funções (crisma,
ordenação, consagração de igrejas ou altares, bênção de certas alfaias de culto); (ii) a
jurisdição espiritual (voluntária e contenciosa) universal506 sobre os fiéis e coisas
eclesiásticas da sua diocese, abrangendo a cominação de censuras e certas penas, a
visitação e perceção dos respetivos direitos507; e (iii) a administração dos bens da mesa
episcopal ou “da mitra”508 509. No domínio da jurisdição contenciosa, os bispos eram, na
diocese, os magistrados eclesiásticos ordinários de primeira instância (câmara ou cúria,
tribunal do bispo) eventualmente assessorados (até 1832) pelas Mesas de justiça,
constituídas pelos “desembargadores episcopais” e apoiadas pelos vigários episcopais
(arciprestes, arcediagos, vigários gerais) e por outros oficiais (promotor, escrivão da câmara,
notário apostólico, distribuidor e contador)510.
§ 439. A segunda instância era constituída pelas Relações eclesiásticas, tribunais
coletivos com sede nas cabeças das dioceses metropolitanas (Lisboa, Braga e Évora, no
Continente; Goa, na Índia)511. A terceira instância era constituída, a partir do séc. XVII, pelo
Tribunal da Nunciatura ou da Legacia512. O Tribunal da Nunciatura tinha ainda jurisdição de
segunda instância para as causas das dioceses metropolitanas e dos territórios isentos de
qualquer diocese (exempti nullius diocesis). Das decisões deste tribunal havia recurso (de
“agravo” e de “apelação”) para a coroa, nos limites reconhecidos pela doutrina da regia
protectio (nomeadamente em caso de abusos da jurisdição)513. O Tribunal da Nunciatura foi

505 Cf. Agostinho Barbosa, De officio, et potestate episcopi [...], cit..


506 Excetuavam-se, porém, os territórios nullius diocesis, dependentes diretamente da Santa Sé,
como eram, em Portugal, as prelazias quasi episcopais (Santa Cruz de Coimbra [ab séc. XII], Santa
Maria da Oliveira de Guimarães [ab. séc. XV], priorado do Crato [ab 1443], priorado de Tomar [ab
1554], capela real de Vila Viçosa [ab 1581], as prelazias de Moçambique [ab 1612], Pernambuco [ab
1612], Cuiabá e Goiás [ab 1745]) e algumas igrejas e. capelas privilegiadas (v.g., capela real, casa real
de Santo António, Igreja das Chagas de Lisboa, capela da Universidade de Coimbra). Cf. Bernardino
Carneiro, Elementos de direito ecclesiastico [...], cit., 152, 157.
507 Direito catedrático (ou ceras) e colecta (ou procuração).

508 A partir do séc. XII, nos bens diocesanos distinguem-se os da mitra, administrados pelo bispo

e os do cabido, administrados por este.


509 Em Portugal, a coroa recebia parte das rendas do primeiro ano dos benefícios vagos (ano do

morto); cf. CR. 9.3.1801 (João Pedro Ribeiro, Indice chronologico […], cit,1,128); alv. 3.7.1806.
510 Cf. Bernardino Carneiro, Elementos de direito ecclesiastico [...], cit., 397-403.

511 Cf. Bernardino Carneiro, Elementos de direito ecclesiastico [...], cit., 404-406. As Relações

tinham também competência de primeira instância na diocese metropolitana naqueles casos em que
uma das partes era um bispo ou nas causas que se arrastassem por mais de dois anos nos tribunais
das dioceses sufragâneas (ibid., 404).
512 Na origem deste tribunal esteve uma bula de Júlio II, de 21.7.1554, segundo a qual as causas

julgadas no reino não teriam recurso para a Santa Sé; assim, tais recursos para fora do reino eram
também proibidos pela lei do reino (Ord. fil.,2,13, pr.; cf. ainda Bernardino Carneiro, Elementos de
direito ecclesiastico [...], cit., 406).
513 Cf. aviso 3.7.1672 e Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4,7,34; magistrado

competente: Juiz dos feitos da coroa da Casa da Suplicação (Ord. fil.,1,9,12;1 12,5/6). Este recurso
(neste caso, de agravo) existia em todos os casos de abuso da jurisdição eclesiástica (v. Ord.

133
As jurisdições e o direito.
abolido pelo decreto de 23.8.1833 e substituído (em 1848: convenção de 21.10.1848, art. 12;
Lei de 4.9.1851) pelas secções de recurso ou pontifícias, cujos juízes eram nomeados pelo
rei, sob proposta do núncio.
§ 440. Os tribunais eclesiásticos não tinham a possibilidade de dispor de meios
coativos temporais (desde uma lei de 4.2.1496). As disposições do Concílio de Trento que
reclamavam faculdades executivas para os tribunais eclesiásticos (sess. XXV, cap. III, de
reformat.) não foram recebidas514; por isso, em caso de necessidade, as medidas coercivas
deviam ser requeridas ao braço secular (ajuda do braço secular, Ord. fil.,2,8), por meio de
pedido dirigido ao juiz territorialmente competente515.
2.4.4.5.2 Cónegos
§ 441. As conezias (ou canonicatos) eram outros ofícios eclesiásticos de nível
diocesano. A instituição de cónegos diocesanos remonta aos primeiros tempos da Igreja.
Tratava-se de oficiais eclesiásticos escolhidos pelo bispo, para o ajudar, ocupando-se das
funções litúrgicas ou administrativas da sé. Como viviam em comunidade e debaixo de uma
regra (canon), recebiam o nome de cónegos (do latim canonicus, depois cónegos). Com o
tempo, distinguiram-se dois tipos de cónegos, os regulares e os seculares. Os primeiros - de
que se destacam os cónegos regulares de Santo Agostinho - viviam em comunidade e sob
voto de pobreza, não podendo possuir quaisquer bens pessoais, nem mesmo em
administração516. Quanto aos cónegos regulares, viviam fora da catedral, tendo, porém, aí
alguma função (i.e., tendo aí um ofício) ou recebendo, apenas, aí alguma prebenda. Na
Época Moderna, eram estes que constituíam a regra517. Os ofícios canónicos eram vários.
Deles se distinguiam alguns, instituídos por direito comum. Assim, o arcedíago
(archidiaconus) ou primeiro diácono substituía o bispo nas suas funções temporais,
nomeadamente judiciais518. Nestas últimas funções adquiriram tal importância que, pouco a
pouco, a sua jurisdição foi sendo considerada como ordinária (e não delegada pelo bispo); o
Concílio de Trento reagiu contra este abuso, reafirmando o carácter apenas delegado desta
jurisdição e retirando-lhes a competência para conhecerem das causas criminais e
matrimoniais (sess. 29, cap. XX, de reformat.). No entanto, a doutrina seiscentista continuava
a atribuir-lhes a primazia sobre os restantes cónegos e a entender que os costumes que lhes
conferiam jurisdição mais vasta (nomeadamente, jurisdição ordinária) prevaleciam sobre o
direito comum519 520. O arcipreste (archipresbytero) ou primeiro presbítero velava pelo

fil.,2,1,12-14; cf. Francisco C. de Sousa Sampaio, Prelecções […]¸1,109 ss.).


514 Cf. L. 2.3.1568, em Duarte Nunes de Leão, Leis extravagantes […], pg. 279. A provisão de

19.3.1569 (= concórdia de 1578, art. XII) não foi recebida pelas Ord. fil.. Sobre este tema, Marcello
Caetano, “Recepção e execução dos decretos […]”, cit..
515 Cf. Bernardino Carneiro, Elementos de direito ecclesiastico […], pg. 433.

516 Cf. lista das congregações de cónegos regulares em Agostinho Barbosa, De canonicis [...], cit.,
c.1, n. 25 ss. Já os cónegos regulares de Santo Agostinho tinham uma regra mais permissiva: podiam
possuir em administração os bens necessários ao seu sustento e a obras pias, embora esta posse
fosse precária, pelo que lhes podiam ser a todo o tempo retirados pelo superior (v. ibid., n. 19).
517 Cf. Agostinho Barbosa, De canonicis [...], cit., c. 1, n. 46.

518 Decr. Greg. IX, 1, 23; Agostinho Barbosa, De canonicis [...], cit., c. 5; Bernardino Carneiro,

Elementos de direito ecclesiastico [...], cit., 398.


519 Cf. Agostinho Barbosa, De canonicis [...], cit., c. v. n. 36 ss.

520 O deão (decanus) era o cónego que presidia ao capítulo, normalmente o mais velho. Não se

134
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
exercício do culto e substituía o bispo nas funções sacerdotais521 522. Existiam outros ofícios,
dignidades e primazias capitulares (ou canónicas, canonicatos), instituídas pelo direito
particular, escrito ou costumeiro de cada diocese523: tesoureiro, custódio, sacristão,
primiceiro, chantre, preposto, mestre-escola, prior524 e simples conezias525.
§ 442. O colégio dos cónegos formava o cabido (ou capítulo) com importantes funções
na vida da diocese. Estando esta provida de bispo (sede plena), cabia ao cabido aconselhar
e auxiliar o bispo nos assuntos árduos da diocese, nomeadamente relativos a benefícios526.
Para além disso, e como competência própria, administrava os bens próprios do cabido.
Estando a sé vaga (sede vacante), o cabido exercia o poder episcopal, a título de
administrador do bispado, designando um vigário capitular527. Ao lado dos cabidos, como
colégios de cónegos528, criaram-se ainda as colegiadas, presididas por um preposto (ou
prior), que agrupavam os cónegos que não pudessem ter lugar no cabido catedralício529.
2.4.4.5.3 Párocos
§ 443. O pároco constituía o mais comum dos ofícios da Igreja. A sua função fora
definida por Cristo como a de “apascentar as suas ovelhas”, tarefa que os comentadores
subdividiam em apascentar pela palavra, pelo exemplo e pela oração, e que o concílio de
Trento concretizara da seguinte forma: “... vigiar as Suas ovelhas, oferecer sacrifícios por
elas, apascentá-las [=alimentá-las] pela pregação da palavra divina, pela administração dos
sacramentos e pelo bom exemplo em todas as obras; cuidar dos pobres e outras pessoas
miseráveis com cuidado paterno e incumbir-se das restantes tarefas pastorais” (sess. 23,
can. 1).

tratava de um ofício ou dignidade, pois não tinha jurisdição; mas apenas de uma primazia (Agostinho
Barbosa, De canonicis [...], cit., c. 7.
521 Decr. Greg. IX, 1, 24; Agostinho Barbosa, De canonicis [...], cit., c. 6; Carneiro 1896, 182.

522 Os arciprestes urbanos exerciam nas catedrais e os rurais (forâneos ou vigários da vara)
tutelavam um grupo de paróquias.
523 Para estes cargos, v. Agostinho Barbosa, De canonicis [...], cit., 8 ss.

524 Os priores podem ser regulares e seculares e estes colegiais ou rurais. Os últimos equivaliam

a párocos com lugar no cabido.


525 Conezia (canonia) era o direito a lugar no coro e capítulo, tendo, em princípio, anexo o direito

a receber prebendas e porções diárias (sobre estas, Agostinho Barbosa, De canonicis [...], cit., c. 21).
Prebenda (ou porção), por sua vez, era o direito a receber certos proventos das rendas da igreja de
que se fosse prebendário (ou porcionário), tendo em vista o sustento próprio. Em sentido genérico,
prebenda equivalia a qualquer direito a receber rendas da Igreja em razão de um ofício eclesiástico.
Em sentido próprio, significava o rendimento anexo a uma conezia. A palavra aplicava-se ainda à
perceção de rendas da Igreja; independente do exercício de qualquer ofício eclesiástico, em retribuição
de uma função meramente temporal; neste sentido, podiam ser concedidas a leigos e por estes
livremente vendidas, sem perigo de simonia (Agostinho Barbosa, De canonicis [...], cit., c. 12).
526 Decr Greg. IX, 2,10,4; Bernardino Carneiro, Elementos de direito ecclesiastico [...], cit., 164.

527 Bernardino Carneiro, Elementos de direito ecclesiastico [...], cit., 165.


528 Nos tempos primitivos, os cabidos elegiam o novo bispo; na Época Moderna, essa nomeação
é papal, mediante prévia apresentação do rei; mesmo os vigários capitulares deviam ser “insinuados”
pelo rei; cf. Bernardino Carneiro, Elementos de direito ecclesiastico [...], cit., 167 s.
529 Foram muito abundantes, tendo sido extintas em 1846, com exceção das mais importantes

(lista em Bernardino Carneiro, Elementos de direito ecclesiastico […], cit., 179).

135
As jurisdições e o direito.
§ 444. Vigiar os fiéis consistia no seu conhecimento (no seu registo)530 e no
permanente cuidado em os defender dos maus costumes e em promover neles os bons531.
Do dever de oferecer sacrifícios, salienta-se a celebração quotidiana do sacrifício da Missa
(ibid., cap. 3 e lib. 4); mas ainda orações, jejuns e outros sacrifícios pelo bem do seu povo.
Do dever de pregação faz parte o anúncio solene da palavra de Deus pelo sermão, o ensino
(aos domingos e dias santos) da doutrina da fé compendiada no catecismo, ou, pelo menos
dos seus rudimentos532. A administração dos sacramentos constituía a tarefa mais elevada
do múnus paroquial, pois era pelos sacramentos que o pároco prepara os fiéis para
receberem a graça divina533 534 e, logo, para a salvação. Devia ainda dar o exemplo535 na
conversação (abstendo-se de conversas torpes, maledicentes e desonestas) e nos costumes
(cultivando as virtudes, nomeadamente, a castidade, a temperança e a caridade), bem como
demonstrando um contínuo amor e zelo pelo bem-estar dos fregueses a seu cargo. Este
conjunto de funções dirigidas ao foro interno (cura penitencial) distingue-se das funções
disciplinares exteriores ou contenciosas dos bispos (visitação, excomunhão, imposição de
penas canónicas).
§ 445. O âmbito de exercício das funções do pároco era a paróquia ou freguesia (de
fregueses = filii ecclesiae, filhos da igreja), definida por limites territoriais ou pessoais536. Nas
paróquias grandes, ao pároco podiam ser designados ajudantes ou coadjutores, também
designados simples curas, cujo múnus pode ser circunscrito a uma certa circunscrição
territorial (curado)537 538.

530 Os párocos tinham que manter livros de registo dos batizados, dos casamentos e dos óbitos
(Conc. Trento, sess. 24, cans. 1 e 2; dados que deviam constar e fórmulas, Agostinho Barbosa, De
officio, et potestate parochi […], cit., 1, cap. 7, ns. 1-10), além do registo das confirmações (ou crismas)
(ibid., n. 16); podiam ainda organizar outros registos atinentes à vida da paróquia.
531 Cf. Sebastião de Abreu, Institutio parochi […], cit..

532 Símbolo dos apóstolos [Credo], dez mandamentos, padre-nosso, artigos da fé sobre o

batismo, a eucaristia e a penitência (Conc. Trento, sess. 24, c. 4 e sess. 5, cap. 2; Sebastião de Abreu,
lnstitutio parochi [...], cit., liv. 2, caps. 4 e 5 e liv. 5).
533 Note-se como, nesta formulação “pós-tridentina”, a função sacramental dos párocos

condiciona a “receção da graça”. Entre os sacramentos destacava-se o da penitência, pelo qual o


pároco adquiria o poder de ligar e desligar em relação à Igreja. Sobre a função sacramental, v.
Sebastião de Abreu, lnstitutio parochi [...], cit., liv. 2, c. 7 e liv. 9.
534 Os sacramentos administrados pelo pároco são o batismo, a penitência, a eucaristia e a

extrema-unção. O matrimónio é administrado pelos próprios nubentes e a confirmação (ou crisma) e a


ordem pelos bispos.
535 Sebastião de Abreu, lnstitutio parochi [...], cit., liv. 2, c. 8 a 10, liv. 6. Aos párocos estava

especialmente proibido o convívio em tabernas, a embriaguez, uma pose descomposta (grandes


risadas, altas vozes, correrias, vestes imodestas ou sujas), o teatro, as touradas, os jogos (salvo o
xadrez), a caça, a pesca, o comércio ou agricultura profissionais, o porte de armas, Agostinho Barbosa,
De officio, et potestate parochi […], cit., 1, c. 6.
536 A paróquia podia consistir, v.g., em certas famílias ou numa comunidade. Sempre que o

âmbito dos fregueses fosse uma comunidade definida em razão da natureza das pessoas (e não do
território), o pároco tomava a designação de capelão (era o que acontecia com os encarregados de, v.
g., monges, da corte, de militares, etc.).
537 Com o tempo, muitos curados transformam-se em novas paróquias, adquirindo o seu cura

funções paroquiais autónomas e não apenas delegadas.

136
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 446. A cura de almas era um benefício, ou seja uma função a que estava anexo o
direito de perceber certas rendas. Neste caso, as rendas provinham de ofertas dos fiéis
(oblatas, ofertas) destinavam-se à manutenção do culto e ao sustento “côngruo” do pároco
(daí “côngrua”; como parte das rendas destinadas ao sustento do pároco). Entendia-se que
as ofertas eram feitas a Deus539 obrigatórias apenas no plano da consciência540.
§ 447. O conteúdo, designação, quantidade e periodicidade das rendas decorriam do
direito costumeiro das paróquias, embora existissem normas sobre elas no direito canónico
geral541.
§ 448. A primeira categoria de rendas dos párocos eram as dos bens adquiridos pela
Igreja ou por contrato ou por deixas testamentárias (legados pios [v. g., “terças dos mortos”],
deixas pro anima [mortulhas, lutuosas, aniversários])542.
§ 449. A segunda categoria era a dos dízimos. Os dízimos ou décimas eclesiásticas

538 Na linguagem vulgar, “cura” designava, em algumas zonas, o pároco. Noutras, era designado

por abade ou prior. Originariamente, o abade era o superior ou prelado de certas congregações
religiosas regulares (S. Bento, S. Bernardo, S. Basílio). E o prior era, em geral, a pessoa eclesiástica
dotada de preeminência. O termo era usado: (i) para designar uma dignidade do cabido; (ii) o primeiro
prelado de certas comunidades monásticas (v. g., conventos dominicanos, agostinhos, carmelitas,
jerónimos); (iii) noutras comunidades (beneditinos, monges de S. Bernardo), o segundo prelado, depois
do abade, frequentemente encarregado da direção de uma comunidade subordinada à casa principal
ou abadia); (iv) o superior das ordens militares.
539 O pároco era, portanto, apenas o seu administrador ordinário, devendo afetá-las, salvo

intenção em contrário do ofertante (v. g., para os cativos, para um oratório, confraria ou capela), às
despesas inerentes à cura de almas (cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os
dízimos ecclesiasticos [...], cit., ps. 164 ss.).
540 Os dízimos ó eram obrigatórios no plano do direito (canónico): (i) quando se deviam a título de

censo ou de outro contrato; (ii) quando se deviam por testamento ou legado; (iii) quando os ministros
da Igreja carecessem de côngruo sustento, caso em que os paroquianos podem ser compelidos a
pagá-los sob pena de excomunhão; (iv) quando estivessem introduzidos por costume de, pelo menos,
dez anos (Agostinho Barbosa, De officio, et potestate episcopi [...], cit., 1, cap. 24, n. 23 ss.).
541 Cf. Barbosa, Agostinho Barbosa, De officio, et potestate parochi […], cit., loc. cit.; e Manuel de

Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos ecclesiasticos [...], cit. (que podem servir de
guias para o estudo mais aprofundado deste tema); ou Manuel de Almeida e Sousa (de Lobão), 1744-
1817, Tratado prático compendiario das pensões eclesiasticas […], cit..
542 Ou seja, bens deixados para missas por alma de alguém (João Baptista Fragoso, Regimen

[...], cit., pt. 2,10, disp. 24, n. 3). Note-se, porém, que estas aquisições estavam interditas pelas
Ordenações (Ord. fil.,2,18), que proibiam qualquer aquisição de bens por contrato e obrigavam a Igreja
e pessoas eclesiásticas a vender no prazo de ano e dia os bens adquiridos por qualquer outro título (cf.
Francisco C. S. Sampaio, Prelecções […],, 2,18, ps. 64 ss.). Esta norma foi, porém, pouco praticada;
daí a reação que suscitou a ameaça de a executar à risca, feita, como medida de chantagem sobre a
Igreja, durante o valimento de Olivares. Era, por exemplo, frequente que a Igreja recebesse bens em
domínio pleno e apenas alienasse, por meio de contratos de enfiteuse, o domínio útil, mantendo,
portanto, as rendas. Note-se ainda como a aplicação desta lei, que obrigava à venda dos bens de raiz
adquiridos e proibia a aquisição de outros bens imóveis com o produto da venda, produziria enormes
quantidades de dinheiro líquido nas mãos das entidades eclesiásticas; o que explica a sua propensão,
quer para despesas sumptuárias ou de consumo (também caritativas), quer para a colocação do
dinheiro em padrões de juro (embora a distinção, para este efeito, entre juros e outras rendas
periódicas, fosse pouco nítida na doutrina; decisivo era o critério da ligação da renda a algum bem
imóvel).

137
As jurisdições e o direito.
consistiam na retribuição, institucionalizada pelos poderes eclesiástico e temporal desde o
séc. VIII543 oferecida pelos crentes aos ministros que administravam os sacramentos.
Consistiam na décima parte dos frutos, tanto da terra e de casas (decimas prediais), como
da indústria humana, quer simples (v. g., rendas do trabalho, décimas pessoais), quer
combinada com a natureza (v. g., produção de rebanhos, décimas mistas)544. Tratava-se,
assim, de um tributo de incidência muito geral; pagavam-se - na enumeração de um autor da
época545 - de todos os frutos de prédios ou de indústria humana: de trigo e grão, palha,
vinho, favas e outros legumes, nozes, amêndoas e castanhas, azeite, açúcar, peixes,
abelhas, mel, cera, leite, lã, caça, pastos, lenha, feno, linho e cânhamo; de negócio e
artifício, soldos militares, salários de advogados e procuradores, minas, moinhos, herança,
legado ou doação, rendas da indústria ou trabalho 546.
§ 450. A taxa era de um por dez, sem dedução das despesas, pelo menos nas
prediais547. Eram devidas548 por todos os paroquianos (ainda que eclesiásticos), salvo
costume ou privilégio papal549. O seu titular era o pároco550; embora, desde uma célebre
capitular de Carlos Magno, se tivesse estabelecido a regra de dividir o produto das décimas
em quatro partes, uma para os pobres, outra para a fábrica da Igreja, outra para o pároco e
outra para o bispo. Esta repartição variou com os costumes diocesanos; os bispos
participavam em geral de uma parte das décimas (quarta ou terça episcopal ou pontifical)551.
Mas, sobretudo, as décimas andavam geralmente doadas aos patronos das igrejas: sés,
mosteiros, ordens militares e mesmo leigos552.
§ 451. Finalmente, constituía receitas dos párocos uma série variável de ofertas feitas
pelos fiéis em certas épocas festivas, por ocasião (e em retribuição) da administração de

543 Sobre a história das décimas, Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os

dízimos ecclesiasticos [...], cit., 86 ss., maxime, 96. Fontes de direito canónico, Decretais,3,30 (De
decimis, primitiis et oblationibus ).
544 Agostinho Barbosa, De officio, et potestate episcopi […], 1, c. 28, § 1, n. 9.

545 Agostinho Barbosa, De officio, et potestate episcopi […], 1, c. 28, § 1, n. 1 ss.


546 Pelo rigor do direito, eram devidas mesmo de catividades ilícitas e torpes, como o meretrício
ou as comédias, embora não estivesse em uso cobrá-las. Já os lucros usurários, eram sujeitos a
décima (Agostinho Barbosa, De officio, et potestate episcopi [...], cit., 1, cap. 28, § 1,31-33).
547 Decretais,3,30,7; 22; 26; 28. Discutindo a questão, Agostinho Barbosa, De officio, et potestate

episcopi [...], cit., ibid., ns. 35-37; Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos
ecclesiasticos [...], cit., 32 ss. O princípio da tributação do rendimento líquido é adotado, em Portugal,
pelas décimas civis; nos finais do Antigo Regime, há quem pretende estendê-lo aos tributos forais e
mesmo aos cânones enfitêuticos e censíticos.
548 As Decretais (3,30,14) dizem que elas constituem um quasi debitum exigível em juízo.

549 Era o caso dos cistercienses, templários e hospitalários, dominicanos, franciscanos, cartuxos,

clarissas, etc., quanto às terras que cultivassem pelas próprias mãos (mas já não pelas que dessem de
arrendamento) (Agostinho Barbosa, De officio, et potestate episcopi [...], cit., 1, cap. 28, § 2, n. 18 s.
550 Agostinho Barbosa, De officio, et potestate episcopi [...], cit., 1, c. 28, §2, n. 7 ss.

551 Cf. Decretais. 3,30,13; para Portugal, Joaquim de Santa Rosa de Viterbo, Elucidário […], cit.,

v. “Terças pontificais”.
552 As Decretais (3,30, 15 e 17), proíbem a concessão de décimas a leigos. Mas esta proibição

podia ser contornada por privilégio papal (cf. Agostinho Barbosa, De officio, et potestate episcopi [...],
cit., ibid., n. 50 ss.). Também se admitia a invocação de concessão ou prescrição anterior ao concílio
de Latrão (1139).

138
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
certos sacramentos ou na altura dos ofícios fúnebres e funerais. Eram as oblationes, oblatas
(ou obradas) ou benesses553.
§ 452. Estas ofertas estavam na tradição da Igreja como forma de participação das
comunidades no sustento do culto554. Mas, instituídos os dízimos, a sua necessidade e
legitimidade começou a ser discutida. Quanto à necessidade, ela teria deixado de existir,
pois os dízimos poderiam assegurar a côngrua dos párocos. Quanto à legitimidade,
argumentava-se que as funções sagradas não podiam ser vendidas, sob pena de simonia.
§ 453. Para além disso, discutia-se a questão central de saber se tais ofertas eram
meramente voluntárias ou se, pelo contrário, podiam ser exigidas. Na Época Moderna, toda
esta discussão se concretiza na interpretação de um texto das decretais (5,3,42)555 que,
embora as declarasse meramente voluntárias, condenava aqueles que induziam os crentes a
não seguirem o “louvável costume” de fazer ofertas aos párocos “pelas exéquias dos mortos,
pelas bênçãos, pelos casamentos e coisas semelhantes”.
§ 454. Na interpretação comum dos decretalistas, este texto acabava por estabelecer a
obrigatoriedade e exigibilidade das ofertas usuais.
§ 455. O concílio de Trento, apesar de alguém ter proposto o restabelecimento da
doutrina primitiva do carácter livre das ofertas, não se pronunciou sobre este delicadíssimo
tema. A questão tornara-se, de resto, muito sensível. Na verdade, uma parte substancial dos
dízimos estava geralmente apropriada por entidades, eclesiásticas ou laicas, titulares do
direito de padroado (ou de apresentação do pároco), o que deixava o culto e os párocos sem
os rendimentos suficientes. Estes tentavam então forçar os paroquianos a ofertas específicas
e suplementares para o seu sustento (a título de funerais, aniversários, casamentos,
batismos e outras propinas pela administração dos sacramentos)556. Daí que qualquer
medida tendente a restringir abusos neste domínio fazia correr o risco de uma geral
insatisfação dos curas de almas. É isto que explica o silêncio do Concílio de Trento sobre o
assunto; que, no entanto, aí chegou a ser levantado557.
§ 456. Em Portugal, a questão também foi conflitual. Não apenas entre os fregueses
que não se queriam ver constrangidos a ofertas usuais (muito menos, a ofertas não usuais),
mas também entre os párocos e os dizimeiros, a propósito da garantia de uma côngrua
paroquial mínima ou da pretensão dos dizimeiros de se apropriarem também do rendimento
das oblatas. Assim, em relação às igrejas e capelas que fossem comendas das ordens
militares, o Papa Paulo IV obrigou, em 1555, os dizimeiros a garantirem aos párocos uma

553 Sobre elas, v., por todos, Agostinho Barbosa, De officio, et potestate episcopi [...], cit., l, caps.

24 a 27; Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos ecclesiasticos [...], cit..
554 Estas prestações estabelecidas pelo costume são, por isso, chamadas usuais (quando

tivessem lugar em época certa) ou casuais (quando correspondessem a atos de culto sem ocorrência e
momento certos [incertus an, incertus quando]).
555 “Sobre a simonia e que ninguem exija ou prometa algo em troca de coisas espirituais”

(epígrafe do título 5,3).


556 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos ecclesiasticos [...], cit.,

94, 97. Cf. ainda Frei Joaquim de Santa Rosa Viterbo, Elucidario [...], vs. “decimas”, “mortalhas”,
“obradas”, “obladas”, “tenças pontifícias”, etc.
557 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos ecclesiasticos [...], cit.,

pg. 114.

139
As jurisdições e o direito.
côngrua de 100 cruzados, sempre que estes não os obtivesse pelas oblatas da Igreja558. E a
resolução régia de 18.7.1560 ratificou uma composição entre a Ordem de Cristo e párocos
das suas novas comendas, reservando para estes últimos as oblatas usuais (“ofertas de mão
beijada”, outras ofertas por ocasião do ofertório da Missa, bem como a administração dos
sacramentos e da encomendação dos finados)559. Indiretamente, a questão também
interessava à coroa. Por um lado, porque ao rei incumbia a régia proteção dos seus vassalos
contra as exações da Igreja; depois porque, em certos casos, as ofertas eclesiásticas eram
conflituais com interesses específicos cuja tutela competia à coroa560; finalmente, porque a
fiscalidade eclesiástica concorria com a fiscalidade real (nomeadamente, com as décimas
militares). Além de que, tal como a carga fiscal senhorial, era mal vista pelo pensamento
fisiocrático, dominante nos finais do século XVIII e hostil a todos os ónus sobre a
agricultura561.
§ 457. A panóplia das oblatas era muito vasta, dependendo dos usos locais. As mais
importantes eram as ofertas funerárias, umas relacionadas com os ofícios fúnebres e funeral,
outras com missas de sufrágio e aniversários. À primeira categoria pertencia a lutuosa,
direito do pároco à melhor peça de roupa ou vaso de metal precioso, à sua escolha, por
morte de um paroquiano562. E ainda a porção canónica ou funerária (canonica portio),
correspondente às despesas funerárias (com velas, paramentos e adornos, jantares dos
oficiantes e coadjutores)563 564, paga em jantares ou vitualhas, cera, lamparinas, vinho,

558 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos ecclesiasticos e

oblações pias, pg. 121


559 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos ecclesiasticos e

oblações pias, pg. 123; José Anastácio de Figueiredo, Synopsis […], cit., 2, 73. Cf. também Manuel de
Almeida e Sousa (Lobão), 1744-1817, (Terceira) Conferência sobre as oblatas […] e a expontaneidade
dos seus offerentes, cit..
560 É o caso das ofertas funerárias, que prejudicavam quer os órfãos (cujos interesses eram

tutelados pela coroa, através dos juízes dos órfãos e provedores), quer os cativos (que beneficiavam
tanto de deixas expressas como de heranças para que não houvesse herdeiros [“resíduos”] e cujos
interesses eram defendidos pelos mamposteiros dos cativos).
561 Nos finais do século XVIII, verifica-se um movimento de paróquias das dioceses de Braga e

Porto no sentido de os fiéis não poderem ser constrangidos a pagar as oblatas. A questão chega à
Rainha que, num decreto em que aflora claramente uma política de proteção dos paroquianos contra
as exações eclesiásticas, manda que se faça silêncio sobre a questão, enquanto não se tomassem
medidas definitivas, cujo estudo encomenda ao Arcebispo de Braga (dec. 30.7.1790, Manuel de
Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos ecclesiasticos [...], cit., 129.
562 Agostinho Barbosa, De officio, et potestate episcopi [...], cit., 1, cap. 24, n. 32.

563 Segundo Lobão (Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos

ecclesiasticos [...], cit., 124), uma lei de 1515 fixou a funerária numa certa quota da terça (ou quota
disponível, de que o de cujus pode livremente dispor), lei que teria sido revogada em 1640, tendo
subsistido os costumes locais sobre os ofícios devidos e o seu custo, consoante a qualidade do
falecido. O poder temporal tentou restringir as exações eclesiásticas. Uma provisão de 1712, dirigida
aos provedores, proibiu que se forçassem os herdeiros a pagar sufrágios e obras pias não
estabelecidas pelos defuntos. E uma lei de 25.6.1766, fixou as despesas com sufrágios e funerárias
numa quantia “racionáveis, e conforme ao direito” (Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações
sobre os dízimos ecclesiasticos [...], cit., 126 ss.).
564 Das despesas funerárias, uma parte era obrigatoriamente para o pároco, a título de retribuição

do seu trabalho: era a “quarta funerária”, por se ter fixado o seu montante numa quota parte das

140
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
hóstias, lenha, pão, milho, carneiros, etc.. À segunda categoria pertenciam as dádivas para
missas de sufrágio e para aniversários.
§ 458. Das oblatas faziam ainda parte as deixas para obras pias, recolhidas nas arcas
paroquiais “das pias”. Também aqui se verificou uma evolução (que encontramos concluída
na Idade Moderna) no sentido de transformar as ofertas em obrigações dos fiéis e de as fixar
numa quota da herança. Assim, no século XVI, estava estabelecido o uso de distribuir em
obras pias as terças dos que faleciam sem testamento, uso a que foi posto termo por um
assento de 1567565.
§ 459. Além destas, muitas outras ofertas existiam (usuais, casuais dos párocos),
algumas delas residuais dos antigos dízimos pessoais, abolidos ainda na Idade Média,
outras pura e simplesmente fundadas nos costumes diocesanos ou paroquiais. Era o caso,
entre outras, dos mortuários, matrimónios, conhecenças, as aleluias, loas de Natal, ofertas
de Sexta Feira Santa, do dia dos fiéis, etc.566.
2.4.4.5.4 Abades
§ 460. Um último ofício eclesiástico é o de abade, superior de uma comunidade de
monges. A palavra “abade” significa pai, o que logo nos remete para o imaginário político que
estruturava as relações dentro destas comunidades - o da família567. De facto, embora os
abades dispusessem de poderes jurisdicionais sobre os seus monges (moniales,
regulares)568, as relações entre uns e outros, bem como o estatuto destes últimos em relação
à casa, adequava-se perfeitamente ao modelo das relações intrafamiliares (v. cap. 3.2.4).
Assim, os prelados e superiores dos regulares tinham sobre eles toda a jurisdição espiritual e
temporal, aplicando-lhes penas espirituais (excomunhão e outras privações), temporais
(jejum, abstinência, prisão), “havendo-se como pais”569. Isto é ainda mais nítido nas
comunidades femininas, pois aqui a abadessa - sendo mulher e, logo, incapaz de deter
funções de governo político (i.e., funções jurisdicionais) só dispunha de poderes domésticos,
do mesmo tipo dos que a mãe de família dispunha em relação às filhas e criadas570. Mas, em

despesas funerárias e em obras pias (Agostinho Barbosa, De officio, et potestate episcopi [...], cit., c.
25).
565 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos ecclesiasticos [...], cit.,

124.
566 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos ecclesiasticos [...], cit.,

pg. 154.
567 Do mesmo modo, o convento era também designado por “casa”. As abadessas eram tratadas

por “mãe” (ou “madre”).


568 A sua jurisdição sobre os monges é semelhante à dos bispos nas respetivas dioceses (João

Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., 2,lib. 2, disp. 24, n. 1).


569 Cf. Manuel Borges Carneiro, Direito civil de Portugal […], 1, pg. 299.

570 É a lição de S. Tomás: “foemina non potest habere aliquam jurisdictionem spiritualem [...] non

habent clavem ordinis, aut jurisdictionis”; (as mulheres não podem ter qualquer jurisdição espiritual [...]
pois não têm a chave da ordem ou da jurisdição); no mesmo sentido, diz João Baptista Fragoso que a
abadessa só tem o governo doméstico e que monjas que lhe desobedeçam pecam da mesmo forma
que as filhas. Por carecerem de jurisdição, as abadessas não podiam benzer nem pregar. Todavia, os
bispos ou provinciais podem cometer às abadessas, em caso de urgente necessidade, poderes de
impor preceitos sob penas espirituais (João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 2, liv. 2, disp. 24, §
6, n. 9).

141
As jurisdições e o direito.
geral, os monges eram como filhos do abade: deviam-lhe obediência571; podiam ser por ele
julgados sem a observância de processo (sem “figura de juízo”); podiam ser castigados e
metidos em cárcere572. No domínio patrimonial, esta semelhança com os filhos-família era
enorme (v. cap. 3.2.4). Na verdade, os monges, tal como os filhos, nem tinham, em princípio,
património próprio, nem gozavam de capacidade jurídica patrimonial. A sua entrada na vida
religiosa era marcada por um contrato de dote - semelhante ao das filhas que, pelo
casamento, entravam noutra família -, em que, além da outorga do dote, o pai renunciava ao
filho573. A partir da sua entrada em religião, o monge morria para o mundo e tornava-se
incapaz de domínio e posse: adquiria para o convento de que se considerava filho, tal como
os filhos adquiriam para o pater; os seus contratos eram nulos; não podia testar; carecia de
capacidade sucessória passiva, mesmo ab intestato574. Ainda como os filhos, podiam-lhe ser
concedidos pelo superior, a título precário, alguns bens (“pecúlio”, tal como nos bens de que
os filhos tinham a administração, v. cap. 3.2.4) para fins lícitos e honestos575.
§ 461. A entrada em religião era um ato livre, precedida por um noviciado (de um ano)
(conc. Trento, sess. 24, caps. 15/16) e pela tomada de votos. Os votos eram o de pobreza,
castidade, obediência e estabilidade na vida devota576. O voto de pobreza implicava a
renúncia à propriedade pessoal, comunicando-se todos os bens próprios, catuais ou futuros,
à congregação, sendo administrados pelo superior da congregação, auxiliado por
administradores ou por ecónomos (cf. provis. 7.11.1790)577 578. A castidade implicava a
abstenção, não apenas de todas as formas de prazer sexual, mas ainda do matrimónio. A
estabilidade na vida devota implicava a proibição, não apenas de reverter ao estado laical,
mas ainda de abandonar a ordem (apostasia, punida no foro eclesiástico, com cárcere; v. §
2268).
2.4.5 Outras jurisdições corporativas (conservatórias).
§ 462. Na sociedade de ordens de Antigo Regime, os privilégios pessoais eram

571 Sobre as obrigações dos regulares, v. João Baptista Fragoso, Regimen [...], pt. 2, liv. 2, disp.
24, § 9.
572 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen […], ibid., cit., n. 5
573 Cf. Manuel Borges Carneiro, Direito civil de Portugal […], 1, 306 ss..
574 O direito comum admitia que os monges herdassem para o convento; uma lei de 17.7.1769,

de sentido desamortizador, priva, no entanto, os monges de capacidade hereditária passiva (Manuel


Borges Carneiro, Direito civil de Portugal […], 1, 315).
575 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., liv. 2, disp. 24, n. 150. concílio de Trento tinha

proibido os pecúlios monásticos, por serem fonte de abusos (sess. 25, cap. 39, §§ 4/5); mas a prática
subsequente voltou a admiti-los.
576 Para alguns monges existe um quarto voto: de defesa da religião com armas (ordens

militares), de redenção dos cativos (ordem da Santíssima Trindade), de obediência devota ao papa
(jesuítas), cf. Manuel Borges Carneiro, Direito civil de Portugal […], cit., 1, 292.
577 Só na sua alienação ou hipoteca deviam intervir os capítulos, aos quais competia, de resto,

auxiliar o superior na resolução dos negócios árduos, cf. Manuel Borges Carneiro, Direito civil de
Portugal […], cit., 1, 292. As congregações, em contrapartida, podem possuir bens, com as restrições já
referidas para a aquisição de bens por entidades eclesiásticas; algumas ordens mais rigoristas (v.g.,
capuchinhos) não podiam possuir quaisquer bens (cf. conc. Trento, sess. 25, cap. 3).
578 Cf. Manuel Borges Carneiro, Direito civil de Portugal […], cit., 1, 300; João Baptista Fragoso,

Regimen [...], cit., liv. 2, disp. 24, § 4/5.

142
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
inúmeros, estabelecendo foros especiais para certos estados. Na prática, era incerta a sua
lista, sendo também incerta a sua ordem hierárquica. Isto era uma das causas da confusão
jurisdicional, contra a qual, no séc. XVIII, reagem os juristas iluministas. Em Portugal,
Pascoal de Melo escreve: “[…] segundo eu posso entender, nada mais funesto se pode
conceber para a República que este privilégio do foro, pois, além de as demandas se
tornarem imortais, difíceis e complicadas, por se costumarem pôr infinitas dúvidas sobre
a competência de tal privilégio, que coisa há, pergunto, mais alheia às razões da justiça
e humanidade do que fazer vir de longe à Corte, os agricultores, artífices, etc.? E
sobretudo a requerimento dos mais poderosos que aí moram, e aí desfrutam de muita
autoridade e abundam em muitas riquezas?”579.
§ 463. Voltaremos ainda a este assunto dos foros privilegiados (V. adiante § 1999)580.

2.5 O direito.
2.5.1 Entre teologia e direito.
§ 464. A tradição de textos teológicos e jurídicos acerca da classificação das várias
modalidades de direito, bem como a definição de cada uma delas era complexa. O Digesto
(e as Institutiones) continham alguns textos muito conhecidos sobre as diversas naturezas
dos preceitos jurídicos – nomeadamente, o direito natural, o direito das gentes e o direito
civil581. Estes textos, combinados com leituras de filósofos gregos, nomeadamente

579 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,7,32.


580 Além das conservatórias das Nações Estrangeiras, havia jurisdições próprias para a Casa da
Índia e da Mina, a Misericórdia de Lisboa, o Hospital de Todos os Santos, a Universidade de Coimbra,
etc. Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 1,2,10. Outros tribunais, juntas e repartições,
José Manuel Subtil, ”Governo e administração” […], cit., 258, n. 261; fontes legislativas podem ser
encontradas, sob cada nome, em Manuel Fernandes Thomaz, Repertorio […], cit..
581 Os mais importantes eram:. D.1,1,1,3. “Ulpianus libro primo institutionum. Ius naturale est,

quod natura omnia animalia docuit: nam ius istud non humani generis proprium, sed omnium
animalium, quae in terra, quae in mari nascuntur, avium quoque commune est. Hinc descendit maris
atque feminae coniunctio, quam nos matrimonium appellamus, hinc liberorum procreatio, hinc educatio:
videmus etenim cetera quoque animalia, feras etiam istius iuris peritia censeri. 4. Ius gentium est, quo
gentes humanae utuntur. Quod a naturali recedere facile intellegere licet, quia illud omnibus animalibus,
hoc solis hominibus inter se commune sit.”; D.1.1.2. “Pomponius libro singulari enchiridii. Veluti erga
deum religio: ut parentibus et patriae pareamus.”; D.1.1.3. “Florentinus libro primo institutionum. Ut vim
atque iniuriam propulsemus: nam iure hoc evenit, ut quod quisque ob tutelam corporis sui fecerit, iure
fecisse existimetur, et cum inter nos cognationem quandam natura constituit, consequens est hominem
homini insidiari nefas esse.”; D.1.1.4. “Ulpianus libro primo institutionum. Manumissiones quoque iuris
gentium sunt. Est autem manumissio de manu missio, id est datio libertatis: nam quamdiu quis in
servitute est, manui et potestati suppositus est, manumissus liberatur potestate. Quae res a iure
gentium originem sumpsit, utpote cum iure naturali omnes liberi nascerentur nec esset nota
manumissio, cum servitus esset incognita: sed posteaquam iure gentium servitus invasit, secutum est
beneficium manumissionis. Et cum uno naturali nomine homines appellaremur, iure gentium tria genera
esse coeperunt: liberi et his contrarium servi et tertium genus liberti, id est hi qui desierant esse servi.”;
1.1.5. “Hermogenianus libro primo iuris epitomarum. Ex hoc iure gentium introducta bella, discretae
gentes, regna condita, dominia distincta, agris termini positi, aedificia collocata, commercium,
emptiones venditiones, locationes conductiones, obligationes institutae: exceptis quibusdam quae iure
civili introductae sunt.”; 1.1.6. “Ulpianus libro primo institutionum. pr. Ius civile est, quod neque in totum
a naturali vel gentium recedit nec per omnia ei servit: itaque cum aliquid addimus vel detrahimus iuri

143
As jurisdições e o direito.
Aristóteles, e também com filósofos e retóricos romanos (nomeadamente, os estoicos e
Cícero, este mais próximo dos juristas), foram recebidos por autores cristãos que
influenciaram muito o pensamento jurídico e político medieval (nomeadamente, Isidoro de
Sevilha582) e transcritos nos Corpus iuris canonici583. Uma das preocupações dos juristas e
teólogos que escrevem sobre o assunto na primeira época moderna é justamente a de
compatibilizar entre si as peças desta tradição textual, harmonizando-a também com
referências a um outro universo textual, o da Bíblia e dos Evangelhos.
§ 465. Esta necessidade de construção de uma classificação consistente era tanto
mais importante quanto das definições que aqui se adotassem decorriam as soluções para
alguns problemas políticos e sociais de primeira importância, como o do poder temporal da
Igreja, nomeadamente do Papa, o da possibilidade de derrogar (modificar ou dispensar
casuisticamente a sua vigência) o direito natural pelas leis humanas, o da legitimidade da
conquista de povos novamente encontrados, o da bondade (ou mesmo licitude) de
instituições de primeira importância no mundo de então, como a propriedade privada ou a
escravatura, o da fonte da validade dos contratos e, por tanto, da possibilidade de os
modelar livremente de acordo com a vontade das partes. Por isso, esta questão foi central na
discussão de teólogos e juristas em torno de problemas políticos muito concretos dos sécs.
XVI e XVII, altura em que se verificavam deslocações importantes do pensamento político
mais tradicional, quer por causa da emergência das monarquias, quer em virtude dos novos
contactos com povos até então desconhecidos e, por isso, não classificados nos esquemas
intelectuais vigentes. Nem sempre destas proposições muito gerais acerca das várias formas
de manifestação do direito surgiam normas claras e operativas que se pudessem aplicar a
situações concretas. Mas, pela sua generalidade, as definições e os princípios a que se
chegasse neste assunto forneciam argumentos para uma imensidade de questões jurídicas
decisivas. Não se tratará aqui detalhadamente desse rico e matizado movimento de
recomposição das categorias primeiras do direito584. Apenas se evocarão alguns tópicos
dogmáticos que ocorrem na argumentação de soluções jurídicas concretas. Na ulterior
exposição tomaremos como base a lição de alguns teólogos influentes no contexto ibérico585,
de preferência os mais atentos à realidade jurídica portuguesa. Entre eles preferimos
frequentemente Luís de Molina (1535-1600), um tomista original e atento à sua época,
professor, durante largos anos em Coimbra e em Évora, sondando também o impacto das
doutrinas dos teólogos entre os juristas, nomeadamente a propósito das aplicações
concretas586.

communi, ius proprium, id est civile efficimus. […].”; D.1.1.7. “Papinianus libro secundo definitionum.
pr. Ius autem civile est, quod ex legibus, plebis scitis, senatus consultis, decretis principum, auctoritate
prudentium venit”.
582 Cf. Etimologias, liv. 5, 2-4 (http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Isidore/home.html ou

http://penelope.uchicago.edu/Thayer/L/Roman/Texts/Isidore/5*.html#1 - original;
http://ebookbrowsee.net/is/isidoro-de-sevilha-etimologias#.U14ok_ldWY4, traduc. port.; 28.4.2014).
583 Maxime, Decretum, pt. 1, dist. 1, c. 1. A principal fonte de Graciano é Isidoro de Sevilha, Etymologiae,

liv. Cf. 2-4..


584 Cf. Destacamos Michel Villey, La formation […], cit..

585 Cf. António Manuel Hespanha, Cultura jurídica europeia, 7.2.4 e 7.3.1.

586 Usa-se a sua principal obra neste domínio, o tratado De Iustitia et Iure (3 tomos, 1593-1600).
Para os livros 1 e 2, usados neste passo:
http://books.google.pt/books?id=IU5FAAAAcAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-

144
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 466. Para compatibilizar a versão teológica das esferas do direito com esses textos
que fundavam as leituras dos juristas, Luís de Molina587 explicava que estes estavam apenas
preocupados com os preceitos jurídicos que visavam os aspetos naturais do bem comum,
não cuidando dos seus aspetos sobrenaturais. Por isso, não consideravam as esferas do
direito relativos às dimensões do bem que estavam para além da natureza, tocando aos
destinos sobrenaturais. Nomeadamente, não consideravam aqueles preceitos do direito
divino que não estivessem contidos na ordem das coisas mundanas. E expunha, de seguida,
as sistematizações dos preceitos jurídicos quanto à sua natureza adotadas ou por teólogos
ou por juristas.
2.5.2 O direito divino.
§ 467. Para os teólogos, pelo contrário, o direito tinha duas esferas primordiais, a do
direito natural e a do direito divino (Lib. 1, tract, 1, disp. 3, n.3). O direito natural estaria
impresso por Deus na mente dos homens, de tal modo que estes poderiam distinguir o bem
do mal e conduzir-se em conformidade. Já o direito divino – que por certo incluía o anterior,
já que fora Deus o criador e ordenador da natureza – incluía ainda preceitos estabelecidos
por Deus, mas não inscritos na lei da natureza, como os contidos no Antigo e Novo
Testamento sobre deveres sobrenaturais dos crentes, sobre cerimonial e outros (v.g., a
instituição dos sacramentos). Por contraposição ao direito divino natural, este último era o
direito divino positivo. Este direito divino positivo, fundado em preceitos diretos de Deus,
tinha a mesma natureza – voluntária, não natural – do direito criado pelos homens, para
reger as suas comunidades. Por isso, algum direito divino e todo o direito humano
distinguiam-se, pela sua natureza voluntária, do direito natural588.
§ 468. Dentro do direito humano, distinguia-se entre direito das gentes, direito civil e
direito canónico. O primeiro era comum a várias nações (embora não necessariamente a
todas).
§ 469. O direito civil era estabelecido em particular por uma comunidade (república,
cidade) para completar o seu regímen589 e o direito canónico, estabelecido pela Igreja para a
sua disciplina interna590. Se o direito das gentes não carecia de uma especial positivação,
por razões que se verão, já o direito civil e canónico não existiam nem por natureza nem por
um vago consenso, exigindo atos de instituição ou positivação591.
§ 470. Para os juristas, que não cuidavam do direito visando fins sobrenaturais, a
referência ao direito divino positivo ou ao direito da Igreja era escusada, ficando-se,
frequentemente, pelas três categorias de direito natural, direito das gentes e direito civil592.

BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false, 28.4.2014.
587 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., liv. 1, tract, 1, disp, 3, n. 3; disp. 4, ns. 1-3. Para
uma visão mais teológica do assunto, apoiando-se muito na lição de Tomás de Aquino, v. Domingo de
Soto, Tractatus de iustitia et de iure […], liv. 1, qu. 3 e ss..
588 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., liv. 1, tract. 1, disp. 3, ns. 4 e 5.

589 Na verdade, as comunidades humanas também se regiam por preceitos de direito natural e

por preceitos de direito das gentes, pelo que o direito civil tinha a função de um complemento,
justificado pelas particulares condições de certa comunidade (lib. 1, tract. 1, disp. 3, n. 6).
590 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 3, n. 5.

591 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 3, n. 5, disp. 3, n. 6.

592 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 6.

145
As jurisdições e o direito.
Em todo o caso, a questão da eficácia do direito divino positivo – nomeadamente do direito
da Igreja (direito canónico) - era bastante relevante, em termos práticos, pois a Igreja
invocava as suas prerrogativas jurídicas contra o poder temporal e os seus agentes.
§ 471. Na verdade, a Igreja reclamava o direito à sua liberdade, quer de auto-
organização, quer de desempenho do seu múnus pastoral, assim como se considerava
autorizada a coagir os príncipes cristãos a observar um mínimo das regras de convivência
cristã, impedindo, pelo menos, que as leis temporais induzissem em pecado. Os casos de
violação, pelos poderes temporais, destas liberdades da Igreja estavam listados na bula In
coena Domini (ou Bula da Ceia), que era lida anualmente nas dioceses de todo o orbe
católico, nos ofícios de Quinta-Feira Santa593. De acordo com este documento, o Papa tinha
o dever e direito de “defender a liberdade e jurisdição da Igreja contra todas as nações e
gentes que se desviassem (aberrare) do ovil de Cristo [...] de modo que aqueles que não se
coibissem por temor a Deus, fossem compelidos pela severidade da Igreja”, podendo, para
isso “derrogar os estatutos [i.e., direito temporal positivo] contra a liberdade da Igreja, trazer
a tribunal os que ocupassem a sua jurisdição e convencê-los com remédios oportunos” 594.
Na verdade, o múnus sobrenatural do Papa permitir-lhe-ia revogar as “leis civis escritas e
não escritas, que aprovassem os crimes/pecados (scelera), mesmo apenas veniais, dos
súbditos […] se os seus autores, advertidos pelo Papa, não os quisessem revogar” (ibid., ns.
5 a 8), bem como punir as violações aos preceitos da Bula595 com a excomunhão perpétua
(i.e., subsistente, mesmo depois da morte do Papa que a proferira596)597. Embora muito
controversa em todo o orbe católico e frequentemente proibida pelos poderes temporais, a
Bula da Ceia punha à disposição da Igreja um meio muito eficaz de controle do poder
temporal e de filtragem do direito civil – a excomunhão. Por isso, constituía um reforço
importante da eficácia do direito positivo divino (nomeadamente, do direito canónico) em
relação ao direito positivo temporal.
2.5.3 O direito natural e o direito positivo.
§ 472. Mais importante do que a arquitetura das distinções destes vários direitos era a
razão de ser delas, a qual se reportaria à natureza dos próprios preceitos. Esta natureza
implicava hierarquias e graus de indisponibilidade que se iriam refletir em várias questões da
dogmática das fontes de direito. Vale, por isso, a pena detalhar algo mais a representação
dos direitos e da sua força vinculativa que está por detrás destas classificações
§ 473. O direito natural era o que vigorava em todo o lado, porque a sua eficácia
provinha da natureza e não do arbítrio de legisladores. Este direito assentava, assim, numa
prévia ordenação do mundo, na qual as coisas e situações tinham uma valia impressa por

593 Sobre a Bula da Ceia, v., para um panorama rápido, “In coena Domini”,
http://en.wikipedia.org/wiki/In_Coena_Domini, 5.5.2014, João Baptista Fragoso, Regimen […], cit., pt. 3,
disp. 1 e ss.. A Bula da Ceia aparece nos finais do séc. XIV e mantém-se em vigor até 1770. Texto (em
português, 1597):
http://almamater.uc.pt/referencias.asp?f=BGUCD&i=01000200&t=BULA%20DA%20CEIA%20DE%20NOSSO%20S
ANCTISSIMO%20PADRE%20PAPA%20CLEMENTE%20VIII, 5.5.2014.
594 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., III, disp. 1, n. 5.
595 A Bula tipificava 20 casos de violação de violação das imunidades da Igreja. Cf. João Baptista
Fragoso, Regimen [...], cit., liv. 3, disp. 3 e ss..
596 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 3, disp. 3.

597 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Statutum”, n. 5.

146
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
Deus na natureza, por vezes positiva, por vezes negativa. Daqui dependia serem proibidas
ou, pelo contrário, serem impostas pelo direito natural. Nestes termos, as coisas eram boas –
como socorrer a extrema pobreza - ou más – como mentir ou furtar -, antes de o direito
positivo dispor sobre elas598. O direito natural equivalia à vontade ordenadora de Deus,
naquela parte em que a razão natural dos homens a podia entender. Era neste sentido que
os teólogos tomistas falavam, a propósito deste direito e das suas relações com o direito
divino, numa “participação” do homem no seu conhecimento: o direito natural era o direito
divino, mas apenas na medida em que este era acessível à intuição humana. Para lá desta,
estavam os preceitos escondidos da ordem divina, alguns dos quais tinham sido explicitados
e tornados obrigatórios como comandos expressos (e algo misteriosos) de Deus dirigidos
aos crentes, nomeadamente nas Sagradas Escrituras (direito divino positivo). O facto de o
direito natural estar ao alcance todos por via exclusivamente racional tinha consequências
importantes: ele vigorava para todos – e não apenas para os crentes – e era conhecido por
todos que tivessem o uso da razão, de tal modo que o erro sobre ele não desculpava.
§ 474. Pelo contrário, o direito positivo surgia de um preceito (praeceptum) ou ordem,
tendo origem na vontade de quem o emitia. Como tinha como objeto situações ou coisas que
a natureza não regulara, o caráter bom ou mau dessas situações decorria do próprio
preceito. Por isso, se se podia dizer que o direito natural traduzia um equilíbrio estabelecido
(uma razão, ratio), o direito positivo traduzia uma vontade (voluntas), a vontade do que o
emitira - ou, de uma forma mais mitigada, útil para resolver um caso intermédio, o do direito
das gentes, como se verá - a vontade de quem tacitamente se lhe tivesse acomodado
(podendo não o fazer). Assim, eram de direito positivo civil os prazos de prescrição ou os
processuais, as formalidades dos atos jurídicos, s; de direito positivo divino, o jejum da
quaresma, o preceito da comunhão anual, etc.599.
§ 475. A existência do direito positivo derivaria tanto do facto de nem tudo ter sido
regulado pela natureza, como de que as luzes que a mente humana teria para conhecer a
ordem do mundo eram limitadas e equívocas, carecendo de certificação por um preceito
suplementar, este de direito positivo, que esclarecesse e fixasse os contornos obscuros do
direito natural em certas situações. Sem esta determinação suplementar, o regime das
comunidades seria incompleto, incerto ou sujeito a erros. Era, portanto, para remediar esta
possibilidade de erro sobre o direito natural que surgia o direito positivo, fixando
autoritariamente um preceito que faltava ou estava incerto no direito natural600.
§ 476. Questão mais complicada era a de saber se o direito positivo podia, além de
concretizar o direito natural, revogar, mudar ou dispensar em casos concretos as disposições
deste. A resposta comum era a de que isso era possível naqueles casos em que o preceito
natural não fosse necessário ou inevitável, como aconteceria, por exemplo, com os preceitos
de Decálogo (não por serem dados por Deus aos homens, mas por corresponderem a
normas naturais inevitáveis, ou seja, indelevelmente impressas na consciência). Noutros
casos, em contrapartida, a regra natural podia deixar de obrigar. O exemplo era o do preceito
natural de que as coisas deviam ser restituídas ao seu dono por aquele que as tem
precariamente (como no depósito). Porém, podiam dar-se circunstâncias em que esse
preceito não devesse ser cumprido, como no caso da restituição de uma coisa ao seu dono,

598 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 4, n. 2.


599 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 4, n. 3.
600 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 4, ns. 3 e 4.

147
As jurisdições e o direito.
estando ele louco ou possuído de furor tal que a própria coisa corresse o risco de se
perder601. Realmente, não se trataria de uma mudança do preceito, nem da sua revogação
ou da sua dispensa, mas da ocorrência de circunstâncias na situação regulada (objectum
praecepti) que excluíam a aplicação do preceito de direito natural naquele caso, por faltar a
razão natural para isso, ou até por surgir uma razão natural para a não aplicação. Esta
mutabilidade do direito natural por causa da mutabilidade das circunstância explica porque é
que o direito civil podia modificar o direito natural, ao determinar a modificação das
circunstâncias da situação que era objeto de uma regulação natural602. Um exemplo era o da
usucapião. Era proibida pela regra de direito natural de que ninguém se podia apropriar de
uma coisa de outrem. No entanto, o príncipe teria o direito de tirar as coisas aos seus
súbditos e de as dar a outrem, quando isto fosse vantajoso para o bem da república. Daí
poder estabelecer circunstâncias perante as quais as coisas pudessem mudar de dono por
força da lei (da vontade do príncipe) quando isso fosse conveniente para a tranquilidade e
certeza do comércio jurídico e para o adequado cuidado de cada pelas suas coisas603. Outro
exemplo era o da introdução (pelo direito das gentes) da propriedade particular. Na verdade,
Deus conservara as coisas em comum entre os homens, por direito natural; mas não
estabelecera que elas devessem ser comuns, como também não proibira que se dividissem
para melhor se administrarem e se evitarem litígios entre os homens por causa do seu uso.
Daí que, depois do Dilúvio, os homens tenham, em quase todas as nações, dividido as
coisas ou, pelo menos, se tenham acomodado a essa divisão604. Também o estado de
liberdade existiria por natureza605, antes que os homens tivessem pecado. Tendo, porém,
surgido o mal, alguns homens tinham cometido atos ilícitos contra outros, tendo estes
reagido pela guerra justa dos outros contra eles. Nestas guerras, era de direito natural que o
vencedor matasse o vencido; mas também era um preceito da razão natural que quem podia
o mais, devia poder o menos. E, assim, ter-se-ia passado a permitir entre muitas nações que
os vencidos pudessem ser conservados (servare, servi), como alternativa mais branda à sua
morte606.
2.5.4 O direito positivo.
§ 477. O direito positivo divino tinha sido estabelecido ou por Deus diretamente, ou
pelos seus anjos e pelos seus profetas, em seu nome, ou por aqueles a quem Deus tivesse
dado o poder de estabelecer leis em vez de si607. Era este direito que preceituava os jejuns,
a observância dos dias santos, a não ordenação dos bígamos.
§ 478. O direito positivo humano era constituído pelo direito das gentes e pelo direito
civil.
2.5.4.1 O direito das gentes.
§ 479. O direito das gentes era aquele de que todas ou quase todas as nações

601 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 4, n. 5.


602 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 4, n. 6.
603 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 4, n. 7.

604 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 4, n. 8.


605 D.1, 1 de iust. et de iure,4 (l. manumissiones).
606 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 4, n. 9.

607 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 5, n. 1.

148
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
usavam. A sua relação com o direito natural era controvertida. Uns identificavam-nos. Outros
tentavam manter a distinção. A questão não era de somenos, nem do ponto de vista
teológico, nem do ponto de vista jurídico e político. Do ponto de vista teórico, havia que
explicar a razão de ser deste consenso alargado sobre certos preceitos que, todavia, não
eram universais e, por isso, pareciam não ser forçosos. Isto de saber se o direito das gentes
era estritamente obrigatório ou não era a segunda questão – esta de natureza mais prática -
acerca deste direito.
§ 480. Na verdade, sendo várias e importantes as instituições que os textos de direito
romano consideravam ser de direito das gentes, era muito importante saber se tais
instituições eram forçosas, como as de direito natural, ou se, pelo contrário, podiam ser
afastadas pela vontade dos homens. Domingo de Soto discute o assunto608. Para ele, a
diferença entre direito natural e direito das gentes não estava tanto na origem dos preceitos
de um e de outro, pois todas as esferas do direito derivavam da lei que Deus tinha imposto
ao mundo. Mas antes nos processos de aceder a essa lei. Ao direito natural acedia-se
intuitivamente, sem necessidade de qualquer espécie de raciocínio e, por isso, sem qualquer
possibilidade de dúvida ou de erro. Isso explicava a sua difusão universal. Já o direito das
gentes era uma consequência do direito natural, mas por um processo de exame das
situações e de ilação dos preceitos a aplicar a partir dos princípios evidentes do direito
natural. Por outras palavras, não se tratava de preceitos impressos naturalmente na alma
humana, mas de ilações que a razão fazia a partir de princípios evidentes, por processos de
raciocínio, mais ou menos complicados, de que os seres humanos eram capazes609.
Diferentemente das soluções de direito natural, em que havia um mecanismo infalível e
universal de transmissão dos preceitos, no direito das gentes o conteúdo dos preceitos
obtinha-se por um caminho dedutivo menos garantido e, por isso, menos universal. Este
duplo processo de exame e de inferência podia ser afetado por alguma ambiguidade ou erro.
Daí que o reconhecimento desta esfera menos óbvia do direito por Deus imposto à natureza
já não era tão certa e universal como a do direito natural. Soto dá exemplos destes
processos de obtenção dos preceitos por raciocínio. Por direito divino, a convivência humana
devia ser tender ao bem supremo, o que evidentemente implicava, no plano do direito
natural, uma vida comum pacífica e tranquila. Daqui era possível concluir – e muitas nações
o fizeram - que os bens deviam ser atribuídos individualmente, para evitar litígios. O mesmo
tipo de ilação tinha lugar quando se deduzia do princípio natural de respeitar a vida a
instituição pelo direito das gentes da escravatura, como forma de manter a vida dos vencidos
em guerra; ou quando se estabelecia o respeito dos pactos e dos contratos, como forma de
possibilitar o intercâmbio entre os homens, correspondendo à sua característica de
sociabilidade; ou quando se concluía, a partir do princípio natural de respeito pela palavras
dos mortos, que os legados testamentários deviam ser cumpridos610.
§ 481. Por este facto de haver uma mediação humana problemática (um processo de
raciocínio) entre os leis naturais e os preceitos de direito das gentes, este último direito tinha
algo de eletivo. Não tanto como o direito civil, que era estabelecido por ordens intencionais e
expressas da comunidade ou de quem a governava. Mas antes por um consentimento

608 Domingo de Soto, Tractatus de justitia et de jure […], cit., liv. 1, qu. 5,a.1 (corresponde a S.

Tomás, Summa, 1a.2ae, qu. 95I; também, 1a.2ae, 1, qu.5, a.3; e, sobretudo, 1a.2ae, qu.1, a.3).
609 Exemplo destes processos de dedução em Domingo de Soto, Tractatus de justitia et de jure

[…], cit., liv. 1, qu.5, a.3.


610 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 5, n. 4.

149
As jurisdições e o direito.
implícito e duradouro – como nos costumes antigos -, que exprimia um certo entendimento
das leis da convivência. Este moderado voluntarismo do direito das gentes explicava o
regime da sua mutabilidade por decisão comunitária. Luís de Molina, tratando da derrogação
e da dispensa do direito das gentes por normas de direito civil, conclui que, embora alterável,
a sua alteração devia provir de uma prática duradoura e geral, do mesmo género daquela
que o instituíra, que garantisse que se tinham tido em conta os perigos que advinham da
derrogação ou alteração do preceito de direito das gentes que se queria alterar611.
2.5.4.2 O direito civil.
§ 482. Já o direito civil era próprio de uma comunidade, sendo estabelecido por causa
das suas peculiaridades, para completar – eventualmente corrigir, nos termos antes descritos
- os direitos natural e das gentes. Num plano micro, também pertenciam ao direito civil os
pactos entre pessoas singulares, pelos quais estabeleciam direito relativo às suas coisas612.
§ 483. O facto de o direito civil provir de uma ato de vontade, não necessariamente
baseado num processo justo e racional de dedução - pois “a razão humana costuma estar
sujeita a alucinações“ (ratio nostra hallucinare solet, escreve Domingo de Soto) -, fazia com
que ele não devesse valer sem que se averiguasse da sua consistência com a ordem das
coisas. Isidoro de Sevilha enumerara, num texto que será lembrado e fundamentalmente
aceite até à época moderna, que a lei tinha que ser honesta, justa, possível, conforme à
natureza, conforme aos costumes pátrios, adequada ao tempo e ao lugar, necessária, útil,
clara e feita em função da utilidade comum dos cidadãos e não de interesses privados613.
Apesar de alguns autores medievais terem tentado simplificar o critério de Isidoro de Sevilha,
continuou a ser doutrina comum que o direito civil não devia contrariar os preceitos da
religião (ou do destino sobrenatural dos homens) e da moral e da justiça614. São estes
princípios que explicam que os juristas modernos continuassem a sustentar a sujeição do
direito positivo a esferas mais elevadas do direito615, não apenas para garantir que a
resolução justa dos litígios se fazia por uma medida justa, mas ainda para que os povos não
fossem habituados a uma disciplina errada. Também aqui, porém, as circunstâncias políticas
contemporâneas, iam atenuando estas vinculações do direito positivo, nomeadamente
daquele que provinha de comunidades ou príncipes qua não reconhecessem superior, como
os reis ou as repúblicas soberanas. O texto mais invocado era D.,1,3,31 que declarava,
embora com um sentido menos forte do que quis fazer valer616, que o príncipe estava liberto

611 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 5, n. 5.


612 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 5, n. 6.
613 “Qualis debeat fieri lex. Erit autem lex honesta, iusta, possibilis, secundum naturam, secundum

consuetudinem patriae, loco temporique conveniens, necessaria, utilis, manifesta quoque, ne aliquid
per obscuritatem in captionem contineat, nullo privato commodo, sed pro communi civium utilitate
conscripta” (Etymologiae, liv. 5, 21).
614 Domingo de Soto, Tractatus de justitia et de jure […], cit., I., qu.5, a.3.

615 Cf. o disposto em Ord. fil.,3,64, quanto à impossibilidade de o direito induzir em pecado ou de

contrariar a “boa razão”. Ou a proibição de o chanceler-mor do reino registar (promulgar) deis régias
“contra direito” (Ord. fil.,1,2,3-4). Ou ainda, a declaração de nulidade absoluta ou a concessão de
recurso extraordinário de revista de sentenças dadas contra direito expresso ou notoriamente injustas
(v. revisio) (Ord. fil. 3,75,pr.; 3,95,pr.; v. cap. 7.1.15.2).
616 O texto romano referia-se a leis no sentido técnico de constituições do príncipe. O regalismo e,

depois, o absolutismo procuraram estender o significado da palavra a preceitos jurídicos.

150
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
da obediência às leis (prínceps legibus solutus). Isto era muito enfatizado, quer pelo
regalismo da época, no sentido de afirmar que o poder do príncipe não estava sujeito ao
poder do Papa, pois este não era senhor do mundo temporal, quer pelos juristas favoráveis à
extensão do poder legislativo dos reis, com o objetivo de afirmar que o rei, ao usar do seu
poder extraordinário (potestas extraordinaria), podia contrariar o direito positivo já existente e
– embora apenas em algumas circunstâncias e mediando justa indemnização – podiam
passar por cima de direitos de particulares. No entanto, a faculdade de violar os preceitos da
razão e da justiça – por outras palavras, o direito natural, não era incluída entre as
prerrogativas do rei, mesmo para os juristas mais regalistas.
2.5.4.3 Direito comum e direitos próprios.
§ 484. A base textual para a reflexão sobre a acomodação entre as ordens jurídicas
das várias entidades políticas em que a sociedade se organizava naturalmente era a lex
Omnes populi do Digesto (D.,1,1,9), que afirmava que todos os povos – no sentido de
comunidades – se regem “em parte pelo seu próprio direito e em parte pelo direito comum de
todos os homens”, esclarecendo depois que o direito próprio era aquele que o povo de uma
cidade institui para si mesmo, e que por isso se chama direito próprio da cidade, ou direito
civil, sendo o direito comum o direito instituído pela razão natural e que, portanto, se observa
por todo o lado. Nos juristas medievais esta bipartição é localizada nas nações europeias
que, baseadas nas tradições textuais do direito romano e do direito canónico, recebidas e
trabalhadas pelos juristas letrados, usavam de um vasto património de princípios jurídicos
comuns617, distinguia entre este direito doutrinário, que vigorava por força da sua
racionalidade intrínseca, do direito particular, singular, próprio, estatutário ou municipal, “que
foi introduzido pela autoridade do legislador, tendo em vista alguma utilidade particular,
contra o teor da razão618. Nestes termos, ao passo que o direito comum se caraterizava pela
sua universalidade tendencial, pela sua razoabilidade, mas também pela sua vigência
sobretudo indicativa, o direito próprio era local619, proveniente de uma vontade, decorrente
de uma avaliação conjuntural e algo arbitrária, mas, em contrapartida, mais efetivo no seu
domínio restrito de vigência.
§ 485. Originariamente, o direito comum era aproximada do direito do império e, por
isso, do direito romano, enquanto que o direito próprio seria o direito de entidades políticas
de menor hierarquia, como os reinos e as cidades. Cedo, porém, os reis e as cidades que
não reconheciam superior (qui superiorem non agnosceant) começaram a reclamar a
plenitude do seu poder (plenitudo potestatis) e, consequentemente, as prerrogativas
imperiais no seu âmbito territorial (rex in regno suo imperator est). Ora uma delas era que o
seu direito fosse considerado como direito comum nesse âmbito territorial, por oposição a
direitos de corpos particulares mais restritos aí existentes. Porém, em face deste direito
comum do reino, continuavam a ser reconhecidos como vigentes nas comunidades mais
particulares, os direitos próprios das comunidades inferiores, ou de âmbito territorial (v.g.,

617 Cf. António Manuel Hespanha, Cultura jurídica europeia […], cap. 6,6,1.
618 Cf. D.1,3,16. Alejandro Guzman Brito, “Sobre la historia de las nociones de derecho común y
dereecho própio”, cit..
619 Os estatutos não podiam obrigar os que não fosse súbditos daquele que os estabeleceu,

António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Statutum”, n. 20. Assim, as leis portuguesas não se
aplicavam aos estrangeiros, pois as leis de um reino não se podiam estender aos bens ou pessoas de
outro, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Statutum”, n. 20.

151
As jurisdições e o direito.
concelhos), ou de âmbito pessoal (v.g., universidades, comerciantes, militares, etc.).
§ 486. Importa realçar que esta legitimação do direito dos corpos políticos a partir da
sua origem direta na natureza, dava origem ao reconhecimento de uma pluralidade de
ordens jurídicas, cada qual emanando de uma comunidade social. Sempre que se tratasse
de comunidades perfeitas - ou seja, comunidades que satisfizessem por si mesmas todas as
finalidades da vida em comum, como os reinos ou as cidades politicamente autónomas -, o
seu governo e as suas ordens jurídicas eram absolutas na esfera temporal, coordenando-se
umas com as outras num plano de igualdade. Uma situação semelhante àquela que hoje
designamos por “pluralismo”. Mas, mesmo quando se tratasse de comunidades imperfeitas,
carentes da cooperação de outras e por isso apenas elementos orgânicos de comunidades
superiores, o seu governo e ordem jurídica eram autónomos no seu grau, preferindo, no seu
âmbito particular, a esferas mais elevadas de direção ou regulação. De acordo com uma
lógica particularista que caraterizava o pensamento social pré-moderno, em que o particular
se impunha ao geral da disciplina das situações locais.
§ 487. Estas breves notas já permitem enquadrar suficientemente os dados doutrinais
ocorrentes na doutrina jurídica portuguesa dos sécs. XVI a XVIII.
2.5.4.3.1 A lei.
§ 488. “O direito do nosso reino é direito comum”, afirma Álvaro Valasco620, aderindo à
doutrina comum de que o imperador, no seu reino, era imperador. Isto não dava, porém, ao
rei de Portugal um direito ilimitado de legislar, pois nunca poderia prejudicar os direitos de
terceiros - fossem eles adquiridos ou apenas direitos cuja aquisição constituía uma
expetativa forte (por exemplo, em função da qualidade de herdeiro forçoso, ou da
primogenitura)621, nem contrariar as prescrições do direito natural622. Limitando também o
alcance do direito próprio estavam ainda algumas regras que se relacionavam com a sua
natureza de direito excecional. Por um lado, as restrições que introduzisse ao direito comum
da doutrina europeia (presumivelmente geral e racional) eram odiosas e deviam ser
restringidas623.
§ 489. No entanto, este direito do reino era já uma realidade normativa bem
estabelecida na primeira época moderna. Ele impunha-se aos súbditos e aos oficiais do
reino, nomeadamente aos juízes, que estavam proibidos de lhe preferir o direito comum
europeu. Os autores reconheciam que ele tinha as suas próprias razões, que deviam ser
assumidas, em vez das razões do direito comum geral, como orientações para a sua
interpretação624.
§ 490. Tudo isto, porém, não deve criar ilusões acerca da contínua usura do direito
próprio pelo direito comum. Estava fora do ensino universitário, era interpretado segundo as
categorias (e na língua) do direito comum625, era confrontado permanentemente com a

620 Cf. Cf. Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 105, n. 8.
621 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 151, ns. 18 a 20.
622 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec.44, n. 17.

623 Cf. Manuel Themudo da Fonseca, ????-1652, Decisiones […], cit, dec. 12, ns. 10 e 31; dec.

13, n. 8.
624 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 211, ns. 1 a 4.

625 Na verdade, continuava a ser forte a opinião de que, sendo um suplemento do direito comum,

o direito próprio deveria ser interpretado em conformidade com o direito comum (António Cardoso do

152
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
presunção de racionalidade de que gozava o direito comum, era continuamente
reinterpretado, restringido como odioso, criticado como contrário à razão (e “elegância”) do
direito comum da literatura jurídica letrada626, era considerado como suscetível de caducar
se não fosse observado627, estava desprotegido perante o erro, pois era atribuída relevância
ao erro de direito que recaísse sobre ele628.
§ 491. Como o direito do reino era constituído pelas leis, pelos costumes gerais e pelas
práticas de julgar dos tribunais (estilos), na falta da lei era a estas duas últimas fontes que se
devia recorrer629. Não havendo preceito de direito pátrio, mesmo aplicado analogicamente,
alguns juristas recomendam que se seguisse o direito do reino mais próximo630. Só na falta
de preceito aplicável se devia recorrer ao direito comum “imperial”631, contido nos direitos
civil e canónico, desde que conformes à boa razão632. Tudo isto correspondia ao preceituado
nas Ord. fil.,3,64633 634.
§ 492. A doutrina portuguesa distinguia várias espécies de leis: cartas de lei [ou leis,
assinadas solenemente pelo rei e com eficácia perpétua], alvarás [assinadas pelo rei, numa
fórmula abreviada – “Eu, ElRei” - , e valendo apenas por um ano, Ord. fil.,2,39], cartas régias,
portarias e avisos [diplomas exprimindo ordens singulares do soberano ou dos tribunais da
corte]635. As leis deviam ser seladas e publicadas, por edital ou por envio aos oficiais que as
devam aplicar, pelo Chanceler Mor do Reino (Ord. fil., 1,2,10), valendo, na corte, 8 dias; no
reino, 3 meses; no ultramar, um período mais longo, fixado pela doutrina de formas
diferentes636.

Amaral, Liber [...], cit., v. “Statutum”, n. 2) e que, nas suas especialidades, era um direito estrito que
deveria ser aplicado restritivamente, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Statutum”, n. 2 (ex.
punia o autor e não mandante, se deste não falasse, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Statutum”, n. 3).
626 Cf. António Manuel Hespanha, Cultura jurídica europeia, cit., 6.6.9.

627 Os estatutos que não fossem observados durante 10 anos eram nulo em absoluto, António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Statutum”, n. 16.


628 Os estatutos não obrigariam os que os ignorassem, pelo menos os estrangeiros, António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Statutum”, n. 17. Já os da terra não poderiam ignorar a sua
ignorância, se os estatutos tivesse sido anunciados por pregão público, António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., v. “Statutum”, n., 17. Mas se a pena do estatuto fosse a mesma do direito comum,
ninguém ficaria escuso, ibid.,. Estas normas sobre a relevância do direito próprio eram formuladas
sobretudo para os estatutos, não se aplicando à lei dos reinos (“a ninguém aproveita a ignorância da
lei”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Statutum”, n. 17).
629 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt.1, dec. 211, n. 5.

630 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 211, n. 7.

631 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 117, n. 24.

632 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 150, n. 19 e 20.
633 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 211.
634 Sobre o sistema de fontes do direito português, com detalhe, Guilherme Braga da Cruz, “O

direito subsidiário […]”, cit., Nuno Espinosa Gomes da Silva, História do direito […], cit.
635 Cf. Nuno Espinosa Gomes da Silva, História […], 370 ss.; ensaio de estatística da produção

legislativa em Portugal, nos sécs. XVI a XVIII, em John Gilissen, Introdução histórica ao direito […], ps.
462 ss..
636 Segundo o direito comum, a vacatio legis era de dois meses, António Cardoso do Amaral,

153
As jurisdições e o direito.
2.5.4.3.2 Os estatutos.
§ 493. A palavra estatuto (statutum)637 designa, na literatura jurídica medieval e
moderna, os preceitos jurídicos promulgados pelas comunidades particulares, enquanto que
a palavra lei (lex) se reservava para as normas provindas do príncipe (ou, em geral,
entidades políticas que não reconhecessem superior)638.
§ 494. Provinham de uma vontade, do povo ou dos magistrados seus delegados (i.e., a
quem o povo tivesse atribuído o poder de fazer estatutos), que, por natureza, deviam prover
sobre o governo daquela comunidade, mas podiam limitar-se a confirmar preceitos de direito
natural (ou de direito comum)639.
§ 495. Na época moderna, a questão mais aguda que aqui se põe é a das relações
entre o poder de fazer estatutos e o poder de fazer leis. Francisco Suarez discute a questão
longamente. Como ponto de partida, um paradoxo. Por um lado, aquilo que lhe parece ser a
atribuição pelo ius civile de poderes legislativos (i.e., de competência para editar normas
jurídicas dotadas de força vinculativa geral) a todos os magistrados que tenham o governo
das províncias (ou cidades). Por outro, a dificuldade de aceitar que tal competência possa
existir sem o acordo do príncipe640, paradoxo que, afinal, traduz a antinomia entre um
princípio doutrinal oriundo de um ambiente político francamente pluralista e um projeto de
poder - já com tradução institucional - voltado para a centralização política. A solução vai
Suarez buscá-la à distinção entre comunidades perfeitas, reservando a plena jurisdição - e,
logo, a plena potestas legislativa - para as primeiras (a que, no plano das realidades políticas
do seu tempo, corresponderiam os regna e as civitates qui superiorem non recognoscunt. As
outras teriam – sobretudo as maiores, com órgãos jurisdicionais próprios como seriam os
concelhos portugueses – uma capacidade legislativa proporcionada ao âmbito da sua
jurisdição, sujeita aos bons costumes e ao ius commune, não ofendendo os domínios de
edição legislativa reservados ao príncipe641. Quanto a este ponto, Suarez parte de uma
posição definitiva - os magistrados das cidades não podiam, por meio de estatuto, revogar ou
alterar o direito comum ou a lei do superior642, com isto se opondo a uma forte corrente do
ius commune clássico, com a qual, de resto, expressamente polemizava. No entanto, a
nitidez da regra anterior perde-se, logo nos números seguintes, quando Suarez a explicita
um pouco mais. Assim, o direito estatutário seria válido quando apenas especificasse ou
acrescentasse algo ao direito comum, geral ou do reino. Não se pode, no entanto dizer que
esta opinião fosse dominante. Entre os autores de direito comum talvez ainda dominasse,
mesmo nesta época, a opinião de que os estatutos valiam contra o direito comum643, mesmo

Liber [...], cit., v. “Statutum”, n. 17.


637 Sobre o direito estatutário (ou direito local), v., com detalhes, António Manuel Hespanha,

Vésperas […], cit., 356 ss..


638 Embora alguns autores alarguem o sentido de estatuto a qualquer norma de direito próprio (v.

António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Statutum”, n. 1).


639 “ Statutum est ius proprium unusquisque populus sibi constituit, et vocatur ius cvile et potest

facere quicumque potest condere legem ”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Statutum”, n..
640 Francisco Suarez, Tractatus de legibus […], cit., liv. 3, cap. 9, n. 5.

641 Francisco Suarez, Tractatus de legibus […], cit., liv. 3, cap. 9, n. 17 e 20. As povoações

menores poderiam editar normas de convivência, mas estas valiam como pactos (ibid., ).
642 Francisco Suarez, Tractatus de legibus […], cit., liv. 6, c. 25, n 10 ss..

643 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Statutum”, n. 13.

154
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
quando, tratando de outros pontos, consideravam a lei como uma fonte de direito mais digna
e mais cogente644
§ 496. No plano do direito positivo português, havia uma norma diretamente
relacionada com esta questão. (Ord. fil.,1,58,17), onde se dispunha " […] quando os
Corregedores, e Ouvidores dos Mestrados forem por correição, informar-se-hão de seu
Oficio, se ha nas Camaras algumas posturas perjudiciaes ao povo, e bem comum, posto que
sejão feitas com a solenidade devida, e nos screverão sobre ellas com seu parecer. E
achando que algumas forão feitas não guardada a forma de nossas Ordenaçoens, as
declarem por nullas, e mandem que se não guardem […] ". Explicitamente, a ordenação
referia-se apenas à conformidade entre o processo de feitura das posturas e as formalidades
previstas nas Ordenações. Já quanto à contradição substancial entre a postura e a lei nada
se diz. Apesar disso, é com base neste texto que os autores acolhem, em geral, a opinião de
que as posturas não valiam contra a lei régia e o direito geral do reino645. Ultrapassadas
estas questões de princípio, a atendibilidade das posturas, mesmo em termos doutrinais,
acabava por ser maior. Na verdade, ficcionando-se a presença e acordo do rei, que estaria
representado pelos juízes do concelho646, as posturas devidamente aprovadas tinham o valor
de lei, impondo-se aos particulares, aos funcionários concelhios e aos funcionários régios
(nomeadamente aos corregedores), só podendo ser anuladas por rescrito do próprio rei, nos
termos do citado texto das Ordenações. Valeriam, enfim, "loco ius civile", mantendo com o
direito do reino a relação que, segundo a teoria geral do direito comum, o ius proprium
mantinha com o ius commune647.
§ 497. Apesar desta admissibilidade de princípio do valor das posturas feitas de acordo
com a forma legal, existiam certas regras complementares das quais dependia a sua
validade.
§ 498. A primeira era a regra segundo a qual o concelho não podia, ao fazer posturas,
estabelecer normas que só ao rei competem (regalia). Tal seria o caso, por exemplo, da
criação de monopólios ou do lançamento de tributos gerais648. A segunda era constituída
pelo "princípio da especialidade", segundo o qual a jurisdição e os poderes estatutários dos
concelhos estavam funcionalmente vinculados à satisfação do bem particular da comunidade
concelhia. O que, no plano do direito nacional, decorreria do proémio do tit. Ord. fil.,1., 66
("Aos Vereadores pertence ter o cargo de todo o regimento da terra, e das obras do
Concelho, e de todo o que podérem saber, e entender, porque a terra, e os mora dores della
possão bem viver, e nisto hão de trabalhar"). A terceira era a de que, por estatuto, não se
podiam tirar direitos concedidos pelo direito comum ou tornar ilícito aquilo que aliás seria

644 Por exemplo, negando que fosse relevante a ignorância sobre ela (António Cardoso do

Amaral, Liber [...], cit., v. “Statutum”, n., 17).


645 Neste sentido, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 5, ad ad Ord. fil.,1,66,28, c. 7,

n. 2; ad Ord. fil., 1,66,29, n. 6: "non posse inferiores infringere leges superiores [...] quod factum esse
non servata formam legis nullum esse vidimus"; João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 1., liv. 6, §
1, n. 44.
646 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 5, ad Ord. fil.,1,66,28, c. 7, n. 15 (pg.

260).
647 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 5,ad Ord. fil.,1,66,28, C. IV, n. 2.

648 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 1., I. 7, dec. 19, § I., n. 26; já poderia

estabelecer certos tributos locais, visando o bem particular dos vizinhos (v. g., fintas).

155
As jurisdições e o direito.
lícito649,
a não ser com o acordo dos ofendidos ou estando em causa a utilidade comum.
Cumpridos estes últimos requisitos a competência estatutária ganhava grande amplitude,
abrangendo um alargado tipos de preceitos sobre uma enorme variedade de assuntos,
documentada pelas coleções de posturas que chegaram até nós650.
2.5.4.3.3 Costume.
§ 499. O costume era uma norma instituída pelos usos de uma comunidade, de modo a
induzir um consenso tácito sobre o seu conteúdo651. Os costumes podiam ser gerais ou
especiais (mesmo apenas de uma família652). Desde que, suplementarmente, cumprissem
certos requisitos (justiça e conformidade com o bem comum, racionalidade, durabilidade), os
costumes tinham força de lei, no âmbito da comunidade em que se tivesse constituído653.
§ 500. Em Portugal, a opinião comum era a de que o costume local devia ser atendido,
mesmo quando contrário ao direito comum, desde que se verificassem certos requisitos da
sua validade (nomeadamente a sua prescrição e racionalidade)654. Os limites a esta regra
eram os óbvios: o direito divino e o direito natural655, a que Álvaro Valasco acrescenta o

649 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 1., liv. 7, dec. 19, n. 4 (pg. 804).
650 Os estatutos podem repartir águas, mandar matar cães raivosos ou vadios, fixar os dias
santos, proibir a compra e a venda, proibir a exportação e importação, punir os vendedores de géneros
de má qualidade, autorizar o pasto em campos incultos (ainda que particulares), etc.; mas não podem,
por exemplo, estabelecer monopólios ou estancos, aumentar as penas, vender os bens comunais, pôr
tributos gerais.
651 “Consuetudo, est quodam ius moribus populi institutum, quod pro lege suscipiatur”, António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Consuetudo”, n. 1; “Consuetudo inducitur tacito consenso”,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Consuetudo”, n. 5. Para a doutrina dos teólogos,
Domingo de Soto, Traxtatus de iustitita […], cit., 1, qu.7, a.2. Se o costume tem força de lei, Luís de
Molina, Tractatus […], cit., pt. 1, qu. 34. Sobre a dogmática do costume, v. António Manuel Hepsanha,
As vésperas […], cit., 362 ss.; Nuno Espinosa Gomes da Silva, História […], 378 ss..
652 “Una familia potest in se facere consuetudinem”, Miguel de Reinoso, Decisiones [...], cit.., obs.

70, n. 24.
653 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Consuetudo”, n. 2 e 11; Tomé Valasco,

Allegationes […], cit., all 56, ns. 3-4; Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 110, n. 2; ibid., pt.
2, dec. 39, n. 6. Embora se considerasse que o costume era direito, exigia-se que a sua existência e
validade fossem confirmadas em juízo contraditório, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 125, n. 13.
654 Cf., por todos, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Consuetudo”, com tópicos da

doutrina contemporânea ("dicitur lex municipalis", n. 1; “cuius non extat memoria in contrarium induct
ius et privilegium ita ut non necesse allegare titulum“, n. 4; "consuetudo particularis vel special is est ilIa
quae consensu hominum unius loci est approbata, & homines illius loci adstringit, et in eodem loco
habet vim", n. 11; "habet vim legis" [sob certas condições ]), n. 2; "semper est attendenda", n. 5. Outos
exemplos em outras fontes: Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria […], cit., t. 4, ad Ord.. fll.,4.2.2., n.
1 (pg. 137) (os costumes da terra devem ser considerados nos contratos bonae fidei); t. 2, ad. Ord. fil.,3,
64, pr. n. 36-37 (a lei e o costume têm igual valor, sendo o costume prescrito considerado como direito
não escrito); n. 38 (o costume é mais eficaz do que os estatutos e as constituições municipais); Manuel
Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 7, ad Ord. fil.,1,87, pr., gl. 2, n. 3; António da Gama, Decisiones
[…], cit., dec. 193, n. 5 (o costume do reino prevalece na decisão das causas sobre todas as leis e
introduz-se por um só ato que tenha causa sucessiva, por 40 anos); Jorge de Cabedo, Decisiones [...],
cit., pt. 1, dec. 211, n. 5 (o costume do lugar diz-se direito comum); Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.,
cons. 140. n. 23 (“consuetudo antiqua habetur instar privilegium”).
655 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Consuetudo”, n., 19; note-se, no entanto, a

156
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
direito canónico, mesmo em matéria que não tivesse a ver com o pecado656.
§ 501. Discutida era já a questão de saber se valia contra a lei. Quanto a este ponto, a
orientação geral da literatura seiscentista era no sentido de que o costume contra lei não
devia ser observado, justificando-se esta opinião ou com os tópicos, que já vinham do ius
commune clássico, ou da irracionalidade deste costume, ou do respeito devido à lei do
príncipe. No entanto, despida a questão deste tom geral e enfático, pode verificar-se que os
autores têm posições muito matizadas: nem é verdade que a doutrina dê, em todos os
casos, relevo ao costume contrário à lei, nem que ela o negue em absoluto. Por exemplo,
Jorge de Cabedo657 dá conta de decisões (Tomar, 1584) em que o costume local derrogara
as regras de sucessão dos morgados. Para Álvaro Valasco, seria pelo costume local e não
pela lei que se deviam regular as formalidades do inventário658. Já quanto ao costume
praeter legem, a opinião é a de que ele teria uma extensa eficácia, nomeadamente em sede
de interpretação dos negócios jurídicos. Assim, António Gama, Álvaro Valasco e Tomé
Valasco entendem que, em matéria de celebração de contratos ou na interpretação do
contrato enfitêutico, se devia atender ao costume659 660.
§ 502. A eficácia normativa do costume resultava ainda do facto de ele constituir um
importante subsídio para a interpretação do direito e dos contratos 661.
§ 503. A existência de um costume decorria de uma prática duradoura de reconhecer
uma norma. Este último elemento (a intenção de cumprir uma norma jurídica, opinio iuris)662
tornava mais difícil a prova do costume, pois não bastava provar os atos materiais, mas
ainda a sua intenção consciente de estar a observar uma norma663. A duração exigida para
que uma prática induzisse um costume variava com a natureza da norma consuetudinária
invocada. O prazo de 10 anos era o prazo comumente requerido, quer pelo direito civil, quer
pelo direito canónico, para a prescrição de um costume racional. Mas para induzir normas

equiparação entre lei e razão: “non potest tamen vincere legem aut rationem aut veritatem” (ibid., n. 6),
que justifica o tópico de que o costume contra legem é irracional.
656 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., dec. 133, n. 11. No mesmo sentido, Tomé Valasco,

Allegationes […], cit., all. 56, n. 12-14, 19; Antonio da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 83, n. 1.
657 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt.1, dec. 121, ns. 3 e 4.

658 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., dec. 21, n. 2.

659 Cf. Antonio da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 233, n.9; Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.,
dec. dec. 21, n.2; Tomé Valasco, Allegationes […], cit., all. 56 (maxime, ns. 15 ss..
660 o mesmo opina Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria […], cit., t. 4, ad Ord. fil., 4,2, gl. 1

(p. 137.
661 Cf. Decisiones [...], cit., dec. 10, n. 4; dec. 14, n. 3 (é a interpretação ótima das leis e dos

estatutos); Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 146, n. 2-15 (a vontade contratual deve
interpretar-se pelo costume).
662 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Consuetudo”, n. 10.

663 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Consuetudo”, ns. 8 e 10; Álvaro Valasco,

Decisiones [...], cit., cons. 162, n. 9 ss.; toda esta decisão incide sobre este ponto, de que faz uma boa
síntese. Teria que se provar: (i) que havia esse costume e que se traduzia em atos frequentes; (ii) que
o costume era prescrito, n. 11-12; (iv) que a prática dos atos era acompanhada de intenção de observar
um costume, n. 13; (v) que esse costume correspondia a um consenso geral, n. 16; (vi) e que se tinha
desenvolvido com o conhecimento do príncipe, o que se presumia num reino, n. 27. As testemunhas
deviam estar conscientes de que o costume era mais do que uma mera prática, n. 15.

157
As jurisdições e o direito.
contrárias à lei ou em prejuízo da Igreja, seriam precisos costumes de 40 anos, centenários
ou imemoriais (cuius non extat memoria in contrarium)664.
2.5.4.3.4 Os estilos.
§ 504. O estilo era uma forma continuada de um tribunal declarar o direito. Os juristas
medievais definiam-no mais como um uso de argumentar (respicit ordo loquendi vel
procedendi) do que como um preceito quanto a comportamentos665. A sua obrigatoriedade
decorria, por um lado, de os juízes deverem julgar segundo o direito, induzindo a que as
suas decisões e o modo de as processar e argumentar correspondiam a esse direito. Tanto
mais que os estilos mais relevantes eram os dos tribunais reais, que declaravam o direito por
autoridade direta do rei, a viva vox legis. Daí que as sentenças dos tribunais superiores
devessem constituir um padrão para o futuro, sobretudo se configurassem uma orientação
com alguma constância. Assim, Jorge de Cabedo declara que os estilos da Casa da
Suplicação se deviam observar como lei666, tanto mais quanto mais antigos fossem667,
embora alguns autores dissessem que bastavam duas sentenças conformes para
estabelecer um estilo668.
2.5.5 A dispensa de uma norma.
§ 505. A dispensa era o ato pelo qual, num caso concerto, uma entidade com poderes
para tal afastava a aplicação de uma norma jurídica geral669, corrigindo a injustiça que
constituiria a aplicação de um comando geral naquele caso singular; embora se tratasse de
um ato de graça670 - e por isso reservado ao príncipe -, não era um ato arbitrário, devendo
ser justificado por uma causa suficiente671. Também se entendia que os príncipes (ou o
Papa) não pudessem dispensar a lei divina ou a lei natural672. A dispensa da norma geral
consistia na criação de uma situação de privilégio (quasi privata lex¸ numa lei como que
privada)673.

664 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 212; António Cardoso do Amaral, Liber [...],

cit., v. “Consuetudo”, n. 8.
665 Cf. Nuno Espinosa Gomes da Silva, Historia […], cit., 379 ss..

666 “Pro lege servanda”, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 3, n. 5; também,

Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 63, n. 2 (no n. 4 refere-se à prova dos estilos.).
667 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 201, n. 1 a 8; v. também Álvaro Valasco,

Decisiones [...], cit., cons. 157, n. 24.


668 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 148, n. 32.

669 “Dispensatio est relaxatio legis, seu iuris alicuius facta ab eo, qui habet jus dispesandi, per

quam dispensatus in illo casu solvitur, & eximitur ab illius vinculo”, António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., v. “Dispensatio”, n. 1.
670 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Dispensatio”, n. 2.

671 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 79, ns. 7-8.
672 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 279, ns- 7 a 10; António Cardoso do
Amaral, Liber [...], cit., v. “Dispensatio”, n. 3. Sobre a teoria da dispensa (dispensatio), v. Domingo de
Soto, De iustitia et de iure […], cit., liv. 1, qu. 7, a. 3.
673 Sobre o privilégio como caraterística estrutural de uma ordem jurídica corporativa, v. António

Manuel Hespanha, “Justiça e administração […]”, cit., 154 ss.;

158
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2.5.6 Os direitos particulares.
§ 506. Por via de regra, o direito não podia violar os direitos firmes, enraizados,
adquiridos, dos particulares.
§ 507. A tutela dos direitos dos particulares efetuava-se em dois momentos: antes da
consumação do ato do poder, por meio do controlo prévio e oficioso da sua conformidade
com o direito, e depois da sua consumação, tanto através do instituto da nulidade ipso iure
das decisões ilícitas do poder, como pela faculdade de oposição à sua execução.
§ 508. O controlo prévio da conformidade dos atos régios com "as Ordenações, ou
Direito" (Ord. fil.,1,2,2) competia ao Chanceler-Mor do Reino. Este alto funcionário palatino -
cujas atribuições principais eram as de selar e mandar publicar os diplomas emanados dos
tribunais ou oficiais da corte - devia, na verdade, verificar se as cartas a selar eram contra os
direitos do rei, “ou contra o povo, ou Clerezia, ou outra alguma pessoa, que lhe tolha ou faça
perder seu direito"; no caso de isto acontecer, o Chanceler não deveria selar e publicar as
cartas sem expor as suas dúvidas ("glosar") ao rei ou ao Desembargo do Paço. Da decisão
final do Chanceler podiam os particulares lesados agravar para o Desembargo do Paço (Ord.
fil.,1,2,11; 1,30,1).
§ 509. Porém, a tutela mais geral dos direitos dos particulares não era a preventiva,
mas a obtida por meios judiciários ordinários. Em Portugal, e nos quadros gerais fornecidos
pelo direito comum, os recursos dos particulares contra os atos do poder político lesivos dos
seus direitos estavam variamente previstos. Desde logo, estava prevista a nulidade de uma
determinação do poder contrária às Ordenações ou ao "direito expresso", que poderia ser a
todo o tempo revogada (Ord. fil, 2,44; 3,75). A doutrina discutia o alcance da expressão
"direito expresso". Em Portugal, o alcance prático da faculdade do Chanceler-Mor de "pôr
glosas" aos atos régios não está estudado674.
§ 510. Qualquer que fosse o alcance prático da fiscalização do Chanceler-Mor, o que é
certo é que não só os juízes deviam recusar a aplicação da decisão ilegal do poder, como o
particular lesado podia, a todo o momento, opor-se à sua execução mediante embargos
(exceptiones), bem como podia, por ação autónoma ("querela de nulidade"), pedir a
declaração oficial da nulidade do ato do poder675. Os embargos eram um meio geral de
defesa que devia ser apresentado perante o magistrado que emitira a decisão, com eventual
recurso da decisão deste para a instância superior. Era um meio de defesa bastante eficaz,
pois tinha efeitos suspensivos.
§ 511. Outro tipo de recurso previsto na lei - e aqui abrangendo já expressamente os
atos extrajudiciais - era o agravo ordinário, previsto nas Ordenações (Ord. fil.,3,84,4) para
todos aqueles casos em que a apelação não era possível, nomeadamente, para as decisões
de magistrados comissários ou extraordinários, categoria na qual estava incluída a

674 Cf., em todo o caso, a C.R. de 30.6.1636 (Col. chron. leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo) em que o

rei ameaça o chanceler-mor de lhe cortar o vencimento se le continuasse a recusar o registo de certas
determinações do Conselho de Portugal.
675 Um fundamento especial e muito relevante dos agravos (e também dos embargos) era a

obrepção ou subrepção, em que se alegava a existência de um vício na formação da vontade do


soberano, provocado ou pela sonegação de factos relevantes para a tomada de decisão (“verum
tacere” - subrepção) ou pela apresentação de informações falsas (“falsitatem proponere” - obrepção).
Sobre estas figuras, ver, por todos, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 12, ad Ord.., 11,43,
gl. 2, n. 3.

159
As jurisdições e o direito.
generalidade dos oficiais não jurisdicionais. Neste tipo de agravo, o fundamento a alegar era,
nos termos gerais, o carácter antijurídico do ato e a lesão daí resultante na esfera jurídica do
agravante. O agravo tinha efeitos devolutivos - i.e., devolvia a apreciação do ato para a
entidade para a qual se agravava - e, em princípio, suspensivos - pois, salvo o caso de atos
por natureza urgentes, o agravo suspende a executoriedade do ato durante seis meses (cf.
Ord. fil.,3,84,14). Quanto à eficácia prática dos embargos, basta dizer que, de acordo com
uma carta régia de 1634, raro era o provimento de ofício feito pelo rei que não fosse
embargado676. A coroa defendia-se proibindo o recebimento de embargos em relação a atos
de governo677; mas, ainda em 1642, o juiz do povo de Lisboa embargava a lei de reforma
monetária de D. João IV678.
§ 512. Finalmente, e dado o carácter patrimonial dos direitos dos particulares, a sua
defesa provisória estava ainda garantida por remédios cautelares como, por exemplo, os
interditos possessórios (de manutenção ou de restituição de posse).
2.5.7 O pluralismo jurídico moderno na Europa e Ultramar. O direito e a fé.
§ 513. A arquitetura de fontes antes descrita foi decisiva na conceção e
desenvolvimento do modelo político, institucional e jurídico dos primeiros impérios coloniais
europeus, que foram justamente o português e o espanhol, (i) quer no que respeita ao
estatuto dos povos “novamente encontrados”, (ii) quer no relativo ao modelo de governo das
comunidades de colonos.
2.5.7.1 O direito e a fé.
§ 514. Para a primeira questão foi decisiva a reflexão dos juristas acerca do direito
divino, do direito natural e do direito das gentes. Para a segunda, a tradição literária
construída sobre a l. Omnes populi do Digesto679 relativa à relação entre direito comum e
direitos próprios.
§ 515. Comecemos pela primeira questão. Após o Concílio de Constância
(1414 e 1418), a legitimação da guerra e da conquista pelas razões da fé deixara de ser
possível, pois esse concílio declarou como heréticas680 a proposição de que o poder, a

676 Cf. C.R. 20.9.1634, Col. chron. leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo, pg. 48.
677 Cf. C.R. 2.11.1607, Col. chron. leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo.
678 Cf. C.R. 16.2.1642, Col. chron. leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo.
679 D.1,1,9 Gaius libro primo institutionum: “Omnes populi, qui legibus et moribus reguntur, partim suo
proprio, partim communi omnium hominum iure utuntur. Nam quod quisque populus ipse sibi ius constituit, id ipsius
proprium civitatis est vocaturque ius civile, quasi ius proprium ipsius civitatis: quod vero naturalis ratio inter omnes
homines constituit, id apud omnes peraeque custoditur vocaturque ius gentium, quasi quo iure omnes gentes
utuntur”.
680 Sess. 55ª, artº 8; e sess. 3; esta declaração foi confirmada Concílio Trento, sess. 7, can. 12, e

sess. 14, can. 10. A fonte escritural mais importante era a Epístola aos romanos, de S. Paulo,
Romanos, 13:1 13,1: “Cada qual seja submisso às autoridades constituídas, porque não há autoridade
que não venha de Deus; as que existem foram instituídas por Deus. 13,2: Assim, aquele que resiste à
autoridade, opõe-se à ordem estabelecida por Deus; e os que a ela se opõem, atraem sobre si a
condenação. 13,3: Em verdade, as autoridades inspiram temor, não porém a quem pratica o bem, e
sim a quem faz o mal! Queres não ter o que temer a autoridade? Faze o bem e terás o seu louvor.
13,4: Porque ela é instrumento de Deus para teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, porque não é sem
razão que leva a espada: é ministro de Deus, para fazer justiça e para exercer a ira contra aquele que
pratica o mal. 13,5: Portanto, é necessário submeter-se, não somente por temor do castigo, mas

160
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
jurisdição e a propriedade se fundavam na caridade de Deus em relação aos fiéis681. Daí
decorreria que as comunidades políticas dos infiéis seriam ilegítimas; e, em contrapartida,
justa e legítima a guerra contra eles, visando a sua conversão. Esta rejeição da dependência
do governo político em relação à fé deslegitimava a ideia de “cruzada” e todos os títulos de
domínio baseados na força, tornando assim legítimas no plano temporal as entidades
políticas estranhas ao universo da cristandade (mais exatamente, da catolicidade).
§ 516. Ao mesmo tempo, os juristas também estavam de acordo em que o Papa -
embora gozasse de um poder de dirigir os príncipes cristãos relativamente aos bens de
natureza espiritual, impedindo que o governo das coisas terrenas os prejudicasse - não era,
no entanto, senhor do mundo, não dispondo, por isso, de nenhum poder temporal fora das
terras da Igreja682, muito menos ainda fora do âmbito da cristandade683. Luís de Molina tratou
esta questão em duas disputationes do seu tratado684.
§ 517. Na primeira delas, discutia a natureza do “reino” de Cristo (“Utrum Christus
quatenus homo rex fuerit temporalis, et Dominus orbis” [Se Cristo, enquanto homem, foi rei
temporal e senhor do mundo], disp. 28) e, a partir daí, os poderes que transmitidos ao seu
vigário na terra. Concluía que o Papa, na qualidade de vigário de Cristo: (a) não tinha o
poder de julgar diretamente causas e conflitos temporais entre os príncipes, nem podia
revogar as leis civis que não se ordenassem a finalidades sobrenaturais, nem mandar que os
juízes seculares apelassem para ele nestes assuntos, cujo conhecimento cabia aos poderes
seculares (n. 19); (b) tendo plena jurisdição quanto aos aspetos espirituais, não tinha, porém,
poder quanto aos aspetos que pertencessem à jurisdição civil e temporal, a não ser que os
príncipes seculares o permitissem ou o bem espiritual o requeresse (n. 20); (c) tinha, como
anexo ao poder espiritual, pleno poder sobre as coisas temporais, mas apenas quando o
exigissem os fins espirituais (n. 22); (d) apenas podia dirimir as controvérsias entre os
príncipes, quando estes o consentissem, […] (n. 29); finalmente, (e) não podia obrigar os
povos e os príncipes a levar a vida absolutamente conforme aos preceitos cristãs, mas

também por dever de consciência. 13,6: É também por essa razão que pagais os impostos, pois os
magistrados são ministros de Deus, quando exercem pontualmente esse ofício. 13,7: Pagai a cada um
o que lhe compete: o imposto, a quem deveis o imposto; o tributo, a quem deveis o tributo; o temor e o
respeito, a quem deveis o temor e o respeito”. O Antigo Testamento (sobretudo o Livro dos Reis)
também era invocado.
681 Estes proposições tinham sido defendidas por João Wiclef, João Huss, Richard Armachanus e,

em geral, os Valdenses, v. Luís de Molina, Tractatus de iustitia et de iure [...], cit., liv. 2, disp. 19,
maxime ns. 1 e 6.
682 Luis de Molina, Tractatus de iustitia et de iure […], cit, liv. 2, disp. 21 (sobre a distinção entre

os poderes temporal e eclesiástico); liv. 2, disp. 29 (sobre o poder temporal dos papas).
683 Com o que ficava inclusivamente bastante enfraquecida a relevância das bulas pontifícias de

divisão do mundo que, rigorosamente, apenas poderiam ser entendidas como diretivas aos príncipes
cristãos relativamente à repartição das terras a descobrir, a fim de regular o múnus espiritual da
evangelização.
684 Luís de Molina, Tractatus de iustitia et de iure […], Liv. 2, disps. 28 e 29. Saliente-se a

importância do texto de Luís de Molina, um dos primeiros discursos teológico-jurídicos completamente


articulados sobre a escravização dos negros. Tendo esta primeira parte do Tractatus de iustitia et de
iure sido editado em Cuenca em 1593, o texto é anterior a essa época. Dado o seu carácter articulado
e desenvolvido, poderá ter constituído uma apostila destinada ao ensino, em Coimbra ou em Évora,
durante o período de 26 anos em que o autor aí deu aulas (1566-1590). Cf., sobre ele, António Manuel
Hespanha, “Luís de Molina e a escravização dos negros”, cit..

161
As jurisdições e o direito.
apenas a dirigir a vida destes nesse sentido, dentro de certos limites e termos (n. 35). Na
disputatio 30, Molina rejeita as posições extremas que ou negavam em absoluto (n.6) ou
afirmavam sem limites (n. 1 ss.) o poder temporal dos Papas, acolhendo a tese mais comum
nos teólogos católicos pós-tridentinos, que optava por uma via media (n. 8), que, mesmo
assim, excluía no fundamental o poder pontifício de governar, legislar ou julgar no domínio
temporal: salvo nas terras papais, a Igreja e os seus ministros tinham apenas o domínio
sobre o seu património e a jurisdição que fosse necessária para o exercício do seu múnus,
não lhe competindo, porém, o governo e administração temporal em geral (n. 10). O Sumo
Pontífice não era senhor/dono (dominus) do mundo ou fonte do poder dos reis, cuja natureza
seria totalmente distinta da do poder do Papa685.
§ 518. E teriam os cristãos o direito castigar com a guerra e com a destruição as
comunidades políticas que ofendessem bens comuns à humanidade, como a religião
verdadeira ? Por outras palavras, a idolatria não seria uma causa justa para a guerra ? 686 O
ponto tinha-se tornada atual porque, contra a corrente teológica dominante, alguns
franciscanos tinham admitido a possibilidade de, restaurando o espírito de Cruzada,
legitimarem a guerra como forma de cristianização. Um destes tinha sido Alfonso de Castro,
teólogo e jurista catalão um pouco anterior, que legitimara assim a subjugação pela Espanha
das nações do Novo Mundo. O fundamento era, a um tempo, bíblico e natural. Por um lado,
“Deus mandou os filhos de Israel destruir muitas nações […]”; por outro, “estes pecados
opõem-se às luzes da razão, tal como a sodomia, a cópula com a mãe e irmãs e outros
crimes” (ibid.). Porém, a conclusão de Molina é nitidamente contrária: “Não é lícito ao Papa,
ao Imperador ou a qualquer outro príncipe punir pecados que se oponham às luzes da razão,
sempre que não tenham jurisdição sobre os pecadores. Pois tais pecados não são daqueles
que causem injúria a inocentes [abona-se em Vitória e Covarrubias). Pois punir supõe uma
vingança de alguém por alguma culpa, bem como superioridade ou jurisdição sobre aquele
que deve ser punido ou sobre aqueles que receberam a injúria […]. Porém, nem o Papa nem
o Imperador têm qualquer jurisdição sobre tais infiéis [...], nem os pecados deles ofendem os
seus súbditos ou alguns inocentes, que devam ser defendidos por direito natural, pois
apenas são ofensas a Deus [...] O mesmo se diga dos pecados contra a lei da natureza e de
todos os outros que não resultem em prejuízo de alguém, pois a sua punição apenas
compete a Deus” (ibid., disp. 105).
2.5.7.2 O direito e a natureza.
§ 519. As reduzidas faculdades de intervenção dos europeus na vida das comunidades
nativas, não provinham do direito divino, mas antes do direito meramente natural.
§ 520. De fato - como se disse - o segundo padrão doutrinal para determinar o que era
justo e o que era injusto no tratamento dos povos que estavam fora da universo Europeu era
o direito natural. Desenvolvendo tópicos que já apareciam na tradição textual anterior, os
juristas modernos perfilhavam a opinião de que o poder civil tinha uma origem humana,
sendo conatural à existência de uma comunidade organizada687. Por isso, devia ser

685 Luís de Molina, Tractatus de iustitia et de iure […], liv. 2, disp. 28 e 29; v. também disp. 21, ns.

13 ss. (diferenças entre os poderes do papa e dos reis).


686 Luís de Molina, Tractatus de iustitia et de iure […], liv. 2, disp. 106.

687 Cumpre destacar o contributo de Baldus de Ubaldis (1327-1400) para a ideia de que o

governo e o direito decorrem diretamente da existência de uma comunidade humana organizada,


sendo um efeito direto da natureza, revelada pela tradição (passagem do tempo): “Populi sunt de iure

162
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
respeitado, desde que não estabelecesse formas de organização contrárias à natureza ou
não ofendesse direitos naturais de outros. Assim, Francisco de Vitoria, no seu tratado sobre
os índios recentemente descobertos (De indiis recenter inventis relectio prior) é taxativo no
sentido de que "o pecado mortal não impede a propriedade civil de ser uma verdadeira
propriedade", "a infidelidade não é impedimento de que alguém seja verdadeiro proprietário",
"a fé não pode destruir nem o direito natural nem o humano" 688. Também Domingo de Soto,
ao discutir a legitimidade da guerra contra os infiéis que nunca tivessem tido contacto com a
mensagem evangélica, declara (apoiando-se em S. Tomás de Aquino [Summa theol., II.IIae.
q. 10, a. 10] e em Tomas Vio Caietano) que "a fé não destrói a natureza, antes a aperfeiçoa
e, portanto, não justifica que se prive das suas possessões os homens que as têm pelo
direito das gentes; sobretudo porque a infidelidade negativa, i.e. a daqueles que nunca
ouviram falar do nome de Cristo, não constitui pecado nem merece nenhum castigo" (De
iustitia et iure [...], lib. V, qu. 3). É esta ideia do carater natural do governo e do direito que
sustenta a grande autonomia do direito humano face ao direito divino e também a doutrina
da ilegitimidade da guerra, como meio de destruir comunidades políticas e direitos de
liberdade e de propriedade.
§ 521. Da guerra justa trata longamente Molina689, concluindo ser justa a guerra,
declarada pelo príncipe (col. 415 C), que “vinga injúrias, sempre que uma nação ou cidade
deva ser castigada, por ter deixado de vingar o que pelos seus foi injustamente feito, ou de
entregar o que por injúria foi levado” (col. 413 A). Concretizando, justa era a guerra que
visasse: (i) recuperar coisas nossas injustamente ocupadas; (ii) submeter súbditos
injustamente rebelados; (iii) vingar e reparar injúria injustamente recebida690. Embora não
estivesse excluída a guerra ofensiva, dirigida à recuperação de coisas próprias, ao
ressarcimento dos danos causados e à vingança das injúrias sofridas, a guerra justa era,
desde logo, a guerra defensiva, nos seus distintos objetivos. Nestes termos, era claro que
era injusta a guerra motivada pela ambição de “ampliação do império, a glória ou
comodidade próprias” (col. 435 C).
§ 522. Porém, alguns casos de guerra – e, portanto, de escravização – eram mais
controversos. O que é que se podia dizer que seria tão nosso que a sua usurpação
justificasse razoavelmente a guerra ? Naturalmente, as coisas de uma nação: o seu território,
as suas cidades, as suas riquezas naturais (pescarias, riquezas minerais, etc.). Mas, além
destas coisas que seriam nossas por se integrarem no património próprio, também aquelas
que fosse nossas por pertencerem a um património comum a todos, como, por exemplo, o

gentium, ergo regimen populi est de iure gentium: sed regimen non potest esse sine legibus et statutis,
ergo eo ipso quod populus habet esse, habet per consequens regimen in suo esse, sicut omne animal
regitur a suo proprio spiritu et anima” (Baldi Ubaldi, [...] In primam Digesti veteris partem comentaria
[…], ad Dig. 1, 1, 9); “Iura nostra considerant tempus, et in tempore fundant leges suas […]. Tempus
quod dat sibi [homini] vitam, dat sibi legem. Tempus vero quod semper accedit ad nos, illud dat nobis
mores, illud dat nobis legem, illo vivimus, nutrimur, et sumus”, ibid., ad Dig. 1, 3, 32). Emblemática da
posição dos teólogos e juristas modernos, Domingo de Soto, Tractatus de justitia et de jure […], cit., I.,
qu.5, a.1; Luis de Molina, Tractatus de iustitia et de iure […], cit, liv. 2, disp. 22.
688 Citados em José Sebastião da Silva Dias, Os Descobrimentos […], cit., 223; posições

contrárias (decorrentes ainda do agostinianismo e da ideia medieval de Cruzada), na teologia e no


direito da época: Gregório López, Alfonso de Castro.
689 Luis de Molina, Tractatus de iustitia et de iure […], cit, liv. 2, disps. 98 ss..

690 Luis de Molina, Tractatus de iustitia et de iure […], cit, liv. 2, disp. 104, col. 431 D ss.

163
As jurisdições e o direito.
direito de passagem. Segundo Vitória, seria de direito das gentes viajar para outras
províncias e viver aí, desde que sem prejuízo dos indígenas. Esse direito estender-se-ia à
utilização dos portos e dos rios, pois também estes seriam comuns de todos, além de a
liberdade do seu uso constituir o fundamento de um direito natural à intercomunicação,
próprio do género humano691. Uma forma especial de comunicação era o anúncio do
Evangelho, em termos tais que a proibição de entrada de missionários ou a injúria que lhes
fosse feita dava motivo a guerra justa.
§ 523. Finalmente, a guerra era justa não apenas para garantir direitos próprios, mas
ainda nos casos em que as comunidades encontradas se desviassem dos padrões humanos
de convivialidade.
§ 524. Não teriam todos os homens o direito a que todos respeitassem as normas
básicas do comportamento humano ? Reduzindo à escravidão ou, pelos menos, assumindo
a direção política, das comunidades que violassem grosseiramente esses preceitos ? A
resposta da opinião comum era afirmativa, legitimando que os povos encontrados pudessem
ser postos, em virtude da sua rudeza, sob uma situação de tutela, semelhante à dos rústicos
europeus 692. Recolhendo, até certo ponto, a teoria dos "servos por natureza", Domingo de
Soto reconhece que, tal como, dentro de uma cidade ou até de uma família, podia haver
pessoas rudes que carecessem de capacidade para se dirigirem a si mesmos, também no
orbe existiam nações "que nasceram para servir" e que, portanto, deveriam ser subjugadas,
submetendo à ordem “aqueles que, como feras, andam errantes e sem nenhum respeito
pelas leis do pacto [de convivência política], invadindo o alheio por onde quer que passem"
(De iustitia et iure, liv. IV, qu. II, a. II) 693. Foi este último o tópico recorrente na justificação da
expropriação e escravização dos ameríndios, tanto em Portugal como em Espanha694.
Ausência de governo civil, promiscuidade sexual, canibalismo e sacrifícios humanos eram os
sinais mais invocados para declarar como inumanas e sujeitas a tutela as nações
encontradas.
§ 525. No entanto, esta opinião, embora comum, não deixava ser contestada, por
exemplo por Luís de Molina: “Não temos que discutir aqui se é causa justa para sujeitar uma
nação à guerra o facto de ela ser bárbara e rude; de modo a que seja regida por outrem que
a imbua de bons costumes, para que mais tarde se possa reger por si. Não faltaram os que
acharam que isto era razão suficiente para se pudessem reduzir à escravatura todos os
brasileiros e outros habitantes do Novo Mundo, para além dos africanos; com a
consequência de que quem os comprasse como escravos adquiria o domínio deles, sendo
privados das suas terras e expropriados de todas as suas outras coisas. Ora, como se
mostrou na disputatio 32, essa causa não é suficiente para que sejam sujeitos à escravidão,
ficando assim destruído o fundamento de que os autores usavam para afirmar que se podia
espoliar de forma consequente das terras e dos bens quem os possuía” (disp. 105, n. 8). Em

691 Molina afasta-se desta opinião comum, sendo muito mais restritivo: Luis de Molina, Tractatus

de iustitia et de iure […], cit, liv. 2, disp. 104, col. 433.


692 cf. António Manuel Hespanha, "Savants et rustiques. La violence douce de la raison juridique",

Ius commune, 10(1983), 1 ss..


693 Foi este último o tópico recorrente na justificação da expropriação e escravização dos

ameríndios, tanto em Portugal como em Espanha.


694 Cf., sobre o tema, Anthony Pagden, The fall of natural man and the origins of comparative

ethnology, Cambridge 1982.

164
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
certos casos mais graves e provados de barbarismo, Molina concordava com a justeza da
guerra, do cativeiro e da tutela política. Assim, seria justo que o príncipe punisse os infiéis
sobre os quais tivesse jurisdição695 (ibid., disp. 106); bem como o seria punir os infiéis e
todos aqueles que cometessem pecados de que resultasse injúria para inocentes (como
imolarem inocentes, matarem-nos e comerem-nos, ou oprimi-los com leis tirânicas), não
sendo sequer necessário que o crime fosse consumado, bastando que houvesse ritos ou
costumes desse tipo. Também não justificava estas práticas bárbaras que as vítimas
concordassem com tais práticas, pois seria justo libertar da morte mesmo aqueles que a
aceitassem.
§ 526. Luís de Molina aborda aqui um ponto de certo alcance prático. Pois, quer em
África, quer, sobretudo, na América, os seus contemporâneos tinham identificado costumes
desses que justificariam a submissão dos indígenas696. A única limitação a este invasivo
princípio era, para ele, a de que não seria justo exceder a causa da guerra, usurpando,
nomeadamente, os bens dos inimigos para além das despesas da guerra e da retribuição
pela injúria e danos (ibid., disp. 107).
§ 527. Em conclusão. Segundo o direito comum tardio, o direito divino impedia o Papa
ou os seus delegados (como o podiam ser os bispos ou até os príncipes cristãos, enquanto
delegados do Papa), quer de estabelecer direito nas matérias temporais, quer de derrogar o
direito temporal das entidades políticas, a não ser, quanto às comunidades cristãs e em
medida muito limitada, nos casos em que este direito induzisse em pecado. Já quanto às
comunidades não cristãs, a legitimidade para lhes impor direito estava completamente
excluída. Restava a capacidade de intervenção permitida a qualquer entidade política a fim
de defender os seus próprios direitos de usurpações ou violações por outrem ou de corrigir
regimes políticos bárbaros, ou seja, claramente contrários às leis naturais da convivência
humana.
§ 528. Esta doutrina conduzia a uma situação paradoxal: os maiores obstáculos a uma
expansão agressiva do catolicismo resultavam precisamente de normas da religião e do
direito divino quanto aos processos de difundir a fé. Na verdade, apesar da importância que
o tópico da evangelização teve na propaganda imperialista das monarquias católicas,
nomeadamente, das monarquias ibéricas, as limitações à catequização – comuns nos
teólogos pós-tridentinos - eram bastante inconvenientes para a política colonial da Europa
católica, pois impediam que, em nome da fé, do poder universal do Papa, direto ou delegado,
se impusesse uma dominação política sobre os povos encontrados, se revogassem (ou
desconhecessem) as suas leis, se julgassem os seus conflitos, se expropriassem as suas
terras, se lhes impusessem normas cristãs de vida. O que ficava para os reis católicos (e
ainda assim como mandatários do papa) era muito pouco, mesmo que estes invocassem
privilégios papais dados para que protegerem a expansão da fé. Pois esta não podia ser feita
pela força, nem os poderes de proteção da evangelização podiam pretender dos infiéis muito
mais do que a liberdade para os missionários. As consequências do exercício do poder
eclesiástico quase que eram apenas visíveis nos aspetos de disciplina interna da
missionação, regulando a repartição de poderes de autoridades eclesiásticas e autoridades
civis sobre missionários, catecúmenos e colonos cristãos. Se se encarasse a questão do
ponto de vista da lei da natureza, a doutrina era, apesar de bastante restrita, era mais

695 Luis de Molina, Tractatus de iustitia et de iure […], cit, liv. 2, disp. 105.
696 Nesta última parte, Molina aproxima-se de Vitória (Relectio […], cit., col. 2, n. 15 ss.).

165
As jurisdições e o direito.
permissiva, pois permitia defender os direitos próprios, proteger de direitos de inocentes
injustamente tratados ou destruir regimes políticos e jurídicos contrários à convivialidade
humana. No conjunto, isto equivalia a um amplo reconhecimento da vigência de uma
pluralidade de direitos naquilo que hoje chamaríamos a cena jurídica internacional,
remetendo a resolução dos seus conflitos não para regras fixas de hierarquia entre eles, mas
para regras de acomodação que variavam de situação para situação, de acordo com a
“teoria dos estatutos” (v. § 724), ou seja, com as normas de direito comum sobre a
acomodavam mútua das ordens jurídicas particulares.
§ 529. Paradoxalmente, é o humanismo individualista e racionalista do séc. XVIII
europeu que põe em causa este princípio pluralista.
§ 530. Com o advento do racionalismo iluminista, no séc. XVIII, a ideia da unidade do
género humano ganha uma nova força. O direito, como a cultura em geral, é percorrido por
uma vaga de universalismo que, neste domínio do estatuto jurídico e político dos povos
exóticos, promove – em princípio697 - o igualitarismo jurídico e a aplicação geral e abstrata
das leis e das soluções políticas.
§ 531. Este movimento tem várias faces. Uma delas é a tendência para a abolição das
manifestações de sujeição dos não europeus aos europeus. Daí decorre, em primeiro lugar,
o movimento antiescravagista, que, em Portugal, encontra as primeiras manifestações
legislativas ainda no período pombalino (leis de 6 e 7.6.1755; alv. 8.5.1750, proibindo o
cativeiro de Índios do Brasil ; dec. de 28.3.1758, proibindo a escravização dos chineses,
como "bárbara e nula" e contrária ao direito natural e divino; alv. 16.1.1775, concedendo a
liberdade a todos os filhos de escravos nascidos em Portugal; lei de 19.9.1761 e alv.
7.1.1767, proibindo o tráfico de escravos para o Reino). Outra face deste movimento de
universalismo é a atenuação do princípio da filiação (ius sanguinis) como critério de distinção
entre naturais e estrangeiros, temperando-o com o do lugar do nascimento. Ou a promoção
da naturalização e a equiparação dos naturais originários e dos naturalizados. Finalmente,
uma outra face do universalismo é a tendência para a aplicação geral do direito português a
todos os naturais portugueses, qualquer que fosse a sua raça ou estado cultural, tendência a
que corresponde uma política de integração de todas as dependências coloniais no sistema
político, jurídico e judicial do Reino.
2.5.8 A interpretação.
§ 532. O direito era tido – já se viu - como provindo da natureza ordenada das coisas.
Esta natureza tinha muito de evidente para qualquer pessoa. Mas, em aspetos menos
óbvios, tinha que ser revelada por regras emanadas do legislador ou do trabalho dos práticos
do direito (jurisprudentes)698.
§ 533. Daí que a explicitação do direito fizesse parte de uma hermenêutica geral, que
consistia em extrair dos indícios postos na natureza ou na revelação (no “livro da vida” …)
regras de conduta, moral, jurídica ou prática. Isso constituía um trabalho contínuo e
infindável, recolhido pela memória, sob a forma de tradição. Era a própria experiência –

697 Na prática, mesmo legislativa, este universalismo tinha muitas limitações: v. Cristina Nogueira
da Silva, Constitucionalismo e Império […], cit..
698 No caso dos jurisconsultos romanos, dada a autoridade que os seus escritos gozaram na

cultura jurídica do Ocidente, a sua autoridade era equiparada à do legislador, chegando a designar-se
as normas emanadas de uns e outros indiferentemente como leges.

166
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
negativa ou positiva – da busca do direito na natureza que ia pondo à prova a bondade das
soluções encontradas. Se prevalecessem, se fossem aceites e se, assim, se integrassem
nos usos da vida ou na praxe dos tribunais, era porque correspondiam a uma leitura correta
da natureza das coisas. Era por isto que a constituição jurídica da sociedade se manifestava
nesta tradição social que se manifestava, principalmente, na literatura dos juristas.
§ 534. Neste contexto, a distinção – que, muito mais tarde, irá constituir uma categoria
do pensamento e do método jurídicos – entre “ser” (Sein) e “dever ser” (Sollen) não fazia, por
ora, sentido. O mundo era uma ordem que devia ser mantida, desde logo por corresponder à
Criação divina 699; como a natureza era ordenada, e o caos lhe repugnava, no íntimo do ser
havia uma lei, um dever ser, um direito natural, definido pelo jurista romano Ulpiano (séc. II
d.C.) - numa fórmula que será continuamente citada durante mais de um milénio e meio –
como “aquilo que a natureza 700 ensinou a todos os animais [...]” (D.,1,1,1,3).
§ 535. Não existia uma metodologia específica para interpretar este direito ínsito nas
coisas. Existia, sim, um método geral de ir interpretando o mundo, procurando alcançar, não
uma verdade definitiva, mas uma verdade provisória e provável, cuja fiabilidade se
estabelecia e ia aumentando pelo confronto dos pontos de vista (teoria dos status, tópica,
retórica) e a extração de conclusões capazes de gerar consensos (opiniones communes,
receptae, vulgares). Assim, este método não procurava tanto produzir uma solução certa
mas apenas pôr à disposição do orador argumentos que tornassem convincentes os diversos
pontos de vista.
§ 536. A opção por um ponto de vista devia basear-se em critérios objetivos (mesmo,
verificáveis). Uns formais, como a aceitação pelo uso (usu receptio 701), a adoção pela
prática dos tribunais (stylus curiae), a opinião favorável dos especialistas (opinio communis
doctorum). Outros substanciais (ou materiais) - como evitar o absurdo ou o inútil (absurda vel
inutilia vitanda); ou promover a harmonia do direito (elegantia iuris)702; ou favorecer a
oportunidade e o bem comum (utilitas, bonum commune). No meio de todos estes critérios, a
acomodação da interpretação ao sentido tradicionalmente dado aos textos era a regra de
ouro, chegando a dizer-se que este sentido usual valia mais do que o sentido verdadeiro703
§ 537. Embora o direito não coincidisse com os textos, mas com algo que estava antes

699 “As coisas que provêm de Deus estão ordenadas” (“Quae a Deo sunt, ordinatae sunt”),

escreveu S. Tomás de Aquino. Lembremo-nos que, de acordo com os versículos do Génesis sobre a
criação, ao fim de cada um dos seus sete dias, Deus olhava para o que tinha criado e, invariavelmente,
achou que a criação estava bem [ordenada] (Gen., 1, 1-2).
700 A natureza também é definida por Cícero (séc. I d.C) como uma norma: “Lex vera atque

princeps, apta ad jubendum et ad vetandum, est ratio recta summi Jovis” [a lei verdadeira e principal,
apta para mandar e proibir, é a recta razão do grande Júpiter] (De legibus, 2, 8-13)
701 D.1,3 De legibus, 37. “optima enim est legum interpres consuetudo.”; ib., 23: “minine sunt

mutanda, quae interpretationem certam semper habuerunt”. Na doutrina portuguesa, o tópico é


constante: Bento Pereira, Promptuarium […], cit., v. “Interpretatio”, n. 844.
702 Interpretando o cada norma pelo seu contexto mais próximo (“Lex bene interpretatur juxta

titulum, sub quo est situata”, Tomé Valasco, Allegationes […], cit., all. 28, n. 47); interpretar a norma de
modo a evitar contradições (“ubi cessent contrarietas”, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit.,
dec. 21, n. 7); interpretando o direito do reino de modo a aproximá-lo do direito comum (“est favorabilis
interpretatio per quam reducimur ad ius commune”, Tomé Valasco, Allegationes […], cit., 72, n. 22).
703 "Interpretatio inducta per consuetudinem operatur etiam contra poprium signficationem",

Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 14, n. 3.

167
As jurisdições e o direito.
deles (a ordem do mundo, a justiça, fonte mediata ou matéria, do direito), estes dispunham
de uma grande autoridade (chamavam-lhes a razão escrita, ratio scripta), constituindo um
critério decisivo para identificar o direito (fontes imediatas, ou formais, do direito). Daí que
alguns dos problemas de achamento do direito coincidiam com problemas de interpretação
de textos escritos. Embora não nos devamos esquecer que, para as conceções da época,
tudo podia valer como um “texto”, desde que contivesse indícios de sentidos ocultos. Neste
sentido se falava do “livro da natureza” ou do “livro da vida”. Por isso, quando os juristas
falam dos status legales704 como constituindo a soma dos problemas de interpretação do
direito, eles não se estão a referir apenas àquilo que nós hoje chamamos “interpretação das
leis”, mas a algo de muito mais abrangente, que poderíamos definir como “leitura da ordem
do mundo”.
§ 538. Os próprios textos do Corpus iuris civilis sobre a lei e a sua interpretação –
originaria ou sucessivamente estendidos, na sua doutrina, a outras fontes que não eram lei,
em sentido estrito705 – propunham, em geral, uma interpretação muito atenta ao espírito da
lei, à vontade do legislador, ou mesmo à letra da lei 706 707. Isto porque, como já se disse,
eram necessárias umas mediações, dotadas de alguma autoridade708, para revelar (abrir, ex-
plicare) o sentido, por vezes oculto, das leis naturais. Esta ideia da mediação do direito
natural pela sua positivação por um ato de autoridade acabou tendo uma importância
argumentativa muito forte, criando um filão doutrinal que, mais tarde, será apropriado por
aqueles que, esquecida a lei da natureza, vão identificar o direito com a lei dos homens
(positivismo legalista)709. Este filão contribuiu para atribuir um certo protagonismo aos textos
de direito romano tardio que reservavam a interpretação da lei para o imperador 710, embora
a generalidade dos juristas interpretasse estes textos restritivamente; defendendo que eles
apenas se referiam a uma interpretação com força de lei (interpretação autêntica), mas não à

704 Os status legales (problemas de interpretação do direito) eram os seguintes: 1. oposição

scriptum/sententiam: o sentido comum das palavras do texto coincidem ou não com o sentido querido
pelo autor ?; 2. Concordância entre leges contrariae: Como proceder perante leis contraditórias ?; 3.
Resolução da ambiguitas: Como revolver a ambiguidade de um texto ?; 4. Desenvolvimento da
raciocinatio: Deve-se concluir analogicamente do disposto num texto normativo para um caso idêntico
mas nele não previsto ?.
705 As regras para revolver os problemas (status) encontram-se, por exemplo, no Digesto (D, 1,3;

D, 50,17); sobre a analogia, D, 1,3,12.


706 D.3, 17: “Scire leges non est verba earum tenere, sed vim ac potestatem”; D.50, 16, 219: “Voluntatem
potiusquam verba spectari oportet”; D.10,4,19: “Non oportere ius civile calumniari [I.e., Falso et scienter impugnare,
Gothofredus], neque verba captari; sed qua mente quid dicitur animavertere convenire”; D.27,1,13.2: “Et si maxime
verba legis hunc habeat intellectum, aliquando tamen mens legislatoris aliud vult [Quoties ex verbis legis simpliciter
intellectis, praefertur iniquum aequo, recedimus a verbis, et stamus menti rationique legis, Baldus]”.
707 Em sentido contrário: D.1,3, 20-21: Non omnium quae a majoribus instituta sunt, rationem

reddi potest. Et ideo rationes eorum quae constituuntur inquiri non opportet. Alioquin multa ex his quae
certa sunt subvertuntur.
708 A autoridade do rei, que tinha o poder de fazer as leis (cf. Melchior Febo, Decisiones […], cit.,

dec. 14, n. 7); mas também a dos tribunais palatinos, que participavam do corpo do rei (“Interpretatio
senatus pro lege observanda est”, Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., pt. 1, dec. 212, n. 6).
709 “Ordinationes Regni jubentur servari prout jacent, sine exquisitis interpretationibus”, defede

Álvaro Valasco, Decisiones […], cit. cons. 117, n. 20, contrapondo implicitamente uma interpretação
comum e sensata dos textos legais às interpretações cerebrinas dos juristas.
710 C.,1,14,12,3: “O Imperador é o único legislador e intérprete das leis”.

168
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
interpretação doutrinária (doctrinalis, scholastica), válida apenas in academia, ou
jurisprudencial (usualis), limitada ao caso sub judice. De qualquer modo, mais limitadamente,
este respeito pelo texto levou a que a interpretação corretiva do texto (fosse ela extensiva,
restritiva ou ab-rogatória) constituísse uma matéria muito mais delicada do que a simples
interpretação declarativa.
§ 539. Porém, como as próprias regras de interpretação não constituíam, propriamente,
uma teoria, mas apenas uma coleção de tópicos ou perspetivas a serem usadas pelo
intérprete segundo ponderações variáveis, a par com o tópico legalista conviviam tópicos de
natureza oposta, como o da “interpretação usual” (que favorecia a prevalência das correntes
jurisprudenciais – “jurisprudence des arrêts”, praxística), o da invocação da equidade, da
misericórdia ou da graça, como deveres deontológicos dos julgadores, no sentido de afinar a
justiça às circunstâncias, encontrando um direito do caso concreto.
§ 540. De qualquer modo - quer justamente em virtude deste caráter aberto e
indeterminado tanto do direito como do complexo de regras da sua interpretação, quer de
enormes problemas postos aos juristas pela coexistência de vários sistemas jurídicos (direito
romano, direito canónico, direito dos reinos, direitos municipais e corporativos, etc.) – pode
dizer-se que se encontra na literatura jurídica desta época tudo aquilo que a ulterior teoria da
norma irá utilizar. Princípios como: o da derrogação da lei inferior pela lei superior, da lei
geral pela especial, da lei anterior pela lei posterior; expedientes como os da interpretação
restritiva, extensiva, da interpretação racional (ou segundo o espírito da lei), da interpretação
pela causa ou fim (interpretação teleológica; Decretais, 2,24,26: “cessante causa, cessant
eius effectus”), da interpretação analógica (D.,1.3.2: “plures sunt casus quam leges”), como
ainda uma vastíssima cópia de argumentos que cumprem todas as funções que a teoria da
interpretação mais tarde será chamada a atender (argumentos a maiori, a minori, a contrariu,
a simile, a causis, etc.)711.
2.6 Magistrados e oficiais
2.6.1 Definição
§ 541. O ofício era o desempenho de uma função712. Era uma noção geral, com uso
dentro e fora da linguagem jurídica. O seu sentido nuclear era o de uma obrigação fundada
na natureza. Os filósofos consideravam o ofício como um dever ditado pela virtude - pela
bondade, dai a equiparação entre “aquilo que se faz por obrigação” [ob+ficium] e “aquilo que
se faz por bondade” [bene+ficium] -, que contrastava com aquilo que era exigido apenas pela
conveniência ou interesse (atos mercenários)713. Todo este campo de sentidos pesa sobre a
palavra e os seus usos jurídicos: a ligação entre natureza, ofício e honra, a oposição entre
ofício e serviço mercenário. No discurso do direito, ofício também era um conceito geral, no

711 Para a dogmática da interpretação na doutrina portuguesa, sobretudo no período iluminista, v.

Joana Liberal Arnaut, A inteligência das leis […], cit., sobretudo, ps. 119 ss..
712 Bibliografia geral: João Baptista Fragoso, Regimen […], cit., pt. 1, liv. 5, disp. 13, §§ 9-12; liv. 7.

Disp. 21-23; Manuel Barbosa, Remissiones doctorum […], ad Ord. fil., 1,67; 69-70; 73-75; 3,9; 4,25;
4,49; 5,20; 5,71-72. Acerca de muitos ofícios, Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., t. 2, decs. 98 ss.
713 Veja-se o tratado de Cícero sobre os deveres (De officiis), em que estes são considerados

como emanando de um direito fundado na natureza, cuja observância propiciava uma vida honrada ou
honesta, de acordo com a natureza. Diferente da avaliação doa atos quanto à sua bondade absoluta
era a avaliação da sua utilidade quanto às vantagens que podiam trazer Cf. Cícero, De officiis (44 a.
C.), 1, 9, em http://www.thelatinlibrary.com/cicero/off1.shtml, trad. http://www.constitution.org/rom/de_officiis.htm.

169
As jurisdições e o direito.
sentido de que podia ser aplicado a todas as situações em que alguém estava objetivamente
vinculado a fazer algo. Esta vinculação tinha, quanto à sua existência e quanto ao seu
conteúdo, um caráter objetivo, ligado à natureza das coisas, à tradição ou ao direito, não
dependendo da vontade, como as obrigações que provêm, por exemplo, de um contrato.
Neste sentido, o ofício consistia num conjunto de deveres forçosos, irrecusáveis e
indisponíveis. António Cardoso do Amaral define ofício como “um conceito geral, que
compreende a obrigação que impendia sobre alguém, seja em assuntos eclesiásticos, seja
em assuntos profanos, quer públicos, quer privados”714, distinguindo-os conforme fossem
impostos em função da utilidade de particulares (v.g., o ofício do tutor, v. cap. 3.3.2.1) ou,
antes, em função da utilidade da república (v.g., os ofícios jurisdicionais, como o de juiz) e
considerando estes últimos como particularmente vinculativos para aqueles sobre que
recaíssem, que não os poderiam recusar. Porém, o caráter natural dos ofícios implicava a
obrigação de os aceitar e, por isso, também as causas de escusa eram muito semelhantes,
como se verá, qualquer que fosse a utilidade que os justificasse715.
§ 542. Estabelecidos por uma ordem normativa objetiva – a natureza, a tradição, o
direito -, os verdadeiros ofícios tinham um conteúdo de deveres e de direitos que não
dependia senão modestamente da vontade. Quando eventualmente os criava, o rei estava
subordinado a uma ordem natural-tradicional que limitava a sua discricionariedade quanto ao
estatuto dos oficiais716. Qualquer modificação desta ordo magistratum, officiorum et
iurisdictionum – nomeadamente, criação de magistraturas extraordinárias (por simples
pragmática ou edictum principis) ou o tratamento de questões fora das competências e
ordem processual estabelecidas (desaforo, extra ordinem cognitio) - devia ser excecional e,
do ponto de vista da doutrina, tinha sempre um caráter odioso717. Por isso, a criação de
novos ofícios podia dar origem a ações judiciais de particulares ou dos titulares de ofícios já
existentes que considerassem que a criação de ofícios novos prejudicava os seus direitos718.

714 “Officium est nomen generale, comprehendens onus, ad quod quis tenentur, & est adstrictus,
sive in rebus ecclesiasticis, sive in prophanis, tam publicis quam privatis, & pertinet ad magistratus,
gubernationem, seu honorem, et aliquando habet nudum ministerium”, António Cardoso do Amaral,
Liber […], cit., v. “Officium”, n. 1.
715 “Aliud est publicum, aliud privatum [...] necessarium autem officium est illud, quod utilitate, &

auctoritate Reipublicae dicitur publicum, & illud non potest recusari”, António Cardoso do Amaral, Liber
[…], cit., v. “Officium”, n. 2.
716 Como escrevia Charles Loyseau, ao censurar Jean Bodin, que destacava os ofícios de criação

régia, “les plus varies officiers” não eram “les derniers erigez”, mas “les anciens, dont on n’a mémoire
de l’érection”, Cinq livres du droit des offices, Chasteaudun, Abel l’Angelier, 1610, liv. IV, Des offices
non venaux, Ch. V, Des commissions, n. 4
(https://play.google.com/books/reader?id=fwpeI8BJQ5kC&printsec=frontcover&output=reader&authuser=0&hl=pt_PT
&pg=GBS.PP2).
717 Com as consequências jurídicas que isto tinha: interpretação restritiva, proibição de extensão

analógica, presunção de que se tratava de um regime estabelecido intuitus casus, intuitus personae),
dever de indemnizar eventuais prejudicados com a criação de novos ofícios ou com a extinção de
algum já existente..
718 Decisão judicial interessante: “Fez elRay aposentador de novo a Pero Borralho. Veio com

embargos na chancelaria Isabel Pereira dizendo que não houvera nunca senão um só aposentador, e
que era em seu prejuizo haver dois, pois se repartiriam os próis e precalços [...]. Julgou-se no juízo da
coroa que não era agravada, e que elRey para bem publico podia crear de novo os ofícios, que
parecessem necessários”, v. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, Aresto 24.

170
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
Quando provia ofícios já existentes, muito menos devia inovar no desenho das suas
atribuições que deviam ser as estabelecidas pela tradição719. Havia, portanto, uma jurisdição
natural ou ordinária de cada ofício; embora esta jurisdição pudesse sofrer certas
modificações720, era esta que se presumia. Por exemplo, a jurisdição episcopal cabia, por
natureza, ao seu vigário geral (i.e., àquele que, em geral, fazia as vezes do bispo), embora o
bispo pudesse especialmente delegar certas das suas atribuições noutros oficiais; mas estas
competências “extraordinárias” tinham que ser provadas por uma carta especial de
comissão, já que não eram exercidas por autoridade natural, mas apenas pela autoridade
especificamente conferida pelo delegante721.
§ 543. Criado e provido o ofício, o estatuto dos oficiais ganhava uma resistência tal que
a ordem dada pelo rei contrária ao estatuto era considerada um “desaforo” (violação do foro,
ou jurisdição) e podia ser impugnada por contrária ao direito ou presumivelmente motivada
por erro ou maquinação722. Paralelamente, o ato de um oficial fora do fora do âmbito da sua
jurisdição era nulo, podendo resistir-se a ele.
§ 544. Diferentes destes ofícios “naturais” ou “honorários” eram os cargos cujas
atribuições provinham de uma delegação (ou comissão) do titular do ofício. A ideia de que
todos os ofícios eram do governante, que os atribuía aos seus servidores por meio de uma
delegação (parcial, disponível e revogável) da sua jurisdição também se encontra nas fontes
de direito romano, sobretudo do principado e do Baixo-império.
§ 545. A figura conceitual usada para exprimir isto era de delegatio (ou mandatio)
jurisdictionis, pelo que esta jurisdição era dita delegata vel mandata, por oposição à
jurisdictio ordinaria. A jurisdictio delegata era especial, atribuindo o poder de tratar (inquirir,
processar, julgar) um caso ou um tipo específico de situações indicados na carta de
delegação. Foi por meio da delegação de jurisdição que se foi alargando a estrutura de
oficiais da coroa, na época moderna. Aos ofícios tradicionais – normalmente, de governo
(incluindo a justiça) das terras e outras corporações – foram-se somando os funcionários em
que o rei delegava o poder para tratar de questões que antes estavam nas suas mãos e que
ele geria informalmente (cognitio extra ordinem) ou como coisas suas (dispondo delas por
meio de leges rei suae dictae, usando a sua potestas domestica ou privata administratio).
Alguns deles eram encarregados de conhecerem da causas concretas (juízes comissários)
libertos das formalidades do processo ordinário (sine strepitu et figura iudicium). Outros eram
nomeados para conhecer certos tipos de causas que tinham emergido com o
desenvolvimento da administração, como os negócios da guerra, da fazenda, do património
real ou da coroa. Na origem, estes novos ofícios eram classificados como comissões
(comissiones), curatelas (curationes) ou supervisões (superintendentiae).
§ 546. No final do séc. XVI, Jean Bodin, ao reconstruir as categorias do direito público
no âmbito de uma teoria do poder real como soberania, aproxima estas comissões dos
ofícios ordinários. Umas e outros seriam criados pelo príncipe, os ofícios com uma jurisdição
genérica, as comissões com uma jurisdição limitada no espaço, no tempo e nas matérias, e

719 O oficial criado de novo devia reger-se pelo estatuto desse oficio nas cidades vizinhas, António
Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Officium”, n. 28.
720 Podia ser delegada ou prorrogada. Cf. adiante.

721 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Officium”, ns. 42 e 44.

722 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Officium”, ns. 31-32 (resiste-se ou agrava-se

quanto ao ato fora da jurisdição; recorre-se contra o ato dentro da jurisdição).

171
As jurisdições e o direito.
dependente da vontade do concedente. Esta construção não era muito inovadora, pois as
suas bases dogmáticas estavam no direito romano. Mas o alcance que Jean Bodin lhe dava
abrangia setores cada vez mais vastos e importantes do oficialato, pelo que afetava muito as
instituições de governo das monarquias modernas e o seu pessoal administrativo723.
Colocava o príncipe (e não a natureza, a tradição ou o direito) como origem e regra dos
ofícios, integrava no governo da república áreas de administração antes consideradas quase
como que pessoais do rei, enquanto ecónomo (i.e., governador da sua casa), libertava o
poder real de muitos constrangimentos, mas reduzia na mesma medida as prerrogativas dos
oficiais.
§ 547. Não admira, por isso, que tenha suscitado perplexidade e reações logo desde o
seu aparecimento. Charles Loyseau reage imediatamente a estas inovações, reafirmando a
primazia dos “vrais offices” sobre os criados de novo (“à nouveau erigez”), embora
reconhecendo a importância das comissões e a sua dependência em relação à vontade livre
do príncipe (“… la commission, qui n’a presque loy ni regle, ains depend quasi du tout de la
volonté de celuy qui la decerne”)724. A polémica passa a projetar-se sobre a dogmática
acerca de vários pontos do direito dos ofícios, como se verá725.
§ 548. Uma outra distinção relevante era a que contrapunha as atribuições nobres do
oficial (officium nobile) às suas atribuições que ele desempenhava a pedido das partes, para
prosseguir uma utilidade particular (officium mercenarium). Encontrámos esta distinção logo
na abertura do De officiis de Cícero, quando ele distingue as ações devidas pela natureza
daquelas que apenas são devidas na perspetiva de uma utilidade pretendida. Assim, o titular
do ofício tinha o dever de realizar, por sua iniciativa e pela autoridade que lhe era conferida
pela sua função (ex officio, motu proprio), os atos exigidos pela função natural do ofício.
Estes faziam parte do seu ofício nobre. Em contrapartida, havia outros atos que, cabendo na
sua esfera de competências, não eram necessários para a realização da sua função, apenas
podendo ser úteis na perspetiva de algum interesse particular. Estes estavam fora do seu
ofício nobre e integrados apenas no seu “ofício mercenário”. Como eram úteis para os
particulares e cabiam nas atribuições do oficial, este podia praticá-los; mas recebendo em
troco uma recompensa (mercês, emolumentum726). Era corrente aproximar estas atribuições
menores do conceito de ministerium, que evocava, na sua etimologia, os serviços de uma
pessoa de menor dignidade (minister, proveniente de minus, menor; por oposição a master,
maior). Esta aproximação das palavras degradava a função de oficiais cuja função se
limitasse a estas atribuições mercenárias (como os tabeliães), classificando-os de servi
ministeriales (semelhantes aos criados ou escravos, cujos serviços apenas eram úteis aos
seus patrões ou senhores).

723 Jean Bodin, Les six livres de la République, Paris, Jacques du Puys, 1576, liv. 1, c. 3, e 8
http://fr.wikisource.org/w/index.php?title=Fichier:Bodin_-
_Les_Six_Livres_de_la_R%C3%A9publique,_1576.djvu&page=13; (Lyon, Jacques du Puys, 1580:
https://play.google.com/books/reader?id=KT3Pzv0zR_EC&printsec=frontcover&output=reader&authuser=0&hl=pt_P
T&pg=GBS.PP5). Cf. Vitor Ivo Comparato, “Note sulle teoria dela funbzione publica in Bodin”, em
L’eduxazione giuridica […], cit..
724 Charles Loyseau, Cinq livres du droit des offices […], cit., liv. 1, ch. 1, n. 111.

725 Ord. fil., 2,56 Libri Feudorum 2, 56: “Quae sint regalia: potius ad fiscale ius, et proventus, quam

ad ipsam supremam authoritatem et dignitatem spectant”. (cf.


https://play.google.com/books/reader?id=T_BKAAAAcAAJ&printsec=frontcover&output=reader&authuser=0&hl=pt_P
T&pg=GBS.PT4).
726 Ubi onus, ibi emolumentum (se há um encargo, deve haver uma recompensa).

172
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 549. Esta distinção entre officium nobile e officium mercenarium aparece em Bártolo,
que liga a distinção à natureza dos fins prosseguidos pelo juiz ao agir. Se ele age em função
de uma ação – e, portanto, vinculado aos interesses das partes -, ele exerce o seu officium
mercenarium. Mas se age por iniciativa própria, independentemente de qualquer ação,
prosseguindo interesses que não são os das partes, mas o interesse público, ele exerce o
seu officium nobile727.
§ 550. Simplificando a distinção de Bártolo, a doutrina mais moderna segue a síntese
feita pelos compiladores de Bártolo nas suas primeiras edições impressas, e identifica o
ofício nobre com as atribuições autónomas (ex officio) que decorriam diretamente do cargo,
requeridas pelo interesse da república, como, nomeadamente, o seu poder público de
declarar o direito728. Ou seja, as funções jurisdicionais do oficial que não satisfaziam apenas
o interesse das partes, nem dependiam, por isso, apenas da iniciativa destas (como a
generalidade dos atos processuais), mas que envolviam também um poder autónomo de
mando, a que chamavam império729. Assim, os oficiais “nobres” eram aqueles que detinham,

727 (“Quotiescunque officum iudicis deservit, dicitur mercenarium. Hoc est verum, quando deservit

ad eum finem, ad quem fuit intentata actio, secus si ad alium […]”, Bártolo, Opera […] omnia. Dig Vet,
ad 1,1, De iur. omnium iud. (Adnotationes novae), pg. 31, Venetiis, 1590
(http://books.google.com.br/books?id=E-QbpiN8k-oC&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false). A distinção era complexa, pois se dependia
de vários tipos de atos que o juiz podia praticar no decurso do processo: ”Pergunto quantas formas há
de atribuições (officium) do juiz […]. Digo que há três, uma como mercenário, quando serve
[http://ducange.enc.sorbonne.fr/deservire] a ação a partir (ex) de acordo com a natureza [finalidade] da
mesma ação, como nos juízos de boa-fé, outra quando serve a ação em vista (propter) por causa da
natureza da mesma, como nos juízos arbitrários […] é uma espécie tripla. Certas atribuições do juiz são
nobres, outras são mercenárias, outras adversárias. As atribuições nobres são as que existem por si,
quer o juiz as exerça por iniciativa própria, ou a pedido de outrem, como inquirindo, ordenando a
restituição in integrum, dando tutores, emitindo decretos, estabelecendo o salário dos advogados e dos
médicos e coisas semelhantes. Outras atribuições são mercenárias, quando não existem por si,
embora sirvam a ação, e isto pode acontecer de muitas maneiras, quando serve a ação com o fim de
que se proponha, como na citação e nos interrogatórios e em tudo o que se faz antes da contestação
da lide. Outras vezes serve a ação com o fim de que se exerça, como quando concede prazos, aceita
testemunhas e provas e em tudo o que fizer depois da contestação da lide até à sentença definitiva.
Outras vezes serve a ação com o fim de lhe por fim, e isto de três formas, ou a partir (ex) da finalidade
(natureza) da ação, como quando condena nos juros, frutos e interesses nos juízos de boa-fé. Ou em
vista da (propter) da finalidade da ação por algum seu acidente externo, como nos juízos arbitrários, ou
em virtude da natureza do juízo, ou da instância, não atendendo a de que ação se trata, como na
condenação nas despesas […] Por vezes, o ofício do juiz é adversário, pois não serve a ação, mas
antes se lhe opõe […] e isto pode acontecer de duas maneiras. Primeiro quando o juiz propõe algo em
vez da exceção […] ou quando serve a exceção interposta” (Bártolo, Opera […] omnia. Dig Vet, ad 1,1
De iur. omnium iuD.lex prima, n. 12 (p. 46), Venetiis, 1590 (http://books.google.com.br/books?id=E-QbpiN8k-
oC&printsec=frontcover&hl=pt-PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false).
728 Cf. a definição bartolina de iurisdictio: “Iurisdictio in genere sumpta [est] potestas de publico

intoducat, cum necessitate iuris dicendi, & equitatem statuendae … Et dicitur iurisdictio a iuris, & ditio,
quod est potestas […], sic dicitur iurisdictio quasi iuris potestas” (Bártolo, Opera […] omnia. Dig Vet, ad
1,2, Rubr: Arbor iurisdictionum, pg. 44 v, Venetiis, 1590 (http://books.google.com.br/books?id=E-QbpiN8k-
oC&printsec=frontcover&hl=pt-PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false). Cf. antes § 58.
729 “Imperium, est iurisdictio, quae officio iudiciis nobili exercetur, et ponitur in deffinitione

iurisdictione pro genere, & verba officium nobili, ponuntur ad differentiam iurisdictione simplicis, quae
exercetur officio iudicis mercenario … Et dicitur imperium, quia ex imperio, authoritate iudicis procedit,

173
As jurisdições e o direito.
para além de poderes jurisdicionais simples, vinculados aos interesses das partes, poderes
de iniciativa, os que gozavam do poder de império. O modelo doutrinal era o do juiz ordinário.
Em contrapartida, oficiais mercenários eram os que não tinham esse poder de mandar, de
emitir autonomamente comando, mas apenas uma “jurisdição voluntária”, pois o seu poder
jurisdicional estava dependente da vontade (e interesses das partes). O seu modelo típico
era o do tabelião ou notário.
§ 551. Já se vê que este contexto linguístico e conceitual tinha implicações na
construção dogmática do ofício. Aqueles ofícios em que preponderassem as atribuições que
integravam a “função nobre”, visando o interesse público, eram regulados como “honras”,
cuja dignidade excluía qualquer exercício mercenário, bem como o seu tratamento como
bens patrimoniais730. Pelo contrário, nos ofícios em que predominassem as atribuições
mercenárias, ministeriais, a função (oficium) estava separada da nobreza, da honra (honor).
Por isso, estes ofícios aproximavam-se das profissões que serviam interesses particulares e
que, por isso, deviam ser remunerados pelos que a eles recorressem. Isto pode explicar bem
a assimilação de certos ofícios a um bem patrimonial (in patrimonio)731, com a consequente
alienabilidade, penhorabilidade e transmissibilidade na herança do titular. Por vezes, a lógica
da tradição textual ia tão longe que contradizia as práticas sociais. Um exemplo disso foi a
suspeita de indignidade que impendia sobre o ofício de tabelião, por causa da aproximação
que a Glosa fazia entre o tabelionado e a qualidade de servo ou escravo. Na época
moderna, porém, o ofício estava socialmente prestigiado e era muito bem remunerado. Daí
que a doutrina fosse enfática em repudiar essa desqualificação, opondo à lógica dos textos a
nova lógica social: “O ofício de tabelião público, segundo o direito comum, é vil, e abjeto, pois
o tabelião é chamado de escravo público [na glosa] […] Não escusa de encargos pessoais.
Hoje, em toda a nossa Hispânia, o ofício do tabelionado é reputado como nobre, e todos os
que exercem tal ofício vivem à maneira da nobreza e são autorizados por leis régias a andar
com armas e cavalos, como os cavaleiros”732.
§ 552. Na doutrina jurídica da época moderna, nota-se o progressivo alargamento do
caráter nobre dos ofícios – que, em rigor, só existia para os oficiais que gozassem de
atribuições que cabiam no “ofício nobre” – a todos os ofícios. Os oficiais, na verdade, faziam
parte, até certo ponto, do universo social dos jurisconsultos. Eram, uns e outros, gente que
comunicava entre si no âmbito do mundo da comunicação letrada e que reciprocamente se
consideravam como segmentos da sanior et honoratior pars reipublicae. Embora as

et non ex aliquo iure, quod resideat apud partem” (O imnpério é a jurisdição que se exerce pelo ofício
noibre do juiz, sendo jurisdição o elemento genérico da definição e as palavras “do ofício nobre” a
diferença específica que o distingue da simples jurisdição, que é exercida pelo ofício mercenário […] E
diz-se império, pois a autoridade do juiz deriva do império e não de algum direito que resida nas partes”
(Bártolo, Opera […] omnia. Dig Vet, ad 1, 2, Rubr: Arbor iurisdictionum, b., p. 44 v, Venetiis, 1590
(http://books.google.com.br/books?id=E-QbpiN8k-oC&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false).
730 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen […], pt. 1, liv. 1, d. 2, ns. 121 ss. (maxime, n. 130, onde

se cita uma constituição papal de 1571, que estabelece a distinção com nitidez).
731 “Officia publica postquam sunt acquisita censetur in bonis, et veniunt sub appelatione illorum”

(os ofícios públicos, depois de adquiridos, são tidos como fazendo parte dos bens e entram no
conteúdo desta designação”), Álvaro Valasco, Praxis partitionum […], c. 13, n. 69.
732 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Officium”, n. 50, citando Ord. fil.,1,57 e as Siete

Partidas, 3, 19, 14.

174
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
distinções entre os vários agentes da cultura letrada estivessem sempre presentes, os
juristas tendiam a dignificar os oficiais, sendo também exigentes nas qualidades que os
deviam caracterizar733.
2.6.2 Consequências normativas da natureza dos ofícios.
§ 553. O ofício era uma honra porque participava da tarefa de governo da república
como atividade de estabelecimento/restabelecimento da ordem (honesta publica vita). E os
agentes de governo constituíam uma elite social que ainda se reforçava pelo desempenho
desta tarefa de estabelecer os equilíbrios naturais da sociedade política (uma administração
honorária, Honorationensverwaltung). Os ofícios exigiam nobreza natural, mas o seu
exercício reforçava essa nobreza734.
§ 554. Desde logo, consistindo em honras, os ofícios não deviam ser adquiridos por um
preço, ou procurados gananciosamente, mas apenas exercidos por quem comprovadamente
tivesse uma vida digna (“officium est negandis petenti, et dandum fugienti, si est dignus” 735.
§ 555. A exigência de dignidade explica que se entendesse haver uma certa
proximidade entre o ofício e a concessão feudal736. Ou, pelo menos, que nos ofícios não
pudessem ser metidas pessoas vis – como os trabalhadores manuais (mechanici)737 -,
hereges e recém-batizados (neophiti) ou pessoas de sangue impuro, como os cristão novos
(iudaei, iudaeiconversi)738, bem como aqueles que tivessem pendente acusação de crime, ou
tivessem sido condenados por isso739. Ou os estrangeiros (forenses), já que não pertenciam
àquela república (princípio do indigenato)740.
§ 556. Este requisito de dignidade comprometia a disponibilidade do ofício pelo seu
titular e, por isso, limitava a patrimonialização dos cargos, pois apontava para que os ofícios
fossem sempre concedidos intuitu personae e apenas transmissíveis sob condição de que
sub-rogante tivesse as mesmas qualidades do que o sub-rogado, requisito que só podia ser
avaliado por quem concedesse o ofício741.
§ 557. Não raramente aparecia a questão do equilíbrio entre a dignidade (o mérito
social) e as particulares competências exigidas pelo cargo (o mérito profissional). Neste

733 Sobre as proximidades entre juristas e oficiais, v. António Manuel Hespanha, As vésperas […],
cit., Cf. 3, ps. 498 ss..
734 Cf., sintetizando, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], t. 9, ad. Ord. 2, 33, riubr., gl. 14,

ns. 277/278; Nicolau Coelho LANDIM, De SYNDICATU […], C. 10, N. 50; João de Carvalho, Novus et
methodicus tractatus de una, et altera quarta legitima falcidia […], 1, n. 362.
735 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Officium”, n. 4 (o ofício deve ser negado ao que
o pede e ser dado ao que foge dele, se for digno).
736 “Valet argumentum de officio ad feudum e contra” (Domingos Antunes Portugal, Tractatus de

donationibus […], cit., liv. 2, c. 7, n. 7).


737 Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., v. “Officialis”, n. 1344.

738 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Officium”, n. 51. Apoia-se no Cân. 63 do 4º

Concílio de Toledo (663 d.C.).


739 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Officium”, n. 37.

740 “Forenses non vocantur ad gobernandam rempublicam”, decide Álvaro Valasco, Decisiones

[...], cit., cons. 8, n. 19. Melchior Febo, Decisiones [...], cit. discute a regularidade da concessão de um
ofício a um francês (Melchior Febo, Decisiones […], dec. 28, per totam).
741 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Officium”, ns. 29/30.

175
As jurisdições e o direito.
capítulo das qualificações pessoais, exigia-se, como mínimo, a maioridade (de 25 anos) e a
suficiência de juízo e de informação742. Acontece, porém, que se considerava que certos
cargos exigiam particulares aptidões. Tal seria o caso dos ofícios de justiça real (“lugares de
letras”: juízes de fora, corregedores, desembargadores), para os quais se requeriam estudos
universitários e exame de entrada na carreira e prática do foro743. Mas mesmo nestes casos,
a dignidade familiar não deixava de confluir com o mérito, conferindo preferência em
igualdade de apuro técnico. Em Portugal, apesar de se terem instituído exames de mérito
para aceder às carreiras da justiça letrada, os filhos dos Desembargadores costumavam ser
providos automaticamente nos lugares de letras, desde que tivessem, estudos744. Assim, em
1654, o conhecido desembargador Diogo Marchão Themudo pedia ao Desembargo do Paco
que despachasse o seu filho como corregedor para uma comarca do primeiro banco, por ser
esse o costume745. E Lourenço Correia de Lacerda pedia para um filho, logo que perfizesse
12 anos, um lugar extravagante de desembargador do Porto, em atenção aos serviços de
seu pai746. Em 1660 (dec. 20.4) este provimento extraordinário dos filhos era considerado
como excecional e dependente de graça especial do rei. Mas não era apenas no caso dos
filhos de Desembargadores que o provimento em lugares de letras se fazia sem exame. Isto
também acontecia com certos lentes das Faculdades de Leis e Cânones e com os ministros
do Santo Oficio747. Enfim, diferentes sinais de uma mesma conceção estatutária da carreira
jurídica para que outros autores já têm chamado a atenção748.
§ 558. No caso dos tabeliães exigia-se um exame de suficiência749. Também os
advogados estavam sujeitos a diversos tipos de controlo de competência750.

742 Álvaro Valasco coloca a suficiência de conhecimentos como um dever mais do provido do que

do concedente, entendendo que pecava aquele que não tivesse conhecimentos suficientes para o
ofício que pediu, (Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 9, n. 30.
743 Neste caso, a aptidão técnica era controlada não apenas pelos exames universitários (cf. L.

13.1.1539
(Duarte Nunes de Leão, Collecção […], ed. 1796, pg. 580; Ord. fil., 1,35, 2; Est. univ., III, 19, pr.), mas
também por um
exame perante o Desembargo do Paço (“leituras de bacharéis”: depois de 1541, data dos primeiros
exames conhecidos; sobre estes exames, cf. Nuno Camarinhas, Juízes e administração da justiça […],
cit.).
744 Cfr. Fernanda Olival, Ordens Militares e o Estado Moderno […], cit. (ed. polic. de 1988, 1, 140).

745 Arq. Nacional da Torre do Tombo, Desembargo do Palco, Repartição da Justiça, Livro de

registo de consultas, livro 32 (16541656), fl. 15.


746 ibid., fl 16; v. outro caso a fls. 114.

747 Cfr. Decrs. de 20.4.1663 (JJAS, 86) e 10.6.1666 (JJAS, 119).

748 Cfr., por todos, Filippo Ranieri, “De corpo a profissão”, cit.

749 Cf. Reg. do Desembargo do Paço, ns. 6, 56, 59, 64, 67, 71; Ord. fil., 1,1,44; 1,78.

750 A partir das Ordenações manuelinas, os advogados letrados perante as Casa do Cível e Casa

da Suplicação deviam submeter-se a exame (Ord. man., 1,38,pr.: “muito proveitosa cousa he aver hi
procuradores letrados, e entendidos, que procurem os feitos, que se tratarem assi em nossa corte,
como em a nossa Casa do Cível, e nas cidades, e villas de nosso Reino”, 1, 38, pr.); o mesmo
acontecia quanto aos advogados não Ietrados que exercessem perante outros tribunais (ibid., ). Uma
lei de 13.1.1539, Duarte Nunes de Leão, Collecção […], cit., pg. 796) fixava a exigência de estudos em
8 anos de estudos jurídicos. Trinta anos mais tarde, em 1576 (lei de 7.5, ibid., pg. 220), voltou-se atrás,
abrindo provisoriamente a advocacia a não letrados que soubessem ler e escrever. Mas as

176
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 559. A exigência da honra fazia com que os ofícios se perdessem por infâmia751.
§ 560. Talvez fosse esta ideia de que o exercício dos ofícios pressuponha e reforçava
uma certa dignidade natural que justificasse a reivindicação, apoiada pelo direito doutrinal
dos ofícios, quanto aos direitos de sucessão no ofício dos filhos de um oficial que tivesse
servido dignamente. Também aqui se manifestaria aquela capacidade natural dos
progenitores de propagar na descendência as suas qualidades. É certo que o princípio foi
inicialmente formulado para os filhos de oficiais que tivessem morrido na guerra, a título de
remuneração póstuma dos seus serviços752. E, quando foi alargado a outros oficiais, o
fundamento mais invocado do direito dos filhos era este de que a concessão do ofício aos
descendentes se justificava pelo facto de estes serem credores mais fortes do ato de graça
do rei. Mas este especial crédito fundava-se numa continuidade generativa entre pais e
filhos, que se manifestava também noutros pontos do direito.
§ 561. Esta conceção honorária dos ofícios é ainda consistente com outros pontos da
dogmática jurídica da época.
2.6.3 A capacidade para exercer ofícios públicos.
§ 562. Como funções de natureza pública753, os ofícios eram de exercício obrigatório. O
direito dispunha acerca das causas de escusa do dever de exercer um ofício, sendo bastante
restritivo quanto a isto: a falta de idade, a doença, a pobreza e o ingresso em ordem religiosa
escusavam, tal como ter mais de cinco filhos ou um filho morto na guerra754. Também se
podia estar escuso por privilegio (ou por costume prescrito de estar escuso), como acontecia
com os rendeiros das rendas reais755. Estas escusas podiam não valer se não houvesse
gente para desempenhar os ofícios756. Pela mesma razão da imperatividade, não se podia
abandonar o ofício sob pena de se servir no dobro e de os bens do revel responderem pelo
salário do substituto757.
§ 563. Outra consequência do caráter público dos ofícios era a sua incompatibilidade
com o desempenho de funções que pudessem conflituar com o interesse público. Assim, os

Ordenações filipinas exigirão de novo os oito anos de estudos para advogar perante os tribunais
superiores, além de uma "oposição" perante o Chanceler da Casa da Suplicação, se se queria advogar
perante este tribunal (Ord. fil.,1,48 ss.). Pelo contrário, para exercer perante a Casa do Cível, bastava -
pelo menos de 1603 a 1722 (assento de 27.4) - a graduação universitária e a admissão, sem exame,
pelo Governador da Casa. Para o resto do reino, a advocacia estava aberta livremente aos bacharéis e,
dependendo de um exame perante o Desembargo do Paço, a todas as pessoas "aptas segundo o
direito comum e real" (v. Ord. fil., 1, 48,4). Em contrapartida, os procuradores do número que actuavam
perante os tribunais dos concelhos mais pequenos, que tivessem o privilégio de livre acesso ao
patrocínio judicial (Ord. fil., 1,48,4), não estavam sujeitos a nenhum exame (Manuel Álvares Pegas,
Commentaria […], cit., tom. 2, gl. 130; tom. 4, ad Ord. fil.,1, 48, gl. 6 n. I; tom. 7, ad Reg. Sen. Pal., c.
45, n. 1; tom. 14, ad 1,48, n. 5. Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas […], pg. 512 n. 96.
751 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Officium”, n. 36.

752 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Officium”, n. 40.

753 Mesmo se algumas das suas atribuições visam também a satisfação de utilidades particulares,

como é o caso do ofício de tutor ou das atribuições mercenárias dos oficiais.


754Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., v. “Officialis”, n. 1344.

755Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., v. “Officialis”, n. 1344.

756Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., v. “Officialis”, n. 1344.

757 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Officium”, n. 26.

177
As jurisdições e o direito.
oficiais da república por norma não podiam contratar, por si ou interposta pessoa, pedir
emprestado ou emprestar, bem como casar, no lugar em que fossem oficiais, com pessoas
sujeitas à sua jurisdição, sob pena de nulidade dos atos praticados em contravenção e perda
do objeto do negócio (Ord. fil.,4,15,1). Estas interdições prolongavam-se para além do termo
do seu mandato. Apenas se excetuavam os negócios de extrema necessidade (como alugar
casa ou comprar alimentos), celebrados publicamente e de boa-fé. Do mesmo modo, não
podiam estar em juízo no lugar em que exerciam758. António Cardoso do Amaral refere que
esta era a prática em todo o reino759.
2.6.4 O exercício dos ofícios. Deveres deontológicos e retribuição.
§ 564. O desempenho dos ofícios regulava-se por normas que arrancavam da ideia de
que eles constituíam o exercício de funções devidas para com a coisa pública ou para com
os seus responsáveis máximos.
§ 565. Certos ofícios públicos, os exercidos sem carácter profissional e quotidiano,
participavam do imaginário do serviço religioso, combinado com o imaginário do serviço
feudal. O seu desempenho correspondia, em geral, a serviços públicos devidos, pelo que
deviam ser desempenhados gratuitamente. Exercê-los do valor e de um nobre espírito de
serviço; a sua remuneração estava no reconhecimento público ou na honra que eles
conferiam. Era o que se passava com os cargos de governo e justiça local, como vereador
ou juiz ordinário. O seu exercício podia gerar vantagens, mesmo patrimoniais e, por isso,
para certos fins (designadamente fiscais, como o pagamento das meias anatas ou, mais
tarde, dos direitos de encarte), o seu significado patrimonial podia ser avaliado760. Porém,
uma outra remuneração não era estritamente devida, como o era o salário dos ofícios
mercenários, mas antes eventualmente “esperada” da liberalidade do príncipe. Porém,
esperada com tanta força que a expectativa correspondente chegou a chamar-se “ação”,
pois podia dar lugar a um direito acionável em juízo a que correspondia um quase dever do
príncipe a retribuir com mercês os serviços dos beneméritos da república.
§ 566. Outros ofícios públicos, no entanto, escapavam a esta lógica puramente
honorária. Designadamente aqueles que eram desempenhados continuamente, com carácter
profissional, como era o caso dos oficiais ordinários da república. O exemplo mais
caraterísticos é o dos juízes régios (juízes de fora, corregedores). Citando uma decretal de
Gregório IX, Baptista Fragoso pondera que “é justo que recebam o seu pagamento aqueles
que prestam o seu serviço por certo tempo [i.e., com carácter de regularidade,
profissionalmente] [...] De onde os oficiais do reino deverem ter um salário, pois aborrece
desempenhar ofícios laboriosos e cargos da república; e porque o desempenho de uma
função a ninguém deve trazer um dano. De facto, as leis não suportam que os que trabalham
vivam na pobreza ou na ansiedade”761. Porém este pagamento não deveria, em alguns dos
casos - como no dos ofícios de justiça -, ser pago pelas partes, já que o príncipe era
obrigado a prestar gratuitamente a justiça. Por isso, o estipendio deveria estar a cargo do

758 A não ser para responderem por furto, coisa “fétida e abominável nos oficiais e pessoas
honradas” (António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Officium”, n. 15.
759 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Officium”, ns. 5 a 9 e 14.

760 Sobre a avaliação da honra dos oficiais honorários dos concelhos, v. António Manuel

Hespanha, Vésperas […], cit., 5.1.


761 João Baptista Fragoso, Regimen […], t. 1, pg. 386, n. 55.

178
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
príncipe. Porém, este pagamento regular do salário não isentava o príncipe de outros
deveres de remuneração em relação a estes oficiais. O facto que estes serviam com o
salário costumado, ou mesmo o facto de terem pedido os ofícios, não anulava a componente
liberal dos seus serviços - que consistia na sua disponibilidade para servir a república.
Assim, além dos salários estritamente devidos, o príncipe devia remunerar com mercês
justas os oficiais que servissem bem762.
§ 567. A gratuidade da justiça impedia que os juízes recebessem ofertas das partes,
pois os seus serviços eram prestados à republica e não a estas. Se estas pagassem algo,
como que privatizariam a função judicial. E o juiz venderia a sua missão, fazendo como que
sua uma coisa que era de todos (facere litem suam). Esta “venda” de função pública estaria
muito próxima da simonia, ou venda de funções sagradas. O princípio da gratuidade da
prestação da justiça em relação às partes não excluía, no entanto, a possibilidade de receber
algo diretamente das mãos das partes, desde que não houvesse nem pacto de
favorecimento nem escândalo público763.
§ 568. O facto de estes ofícios públicos serem como que um sacerdócio cívico fazia
com que se fizessem elevadas exigências deontológicas ao seu exercício, ratificadas pelo
direito positivo: sufficiens scientia764, timor Dei, pureza de mente e mãos765.
§ 569. Os oficiais respondiam – em princípio, perante o corregedor da corte, para quem
o corregedor da comarca devia mandar os processos766 - pelos seus delitos de ofício, por
dolo, negligencia, imperícia ou idênticas falhas de outrem em quem tivessem sub-rogado,
sendo obrigados pelos danos767, incorrendo, eventualmente, em responsabilidade penal,
como no caso de se apropriarem de coisa pública ou dos seus administrados768. Este modelo
de responsabilidade – que era semelhante ao dos artífices que não fossem escolhidos pelas
partes, como os agrimensores - aplicava-se também ao juiz que julgasse mal por abuso de
poder (facere litem suam), imprudência769 ou imperícia. A negligência grave ou repetida
(contumácia) justificava a remoção do ofício770.
§ 570. A honestidade – imparcialidade e “limpeza de mãos” - era também um dever
essencial dos oficiais, pelo que a parcialidade e a corrupção (“venda da justiça”, barataria)
constituíam crimes (e pecados771) ligados ao exercício dos ofícios. As Ordenações previam
vários crimes de oficiais, todos eles relacionados com a improbidade (Ord. fil., 5,71: Dos

762 João Baptista Fragoso, Regimen […], t. 1, pg. 648, n. 196.


763 João Baptista Fragoso, Regimen […], t. 1, pg. 385, n. 56; pg. 391, n. 80.
764 “Se não tiver ciência, a menos que tenha assessores peritos que consulte, faz sua a lide e, se

julgar mal, fica obrigado a ressarcir as partes lesadas" (ibid., ).


765 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen […], t. 1, pg. 42, ns. 144 ss.

766 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., t. 2, dec. 209, n. 1;Bento Pereira, Promptuarium [...],

cit., v. “Officialis”, 1340 ss..


767 Textos legais: Ord. fil., 1,99 e 100. Doutrina: António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v.

“Officium”, n. 20.
768 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Officium”, n. 38.

769 Por exemplo, seguir uma opinião diferente da comum.

770 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Officium”, n. 25.

771 Cf. Os manuais de confessores costumam conter um capítulo dedicado aos pecados dos

oficiais públicos.

179
As jurisdições e o direito.
Oficiais do Rei, que recebem serviços, ou peitas, e das partes, que lhas dão, ou prometem;
Ord. fil., 5,72: Da pena, que haverão os Oficiais, que levam mais do conteúdo do seu
Regimento, e que os que não tiverem Regimento o peçam; Ord. fil., 5,73: Dos Almoxarifes,
Rendeiros e Jurados, que fazem avença) ou com a parcialidade (Ord. fil., 5,74: Dos Oficiais
do Rei, que lhe furtam, ou deixam perder sua Fazenda por malícia).
§ 571. Crimes eram, ainda, a cobiça e o abuso dos salários, exigindo das partes
estipêndios (emolumentos, próis e percalços) superiores aos que eram contrapartidas
adequadas das funções exercidas e que, por isso, estavam fixados na lei772.
§ 572. A supervisão da atividade dos oficiais de justiça e o apuramento dos seus erros
de ofício era feita durante as visitas regulares dos corregedores às terras onde exerciam os
seus ofícios ou, no termo das suas comissões, pelas residências tomadas pelos mesmos
corregedores, nos termos dos tits. 1, 58 e 1, 60 da Ordenações773.
§ 573. Em alguns ofícios, o desempenho de funções públicas (merum imperium)
combinava-se com a satisfação de utilidades privadas (mixtum imperium). Era o caso dos
ofícios de notário, que satisfaziam principalmente necessidades meramente particulares,
ainda que frequentemente relacionadas com assuntos de justiça, sendo pagos, não por
salários do rei ou das câmaras, mas por emolumentos a cargo das partes774. Por isso, o
serviço de escrivães e notários era fortemente atraído pelo imaginário dos serviços
mercenários Uma espécie de contrato de trabalho (locatio conductio operarum) visando a
escrita de documentos, que só se distinguia pelo facto de que produzia certos efeitos de
especial dignidade e autoridade pública, como a fé pública dos documentos que redigissem.
O carácter público destas funções importava certas consequências. Os notários não podiam
recusar os seus serviços a ninguém775; não podiam violar as regras da verdade; não podiam
exigir mais salário que os estipulados na lei; não deviam aceitar ofertas das partes776; não
podia ser infame777. Mas a semelhança com os ofícios mercenários levava a que ofícios e
réditos fossem considerados como privados para uma serie importante de efeitos. Assim,
uns e outros integravam-se no património do titular e, consequentemente, podiam ser
vendidos, arrendados (dados em “serventia”), herdados pelos filhos. As proibições que, no
direito português, existiam quanto a isto (Ord. fil., 1, 96) eram de direito positivo e podiam ser
dispensadas pelo rei.

772 Cf., v.g., Ord. fil., 1,92 ss..


773 Comentário doutrinal: Nicolau Coelho Landim, Nova et scientifica tractatio … De syndiucatu
iudicum & aliorum officialium justitiae […], cit.; João Pinto Ribeiro, Obras varias sobre varios casos con
tres relações […], 89 ss.; Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], tomo 4, ad Ord. 1, 60; Manuel
Lopes Ferreira, Direcção para os syndicantes […], cit.. Sobre a alegada complacência deste controle
corporativo dos oficiais, v. António Manuel Hepanha, As vésperas do Leviathan […], cit., 529 ss.
774 Sobre estes emolumentos, António Manuel Hespanha, Vésperas […], cit., II.5.1. Saliento neste

estudo que os rendimentos emolumentares dos oficiais eram muito superiores (cerca do dobro) dos
rendimentos salariais, o que configura o oficiliato, sobretudo o local, como uma profissão eminente
“liberal”, pouco dependente das prestações económicas da coroa (v. ibid., II.5.5).
775 João Baptista Fragoso, Regimen […],t. 1, pg. 662, ns. 271 ss..

776 João Baptista Fragoso, Regimen […],t. 1, pg. 662, n. 290.

777 João Baptista Fragoso, Regimen […],t. 1, pg. 662, ns. 294 s..

180
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2.6.5 Regime dos ofícios.
§ 574. Percorrer-se-ão, de seguida, alguns dos temas decisivos para a caracterização
do regime jurídico dos ofícios: nomeadamente, titularidade do poder de criar e de dar ofícios,
patrimonialização dos ofícios, autonomia jurisdicional e emergência e ascensão dos ofícios
comissariais778.
2.6.5.1 Criação e dada dos ofícios.
§ 575. Embora se entendesse que os verdadeiros ofícios da república estavam
estabelecidos pela natureza, a doutrina moderna não deixava de conferir ao príncipe o usual
papel de ser o porta-voz dessa natureza, com o correspondente poder exclusivo de criar
ofícios. Desde as fontes romanas que esteve sempre presente na dogmática jurídica
ocidental a ideia de que o poder dos oficiais decorria de um poder conferido por autoridade
da república, tendo em vista o interesse da comunidade (iurisdictio est potestas de publico
introducta)779. Como figuração (repraesentans) da comunidade, o príncipe incorporava em si
esse cuidado pelo bem comum e, consequentemente, assumia o poder de criar e prover os
ofícios necessários à consecução do bem da república, uma vez que o seu ofício não era o
de exercer pessoalmente todos esses ofícios, mas antes o de os prover em pessoas dignas
para isso780. Mesmo quanto aos ofícios que ele, por si, pudesse desempenhar, o príncipe
podia confiar pontualmente o seu exercício a delegados, sem criar um ofício ordinário
corresponde ao exercício permanente aduelas funções. A figura conceitual usada para
exprimir isto era a de iurisdictio delegata (ou mandata) que – por oposição à iurisdictio
ordinaria concedida para a generalidade das causas – seria concedida para uma causa
individualizada e concreta.
§ 576. Esta prerrogativa régia cessava quanto aos ofícios de algum corpo particular
dentro do reino, como um concelho ou uma universidade, caso em que competia aos órgãos
de governo dessas comunidades a criação e provimento dos seus ofícios. Os ofícios dos
concelhos – que eram os mais importantes ofícios não régios – eram criados e providos
pelas câmaras, no âmbito da sua jurisdição própria. Por isso é que a escolha de oficiais das
câmaras pelo rei ou seus magistrados delegados, como os corregedores, podia ser anulada
a pedido de qualquer vizinho781. Jorge de Cabedo trata do provimento dos ofícios concelhios
numa decisão famosa782, em que se percebe a tensão entre uma posição regalista e outra
corporativista, bem como os argumentos que podiam ser mobilizados num e no outro
sentido. Cabedo não pode fugir ao princípio de que a dada dos ofícios pertence a quem tiver
a jurisdição omnímoda ou ordinária no território correspondente, o que legitimaria a dada dos
ofícios dos concelhos pelas câmaras. Mas a isto opõe um expediente retórico geral: o de que
o rei, como lex animata, pode subverter a justiça ordinária e intervir livremente na escolha

778 Sobre o tema, para Portugal e seu império, v. Roberta Giannubilo Stumpf, “Os provimentos de

ofícios: a questão da propriedade no Antigo Regime português”, cit..


779 Cf. antes § 79.

780 Ao escolher os seus oficiais, o príncipe incorria numa responsabilidade in eligendo, pelo que
ficava obrigado pelos atos dos oficiais (Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., v. “Officialis”, n. 1340).
781 Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., t. 1, dec. 112, n.1 1;Bento Pereira, Promptuarium [...],

cit., v. “Officialis”, n. 1343. Sobre a eleição dos ofícios, ibid., t. 2, dec. 84; Manuel Barbosa, Remissiones
doctorum […], ad 1,67, 1, 9-10.
782 Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., t. 2, dec. 29 (“Se o rei pode dar ofícios da câmara de

alguma cidade ou concelho em que os oficiais dele pretendem que a dada dos ofícios lhes pertence”).

181
As jurisdições e o direito.
dos ofícios locais, como se todos os ofícios estivessem na sua disposição783. Daí que se
tendesse para uma posição indecisa, que repartia pelo rei e pelos concelhos, o poder de
criar magistrados (bem como a jurisdição ordinária): "In Lusitania non esse totam civile
potestatem, & temporalem iurisdictionem solum penes in principi, cum civitates, oppida, &
populi constituendi sibi judices ordinarios ius habent, & creandi magistratus qui ius litigantibus
reddere valeant"784.
§ 577. Na doutrina portuguesa era, portanto, ponto assente que o direito de criar e de
dar ofícios do reino785 era uma prerrogativa real, bem estabelecida no título 2,26 das
Ordenações (“Dos direitos reais”: “[Direito real he] poder para fazer officiaes de Justiça, assi
como são Corregedores, Ouvidores, Juizes, Meirinhos, Alcaides, Tabelliães, Scrivães e
quaisquer outros Officiaes deputados para administrar a Justiça”] e geralmente admitido pela
doutrina786.
§ 578. Este parágrafo só fala de ofícios de justiça, possivelmente porque, quanto aos
outros (militares, da fazenda e do fisco, dos bens reguengos do rei, da corte787), era
indiscutido que a sua criação e provimento pertenciam ao rei, como pai ou ecónomo das
suas coisas, sendo muito raro que tais poderes estivessem doados788.
§ 579. Por outro lado, “fazer officiaes” tanto se pode referir à criação do cargo, como ao
seu provimento. Aqui, parece que é a este último aspeto que a Ordenação se refere, o que
se entende pois a natureza régia da criação dos próprios ofícios (da coroa) era uma opinião
incontroversa, como se viu. Quanto ao provimento, ele constava de três etapas789, que
podiam competir a entidades diferentes. Havia, por um lado, a proposta ou apresentação, da
competência do apresentante; depois, a eleição, escolha ou dada, da competência do titular
do poder de designar o provido, ou livre ou por escolha entre os propostos ou apresentados;
finalmente, a confirmação (ou apuramento) da escolha pela entidade que eventualmente
tivesse o poder de supervisionar o processo de provimento790. Uma situação típica era a de
haver apresentação dos ofícios (senhoriais: ouvidores e seus auxiliares) pelo senhor da terra
(quando tivesse doação para isso) e confirmação pela coroa, por meio do corregedor ou do
Desembargo do Paço. Muito mais raramente, os senhores podiam ter doação para a dada
definitiva dos seus ofícios e dos ofícios das suas terras791. Típica, também, era a

783 Cf. n. 4 da decisão. Como a decisão versava sobre o provimento dos escrivães das câmaras,

Cabedo argumenta ainda com o facto de os tabeliães e escrivães das justiças serem um ofício régio,
pelo que os das câmaras também o seriam.
784 Manuel Alvares Pegas, Commentaria [...], cit., t. 5, ad Ord. fil.,2,45,13, gl. 2, n. 23.

785 Mas não de outros corpos políticos “com jurisdição separada”, como concelhos, ordens

militares, universidade, Igreja, etc..


786 “A concessão de ofícios e dignidades está reservada à majestade do rei”, escreve Melchior

Febo, Decisiones […], cit., dec. 28, n. 5.


787 Cf. tipologia e ofícios de cada tipo em António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., ps.

160 ss..
788 V. Ord. fil., 2,45,31; 45,15, sobre a excecionalidade da doação dos ofícios da fazenda e fiscais

e dos militares e de olícia (meirinhos, alcaides).


789 Detalhes, em António Manuel Hespanha, As vésperas do Leviathan […], cit., pg. 398 ss..

790 A confirmação régia da dada do ofício equivalia à dada pelo rei, escrevia Miguel Reinoso,

Observationes […], obs. 8, n. 22.


791 Cf. exemplos, para Portugal continental, em António Manuel Hespanha, As vésperas do

182
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
apresentação (dos ofícios municipais) pertencer às câmaras, mas os senhores ou o rei terem
a prerrogativa de os confirmar. Embora a doação das prerrogativas da coroa requeressem
doação expressa, quer as câmaras, quer os senhores invocavam frequentemente usos
antigos no sentido de escapar ao controlo final do rei, arrogando-se o direito de dada
definitiva dos seus cargos. Em contrapartida, o rei podia invocar o costume em que estava
de prover ofícios que, em princípio, competiriam às câmaras. A decisão sobre este ponto que
Cabedo inclui nas suas Decisiones792 é significativa da orientação que prevalecia na doutrina
nos finais do séc. XVI: “Sentenciou-se contra a Câmara da villa de Jermelo sobre os officios
de escrivão dos órfãos, e da Almotaçaria, de que a câmara pretendia ter a apresentação, e
elRey só a confirmação; e provendo elRey estes officios a Gaspar da Silva sem
apresentação da câmara, ela lhe embargou a posse, a qual defendeu o procurador da coroa,
e se deu sentença a favor delRey, resevado o direito à Câmara para requerer em outro feito
a propriedade”. A decisão hesita. Reconhece-se ao rei a posse do provimento (neste caso,
apresentação e confirmação) dos ofícios793), pelo este é mantido pelo direito uti possidetis,
mas não se decide sobre a questão substancial da competência para prover o ofício, que fica
para outro pleito.
§ 580. O rei podia dar ofícios vagos ou cartas de expectativas para os ofícios quando
vagassem, mesmo usando fórmulas indeterminadas, como a doação do primeiro ofício que
vagasse794.
§ 581. Nos vice-reinados e governos da Índia e do Brasil, estas questões da criação e
provimento de ofícios estava contemplada nos regimentos de governo. Os primeiros
regimentos dos governadores gerais do Brasil 795 proibiam a criação de novos ofícios pelos
governadores, de acordo com a regra de que se tratava de uma regalia796. Porém, para os
ofícios já existentes, os governadores podiam nomear serventuários, embora não pudessem
provê-los a título definitivo. Em causa estava não apenas o monopólio régio da criação de
ofícios, mas ainda a garantia do direito dos herdeiros do oficial falecido797. Jorge de Cabedo,
que publica o segundo tomo das suas Decisiones em 1604, indicia que, pouco antes (das
Ordenações filipinas ?), teria havido uma restrição dos poderes de criação ou provimento de
oficiais pelos governadores do ultramar, ao opinar que “os vice-reis e governadores das
províncias têm a faculdade de prover ofícios como antes, de contrário far-se-lhes-ia grande

Leviathan […], cit., pg. 398, n. 201.


792 Decisiones […], cit., pt. 2, aresto 41.

793 Que, de resto, não tinha ambos a natureza de ofícios da câmara, pois a escrivaninha dos

órfãos seria real.


794 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., v. “Officium”, n. 1352; Álvaro Valasco, Decisiones

[...], cit., cons. 72.


795 Cf., v.g., reg. Francisco Geraldes, 30.5.1588, n. 45, Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes

[...], cit., 1, 275; reg. Gaspar de Sousa, 6.10.1612, n. 44, Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes [...],
cit., 1, 431; reg. Roque da Costa Barreto, 23.1.1677, Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes [...], cit., 2,
753. Em contrapartida, o primeiro “capitão donatário” tinha o direito de criar e prover ofícios: carta de
doação de Duarte, 25.9.1534, Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes [...], cit., 1, 133.
796 Por isso, os ofícios de justiça e do fisco concedidos pelos vice-reis ou governadores vagavam

no fim do mandato do concedente, ao contrário do que acontecia com os ofícios providos pelo rei,
Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit. pt. 2, dec. 21, n. 1. o mesmo acontecia nos ofícios concedidos
pelos Mestres das ordens militares, cf. António da Gama, Decisiones […], cit. Dec. 353, n. 36.
797 Cf. Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes […], cit., n. 43, pg. 430.

183
As jurisdições e o direito.
prejuízo”798. Mas não é possível saber a que se refere799.
§ 582. A prerrogativa de prover ofícios podia ser doada, nos termos também
estabelecidos nas Ordenações, que obrigavam a uma menção expressa a ela na carta de
doação e excluíam a sua aquisição por prescrição, tal qual como acontecia com as restantes
regalias800. Isso acontecia com frequência, nas doações de terras com jurisdição801. Seja
como for, o princípio da natureza real dos ofícios mantinha-se nos planos simbólico e
doutrinal, jogando quer a favor do prestígio dos oficiais, como credores da obediência e
reverência devida ao rei, quer no sentido do príncipe, pois lhe permitia reclamar um poder de
supervisão sobre os ofícios802.
§ 583. Esta pretensão real de dirigir o oficialato era, porém, mais teórica do que prática,
porque a mesma doutrina opunha barreiras decisivas a uma intervenção do rei no exercício
da jurisdição dos oficiais. Por um lado, entendia-se que os oficiais não deveriam cumprir as
ordens reais contrárias aos seus regimentos ou ao direito803. Esta restrição é tudo menos
banal, pois impedia o estabelecimento de uma pirâmide administrativa hierarquizada. Mas a
doutrina entendia ainda que o rei não podia alterar, invocando a oportunidade, o regimento
dos oficiais da coroa, autorizando estes a embargarem ordens régias abusivas. Por fim,
mantinha-se bem vivo na doutrina seiscentista a ideia do caráter odioso da jurisdição
extraordinária (comissões, processo extra ordinem)804, o que reforçava ainda o princípio de
que o rei devia respeitar as atribuições dos oficiais e magistraturas ordinárias e deixar correr
livremente as causas intentadas perante elas. O seguimento de alguns processos que
opuseram oficiais ao rei é suficiente para revelar o grau de independência prática de que
gozavam os titulares de ofícios da coroa no confronto com o paço805. Não é preciso realçar a
importância que isto teve na criação de um poder autónomo dos oficiais. É preciso esperar
pelos meados do séc. XVIII para que este contexto doutrinal e legal comece a mudar num
sentido favorável ao efetivo fortalecimento da disciplina régia sobre os oficiais da coroa806.
2.6.5.2 Extinção e privação de ofícios.
§ 584. Conexa com a questão da criação e provimento dos ofícios está a da

798 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., t. 2, dec. 21, n. 3.


799 Sobre os ofícios nos mundos coloniais, Roberta Stumpf & Chaturvedula (orgs). Cargos e
ofícios nas monarquias ibéricas: provimento, controlo e venalidade (séculos XVII-XVIII). Estudos &
Documentos, volume 14, Centro de História de Além-mar, Lisboa, 2012.
800 Cf. ainda Ord. fil., 2,45, 1; 3; 13; 15; 31 (sobre a concessão desta prerrogativa a senhores de

terras).
801 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas do Leviathan […], cit., ps. 398 ss..

802 Discutia-se se os donatários a quem tivesse sido concedida a dada de ofícios tinham o poder

de dar cartas de esperança e de prover serventias, Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., t. 2, dec. 24,
n. 10.
803 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], t. 3, ad Ord,I, 21, gl. 3, n. 3 ss.; t. 4, ad Ord,1,

63, gl. 2, n. 3; t. 6, ad Ord.., 1, 79, gl. 41.


804 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., t. 2, dec. 13, n. 2 (“iurisdictio ordinaria favenda est”);

António de Sousa de Macedo, Decisiones […], cit., pt. 3, 2, n. 4.


805 Emblemático o processo referido por João Pinto Ribeiro, Tres relações de alguns pontos de

direito, que se offerecerão a … no cargo de juiz de fora em Pinhel, Lisboa, Casa de Sam Roque da
Companhia de Jesus, 1635, “Relação primeira”.
806 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], 1,2,20; CL. 23.11.1770; Alv. 20.5.1774.

184
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
competência para extinguir o ofício ou para remover o oficial.
§ 585. O princípio doutrinal de que o rei era a fonte de toda a jurisdição e de que,
assim, dele era o poder de criar e dar os ofícios importava a consequência de que a ele
também exclusivamente competia extinguir ou tirar os ofícios que antes dera. Esta é a
opinião geralmente defendida, no plano do rigor do direito807.
§ 586. Porém, se prosseguirmos no exame da doutrina, as coisas perdem esta clareza.
Desde logo, a doutrina não era unânime. Ainda no séc. XVI, Aires Pinhel tinha defendido a
opinião de a extinção de ofícios ou a destituição de oficiais não era livre, pois o príncipe não
podia tirar os ofícios dados808. Outros809 preferiam a formulação de que, se a concessão de
um ofício decorria da jurisdição voluntária, a privação dele pertencia já à jurisdição
contenciosa, pois o provido passava a ter direitos ao ofício810, direitos que só podiam ser
violados com justa causa, previamente ouvido o oficial811, mesmo que fosse provido da forma
mais precária (“enquanto for nossa mercê”), pois nem nesse caso podia ser removido do
ofício sem justa causa
§ 587. A opinião de Pinhel não era a opinião comum no séc. XVII. Esta, consagrada
numa decisão de Jorge de Cabedo812, reconhecia ao rei o poder de tirar ofícios perpétuos
(“enquanto for nossa mercê”) ou temporários, embora com duas importantes limitações:
desde que houvesse justa causa para isso e o titular fosse indemnizado813. Este direito
estava, porém, limitado nos casos de ofícios comprados pelos titulares ou naqueles casos
em que a doação do ofício fosse remuneratória de serviços (ob servitia & benemerita),
situações em que o ofício como que se patrimonializava no seu titular. Com todas estas
limitações, a doutrina dominante não era tão diferente da defendida por Aires Pinhel. E, por
isso, a sua opinião continua a ser citada. Paradoxalmente, até a fórmula usual nas cartas de
concessão (“enquanto for nossa mercês”) era por alguns interpretada de forma a aumentar
ainda as garantias do nomeado, pois se entendia que concedia o ofício sem prazo e, logo,
perpetuamente814.
§ 588. Também a ideia de que a concessão de ofício era pessoal, de uma pessoa (o
rei) a outra (aquele oficial), não funcionava plenamente, pois a concessão não caducava com
a morte do rei concedente, como acontecia com as doações régias. Assim, os ofícios reais
não careciam de confirmação “de rei a rei”815.

807 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus, […], cit., liv. 2, c. 13, ns. 111-117;

Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 20; Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t.
7, ad Ord. 1, 99 (por erro, aparece como 1,98), gls. 1 e 2.
808 Aires Pinhel, De rescindenda venditione […], cap. 2, n. 31.

809 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes […], obs. 27, ns. 23 e 24.

810 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 5, n. 35.

811 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., v. “Officum” (quoad officium vocationem et

privationem), n. 1367; Miguel de Reinoso, Observationes […], obs. 8, n. 28.


812 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 20, per totam.

813 A indemnização apenas não exisita no caso de a causa da privação do ofício ser a prática de

erros de ofício, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit.., pt. 2, dec. 20, n. 4.
814“O ofício criado ad beneplacitum [“enquanto me aprouver”] é tido como perpétuo”, sintetiza

Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., v. “Officium”, n. 1348.


815 Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 8, n. 15. Porém, os mestres das ordens

185
As jurisdições e o direito.
§ 589. Depois, sobretudo com base em Ord. fil., 1,99, introduziram-se algumas
exceções ao princípio geral da liberdade real de tirar ofícios. Este não valeria nos casos de
ofícios vendidos ou concedidos ob benemerita e, de qualquer modo, obrigaria a
indemnização, a menos que o ofício fosse tirado por erros do oficial816.
§ 590. Tudo isto combinado provocava uma acentuada estabilidade nos ofícios. Os reis
consideravam seu dever manter neles os oficiais que bem servissem e a doutrina
testemunha haver um costume nesse sentido817.
2.6.5.3 Transmissibilidade dos ofícios por morte do titular.
§ 591. Mais importante do que esta indisponibilidade do ofício em vida era a sua
indisponibilidade por morte do titular.
§ 592. Indisponibilidade, desde logo, pelo próprio titular, que não podia dispor do ofício
em testamento818, pois isso corresponderia a uma usurpação do direito régio de prover os
ofícios. Mas a indisponibilidade que mais interessa, do ponto de vista historiográfico, é a
indisponibilidade por parte do rei.
§ 593. O direito seiscentista reconhecia a transmissibilidade por morte dos ofícios,
situação que impedia uma estrutura do oficialato baseada no favor e arbítrio do rei. Na
origem deste princípio doutrinário de que os reis deviam confirmar os filhos nos ofícios dos
pais que tivessem servido bem está uma consulta de Álvaro Valasco819. Desta consulta
deduziu-se que a regra da hereditariedade dos ofícios já estava bem assente na segunda
metade do séc. XVI: “Não se duvida de que os reis deste reino costumem desde tempo
antigo prover os filhos dos oficiais beneméritos nos ofícios dos pais, antes se tornou quase
numa obrigação e dívida do mesmo rei, como se se dissesse que cometia um ato ilícito
[injuria] se os doasse a outrem, ainda que Bártolo tenha dito outra coisa a propósito de um
assunto diferente”820. Nas cortes de Coimbra de 1473, os povos tinham pedido que se
estabelecesse esta regra, a favos da qual militava um título do Código de Justiniano
(C.,12,49, De filliis officialium)821. No séc. XVII, a regra está bem estabelecida na doutrina822,

militares podiam avocar os ofícios dados pelos antecessores e concedê-los a outrem, tal como os
prelados, v. Jorge de Cabedo, Decisiones […], t. 2, dec. 21, n. 5. Também os ofícios concedidos por
governadores e vice-reis não se mantinham depois de findo os mandatos dos concedentes.
816 Os ofícios concedidos em doação remuneratória, como os concedidos em razão de serviços,

eram tidos como dados por contrato oneroso, Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 8, n. 67
ss.; Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., v. “Officium”, n. 1347. O contrato oneroso a que Reinoso
alude seria o de venda, que Álvaro Valasco considerada vinculativo para o rei e inquebrável (o príncipe
não pode sem causa privar alguém de ofícios que deu por dinheiro, Decisiones [...], cit., cons. 72, n. 5).
817 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., liv. 2, c. 13, n. 115 ss..

818 A faculdade de deixar ofícios em testamento raramente era concedida, ensina Melchior Febo,

Decisiones […], cit., dec. 128, n. 7 (Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 1362).
819 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 129, 309 ss..

820 “Quod autem Reges hujus Regni ab antiquis temporis soleant providere filijs officialium

benemeritorum de officijs parentum non venit in dubio, imo transivit jam quasi in obligationem, &
debitum ipsius Regis, ut injuria fecisse dicatur si alteri donaverit, quemadmodum alias in alia materia
dixit Bar[tolus] […]”
821 Uma história, hostil, do princípio é contada no preâmbulo da CL. de 23.11.1770 (em António

Delgado da Silva, Colecção […]).


822 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus, […], cit., liv. 2, c. 14, n. 15; Manuel

186
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
de tal modo que um dos argumentos para qualificar de tirano o governo do Conde Duque de
Olivares era a de que, ao proceder a uma alegada venda massiva de ofícios, se violavam os
direitos dos filhos dos oficiais, aos quais nem sequer se concedia o direito de embargar as
vendas823. A transmissibilidade por morte não beneficiava apenas os filhos vivos, pois eram
admitidos os póstumos e mesmo as viúvas - na expectativa de um segundo casamento de
que viessem a ter filhos ou para que pudessem arrendar os ofícios, já que não os podiam
exercer pessoalmente – ou as filhas – como dote do casamento futuro -, ou as pessoas que
o titular tivesse nomeado para lhe suceder824 825.
§ 594. A tipologia dos ofícios assim apropriados pelas famílias era muito diversa.
Desde ao altos cargos da corte – embora aí fosse mais forte a tendência para os considerar
ligados às qualidades do titular e, sobretudo, ao favor régio – até aos mais humildes ofícios
das escrivaninhas dos juízes ou das câmaras. É neste nível mais baixo que a regra da
hereditariedade dos ofícios tem o vigor máximo, criando uma camada social típica que, nas
franjas superiores, tocava a baixa nobreza provincial e, nas franjas inferiores, estava ao nível
dos artífices. Para esta camada, o ofício, vinculado à família, era como um morgadio, ponto e
partida para a ascensão social. Típico era que os filhos de notários e escrivães tentassem os
estudos de direito e, por este meio, a ascensão ao topo da camada letrada826.
§ 595. Do ponto de vista político, o reconhecimento dos direitos dos filhos aos ofícios
dos pais, bem como a possibilidade de embargo de atos régios em contravenção a esta
regra, vêm tirar ao rei a disponibilidade dos cargos da república e diminuir muito o alcance
prático do princípio de que ele era o titular da jurisdição e da dada dos ofícios.
§ 596. Do ponto de vista sociológico, a importância disto não é menor. O princípio da
hereditariedade dos ofícios constituiu um fator decisivo para a constituição de uma camada
social vivendo dos ofícios públicos (nomeadamente, dos tabeliados e das escrivaninhas) e
tendendo a adotar como ideal de vida a “vida limpa” dos ofícios, com as oportunidades de
poder económico e social que eles proporcionavam. Valasco aproxima as regras de
transmissão dos ofícios das da transmissão enfitêutica. De facto, num e noutro caso – tal
como nos morgados -, verificava-se a consolidação numa família de situações geradoras de
poder social. Este poder social decorria não só do facto de serem ricos e de deterem lugares
de poder, mas também da sua centralidade na chamada civiltà della carta bollata (civilização
do papel selado). De facto, os documentos escritos eram centrais na certificação matérias
decisivas, desde o estatuto social até importantes direitos e deveres de natureza patrimonial.
As cartas reais de doação (v.g., de jurisdições) ou de foral, concessão de reguengos,
comendas, sesmarias, tenças, ofícios e outras mercês, constituição de morgados, tombos ou
vendas de imóveis, pedidos de graça régia (como a autorização de desamortização de

Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 1, ad Ord. 1, 1, gl. 1 74, n. 17; t. 7, ad Ord. 1,99, gl. 2, ns. 18
ss.; ns.. 24 ss. (sentenças); t. 11, ad Ord. 2, 35, c. 197, n. 12; António de Sousa de Macedo, Decisiones
[…], cit., pt. 3, 4, n. 7.
823 Cf. João Pinto Ribeiro, USURPAÇÃO, retenção e restauração de Portugal […], cit., 2, 29.

824 Se gozasse desta privilégio. No caso de não ter nomeado ninguém, considerava-se que

nomeara o filho mais velho, Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., v. “Officium”, n. 1362, apoiando-se
no exemplo da sucessão enfitêutica (Ord. fil., 4,36, § 3).
825 A casuística é muito rica: Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 7, ad Ord. 1, 99, gl.

2, ns. 24 ss..
826 Cf. Joana Estorninho de Almeida, A Forja dos Homens […], cit..

187
As jurisdições e o direito.
morgados, a concessão da maioridade ou da emancipação, a concessão de perdão e outras
previstas no regimento do Desembargo do Paço), eis alguns exemplos de documentos que
necessitavam da intervenção do notário e que eram conservados nos seus cartórios. Para
não falar de toda a cópia de atos processuais, desde os documentos de prova escrita até à
sentença. Portanto, os cartórios dos notários ou dos escrivães eram repositórios centrais de
preservação, manipulação ou ocultação de memória politica e juridicamente decisiva. Neste
contexto, já se pode imaginar a importância das lutas sociais pelo controle dos arquivos
judiciais e notariais. É por isso que a apropriação social dos ofícios é muito mais do que um
detalhe menor da história burocrática.
§ 597. Do ponto de vista da história da administração, esta consolidação familiar dos
ofícios pode ter tido uma grande importância, pois por meio dela se terão estabelecido e
fortalecido rotinas administrativas e processos de formação profissional, de pai a filho. Uma
coisa e outra, combinadas com a estabilidade social conferida pela segurança se familiar,
terá reforçado o corporativismo e a autoconfiança.
§ 598. No séc. XVIII, a legislação pombalina e a nova doutrina do direito público vêm
reagir contra a hereditariedade dos cargos827. No entanto, há sinais de que a prática tenha
continuado828
2.6.5.4 Venalidade dos ofícios.
§ 599. Um outro ponto muito relevante do regime dos ofícios é o da sua venalidade.
§ 600. No plano do direito estrito, a venda dos ofícios pelos seus titulares, sem prévia
autorização régia, estava proibida (Ord. fil.,1 96). Esta proibição era completada por uma
outra, dirigida àqueles donatários que tinham a dada dos ofícios, para que não os
vendessem (Ord. fil., 2, 46)829.
§ 601. No estudo desta questão, devemos distinguir dois planos: o da venda dos ofícios
pelo rei e o da sua venda pelos titulares.
§ 602. Quanto à primeira questão, a doutrina reconhecia que venda de ofício secular
não era proibida nem de direito divino, nem pelo direito natural, apenas o podendo ser pelo
direito civil. Sendo assim, o príncipe, que podia dispensar a lei, também podia afastar este
impedimento legal e vender ofícios, embora isto tivesse inconvenientes, sobretudo nos
ofícios que contivessem jurisdição; não tanto nos outros, como os dos tabeliães e escrivães,
em que os elementos mercenários suplantavam os elementos honorários 830 831.
§ 603. Em contrapartida, a venda de ofícios pelos donatários estava expressamente
proibida por lei (Ord. fil., 2, 46)832.

827 Cf. a CL. 23.11.1770.


828 Cf. alvs. 3.9.1777, 20.11.1795, decr. 5.6.1793.
829 Comentários: Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus, […], cit., liv. 2, c. 14;
Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 7, ad Ord. 1,96, pp. 414 ss.; t. 12, ad Ord. 2, 46; Jorge
de Cabedo, Decisiones […], cit., t. 2, dec. 24; João Baptista Fragoso, Regimen […], cit., pt. 1, liv. 1, d.
2, n. 121 ss..
830 Sendo menos grave nos outros, como os de tabelião; cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...],

cit.., pt. 2, dec. 24, ns. 1 ss.; Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., v. “Officium”, n. 1365.
831 Sendo menos grave nos outros, como os de tabelião; cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...],

cit.., pt. 2, dec. 24, ns. 1 ss.; Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., v. “Officium”, n. 1365.
832 Comentários: Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus, […], cit., liv. 2, c. 14;

188
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 604. Baptista Fragoso833 desenvolve um completo discurso sobre o tema, que é
interessante seguir. Existiriam razões, digamos, práticas em contra da venda de ofícios.
“Aqueles que compram ofícios da república, não os exercem a favor da república, como a
razão postula, mas antes para sua vantagem, de modo a recuperar o dinheiro dado e com
juros. E, assim, admitem frequentemente muitas coisas injustas e fazem a justiça venal.
Além de que mal vão as coisas, quando se faz por dinheiro o que se deve fazer por virtude”
(p. 40). Esta última consideração já introduz o núcleo da argumentação, relacionado com a
mesma natureza do débito destes serviços e permitindo uma distinção relevante entre ofícios
públicos não lucrativos e ofícios públicos lucrativos: “Os ofícios seculares não podem ser
vendidos na medida em que são obrigações para com certas funções [...] e em que têm um
justo estipendio [ou seja, um salário correspondente aos custos do exercício da função]. Já o
poderão ser na medida em que tiverem certa eminência e ocasião de lucrar, envolvendo o
estipêndio um excesso sobre o débito […] como são coisas seculares e que podem ser
avaliadas, podem ser vendidos pelo príncipe” (ibid., n. 123). O centro da argumentação está,
portanto, no carácter naturalmente devido (para com a república) dos serviços do oficial. A
venda de uma coisa (a função) que não era própria seria impossível. Como seria impossível
a venda dos réditos, pois estes correspondem exatamente (justamente) à função. Daí as
proibições de vendas de ofícios contendo administração de justiça (Pio V, 1571; Ord. fil,
1,95), ainda que se opinasse que estas proibições podiam ser dispensadas por licença
(graça) régia e se constatassem abusos frequentes na matéria. Já nos casos em que os
réditos excediam a retribuição da função, incluindo alguma oportunidade suplementar de
lucro, a venda poderia ter lugar. Tal seria o caso de outros ofícios públicos (como os
tabeliados ou escrivaninhas) em que a retribuição no estava tão rigidamente fixada,
assumindo parcialmente a natureza de um ganho puramente patrimonial. Nestes casos, os
ofícios incorporavam-se no património ("Officia publica postquam sunt acquisita censetur in
bonis, & veniunt sub appelatione illorum"834).
§ 605. A venda de ofícios pelo rei não parece que tenha sido frequente em Portugal835.
Para além dos já referidos fatores de ordem doutrinal, nisto deve ter pesado o facto de o
nosso direito ter tutelado, como se viu, os direitos dos filhos do titular, obstaculizando a
venda a disponibilidade pela coroa dos ofícios que vagassem. Segundo a literatura
autonomista portuguesa, os reis Habsburgo teriam, no entanto, alterado a prática, no sentido
da venalidade. Na Arte de furtar (1656, cap. XVII836) escreve-se que os reis da Casa de

Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 7, ad Ord. 1,96, pp. 414 ss.; t. 12, ad Ord. 2, 46; Jorge
de Cabedo, Decisiones […], cit., t. 2, dec. 24; João Baptista Fragoso, Regimen […], cit., pt. 1, liv. 1, d.
2, n. 121 ss..
833 João Baptista Fragoso, Regimen […], t. 1, pg. 38, ns. 121 ss.

834 Álvaro Valasco, Praxis partitionum [...], cit., c. 13, n. 69.

835 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus, […], cit., liv. 2, c. 14, n. 6 (não é

corrente venderem-se os ofícios); Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., t. 2, dec. 24, n. 4 (mesmo em
relação aos ofícios que não contém jurisdição contenciosa, como os de tabelião, a venda é “insólita”).
Mas averia testemunhos de que alguma vez se teriam vendido ofícios, em leilão, mesmo sendo vivos
os titulares, João Baptista Fragoso, Regimen […], t. 1, pt. 40, n. 123. Maria do Rosário Themudo Barata
D. A. Cruz, As regências [...], cit., 238 ss.. refere apenas 5 casos de vendas expressa em 174
provimentos de ofícios, entre 1557 e 1568.
836 Cf. http://books.google.com.br/books?id=NMMOAAAAQAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false; http://www.slideshare.net/giovannapiani/a-arte-de-
furtar (ed. de 1744); http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/01950100#page/7/mode/1up (ed. de 1752);

189
As jurisdições e o direito.
Áustria “Faziam pratica neste reino coisa nunca vista entre os portugueses: venderem-se a
quem mais dava os ofícios que antigamente se davam de graça […] Faziam jurar na
Chancelaria os que compravam os ofícios que nada davam por eles […]”. Esta acusação
pode ter fundamento, dadas as dificuldades do tesouro nessa época, mas sobretudo dado
que, em Espanha, o grau de patrimonialização dos ofícios era maior. Sabe-se que houve,
nos anos de 1630, vendas de ofícios de guerra e fazenda no ultramar. Mas faltam estudos
que coloquem a questão sobre bases empíricas mias fiáveis, até porque por “venda” alguma
desta literatura antiespanhola quer significar a concessão de ofícios por peitas e subornos ou
em remuneração de serviços financeiros. Seja como for, a venalidade dos ofícios não foi,
seguramente, uma particularidade do período filipina, pois existia antes. Da segunda metade
do séc. XVI há notícias de venda de ofícios, nomeadamente de escrivaninhas de justiça,
embora pouco frequentes. Nos inícios do séc. XVII, há uma avaliação dos ofícios do Brasil,
para efeitos de venda837 E nos finais do séc. XVII continua a haver alvitres recomendando a
venda de ofícios como uma forma de desempenho do reino.
§ 606. Parece ter sido no ultramar que a venda dos ofícios se generalizou mais838. No
Brasil, no início do séc. XVIII, um decreto real839 determinou que os novos ofícios, criados ou
a criar840, deviam ser dados em propriedade a quem prometesse uma doação (“donativo”) à
Real Fazenda, enquanto que os oficiais providos em serventia deveriam pagar à Fazenda
um terço do rendimento do cargo (terça) 841. Mais tarde, pela provisão de 23.12.1740, o
regime de donativo foi estendido a todos os ofícios (exceto aos rendeiros). Daí em diante, os
ofícios vagos eram vendidos em leilão842. teoricamente, isto não constituía, uma venda, mas
antes a combinação de dois atos de graça – o donativo e a dada do ofício – ambos
regulados pelo chamado “direito antidoral e consuetudinário”
§ 607. Esta qualificação jurídica que justificava a venda de ofícios é significativa. Por
“antidoral” quer-se dizer que estes deveres mútuos (de gratificar o tesouro e de dar o ofício)
se fundam na gratidão e não numa relação sinalagmática (ou mercenária) (cf. Clavero,
1991). O conceito de “consuetudinário” é usado, desde os meados do séc. XVIII,
nomeadamente para qualificar os costumes jurídicos relativos à transmissão dos ofícios que
não se encaixam no conceito moderno de ofício como um dever público e, por isso,
incompatível com a patrimonialização. Por isso, “consuetudinário” era – de acordo com as
leis pombalinas relativas aos ofícios (CL, 23.11.1770, Alv. 20.5.1774; sobre a nova conceção

https://archive.org/details/artedefurtarespe00vieiuoft (1821).
837 Documento descoberto por José Manuel Santos Pérez (Univ. Salamanca): 51-vi-54, “Cargos

da apresentação de Sua Majestade”, 1606, fls. 160-165.


838 Sobre a venda de ofícios na Índia, v. Diogo do Couto, Diálogo do Soldado Prático, Lisboa,

1980 (3ª ed.), pg. 60.


839 D. 18.5.1722, transmitida pela Provisão 23.9.1723 (Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes

[…], III, 754; fonte, Arq. Secret. do Governo da Bahia, liv.. 20, fls. 15).
840 Excluindo ofícios da fazenda.

841 A terça era a renda normalmente paga pelos serventuários aos proprietários do ofício, de

acordo com o sistema de arrendamento dos ofícios estabelecido nos meados do séc. XVII (cf. CL. de
Julho 1648; António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 515).
842 A base para o cálculo do donativo era o montante pago pelo anterior titular ou o valor estimado

da serventia (Prov. 2.4.1756). Se os ofícios fossem tão insignificantes que ninguém desse nada por
eles, o governador podia provê-los de graça (aviso 10.3.1740; fonte: Arq. Secr. Gov. Est. Brasil, Ordens
régias, mç. 1740).

190
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
do ofício, cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 1789, 1, 2, 20) – o direito dos
filhos aos ofícios dos pais. De 1761 a 1767, o Conselho Ultramarino vendeu em leilão a
propriedade ou as serventias trienais de todos os ofícios de justiça vagos da Bahia,
autorizando os compradores a arrendá-los a serventuários843. A partir de 1767, a venda em
leilão foi substituída pela venda a preço fixo, limitada às serventias, pagando o serventuário o
imposto geral sobre os ofícios (meias anatas844), fixado em um terço do rendimento anual do
cargo (terça) e um donativo pré-estabelecido Para os ofícios (de justiça: escrivaninhas) em
propriedade, o sistema de leilão continuou. Os únicos ofícios excluídos – por serem providos
por carta do vice-rei - eram os da Relação. No Rio de Janeiro, o sistema de leilão também foi
introduzido, com pequenas diferenças, para as serventias dos ofícios de justiça (CR
24.10.1761). Uma fonte autorizada do início do séc. XIX – o vice-rei D. Francisco José de
Portugal - afirma que a prática brasileira era semelhante à dos outros territórios do
ultramar845, acrescentando que o sistema era muito inconveniente pois favorecia a compra
dos ofícios, como armas de combate, por grupos rivais e excluía dos ofícios os mais
beneméritos, que não tinham meios para competir neste despique entre fações políticas846.
§ 608. Quanto à venda do ofício pelo titular. Existia uma proibição legal expressa
quanto à venda de ofícios sem autorização régia (Ord. fil., 1, 96, pr.: ”Mandamos, que os
Tabelliães, Scrivães e quaisquer outros nossos Officiaes, não possam vender os Officios,
que de nós tiverem, nem trespassar, nem renunciar em outrem sem nossa especial licença
[…]”). A pena era a perda do preço e do ofício, que ficaria de novo para o rei. No entanto, no
plano da prática, tal proibição não parecia muito efetiva. Por um lado, o rei não raro concedia
aos oficiais o direito de renunciar noutrem, de nomear sucessor ou mesmo de vender ofícios.
Admitia-se, por exemplo, que o titular pedisse ao rei o provimento de pessoa que ele
nomeasse para o cargo a que renunciara e mesmo que o nomeado gratificasse o
renunciante847. Uma lei de 6.7.1705 (J.J.A.S., data respetiva) determinou que se não
concedessem licenças de renúncias senão nos filhos, indiciando uma prática mais generosa
de renúncias em estranhos, encobrindo vendas.
2.6.5.5 Arrendamento dos ofícios (serventias).
§ 609. No entanto, possivelmente mais do que vendidos, os ofícios eram arrendados.
Na verdade – apesar de legislação em contrário (v. Ord. fil., 1, 97) – era frequente que os
proprietários dos ofícios os não servissem pessoalmente e os dessem em “serventia”,

843 Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes […], 1972, 2, 735; fonte, CR. 20.4.1758, no Arq.
Secret. Govern. Bahia, liv. 61 – 7. De acordo com uma lei de 1666, os serventuários tinham que pagar
ao titular do ofício um terço do rendimento da serventia do cargo. O regime vigente no Brazil
representava uma extensão desta regra: aqui, a terça relativa aos ofícios vagos dados em serventia era
pago à coroa, pois não havia um titular dos cargos. Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas [...],
cit., 515.
844 António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 48.

845 D. Francisco José de Portugal, que anotou o regimento dado a Roque da Costa Barreto

(1677): Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes […], 2, 756.


846 Também se dizia nesta fonte que esta mudança virtual dos oficiais cada três anos teria

causado um caos nos arquivos, devida à transferência dos papéis e dos livros de uma casa para a
outra (Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes […], 2, pg. 757).
847 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, 24, n. 7 (obtida a licença para renunciar, pode-

se renunciar, mas não vender, nem renunciar a troco de dinheiro). Cf. a decisão judicial transcrita por
Pegas, em Comentaria ad Ordinationes […], t. 12, pp. 175 ss..

191
As jurisdições e o direito.
ficando a receber uma parte do rendimento do cargo. Já no séc. XVII, a coroa acabou por
coonestara esta prática: em 22.6.1666, na sequência de providências anteriores, permitiu-se
o arrendamento de ofícios, estabelecendo um máximo para a renda a pagar ao proprietário –
um terço do rendimento anual do ofício, de acordo com a avaliação feita pela chancelaria
régia848. No Brasil, como já se viu, a coroa arrendava diretamente os ofícios (ou seja, vendia
as serventias).
2.6.5.6 Vacatura de ofícios.
§ 610. Os ofícios vagavam por morte ou renúncia do titular849.
§ 611. A vacatura por morte já foi referida. A vacatura por renúncia levantava algumas
questões jurídicas850.
§ 612. Uma destas questões era a de saber quem podia aceitar renúncias e conceder
de novo os ofícios. A questão punha-se, nomeadamente, quanto aos poderes dos donatários
a este respeito. A solução de direito comum era a de que os donatários não podiam aceitar
renúncias, pois estas tinham que ser feitas “nas mãos do rei” ou daquele a quem ele tivesse
expressamente concedido o privilégio de aceitar renúncias de ofícios851. Mas, no concreto, a
resposta dependia, fundamentalmente, da interpretação da doação régia852. A renúncia devia
ser pura, sem condições. Era inaceitável, nomeadamente, a renúncia com a condição de o
ofício ser provido numa certa pessoa (ou renúncia a favor de outrem), pois a discrição do rei
na concessão dos ofícios não podia ser limitada. Do mesmo modo, a renúncia não podia ser
condicionada por uma promessa daquele que seria beneficiado por ela: por exemplo, se
alguém prometesse ao titular do ofício uma certa soma no caso de ele renunciar e de, por
isso, o ofício vir a ser atribuído ao promitente853.
2.6.6 Hierarquia dos ofícios.
§ 613. As fontes doutrinais de direito comum organizavam uma hierarquia dos oficiais,
a partir da importância e permanência das suas competências. Esta tabela era encabeçada
pelos magistrados cuja competência ordinária compreendia os mais elevados graus de
império e de jurisdição. Na base, os oficiais de competências mais efémeras e de menor
grau de impotência, como a modica coercio. Esta classificação estava desenhada em cima
das magistraturas e ofícios que ocorriam nas fontes romanas e, por isso, constituía um
esquema vazio, do ponto de vista dos ofícios realmente existentes a época moderna854. O
seu interesse era sobretudo taxonómico, fornecendo um esquema de ordenação e, por meio

848 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 9, pag. 290.
849 Cf. Miguel de Reinoso, Decisiones [...], cit. Obs 8, 29.
850 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., v. “Officium”, ns. 1360 ss.; Miguel de Reinoso,
Decisiones [...], cit. obs 5, per totam.
851 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 23, per totam; Jorge de Cabedo,

Decisiones [...], cit.., pt. 2, d.91,n.4; Miguel de Reinoso, Decisiones [...], cit. obs. 5, ns, 20 ss.. O texto
legal de apoio era Ord. fil., 1,96, que proibia a renúncia em outrem sem licença especial do rei (cf.
Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., comentário a este título).
852 Cf. discussão em Miguel de Reinoso, Decisiones [...], cit., obs 5, per totam.

853 Melchior Febo, d.128, n.9 (“pro obtinenda renunciatione officii non potest fieri pactum de danda

pecunia”, n. 23).
854 Ensaio de tipologia dos oficiais do reino de Portugal (metrópole) nos mesdos do séc. XVII em

António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit..

192
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
deste, alguma possibilidade de determinar por comparação os poderes que deviam competir
a um ofício concreto. Esta ordenação não era, porém, rigorosamente hierárquica; ou seja, ela
não significava um poder de comando dos oficiais superiores sobre os inferiores, pois, muito
frequentemente, os oficiais tinham competências estatutariamente reservadas (privativas),
que não podiam ser avocadas ou dirigidas por oficiais de nível superior.
2.6.6.1 O príncipe e os magistrados “colaterais”.
§ 614. No topo das magistraturas ordinárias, estava o príncipe Com a expressão
“príncipe” pretendemos englobar o imperador, o rei ou outra entidade qui superiorem non
recognoscat. Por vezes, a literatura clássica do ius commune mantém uma certa gradação
entre o imperador e o rei, reservando para aquele a designação de princeps e equiparando
este último ao perfectus praetorii; o rei é tido como princeps e ao praefectus praetorii são
equiparados ou os vice-reis ou os tribunais da corte.
§ 615. Tendia progressivamente a entender-se que na pessoa do rei se concentrava-se
toda a jurisdição. Era tido, ainda, como lex animata, ou fonte de jurisdição. Tanto de
jurisdição delegada, o que seria normal, como da jurisdição ordinária e mesmo da
extraordinária. O príncipe detinha, assim, a plenitudo potestatis, não apenas no sentido
tradicional de que não estava sujeito a um poder superior, mas ainda cada vez mais no novo
sentido de que, cabendo-lhe o grau mais elevado do poder, nesse grau se englobavam todas
as faculdades políticas que competissem aos outros graus855. Apesar de isto ter ainda pouco
que ver com a realidade institucional - plano em que a patrimonialização das jurisdições lhe
impedia na prática um exercício tão absoluto do poder - o certo é que este modelo dogmático
estava já presente na doutrina jurídica medieval, embora comprimido por conceções
concorrentes856.
§ 616. Logo abaixo do príncipe, mas como que fazendo ainda corpo com ele, os
magistrados e tribunais palatinas, detentores não só de mero e misto império e jurisdição,
mas ainda de algumas das atribuições compreendidas nos seus graus máximos, a que a
doutrina posterior chamará regalia maioria. Pares principis, quasi corpus principis,
colaterales, magnates sacri palatii, lhes chamará a doutrina, justificando a atribuição de tais
poderes. Nestes magistrados contam-se o praefectus praetorii, os questores e os grandes
magnates (duces, comites, marchiones, etc.) 857, com as correspondências que a doutrina

855 Sobre este processo de absolutização do poder do príncipe, com críticas a anteriores
equívocos sobre o tema - devidos, por um lado, a uma projecção sobre o passado dos conceitos
oitocentistas de soberania e, por outro, a uma leitura unilateral e incompleta da dogmátiaada época
(sem reconhecer, ainda por cima, o carácter limitado da história feitta apenas sobre as realidades
dogmáticas), v. as páginas que escrevi sobre o assunto no prefácio à colectânea Poder e Instituições
[…], cit.. A análise detalhada das limitaçõies práticas do poder real na época moderna, fi-la em As
vésperas do Leviathan […], cit.
856 Teorias da irrevogabilidade das doações régia de jurisdiçõies. da prescritibilidade das

jurisdições, da inviolabilidade dos direitos radicados ou adquiridos. Dependia de cada conjuntura


discursiva, a hegemonia de uma ou de outra destas correntes.
857 A doutrina distinguia, por vezes, entre os magistrados superillustres e os illustres; o critério

estava na possibilidade de exercício ou não dos graus de poder reservados ao príncipe, como, v., o
poder legislativo. De entre os magistrado eclesiásticos incluíam-se aqui os cardeais e os patriarcas. De
todos estes era aproximado, por gozar das suas prerrogativas em relação aos estudantes, o doutor
lente com mais de vinte anos de exercício. Sobre todos estes, G. Mastrillo, De magistratibus [...], cit., pt.
2, liv. 5, c. 6, ns. 18 ss..

193
As jurisdições e o direito.
lhes dá nas magistraturas modernas858.
2.6.6.2 Magistraturas ordinárias com jurisdição territorial ou corporativa.
§ 617. O grau seguinte das magistraturas ordinárias era preenchido por aquelas qui
superiorem recognoscunt.
§ 618. Em primeiro lugar, pelas magistraturas territoriais; que, no direito comum
clássico, eram as magistraturas ordinárias por excelência, a ponto de Baldo definir o carácter
ordinário do juiz com recurso ao carácter geral e não especializado (territorial) da sua
jurisdição859. Nestas, dentre as magistraturas maiores, i. e., dotadas de império, destacavam-
se os praesides provinciarum, magistrados ordinários e universais no âmbito da província860.
A estes se equiparavam, na tipologia das fontes do direito romano, os outros magistrados
encarregados de dirigir as províncias - proconsules, procuratores caesaris - e, no direito
intermédio, quer os representantes regionais do rei - comites, duces, corrigedores861 -, quer
os magistrados que presidissem às cidades metropolitanae, maximae e magnae862. Nas

858 A correspondência entre as magistraturas do Baixo Império e as da época medieval e


moderna era matéria discutida: o perfectus praetorii seria o vice-rei ou o tribunal da corte; o questor, o
conselheiro da fazenda ou o chanceler; o cônsul, o juiz da corte; os senadores, os membros dos
conselhos régios; os comites, os altos funcionários palatinos, etc..
859 Cf. Baldus, Commentarium in Dig. Vet., 1. iubere cavere, D. De iur. omn, iud.

860 Para a teoria do ius commune clássico a distinção entre regnum e provintia e civitas assentava sobre

um duplo critério. De um lado, um critério, digamos, geográfico distinguia entre espaços humanos de
povoamento contínuo e espaços de povoamento descontínuo - assiro, os reinos e as províncias eram
communitates hominum in aedificiis separatis hobitatium, enquanto que as cidades, oppida, castra e villae ou
vicus são communitates hominuum in eodem loco habitantium. Um critério jurídico-político permitia ir mais
longe na distinção: assim, os reinos, enquanto comunidades que não reconheciam superior, estariam
dotados de todos os graus de mero império, mesmo de mero império máximo, e seriam, portanto
isentos; já as províncias seriam sempre unidades políticas dependentes, embora gozando de mero
império (excluindo, no entanto, o máximo); as cidades, em contrapartida, não gozariam, em princípio,
de todos os graus do império (mas apenas dos graus inferiores), embora dispusessem de jurisdição; os
oppida, castra e villae, enquanto submetidos a uma cidade, não gozariam sequer de jurisdição. Este era
o modelo geral, com base no qual eram classificados os casos concretos que ocorriam. Sobre isto, por
todos, v. António Manuel Hespanha, “Representação dogmática […]”, cit., em que se remete para
Francesco Ercole, Da Bartolo all'Althusio […], cit., pp. 79, 83 ss., 108 ss., para o confronto entre os
conceitos aristotélico e bartolista de cidade e de reino.
861 Os praesides provintinrum gozavam, ao nível da província que dirigiam, de uma competência

universal e cumulativa com a dos outros magistrados, o que quer dizer que podiam avocar as causas
destes. Eram classificados pela doutrina como judices perpetui et universales. Para a aplicação desta
doutrina aos nossos corregedor ou mesmo aos donatários, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2,
d. 13 (per totam), Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 4 (ad. 1, 58), gl. 1 (cfr., nas gl. 12, 23
e 24 algumas restrições ao carácter cumulativo da competência dos corregedores - não podem avocar
as causas dos contadores, dos juízes de fora e dos rnamposteiros).
862 Para esta classificação das cidades, cf. Gabriel Alvarez Valasco, In l. imperium […], cit. n. 71:

as civitates máximas eram as que tinhão jurisdicção civil e criminal e a que estavam sujeitas outras
cidades (correspondiam às capitais das províncias, sedes do praeses); as civitates magnae eram aquelas
cujos magistrados também tinham foro civil e criminal, mas que não tinham outras cidades sujeitas; as
civitates parvae eram as restantes, em que os magistrados apenas gozavam de iurisdictio. Metropolitanae
eram as cidades sedes de bispado. Havia ainda outras classificações das cidades: desde logo, a das
fontes romanas (C., 11,12 De metropoli Beryto, 1. un.), que distinguia as cidades em função do número
de médicos, gramáticos, etc., que aí houvesse. Entre nós, e criação de cidades era um direito real. V.,

194
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
fontes de direito canónico, equiparam-se-lhes os bispos.
§ 619. Em segundo lugar, pelas magistraturas que presidiam a universitates não
territoriais (collegia), magistraturas que, no direito comum clássico, eram excecionais: as
fontes referem o reitor da universidade, os conservadores das nações estrangeiras, os
chefes militares em campanha e pouco mais. Estes magistrados dispunham apenas de
iurisdictio e da medica coertio a ela inerente (nomeadamente no que respeita à
administração dos bens das mesmas pessoas coletivas). A expansão do modelo corporativo
na sociedade tardo-medieval e moderna multiplicou, depois, o número destas magistraturas,
em todavia alterar substancialmente a sua competência jurídico-política863.
2.6.6.3 Magistraturas ordinárias de competência especializada.
§ 620. Finalmente, as magistraturas ordinárias criadas por lei e a que não correspondia
nem uma jurisdição predominantemente territorial (i. é, não eram magistraturas universais
dentro de um certo território), nem uma jurisdição corporativa. São, afinal, as magistraturas
através das quais se implanta a nova administração, correspondentes a campos cada vez
mais específicos de atividade e dotadas de uma competência progressivamente privativa864.
De uma forma geral, pode dizer-se que estas magistraturas correspondem à consolidação de
magistraturas originariamente delegadas ou mesmo extraordinárias; na sua origem e nas
suas primeiras fases, seriam comissões ad hoc através das quais o rei encomendava certa
tarefa específica e limitada a certo funcionário. O prolongamento no tempo desta tarefa e a
repetição de concessões do mesmo tipo terão proporcionado a institucionalização, sob forma
ordinária, da magistratura e a sua dotação com poderes retirados às magistraturas territoriais
universais. Aqui, não é possível formular uma regra geral quanto ao tipo de poderes jurídico-
políticos que integravam a competência destes magistrados, já que tais poderes decorriam
da lei (ou do regimento).
2.6.6.4 Magistraturas delegadas (ou comissariais).
§ 621. Ao lado deste continente mais ou menos estável das magistraturas ordinárias -
de que a categoria ultimamente descrita constituía a camada tectónica mais jovem –
encontrava-se a zona magmática das magistraturas delegadas e extraordinárias, totalmente
dependentes da oportunidade do momento, experimentais e passageiras; mas, ao mesmo
tempo, viveiro de futuras magistraturas ordinárias. Muitas daquelas formas de
institucionalização do poder político que encontramos ainda em fase larvar durante os
séculos XVI e XVII pertencerão já ao mundo das magistraturas ordinárias do século XVIII865.

sobre o tema das cidades na doutrina portuguesa, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo
6, ad Ord. fil., 1,73, gl. 2, n. 1 ss..
863 Em Portugal, no século XVII, estas rnagistraturas eram inúmeras: conservadores das nações

estrangeiras, Juiz dos moedeiros, Juiz dos Cavaleiros, Conservador da Universidade, Juiz do Hospital
de Todos os Santos, juízes dos mesteres, etc..
864 Alguns magistrados deste tipo: Juiz da Índia, juízes dos órfãos, juízes das sisas, almoxarifes,

juízes das alfândegas, provedores, contadores, mamposteiros, dotados de uma competência privativa
em relação aos corregedores. Cfr. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 4 (ad. 1.58), gl. 2, n.
1 e gl. 24, n. 6.
865 Sobre este processo de “consolidação” de magistraturas onginariamente delegadas, v., para a

França, Charles Loyseau, Traité du droict des offices [...], cit., liv. IV, c. V, nomeadamente ns. 15 ss. (o
A. relaciona a transformação das comissões em ofícios, através da sua formalização por lei do príncipe
[edito] com o interesse da realeza e dos oficiais em transforem od cargos em situações estáveis e,

195
As jurisdições e o direito.
§ 622. A construção da figura jurídica da comissão partia de elementos dogmáticos
encontrados dispersos nos textos romanos - nomeadamente das distinções entre
magistraturas e curationes e entre judex ordinarius e judex delegatus866. Mas foi preciso
esperar pela segunda metade do século XVI para encontrar autores que colocassem a
distinção entre ofício e comissão no centro da teoria do ofício 867. É o caso de Jean Bodin e
de Charles Loyseau que, sublinhando nas suas obras a figura do comissário, mostram bem a
importância que esta (e o modelo administrativo que ela representa)868 adquirem nesta
época, em que o poder político central estendia o seu campo de ação para fora do tradicional
domínio do “iustitiam dare”. Charles Loyseau, porventura mais próximo das fontes
tradicionais do que Jean Bodin, insinua ainda que os verdadeiros ofícios são, no fundo, os
ofícios ordinários de justiça, embora nos seus dias, causas “exógenas” (nomeadamente, a
instauração da venalidade dos ofícios) tivessem feito com que primitivas comissões tenham
sido decoradas com o carácter ordinário869. De qualquer modo, isto não impede, antes pelo
contrário, o aberto reconhecimento da existência de uma administração que se processava
ao lado da tradicional administração ordinária, abrangendo domínios diferentes e novos,
liberta das formalidades do processo ordinário e, por fim, baseada num novo tipo de
funcionário.
§ 623. Esta nova administração tanto abarcava tarefas extraordinárias, quer quanto ao
tempo (i. e., não permanentes), quer quanto o assunto (ratione temporis vel ratione subjecti,
na fórmula adotada por Charles Loyseau), como tarefas ordinárias, mas concedidas a
alguém de forma precária ou excluindo as formas processuais normais (cognitio extra
ordinem}. A sua maior maleabilidade decorria, como já se disse, desta mesma indefinição
dos seus estatuto e processo; pois à plena disponibilidade dos cargos somava-se a plena

logo, vendáveis). Sobre a interpretação histórico-sociológica dos aparelhos político administrativos na


Europa Moderna, v. Antonio Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., [Os oficiais, instrumentos ou
entraves].
866 Para as fontes jurídicas e literárias da antiguidade, de onde esta distinção brotava, v. Jean

Bodin, Les six livres […], cit., liv. 3, c. 2 (p. 173 ss..); Charles Loyseau, Les cinq livres du droict des
offices, cit., liv. 4, c. 5, n. 3 ss..
867 Obras e lugares citados na nota anterior; para a sua integração no contexto doutrina e social

da época, v. os artigos de Vitor Ivo Comparato, Uffici e società a Napoli (1600-1647). Aspetti
dell'ideologia del magistrato nell'étà moderna, Firenze, 1974; Diego Quaglione, "L'ufficiale in Bartolo",
L'educazione giuridica, 1. La tradizione italiana, Perugia, 1981, 143 ss.; Vitor Ivo Comparato, "Note sulla
teoria della funzione pubblica in Bodin", L'educazione giuridica, 2. L'étà moderna, Perugia 1981, 3 ss.;
Salvo Mastelone, "Il trattato di Charles Loyseau "Du droit des offices", ibid., 17 ss.; sobre a
interpretação sociológica da obra de Charles Loyseau, nomeadamente quanto à sua teoria dos ofícios,
v. a polémica entre Roland Mousnier (La venatíté des offices sous Henri IV et Louis XIII, Rouen 1945;
mais tarde, La monarchie absolue en France, Paris 1979) e Boris Porshnev, Die Volksaufstände in
Frankreich vor der Fronde, 1623-1648, Leipzig 1954; trad. franc. Paris 1963); e ainda Salvo Mastelone,
“lntroduzione al pensiero politico di Charles Loyseau”, Critica storica, 4 (1965), 446-482.
868 Sobre o tipo administrativo do comissário, Otto Hintze, “ Der Comissarius […] ”, cit.; v. também,

As vésperas […], clt.,505


869 Charles Loyseau, Les cinq livres du droict des offices, cit., 1.4, c. 5, n. 15 ss.: até Carlos VIII só

os cargos de justiça teriam sido conferidos sob forma de ofícios ordinários; mas não os da guerra “,dont
la pcrpctuité est dangereuse”), nem os de finanças “ou la longue experience n'est ncccssaire”). A
situação ter-se-ia modificado, quanto aos últimos, após Luís XII; e quanto a alguns dos primeiros, após
Henrique II.

196
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
disponibilidade da competência e a total maleabilidade processual870. É esta nova estrutura
político-administrativa que se virá a impor no séc. XVIII.
2.6.7 Os ofícios no reino de Portugal.
2.6.7.1 Súmula
§ 624. Traçado este panorama dos grandes ramos do aparelho político-administrativo,
na periferia e no centro, importa fazer um balanço final, em que se avalie a importância
relativa desses ramos, se visualize o peso que este aparelho tem em relação à população do
reino (notando as eventuais assimetrias regionais) e se determine o peso de cada uma das
principais categorias de oficiais no conjunto.
§ 625. Os cálculos numéricos de seguida apresentados baseiam-se em estudos
efetuados para o século XVII. Desde já se adverte que a extrapolação para os fins do século
XVIII é muito arriscada, tudo indicando que se verifica, a partir dos meados de setecentos,
uma sensível intensificação das estruturas políticas e administrativas centrais871. Como
também se dá uma alteração da importância política e simbólica dos vários órgãos.
§ 626. Por volta de 1640, existem em Portugal cerca de 11 700 oficiais da
administração periférica, a que haverá que somar cerca de 500 outros da administração
palatina.
§ 627. A maior parte dos ofícios corresponde aos ofícios concelhios (cerca de 72%,
incluindo aqui os ofícios da milícia honorária). Devendo notar-se que nestes se poderão
ainda incluir os ofícios das sisas e os dos órfãos, com o que a percentagem subiria para
85%.
§ 628. Isto é particularmente nítido nas comarcas ao norte do Douro e na Beira interior
(comarcas de Viseu, Lamego, Pinhel e Guarda). Em contrapartida, destes elementos
estatísticos ressalta a modéstia, em termos quantitativos (cerca de 10%), do aparelho da
administração real periférica.
§ 629. Estes elementos estatísticos permitem destacar uma outra conclusão: o
aparelho político-administrativo estava predominantemente voltado para a realização das
funções judicial e “económica” (ou “de polícia”). À primeira estavam ligados cerca de 28%
dos oficiais e à segunda cerca de 46% (incluindo aqui os ofícios “dos órfãos, resíduos e
capelas”). As tarefas fiscais-financeiras ocupavam cerca de 12%, enquanto que a milícia
ocupava 8%; sendo de notar que a milícia mercenária - elemento considerado central nos
processos europeus de construção do Estado - não conta senão com pouco mais de meia
centena de oficiais (uns 5 por mil, relativamente ao total).
§ 630. Estes números permitem-nos concluir algo sobre os fins do poder, tal como eles
se manifestavam na prática. Neste plano, os aparelhos de poder confirmam, até certo ponto,
o modelo doutrinal dominante. Na verdade, a supremacia que os respúblicos continuavam a
atribuir à justiça como fim primeiro do poder refletia-se, no plano da ação política, na

870 “La comission, qui n'a presque loy ni regre, ains dépend quasi du tout de la volonté de celuy
qui la decerne”, Charles Loyseau, Les cinq livres du droict des offices, cit. liv. 1, c. 1, n. 111 (ed. cit. pg.
20); cfr. ainda Jean Bodin, Les six livres […], cit., ps. 620 ss..
871 Cf., com novos dados numéricos, para os finais do séc. XVIII, que documentam um

enorme crescimento da administração central (6 ou 7 vezes), José Manuel Subtil, “Governo e


administração” […], cit., 190 ss.

197
As jurisdições e o direito.
importância numérica dos ofícios de justiça, embora esta importância fosse acompanhada -
ou até ultrapassada - pela dos ofícios “económicos” ou “de polícia”, a maior parte deles
vindos da época medieval. O que, por seu lado, mostra como a ideia de que ao poder cabe
regular os aspetos quotidianos da vida em comum não é uma inovação do “Polizeistaat”; o
qual, neste ponto, apenas transportou para o nível central um modelo de ação política de há
muito em vigor no nível periférico do poder (família, comunidades). Assim, o peso dos ofícios
de polícia - que, note-se, são quase todos ofícios concelhios - não indicia, no nosso caso, a
emergência de um paradigma moderno de poder político, mas a supervivência das formas
medievais de tutela comunal da vida coletiva.
§ 631. Já os 12% dos ofícios da fazenda representam um traço característico da
organização proto estadual do poder político, embora aqui ainda estejam incluídos os ofícios
(locais) das sisas, que representam quase 50% do grupo. Se os descontarmos, o significado
deste sector reduz-se a uns 6% do total, dos quais - acrescente-se - metade correspondia à
administração alfandegária. A justiça estava mais bem dotada, representando cerca de 28%
dos ofícios totais. Mas, mesmo assim, não existiam juízes régios sequer em 10% dos
concelhos.
§ 632. A tipologia dos próprios ofícios reflete esta mesma estrutura “jurisdicionalista” da
administração ou mesmo aquilo a que se tem chamado a “civilização do papel selado”
(“civiltà della carta bollata”, F. Chabod). Na verdade, se retiramos do conjunto os oficiais dos
concelhos - os almotacés (9% do total) e os vereadores (17% do total) -, nada menos do que
um terço dos restantes oficiais é constituído por escrivães - dos quais os escrivães do
público e judicial representam cerca de 40 % - e um quinto por juízes. Julgar e escrever são,
pois, as tarefas paradigmáticas da administração oficial na época moderna.
§ 633. Por outro lado, e como também já notámos, esta administração periférica
carecia de articulação, de modo a poder ser encarada como um aparelho coerente e
unificado.
§ 634. Para isto era, desde logo, decisivo o facto de a esmagadora maioria dos oficiais
pertencer, como se disse, a entidades dotadas de extensa autonomia jurisdicional - os
concelhos. A unidade poderia, no entanto, provir de um esforço de articulação realizado pela
administração real periférica. Mas, mesmo esta, era, em si mesma, desarticulada.
Desarticulada no topo; pela falta de órgãos palatinos de coordenação, pelo menos até ao
período pombalino, em que surge uma lógica “de ministério” (ou “gabinete”), dominada por
uma ideia de direção política centralizada. Mas também na periferia, por falta de um
funcionário com poderes de coordenação global dos representantes locais da coroa, como o
foram os intendentes franceses ou o Kreishauptmann noutros reinos da Europa. Apesar da
tendência para o alargamento dos seus poderes, o corregedor foi sempre,
fundamentalmente, um oficial de justiça e de “administração civil”, nunca tendo podido
controlar as decisivas áreas da milícia ou da fazenda. As possibilidades de intervenção na
periferia do aparelho político-administrativo da coroa eram, portanto, desde logo reduzidas,
em virtude desta escassez de meios humanos.
Mas também o tipo de relacionamento institucional entre o aparelho político-
administrativo periférico da coroa e as estruturas político-administrativas que lhe
estavam subordinadas dificultava uma estratégia centralizadora. De facto, e como já
antes dissemos, as relações entre o centro e a periferia do sistema oficialato existentes
no sistema político moderno não podem ser descritas, salvo porventura em domínios

198
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
excecionais como a milícia e as finanças, através do modelo que hoje designamos por
relação hierárquica. O facto de a competência (ou jurisdição) do funcionário ser, no
domínio da teoria do ofício do direito comum872, quase absolutamente garantida contra
intromissões, impedia que o superior pudesse dar ordens ao inferior ou avocar as suas
competências. A intervenção do superior esgotava-se assim numa atividade de tutela,
dirigida a verificar o cumprimento do regimento dos oficiais “subordinados”. Esta diluição
do vínculo de subordinação não se verificava apenas entre os oficiais da administração
real e os da administração local com que se correspondiam a jusante; caracterizava
também o próprio aparelho administrativo da coroa, nas suas ligações entre o centro e a
periferia.

872 Cf. Hespanha, 1993, Cf. 3; Subtil, 1993, 187 ss..

199
As jurisdições e o direito.

200
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

3 Direito das pessoas.


§ 635. As Institutiones Justiniani873 abrem com a definição de direito e com as várias
divisões do direito; direito público (e sua divisão temática), direito privado; direito natural,
direito civil; direito escrito, direito não escrito. Uma delas é a divisão temática do direito:
pessoas, coisas e ações, importada de Gaius. Em rigor, não se trata de uma divisão
sistemática, do género das que foram feitas pelos jusracionalistas. Estes partiam de uma
definição da natureza do direito ou de um princípio do direito, que tomavam como tronco e
que iam especificando em braços, como os ramos de uma árvore. Nem tão pouco
corresponde à divisão em elementos da relação jurídica: sujeitos, objetos e negócios, de que
já Vinnius ensaiara uma explicação estrutural874. Aqui, trata-se antes de agrupar as normas
jurídicas por assuntos. Umas tratam das pessoas, outras das coisas e outras, finalmente, das
figuras criadas pelo direito (ações, contratos, malefícios).
3.1 Estados e pessoas.
§ 636. O livro I, sobre as pessoas, cumpre bastante bem o seu propósito, agrupando as
normas sobre os homens. A estrutura interna do livro é construída a partir de divisiones (ou
status) do género homem875: livres, escravos e libertos; pais e filhos (naturais ou adotados);
tutores, curadores e pupilos.
§ 637. A exposição do direito das pessoas faz-se, portanto, a partir da noção de status,
ou seja ou seja, da qualidade das pessoas quanto aos seus direitos e deveres.
§ 638. "O estado é a condição do homem que é comum a vários" ensina Antonio de
Nebrija (Vocabularium […], cit. v. “Status”). Em princípio, um estado correspondia uma
situação objetiva, a um lugar na ordem do mundo, da qual decorriam tarefas ou deveres
(officia) e, portanto, direitos e deveres. Tal como “constituição”, “estabelecer”, status está
relacionado com palavra grega stasis (lat. sito, stiti, statum), equilíbrio objetivamente
estabelecido. Como situação objetiva, o “estado” não dependia da vontade. Esta distinção foi
usada por Henry Sumner Maine876 para distinguir as sociedades tradicionais, que se
imaginavam como assentes no status, das sociedades modernas, autorrepresentadas como
fundadas no contrato e na vontade.
§ 639. No direito romano, distinguiam-se três critérios para distinguir os estados877: o

873Cf. on-line: http://droitromain.upmf-grenoble.fr/Corpus/iust_institut.html.


874Arnold Vinnius, 1588-1657, In quattor libros Institutionum […], 1,2,12 (p. 31), cit.:Todo o direito
é dado às pessoas, em relação a coisas, por meio de ações e de julgamentos (Omne jus redditur
personis de rebus per actiones & judicia). O fim do direito é atribuir a cada um o que é seu. Para isto, é
necessário saber o que é o seu cada um; e porque é que esse seu se pode obter pela força. A primeira
questão diz respeito ou às pessoas ou às coisas. Explica que a diversidade do direito das pessoas
depende da sua condição ou estado. Que o direito sobre as coisas, pode ser real ou pessoal,
traduzindo-se numa obrigação ou num crédito. A razão de adquirir um ou outro direito está nas acções.
875 As mulheres aparecem apenas indiretamente, não sendo o género uma suma divisio da

espécie humana.
876 1822-1888: Ancient Law: Its Connection with the Early History of Society, and Its Relation to

Modern Ideas, 1861


877 Aqui, o status designa a perspetiva em que assenta a discussão de uma questão do estatuto

das pessoas, e não propriamente esses estatutos. Este sentido de status, como base de uma
discussão, fora importado da retórica (teoria retórica dos “estados”).

201
Direito das pessoas.
status libertatis, ou situação como sujeito ou como objeto nas comunidade das pessoas; o
status civitatis, ou situação na comunidade política; e o status familiae, situação na família. A
partir daí, identificavam-se os estados das pessoas, ou seja, os seus direitos e deveres
(livres, escravos, cidadãos, latinos, peregrinos, sui iuris, alieni iuris, etc.).
§ 640. Na sociedade tradicional europeia, o estatuto das pessoas depende dos grupos
sociais a que pertencem, pois cada qual desempenhava uma específica função social
(officium). E, assim, os direitos e deveres das pessoas decorriam dessas funções.
Destacavam-se três ofícios sociais: a milícia, a religião e a lavrança. "Defensores são huns
dos tres estados, que Deus quis, per que se mantivesse o mundo, ca bem assy como os que
rogan pelo povo se llaman oradores, e aos que lavran a terra, per que os homes han de
viver, e se manteem, são ditos mantenedores, e os que han de defender são llamados
defensores", pode ler-se nas Ordenações afonsinas portuguesas (1446), inspiradas nas
Partidas (1,2,25,pr.). Mas esta classificação das pessoas podia ser mais diversificada e,
sobretudo, menos rígida. No domínio da representação em cortes, manteve-se basicamente
a classificação tripartida até aos finais do Antigo Regime. Já noutros planos da realidade
jurídica (direito penal, fiscal, processual, capacidade jurídica e política), os estados eram
muito mais numerosos. Nos distintos planos do direito, constituíam-se, assim, estatutos
pessoais ou estados, correspondentes aos grupos de pessoas com um mesmo estatuto
jurídico (com os mesmos “privilégios”, no sentido de direito particular).
§ 641. A conceção do universo dos titulares de direitos como um universo de "estados"
(status) levava à "personificação" dos estados. Ou seja a considerar que uma mesma pessoa
física podia ter vários estados e que, como tal, nela podiam coincidir várias pessoas
jurídicas.
§ 642. Frente a esta multiplicidade de estados, a materialidade física e psicológica dos
homens desaparecia. A pessoa deixava de corresponder a um substrato físico, passando a
constituir o ente que o direito criava para cada aspeto, face, situação ou estado em que um
indivíduo se lhe apresentasse. "Pessoa - escreve ainda o tradicionalista Manuel de Almeida
e Sousa (Lobão)878 - é o homem considerado como em certo estado", ou seja, considerado
sob o ponto de vista de certa qualidade "conforme à qual [...] goza de direitos diversos dos
que gozam outros homens" (ibid.). Então, se são as qualidades, e não os seus suportes
corporais-biológicos, que contavam como titulares de direitos e obrigações, os sujeitos de
direito podiam multiplicar-se, dando carne e vida jurídica autónoma a cada situação ou veste
em que os homens se relacionassem uns com os outros. A realidade jurídica decisiva, a
verdadeira pessoa jurídica, era esse estado, que era permanente; e não os indivíduos,
transitórios, que lhe conferissem momentaneamente uma face879.
§ 643. Homem que não tivesse estado não era pessoa. De facto, havia pessoas que,
por serem desprovidas de qualidades juridicamente atendíveis, não tinha qualquer status e,
logo, careciam de personalidade. "Quem não tenha nenhum destes estados [civil, de
cidadania ou familiar, status civilis, civitatis, familiae] é havido, segundo o direito romano, não
como pessoa, mas antes como coisa", escreve Justus Hermann Vulteius880. Era o caso dos
escravos.
§ 644. Tal era a sociedade de estados (Ständesgesellschaft, società per ceti),

878 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas a Melo […], cit., t. 1., tit. 1, 1.
879 cf. Bartolomé Clavero, Tantos estados […], cit., max., 36.
880 Citado por Helmut Coing, Europäisches Privatrecht […], cit., I., 170.

202
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
característica do Antigo Regime e que antecede a atual sociedade de indivíduos.
§ 645. Entre os juristas, a designação "estado" (status) foi frequentemente substituída
pela de privilégio (ou privilégio geral, pois o privilégio, ou direito particular (quasi privata
lex), era o meio pelo qual se afastava a regra geral, adaptando a norma a situações
particulares (v. cap. 2.5.5).
§ 646. Neste sentido lato (ou vulgar, como se dizia), os estados seriam infinitos, pois
eram inumeráveis as distinções que o direito fazia entre as pessoas. Embora o direito
romano considerasse apenas três estados: libertatis, civitatis e familae e, por força dessa
tradição literária, muitas das exposições do direito das pessoas obedecessem a esta
tripartição, os autores advertiam que, para além desta distinção, haveria muitas mais a
considerar, pois existiam muitos grupos de pessoas com um conjunto especial de direitos e
de deveres.
§ 647. Por outro lado, o estado autonomizava-se das pessoas físicas, pois, na verdade,
todas os entes tinha uma certa situação – função, estatuto - na ordem do mundo. Ao criar o
mundo, Deus criara a ordem. E a ordem consiste justamente numa unidade simbiótica; numa
trama articulada de relações mútuas entre entidades, pelas quais umas dependem, de
diversos modos e reciprocamente, de outras. Neste sentido, todas elas, sem distinção de
inteligentes ou brutos, de seres animados ou inanimados, disponibilizavam "utilidades" e
exerciam as "faculdades" de gozo inerentes à sua situação, ao seu "estado". Por outras
palavras, todos as entidades que integravam a ordem da Criação tinham direitos e deveres
umas em relação às outras. A extensão desses deveres e obrigações dependia da posição
de cada entidade na ordem do mundo (status), sendo alheia à circunstância de disporem ou
não de entendimento, de serem pessoas ou de serem coisas, no sentido mais corrente das
palavras. Assim, para a tradição do direito comum, o universo dos titulares de direito não era
um universo de pessoas, no sentido comum da palavra, mas antes um universo de "estados"
(status).
§ 648. O que fica dito já permite entender que, ao tratar dos sujeitos da política o do
direito, o ponto de partida não há-de ser constituído pelos indivíduos (i.e., os seres dotados
de identidade física e racional), mas antes pelas condições (status "estados"). Ou seja, pelas
posições relativas que as criaturas ocupam na ordem da Criação, de que fazem parte.
§ 649. Esta diferente conceção do universo dos titulares de direitos tem uma dupla
consequência.
§ 650. Desde logo, não permite uma rigorosa distinção entre sujeitos e objetos do
direito; distinção gémea da contraposição entre "homens" - dotados do uso da razão, a quem
caberiam, em exclusivo, os direitos e as obrigações - e "coisas", privadas de capacidade
racional e que ocupariam, também exclusivamente, a posição de objetos desses direitos e
dessas obrigações (v. cap. 4.1.4). Pelo contrário. Direitos e obrigações poderiam caber,
indistintamente, a homens e a outras entidades que não têm (ou já não têm) essa qualidade.
E, na verdade, as fontes romanas estendiam o “direito” às relações entre animais e até entre
as feras ("O direito natural é aquilo que a natureza ensinou a todos os animais. De facto,
este direito não é próprio do género humano, mas antes comum a todos os animais que
nascem na terra e nos mares, mesmo à aves", Ulpiano, D., 1,1,1,3). Domingo de Soto (1494-
1560), uma das figuras de proa da teologia moral e jurídica da Segunda Escolástica ibérica,
aborda expressamente esta questão do âmbito dos sujeitos de direito. Ou seja, se só os
homens são titulares de direito, ou se, pelo contrário, também os animais e mesmo as coisas
se podem reclamar de pretensões jurídicas: "Pode efetivamente afirmar-se - escreve no seu
Tractatus de iustitia et de iure, 1586 - que, a seu modo, também os animais brutos têm

203
Direito das pessoas.
domínio (i.e., propriedade) sobre a erva [...] e até parece que a rainha das abelhas tem
também domínio [i.e., poder político] sobre seu enxame [...]. E entre as feras, parece que é o
ferocíssimo leão que domina os restantes animais, tal como o gavião parece que exerce
domínio sobre as infelizes aves. Outro tanto se pode dizer dos céus inanimados, os quais
têm domínio sobre este mundo sublunar, derramando sobre ele o calor e a força com que se
sustenta e desenvolve"881 (IV,1,2, pg. 284 col. 1). Deve dizer-se que Soto acabava por
recusar a opinião de juristas e teólogos insignes que tinham ampliado a animais e coisas o
campo do domínio político e do domínio jurídico (ou propriedade). Mas fá-lo respeitosamente
(bona venia dixerim [permito-me dizer]), como se de uma opinião teoricamente respeitável e
provável se tratasse. Insistir neste caráter universal da ordem e nesta ideia de que tudo pode
ter direitos sobre tudo, de que tudo pode estar obrigado a tudo, parece uma peça importante
para a compreensão mais profunda da maneira medieval e moderna de ver e avaliar o
mundo e de se comportar nele. A partir deste modelo mental - absolutamente oposto ao de
hoje -, muitas instituições, normas e comportamentos tornam-se esperados e óbvios. E, com
isso, a sociedade moderna deixa de oferecer muitas surpresas. De facto, esta ideia de uma
ordem universal, na qual as coisas também têm pretensões umas em relação às outras, ou
mesmo em relação às pessoas, legitimava uma série enorme de situações frequentes na
sociedade de Antigo Regime, em que direitos e obrigações acabam por caber a entidades
que não eram homens, como animais, espíritos e até cores882.
§ 651. Por outro lado, nesta conceção total da ordem, quebra-se a identidade entre as
pessoas e os substratos físicos dos corpos individuais. A pessoa passa a ser uma criação do
direito e não uma realidade da natureza. Os juristas exprimem este caráter não empírico da
personalidade de várias formas, tirando disto consequências normativas.
§ 652. As pessoas, dizem os juristas, são criações (ficções, feituras) do direito, que
nada têm a ver com a realidade dos factos (i.e., com o senso comum acerca da
personificação dos factos): o pai e o filho são a mesma pessoa, mas isto apenas para o
direito e não segundo os factos (“Pater & filius una & eadem persona censentur quoad ea,
quae sunt iuris civilis, non quoad ea quae facti sunt”883). Daí que o direito possa: (i) fazer
coincidir mais do que uma pessoa no mesmo substrato corpóreo884; (ii) como unir dois ou
mais corpos físicos na mesma pessoa885); (iii) como criar pessoas sem qualquer substrato
físico (como a alma); (iv) como personificar animais ou mesmo seres inanimados.
§ 653. Eis alguns casos que documentam esta capacidade poiética do discurso do
direito para criar titulares de estados ou qualidades de direito.

881 Domingo de Soto, De iustitia et de iure, Salmanticae, 1556 (ed. cons., ed. facsimilada, bilingue,

a cargo de P. Venancio Diego Carro, O.P., Madrid, Instituto de Estudios Políticos, 1968), 4,1,2, pg. 284
col. 1
882 Cf. António Manuel Hespanha, “As cores […], cit..

883 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 126, n.12; Bento Pereira, Promptuarium […], cit, v.

“Persona”, n. 1421.
884 “Persona una duplici jure considerari potest”, Miguel Reinoso, Observationes […], cit., obs. 8,

n. 21; obs. 27, n. 18; Bento Pereira, Promptuarium […], cit, v. “Persona”, 1421.
885 “Vir & uxor una persona reputantur”, Bento Pereira, Promptuarium […], cit, v. “Persona”, 1421;

Melchior Phebo, Decisiones […], cit., dec.,16, n. 4; “Filius fictione juris est una, & eadem persona cum
patre”, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 126, n.5; Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., pt. 1.,
dec. 108, n.1.

204
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 654. O direito podia atribuir personalidade (e estado), desde logo, a seres
sobrenaturais, como Deus, que, nesta medida, é titular de direitos juridicamente
protegidos886, tanto no domínio civil como no penal887, ainda que o seu exercício e defesa
coubessem aos seus vigários na terra (o Papa, a Igreja, os reis). Também os santos e os
anjos podiam ser titulares de situações jurídicas, como a propriedade de bens ou a
titularidade de cargos. Conhecido é o exemplo de Santo António, titular, em Portugal, de um
posto de oficial num regimento do Algarve, com os correspondentes direitos,
designadamente ao soldo. Titular de direitos podia ser, também, a alma (de pessoa morta), a
quem se faziam frequentemente deixas testamentárias (por exemplo, rendas com as quais
se pagassem missas pela sua salvação)888. A instituição da alma como herdeiro só foi
proibida em Portugal em 1769. Quando Álvaro Valasco889 considerava "incivilis et ridicula" a
decisão de alguns tribunais de aceitar a nomeação da própria alma para as segunda e
terceira vidas de um "prazo de vidas" (enfiteuse transmissível aos herdeiros por umas tantas
vidas, v. cap. 4.3.3), o que lhe repugnava não era que a alma pudesse ser enfiteuta, mas
antes que, sendo a alma imortal, se prejudicasse o senhorio, por nunca poder recuperar o
bem emprazado. Só neste sentido o alma era uma "pessoa minus idonea" (ibid., n. 6).
§ 655. Desprovidos, também, de qualquer substrato físico, no sentido daquilo que o
senso comum exige para que se possa falar de pessoa, estavam outros titulares de direitos,
como o nascituro ou o defunto. O nascituro, além de ter direitos pessoais protegidos (pela
punição do aborto890), era também titular de direitos patrimoniais, como o direito a alimentos
e à proteção das suas expectativas sucessórias, situação a que se referia o brocardo
"nasciturus pro jam natus habetur, quoties de commodo ejus agitur" (o nascituro tem-se por
já nascido em tudo o que respeite aos seus interesses). Quanto ao defunto, além de ser
passível de punição (privação de sepultura, infâmia, censuras eclesiásticas891), era titular de
direitos protegidos penalmente, como o direito à honra, o direito a sepultura e à integridade
do cadáver892; mas também direitos patrimoniais. Uns e outros eram exercidos pelo poder
público - ou pelo príncipe (em Portugal por meio do curador dos defuntos e ausentes893 ou
pela punição penal pública das ofensas feitas aos seus restos mortais - ou pelos herdeiros.
§ 656. Em qualquer dos casos, o verdadeiro titular dos direitos era o defunto, de que o
herdeiro, mais do que representante, era a mesma pessoa ("haeres reputantur eadem
pessoa defuncti”894), assumindo as suas características e qualidades, mesmo psíquicas.
Assim, por exemplo, ele respondia pelas disposições psíquicas do de cuius, como a sua

886 Domingo de Soto, De iustitia et de iure […], cit., liv. 4, qu. 2, art. 2.
887 Cf. g., a criminalização de pecados, que corresponde à tutela pelo direito dos deveres para
com Deus ou, em geral, a tutela jurídica dos deveres religiosos.
888 “Anima censetur persona [prohibita ad nominationem]”, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.,

cons. 193, n. 6, Bento Pereira, Promptuarium […], cit, v. “Persona”, n. 1422.


889 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cit, cons. 193, n. 1 ss..

890 Sobre a punição do aborto no direito moderno, Pascoal de Melo, Institutiones iuris

criminalis,9,14.
891 Cf. Manuel Borges Carneiro, Direito civil de Portugal [Lisboa, 1851], vol. 3, pg. 67, n. 11 ss..

892 Manuel Borges Carneiro, Direito civil de Portugal, ibid.; José Joaquim Caetano Pereira e

Sousa, Classes dos crimes por ordem systematica, Lisboa, 2,2,1,1,6.


893 Cf. Manuel de Almeida e Sousa, Notas a Melo, cit., 1, 11.

894 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. "Haeres", n. 22 e 23.

205
Direito das pessoas.
ignorância, o seu dolo ou a sua má fé (ibid.). Esta sub-rogação na pessoa do defunto
abrangia mesmo o sexo; e, por isso, uma herdeira fêmea podia exercer direitos exclusivos de
homens, desde que personificasse a qualidade de herdeira.
§ 657. Finalmente, são também "personificados" (personae vice fungitur, D., 49, 1, 22)
conjuntos de pessoas, "pessoas coletivas", "corporações", como as universitates, collegia ou
corpora, os conjuntos de bens, como a herança, o fisco, as piae causae (hospitais, montes
de piedade), as capelas e os morgados.
§ 658. Personificados eram, ainda, mesmo que só para os sujeitar a penas, os animais.
São conhecidas muitas histórias de punição de animais. Por exemplo, de animais com os
quais humanos tivessem tido relações sexuais (bestialidade); ou animais responsáveis por
danos. Tomás y Valiente relatou o saborosíssimo caso de um pleito posto, em 1650, por uma
aldeia contra uma nuvem de gafanhotos que, regularmente, assolava as suas culturas.
Citados os gafanhotos, decorrido o processo com a observância de todas as formalidades e
garantias para os réus, estes são finalmente condenados por um tribunal eclesiástico a
abandonar o local. E a situação nem seria extraordinária, pois, segundo o juiz da causa, a
questão da legitimidade do processo era corriqueira”: “A esta pregunta y dificultad fuera fácil
Ia respuesta solamente con decir que así lo han hecho muchos obispos y doctos. como lo
que se refiere del santo y docto obispo El Tostado, obispo de Ávila, que formó tribunal con
fiscal y procurador, hizo proceso contra las Langostas, y dio sentencia de excomunión y las
mandó se recogiesen todas en unas cuevas que estaban fuera de la ciudad; y como lo
mandó, así sucedió. En Valladolid, otro obispo hizo lo mismo contra las Langostas. El obispo
de Osma hizo lo mismo contra los ratones, y actualmente, cuanto estamos actuando este
proceso, se halló aquí un religioso descalzo de San Francisco, que se halló presente en
Osma cuando sucedió y lo vió con sus ojos. En Córdoba hizo lo mismo el obispo de aquella
ciudad contra las golondrinas, que una ermita fuera de la ciudad, de mucha devoción, la
ensuciaban mucho, y no hubo traza humana para estorbarlo, y las hizo proceso y las
excomulgó, y hoy día se ye el efecto de la excomunión [na limpeza da fachada]”895.
§ 659. Mesmo as coisas inanimadas podiam ser titulares de direitos. Assim, um prédio
podia ser titular de direitos de servidão, a prestar ou por outros prédios (servidões reais) ou
por pessoas (servidões pessoais, como a “adscrição”, vinculação de certas pessoas a
trabalhar certa terra). Claro que o exercício ou a reivindicação destes direitos competia a
uma pessoa. Mas esta era indiretamente designada pela especial situação que tinha com a
coisa. Só mais tarde, quando o racionalismo moderno identificou a capacidade jurídica com a
capacidade de usar a liberdade e a razão, se recusará que seres carentes de inteligência e
de vontade possam ser titulares de direitos896.

895 Francisco Tomás y Valiente, “Delincuentes y pecadores”, em Francisco Tomás y Valiente et


al., Sexo barroco […], cit., 22 ss..
896 Cf. Domingo de Soto, De iustitia et de iure […], cit., liv. 4, qu. 1, sect. 2, pg. 283. Barthélemy de

Chasseneuz (1480–1541) tinha alargado a possibilidade de processar animais e de estes se


defenderem no foro no seu “Consilium primum, quod tractatus jure dici potest, propter multiplicitatem et
reconditam doctrinam, ubi luculenter et accurate tractatur quaestio illa: De excommunication animalium
et insectorum” (de 1531), em Responsorum seu Consiliorum opus, Lugduni, Giunta, Jean Jacques
Moylin, 1535, citado por Edward Paysan Evans, The criminal prosecution and capital punishment of
animals, London, Heinemann, 1906 20 ss.
http://www.archive.org/stream/criminalprosecut00evaniala#page/18/mode/2up/search/autun). Quanto
aos ratos e gafanhotos, v. Gaspard Bally, Traité des monitores, avec un plaidoyer contre les insectes,

206
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 660. Tratam-se, de seguida, os estados geralmente identificados como relevantes no
direito português de Antigo Regime.
3.1.1 Escravos.
§ 661. Segundo o direito comum, estado de escravidão configurava a maior perda da
capacidade jurídica (capitis diminutio maxima), adquirindo-se por nascimento e pela
escravização segundo o direito das gentes ou segundo o direito civil e, neste caso, ou por
contrato, ou por pena897.
3.1.1.1 Títulos de escravização.
§ 662. O primeiro título justo de escravização898 era o nascimento, valendo aqui a regra
geral de que o filho seguia a condição da mãe (partus sequitur ventrem), nomeadamente por
razões de certeza (mater semper certa, pater nunquam). A data relevante para determinar o
estado da mãe era o período entre a conceção e o parto, ou seja, o período em que o filho
estava no útero da mãe899. Assim, se uma escrava tivesse sido deixada a um filho do dono,
com a condição de ficar livre depois da morte deste filho, eram escravos todos os seus filhos
concebidos ou nascidos até à morte do tal filho. Mas se tivesse sido manumitida com a
condição de, como livre, continuar servir o filho do antigo dono, esses filhos seriam livres900.
§ 663. O princípio de que o status libertatis se atribuía de acordo com o estado da mãe
(“seguia o ventre”) tinha origem no direito romano (D., 1,5, De statu hominum, 24). O texto
romano referia-se, não à questão do status, mas à da propriedade do filho de dois escravos
de donos diferentes. Isto explica que a regra contrariasse um outro princípio segundo o qual
era o pai que determinava a qualidade do filho, dada a prevalência genética do macho sobre
a fémea. Foi recebido no direito português, embora logo as leis visigodas (Liber judicum,
10,1,17) tivessem corrigido esse princípio, dividindo a propriedade do nascido pelos dois
senhores. Em Portugal, este regime tinha exceções. Assim, era doutrina comum que o filho
de mãe escrava e do dono da mãe adquiria a liberdade (e direito sucessórios) com a morte
do pai, por uma presunção de manumissão tácita901. No séc. XVIII, isto tinha que ser
combinado com as disposições da lei do ventre livre, de 16.1.1773, que considerou livre o
filho de escrava, esposa ou concubina do pai902.

par spectable Gaspard Bally advocat au souverain Sénat de Savoye, 1668, igualmente citado pelo
anterior. Quanto a bois, José Dias Ferreira, Codigo civil português annotado, 1, Lisboa, Imprensa
Nacional 1870, p. 6. Em geral, Vilfredo Pareto, Traité de sociologie générale, trad. franc. Pierre Boven
revue par l’auteur, 1917, cap.IX, §1397 à §1542) §1501 (http://bibliotheque.uqac.uquebec.ca/index.htm);
http://www.archive.org/stream/criminalprosecut00evaniala#page/18/mode/2up/search/autun).
897 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 50 ss. (De servitute mere

personali).
898 Sobre os títulos de escravização, v. João Baptista Fragoso, REGIMEN
REIPUBLICAE christianae, cit. [1641], Parte 1, cap. 8; António Cardoso do Amaral, Liebr […], cit. v.
“Servitus”, ns. 50 ss. (De servitute mere personali).
899 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 60.

900 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 61.

901 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], cit., v. “servus”, n. 1762 e 1764, citando as opiniões de

Gabriel Pereira de Castro (Decisiones […], cit., dec. 12, n. 11-13; 1764, António de Sousa de
Macedo, Decisiones […], cit., dec. 40.
902 Quanto aos nascidos antes, transmitiam a escravidão por duas gerações (a filhos e netos),

207
Direito das pessoas.
§ 664. Um outro título da servidão civil era a guerra, de acordo com o direito romano e
das gentes. A teologia moral cristã viria exigir, suplementarmente, que a guerra fosse justa.
Já antes vimos o principal da teoria da guerra justa, da qual resultava ser justa, em geral, a
guerra defensiva e, em casos limitados, a guerra ofensiva (v. § 521 ss.).903. Era nestes
termos que se legitimava a guerra contra “os sarracenos e turcos”, por parte daqueles que
sofreram as suas ocupações e injúrias, ou por parte dos seus herdeiros904. A definição de
quem eram estes “sarracenos e turcos” que se tinham apropriado de terras ou bens cristãos
era questão mais complicada, que explicava a reescrita da história no sentido de demonstrar
um domínio primordial dos cristãos sobre terras agora nas mãos de muçulmanos905. Em
contrapartida, era evidentemente injusta a guerra motivada apenas pela ambição de
“ampliação do império, a glória ou comodidade próprias”906. Como, por direito natural, os
vencedores podiam escravizar os vencidos em guerra justa, ficava circunscrito o âmbito no
qual se podiam fazer escravos por direito da guerra. Outros autores simplificam o conceito de
guerra justa, considerando como tal toda a guerra movida por ordem do Papa, imperador ou
príncipe que não reconhecesse superior907. Isto equivalia a substituir um requisito substancial
por um requisito formal, sendo um indício das pretensões progressivamente absolutas dos
poderes temporais.
§ 665. Nada disto valia, porém, entre cristãos, pois existiria um costume prescrito
segundo o qual os cristãos não reduziam cristãos908 vencidos à escravidão909. Esta exclusão
dos cristãos da escravização pela guerra é, a partir do séc. XVI, um princípio bem
estabelecido entre as nações europeias, que não admitem mais que os inimigos cristãos
vencidos na guerra se tornem escravos, embora caíssem eventualmente em cativeiro por
razões de segurança. Na tradição portuguesa, a liberdade dos vencidos podia incluir,
inclusivamente, não cristãos, como era o caso dos mouros livres ou “de pazes” do norte de
África, a que se referiam as Ordenações Afonsinas910. Mas, em geral, os vencidos não
cristãos eram considerados escravos911. A posição de Pascoal de Melo de tentar estender a
outros vencidos aquilo que as Ordenações dispunham sobre os mouros de pazes refletia a
tendência da época hostil à escravização912. A remoção do princípio da escravização de

mas não para além disso, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 2,1,4.
903 Era neste plano que se legitimava a guerra contra “os sarracenos e turcos”, por parte daqueles

que sofreram as suas ocupações e injúrias, ou parte dos seus herdeiros (na falta destes, do Papa)
(Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 435 A/B).
904 Na falta destes, podia ser feita pelo Papa ou por aqueles em quem ele delegasse, Luís de

Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 435 A/B.


905 Cf., sobre a ação de liberdade proposta por uma cativa de Túnis, nota 1841.

906 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 435 C.

907 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 52.

908 Alguns autores do séc. XVII dizem “católicos”.


909 Cf. Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, 158.1 E; ibid., 158.2 A; Bento Pereira,
Promptuarium […], n. 1763; Melchior Febo, Decisiones […], d. 190, n. 13.
910 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 1,6. Cita Bodin e Vinio, criticando a sua

opinião sobre o estado dos mouros; usa a prova histórica, remetendo para a Historia […], § 66.
911 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], cit., n. 1760 (“os de Tunis, capturados pelos nossos, são

escravos”).
912 Cf. a censura de Manuel de Almeida e Sousa (em Notas de uso […], na nota ao lugar

208
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
cristãos pela guerra era consistente com a ideia de que não se perdia, tão pouco, a liberdade
quando se fosse aprisionado na guerra por estrangeiros. Por isso, os portugueses em
cativeiro eram considerados como livres, não se lhes aplicando o direito de postlimínio913.
Todavia, a não escravização de cristãos vencidos não implicava a alforria dos que se
batizassem já escravos. A mesma antipatia pela escravização de cristãos conduzia a que se
desse a liberdade ao escravo que viesse às mãos de judeu, se fosse cristão ou o quisesse
ser914.
§ 666. O direito português reconhecia a instituição do resgate, pelo qual se comprava a
liberdade de alguém mantido em cativeiro (embora não necessariamente na situação de
escravo) (cf. Ord. fil.,1,90.1). A esta função - considerada piedosa e desempenhada pelos
mamposteiros dos cativos (até à sua extinção, 4.12.1775915) -, estavam consignados os
resíduos das heranças (Ord. fil.,1,62,26; v. cap. 5.3.1.5) e as multas pecuniárias não
consignadas a outro fim (Ord. fil.,5,136,pr). Como o resgate era um negócio reconhecido, o
resgatado era obrigado a satisfazer o resgatante pelo valor do resgate, como seu gestor de
negócios916).
§ 667. Outra causa da servidão civil era a condenação em crime que, segundo um justo
arbítrio, merecesse tal pena, sendo certo que esta pena nunca se poderia aplicar senão ao
criminoso, nunca aos seus descendentes; embora, reduzido este ao estado de escravidão, o
estado servil se perpetuasse na descendência917. A regra segundo a qual o condenado à
morte ficava escravo da pena existia em direito romano, apenas para tornar juridicamente
possível a execução do condenado, já que um cidadão não podia ser morto. O direito usava
depois esta figura para impedir tais condenados de fazerem testamento918. Porém, a
escravidão da pena foi suprimida pelo direito justinianeu. No direito pátrio, a redução à
escravidão não constituía uma pena ordinária, expressamente prevista nas Ordenações. Mas
alguma doutrina quinhentista e seiscentista entendia que ela existia, tal como no direito
romano, como pena acessória da pena capital919. De facto, nas Ordenações (Ord. fil.,4,81,6),
recorda-se a regra romana, para se diminuir o seu alcance: o testamento era permitido a
condenados à morte, mas apenas para permitir dispor da terça, ou quota disponível, a favor

respetivo) a essa tentativa de estender a todos os “mouros” a referência das Ordenações a mouros
forros.
913 O postlimínio consistia na restituição de direitos civis a quem os tivesse perdido por cativeiro

ou por decisão de um magistrado estrangeiro ocupante. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit.,
v. “Servitus”, n. 52. Por não ficarem escravos, os cristãos não podiam ser forçados a pagar resgate a
cristãos, pois não ficam escravos, ibid., n. 52. Também cristão cativados por sarracenos não ficavam
escravos por direito, pois a guerra dos sarracenos era injusta, ibid., n. 53; Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis, 1,11,7-8; Ibid., 2,1,6.
914 O dono recebia um resgate simbólico, que a doutrina estimava em 12 soldos, desde que

pusesse o escravo à venda no prazo de três meses sobre a data da aquisição, António Cardoso do
Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 59.
915 Anterior regimento em Manuel Lopes Ferreira, Practica criminal […], cit. t. 3, cap. 33.

916 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2,1,9.

917 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 158 C a160 C.
918 D.48,19, De poenis, 29; C.,6.22. Qui facere testamentum possunt vel non possunt, 8.
919 Tal é a opinião de Bento Pereira, nos meados do séc. XVII (em Promptuarium…, cit., n. 1763,

citando António Gama, Decisiones …, cit. [1578], dec. 362, n. 2. Cf. ainda Domingos Antunes Portugal,
Tractatus de donationibus […], liv. 3, cap. 15, n. 60; cap. 30, n. 8.

209
Direito das pessoas.
de obras de piedade (dotes de órfãs, remissão de cativos, hospitais, conserto de igrejas).
Aparte este caso atípico da escravidão por causa da pena, as Ordenações apenas previam a
pena de escravidão para judeus ou mouros que ajudassem escravos a fugir (Ord. fil.,5,
63)920, situação que, depois da expulsão por D. Manuel constituía uma reminiscência sem
relevo prático.
§ 668. No entanto, Luís de Molina entendia que, em relação aos povos indígenas do
ultramar (“numa e noutra Guiné”), devia ser reconhecida a pena de escravização a que
tivessem sido condenados pelas autoridades (indígenas) do lugar em virtude de crime
público atroz, como os crimes contra a república, pois esse seria também o regime da lesa-
majestade europeia. O reconhecimento da legitimidade da escravização penal dependeria,
assim, de um juízo de comparação entre a gravidade do crime que levara à condenação do
presumível escravo pelas autoridades nativas e a daqueles crimes que, na tradição do direito
penal europeu, proporcionadamente devessem levar à aplicação de uma pena tão grave
como esta. Molina é de opinião de que, de acordo com um prudente arbítrio, seria justo
reconhecer como escravos os nativos condenados pelas autoridades locais por crimes
puníveis, na Europa, com a morte ou com as galés, dando como exemplo o adultério da
mulher, o atentado ao pudor de uma mulher, o furto de coisa notável segundo os critérios do
lugar. Não assim os furtos leves, “pois nem no exército os punimos assim”921. A escravatura
penal dos nativos pelas suas próprias comunidades era, assim, legítima e reconhecida922.
Esta conclusão tinha uma enorme importância, pois dela resultava a legitimidade do estado
de escravidão de muitos dos nativos comprados aos régulos locais.
§ 669. A derradeira causa de escravização seria a venda de si mesmo923. De facto, diz
Luís de Molina, os homens – livres por direito natural - eram donos de si mesmos e da sua
liberdade, da qual podiam dispor924; a única restrição que se punha era a de a venda poder
ser feita levianamente, quer quanto às circunstâncias, quer quanto ao preço925. A conclusão
de Molina era arriscada, pois pressupunha a disponibilidade plena de bens pessoais
fundamentais, como a liberdade (ou, por paralelismo, a vida). E, por isso, este ponto de vista
era discutido926. No entanto, a prática estaria documentada nas Escrituras927, sendo também
aceite pelo direito romano; em ambos se permitia ainda a venda dos filhos in potestate pelos
pais928. Ou seja, era uma prática recebida – onde o tivesse sido - pelo direito civil. Já onde o
direito civil não a tivesse recebido expressamente, não valeria, dado o princípio da liberdade

920 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 2,1,11.


921 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 180A.
922 Embora já se considerasse injusto escravizar a mulher, os filhos ou os parentes do criminoso.

923 Segundo alguns autores, a ingratidão era também uma causa de escravização, pois o liberto

ingrato em relação aos seu antigo dono recaía na escravidão, António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., v. “Servitus”, n. 54.
924 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 160 D.

925 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 160 D-161 C. Cf. também disp. 33.

926 Também pela legitimidade da alienação da liberdade, João Baptista Fragoso, Regimen […],

cit., p. 1, cap. 8. disp. 21, §§ 1-7; divergentes: Álvaro Valasco, Tractatus de jure emphyteutico […], cit.,
qu. 37, n. 9; Francisco de Caldas Pereira e Castro, Tractatus de emptione […], cit., cap. 30, n. 36).
927 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 160 D. Noé amaldiçoou o seu filho Cam

e declarou-o servo dos servos (Génesis 9:20-27).


928 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. D 161 D.

210
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
natural dos homens. Esta última restrição não deixa de ter interesse, pois obrigaria à prova
concreta da admissão da venda de si mesmo, exigindo averiguações concretas das
situações, de direito e de facto. Era, seguramente, o caso do Reino, onde tais contratos não
estavam permitidos (Ord. fil.,4,42). António Cardoso do Amaral considerava que tal prática
não estava em uso, pelo menos entre as pessoas bem nascidas929. No Ultramar, dependeria
daquilo que se provasse serem os usos locais.
§ 670. Onde o estado de escravo era mais duvidoso, mesmo apenas no plano
doutrinal, era justamente no ultramar. Primeiro, porque era incerto se a guerra contra nativos,
que se desenrolava paralelamente à evangelização, conduzia ou não à escravidão. Por um
lado, n todas as guerras eram justas; e, para além disso, poderia haver nativos cristãos, que,
no rigor da doutrina, não se podiam tornar escravos. Depois, porque a admissão da
escravatura penal nativa dependia de um juízo prudencial e casuístico, uma vez que eram
diferentes os costumes dos diversos povos quanto à admissão dos contratos de alienação da
liberdade.
§ 671. Combinando a doutrina com a caracterização das situações, Molina formulava
algumas regras gerais.
§ 672. A primeira era a de que, se os escravos provinham de territórios onde havia
guerra justa e tivessem sido adquiridos no tempo dela, se presumia que eram justos
escravos; o mesmo se diria tendo cessado a guerra, mas não havendo rumor de que aí se
fizessem escravos injustamente, pois se presumia que eram os cativos de guerra ou filhos
deles 930. A questão complicava-se com a da caracterização da guerra como justa ou injusta,
tema sobre que Molina apresenta uma extensa casuística 931. A opinião de Molina sobre as
guerras entre os africanos era muito negativa (“Rarissimamente se presume que sejam
justas. Os que se julgam mais poderosos invadem e oprimem os outros; e são esses que
mais escravos exportam, apoiando as injustiças dos outros e tirando aos escravizados
injustamente a sua liberdade …”, ibid., col. 189 E). E concluía: “Opino que estas guerras de
que os portugueses se abastecem de escravos, são mais latrocínios do que guerras”.
§ 673. Regras ulteriores dizem respeito aos escravos que se vendessem
voluntariamente como tal. A frequência com que tais vendas (sobretudo de filhos e mulheres)
eram invocadas obrigava a que houvesse o cuidado de inquirir das suas circunstâncias932.
Assim. Na Índia e em sítios em que as grandes fomes levavam os infiéis a venderem os
filhos ou a si mesmo, seria justo comprá-los, sempre que a sua decisão fosse livre e que
existisse da sua parte uma grande necessidade. Como cada um era dono de si, podia vender
livremente a sua liberdade; e, se o contrato fosse válido segundo a lei do lugar, teria que se

929 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 55 e 56.
930 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 178D-179A.
931 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 185 B, concluindo, como regra geral

que, sendo duvidosas as questões sobre a justiça das guerras, era lícito a um terceiro comprar coisas
tomadas por qualquer das partes. No caso de guerras injusta de ambas partes, movidas pela cobiça e
falta de vontade de fazer a paz, como acontecia em muitas guerras dos infiéis e dos bárbaros, podiam
comprar-se os cativos de guerra (ibid., col. 186 D). Isto porque como que se teria gerado um pacto
mútuo de cativar os vencidos, que obrigava os beligerantes e aproveitava a terceiros (Luís de Molina,
Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 187 B). “Talvez esta decisão – conclui Molina ironicamente - não
deixe de sossegar as consciências daqueles que compram escravos na Guiné superior e na Cafreria”
(Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 187 D).
932 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 180 D

211
Direito das pessoas.
aceitar933.Para mais, a escravização por cristãos seria melhor do que o estado de grave
necessidade, sobretudo pela oportunidade de conversão. A compra seria, assim, um ato de
caridade. Ou seja, embora a ajuda um necessitado pagão não fosse exigida pela lei da
caridade, como acontecia no caso de o necessitado ser cristão, se fosse prestada, legitimava
que se obtivesse algo em troca dessa ajuda. A escravização seria essa contrapartida (ibid.,
181 C). No caso destas compras da liberdade, também o preço podia ser matéria de
escrúpulo por excessivamente módico. Excetuar-se-ia, porventura, o caso da Guiné Inferior
(Congo e Angola), onde a liberdade quase parecia não ter valor. Nos restantes cenários, o
preço seria variável. Em alguns lugares da Índia ou no reino de Cambaia, compravam-se
filhos aos pais por somas muito módicas, sobretudo quando havia fomes 934. Molina adverte
ainda, a este propósito, “que o preço dos meninos não se mede pelo seu valor útil, mas em
muito mais, a não ser que interviesse alguma circunstância peculiar pela qual se devesse
comprar aquele menino por menos do que os outros (como no caso de a sua vida correr
grande risco e se ter que fazer grandes despesas para o curar ou alimentar, morrendo se
continuasse em poder dos pais)”935. Na Guiné, comprava-se um escravo por um espelho dos
usados pelas mulheres portuguesas pobres ou por outros bens, como meio côvado de pano
azul, verde ou vermelho, objetos de vidro ou de cobre. De tal modo que o escravo não
custava ao mercador mais do que uma moeda de ouro ou menos. Por outro lado, a
abundância de escravos fazia baixar o seu preço, a ponto de os africanos os negociarem por
preços muito baixos, como contas de marfim, que usam ao pescoço como adorno, ou dentes
de pantera936. Molina, pela sua parte, tinha deste assunto uma apreciação prudente: “Não
ouso condenar este trato da Guiné. Aquelas coisas que nós aqui vilipendiamos, são lá
apreciadas. E o seu longo e perigoso transporte fá-las caras lá”937.
§ 674. A situação dos indígenas brasileiros quanto à escravização era ainda mais
complicada, pela existência, por sobre estas regras doutrinais, de legislação real
contraditória938. Na verdade, de acordo com legislação desde os finais do séc. XVI, os índios
do Brasil eram livres (CL 20.3.1570), salvo se fossem feitos prisioneiros em guerra justa
(precedendo alvará de guerra justa, CL 11.11.1595). Legislação posterior ignorou mesmo
esta ressalva (CL 5.6.1605; 30.07.1609); mas a CL de 10.09.1611 volta a declarar escravos
os índios revoltados e a validar as suas vendas. Na CL de 9.4.1655, D. João IV declara
escravos os índios aprisionados em guerra justa, fosse ela declarada por portugueses,
estrangeiros ou índios e, para além desses, os que impedissem a pregação e os índios
vendidos amarrados por cordas. D. Pedro II restitui os índios à liberdade pela CL de
1.4.1680, providência confirmada em 6.6.1755939.
§ 675. Na segunda metade do séc. XVIII, a escravatura tinha, no Reino, uma existência
residual. Pascoal de Melo concluía que, nesta matéria de escravos e libertos, o direito

933 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 182 B.
934 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 183 E.
935 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 184 A.

936 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 183 C.
937 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 182 E/183 A.
938 Cf. Rafael Ruiz, Francisco de Vitória e a liberdade dos índios americanos, cit.; na época, v.g.,

João Baptista Fragoso, Regimen reipublicae […], cit., p. 3, liv. 10, disp. 22, § 1 ss..
939 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2,1,10.

212
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
romano tinha perdido o uso940, estranhando que se mantivesse este estatuto no Brasil941.
Não era tanto assim, nomeadamente quanto ao estatuto dos libertos, sujeitos aos patronos
por uma capitis deminutio que consistia em deveres de fidelidade e de reverência
semelhantes aos dos filhos, ou ao uso das ações de liberdade, pelas quais muitos alegados
escravos continuavam – no Brasil, até aos finais do séc. XIX - a reclamar em juízo o estatuto
de livres 942.
3.1.1.2 O direito dos escravos.
§ 676. O escravo era tido como ninguém (nullus), não podendo ser titular de ações ou
de direitos943 944. Em certa medida, era como se fosse uma coisa, pelo que algum autor diz
não haver diferença entre a servidão de um prédio e a de um escravo945 Consistente com
esta coisificação do escravo e dos seus atributos era o considerar-se que o escravo que
fugisse cometia “um furto de si”946. Daqui decorriam todas as incapacidades dos escravos.
Não podiam adquirir a propriedade nem a posse. Não podiam contrair obrigações nem ser
credores delas. Não podiam estar em juízo por si. Não podiam exercer magistratura, nem ter
ofícios.

940 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2,1,12.


941 “Ignoro em absoluto com que direito e a que título. Bem sei que o comércio, a agricultura, a
indústria, as minas de ouro e outras atividades lucrativas destas regiões só podem ser vantajosamente
exercidas com o emprego desses homens rudes; mas uma coisa é utilizar o seu trabalho e serviço, e
outra tê-los como escravos e em verdadeira propriedade. Será para desejar que, em assunto tão grave,
se harmonizassem as razões da humanidade e as razões civis” (cita Montesquieu, Smith, de Felice,
Schwartz, Raynal), Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2,1,12 nota). Sobre o ambiente jurídico da
época quanto à escravatura, Cristina Nogueira da Silva, “Escravos e direitos fundamentais no
pensamento constitucional e político de oitocentos”, em Africana Studia. Revista Internacional de
Estudos Africanos, nº 14(2010).
942 As ações de liberdade eram ações prejudiciais destinadas à declaração do status libertatis do

autor. Pela actio contraria, o autor reclamava a declaração do estado desfavorável do réu. Cf. cap.
7.1.3.1).
943 "Servi pro nullis habentur, & cum illis nulla actio, vel obligatio civilis esse potest", escreve Bento

Pereira no seu Promptuarium […], citando autores representativos (v. "Servi"); cf. Jorge de Cabedo,
Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 150, n. 2 ss..
944 Sobre o estatuto jurídico dos escravos em Roma, v. W. W. Buckland,The Roman law of

slavery. The condition of the slave in private law from Augustus to Justinian, Cambridge, Cambridge
U.P, 1908 (http://pt.scribd.com/doc/24531929/Buckland-Roman-Law-of-Slavery). Para o Brasil, Waldomiro
Lourenço da Silva Júnior, “Alforria, liberdade e cidadania: o problema da fundamentação legal da
manumissão no Antigo Regime ibérico”, em Revista de Indias, 73.258(2013), 431-458
(http://revistadeindias.revistas.csic.es/index.php/revistadeindias/article/viewArticle/930, 30.08.2013); Arno
Wehling & Maria José Wehling, “O escravo na justiça do Antigo Regime: o Tribunal da Relação do Rio
de Janeiro”, Arquipélago, 2ª série, 3, 119-139 Também, Mariana Armond Dias Paes, “O estatuto
jurídico dos escravos na civilística brasileira”, diss. UFMG, Belo Horizonte, 2010, em
http://www.academia.edu/388464/O_estatuto_juridico_dos_escravos_na_civilistica_brasileira (direito
dos escravos); Kátia Lorena Novais Almeida, “Da prática costumeira à alforria legal”, em Politeia, v.
7.1(2007), 163-186 2007 (http://periodicos.uesb.br/index.php/politeia/article/viewFile/227/245, 30.08.2013).
945 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 6, n. 6.

946 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 6, n. 1. Ele e quem o encobrisse

estavam sujeitos às ações do furto, pelo dano e pela pena, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., v. “Servitus”, n. 70 (v. cap. 8.2.6.2).

213
Direito das pessoas.
§ 677. Este estatuto tão negativo tinha, porém, limitações, algumas que já vinham do
direito romano. Outras provinham do direito canónico que, a propósito da liberdade dos
escravos de receber sacramentos – designadamente, o sacramento da ordem947 -, introduziu
a distinção entre o constrangimento do corpo e a liberdade da alma. Daqui resultava uma
situação sui generis, combinando uma incapacidade básica com algumas exceções.
§ 678. No plano patrimonial, o escravo adquiria para o seu senhor, embora pudesse ter
alguma autonomia de gestão patrimonial, em virtude de um pecúlio constituída pelo senhor
para ser gerido por ele948. Porém, nesta gestão, as obrigações e perdas ou ganhos
patrimoniais eram do senhor. O rigor deste princípio era atenuado, na prática, por figuras
diversas, entre as quais a ideia de obrigação natural, de responsabilidade do dono pelos atos
do escravo e, sobretudo, pela instituição do pecúlio (v. cap. 3.2.4), um conjunto de bens que
o senhor entregava ao escravo e que este podia aumentar com um negócio ou atividade
gerida por si949. Os poderes de disposição do escravo eram precários950 e não configuravam
verdadeiros direitos951; mas o direito conhecia uma série de expedientes que garantiam
quem comerciasse com o escravo fiado na garantia do pecúlio e isto bastava a terceiros
contraentes, a quem eram dados meios processuais para exigir supletivamente do dono o
cumprimento das obrigações do escravo952. Com base no pecúlio, o escravo podia conseguir
um pé de meia para desenvolver uma atividade lucrativa – por exemplo, alugando outros
escravos - ou economizar para comprar a sua liberdade. A figura dos chamados “escravos a
ganho”, comum no Brasil, permitia aos senhores tirar partido do trabalho e serviços de
escravos excedentários, pondo-os a servir como carregadores, aguadeiros ou mesmo
prostitutas. Mas, porque a actio de peculio permitia a limitação da responsabilidade do
senhor ao montante do pecúlio, o escravo a ganho ou negociante constituíam formas de
envolvimento comercial do senhor com responsabilidade limitada e, por isso, eram
apreciadas em negócios de algum risco.
§ 679. No plano pessoal, o escravo podia receber livremente os sacramentos e contrair

947 A questão era a de saber se um escravo podia ser ordenado sem consentimento do dono. A

Igreja via-se confrontada com a contradição entre a liberdade da fé e os direitos do dono do escravo à
sua exploração, pois a entrada no estado eclesiástico privaria o dono dos serviços do escravo; cf. R. H.
Helmholz, The spirit of classical canon law […], cit. chap. 3. Na doutrina portuguesa moderna, a opinião
mais comum era a de o escravo não podia ser ordenado (diácono ou sacerdote) sem a autorização do
dono; se o fosse, o sacramento era válido, mas devia ser deposto, António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., v. “Servitus”, n. 67.
948 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 77.

949 Sobre os pecúlios no direito romano,


http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/secondary/SMIGRA*/Servus.html.
950 É que, em princípio, a promessa feita pelo senhor ao escravo não obrigava aquele, Bento

Pereira, Promptuarium […], cit., n. 1760, citando António da Gama, Decisiones […], cit. [1578], dec.
115, n. 1.
951 Gaius, Institutiones, 4,78: “78. Sed si filius patri aut servus domino noxam commiserit, nulla

actio nascitur. Nulla enim omnino inter me et eum, qui in potestate mea est, obligatio nasci potest;
ideoque et si in alienam potestatem pervenerit aut sui iuris esse coeperit, neque cum ipso neque cum
eo, cuius nunc in potestate est, agi potest”.
952 Nomeadamente por meio de uma actio de peculio (ou de in rem verso), que limitava a

responsabilidade do dono ao montante do pecúlio, com isto constituindo um meio de limitação da


responsabilidade do devedor.

214
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
matrimónio sem o consentimento do dono. Se este não tivesse mostrado opor-se ao
casamento, não podia mesmo vender o escravo para longe, de tal modo que a mulher,
sendo escrava, não pudesse satisfazer o débito conjugal953. Não pode ser instituído herdeiro,
nem nomeado legatário954, a não ser sob a condição de vir a adquirir a liberdade955.
§ 680. No plano processual, os escravos careciam de legitimidade processual ativa e
passiva na generalidade das causas civis. Nem sequer podiam ser testemunhas, pois eram
infames956. Nas causas civis patrimoniais apenas o senhor o podia defender, pelo interesse
patrimonial que tinha no desfecho da ação; mas quem era condenado era o escravo957. Mas
podiam estar em juízo nas ações de liberdade958. Nas causas espirituais e nas causas
relativas a relações pessoais do matrimónio (por exemplo, pedido da mulher), os escravos
eram capazes959. No foro criminal, podiam ser acusados de todos os crimes e sofrer todas as
penas, salvo as patrimoniais, pois não tinham bens960. Concretamente, contra eles podia ser
posta a actio furti, com a qual o senhor reclamava ser ressarcido pelo furto que o escravo
fugitivo tinha feito da sua própria liberdade961; já a reivindicatio, pelo qual o senhor pedia a
entrega do seu escravo era posta contra o seu possuidor ilegítimo. O direito punia duramente
o escravo que tivesse dormido com a ama, mandando-o chicotear e queimar962.
§ 681. Os poderes do senhor sobre o escravo não eram ilimitados. Como todos os
poderes jurídicos, eles estavam limitados por um “uso honesto”, ou seja, conforme à
natureza das coisas. O facto de o escravo ser uma criatura humana impedia que ele fosse
objeto de práticas desproporcionadamente cruéis. Já no direito romano, matar um escravo
não era apenas um delito que apenas gerava uma obrigação de indemnizar o dano (como
destruir uma coisa). Era um crime (v. D.,47,2,61). Assim, a Lei das XII Tábuas dava uma
ação contra quem tivesse quebrado um osso a um escravo (D.,47,2,36). Em princípio, caíam
nesta categoria de atos criminosos todos os atos de violência que se afastassem da intenção

953 Se, porém, a mulher fosse livre, não se dava esta limitação, devendo ela acompanhá-lo para

onde ele fosse mandado; se o dono colaborou com o escravo que se fazia passar por livre para casar
com mulher livre, entendia-se – como castigo – que o dono tinha querido manumitir o escravo, cf.
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 74.
954 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 65.

955 O dono, porém, não podia apor esta condição em relação a um escravo seu, mas apenas a

um de outrem; se o escravo fosse seu, a instituição como herdeiro era entendida como manumissão,
cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 62.
956 Por isso que era infame também não podia ser juiz, advogado ou procurador, nem exercer

ofícios civis, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 76.
957 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 72-73.

958 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 73, n.1; António Cardoso do Amaral,

Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 75 (acrescenta as ações relativas à utilidade pública).


959 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 73.

960 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 71.
961 Pois se entendia que, ao fugir, o escravo cometia um furto de si, Bento Pereira, Promptuarium
[…], cit. n. 1760.
962 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 78; já a escrava que tivesse

dormido com o amo não era punida, se este não fosse casado. Pelo contrário, se se mantivesse como
sua concubina até à morte dele, ganhava a liberdade, a não ser que o amo fosse casado, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 79; v. “De sacramento matrimonii”, n. 66.

215
Direito das pessoas.
de corrigir e emendar (animus corrigendi vel emendandi)963, atentando contra os bons
costumes (bonos mores)964. Contra os bons costumes era, também, induzir uma escrava à
prostituição965. Se o agressor não fosse o dono, havia, tal como em relação a animais
domésticos, ações para o possuidor ou dono do escravo reclamarem a punição de injúrias
feitas a escravos. Era o caso da actio legis Aquiliae, dada contra quem matasse ou ferisse
um escravo ilegitimamente, i.e., sem ser em legítima defesa ou por ser encontrado em
adultério ou semelhante (D.,9,2,11,7; Cf. cap. 8.2.6.1.). Em Portugal, isto era recebido,
fornecendo a cobertura jurídica para um princípio cristão de caridade e piedade966. Assim,
entendia-se que o dono podia castigar e prender, mas não matar ou infligir deformidades
corporais. A Igreja devia entregar aos seus donos os escravos que se acoitassem a ela com
medo de sevícias, embora obrigando os donos a jurar que não os tratariam com excessos967.
O impacto destas limitações na prática seria pequeno, porventura menor ainda do que os
limites existentes ao exercício do poder doméstico sobre mulher, filhos e criados. Por isso, as
cartas régias de 20.3.1688 e de 13.3.1688, que obrigavam os senhores que maltratassem os
escravos a vendê-los, foram revogadas pouco depois (23.2.1689), deixando de novo os
castigos ao arbítrio do bonus pater famílias, a ser avaliado pelos tribunais, de acordo com os
hábitos estabelecidos. Nos sécs. XVIII e XIX, a justiça – influenciada por um ambiente mais
sensível aos argumentos da piedade e da crença na humanidade –, a justiça passa a aceitar
acusações de maus tratos contra senhores de escravos, postas por estes ou por terceiros,
os quais podiam terminar pela concessão da liberdade aos escravos maltratados968.
§ 682. O estado de escravidão terminava, tipicamente, com a manumissão ou
alforria969. No direito romano, a manumissão era um ato muito formal, pois representava não
apenas a concessão da liberdade, mas também a criação de um novo cidadão. Fazia-se ou
por uma declaração solene e ritual de um magistrado de que o manumitido era um cidadão,
com a presença do e acordo (ainda que apenas tácito) do manumitente (vindicta), ou pela

963 D.47.10.15.38.
964 Cf. W. W. Buckland,The Roman law of slavery. […], cit., maxime, p. 29 ss..
965 Cf. W. W. Buckland,The Roman law of slavery [...], cit., 75 ss.

966 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 69.
967 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 69.
968 Tratava-se da ampliação do princípio que dava a liberdade aos escravos expostos ou privados

de alimentos. Cf. Silvia Hunold Lara, Campos da Violência: escravos e senhores na capitania do Rio de
Janeiro, 1750-1808, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988. p. 364-365; ID. “Legislação sobre escravos
africanos na América portuguesa”, em José Andrés-Gallego (Coord.), Nuevas aportaciones à la historia
jurídica de Iberoamérica, Madrid, Fundación Histórica Talavera, 2000. p. 198-199 (Cd-rom); Priscila de
Lima, “Direitos de escravos: maus-tratos e jusnaturalismo em petições de liberdade (América
portuguesa, segunda metade do século XVIII e início do XIX)”, em Histórica – Revista Eletrônica do
Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 42 (jun. 2010), 1-10.
969 Sobre isto, cf., em geral, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 57; Jorge

de Cabedo, Decisiones […], cit., dec. 194. Sobre a manumissão romana, síntese em
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.04.0062:entry=manumissio-harpers;
http://www.ancientworlds.net/aw/Post/882461;
http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/secondary/SMIGRA*/Manumissio.html. Para a prática
brasileira, destaque para Waldomiro Lourenço da Silva Júnior, “Alforria, liberdade e cidadania: o
problema da fundamentação legal da manumissão no Antigo Regime ibérico”, em Revista de Indias,
73.258(2013), 431-458 (http://revistadeindias.revistas.csic.es/index.php/revistadeindias/article/viewArticle/930,
30.08.2013).

216
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
inscrição pelo magistrado competente do manumitido no censo dos cidadãos romanos
(censu) ou por testamento970. Com o andar dos tempos, foram reconhecidas maneiras
menos formais de conceder a liberdade: (i) pela declaração do senhor perante
testemunhas971, numa ocasião mais ou menos solene (inter amicos; por exemplo, no ato de
batismo); (ii) por um documento escrito, eventualmente perante o notário, de que resultasse
claramente a vontade de manumitir (per chartam)972; ou (iii) por outras formas (in ecclesia,
portas patentes), dependendo do seu reconhecimento pelas práticas jurídicas locais. A
manumissão podia ocorrer em outras circunstância, como aquela em que o amo dava uma
escrava, como livre, a um homem livre para que ele casasse com ela. Em todo o caso, era
sempre preciso que a intenção de manumitir fosse muito clara; assim se desse a escrava
sem referência à sua qualidade, embora soubesse e consentisse que o donatário iris casar
com ela, já não havia manumissão973.
§ 683. A manumissão por testamento como cláusula testamentária só fazia efeito
depois da morte do testador, podendo ainda ser sujeita a prazo ou condição (v.g., de servir
alguém, por certo tempo; de mandar rezar missas por alma do manumitente974). Enquanto a
condição não se verificasse, o escravo ficava numa situação de “cidadania esperada” (statu
liber¸D.40,7). Realizada a eventual condição, o manumitido tornava-se livre e,
eventualmente, herdeiro (se o devesse ser pelo direito ou se fosse instituído tal no
testamento). A doutrina portuguesa exigia duas testemunhas para que a cláusula de
manumissão fosse válida975.
§ 684. A manumissão era irrevogável pelo manumitente. Mas podia ser anulada por
ingratidão do liberto, expressa em atos de desrespeito pelo patrono (cf. Ord. fil.,4,63: “(...) Se
alguém forrar seu escravo, livrando-o de toda a servidão e, depois que for forro, cometer
contra quem o forrou alguma ingratidão pessoal, em sua presença ou em ausência, quer seja
verbal, quer de feito e real, poderá esse patrono revogar a liberdade que deu a esse liberto, e
reduzi-lo à servidão em que antes estava”). A manumissão feita em fraude dos credores pelo
amo insolvente podia ser anulada976.
§ 685. Uma vez manumitido, o escravo passava à situação de liberto977 e o senhor à de
patrono978. A situação de liberto acarretava a obrigação de respeitar o patrono, que se

970 Gaius, Institutiones, 1,17; Inst. Just., 1,1,5,1.


971 Na doutrina portuguesa, a manumissão podia ser concedida perante duas ou três
testemunhas, Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 1067 (cita Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.,
cons. 168, n.3).
972 Cf., em geral, Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 1, dec. 186.

973 Cf. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “De sacramento matrimonii”, n. 67.
974 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], cit., n. 1763, citando António da Gama, Decisiones […],
cit, dec. 115.
975 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], cit., 1067.

976 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 66.
977 No direito romano:
http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/secondary/SMIGRA*/Libertus.html;
http://www.ancientlibrary.com/smith-dgra/0712.html.
978 No direito romano:
http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/secondary/SMIGRA*/Patronus.html;
http://www.ancientlibrary.com/smith-dgra/0885.html.

217
Direito das pessoas.
exprimia de formas muito diversas, de acordo com os costumes e a opinião comum (Ord.
fil.,4,63). Podia incluir sinais externos de consideração e homenagem, a necessidade de
autorização para praticar certos atos, a prestação de serviços ou de auxílio, etc.. Estava, por
isso, na origem de uma relação clientelar socialmente muito relevante, tanto pelo poder
social que atribuía aos ex-senhores, como pelo fato de permitir atribuir a particulares uma
modalidade importante de controlo social. O patrono, em contrapartida, devia proteger e
aconselhar o liberto. A quebra das obrigações do liberto podia acarretar o seu retorno à
situação de escravo. Qualquer que tenha sido o impacto prático desta consequência, ela não
deixava de constituir um eficaz meio de pressão sobre os libertos para respeitarem as suas
obrigações para com os senhores.
§ 686. Além da manumissão, o escravo ficava livre se fosse entregue na roda dos
expostos ou senhor o abandonasse (derelictio), nomeadamente, pondo-o fora de casa ou
negando-lhe a alimentação ou o tratamento, estando doente979. O abandono não se
presumia, pois era contra a regra de senso comum de que ninguém abandona as suas
coisas. E, por isso, devia deduzir-se de circunstâncias que indiciassem fortemente a intenção
de abrir mão do escravo. Requeria-se, além disso, que o escravo abandonado se gerisse a si
mesmo como livre e só depois que isso se provasse por um período de tempo relevante era
considerado livre. Em contrapartida, o escravo doente a quem o senhor recusasse o
tratamento ficava imediatamente livre. Alguns autores propõem a mesma solução para a
escrava que o dono abandonasse mandando-a cuidar de si, o que se entendia ser um
incitamento à prostituição980.
§ 687. Finalmente, a liberdade adquiria-se por usucapião, se um escravo vivesse como
livre, de boa fé (i.e., ignorando a sua condição servil), durante vinte anos.
3.1.1.3 Servos adscritícios e criados.
§ 688. As Ordenações recusavam expressamente a existência de servos adscritícios
(Ord. fil.,4,42), e a doutrina interpretava as situações em que alguém estava obrigado a
cultivos determinados em determinada terra como de origem contratual e sempre
temporárias981.
3.1.1.4 Outras fidelidades domésticas.
§ 689. Era assim quanto aos criados, ligados ao dominus por uma relação que excedia
em muito a de uma relação contratual (v. cap. 6.9.2.2.3, maxime § 1793 ss.), aparecendo
envolvida no mundo das fidelidades domésticas. Não é que o direito português moderno
ainda mantivesse a adscrição (cf. Ord. fil.,4,28). Mas as relações entre o senhor e os servos
desenvolviam-se no ambiente da família patriarcal (da "casa") que criava, de parte a parte,
laços não contratuais.
§ 690. De facto, as limitações ao estatuto jurídico dos criados decorriam sobretudo da
sua pertença ao mundo doméstico.
§ 691. Desde logo, "criados" (famuli, "família") eram, tradicionalmente, aqueles que
viviam com o senhor "a bem fazer", ou seja, pelo comer e dormir. Eram quase apenas estes
que as Ord. man. (4,19) consideravam, não lhes reconhecendo (como, de resto, acontecia

979 O dono poderia reaver o escravo, pagando as despesas de alimentos e de cura. Cf. António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 58.


980 Cf., Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 1, dec. 186.

981 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2,1,13.

218
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
com o direito comum) direito a reclamarem uma soldada. Apesar da inversão verificada com
as Ord. fil.,- que passam a reconhecer um direito geral a um salário e refletem o advento de
um mundo (urbano ?) muito mais expandido de relações mercenárias de trabalho (cf. 4, 32
ss.) -, a doutrina continua a resistir a integrar as relações domésticas de trabalho no
"mercado do trabalho" e distingue os criados domésticos, segundo o modelo tradicional dos
trabalhadores mercenários externos982 - cujo direito ao salário entende estar dependente de
uma longa série de decisões da lei ou dos patrões983 (v. cap. 6.9.2.2.3, maxime § 1793 ss.).
Os laços de vinculação pessoal - que se traduziam, nomeadamente, num muito débil direito
ao salário (ou, pura e simplesmente, na sua ausência) e na necessidade de licença do
senhor para abandonar a casa - existiam também no caso dos criados dos cortesãos e nos
"acostados", ou seja, daqueles que tivessem recebido do senhor algum benefício 984. Apesar
de Melo Freire (um individualista) considerar estas leis "feudalizantes" e caídas em
desuso985, Lobão (um tradicionalista) censura-o asperamente por isso, continuando a propor
um modelo patriarcal das relações entre senhores e criados 986, em que os criados se
dissolviam no seio da família governada despoticamente pelo pater, em cuja pessoa quase
que se integravam. Um sinal deste mesmo sentimento de uma íntima comunhão entre
senhor e criado era constituída pelas isenções de que gozavam os criados de eclesiásticos e
nobres (Ord. fil., 2, 25 e 58) e o facto comum de se pedirem ao rei mercês para os seus
criados 987.
§ 692. Também não eram escravos os pobres ociosos, compelidos ao trabalho pelos
magistrados (Ord. af.,4,34; ou Ord. fil.,1,88,13-17) ou os órfãos dados por soldada, a quem,
por isso, era devido salário (Ord. fil.,1,88,13-18)988 989. Nem os condenados, mesmo às
penas mais vis, como as galés e trabalhos públicos. Apesar disso, o seu status libertatis
aparecia muito comprimido.
3.1.2 Naturais.
§ 693. O conceito de cidadania (status civitatis) traduzia, no direito romano, a qualidade
daquele que gozava da plenitude do direito da cidade. Como, para o direito comum, o termo

982 "Domestici sunt illi, qui cum aliquo continue vivunt, data aliqua inferioritate, ad unum panem, &

ad unum vinum" (domésticos são aqueles que vivem com alguém, implicando alguma inferioridade, por
um pão e um copo de vinho, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 3, ad I.,24,gl.20, n.2);
cf. também Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 32, n. 4 e Ord. fil.,2,11.
983 Cf. cf. o comentário de Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria […] a Ord. fil.,4, 30.

984 V. Ord. fil.,4,30: casamento, cavalo, armas, dinheiro ou outro qualquer galardão. Os criados

dos estudantes, estavam obrigados a servir apenas pela roupa e calçado; os músicos e cantores,
apenas pela comida (João Baptista Fragoso, Regimen […], cit., p.3, liv.10, d.21, 5); o mesmo valia para
as criadas das monjas, pois se entendia que o eram com o intuito de ingressarem no convento (Silva,
1731, 4, ad 4,29, pr., n. 28), para os aprendizes (ibid., 30) e para os menores de sete anos, que
serviam "pela criação" Ord. fil.,4,31,8).
985 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], 2,1,16, in fine.

986 Lobão invoca, significativamente, o direito dos Estados alemães que, como se sabe,

conservaram até muito tarde o regime de servidão e de adscrição.


987 Cf., em geral, sobre o tema, António da Natividade, Fr. (O.S.A.), Stromata oeconomica […],

cit., op. 12.


988 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, I., 16.

989 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2,i,14 e 15.

219
Direito das pessoas.
civitas era aplicado a qualquer comunidade política que não reconhecia superior (qui superior
non recognoscit), o conceito tornava-se aplicável ao reino, um território sujeito à jurisdição
suprema do rei990.
§ 694. Na Europa da primeira época moderna a naturalidade tinha substituído a
cidadania como conceito chave quanto aos laços de pertença política991. A naturalidade
representava a pertença natural a uma comunidade, originada no nascimento ou numa
residência continuada. Esta conceção não voluntarista, natural, dos laços políticos estava
consagrada na referência que nas Siete Partidas se fazia ao señorio natural, um laço político
que ligava os súbditos ao senhor da terra em tinham nascido, criando para todos uma pátria
comum (patria communis), expressamente definida como a sujeição a uma jurisdição comum
(i.e., a uma declaração do direito quer valia para todos)992 e, como base disto, uma natureza
comum (tierra natural, naturalidad) que era fonte de amores recíprocos e de deveres
comuns.
§ 695. A fixação da naturalidade, como ligação natural ao território de um reino,
dependia dos conceitos jurídicos que caracterizavam politicamente o espaço.
§ 696. Nos discursos doutrinais portugueses que se referem à caracterização política
do espaço, aparecem os conceitos de “Reino”, “províncias”, “conquistas”. As “conquistas” do
ultramar (tal como estavam aparentemente definidas na titulação dos reis portugueses) eram
consideradas como províncias do reino993 no que respeita ao estatuto político e jurídico dos

990 Cf. António Manuel Hespanha, “L’espace politique dans l’Ancien Régime”,em Estudos em

homenagem aos Profs. Manuel Paulo Merêa e Guilherme Braga da Cruz, Coimbra, Faculdade de
Direito, 1984, 1-58; versão castelhana em ID.La Gracia del derecho, Madrid,Taurus, 85-120; sobre as
unidades territoriais, v. António Manuel Hespanha, As vésperas do Leviathan [...], cit., 352 s..
991 Sobre naturalidade e cidadania: Tamar Herzog, Defining Nations: Immigrants and Citizens in

Early Modern Spain and Spanish America. New Haven, Yale U. P., 2003; ID.“Early Modern Spanish
Citizenship in the Old and the New World”, em John Smolenski (ed..)., New World Orders, Philadelphia,
University of Pennsylvania, 2005; ID.“Municipal Citizenship and Empire: Communal Definition in
Eighteenth-Century Spain and Spanish America”, em Julius Kirshner and Laurent Mayali (eds.).,
Privileges and Rights of Citizenship. Law and the Juridical Construction of Civil Society, Berkeley, The
Robbins Collection, Studies in Comparative Legal History, 2002; François-Xavier Guerra, “Identidad y
soberanía: una relación compleja”, em Id. (ed.), Las Revoluciones Hispánicas: Independencias
Americanas Y Liberalismo Español, Madrid, Editorial Complutense. 1995, 207-235; ID.“L’État et les
comunes: comment inventer un empire?”, em Nuevos mundos / Mundo nuevo (electronic journal), publ.
Fevereiro 2005, em http://nuevomundo.revues.org/document625.html [2005.11.1]. Para o Brasil, Maria
Fernanda Bicalho, “O que significava ser cidadão nos tempos coloniais”, in Marta Abreu & Rachel
Soihet (ed.). Ensino de história. Conceitos, temáticas e metodologia. Rio de Janeiro, Casa da Palavra,
2003, 139-151. Para a África Portuguesa (e também Brasil), nos finais do Antigo Regime, Cristina
Nogueira da Silva, Constitucionalismo e Império. A cidadania no Ultramar português, Coimbra,
Almedina, 2009. maxime, cap. 11.
992 Cf. Siete Partidas, 2, tits. 1-20 (v. http://books.google.pt/books?id=MVB-
TzR2uFEC&pg=PA310&lpg=PA310&dq=siete+partidas+se%C3%B1orio+natural&source=bl&ots=eEC8T4mDGk&sig
=Iv1qu1w3HgrVRO65xevjxef4UY0&hl=pt-
PT&sa=10&ei=6LsfUPXvOJCyiQfBsYCQBw&ved=0CF8Q6AEwBg#v=onepage&q=senor%20natural&f=false).
Estabelecendo uma relação entre o nascimento numa terra e a capacidade para a fazer frutificar e
assentar nela uma comunidade política bem organizada.
993 Manuel Alvares Pegas, Commentaria […], cit, tomo 12, ad 2, 55; Melchior Febo, Decisiones

[…], p.1, dec. 67, n. 11; p. 2, dec. 109, n. 22; dec. 18. Ainda no séc. XVIII se distinguia, embora apenas
simbolicamente, naturais de Portugal e naturais dos reinos dos Algarves, dizendo-se que a sua

220
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
seus habitantes, sem que houvesse qualquer diferença estrutural quanto ao direito que se
lhes aplicava994. O reino compunha-se, por isso, do território metropolitano e do colonial
(províncias, conquistas)995. Esta indistinção territorial significa que quem quer que
mantivesse uma pertença enraizada em relação a qualquer zona do território do reino era,
indistintamente, um natural português. Por todo o espaço colonial havia usos de falar que
distinguiam “filhos da terra” ou “naturais”, de “reinóis” (na Índia, ainda, de “descendentes”).
Mas estas categorias, por muito impacto social que tivessem, em geral não tinham
significados jurídicos.
§ 697. O vocabulário relativo ao espaço conhecia ainda distinções que podiam ganhar
sentidos jurídicos. A cidade (civitas ou urbs) opunha-se à aldeia (pagus, vicus, villa), ao
campo (rus), à floresta (sylva), com tal oposição se referindo a distância entre a civilidade /
civilização e a selvajaria (de sylva) (v. cap. 3.1.2.2). A linguagem política identificava a cidade
(civitas) com uma comunidade perfeita autossuficiente e “polida” (v. cap. 2.4.1.1). Estas
distinções projetavam-se sobre os respetivos moradores: os da cidade eram civis, urbanos,
polidos, tudo adjetivos derivados dos nomes da cidade. Os das aldeias eram “pagãos”
(pagani), “vilãos” (vilani), “rústicos” (rustici) ou “selvagens” (sylvestri, hominess in sylva).
Estes nomes tinham, como se verá, reflexos no discurso jurídico.
§ 698. A naturalidade (naturalitas) era, portanto, a plena pertença a uma comunidade
política plena (i.e., que não reconhecesse superior, qui superiorem non agnoscat), assente
no laço natural de amor que ligava o povo, entre si e ao seu senhor natural, cujo tribunal
reconheciam como fonte suprema de justiça política (patria communis). A naturalidade de um
reino compreendia a capacidade de exercer cargos no reino ou a sujeição ao direito e
jurisdição real ordinária ou comum. Quando referida a uma comunidade menor – como uma
cidade ou um município – a naturalidade (local) ou vizinhança compreendia a capacidade
para ser eleito para o governo municipal, de exercer ofícios locais, a sujeição ao direito local,
tanto aos encargos como aos privilégios.
§ 699. Aos naturais opunham-se os estrangeiros (foranei) 996.
§ 700. A ligação entre uma pessoa e um reino era fixada – não pela vontade e escolha

naturalidade tinha sido uma recompensa por serviços prestados (cf. L. 4.2.1771, § 4). Pelo contrário,
era comum a doutrina de que não havia nenhuma diferença entre o reino e as conquistas (Domingos
Antunes Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., p. 1, cap. 15; Francisco Coelho de Sousa
Sampaio, Prelecções de direito pátrio [...], cit., p. 3, t. 55, § 3.
994 Havia, naturalmente, direito de aplicação restrita a um lugar, mas isso não era estabelecido em

razão das pessoas, mas de outras circunstâncias.


995 A origem da palavra província referia-se ao caráter militar da sua incorporação política (pro-

vincere), em que as magistraturas ordinárias de Roma eram substituídas por chefes militares
extraordinários (proconsules, governadores). Embora a palavra “governador” tenha mantido até tarde
esta conotação de magistrado extraordinário com poderes discricionários (“governadores militares” ou,
simplesmente, governadores), a palavra província perdeu esse sentido no Portugal metropolitano, onde
as províncias tinham um sentido apenas corográfico995. No ultramar, porém, “província” convivia com
“conquista”, ambas remetendo para a ideia (de facto, sem tradução institucional, na maior parte dos
casos) de um governo extraordinário. Observe-se que, na Igreja, a província era um território
dependente de uma arquidiocese metropolitana ou do provincial de uma ordem regular, sendo também
usada para designar zonas de administração eclesiástica no ultramar.
996 Era raramente estendido às categorias intermédias, como latini e peregrini; em contrapartido,

era frequentemente complementado com os conceitos extremos de hostes e captivi (servi).

221
Direito das pessoas.
- por uma ligação objetiva com o seu território - como pátria ou terra do pai - e com a
jurisdição sobre ele, pois territorium e iurisdictio adeririam uma ao outro997. Esta carga
naturalista do território explicava que este, juntamente com a naturalidade do pai, definisse o
vínculo a uma ordem jurídica e política natural, a naturalidade.
§ 701. Assim, a naturalidade adquiria-se (i) por nascimento em território português998,
(ii) de pai português. A filiação podia ser legítima ou natural (Ord. fil.,2,55,pr.) (v. cap.
3.2.4)999. Os filhos de portugueses nascidos no estrangeiro eram estrangeiros, exceto se a
ausência do pai fosse motivada pelo serviço público ou por necessidade séria1000.
§ 702. Os estrangeiros não adquiriam a naturalidade por residência contínua, mas
podiam obter carta de cidadão, passada, como graça que era, pelo Desembargo do Paço
(Ord. fil.,2,55,pr.). A cidadania tinha uma natureza voluntária, e não natural, por isso podendo
ser objeto de uma concessão. Mas os filhos destes cidadãos apenas podiam obter a
naturalidade portuguesa se acrescentassem natureza ao vínculo, por nascerem em Portugal
e por o seu pai aqui se ter radicado, por residência e aquisição de bens imóveis há mais de
10 anos (Ord. fil.,2,55,1)1001. Aparentemente, esta última cláusula geraria uma massa de
portugueses entre os filhos de nativos não europeus habitando o território das conquistas. No
entanto, não era assim, pois a propriedade indígena raramente seria considerada por um
tribunal como propriedade no sentido do direito português. Por outro lado, é muito provável
que o facto de se tratar ou de infiéis ou de gentios impedisse os nativos locais de aceder à
categoria de plenos naturais portugueses.
§ 703. Ao nascimento era equiparado o batismo e o uso e fama.
§ 704. A naturalidade também se podia obter por graça régia, através de carta passada
pelo Desembargo do Paço. Porém, nos termos de uma orientação restritiva que se nota nos
autores do séc. XVII, alguma doutrina exigia, para que a naturalização incluísse a faculdade
de ser providos nos ofícios, benefícios e honras do reino, que a carta de naturalização
referisse expressamente este privilégio1002.
§ 705. Como a mulher seguia a naturalidade do marido, adquiria a naturalidade
portuguesa a mulher casada com português. A sua viúva mantinha-a, enquanto não se
casasse de novo. A desposada “por palavras de presente” também adquiria a naturalidade
portuguesa. Em simetria, perdia-a a portuguesa que casasse com um estrangeiro.
§ 706. A naturalidade podia perder-se por desnaturalização ou expatriação voluntária

997 “Iurisdictio cohaeret territorio”, glosa ordinária a Libri feudorum, 2, 56, rubr., n.2); “territorium

est spatium munitum et armatum iurisdictione” (Baldus, Commentaria ad Libri feudorum, 2, 56, rubr.,
n.2).
998 Manuel Álvares Pegas, Commentaria,[...], cit., tom. 12, ad 2,55, gl. 5, n. 15: "nati fuerint in hoc

Regno, aut intra illius dominationis terras".


999 Os filhos espúrios (v. cap. 3.2.4) seguiam a condição da mãe, sendo portugueses se

nascessem em Portugal filhos de uma portuguesa, v. Manuel Álvares Pegas, Commentaria,[...], cit.,
tom. 12, ad 2,55, gl. 6, n.1.
1000 Sobre este assunto, v. Manuel Álvares Pegas, Commentaria,[...], cit., tom. 12, ad 2,55;

Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., p. 1, cap. 15.


1001 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2,2,4.

1002 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 12, ad 2,55, gl. 1, n. 9; o autor não

concorda, invocando a opinião de Bártolo, que se deveria aplicar nos termos de Ord. fil.,3,64.

222
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
(Ord. fil.,2,55,3)1003 e por decreto real (simetricamente ao que acontecia com a sua
concessão, Ord. fil.,2,13)1004.
3.1.2.1 Extensões da naturalidade.
§ 707. O universo dos naturais (também chamados indígenas) era alargado pela
equiparação do batismo ao nascimento, pois o batismo era uma espécie de novo nascimento
espiritual que dava a naturalidade a quem fosse batizado no reino por um pai espiritual
(padrinho) natural1005.
§ 708. Equivalente ao batismo era o cathecumenatus – a instituição eclesiástica que
preparava para o batismo. Por todo o império – tal como em certas regiões da Europa em
que foram lançadas missões na Europa moderna – grandes massas de pagãos (hindus,
africanos animistas e muçulmanos ou índios americanos) eram convertidos ao catolicismo,
depois de um período de preparação espiritual, durante o qual gozavam de um estado
jurídico misto, que combinava o seu direito nativo com derrogações exigidas pela sua nova
religião ou, então, destinadas protegê-los das comunidades originárias. A sua situação era
semelhante à das pessoas que beneficiavam da graça régia por serem dignas de
misericórdia (miserabiles personae: pobres, viúvas). No Oriente, (Goa, Malaca e Macau),
foram criadas instituições específicas – Pai dos Cristãos, Casa dos Catecúmenos – para
proteger estes neófitos. Como resultado, desenvolveu-se nestas províncias uma importante
comunidade de portugueses – aí designados por “naturais”, agora com o sentido de
portugueses da terra (“filhos da terra”, em Macau) – que disputou aos “reinóis”, idos do reino,
ou aos “descendentes”, de famílias portuguesas fixadas no Oriente a hegemonia política até
ao séc. XX. Em África – uma região devastada por uma colonização esclavagista predatória -
, o batismo não originou uma comunidade de naturais nativos, mas antes uma multidão
inorgânica de escravos cristianizados. Na América, contudo, a ideia de uma sociedade de
naturais cristãos e portugueses existiu, dando origem a instituições similares às dos Pais de
cristãos do Oriente. Era o caso das repúblicas índias do Brasil e do Paraguai, governadas
por clérigos regulares (normalmente jesuítas), ou das Aldeia, sob o mando de um Capitão
dos Índios.
§ 709. Para estabelecer este laço natural, a doutrina jurídica equiparava ao nascimento
físico, o nascimento civil e político constituído pela aquisição da liberdade pela manumissão,
o que era de realçar sobretudo em espaços em que a escravatura fosse importante e a
manumissão algo frequente, pois ela ligava os libertos à comunidade dos naturais,
obliterando eventuais pertenças políticas anteriores à escravização. A manumissão dava ao
manumitido a categoria de liberto (libertus, libertinus), ligado ao antigo senhor (dominus,
agora patronus) por especiais laços de fidelidade e de serviço (auxilium, servitium) e
sofrendo incapacidades civis e políticas (capitis diminutiones).
3.1.2.2 Restrições da naturalidade.
§ 710. Alargada pelo batismo e pela manumissão, o pleno gozo do estatuto de natural
era comprimido por outros estados jurídicos. Uns deles eram os relacionados com as

1003 Sem expatriação, não se poderia renunciar à naturalidade, Manuel Álvares Pegas,

Commentaria [...], cit., tom. 12, ad 2,55, gl. 1, n. 13.


1004 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2,ii,12.

1005 “Civis enim efficiatur baptismum”, Mnuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 12, ad

Ord. fil., 2,55, ns. 5-8, pp. 449 ss.. O mesmo acontecia com a manumissão e emancipação.

223
Direito das pessoas.
incapacidades jurídicas geradas por características individuais, como a idade, o género, a
normalidade psicofísica. Outro era coletivo, e de algum modo ainda ligado à configuração do
espaço – a rusticidade, que evocava as condições da vida e do desenvolvimento humano
nas comunidades rurais (pagi, rus). A doutrina jurídica medieval e moderna tinha
desenvolvido toda uma teoria da especificidade do direito dos rústicos (iura rusticorum)1006,
assente na ideia de que as suas condições de vida impediam um pleno desenvolvimento da
sua humanidade, tornando os rústicos numa população de gente primitiva e simples,
incapazes de usarem do direito das populações civilizadas e polidas. Politicamente, eram
naturais; mas gozavam de um estatuto especial, atendendo à sua cultura e hábitos
grosseiros. Do ponto de vista jurídico, a rusticidade gerava um privilégio (privilegium
rusticorum), materializado no uso de um direito simplificado.
§ 711. Originalmente, o conceito de ius rusticorum destinava-se a cobrir o direito das
zonas da Europa que não tinham absorvido o direito letrado – as zonas rurais profundas, os
vales pouco acessíveis, as zonas de floresta, os lugares isolados (os sertões) ou as ilhas
remotas. Mas, na verdade, também a maior parte das zonas não urbanas, pobres, iletradas e
primitivas. Num inquérito corográfico lançado em 1758, o pároco de Ester descreve assim a
sua freguesia, situada no termo de Lamego, quanto à notoriedade dos seus habitantes
quanto às letras e às armas: “[…] as letras ordinárias dos nacionais bem parece apenas as
de exararem hum tosco sinal de seu nome para quando a honra da vara de juiz lhe for a
casa se bem que de ordinário como bons cristãos a sua melhor firma é o sinal da cruz (+).
Armas são sim os seus arados e mais instrumentos próprios do seu trabalho e quase como
descendentes daquele primeiro honrado homem podem dizer com asserto, cumprem à risca
com o Divino preceito - in sudore vultas tui vesceris pane […]”1007. Esta descrição poder-se-ia
aplicar à maior parte dos pequenos concelhos da zona, isolada e pobre até aos dias de hoje.
Os magistrados letrados ou os corregedores reais eram aconselhados a transigir com os
usos rústicos aí vigentes, desistindo de aplicar as subtilezas do direito erudito1008.
§ 712. Mais tarde, quando os europeus tomaram contacto com o que eles
consideraram ser culturas inferiores, estas imagens da rusticidade e dos seus efeitos
jurídicos ganharam um novo campo de aplicação, para descrever as populações indígenas
das colónias. Nos escritos de juristas letrados ou pretensões de saber direito, os indígenas e
os colonos pobres e iletrados eram descritos como brutos, simples ou rudes, manipulados
por procuradores e rábulas interesseiros e também ignorantes, cujo saber se esgotava nuns
brocardos jurídicos mal entendidos, e governadas por magistrados incompetentes,
despóticos e parciais. A rusticidade extrema era a das “nações bárbaras”, cujos costumes
selvagens (canibalismo, anarquia politica, promiscuidade sexual) permitiam que lhes fosse
movida uma guerra sem quartel, destruindo as suas comunidades, ignorando o seu direito,
confiscando a sua propriedade.

1006 Sobre a oposição entre saber e rusticidade na literatura jurídica moderna, cf. António Manuel
Hespanha,"Savants et rustiques. La violence douce de la raison juridique", cit; versão portuguesa,
periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/download/../13797. Sobre o tema, em geral, A. Murray (1978),
Reason and Society in the middle ages, cit..
1007 José Viriato Capela e Henrique Matos (dir.), As freguesias do distrito de Viseu nas Memórias

paroquiais de 1758. Memórias, história e património, Braga, ed. José Viriato Capela, 2010, 193.
1008 Jeronimo Castillo de Bobadilla, Politica para corregidores y señores de Vasallos,

Madrid,1597; Amberes, 1703 (http://books.google.pt/books?id=OP6kPrJQLfAC&printsec=frontcover&hl=pt-


PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false, 2012.08.06).

224
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
3.1.2.3 O relevo jurídico da naturalidade.
§ 713. A distinção entre naturais e estrangeiros era relevante para determinar a
pertença à comunidade política e jurídica, pois o direito aplicável e a jurisdição competente
dependiam, desde logo, do estatuto pessoal (princípio da personalidade do direito) Por isso,
os naturais eram governados pelo seu Senhor natural, de acordo com o direito da sua terra
natural; no caso, o direito português, ou doutrinal (ius commune] ou constante das leis,
praxes judiciais e costumes do reino (ius proprium regni) 1009. A partir do séc. XVI, a distinção
ganhou uma nova importância, por causa da divisão do mundo pela bula Inter coetera, de
1493, e pelo Tratado de Tordesilhas (1494), com os quais os naturais de Portugal e de
Castela adquiriram o direito exclusivo de atuar nas conquistas dos respetivos reinos. Ou,
quando os reis de Espanha ascenderam ao trono de Portugal, pelo facto de terem jurado,
expressamente, no pacto de Tomar de 1579, o princípio do indigenato: os ofícios, benefícios,
bens da coroa e jurisdições portugueses só poderem ser atribuídos a naturais de
Portugal 1010. Não admira, portanto, que as definições de “natural” desta época destacassem
esta capacidade para exercer os cargos da república ("quis dicatur civis originarius alicujus
civitatis, ut sit capax omnium dignitatum solitarum concedere originarius" [diz-se cidadão
originário de uma cidade, como capaz de todas as dignidades que se costumam conceder a
originários]1011). No séc. XVIII, o conteúdo da condição de natural mantinha-se idêntica.
Pascoal de Melo considera que os direitos dos cidadãos são: recorrer ao rei por súplica ou
pedindo a sua “ajuda” (Ord. fil.,2,1,9,11; CL 18.8.1769, § 2), pedir a garantias da sua
“segurança” [cartas de seguro] (Ord. fil.,5,128), exercer os ofícios da república, de acordo
com o princípio do indigenato (L. 15.7.1671), ser provido nos benefícios eclesiásticos (Ord.
fil.,2,13,1), ser beneficiado com bens da coroa do reino (Ord. fil.,2,35,pr), pedir mercês régias
(Regº 16.1.1671).
§ 714. A definição de naturais permitia a extensão automática do direito português
metropolitano, com as suas categorias e instituições, às comunidades de naturais do
ultramar, com as ampliações e restrições que se descreveram. Todavia, isto não significava
uma uniformidade jurídica deste espaço político. Em virtude da sua estrutura particularista, o
ius commune europeu atribuía um generoso espaço às especificidades jurídicas das
periferias, fossem elas os municípios (ius proprium, statuta civitatis, “posturas”, “usos”), os
tribunais locais (“juízes ordinários da terra”, “juízes pela ordenação”, “juízes de fora” 1012), as
justiças senhoriais (“ouvidores”) ou as comunidades rústicas (iura rusticorum). E isto
aplicava-se, sem dúvida, ao espaço ultramarino.

1009 Ord. fil.,3, 64.


1010 Porventura, foi esta a razão para incluir nas Ordenações Filipinas um novo título (Ord.
fil.,2,55, “Das pessoas, que devem ser havidas por naturais destes Reinos”), aparentemente copiado
das Ordenanzas reales de Castela, Liv. 1, Tit. 3, Lei 19).
1011 Manuel Álvares Pegas, Commentaria,[...], cit., tom. 12, ad 2,55, gl. 1, n. 14.

1012 Apesar de nomeados pelo rei, os juizes de fora eram verdadeiras justiças locais, autónomos

em relação à coroa, gozando de uma esfera particular de jurisdição e decidindo com base nos padrões
locais de julgamento. Em todo o caso, em virtude mais da sua formação letrada e da sua relativa
autonomia em face dos jogos locais de poder do que do facto da sua nomeação régia, era frequente –
no Reino ou no ultramar – que eles reagissem aos usos localmente instituídos. Cf., para um caso típico
no ultramar, Maria Filomena Coelho A justiça d’Além-Mar. Lógicas jurídicas feudais em Pernambuco,
Recife, Fundação Joaquim Nabuco, 2009.

225
Direito das pessoas.
3.1.3 Vizinhos.
§ 715. A aquisição da vizinhança estava regulada nas Ordenações (Ord. fil.,2,56)1013 de
um modo que privilegiava, não o nascimento, como no caso da naturalidade, mas a
residência. O principal critério era o da residência permanente, indiciada por casamento e
posse de bens, com intenção de fixação no lugar. A naturalidade – a que se equiparava a
manumissão ou a adoção por um vizinho - era um critério adjutório para provar a intenção de
morar. No caso de retorno ao lugar originário, depois de mudança de residência, a intenção
de morar mostrava-se pela residência durante 4 anos1014.
§ 716. A Ordenação ressalvava os costumes locais que dispusessem diferentemente
sobre este ponto (Ord. fil.,2,56, ult.). Progressivamente, esta ressalva dos costumes locais
perante a lei geral é problematizada pela doutrina. Já no séc. XVII, Manuel Álvares Pegas
exprimiu as suas dúvidas sobre isso, a propósito deste parágrafo, citando autores do direito
comum tardio1015. No entanto, mesmo o insuspeito Pascoal de Melo, já na segunda metade
do séc. XVIII, afirma que os direitos municipais devem “ser venerados”, não podendo ser
limitados ou ab-rogados senão por importante causa pública1016.
§ 717. Era indício de vizinhança a fama pública ou o exercício de ofícios locais,
seculares ou eclesiásticos1017.
§ 718. Em Portugal, a distinção entre naturalidade (civis) e vizinhança (incola) é
destacada pela doutrina, pelo menos a partir dos meados do séc. XVII1018. Nomeadamente
quanto à impossibilidade de a aquisição da vizinhança levar à aquisição da naturalidade. Ou
seja: os estrangeiros podiam adquirir a vizinhança, se cumprissem os requisitos da lei (Ord.
fil.,2,56). Mas a aquisição da vizinhança não fazia adquirir a naturalidade. Manuel Alvares
Pegas, seguindo Domingos Antunes Portugal1019, é taxativo: “extero, qui licet domiciliarius sit,
et incola civitatis quoad privilegia, et onera incolarum, non tamen pro cive habendus sit, ut
possit obtinere officia, et beneficia solis originariis competentia, ut explicat Portug, 1, cap. 15,
n. 38”1020. E, pouco adiante, confirma: "si aliquis non fuerit a Regno originarius, nom efficitur
natalis per honores, & libertates concessas, nec per officia”1021. Esta restrição no
reconhecimento na naturalidade relacionava-se com o seu enraizamento na natureza; mas
talvez se prendesse também com a nova relevância que o princípio do indigenato tinha
adquirido em Portugal com o juramento de Tomar, de 1579.

1013 Cf. Domingos Antunes Portugal Tractatus de donationibus [...], cit., p. 1, cap. 15; Francisco

Valasco de Gouveia, Justa acclamação do serenissimo rey de Portugal D. João o 4, Lisboa, Lourenço
de Anveres, 1644
(books.google.pt/books/about/Justa_acclamação_do_serenissimo_rey_de.html?id=k3QIAAAAQAAJ&re
dir_esc=y, 30.08.2013), p. 2, punct. 1; Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 12, ad 2,56,
gl. 1, 9 ss.. A ordenação tinha como fonte as Ordenanzas reales de Castela, 1,3,19.
1014 O direito comum exigia 10 anos para mostrar a intenção de morar.

1015 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 12, ad 2,56, gl. 6.
1016 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2,2,6.
1017 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 12, ad 2,56, gl. 2, n. 7.

1018 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 12, ad 2,55, gl. 1, n. 8.
1019 Tractatus de donationibus [...], cit., p. 1, cap. 15, n. 38.
1020 Commentaria [...], cit., tom. 12, ad 2,55, gl. 1, n.8.

1021 Commentaria [...], cit., tom. 12, ad 2,55, gl. 2, n. 9.

226
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 719. No séc. XVIII, a distinção continuava a fazer-se. Pascoal de Melo refere que
“enquanto a cidadania compreende toda a vida da república e todos os direitos em geral
concedidos aos cidadãos, a vizinhança respeita apenas direitos e privilégios de importância
inferior, concedidos aos moradores de um lugar por lei especial”, como o direito a
desempenhar cargos ou usar de bens comuns. E, por isso, o estrangeiro, embora adquirisse
a vizinhança por residência, apenas pela naturalização, podia adquirir a naturalidade (cita
Ord. fil.,2,55,pr.)1022.
3.1.4 Estrangeiros.
§ 720. A naturalidade tinha também o efeito de excluir da comunidade política e jurídica
os não naturais, ou estrangeiros.
§ 721. Correspondendo à diferença entre os naturais do reino e os naturais de uma
terra, também os estrangeiros podiam ser, ou os estranhos a uma terra, e colocados fora do
seu ordenamento jurídico particular – os forasteiros, não vizinhos (cf. Ord. fil.,2,56) – ou os
estranhos ao reino, e colocados fora da ordem jurídica do reino – estrangeiros em sentido
próprio, foraneus, exterus, externus (cf. Ord. fil.,2,55).
§ 722. Este vasto espaço dos estrangeiros conhecia ulteriores distinções, não lhe
cabendo uma definição única e definitiva, antes variando de acordo com uma complexa rede
de qualificações1023 e também de acordo com a questão que estava em discussão1024. O
conceito evocava o legado romano, recebido pelo ius commune: (a) estrangeiros
reconhecidos por tratado (foederati, cujo estatuto estava fixado por pacto ou acordo de
tréguas), (b) simples estrangeiros (exteri, externi) e (c) inimigos (hostes, tidos e tratados
como tal segundo as leis da guerra). Os últimos estavam geralmente numa situação de
completa sujeição: podiam ser mortos, escravizados, ou mantidos livres, mas totalmente
submetidos ao direito dos vencedores, como súbditos territoriais (subditi territoriales). No
espaço colonial português, esta última situação de inimigos vencidos era a das populações
mouras do Norte de África (nas fortalezas de Marrocos1025), do Médio Oriente (Hindustão ou
Ásia do Sudeste) ou dos índios brasileiros vencidos 1026. Em África, era declarada a guerra a
régulos que tivessem recusado uma acomodação “amigável” com os portugueses, o que
acontecia, no séc. XVII, em extensas zonas do território de Angola.
§ 723. A maior parte dos estrangeiros pertencia, porém, à categoria intermédia de
“simples estrangeiros”. O seu estatuto nem era regulado por tratado, nem dependente das
leis da guerra. Eram simplesmente não portugueses, embora residentes no território
português ou nas suas vizinhanças.
§ 724. Como súbditos territoriais, os estrangeiros estavam sujeitos ao direito do reino,
no que respeitava ao seu estatuto político1027. Mas, nas esferas das relações entre

1022 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2,2,5.


1023 Cf. Tamar Herzog, Defining nations. Immigrants and citizens […], cit., 4 ss..
1024 António Manuel Hespanha, Cultura jurídica europeia, [...], cit., p. 203 ss..
1025 Excluindo os que se tinham rendido e celebrado um tratado de paz (“mouros de pazes”).
1026 Era o caso dos “índios bravos”: v. António Manuel Hespanha, Cultura jurídica europeia, [...],

cit., p. 292 ss..


1027 Cf. Stefano Vinci, “The legal status of foreigners in Europe between medieval and modern

ages”, em
http://www.academia.edu/1849781/the_legal_status_of_foreigners_in_europe_between_medieval_and_modern_age

227
Direito das pessoas.
particulares, o estatuto jurídico dos estrangeiros obedecia ao princípio do ius commune
segundo o qual cada comunidade (portanto, também as comunidades pessoais) tinha, por
natureza, uma ordem jurídica própria1028. Este princípio materializava-se em práticas
institucionais, tais como a devolução da competência jurisdicional sobre os estrangeiros para
os tribunais próprios dessas comunidades ou para tribunais específicos estabelecidos por
tratado (os “consulados” das nações amigas)1029. Esta devolução também acontecia no
ultramar. Em geral, eram frequentes os tratados que continham cláusulas de salvaguarda da
ordem política e jurídica local. Em Goa, uma carta régia de 1526 garantiu aos hindus de Goa
o principal do seu direito, criando uma jurisdição especial para julgar por ele as causas entre
a comunidade hindu relativas a certas rendas fundiárias. Em Macau, a comunidade chinesa
era julgada, ou pelos mandarins chineses instalados no território, ou por um membro da
câmara, para isso especialmente deputado – o procurador dos negócios sínicos1030. Também
no Brasil, as comunidades índias, vivendo em território português ou nas suas fronteiras,
tinham os seus juízes, que decidiam em equidade, segundo os seus costumes, e “sem
revolver Bartallos, nem Acursios” 1031. Finalmente, em África, o direito nativo era tido em
conta para ratificar a situação dos indígenas ou mesmo para julgar causas mistas entre
indígenas e colonos1032. Assim, João Baptista Fragoso1033, discutia a validade dos

s.
1028 A acomodação do princípio da territorialidade do direito com o da personalidade da aplicação

do direito foi tentada pela teoria estatutária (séc. XIV). Assim, os contratos e testamentos reger-se-iam
pela lei do local da sua celebração (lex actus); o processo, pela lei do foro (lex fori); o estatuto pessoal,
pela lei do interessado; a situação jurídica de imóveis, pela lei da sua localização (lex rei sitae); os atos
exprimindo o poder político (v.g., punição, fiscalidade, administração, etc.) estavam sujeitos ao direito
do senhor sob cujo poder fossem praticados. Estas soluções podem ser resumidas na fórmula de que o
alcance de aplicação das normas está ligado ao alcance do poder de quem as edita: assim, no caso de
bens imóveis, coincide com o território, no caso de pessoas, coincide com o universo dos súbditos.
Novamente, uma enorme atenção ao plano dos factos, que se traduz na adoção de soluções
casuísticas e na recusa de esquemas rígidos, abstratos e imobilistas.
1029 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2,2,8-11.

1030 Cf. Maria Carla Faria Araújo, Direito português e populações indígenas: Macau, 1846-1927,

cit.; António Manuel Hespanha, Panorama da história institucional e jurídica de Macau, cit..
1031 Cf. Carta do Compadre do Rio de São Francisco do Norte, ao Filho do Compadre do Rio de Janeiro. o
qual se queixa do parallelo, que faz dos indios com os cavallos, de não conceder aos homens pretos maior
dignidade, que a de Reis do Rozario, e de asseverar, que o Brasil ainda agora está engatinhando e crê provar o
contrario de tudo isso. Por J.J. do C.M. Rio de Janeiro: Impressão Nacional, 1821: "Eu tenho tranzitado por algumas
d’essas Aldêias, e Villas, onde prezidem esses Juizes Brancos e Indios, que Vm. figura, que os Juizes brancos
conduzem os Indios, como o Cavalleiro conduz o cavallo pelas redeas: perdoar-me há Vm. a liberdade de
assegurar-lhe, que está mal informado d’esses factos. Os Juizes n’essas Villas são de facto hum Branco, e hum
Indio; servem por semanas alternadas, com a diferença, que o Indio só conhece, e despacha verbalmente
diferenças dos seus Indios, ou destes com algum Branco, Preto, ou Pardo; com as decizões deste Juiz nada tem o
Juiz Branco, assim como o Indio senão embaraça nas decizões daquele, o qual conhece dos feitos contenziosos, e
discussões forences, e he para ver, e admirar, que o Juiz Indio sem revolver Bartallos, Nem Acursios, quasi sempre
julga com Justiça, retidão, e equidade, quando o Juiz Branco enredado nos intricados trocicollos da manhoza
chicana raras vezes acerta; por mais que para isso se desvelle, quando se desvela” (p. 7).
1032 Cf. António Manuel Hespanha, Cultura jurídica europeia, [...], cit., p. 298 ss.; Hespanha
(2001a), António Manuel, “Luís de Molina e a escravização dos negros”, Análise Social¸157(2001), 937-
990.
1033 João Baptista Fragoso, Regimen […], cit., p. 640 ss. (Disp. 22: De conjugio Indorum, § 4, De

reliquis quae spectant ad matrimonia inter infideles jure naturae, & an inter eos vera sint ?”).

228
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
casamentos entre africanos e índios brasileiros de acordo com os seus próprios direitos,
desde que estivessem de acordo com o direito natural; o que correspondia a uma doutrina
jurídica assente desde o séc. XVI, sobre a inviolabilidade das instituições dos indígenas sul-
americanos1034.
3.1.5 Nobres.
§ 725. "Nobre" e "nobreza" são termos pouco usados nas fontes jurídicas portuguesas
da primeira época moderna. Em contrapartida, o seu oposto, “peão”, é frequente1035. Mais
para os finais da época, começa a desenhar-se a criação de uma categoria comum de
“nobres”, agrupando as várias categorias anteriores de pessoas não plebeias1036.
§ 726. Assim, o aparecimento da categoria de nobre parece ser a receção pela
literatura jurídica portuguesa de uma oposição bipolar que estruturava a literatura italiana de
direito comum - nobiles-non nobiles [ignobiles], sanior et melior pars-vilior et peius pars) –
inspirada no direito romano (D.,50,16,238), embora tanto o direito justinianeu como a
literatura religiosa ou clássica profana conhecessem um leque maior de categorias das
pessoas baseadas na sua virtus.
§ 727. As Siete partidas (2,21,2), por sua vez, adotam uma classificação tripartida de
“los tres estados porque Dios quiso que se mantuviese el mundo": defensores, oradores,
labradores. Embora, quando se tratava de explicar as qualidades requeridas àqueles a quem
tocava a defesa da terra natural, adotassem uma classificação bipartida - "cavaleiros" ou
"nobles omes" e os outros. A importância das Partidas - que constituem uma fonte de
referência para a doutrina hispânica, sobretudo castelhana, sobre a nobreza durante as
épocas medieval e moderna - é, portanto, a de ter fixado uma classificação social bipartida e
de, quanto ao conceito de nobreza, ter optado, decisivamente, por um critério linhagista.
§ 728. A progressiva criação da arqui-categoria "nobreza" permitia referir, de forma
sintética, todos os grupos jurídicos privilegiados que ocorriam nas fontes portuguesas,
atribuindo-lhes, como mínimo, o conjunto de privilégios gozado pelo grau mais inferior (como
"privilegiado", "vereador", "escrivão da câmara")1037. De tal modo que, dizendo, em geral, que
alguém era nobre, se dizia que gozava, pelo menos, do estatuto da mais modesta das
categorias particulares de pessoas privilegiadas previstas na lei.
§ 729. A que estatuto se referia, então, a categoria genérica da nobreza ? Em primeiro
lugar, a princípios de direito comum, por vezes bastante vagos, como o que media a punição
das injúrias pela categoria dos ofendidos (cf. Ord. fil.,5,16,1); o que reservava o governo ou
os lugares militares de distinção aos nobres; ou, sobretudo, os que outorgavam “nobreza”,
sem mais acrescentar, a certos ofícios ou funções ou que exigiam a qualidade de “nobre”
para o desempenho de certas funções. Referia-se, em seguida, a normas que falavam de
plebeus – por exemplo, as cartas de foral que criavam certos impostos -, e que implicavam,
portanto, a existência de um grupo de não plebeus, privilegiados ou honrados. Para o efeito
destes últimos textos, ser nobre era não ser plebeu, como notavam os juristas dos finais do

1034 Cf. Anthony Pagden, The fall of the natural man […], cit..
1035 No seio de categoria de peão existia ainda a de mecânico ou pessoal vil.
1036 Cf. António Manuel Hespanha, “A nobreza nos tratados jurídicos dos séculos XVI a XVIII”, cit.;
José Antonio Guillén Berrendero, “Honor and service. Álvaro Ferreira de Vera and the idea of nobility in
the Portugal of the Habsburgs”, cit..
1037 V. Ord. fil., I., 66,42; 5, 120; 5, 138.

229
Direito das pessoas.
séc. XVI, ao dizer que a prova decisiva em direito quanto ao estado de nobreza não era a
prova da nobreza, mas apenas a de que não se era plebeu, i.e., que se tinha algum
privilégio1038.
§ 730. Nos finais do séc. XVIII, este conceito genérico de nobreza importava para 1039:
§ 731. • determinar o âmbito de aplicação das normas de direito comum que
estabeleciam privilégios genéricos para os nobres ou que exigiam nobreza para o
desempenho de certas funções;
§ 732. • determinar quem pagava certos impostos que o foral impusesse sobre os
plebeus 1040;
§ 733. • definir quem podia aceder a hábitos das ordens militares que exigissem a
nobreza;
§ 734. • estabelecer o âmbito das isenções em relação às fintas e encargos pessoais
dos concelhos, tais como servir de tesoureiro ou levar presos, etc. (Ord. fil.,1,66,42) 1041;
§ 735. • isentar de penas vis ou infames (forca, chicote, galés) ou estabelecer um
regime penal mais leve1042;
§ 736. • excluir os direitos sucessórios dos filhos ilegítimos 1043 (v. cap. 3.2.4);
§ 737. • estabelecer a capacidade para instituir morgados (só depois da C.L. Agosto

1038 Este raciocínio levava à admissão de uma tripartição que não existia no direito comum - a que
distingue "nobres", "plebeus" e "estado do meio". Com efeito, segundo o direito real português (v.g.,
Ord. fil.,4,92,1), existia um “estado do meio” entre nobres e plebeus, o daqueles que “andavam a
cavalo”, mas que não gozavam do esplendor do sangue que os tornasse ilustres (v. Melchior Febo,
Decisiones [...], cit., dec. 155, ns. 6/7).
1039 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2,3,43.

1040 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, ar. 68 (fidalgos e nobres não pagam oitavo);

Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. I., aresto 65 (nobres não pagam jugada, nem "outras coisas, que
pagão os piães"). No comentário de Manuel Álvares Pegas, a Ord. fil., 2,33 (“Das jugadas”)
transcrevem-se muitas decisões judiciais sobre este ponto (Manuel Álvares Pegas, Commentaria […],
cit. tomo 9, ad 2,33,rucr., cap. 24, maxime ns. 204 ss..
1041"Fidalgos, cavaleiros e escudeiros de linhagem ou de criação, pessoas de maior qualidade

que as anteriores [doutores, licenciados, bacharéis em teologia, direito ou medicina, que forem feitos
por exame em estudo geral, juízes, vereadores, procuradores e tesoureiros dos concelhos], pobres de
esmola e outros privilegiados".
1042 Não devem ser enforcados, mas decapitados, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., I., dec. 18,

ns. 2/6 (fonte de direito comum: Bártolo in l. capitalium, D. de poenis). Devem ser menos punidos tanto
na imposição da pena como na execução, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., I., dec. 18, ns. 3. V. Ord.
fil.,5,25; 5,120. São escusos de prisão ("presos em ferros": Ord. fil.,5,120): fidalgos (de solar ou
assentados nos livros), desembargadores, doutores em leis ou em medicina, juízes formados (mas não
os ordinários, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2,3,14), cavaleiros fidalgos, ou confirmados, e
de ordens militares, escrivães da fazenda e câmara. São escusos de pena vil (açoites, baraço e
pregão: Ord. fil.,5, 138): escudeiros, moços da estrebaria real (ou de dignitários até conde, conselheiro
e prelado), pajens de fidalgos assentados, vereadores e seus filhos, procuradores dos concelhos,
mestres e pilotos de navios reais de gávea ou de quaisquer navios de mais de cem tonéis, amos ou
colaços de desembargadores ou de cavaleiros de linhagem, pessoas que tenham cavalo, mercadores
de mais de 100 000 reis. Estes privilégios não funcionam no caso de crime de lesa-majestade, divina
ou humana (Ord. fil.,5,1 ss.), erro de ofício, falência fraudulenta (v. Ord. fil.,5, 66).
1043 Ord. fil.,4,92,1 (decisão de 1620, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., I., dec. 106).

230
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1770, § 15) (v. cap. 5.4.2);
§ 738. • autorizar a caça no distrito da corte (A. 1.7.1776, § 4).
§ 739. Salvo no que diz respeito às normas genéricas do direito comum, não se pode,
portanto, dizer que fossem de extraordinário relevo, quanto aos seus resultados práticos, os
privilégios concedidos à nobreza, embora o mesmo não se possa dizer, eventualmente, da
sua importância simbólica. O que permite dizer que a importância social deste estado não
era sobretudo devida aos seus efeitos jurídicos, representando estes, antes, uma marginal,
mas emblemática, formalização de uma marcação social visível, sobretudo, noutros sistemas
simbólicos.
3.1.5.1 O imaginário jurídico nobiliárquico.
§ 740. Para se fazer o levantamento desse imaginário é importante considerar a teoria
jurídica da nobreza, tal como aparece na tratadística dos sécs. XVI e XVII, que funda a
distinção entre nobres e não nobres na própria ordem da criação.
§ 741. Teria sido esta que teria dado a umas coisas a primazia sobre as outras, em
razão da utilidade ou da beleza (ratione utilitatis vel pulchritudinis). Daí que a nobreza
pudesse ser considerada, neste sentido, como um facto de natureza (falando-se, então, de
nobreza natural 1044), residindo mesmo nas coisas inanimadas (ouro, pedras preciosas), ou
nos animais desprovidos de razão (falcão, boi, leão). Nos homens, como nas coisas da
natureza, esta nobreza natural derivaria da virtude, nomeadamente daquela virtude que torna
alguém ou alguma coisa apto a dominar (Aristóteles, Politica, 9; Ética, 4). Como dirá Bártolo,
a nobreza1045residia "naquele hábito eletivo [i.e., naquela habituação de bem decidir] acerca
das coisas que respeitam à preeminência e ao domínio". Neste sentido, a nobreza natural
era irrenunciável, pois ninguém podia fugir à sua própria natureza 1046.
§ 742. Nesta nobreza natural se fundava a nobreza política, de que os juristas se
ocupavam preferentemente, e que era aquela que, na república, servia para distinguir o
nobre do plebeu. A investigação sobre as suas fontes levava à antiguidade. Segundo Juan
Arze de Otalora, Platão filiava-a: (i) na progenitura ilustre; (ii) na graça do príncipe; ou (iii) na
fama de atos passados e feitos na guerra. Já Aristóteles (Politica, 4) a fizera decorrer do
nascimento, da riqueza e da virtude1047.
3.1.5.2 Títulos de aquisição ou de prova.
§ 743. Que a nobreza natural, a virtude, fosse a causa eficiente de toda a nobreza
política ninguém duvidava. Só que a nobreza natural constituía um critério escondido e

1044 É Bártolo (in alleg. lege prima, C. de dignitat.) que distingue entre nobreza teológica (cf. S.

Tomás, Summa theol., 1a.2ae, qu. 110, correspondente ao estado de graça), nobreza natural e
nobreza política.
1045 Citado por Juan Arce de Otalora, Summa nobilitatis Hispanicae & immunitatis regiorum

tributorum causas […], Salmanticae, Andreas à Portonarijs, 1556.fl. 15 v..


1046 A questão da irrenunciabilidade da nobreza coloca-se mesmo em face da nobreza política.

Em geral, entende-se não se podia renunciar à nobreza, mesmo por juramento. Porque, ao fazê-lo,
atentar-se-ia contra a ordem política e injuriar-se-ia toda o estado a que se pertencia. Do mesmo modo,
o clérigo não podia renunciar ao seu estado. Cf. João Baptista Fragoso, Regimen reipublicae [...], cit.,
p. I., liv. 3, disp. 6, n. 154; tal como o natural não podia decidir deixar de o ser.
1047 Juan Otalora, Summa nobilitatis Hispanicae & immunitatis regiorum tributorum causas […],

cit., p. 16.

231
Direito das pessoas.
sujeito a disputa. Esse era o seu principal defeito como critério operacional de hierarquização
da república. Como qualidade apenas virtual, necessitava, portanto, de um agente
suplementar que a tornasse atual e visível. Assim, - dizia-se - "a nobreza não se presume [...]
pois não é intrínseca à natureza [comum] dos homens, mas atribuída [a alguns] por feitos
ilustres, pelas letras, pela riqueza ou pela graça do príncipe ("nobilitas non praesumitur [...]
quia nobilitas non insit a natura, sed illustribus factis, litteris, divitiis, aut Principum gratia
pariatur hominibus 1048); "e, assim, deve provar-se por indícios, fama e testemunhas de
outiva ou outras presunções ("et sic probari debet, ex indiciis, fama, et testibus de auditu, &
aliis praesumptionibus") 1049.
§ 744. Esse fator que tornava visível (e, logo, politicamente, atual) a nobreza interior
podia ser, desde logo, o príncipe, que, tal como Deus em relação às virtudes sobrenaturais,
podia revelar virtudes políticas aliás escondidas. Mas o mesmo efeito podia ter a fama e,
ainda, uma tradição familiar de virtude - a linhagem ou geração1050.
§ 745. Daqui, a tipologia das vias de aquisição (talvez melhor, de manifestação, de
demonstração, de publicação) da nobreza.
§ 746. Comecemos pela graça do príncipe. Para João Baptista Fragoso, que escreve
em Portugal nos finais do séc. XVI, a nobreza concedida pelo príncipe não deixa de
constituir, pela oposição à nobreza interior, natural, uma "nobreza extrínseca". É a "qualidade
atribuída pelo que detém o principado, em virtude da qual o que a recebe é assinalado como
superior ao plebeu" (nobilitas extrinseca 1051 est qualitas illata per principatum possidentem,
que quis acceptus ostenditur ultra honestos plebeius1052).
§ 747. Porém, outros dão à ação do príncipe um caráter mais criador. Tal como Deus,
ele seria a verdadeira causa eficiente da nobreza: "do mesmo modo que junto de Deus é
nobre quem Deus pela sua graça faz grato ao mesmo Deus, assim no mundo é nobre quem
o príncipe, por lei ou pela sua graça, faz grato ou nobre"1053. Por isso, o arbítrio do príncipe
não teria limites nem seria sindicável nas suas razões. Uma ilustração: apesar do facto de a
nobreza que decora um doutor se fundar na sua ciência, o príncipe poderia criá-los sem
qualquer formalidade, apenas pelo facto de lhes chamar doutores, tal como, na milícia, ele
enobrecia um soldado, chamando-lhe cavaleiro 1054.
§ 748. Em Portugal, o caráter constitutivo da graça régia na outorga da nobreza era
muito clara para os juristas, apesar de não constar da lista de regalia da Ordenação,2,26.
Por um lado, as Ordenações não lidavam, como se viu, com a categoria genérica da
"nobreza", mas antes com categorias particulares, ligadas a distinções outorgadas pelo

1048 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 73, n. 10.


1049 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p.2, dec. 73, n. 12.; Manuel Álvares Pegas,
Commentaria [...], tomo 3, ad Ord. fil.,1,24, gl. 1, n. 7. Cf., ainda, "nobilitas est qualitas extrinseca, cum
a principio omnes aequalis conditionis homines estiterint", Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, d.
106, n. 4.
1050 Cf. Juan Otalora, Summam nobilitatis Hispaniae […], cit., p. 16.v..

1051 Segundo Aristóteles, é virtude de antiga riqueza (Polit., 4, 8) ou dignidade dos antepassados

(Rhetor., 15); mas agora, a nobreza induz-se do príncipe; tal é a opinião de João Baptista Fragoso,
Regimen reipublicae […], p. I., liv.3,disp. 6, pg. 316, n. 132.
1052 João Baptista Fragoso, Regimen […], p. 1, liv.3, disp. 6, pg. 316, n. 131

1053 Cf. Bártolo, citado por Juan de Otalora, Summa […], cit., fl. 17 v.

1054 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 1, liv. 3, disp. 6, n. 143/41.

232
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
rei1055. Por outro lado, estas categorias eram bastante arbitrárias, parecendo não conterem
qualquer referência a uma classificação "natural" ou linhagística.
§ 749. "A nobreza pertence apenas ao rei, sendo uma superioridade real; e a nobreza
surge de concessão régia ou de privilégio" (nobilitas ad solum Regem pertinet, & est
superioritatis regalis: & nobilitas inducitur ex regis concessione, seu privilegio)", afirmam
Jorge de Cabedo, escrevendo nos finais do séc. XVI 1056, e Melchior Febo, um pouco mais
tarde 1057. João Baptista Fragoso, por sua vez, filia esta prerrogativa régia no próprio exemplo
de Deus, ao criar os anjos como seres excelentes e ao atribuir-lhes uma hierarquia; de Deus
teria passado aos reis deste mundo, a começar pelos do Antigo Testamento (Esther, I., 6;
Macabeus, 1) 1058. Entre esta nobreza dativa e a nobreza generativa não existiria nenhuma
diferença (ibid., n. 138). António Gama é ainda mais decisivo: ninguém adquiria a nobreza
por si mesmo, mas apenas pela dignidade do ofício ou pela concessão real (nemo acquiritur
nobilitatem a seipso, sed a dignitate oficii, vel concessione regis)1059.
§ 750. Esta concessão da nobreza pelo príncipe seria tácita em relação aos que
estivessem a seu lado, os seus “colaterais” 1060. Também o fazia, chamando alguém de
nobre, concedendo armas ou doando-lhe um senhorio com jurisdição 1061. Alguns inferiores
ao príncipe teriam também o privilégio de criar nobres, inscrevendo-os nos seus livros de
matrícula, como se fossem criados pelo rei. Em Portugal, era o que acontecia com o Duque
de Bragança 1062.
§ 751. No caso de se tratar da nobreza em geral, da tal que só se encontrava nas
fontes do direito comum (ou na parte penal das Ordenações e nas cartas de foral, a
propósito das isenções fiscais), a doutrina recorre a formas de manifestação menos
dependentes de um ato real, tais como os habitus sociais - "viver à maneira [segundo a lei]
da nobreza" -, que não remetiam para classificações de origem real, mas para categorias
sociais assentes, sobretudo, na fama inveterada1063. Numa sociedade em que a natureza se

1055 Cf. g., todas as categorias de fidalgos, cavaleiros e escudeiros da Casa Real (mais tarde,

damas do Paço), fidalgos de cota de armas, [i.e., fidalgos a que o rei concedera cartas de brasão],
cavaleiros das ordens militares, desembargadores, juízes, vereadores, capitães de navios do rei.
Exceção, no sentido de uma nobreza obtida "espontaneamente" (i.e., sem intervenção régia), eram os
fidalgos de solar (que não se sabia, agora, ao certo o que fossem, não faltando quem os equiparasse
aos senhores de terras; logo, de novo, a "criaturas" régias), os mercadores de grosso trato e os
capitães de navios de alto bordo.
1056 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 73, n. 1.

1057 Melchior Febo, Decisiones […], cit., I., d. 14..

1058 João Baptista Fragoso, Regimen reipublicae [...], cit., p. I., liv. 3, disp. 6, n. 137.
1059 António da Gama, Decisiones […],cit., dec. 86, n. 5.
1060"Adhaerentes lateri principis, & ei servientes in officio aliquo sunt nobilis", Jorge de Cabedo,

Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 73, n. 4; Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1., dec. 106, n. 38: apesar
de uma opinião isolada de Ripa de que as parteiras da rainha seriam duquesas, acha duvidoso que se
possa dar tal dignidade sem lei expressa. Esta nobreza colateral não se estendia, no entanto, aos que
exerciam ofícios mecânicos (como cozinheiros, ucheiros, moços de estrebaria, etc.).
1061 João Baptista Fragoso, Regimen reipublicae [...], cit., I., liv. 3, disp. 6, n. 157-161.

1062 João Baptista Fragoso, Regimen reipublicae [...], cit., I., liv.3, disp. 6, pg. 316, n. 133.

1063 "Grande jurisdição tem o tempo sobre a estima, & e reputação da nobreza", escreve João

Pinto Ribeiro (João Pinto Ribeiro, “Sobre os títulos de nobreza de Portugal e seus privilégios”, em
Obras varias, Lisboa, 1730).

233
Direito das pessoas.
deixava ler na tradição, a nobreza interior podia manifestar-se exteriormente se se lhe desse
tempo de frutificar em atos repetidos ao longo da vida (nobilitas probatur per actus, qui
faciunt veram distinctionem inter nobilem et plebeum)1064, pois não nascia de um instantâneo
piscar de olhos (nobilitas non nascitur in ictu oculi)1065. A reputação pública – a pública fama
– não era senão a exteriorização da nobreza interior; mas, como o interior estava
irremediavelmente escondido, a reputação tornava-se um sinal indispensável, neste sentido
gerador, da nobreza. Como escreveu Melchior Febo, insuper nobilitas consistit in hominum
existimatione1066.
§ 752. Na realidade, esta independência da qualidade de nobre em relação a um ato de
graça régia refletia a ideia de que a hierarquização das pessoas consistia num facto da
natureza, na existência de uma hierarquia natural das pessoas1067 e não num facto da
vontade política. Esta apenas a podia declarar, concedendo-a expressamente a quem já a
tinha implicitamente (a "quem a merecesse"); mas não concedê-la como que ex novo e de
raiz1068.
§ 753. A admissão da relevância da reputação social como forma de acesso à nobreza
torna o discurso jurídico num espelho dos sistemas sociais de distinção do estado de nobre.
O direito doutrinal e jurisprudencial não fazia mais do que ratificar - por meio de um sistema
regulado de prova e de certificação - classificações já operadas na vida quotidiana. Abria-se
à vida, evoluía com ela; mas introduzia nas classificações sociais maior certeza e maior
durabilidade. Em rigor, não criava nada de novo; mas atribuía ao que já estava criado uma
fiabilidade e uma permanência muito maiores.
§ 754. Uma outra via de acesso à nobreza era a linhagem. Certos autores -
nomeadamente autores castelhanos, orientados pela noção de hijos dalgo, muito marcante
no direito nobiliárquico das Partidas - preferiam destacar a linhagem como origem principal
da nobreza. Era o caso de Juan de Otalora que afirmava que "pela palavra nobreza se
entende simplesmente a nobreza de género" (Summa, cit., fl. 17), tanto mais que esta não
seria apenas um critério seguro de diagnóstico da nobreza natural, mas antes uma das suas
causas eficientes, já que "a nobreza de sangue e a virtude natural dos pais excita à virtude
dos filhos" (ibid., fl. 16) 1069. E, daí, que reagisse contra o anterior dito de Bártolo sobre o

1064 Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 106, n. 35.


1065 João Baptista Fragoso, Regimen reipublicae [...], cit., p. 1, liv. 3, disp. 6, n. 198.
1066 Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, cit., dec. 106, n. 35; “Nobilitas causatur ex communi

opinio”, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., 2, dec. 73, n. 5. “Nobilior maior est, quo antiquor”,
António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 1, n. 21. Cf., ainda, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1,
dec. 14 (questão julgada em Aveiro em 1614: era costume, em Aveiro, que apenas relevasse, para
isenção de oitavo, a nobreza originária; o costume não foi reconhecido pela Relação que decidiu que
bastava a reputação e a vida segundo a lei da nobreza).
1067 "Em todas as coisas bem regidas, & governadas, ha de haver esta ordem: que isto é o que a

natureza principalmente em si contem", Álvaro Ferreira de Vera, Origem da nobreza [...], cit., 3.
1068 "[A nobreza] é uma qualidade concedida por qualquer principe aquelle, que a merece, ou

porque descende de pessoas, que a mereceram por serviços feitos à Republica, assi em armas, como
em letras; ou por se aver aventajado dos mais em qualquer memorável exercício", Álvaro Ferreira de
Vera, Origem da nobreza [...], cit., 5; embora o A. afirme que "os reis são os que concedem
essencialmente a nobreza e fidalguia" (ibid., 6) as causas eficientes destas são a virtude e a linhagem,
sendo o rei apenas a causa formal (ibid., ).
1069 "É que a virtude paterna transmitida aos filhos não só os obriga à sua imitação, mas ainda os

234
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
caráter generativo da graça do príncipe, opondo-lhe um de Boécio, que destacava, pelo
contrário, o caráter eficiente do sangue: "a nobreza é um certo louvor e clareza dos pais"; ou
de Landolfo, no mesmo sentido: "a nobreza do género [= de linhagem] é a qualidade ou
dignidade que provém do brilho do sangue, com origem nos pais e continuada pela carne
nos filhos legítimos". "Esta definição - concluía Otalora - contém toda a substância da nossa
nobreza".
§ 755. O português João Baptista Fragoso também adotava este conceito naturalista e
generativo da nobreza, acolhendo a mesma definição 1070, e sublinhando que o estado de
nobreza surgira com a própria criação do homem, sendo doravante transmitida pela
geração1071. Mas não deixava de sublinhar o caráter apenas probatório da linhagem,
asseverando que a nobreza generativa não existia senão quando adornada pela virtude 1072.
Para a maior parte dos autores portugueses, em todo o caso, a linhagem era apenas uma
das formas de manifestação da nobreza, a nobreza de linhagem apenas uma das espécies
de nobreza, equivalente àquilo a que se chamava fidalguia1073; embora se reconhecesse que
esta via de manifestação era a melhor1074.
§ 756. Assente esta eficácia do nascimento na manifestação da nobreza, punha-se a
questão de determinar qual das linhagens contava, se a do pai ou a da mãe. A opinião mais
comum era a de o marido, que representava a unidade da família, transmitia aos filhos e à
mulher a sua nobreza, já que os domésticos faziam unidade com a pessoa do pai 1075.
§ 757. Jorge de Cabedo, com base num texto das Ordenações (Ord. fil.,5,92,4, que
permitia ao filho tomar o brasão da mãe), era de opinião de que, segundo o direito português,
que seria uma exceção ao direito comum, se devia considerar também a nobreza materna
como generativa1076. A opinião era singular, mas ficou na memória textual, parecendo ganhar

provoca e estimula [a obrar virtuosamente]", Otalora, Summa nobilitatis Hispaniae […],cit., fl. 16.
1070 "Nobilitas generis est qualitas sive dignitas promanans ex splendore claris sanguinis a

parentibus trahens originem, & et in filios naturales, ac legitimos per carnem continuata" (sublinha-se a
diferença em relação à definição de Ortalora, pois aqui não restringe a transmissão da nobreza aos
filhos legítimos).
1071 João Baptista Fragoso, Regimen reipublicae [...], cit., p. 1, liv.3,disp. 6, pg. 316, n. 134

1072 Cita Baldo, in l. nobiliores, C. de commerc. & mercat.; onde diz que existem três espécies de

nobreza: da estirpe, da virtude, da estirpe e virtude, que seria a verdadeira nobreza; cf., também,
Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit. tomo 6, ad I., 74, gl. 2, n. 11.
1073 “Nobilitas gentilitia est, quae provenit ex nobili genere, & familia, nomine, & insigniis, seu

armis decorata [i.e., ornada pela carta de armas] quod in nostro regno fidalguia vocatur”, Manuel
Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 3, ad I., 24, gl. 1, n. 9.
1074 A nobreza originária (i.e., de origem) deve ser sempre preferida (v. Ord. fil.,1,96, 2). Só esta é

admitida na confraria da Misericórdia [de Aveiro], Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 14, ns.
11/12.
1075 “Nobilitas et gloria patris in filios transit. Memoria patris conservatur in filiis. Filius et pater una

persona censetur”, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 36, n. 14. “Nobilitas transit in
posteros in infinitum”, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 73, n. 5. Se é de considerar o
momento da conceção ou o do nascimento, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 106, ns.
19/20. Em contrapartida, “An nobilitas filii ascendit ad parentum”, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p.
1, dec. 154.
1076 “Nobilitas ex parte matris de jure lusitano consideratur (& quid de iure commune)”, Jorge de

Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, cons. 73.

235
Direito das pessoas.
força com os tempos, sobretudo no caso em que a nobreza materna fosse excelente 1077.
§ 758. Havia outras modalidades de manifestação / aquisição da nobreza. O jurista
francês Barthelemy de Chasseneux (1480-1541), uma autoridade no direito costumeiro
borgonhês e respeitado tratadista de direito comum tardio, enumera as seguintes1078: (i) a
dignidade, (ii), a riqueza; (iii), a reputação comum; (iv) o privilégio do príncipe 1079; (v) o lugar
de nascimento 1080; (vi) a adoção; (vii) os feitos militares; (vii) o estado clerical; (viii) a
prescrição. Nem todas eram reconhecidas em Portugal, embora pudessem ser
oportunisticamente invocadas. Aqui, em contrapartida, discutia-se muito a questão de duas
qualidades – a riqueza e a ciência – para manifestar a nobreza.
§ 759. Em relação à ciência, os textos clássicos (Aristóteles e o Codex Iustitniani)
promoviam uma opinião afirmativa, quer se tornou comum1081. Os próprios juristas estavam
interessados nisso. A eficácia da riqueza para gerar nobreza também tinha raízes em
Aristóteles que defendia que a riqueza antiga dava nobreza 1082. Para os autores
portugueses, esta proposição não era tão evidente, pois não haveria uma relação necessária
entre a riqueza interior e os bens deste mundo. A sua posição andava mais próxima de certo
realismo, fundado na observação e sensível às leis da vida 1083, nomeadamente quanto às
possibilidades de se levar uma vida nobre sem o apoio da riqueza 1084.
§ 760. Os fundamentos da perda da nobreza eram o reflexo, em negativo, dos
fundamentos da sua aquisição. Assim, a nobreza perdia-se por factos que infirmassem a
presunção de virtude (como a prática do crime de falso 1085), que fizessem incorrer em
infâmia (como a prática do crime de lesa majestade, Ord. fil.,5,6,9) ou que prejudicassem a
reputação pública (como o exercício do comércio sórdido ou de profissão vil) 1086.

1077 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen reipublicae [...], cit., p. 1, liv. 3, disp. 6, n. 141.
1078 Cf. Bartolomé, Chasseneuz (Bartholomaei Chassanaei), Catalogus gloriae mundi […], cit., p.
8, maxime cons. 7 ss.. Toda a obre é muito interessante para o imaginário da honra, seus sinais
(heráldica), seus graus, suas fontes, etc..
1079 Além da concessão direta da nobreza, concessão de título ou ofício que exigissem nobreza

(“nobilitas causatur ex titulo (comitatus, ducatus, baroniae) & hoc est quod vocamus ‘de solar’", Jorge
de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 73, n. 6).
1080 Era o caso da nobreza dos bascos.

1081Aristóteles, De anima, 1; Polit., 4,4. Fontes jurídicas: João Baptista Fragoso, Regimen

reipublicae [...], cit., p. 1, liv. 3, disp. 6, n. 149); “Scientia homines nobiles facit”, Manuel Álvares Pegas,
Commentaria [...], cit., tomo 4, ad I., 35, gl. 8, n. 3; “unde bachelaureatus nobilitate fruitur”, Manuel
Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 7, ad 1, 90, gl. 4, n. 9.
1082 Nihil aliud est quam inveterate divitiae”, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 14, n. 8;

“[est] acquisita ex propria industria, vel divitiis”, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 14, n. 20.
1083 “Nobilitas plerumque consistit in divitiis”, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 73,

n. 5; Barthelemy Chasseneuz, Catalogus Gloriae mundi […], cit., p. 8, cons. 22.


1084“Nobilitas sine divitiis sordescit”, Manuel Barbosa, Remissiones doctorum [...], cit., ad 5,139, n.

7. Sobre o tema, v. Álvaro Ferreira de Vera, Origem da nobreza [...], cit., 49 ss..
1085 Falso testemunho, ocultação de bens em fraude dos credores, falência (pois os falidos são

ladrões públicos, Ord. fil.,5, 66), falta de cumprimento dos deveres de rendeiros reais relapsos (Ord.
fil.,2, 53), João Baptista Fragoso, Regimen reipublicae [...], cit., p. 1, liv. 3, disp. 6, n. 164.
1086 Exercício de arte mecânica (Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 12, ad 2,60,

gl. 1, n. 6); mas a agricultura não prejudica a nobreza (Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit.,

236
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 761. Se a reputação ocupa um lugar central na panóplia dos títulos de aquisição da
nobreza, os atos e trem de vida que geram essa reputação hão-de constituir a melhor prova
da nobreza. "O tratamento elegante manifesta a nobreza de berço [...] e, assim, presume-se
nobre aquele que se comporta como nobre em todos os atos", escreve Jorge de Cabedo, no
início do séc. XVI1087). Mas, fora destes casos de evidência, "a fama (e, ainda mais, as
testemunhas de ouvir dizer, sobretudo se são vizinhos e parentes) também provam a
nobreza (tal como prova a filiação e a consanguinidade)" 1088. Meios suplementares de prova
eram, ainda dentro da mesma lógica, o uso do nome paterno1089, o uso de armas e
insígnias 1090 e, evidentemente, a carta régia de concessão de um título particular de
nobreza, de acordo com os regimentos do Paço ou a sentença 1091, como meio derivado de
consolidação de situações jurídicas.
3.1.5.3 Categorias.
§ 762. Ao falar de categorias da nobreza, podemos estar a falar de duas coisas
diferentes: de categorias doutrinais ou de categorias legais.
§ 763. As primeiras são consequências, no plano das classificações doutrinais, da
diferença dos títulos de aquisição. "A nobreza - escreve Melchior Febo - é tomada em três
aceções: primeiro, em função da estirpe, como na linguagem vulgar; segundo, em função da
virtude, como na linguagem filosófica; e, terceiro, em função de uma coisa e outra, e esta é a
nobreza perfeita, ou seja a generosidade decorada com a grandeza de alma (Baldo, in L.
nobiliores, Cod. commerc & mercator)"1092. Mas, consideradas as coisas mais no plano
estritamente jurídico "a nobreza ou é generosa e nativa, ou politica" 1093.
§ 764. As segundas – as categorias legais - têm já um relevo mais marcadamente
institucional. Ou seja, servem para classificar as pessoas em vista do seu enquadramento na
hipótese de uma norma.
§ 765. Em Portugal, isto ocorria, desde logo, com as várias categorias de nobreza
previstas na lei, das quais se falará de seguida. Mas ocorria também com uma classificação
doutrinal, já antes referida, que aparece na doutrina a partir dos meados do séc. XVI.
Referimo-nos à classificação tripartida "nobreza", "estado do meio", "povo". "Na república -

tomo 12, ad 2,60, gl. 1, ns. 7/8). A nobreza perde-se pelo exercício por si do comércio, salvo costume
em contrário (Álvaro Valasco, Allegationes […], all. 13, ns. 217/233); “officium vile [quod] nullam habet
affinitatem cum nobilitate”, João Baptista Fragoso, Regimen reipublicae [...], cit., p. 1, liv. 3, disp. 6, n.
163; em Espanha, todavia, não perdiam todos os privilégios, como, por exemplo, o de não pagar
impostos, ibid., n. 168.
1087 Jorge de Cabedo Decisiones [...], cit., p.2, dec. 73, n. 14.

1088 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 73, n. 15; Manuel Álvares Pegas,

Commentaria [...], cit., 3, ad I., 24, gl. 1, ns. 14/15.


1089 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 73, n. 17

1090“Per immemorabile possessionem, illustratas armas, & insignias nobilium, nobilitas probatur”,

Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 3, ad 1,24, gl. 1, n. 16. Sobre a importância dos
nomes e títulos, v. João Pinto Ribeiro, “Sobre os títulos de nobreza…”, cit., per totum.
1091 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 3, ad 1,24, gl. 1, n. 16.

1092 Melchior Febo, Decisiones [...], cit., I., d. 106, n. 34; cf. também João de Carvalho, Novus et

methodicus tractatus […], cit., n. 200.


1093 Melchior Febo, Decisiones [...], cit., I., dec. 106, n. 2; também. dec. 14, n. 10 e João de

Carvalho, Novus et methodicus tractatus […], cit., n. 264.

237
Direito das pessoas.
escreve Gabriel Pereira de Castro, pelos inícios do séc. XVII - o estado deve considerar-se
de forma tríplice: um, o de nobre, outro, o de mecânico e de artes sedentárias, e o último,
dos privilegiados que, pela milícia ou pela arte, escaparam aos ofícios sórdidos" 1094. Pela
mesma época, alguns autores integravam estes privilegiados na nobreza, embora os
catalogassem como "nobres de ínfima espécie". Era o caso de Melchior Febo que dizia dos
nobres escusos de oitavo que eram "de ínfima ordem, e de simples figura, que não
dispunham daquela glória dos que tinham adquirido a nobreza dos seus antepassados,
apenas a tendo por causa das suas riquezas; porém, o dinheiro não pode adquirir nem a
virtude nem a verdadeira geração"1095. Daí que, como ele expressamente acautela, estes
nobres nascidos plebeus não deviam ser admitidos nas confrarias reservadas aos nobres. Já
na segunda metade do séc. XVIII, Pascoal de Melo complicava um pouco mais as coisas:
"na sociedade civil, como sociedade desigual, convêm que existam várias ordens de
cidadãos: a primazia detêm-na a ordem dos patrícios; depois a dos cavaleiros e a dos
plebeus [...]. Os patrícios são os nobres por excelência que, na cidade, obtêm junto do rei o
principal lugar [...]. Por isso, aqui apenas incluímos os que dantes se chamavam filhos d'algo
e hoje chamamos fidalgos" 1096. Mas, antes de tratar da terceira ordem, a do povo, falava de
"um outro género de nobreza" (3, 3, 14), constituído pelos que se ocupavam "nos ofícios e
funções civis" aos quais eram devidas honras, embora não fossem propriamente, nem
nobres (patricii), nem cavaleiros (equites). Tal seria o caso dos desembargadores e dos
restantes magistrados 1097, professores e doutores 1098. No povo, finalmente, incluía os que
não tinham “nenhuma nobreza”; ou seja, os que não se incluíam em qualquer das anteriores
categorias ou, ainda, na dos agricultores, já que "os cultivadores dos campos são sempre de
enumerar no conjunto dos nobres" 1099.
§ 766. Quanto às categorias correspondentes a graus especiais de nobreza previstas
nas leis, elas eram, em primeiro lugar, as várias categorias decalcadas dos regimentos do
paço do séc. XV para as Ordenações e cujo sentido e limites não eram isentos de dúvidas
nos últimos séculos do Antigo Regime; eram categorias como as de ricos-homens 1100,
infanções 1101 e vassalos 1102. Depois, os títulos de duques, marqueses, condes, barões,
viscondes 1103 ou, simplesmente, de senhores de terras 1104. Depois, ainda, as várias

1094 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 113, n. 2.


1095 Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 14, n. 11.
1096 Aqui incluía as sub-categorias de "ricos homens", "infanções", "vassalos", "duques",
"marqueses e condes", "viscondes e barões", "fidalgos da Casa Real" (Pascoal de Melo, Institutiones
iuris civilis, 2,3,3 ss.).
1097 Excluía os juízes ordinários.

1098 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2,3,1.


1099 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2,3,15.
1100 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 108; Manuel Álvares Pegas,

Commentaria [...], cit., 3, ad 1,24, gl. 1, n. 11.


1101 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2I, dec. 107.

1102 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 106.

1103 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 105; Pascoal de Melo, Institutiones iuris

civilis, 2,ii,iii,vi ss..


1104 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2,3,9.

238
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
categorias de fidalgos (de solar 1105, de cota de armas 1106 ou inscritos nos nossos
livros 1107 1108), de escudeiros 1109. E, finalmente, categorias como as de doutor ("feitos
doctores em studo universal per exame", Ord. fil.,3, 59,4) 1110, licenciado 1111 1112, juiz 1113

1105 "Não se sabe o que são; parece serem nobres notórios, com solar", João Baptista Fragoso,
Regimen reipublicae [...], cit., p. 1, liv. 3, disp. 6, n. 173. Sobre o tema, cf. João Pinto Ribeiro, “Sobre os
títulos de nobreza…”, cit., 125 ss..
1106 Cf. João Pinto Ribeiro, “Sobre os títulos de nobreza…”, cit., 130 ss..

1107 (= cavaleiros), Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 14, ad I., 1, n. 54. Fragoso
diz que eram os que tinham armas concedidas pelo rei de armas. Opunham-se aos cavaleiros simples
ou cavaleiros de ordenanças (João Baptista Fragoso, Regimen reipublicae [...], cit., p. 1, liv. 3, disp. 6,
n. 146; cf., ainda, Álvaro Valasco, Allegationes [….], cit., all. 13, ns. 4/11; João Pinto Ribeiro, Sobre os
títulos de nobreza, 128 s., 136 ss.).
1108 De acordo com o Regimento de 1572, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2,3,10;

Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 1., ad 1, 2, gl. 2, n. 4.


1109 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 106; João Pinto Ribeiro, “Sobre os títulos de

nobreza…”, cit., 138 ss. Segundo Manuel Alvares Pegas, escrevendo na segunda metade do séc. XVII,
haveria quatro espécies: (i) os que tinham foro de escudeiros da Casa Real dado pelo rei (v. Ord.
fil.,1,65,30); (ii) os que tinham foro na Casa Real por carta especial (só tinham os privilégios desta)
(Ord. fil.,2,45,38); (iii) os criados ou escudeiros de fidalgos (v. Ord. fil.,2,45,38; 5,139, pr.); (iv) os
escudeiros de linhagem (Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 14, ad 1,66, n. 102).
Segundo Melchior Febo, os escudeiros não costumavam ser nobres; o título era usualmente dado a
plebeus e mecânicos e filhos de plebeus, nomeadamente quando iam à India em serviço do rei
(Melchior Febo, Decisiones [...], cit., cit, p. 1, dec. 106, n. 38).
1110 Eram equiparados a cavaleiros confirmados; tinham os mesmos privilégios dos bispos,

abades beneditinos e fidalgos (Ord. fil.,5,120); cf. João Baptista Fragoso, Regimen reipublicae […], cit.,
p. 1. liv. 3, disp. 6, n. 144/5; João de Carvalho, Novus et methodicus tractatus […], cit., n. 265. Os filhos
dos doutores estavam incluídos, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 161 (ou 162 noutras
edições), n. 4/5; os doutores jubilados ou eméritos eram equiparados a condes, n. 6.
1111 Havia dúvida sobre a sua nobreza, n. 7; mas, segundo a jurisprudência palatina, o

entendimento comum era o de estavam equiparados aos nobres pelo menos para alguns efeitos legais
(maxime, necessidade de legitimação dos filhos), Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 11 (ou
12), n. 8; João de Carvalho, Novus et methodicus tractatus […], n. 278. Sobre os bacharéis, ibid., 284
(era discutido).
1112 Quanto aos advogados, eram equiparados aos cavaleiros (L. qui advocati, Cod. advocat

divers. jur.), segundo decisão da Casa da Suplicação (pelo menos para os efeitos da Ord. fil.,3,59),
Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 161 (ou 162 noutras edições), n. 9. Quanto aos médicos,
apesar de dificuldades com textos do direito romano que os referiam como exercendo um ofício vil, era
certo e julgado na Casa da Suplicação (decisão de 1595) que gozavam dos mesmos privilégios que os
doutores em teologia e direito, mesmo que não fossem doutorados, ns. 15/16; mas devia distinguir-se
entre a medicina especulativa e a cirúrgica, sendo esta mecânica, ns. 18/19; o boticário era nobre
(Melchior Febo, Decisiones [...], cit., 1619, I., ar. 65). Quanto aos notários, foi julgado frequentemente
na Casa da Suplicação (Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 161 (ou 162 noutras edições), n.
22), com base em textos do direito romano que os declaravam servos públicos. que exerciam um ofício
vil, não adquirindo, antes perdendo, a nobreza. Mas Melchior Febo, Decisiones [...], cit. contrariava este
ponto de vista: o notário era um servo público, não porque fosse escravo e carecesse de
personalidade, mas porque servia um múnus público, sendo obrigado a prestar serviço a qualquer
pessoa do povo; neste sentido, seriam servos públicos todos os que servissem os ofícios da república.
Opina, por isso, que o cargo não tirava a nobreza, embora não a desse, como vira frequentemente
julgado, ns. 20-28. No mesmo sentido, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 3, ad 1,23,

239
Direito das pessoas.
mercador 1114,
com um regime de privilégios e isenções que decorria mais do direito comum
do que do direito régio1115.
3.1.5.4 Efeitos da nobreza.
§ 767. Constituindo uma disposição espiritual, a nobreza consistia numa inclinação do
espírito para certas virtudes1116, nomeadamente, para as mais necessárias ao exercício da
autoridade (magnanimitatem, magnificentiam, affabilitatem, docilitatem, industriam politicam).
Esta disposição interior provocava a aptidão dos nobres para realizar grandes empresas (ex
nobilibus nobiles res procreantur1117). Era precisamente esta capacidade que recomendava
os nobres para os cargos de governo1118 e que justificava que os seus serviços fossem mais
remunerados1119.
§ 768. Para além destes efeitos gerais do estado de nobreza, a lei atribuía aos nobres
certos privilégios particulares, de natureza fiscal, civil, processual e penal, em geral já
referidos.

gl. 1, n. 4 ss.. Sobre os pintores, entendia-se, nos finais do séc. XVI, que o costume da pátria os incluía
entre os mecânicos, apesar de alguns privilégios de nobreza, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones
[...], cit., dec. 113. Sobre estas categorias, também João de Carvalho, Novus et methodicus tractatus
[…], cit., 278 ss..
1113 A nobreza do juiz depende do costume do lugar; em geral, só os juízes de vilas notáveis (mas

não os das terras pequenas ou os de vintena) - e os seus filhos - são considerados nobres (Melchior
Febo, Decisiones [...], cit., I., ar. 124; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2,ii,iii,xic).
1114 São nobres para efeito de escusarem de pena vil (Ord. fil.,5, 139), se exercem a mercancia

de forma nobre (L. nobilibus, cod. commerciis, & mercaturis). Em todo o caso, a questão era
controversa, devendo observar-se o costume da pátria, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., 1, dec. 161
(ou 162 noutras edições), n. 29 s..
1115 Sobre todas estas categorias no direito dos finais do séc. XVIII, quando já ofereciam dúvidas

de interpretação por estarem em desuso, v.: Sobre “senhores de pendão e caldeira”, Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis, 2,iii,iii; sobre “infanções”, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2,ii,iv; sobre
“vassalos”, senhores das terras e “acontiados”, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2,3,5 e 2,5,9;
sobre duques, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2,3,6; sobre marqueses e condes, 2,3,7; sobre
viscondes e barões, 2,3,8; sobre “grandes” (incluindo aqui os duques e seus filhos, o Grão-prior do
Crato, os arcebispos e bispos, os cónegos da Patriarcal e os titulares), 2,3,9; sobre fidalgos da casa
real, 2,3,10; sobre os cavaleiros das ordens militares, 2,3,13; sobre a nobreza de letras (nobreza civil):
desembargadores, magistrados e professores das Faculdades jurídicas, 2,3,14.
1116 Sobre os vícios e virtudes dos nobres, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 4,

ad 1, 35, gl. 4, n. 4; tomo 6, ad 1,74, gl. 2, ns. 7-12; "politici, & urbani, ac bene morati; nobilitati omnes
virtutes famulentur, maxime magnanimitas, & magnificentia, docilitas, & affabilitas" (João Baptista
Fragoso, Regimen reipublicae [...], cit., p. 1, liv. 3, disp. 6, n. 136 in fin.). Também teriam defeitos típicos
(ingrati, illiberales, libidini dediti, ibid., n. 135).
1117 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 3, ad I., 24, gl. 1, n. 8.

1118 “Praeferendi sunt ad honores, & magistratibus, & dignitates (saeculares et spirituales)”, Jorge

de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 73, n. 7; “nobiles, & non ignobiles sunt eligendi ad
gubernationes, & officia publica reipublicae”, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 1, ad
1,1,gl. 5, n. 4; “Caeteribus paris anteponendi”, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 73, n. 7.
1119 “Maioribus gratiis, beneficiis, & privilegiis munerandi sunt nobiles, & magnates, quam inferioris

gradus homines”, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 7, ad 2,45, gl. 2, n. 1.

240
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
3.1.6 Plebeus e outros estados.
§ 769. Com a tendência que se verifica, desde o séc. XVII, para o alargamento da
nobreza, na qual se vai incluindo, como categoria mais baixa, o próprio “estado do meio”, o
estatuto de plebeu tende a ser equiparado ao dos que exercem ofícios assalariados e ao dos
artífices (ou seja, os que exercem artes não liberais, mechanici, mecânicos). É esta a lição
de Pascoal de Melo que faz questão de afirmar expressamente que os agricultores (que não
dessem dias a outrem, entenda-se) eram nobres1120.
§ 770. Em face das Ordenações, que estabelecem regimes jurídicos (embora de
detalhe) para certas categorias de pessoas, pode dizer-se que o direito português previa
outros estados. Seria o caso dos moedeiros (Ord. fil.,2,62), dos bombardeiros, dos
desembargadores (Ord. fil.,2,59), dos rendeiros das rendas reais (Ord. fil.,2,63).
3.1.7 Pessoas miseráveis.
§ 771. As pessoas ditas miseráveis – órfãos, viúvas honestas, regulares das ordens
mendicantes, freiras e outras que o juiz, segundo o seu arbítrio, considerasse como tais1121 -
tinham um estado próprio, que lhes permitia, designadamente, podiam escolher o juiz – da
corte, da comarca ou da terra (Ord. fil.,3,5,3) -, obrigando a outra parte a vir a esse foro.
§ 772. Manuel Álvares Pegas ensaia uma enumeração das pessoas que cabiam nesta
categoria, baseada na literatura jurídica da época.
§ 773. Segundo ele, seriam miseráveis – em geral, “aqueles cuja natureza nos move a
compadecermo-nos em virtude da injustiça que a sorte lhes fez” 1122. De onde fossem
considerados como tais os cativos e os recém-libertados das cadeias (n. 42); os estranhos
ao lugar e os recém-chegados (n. 43); os doentes (n. 44); as comunidades religiosas, os
hospitais e os mosteiros (n. 45) 1123, os agricultores (n. 46), as meretrizes (n. 47), os expostos
(n. 47), os velhos (n. 48), os mercadores em viagem (n. 48/49), os viajantes carecidos de
meios de sustento (n. 51), aqueles que não têm com que se vestir (n. 51), os que têm várias
filhas casadoiras a quem devam dote (n. 53), os que foram privados de todos os seus bens
por sentença (n. 54)1124.
§ 774. Ao definir a causa da miséria, Pegas refere-se, não à injustiça, mas à “injustiça
da sorte”. Esta fórmula ambígua reflete-se nas dificuldades da resposta à pergunta de saber

1120 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2,3,15.


1121 Bento Pereira, Promptuarium […], cit., v. “Personae miserabiles”, n. 1423; ibid., “Miserabiles
personae”, n. 1276; Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit, p. 1., dec. 54, n. 9; Álvaro Valasco,
Allegationes […], cit., all. 66, n. 27.
1122 Em Commentaria [...], cit., 13, ad Ord,3, 5, gl. 5, cap. 6, n. 40..

1123 Nestes casos, a ideia que funcionava era, tanto a da existência de votos de pobreza, como a

das necessidades dos doentes ou dos monges. Mas também a de uma diminuição da capacidade
jurídica das comunidades, que se manifestas noutras situações. O mesmo autor refere uma pretensão
das monjas de S. Bernardo de Tavira de serem miseráveis, num processo contra Mateus Gonçalves
Rendeiro, em 1665 (Manuel Álvares Pegas, Resolutiones forenses practicabiles […], tomo 2, cap. 11, n.
106); realmente, as Ordenações “concediam o privilégio a todas as monjas, enquanto miseráveis, e isto
quer sejam ricas, quer tenham jurisdição” (ibid., ).; no entanto, Pegas julga de excluir as que têm
jurisdição, restringindo-o às comunidades das ordens mendicantes, que não têm bens (enumerando as
de S. Francisco, S. Domingos, Santo Agostinho, Carmelitas e Jesuítas) (ibid., ).
1124 V. Ord. fil.,3,5,3.

241
Direito das pessoas.
se uma classe dos miseráveis, os que careciam apenas de bens materiais – os pobres -
poderiam tomar pela força aquilo de que tivessem necessidade; por exemplo, se podiam
roubar para comer.
§ 775. Os juristas eram muito cuidadosos com essa questão. Contudo, a ideia de que
os pobres tinham um direito natural aos bens excedentes era largamente dominante.
§ 776. Constatemos, logo desde o início que, de acordo com o pensamento teológico-
jurídico dominante - tal como foi expresso pelos grandes juristas ibéricos da segunda metade
do séc. XVI, na sequência de uma tradição textual anterior –, os pobres1125 tinham um direito
reconhecido a ser auxiliados, a que correspondia o dever das pessoas comuns (ou das
corporações, como misericórdias, câmaras, tribunais) de os ajudar. Os próprios poderes
colaboravam no cumprimento deste dever, criando impostos com finalidades caritativas,
recolhidos ou nas “arcas das [obras] pias”, existente nos concelhos ou arrecadados por
estruturas criadas para o efeito, como as mampostarias dos cativos, cuja missão era
arrecadar e administrar os donativos e as taxas destinadas a remir os cativos e tratar das
negociações da sua remissão.
§ 777. S. Tomás de Aquino (1225(?)-1274) discute o tema na Summa Theologica
(2a.2ae, qu. 32). Uma das questões versa o tópico de saber se a esmola é um ato de
caridade ou um ato de justiça (qu. 32, art. 1). Neste último caso, haveria um dever jurídico de
esmola e um correspondente direito à esmola, ou mesmo à partilha equitativa dos bens. São
Tomás exclui que as esmolas constituam qualquer espécie de retribuição (pelos pecados,
em vista da salvação), assim, que pertençam à esfera da justiça. Contudo, ao discutir a
questão “Se dar esmolas é uma matéria obrigatória (artº 5), ele sublinha que cada um tem o
dever externo de ajudar os pobres, imposto pela razão natural, a qual – acrescento eu –
também é, para São Tomás, a fonte do direito natural. Portanto, embora não seja concebido
como um dever legal, dar esmola é, contudo, classificado como uma espécie de dever, de
um nível superior, decorrente da razão natural, cuja exclusão da esfera da justiça se
explicava, não pela inexistência de um dever, mas fundamentalmente pela falta de um direito
correspondente.
§ 778. Mas porque é que não havia um direito à esmola ? Não por razões substanciais,
nomeadamente por causa do caráter absoluto do direito de propriedade (dos ricos). São
Tomás desenvolve o tema da propriedade de um modo que nega o seu caráter absoluto e a
transforma numa espécie de compropriedade com os necessitados: “Os bens temporais que
Deus nos deu – escreve ele (ibid.) – são nossos enquanto propriedade; mas no que respeita
ao seu uso, eles não nos pertencem só a nós, mas também àqueles que nós podemos
socorrer com aquilo que temos para além das nossas necessidades” 1126.

1125 O tratado peninsular mais completo sobre o estatuto dos pobres é o de Gabriel Alvarez de Velasco, De

privilegiis pauperum et miserabilium personarum […], cit.. Cf. ainda, Gaspar de Baeza, Prima pars Tractatus de
inope debitore […], cit.. Para Portugal, Bento Gil, Tractatus de jure, et privilegiis honestatis in duo diviginti
articulos […], cit.
1126 A frase seguinte, num tom pré-proudhoniano, quase considerava as desigualdades da

propriedade como um roubo (de uso): “Daí que S. Basílio diga […]O que se passa é que tu escondes o
pão que mata a fome dos pobres; que tu deitas fora o vestido do homem nu, que tu atiras para o lixo os
sapatos do descalço, que tu enterraste o dinheiro daquele que precisava; e que, deste modo, tu
cometes uma injúria [um ato ilícito] em relação a todos os que podias ajudar”. Santo Ambrósio
expressa-se do mesmo modo (ibid., ).

242
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 779. Mais tarde e mais próximo, Domingo de Soto elaborará sobre este ponto1127,
concluindo que, se um direito à esmola não estava formalmente garantido, esta falha legal
relacionava-se primordialmente com um aspeto técnico: o facto de que, quer o supérfluo dos
ricos, quer o necessário aos pobres, ter que ser acertado por uma decisão prudencial (de um
tribunal, porventura) 1128, determinando o que era o supérfluo e o necessário de cada um dos
ricos e dos pobres, respetivamente. Isto tornaria o direito dos pobres em algo de meramente
virtual. Foi por isso que, mais tarde, haveria de ser introduzida uma nova política da pobreza
que dava a autoridades públicas o poder de tomar a seu cargo o auxílio aos pobres, de
acordo com critérios objetivos e gerais (“pobres merecedores”).
§ 780. Neste momento, ocorre salientar dois traços principais.
§ 781. Em primeiro lugar, que a teologia europeia tradicional – e, com ela, o direito –
atribuía aos pobres reais direitos de partilhar os recursos criados pela providência divina,
pelo menos na medida das suas extrema necessidade e caráter supérfluo dos bens
disponíveis. A concessão destes direitos incluía o reconhecimento do direito de
autoapropriarão, mesmo por furto nos casos extremos. Embora não tivesse chegado a
configurar um verdadeiro dever de dar esmola. Este último passo só é dado – e posto a
cargo dos poderes públicos – com regimentos urbanos dos finais do séc. XVI, antecipando o
que virá a acontecer com o atual Estado-Providência (ou de Bem-Estar, Wohlfahrtsstaat)1129.
§ 782. Para além disso, o direito estabelecia uma especial proteção dos pobres e
outras pessoas miseráveis, concedendo-lhes privilégios de foro, que lhes permitiam avocar
as causas em que interviessem para o tribunal da corte, tal como acontecia com os
desembargadores 1130. Isto porque, “inspirando a natureza a piedade pelo seu abandono pela
fortuna” (ibid. n. 42, pg. 182), se entendia que a grandeza de alma (magnanimitas) do rei lhes
criaria uma situação mais favorável nesses tribunais. Esta vantagem – que, realmente, podia
representar apenas alguma comodidade ou mesmo apenas uma distinção simbólica,
obrigando a outra parte a prescindir do seu foro e a ter que propor a ação no foro da parte
privilegiada – fazia, apesar de tudo, com que a qualidade de pobre fosse artificialmente
procurada; como acontecia com os pais de muitas filhas nobres, que tinham obrigação de
dotar 1131.
§ 783. No entanto, a pobreza podia facilmente transbordar os limites da ordem social,
sobretudo nume época de fome e miséria endémicas, assumindo formas de logro 1132 ou
mesmo violência individual ou coletiva. Daí que os pobres comecem a ser hierarquizados
quanto aos seus méritos para receberem esmolas. Se compulsarmos juristas do séc. XVII –

1127 Com detalhes, sobre as posições de Domingo de Soto, António Manuel Hespanha,

Imbecillitas […], cit., cap. 8.


1128 Domingo de Soto, De iustitia & iure, Lib. 5, qu. 3, cit..

1129 Cf. detalhes em António Manuel Hespanha, Imbecillitas […], cit., cap. 8.

1130 Cf., para Portugal, Ord. 3,5,3: comentário extenso em Manuel Alvares Pegas, Commentaria

da Ordinationes [...], tom. 13, ad dicta Ord., p. 181 ss.; Miguel de Reinoso, Observationum […], cit., obs.
52, n. 1.
1131 Cf. Manuel Álvares Pegas, Resolutiones forenses practicabiles [...], cit., cit, tomo 2, cap. 11, n.

106 (p. 828).


1132 Citando o poeta Juvenal, Manuel Álvares Pegas considera que “os pobres são capazes de

todos os ludíbrios”, pelo que devem ser afastados de todos os cargos de autoridade (Commentaria ad
Ordinationes [...], cit., Tom. I., ad tit. 1,1, gl. 20, ns.12 a 15 (p. 179).

243
Direito das pessoas.
por exemplo, Manuel Álvares Pegas 1133 - vemos como estes méritos realmente não se
relacionavam com a miséria ou pobreza (inopia, paupertas), mas com características que
indiciavam a sua maior ou menor conformidade com os padrões da ordem. Assim, no caso
de terem que se escolher os pobres a contemplar com um legado testamentário “a favor dos
pobres”, deveriam ser escolhidos os mais pobres, mas também os mais nobres, começando
pelos “parentes [do falecido], os da mesma cidade ou paróquia” 1134, os religiosos (ibid., ns.
10-3). Ao mesmo tempo, incapacidades jurídicas indignificadoras vão acumulando sobre os
pobres
§ 784. A idoneidade dos pobres para testemunharem com verdade é posta em causa, a
menos que gozassem de fama comprovadamente boa e o rico contra quem testemunhassem
a tivesse, pelo contrário, má. Não é que fossem necessariamente desonestos; porém,
“podia-se suspeitar que aceitassem facilmente dinheiro para se deixarem corromper” 1135.
Outros 1136, embora considerassem as fraquezas dos estados de riqueza e de pobreza,
acabavam por se inclinar, no momento de decidirem a quem atribuir posições sociais de
destaque, pelos ricos: contra os pobres estaria que a sua vida está privada de atividade
intelectual (n. 20) ("tenues, et exhausti sunt"); contra os ricos, o facto de que a riqueza
raramente seria irmã da virtude, para além da sua tendência para a preguiça. Porém, entre
os dois extremos, escolhe a riqueza, pela tranquilidade de espírito que dá (n. 21); além de
que, nos tempos que corriam, não se reputaria ninguém de digno de honra senão os ricos (n.
21), pela sua influência, reputação e esplendor. Manuel Álvares Pegas abunda também
neste elogio da riqueza e suspeição da pobreza; as riquezas conservam a retidão e
favorecem a nobreza 1137, pois tal dignidade torna-se sórdida sem a abundância (ibid., n. 2);
daí a utilidade da riqueza para a República e para os cidadãos: manter a igualdade; fazer
temer a torpeza; permitir viver dos seus bens, com esplendor; manter o brilho, decoro e
honra das famílias (m. 19) e, com isto, a riqueza cria ou induz a nobreza 1138; ao passo que
os pobres facilmente se corrompem e, por isso, tornam-se suspeitos (n. 19).
§ 785. Em suma, o estatuto bem aventurado dos pobres cede cada vez mais perante o
esplendor social e político da riqueza, cada vez mais aliada a honorabilidade e à nobreza. O
mundo dos pobres é, progressivamente, não este, mas o Outro.
§ 786. Por outro lado, assistimos a uma concentração no Estado de políticas
destinadas a responder a problemas sociais (desde a pobreza à violência). Até ao séc. XV,
as competências para lidar com estas questões estavam dispersas e emaranhadas,
permitindo um leque alargado de formas de intervenção social e uma constelação complexa
de formas de legitimação dos processos de terapia social. A partir de agora, tudo tende a
concentrar-se nas mãos do Estado; os deveres (morais e quase-legais) relativos aos pobres
tendem a desaparecer, o mesmo acontecendo ao direitos destes de partilhar – mesmo pela
força – os bens de que necessitassem de uma forma considerada como extrema. O que

1133 Nos seus Commentaria ad Ordinationes [...], cit., cit, tom. 4, ad I., 62, § 16, gl. 23, ns. 10 ss., e nas suas
Resolutiones forenses [...], cit..
1134Admite-se que o testamenteiro se possa beneficiar a si mesmo ou aos seus filhos, se forem
pobres (ibid., n. 13)
1135 João Baptista Fragoso, Regímen [...], cit., p. 1., Liv. 5, p. 602.

1136 Cf. g., António de Sousa de Macedo, Perfectus doctor […], 1643, c. 7. Divitiae.

1137 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 1, ad. 1,1, gl. 19, n. 7.

1138 Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 7, ad. 1, 90, gl.8, n. 1.

244
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
deles fica, é a imagem da sua dependência, fragilidade, plasticidade em relação aos
poderosos – quase como meninos -, mesclada com a da sua eventual violência desesperada
e do potencial perigo que isto representava, quer para a ordem social, quer para os bens dos
ricos.
3.1.8 Mulheres.
§ 787. A condição da mulher 1139, concretizada nos usos da linguagem, em preceitos
cerimoniais e de etiqueta, em normas jurídicas, decorria de modelos de leitura (ou de
construção) da natureza depositados na tradição cultural europeia. A imagem da mulher
contida nesta tradição era consistente, podendo explicar, não apenas as práticas habituais,
mas também as normas de comportamento, os preceitos morais e as normas jurídicas. O
direito participava deste sistema de pré-compreensões profundas sobre a identidade e a
natureza dos sexos e recebia dele as suas intuições fundamentais1140. No entanto, como
saber prático de um mundo social em que as mulheres eram mais do que seres passivos e
menorizados, o direito diferenciara-se como sistema produtor de imagens sobre o feminino.
§ 788. O feminino era, em geral, irrelevante (inexistente), sendo denotado pelo
masculino tanquam corpus a capite sua. Porém, quando a imagem da sua particular
natureza o faz irromper no direito, o próprio direito explicita os traços da sua pré-
compreensão da mulher, traços que o saber jurídico amplifica e projeta socialmente em
instituições, regras, brocardos e exemplos - fraqueza, debilidade intelectual, olvido,
indignidade.
§ 789. Percorramos mais detidamente os traços desta imagem da mulher.
§ 790. O primeiro traço é o da sua menor dignidade, o que incapacitaria as mulheres,
nomeadamente, para as funções de mando. O texto fundador era, neste caso, um passo de
Ulpianus, inserido no Digesto: "As mulheres estão afastadas de todos os ofícios civis ou
públicos; e, por isso, não podem ser juízes, nem desempenhar magistraturas, nem advogar,
nem dar fianças, nem ser procuradoras" (D.,50.17,2). O princípio já aparecia nos filósofos.
Aristóteles enunciava-o e justificava-o. S. Tomás de Aquino, um bom leitor de Aristóteles,
partilhava destes pontos de vista sobre a condição feminina 1141. Na Summa theologica 1142,
uma obra que influenciará decisivamente toda a cultura europeia, antes e depois de Trento,
ele manifestou a opinião de que as mulheres eram infelizes acidentes da natureza. Também
as fontes religiosas convinham nesta inferioridade da mulher. O relato da criação da mulher
(Génesis, 1,2,18), bem como a da sua parte na tentação de Adão e sua consequente
condenação por Deus (Génesis, 1,3) têm efeitos devastadores muito duradouros sobre a
imagem da dignidade da mulher. No universo dos textos jurídicos, a presença desta imagem
é constante. O Decreto de Graciano - que recolhe muito da tradição patrística, fortemente
antifeminista - está cheio de referências à menor dignidade da mulher, aos seus
fundamentos e às suas consequências: "É da ordem natural em tudo, que as mulheres
sirvam os maridos, os filhos e os pais; pois não constitui nenhuma injustiça que o menor

1139 Rui Gonçalves, Dos privilegios e praerogativas que ho genero feminino tem por direito comum
& ordenações do Reyno […], cit..
1140 Sobre o estatuto da mulher no direito comum, v., por todos, Helmut Coing, Europäisches

Privatrecht. cit. 1, 234 ss..


1141 Sobre a condição feminina em S. Tomás, Otto H. Pesch, Tomás de Aquino […], 246-271.

1142 Summa theol., 1a.2ae, qu. 92.1 ad 1.

245
Direito das pessoas.
sirva o maior" (Decreto, pt. 2, C. 33, q. V, c. 12) 1143. O pecado original ainda agravara a
desigualdade, pois "foi Adão quem foi enganado por Eva e não Eva por Adão. Foi a mulher
quem o atraiu para a culpa, pelo que é justo que seja ele a assumir a direção, para que, por
causa da facilidade das mulheres, não volte a cair" (Decreto, pt. 2, C. 34, q. V, c. 18). A
quebra desta hierarquia corresponderia a sacrilégio: "como a cabeça da mulher é o marido,
mas a cabeça do marido é Cristo, toda a mulher que não se submeter a seu marido, isto é, à
sua cabeça, torna-se ré do mesmo crime do homem que não se submeta a Cristo, sua
cabeça [...]. Mesmo as mulheres gentias servem seu marido segundo uma lei comum da
natureza" (Decreto, pt. 2, C. 33, q. V, c. 15).
§ 791. Esta pré-compreensão da mulher como ser degradado desentranha-se, no
decurso da tradição jurídica europeia, em consequências normativas, algumas das quais são
meras extensões dos lugares das Escrituras, comunicadas ao direito pela sua receção no
direito canónico.
§ 792. Diretamente do Levítico se extraía a consequência de que mulheres, mesmo as
consagradas a Deus (as freiras), estão proibidas de tocar os vasos ou vestes sagradas
(Decreto, I., dist. 23, c. 25). A regra paulina sobre a sujeição das mulheres aos homens -
nomeadamente, a sua proibição de que a mulher domine o homem - combinava-se com o já
citado passo ulpinianeu do Digesto (D., 50, 17, 2) e gerava uma tradição formidável de
interdições quanto ao acesso das mulheres a tudo quanto pudesse ser entendido como lugar
de magistério ou de mando.
§ 793. No plano do direito canónico, estava-lhes vedado o sacerdócio, pois este
implicava jurisdição e magistério. Bem assim, todos os atos avulsos desta natureza. As
abadessas ou outras superioras, por exemplo, não podiam pregar, benzer ou ouvir as
monjas em confissão (Decretais, V, 38, 10) 1144. Por maioria de razão, "qualquer mulher,
ainda que douta, não deve ensinar em reunião de homens". Mas também não podia batizar
(Decreto, I., d. 23, c. 20).
§ 794. Pelo direito civil, como já se viu, "as mulheres estavam afastadas de todos os
ofícios civis ou públicos; e, por isso, não podiam ser juízes, nem desempenhar magistraturas,
nem advogar, nem dar fianças, nem ser procuradoras" (D., 50, 17, 2).
§ 795. O direito comum aplicava este princípio, com algumas limitações, ao mundo
político medieval e moderno. Assim, vedava às mulheres, em princípio, o exercício de
magistraturas e de lugares que importassem jurisdição, a sucessão nos feudos e nas
alcaidarias1145.
§ 796. Esta recusa de capacidade política às mulheres tinha, depois, consequências
na sua capacidade sucessória relativamente a todos aqueles bens que contivessem alguma

1143 A fonte é S. Agostinho (Quaestiones in Genesim, (em


http://www.documentacatholicaomnia.eu/02m/0354-
0430,_Augustinus,_Quaestionum_In_Heptateuchum_Libri_Septem,_MLT.pdf), liv. 1, qu. 153).
1144"Mulier nos potest ordinari quia est incapax ordinis clericalis[...] nec potest exerceri spiritualia,
neque tangere sacra vasa [...], cit., neque potest accedere ad altare [...] neque potest praedicare, neque
publice docere, quamvis sit docta, & sancta, quoniam hoc est officium sacerdotale" (António Cardoso
do Amaral, Liber […], cit., v. "Mulier", n. 2).
1145 A opinião é comum. Cf., em Portugal, Álvaro Valasco, Decisiones […], dec. 120, n. 3; 157, n.

8; António da Gama Pereira, Decisiones […], dec. 337, n. 2; António Cardoso do Amaral, Liber […], cit.,
v. "Mulier", n. 4.

246
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
dignidade: feudos, morgados, ofícios e regalia 1146 (v. cap. 5.4.4). "As mulheres não
costumavam suceder nos castelos, que costumavam ficar para os filhos, pro dignitate, &
consuetudine familiae [a bem da dignidade e memória da família] ", escreve, no séc. XVII,
Agostinho Barbosa 1147.
§ 797. Em Portugal, o princípio da incapacidade política feminina é recebido na Lei
Mental (primeira metade do séc. XV), que exclui as mulheres da sucessão nos bens da coroa
(Ord. fil., II, 35, 4). "As mulheres - escreve Jorge de Cabedo no início do século XVII 1148 -
são incapazes de serem donatárias de bens da coroa, estando proibidas de os possuírem. A
razão é patente, pois tais bens compreendem muitos atos de jurisdição, como são julgar,
nomear ouvidores para julgar, confirmar os juízes eleitos, apresentar tabeliães e outros
magistrados e, de vez em quando, nomear alguns ofícios. A incapacidade compreende
também regalia, como os ofícios dos castelos, que são os chefes dos castelos a que
chamamos Alcaides mores dos castellos, os quais também não competem às mulheres, nem
estas os podem exercer por si, pois não pertencem a mulheres atos de guerra, como
também não lhes pertencem os atos de jurisdição, l. foeminae [...] Estas proibições existem,
a não ser que o Príncipe conceda especialmente a mulheres estes cargos".
§ 798. O mundo medieval e moderno europeu participava, no entanto, de outras
tradições jurídicas e políticas que outorgavam papéis políticos diferentes ao feminino.
Conhecia rainhas, condessas, senhoras de terras, padroeiras de mosteiros, que exerciam
prerrogativas de mando e que, enquanto senhoras, exerciam também a jurisdição. O direito
feudal lombardo - que, através dos Libri feudorum incluídos no Corpus iuris civilis,
influenciava o direito feudal e senhorial de toda a Europa - conhecia a sucessão feminina dos
feudos. Se isto não foi suficiente para obliterar a tradição judaica, foi pelo menos bastante
para temperar as opiniões quanto ao fundamento da exclusão das mulheres dos cargos de
dignidade. Se havia costumes e leis que as admitiam, se, além disso, a história era
abundante em exemplos de boas governantes, é porque a incapacidade política da mulher
não podia decorrer de um defeito do sexo; mas apenas de um costume criado em certas
nações, atenta a honestidade e o pudor femininos 1149. "A mulher - sintetiza António Cardoso
do Amaral -, segundo costume prescrito, não pode ter jurisdições, exercê-las por si, julgar e
dar sentenças. À mulher não é proibido julgar e ter jurisdição por causa da capacidade, mas
por causa da honestidade [...] não porque careça de juízo, mas porque foi recebido que não
exerça ofícios civis" 1150.
§ 799. Mesmo que esta tradição literária, fundamentalmente judaica, da indignidade
das mulheres pudesse ser cancelada, restava ainda a tradição, essa predominantemente
clássica, da sua fraqueza e fragilidade.
§ 800. Os juristas eram unânimes em considerar que as mulheres careciam das
capacidades suficientes para se regerem por si só. "As mulheres, em razão da ignorância,

1146 Manuel A. Pegas, Commentaria […], tomo 11, cap. 69, n. 3 ss.; Jorge de Cabedo, Decisiones
[…], p. 1., dec. 208; já nas sucessões de bens indiferentes (como os bens alodiais ou enfitêuticos), o
varão não deve preferir a mulher (António Gama, Decisiones […], dec. 194, n.3; Álvaro Valasco,
Decisiones […], cit., cons. 157, n. 7.
1147 Agostinho Barbosa, Tractatus varii […], cit., De apelativa, v. "Filius", n. 61.

1148 Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 2, 27, 1 ss..

1149 Codex, tit. de mulieribus in quo loco munero sexui congruentia vel honores adgnoscunt.

1150 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. "Mulier", n. 5.

247
Direito das pessoas.
equiparam-se às crianças", escrevia Pegas 1151, recolhendo uma opinião comum. "O seu
engenho é móvel [...] a sua disposição vária e mutável, como diz o poeta, presumindo-se que
se deixam facilmente mover com carícias", continuava Pegas 1152. Daí que já o direito
romano lhes tivesse proibido, pelo Senatusconsultum Velleianum, dar fianças, para evitar
que cedessem às manobras de sedução dos devedores 1153. Seriam naturalmente
ignorantes, como os meninos e os rústicos, não sendo de presumir que conhecessem o
direito 1154. Daí que a Glosa enumerasse os casos em que essa ignorância lhes valia como
escusa 1155. António da Gama, discutindo um caso concreto de instituição de um morgado
por uma mulher e perguntando-se se seria relevante averiguar da intenção da instituidora
quanto à ordem sucessória observa que a pobre mulherzinha (muliercula), como qualquer
mulher, não podia entender as ficções e subtilidades do direito1156.
§ 801. Por tudo isto, as mulheres tinham de estar sujeitas à tutela de alguém 1157. Antes
do casamento, estavam sob a patria potestas do seu pai. Depois, estavam como pupilas
debaixo da curatela do marido. De qualquer modo, "por causa da fragilidade do sexo e da
sua pior condição [...] não se devem intrometer nas reuniões dos homens" 1158; não podiam
ser fiadoras (Ord. fil.,4,61); não podiam ser testemunhas nos testamentos (Ord. fil.,4, 76);
nos delitos eram castigadas mais brandamente.
§ 802. Esta fragilidade do sexo (imbecillitas sexi) faziam com que, nas mulheres, tudo
se perdesse: a família, o estado 1159, o nome, a memória. "A mulher chefe de família é o fim
da família", concluía Tomé Valasco 1160.
§ 803. Esta era uma das razões que, a mais da sua menor dignidade, leva a excluir as
mulheres da sucessão em que o sucessor ou a lei tivessem tido em vista a conservação dos

1151 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 4, ad Ord, 1, 62, gl. 43, n. 5 ss..
1152 Jorge de Cabedo, Practicarum observationum [...], cit., cit, p. 1, dec. 114, n. 9.
1153 Cf. D. 16, 1; C.,4, 29, Ord. fil., 4,61; Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 138, n. 23.
1154 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., 138, n. 24 (embora devam consultar peritos em
direito).
1155 Gl. in l. fin Cod. de juris et facti ignorantia.
1156Cf. António da Gama, Decisiones […],cit., dec. 307, n. 3 (“quaequidem mulier fictiones iuris &
et eas subtillitates, non poterat considerare”).
1157 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. "Mulier", n. 29.

1158 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. "Mulier", n. 1.

1159 "A mulher filha de nobre, ao casar com plebeu, perde a dignidade nobre", António Cardoso do

Amaral, Liber [...], cit., v. "Mulier", n. 27. Esta "ductilidade" da mulher também lhe permitia aproveitar a
nobreza do marido (C.,12,1,13; Manuel A. Pegas, Commentaria […], tomo 7, ad I.,90, gl.18, n. 1).
1160 Tomé Valasco, Allegationes […], all. 29, n. 10; Manuel A. Pegas, Commentaria […], tomo 11,

ad Ord,2,35, cap. 181, per totum ("A linha masculina é a linha que começa num varão e neles se
continua sem qualquer mulher ou interposição de seus descendentes [...] A linha feminina é a que
começa na mulher [...] e divide-se em duas espécies, uma sob o ponto de vista do princípio, se começa
em mulher, pois todos os que descendem dela se dizem ser de linha feminina, embora sejam varões,
pois procedem daquela primeira mulher como estirpe [...] Outra é a linha feminina que se compõem só
de mulheres sem qualquer mistura de varão. A mulher que é chefe da sua família também é o seu fim,
pois, em primeiro lugar, a linha masculina extinguiu-se no pai, não se transmite à filha, antes nela
terminando, e não se continua nos seus herdeiros, que se dizem de linha feminina e se consideram de
outra familia e agnação").

248
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
laços familiares que então mais contavam - os laços agnatícios 1161. Isso acontece,
frequentemente, nos bens vinculados à memória da família, como os morgados e, em
Portugal, é estabelecido, em geral, para os bens da coroa.
§ 804. A pré-compreensão do feminino de que o direito parte contém também
referências à perversidade das mulheres, que seriam mais lascivas e depravadas. Por isso, o
estado de pureza era, nas mulheres, sempre precário e instável, sujeito a mil atentados e
desejos. S. Cipriano, um outro látego do género feminino, avisa da evanescência da
virgindade: "pode-se desflorar com a vista; mesmo a mulher incorrupta pode não ser virgem.
Pois o dormir com homem, a conversa, os beijos, contém muito de criminoso e impúdico"
(Decreto, II, C. 27, qu. I., c. 4; fonte, S. Cipriano, ad Pomponium). À imodéstia nos enfeites e
nos trajos se refere S. Agostinho: "Pintar-se com pigmentos, de modo a parecer ou mais
rosada ou mais branca, é uma falácia adulterina.. Pois sem dúvida os seus maridos não se
deixam enganar por ela. E apenas a eles pertence decidir se as suas mulheres se enfeitem,
segundo a permissão (venia) deles e não segundo o poder (imperium) delas. É que os
verdadeiros ornamentos são [...] os bons costumes" 1162.
§ 805. Quanto à feitiçaria, um cânone conciliar do séc. IX, incorporado no Decreto de
Graciano, manda reprimir duramente as mulheres que se dediquem a sondar o sobrenatural
por meio de práticas demoníacas. "Também não é de omitir - diz-se - que algumas mulheres
celeradas, reconvertidas a Satanás e seduzidas pelas ilusões e fantasmas dos demónios,
creem e confessam que cavalgavam de noite aquelas bestas, com Diana, deusa pagã, ou
com Herodíades, e uma enorme multidão de mulheres, viajando no silêncio da noite por
muitas terras distantes, obedecendo ao seu império e dedicando certas noites ao seu serviço
[...] E o próprio Satanás se transfigura em anjo da luz para se apossar da mente dessas
mulherzinhas [...]" (Decreto, pt. 2, C. 26, q. 5, c. 12). E esta prevenção especial acompanha a
prática inquisitorial, que mantém uma particular atenção aos sortilégios e feitiços das
mulheres.
§ 806. O remédio contra estes defeitos das mulheres era uma constante vigilância
sobre os seus costumes e um seu rigoroso confinamento ao mundo doméstico. Era isto que
se predicava sob a regra do pudor e honestidade das mulheres. A honestidade seria, de
facto, "a virtude moral oposta à lascívia" 1163. De alguma maneira, é a virtude que consiste
em usar do sexo segundo a reta razão da natureza 1164. Os direitos e deveres que dela
decorrem seriam, assim, de direito natural, impondo-se às obrigações civis ou políticas, e
mesmo às ordens expressas do príncipe 1165. O primeiro preceito da honestidade feminina
era que a mulher não se misturasse com os homens 1166. "A mulher - escreve António

1161 Agostinho Barbosa, Tractatus varii. De appellativa […], v. "Filius", n. 61; Jorge de Cabedo,

Decisiones [...], cit., cit, p. 1, dec. 208, n. 3 ss..


1162 Epis. 73 ad Possidiam, c. 415; passo recolhido em Decreto, De consecr., dist. 5, c. 38.

1163 Bento Gil [Benedictus Aegidius], Tractatus de iure, et privilegiis honestatis […], cit., art.

proem., n. 2.
1164 Daí que honestidade não se confunda com virgindade, pois realmente a honestidade não

impede o coito em geral, mas apenas o "desonesto" (Bento Gil, Tractatus de iure, et privilegiis
honestatis […], cit., art. proem., n.2).
1165 Bento Gil, Tractatus de iure, et privilegiis honestatis […], cit., art. 2., ns. 2 ss..

1166 Sextum, II, 2 (não convém que se passeiem ou participem em reuniões de homens e, por

isso, não devem vir a juízo).

249
Direito das pessoas.
Cardoso do Amaral 1167-
não deve advogar nem procurar em juízo a favor de causas alheias.
É incompatível com o pudor do sexo que se meta em negócios alheios ou importune
desavergonhadamente os magistrados". Daí que ela não pudesse ser juiz ou ocupar cargos
que a obrigassem a privar com homens - a não ser que, pela sua dignidade ou idade, o
pudor não corresse riscos nessa privança 1168; não pudesse ser obrigada a ir ao tribunal,
como juiz 1169 ou procurador (Ord. fil.,3,47; V, 124, 16); nem a ser testemunha 1170; não
pudesse ser metida em cárceres públicos, mesmo que de mulheres 1171; não devesse meter-
se em questões alheias, nem sequer para acusar crimes públicos 1172.
§ 807. Embora muitas destas restrições fossem apresentadas pelos autores como
honras devidas ao estado de mulher, se nos perguntamos pelos seus fundamentos,
encontramos sempre a virtude da honestidade. E, buscando a arqueologia desta virtude
quando predicada do género feminino, chegaremos rapidamente ao seu oposto, a natural
lascívia das mulheres. Nelas, a honestidade é uma virtude contra a natureza, um improvável
freio da recita razão que procurava compensar a violência das pulsões do desejo e a
debilidade da vontade natural para resistir a elas.
§ 808. Esta imagem da mulher, latente nos textos do direito comum europeu, projetava-
se sobre os direitos dos vários reinos. Neles ganhava, eventualmente, refrações próprias,
que decorriam de tradições culturais particulares. Era o que se passava com o direito
português que, como se pôde ver das indicações de fontes que foram sendo dadas, recebera
a generalidade das regras de direito comum1173.
§ 809. Onde se verifica alguma especialidade do direito pátrio quanto ao estatuto da
mulher era no regime de comunhão geral de bens, considerado como costume geral do reino
(Ord. fil.,4,46/47) - embora sujeito a progressiva usura pelo regime de dote e arras, de direito
comum 1174 – e que limitava mais os poderes de disposição patrimonial da mulher. "O marido
e a mulher - escreve Jorge de Cabedo no início do séc. XVII 1175 - possuem os dois os bens e

1167 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. "Mulier", n. 7.


1168 Bento Gil, Tractatus de iure, et privilegiis honestatis […], cit., art 2, n. 6.
1169 Bento Gil, Tractatus de iure, et privilegiis honestatis […], cit., art 2, n. 1 (Ord. fil.,3,47; 5,
124,16; Nueva recop.,3, 9, 7: "porque no seria cosa guisada, que estuviese entre la muchedumbre de
los hombres, librando los pleytos".
1170 Digesto, 12, 2, 15. Ord. fil., I., 78, 3. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit..., v. "Mulier", n.

52. Esta isenção é atenuada no caso de mulheres desonestas ou plebeias (Bento Gil, Tractatus de iure,
et privilegiis honestatis […], art 2, n. 15)
1171 Porque sempre existe o carcereiro (Bento Gil, Tractatus de iure, et privilegiis honestatis […],

art 3, n. 2); se tiver que ser encarcerada, deve sê-lo em mosteiro de mulheres. Para Portugal, v. Ord.
fil.,2, 31, 4; 4, 76, ult.
1172 Digesto, 3, 1, 1, 2; 48, 2; Decreto, C. 5, 3, 1-3, Bento Gil, Tractatus de iure, et privilegiis

honestatis […], art. 2, n. 12.


1173 Para o Brasil, Jeannie da Silva Menezes, Sem embargo de ser fêmea […]. cit.

1174 Cf. cap. 3.3.1. É provável que a frequência de cada um dos regimes dependesse dos estratos

sociais; aparentemente, o regime de dote e arras era mais comum nos grupos nobres. As camadas
populares, com poucos bens de família ("troncais", "de avoengo"), pouco ciosas dos valores
linhagísticos e recorrendo menos ao direito letrado e escrito, usariam o costume da comunhão,
inicialmente mais comum no Sul, mas depois (a partir de Ord. Man.,4, 7) recebido como costume geral
do reino.
1175 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., cit, I., dec. 106, n. 1.

250
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
são como que sócios na casa divina e humana (cf., Ord. Man.,4,17)".
3.1.9 Menores.
3.1.9.1 A natureza dos menores.
§ 810. A hierarquização da sociedade decorre, lembremo-lo, de uma ordem natural das
coisas. Nela, o homem ocupava o primeiro lugar, acima dos animais e, depois, das plantas e
dos seres inanimados. Portanto, uma humanização deficiente aproximaria o homem do
escalão inferior, ou seja, das bestas. Com o pecado original, essa radiosa humanidade
primitiva teria decaído também. As crianças, mais próximas dessa origem pecaminosa, iriam
iniciar – apoiadas pelo batismo – uma via longa de remissão desse pecado e de aquisição
dos traços de uma humanidade plena. Até lá, ou partilhavam de traços de animalidade ou
recordavam o impacto desse pecado que estava na sua origem.
§ 811. É esta a chave para se entender o estatuto cultural dos menores na sociedade
de Antigo Regime 1176.
§ 812. Em relação a estas pessoas desprovidas de uma plena capacidade de agir de
acordo com as capacidades intelectuais dos homens - a inteligência, a razão, mas,
sobretudo, a prudência -, e feridas à nascença do pecado da sua origem (pecado original), o
sentido comum de Antigo Regime é muito pouco generoso. Mesmo quando se trata das
crianças, nem a sua fragilidade nem a solicitude e o carinho que hoje se entende inspirarem
as eximia a juízos muito negativos sobre a sua inumanidade e perversão.
§ 813. Como as crianças constituem um padrão - e uma metáfora - para avaliar outras
situações de humanidade diminuída, o que se diz das crianças diz-se, por extensão, dos
rústicos, dos nativos, dos dementes e dos velhos. Daí o interesse do imaginário jurídico
acerca delas.
§ 814. No base da fraqueza dos menores está, sempre, a insuficiência do juízo. Isto
prejudicava o conhecimento e avaliação das situações e impedia, portanto, a prudência na
gestão da vida e dos negócios. Nos primeiros anos, a esta deficiência da razão juntava-se a
deficiência da fala, deficiência esta que alguns prolongavam até à puberdade, já que a fala
humana haveria de ser a do homem adulto, com articulação grossa e firme, tal como forte e
firme haveria de ser o entendimento. É o costumado acopular – que também se encontra a
propósito da avaliação da capacidade dos rústicos, dos nativos e na de alguns dementes –
entre reta razão e discurso fluente.
§ 815. Mas a razão, ou equilíbrio, é também um freio aos extremos das paixões
animais – da ira, da luxúria, da volúpia. E, por isso, a falta de siso dos menores explicava
que, neles, a animalidade tendesse a vir ao de cima e a aproximar-se das bestas, nos seus
impulsos caprichosos e imoderados. Daí que os menores fossem volúveis, desorientados e
imprudentes.
§ 816. Alguns atos, de natureza muito pessoal – como os esponsais, o casamento e a
eleição para dignidades e ofícios de cuja dada ou apresentação (Para estes conceitos, v.
cap. 2.6.5.1) fossem titulares –, eram-lhes permitidos, já que eles dependeriam sobretudo de
escolhas dirigidas por afetos pessoalíssimos, situados, digamos, abaixo da razão. Mas já

1176 Sobre a história da criança, v., Ph. Ariès, L'Enfant et la vie familiale sous l'Ancien Regime,

Paris, Seuil, 1973; Lloyd de Mause, (ed.), The History of Childhood, New York: Psychohistory Press,
1974; Colin Heywood,History of Childhood: Children and Childhood in the West from Medieval to
Modern Times, Polity Press, 2001.

251
Direito das pessoas.
tudo quanto tinha a ver com a sabedoria no agir (com a prudência) lhes era rigorosamente
vedado, mesmo se intimamente ligado com atos que lhes eram permitidos. Assim, no
casamento, podiam escolher o parceiro, mas já não podiam gerir os bens.
§ 817. Todo este regime de interdições se prolongava até aos 25 anos, altura em que,
de roldão com a capacidade para ser juiz e julgar os outros, se recebia toda a cópia de
direitos. Numa época de vidas curtas, isto significava que, durante cerca de metade do
tempo de vida, não se tinha, do ponto de vista jurídico, capacidade para viver
autonomamente. Mesmo se – de acordo com múltiplos testemunhos – a vida profissional,
civil e militar, pudesse começar muito cedo.
3.1.9.2 As idades: infantes, impúberes e púberes.
§ 818. Paulo Zacchia († 1659), um dos mais célebres médicos legistas da época
moderna, autoridade para toda a medicina legal até aos inícios do século XIX, disserta
longamente sobre a menoridade e a sua relevância para direito1177. Começa com a
averiguação das fases dessa idade.
§ 819. A primeira delas era a meninice ou puerícia (pueritia, impubertas).
§ 820. Dentro dela, a sua primeira fase seria a da infância que, na melhor opinião, seria
aquela em que "o menino não pode falar"1178 (in+fans). Contava-se a partir do dia do
nascimento - já que a maioria dos juristas não considerava que o feto pudesse ser tido como
um ser animado 1179 - e durava, também na melhor opinião, até aos sete anos. Os menores
de sete anos (infantes) careceriam totalmente da razão, sendo equiparados aos loucos
furiosos. Não responderiam por nenhuns atos, nem sequer poderiam fazer testamento. Isto,
mesmo que tivessem juízo superior ao normal para a sua idade, já que "não gozam de
qualquer prudência, mesmo que nos seus atos pareçam ter alguma"1180.
§ 821. Saídos da infância, os meninos tinham que ainda que passar o marco da
puberdade. Antes disso, tinham a condição de impúberes.
§ 822. Sobre a capacidade dos meninos (pueri impuberes), a opinião comum era a de
que "embora com o progresso da idade a inteligência do homem se aperfeiçoasse, de tal
modo que quanto mais velho fosse homem, mais perfeita se presumia ser a sua inteligência,
os meninos participavam de uma inteligência apenas simples e de uma mínima razão”1181.
§ 823. Já nos casos dos meninos próximos da puberdade1182, dizia-se que participavam
de alguma inteligência, sendo capazes de entender alguns pactos, embora não pudessem
dispor de nenhum conhecimento que lhes fosse útil, a eles ou a outrem. Quando muito,
poder-se-ia dizer que gozavam de juízo semipleno1183, mesmo se do ponto de vista corporal

1177 Paulo Zacchia, Quaestiones medico-legales, cit., liv. I., tit. 1, qu. 2, n. 2.
1178 Paulo Zacchia, Quaestiones [...], cit., qu. 3, n.2.
1179 Paulo Zacchia, Quaestiones [...], cit., qu. 3, n. 10 ss.

1180 Paulo Zacchia, Quaestiones [...], cit., qu. 3, n. 26.

1181 Paulo Zacchia, Quaestiones [...], cit., qu. 4, n. 16.


1182 Este conceito era vago, diferindo os autores quanto ao período da proximidade (3 dias ?, 6
meses ?); finalmente, dependeria do arbítrio do julgador; v. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas
[…] Melo [...], cit.,, II,13, 2 e 3 rubr, n. 2.
1183 Paulo Zacchia, Quaestiones [...], cit., qu. 3, n. 20.

252
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
fossem já quase plenamente capazes1184. Isto autorizava-os a praticar alguns atos jurídicos,
como a contrair promessas de casamento (esponsais “por palavras de futuro”), a nomear ou
apresentar pessoas para dignidades ou ofícios (se tiverem esse direito) 1185. Nestes dois
casos, a atribuição de capacidade aos menores impúberes explicava-se também pela
natureza sobretudo pessoal doa atos, em que, mais do que a razão, eram decisivos os
sentimentos e as simpatias.
§ 824. O fim da meninice impúbere dava-se com a puberdade. Tratava-se de momento
difícil de definir, acerca do qual existiam dúvidas, quer quanto aos sinais, quer quanto ao
tempo. Já no direito romano, os juristas se dividiam quanto ao método de marcar as idades
do homem: os da “escola sabiniana” optavam por destacar o critério do porte físico, os da
“escola proculeiana” distinguiam contando os anos. “Puberdade”, de facto, relacionava-se
com púbis, ou seja, “a zona peluda que costuma aparecer em torno das partes vergonhosas,
na parte inferior do ventre sob a qual se encontra a bexiga, nos varões à roda de dos catorze
anos e nas fêmeas à volta dos doze [...], quando o homem fica capaz de gerar ”1186. Tratava-
se evidentemente de um sinal de natureza, que sinalizava a maturidade sexual; do mesmo
modo que a mesma natureza indiciava com a calvície - um retorno à fase pelada da infância
- a perda das faculdades reprodutoras. Um sinal de algo que era, decerto, muito relevante do
ponto de vista do direito, nomeadamente para a capacidade de contrair casamento e de
realizar a sua finalidade, a procriação. Claro que uma coisa era falar de pelos e outra de
capacidade para procriar1187. Daí que a discussão sobre o limite mínimo da adolescência
fosse um tanto incerta. A pluralidade de palavras não ajudava. "Adolescência" parecia
relacionar-se com “dolentia” e “dolor” e, por aí, com os achaques físicos do crescimento1188.
"Idade núbil” referia-se, evidentemente, ao casamento; mas de uma forma que se
considerava ser apenas aplicável à mulher, pois, na língua latina, o verbo “nubere” tinha uma
conotação de passividade que não se adequava ao papel ativo do varão no casamento
(“mulher núbil, mas não varão núbil, a não ser de modo inapropriado, pois se pode dizer que
a mulher é noiva, mas não o homem […], já que ao dizer que a esposa celebrou noivado,
como que estamos dizendo que foi posta a servir”1189). A Glosa distinguia três tipos
puberdade: a plena, aos catorze anos; a mais plena, aos dezassete; e a pleníssima, aos
dezoito. Por outro lado, havia quem prolongasse a puberdade até aos vinte e cinco anos,
atendendo à constituição tanto do corpo como da alma, "pois uma e outro sempre se
aperfeiçoam alguma coisa até àquele termo”1190.
3.1.9.3 O direito dos menores.
§ 825. No plano jurídico, as disposições acerca da idade da puberdade variavam. Para

1184 Paulo Zacchia, Quaestiones [...], cit., qu. 4, n. 26.


1185 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit..., v. "Minor", n. 3.
1186 Paulo Zacchia, Quaestiones [...], cit., qu. 6, n. 1 ss..
1187 Uma tradição médica que durou até ao séc. XVIII (ainda bem documentada no Dictionnaire

philosophique, de Voltaire, v. “Barbe”: http://www.monsieurdevoltaire.com/article-dictionnaire-philosophique-b-


comme-barbe-108228579.html), relaciona com a potência sexual a pilosidade da púbis e do queixo – que
teria origem no líquido seminal masculino produzido nos testículos -, mais do que os cabelos da
cabeça.
1188 Paulo Zacchia, Quaestiones [...], cit., qu. 6, n. 9.

1189 Paulo Zacchia, Quaestiones [...], cit., qu. 6, ns. 22/23.

1190 Paulo Zacchia, Quaestiones [...], cit., qu. 6, n. 69.

253
Direito das pessoas.
adotar, o direito romano (D.,1,7, De adoptionibus et emancipatioinibus; I.,1,11, De
adoptionibus, 4) estabelecia a idade de 18 anos para os homens e 14 para as mulheres; o
mesmo para interpretar o alcance de uma doação ou legado temporário que devesse
terminar “na puberdade” e para aceitar procurações. Para casar, o direito estabelecia uma
idade adequada do ponto de vista das finalidades do casamento, elegendo como decisivo o
critério da capacidade de gerar. Esta era indiciada pela penugem púbica, mas importava
modificações corporais mais decisivas.
§ 826. Em Portugal, os juristas fixavam a puberdade feminina nos doze anos1191 e a
dos homens mais tarde: nos catorze anos (Ord. fil.,4,104,6)1192. O caráter estrito da doutrina
canónica sobre casamento – impondo-lhe como fim quase exclusivo a reprodução - resumia
praticamente a questão da puberdade à questão da fertilidade. Isto explica que, do ponto de
vista da capacidade jurídica, os menores púberes, para a generalidade dos negócios
jurídicos, pouco mais capazes fossem do que os impúberes. Perguntando-se acerca da
capacidade racional destes adolescentes e, consequentemente, da sua aptidão para gerir
autonomamente os seus negócios, Zacchia constatava que as leis não lhes permitiam gerir
nada a seu arbítrio, antes lhes assinando tutores1193, pois "pouco resistem às paixões,
estando sujeitos a ímpetos voluptuosos irracionais de que não podem ser afastados pela
razão”1194. E, por isso, mesmo quando casados, “não podem administrar as suas coisas, pois
o conselho da sua idade é frágil e menos firme, não sendo suficiente para evitar muitos
enganos e insídias a que estão sujeitos aqueles que administram bens”1195.
§ 827. A puberdade não equivalia à maioridade e, assim, só tendo vinte e cinco anos
(dezoito, sendo mulheres) é que os menores podiam pedir ao rei a sua emancipação, desde
que provassem capacidade e suficiência para a administração patrimonial (Ord. fil.,3,42)1196.
Era também a partir dessa idade que deixavam de gozar do privilégio de pedir a rescisão dos
atos que os prejudicassem, mesmo que praticados pelo tutor (restitutio in integrum [ob
aetatem]) dentro de um prazo de 4 anos (Ord. fil.,3,411197).

1191 Cf. ibid., n. 42. Sobre a precocidade jurídica da mulher: "A mulher que é mais imperfeita do
que o homem, requer menos espaço do que este para que a sua perfeição íntegra seja conseguida,
pois a perfeição do homem é sem dúvida maior; correspondendo à perfeição ou imperfeição o aumento
ou diminuição do tempo das idades (...); na verdade, parece que a mulher cresce mais depressa,
começa a gerar mais depressa, e envelhece mais depressa do que o homem: a sua imperfeição
provém do seu menor calor e, por isso, embora este desapareça mais cedo, também cresce mais
prontamente (...); mas, como disse, não é apenas por causa da sua imperfeição, mas também por
causa da humidade das suas temperaturas e da própria moleza do corpo, que a mulher cresce mais
rapidamente do que o homem; pois as menores dimensões do corpo fazem com que este mais facil e
precocemente se expanda, como testemunha Galeno”, Paulo Zacchia, Quaestiones [...], cit., qu. 6, ns.
53-59.
1192 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2,13,1 ss..

1193 Paulo Zacchia, Quaestiones [...], cit., qu. 6, n. 82.


1194 Paulo Zacchia, Quaestiones [...], cit., qu. 6, n. 89.
1195 António Cardoso do Amaral, Liber [cit.], v. “Minor”, n. 21.

1196 Sobre a capacidade e incapacidades dos menores, Diogo Guerreiro Camacho de Aboim, De

munere judicis orphanorum, cit., tract.3, liv. 5, cap. 5 ss..


1197 Permite aos menores de 25 anos recorrer ao pedido extraordinário de rescisão de negócios

que os prejudiquem (restitutio in integrum [ob aetatem], com efeitos ex tunc). Outros lugares: Ord.
fil.,4,87,3 (aceitação de herança); Ord. fil.,4,79,2 (prescrição); Ord. fil.,96,21 (partilhas). Sobre a

254
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 828. Também o exercício de cargos públicos lhes estava vedado até aos 25 anos
(Ord. fil.,1,94), tal como a faculdade de advogar em juízo (Ord. fil.,1,48, 3 e 20), a menos que
tivessem um título universitário1198.
§ 829. Onde o direito dignificava mais os menores – atribuindo-lhes uma
responsabilidade que permitia a censura e o castigo – era no domínio dos delitos civis
(indemnização de danos) ou penais (punição). Aí, o direito comum considerava-os
juridicamente aptos, pois eram capazes de intenção, logo desde a puberdade1199. O direito
pátrio considerava-os responsáveis a partir dos vinte anos, impondo-lhes a mesma pena dos
maiores; entre dezassete e vinte anos, atenuava a pena segundo arbítrio do julgador; e só os
isentava da pena ordinária se tivessem menos de dezassete anos (Ord. fil.,5,19,1; 5,36;
5,135), sendo a pena capital. Não o sendo, mandava-se aplicar o direito romano (I, 4,1, De
obligat. quae ex delicto nascuntur, 18).
§ 830. A grande exceção da incapacidade dos menores era, como se viu, a do
casamento, que os menores podiam celebrar a partir da idade nupcial de 16 ou 14 anos,
consoante fossem machos ou fêmeas.
§ 831. A incapacidade dos menores era suprida pela direção do pai ou, caso este
tivesse falecido ou fosse incapaz, de um tutor (v. cap. 3.3.2). Se os menores não tivessem
família, eram colocados sob a proteção dos juízes dos órfãos, que lhes atribuíam um. Os
poderes do tutor eram de mera administração, tendo que jurar bem administrar, dar fiança,
prestar contas e responder por danos dolosos ou culposos para o património do menor.
3.1.9.4 Os quase menores, os maiores e os quase maiores.
§ 832. Como se disse, o imaginário dos menores, estes seres imperfeitos mas
perfeccionáveis se submetidos à direção ou disciplina, foi estendido eficientemente a outras
categorias de gente mais fraca.
§ 833. Este estatuto assentava como uma luva aos rústicos e, mais tarde, aos povos
nativos, permitindo evitar o conceito aristotélico de escravos por natureza, esse sim
prejudicial do dogma católico da salvação universal, mas justificando a tarefa de direção
temporal e espiritual a cargo dos europeus. É por isso que o imaginário colonial está, até
muito tarde, repassado de patriarcalismo. E, por outras razões e um tanto menos bem, o
imaginário pueril aplicava-se também às mulheres. Aqui, falhava o caráter provisório do
estatuto, já que não se pensava que as mulheres fossem a tal ponto educáveis, que
pudessem compensar as fraquezas do sexo. Mas, vivendo também elas no mundo
doméstico, o natural era que fossem equiparadas aos filhos (loco filiae vivunt) na comum
sujeição ao pátrio poder.
§ 834. Segundo o direito comum ou segundo o direito pátrio, estavam também
equiparados aos menores quanto à necessidade de confirmação dos seus atos e quanto ao
benefício de restituição dentro do quadriénio dos negócios que os prejudicassem, a

diferença entre a ação ordinária de nulidade, fundada em causas gerais de nulidade, substancial ou de
forma (com efeitos ex nunc), e o pedido extraordinário de rescisão (restitutio in integrum) por causa da
idade (com efeitos ex tunc), v. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, 13,8,
rubr., p. 643 ss. (com muitos detalhes sobre os requisitos e efeitos desta rescisão). Cf. também cap.
7.1.3.
1198 Mas podiam aceitar procurações extrajudiciais (Ord. fil.,3,9,5), a partir da idade plena,

segundo o direito comum (17 ou 18 anos).


1199 António Cardoso do Amaral, Liber {…], v. “Minor”, n. 19

255
Direito das pessoas.
república, o fisco, as cidades, o Igreja, os colégios, os hospitais, as casas religiosas, o
furiosos, os mentecaptos, os surdos e os mudos, os velhos decrépitos, os pródigos, as
viúvas (Ord. fil.,3,5,3), as pessoas miseráveis (Ord. fil.,3,41), os soldados e suas mulheres,
os rústicos (Ord. fil.,3,87,2), os presos (Ord. fil.,3,9,121200), os ausentes em serviço da
república1201.
§ 835. Por oposição aos menores, eram maiores os que tivessem perfeito vinte e cinco
anos (Ord. fil.,3,42,ult.), embora fossem exigidos os trinta anos para se ser juiz dos órfãos
(Ord. fil.,1,88,1; 1,94,pr.) ou governador de um castelo (Ord. fil.,1,74,4). E eram quase
maiores aqueles a quem o rei tivesse concedido carta de suplemento de idade (hoje, o
equivalente à emancipação, mas não então, já que a emancipação se relacionava com a
aquisição da plena cidadania, do estado de sui iuris, ou seja, da desvinculação em relação
ao pai de família); ou os que tivessem casado (Ord. fil.,3,41). Estes últimos não gozavam,
por um lado, do benefício da restituição, mas não tinham tão pouco plena capacidade para
dispor de bens (Ord. fil.,1,88,28; 3,42,1 a 3).
3.1.9.5 O trabalho dos menores.
§ 836. Saindo de casa, o destino de muitos menores era o de servirem em casa de
amos1202. A doutrina admitia que isso pudesse acontecer desde muito cedo, havendo
referências a meninos trabalhadores com menos de dez anos 1203. Na maioria dos casos, os
moços e moças serviam a "bem fazer", ficando ao arbítrio do patrão dar-lhes o que quisesse,
atento o tempo de serviço e a qualidade deste. Neste tipo de contratos, mesmo celebrados
entre adultos, a doutrina jurídica raramente admitia a obrigação de o patrão de pagar um
salário certo 1204. Muito mais tratando-se de crianças. A mesma doutrina previa
expressamente o caso dos criados de estudantes aos quais fosse dado tempo para
estudarem; os criados dos mestres de ofício, ou aprendizes, a quem a arte fosse ensinada e
a quem se prestassem alimentos; ou os enteados que servissem seus padrastos1205 (v. cap.
6.9.2.2.3).
3.1.10 Os doidos.
§ 837. O direito de Antigo Regime desconhecia uma caracterização geral da doidice,
definida global e genericamente como “incapacidade de se governar”. Lidava, pelo contrário,
com uma ampla panóplia de distinções, como desassisado, desmemoriado, mentecapto,
doido, sandeu, furioso, demente, louco. Manuel de Almeida e Sousa (de Lobão), ainda
impregnado de doutrina antiga, escrevera “Seria muito extenso se me propusesse individuar
todas as espécies de doidos, e as diferenças entre os furiosos, maníacos, frenéticos,
insanos, mentecaptos, estultos, fátuos, etc. [...]”1206. Apenas advertia que “outros não são

1200 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 30: os contratos entre encarcerados devem ser

rescindidos.
1201 Fontes em Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II,13,9 rubr., p. 661;

Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], tom. 15, ad Ord. 3,41,17.


1202 V. Ord. fil.,4, 29 ss..

1203 Cf. Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria [...], cit., ad. Ord. fil., 4,29, 33.
1204 Cf. Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria [...], cit., ad. Ord. fil., 4,29, n. 1 s..
1205 Cf. Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria [...], cit., ibid., ns. 30/31, 33.

1206 Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., 2, 12, § 7, n. 1.

256
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
loucos, mas só rudes, simples, grossolanos, como estúpidos, obtusos, e de juízo menos fino,
e perspicaz etc.” (ibid., n. 3) E que “supposto aos fátuos qui mente totaliter capti non sunt
datur curator [aos que não são totalmente apanhados da cabeça se dá tutor), contudo, como
se não pode aqui dar regra certa, porque uns há que são mais fracos que outros, o mais
seguro é fazer por médicos exames, e experiências nos que se supõem doidos, não
confiando de testemunhas as provas da demência” (ibid., nº 4).
§ 838. Ou seja, a doidice, do ponto de vista do direito, ainda não era uma característica
genérica que, por uma razão de princípio, excluía do pacto social e da convivência civil (uma
incapacidade). Era antes um feixe variegado de características mentais, de diferente
incidência nas relações sociais e que, portanto, tinham que ter tratamentos particularizados,
atentos à diversidade das situações psicológicas, bem como dos atos envolvidos. Isso faz
com que as situações de demência se matizassem; algumas delas, como a epilepsia ou “mal
sagrado” (morbus sacer), apareciam rodeadas de uma auréola de mágica clarividência.
Outras geravam, em graus variados, incapacidade jurídica. Ou seja, não estamos ainda
perante essa grande fronteira entre pessoas civil e politicamente capazes e pessoas
incapazes. Estamos antes diante de uma inabarcável diversidade das pessoas, consideradas
nos seus “universais” ou “estados”1207.
§ 839. É esta a visão do direito mais antigo. Como as pessoas não têm todas a mesma
função social, como as suas funções (“universais”) se incorporam na sua própria natureza, é
de direito natural que tenham estatutos jurídicos diferentes. A demência tinha então um
estatuto variado, expresso em comportamentos que se identificavam casuisticamente, sem
se curar de uma causa mental unificadora. O mais que se podia dizer, como característica
comum, era que não se adequavam à ordem estabelecida no mundo1208. Gente que “não
falava a propósito, mas fora de assunto, respondendo uma coisa às perguntas sobre
outras1209; que “diziam coisas vazias”1210; que “iam pelas praças, atirando pedras”1211; que
“andam pelas ruas, lançando berros”1212; que “quando estão doentes, proíbem que se chame
o médico, e se recusam a tomar os remédios para a cura”1213.
§ 840. Passemos aos estados se aproximavam da demência.
§ 841. A bebedice era um pecado, um pecado grave e mortal. No plano do direito,
produzia um estado equiparado ao do demente: “Além disso, como o ébrio – citando Cícero
– raramente vê o sol no Ocidente, mas ainda mais raramente no Oriente, nada nele se pode
dizer razoável, nem a vontade, nem o bom conselho na gestão da vida [...] e por isso é
equiparado ao morto e ao doido furioso [...] pois a bebedice não é outra coisa senão uma
loucura voluntária [...] de onde Platão dizer que não apenas o velho se faz menino, mas
também o ébrio [...] E assim, como escreveu Vives, embebedar-se é perder as faculdades e

1207 Ou seja, voltando a citar Coelho da Rocha, “enquanto às circunstâncias ou estado das

pessoas, a quem competem os direitos, ou obrigações (jura personarum)” (Instituições., cit., 1, § 47).
1208 “Et probatur quando testes dicant memoriam non habuisse ordinatam” [prova-se quando se

diz que não têm uma memória com ordem], Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 12, ad
1, 50, cap. 6, t. 4, n. 95, p. 251.
1209 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], ibid., n. 94.

1210 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], ibid., n. 95.


1211 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], ibid., n. 97.
1212 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], ibid., n. 99.

1213 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit..

257
Direito das pessoas.
o senso, sair do poder da razão e do juízo da cabeça, de onde se diz que o homem se
transforma numa rês ou numa pedra. E fala sem saber o que diz, pelo que se conduz a si e
aos seus para graves males”1214.
§ 842. Depois, os surdos-mudos. O direito romano classificava os surdos-mudos como
doentes perpétuos, daí se equiparando os surdos-mudos de nascimento aos dementes.
Subjacente, porém, parece estar algo mais profundo, sobre a relação entre a razão e a fala.
Essa mesma relação que assimilava a selvajaria à falta de uma linguagem articulada
(barbari), no fundo porque supunha que existia um nexo indissociável entre razão e
comunicação, do qual decorreria, não apenas a insensatez dos surdos-mudos, como a
selvajaria dos homens isolados na floresta (homo in sylva, silvícola, selvagem), isolado na
aldeia (paganus, aldeanus), no campo (rusticus) ou nos vales isolados 1215, impossibilitados
de comunicarem Em contrapartida, outros deficientes físicos feridos de ainda mais reduzida
capacidade de observação – como os cegos – podiam não estar sujeitos a tutela (ibid., 192).
Já “o surdo-mudo de nascimento não podia testar. Ainda que tivesse bom entendimento, e
exprimisse a sua vontade por sinais; porque não podia ter ideia bastante sobre o que fosse
instituir herdeiro e fazer testamento; e porque a declaração da vontade por palavras
pronunciadas ou escritas era solenidade essencial dos testamentos” (ibid.). De novo,
testemunhando a estreita relação entre a fala e a razão: “o que está gravemente enfermo e
mesmo já moribundo e balbuciante, pode fazer testamento se puder ainda pronunciar as
palavras inteligivelmente: pois ainda então se presume estar em seu juízo” (ibid., 185).
3.1.10.1 Os estados próximos da demência: velhos, doentes, pródigos e falidos.
§ 843. Mas a variedade de estados continua. E, com ela, o desfile das adequadas
especialidades, algumas envolvendo incapacitações.
§ 844. A velhice (senectuto) era uma das sete idades do homem1216, em que as
pessoas viam diminuídas as suas capacidades vitais (“est imminutio animal a tempore
contingens”1217), perdendo o corpo os seus calor e humidade iniciais e começando a ser
dominado por humores frios e secos1218. Nela, as pessoas perdiam a capacidade de
gerar1219, o seu vigor físico e mental. Não se tratava de uma doença, pois era uma situação
natural e que não se afastava da normalidade1220. E, por isso, aos velhos não aproveitavam
os privilégios dos doentes. O seu início situava-se por volta dos cinquenta anos, embora
variasse de pessoa para pessoa e, por isso, devesse ser arbitrado pelo juiz1221. O seu termo
ocorria pelos setenta anos, variando também com as pessoas e dependendo também do
arbítrio do julgador. Depois dos setentas, a velhice era chamada decrepitude (decrepitas)1222,

1214 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus regiis [….], cit., liv. 3, cap. 15, n. 27.
1215 Onde ainda Fodéré tinha identificado uma propensão ao cretinismo. Nele, também, a relação
entre pobreza intelectual e ruralismo (cf. François-Emmanuel Fodéré, Les lois éclairés[...], cit., I., 64).
1216 Paulo Zacchiae, Quaestiones […], De aetatibus, qu. 9, n. 2.

1217 Paulo Zacchiae, Quaestiones […], De aetatibus, qu. 9, n. 6.

1218 Paulo Zacchiae, Quaestiones […], De aetatibus, qu. 9, n. 6; qu. 10, n. 11.

1219 Entendia-se que o homem as perdia aos sessenta anos e a mulher, com a perda dos fluxos

menstruais, aos 50 anos, Paulo Zacchiae, Quaestiones […], De aetatibus, qu. 9, n. 58.
1220 Paulo Zacchiae, Quaestiones […], De aetatibus, qu. 9, ns. 62-76.

1221 Paulo Zacchiae, Quaestiones […], De aetatibus, De aetatibus, qu. 9, ns, 30, 35, 36.

1222 Paulo Zacchiae, Quaestiones […], De aetatibus, qu. 10.

258
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
caracterizada por uma deterioração mais evidente das capacidades físicas e das faculdades
mentais. O corpo ficava trémulo, a vista perdia a agudeza, a voz perdia a segurança, a
memória enfraquecia, o sentido de orientação vacilava.
§ 845. Do ponto de vista jurídico, a velhice trazia consigo algumas vantagens. Entre
elas avulta a preferência para o provimento em dignidades1223, a escusa de tutela e de
encargos (ofícios) públicos1224, a proibição de ser posto a tormentos ou a atenuação das
penas1225.
§ 846. Outras categorias assimiladas à velhice eram a dos doentes (ibid., pg. 185)1226,
a quem, sendo incuráveis, se impede a administração de seus bens e se pode dar curador
de bens; a das pessoas miseráveis, compreendendo religiosos mendicantes, pobres,
doentes, cegos, aleijados, peregrinos, a quem se faculta o gozo da restituição in integrum
(possibilidade de anular os atos jurídicos que lhes causassem prejuízo) (ibid., 193); a dos
presos, feridos de algumas incapacidades, mas também protegidos por alguns privilégios.
§ 847. Depois, a dos pródigos, que mantinham com os doidos uma proximidade de
estatuto. Por muito sugestivo que isso fosse, a incapacitação dos pródigos não decorria do
“individualismo proprietário” liberal. Ela vinha já do Antigo Regime, envolvendo então uma
delicada questão de contra distinção entre a prodigalidade, que era um vício, e a liberalidade,
que era uma virtude. O direito romano já previra a nomeação de tutores para os pródigos. As
Ordenações (Ord. fil.,4,103,6) previam a sujeição a tutor daquele que “como pródigo,
desordenadamente gasta e destrói a sua fazenda”. No início do séc. XIX, Lobão recorda
antigas definições e antigos critérios: o pródigo é aquele que dissipa os seus bens
dilapidando-os, sem ter nem regra nem tempo nas despesas1227; ou o que fala como
sensato, mas atua como insensato1228; pródigo diz-se assim como que significando “apartado
de governo”1229. Recordando ainda que havia dois tipos de largueza de mãos, uma típica dos
pródigos, outra dos liberais, ou generosos; dissipando os pródigos a sua fortuna em coisas
de que efémera ou nenhuma memória há-de ficar, como jantaradas, lutas e jogos, caçadas e
opulências 1230. Enquanto que o liberal daria de forma circunspecta, o pródigo fá-lo-ia de

1223 Paulo Zacchiae, Quaestiones […], De aetatibus, qu. 9, n. 4.


1224 Por opinião comum, a partir dos 70 anos, apenas. Paulo Zacchiae, Quaestiones […], De
aetatibus, qu. 9, n. 42
1225 Paulo Zacchiae, Quaestiones […], De aetatibus, qu. 9, n. 2.

1226 A doença devia ser provada por quem a invocasse e podia configurar um estado de

necessidade que justifique a ofensa de bens alheios (Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., v.
“Infirmitas”).
1227 “Prodigus est, qui neque tempus, neque fluem expensarum habet, sed bona sua dilapidando

profundit”, Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., 2, ad 2, 12, 9.
1228 “Seu qui sermone quidem videtur sapiens, sed factis est insapiens”, Manuel de Almeida e

Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., ibid..


1229 “Prodigus dicitur quasi procul a regimine positus”, Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas

[…] Melo [...], cit., ibid...


1230 “Omnino sunt duo genera largorum, quorum alteri prodigi; alteri liberales. Prodigi, qui epulis,

viscerationibus, a gladiatorum numeribus, ludorum, venationum que opparatu pecunias profundunt in


eas res, quarum memoriam, aut nullam aut brevem sunt relicturi”, Manuel de Almeida e Sousa (Lobão),
Notas […] Melo [...], cit., ibid..

259
Direito das pessoas.
forma difusa e sem qualquer prazer, tendo o primeiro uma regra e o segundo nenhuma1231.
Concluindo: “como não há dúvida de que a prodigalidade diminui a coisa e os próprios frutos,
nada ficando da propriedade, resulta que a prodigalidade é uma depravação da mente que
leva ao dispêndio da própria substância [da pessoa], afastando-a da razão e do juízo e
destruindo a sua fama pública, tornando-se o pródigo candidato à impotência de alma que é
própria dos animais selvagens”1232 1233.
§ 848. Sobre os falidos (ou seja, os comerciantes pródigos) impendia, além disso, uma
pesada suspeição. Fazendo parte de um grémio cujos negócios se baseavam em estritas
regras de confiança, os falidos tinham traído essa confiança, pondo-se em condições de não
satisfazerem as suas obrigações comerciais. Podiam tê-lo feito ou por inabilidade grosseira
ou por falta de honestidade. Fosse como fosse, “estava sempre contra eles toda a sinistra
presunção”1234. Daí que fossem incapacitados para vender e que - tal como acontecia com
os pródigos - lhes fosse nomeado um curador. Mas as suspeitas sinistras iam até ao ponto
de os meter na prisão, requerendo-o os credores.
§ 849. A incapacidade de certas viúvas, que também autorizava a que se lhes
nomeasse curador, provinha da lei. As Ordenações (Ord. fil.,3,107) dispunham que, “se
alguma viúva, maliciosamente e sem razão, desbarata ou alheia os seus bens, as justiças do
lugar (o Juiz ordinário, ou dos órfãos) onde os bens estiverem, os entregam a quem os
administre, assignando alimentos convenientes à viúva”. A doutrina corrente afirmava que
“esta providência tende a beneficio não só da viúva mas também dos seus sucessores”1235.
Mas não se tratava de um simples caso de prodigalidade. “A sua razão intrínseca – escrevia
Lobão - ou pode ser coibir o luxo das viúvas, conforme o Apost. ad Thimoth. cap. 5, Viduae,
quœ in deliciis est, vivens, mortua est [a viúva que vive nas delícias, embora viva, já está
morta]. Ou pode ser um desempenho da obrigação, que as Sagradas Letras impõem aos
Imperantes de vigiarem na proteção das viúvas [...]”. Um autor anterior aproximava
expressamente este furor dissipador da doidice e da irracionalidade, opinando que a
Ordenação se aplicava “mesmo que a viúva não seja, nem pródiga, nem dada à luxúria,
desde que se prove apenas que ela maliciosamente ou dissipava os bens ou os alienava
sem razão [...], sendo necessário provar a irracionalidade da alienação” 1236. A passageira
referência à luxúria não deve ser tida como insignificante. Na verdade, o direito romano
(D.,27,10,15) dispunha que “a mulher, que vivia luxuriosamente, podia ser interditada quanto

1231 “Donat liberalitas circunspectè prodigalitas effuse, ac nullo delectu. Liberalitate est modus;
prodigalitati nullus”, Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., ibid..
1232 “Certe prodigalitati, re imminuta, et fractis opibus, nullus restat fundus; ex his colligitur

prodigalitatem esse depravationem mentis pronœ in effusionem proprie substantiae, rationis et judiciis
profugam famam contemptricem, in consulate cujusdam animi impotentiae feralem postum”, Manuel de
Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., 2, ad 2., tit. 12, § 9
1233 Ao pródigo alguns doutores equiparavam, para o fim de se lhe dever dar curador, o “bêbado

continuo [...] e o jogador continuo, e taful”, Lobão, Notas […] Melo [...], cit., 2, ad 2., tit. 12, § 9, nº. 8.
Sobre o conceito de prodigalidade, v. ainda Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2,12,9.
1234 Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Tratado encyclopedico, pratico e critico sobre as

execuções […], cit., §§ 188/189.


1235 Manuel Borges Carneiro, Direito civil de Portugal, cit., 1, p. 184.

1236 António Mendes Arouca [1610-1680], Adnotationes practicae ad librum fere primum

Pandectarum Juris Civilis [...], cit., pt. 1, liv. 9. de stat. homin., ns. 157-158. Sobre a viúva gastadora, v.
ainda Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2,12,10.

260
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
à administração dos bens” (“et mulier, quae luxuriose vivit bonis interdid potest”). A palavra
“luxúria” tinha - em latim como, depois, nas línguas novilatinas – uma conhecida
ambiguidade: ou se referia ao profuso dispêndio dos bens ou ao profuso dispêndio de si
mesmo, em atividades eróticas. Embora a opinião comum entendesse o texto citado como
referido à prodigalidade e dissipação de bens, uma coisa não deixava de estar ligada à outra
como duplo sintoma da falta de contenção feminina 1237. Daí que, por detrás do disposto na
lei quanto às viúvas, se perfilasse um tipo social previsível: o da viúva alegre, insensata e
desonesta, dissipadora dos bens e do recato devido ao seu estado. Por isso, a combinação
das duas faces da luxúria não devia ser descartada: “De forma que, só porque uma mulher é
meretriz, que lucra pela prostituição, se lhe não deve dar curador, mas [só] se é pródiga, et
maxime se nela se unem ambos os vícios”1238.
§ 850. Em suma. Para o direito de Antigo Regime, a questão da doidice e da sua
especialidade em termos de efeitos de direito não constituíam senão um afloramento de um
princípio arquitetónico de toda a ordem jurídica – o da diversidade de estados e,
consequentemente, de estatutos jurídicos. Como o direito é um dispositivo de produção e
reprodução industrial de imagens, esta consideração não dramatizadora da loucura, da sua
dissolução num mundo de especialidades, na trivialização das suas fronteiras pela
multiplicação de outras fronteiras, podia contribuir para uma atitude menos especialmente
discriminadora do que aquela que a centralidade política da capacidade de querer e
entender, típica do paradigma liberal, virá a instaurar. Aí, os loucos já não são apenas
“especiais”; passam a ser incapazes do vínculo político e, por isso, politicamente alienados e
interditos.
3.2 Família. Relações pessoais
§ 851. Para a cultura europeia pré-moderna, família constituía uma sociedade
organizada pela própria natureza, cujo regime se impunha, portanto, ao direito dos reinos. É
por isso que António da Natividade afirma, nos meados do séc. XVII, que "o direito
oeconomico, patriarcal ou da casa, que se exerce com o fundamento na piedade, é mais
exigente e devido, do que o político […]"1239.
§ 852. A família tinha o seu princípio num ato cujo caráter voluntário a Igreja não
deixava de realçar, sobretudo na sequência do Concílio de Trento (1545-1563)1240, onde se
estabelecera, enfaticamente, que "a causa eficiente do matrimónio é o consentimento"1241.
Um consentimento verdadeiro e não fictício, livre de coação e de erro e manifestado por
sinais externos1242. Porém, esta afirmação natureza consensual do casamento apenas queria
dizer que se pretendia pôr freio às pretensões das famílias de se substituírem aos filhos na

1237 Cf., sobre isto, António Manuel Hespanha, “O estatuto jurídico da mulher […]”, cit.; Id. "Carne

de uma só carne[…]”, cit.;.


1238 Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., I., tit. 12, § 10, nº 3.

1239 António da Natividade, Stromata oeconomica […], IV, cap. 3, n. 8, pg. 111.

1240 Sobre o concílio de Trento:


http://www.storiadeldiritto.org/uploads/5/9/4/8/5948821/garlati_2011_famiglia.pdf
1241 Conc. Trident., sess. 24, cap. 1, nº 7. Cf., já no direito romano, D. 23.1, De sponsalibus;

D.50,17 De regulis iuris, 30 (“Nuptias non concubitus, sed consensus facit”).


1242 Daqui decorrem as principais causas de nulidade do casamento, que se relacionam com

vícios da vontade de cassar..

261
Direito das pessoas.
escolha dos seus companheiros. Fora deste contexto, era incontroverso que a vontade não
podia modelar a natureza e consequências do casamento, que decorriam forçosamente da
própria natureza da instituição que ele fizera surgir - o estado de casado, a família. A teologia
cristã explicava este paradoxo de um ato de vontade dar lugar a consequências de que a
vontade não podia dispor concebendo a vontade de casar apenas como uma matéria informe
a que a graça divina vinha dar uma forma (i.e., consequências) determinada.
3.2.1 O casamento.
§ 853. Na origem da família estava, portanto, o casamento ou matrimónio, um ato
juridicamente relevante tanto perante o direito temporal como perante o direito espiritual
(aqui, como sacramento1243).
§ 854. O casamento era definido como a união indissolúvel1244 do macho e da fêmea,
para procriar e manter uma vida em comum1245 e como remédio contra a concupiscência1246.
A finalidade da procriação estava estabelecida pela natureza (pelo direito natural) (D.,1,1,1,3)
e também pela religião (“Crescite et multiplicamini”, Gén, 1,22). Daí que o casamento
partilhasse da natureza de contrato e de sacramento. Como contrato, obedecia a uma série
de normas do regime geral do contrato, nomeadamente àquelas que exigiam a capacidade
de querer (vontade) e a sua liberdade, embora as exigências da natureza e da religião
limitasse aqui, de forma muito evidente, a plena liberdade de configurar pela vontade os
efeitos do contrato. Os teólogos e os canonistas exprimiam estas limitações da eficácia da
vontade, dizendo que o consentimento apenas constituía a matéria sobre que a vontade de
Deus, infundida pelo sacramento, atuava, criando a forma da união1247.
§ 855. Esta presença de Deus no casamento fazia com que ele fosse indissolúvel. Esta
conclusão não foi clara e unânime até ao concílio de Trento (sess. 24, cap. 6, can. 12),
porque a principal fonte escritural em que se fundava não era de interpretação pacífica1248.
De qualquer modo, o casamento só se tornava indissolúvel com a consumação por meio de
cópula carnal. Antes dela, o casamento (“casamento rato mas não consumado”) podia ser
dissolvido, durante um prazo de dois meses depois da celebração1249, por um ou os dois
cônjuges quererem entrar em religião1250.
§ 856. Como o consenso era o elemento fundamental do casamento, os ministros eram

1243 A definição do casamento como um sacramento (causativum gratiae unitivae, causador da

graça da união) foi feita no concílio de Florença, de 1438.


1244 “Quod Deus conmunxit homo non separet” (Mateus,10,9), Antonio Cardoso do Amaral, Liber

[...], cit., v. “De sacramento matrimonii”, n. 2.


1245 “Maris et foemina conjunctio indiviuam vitae consuetudinem retinens”, Antonio Cardoso do

Amaral, Liber [...], cit., v. “De sacramento matrimonii”, n. 1


1246 “Remedium ad evitandam illicitam fornicationem”, Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit.,

v. “De sacramento matrimonii”, n. 2.


1247 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. 3.

1248 Mateus,5,32 (“Mas eu digo que todo aquele que se divorciar de sua mulher, exceto por

imoralidade sexual, faz que ela se torne adúltera, e quem se casar com a mulher divorciada estará
cometendo adultério”); Santo Agostinho interpretava o texto como proibindo a dissolução, mas outros
teólogos tinham opinião contrária.
1249 Bimestre, v. Conc. Trento, sess. 24, cap. 6.

1250 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. 31.

262
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
os próprios contraentes, ao pronunciarem a fórmula de mútua aceitação como esposos; a
presença do padre e das testemunhas era obrigatória e condicionava a eficácia do
casamento, mas apenas como um preceito canónico1251. Esta centralidade do consentimento
fazia com que a vontade dos nubentes devesse ser livre de constrangimentos externos,
como a vontade dos pais ou a obrigação de casar imposta por terceiro1252. Pela mesma
razão, a promessa de casamentos (esponsais, matrimónio “por palavras de futuro”) não
podia estabelecer nenhuma cláusula penal, para o caso de não se cumprir1253. Como só uma
vontade sã podia obrigar, a validade do casamento estava afetada – embora em grau muito
mais restrito – pelos vícios da vontade (v. cap. 6.4). Assim, o erro sobre a qualidade do outro
contraente relevava, embora apenas em certas circunstâncias. De facto, era nulo o
casamento com escravo ou escrava que se pensava serem livres1254, mesmo que depois
tivesse havido uma manumissão, pois se entendia que o consenso inicial não compreendia o
casamento com pessoa de condição servil. Isto também valeria no caso de grande
desproporção entre a qualidade nobre que se imaginava no outro nubente e a que ele
efetivamente tinha, como se se pensava casar com rei, duque, marquês ou conde e nada
disso se verificava1255. Já o erro quanto ao nome, quanto à fortuna, quanto à virgindade e
quanto à saúde do outro contraente não relevavam1256. Também a coação grave relevava.
Assim, o casamento contraído sob ameaça de morte não valia, menos se depois se
consumou1257.
§ 857. O casamento estava ainda vedado aos incapazes, havendo porém algumas
especialidades, nomeadamente quanto à menoridade, que terminava, para os varões, aos 14
anos e para as mulheres, aos 12 anos. O mudo podia casar, apesar de não poder proferir as
palavras sacramentais, desde que exprimisse exteriormente o consentimento interior1258.
§ 858. Fora disto, o casamento estava vedado no caso de haver impedimentos,
bastando a fama pública e notória de impedimento para que o casamento não se pudesse

1251 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. ns. 5 e 6.
Aliás, o casamento seria clandestino, o que implicava nulidade e penas canónicas arbitrárias, aplicadas
pelo juiz eclesiástico, cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”,
n. ns. 11 e 12.
1252 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], cit., v. “Matrimonium quoad libertatem”. Em todo o caso,

a ordenação Ord. fil., 4,88,1 privava da legítima a filha que tivesse casado sem autorização do pai. Mas
Gabriel Pereira de Castro, embora achasse que esta consequência era de direito civil e canónico,
ponderava que estas leis civis que introduziam entraves ao casamento eram feitas mais para
atemorizar do que para serem aplicadas (cf. Decisiones […], cit., dec. 10, ns. 1 e 2). V.., adiante, cap.
3.2.4.
1253 Cf Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. 40.

1254 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. 64, a não

ser que, depois de conhecida a condição servil, houvesse cópula carnal, pois isso valia como um novo
consenso. Sobre o tema, Diogo Marchão Themudo, Decisiones […], cit., dec. 61.
1255 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. 64.

1256 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. ns. 63 e
65.
1257 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. 39.

Tende para exigir que haja protesto da ameaça anterior ao casamento. Também, Diogo Marchão
Themudo, Decisiones […], cit, dec. 58 (medo de morte, prisão, estupro ou infâmia).
1258 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. 4.

263
Direito das pessoas.
realizar1259. Os impedimentos dividiam-se em dirimentes, que causavam a nulidade do
casamento, e impedientes, que apenas adiavam a sua realização até que pudessem ser
sanados. Os impedimentos podiam ainda ser absolutos, independentemente da relação
entre as pessoas dos cônjuges, e relativos, ou decorrentes de uma especial relação entre
eles.
§ 859. Os impedimentos dirimentes derivavam do direito natural ou do direito divino e,
por isso, não podiam ser dispensados, ou só o podiam ser pelo papa e com justa causa1260.
§ 860. O primeiro dos impedimentos dirimentes absolutos era a existência de
casamento anterior. Como o casamento era indissolúvel, era nulo o casamento com segundo
cônjuge, vivendo o primeiro1261. Para além do mais, isto era crime (de bigamia, equivalente a
heresia; v. cap. 8.2.2.2), importando infâmia, exílio, perda de ofícios e dignidades e
confisco1262.
§ 861. O segundo impedimento era o do sacramento de ordens, pois não podiam
casar: o clérigo de ordens sacras, os monges e os jesuítas com os três votos da ordem1263. A
nulidade do casamento e a excomunhão eram as consequências da violação do preceito1264.
§ 862. O terceiro impedimento era o da falta de idade núbil, pela qual se presumia
existir capacidade de gerar e de, portanto, cumprir a finalidade maior do casamento. Por
isso, estavam impedidos de casar os rapazes menores de 14 anos e as raparigas menores
de 12. Admitia-se, porém, o casamento de rapariga próxima da idade núbil, se o marida
afirmasse que já tinha tido cópula come ela1265.
§ 863. Também era impeditiva a diferença de religião. Assim, o batizado não podia
casar-se com não batizada (como moura ou judia), sob pena de nulidade. Isto não implicava
o não reconhecimento do casamento entre infiéis que, como contrato, valia, nem sequer se
dissolvendo quando um ou os dois cônjuges se convertiam e se batizavam1266. No caso de
se converter apenas um, a subsistência do casamento estava condicionada ao facto de o
infiel estar disposto a coabitar com o fiel sem ofender a religião. No caso de um cair em
heresia, o casamento mantinha-se1267.
§ 864. Também se podia desposar uma mulher pública. Mas não estava em uso nas
Espanhas o costume de perdoar ao condenado que, sendo levado ao suplício, fosse

1259 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. 44.
1260Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. 33.
Alguma doutrina não admitia qualquer dispensa, fundada no caráter natural ou divino das normas que
estabeleciam os impedimentos,. Ibid, n. 33.
1261 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. 34.

1262 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. 34. O

conhecimento era de foro misto, fixado por prevenção..


1263 Depois de um motu proprio de Gregório X, de 1584.

1264 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. 54.

1265 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. ns. 60 e 61. A idade
mínima para casar por palavras de futuro (esponsais) eram os 7 anos. Os esponsais obrigavam até que, sobrevinda
a idade núbil, fossem confirmados quebrados, Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento
matrimonii”, n. 62.
1266 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. 71
1267 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. 72.

264
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
abordado por uma prostituta pedindo para se casar com ela e acedesse a isso1268.
§ 865. Os impedimentos dirimentes relativos derivavam do parentesco, da afinidade, do
rapto, do adultério e do conjugicício.
§ 866. O parentesco, que só relevava se existisse à data do casamento (mas não o
superveniente1269) podia ser carnal, espiritual, de honestidade pública ou civil. O primeiro
correspondia ao parentesco de sangue, relevando sem limites nas linhas descendente e
ascendente (entre descentes e ascendentes) e até ao quarto grau de direito canónico nos
transversais (3.os primos). O parentesco espiritual unia entre padrinhos (de batismo ou de
crisma) e afilhados e sua parentela, também até ao 4º grau1270. O parentesco de honestidade
pública unia os esposados e seus parentes, mas só no 1º grau, e os unidos por casamento
rato e não consumado, até ao 4º grau1271. O parentesco civil unia os adotantes e adotados e
sua parentela até ao 4º grau1272.
§ 867. A afinidade unia uma pessoa aos parente do cônjuge (mas não amante ou
concubina1273). Os seus graus eram os mesmos dos graus de parentesco do cônjuge.
Relevava também até ao 4º grau.
§ 868. Tanto o parentesco ou a afinidade não impediam se fossem legitimamente
desconhecidos dos cônjuges1274.
§ 869. O rapto da mulher (a única hipótese a que as fontes se referem) também
constituía um impedimento dirimente, que só desaparecia se a raptada, posta em liberdade,
concordasse com o casamento (sess. 24, cap. 6).
§ 870. Também não se podia casar com quem se tivesse tido relações vivendo o
primeiro cônjuge (a primeira mulher), desde que se tivessem feito maquinações para o (a)
matar e promessas de casar com a amante. As três condições tinham que se verificar
concomitantemente1275. Era o impedimento do adultério (que a literatura descreve sempre
como adultério do marido, possivelmente por se achar inimaginável que isso ocorresse com
uma mulher.
§ 871. O impedimentos meramente impedientes eram a celebração do casamento em
tempo proibido1276, a existência de esponsais com outra pessoa, o casamento de católico
com herege1277, a ignorância da doutrina, a dúvida sobre a existência de um impedimento.

1268 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. 59.
1269 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n., ns. 68 e
74.
1270 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. 48.
1271 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. 50.
1272 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. 55 (não

incluía a mãe do adotado, talvez para permitir o casamento do adotante com ela).
1273 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. 51 (se

alguém se casa com Berta, depois não pode casar com parenta sua até ao 4º grau).
1274 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. 53.

1275 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. 57.

1276 Só havia tempos proibidos para os casamentos solenes: do advento até a epifania, da 4ª feira de cinzes
até à oitava da Páscoa, Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. 73.
1277 Podia ser dispensado, mas requeria normalmente sertãs condições, como a educação

católica dos filhos.

265
Direito das pessoas.
Podiam ser dispensados pelo bispo.
§ 872. O casamento devia ser celebrado pelo pároco da terra em que os noivos
morassem, ou por outro padre, com licença do primeiro1278. Devia ser precedido por anúncios
públicos, lidos na missa e afixados na porta da igreja (proclamas, banhos ou editais), para
que fossem denunciados os impedimentos. Podiam ser dispensados no caso de suspeita
fundada de que o casamento podia ser maliciosamente perturbado1279. Podia ser contraído
por procuração, que contivesse um mandato expresso1280.
§ 873. O casamento provava-se por coabitação contínua e auxílios mútuos e pelo
registo paroquial1281.
§ 874. O casamento celebrado e consumado (ratum et consumatum) era indissolúvel
em vida dos cônjuges. Mas podia dissolver-se quanto à cama (torus) e habitação. Esta
separação (ou divórcio, termo também usado na época1282) – que tinha que ser decretada
pelo juiz eclesiástico1283, depois de ponderação prudente da situação (causa cognita et bene
ponderata)1284 – tinha que ser fundada num elenco restrito de causas, que se enumeram de
seguida.
§ 875. O adultério de qualquer dos dois era a primeira causa de separação. A doutrina
enumerava casos em que a mulher podia eximir-se da culpa (se o marido também a traía, se
tivesse sido prostituída por ele, se tivesse tido relações por erro, pensando erradamente que
era com o marido, se tivesse sido forçada, se o marido se reconciliou com ela, se, sendo
casada com um infiel, por ele tivesse sido repudiada)1285.
§ 876. A impotência (impotentia coeundi) de um dos dois cônjuges ao tempo do
casamento, fosse ela causada pela idade, pela natureza, ou por artes maléficas, perpétua
(incurável) e provada por prova objetiva era também causa de separação. Mas, se o outro
cônjuge sabia dela, ficavam casados, unidos como irmãos1286. Já a doença superveniente
(mesmo a lepra, a mais temida na época) não era fundamento de separação. Pelo contrário,
ambos os cônjuges continuavam obrigados ao débito conjugal relativamente ao doente1287
§ 877. Os maus tratos, incluindo a tentativa de homicídio, a violência física, a violência
sexual e os ralhos desproporcionados ao estatuto da mulher, eram outras causas de

1278 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. ns. 13 e
15.
1279 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. ns. 7 e 9.
1280 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. 16
1281 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. 58; Cf.

Bento Pereira, Promptuarium […], cit., v. “Matrimonium quoad probationem”.


1282 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], cit., v. “Matrimonium quoad divortium”.

1283 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. 35.

1284 Tanto mais “que haveria mulheres – escreve Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v.

“De sacramento matrimonii”, n. 18 - que se queriam separar dos maridos para poderem viver
luxuriosamente”.
1285 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. ns. 19,

20, 23 e 25A masturbação constituía adultério, íbid. n. 21.


1286 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. 68.

1287 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. 70.

266
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
separação1288 Também a prática de crimes de lesa majestade podia justificar o pedido de
separação1289
§ 878. O marido podia ainda pedir a separação se a mulher frequentasse homens
estranhos, se ficasse fora de casa à noite (sem ser em casa dos pais), se frequentasse
teatros, contra a vontade do marido1290.
3.2.2 Os esponsais.
§ 879. O casamento – que era a manifestação da decisão presente de casar (logo,
“palavras de presente”) - podia ser antecedido de uma promessa mútua de casar, no futuro
(logo, palavras de futuro), a que se chamava esponsais. Para serem válidos, os
esponsais1291 requeriam a capacidade nupcial, a liberdade das vontades e uma processa
manifestada publicamente1292 1293. Havia alguma ambiguidade no termo esponsais, que tanto
designava uma promessa presente de união (um verdadeiro casamento) ou, em sentido mais
rigoroso, apenas uma promessa de vir a casar no futuro. Ao passo que o casamento gerava
uma situação (status) permanente e indissolúvel, os esponsais geravam apenas um
impedimento impediente de novo casamento - não podendo quaisquer dos desposados
contrair casamento, antes de dissolvido o laço esponsalício – e uma obrigação da casar.
Esta podia ser dissolvida por consenso entre os nubentes ou por decisão do tribunal
(eclesiástico), embora a sua violação unilateral importasse penas espirituais (a excomunhão,
tendo este regime evoluído para outros mais complacentes, por volta do séc. XVIII) e
temporais (multas, indemnização do outro nubente, prisão1294). Todavia, teve que haver um
equilíbrio entre o cumprimento forçado desta obrigação e o princípio da liberdade de casar.
No sentido de forçar o cumprimento iam os interesses do preterido e da sua família, pois a
recusa de casar correspondia a um desrespeito grave, mesmo a uma injúria, que
comprometia a honra. Mas militava no sentido inverso o caráter pessoal e livre do
casamento. Daí que na Igreja aconselhasse os seus juízes a procurarem soluções
consensuais para estes diferendos e que os práticos – sobretudo depois da lei de 6.10.1784
- aconselhassem as partes a apor nos contratos de esponsais uma cláusula penal, definindo

1288 O juiz eclesiástico inquiria sumariamente das sevícias, sem citação das partes (sine strepitu et figura
iudicii), mandando a mulher para casa de outra mulher honesta, onde pudesse viver segura, Antonio Cardoso do
Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. 29.
1289 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. 26.
1290 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “De sacramento matrimonii”, n. 30.
1291 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., cit, v. “Sponsalia”: Bento Pereira,
Promptuarium […], cit. v. “Matrimonium quoad sponsalia”,
1292 Sobre os esponsais e seu regime, em Portugal, no séc. XVIII, v. Maria da Conceição Meireles

Pereira, "Os esponsais - forma e significado no contexto da sociedade portuguesa de setecentos”,


Revista da Faculdade de Letras. História, Porto, - 2ª série, 5 1988), p. 189-210
http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/2109.pdf; também, Maria da Conceição Meireles Pereira, Casamento
e sociedade na 2ª metade do séc. XVIII: o exemplo da paróquia do Socorro, Porto, 1987; Ana Maria
Santos da Nóbrega de Oliveira Braga, “Para uma história do casamento em Portugal nos finais do
Antigo Regime : o quadro normativo ”, diss. Mestrado em História Moderna, Univ. do Porto, 1990, 171
p..
1293 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2,5,2 e 3.

1294 Nomeadamente, de a quebra da promessa ter sido acompanhada de coabitação ou cópula

com outra pessoa (v. Ord. fil.,5,23).

267
Direito das pessoas.
o valor da indemnização a pagar no caso de se faltar à promessa, o que facilitaria os
acordos1295. À medida que se foi restabelecendo o princípio de que a validade do casamento
estava dependente, não apenas do consenso dos nubentes, mas também da autorização
dos pais (v. cap. § 902), foi-se requerendo que estes interviessem também nos esponsais,
dando o seu assentimento. Suplementarmente, podia ser necessária a autorização do rei,
para certas categorias de pessoas, como os donatários de bens da coroa1296.
3.2.3 Marido e mulher.
§ 880. A primeira das consequências do casamento era a obrigação, para os dois
cônjuges, de se entregarem um ao outro, gerando uma unidade em que ambos se
convertiam em carne de uma só carne ("Erunt duo in una caro" [serão os dois uma só carne],
Genesis, 2). Esta união mística dos amantes já ocorria pelo facto mesmo do amor que, de
acordo com a análise psicológica dos sentimentos empreendida pela escolástica, fazia com
que a coisa amada se incorporasse no próprio amante 1297. Com o casamento, esta
unificação dos amantes ganhava contornos físicos, pois os cônjuges ficavam - passados dois
meses de reflexão, o bimester, em que nenhum deles podia ser forçado à consumação
carnal do casamento 1298 - a dever um ao outro a entrega corporal (traditio corporis),
tornando-se tal entrega moral e juridicamente exigível (debitum conjugale)1299.
§ 881. Justamente porque se enraizava na natureza, o matrimónio devia ter um uso
honesto; ou seja, devia consistir em práticas (nomeadamente sexuais) cuja forma, ocasião,
lugar, frequência, não dependiam do arbítrio ou do desejo dos cônjuges, mas de imperativos
naturais. Assim, a mútua dívida sexual dos esposos estava ordenada à satisfação das
finalidades naturais e sobrenaturais do casamento1300.
§ 882. São justamente estas finalidades e a sua hierarquia que explicam o conteúdo
dos deveres mútuos dos cônjuges, nomeadamente no plano da disciplina da sexualidade
matrimonial. Na verdade, o facto de a reprodução aparecer como a finalidade principal do
casamento implicava que a sexualidade apenas fosse tida como natural desde que visasse
este fim. Seriam, desde logo, contra natura todas as práticas sexuais que visassem apenas o

1295 Cf. Maria da Conceição Meireles Pereira, "Os esponsais […]”, cit., 200 ss..
1296 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2,5,5 a 7.
1297 Cf. S. Tomás de Aquino, Sum. theol., 1a.2ae, qu. 37, p. 267.2.
1298 O bimester tinha como finalidade permitir a qualquer dos cônjuges uma última reflexão sobre

o ingresso no estado religioso. Mas, subsidiariamente, destinava-se a aumentar, pela espera, o desejo
de consumação (Antonio San Jose, Compendium […], cit., tract. 34, II, n. 110).
1299 As limitações ao dever de entrega eram poucas: doença sexual transmissível, demência,

embriaguez, pendência de divórcio, incapacidade da mulher para dar à luz filhos vivos (mas não já
perigo de parto difícil). Algumas destas causas de inexigibilidade do débito cessavam sempre que a
recusa causasse perigo de desavença ou de incontinência (e, logo, pecado) do outro cônjuge (Antonio
San Jose, Compendium […], cit., tract. 34, II, n. 135 ss.). Fora destes casos, a exigência de relações
sexuais tinha que se conformar, como se verá, àquilo que era considerado como um "uso honesto" do
casamento (Antonio San Jose, Compendium […], cit., ibid.; Francisco Larraga, Promptuario […], cit.,
tract. 9, 8).
1300 Segundo a teologia moral da época, as finalidades do casamento eram: (i) a procriação e

educação da prole; (ii) a mútua fidelidade e sociedade nas coisas domésticas; (iii) a comunhão
espiritual dos cônjuges e (iv) - objetivo consequente à queda do género humano, pelo pecado original -
o remédio contra a concupiscência.

268
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
prazer 1301, bem como todas as que se afastassem do coito natural e honesto - vir cum
foemina, recta positio, recto vaso (homem com mulher, na posição certa 1302, no "vaso"
certo). Daí a enorme extensão dada ao pecado (e ao crime) de sodomia(v. cap. 8.2.2.1), que
incluía não apenas as práticas homossexuais, mas ainda todas aquelas em que, nas
relações sexuais, se impedisse de qualquer forma a fecundação. Mesmo que "natural", a
sexualidade matrimonial não devia estar entregue ao arbítrio da paixão ou do desejo, antes
se devendo manter nos estritos limites do honesto. Assim, a sexualidade - e, particularmente,
a sexualidade da mulher - era drasticamente regulada por aquilo a que os teólogos e
moralistas chamavam o "uso honesto do casamento". O coito não devia ser praticado sem
necessidade ou para pura satisfação da concupiscência, antes se devendo observar a
moderação1303. Em rigor, devia terminar com o orgasmo do homem, pois, verificado este,
estavam criadas as condições para a fecundação. Os esposos deviam evitar, como
pecaminosas, quaisquer carícias físicas que não estivessem ordenadas à prática de um coito
honesto. Pecado grave era também o deleite com a recordação ou imaginação de relações
sexuais com o cônjuge1304. Para além disso, o coito podia ser desonesto quanto ao
tempo 1305 e quanto ao lugar 1306
§ 883. É certo que, não sendo a procriação a única finalidade do casamento, estes
princípios acabavam por sofrer algumas restrições. Admitia-se, por exemplo, que os
cônjuges pudessem fazer entre ambos voto de castidade, sacrificando as finalidades
terrenas da sua vida em comum (procriação e adjutório mútuo) a um objetivo de natureza
puramente espiritual - a união das suas almas até à morte. Ou que se excedessem os limites
honestos do débito conjugal, para evitar que, levado pelos impulsos da sensualidade, um dos
cônjuges fosse levado a pecar, satisfazendo-os fora do matrimónio.
§ 884. Esta união entre os cônjuges gerava, porém, vínculos suplementares, tecendo
entre todos os elementos da família uma rede afetiva a que os moralistas chamavam
piedade familiar, mas que os juristas não deixavam de classificar como direito, um direito de
tal modo enraizado na natureza que até das feras era conhecido ("vemos que também os
outros animais, e até as feras, parecem ter conhecimento deste direito", escreve o jurista
romano Ulpiano, num texto muito conhecido do início do Digesto [D.,1,1,1,3]).
§ 885. A união dos cônjuges dava também à esposa direitos de uso exclusivo sobre o

1301 "Copula [vel osculi, amplexus, tactus vel delectatio memoriae] ex sola delectatione [...] habet

finem indebitum" (a cópula, beijos, abraços, afagos ou o deleite pelas recordações que visem apenas o
prazer têm um fim indevido), Antonio de San Jose, Compendium [...], cit., tract. 34, n. 149 e 156 ss..
1302 Sobre a gestualidade sexual, v. Antonio de San Jose, Compendium [...], cit., tract. 34, ns. 158

ss.: condenação de todas as posições sexuais diferentes daquela que veio a ser conhecida como a
"posição do missionário" (amantes deitados, voltados um para o outro, com o homem por cima). Tal
opção não era arbitrária, mas antes justificada com argumentos ligados à natureza e finalidade do coito
humano: na verdade, esta posição seria a que melhor garantiria a fecundação, denotava a
superioridade do homem e, pondo os amantes de frente um para o outro, realçava a dimensão
espiritual do ato.
1303 Antonio de San Jose, Compendium [...], cit., tract. 34, ns. 158/160.

1304 Antonio de San Jose, Compendium [...], cit., tract. 34, 163.
1305 Durante a menstruação, a gravidez e o puerpério (Antonio de San Jose, Compendium [...],
cit., tract. 34, ns. 150-153), durante a Quaresma e dias santos de guarda (ibid., 150).
1306 Em lugar público ou sagrado (salva necessitate..); o mesmo valia para as carícias (Antonio de

San Jose, Compendium [...], cit., tract. 34, n. 156).

269
Direito das pessoas.
corpo do marido em matéria de intimidade e de sexo; daí que este lhe devesse fidelidade
(Ord. fil.,5,25), embora a tutela jurídica do adultério1307 do marido fosse muito menos forte do
que a do adultério da mulher (v. cap. 8.2.2.2)1308. Por isso, havia autores que relacionavam a
exigência de fidelidade do marido apenas com a pedagogia pelo exemplo ou com uma regra
geral de equidade (não exigir de outrem aquilo que o próprio não pratica1309).
§ 886. Unida pelo amor, a família constituía um universo totalitário, em que existia
apenas um sujeito, apenas um interesse, apenas um direito, não havendo, no seu seio, lugar
para a discussão sobre o meu e o teu (a "justiça"), mas apenas para considerações de
oportunidade, deixadas ao arbítrio do bonus pater familias (a "oeconomia") 1310.
§ 887. As relações entre marido e mulher 1311 estavam desenhadas sobre a
antropologia do amor conjugal, tal como então se entendia. Um amor igual e desigual ao
mesmo tempo. Igual, porque se baseava numa promessa comum e recíproca de ajuda, de
fidelidade e de vida em comum, promessa cujo cumprimento, por seu lado, seria
decisivamente facilitado pela igualdade da condição e riqueza dos cônjuges1312.
§ 888. Esta identidade da família justificava a ideia comum de que a vida de casados
seria decisivamente facilitada pela igualdade da condição e riqueza dos cônjuges1313, embora
esse equilíbrio de estados e patrimónios não constituísse uma cláusula do direito. O próprio
casamento tinha esse efeito igualizador pois fazia com que a mulher participasse do estado,
privilégios e dignidade do marido, podendo usar dos seus títulos e brasão, ou, em contra
partida, perdendo o direito ao estado e dignidade paternos, de que gozava antes do
casamento1314. Embora esta exigência de igualdade pudesse não ser suficiente para passar
por cima de diferenças muito marcadas de estatuto. Assim, segundo Pascoal de Melo1315, o
estatuto mais desfavorável do marido plebeu só prejudicava a esposa nobre no caso em que
se justificasse assinalar a natureza chocante do casamento, pela grande diferença entre os
estatutos dos dois cônjuges1316. A identidade explicava, depois, que a esposa tivesse o

1307 Sobre o adultério da mulher e do marido, Pascoal de Melo, Institutiones iuris criminalis […],

cit., 10,2 ss..


1308 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 2,10,2.

1309 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 2,7,6.


1310 Cf. Antonio da Natividade, Stromata […], cit, op. 4, c. 3, n. 2/3, pg. 110. Existem algumas
limitações a este princípio, consubstanciadas em direitos dos filhos (v.g., "alimentos", dotes, bens
integrados em pecúlios próprios), da mulher (v.g., "alimentos" ou reparação de "injúrias"), dos criados
(v.g. "soldadas") e, até, dos escravos (v.g., a vindicação da "liberdade" ou reparação de "injúrias"),
oponíveis judicialmente ao pater.
1311 Cf., em geral, António da Natividade, Stromata [...], cit., op. 9.

1312 João Baptista Fragoso, Regimen reipublicae [...], cit., p. 3, liv.1, d.1, 3, 36/40.
1313 João Baptista Fragoso, Regimen reipublicae [...], cit., p. 3, liv.1, d.1, 3, 36/40
1314 Com limitações: a esposa do rei não tinha a dignidade real sugerida em textos do direito

romano (isenção de obediência às leis; regalia), embora pudesse gozar de estatutos especiais, como
os previstos na lei portuguesa para a jurisdições da rainha (Ord. fil., 2,45; leis sobre a Casa das
Rainhas: 10.2.1642; 10.1.1643; v. http://digitarq.arquivos.pt/details?id=4164777), ou para uma proteção
penal especial. Também o marido da rainha podia não se tornar rei se não cumprindo os requisitos
estabelecidos nas Leis Fundamentais do reino (em Portugal, ter o casal pelo menos um filho varão).
1315 Institutiones iuris civilis, cit., 2,5,8.

1316 Os filhos de matrimónios desiguais seguiam a condição do pai [Jorge de Cabedo, Decisiones

270
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
domicílio do marido (Ord. fil.,1,91,7; 2,59,15; 3,86,23).
§ 889. Porém, o amor entre os cônjuges era, sob outro ponto de vista, desigual.
Desigual, porque, em virtude da diferente natureza do homem e da mulher, os sentimentos
mútuos dos cônjuges - e, logo, os deveres correspondentes - não eram iguais nem
recíprocos. Uma boa ilustração disto é o adultério. Embora fosse, em qualquer caso,
igualmente censurável do ponto de vista da moral abstrata (pois ambos os adúlteros
violavam a mútua obrigação de fidelidade), a moral positiva julgava-o diferentemente, já que
o adultério da mulher não apenas fazia cair o opróbrio sobre os filhos e obscurecia a
paternidade dos filhos (turbatio sanguinis), como - segundo o célebre jurista Baldo (séc. XIV)
- causava aos maridos uma dor maior do que a da morte dos filhos 1317.
§ 890. Para além da desigualdade do amor, as desigualdades naturais dos sexos
faziam com que esta comunhão dos esposos fosse fortemente hierarquizada. Na verdade,
eles constituíam uma só carne; mas, nesta reintegração num corpo novamente único, a
mulher parece que tendia a retomar a posição de costela do corpo de Adão.
§ 891. A subalternização da esposa tinha uma lógica totalitária no ambiente doméstico.
Começava logo nos aspetos mais íntimos das relações entre os cônjuges. Assim, na
consumação carnal do casamento. Já que se entendia que a perfeição do ato sexual se dava
com o orgasmo do homem, sendo dispensável o da mulher 1318. O que decorria do facto de
se considerar como meramente passivo e recipiente o papel da mulher na gestação, na qual
se limitava a contribuir com a matéria bruta a que o homem daria a forma. Esta
hierarquização devia tornar-se visível na própria gestualidade do ato sexual. De facto, seria
contra natura o coito "praticado de pé, sentado ou em posição invertida, estando o homem
por baixo e a mulher por cima" 1319. Numa palavra, a própria expressão dos corpos devia
evidenciar a posição dominante do homem.
§ 892. A subordinação da esposa manifestava-se, depois, no plano dos atos externos,
de natureza pessoal e patrimonial. Estava sujeita ao poder do seu marido 1320, o que se
traduzia numa faculdade generalizada de a dirigir 1321, de a defender e sustentar 1322 e de a

[…], cit., p. 1, dec. 98, pg. 213.


1317 João Baptista Fragoso, Regimen reipublicae [...], cit., 3, liv.1, d.1, 3, n. 42. Daí que os juristas

entendam que o adultério mútuo e recíproca não se pode compensar, pois "a impudícia na mulher é
muito mais detestável do que no homem", ibid., 3, liv.3, d.4, 2, n.41. É também esta desigualdade, do
amor, do ciúme e da dor que faz com que o marido não seja punido (no secular, pois, no espiritual,
sempre incorre em pecado mortal) se matar a mulher colhida em flagrante de adultério (desde que
mate também o seu parceiro) (Ord. fil.,5,38, pr.; comentário, João Baptista Fragoso, Regimen
reipublicae [...], cit., 3, liv.1, d.1, 3, 63).
1318 "O matrimónio só se consuma pela cópula, pela qual os cônjuges se tornam numa só carne, o

que não se verifica sem a emissão de sémen pelo homem [...]”, Antonio de San Jose, Compendium [...],
cit., tract. 34, II, n. 121.
1319 Antonio de San Jose, Compendium [...], cit., tract. 34, II, n. 158.

1320 Sobre a sua natureza jurídica, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2,7,2i. A inferioridade

da mulher quanto ao poder sobre os filhos do casal decorre, como reconhecem os juristas na segunda
metade do séc. XVIII, de respeitos que têm mais a ver com os mutáveis costumes das nações do que
com a natureza do casamento (v. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2,4,6).
1321 Administrando os seus bens com bastante liberdade (Ord. fil.,4,48; 60; 64; 66; cf. Pascoal de

Melo, Institutiones iuris civilis, 2,7,4 e respetivas notas de Lobão); representando-a em juízo (Ord.
fil.,3,47).

271
Direito das pessoas.
corrigir moderadamente 1323,
embora isto incluísse a morte pelo marido quando surpreendida
em flagrante de adultério (Ord. fil.,5,38,pr.; este direito não se estendia ao pai). Deste poder
de correção estava privada a mulher. Ao explicar porque é que a mulher não podia, ao
contrário do marido, abandonar o marido adúltero (a não ser no caso de "correr o risco de
perversão ou de incorrer em pecado"), um moralista de seiscentos explica que "à mulher não
compete a correção do homem, como a este compete a correção daquela, pois o marido é a
cabeça da mulher e não o contrário" 1324. No plano processual, a mulher não podia estar em
juízo sem a autorização do marido, salvo em casos excecionais (v. cap. 7.1.7.1 e 7.1.7.2),
como para obter a revogação da alienação de imóveis feita pelo marido sem seu
consentimento (Ord. fil.,4,48,2) ou para revogar doações do marido à concubina (Ord.
fil.,4,66).
§ 893. Este imaginário dos sentimentos familiares constitui o eixo da economia moral
da família de Antigo Regime e do seu estatuto institucional. As suas grandes linhas -
naturalidade, preferência dos laços generativos (agnatícios, de "parentesco") aos laços
conjugais (cognatícios, "de afinidade"), organicidade e unidade da família, sob a égide do
pater - estão predeterminados por esta antropologia do amor familiar e modelam também as
relações entre pais, filhos e restante parentela.
3.2.4 Filhos.
§ 894. Natural era o amor entre os esposos. Mas natural era também a sua primordial
ordenação em relação à procriação. Daí que, contrariamente a algumas tradições
“contratualistas” que vinham do direito romano, o elemento estruturante da sociedade familiar
fosse o facto natural da geração.
§ 895. Assim, filhos eram, antes de mais, os que o eram pelo sangue, independente de
terem nascido na constância do casamento1325. Isto é particularmente verdade em Portugal,
onde (contra a regra do direito comum), os filhos naturais de plebeus estavam equiparados
aos legítimos, pelo menos no plano sucessório (Ord. fil.,4,92). Já os dos nobres, embora
adquirissem a qualidade nobre do pai e tivessem direito a alimentos, careciam da legitimação
régia para herdar (v. cap. 5.3.1.1). Mas quanto à principal obrigação dos pais - o sustento e
educação - filhos eram todos, os legítimos, os ilegítimos e até, com alguma limitação 1326, os
espúrios (i.e., aqueles cujos pais não eram nem poderiam ser casados, por existir entre eles
algum impedimento não relevável [impedimento dirimente, v. cap. 3.2.1], como o estado

1322 V. Ord. fil.,4,103,1; à mulher e às suas criadas, mesmo para além das forças do dote (João
Baptista Fragoso, Regimen reipublicae [...], cit., 3, liv.3,d.4, 1, n. 9, pg. 172).
1323 V. Ord. fil.,5,36,1; 5,95,4. A propósito da moderação dos castigos, Pascoal de Melo comenta

que, em Portugal, mais nas classes populares do que nas elevadas, o castigo frequentemente
degenerava em sevícias, por causa das quais quotidianamente se afadigavam os juízes (Pascoal de
Melo, Institutiones iuris civilis, 2,7,2).
1324 Antonio de San Jose, Compendium [...], cit., tract. 34, II, n. 151.

1325 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Filius”; Bento Pereira, Promptuarium […],

cit., v. “Filius …”; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 2,4 a 6.
1326 No caso dos filhos legítimos e naturais, os alimentos eram devidos de acordo com a

qualidade e possibilidades do pai; nos espúrios apenas segunda a sua necessidade (ut fame non
pereant), João Baptista Fragoso, Regimen reipublicae […], cit., p. 3, p. 153 (o A. afasta-se desta
opinião, que seria a recebida, sendo favorável à plena equiparação entre todos).

272
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
clerical ou um prévio casamento com outrem) 1327.
§ 896. A qualidade de filho provava-se, principalmente, pelo tratamento como filho
(tractatus filiationis). A doutrina considerava que esta prova era muito difícil, já que se
baseava sempre em conjeturas e presunções. Todavia, a criação, a educação, o dote, com a
fama pública de serem pai e filho, eram indícios muito fortes1328. Insuficiente era o facto de o
pai confessar a paternidade ou chamar de “filho”. A prova de que o pai dormia com a mãe ao
tempo da conceção podia ser destruída pela alegação de que ela convivia com vários
homens (exceptio plurium)1329.
§ 897. Se todo o grupo familiar estava ligado por deveres recíprocos, os mais estritos
eram, porém, os deveres entre pais e filhos, cuja naturalidade e profundeza excederiam,
inclusivamente, a dos deveres entre os cônjuges1330.
§ 898. Os principais deveres do paterfamilias para com os filhos correspondiam às
suas obrigações naturais: (i) o de os educar, espiritualmente1331, moralmente1332 e civilmente,
fazendo-lhes aprender as letras (pelo menos, dando-lhes os estudos menores), e mandando
ensinar-lhes um ofício e, caso nisso concorressem as qualidades da família e as aptidões do
filho, facultando-lhes estudos maiores1333; (ii) o de lhes prestar alimentos, nisso se incluindo a
bebida, a comida, a habitação, e tudo o mais que pertencesse ao sustento, como o vestir,
calçar e medicamentos1334; e (iii) o de os dotar para matrimónios carnais ou religiosos1335.
§ 899. Em contrapartida, os pais eram os titulares dos direitos patrimoniais que os
filhos adquirissem e gozavam o direito de os dirigirem e orientarem.
§ 900. A titularidade dos direitos dos filhos significava que estes adquiriam para os

1327 Para além dos naturais, filhos eram ainda os que tivessem sido objeto de adoção, nos termos

de institutos que vinham do direito romano, onde tinham tido grande difusão. Cf., João Baptista
Fragoso, Regimen reipublicae […], cit., p. 3, liv.1, d. 2, 7; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,
2,v,9; a adoção, por ser uma graça "contra direito" devia ser autorizada pelo rei (i.e., pelo Desembargo
do Paço, Ord. fil.,1,3,1).
1328 Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 76, n. 6 e ss.; Álvaro Valasco, Decisiones […], cit.,

cons. 176, n. 2 ss..


1329 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 134, n. 2.

1330 Cf. Antonio da Natividade, Stromata [...], cit., op. 5, per totum.

1331 Cf., sobre o seu conteúdo (doutrina sagrada; pelo menos, o credo, o decálogo, o padre-nosso
e os principais mistérios da fé (João Baptista Fragoso, Regimen reipublicae [...]. cit., p. 3, liv.1, d.1, 6,
pg. 21 s.). Também, Antonio da Natividade, Stromata [...], cit., op. 10).
1332 João Baptista Fragoso, Regimen reipublicae [...]. cit., p. 3, liv.1, d.1, 4, n. 52, pg. 15 (sobre a

moralidade das filhas).


1333 V. Ord. fil.,4,97,7; v. também, sobre o alcance desta obrigação paterna, João Baptista

Fragoso, Regimen reipublicae [...], cit., p. 3, liv.1, d.1, 6, ns. 96 ss. (em Portugal, seria costume dever o
pai custear os estudos e livros universitários do filho, mesmo que não concordasse com eles). Tudo isto
limitado, naturalmente, pela condição familiar e pelas posses do pai. Manuel de Almeida e Sousa
(Lobão), no Tratado das acções recíprocas […], cit., 47 ss., entende que os pais nobres estão
obrigados a pagar os estudos até ao grau de bacharel ou de doutor ( 48).
1334 João Baptista Fragoso, Regimen reipublicae [...], cit., 3, liv.1, d.2, 1; Antonio da Natividade,

Stromata [...], cit., op. 9; Lobão, 1828, 1 ss..


1335 Joao Baptista Fragoso, Regimen […], loc. cit.; António da Natividade, Stromata [...], cit., op. 2;

Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), no Tratado das acções recíprocas […], cit., 56.

273
Direito das pessoas.
pais. Este princípio era atenuado pelo facto de os filhões poderem possuir certos bens por
disposição e benevolência dos pais, os chamados pecúlios.
§ 901. Os filhos deviam aos pais gratidão, obediência e obséquios 1336. O dever de
gratidão obrigava os filhos, ainda que naturais ou espúrios, a ajudar os pais necessitados,
quer em vida, ministrando-lhe o auxílio de que carecessem, quer depois de mortos, fazendo-
lhe as exéquias e dando-lhes a sepultura, de acordo com a sua qualidade e assegurando
missas por suas almas 1337. Mas, além disso, impedia por exemplo, que o filho acusasse o
pai em juízo (v. cap. 7.1.7.1 s.) ou que o matasse, ainda que para defender um inocente 1338.
O dever de obediência obrigava-os a respeitar e acatar as decisões dos pais 1339.
§ 902. Em alguns aspetos fundamentais, o concílio de Trento veio minar este dever de
obediência, ao sublinhar o caráter essencialmente voluntário dos atos relativos à fé, no
número dos quais entravam, no entanto, alguns de grande relevo externo. Assim, punia com
a excomunhão qualquer pessoa (e, portanto, também os pais) que forçasse outra a tomar o
estado religioso (sess. 25, De reformat., cap. 18).
§ 903. Mas o mesmo se passava quanto a decisões ainda mais críticas para a política
familiar - as relativas ao casamento. O Concílio enfatizava, de facto, o caráter livre e
voluntário do matrimónio. Daí que fulminasse com a excomunhão quem atentasse contra a
liberdade matrimonial e dispensasse os párocos de se assegurarem da autorização dos pais
dos nubentes, já que este requisito podia impedir uniões queridas pelos próprios (sess. 24,
de reformat., c. 1).
§ 904. Porém, os direitos dos reinos, mais atentos aos interesses políticos das famílias
do que ao caráter pessoalíssimo das opções de vida, continuavam a proteger o poder
paternal. Era este o sentido da legislação de vários reinos europeus que, sobretudo a partir
dos meados do séc. XVIII, passaram a punir severamente os nubentes que
desobedecessem a seus pais.
§ 905. Em Portugal, as Ordenações deserdavam as filhas menores (de 25 anos) que
casassem contra a vontade dos pais (Ord. fil.,4,88,1); e, em complemento, puniam com
degredo quem casasse com mulher menor sem autorização do pai (Ord. fil.,5,18). Mas as
disposições liberalizadoras do Concílio de Trento, difundidas por teólogos e canonistas,
influenciaram decisivamente párocos e tribunais, chegando os juristas a discutir a
legitimidade destas leis régias que, indiretamente, coartavam a liberdade do matrimónio.
§ 906. Porém, esta insistência na liberdade de casar não podia deixar de perturbar a
disciplina familiar, com tudo o que isso tinha de subversivo, no plano das relações pessoais
entre pais e filhos, mas também no do controle paterno das estratégias de reprodução
familiar. Já as Cortes de 1641 tinham sido sensíveis a esta quebra da autoridade paterna na
escolha dos esposos dos filhos. Mas é na segunda metade do séc. XVIII - quando se
procurava uma nova disciplina da república e da família - que a reação contra esta "laxidão"

1336 Cf. António da Natividade, Stromata [...], cit., op. 5.


1337 João Baptista Fragoso, Regimen reipublicae [...], cit., 3,l liv.1, d.2, 8, ns, 226/227, p. 65; e
liv.2, d.3, 2, n. 44, p. 86.
1338 João Baptista Fragoso, Regimen reipublicae [...], cit., 3, liv.1, p.1, d.1, 2, n.21.

1339 Em contrapartida, o pai podia castigar os filhos desobedientes, embora - tal como no caso da

mulher - nos limites de uma moderata domestica correctio, não lhes causando feridas, mutilações ou a
morte.

274
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
se tornou mais forte1340. Numa diatribe contra a difusão desta "moral relaxada, opposta a
todos os princípios da Sociedade civil"1341, Bartolomeu Rebelo descrevia a situação de
"libertinagem" a que tinha conduzido a doutrina de Trento, propagada pelos teólogos
"jesuítas"1342 e propunha o retorno a uma rigorosa disciplina familiar, em que a matéria das
núpcias fosse da exclusiva responsabilidade dos pais "sem attenção alguma aos filhos, os
quaes só se contemplão, como ministros e executores da vontade paterna [...] Donde se
segue com infallivel certeza, que competindo aos Pais a escolha dos cazamentos, devendo
estes attender às qualidades dos Espozos e Espozas, que buscão para seus filhos, não
devem estes intrometer-se ao Officio paterno [...]" (p. 21/23).
§ 907. Este autor não exprimia uma opinião isolada, nem a que a própria Igreja fosse
insensível. Os teólogos começavam a revalorizar o valor da obediência, considerando que os
casamentos não consentidos pelos pais eram frequentemente ilícitos e pecaminosos, por
desobediência aos pais, sobretudo quando os filhos casassem indignamente, pois tais
casamentos "seriam fonte de ódios, rixas, dissídios e escândalos" 1343. Bento XIV publicara
(em 17.11.1741) uma encíclica que atenuava os cuidados tridentinos com a liberdade
matrimonial. E o Patriarca de Lisboa enviara, no início dos anos setenta, uma circular aos
párocos, recomendando-lhes que se assegurassem do consentimento dos pais1344. Em 1772
(9.4), a Casa da Suplicação tomara um assento duríssimo, ampliando Ord. fil.,4, 881345. A lei
de 9.6.1775 ratificou esta orientação, deserdando os filhos e filhas (sem limite de idade) que
casassem sem consentimento dos pais, para além de reforçar as penas já estabelecidas nas
Ordenações contra os sedutores.
§ 908. Mas, se a política pombalina da família visava este objetivo de firmar a
autoridade e disciplina interna das famílias, visava ainda outros fins de "política social", como
o de lutar contra o pronunciado casticismo das famílias nobres 1346 e contra a tendência para
os pais exercerem um "poder despótico" sobre os filhos, negando "absoluta, o
obstinadamente os consentimentos ainda para os matrimonios mais uteis [...] em notorio
prejuizo das Familias, e da Povoação, de que depende a principal força dos Estados". Daí
que o rei, "como Pai Commum dos [...] Vassalos", tenha cometido ao Desembargo do Paço,
pela lei de 29.11.1775, o suprimento da autorização paterna para os casamentos da nobreza
de corte, dos comerciantes de grosso trato ou nas pessoas nobilitadas por lei; e aos
corregedores e provedores, o suprimento desta autorização no caso dos casamentos de

1340 Cf. anedotas sobre o tema em "Descrição de Lisboa [...]. 1730", Castelo Branco Chaves
(org.), O Portugal […], p. 64.
1341 Bartolomeu Coelho Neves Rebelo, Discurso sobre a inutilidade dos esponsaes dos filhos

celebrados sem consentimento dos pais, cit..


1342 Decorre das mesmas listas de "bons" e "maus" teólogos (cf. 11 e 38) que dos dois lados

estavam jesuítas; mas o sentido geral da teologia moral da Segunda Escolástica, dominada pelos
jesuítas, era, de facto, liberalizador quanto a este ponto.
1343 Antonio de San Jose, Compendium [...], cit., tract. 34, II, n. 71.

1344 Bartolomeu Coelho Neves Rebelo, Discurso […], cit., xv


1345 Pois, além da deserdação das filhas, nos termos aí consignados, cominava ainda a
deserdação dos filhos, qualquer que fosse a sua idade (!), que se casassem, fosse com quem fosse,
indigno ou digno, sem consentimento dos pais (Collecção chronologica dos assentos.., ass. 282).
1346 Cf., v.g., as leis abolindo a distinção entre cristãos velhos e cristãos novos, 25.5.1773 e

15.12.1774; e o dec. contra os "puritanos" de 1768.

275
Direito das pessoas.
artífices e plebeus.
§ 909. A lei de 6.10.1784 reforçou de novo o controle dos pais sobre os esponsais dos
filhos, obrigando a que estes interviessem expressamente na escritura da sua celebração
(ns. 1 e 2) e neles dessem o consentimento (nº. 4). Só que, como compensação, restringia a
obrigatoriedade do consentimento aos esponsais dos filhos menores de 25 anos, para além
de que manter a possibilidade de suprir a autorização, nos termos da lei de 29.11.1775 1347.
§ 910. O pátrio poder andava ligado ao facto natural da geração e não tanto à
incapacidade de os filhos se governarem por si mesmos (que, por sua vez, explicava as
restrições da capacidade dos menores). Isto fazia com que, no direito português, o pátrio
poder fosse tendencialmente perpétuo, não se extinguindo pela maioridade do filho, e
podendo continuar até à sua velhice, desde que o pai fosse vivo1348.
§ 911. A qualidade de filho extinguia-se pela morte do pai1349. Para este efeito, no
conceito de morte cabiam a morte natural (mas não a civil, provinda de desnaturalização, de
degredo, de condenação às galés1350. Extinguia-se também com o casamento do filho (Ord.
fil., 1,88,6)1351 ou com o acesso deste a uma magistratura ou à ordenação e com a entrada
em ordens.
§ 912. Outra causa de extinção do poder paternal era a emancipação1352. No direito
romano, a emancipação era um ato solene, pois equivalia à criação de um novo cidadão.,
fazendo-se ou por rescrito do príncipe ou perante um magistrado1353. No direito pátrio, a
emancipação era um ato voluntário do pai, realizado perante um juiz1354 e confirmada pelo
rei, pois, como dispensa da lei, era uma graça régia (Ord. fil.,1,3,7), processada pelo
Desembargo do Paço1355. As cartas de suprimento de idade supriam a falta de idade para se
ser plenamente capaz mas não emancipavam1356. A emancipação era obrigatória no caso de

1347 Para mais detalhes, v. o meu artigo "Carne de uma só carne” […]”, cit..
1348 Mesmo a morte do pai, não era suficiente para atribuir ao filho uma plena capacidade,
colocando o filho alieni iuris (i.e., sujeito ao pátrio poder) sob a patria potestas do avô ou, na falta deste,
de um tutor ou curador, sendo menor ou incapaz.
1349 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen reipublicae […], cit., 3, liv.2, d. 3, 3, ns. 1 ss. [sobre o

termo do poder paternal] e 82 a 114 [sobre este último ponto]; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis
[...], cit., 2,5,21.
1350 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2,5,22.

1351Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 2, dec. 72, n. 3 (os filhos que se casam saem do

poder paternal segundo o estilo de Portugal, de Castela e da Galiza); Tomé Valasco, Allegationes [...],
cit., alleg. 29, 25 ss..
1352 Bento Pereira, Promptuarium […], cit. v. “Emancipatio”; Pascoal de Melo, Institutiones iuris

civilis [...], cit., 2,5,33.


1353 D. 1.7 De adoptionibus et emancipationibus et aliis modis quibus potestas solvitur.

1354 Cf. Tomé Valasco, Allegationes [...], cit., alleg. 29, n. 18; Jorge de Cabedo, Decisiones […], p.

1, dec. 80, n. 4,
1355 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 2, dec. 72, n. 1. Sobre a carta de emancipação,

Manuel Barbosa, Remissiones […], ad Ord. fil.,1,3,7.


1356 Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 30, n. 14 (o poder paternal – e, logo, a

qualidade de filho -, extinguia-se pela emancipação, mas não por carta de suprimento de idade (venia
aetatis). Cf. ainda Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2,5,24: davam-se no caso de
incapacidade do pai ou ao órfão (causa cognita e com idade mínima de 20 anos nos homens e 18 nas

276
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
tratamento cruel pelo pai ou aceitação de legado com essa condição (Ord. fil.,3,9,4; Pascoal
de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit.,2,5,25). A emancipação podia ser revogada por
ingratidão (exceto a que derivava de casamento)1357.
§ 913. Porém, a filiação também terminava com a separação económica dos filhos,
quando estes tivessem adquirido habitação separada e atividade económica própria1358 ou
tivessem acedido a uma dignidade civil ou eclesiástica que tivesse proventos1359.
§ 914. A unidade era um princípio constitucional da família de Antigo Regime. Este
apelo da unidade fazia-se sentir não apenas enquanto sujeitava todos os membros da família
à direção única do pater, mas também enquanto favorecia modelos de assegurar a unidade
da família, mesmo para além da morte deste. Isto refletia-se no estatuto dos filhos,
comprometendo a ideia de igualdade e instaurando uma hierarquia entre eles.
§ 915. Referimo-nos, antes de mais, ao instituto da primogenitura, cuja difusão se
explica, porventura, por ingredientes da tradição judaica (testemunhados pelas Escrituras; cf.
Exodus, 13, 22) e feudais. A raiz do direito dos primogénitos a encabeçarem a comunidade
familiar estaria no facto de, por presunção que decorria da natureza, o amor dos pais ser
maior em relação ao filho mais velho, bem como da dignidade ungida e quase sacerdotal do
filho mais velho no Antigo Testamento. O caráter antropológico e quase divino deste
fundamento dos direitos de primogenitura fazia com que estes fossem inderrogáveis (salva
justa causa) quer pelo pai, quer pelo rei.
§ 916. Na época moderna, porém, a antiga dignidade natural ou divina dos direitos dos
primogénitos (v. § 327) já era negada por muitos, que a fundava antes num particular uso de
certas nações quanto às regras de sucessão de determinados bens, de acordo com a sua
natureza (caso dos bens feudais) ou com a vontade do um seu dono (caso dos
morgados)1360. E, de facto, na Europa ocidental, o seu âmbito reduzia-se, praticamente, ao
direito feudal (caso dos "feudos indivisíveis") e, na área hispânica (ou de influência hispânica,
como em certas zonas de Itália), aos morgados (v. cap. 5.4)(e, até certo ponto, aos bens
enfitêuticos) (v. cap. 4.3.3)1361..
§ 917. Nestes casos, porém, a indivisibilidade do património familiar (e a unidade
familiar a que isto força, criando direitos e deveres recíprocos dos familiares que vivem na
sombra do administrador do vínculo), já tinha menos a ver com a unidade natural da família
do que com as vantagens políticas (do ponto de vista familiar, mas também do ponto de vista
da coroa) da indivisão dos bens das casas e da sua conservação numa certa linha
sucessória. Do ponto de vista das famílias, a indivisibilidade do património vinculado evitava
não apenas o olvido do nome e gesta familiares1362, mas também a dispersão dos próprios

mulheres, v. Ord. fil.,3,42,pr; Reg. DISP, § 13; alv. 24.7.1713..


1357 Cf. Tomé Valasco, Allegationes [...], cit., alleg. 29, 39 a 41 e 46.

1358 C.,8 De patria potestate,46; I., De patria potestate,1,9; Pascoal de Melo, Institutiones iuris
civilis [...], cit., 2,5,26.
1359 Tomé Valasco, Allegationes […], cit., all. 29, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit.,

2,5,27.
1360 Embora tal uso atribuísse ao primogénito uma certa "preeminência e dignidade", João

Baptista Fragoso, Regimen reipublicae [...], cit., p. 3, liv. 9, d. 20, 1, n. 8, pg. 576).
1361 Sobre o princípio da primogenitura na história do direito europeu, John Gilissen, Introdução

histórica […], cit., 681 s.; para Portugal, ibid., 694 ss..
1362 Daí que, em geral, se excluíssem as mulheres da sucessão dos morgados, dada a sua

277
Direito das pessoas.
membros da família, já que estes ficavam economicamente dependentes do administrador
do morgado. Do ponto de vista da coroa, porque esta conseguia “encabeçar” o auxilium das
famílias (maxime, das famílias nobres) num número relativamente pequeno de
intermediários1363 1364. O caráter "civil" e não "natural" dos morgados é realçado ainda mais
na literatura pós-iluminista 1365, que propende fortemente a considerá-los "antinaturais",
justamente por ofenderem a igualdade de direitos entre todos os filhos 1366, princípio que, ele
também, decorria da unidade natural da família, embora entendido de outro modo. Do
caráter civil e político (i.e., "artificial") dos morgados seguia-se que a sua criação dependia
apenas do prudente arbítrio do instituído, estando, portanto, aberta a nobres e plebeus, com
a única limitação de que a instituição devia ter a opulência adequada aos fins por ela
visados1367.
3.2.5 Restante parentela.
§ 918. É também este caráter natural e "generativo" da família que traça os limites do
seu âmbito como grupo social.
§ 919. A família, em sentido estrito, engloba apenas os que se encontram sujeitos aos
poderes do mesmo paterfamilias1368. Num sentido um pouco mais vasto, designa os
agnados.
§ 920. A fonte da maior parte da doutrina moderna quanto à definição é Gaius: “as
personas unidas por parentesco do sexo masculino: por exemplo, o irmão nascido do mesmo
pai, o filho ou o neto do mesmo, igualmente o tio paterno e o filho do tio paterno e o neto do
mesmo. Em contrapartida, aqueles que estão unidos por parentesco do sexo feminino não
são agnados, tendo outra designação, de acordo com o direito natural, a de cognados.
Assim, portanto, entre o tio materno e o filho da irmã, não há agnação, mas cognação.
Igualmente, o filho da tia paterna ou materna não é meu agnado, mas cognado e
reciprocamente e eu estou unido a eles pelo mesmo direito, já que os que nascem seguem a
família do pai e não a da mãe1369. Também se podia dizer que era constituída por todos os

incapacidade para transmitir o nome: "a família aumenta pelos varões em dignidade e honra e destrói-
se e extingue-se pela mulheres; e por isso se diz que as mulheres são o fim da família" (Miguel de
Reinoso, Observationes [...], cit., ob. 14, ns. 9/11).
1363 Ord. fil.,4,100,5; Manuel de Almeida e Sousa de Lobão, Tratado prático de morgados, II, 4.

1364 Este modelo de encabeçamento era conhecido noutros domínios, nomeadamente, no da

receção de rendas e tributos, como forma de reduzir o peso do governo.


1365 Cf. Manuel de Almeida e Sousa de Lobão, Tratado prático de morgados, I., 6 ss., insistindo

na origem "hispânica" da instituição (em Portugal, L. 15.9.1557; Ord. fil.,100, 4; em Castela, Leis de
Toro [1535] e Nova rec.,V,7.). Para Castela, v. Bartolomé Clavero, Mayorazgo. Propriedad feudal en
Castilla. 1369-1836, ed. alt., Madrid, Siglo XXI, 1989.
1366 Gaetano Filangieri, Scienza della legislazione, 1780, I.,18,10; cf., para a discussão, Lobão,

Morgados, II, 1-18.


1367 João Baptista Fragoso, Regimen reipublicae [...], cit., p. 3, liv. 9, d. 18, 1, n. 11.

1368 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2,iv.iii-v, em que se define família como um
conjunto de várias pessoas que estão sob o poder de uma só, sujeitas tanto pela natureza como pelo
direito.
1369 “Sunt autem agnati per virilis sexus personas cognatione iuncti, quasi a patre cognati, veluti

frater eodem patre natus, fratis filius reposve ex eo, item patruus et patrui filius et nepos ex eo. At hi, qui
per femini sexus personas cognatione coniunguntur, non sunt agnati, sed alias naturali iure cognati.

278
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
que tinham saído da mesma casa1370. Sammuel Coceius, já no período iluminista, sintetiza
do seguinte modo os direitos dos agnados:- "Deste estado da família decorrem vários
direitos. Assim, 1º, todos os privilégios que aderem à família, também pertencem aos
agnados, do mesmo modo que o uso do nome e dos brasões, etc.; 2º, as injúrias feitas à
família podem ser vingadas também por eles, 3º, os membros da família devem defender
aqueles que não o podem fazer, pois nisto consiste a tutela legítima"1371). A família agnatícia
era juridicamente relevante até ao 6º grau1372, pela linha masculina, incluindo os
adotados1373. Tudo isto tinha correspondente no direito português1374. Esta conceção de
família, fundada em princípios de sujeição política e linhagísticos - e a que era sensível,
sobretudo, o grupo nobiliárquico - correspondia, basicamente, ao conceito de linhagem.
§ 921. Em sentido mais lato ainda - que era o do direito canónico 1375, depois recebido,
para certos efeitos, pelo direito civil – a família abarca todas as pessoas ligadas pelo geração
(agnados) ou pela afinidade (cognados). A família cognatícia era, por isso, o conjunto de
pessoas, varões ou fêmeas, que estavam unidas pelo parentesco consanguíneo ou natural,
ou seja, por procriação e nascimento. Compunha-se de um tronco comum e de duas linhas,
a descendente (os que descendem uns dos outros) e a colateral, ou seja os que não
descendem uns dos outros, mas que têm um ascendente comum (como os irmãos). Como a
sujeição ao pater era irrelevante, a família cognatícia incluía as linhas femininas.
§ 922. Num sentido ainda mais vasto, família representa o conjunto de todos os que
estão ligados entre si por laços generativos (de sangue) ou por afinidade (casamento). O
conceito é usado, mas não tem relevância jurídica. Nem tinha a ver o conceito de família
alargada, como comunidade de vida e de bens de todos os irmãos e descendentes que se
pensa poder ter existido em comunidades rurais, favorecida pela existência de baldios e
pastos comuns e pelo sistema de encabeçamento da enfiteuse. As Ordenações (Ord.
fil.,4,44,1) previam este tipo de sociedade universal; mas ela não pertencia, claramente, ao
universo com que os juristas letrados lidavam. Os mais tardios, consideravam-na

Itaque inter avunculum et sororis filium non agnatio est, sed cognatio. Item amitae, materterae filius non
est mihi agnatus, sed cognatus, et invicem scilicet ego illi eodem iure coniungor, quia qui nascuntur
patris non matris familiam secuntur”. Gaio, Institutiones, 1,156.,
1370 D.50,16 Ulp. De verborum significatione, 195, § 2; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,

cit., 2,4,5.
1371 Samuel Cocceius, Iustitiae naturalis et romanae novum systema, cit. liv., 3.cap.4,sect.5,§ 170

(p. 93 da ed. 1762).


1372 Os graus eram contados por gerações. Por direito civil, subia-se por um ramo da árvore da

família de um parente até ao ascendente comum e descia-se, por outro ramo, deste para o outro
parente. Por direito canónico, só se contava um dos ramos, o mais extenso.
1373 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2,7,26. Cf., para os agnati e cognati em Roma,

http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/secondary/SMIGRA*/Cognati.html.
1374 Dever de auxílio mútuo (v. Ord. fil.,5, 124,9), direitos sucessórios (Ord. fil.,4,90,94, pr., 96),

direito de reagirem judicialmente contra a usurpação de armas e apelidos (Manuel Álvares Pegas,
Tractatus de inclusione […], cit., V, c. 116).
1375 O direito canónico alargava ainda a noção de família - e alguns dos correspondentes deveres

- aos pais espirituais, condição que se adquiria pelo batismo, confissão e crisma, além de decorar
também os tutores e os mestres (João Baptista Fragoso, Regimen reipublicae […], cit., p. 3, liv. 1, d. 1,
4, n. 50).

279
Direito das pessoas.
extravagante e exótica 1376;
os mais antigos pouca atenção lhe dedicavam (aparte o caso da
comunhão geral de bens entre os cônjuges, que era o regime matrimonial "segundo o
costume do reino", Ord. fil.,4,46,pr.; 951377).
§ 923. "Família" era, então, uma palavra de contornos muito vastos, nela se incluindo
agnados e cognados, mas ainda criados, escravos e, até, os bens 1378. "La gente que vive en
una casa debaxo del mando del señor della", eis como definia família o Dicionario de lengua
castellana, da Real Academia de Historia (1732), invocando as Part., VII, tit. 33, l. 6: "Por
esta palabra familia se entiende el señor de ella, e su muger, e todos los que viven so el,
sobre quien ha mandamiento, assi como los fijos e los servientes e otros criados, ca familia
es dicha aquella en que viven mas de dos homes al mandamiento del señor". Mas
acrescentava, em entradas seguintes, outras aceções: "numero dos criados de alguém,
ainda que não vivam dentro da casa"; "a descendência, ascendência, ou parentela de
alguma pessoa"; "o corpo de alguma religião ou comunidade"; "o agregado de todos os
criados ou domésticos do rei"; fazendo ainda equiparar "familiar" a amigo 1379.
3.2.6 Criados.
§ 924. Em relação a toda esta universalidade valiam os princípios inicialmente
enunciados, nomeadamente o da unidade sob a hegemonia do pater, ao qual incumbiam
direitos-deveres sobre os membros e as coisas da família.
§ 925. Era assim quanto aos criados, ligados ao dominus por uma relação que excedia
em muito a de um simples mercenariato, aparecendo envolvida no mundo das fidelidades
domésticas. Não é que o direito português ainda conhecesse a adscrição (cf. Ord. fil.,4,28).
Mas as relações entre do senhor e os servos desenvolviam-se no ambiente da família
patriarcal (da "casa") que criava, de parte a parte, laços muito variados.
§ 926. Desde logo, "criados" (famuli, "família") eram, tradicionalmente, aqueles que
viviam com o senhor "a bem fazer", ou seja, pelo comer e dormir (v. (v. 3.1.1.3 e 3.1.1.4; §
691).
3.2.7 A expansão do modelo familiar.
§ 927. Muito do imaginário e dos esquemas de pensamento a que acabamos de nos
referir transvazavam largamente o domínio das relações domésticas, aplicando-se,
nomeadamente, ao âmbito da república.
§ 928. Como se diz na época, "sendo a casa a primeira comunidade, as leis mais

1376 "Confesso que nunca vi provada claramente, nem julgada no foro tal sociedade universal
tacita com effeitos de expressa, nem tão pouco jámais vi escriptura de sociedade universal expressa",
escreve Lobão (Tratado das acções recíprocas […], cit., 789); mas não deixa de expor uma série de
regras sobre as partilhas de sociedades de amanho comum das terras paternas, constituídas,
nomeadamente em meios rústicos, entre irmãos, com suas mulheres e filhos (cf. 777 e ss.; no caso de
os irmão serem "nobres", 785).
1377 Mas diferente de uma sociedade familiar universal, Álvaro Valasco, De partitionibus […], cit.,

cap. 5, n. 8.
1378 Na expressão [actio] familiae erciscundae (ação para dividir a família), a palavra significava,

obviamente, os bens. Alguns estendem os deveres familiares até ao ponto de abrangerem o dever de
ser útil aos vizinhos (Antonio da Natividade, Stromata […], cit., op. V, cap. 13.).
1379 Sobre o conceito de família v., ainda, Nuno Monteiro, "Os sistemas familiares", cit., 279; e, do

mesmo autor, "Casa e linhagem [...]", cit..

280
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
necessárias são as do governo da casa"1380; e sendo, além disso, a família o fundamento da
república, o regime (ou governo) da casa é também o fundamento do regime da cidade. Este
tópico dos contactos entre "casa" e "república" - e, consequentemente, entre a "oeconomia",
ou disciplina das coisas da família, e a "política", ou disciplina das coisas públicas 1381 -, a
que a historiografia tem dado muito destaque 1382, explica a legitimação patriarcal do governo
da república, em vigor durante quase todo o Antigo Regime, bem como o uso da metáfora do
casamento e da filiação para descrever e dar conteúdo às relações entre o príncipe e a
república e entre o rei e os súbditos. E constitui também a chave para a compreensão, num
plano eminentemente político, de uma grande parte da literatura que, aparentemente, se
dirige apenas ao governo doméstico.
§ 929. Zona de expansão do modelo doméstico era também o domínio das relações
internas à comunidade eclesiástica. Não só a Igreja (v. cap. 2.4.4) era concebida como uma
grande família, dirigida por um pai espiritual (Cristo ou o seu vigário, o Papa [note-se o
radical da palavra]) e regida, antes de tudo, pelas regras do amor familiar (fraterna disciplina,
fraterna correctio), como as particulares comunidades eclesiásticas obedeciam ao modelo
familiar. Às congregações religiosas chamavam-se "casas"; os seus chefes eram "abades"
(palavra que significa "pai") ou "abadessas" (ou "madres"), a quem os religiosos deviam
obediência filial. Os religiosos eram, entre si, "frades" (fratres, irmãos) ou sorores (sorores,
irmãs; ou, também, "irmãs"). Sobre eles impendiam incapacidades e deveres típicos dos
filhos família. A disciplina interna da comunidade era - sobretudo nas congregações
femininas em que as madres não dispunham de jurisdição, por serem mulheres - concebida
como uma disciplina doméstica, competindo aos superiores os poderes de que os pais
dispunham em relação aos filhos. Ao séquito de um dignitário eclesiástico (um bispo, um
cardeal), chamava-se a sua “família”. Os agentes / informadores do Santo Ofício eram
designados de “familiares”.
§ 930. Tudo isto é bastante para mostrar o papel central que, na imaginação das
relações políticas, é desempenhado pelo modelo da família. Modelo que, por outro lado,
obedece a uma impecável lógica estruturante, fundada em cenários de compreensão do
relacionamento humano muito profundamente ancorados nas sociedades europeias pré-
contemporânea.
3.3 Relações patrimoniais.
§ 931. A natureza da comunidade familiar explicava o seu regime jurídico. Depois de
casados, marido e mulher passavam a fazer parte de um só corpo, passando a ser
considerados pelo direito, não como iguais, mas como idênticos1383. A este corpo familiar se
agregarão os filhos do matrimónio [os naturais ?] e outras pessoas que integrem a
comunidade familiar (como os parentes vivendo em comunhão doméstica), os criados e os
escravos, mas também os próprios bens, que se integravam na sociedade familiar, sendo
por vezes designados como “família” (v.g., actio familiae erciscundae, ação de partilha dos

1380 António da Natividade, Stromata [...], cit., op. I., cap. 1, p. 2, n. 10.
1381 Que Aristóteles, sintomaticamente, considerara conjuntamente no seu tratado sobre a
"economia".
1382 Cf., por todos, Frigo (1985a), Daniela, Il padre di famiglia […];"La dimensione amministrativa

[…]”;“Disciplina rei familiariae”: a economia […]; António Manuel Hespanha, "Justiça e administração
entre o Antigo Regime e a revolução" […]; Cesare Mozzarelli (ed.), "Famiglia" del príncipe […].
1383 António Manuel Hespanha, “Carne de uma só carne”

281
Direito das pessoas.
bens da família) (v. § 1578), e tendo por vezes regimes jurídicos assentes nessa sua
natureza “familiar” (bens de avoenga, bens troncais, bens de morgado)1384.
§ 932. Em relação a toda esta universalidade valiam os princípios inicialmente
enunciados, nomeadamente o da unidade sob a hegemonia do pater, ao qual incumbiam
direitos-deveres sobre os membros e as coisas da família. O marido (pater) assumia, por
isso, o papel de cabeça (caput familiae) ou de principal (princeps familiae).
§ 933. Estes princípios da unidade da família e do lugar capital, principal, do marido/pai
de família explicam, em geral, o regime jurídico da instituição.
§ 934. De acordo com isto que era considerado ser a natureza da família, os maridos
tinham um certo poder sobre as suas esposas (e sobre os filhos 1385) (v. 3.3.1), tanto nos
aspetos pessoais como patrimoniais. A ele se referem a Ord. fil.,4,66. Este poder era
diferente da propriedade (sobre os escravos), do poder eril (i.e., doméstico, sobre os criados)
ou do poder dos tutores sobre os pupilos. Por isso, os maridos não podiam vender ou alugar
as suas mulheres, mas apenas dirigi-las, defendê-las ou castiga-las moderadamente, tendo
em vista a sua educação (Cf. Ord. fil.,5,36,1). O poder punitivo doméstico compreendia os
castigos em geral (Ord. fil.,5,36,1), mas também o cárcere privado (Ord. fil.,5,95,4) ou
mesmo a aplicação da pena de morte, quando a esposa fosse surpreendida em ato de
adultério (Ord. fil.,5,38,pr.) (v. cap. 8.2.2.2). Segundo Pascoal de Melo, entre os plebeus,
este poder de correção degenerava frequentemente em maus tratos físicos, de que os
tribunais se ocupavam frequentemente e que conduziam por vezes à separação de mesa e
habitação1386. No domínio patrimonial, o marido era o administrador natural do património
familiar, competindo-lhe os direitos de disposição e administração, embora com limitações e
sujeitas a regras de prudência comumente aceites, dos bens, bem como as ações judiciais
correspondentes. Esta subordinação natural da esposa nem sequer cessava quando ela
exercesse a dignidade de rainha: embora o marido, como súbdito, estivesse sujeito à sua
jurisdição e poder políticos (quoad imperium), mantinha porém a sua supremacia doméstica
(quoad potestatem domesticam)1387, embora estas situações dependessem também das Leis
Fundamentais e dos pactos nupciais celebrados.
§ 935. Do ponto de vista patrimonial, a consequência mais importante da ideia de
unidade da família sob a direção do marido era a comunhão de bens e os poderes do marido
na administração dos bens comuns (v. cap. 3.3.1.1). O casamento visava objetivos de
natureza pessoal, como a união física, de vida e espiritual. Entendia-se que estes marcavam
de tal modo a sociedade familiar que o próprio regime de bens era influenciado por esta
lógica da unidade. Tal como os corpos e as vidas, os bens levados pelos cônjuges para o
casamento ou adquiridos depois pelo casal, em princípio comunicavam-se, entrando a fazer
parte de um património comum.
§ 936. Além disso, a identidade familiar criava uma comunicação tal que obrigava o

1384 Para os grandes juristas italianos do séc. XIV, falar de família ou de casa equivalia a falar do

património, como substância da unidade doméstica: “Familia accipitur in iure pro substantia” (Bártolo da
Sassoferrato, Commentaria in primam infortiati partem, Lugduni 1555, ad D. 28.211 de liberis et
posthumis, l. in suis, 112, rubr.).
1385 Cf. 3.2.4. As esposas gozavam também, embora apenas subsidiariamente, de poder sobre os

filhos (Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2,7,15 ss.).


1386 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2,7,1 e 2.

1387 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2,7,5.

282
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
marido a prestar alimentos à esposa (Ord. fil.,4,103,1) e justificava tanto a comunhão de
bens, salvo pacto em contrário (Ord. fil.,4,46), como a atribuição à mulher de um estado de
parente consanguíneo (cognado) que, por sua vez, a incluía na lista de herdeiros ab intestato
do marido (Ord. fil.,4,94).
§ 937. Esta ideia de comunhão surge da doutrina cristã1388 quanto à natureza do
casamento, não se encontrando qua tale no direito romano, no qual a supremacia política do
marido não poderia ser afetada pela plena comunhão de bens, já que nesta os bens do
marido se comunicariam à mulher. Também nos direitos germânicos, a ideia de comunhão
patrimonial familiar existia, mas localizava-se não tanto na família estrita, mas antes na
família extensa ou estirpe, dando origem a um outro quadro institucional, em que a
comunhão de bens num casal não prejudicava direitos das famílias de cada cônjuge sobre
bens familiares (comunhão apenas de bens adquiridos na constância do casamento, mas
não dos bens familiares trazidos por cada cônjuge para o casamento).
§ 938. Ao princípio da unidade somava-se o referido princípio patriarcal, ou seja, do
governo pelo pai.
§ 939. No domínio patrimonial, o marido era o administrador natural do património
familiar, competindo-lhe os direitos de disposição e administração dos bens - embora com
limitações e sujeitas a regras de prudência comumente aceites - bem como as ações
judiciais correspondentes.
§ 940. A situação subordinada das esposas manifestava-se ainda nas restrições para
pôr ações em tribunal sem o consentimento do marido (Ord. fil.,3,47), nomeadamente ações
contra o marido (v. cap. 7.1.7.1). Esta desproteção judicial tinha limites, nomeadamente
quando se tratava de obter a anulação de atos abusivos de administração patrimonial por
parte do marido. Assim, podia pedir a revogação das alienações de imóveis feitas pelo
marido sem o seu consentimento (Ord. fil.,4,48,2) ou das doações que este fizesse à
concubina (Ord. fil.,4,66)1389.
§ 941. Em contrapartida, este poder de direção e de proteção obrigava os maridos a
sustentar as suas mulheres de acordo com a sua qualidade (“decentemente”), não apenas
pelos bens comuns do casal, mas também pelos bens próprios do marido (Ord. fil.,4,103,1).
§ 942. A unidade da família também se refletia nos aspetos patrimoniais das relações
entre o pai e os filhos.
§ 943. Em relação aos pais, os filhos tinham, para além do dever de obediência, o
dever de prestação de serviços - dever de obséquio, que consistia na obrigação de
prestarem ao pai a ajuda e trabalho gratuitos de que ele carecesse1390. No caso de estarem
sob a sua patria potestas, este dever era irrestrito (ad libitum, qui totum dicit, nihil excipit),
obrigando-os a trabalhos que, prestados a outrem, seriam pagos. Já no caso dos filhos
emancipados se entendia que esta obrigação não abrangia os trabalhos que requeressem
arte ou indústria 1391. Por outro lado, o pai era o verdadeiro proprietário dos bens dos filhos

1388 Mas não no direito canónico, diz Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2,8,3; cf.

Decretum, cap. II, tit. De donationibus inter virum et uxorem).


1389 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2,7,3.

Cf. 3.2.4.
1390

João Baptista Fragoso, Regimen reipublicae [...], cit., p. 3, liv.10, d.22, 5, ns. 117/118, pg.
1391

650; Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Tratado das acções recíprocas […], cit., p. 22 (este mais

283
Direito das pessoas.
sob o seu pátrio poder. A regra geral (mas, até certo ponto, também caricatural) era a de
que, fazendo os filhos parte da pessoa do pai, só este era titular de direitos e obrigações,
adquirindo para si os ganhos patrimoniais dos filhos sujeitos ao pátrio poder e sendo
responsável pelas suas perdas. Com a consequência suplementar de que não poderiam
entre si contratar. Tudo isto estava, no entanto, algo atenuado.
§ 944. A unidade da família também se refletia sobre a capacidade de adquirir dos
filhos. Desde o direito romano que se lhes reconhecia a capacidade de terem certos direitos
sobre certos bens, os chamados pecúlios (peculium)1392. Nos pecúlios, distinguia-se o
peculio adventício, constituído pelos bens adquiridos por sucessão, por doação, por industria
própria ou por caso fortuito, sobre o qual os filhos detinham a propriedade, mas não o
usufruto1393; o pecúlio profetício, constituído por bens entregues pelo pai ou dados por
outrem em atenção ao pai, sobre os quais os filhos não tinham nem a propriedade, nem o
usufruto ou administração, salva concessão do pai1394; o pecúlio castrense, integrado por
bens adquiridos na profissão das armas; e o pecúlio quase castrense, adquirido pelos
rendimentos de benefício eclesiástico ou de ofício civil, como tabelionado, magistratura, ou
semelhante. Nestes últimos, os filhos tinham o domínio pleno, o usufruto e a administração
(Ord. fil.,4,97,18).
§ 945. Por direito comum, os filhos não podiam testar antes da puberdade, nem com o
consentimento do pai. O mesmo acontecia por direito pátrio (Ord. fil.,4,81,3; 4,83), a não ser
para causas pias1395.
§ 946. Quanto aos seus poderes de contratar, o filho família maior (puber) obrigava-se
natural e civilmente. Ou seja, tinha a capacidade plena, embora restrita aos bens de que
pudesse dispor livremente (i.e., aos bens castrenses e quase castrenses e, excecionalmente,
os bens adventícios); quanto aos outros, ou não eram deles, ou não tinha, em geral, a sua
administração1396. Quanto à capacidade para contratar com o próprio pai, de há muito se

restritivo quanto aos deveres dos filhos).


1392Nos seus vários tipos de castrense, quasi castrense, adventício e profecticio, enumerados por

ordem decrescente de poderes de disposição dos filhos; cf. João Baptista Fragoso, Regimen
reipublicae [...], cit., p. 3, liv.1, d. 2, § 8, ns. 229 ss. (p. 66); Manuel de Almeida e Sousa (Lobão),
Tratado das acções recíprocas […], cit., cap. 13. Sobre a capacidade para testarem, doarem e se
obrigarem, João Baptista Fragoso, Regimen reipublicae [...], cit., p. 3, liv.1, d. 2, § 8, ns. 236 ss.; p. 3,
liv.1, d.2, §§ 9 e 10.
1393 A não ser nos casos previstos em Ord. fil.,4,98: se o pai lhes doasse o usufruto que tinha

nesses bens; se algo lhes fosse dado ou deixado com a condição de o pai não ter o usufruto; se o pai
não queria que o filho aceitasse a doação dos bens adventícios; se lhes fosse deixado apenas o
usufruto de certos bens; se os bens tivessem sido doados pelo rei; nas coisas herdadas,
conjuntamente com o pai, de irmão ou irmã, João Baptista Fragoso, Regimen reipublicae [...], cit., p. 3,
liv.1, d. 2, § 8, n. 230.
1394 De qualquer modo, não podiam administrar esses bens senão em benefício do pai, não os

podendo tão pouco vender sem licença do pai, João Baptista Fragoso, Regimen reipublicae [...], cit., p.
3, liv.1, d. 2, § 8, n. 231
1395 Não assim no direito castelhano, Lei 5ª de Toro, João Baptista Fragoso, Regimen reipublicae

[...], cit., p. 3, liv.1, d. 2, § 8, ns. 235-236.


1396 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen reipublicae [...], cit., p. 3, liv.1, d.2, § 10, §§ 271 a 275.

Os filhos menores (impúberes) tinham a capacidade dos menores: em geral, eram incapazes, a não ser
se próximos da maioridade, caso em que ficavam obrigados naturalmente: não podiam ser acionados,
mas se cumprissem, não podiam repetir o que tivessem pago (obligatio naturalis).

284
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
superara a restritíssima norma do direito romano 1397, apenas se mantendo a impossibilidade
de demandas entre pai e filhos 1398.
3.3.1 Os regimes de bens do casamento.
§ 947. Apesar de estes princípios ligados à natureza da sociedade familiar
enquadrarem a constituição patrimonial da família, o direito reconhecia que o regime bens
tinha também algo de voluntário, dependendo ou da vontade dos nubentes ou daquilo que o
direito do país estabelecia.
§ 948. Em Portugal, os autores seiscentistas e setecentistas consideravam que os
nubentes podiam, dentro de alguns limites e observadas certas formas, modelar os poderes
(de disposição e de administração) de cada um deles em relação aos bens que trouxessem
para o casamento ou adquirissem na sua constância1399. Assim como poderiam, segundo
uma opinião não unânime, modificar esse regime depois de casados1400, ou por meio de
doações entre eles (v. cap. 3.3.1.4) ou modificando o pacto nupcial. A modificação do pacto,
quer afastando o regime de comunhão geral e adotando o regime dotal, quer no sentido
oposto, quer introduzindo novas cláusulas, era válida nos mesmos termos em que o eram as
doações entre os cônjuges, ou seja desde que disso não resultasse o empobrecimento de
um dos cônjuges em favor do outro (cf. Ord. fil.,4,65,3).
§ 949. Em geral, o direito apenas tinha por nulos os pactos que contrariassem a razão
natural, os bons costumes e a utilidade pública. Assim, seriam nulos os pactos que
subordinassem o marido à mulher ou que libertassem esta da supervisão do marido. O
mesmo aconteceria com os pactos que ofendessem as legítimas dos filhos, que frustrassem
a finalidade do dote (por exemplo, impedindo o gasto dos frutos dos bens dotais ou privando
a viúva do dote, ao libertar os herdeiros do marido do encargo da restituição do dote).
§ 950. Na falta de convenção, as Ordenações regulavam dois modelos, dando-lhes
uma generalidade diferente. Um era a comunhão geral de bens, ou carta de ametade (charta
dimidiae) (Ord. fil.,4,46), considerada como o costume geral do reino e, por isso, como o
regime presumido de bens, caso não houvesse pacto que o modificasse ou escolhesse
outro. O outro regime previsto e regulado pela lei (Ord. fil.,4,47) era o regime de dote, que,
esse, tinha que ser pactado para que vigorasse. Havia, porém, outros modelos, muito
presentes na mente dos juristas. Destes destacavam-se o regime de bens do direito comum
(que os juristas referiam como matrimonium in forma juris contractum e próximo do regime
dotal) - em que o património se unificava, mas sob a propriedade do marido, embora
respeitando a autonomia de algumas massas patrimoniais autónomas, os pecúlios dos filhos
(castrense, quase castrense, profectício e adventício) e o dote1401 1402 - e o regime de bens

1397 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,1,8; Manuel de Almeida e Sousa (Lobão),

Notas […] Melo [...], cit., ao passo respetivo, p. 245.


1398 João Baptista Fragoso, Regimen reipublicae [...], cit., 3, liv.2, d.3, 2, n. 43.

1399 V. Ord. fil.,4,46. Assim, Álvaro Valasco é de opinião que, segundo o direito português, tudo

entra na comunhão, salvo se os nubentes convencionarem o contrário (Álvaro Valasco, Decisiones [...],
cit., cons. 175, n. 3; Bento Pereira, Promptuarium […], v. “Matrimonium”, n. 1225.
1400 Se Melchior Febo, Decisiones [...], cit. defendia que o regime de bens não se podia mudar

(Decisiones […], dec. 170, n. 16), outros tinham a opinião contrária (cf. Bento Pereira, Promptuarium
[…], v. “Matrimonium”, n. 1221).
1401 Cf., síntese, em Loredana Garlati, “La famiglia tra passato e presente”, em

www.storiadeldiritto.org/uploads/5/9/4/8/5948821/garlati_2011_famiglia.pdf.

285
Direito das pessoas.
do direito castelhano, em que cada cônjuge conservava como próprios os bens que tivesse
levado para o casamento, mas entravam em comunhão os adquiridos no estado de
casados1403.
§ 951. O regime de bens português de comunhão, tal como o castelhano, o siciliano ou
o sardo, eram regimes de direitos próprios. Por um lado, de acordo com as regras de
conflitos de normas do direito comum, tinham a primazia no reino a que diziam respeito,
como direitos particulares. Mas, por outro lado, estavam sujeitos à usura que decorria de se
afastarem do direito comum e de, por isso, serem considerados como regimes “odiosos”,
cujas normas deviam ser interpretadas restritivamente, no sentido de se aproximarem do
direito comum1404.
3.3.1.1 A comunhão geral de bens1405.
§ 952. No direito comum, ao qual se referia a doutrina dos glosadores e dos
comentadores, a unidade da família era realizada pela submissão de todos os bens à
propriedade do pater, temperada pelo reconhecimento da autonomia de algumas massas
patrimoniais, da mulher (dote) ou dos filhos (pecúlios).
§ 953. Em Portugal, a comunhão de bens começou por ser um costume particular de
algumas terras, tendo sido generalizada como costume do reino pelas Ordenações
Afonsinas (Ord. af.,4,12,5) e aparecendo consagrada na Ord. fil.,4,46; Ord. fil., 4,95, como
regime supletivo de bens do casamento, comunicando aos dois cônjuges todos os bens,
levados para o casamento ou adquiridos por qualquer título depois dele. Álvaro Valasco
escreve que “é antiquíssimo este costume do reino de que se comuniquem entre os cônjuges
todos os bens, sempre que se casem à face da igreja […], seguindo-se cópula ou
coabitação, Em voz de fama de marido e mulher em casa teúda e manteúda, seja em casa
do pai, seja em outra” (apoia-se em Ord. fil.,2,47,1; Nova Recopilación, 4,7,pr. e 4,46,pr.)1406.
§ 954. Os juristas salientavam a sua origem consuetudinário, embora qualificassem
este costume como de antiquíssimo e destacassem a boa razão em que era fundado. Álvaro
Valasco enumerava assim os seus fundamentos racionais: (i) Seria uma consequência lógica
(a maiore ad minorem) da comunicação dos corpos dos cônjuges, pois se se comunicava o
mais excelente (os corpos), mais devia comunicar-se o menos excelente (os bens); (ii)
evitaria que, numa casa, se discutisse cada dia o teu e o meu, como sucederia nos lugares
em que este costume não vigorava; (iii) faria com que cada um dos cônjuges procurasse o
bem patrimonial do outro; (iv) decorreria do facto de no contrato de casamento estar implícito
um contrato de sociedade1407, pelo que os cônjuges seriam sócios "na casa divina e na

1402 Cf. Gabriel Pereira da Castro, Decisiones […], dec. 53, n. 4. 4. Por isso, no matrimónio in

forma iuris contractum, os legados e doações não se comunicavam, n. 6, mas apenas os seus frutos, n.
13. Cf. sobre o regime de bens do direito comum http://www.solofrastorica.it/campanilematrim.htm
1403 Álvaro Valasco, Consultationes […], cit., cons. 175, n. 2.

1404 Um exemplo: a opinião de Álvaro Valasco de que as leis de Espanha sobre a comunicação

aos dois cônjuges dos bens adquiridos na constância do matrimónio corrigiriam o direito canónico e,
por isso, seriam odiosas (Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 103, ns. 5-6).
1405 Cf. Luís de Molina, Tractatus de iustitia et de iure […], tract. 2, disp. 422-423, 433-434, 476;

Fernão Rebelo, De obligationibus iustitiae […], p. 2, liv. 6; Manuel Barbosa, Remissiones […], ad 4,46;
Álvaro Valasco, Praxis partitionum […], cap. 4.
1406 Álvaro Valasco, Praxis partitionum et collationum […, cit., cap. 5, n. 1.

1407 Álvaro Valasco, Praxis partitionum et collationum […, 1605], cap. 5, ns. 2-3. Enumera, porém,

286
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
humana”1408.
§ 955. A comunhão (casamento por carta de ametade) dava-se com a consumação,
por cópula subsequente, de um casamento válido 1409, em que outro regime não tivesse sido
formalmente1410 estabelecido (Ord. fil.,4,46,pr.). A exigência de consumação do casamento –
que tinha a importante consequência de impedir a comunhão nos casamentos não
consumados ou anulados por esse motivo – era discutida1411.
§ 956. No reino, presumia-se que os casamentos eram por “carta de ametade” (charta
medietatis)1412. Todos os bens – qualquer que fosse a sua natureza e o título a que tivessem
sido recebidos1413 - entravam na comunhão e, dissolvido o casamento, na partilha1414.
Tornavam-se propriedade comum dos dois1415, deixando de haver bens próprios de cada
cônjuge1416. Mesmos os rendimentos que um dos cônjuges – normalmente o marido –
adquirisse pelo exercício de um cargo ou de uma profissão. Álvaro Valasco destaca como
isso estava enraizado nas práticas portuguesas, sendo costume que o marido, regressado
de navegações longínqua e tendo a mulher morrido no ínterim, comunicasse (e incluísse no
inventario e partilha) os bens por si adquiridos nessas viagens e em ofícios ou profissões
desempenhados longe de casa1417, o que confirmava que o fundamento da comunhão não
era tanto a colaboração e o trabalho comum, mas antes a unidade de pessoas e bens criada

as diferenças entre a comunicação dos bens nos dois casos: Sobre as diferenças entre a sociedade
conjugal e as sociedades universais de direito comum, Álvaro Valasco, Praxis partitionum et
collationum […, 1605], cap. 5, n. 8.
1408 Álvaro Valasco, Praxis partitionum et collationum […, 1605], cap. 5, n. 7.

1409 Não já de um casamento apenas aparentemente válido (casamento putativo), ainda que os

cônjuges não soubessem da causa da sua nulidade (i.e., estivessem de boa fé) (Ord. fil., 4,46,1).
1410 Bento Pereira, Promptuarium […], v. “Matrimonium”, n. 1210 (não é necessária escritura,

provando-se por testemunhas). Em todo o caso, valia a regra geral da exigência de escritura pública
para negócios sobre imóveis (Ord. fil.,3,59).
1411 Em sentido diferente: António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 124; Álvaro Valasco,

Decisiones [...], cit., cons. 137, n.8 (refere a opinião mas não concorda). Cf. Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis [...], cit., 2,8,9.
1412 Bento Pereira, Promptuarium […], v. “Matrimonium”, n. 1221 (remete para Melchior Febo,

Decisiones […], cit., dec. 170, n. 19).


1413 “No nosso direito tudo se comunica, mesmo que derive de doação régia, ou de guerra [ao

contrário do que se passa no direito de Castela] (Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 103; Bento
Pereira, Promptuarium […],cit., v. “Matrimonium”, n. 1228). Esta decisão de Cabedo parece implicar
que o disposto em Ord. fil.,4,95,1 (em que se excluíam do inventário e partilha os bens da coroa e
outros bens de nomeação) apenas dizia respeito aos casamentos em regime dotal.
1414 Assim, a cláusula "que se partam os adquiridos quer se adquiram por título oneroso, quer

lucrativo" era supérflua, Bento Pereira, Promptuarium […], cit., v. “Matrimonium”, n. 1220, 1221. Cf.
Álvaro Valasco, Praxis partitionum et collationum […, cit., cap. 5, ns. 9 e 14.
1415 Cita Álvaro Valasco, Praxis partitionum et collationum […, cit., cap. 5, ns. 9 e 14.

1416 Além do caso da bínuba quinquagenária, de que se falará, havia uma única situação em que

a qualidade dos cônjuges excluía a comunhão: a do casamento de escrava com livre, em que a
escrava que casasse não beneficiava da comunhão de bens, Bento Pereira, Promptuarium […], cit., v.
“Matrimonium”, n. 1228 (também Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 1., dec. 150, n. 1).
1417 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 166, n. 7. Sobre a comunicação das rendas de

ofícios, em geral, v. a cons. 166., n. 5; Bento Pereira, Promptuarium […],cit, v. “Matrimonium”, n. 1219.

287
Direito das pessoas.
pelo casamento.
§ 957. Então que bens se tornavam comuns? Em princípio, todos, portanto. Eram
exceção aqueles que não se podiam alienar: bens de morgado, domínio direto de bens
enfitêuticos, bens da coroa (Ord. fil.,4,95,1); embora se comunicassem os seus frutos, bem
como as despesas e benfeitoria feitas neles (Ord. fil.,4,97,24). Também não se comunicavam
as dívidas de cada cônjuge contraídas antes do casamento. Ou, nas dívidas novas, as que
se devessem considerar pessoais, tais como as de jogo, as que resultassem de gastos com
vícios ou as penas pecuniárias1418 ().
§ 958. Lendo a doutrina da época, surgiam muitas opiniões que parece contrariarem
esta universalidade da comunhão. Muitos defendiam que certos bens levados para o
casamento ou adquiridos na constância deste não se comunicavam, que as dívidas eram da
responsabilidade de quem as contraiu ou que os rendimentos de cargos ou profissões
ficavam próprios de cada cônjuge1419.
§ 959. Na verdade, estas opiniões são reflexo da discussão destes temas no direito
comum e no direito castelhano, em que coexistiam no âmbito dos bens familiares várias
massas patrimoniais autónomas. No direito de Castela, só se comunicavam os bens
adquiridos depois do casamento. E, mesmo nestes, haveria que averiguar o título de
aquisição e a origem dos capitais gastos nela. É que não se comunicavam os bens
adquiridos por herança ou doação, nem aqueles comprados por troca de bens próprios de
cada cônjuge ou por força dos rendimentos desses bens próprios. Por sua vez, no direito
comum, como havia patrimónios autónomos dentre da massa dos bens da família (como o
dote), era importante saber por força de que bens ou rendimentos se adquiria um novo bem,
pois este devia entrar no património por conta do qual fora adquirido1420. Como no estilo da
literatura jurídica de então, as citações aparecem descontextualizadas, é frequente encontrar
declarações gerais de que certos bens não se comunicavam1421, quando no texto original

1418 No casamento por dote e arras, as dívidas nunca se comunicam (Ord. fil.,4,95,4). Cf. Pascoal
de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2,8,17.
1419 Pascoal de Melo (Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 8,17) diz que não

entravam na comunhão os bens que não se podiam alienar, o que parece corresponder ao rigor
conceitual de inalienabilidade: bens de morgado, domínio direto de bens enfitêuticos, bens da coroa
(abonando-se com Ord. fil.,4,95,1), embora se comunicassem os seus frutos, bem como as despesas e
benfeitoria feitas neles (Ord. fil.,4,97,24). Porém, Álvaro Valasco é expresso em sentido inverso (Álvaro
Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 103). A indecisão proviria da frequente generalização das soluções
de direito comum ao direito particular da comunhão reinícola, até porque nos grupos sociais de elite –
em que bens de nomeação eram frequentes – se praticava, sobretudo, o regime dotal.
1420 Atento o direito comum (v. Luis de Molina, Tractatus de iustitia et de iure […], cit., tract. 2,

disp. 422-423, 433-434, 476; Rebelo, p. 2, liv. 6), os bens adquiridos na constância do matrimónio eram
do adquirente quando claramente se constatasse que tinham sido adquiridos com coisas ou dinheiro
seus. Presumia-se que os adquiridos pela mulher tinham sido adquiridos por força dos bens do marido
(Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 103, ns. 3-4.
1421 Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 170, ns. 35-37, 45) afirma que, embora houvesse

pacto de comunhão, este pacto não se estendia às heranças, sobretudo à dos pais, pois os bens
herdados por testamento ou ab intestato não pertenciam à sociedade (íbid., n. 51); mas este é, por
ventura, o regime do direito castelhano, não o das Ordenações (v. António da Gama, Decisiones […],
cit., dec. 358 (a cláusula de comunhão compreendia todos os bens que os cônjuges adquirissem por
herança dos seus parentes). Gabriel Pereira de Castro (Decisiones […],cit., dec. 50, n. 7), afirmava que
podia alienar os bens aquele que os adquirira; isto seria verdade, mas apenas para os bens próprios de

288
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
elas diziam respeito à situação no direito castelhano de comunhão de adquiridos ou ao
direito comum de autonomia do dote. É importante realçar como estas confusões promoviam
as soluções de direito comum e de direito castelhano, uma e outra mais favoráveis à
extensão do direito de disposição patrimonial livre do marido, pois tendiam a incluir nos bens
próprios do marido as novas aquisições, já que se presumia terem sido feitas por conta dos
seus bens e do seu trabalho.
§ 960. Para a generalidade dos autores mais antigos, a comunicação dos bens apenas
se verificava na constância do matrimónio. Depois de separação por sevícias ou adultério,
tendo cessado a comunhão de corpos, cessaria também a comunhão de bens, pelo que os
bens adquiridos depois de separação seriam próprios de cada cônjuge. Todavia, não já por
causa da natureza da situação matrimonial, mas como pena, o cônjuge culpado da
separação continuava a comunicar os bens1422. Pascoal de Melo iria ter uma opinião
diferente, mais apegada ao conceito de casamento e de comunhão, defendendo a
continuação da comunicação dos bens, já que a separação não punha fim ao estado de
casado, apenas o suspendendo. Em contrapartida, rejeitava que a comunicação atingisse
apenas o cônjuge culpado, como se fosse uma pena, pois esta pena não estava prevista na
lei, algo que, agora, começava a ser um princípio jurídico muito relevante.
§ 961. Mesmo no caso de segundas núpcias, em que a comunhão podia prejudicar os
filhos do primeiro matrimónio, dar-se-ia a comunhão de bens, só estando garantida aos filhos
do casamento anterior a sua legítima nos bens do pai ou mãe 1423. Fazia exceção o regime
de bens das segundas núpcias de viúva de mais de 50 anos, em que só se comunicavam os
bens adquiridos, por se admitir que os seus herdeiros não deviam ser prejudicados por um
casamento tão extemporâneo1424 (“bínuba quinquagenária”, Ord. fil.,4,105).
§ 962. Como os bens eram comuns, nenhum dos cônjuges podia praticar em relação
aos mais importantes deles - os imóveis - atos de disposição sem autorização do outro (Ord.
fil.,4,48,pr.). Tais atos eram nulos, podendo o cônjuge que não tivesse dado a autorização
pedir a anulação da alienação e reivindicar de terceiro a coisa alienada. Como a esposa não
podia ir a juízo sem autorização do marido, carecia dela para propor estas ações, embora o
juiz pudesse substituir-se ao marido no caso de este não dar autorização (Ord. fil.,3,47,4).
Todas as intervenções judiciais relativas a direitos sobre imóveis do casal seguiam a mesma

cada cônjuge, nos regimes em que eles existissem, o que não era o caso da comunhão geral
portuguesa. António da Gama afirmava que, quando se desse a separação, os bens adquiridos por
qualquer dos cônjuges não entravam na partilha (Decisiones […], cit., dec. 357, n. 1), o que só era
verdade no regime do direito comum. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 115, n. 30), dizia que
nem o ofício nem os seus frutos eram comunicados, mas pensando nos regimes do direito comum,
eventualmente no castelhano. Bento Pereira (Promptuarium […], v. “Matrimonium”, n. 1233) refere a
opinião de que as dívidas contraídas antes do casamento eram pagas apenas pelos bens do devedor,
a menos que fossem contraídas em razão do futuro casamento, o que era o regime do direito comum
(e do dote), mas não o da comunhão portuguesa. Há muito mais exemplos.
1422 Cf. António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 357.

1423 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2,8,2. Este regime terminou com a CL

17.9.1769; mas foi reposto pelo D. 17.7.1778.


1424 Sobre a “bínuba quinquagenária”, v. Bento Pereira, Promptuarium […], v. “Matrimonium”, n.

1218; CJCv,II,8,12. Note-se a carga antropológica deste regime: a mulher de mais de cinquenta anos
não seria nem atrativa nem fértil, pelo que o casamento poderia visar apenas o enriquecimento do
marido. Mas o mesmo não se aplicava ao homem quinquagenário.

289
Direito das pessoas.
regra do duplo consentimento1425.
§ 963. Constituída esta comunhão de bens, vinha ao de cima o lugar de direção do
marido como chefe da família.
§ 964. Na verdade, pertencia ao marido, como cabeça (caput) e principal (prínceps) da
família, a administração dos bens. Era neste sentido que Melchior Febo dizia que o domínio
da mulher sobre os bens comuns era um domínio apenas virtual (in habitu) e não efetivo (in
actu)1426, concluindo daí que o marido era o verdadeiro proprietário dos bens, podendo dispor
deles, salvo no caso de intuito fraudulento contra o património familiar1427. Comum era,
porém, outra opinião, que distinguia proprietário e administrador. A mulher era companheira
(socia) e não escrava do marido, pelo que o direito reconhecia a necessidade da sua
intervenção nos atos mais importantes de disposição do património, suscetíveis de o
prejudicar mais gravemente. Isto acontecia com a alienação de imóveis (na qual se
compreendia a venda, a doação, o aforamento, hipoteca, e os arrendamentos de longo
prazo: Ord. fil., 4,48) ou de móveis de maior valor (Ord. fil.,4,64) e com a garantia pessoal de
obrigações de outrem (fiança: Ord. fil.,4,60), a qual colocava o património do casal na
situação de responder por dívidas de outrem (Ord. fil.,4,60; 64; 66)1428. Já quanto aos
imóveis, podiam ser alienados apenas pelo marido, desde que o negócio não fosse
claramente prejudicial ao casal. A alienação sem consentimento era nula, perdendo o
comprador o preço (Ord. fil.,4,60 e 64). O consentimento da mulher tinha que ser
expresso1429.
§ 965. Em contrapartida, a mulher não podia contratar sem a autorização do marido, tal
como não podia acionar ou ser acionada sem ela (Ord. fil.,4,66; Ord. fil.,3,47)1430 1431. O
consentimento da mulher não era necessário, depois de separação por sevícias do marido,
nem para propor ações sobre imóveis, nem para vender imóveis1432.
§ 966. A comunhão terminava com a separação ou “divórcio”1433, por qualquer das
causas que o direito canónico reconhecia (nomeadamente, sevícias, adultério) (v. cap.
3.2.1)1434. Dissolvido o matrimónio, os bens eram inventariados e divididos, por partilha1435,

1425 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 2,8,18.
1426 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], dec. 115, n. 7.
1427 Melchior Febo, Decisiones […], dec. 115, ns. 8-10, 34.
1428 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2,7,4. Bento Pereira, Promptuarium […], v.
“Matrimonium”, n. 1229 ss. (poderes de alienação); ibid., 1218; Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit.,
p. 1., dec. 109, n.1 (doação de imóveis); Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 55, ns. 1-2
(doação do usufruto).
1429 Bento Pereira, Promptuarium […], v. “Matrimonium”, n. 1229.

1430 Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 1, dec. 106; Melchior Febo, Decisiones […], cit.,

dec. 9.
1431 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2,8,19.

1432 Bento Pereira, Promptuarium […], v. “Matrimonium”, n. 1230; António da Gama, Decisiones

[…], cit., dec. 357, n. 2.


1433 O “divortium” separa quanto ao thoro (toro, cama), mas não quanto ao vínculo, Bento Pereira,

Promptuarium […], v. “Matrimonium”, n. 1244 ss..


1434 Outras causas, Manuel Themudo da Fonseca, Decisiones […], cit., dec. 38.

1435 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 175, n. 3.

290
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
entre os cônjuges ou, sendo algum falecido, entre o sobrevivente e os herdeiros. A mulher
não perdia a sua meação a não ser nos casos previstos nas Ordenações1436.Em Castela,
cada cônjuge recuperava os bens que levara para o casamento e os adquiridos como
próprios, dividindo-se os restantes adquiridos1437.
§ 967. Em virtude da comunhão, o cônjuge sobrevivo retinha para si, não como
herdeiro, mas como comproprietário, a metade dos bens do casal; além de, como
“continuação” da pessoa do falecido, ficar na posse dos bens (comunicados) até à partilha
com os herdeiros1438.
§ 968. Depois da partilha, os cônjuges recuperavam a plana capacidade de disposição
sobre os bens, pelo menos para a parte da doutrina que opinava que a dissolução do
casamento punha fim à comunhão1439.
3.3.1.2 O regime dotal
§ 969. O regime dotal tinha a particularidade de criar uma massa de bens que era
entregue ao marido pelo pai da esposa para sustento do casal. Estes bens, inalienáveis por
qualquer dos cônjuges e administrados pelo marido com regras mais estritas, distinguiam-se
dos bens comuns do casal, bem como dos bens que a mulher tivesse reservado para si, e
que administrava (bens parafrenais)1440. A lógica subjacente ao regime dotal era a de que o
sustento quotidiano da família devia ser assegurado por uma massa patrimonial, constituída
para esse fim pelo pai da noiva – o dote1441. Apesar de haver autores que consideravam o
dote como instituído no interesse da mulher1442, a opinião comum era a de que o a
preservação dos bens dotais no património familiar era exigido pelo interesse público, pois o
aumento da população da república exigia que se fomentasse a sustentabilidade patrimonial
dos casamentos 1443. Era neste sentido que se chegava a afirmar que o dote era a
substância do matrimónio e, portanto, que em todos os casamentos devia haver dote1444.
Para alguns, o dote era tão essencial ao casamento que a inexistência ou insuficiência dele
podiam tanto desobrigar da anterior promessa de casar com alguém1445 como autorizar a

1436 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […],cit., v. “Matrimonium”, n. 1244 ss..


1437 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 175, n. 2.
1438 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2,8,15
1439 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], cit., v. “Matrimonium”, n. 1225; Melchior Febo,

Decisiones […], dec. 72, ns. 1-3.


1440 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2,9,2. A antiga distinção entre bens

parafernais profetícios (entregues pelo pai à filha e que a ele deviam reotrnar, dissolvido o matrimónio)
ou adventícios (adquiridos de outra forma pela mulher) tinha-se tornado obsoleta pelo facto de a filha
adquirir a maioridade (e, logo, a titularidade dos seus bens) com o casamento.
1441 Uma lógica idêntica “de sustento” tinha o dote espiritual, com que o pai devia beneficiar as

filhas que entrassem em religião.


1442 “Dos dicitur patrimonium filiae”, escreve Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 153, n. 3.

1443 Cf. a indicação de autores de uma e outra opinião em Álvaro Valasco, Decisiones […], cit.,
cons. 150, ns. 14-17 e 23.
1444 “Matrimonium non debet esse sine dote”, escreve Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec.

145, n. 10.
1445 Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 2, dec. 31, n. 15 (o juramento de casar, sem

referência ao dote, não obriga a casar sem ele).

291
Direito das pessoas.
desobedecer a uma ordem régia de casar com certa mulher1446. Para outros, o dote era tão
normal que deveria ser tido como o regime supletivo de bens1447.
§ 970. A constituição do dote era um dever do pai (ainda a filha natural1448 e mesmo a
espúria1449), semelhante ao de alimentos, embora menos estrito1450. Subsidiariamente, podia
recair sobre a mãe1451 e mesmo sobre os irmãos germanos1452. Dava às filhas uma ação
contra os pais que era usada, alternativamente, com a acção de alimentos1453. O dever de
dotar cessava nos casos de desobediência grave (por exemplo, casar sem autorização
paterna, sendo menor), de ingratidão (tal como outros deveres dos filhos, Ord. fil.,4,88)1454 ou
no caso de pobreza do pai. Os juristas discutiam se cessava no caso de a filha ser rica, por
ser herdada da mãe ou ter recebido bens (nomeadamente, em dote) de terceiro1455. O dote
era pago pelos bens comuns dos pais, ou em comum pelos dois, por força dos seus
respetivos bens1456.
§ 971. O dote constituía-se por um pacto (Ord. fil.,4,46,pr.)1457. Este pacto dotal era
irrevogável, mesmo nos casos de ingratidão da filha1458. Não era exigida uma forma especial,
mas devia ser expresso, pois os bens levados pela mulher para o casamento presumiam-se
parafrenais. No entanto, tinha que se respeitar as formalidades requeridas pelas
Ordenações, em função da natureza dos bens (por exemplo, escritura pública: Ord. fil.,3,59,
pr.; casos especiais, 11, 12 e 15).
§ 972. Era questão discutida a de definir o âmbito dos bens dotais. Para uns, todos os
bens que a mulher trazia para o casamento eram dotais, salvo cláusula no pacto do dote que
considerasse alguns como parafernais. Era a opinião de Jorge de Cabedo e de Pegas1459,

Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones […],cit., p. 2, dec. 31, n. 11.


1446

“Mulier nubes simpliciter secundum consuetudinem regni videtur bona sua in dotem dare, nisi
1447

sit quinquagenaria, & filios habeat primi matrimonii. Quia tunc solum videtur dare in dotem tertiam
suorum bonorum”, Antonio da Gama, Decisiones […], cit., dec. 320, n. 3. (Bento Pereira, Promptuarium
[…], n. 489).
1448 Alguns autores entendiam que o dote das filhas naturais podia ser menor; mas outros,

fundados em que a obrigação de dotar era de direito natural e que, perante este, todos os filhos eram
iguais, recusam a discriminação dos ilegítimos (cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit.,
2,9,6).
1449 Bento Pereira, Promptuarium […], cit., n. 471

1450 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2,9,6.

1451 Recaía também sobre a mãe (Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2,9,7.
1452 Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, ad T. 9, 8, rubr., p. 460.
1453 Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, ad T. 9, 5 e 6, rubr., p. 451.

1454 As causas de deserdação justificam a não dotação (Bento Pereira, Promptuarium […], n.

483).
1455 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2,9,6.
1456 Detalhes: Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, ad. Tit. 9,7, rubr.,
p. 457.
1457 Havia outros pactos pré-nupciais ou esponsalícios: a dação para casamento, as arras, o

pacto dotalício e a liberalidade esponsalícia.


1458 Bento Pereira, Promptuarium [...]. cit., n. 490.

1459 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 183, n. 3; Antonio de Sousa de Macedo,

292
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
nomeadamente, que invocavam o texto da Ordenação1460. Neste caso, como bens
parafernais ficariam apenas os que a mulher tivesse adquirido depois de casada. Para
outros, pelo contrário, seriam parafernais todos os bens não incluídos expressamente do
dote. A primeira opinião era mais favorável à mulher, pois alargava a proteção dotal a mais
bens1461.
§ 973. Bens dotais podiam ser quaisquer bens que estivessem no comércio e que,
portanto, fossem idóneos para prover ao sustento da família: bens móveis ou imóveis,
usufrutos, juros e tenças, bens recebidos em enfiteuse1462 e mesmo as expectativas de
ofícios ou de sucessão de morgados1463. Eram ainda dotais os bens adquiridos com dinheiro
dotal, se isto estivesse convencionada ou fosse expressamente declarado no ato de compra.
Com autorização (dispensa) do Desembargo do Paço (Regimento, artº 40), os bens do dote
podiam trocar-se por outros, que ficavam com a mesma natureza. O crescimento dos bens
dotais, pelos seus frutos e boa administração, passava a integrar o dote se isso tivesse sido
convencionado1464; aliás, pertencia ao marido.
§ 974. O montante do dote esteve sujeito a limites, uns de direito civil e outros de
direito de polícia. Os limites de direito civil decorriam da sua natureza – que era a de
assegurar o sustento da família, num nível adequado (côngruo com) à condição social dos
nubentes (medida, sobretudo, pela condição da noiva)1465 - e da necessidade de garantir as
legítimas dos outros filhos. Por isso, o dote devia ser côngruo e não ofender as legítimas dos
outros filhos1466, estando limitado à legítima da filha dotada mais aquela massa de bens de
que os pais podiam dispor livremente – a terça ou quota disponível (v. Ord. fil.,4,97,3; cap.
5.2)1467. A partir de meados do séc. XVIII, surgem leis pragmáticas impondo limites aos

Decisiones [...], cit., dec. 21; Manuel Álvares Pegas, Resolutiones forenses […], cit., vol. 3, cap. 36, n.
53.
1460 “Bona dotalia censetur omnia, quae mulier, seu uxor, secum attulit si per contractum dotis

nupsit”; Ord. fil.,4,47,pr.: "todos os bens que a mulher trouxer em seu dote, quando casa por contrato, e
não por costume do Reino").
1461 Será a solução adotada pelo Code civil, arts. 1540 e 1541.

1462 Estava dispensado o consentimento do senhorio direto.

1463 Pascoal de Melo exceptuava dos bens que podiam constituir o dote os morgados, desde que

não fosse respeitada a ordem de sucessão prevista na sua instituição, os bens da coroa sem
autorização do rei (Ord. fil.,2,35,18) e os bens enfitêuticos, sem autorização do senhorio direto (Pascoal
de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., ii,9,11). A razão era a da sua inalienabilidade – pelo que não
podiam ser dados à esposa. Esta última restrição não aparece nos autores mais antigos, alguns dos
quais defendem explicitamente o contrário.
1464 A doutrina dividia-se.

1465 Sobre a congruidade do dote, com indicação da doutrina anterior, Lobão, Notas a Melo […],

II, Tit. 9, 12, rubr., p. 470.


1466 Por isso, os bens doados em dote deviam ser trazidos à colação (Ord. fil.,4,97,1; v. cap. 5.6),

para serem computados nas legítimas das filhas dotadas.


1467 Em Castela, o limite era de 1/10 do património. Numa época em que os casamentos entre as

elites portuguesa e castelhana eram comuns, as questões da aplicação do direito castelhano ou


português dos dotes a esses casamentos era importante, surgindo com frequência na doutrina. A
opinião mais seguida era a de que se aplicavam as normas de conflito da teoria do direito comum
(teoria estatutária). Assim, dava-se preferência ao direito do lugar da celebração do ato, que
normalmente coincidia com o da residência da noiva. O dote devia ser trazido à herança para se

293
Direito das pessoas.
dotes, que se tinham tornado excessivos, pondo em risco a solvabilidade das grandes
casas1468.
§ 975. O dote era, em princípio, dado por conta da legítima da filha dotada1469, devendo
os bens dotais vir à colação e ser computados para estabelecer as quotas hereditárias dos
vários filhos.
§ 976. Os bens dotais, que ficavam na propriedade da mulher1470, eram administrados
pelo marido tendo em vista as suas finalidades1471. Daí que, mesmo por meio de atos de
mera administração não devessem ser usados para outros fins, como o pagamento de
dívidas e satisfação de obrigações de qualquer dos cônjuges anteriores ou não relacionadas
com o matrimónio. Os poderes do marido eram os de um administrador. Por isso, em
princípio, não devia poder alienar os bens do casal, sem consentimento da mulher. Mas o
regime dotal era ainda mais estrito, pois o dote estava protegido contra a dissipação para
outro fim que não fosse o do sustento do casal, ainda que com o consentimento de ambos os
cônjuges1472. Na verdade, direito romano proibia a alienação de bens dotais, por qualquer
dos cônjuges, ainda que com o consentimento do outro, dando à mulher uma ação para os
reivindicar1473, no caso de o marido os alienar. Como havia a prática de as mulheres se
obrigarem a não pedir a anulação das alienações destes bens, os juristas medievais mais
antigos discutiram muito se este juramento seria válido. Para evitar que as mulheres
violassem os tais pactos jurados (e, na verdade, para proteger os maridos que violassem a
interdição de vender bens dotais sem consentimento das mulheres), Bonifácio VIII, pela bula
Licet (VI. 2.11.2.), proibiu os juízes seculares de admitirem as reivindicationes de bens
dotais, inutilizando as proibições do direito romano e as ações concedidas às esposas
dotadas e deixando o marido livre para alienar os bens dotais sem receio da reação das
mulheres1474. Porém, nos praxistas portugueses dominava a opinião de que os bens eram

calcular o montante da legítima e para ser imputado à legítima da filha dotada (collatio dotis).
1468 Em 1645, os dotes das mulheres nobres foi limitado a 12.000 cruzados (Alv. 14.8.1645). Uma

lei de 17.8.1761, reduziu drasticamente os dotes das filhas de nobres com mais de 3 contos anuais de
renda (a um enxoval de roupa branca de valor não superior a 4.000 cruzados), sendo ainda abolida a
legítima das filhas. Mas um decreto de D. Maria, de 17.7.1778, restabeleceu a legítima, bem como a
liberdade de dotar, embora com respeito pelas legítimas dos outros filhos; limitando também as arras a
8.000 cruzados (v. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2,9,13).
1469 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], cit., n. 482.

1470 "Dominium mariti circa res dotales dicitur immaginarium, uxoris autem verum et proprium"

(Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p.1, d.154,n.7).


1471 O dever de alimentos do pai em relação à família era de direito natural, pelo que subsistia

ainda que os bens dotais fossem insuficientes


1472Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., ns. 497 e 498.

1473 O direito romano clássico lei proibira a alienação dos bens dotais pelo marido, concedendo à

esposa uma ação de reivindicação para os recuperar; mas Justiniano alargara esta proibição às
mulheres, para as proteger da sua fraqueza perante a influência do cônjuge (cf. C. De rei uxoriae
actione, 15; I., 4,6,12). Cf. Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 150, ns. 14-17 e 23. Pascoal de
Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2,9,!4. Porém, a sua troca podia ser permitida, como graça régia,
pelo Desembargo do Paço, Reg. Des. Paço, § 40.
1474 Seguindo a lógica, perversa, de não induzir ao perjúrio as mulheres que tivessem jurado não

reclamar os bens dotais, por exigência dos maridos; o que era frequente. Para lhes salvar a alma,
tirava-se-lhe os bens …

294
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
inalienáveis por qualquer dos cônjuges, ainda que com o consentimento do outro. Álvaro
Valasco justifica esta opinião principalmente com a natureza pública do interesse que
presidira à instituição do dote e, subsidiariamente, com a debilidade da mulher perante a
influência do marido. Isto levava a que se devesse afastar o direito comum, tanto mais que o
direito romano, em si mesmo, também promovia a intangibilidade dos bens dotais. Nisso
convinha a ordenação Ord. fil.,4,48, apesar de estar redigida de forma genérica. Embora
uma corrente minoritária limitasse esta regra ao caso de a mulher ter jurado não atacar as
alienações do marido, havia um argumento suplementar contra a validade de juramentos de
não reivindicar: a proibição dos pactos jurados pelas Ordenações (Ord. fil.,4,73: “Que não se
façam contratos, nem distrates, com juramento promissório, ou de boa fé”). Lobão informa,
porém, que o Desembargo do Paço costumava dispensar essa proibição. Outra forma de
tentar remover a proteção aos bens dotais era reconhecer a validade das alienações feitas
pelos dois cônjuges, ocultando a natureza dotais dos bens. Neste ponto, a doutrina dividia-
se1475. Uns consideravam que a venda era nula, dada a natureza pública do interesse pela
conservação do dote e o facto de a ordenação Ord. fil.,4,48 não excluir da proibição estas
alienações fraudulentas. Outros, pelo contrário, consideravam que a validade da venda era
uma espécie de punição para a fraude da mulher, que calara a natureza dotal dos bens
alienados, além de argumentarem com o interesse do comprador na manutenção do
negócio. A questão manteve-se indecisa1476. No conjunto das polémicas em torno da
capacidade do marido para vender os bens dotais nota-se o conflito entre um regime de
proteção do património familiar, vinculado a um interesse superior de conservação das
famílias, e um regime de favorável ao predomínio absoluto da vontade e interesses do
marido que, na verdade, descaracterizava bastante o modelo dotal.
§ 977. Para se entender bem a dimensão social desta questão, é bom considerar a
conjuntura social dos sécs XVII e XVIII ibéricos. Para uma elite altamente endividada por
uma economia de reputação, em que as despesas sumptuárias e de status eram
indispensáveis para obter mercês e rendas, a necessidade de capital fresco em cada
geração era crucial. Os bens de raiz da casa, ou já tinham sido vendidos e penhorados ou
eram de morgado, inalienáveis e impenhoráveis. Perante o assédio dos credores ou as
necessidades de novos investimentos em prestígio, o dotes das esposas constituía uma
oportunidade ansiada para recuperar o equilíbrio financeiro das casas ou, pelo menos, para
minorar situações aflitivas de endividamento. Isso supunha, no entanto, que os bens dotais
estivessem livres para poder responder por dívidas que vinham de trás, sem relação com o
sustento da nova casa. A vinculação do dote ao sustento da família dotada impedia o seu
uso para reequilibrar as finanças do marido, eventualmente dos seus ascendentes. Daí a
importância de poder vender os bens, pressionando a mulher para aceitar o enfraquecimento
do dote ou mesmo com o pleno acordo dela, consciente de que na alienação dos bens dotais

1475 Sobre as discussões doutrinais, com os argumentos de um lado e de outro, Álvaro Valasco,

Decisiones […], cit., cons. 150 per totam.


1476 Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, tit. 9,14,rubr., p. 473 ss..

Que alinha pela opinião favorável a alienação dos bens dotais, num discurso carregado de misogenia:
“Não ha mulher que ignore quaes são os seus bens dotaes, nem tal ignorancia se pode presumir num
sexo avaro por natureza, e aferrado aos seus bens [...] Huma vez que vende os que sabe serem
dotaes, illude, e engana ao comprador, supprimindo-lhe a verdade [...]. A Lei a presume por isso
dolosa, e incursa no crime de stelionato [...]. A conservação dos dotes não nos merece as ideas dos
romanos; nem o favor publico, que interessa nessa conservação [...] he tão forçoso que autorize um
crime tal [...]".

295
Direito das pessoas.
estava a imediata sobrevivência, política, social e económica da família1477.
§ 978. É ainda à luz desta oposição de interesses que deve ser entendida a polémica,
que se manteve até ao séc. XIX, sobre se os bens dotais podiam ser vendidos para o
sustento do casal. Aqui, a opinião mais racional pareceria ser a afirmativa, pois não era outra
a finalidade da instituição do dote, para além de que a mulher – que receberia o dote uma
vez dissolvido o casamento – também era obrigada, embora subsidiariamente, a manter a
família1478. Todavia, outros juristas consideravam os perigos de abuso do marido, quer
simulando despesas, quer furtando os outros bens a responder pelos gastos. Por isso, não
faltam os juristas que se opõem à solução, ou que a limitam e condicionam1479.
§ 979. Aos atos de venda estavam equiparados todos os outros de alienação, por
escambo, doação, transação ou de oneração, como a constituição de servidões, de
enfiteuses, de hipotecas1480.
§ 980. Dissolvido o matrimónio, normalmente pela morte de um dos cônjuges, os bens
dotais1481 deveriam voltar para a esposa1482 e sua família1483. As dúvidas surgiam quando,
sobrevivendo o marido, houvesse filhos, pois uma parte, progressivamente dominante, da
doutrina atribuía, neste caso, o dote ao marido e, por sucessão deste, aos filhos; uma
solução que favorecia os interesses da família do marido face aos da família da mulher.
§ 981. A restituição do dote estava duplsamente garantida. Ou por uma hipoteca sobre
todos os bens do marido. Ou pela atribuição depreferência à esposa em relação a todos os
outros credores do marido1484.
§ 982. A existência de massas patrimoniais distintas nos bens do casal originava uma

1477 Nota-se em Pascoal de Melo um velada antipatia em relação a este regime do dote, talvez

por ele consistir num modelo de vinculação da propriedade a interesses familiares supra-individuais,
comprometendo os interesses dos credores na mobilidade geral dos bens. Melo salienta o caráter
estrangeiro do regime, tenta restringi-lo em diversos pontos e condiciona alguns dos seus aspetos à
inexistência de direitos adquiridos em contrário.
1478 António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 366, n. 7.

1479 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 128, n.4.

1480 “Duvidouse se os bens dotais se podiam obrigar em fianças sobre rendas da fazenda delRey

consentindo a mulher nessa hipoteca ? Determinouse que nem de consentimento da molher se podia
fazer a dita obrigaçam, e estando feita execuçam por parte delRey nos tais bens, se ouve por nula” (em
Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 506).
1481 Sobre o regime dos “crescimentos” ou frutos do dote e das despesas com ele feitas pelo

marido administrador, v. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., Notas, II, Tit., 9,
24, rubr., p. 506 ss. (a regra geral era a de que se deduziam as despesas necessárias ou úteis).
1482 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 502; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis

[...], cit., 2,9.21; Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, tit. 9,21.
1483 Se o dote excedesse legítima, o pai podia incluir no pacto dotal uma cláusula reversiva,

dispondo que os bens voltassem a ele. Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...],
cit., II, tit.9,22, p. 499 ss.. O mesmo podiam fazer outros dotantes.
1484 Cf. Lei de 20.06.1774, que estabeleceu a solução de uma hipoteca tácita a favor da mulher,

preferencial em relação a todos os credores anteriores e posteriores, inovando em relação a anterior


opinião mais comum, que negava este privilégio. Cf., sobre o concurso com a Fazenda Real, Jorge de
Cabedo, Decisiones […], cit., p. 1., decs. 183, 188-9); Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 505;
mais tarde, o regime é alterado a favor do fisco (L. 22.12.1761, tit. 3, 14).

296
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
maior complexidade do regime de bens no casamento com dote.
§ 983. A doutrina considerava que a mulher adúltera ficava privada de dote (Ord.
fil.,5,25), mas exigia que o marido a tivesse acusados disso1485.
§ 984. Nos casamentos com contrato de dote existiam, para além dos bens dotais, os
bens parafernais e os bens comuns1486.
§ 985. Os bens parafernais (do grego antigo parapherna, o que está para além do dote)
os bens especificamente reservados para a mulher (em geral joias, somas de dinheiro ou
objetos pessoais) no contrato de dote e, além destes, os bens recebidos por esta na
constância do casamento, provindos de sucessão testamentária ou ab intestato, ou de
doação1487. Eram propriedade da mulher, embora sob a administração do marido. O marido
podia vendê-los, com autorização da mulher, mas o produto da venda continuava parafernal,
devendo ser restituído à mulher e seus herdeiros1488. A mulher só podia reivindicar os
parafernais com autorização do marido, conforme a regra geral sobre a sua capacidade
processual. Esta autorização podia ser suprida pelo juiz (cf. Ord. fil.,4,48,3).
§ 986. Dissolvido o matrimónio, os bens dotais eram entregues à mulher. Aqui, a
grande questão era a de saber por que critérios se devia pautar a administração e a quem
aproveitava os seus frutos. Muitos autores defendiam, pura e simplesmente, que o marido
era soberano nos critérios de administração, que os gastos feitos dos bens parafernais se
presumiam de interesse comum e que o marido fazia próprios os rendimentos ou
crescimento dos bens1489. Outros acabavam por chegar a resultados equivalentes, pois
defendiam que, sendo os frutos também parafernais, existiriam doações tácitas periódicas
deles, feitas pela mulher ao marido, como agradecimento e compensação dos trabalhos da
administração. Quando muito, apenas teriam que ser entregues à mulher os últimos frutos
(frutos pendentes) no momento da dissolução, ficando o resto para o marido e seus
herdeiros. Em síntese, na dissolução do matrimónio, caberiam à mulher e seus herdeiros, os
parafernais que restassem – e como estivessem - à data da dissolução1490.

1485 Tecnicamente, a reclamação (repetição) do dote era paralisada por uma exceção invocando o

adultério. Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, tit.9,23, rubr., p. 505.
Muitos autores não exigiam a acusação formal por parte do marido, bastando outra forma de reação
por parte deste (expulsão da mulher, queixas públicas) que mostrasse que ele não consentia no
adultério.
1486 V. Ord. fil.,5,38,2.

1487 Alguns autores pretendiam que se devia presumir que os bens da mulher eram parafernais e

não dotais (Baldus Consilia, Cons. 69). Cf. Christian Gottfried Leiser, Ius georgicum de praediis, von
Landgüthern, liv. 1, cap. 34 (De praedis paraphrenalibus), n. 16-17:
books.google.com.br/books?id=S7NFAAAAcAAJ&pg=PA174&lpg=PA174&dq=bona+paraphernalia&so
urce=bl&ots=M9pLdzVd9Y&sig=fnWUHY2FnAJgMbZ0vzKxnFWDY_8&hl=pt-
BR&sa=10&ei=mSBbUpy2E4urkQe46oC4Aw&ved=0CFQQ6AEwBTgy#v=onepage&q=bona%20parap
hernalia&f=false).
1488 Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, tit. 9,15, rubr., p. 484,

distinguindo várias hipóteses de uso do dinheiro da venda, em geral subsumíveis à regra geral de que
os bens vendidos são bens da mulher, pelo que o produto da venda deve ser destinado a satisfazer
interesses seus e não alheios.
1489 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 77, n.3; Domingos Antunes Portugal, De

donationibus [...], cit., p. 1, Praelud. 2, § 3, n. 99.


1490 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, tit. 9,15, rubr., p. 484 ss..

297
Direito das pessoas.
§ 987. Os bens comuns eram todos aqueles que os cônjuges tivessem conjuntamente
adquirido por força dos seus bens próprios. O seu regime seguia o dos bens comuns do
casamento por carta de ametade.
§ 988. O quadro seguinte sintetiza o que acaba de se dizer.
Bens comuns Bens dotais Bens parafernais
Administração e
Administração, sem poder disposição, com
alienar ou obrigar (bens autorização da mulher, Ord.
imóveis), mesmo com a fil.,4,48,pr.; 4,60). Estavam
Imóveis: regra geral autorização da mulher .
1491
entregues ao marido como
(administração e Também se falava, a administrador e procurador
disposição, esta com propósito destes bens, em e não como proprietário.
autorização da mulher, propriedade limitada. A mulher dispunha de ação
Ord. fil.,4,48,pr.) A conservação dos bens para revogar a doação
Móveis: poderes totais dotais era garantida por deles pelo marido sem o
Marido
de disposição, podendo hipoteca de todos os bens seu consentimento.
a mulher pedir a do marido à restituição e Embora carecesse da
revogação da doação por atribuição de privilégio autorização do marido para
depois da separação, creditório à esposa (Lei de propor esta ação, esta
para recuperar a sua 20.06.1774), mesmo autorização podia ser
metade (Ord. fil.,4,64). contra o fisco. suprida pelo juiz (cf. Ord.
fil.,4,48,3).
Por morte do marido, os
bens dotais ficavam para Com a dissolução do
a mulher e para os filhos casamento, voltavam à
propriedade da mulher.
Não tinha quaisquer
Poderes totais de
poderes, nem de
disposição, embora não os
administração, nem de
pudesse obrigar em
disposição
garantia (privilegium sc.
Também não podia
Mulher Velleianum) .
1493
contratar, por força dos
bens comuns, sem Respondia por contratos do
autorização do marido marido, se participasse nos
lucros que daí
(Ord. fil.,4,64 ).
1492

resultassem
1494

3.3.1.3 As arras.
§ 989. Anexo à generalidade – mas não a todos, necessariamente, pois a fixação de
arras era facultativa1495 - dos pactos de dote estava o pacto de arras.
§ 990. As arras1496 não eram, no direito português, o mesmo que no direito comum, em

1491 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...]2,9,14. Podia, porém, alienar os móveis, a que a
interdição do direito romano não se referia.
1492 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2,9,17.

1493 C., 8,55 De revocandi donationibus, 6; C., 8,53 De donationibus, l. 35; v. Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 2,9,15.


1494 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2,9, 18; Ord. fil., 4,60,pr..

1495Álvaro Valasco, Decisiones […], cons., 2, n.11.


1496Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 64 ss.. Importante: Sobre arras, importante,
Álvaro Valasco, Decisiones […], cons. 1 a 3. Distinção em relação às doações propter nuptias, ibid.,

298
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
que, nas palavras de Álvaro Valasco1497, “as arras eram aquilo que é dado pelos que
celebram esponsais em sinal ou penhor de um matrimónio futuro, para a firmeza e
segurança de que o celebrarão”. Daí que, tal como em outros contratos, a falta de
cumprimento da promessa implicasse a perda das arras ou a sua restituição em dobro. Em
Portugal, as arras eram tidas como uma espécie das doação para casamento (donationes ob
matrimonium, donationes matrimonii causa)1498. A explicação das arras era discutida. Parecia
a muitos que provinha da instituição germana da “compra do corpo da mulher” (emptio
puellae) ou do privilégio de a desflorar (Morgengabe, prima pro nocte datum). No séc. XVII,
isto parecia a Valasco ridículo, além de incoerente com o facto de se prometerem também a
viúvas, preferindo a opinião de que se tratava, ou de uma soma oferecida em homenagem à
honra, honestidade ou nobreza da mulher, ou de uma contrapartida do dote, ou de um forma
de o marido garantir uma vida abastada e honesta à mulher, nomeadamente no caso de
viuvez (ibid., n.4). A questão não era apenas histórica, pois podia ter relevo dogmático:
assim, o saber se o não pagamento, total ou parcial, do dote, autorizava a repetição das
arras, ou de uma sua parte. Como a doutrina tendia a responder afirmativamente a esta
questão1499, a ideia de que as arras eram o equivalente do dote ganhava força. Porém, a
desproporção – estabelecida na lei (em Portugal, Ord. fil.,4,47) – entre dote e arras parecia
inutilizar esta ideia, dando força à de que se tratava antes de uma retribuição da honestidade
e lustre da mulher (propter matrimonium, pudicitiam vel honorem), ou mesmo de uma
manifestação de reconhecimento por um dote vultuoso1500.
§ 991. As arras eram constituídas por pacto, mas não podiam exceder a terça do dote
(Ord. fil.,4,47,1)1501, para não se prejudicar os filhos de anteriores casamentos1502.
§ 992. Na constância do matrimónio, os bens de arras eram da mulher, embora
administrados pelo marido e, dissolvido aquele, retornavam ao marido ou seus herdeiros.
3.3.1.4 As doações entre os cônjuges.
§ 993. Embora o direito romano reconhecesse a validade, em geral, dos contratos
onerosos entre os cônjuges, tratava com desconfiança as doações entre eles, porque
suspeitava que qualquer dos dois podia induzir o outro a beneficiá-lo ou, para o mesmo fim,
chantageá-lo com o divórcio (“se não me doas algo, divorcio-me)1503 1504.

cons. 2, ns, 5 ss.; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 9.27.
1497 Álvaro Valasco, Decisiones […], cons., 2, n.1.

1498 Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II,9,37, rubr..

1499 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 3 per totam.

1500 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 3, ns. 5-7. Neste caso de dotes vultuosos, bem
como no caso de a mulher ter um estatuto social muito superior ao marido, as arras poder-se-iam
mesmo instituir, excecionalmente, depois do casamento (ibid., ns. 2 e ss.).
1501 Em Castela, a décima parte, Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 64.

1502 Cf. ainda o decreto de 17.7.1778, que apenas permitia estas liberalidade a fidalgos,

estabelecendo para elas um limite de 8.000 cruzados.


1503 D.24.1.1 (Ulpianus libro 32 ad Sabinum): “Moribus apud nos receptum est, ne inter virum et

uxorem donationes valerent. Hoc autem receptum est, ne mutuo amore invicem spoliarentur
donationibus non temperantes, sed profusa erga se facilitate”; (D.24.1.2, Paulus libro septimo ad
Sabinum): “Ne cesset eis studium liberos potius educendi. Sextus Caecilius et illam causam adiciebat,
quia saepe futurum esset, ut discuterentur matrimonia, si non donaret is qui posset, atque ea ratione
eventurum, ut venalicia essent matrimonia”. (D.24.1.3, Ulpianus libro 32 ad Sabinum): “pr. Haec ratio et

299
Direito das pessoas.
§ 994. Em Portugal, o tema era tratado nas Ordenações (Ord. fil.,4,65), que também
procuravam impedir que, por meio de doações, um dos cônjuges alterasse a seu favor o que
fora convencionado acerca do regime dos bens de um e outro. O princípio era o de que
todas as dotações pelas quais um cônjuge se fizesse mais rico à custa do empobrecimento
do outro eram livremente revogáveis1505, só se consolidando, não sendo entretanto
revogadas, com a morte do doador. Para além disso, consideravam-se revogadas no caso
de nascimento superveniente de filhos, pois se entendia ser provável que a inexistência de
filhos tivesse sido muito relevante na decisão de doar os bens ao parceiro conjugal1506.
§ 995. Estas prevenções eram inúteis no caso de comunhão de bens, pois aí nem
havia bens próprios, nem a doação evitava que os bens doados se comunicassem. No caso
de outros regimes em que existissem bens próprios de cada cônjuge, escapavam ao regime
restritivo da lei as doações em que não houvesse enriquecimento de um dos cônjuges1507.
Era o caso das doações remuneratórias de serviços (obséquios) que um dos cônjuges
tivesse prestado ao outro1508 ou o das doações que só fizessem efeito por morte do doador
(mortis causa) que, para além de serem sempre revogáveis, por serem semelhantes a
testamentos, não produziam nenhum enriquecimento antes da morte do doador.
§ 996. As Ordenações falavam apenas de doações. Mas a doutrina equiparava às
doações todos os pactos de que proviesse um idêntico efeito de alteração do equilíbrio
patrimonial antes estabelecido entre os cônjuges, como as renúncias a favor do outro de
bens a adquirir, as vendas simuladas ou fraudulentas, etc.1509. Também as alterações dos
pactos conjugais podiam entrar aqui; pois se se passasse da comunhão para o regime dotal,
ou deste para aquela, um dos cônjuges podia perder património próprio para o outro. Nestes
casos, a alteração do regime de bens era revogável por qualquer dos cônjuges até à sua
morte, como se se tratasse de uma doação.
§ 997. Pascoal de Melo1510, por influência de autores alemães do usus modernus,
autonomiza o regime dos bens esponsalícios, bens entregues à mulher para seus pequenos
gastos e para o seu sustento na viuvez (apanágio, alimentos, alfinetes). Para outros, são
apenas bens doados, que seguem o regime geral das doações entre cônjuges1511.

oratione imperatoris nostri Antonini Augusti electa est: nam ita ait: “Maiores nostri inter virum et uxorem
donationes prohibuerunt, amorem honestum solis animis aestimantes, famae etiam coniunctorum
consulentes, ne concordia pretio conciliari viderentur neve melior in paupertatem incideret, deterior
ditior fieret”. Cf. também: C.,5,16.
1504 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2,10; Manuel de Almeida e Sousa

(Lobão), Notas […] Melo [...], cit., ao mesmo título, p. 538 ss..
1505 Além disso, deviam ser confirmadas pelo rei, caso ultrapassassem certa soma, nos termos

gerais das doações (insinuação: Ord. fil.,4,62).


1506 Não havendo filhos, nos bens próprios de cada cônjuge sucediam os seus herdeiros (a sua

família). Daí que fosse frequente que, não havendo filhos, a mulher doasse os bens a seu marido, em
virtude da solidariedade conjugal. Havendo filhos do casal, esta doação não fazia sentido.
1507 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II,10,sec. II a 4, p. 542 ss

1508 Por exemplo, cuidando dele numa doença grave ou administrando os bens comuns ou os

bens próprios durante uma ausência.


1509 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II,10,4,1,sec. I., p. 539.

1510 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2,9,35.

1511 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II,9,35, ps. 531 ss..

300
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
3.3.2 Tutelas e curatelas.
§ 998. Relacionado com as relações patrimoniais na família estavam as tutelas e as
curatelas, que estabeleciam mecanismos de supervisão sobre pessoas atingidas por
diminuições da sua capacidade jurídicas (capitis deminutiones), mas que não pudessem
contar com a guia e supervisão paternas.
3.3.2.1 Das tutelas.
§ 999. A sociedade de Antigo Regime era uma sociedade de vidas breves, pois era
curta a expectativa de vida. O estado de orfandade era frequente e suscitava o cuidado do
poder. Por isso é que os reis colocavam frequentemente os órfãos e as viúvas sob a especial
proteção da respublica, criando magistrados especialmente incumbidos de cuidar dos seus
interesses e regulando a sua tutela.
§ 1000. A tutela era, por isso, o dever que a república impunha a alguma pessoa -
chamada tutor (ou "guardador", nos textos portugueses mais antigos e nas Partidas) - de
fazer as vezes do pai falecido ou incapaz no cuidado dos filhos, provendo a sua educação,
sustento e administração dos seus bens1512. Trata-se, por isso, de um encargo público,
semelhante a um ofício (D., 40,15,2,1: "publicam tutelam"), pelo que devia ser providenciado
e supervisionada por um magistrado ("juiz dos órfãos") e, em princípio, não admitia
escusas1513. A tutela devia ser atribuída (datio tutelae), de acordo com o direito da natureza,
aos parentes consanguíneos dos órfãos, pois eram tidos como partilhando a mesma carne e
o mesmo corpo. Esse era o fundamento da tutela legítima e do regime do seu deferimento.
§ 1001. A principal fonte de direito romano era I.,1,201514. As principais fontes de direito
pátrio eram as ordenações Ord. fil.,1,88,49 e Ord. fil.,4,1021515.
§ 1002. Estavam sob tutela os órfão impúberes (até 14 anos); os púberes (de 14 até 25
anos) estavam sob curatela (cf. Ord. fil.,4,104,6). Excecionalmente, podia ser dada tutela em
vida do pai: se ele estivesse ausente em regiões longínquas, se tivesse endoidecido ou se se
tivesse casado de novo1516.
§ 1003. A tutela podia ser legítima (i.e., atribuída pela lei [pelo direito]), testamentária,
estabelecida em testamento pelo pai, pelo avô, pela mãe ou por um terceiro que instituísse o

1512 “Tutela est vis, ac potestas ad tuendum eum, qui propter aetatem suam sponte se tueri non

potest [...] et est triplex nma alia est legitima, alia testamentaria, alia dativa”, António Cardoso do
Amaral, Liber […], v. “Tutela”, n. 1.
1513 "... officum publicum est administrare tutelam, qua propter datur invitus", António Cardoso do

Amaral, Liber […], v. “Tutela”, n. 4.


1514 “Pr.: Si cui nullus omnino tutor fuerat, ei dabatur in urbe quidem Roma a praetore urbano et

maiore parte tribunorum plebis tutor ex lege Atilia, in provinciis vero a praesidibus provinciarum ex lege
Iulia et Titia"; "4. Sed hoc iure utimur, ut Romae quidem praefectus urbis vel praetor secundum suam
iurisdictionem, in provinciis autem praesides ex inquisitione tutores crearent, vel magistratus iussu
praesidum, si non sint magnae pupilli facultates."; "6: Impuberes autem in tutela esse naturali iure
conveniens est, ut is qui perfectae aetatis non sit alterius tutela regatur”. “7: Cum igitur pupillorum
pupillarumque tutores negotia gerunt, post pubertatem tutelae iudicio rationem reddunt".
1515 Principal literatura portuguesa: Simão de Oliveira da Costa, De munere provisori […], cit.; Diogo

Guerreiro Camacho de Aboim, De munere judicis orphanorum […], 1cit.; António de Paiva e Pona,
Addicçoens à orphanologia pratica […], cit.
1516 v. Ord. fil.,1,88,6; Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 30.

301
Direito das pessoas.
pupilo como herdeiro, ou dativa, atribuída por um magistrado competente (Ord. fil.,4,102).
§ 1004. O pai podia (e deveria, segundo alguns) dispor um tutor para os seus filhos, ou
no testamento (tutela testamentária), ou por pacto com o escolhido, para fazer efeito depois
da morte do pai. A tutela testamentária era a mais frequente1517. A tutela podia ainda ser
estabelecida, pelo avô paterno (tendo o pai falecido sem nomear tutor), pela mãe (nas
mesmas circunstâncias) ou até por um estranho que instituísse o pupilo como herdeiro. A
tutela dada pelo pai ou pelo avô, era a preferente e fazia efeitos imediatos, sem outras
cautelas ou formalidades (fiança, inquirição) (Ord. fil.,4,102,1), a não ser o inventário judicial
dos bens dos pupilos (Ord. fil.,4,102,pr.). A tutela instituída pela mãe, pelo pai natural ou por
um estranho careciam e confirmação por sentença do juiz dos órfãos (eventualmente do juiz
ordinário, quando o inventário corria perante ele), inquiridas as qualidades do nomeado (Ord.
fil.,4,102,2).
§ 1005. No caso de não haver uma tutela voluntária (pactícia ou testamentária), o direito
chamava à tutela (legítima) os parentes e os patronos (do pai escravo ou liberto, no que
respeita aos seus filhos livres). Dos parentes, os primeiros chamados eram a mãe1518 ou o
avô, cumpridos certos requisitos estabelecidos pela lei (Ord. fil.,4,102,3, Ord. fil.,1,62,37:
nomeadamente, a renúncia a segundas núpcias e ao benefício do Senatusconsulto
Velleiano)1519. Seguiam-se os restantes parentes, pela ordem da sucessão e da proximidade
de grau1520.
§ 1006. Na falta de tutor testamentário ou legítimo, a tutela deferia-se ao tutor dativo (ou,
na linguagem do direito romano, "tutor Atialiano"), dado oficiosamente pelo juiz (dos órfãos)
do lugar de domicílio da família (i.e., do pai) (Ord. fil.,4,102,pr. e 5).
§ 1007. As Ordenações excluíam do ofício de tutor os menores, os furiosos, os pródigos,
os pobres, os escravos, os religiosos, as mulheres (em suma, os que não gozavam de
capacidade jurídica para exercer múnus públicos) (Ord. fil.,4,102, 1 e 3), bem como os
inimigos do pupilo1521. Os admitidos deviam, além disso, ser capazes de administrar efetiva e
competentemente os bens do menor, o que prejudicava a capacidade dos filhos-família e dos
ausentes. Não eram aponíveis termos na instituição da tutela; mas já se admitiam condições,
desde que possíveis1522.
§ 1008. Os tutores, salvo os dados pelo pai e mãe ou os dados oficiosamente pelo juiz,
deviam prestar fiança pelos bens que iriam administrar, exceto se possuírem bens que
garantam suficientemente os pupilos contra os seus atos de má gestão (Ord. fil.,4,102,5).1523.

1517 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2,11,5 e 6.


1518 Por direito comum, a tutela não podia recair em mulheres ("... est tamen officium virile, quo
mulier fungi non potest", António Cardoso do Amaral, Liber […], v. “Tutela”, n. 5). No entanto,
excetuavam-se a mãe e a avó, ibid., n. 6.
1519 Se o valor dos bens ultrapassasse certa quantia, a confirmação da tutela materna devia ser

feita pelo Desembargo do Paço, Ord. fil.,1,37, in fine.


1520 António Cardoso do Amaral, Liber […], v. “Tutela”, n. 2.

1521 Outras interdições, por incompatibilidade de interesses em Manual de Almeida e Sousa

(Lobão), Notas [...] a Melo,II,9,11,3 ss., p. 568 ss..


1522 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2,11,9.

1523 Todos careciam de confirmação do juiz e de alguma inquirição sobre a sua suficiência. A

sequência de atos prévios à entrada na administração dos bens do pupilo era: (i) mandato do juiz; (ii)
inventário; (iii) juramento do tutor; (iv) prestação de fiança; (v) juramento de zelar bem o património do

302
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 1009. Os juristas diziam que as atribuições do tutor (officum tutoris) diziam respeito à
autoridade sobre o pupilo e à administração dos seus bens1524. Na sua autoridade cabia a
confirmação dos atos do pupilo (D.,26,8, De auctorite et consensu tutorum; e I.,1,21, De
auctoritate tutorum, I.,1,21); na administração, o governo da pessoa e bens do pupilo: a sua
educação, conforme as suas posses e a tradição da família, a sua defesa (nomeadamente,
judicial: Ord. fil.,1,88 per totum; Ord. fil.,3,41,8), e a administração prudente dos seus bens,
como a faria um bom pai de família. As Ordenações exigiam, porém, a confirmação do juiz
dos órfãos para os atos de maior importância, como as vendas, os empréstimos de dinheiro,
o reconhecimento de dívidas, os esponsais e o casamento (Ord. fil.,1,81, max. 29)1525. Os
tutores deviam prestar contas, periodicamente, da sua administração e eram responsáveis
pelos danos causados nos bens dos menores, por dolo ou negligência (Ord. fil.,3,41; tal
como os seus fiadores, Ord. fil.,4,102,5)1526, podendo ser removidas da tutela por isso1527. Os
seus bens ficavam obrigados à reparação dos prejuízos causados aos pupilos1528.
§ 1010. Como a tutela era um encargo público, estavam reguladas as causas de escusa:
eram escusos os pais de 5 ou mais filhos, os desembargadores, os administradores de
rendas reais, os de mais de 70 anos, os doentes incapazes de administrar os seus próprios
bens, os nobres e os doutores, bem como todos a quem esse privilégio fosse especialmente
concedido (Ord. fil.,4,104)1529.
§ 1011. A tutela extinguia-se quando o pupilo atingia a maioridade. Para além disso,
extinguia-se por condição aposta na tutela dativa, pelo decurso do prazo de dois anos no
qual os estranhos eram obrigados a assumi-la (Ord. fil.,4,102,9), por incapacidade
superveniente do tutor, e por outras causas semelhantes1530 1531.
3.3.2.2 Das curatelas.
§ 1012. À tutela dos menores púberes (nos rapazes, mais de 14 anos; nas raparigas,
mais de 12 anos) era dado o nome de curatela. A distinção terminológica vinha do direito
romano, mas não se refletia em diferenças de regime, quando dizia respeito a órfãos.
§ 1013. A curatela só era uma figura autónoma quando se dava a não órfãos que
fossem incapazes.
§ 1014. Assim, existia para os dementes (furiosos, "sandeus", desassisados,
desmemoriados) (Ord. fil.,1,103), embora estes pudessem administrar os seus bens nos
intervalos lúcidos (Ord. fil.,1,103,3; v. cap. 3.1.10). O regime estendia-se aos surdos e aos

pupilo.
1524 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2,11,15.
1525 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], v. “Tutela”, ns. 16-22; Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis, cit., 2,11,15. Sobre os juízes dos órfãos, António Vanguerve Cabral, Pratica
judicial [...], cit., p. 1, cap. 48. V. Ord. fil.,1,88 (principalmente inventário e cura dos seus bens).
1526 Por culpa grave ou leve e até por caso fortuito, António Cardoso do Amaral, Liber […], v.

“Tutela”, n. 13.
1527 Os juízes dos órfãos respondiam por culpas na supervisão das tutelas, Ord. fil.,1,88, 3; ibid.,

§§ 7, 16,18 e 24.
1528 António Cardoso do Amaral, Liber […], v. “Tutela”, n. 7.

1529 António Cardoso do Amaral, Liber […], v. “Tutela”, ns. 28 ss..

1530 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2,11,19.

1531 Sobre a tutela dos reis, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2,11,22.

303
Direito das pessoas.
mudos; mas não aos cegos, que, embora não vissem, eram capazes da faculdade de
comunicar1532. A curatela era legítima e recaía sobre os parentes mais próximos, por ordem
de grau; nos casados, cabia à esposa1533.
§ 1015. A curatela também existia para os pródigos, ou seja, para aqueles que
delapidassem sem razão o seu património (Ord. fil.,4,103,6: "desrazoadamente gasta, e
destrói a sua fazenda"; v. cap. 3.1.10.1), desde que assim fosse judicialmente declarados1534
(sobre o jogador, Ord. fil.,5,66,7). A viúva pródiga tinha um regime especial, que se traduzia
em que não lhe era dado um curador, em honra de seu falecido marido e de sua linhagem,
mas se devia comunicar esse facto ao rei (Ord. fil.,4,107)1535.
§ 1016. Aos ausentes e cativos com paradeiro desconhecido era dado um curador pelo
juiz dos órfãos, pelo provedor da comarca ou pelo Desembargo do Paço, consoante a
importância dos bens (Ord. fil.,1,90; 1,60; Regimento do Desembargo do Paço, § 50).
§ 1017. À herança jacente sobre que impendia litígio podia o juiz da causa dar um
curador1536. O mesmo acontecia com a massa falida1537 e com a igreja vacante. Também ao
filho no ventre da mãe podia ser dado um curador, que cuidasse do seu património futuro, no
caso de ele vir a nascer1538.

1532 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2,12,7.


1533 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2,12,7.
1534 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2,12,9.

1535 Este regime procurava combinar dois aspetos da proteção da honra do marido falecido: por

um lado, evitar que a conduta desregrada da sua viúva ofendesse a sua memória; mas, por outro, não
pôr nas mãos de um estranho a autoridade que ele em vida tinha sobre a mulher.
1536 Cf. Manual de Almeida e Sousa (Lobão), Notas [...] a Melo, 2,12,12, sec. 2, p. 631.

1537 Cf. Manual de Almeida e Sousa (Lobão), Notas [...] a Melo, 2,12,12, sec. 3, p. 633.

1538 Cf. Manual de Almeida e Sousa (Lobão), Notas [...] a Melo, 2,12,12, sec. 4, p. 634.

304
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
4 Direito das coisas
4.1 O conceito de “coisa”
§ 1019. Se a qualidade de pessoa e o seu estatuto civil e político eram o produto de uma
certa forma de imaginar o mundo humano (v. cap. 3.1), também o mundo das coisas (res) e
as suas relações com o mundo dos homens (as situações reais) o eram.
§ 1020. Vamos procurar reconstituir esse imaginário e as suas mutações,
inspecionando, quer o conceito de coisa, quer os conceitos por meio dos quais o direito
modela as relações das pessoas com as coisas. Com isto procuramos atingir, por meio desta
“interpretação densa” das construções jurídicas, a “ontologia espontânea” da época.
4.1.1 As coisas na sistematização tradicional das matérias jurídicas.
§ 1021. A ideia de que há um “direito das coisas” aparecia, com grande evidência, num
texto muito conhecido das Institutiones de Justiniano, que recolhia uma tradição anterior de
sistematizar as matérias1539. Este modelo de sistematização passa para o direito comum. No
entanto, se nos detivermos um pouco sobre o que o direito comum considera uma coisa,
logo veremos que o mundo dos objetos jurídicos é um estranho mundo, que pouco tem a ver
com o mundo dos “objetos” segundo o nosso senso comum.
§ 1022. “Coisa é um nome geral”, escreve António Cardoso do Amaral -
“compreendendo direitos, contratos e todas as obrigações [...]; trata-se de uma definição
perigosa de coisa, pois, devendo a definição ser a demonstração da substância do definido,
no caso presente se verificam neste muitas variações, de acordo com as circunstâncias dos
negócios”1540. Este uso muito genérico do vocábulo “coisa” ocorre também nas Institutiones
de Gaius, quando ele se refere às fontes das obrigações1541 e, entre elas, ao lado do
consenso, da recitação de palavras ou da redação de um escrito, enumera “as coisas”,
significando as circunstâncias elas mesmo, independentemente de qualquer consenso,
recitação ou escrito. Porém, neste contexto da sistematização das matérias jurídicas, o
sentido de “coisa” tinha que ser mais restrito. A fixação deste sentido era uma questão
tormentosa entre os autores. Nuns apontamentos manuscritos de lições de direito em
Coimbra, dos anos 30 do séc. XIX1542, o autor distingue um significado filosófico (“tudo o que
existe ou he possivel existir, ou seja substancia ou modo”), de um outro jurídico, útil para
entender a sistematização das matérias jurídicas adotada no modelos da Institutiones. Esse
sentido mais restrito é dado por exclusão (“No sentido jurídico toma-se cousa por tudo aquillo
que não he pessoa nem ação”, pg. 2 vº), embora acabe por resultar numa equiparação de
coisa a todo quanto se relaciona com a fruição de uma utilidade, tendo, por isso, um reflexo

1539 Cf. I.,1,2,12: “12. Omne autem ius, quo utimur, vel ad personas pertinet vel ad res vel ad actiones. ac
prius de personis videamus. Nam parum est ius nosse, si personae, quarum causa statutum est, ignorentur”.
Corresponde a I., 8, das Institutiones Gaii (http://www.thelatinlibrary.com/gaius1.html#8).
1540 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Res”, n. 1.

1541 Inst. Gaii, 3, 89 : “ Et prius videamus de his, quae ex contractu nascuntur. Harum autem

quattuor genera sunt: aut enim re contrahitur obligatio aut uerbis aut litteris aut consensu” (primeiro
vejamos aquelas [obrigações] que nascem de contrato. Destas, há quatro géneros. Pois a obrigação ou
se cria pela situação (pela coisa, re), ou por palavras, ou por escritos, ou por consenso).
1542 Exemplar na minha biblioteca; na anotação a Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit.,

3,1,1. O texto manuscrito deve ser dos meados da década de 1830, pois contém referências a
legislação de 1834.

305
Direito das coisas
patrimonial (“e por isso entende-se por cousa tudo aquilo que he distinto de pessoas e
acções e que nos pode prestar alguma utilidade.// Tomada pois neste sentido significa os
bens que constituem o nosso património e assim compreende os direitos e ações por que
estas também pertencem ao património e nos são uteis. Isto se prova da L. 41, De verb.
signif. [D.,50,16] e L. de Junho de 1774, § 27, que manda que não tendo o devedor mais
bens se executem as suas ações cativas, donde he certo que estas constituem parte do seu
património”, pg. 2 vº)1543.
§ 1023. É claro que, se se adotasse este conceito alargado de coisas, mal se
compreendia a existência de um tratamento separado das ações no livro terceiro. Pascoal de
Melo nota isto e esclarece que, no seu manual, toma as ações não como coisas incorpóreas,
mas como meios de prosseguir em juízo os direitos de cada um e que é apenas neste
sentido que as ações constituíam um assunto autónomo1544. Este esclarecimento também
parece significativo de um deslocamento das ações do centro do direito para uma lugar
“adjetivo”: as ações tendem a perder a sua autonomia de coisas que têm um sentido
(patrimonial) próprio (deixam de ser “direitos substantivos”), para serem encaradas apenas
como meios de realizar vantagens patrimoniais (“direitos adjetivos”) (v. cap. 7.1.2).
4.1.2 A “coisifcação” das relações sociais e políticas.
§ 1024. A literatura mais antiga1545 documenta a quase universalidade do conceito de
coisa. Ela compreenderia uma série de institutos com significado patrimonial, como direitos e
ações, tanto sobre imóveis como sobre móveis (n. 9), a herança (n. 2), o dinheiro (n. 4), os
escravos (n. 5); a farinha, os frutos, o vinho e coisas semelhantes (i.e., os frutos, ns. 6 e 7).
Mas coisas são ainda os factos (“Facta quoque continentur”, n. 3), as partes das coisas (n.
8), ou mesmo as pessoas (livres) de um mosteiro, enquanto sujeitas a alguma jurisdição ou
poder (n. 10).
§ 1025. Em suma, o direito comum atribui generosamente o estatuto de coisas e o
regime que titulava os direito sobre elas a direitos que hoje se configuram como pretensões
em relação a pessoas, nomeadamente: (i) os direitos políticos (ou iurisdictio, regalia, direitos
feudais, direitos tributários); (ii) os benefícios e ofícios; (iii) o direito de eleger, nomear ou
apresentar (um magistrado, um beneficiado ou um oficial). Tudo isto equivaleu a conceber,
ao lado de direitos reais sobre coisas materiais (como na propriedade ou no usufruto),
direitos reais sobre direitos (como, por exemplo, no caso se invocar a posse de direitos a
receber um direito banal)1546. Ou seja, a generalidade das prerrogativas políticas (poderes de
mando, de tributação, de nomeação de oficiais) era considerada como bens in patrimonio.

1543 Corresponde à noção de Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,1,1

(“quaecumque bona nostra et patrimonium augent”).


1544 No ms. citado, a ideia de Pascoal de Melo aparece mal traduzida, com um sentido

exatamente oposto: “He porém de advertir que aqui as ações não se tomam como cousas incorpóreas,
porque neste sentido pertencem ao 3º objecto do direito, mas se toma(m) como meios de prosseguir
em juízo aquilo que nos pertence” (corresponde ao texto final do § 1, mas traduzido ao contrário “sed
tanquam medium jus nostrum in judicio prossequendi … et hoc sensu ad tertium juris objectum
referentur”, Inst., 3,1,1”.
1545 Usamos, como exemplo, Agostinho Barbosa, Tractatus varii […]. Appellativa., cit., s.v. ”Res”.

1546 Como, neste último caso, não existe um substrato material sobre que o direito real se exerça,

a posse é feita equivaler a um uso longo de exercer o direito sobre que a posse incide; cf. Helmut
Coing, Europäisches Privatrecht […], cit., I., 343.

306
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
Daí que estas prerrogativas tivessem um regime semelhante aos bens patrimoniais em
sentido mais estrito (ou seja, às coisas materiais), podendo ser vendidas, trocadas e,
sobretudo, reivindicadas e defendidas de esbulhos com auxílio dos remédios possessórios.
Substancialmente, estes direitos sobre coisas imateriais eram do mesmo tipo dos que
incidiam sobre objetos físicos. A sua diferenciação surgia, apenas, quando ao tipo de ações
aptas a os garantir. Umas como que se dirigiam à coisa, em si mesma, independentemente
de quem a detivesse, outras dirigiam-se a uma pessoa sobre quem recaísse especialmente a
obrigação de a tornar disponível para o titular do direito sobre ela. As primeiras eram ações
reais, supondo um direito direto sobre a coisa (in re), as segundas eram ações pessoais,
dirigidas a uma certa pessoa, a quem particularmente incumbisse a satisfação do titular do
direito sobre a coisa.
§ 1026. Isto induz a pensar que os direito sobre as coisas (direitos reais) não tinham a
unidade estrutural que ganharão na dogmática contemporânea, e que permite uma distinção
nítida entre direitos reais e direitos obrigacionais. Eram realmente apenas direitos relativos a
coisas, acerca de coisas, visando coisas, uns exercitáveis diretamente sobre elas, outros
apenas por meio de pretensões dirigidas a pessoas.
§ 1027. Em todo o caso, este universo de direitos relativos a coisas era atraído pela
regulação e proteção atribuídas pelo direito ao domínio das coisas físicas, nomeadamente da
terra. Por isso, há uma tendência para estender os meios de proteção da propriedade (e
posse) sobre coisas físicas às coisas imateriais. Isto acontecia com a reivindicação, como
pretensão de declaração geral de um direito ou estatuto, sucessivamente estendida à
proteção de direitos simbólicos, como os estados de filho, de livre (VINDICATIO libertatis), de
senhor direto da terra (vindicatio colonum), de nobre; à jurisdição, à precedência social,
como se tudo isto fossem coisas materiais in património.
§ 1028. Esta especial proteção de que gozavam os direitos sobre as coisas físicas
consistia, nomeadamente, em se permitir a sua reivindicação judicial em relação a qualquer
pessoa (a restituição ao titular de um direito real sobre a coisa podia ser imposta a todos); o
reivindicante não tinha que provar qualquer obrigação especial do detentor a restituir, porque
a obrigação que recaía sobre este era geral e comum, impondo-se a toda e qualquer pessoa.
É isto que quer dizer a oposição, estabelecida pelos canonistas, entre um ius in re (um direito
absoluto, erga omnes, sobre a coisa) e um ius ad rem (um direito à coisa), pois este último
recaía apenas sobre certa pessoa (devedor) que, por um vínculo jurídico especial de
natureza pessoal e relativa (v. g., um contrato), estava obrigada a entregá-la a alguém
(credor).
§ 1029. Outra manifestação desta especial proteção que o direito concedia às “situações
reais” era a eficácia da defesa da posse de uma coisa, ou seja, a energia com que o direito
defendia a situação de uso de uma coisa pelo seu detentor estável e contínuo,
independentemente de qualquer título justificativo, desencadeando meios muito eficazes
contra qualquer esbulho, violento ou não, do possuidor e obrigando o esbulhador a restituir
(reivindicatio) e a abster-se de qualquer perturbação da posse, enquanto não demonstrasse
a sua própria legitimidade para querer usar da coisa (interdicta)1547. Ora o direito comum
alargou muito esta possibilidade de defesa mais enérgica de direitos. Atribuiu-a, como já o
fazia o direito romano, aos proprietários e usufrutuários. Mas autorizou também titulares de

1547 Sobre os meios de defesa próprios do direito real no período do direito comum, v. cap. 2.5.6;

Helmut Coing, Europäisches Privatrecht […], cit., I., 341 ss..

307
Direito das coisas
outros direitos a usarem da reivindicação e a protegerem provisoriamente as suas posses
com os remédios possessórios (interdicta)1548.
§ 1030. A eficácia destes meios de defesa era enorme; o que muito contribuiu para
garantir o pluralismo de direitos típico da sociedade de Antigo Regime, pois qualquer titular
de direitos políticos podia facilmente garanti-los, como direitos sobre coisas concretas
incorporadas no seu património, quer contra os vassalos, quer contra os concorrentes ou
mesmo contra os suseranos. É isto que permite caracterizar adequadamente o sistema
jurídico-político medieval e primo-moderno como um “Estado de direitos”
(Rechtsbewährungsstaat). De facto, os direitos de resistência dos particulares em relação ao
príncipe configuram-se como direitos de carácter privado, acionáveis perante os tribunais
comuns. Mas, para além disso, as pretensões dos súbditos em relação ao príncipe são
verdadeiros direitos dotados de tutela contenciosa, e não apenas meras pretensões ou
súplicas, deixadas ao arbítrio da graça do monarca, nem direitos políticos, acionáveis apenas
por meios “políticos”, mas desprovidos de uma suficiente garantia no plano da jurisdição
comum.
4.1.3 As coisas como entidades conceptuais, antes que empíricas.
§ 1031. O alargamento do conceito de coisa foi possível porque as coisas não
constituíam entidades fixas e estáveis, dados a se stante, ligados a uma qualquer realidade
material. São antes entidades móveis e fluidas1549, cuja existência e natureza dependem das
circunstâncias dos negócios jurídicos que as nomeiam e das próprias construções dos
juristas.
§ 1032. Desde logo, os juristas dizem que o surgir e o desaparecimento das coisas é um
facto do direito e não um facto da Natureza. De facto, há coisas que só existem no mundo do
direito, como as chamadas “universalidades” (universitates), ou seja, coisas (como um
rebanho, uma exploração agrícola [fundus instructus] ou uma herança) integradas por
distintos objetos materiais (ou mesmo por objetos materiais e imateriais, como direitos,
créditos, etc.), a que só o direito dava entidade (ou unidade). Em segundo lugar, havia coisas
que carecem de qualquer suporte material, como os direitos, que surgiam e se extinguiam no
puro campo do discurso jurídico (v.g., os direitos como coisas, a que nos referimos). Em
terceiro lugar, havia coisas às quais o direito mudava a natureza, ficcionando uma natureza
que não era a “natural”, como, por exemplo, quando se considerava uma renda perpétua
como uma coisa imóvel, sendo que, naturalmente, não há nada mais móvel do que o
dinheiro1550. Por fim, as coisas eram passíveis de classificações jurídicas diferentes e
incompatíveis entre si, de acordo com o ponto de vista a partir do qual fossem encaradas
pelo direito: coisas tanto podiam ser o todo como cada uma das suas partes1551: uma cabra
podia ser parte de uma coisa - o rebanho -, uma coisa em si mesma, ou outra coisa em si
mesma, mas com características diferentes, depois de morta1552.

1548 Cf. Helmut Coing, Europäisches Privatrecht […], cit., 342 ss.
1549 “Res de facili revertitur ad suam naturam”,. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.. cons. 112, n.
31; “Varietate temporum variatur res”, Diogo Marchão Themudo, Decisiones […], cit., dec. 3, n. 15.
1550 V. Ord. fil.,3,47, pr.

Agostinho Barbosa, Tractatus varii […], Appellativa […], cit., s.v. “Res”, n. 8.
1551

1552Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Res”, addtio (“res eadem potest
secundum diversos respectos diverso jure censeri”; ed. Conimbricae, Franciscum de Olyveira, 1740, II,

308
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 1033. Este universo incerto e flutuante das coisas jurídicas abrangia, porém, muito
mais do que objetos externos do mundo empírico. Isto já se verificou na definição dada por
António Cardoso do Amaral. A inclusão de pessoas entre as coisas suscita alguns
comentários.
4.1.4 Pessoas e coisas.
§ 1034. Como vimos, as pessoas não estavam fora do universo das coisas (v. § 650).
Mesmo no sentido mais estrito de que também as pessoas podiam proporcionar utilidades
integráveis num património.
§ 1035. O caso mais evidente – mas não o único – de encarar pessoas como fontes de
utilidades patrimoniais (como coisas) era o dos escravos.
§ 1036. A questão de saber se os homens podiam ser objeto de relações jurídicas
confundia-se com a questão da legitimidade da escravatura. Para os juristas do direito
comum, a escravatura não era natural, pois, por natureza, todos os homens nasciam
livres1553. Mas, como explicava S. Tomás, que uma coisa seja natural pode querer dizer
apenas que, sem que intercedesse uma causa suplementar, essa coisa tinha, por defeito,
certo estatuto ou qualidades, pelo que se presumia, salvo prova em contrário, que esse fosse
o seu estatuto. Era neste sentido que também se dizia que um prédio era naturalmente livre
ou alodial, sendo necessário fazer a prova de que sobre ele recaísse algum ónus (v.g., fosse
tributário ou enfitêutico)1554. Não obstante, ou por causa do pecado original ou por razões
ligadas à conveniência da vida em sociedade, o direito humano criara a escravatura,
tomando uns homens “coisas” de outros1555,1556.
§ 1037. Porém, a coisificação de pessoas ultrapassava a questão da escravatura, pois
certas utilidades integradas num património eram constituídas por factos pessoais, por
concretas ações humanas. As obrigações de trabalhar, de obedecer, de se sujeitar ao
mando, à jurisdição à direção são exemplos dessas coisas que são factos de pessoas. Por
isso se dizia que a coisa mosteiro1557 compreendia o conglomerado de poderes sobre as
coisas e as pessoas – trabalhadores, criados, foreiros, súbditos jurisdicionais, monges -
desse mosteiro.
§ 1038. Esta como que indistinção entre pessoas e coisas correspondia a uma visão do

363.2.
1553 D.1, 5, 4; S. Tomás, Summa Theol., 1a.2ae, qu. 94, 5 ad 3.
1554 “Res omnia praesumitur libera, nisi probetur tributaria”, António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., s.v. “Res”, n. 4; adição ao anterior, ed. Conimbricae, Franciscum de Oliveira, II, p. 363 col. 2.
1555 Os teólogos dizem que esta “coisificação” dos homens só se dá secundum corpus, pois a

liberdade se mantém sempre secundum mentem (S. Tomás, Summa theologica, 2-2, qu. 104, 5c ad 2).
Esta distinção, que ocorre nos canonistas a propósito de outras assuntos, parece ter sido fundamental
para uma redefinição da distinção entre as pessoas - providas de uma dimensão interna, inatingível por
atos externos - e as coisas - reduzidas à sua dimensão exterior e sensitiva. Cf. R. H. Helmholz, The
spirit of classical canon law […], cit., 76 (escravos e gado [chattel]).
1556 Alguns teólogos juristas consideram a escravatura, em certos casos, como um instituto de

direito natural, ligando-a a uma desigualdade natural dos homens, dos quais uns teriam engenho para
mandar e outros, em contrapartida, mais robustez física, para servir (cf., v. g., Domingo de Soto,
Tractatus [...], cit., IV, 2, 2).
1557 Agostinho Barbosa, Tractatus varii […] Appellativa […], s.v., “Res”, n. 10.

309
Direito das coisas
mundo típica do período medieval e primo-moderno. Na mundividência da época, os homens
e as mulheres, os restantes seres vivos e os seres inanimados integravam-se diferentemente
na ordem da Criação. Cada qual tinha aí um lugar e, decerto, o lugar do homem era mais
nobre do que o das restantes criaturas. Mas, vistas as coisas de outro ponto de vista, o que
existia era uma pluralidade de condições ou estatutos naturais das criaturas, que fixavam os
direitos e os deveres de cada uma delas – desde os anjos à mais humilde das florzinha - e
que não permitiam distinções qualitativas decisivas (como a distinção radical entre pessoas e
coisas), tanto mais que, mesmo a máxima função de servir a Deus, era desempenhada, de
acordo com palavras das Escrituras, tantos pelos anjos e arcanjos como pelos humildes lírios
dos campos (Mateus,6,28) ou pelas pedras da calçada (Lucas,19,40). Pessoas, animais,
plantas e seres inanimados eram, em certo sentido, todos criaturas, comandadas por uma
ordem natural da criação. Só a hipervalorização da capacidade humana de entender e de se
auto determinar, típica do racionalismo e voluntarismo modernos, é que traçará fronteiras
decisivas entre o mundo dos homens e o mundo dos seres inanimados, atribuindo aos
primeiros a prerrogativa de criar intencionalmente efeitos de direito e negando essa
capacidade aos segundos. O pensamento jurídico dos grandes mestres do direito comum
estava, assim, dominado pela ideia de uma grande ordem universal, da qual faziam parte
homens e coisas, cooperando uns e outros, de acordo com as respetivas naturezas, numa
estrutura finalista orientada para o bem comum. Nesta ordem, tudo tinha uma função, uma
utilidade. As coisas tinham-nas também. E estas funções encaixavam-se umas nas outras,
serviam-se mutuamente, numa hierarquia de bens, terrenos ou sobrenaturais, que se
rematava no sumo bem sobrenatural que era o louvor de Deus.
§ 1039. A esta ordem natural das utilidades (utilidades de pessoas, utilidades de corpos,
utilidades de coisas) correspondia, da parte dos beneficiários dessas utilidades, uma ordem
de “necessidades” (affectiones, amores) que criava nos usuários uma inclinação para as
disfrutar. Se essas inclinações eram conformes à razão mereciam o reconhecimento do
direito. A estes “desejos racionais”, a estas faculdades legítimas de gozo, chamava o direito
domínio. O domínio era, portanto, “o poder ou a faculdade reconhecido a alguém de se
apoderar das coisas, pondo-as à sua disposição e uso lícito, segundo as leis estabelecidas
conforme à razão”1558. As situações reais reconhecidas e protegidas pelo direito
reproduziam, assim, a ordem das utilidades e os estímulos de gozo que esta ordem
despertava nos sujeitos.
§ 1040. Neste universo ordenado das necessidades e das utilidades, as coisas não eram
essencialmente diferentes das pessoas. Algumas coisas necessitavam de outras (v. g., os
animais do pasto, o prédio dominante, do prédio serviente [v. cap. 4.3.4), algumas pessoas
necessitavam de outras (v. g., o senhor dos vassalos), algumas coisas necessitavam de
pessoas (v. g., a terras, dos servos adscritícios) e, muito geralmente, as pessoas
necessitavam de coisas. A esta cadeia das necessidades correspondia, em negativo, uma
cadeia das utilidades. Daí que o conceito de domínio, como faculdade de uso, fosse muito
geral, abrangendo tanto vários direitos de gozo sobre coisas (propriedade, usufruto,
hipoteca, servidões, etc.), como direitos sobre pessoas (nomeadamente a jurisdição). O
próprio poder de Deus sobre o mundo podia ser configurado como domínio: ou Deus não
fosse o Dominus mundi.
§ 1041. Domingo de Soto dá conta desta potencial universalidade do conceito de

1558 cf. Domingo de Soto, Tractatus [...], cit., IV, 1, 1 [280].

310
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
domínio1559: “Pode, efetivamente, alegar-se que, a seu modo, também os animais brutos têm
domínio, por exemplo, sobre a erva, que lhes foi concedida para seu sustento, como se lê no
Génesis. E até parece que a rainha das abelhas tem domínio sobre o seu enxame; e entre
as gralhas, parece que a rainha das demais dirige o bando. E entre as feras parece que é o
ferocíssimo leão que domina sobre as demais; e o gavião parece que exerce o seu domínio
sobre as infelizes aves. Em segundo lugar, outro tanto se pode dizer das coisas inanimadas,
as quais têm o domínio sobre este mundo sublunar, derramando sobre ele o calor e a
energia (virtus) de que este se sustém e desenvolve [...]. E por isto se lê no Génesis, I., que
o Sol foi criado para que presida ao dia e a Lua para presidir à noite”1560.
§ 1042. É desta pluralidade de domínios que dá conta a literatura do direito comum
clássico. Baldo de Ubaldis, o célebre jurista perugino do século XIV, escreve: “Um é o
domínio que se diz propriedade e este é o domínio direto. Outro é o domínio que se diz útil e
este não é, a bem dizer, propriedade, antes estando sujeito à propriedade, ou porque lhe é
subalterno, como no caso do domínio de hipoteca, ou o contraria, como no caso do domínio
do prescribente. Ainda se fala, de forma mais lata, de domínio, a propósito do domínio de
usufruto ou do domínio de qualquer servidão. Também os que têm superioridade sobre os
súbditos se chamam - domini - [senhores], devendo este vocábulo ser entendido, quando
ocorre, segundo a qualidade da pessoa”1561.
§ 1043. Ou seja, faltava à pré-compreensão tradicional do direito o dramatismo – que
haveria de surgir depois – da distinção entre pessoas, como sujeitos de direito, com a
capacidade de criar ativamente, intencionalmente, situações jurídicas, e coisas, como
objetos passivos de direito, privadas de qualquer capacidade de geração de normas1562. A
geração de direitos era um atributo da natureza, fosse ela a natureza (condição, estado) das
pessoas, fosse ela a natureza (condição) das coisas, fosse ela a natureza das relações entre
umas e outras (v.g., ius in re, ius ad rem). Não havia elementos sempre determinantes e
elementos apenas determinados. Tudo pode aparecer inserido de certa forma numa relação
jurídica objetiva, dada pela natureza. Neste sentido, a distinção entre pessoas e coisas era
mais temática do que ontológica: algum direito tratava de pessoas, outro trataria de coisas e
outro, ainda, de atos jurídicos. Assim se explicando a sistematização tripartida, que não
passava, então, de uma organização meramente temática (e não ontológica).

1559 Embora para a criticar.


1560 Domingo de Soto, Tractatus [...], cit., IV, 1,2, [p. 283].
1561 Baldo, ad I. proprietatis, C. de probationibus, n. 1 [C.,4, 19,4], em Baldo de Ubaldis, in
quartum et quintum Cadicis libras cammentaria, cit. por Paolo Grossi, L’ordine [...], cit., 96. De Paolo
Grossi é ainda a inspiração que aqui se acolhe quanto à ontologia das coisas no direito comum: Paolo
Grossi, Il dominio e le cose, cit..
1562 Este dramatismo está hoje a recuar. Por um lado, alguns filósofos e antropólogos (v.g., Bruno

Latour) têm identificado a distinção dramática entre pessoas e coisas, nomeadamente no campo do
direito e da política, como uma imagem da modernidade ocidental (v. A. M. Hespanha, “Até que ponto é
moderno o direito da modernidade ?”, cit.). Por outro lado, os movimentos de defesa dos animais
conseguiram introduzir (em 281.2015) no próprio Code civil – o texto emblemático que distinguira
definitivamente a categoria de sujeito e de objeto de direitos - o conceito de animais como seres
sensíveis, embora sujeitos ao regime das coisas (“des êtres vivants doués de sensibilité (…) soumis au
régime des biens”.

311
Direito das coisas
4.1.5 Da multiplicidade de utilidades à universalização da propriedade.
§ 1044. O texto antes citado de Domingo de Soto inclui, entre as modalidades de
domínio, a própria jurisdição, ou seja, o poder político; era daqui que decorria a dificuldade
de distinguir o público do privado, os direitos patrimoniais dos direitos senhoriais, que
caracteriza a ordem jurídica de Antigo Regime1563.
§ 1045. Mas o domínio não era apenas uma figura tendencialmente universal, mas ainda
naturalmente multiforme. Na verdade, cada coisa tinha as suas formas naturais de ser
usada, as suas utilidades, e a cada uma destas correspondia uma faculdade de apropriação
dela pelos homens, um “domínio” potencial. Esta cosmovisão levava, portanto, à admissão
de tantas formas de domínio - eventualmente repartidas por tantos sujeitos - quantas as
faculdades de gozo das coisas. E, de facto, os juristas medievais começaram a distinguir
tipos de domínios, correspondentes a tipos de uso das coisas, chegando a enumerar vinte e
três, desde os domínios que tutelavam usos dirigidos a fins sobrenaturais (v. g., o domínio
“beatífico”, “gratífico”, “evangélico”) até aos que correspondiam às várias utilidades temporais
(domínio “direto”, “útil”, “feudal”, “usufruto”, “uso”, “hipoteca”, “servidão”, etc.).
Rigorosamente, o domínio, como modelo de relação do homem com coisas, não tinha como
objeto a coisa, mas uma sua utilidade. O domínio não era a coisa, mas a (pluriforme) relação
de uso com ela1564. Dizendo de outra forma, que realça a extensão do conceito de coisa,
coisa não era uma entidade material, mas antes cada uma das suas possíveis utilizações.
§ 1046. Entre as várias modalidades de domínio não existe, sequer, uma hierarquia, pois
todos os usos das coisas e as utilidades delas colhidas se encaixam, cada qual à sua
maneira, na ordem do universo. Propriedade eminente, direito de usufruto, usufruto limitado,
tudo são formas de domínio, cada qual correspondendo a uma utilidade específica e, no seu
âmbito (i. e., no plano do gozo dessa utilidade), plena e autónoma. Do ponto de vista do gozo
das respetivas utilidades da coisa, tanto o senhor direto como o enfiteuta dispõem
plenamente da coisa1565.
§ 1047. Se alguma hierarquia existe entre os vários direitos que coexistam sobre a
mesma coisa, ela não decorre senão da hierarquia das utilidades que cada direito garante. E,
aqui, é claro que a seriação há-de corresponder a uma hierarquia conhecida: as finalidades
espirituais hão-de sobrepor-se às meramente temporais; de entre estas, as utilidades que
interessam ao bem comum hão-de ter a primazia sobre as meras utilidades particulares,
segundo uma ordem que vai do mais comum ao mais particular (república, cidade,

1563 Sobre o tema, António Manuel Hespanha, “O jurista e o legislador [...]”, cit., 52 ss.; Jesús
Vallejo, Ruda equidade […], cit., 1992, 141 ss., com muitos textos impressivos (“E esta equiparação da
jurisdição ao domínio prova-se assim: o príncipe tem toda a jurisdição e por isto se diz senhor
[dominus] de todo o mundo” (Bártolo, cit. p. 149). O domínio do príncipe (e restantes magistrados)
sobre os seus súbditos e sobre as coisas existentes no seu território era descrito como um dominium
quoad iurisdictionem, ou seja, um domínio dirigido a uma certa fruição (jurisdicional), como os outros
domínios (v. g., o utile) se dirigiam a fruições diferentes (v. g., a fruição económica). Mais tarde,
maxime com Hugo Grócio (1583-1645) fixa-se a expressão “domínio eminente”. Só quando o domínio
passa a ser considerado como um poder absoluto é que a ideia de um “domínio político” se toma
paradoxal, pois não poderiam existir dois domínios sobre as mesmas coisas. Em Portugal, o poder
tributário ainda é filiado no domínio eminente por Pascoal de Meio (Institutiones iuris civilis, cit., 1,4,7);
mas tal conceito já é criticado por António Ribeiro dos Santos e problematizado por Lobão.
1564 Domingo de Soto, Tractatus [...], cit., IV, 1, 1 [280].

1565 Paolo Grossi, L’ordine [...], cit., 103.

312
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
corporação, família). Assim, os gozos meramente pessoais hão-de ceder, primeiro, perante
os interesses temporais comuns e, juntamente com estes, perante os interesses
sobrenaturais. Este paralelismo entre a hierarquia das utilidades e a hierarquia dos domínios
faz com que uma corrente “integrista” ligue a proteção jurídica do domínio a fatores de ordem
sobrenatural, como a graça e o pecado. Assim, aqueles que estivessem em estado de graça
teriam um domínio sobre as coisas alheias, a fim de poderem prosseguir as suas finalidades
gratificantes1566. Em contrapartida, ao pecador ou infiel, que visava utilidades contrárias à
ordem da salvação, seria negado o domínio sobre as próprias coisas, de que poderia ser
despojado, pois o domínio só seria plenamente válido se se orientasse para a salvação. Foi
a partir de considerações deste género que se defendeu a legitimidade da ocupação das
terras dos povos infiéis ou pagãos na época da expansão europeia1567.
§ 1048. Os juristas afirmavam que o dono de uma coisa podia fazer dela o que quisesse:
cada um seria juiz e definidor das condições de uso das suas coisas, pelo que seria injusto
que um homem livre não fosse autorizado a dispor do que fosse seu, mesmo que fosse para
as destruir ou transmitir com as condições que lhe aprouvesse (“Rei suae quilibet est
moderator, et arbiter, ut possit facere quicquid velit […] Iniquum est enim, liberum non esse
homini ingenuo de rebus suis posse disponere […] ampliat in tantu, ut possit quis res suas
projicere in mare [ns. 1 e 2] […] Unde in concessione, seu traditione rei suae potest quis
apponere legem quam velit, [n. 3]”1568. No entanto, para isto era preciso que sobre essa
mesma coisa não coexistissem outros domínios [ibid., n. 4]; e, para além disso, a vontade,
para ser legítima, tinha que se mover na esfera do que era permitido pela razão.
§ 1049. A identificação do domínio com os vários usos das coisas criou, porém,
problemas politicamente delicados quando, nos séculos XIII e XIV, se discutiu o alcance do
voto de pobreza das ordens mendicantes (dominicanos e franciscanos). O que queria dizer o
voto de “não possuir bens”? Concretamente, se usar dos bens, disfrutar das suas utilidades,
era ser dono, (dominus) então os franciscanos e os dominicanos eram donos de muitas
coisas, nomeadamente das coisas consumíveis, i.e., daquelas que se consumiam com o
uso, como a comida ou o dinheiro. Nestes casos, dizia-se desde S. Tomás1569, que o domínio
não apenas se confundia com o uso, mas que ambos eram, para além disso, inseparáveis.
Sob o impulso desta polémica, que atingiu proporções político-eclesiásticas extremas1570,
surgiu a ideia de que o verdadeiro domínio não consistiria num uso fáctico, material, das
coisas, mas antes numa disposição meramente subjetiva. Como escreve Paolo Grossi, “O
homem é proprietário, não porque tenha concretamente coisas na sua posse, mas porque
quer ser proprietário delas, porque tem em relação a elas uma vontade apropriativa; aquele
que não tem nada (nihil habens) pode ser dono de tudo (omnibus dominans) se se lhe

1566 A apropriação das coisas alheias seria um ato caritativo, em benefício (espiritual) dos próprios
espoliados.
1567 O Concílio de Constança (1414-1418) condenou estas proposições como heréticas. Por isso,

a Segunda Escolástica (nomeadamente, Domingo de Soto) nega, também esta conclusão, legitimando,
com base no direito natural, a propriedade que os infiéis – e, concretamente, os povos “encontrados” -
tinham sobre as suas terras e coisas (Domingo de Soto, Tractatus [...], cit., IV, 2, 1 [287]).
1568 Agostinho Barbosa, Tractatus varii […], cit. Axioma CXCIX. “Res”, ns. 1 a 3.

1569 Summa Theol., 2a.2ae, qu. 78, a. 1.

1570 Sobre o tema, v. Paolo Grossi, L’ordine [...], cit., maxime, 150 ss. (com outras referências
bibliográficas).

313
Direito das coisas
atribuir a vontade correspondente1571.
§ 1050. Esta subtileza permitia resolver, como logo se vê, o problema da pobreza dos
franciscanos, mas teria também consequências profundíssimas no destino futuro do discurso
sobre os homens e as coisas, da sua regulamentação jurídica e das medidas políticas
tomadas acerca disso. Enfim, o que se prenuncia a partir de agora - embora a evolução
ainda vá levar muitos séculos a consumar-se - é uma conceção do domínio como afirmação
de uma vontade dos sujeitos sobre os objetos.
4.1.6 O modelo proprietário das relações dos homens com as coisas.
§ 1051. Na raiz desta nova conceção do domínio estava a definição do homem como ser
livre e senhor dos seus atos, que necessitava de se projetar no mundo externo das coisas
para realizar essa liberdade e cumprir o seu destino (“ (...) os homens, pela sua própria
natureza e direito, começaram a ser donos das suas ações para, com esta liberdade,
servirem o Criador”, Domingo de Soto). Assim, o domínio sobre as coisas aparecia como um
prolongamento do domínio sobre si próprio, o ter tornava-se num mero ato de vontade do
sujeito que se afirmava como dono de uma coisa1572, a propriedade era um outro nome da
liberdade, desse poder expansivo de afirmação do sujeito. O domínio adquiria uma dimensão
puramente subjetiva, escapando completamente ao império das coisas. Estas, as suas
utilidades concretas e as modalidades concretas do seu gozo, não influíam em nada a
natureza do domínio, que passava a ser uma faculdade puramente volitiva de gozo abstrato.
Quem diz “abstrato”, diz tendencialmente ilimitado. Nesta conceção, falar de um direito de
propriedade era falar do complexo virtual de todas as utilidades de uma coisa e dos poderes
de uso correspondentes; era falar da síntese de todos os poderes que, em abstrato, um
sujeito podia exercer sobre as coisas em geral1573; era falar da forma perfeita de o homem se
relacionar com as coisas. Antes, a propriedade “livre”, não limitada, era apernas a forma
originária de ter coisas (“res omnia praesumitur libera, nisi probetur tributaria”1574.
Estabelecida por natureza, ela não implicava que os homens, por motivos legítimos e
vantajosos, tivessem introduzido novas formas de se relacionar com as coisas. Esta visão
pluralista do domínio cede perante uma outra, em que a propriedade plena é natural num
sentido mais duro: é o modelo de relação entre homens e coisas que melhor corresponde à
natureza de um e de outras.
§ 1052. Este último imaginário das situações reais, que tem sido designado como
modelo “proprietário”, elaborado a partir do século XIV pela escolástica franciscana, pelo
pensamento da Segunda Escolástica (Luís de Molina [1536-1600], Domingo de Soto [1494-
1570], Francisco Suarez [1548-1617]) e pelas escolas jusracionalistas, tem importantes
consequências, no plano dogmático
§ 1053. Esta corrente intelectual será desenvolvida pela escolástica franciscana dos
finais da Idade Média, pela Escola Peninsular de Direito Natural (Segunda Escolástica) e,
finalmente, culminará na conceção individualista da propriedade das escolas jusracionalistas

1571 Paolo Grossi, L’ordine [...], cit., 156.


1572 Manifestações desta nova dissociação entre o domínio e o uso são, por um lado, o avarento
(que é dono, mas não usa) e, no outro polo, justamente os mendicantes (que usam, mas não são
donos).
1573 Paolo Grossi, “Tradizione e modelli [...], cit., 200 ss.

1574 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Res”, n. 4.

314
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
do século XVIII.
§ 1054. Em primeiro lugar, relacionava intimamente o domínio com a vontade. A
propriedade, tal como a liberdade, eram as duas primeiras manifestações da tendência
natural dos indivíduos para se autodeterminarem, para quererem1575. E, por isso, constituíam
os seus primeiros direitos naturais, com dignidade natural e fundamento teológico, pois esta
vontade fundadora não era senão um reflexo da vontade e da sapiência de Deus1576.
§ 1055. Em segundo lugar, definia o domínio como um direito tendencialmente absoluto;
ou seja, um direito que, por natureza (a natureza de uma vontade que não suporta limites),
tendia a abranger todos os usos possíveis (i.e., que pudessem ser queridos) das coisas. Tal
como a soberania, o domínio era absoluto e indivisível. Poderia acontecer que não se
pudesse, em relação a certa coisa, gozar dele ilimitadamente, por existirem limites externos;
mas, então, estaríamos perante um domínio “imperfeito” que, desaparecendo os limites
externos1577 ao seu exercício, ocuparia naturalmente os novos espaços, tendendo para a
perfeição (“elasticidade” do domínio). A ideia de uma multiplicidade de domínios,
compreendendo cada qual apenas algumas faculdades de utilização da coisa, parecia agora
como algo de não natural ou como logicamente absurdo1578.
§ 1056. Em terceiro lugar, definia o domínio como um poder essencialmente privado; ou
seja, originado na vontade individual, em satisfação de impulsos também individuais e, por
isso, satisfazendo interesses meramente privados, enquanto o poder público, a jurisdição,
emanava, direta ou indiretamente, de uma vontade coletiva e visava satisfazer interesses
públicos.
§ 1057. Esta foi a matriz que culminou nas grandes codificações liberais dos inícios do
século XIX. O artigo 544 do Code civil de 1804, um dos monumentos do modelo atual1579 de
conceber as situações reais, definia a propriedade como “o direito de gozar e dispor das
coisas da forma mais absoluta, desde que não se faça delas um uso proibido pelas leis ou
pelos regulamentos”. Este texto constitui um emblema do conceito moderno (individualista,
burguês, capitalista) da propriedade, sobretudo porque nele se costuma destacar o carácter
absoluto e pleno dos poderes do proprietário. Na época em que esta máxima foi cunhada, as
suas palavras não tinham ainda as intenções que depois vieram a adquirir. Assim, o termo
“absoluto” não apontava para a autorização de “um qualquer, arbitrário, associal, uso das
coisas”, típico de uma conceção liberal, pura e dura, da propriedade. Visava antes negar a
existência de qualquer direito eminente, feudal ou estadual, que limitasse os poderes do
proprietário. Mas, logo no início do século XIX, a doutrina jurídica francesa transformou esta
definição num dos dogmas do liberalismo, colocando-a ao lado da divisa de J. Bentham,
Liberty and property, no topo da ideologia “proprietária” ou “individualismo possessivo”1580.

1575 Daí que só possam ser sujeitos de domínio os seres dotados de entendimento e livre arbítrio;

o que exclui que se possa falar de propriedade na titularidade de coisas ou de animais, como antes se
admitia (cf. Domingo de Soto, Tractatus […], cit, p. 284).
1576 Paolo Grossi, L’ordine [...], cit., 169.

1577 Nomeadamente, direitos concorrentes de outrem, como uma servidão ou um usufruto.

1578 “Undinge”, absurdo, é como Thibaut (em 1817) classificará a ideia de um domínio dividido (cf.

P. Grossi, “Tradizione e modelli nella sistemazione post-unitaria della proprietà”, cit., 201 ss).
1579 Embora hoje em crise, nomeadamente após receção pelo mesmo código da noção de “seres

vivos dotados de sensibilidade” (em 28.1.2015).


1580 A expressão é de C.B. Macpherson (Property, mainstream and critical positions, Toronto,

315
Direito das coisas
§ 1058. Este modelo “proprietário” apresenta os seguintes traços estruturais.
§ 1059. A propriedade era um direito absoluto, no sentido (que era o originário do Code)
de que não estava sujeito a limites externos, pelo que o seu exercício não dependia de
condicionamentos ou autorizações. No momento em que foi introduzida no Code civil, esta
referência ao carácter absoluto da propriedade implicava a abolição de uma série de ónus,
fiscais, feudais ou comunitários, que impendiam sobre a terra. Mas iria também justificar a
antipatia por todas as formas de limitação ou condicionamento da liberdade de dispor
exclusivamente das coisas, anteriormente conhecidas, quer de natureza privada (v. g., as
formas de comunhão e de indivisão, os vínculos, a necessidade de autorização ou outorga
para alienar, os direitos de preferência, os laudémios), quer de natureza pública (v. g., os
regimes de licenciamento administrativo da transmissão ou oneração do solo, os
condicionamentos públicos da venda, como os monopólios ou estancos, os regimes de
amortização, etc.). Propriedade absoluta era, assim, a propriedade não partilhada, aquela
que não reconhecesse qualquer dominium eminens ou directum exterior. Era a propriedade
franca, que obedece à regra natural da “liberdade natural da propriedade”1581.
§ 1060. A propriedade era um direito pleno, ou seja, continha em si todas as faculdades
de ação que o seu titular pudesse desenvolver em relação à coisa, incluindo a sua destruição
económica ou física. Isto significava, em primeiro lugar, que o direito de propriedade não se
destinava a garantir a funcionalidade económica das coisas, não visava refletir, no campo do
direito, as utilidades possíveis das coisas, antes possibilitando exercícios a-funcionais, como
o não cultivo de uma terra ou a destruição de uma coisa1582.
§ 1061. A propriedade era um direito tendencialmente perpétuo, daí decorrendo a
tendência para o desfavor das formas temporalmente limitadas de domínio (fideicomissos,
enfiteuses em vidas, cláusulas de retroação) e a promoção da propriedade perpétua1583.
§ 1062. A propriedade era, finalmente, um direito essencialmente privado, não devendo,
portanto, coenvolver direitos de carácter público, como acontecera na constituição fundiária e
política do Antigo Regime. Estes competiam - como vinha dizendo a doutrina desde
Francisco Suarez (De legibus, I., 8 4 ss.) - à iurisdictio e não ao dominium; enquanto
faculdades dos particulares, seriam abusivos e deviam ser abolidos1584.

1978). Eco da divisa de J. Bentham, em Portugal, Vicente José Cardoso da Costa, Que he o Codigo
civil, cit., 73,96 ss.
1581 Cf. Manuel Fernandes Thomaz, Observações sobre o discurso que escreveu Manoel

d'Almeida e Sousa em favor dos direitos dominicaes […], cit., 80/81; José Homem Correia Teles,
Digesto portuguez [...], cit., I., 117 (n. 743); sobre o pretenso direito eminente do Estado, v., Manuel de
Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] a Melo […], cit., 3, 64.
1582 Daí a antipatia da generalidade dos autores desta época pela obrigatoriedade de cultivar as

terras, frequente nas leis agrárias anteriores (cf. José Acúrsio das Neves, Memória sobre os meios de
melhorar a industria […], cit., 24 ss.: “é viciosa toda a lei que faz violência ao proprietário, ou ao
lavrador sobre o uso do seu prédio, ou sobre o seu modo de cultura”. Já os teóricos iluministas
apostavam na estrita regulamentação da produção agrícola (cf. António Henriques da Silveira, “Sobre a
agricultura e população da província do Alentejo”, cit.; Prophyrio Hermeterio Homem de Carvalho,
Primeiras linhas de direito agrario […], cit..
1583 Manuel António Coelho da Rocha, Instituições […], cit., I., 319 (§ 402), 709 e 716.

1584 Correia Teles (José Homem Correia Teles, Digesto portuguez [...], cit., I., § 741 ainda inclui

no direito de propriedade os direitos de jurisdição. Mas as servidões pessoais (personae servir rei)
tinham sido ou estavam a ser abolidas: a servidão doméstica, fora-o em 1771 (alvs. 16.1 e 19.9,

316
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 1063. Ainda no século XVIII, o “modelo proprietário” aparecia já bem delineado na obra
de Pascoal de Melo. Aí, o domínio era já apenas um, ou seja, o direito ilimitado e exclusivo
de gozar de todas as utilidades da coisa: “o domínio é um certo direito sobre as coisas, pelo
qual entendemos o direito de dispor livremente da coisa, extraindo dela todas as utilidades,
excluindo o uso dela por outros e reivindicando-a em relação a qualquer um1585”. É certo que
haveria direitos reais com poderes mais limitados, por lei ou por convenção (servidões,
usufrutos, enfiteuses), por isso se falava de domínio pleno ou menos pleno (como mais tarde
se falará de propriedade perfeita e imperfeita)1586. Mas o pleno domínio, o domínio exemplar,
comportava todos os poderes de fruição e de exclusão da fruição de outrem.
4.2 As espécies de coisas.
§ 1064. O estudo das coisas devia começar pela tarefa de estabelecer as distinções
entre coisas, baseadas nas qualidades destas. É o que Gaius faz nas suas instituições, num
texto que foi recolhido no Digesto1587. Segundo este texto, a divisão suprema das coisas era
entre as de direito divino e as de direito humano. As primeiras podiam ser sagradas, apenas
religiosas ou santas. As segundas estavam geralmente no património de alguém, mas
excecionalmente, podiam não ser de ninguém (nullius in bonis), no sentido mais rigoroso da
expressão (res nullius), ou apenas no sentido de que não eram de nenhum particular,
embora pertencessem a uma entidade pública ou universidade.
§ 1065. Com base noutro critério, distinguia entre coisas corpóreas, sensorialmente
percebíveis, e incorpóreas, que consistiam em direitos, como a herança, o usufruto ou as
obrigações, apesar de estes dizerem respeito a coisas corpóreas.
§ 1066. Muitas destas distinções tinham perdido muito do seu sentido um milénio depois.
No entanto, os juristas do direito comum, mantiveram esta matriz de divisão das coisas.

completados pelos de 16.1.1773 e 10.3.1800); as servidões pessoais a favor de prédios tinham sido
abolidas como direitos banais pela lei de 24.7.1846 (retomando a sua extinção em 1824). Cf. Manuel
António Coelho da Rocha, Instituições […], cit., I., §§ 524 e 587; Manuel de Almeida e Sousa (Lobão),
Notas […] a Melo […], cit., 3, 437, 442-443.
1585 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,2,1.

1586 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4,2,4.

1587 D.1.8.1: “Gaius libro secundo institutionum. pr. Summa rerum divisio in duos articulos
deducitur: nam aliae sunt divini iuris, aliae humani. Divini iuris sunt veluti res sacrae et religiosae.
Sanctae quoque res, veluti muri et portae, quodammodo divini iuris sunt. Quod autem divini iuris est, id
nullius in bonis est: id vero, quod humani iuris est, plerumque alicuius in bonis est, potest autem et
nullius in bonis esse: nam res hereditariae, antequam aliquis heres existat, nullius in bonis sunt. Hae
autem res, quae humani iuris sunt, aut publicae aut privatae. Quae publicae sunt, nullius in bonis esse
creduntur, ipsius enim universitatis esse creduntur: privatae autem sunt, quae singulorum sunt. 1.
Quaedam praeterea res corporales sunt, quaedam incorporales. Corporales hae sunt, quae tangi
possunt, veluti fundus homo vestis aurum argentum et denique aliae res innumerabiles: incorporales
sunt, quae tangi non possunt, qualia sunt ea, quae in iure consistunt, sicut hereditas, usus fructus,
obligationes quoquo modo contractae. Nec ad rem pertinet, quod in hereditate res corporales
continentur: nam et fructus, qui ex fundo percipiuntur, corporales sunt, et id quod ex aliqua obligatione
nobis debetur plerumque corporale est, veluti fundus homo pecunia: nam ipsum ius successionis et
ipsum ius utendi fruendi et ipsum ius obligationis incorporale est. Eodem numero sunt et iura
praediorum urbanorum et rusticorum, quae etiam servitutes vocantur”

317
Direito das coisas
4.2.1 Coisas sagradas, religiosas e santas.
§ 1067. Embora notando que os romanos tomavam as palavras noutra aceção, os
juristas do direito comum mantiveram o conceito de coisas de direito divino e, dentro delas, a
distinção entre as coisas sagradas, as religiosas e as santas.
§ 1068. As coisas sagradas eram aquelas que tivessem sido consagradas por meio da
bênção do bispo ou seu delegado (quando pudesse delegar a bênção) para o serviço
sagrado. Era o caso dos altares, dos vasos sagrados, das imagens benzidas e de outras
alfaias dedicadas ao culto. Próximas das sagradas estavam aquelas coisas (por alguns
chamadas coisas eclesiásticas) que não eram aplicadas diretamente ao culto, mas a usos
apenas relacionados com este, como é o caso dos ornamentos dos templos ou das vestes
dos oficiais de culto.
§ 1069. As coisas religiosas eram aquelas santificadas pelo facto de aí estarem
sepultadas pessoas. Entre as coisas religiosas avultavam os cemitérios, consagrados para
sepultura dos crentes1588, embora também objeto de um especial licenciamento dos poderes
temporais, por razões sanitárias ou urbanísticas, que se foram tornando progressivamente
mais exigentes1589.
§ 1070. As coisas santas eram aquelas que, sendo profanas, eram consideradas
invioláveis, estando a sua ofensa sancionada por lei. Os exemplos mais comuns eram os das
portas e muros das cidades.
§ 1071. A relevância jurídica destas categorias era a de que as coisas sagradas eram
consideradas como de ninguém (de nenhum património, rei nullius bonis)1590, por estarem
destinadas a Deus, ficando sob a guarda e administração dos ministros da Igreja, como seus
"procuradores, mas não senhores”1591. Quanto às coisas eclesiásticas não consagradas, o
seu regime seria menos rigoroso quanto à possibilidade de as transacionar. De facto, até ao
séc. XI, os bispos podiam alienar as coisas da Igreja1592. As reformas disciplinares do séc. XII
restringiram muito esta faculdade. No direito comum tardio, entendia-se esta proibição como
geral, embora pudesse haver exceções, que cobriam uma casuística extensa: venda por
grande necessidade, venda de coisas sagradas integradas noutras que não o eram (v.g., a
capela de uma casa), venda de coisas sagradas já estragadas ou destruídas, venda a outra
igreja ou entidade eclesiástica, venda para comprar outras coisas melhores, venda para
remir cativos ou libertar presos1593. Fosse como fosse, a avaliação de tudo isto devia ser feita
pelo ordinário da diocese1594. Para mais, como a Igreja, enquanto collegium ou universitas,

1588 Em Portugal, os ritos fúnebres eram regulados pelo ritual romano (Paulo V, 1605-1621).
1589 Ao poder temporal cabia a polícia funerária, atentos os interesses da república (fixação do
lugar dos cemitérios, negação de sepultura; v.g., aos sodomitas, Ord. fil.,5,113), a correção de abusos
dos párocos quanto ao custo dos funerais; na segunda metade do séc. XVIII, começam a ser referidas
exigências relativas à saúde, nomeadamente para condenar os enterramentos nas igrejas. Cf. Pascoal
de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,1,6 e 7.
1590 Cf. adiante; Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., 2,1,7; Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,1,3 e 4.


1591 Decretais, 3,24 de donationibus, cap. 2.

1592 Decretum, causa XII, qu. 2; caus. 66 e 73.

1593 Manuel Barbosa, Remissiones […], ad. Ord,2,24; Luís de Molina, De iustitia [...], cit., II De

contractibus, disp. 340.


1594 Em Portugal, v. alv. 25.6.1631, § 4, que exige o consentimento do ordinário, ou seja, do bispo

318
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
era equiparada ao menor1595, as suas alienações deviam ser confirmadas pelo seu protetor,
o príncipe1596. Esta proibição de comércio de coisas sagradas e eclesiásticas constava de
Ord. fil.,2,241597. O âmbito de aplicação desta norma era, no entanto, controverso, já que no
texto se falava em prata e ornamentos. Alguma doutrina considerava esta intromissão régia
na disposição de coisas eclesiásticas como contrária à liberdade da Igreja e restringia, por
isso, o seu alcance a coisas móveis de metais preciosos, até porque a razão da lei seria a
proibição de vendas clandestinas de bens eclesiásticos, em prejuízo da Igreja1598, cessando,
por isso, na alienação de imóveis ou de objetos que não se pudessem ocultar tão facilmente
como estas peças preciosas.
§ 1072. O conceito de coisas religiosas permitia tratar do direito das sepulturas e dos
cemitérios
§ 1073. O conceito de coisas santas, com o conteúdo que tinha no direito romano
(coisas consagradas aos mais elevados serviços da cidade, como as muralhas e suas
portas, os paços dos supremos magistrados), desaparecera com o desaparecimento dessa
religião cívica que caraterizava a república romana. No entanto, a ideia de uma especial
dignidade dessas coisas votadas à preservação da república e do seu regime mantinha-se.
Sagradas eram as portas e muralhas das cidades, por isso sendo obrigatório para qualquer
cidadão defendê-las, ao mesmo tempo que era proibido ofendê-las, construindo mais alto do
que elas, apoiando nelas casas particulares ou encostando-lhe escadas, escalando-as ou
prejudicando de qualquer forma a sua função defensiva1599. Sagradas eram também as leis e
os legados ou embaixadores, tanto de nações amigas como inimigas1600. Também ocorre a
designação da casa como perímetro sagrado e inviolável1601. Aplicado a coisas, a
classificação de santas implicava que não pudessem estar no património de privados.
4.2.1.1 Os bens eclesiásticos.
§ 1074. Diferentes das coisas eclesiásticas, destinadas a atos de culto, eram os bens
eclesiásticos. Entendemos aqui por bens eclesiásticos1602 aqueles sobre os quais a Igreja
tinha o domínio. Nesta categorização, não era, portanto, a natureza dos bens, mas a
qualidade do seu titular, que dava origem a um regime jurídico com algumas especialidades,
nomeadamente quando eles tivessem sido destinados a sustentar uma função religiosa. Isto
acontecia, nomeadamente, com aqueles bens cujos rendimentos estivessem consignados
aos sustento de um ofício eclesiástico. Este regime era ainda tornado mais complexo pelo
facto de, sobre esses bens, se constituírem direitos, não apenas do titular do ofício, mas
ainda daquele a quem era dado o poder de o propor ou nomear (patrono) ou de o proteger

ou cabido, conforme as constituições dos bispados..


1595 I., 2,8 Quibus alienare licet vel non, pr. e § 2.

1596 C.,1,2 De sacrossantis ecclesiis et rebus et privilegiis earum, l. 14; Novelas, 7 e 120; v. Ord.

fil., 2,24 (“que se não possa comprar, nem receber em penhor prata, & ornamentos das Igrejas”)..
1597 Sobre este texto, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], tomo 8, ad,2,24, Luis de Molina,

De iustitia […], Tom. 2, De contractibus, disp. 340.


1598 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], tomo 8, ad,2,24, n. 9.

1599 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit. ad 2,1, 10, ns. 1 a 4.
1600 Cf. D.50.7. De legationum, 18.
1601 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,1,5.

1602 Cf. António Manuel Hespanha, “Os bens eclesiásticos na época moderna […]”, cit..

319
Direito das coisas
(comendador). Era através destas instituições dos benefícios, dos padroados e das
comendas que se efetuava a redistribuição social dos rendimentos da Igreja.
§ 1075. Mesmo na época, o regime dos bens eclesiásticos era complicadíssimo. Isso
explica – tanto quanto a apetência por eles e os conflitos que isso provocava – a quantidade
de litígios existentes acerca deles e, por isso, a abundância e complexidade da doutrina
jurídica sobre o assunto.
§ 1076. No texto que se segue, procura-se sistematizar e esclarecer esse regime.
4.2.1.1.1 Benefícios.
§ 1077. De acordo com a tradição que corre na época moderna, o sistema beneficial
teria sido introduzido na alta idade média. Nos tempos primitivos, os eclesiásticos (tal como
os pobres) teriam sido sustentados diretamente pelos fiéis. No séc. V (ano 467), o Papa S.
Simplício teria dividido os bens eclesiásticos em quatro massas: uma destinada aos bispos,
outra aos clérigos, outra aos pobres e outra, finalmente, às despesas de culto (“fábrica da
Igreja”). A partir daí, os clérigos começaram a ser sustentados pela atribuição, em princípio
pelos bispos, de bens da Igreja, de cujos rendimentos pudessem viver decentemente. Esta
atribuição de alimentos teria sido feita ou quase quotidianamente, à medida das
necessidades concretas do clérigo (annonnae, praebendae, de praebeo, apresentar; esta
designação era dada aos alimentos dados aos soldados 1603), ou por concessões precárias
de bens, a que se passou a chamar benefício 1604.
§ 1078. A origem do modelo do benefício está no direito romano tardio, que utilizava a
designação para referir a atribuição de bens àquelas que se distinguiam na guerra, quer
como prémio, quer como incentivo para feitos futuros (cf. C. 11, 59). Interessante é, neste
momento, destacar o carácter gratuito e benevolente do benefício, o que o distinguia de
qualquer pagamento mercenário (“beneficium est benevola actio gaudium vel honorem
tribuens capienti”, Séneca, De benef., 1) 1605. Isto fazia com que o beneficiado ficasse ligado
ao concedente por uma relação de gratidão e fidelidade que lhe vedava, nomeadamente, a
prática de atos que envolvessem desrespeito, como contrariar a palavra jurada do
concedente ou depor contra ele1606.
§ 1079. Mas, apesar desta componente de precariedade e liberalidade da concessão, a
tendência teria sido a de entender progressivamente esta atribuição de rendimentos como
um direito patrimonial do tipo do usufruto, doravante integrado perpetuamente no património
do beneficiado e, assim, por ele disponível como coisa patrimonial sua.
§ 1080. Nos finais da época moderna, quando já é muito forte a reação da opinião
pública contra esta progressiva patrimonialização das rendas dos eclesiásticos, a doutrina
insistirá no carácter por assim dizer público da obrigação de sustentar os clérigos.
Sustentação essa que, não podendo já competir diretamente à comunidade, como nos

1603 Em sentido estrito, a praebenda ou canonica portio era aquela parte que se tomava da massa

dos bens e proventos dos eclesiásticos e se dava a cada um como parte sua (Andrea Vallensis,
Paratitla […], cit., p. 442, n. 1); mas que, embora se prestasse pelos bens da Igreja, não se prestava
em razão do ofício divino, mas em razão de trabalho temporal.
1604 A primeira referência no C.I.C. reporta-se ao Concílio de Mogúncia (813) (Decr. Greg., III, 48,

1).
1605 Manuel Gonçalves Teles, Commentaria […]. III, tit. V, “ De praebendis et dignitatibus ”, n. 12.

1606 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit. “Beneficium”, n. 54

320
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
tempos primitivos, deveria estar a cargo do soberano 1607.
§ 1081. Seja como for, antes de o iluminismo e, mais tarde, o liberalismo terem re-
imaginado um sistema novo de retribuição dos eclesiásticos, o sustento destes estava
baseado nesta concessão quase patrimonial de rendas, a que se chamou benefício.
§ 1082. De acordo com uma definição comum, o benefício era um direito perpétuo,
atribuído por uma autoridade eclesiástica, de receber frutos (rendimentos) de certos bens da
Igreja, em virtude de um ministério (ou ofício) sagrado, ao qual esses frutos tinham sido
consignados ou anexados.
§ 1083. A perpetuidade do benefício residia no facto de, tanto a concessão dos ofício
como a dos benefícios, ser feita sem qualquer limitação temporal e em firme, não podendo
ser retirada arbitrariamente. Por isso é que as concessões temporárias - v.g., enquanto não
se der o provimento definitivo, como nas vigararias, que são administrações temporárias de
benefícios; ou enquanto o ofício carecer de certa proteção, como nas comendas - não são,
rigorosamente, benefícios. Como não o são os ofícios livremente reassumíveis pelos
concedentes (como os ofícios dos regulares de ordens monásticas, também chamados
manuais ou obedienciais, justamente porque estava na mão do concedente dá-los ou tirá-los
livremente; ou os ofícios meramente delegados, como os dos legados papais) 1608.
§ 1084. A doutrina da época apresentava diversas classificações dos benefícios,
algumas delas prenhes de consequências institucionais.
§ 1085. Os benefícios podiam ser eletivos, providos por eleição canónica, ou colativos,
providos por simples doação ou colação. Maiores (como os de Papa, arcebispos, bispos,
abades) ou menores (os restantes). Curados, se incluíam a cura de almas (administrar
sacramentos e difundir a palavra de Deus, exercer a jurisdição espiritual), ou não curados, se
não a incluíam (o que se presumia ser o caso). Regulares, atribuídos a membros de uma
ordem ou regra monástica, obrigando a uma mais estrita obediência ao superior e livremente
dependentes, quanto às funções e quanto ao período de concessão, do arbítrio deste 1609;
seculares, se atribuídos a clérigos seculares, não sujeitos a regra e militando no século (o
que se presumia). Familiares, se o seu provimento tinha que se verificar no seio de certa
família, ou não familiares, no caso contrário 1610.
§ 1086. O provimento dos benefícios era levado a cabo, nas mais importantes
dignidades eclesiásticas (ecclesiae viduae: bispos e abades de ordens), por eleição canónica
(i.e., respeitadas as normas do direito canónico, nomeadamente quanto à forma de efetuar a
eleição e quanto aos requisitos do eleito1611), a realizar dentro dos três meses seguintes à
vacatura. A eleição podia ser substituída por uma escolha (compromissum) por um grupo

1607 Franz Xavier Gmeineri, Institutiones […], cit., II, 90, § 62 ss..
1608 Franz Xavier Gmeineri, Institutiones […], cit., II, 92, § 66; Andrea Vallensis, Paratitla [...], cit.,
III, 5, 1, n. 7.
1609 De facto, os ofícios monacais (ou manuais) eram dados e tirados ad nutum (à discrição); o

conteúdo das suas atribuições também dependia em absoluto do concedente, João Baptista Fragoso,
Regimen […], cit., II, 854, § 12.
1610 Sobre este tema, v., v.g., Andrea Vallensis, Paratitla […], cit., III, 5, 2, p. 444; mais recentes,

Franz Xavier Gmeineri, Institutiones […], cit., II, 93, §§ 69 ss.; Bernardino Joaquim da Silva Carneiro,
Elementos de Direito Eclesiástico […], cit., 121 ss
1611 Sobre as eleições e os requisitos dos eleitos, v. Franz Xavier Gmeineri, Institutiones […], cit.,

II, 104, § 88 ss.

321
Direito das coisas
mais restrito de eleitores (compromissários) ou pela nomeação pelo titular do poder secular,
como acontecia, para os bispos, em Portugal. Devia ser confirmada pelo titular do direito de
nomear o ofício.
§ 1087. Nos restantes ofícios, o provimento era feito por nomeação (ou colação), por via
de regra, episcopal. Apesar de o Papa ser, como vigário de Cristo, o titular natural do
provimento dos ofícios da Igreja, os bispos teriam adquirido, com o decurso do tempo, uma
expectativa jurídica (fundata intentio) de os poder conceder, embora isto não prejudicasse os
direitos papais1612. Daí que, embora ordinariamente coubesse aos bispos a concessão dos
ofícios, este direito estava limitado pelos direitos cumulativos de colação que competiam ao
Papa. Assim, este era titular de uma reserva geral que lhe permitia prover os benefícios que
vagassem em certos meses (meses ímpares) ou que vagassem na cúria1613. Havia outras
reservas especiais, no caso de certos benefícios1614. Além de que o Papa, como vigário de
Cristo e usando de seu poder absoluto, podia prover qualquer benefício, em qualquer
circunstância e mês, como também podia privar dele o beneficiado1615.
§ 1088. Por outro lado, o direito de provimento dos bispos podia estar ainda limitado por
direitos de apresentação (i.e., de proposta de nomes) que competissem aos eventuais
patronos do benefício, nos termos do direito de padroado (v. infra).
§ 1089. No sentido de manter os ofícios e benefícios livres para serem concedidos, no
momento da vacatura, estava proibida a promessa de concessão de ofícios não vagos
(cartas de expectativas). O Concílio de Trento (sess. 24, de reform., cap. 19) sublinhou ainda
mais esta proibição, no âmbito de uma política de ampliação da liberdade de colação que
incluía também a introdução de restrições aos direitos de padroado (v. infra).
§ 1090. O sistema beneficial baseava-se, como se viu, na conjunção entre um ofício ou
função eclesiástica, com a correspondente atribuição de poderes ou jurisdições, e um
benefício ou renda.
§ 1091. No plano dos poderes conferidos pelos benefícios, por vezes eles
correspondiam a uma certa primazia ou preeminência jurisdicional, nomeadamente nos atos
litúrgicos ou capitulares ("no coro ou no capítulo"); falava-se, nestes casos, de uma
dignidade. Em contrapartida, se esta primazia era meramente honorífica, não comportando
qualquer jurisdição (i.e., não se unindo a qualquer ofício, como um lugar honorífico no coro,
procissões ou sufrágios), falava-se de uma simples pessoa (personatus). No caso de esta
primazia se limitar à perceção de um rendimento, falava-se de uma prebenda ou conezia 1616.

1612 João Baptista Fragoso, Regimen […], cit., II, 655, n. 2/5.
1613 Dado que esta reserva prejudicava os direitos dos patronos, havia quem restringisse
fortemente o âmbito da reserva pontifícia, não a admitindo nos benefícios em padroado leigo, nos
obtidos onerosamente, nos benefícios das ordens militares (cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria
[…], cit., tomo 9, ad 2,35, c. 117, ns. 149 ss.). Além de que a reserva pontifícia não existia nos
benefícios regulares ou manuais das ordens (cf. ibid., tomo 11, ad 2,35, c. 117, ns. 35 e 36).
1614 Franz Xavier Gmeineri, Paratitla […], cit., II, § 127. Nos benefícios de padroado eclesiástico, a

Santa Sé gozava de oito meses de reserva, ficando aos padroeiros apenas os meses de Março, Junho,
Setembro e Dezembro (Conc. Tridentini, sess. 24, cap. 18).
1615 Andrea Vallensis, Paratitla […], cit., III, 7, § 2, p. 451 ss..

1616 Falava-se de pensão ou porção a respeito de uma prestação periódica imposta sobre o

rendimento de certo benefício pelo titular da sua colação (i.e., por aquele a quem competia prover esse
benefício) a favor de uma pessoa eclesiástica ou leiga (cf. Manuel de Almeida e Sousa de Lobão,

322
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
Finalmente, se os poderes conferidos fossem de mera administração, sem jurisdição ou
dignidade, como no caso dos sacristães ou porteiros, custódios, tratava-se de um mero
ofício.
§ 1092. Neste modelo administrativo, ao desempenho de uma função correspondia
sempre a perceção de uma renda, de um "benefício". Na verdade, os ofícios eclesiásticos
nunca eram conferidos sem rendas (sem titulum [ou causa de possuir]). A razão seria tanto a
justiça (“é justo que quem vive para o altar, viva também do altar”) como a necessidade de
evitar que surjam “clérigos vagos e acéfalos”1617. Apesar de contraditória com a lógica inicial
do instituto, a situação inversa de existirem benefícios sem a correspondente função podia
verificar-se, nomeadamente por esta se ter entretanto extinto, permanecendo a titularidade
dos rendimentos. Assim, ofício e benefício passaram a constituir sinónimos, designando a
mesma coisa, embora sob perspetivas diferentes. Mas, no mundo semântico da
administração eclesiástica, a designação de benefício (que remete para uma perspetiva
patrimonial) suplanta francamente a de ofício (que remete para uma perspetiva funcional ou
ministerial), embora a lógica institucional hesite entre uma e outra visão.
§ 1093. Por um lado, a ligação essencial do benefício a uma função subjacente, a um
ministerium, de natureza espiritual, tinha como consequência a obrigatoriedade da residência
no lugar do benefício, a fim de poder desempenhar presencialmente as inerentes funções,
nomeadamente as que revestissem um carácter de urgência, como a administração da
confissão ou da extrema unção1618. Daí que ninguém pudesse ter mais do que um benefício,
pelo menos se estes fossem entre si incompatíveis1619. Por outro lado, o facto de algumas
das funções subjacentes serem essencialmente espirituais levava à incapacidade dos leigos
para serem titulares de certos benefícios anexos a este tipo de funções1620. Ainda nesta
perspetiva, os rendimentos do benefício deviam servir sempre a função subjacente. Assim,
entendia-se que os beneficiados aplicavam ao seu múnus os frutos do benefício; e que,
mesmo os rendimentos supérfluos, deveriam ser consumidos em gastos piedosos1621.
Também os réditos dos benefícios vagos deveriam permanecer consignados ao benefício,
sendo entregues ao sucessor ou gastos em benefício deste; de modo a que os bispos não se
pudessem apropriar deles para gastos gerais da diocese1622; embora esta perspetiva
interessasse também, mesmo de uma ótica puramente patrimonial aos futuros beneficiados.

Tratado prático compendiario das pensões eclesiásticas […], cit., 21 ss.). As pensões podiam ser
impostas pelo Papa, pelos bispos, pelos grão-mestres das ordens militares e pelos reis (como grão-
mestres ou padroeiros). Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Pensio”, n. 2 ss..
1617 Cf. Manuel Gonçalves Teles, Commentaria [...], cit., p. 116, n. 13. Se o bispo ordenasse

clérigos sem titulum tinha que lhes prestar alimentos dos seus bens, ibid., p. 118.
1618 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Beneficium”, n. 9. Este é um dos grande temas

do Concílio de Trento em matéria beneficial: cortar com os abusos de beneficiados ausentes (cf.
obrigações do beneficiado: residência assídua, Franz Xavier Gmeineri, Institutiones [...], cit., II, 156 §
200; Trento: sess. 23, cap. 1). No entanto, a prática continuou a ser bastante permissiva, admitindo,
nomeadamente, a falta de residência nos benefícios sem cura de almas (António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., “Beneficium”, n. 63).
1619 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Beneficium”, n. 17.

1620 Franz Xavier Gmeineri, Institutiones [...], cit., II, 92, § 66. Já no caso das simples prebendas

(v. supra) não milita esta razão, pelo que podem ser auferidas por leigos.
1621 Franz Xavier Gmeineri, Institutiones [...], cit., II, p. 164.

1622 Franz Xavier Gmeineri, Institutiones [...], cit., II, p. 174.

323
Direito das coisas
§ 1094. Mas a consequência talvez mais notável da lógica ministerial dizia respeito aos
critérios de seleção dos beneficiados. Aqui, estava muito presente a ideia de que o
beneficiado não era um mero arrecadador de rendas, mas uma pessoa que, tendo que
desempenhar um ministério, t que ter as qualidades requeridas para tal. Essas qualidades
(morais, intelectuais, físicas e de idade1623) estavam fixadas pelo direito canónico e
enfaticamente sublinhadas pelo Concílio de Trento (sess. 24, c. 12)1624. Mas, para além do
cumprimento de requisitos absolutos, havia ainda que ponderar os méritos relativos dos
potenciais candidatos. Nos ofícios eclesiásticos mais importantes - como os bispos e
superiores de ordens religiosas - isto obrigava a que o provimento se fizesse mediante
concurso, constando de um exame formal, devendo ser aprovado o melhor (dignior). No
plano dos princípios, isto impediria - segundo alguns, mas não todos - a concessão de
benefícios por preferências pessoais, clientelares ou familiares 1625. Nos benefícios inferiores
exigência era menor, havendo quem - embora contra a letra dos decretos de Trento (sess.
24, c. 18) - dispensasse o concurso formal, nomeadamente nos benefícios que fossem
apresentados por patronos laicos1626; mas, de qualquer modo, exigia-se que o apresentado
fosse digno (embora não o mais digno), em termos de virtude (mais do que em termos de
nascimento1627). Em todo o caso, o princípio de que o ofício eclesiástico tinha uma natureza
espiritual, devendo ser exercido pelo mais digno e meritório, e de que a concessão do
correspondente benefício era um ato gratuito e liberal fazia com que qualquer motivação
interesseira ou qualquer pacto acerca da concessão fossem arguíveis de simonia (i.e., o
pecado que consistia na venda de função espiritual). Pelo que os critérios objetivos do mérito
sempre foram muito mais exigidos na colação dos benefícios eclesiásticos do que na
concessão dos ofícios ou mercês da república.
§ 1095. Em contrapartida, uma visão patrimonialista do benefício tendia a considerá-lo
como uma mera renda, semelhante a tantas outras existentes no mundo medieval e
moderno, incidindo sobre certos bens,. E, daí, que se concebesse a existência de benefícios
sem ofício subjacente (prebendas ou conezias) ou a venda de benefícios (entendidos como
meros réditos temporais1628) como isenta do perigo de simonia. Admitida a venda (ou a
troca), aceitava-se também a renúncia a favor de outrem, embora autorizada pelo colator

1623 O benefício curado exige 25 anos e ordem clerical; os outros exigem pelo menos 14 anos

(Trento, sess., 23, c. 6 de reformat). Sobre os requisitos pessoais para ter benefícios, v. João Baptista
Fragoso, Regimen [...], cit., II, 663, § 2, ns. 4 ss..
1624 cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Beneficium”, n. 9.

1625 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Beneficium”, n. 8. Em contrapartida, João

Baptista Fragoso (Regimen [...], cit., II, 663, § 2, ns. 4/5.) defendia que o bispo podia conceder ofícios a
seus consanguíneos idóneos, desde que o não fizesse com escândalo; apenas não lhes podendo
conceder os ofícios renunciados em suas mãos por outrem, n. 2.
1626 No padroado real português, a apresentação precedia exame e informação, normalmente

tirada pelo deão da capela real (Jorge de Cabedo, De patronatibus […], cit., c. 19, n. 1 (p. 69).
1627 Discutindo a questão de se nos ofícios seculares ou eclesiásticos eram de preferir os nobres,

Manuel Gonçalves Teles, Commentaria [...], cit., p. 167, n. 4 (não são de preferir os nobres pois não é a
nobreza do nascimento mas das virtudes e da vida honesta que tornam o servidor grato e idóneo para
Deus; para o governo da Igreja devem ser eleitos não os nobres pela carne mas os humildes e pobres,
n. 4).; apoia-se em S. Tomás, De regim. principum., liv. 4, cap. 15.
1628 Andrea Vallensis, Paratitla [...], cit., liv. 3, tit. 5, § 1, n. 5.

324
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
apostólico. Entendendo-se mesmo que este não podia conceder o benefício a outrem1629.
Tais renúncias eram muitos vulgares.
§ 1096. Numa lógica puramente patrimonial, também se entendia que o concedente do
benefício pudesse reservar para si uma porção do rendimento, a título de pensão. Isto foi
frequente até ao Concílio de Trento, o qual, seguindo a lógica espiritualista, proibiu estas
pensões, a não ser que ficassem votadas a fins também espirituais (como, v.g., a reparação
da igreja do padroado)1630. Mas, mesmo depois, não só se admitia que o fundador de uma
igreja reservasse uma pensão sobre os bens doados1631, como se manteve a prática de, em
certos benefício, se exigir, no momento da confirmação, o pagamento de uma soma
equivalente a metade do rendimento anual (meia anata). Daí que, perante a generalidade da
prática, a doutrina preferisse fixar limites às pensões, estabelecendo a regra de que estas
não deviam ser de tal modo graves que o beneficiado não se pudesse sustentar
comodamente, observando os preceitos de uma vida honesta e de hospitalidade; em geral, a
pensão não deveria exceder a terça parte dos frutos do benefício1632.
4.2.1.1.2 Padroados.
§ 1097. O direito de padroado1633 - que competia a quem tivesse fundado ou dotado uma
igreja em quantia apreciável (jus patronatus est jus honorificum, onerosum, & utile, alicui
competens in ecclesia, pro eo, quo de diocesani consensu ecclesiam contraxit, fundavit vel
donavit1634). Incluía, entre outras coisas, o direito de apresentar pessoa idónea para um
benefício vago (v. § 428 ss.). 1635.

1629 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Ius patronatus”, v. “Beneficium”, n. 46.
1630 Franz Xavier Gmeineri, Institutiones [...], cit., II, 172 s..
1631 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Ius patronatus”, “Pensio”, n. 6.
1632 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Ius patronatus”, “Pensio”, n. 8/9.

1633 Decretum, 2, p., C. 16, qu. 7, c. 33: “O mosteiro ou oratório instituído canonicamente não

deve ser tirado do domínio do instituidor contra a sua vontade, devendo-se permitir-lhe que o
encomende ao presbítero que quiser para a celebração dos ofício sagrados, com o consentimento do
bispo da diocese”. Cf. também Decretais, 3,38 (“De iure patronatus”). Sobre o padroado, v. Bento
Cardoso Osório, Praxis de patronatu regio […], cit.; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Ius
patronatus”; Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit.; João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., II, 689, §
7; Andrea Vallensis, Paratitla […], cit., ad III, 38; Franz Xavier Gmeineri, Institutiones […], cit., II, 136
ss..
1634 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Ius Patronatus”, n. 1.

1635 Sobre o padroado v. os respetivos artigos do Dicionário de História de Portugal, Porto,

Iniciativas Editoriais, 1961 e Dicionário Ilustrado de História de Portugal, 1985, bem como as indicações
contidas em Ana Mouta de Faria, “Função da carreira eclesiástica na organização do tecido social do
Antigo Regime”, cit., Joaquim de Carvalho & José Pedro Paiva e J. P. Matos, “A diocese de Coimbra no
século XVIII […]”, cit.. Literatura antiga, Jorge de Cabedo, De patronatibus [...], cit.; Bento Cardoso
Osório, Praxis de patronatu [...], cit.; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 1,5,19;
Bernardino Carneiro, Elementos de direito ecclesiastico [...], cit., 217; e José J. Lopes Praça, Estudos
sobre o padroado portuguez [...], cit.. Lista dos padroados da Ordem de Cristo (“as cinquenta
comendas do Padroado”), em Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., c. 18, n. 1. Formalidades e
fórmulas de apresentação, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., cap. 19. Sentenças sobre casos de
apresentação de beneficiados pelos reitores das Igrejas do padroado real, Manuel Álvares Pegas,
Commentaria [...], cit., tomo 13, p. 67 ss.. Depois de ter sido objecto de discussões nas Cortes vintistas,
os padroados (salvo o da Coroa) foram abolidos pelo dec. de 5.8.1833, reservando ao governo a

325
Direito das coisas
§ 1098. Embora a prática anterior fosse diferente e mais permissiva, o Concílio de
Trento procurou restringir o direito de padroado, limitando a sua concessão aos casos de
fundação ou dotação substancial de uma igreja ou capela. Em todo o caso, continua a
admitir-se, embora relutantemente, que o Papa, usando do seu poder absoluto (i.e., superior
ao direito), pudesse conceder padroados (de vi potestatis de camera) a quem não tivesse
fundado igrejas1636. Simultaneamente, estabelecem-se condições mais rigorosas para a
prova do direito de padroado, exigindo documento autêntico ou posse imemorial, com única
ressalva dos padroados imperiais ou régios, para os quais se continuavam a admitir todas as
provas admitidas em direito 1637.
§ 1099. Além do direito de apresentação, o direito de padroado incluía, desde logo, o
direito de pedir alimentos, por força das rendas do benefício, no caso de pobreza do patrono;
mas a avaliação da pobreza dependia da “qualidade” do patrono. Embora o Concílio de
Trento (sess. XXII, de reformat,. cap. ult.) tenha - na sequência de determinações canónicas
anteriores (cf. Decr. Greg. IX, cap. extirpandae, III, 5, 30) - proibido terminantemente os
patronos de se intrometeram na perceção dos frutos do benefício, a doutrina seguia
admitindo, mesmo nos finais do séc. XVIII, que os patronos podiam receber censos nos bens
da igreja fundada1638. No plano simbólico, os patronos tinham direito a lugares de destaque
na igreja, no coro e nas procissões (ibid.).
§ 1100. Estes direitos obrigavam o patrono à cura, inspeção e defesa da igreja, para que
esta não fosse prejudicada nos seus direitos. Em síntese, costumava recitar-se o seguinte
brocardo:
Patronos debetur honos, onus, utilitasque;
Praesentet, praesit, defendat, alatur egenus

apresentação dos benefícios eclesiásticos (cf. Bernardino Carneiro, Elementos de direito ecclesiastico
[...], cit., 236).
1636 Franz Xavier Gmeineri, Institutiones [...], cit., p. 139.

1637 Concílio de Trento, "Padroado", sess. 25, cap. 9: "Assim como não é justo prejudicar os

legítimos direitos de padroado e violar as pias vontades dos fiéis quanto à sua instituição, também não
é de permitir que, debaixo desta aparência, se coloquem os benefícios da Igreja em servidão, o que
muitos fazem de forma impúdica. Assim, para que se observe em tudo um equilíbrio devido, o Santo
Sínodo reconhece como título do padroado a fundação ou a doação que se demonstre provada por
documento autêntico e outras provas requeridas por direito; ou também por múltiplas apresentações
por tempo antiquíssimo que exceda a memória dos homens ou de outro modo equivalente, segundo a
disposição do direito. No entanto, naquelas pessoas, comunidades ou universidades nas quais aquele
direito as mais das vezes costuma ser obtido sobretudo por usurpação, exigese uma prova mais plena
e exata como título verdadeiro. Nem a posse imemorial lhes valerá senão quando, além de outras
coisas necessárias, se provarem apresentações, continuadas, e pelo espaço não inferior a cinquenta
anos, e sortidas de efeito. Todos os restantes padroados nos benefícios, tanto seculares, como
regulares, ou paroquiais, ou dignidades, ou quaisquer outros benefícios, em catedral, ou igreja
colegiada, ou privilégios concedidos, tanto com efeito de padroado como qualquer outro direito de
nomear, eleger ou apresentar para quando vaguem, são totalmente revogados, sendo tida como nula
qualquer posse deles, exceto os padroados sobre igrejas catedrais e outros que pertençam ao
imperador ou aos reis ou possuidores de reinos, bem como outras entidades sublimes e príncipes
supremos que tenham nos seus domínios direitos imperiais; assim como os concedidos em favor de
estudos gerais. Assim, os benefícios são concedidos como livres pelos seus colatores, tendo as
provisões destes pleno efeito”.
1638 Cf. Franz Xavier Gmeineri, Institutiones [...], cit., II, p. 138, § 160.

326
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 1101. (deve-se ao patrono a honra, o ónus e a utilidade; apresente, presida, defenda e
seja alimentado na miséria).
§ 1102. Neste brocardo, destacavam-se as características fundamentais do sistema de
direitos e deveres incluídos no padroado. Ou seja, o seu carácter honorífico, oneroso e
utilitário. Honorífico, pois encerrava certas honras, como a de apresentar o titular do
benefício (normalmente o reitor ou capelão da Igreja), a de ter a precedência nos atos de
culto (como as procissões, os ofícios, a bênção, etc.), a de ter direito a preces, a ter cadeira
especial na Igreja ou no coro, a ter sepultura em lugar de destaque, etc.1639. Oneroso, porque
sobre o patrono recaía o ónus de defender a igreja ou capela do seu padroado e de impedir
que os seus bens se dilapidem (ibid., n. 12). Utilitário, pois o patrono, sua mulher e família
tinham direito a ser socorridos pelos rendimentos da Igreja se caíssem na miséria (ibid., n.
14).
§ 1103. Os padroados podiam competir a muitas entidades. Desde comunidades
paroquiais ou poderosos locais a entidades eclesiásticas (como sés ou cabidos). A distinção
entre padroados leigos e eclesiásticos era a mais importante, decorrendo da origem dos
rendimentos com os quais se tinha construído ou dotado da igreja ou da vontade do
instituidor leigo no sentido de ser padroeiro o próprio abade da igreja1640 e era relevante de
diversos pontos de vista. Não apenas quando aos prazos de apresentação (seis meses nos
eclesiásticos; quatro meses nos leigos; em ambos os casos, sob pena de devolução ao
superior, se não exercido a tempo), mas também no modo de fazer a apresentação. Nos
eclesiásticos, o concurso entre os concorrentes era de regra, estando dispensado nos leigos.
Estes últimos, tinham outras regras menos estritas quanto à idoneidade do apresentado (não
tinham que abrir concurso, bastava escolher digno, mas não o mais digno) e quanto à sua
designação concreta, pois, antes da confirmação do apresentado, podiam mudar a
escolha1641.
§ 1104. Os padroados transmitiam-se, desde logo, por sucessão. Neste plano, não se
afastavam do direito sucessório normal, não exigindo, designadamente, masculinidade ou
progenitura. Eram inclusivamente divisíveis, quanto aos direitos de perceção de rendas.
Naturalmente que a apresentação, em si mesma, era indivisível. Mas, sendo vários os
herdeiros titulares do direito de padroado, eles podiam combinar entre si uma forma de gerir
o direito de apresentar (por exemplo, por eleição entre os cotitulares ou, o que era mais
frequente, pelo exercício alternado)1642. Alguns, podiam ser gentilícios ou familiares, não
podendo sair de certa família1643. O patrono podia doar o padroado à igreja de que fosse
patrono que, assim, ficava padroeira de si mesma1644.
§ 1105. Para os que consideravam que o padroado era algo de meramente temporal,
este podia mesmo ser vendido, sem perigo de simonia1645. Outros exigiam que o patronato
estivesse anexo a uma universalidade de bens de natureza temporal, para poder ser assim

1639 Bento Cardoso Osório, Praxis de patronatu […], res. 1, ns. 7/11.
1640 Jorge de Cabedo, De patronatibus […], cit., n. 11.
1641 Decr. Greg. IX, III, 38, 24 e 29; Franz Xavier Gmeineri, Institutiones [...], cit., II, p. 140, § 163.

1642 Franz Xavier Gmeineri, Institutiones [...], cit., II, p. 145, § 177.
1643 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Ius patronatus”, nota p. 695 col. 1.
1644 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Ius patronatus”, n. 30.

1645 Tal é a opinião de Franz Xavier Gmeineri, Institutiones [...], cit., II, p. 144, § 173.

327
Direito das coisas
transacionado; porque em si mesmo, considerado como prerrogativa de apresentar ofício
eclesiástico ou de obter honras numa igreja, seria um direito espiritual e, logo, inalienável1646.
4.2.1.1.3 Comendas.
§ 1106. Uma forma especial de atribuição de benefícios era a comenda1647. Em rigor,
não se tratava de uma concessão de benefício, mas apenas da sua “encomendação” (ou
entrega como que em depósito) 1648 temporária a alguém, que devia proteger e curar o
benefício, entregando-o, quando isso lhe fosse pedido, ao concedente, e pondo os frutos à
disposição do beneficiado1649.
§ 1107. O alemão Justus Henning Boehmer descreve assim a origem da instituição:
“Nos tempos primitivos não era possível pôr logo à frente das igrejas um pastor idóneo;
entretanto, para evitar todos os incómodos que normalmente nascem da anarquia,
costumavase encomendar e cometer a igreja vaga a alguém probo que, como tutor ou
procurador, se encarregasse de boa fé dos atos a ela relativos. Este não era pastor da igreja
e só era nomeado por certo tempo”. E prossegue, dando conta das críticas que os
protestantes dirigiam a todas estas formas de transferência para leigos das funções e rendas
da Igreja, “pouco a pouco, esta instituição degenerou em rapina, verificandose uma reação
contra ela [...] obrigando-se os bispos a, no prazo de um ano, proverem as igrejas ou a
substituir o comendador [...] Mas hoje estas comendas (ou beneficia commendatae)
justificamse mais pelos réditos que dão do que pelo bem da cura de almas” 1650.
§ 1108. Em Espanha, foi este, além disso, o sistema de distribuição das terras das
Américas pelos colonos. O comendador foi originariamente um encarregado temporário da
administração de um território, com a perceção dos respetivos tributos e as jurisdições
espiritual e secular correspondentes, enquanto esta não se provessem definitivamente os
respetivos ofícios. Mas esta ideia de precariedade foi-se obliterando progressivamente.
Solorzano Pereira, que trata longamente da instituição da encomienda, pela qual se
distribuíram aos colonizadores as terras das Américas, define ainda a comenda como o
recebimento de “alguma coisa em guarda ou depósito, amparo e proteção”1651. Mas também
já lhe acrescenta a outra dimensão patrimonial, mais próxima da realidade prática da época,
ao defini-la como o “direito de perceber o tributos dos índios, conferido por mercê” (ibid., III,
3, 2 ss.). Na verdade, como refere, estas nomeações “não davam nem conferiam título algum
ao que servia o benefício, só o constituindo como seu depositário, guardador ou
administrador por certo tempo e por causa de evidente utilidade da Igreja; mas com a
faculdade de que pudesse gozar e dispor dos frutos, como se fosse um beneficiado” (ibid.,
IV, cap. 15, 5 ss.).
§ 1109. Em Portugal1652, a comenda era definida como um “benefício de coisa imóvel,

1646 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Ius patronatus”, n. 5.


1647 Sobre padroados e comendas, comentadas, em António Manuel Hespanha, “Os bens
eclesiásticos […]”, cit.
1648 Commendare é depositar, D. 50, 16,186.

1649 Andrea Vallensis, Paratitla [...], cit., p. 462.


1650 Ius parochiale […], cit., sec. 8, cap. 2, ns. 25/27..
1651 Juan Solorzano Pereira, Politica indiana, cit., III, 1,1.

1652 Sobre o regime das comendas em Portugal, v. Lourenço Pires de Carvalho, Enucleationes

[...], cit..

328
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
retida a propriedade no concedente, de modo a que o usufruto passe para o aceitante em
virtude da fidelidade deste”1653. Discutia-se a sua natureza beneficial, sendo dominante a
opinião de que não se tratava de benefícios eclesiásticos, já que o múnus que estava
subjacente à perceção de frutos nada tinha de espiritual, consistindo na obrigação de fazer a
guerra aos infiéis1654. Era aos párocos das igrejas da comenda que competiam todas as
funções espirituais, para o que lhes era atribuída uma certa pensão (ou “cota”) extraída dos
frutos e rendimentos da comenda, de que os comendadores eram meros administradores
(ibid., n. 22).
§ 1110. Estavam atribuídos em comendas os benefícios, jurisdições e rendas das
ordens militares. Com a integração dos mestrados das Ordens na Coroa, esta torna-se
padroeira destas comendas1655. O rei, como mestre, apresenta a comenda (que não é um
benefício) e o comendador apresenta um vigário perpétuo ou reitor que provê os
benefícios1656. Aí, os comendadores repartiam com os curas (ou vigários perpétuos) os
réditos eclesiásticos, de acordo com os disposto na carta de concessão1657. Frequentemente,
os comendadores tinham os frutos das igrejas e os vigários as suas porções1658.
4.2.1.2 A enfiteuse eclesiástica.
§ 1111. Ao tratar da enfiteuse (v. 4.3.3.3, § 1310), referir-nos-emos a este tipo de bens
eclesiásticos, na verdade bastante comum.
§ 1112. Adiantemos apenas que as Ordenações dispunham que a enfiteuse eclesiástica
fosse regulada pelo direito canónico (Ord. fil.,4,39,2 in fine). Exigia a observância das
solenidades e requisitos deste direito, requerendo escritura pública. Não podia, em princípio,
ser perpétua ou por mais de três gerações ou vidas, embora alguns autores excetuassem o
caso de emprazamento de terra inculta, para a tornar mais atrativa ao foreiro1659. Também
era bastante generalizada a opinião que sustentava que a Igreja podia adquirir e reter
perpetuamente os prazos vindos a si por comisso, devolução do domínio útil pelo foreiro,
aquisição deste domínio pelo senhorio nos casos em que tinha direito de preferir na venda
dele1660. Porém, esta consolidação do domínio nas mãos da Igreja contrariava as leis de
desamortização de 11 de 30 de Julho de 1611. Outra especialidade relevante deste tipo de
enfiteuse era a de bastar o não pagamento do cânone por dois anos para dar lugar a

1653 Lourenço Pires de Carvalho, Enucleationes [...], cit., II, p. 10, n. 7.


1654 Lourenço Pires de Carvalho, Enucleationes [...], cit., 1, en. 2, ns. 18 ss..
1655 Cf. lista das comendas de Cristo do padroado da coroa (“as cinquenta comendas do

padroado”), em Jorge de Cabedo, Praxis de patronatu […], cit., cap. 18, n. 1 (p. 66).
1656 Jorge de Cabedo, Praxis de patronatu […], cit., cap. 18, n. 2 a 5; Bento Cardoso Osório diz

que “os reitores das igrejas do padroado real, nas quais foram constituídas comendas, continuam a
apresentar os curas e demais benefícios, como antes” (Bento Cardoso Osório, Praxis de patronatu […],
p. 91, n.1; p. 106, n. 4). Cf. diploma sobre a repartição das apresentações dos benefícios das
comendas e seus rendimentos entre comendadores e reitores em Osório, ibid., p. 93.
1657 Bento Cardoso Osório, Praxis de patronatu […], cit., p. 90, n. 2

1658 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Ius patronatus”, v. “Beneficium”, n. 11.
1659Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, n. 22; se se concedesse por
mais, era reduzida a 3 vidas, António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 72, n. 2. Para as modificações
pombalinas, v. CL de 9.9.1769, § 26.
1660 V. Ord. fil.,1,62,48 e Ord. fil.,2,1,6, em que se permitia às comunidades eclesiásticas adquirir

prazos sem restrição de tempo.

329
Direito das coisas
comisso; em compensação, o enfiteuta podia purgar a mora, satisfazendo rapidamente as
pensões antes da contestação da lide (v. Ord. fil.,4,39,2)1661.
§ 1113. Em suma. As especialidades da enfiteuse eclesiástica decorriam, ou da
aplicação do direito canónico, ou do favor ecclesia ou da política anti amortizadora da coroa.
Mas pouco se relacionavam com a especial natureza das coisas.
4.2.2 Coisas comuns, públicas, de ninguém e privadas.
§ 1114. Esta é uma outra classificação que provem do referido texto de Gaius sobre as
espécies de coisas1662.
4.2.2.1 Coisas comuns de todos.
§ 1115. Eram coisas comuns de todos aquelas que, por natureza, fossem de uso comum
de todos os seres animados, como o ar, as águas pluviais e correntes, o mar e o seu
litoral1663. Eram ainda comuns no sentido de que, não pertencendo a ninguém, ficavam a ser
do primeiro que as ocupasse, embora só nessa parte ocupada e sem prejuízo do uso dos
outros1664. Era o que acontecia com as praias do mar, em que todos podiam lançar redes ou
edificar, desde que não prejudicassem o direito dos outros1665. Em todo o caso, entendia-se
que o domínio privado sobre estas coisas era de difícil aquisição, apenas se podendo
usucapir por posse imemorial1666. E, fosse como fosse, este domínio estava sempre limitado
pela natureza pública destes bens. Pois os rios, os portos, as margens ribeirinhas (ribeiras,
ripae), estavam abertas ao uso público de todos e cada um – usos como aportar barcos,
amarrá-los às árvores, secar as redes -, mesmo que estivessem no domínio de alguém; ou
seja, apesar da eventual propriedade particular das margens1667, o seu uso era público1668.
§ 1116. A diferença entre coisas comuns de todos e coisas públicas era que as comuns
satisfaziam o uso indistinto tanto dos homens quanto dos restantes animais, ao passo que os

1661 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, n. 7; Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11, 28.


1662 D.1, 8 De rerum divisione, 1; Cf. D. 41.1 De adquirendo rerum dominio, 52 (“Modestinus libro
septimo regularum. Rem in bonis nostris habere intellegimur, quotiens possidentes exceptionem aut amittentes ad
reciperandam eam actionem habemus”).
1663 O mar litoral, quanto à jurisdição, era público. Cf. Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum

[...], cit. ad 2,1,§ 1, n. 1 (o mar largo era comum por natureza e insuscetível de apropriação jurisdicional,
embora houvesse pretensões ao domínio jurisdicional do Mar Adriático pelos venezianos, do Mar
Báltico, pelos prussianos, do Mar do Norte, pelos ingleses e, mais tarde, do mar oceano pelos
portugueses e espanhóis).
1664 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit. 2,1,§ 1, n. 2.

1665 A menos que alguém tivesse adquirido uma como que posse, em termos de ele só poder usar

essa coisa comum (v.g., pescando ou construindo), caso em que era protegido pelo interdito uti
possidetis, Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit. 2,1,§ 1, ns. 3 e 4.
1666 Mas não de longo tempo (30 anos); tal fora o título de aquisição do domínio jurisdicional do

Adriático pelos venezianos, Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit. 2,1,§ 1, n. 5.
1667 Os autores distinguiam entre as margens ribeirinhas dos rios (ripa fluminum), sujeitas à

variação sazonal das cheias, e o litoral do mar (litora marium), que variava diariamente com as marés.
Este último não era de ninguém, embora pudesse ser tutelado pelo príncipe; as ribeiras dos rios eram
dos donos dos prédios limítrofes, Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit. ad 2,1,2, ib., n. 4.
1668 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit. ad 2,1,2, ns.1 e 2.

330
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
usos das coisas públicas exigiam capacidades que só os homens tinham, como pescar ou
navegar. Pelo direito das gentes fora instituído nas coisas públicas um certo domínio
(nomeadamente, jurisdicional), de modo a que essas fossem reservadas aos povos de uma
certa circunscrição (comunidade ou universidade) territorial, de modo a assegurar o uso
comum de todos1669. Isso não acontecia nas coisas comuns em sentido absoluto, pois nestas
não havia nenhuma espécie domínio de uma comunidade particular, sendo antes
absolutamente comuns de todos1670, independentemente da terra a que pertencessem, e não
podendo sequer ser atribuídas ao primeiro ocupante (de outro modo, as coisas públicas)1671.
§ 1117. Os rios podiam ser públicos e privados. Os públicos eram os perenes, sempre
correntes e navegáveis. Privados, eram os que secavam e não se prestavam à
navegação1672. Os privados, por sua vez, diferiam dos próprios, pois este nasciam no terreno
de uma pessoa, correndo por ele. Os rios públicos pertenciam aos reis por cujo território
corriam. O seu uso era público, sendo, por isso, lícito a todos pescar neles1673. Esta
conclusão tinha algumas limitações: (i) não era válida quando o direito de pescar tivesse sido
vendido pela cidade ou pelo príncipe, instituindo um monopólio de pescarias1674; (ii) só se
aplicava aos rios públicos; (iii) não valia se as pescarias tivessem sido adquiridas por
particular por prescrição imemorial, pois este era o tempo de prescrição dos lugares
públicos1675.
§ 1118. Nos rios públicos não se podiam construir azenhas (molendina) ou outros
edifícios que impedissem o uso público ou a navegação (tal como nas vias públicas), a não
ser com licença do príncipe1676. Mas, se neles já houvesse azenhas, outros podiam-nas
construir, a não ser que os donos das primeiras tivessem obtido o privilégio de ser os únicos,
ou se esse fosse o costume do lugar1677.
§ 1119. Já nos rios privados e próprios, só o dono podia pescar1678.

1669 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit. ad 2,1,2 e ss., n. 5.


1670 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit. ad 2,1, 2 ss., n. 5 I a II.
1671 Cf. D.1,8,4: “Marcianus libro tertio institutionum. pr. Nemo igitur ad litus maris accedere prohibetur
piscandi causa, dum tamen ullius et aedificiis et monumentis abstineatur, quia non sunt iuris gentium sicut et mare:
idque et divus pius piscatoribus formianis et capenatis rescripsit. 1. Sed flumina paene omnia et portus publica
sunt.”; 1.8.5, Gaius libro secundo rerum cottidianarum sive aureorum. pr. Riparum usus publicus est iure gentium
sicut ipsius fluminis. Itaque navem ad eas appellere, funes ex arboribus ibi natis religare, retia siccare et ex mare
reducere, onus aliquid in his reponere cuilibet liberum est, sicuti per ipsum flumen navigare. Sed proprietas illorum
est, quorum praediis haerent: qua de causa arbores quoque in his natae eorundem sunt. 1. In mare piscantibus
liberum est casam in litore ponere, in qua se recipiant”. V. Ord. fil., 2,26,9/10.
1672 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit. ad 2,1,5, n. 6.
1673Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit. ad 2,1,5, ns. 7 a 9; v. Ord. fil.,2,26,8.
1674Que tivesse adquirido este direito de alienar por prescrição imemorial, Joannis Oynotomi, In
quatuor institutionum [...], cit. ad 2,1,5, n.10.
1675 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit. ad 2,1,5, n. 10.

1676 Mas nos privados e próprios, os donos podiam construir livremente, ainda que prejudicassem

outrem Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit. ad 2,1,5, n. 12 e 13.


1677 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit. ad 2,1,5, ns. 13 e 14. O senhor, se tivesse

o direito de obrigar os súbditos a ir ao seu moinho não podia proibi-los de ir a um feito de novo, Joannis
Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit. ad 2,1,5, n. 15.
1678 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit. ad 2,1,5, n. 11.

331
Direito das coisas
§ 1120. A distinção entre coisas comuns de todos, coisas públicas, coisas de uma
universidade e coisas particulares foi recebida na doutrina jurídica moderna, embora com
sentidos que não eram os direito romano e estavam sujeitos a indecisas polémicas
doutrinais.
§ 1121. Na classificação romana, a questão subjacente relacionava-se - como se refere
expressamente no texto das Institutiones – com a questão de saber se as coisas - em função
das utilidades que se satisfaziam com elas - estavam ou podiam estar no património de um
particular ou não. A maior parte das coisas estavam, ou podiam estar, no património de
alguém. Porém, às vezes isto não acontecia quando certas coisas eram insuscetíveis de
apropriação privada. Era o caso, em geral, das coisas sagradas; mas também o das coisas
das universidades, da república ou de entes coletivos, porque prosseguiam utilidades
coletivas1679.
§ 1122. No direito comum, retém-se algo do sentido da classificação das Institutiones,
ligada à oposição entre a natureza pública ou privada das coisas. Com alguma alteração no
sentido da palavra república. No sentido estrito do direito comum, república era apenas a
capital do império ou de um reino que não reconhecesse superior, sendo privados os
restantes burgos e cidades1680. Mas, em sentido amplo, o termo aplicava-se também a
qualquer cidade em que houvesse administração da justiça por juízes (e restantes oficiais)
próprios, quer estes fossem instituídos pelo rei ou pelo povo. E, assim, as coisas deputadas
para uso da república – no sentido mais estrito, ou no sentido mais amplo - eram públicas,
não podendo ser vendidas, dadas, doadas ou obrigadas, sob pena de nulidade absoluta
(nullius momenti)1681. Públicos eram, neste sentido, os palácios reais, mas também as casas
em que se administrava a justiça1682
§ 1123. Outras classificações das coisas (dos bens) no direito comum eram, porém,
suscitadas por outras preocupações. O conceito de bens do rei (regalia) surgiu, na esteira de
uma constituição de Frederico II - inserida Libri feudorum1683 e transposta para as

1679 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,1,7.


1680 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, nº 36.
1681 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, nº 40.
1682 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […],cit., tomo 9, ad 2,26, 11, gl. 13, que refere que este

caráter público dos paços da justiça não implica que sejam do rei; em alguns casos, eram dos
concelhos ou até de donatários, que os tinham mandado fazer à sua custa e que os reparavam e
mantinham (com decisões judiciais a este propósito).
1683 Libri feuD.2, 16 (Constituição de Frederico II: “Regaliae, armandiae, viae publicae, flumina

navigabilia et ex quibus fiunt navigabilia, portus, riparica, vectigalia, quae vulgo dicuntir telonia, moneta,
multarum poenarumque compendia, bona vacantia et quae ut ab indignis, legibus auferentur, nisi quae
specialiter quibusdam concedentur; et bona contrahensium incestas nuptias, condemnatorum et
proscriptorum [...]; angariarum, perangariarum, et plaustrorum et navium praestationes, et extraordinaria
collatio ad felicissimam regulis numinis expeditionem, potestas constituendorum magistratum ad
iustitiam expediendam; argentariae et palatia in civitatibus consuetis; piscationum reditus & salinarum,
et bona committentium crimen majestatis, dimidium thesauri in loco Caesaris inventi, non data opera,
vel loco religioso; si data opera, totum ad eum pertineat”; interpretação e comentário, Philipus Ernestus
Bertram, De genuino sensu ac valore constituionis Friderici I. Imp., II. F. 56, Halae Magdeburgicae, Io.
Friderici et Frid. Augusti Grunertorum, 1765); outro conceito importado do direito feudal era o de alódio
(ou bens alodiais), Libr. feud., 2, 54.

332
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
Ordenações, Ord. fil., 2,26, Dos direitos reais1684 - para designar os bens que, pela sua
natureza (ou seja, segundo a constituição tradicional do reino), pertenciam ao rei e que, por
isso, ou não podiam sair do seu património ou só saíam dele por um ato de disposição do rei.
Subsidiariamente, o conceito servia para interpretar atos jurídicos, nomeadamente doações
régias. Já com o conceito de bens da coroa (bona regiae coronae), queria-se identificar os
bens que, por pertencerem à coroa do reino, de que o rei era apenas um administrador, não
podiam ser dela separados a título definitivo, mas apenas a título precário e temporário. No
âmbito dos bens do rei, outras distinções existiam, correspondentes a designações usadas
na lei ou na doutrina - reguengos, bens fiscais, bens domaniais, sesmarias1685 (v. cap
2.4.3.3.2).
§ 1124. Já com o conceito de bens alodiais, queria-se significar os bens que, pela
natureza da sua função, pertenciam naturalmente a um património privado. Os bens - ou
coisas - presumiam-se alodiais, porque a relação entre os homens e os seus bens
compreenderia, originariamente, todas as faculdades de uso e de disposição; embora,
depois disso, se tivessem introduzido outros modelos de pertença patrimonial.
§ 1125. São estas grelhas de classificação que vão ser aplicadas às situações concretas
existentes na prática, situações essas que tinham tido origem nas circunstâncias da história
e na sua leitura através de categorias jurídicas de várias procedências e desenhos jurídicos
diferentes dos do direito romano.
§ 1126. A distinção entre bens públicos e privados permanece, mas a sua relevância
esbate-se perante a necessidade de classificar de forma mais fina a situação, quer a dos
bens públicos, quer a dos bens privados.
4.2.2.2 Coisas públicas ou do rei (regalia).
§ 1127. Quanto aos bens públicos, os autores destacavam a já referida categoria de
coisas (ou bens) do rei ou regalia (v. antes cap. 2.4.3.3.2.)1686, que encontravam no tit. 2,26
das Ordenações1687, sem que fosse antecedida de qualquer definição. Manuel Álvares Pegas
anuncia a matéria como importantíssima (“Augustissima”), complicada (“intrincata”) e
frequente (“quotidiana … admodum frequens”), definindo coisas do rei (direitos reais) como
aqueles direitos supremos que competem aos príncipes que não reconhecem superior1688,
direitos (jura et reditus) que estes teriam como um pagamento, fixado na constituição
primordial do reino ou por costume imemorial1689, devido pela administração da justiça e pela

1684 Onde, no fundamental, se reproduz a lista dos regalia do direito feudal lombardo.
1685 V. Ord. fil.,4,43.
1686 Em geral sobre a evolução (sobretudo medieval) do conceito de regalia. H. Thieme, “Die

Funktion der Regalien”, em Z. d. Savigny-St., Germ. A., 62(1942) 57 ss.; I. Ott, “Der Regalienbegriff im
12 Jahrhundert”, em Z. d. Savigny St. Kan. A., 66(1945) 234 ss.; G. Astuti, La formazione della stato
mudemo in Italia, l, Torino 1967, 50. Para o conceito de "direitos reais" no período iluminista, em
Portugal, António Ribeiro dos Santos, papéis sobre "direitos reais", em Cód. Bib. Nac. Lisboa, 4670,
4677.
1687 Corresponde a Ord. af., 2,24. Existem outras enumerações. Cf. António Manuel Hespanha,

História das instituições […], cit., p. 145 n. 240.


1688 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 9, ad 2,26,rubr., gl. 1, ns. 1 e 2. Remete para

Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., t. 1, p. 2, liv. 1, cap.1.


1689 “[…] ea, quae ratione redditus, & tributi ab antiquo per constitutionem, aut possessionem

imemorialem debentur”, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 9, ad. 2,26,rubr.., gl. 1, n. 5.

333
Direito das coisas
proteção dos súbditos1690. Isto não quereria dizer, nem que os reis não tivessem outros bens
que não fossem desta espécie, nem que todos os direitos reais estivesse enumerados em
Ord. fil.,2,26, onde faltavam, entre outros (cf. ibid., n. 6), as terças dos concelhos, o padroado
régio e os reguengos1691.
§ 1128. A doutrina distinguia entre regalia maiora e minora. Os primeiros competiriam ao
rei em razão de "poder e jurisdição supremos"1692 e, por isso, ou não se podiam separar da
sua pessoa (adeririam aos seus ossos, "ossibus principis adhaerunt") ou, pelo menos,
estavam reservados ao rei, no sentido de que não se podia entender estarem
compreendidos numa doação régia genérica, antes carecendo de uma referência
concreta1693.
§ 1129. Os regalia minora1694 eram direitos que competiam ao rei "em razão do seu
domínio universal ou em sinal de submissão”, pois, por costume ou destinação expressa, se
presumia que eram principalmente destinados às despesas do governo da república, como
seriam os tributos (tributa, vectigalia), os rios, as estradas públicas.
§ 1130. Alguns destes estavam consignados a fins especiais, para os quais os povos os
pagavam e aos quais estavam atribuídos1695: as terças dos concelhos (tertia oppidorum) para
o reparo das muralhas1696, o consulado marítimo para a manutenção de uma armada de
costa, os rendimentos das alfândegas e portos secos consignados ao pagamento de salários
de oficiais, os rendimentos da Casa da Índia, destinado ao fabrico de navios, a dízima nova
do pescado, consignada aos gastos de uma armada de galés, os rendimentos das minas,
destinados à câmara real, as anatas, as décimas e o real de água, afetados a despesas da
guerra. Dado que estariam destinados a certas finalidades, não podiam ser delas desviados
sem uma justa causa; por isso, não se entendiam compreendidos numa doação genérica,
pois não se podia presumir que o príncipe doador quisesse prejudicar terceiro ou estas
consignações1697.

1690 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 9, ad 2,26,rubr., gl. 1, n. 4..
1691 Sobre reguengos, comentário do mesmo autor a Ord. fil.,2,16.
1692 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 9 [0.2.28] ad Rubr. n. 87; Domingos Antunes

Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., I. 2, c. I., n. 16; Jorge de Cabedo, Decisiones […], dec. 42,
n. 3.
1693 Como criar magistrados, capitães, cunhar moeda, legitimar ilegítimos.

1694 Enumeração e regime: Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3,

cap. 1 (tributos); cap. 2 (Angarias e perangarias [serviços dos vassalos]); caps. 3 e 4 (ruas e estradas);
cap. 5 (moinhos); cap. 6 (portos); cap. 7 (ilhas); cap. 8 (coisas comuns); cap. 9 (caça e pesca); cap. 10
(palácios); cap. 11 (sal); cap. 12 (veios e minas), cap. 13 (tesouros); cap. 14 (bens vagos); cap. 15
(heranças ab intestato).
1695 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 9 [ad Ord. fil.,2.28] ad Rubr. n. 87;

“non est quies sine armis, nec arma sine stipendiis, nec stipendia sine tributis habere possunt”;
acolhendo outra definição, os regalia minora "dizem apenas respeito aos proventos fiscais e aos frutos
patrimoniais" (Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., t. I., I. 2, c. I., n. 19).
1696 Por isso se dizia, reforçando ainda mais essa indisponibilidade pelo rei, que as terças dos

concelhos e das multas agrárias ou coimas (prov. 18.11, 1577, alv. 18.1.1613) eram “dos povos” e não
dos reis (v. Ord. fil.,2,28,2), sendo este apenas o seu administrador (cf., sobre a sua arrecadação, Ord.
fil.,1,70,3).
1697 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 9 [0.2.28] ad Rubr. n. 87.

334
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 1131. Outros direitos reais não tinham um especial destino, pertencendo ao príncipe
como senhor de todos. Era o caso, desde logo, dos reguengos, bens que o príncipe tinha
reservado para os gastos da república e cujos rendimentos, por isso, deviam ser reservados
ao rei1698, sendo administrados pelos seus almoxarifes. Quando o rei não explorasse
diretamente tais terras – o que era a regra -, estas terras eram dadas em enfiteuse ou em
censo, contra pensões enfitêuticas ou censíticas, que também constituíam direitos integrados
neste grupo de rendas reais. Depois, incluíam-se neste grupo os bens vagos ou desertos,
existentes dentro do reino. Em virtude do um princípio de direito comum, as terras incultas e
ermas (i.e., não possuídas por ninguém), como os matos maninhos, que se encontrassem
dentro das fronteiras do reino, pertenciam ao rei, enquanto senhor de todo o reino, como
bens vagos (v. Ord. fil.,2.26,17), porque o rei era senhor de todo o reino1699. Eram, portanto,
terras públicas, enquanto ninguém provasse que eram suas; e, portanto, não podiam ser
adquiridas por ocupação1700. Esta regra valia para as terras ermas e incultas fora dos limites
do termo de algum concelho, pois, se as terras estivesses no termo de um concelho
pertenceriam a este, como que tendo sido concedidas pelo príncipe para uso dos vizinhos,
os quais teriam sobre elas uma presunção de direito (intentio fundata).1701 Tipicamente, estas
terras eram concedidas em sesmaria (v. Ord. fil.,4,43), por uma concessão gratuita e
precária, condicionada ao cultivo num certo prazo, sob pena de recuperação pelo rei para
nova concessão.
§ 1132. Destinados a custear despesas gerais de governo eram também as portagens,
as jugadas (Ord. fil.,2,33), as décimas velhas do pescado, as pensões enfitêuticas e outros
rendimentos dos prédios patrimoniais ou reguengos, os tributos antigos, como o “salaio”,
pago pelos pescadores, o tributo das moendas e azenhas feitas em rios públicos, os fornos,
moinhos e barcas, as pescarias, das peitas e jantares. Nestes casos, uma vez que não havia
uma especial consignação destes rendas, elas podiam ser livremente doadas e entendia-se
estarem compreendidas nas doações genéricas dos direitos reais.
§ 1133. Uma outra categoria de bens do rei seria a daqueles bens que, estando unidos à
coroa do reino para sustentar o estado real, eram do rei como poderiam ser de qualquer
privado, como os prados de pasto (defesas, montados, saltos e matas), os maninhos e
outros prédios rústicos (granjas) ou urbanos (armazéns e casas). Também estes bens se
compreendiam nas doações régias1702.
§ 1134. A estes bens do rei se acrescentaria ainda uma quarta categoria: a das coisas
que o príncipe tinha, não pelo direito de principado, mas como privado, porque os tinha
comprado ou os tinha recebido de devedores1703. Quanto a estes bens, não se entendia que
estivessem compreendidos em doações genéricas, mas antes se exigia uma expressão

1698 V. Ord. fil., 2,16, proibindo que entidades isentas adquiram bens nos reguengos.
1699 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria as Oidinationes […], cit., ad Ord. fil.,4,43,pr., ns. 3 e 4
(“quia regulariter quidquid est intra fines territorii praesumitur esse illius, cujus est territorium”).
1700 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria as Oidinationes […], ad Ord. fil.,4,43,pr., n. 5 (abona-se em
Álvaro Valasco, Tractatus de jure emphyteutico […], cit., qu 8, n. 37).
1701 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria as Oidinationes […], ad Ord. fil.,4,43,pr., n. 6; cita Jorge de

Cabdeo, Decisiones […], cit., p. 2, dec. 112 (“De agris desertis”), n. 3; e Álvaro Valasco, Tractatus de jure
emphyteutico […], cit., qu 8, n. 38.
1702 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 9 [0.2.28] ad Rubr. n. 89.
1703 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 9 [0.2.28] ad Rubr. n. 90.

335
Direito das coisas
menção1704 para que se considerassem doados.
§ 1135. Num esquema:
Regalia maiora: Poder e jurisdição Inalienáveis (pelo
suprema, menos sem expressa
inseparável do rei. doação).

Regalia minora: Bens e rendas Tributos, rios, estradas Por presunção na


destinados às públicas titularidade do rei, mas
despesas do alienáveis.
governo da
república.

Bens e rendas que Direitos reais e rendas Por presunção na


pertenciam ao conexas (jurisdições, titularidade do rei, mas
príncipe como coimas e penas, bens alienáveis.
senhor de todos (ou dos condenados);
senhor natural). Reguengos;
Terras desertas ou
vagas (ainda desertas ou
já dadas em sesmaria), e
seus rendimentos (como
as pensões enfitêuticas
ou censíticas);
Estancos e monopólios;
Portagens, jugadas,

Bens e rendas do rei Terças, consulado, Inalienáveis.


consignados a certas alfândegas e portos
despesas. secos, décima militar,
etc.

Bens do rei como Quintas, herdades, Do rei, se


privado, mas unidos matas, casas armazéns incorporados no tombo
à coroa do reino e dos bens do rei.
reservadas para as
despesas da
república.

Bens adquiridos pelo Titulados e provados


rei por via contratual pelos meios de direito
ou por herança de válidos para
seus maiores. particulares.

§ 1136. O que unifica esta categoria de bens do rei é a sua vinculação ao sustento do
estado real e às funções que lhe são inerentes, desde o exercício da mais elevada jurisdição
até ao governo corrente do reino ou mesmo ao simples mantimento económico da casa do

1704 O que fosse isto, v. Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 9 [0.2.28] ad

Rubr. ns. 91 ss..

336
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
rei1705.É esta referência ao rei que lhes dá a todos uma presumível natureza pública. Mas
essa natureza não conduz a uma unificação do seu regime, nomeadamente quanto ao
sentido e modalidades da sua alienação ou concessão a particulares. A possibilidade da sua
concessão está antes relacionada com o tipo de titularidade que o rei tem sobre eles. Se os
tem enquanto administrador da coroa, ou de finalidades concretas para as quais estes bens
lhe tenham sido conferidos, os seus poderes de concessão são restritos. Se os detém
enquanto “senhor universal” e seu ecónomo, pode geri-los com a liberdade próxima de um
particular.
4.2.2.3 Bens da coroa.
§ 1137. Uma outra categoria das coisas públicas, presente na doutrina portuguesa era a
de bens da coroa1706, usada na Lei Mental1707 (v. cap. 2.4.3.5). A definição de bens da coroa
também suscitava nos autores a complicadíssima questão da classificação do património
régio. Complicadíssima, não só porque nela confluem tópicos doutrinais de proveniência
diversa, mas também porque as classificações variavam consoante o seu objetivo dogmático
(v.g., definição dos bens e direitos inalienáveis da coroa1708, definição dos direitos
prescritíveis1709, definição dos direitos concedidos por doação genérica, v. cap. 2.4.3.6).
§ 1138. Na perspetival da Lei mental, o autores distinguem, normalmente, (i) o
património “privado” do príncipe, constituído por aqueles bens que ele possuía antes de ser
rei e (ii) o património público ou da coroa, neste se distinguindo (ii a) o património fiscal, que
compreende os reguengos, as sesmarias, os bens dos confiscados e, em geral, todos os
bens não (ou ainda não) incorporados expressamente na coroa do reino, e (ii b) o património
da coroa do reino. Este último era constituído: (ii b 1) pelos direitos reais (enumerados, v.g.,
em Ord. Af., II, 24, Ord. Man. II, 15, Reg. Faz. cap. 127 e Ord. fil., II, 26) e pelos tributos
(bens da coroa do reino "por natureza"); e (ii b 2) pelos bens expressamente incorporados na
coroa por meio do seu registo nos livros dos próprios da coroa do Arquivo Régio1710.
§ 1139.
Património Privado
Património fiscal
Património Público  Direitos reais
Património da coroa  Tributos
Bens incorporados

1705 Não lhe era licito que o rei usasse e fruísse dos bens púbicos senão para ocorrer às

necessidades comuns e ao bem da República, v. Domingues Antunes Portugal. De donationibus […],


cit., liv. II, cap. IV.
1706 António Manuel Hespanha, História das instituições, cit., pp. 286/287.

1707 A Lei Mental, com as declarações e interpretações a que foi sujeita, foi incorporada nas Ord.

Man. 2, 17, donde passou, pouco modificada, para as seguintes (Ord. fil., 2,35). Comentários à Lei
Mental, muito úteis para a sua interpretação no séc. XVII, em Manuel Álvares Pegas, Commentaria […],
cit., tomos 10 e 11.
1708 Cf., v.g., a classificação dada por Domingos Antunes Portugal, De donationibus [...], cit., p. 2,

c. I., n. 15.
1709 Cf., v.g., a classificação de Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 9, p. 308; Jorge

de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 2, c. 42, n. 4.


1710 Formalidades em Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t.. 10, p. 16, n.8.

337
Direito das coisas

§ 1140. Esta classificação, que é a de Pegas1711, é por outros autores simplificada a


duas categorias, a de bens privados do rei, que lhe competem ratione personae, e bens
públicos ou da república, que lhe competem tanquam defensor reipublicae1712, incluindo nos
primeiros as duas categorias de património público ou da coroa de Pegas.
§ 1141. Seja como for, todos os autores estão cientes do carácter artificial destas
distinções, muito marcadas pela distinção “público”-“privado” de origem romana, mas sem
correspondência na estrutura política medieval, caracterizada precisamente pela indistinção
entre as esferas do público e do privado. Assim, tanto Portugal como Pegas afirmam que
"hoje a distinção não releva, pois todos os bens do rei, quer públicos quer privados, gozam
do mesmo regime"1713 ou que "esta distinção entre património público e privado do príncipe
não tem qualquer importância no foro"1714. Para efeitos da lei mental, a questão acabava por
se resolver por meio de uma enumeração e não com base nestas tortuosas distinções
conceituais.
§ 1142. Assim - e seguindo a enumeração de Pegas1715- eram bens da coroa: as
cidades, lugares e castelos; os montes maninhos; as lezírias; os direitos reais enumerados
nas Ordenações; as pensões e rendas concedidas em juro e herdade; o padroado régio; as
capelas da coroa quando tivessem sido objeto de incorporação; as jurisdições; a décima das
ilhas; os reguengos quando tivessem sido objeto de incorporação. Em contrapartida, não
eram bens da coroa, não estando portanto a sua doação sujeita à Lei mental - deferindo-se,
antes, pelas regras da simples doação ou pelas dos contratos de concessão agrária (ad
excolendum, ad habitandum [e não ad militandum]: enfiteuse, arrendamento, etc.) - os
reguengos não incorporados nos próprios da coroa, as sesmarias, os baldios e pastos
comuns. No caso de dúvida, o ónus da prova de que os bens doados eram da coroa do reino
pertencia ao procurador desta, pois se presumia - salvo no caso de bens da coroa por
natureza - que os bens eram patrimoniais do rei (favor libertatis) e de que, assim, podiam ser
doados mais plena e livremente.
§ 1143. Sendo bens da coroa do reino – e não apenas bens do rei –, os bens estavam
sujeitos a um regime mais estrito de indisponibilidade, pois os reis, que eram apenas seus
administradores, não os podiam doar em termos tais que os alheassem definitivamente da
coroa, prejudicando os seus sucessores1716. Este regime restritivo consistia, basicamente, (i)
em exigir cartas de doação para titular a concessão de bens da coroa, (ii) por vezes com a

1711 Commentaria, tomo 10, pg. 13, n.l; t. 2, pg.2.


1712 Domingos Antunes Portugal, De donationibus [...], cit., t. 2, p. 3, c. 43.
1713 Domingos Antunes Portugal, De donationibus [...], cit., t. 2, p. 3, c. 43, n. I.

1714 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 10, p. 13, n. 2. Ainda na época iluminista,

quando a distinção "público-privado" já renascia, a distinção é tida por despicienda, Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis [...], cit., I., 36.
1715 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 10, lac. cit., ns. 5 ss.

1716 Como teria acontecido com D. Duarte, a quem a prodigalidade de seu pai teria deixado rei

“das estradas de Portugal”. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Rex”, ns. 13 e 14: “Rex
non potest alienare bona Coronae … quod bona Regni non sunt própria ipsius Regis, imo sunt illius
dignitatis regalis; et non tamtum illa bona Coronae alienare non potest, sed debet revocare alienata […]
Rex tamen bene poterit facere modicas donationes de bonis Coronae […], non tamen ita largiter, ut
magis videatur prodigalitas, quam benevolentia”.

338
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
exigência de que aí houvesse uma referência expressa ao bem ou direito concedido e (iii) em
estabelecer o princípio de que as doações eram precárias, podendo ser revogadas pelo rei, e
devendo ser confirmadas por morte quer do rei, quer do donatário1717 (v. cap. 2.4.3.5). A este
rigor da lei não correspondem um idêntico rigor da prática1718. Não apenas os reis
confirmavam invariavelmente as doações feitas, por si ou seus antecessores, como a
doutrina desenvolveu uma teoria segundo a qual, sendo as doações de bens da coroa uma
forma de remunerar serviços prestados pelos vassalos, elas se transformavam em doações
remuneratórias irrevogáveis (donationes ob benemetita, antidorales, remuneratoriae) que os
reis tinham o dever quási (como que) jurídico de confirmar1719 (v. cap. 2.4.3.8). Pegas diz
com todas as letras "ser inviolável neste Reyno, os Senhores delle guardarem & manterem
as (doações) que fizeram os Senhores seus predecessores" e que os tribunais reconhecem
"como por direito consuetudinário deste Reyno os Senhores Reys são obrigados a manter, &
sustentar as mercês feitas pelos Senhores Reys seus predecessores, ainda que sejam
meramente liberaes, para cuja validade não he necessária mais que a concessão, ainda que
se não tire carta ou alvará [...} "1720.
§ 1144. Além de tentar proteger os reis da sua própria liberalidade, a Lei Mental instituía
um sistema específico de sucessão nos bens da coroa, consagrando a masculinidade e a
primogenitura. Por morte do donatário, o direito a pedir a confirmação dos bens doados
transmitia-se ao seu descendente masculino mais velho (v. cap. 2.4.3.7).
§ 1145. A sucessão por primogenitura1721 (v. § 327, § 915) era como que uma
consequência do princípio de indivisibilidade. O discurso jurídico letrado de há muito insistia
no princípio de que as jurisdições e as dignidades não se dividiam (dignitates et jurisdictiones
non dividuntur)1722. O argumento ocorrente para justificar o sistema era o da necessidade de
manter o poder das famílias, no qual se apoiava o próprio poder da coroa: "quia per
integritatem, & bonorum unitatem conservantur bona, et memoria donatariorum, & servitiorum
remunerationes; “unitas et integritas est unicum remedium conservandi bona in donatariorum

1717 Cf., sobre o regime das doações de bens da coroa, António Manuel Hespanha, História das

instituições […], cit. 382 ss.; ID. As vésperas […], cit., 402 ss..
1718 A própria doutrina era hesitante e cheia de modulações e adversativas, como se pode ver

desta síntese: “Rex potius debet habere ratum factum sui praedecessoris, quam invalidum, si aliquod
praejudiciale non continerat, quoniam beneficium Principis debet esse permanens, et non debet
recipere diminutionem […] Non tamen ita, quod ad hoc obligetur vi coactiva, sed vi directiva; quoniam
unus Rex, seu Princeps non imponuit legem alteri successori”, António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., s.v. “Rex”, n. 15.
1719 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., c. 167, n. 5; Jorge de Cabedo, Decisiones […], p. 2,

dec. 1 ss. (maxime dec. 19, n. I ss.); Domingos Antunes Portugal, De donationibus […], cit., p. 2, c. 7, n.
25 (baseado na piedade que o rei deve votar às decisões dos seus maiores e na regra "corona
nunquam moritur"); Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 12, ad 2,45,12, gl. 14, ns. 4 e 5
(pg. 167), Fontes: Ord. fil., 2,35 e 2,38. Cf., sobre o assunto, António Manuel Hespanha, As vésperas
[…], cit., 408 ss..
1720 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 12, ad 2,45,12, gl. 14, ns. 4 e 5 (pg. 167).

1721 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 403 ss..

1722 L. Praeterea, dos Lib. feud., 2, 55, pr./1; Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 1,

p. 424, nº 8. A indivisibilidade do reino era um tópico inspirador: “Regnum debet esse unicum, & non est
dividendum, quoniam si Regnum dividatur, cito destruetur, et unicus prínceps in eo esse debet”, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Rex”, 12.

339
Direito das coisas
sucessores”1723. Na verdade, não é claro que os interesses das famílias ou o interesse da
coroa ganhassem com a sucessão masculina. Pode ser que na sua base estivessem apenas
elementos simbólicos.
§ 1146. A adoção da indivisibilidade e primogenitura tinham, antes de mais, o efeito de
evocar o sistema linhagístico em uso na coroa e na sucessão das dignidades. Por aí se
explica, porventura, que a doação de bens puramente patrimoniais (i.e., que não continham
jurisdição nem regalia: doação de reguengos, sesmarias, armazéns, casas, em propriedade)
não estivesse sujeita à regra da indivisibilidade1724. A progressiva importância dos elementos
simbólicos ligados ao esquema primogenitural levou a que sectores nobiliárquicos (mas não
os juristas) insistissem na exclusão da linha transversal - o que aumentava significativamente
o risco biológico da extinção da estirpe - e na consagração do direito de representação em
favor do neto, filho do primogénito pré-morto, que, então, afastaria o secundogénito1725.
§ 1147. Os efeitos práticos da Lei Mental, como dispositivo de controlo político da
nobreza, não devem ser exagerados.
§ 1148. Desde logo - como aliás a própria lei previa (Ord. Man., 2,17,23) - o rei podia
dispensar a sua aplicação. Mas, além disso, o âmbito de aplicação da Lei mental não
abrangia, zonas extensas da liberalidade régia. De facto, não estavam sujeitas à lei: (i) as
concessões de bens de reguengos ou de sesmarias, as concessões em enfiteuse de
quaisquer bens da coroa (mesmo de bens da coroa em sentido estrito, embora esta hipótese
não fosse comum), ou as suas concessões para fins não nobres (isto é, para povoamento ou
cultivo, ad habitandum ou ad excolendum) 1726; (ii) as doações de bens das ordens
militares1727; (iii) as doações feitas à Igreja, pois os bens da coroa perdiam então a sua
natureza e tornavam-se bens eclesiásticos, amortizando-se no donatário1728. Alguns autores
defendiam mesmo a opinião - que poderia tirar todo o alcance prático à lei - de que não
estavam sujeitas à lei mental as doações remuneratórias de serviços; mas esta opinião

1723 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 11, pg. 41, n. 2.
1724 Alguma jurisprudência dos sécs. XVI e XVII alargava o princípio da indivisibilidade à sucessão
nos reguengos (cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 11, c. 20, pg. 40; Jorge de Cabedo,
Decisiones […], cit., p. 2, dec. 27, n. 5.
1725 A solução proposta era a do direito feudal e também a do direito castelhano dos morgados

(lei 40 de Toro). Contra, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 10, p. 109, n. 55, invocando
apenas a razão dogmática de que nos feudos não se dava a representação. A solução será adotada
por D. João IV - a pedido das cortes de 1641 (cap. 27 da nobreza e 26 do clero); cf. Capítulos gerais,
pp. 55, 76 e 8]. Sobre a divisibilidade dos feudos no direito comum (nomeadamente, sobre a distinção
entre feudos divisíveis e indivisíveis, ou per modum maioratus), Manuel Álvares Pegas, Commentaria […],
cit., tomo 11, pg. 59 e pg. 105, n. 3.
1726 Ord. Man., 11,17,6; para a interpretação, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 10,

p., c. 39 (maxime, p. 317 n. 54).


1727 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 10, p. 333, n. 34.

1728 As doações de bens da coroa feitas à igreja tinham importantes especialidades: uma delas

era esta de não estarem sujeitas à Lei Mental (nem a confirmação, v. Manuel Álvares Pegas,
Commentaria […], cit., t. 12, p. 132, n. 9); daí que se não encontre registo dessas doações nas
confirmações gerais ou nas listas de donatários da coroa. Outra era a de não poderem ser impugnadas
por excessivas ou por lesivas, não estando assim sujeitas às restrições que a doutrina fazia às doações
régias (cf., para este último ponto, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 10, c. 35, p. 258
ss.).

340
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
nunca se tornou dominante1729.
4.2.2.4 Reguengos.
§ 1149. As terras da coroa do reino eram concedidas, como vimos, visando a
contrapartida de serviços nobres, como o auxílio e o conselho (auxilium et consilium). A sua
concessão estava sujeita ao regime especial da Lei Mental (v. cap. 2.4.3.5).
§ 1150. Para além destas, havia as terras que o rei detinha enquanto privado e de que
dispunha de acordo com as regras do direito comum, entre vivos ou por morte, como
qualquer privado.
§ 1151. Sobravam ainda as terras reguengas ou reguengos, a que se referem as
Ordenações nos títulos 2,30, 2,31, 2,16, 2,17, 2,22 e 2,331730. Eram referidas nas
Ordenações para atribuir aos seus moradores o privilégio de não estarem sujeitos aos
encargos dos concelhos, para proibir que os privilegiados (clérigos, fidalgos e cavaleiros) aí
adquirissem bens, para sujeitar as terras reguengueiras ao tributo das jugadas e para
estabelecer algumas peculiaridades das concessões de terras reguengueiras.
§ 1152. Os reguengos eram os bens que pertenciam ao príncipe como tal, em razão do
seu império e principado1731 e que, no reinado de D. Pedro I, tinham sido registados nos
livros “dos próprios” (tombo dos bens particulares do rei). Claro que desde aí o rei tinha
adquirido outros bens que, com algum que não tivesse sido então tombado, constituíam os
bens puramente patrimoniais do rei (cf. § 1150). Sobre esses bens, o rei tinha reservado um
tributo em sinal de reconhecimento de supremo senhorio e destinado a custear as despesas
de sustento e manutenção da dignidade régia, a que se chamara jugada1732. Por pagarem

1729 Cf. a discussão em Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 10, p. 402, n. 5; este

autor não adere à posição mais radical, restringindo a doutrina ao caso de doação feita a não súbdito,
pois os serviços do súbdito eram devidos e, logo, as doações não seriam remuneratórias.
1730 Cf. ainda Ord. fil.,2,18,6 e 2,22.

1731 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 8, ad 2,16 gl. 1, ns. 1 e 2.

1732 V. Ord. fil.,2,33. Sobre a sua origem e correspondência com tributos de direito comum, v. Manuel
Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9, ad 2,33, rubr., n. 1 a 4. A doutrina moderna discutia se as jugadas
eram um tributo ou uma prestação contratual. Gabriel Pereira de Castro e Álvaro Valasco, nos seus tratados sobre a
enfiteuse inclinavam-se para a natureza tributária, mas Manuel Álvares Pegas discordava deles, preferindo a
natureza contratual, estribado em indícios literais (v.g., Ord. fil.,2,27,2 fala em “contrato”), v. Manuel Álvares Pegas,
Commentaria [...], cit., tomo 9, ad 2,33, rubr., n. 6. A jugada incidia sobre as produções em trigo, milho, vinho e linho
(Ord. fil.,2,33,pr.; ou noutros frutos expressamente referidos no foral, v. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...],
cit., tomo 9, ad Ord. fil.,2,33,pr., c. 10, n. 23), sendo a sua taxa de um oitavo (salvo diferente disposição do foral,
Pegas, ibid., n. 25), sem dedução das despesas de cultivo (v. Pegas, ibid., cap. 18, n. 90-91). Era um tributo geral,
devido por todos, mesmo pelos privilegiados, salvo privilégio ou isenção expressa no foral, registado nos livros de
jugadas (v. Pegas, ibid., cap 24, n. 119). Por lei de que resultou Ord. fil.,2,29, D. Manuel I teria revogado privilégios
antigos de fidalgos, cavaleiros (Pegas, ibid., n. 143), subsistindo apenas uma isenção bastante restrita e
condicionada da Igreja (Ord. fil.,2,22, v. Pegas, ibid., ns. 145 e 146). As jugadas incidiam, portanto, sobre clérigos,
cónegos e bispos, (Ord. fil.,18,6; comentário, Pegas, ibid., n. 183 ss., max 187 e 189); comendadores (ibid., n. 201;
vereadores, juízes, oficiais dos concelhos (ibid., n. 203; juízes de altos tribunais(ibid., n. 204); Hospitais (ibid., 218);
bens das capelas (ibid., n. 231); confrarias (ibid., n. 232); colégios e universidades (ibid., n. 233). Em todo o caso,
era comum que os forais isentassem das jugadas os “cavaleiros”, o que fornecia uma boa base para disputar sobre
a obrigatoriedade de as pagar (v. Pegas, ibid., ns. 213 ss. e 247 ss.: moedeiros, bombardeiros, desembargadores e
seus colonos, cavaleiros isentos pelas cartas de forrai, ibid., n. 257 ss., sempre com muitas decisões judiciais).
Como era um ónus real, transmitia-se com a coisa, mesmo que o adquirente fosse privilegiado, c. 24, n. 120 ss.; 140
ss.) e atribuía ao rei ou donatário um privilégio executivo em relação a outros credores (Manuel Álvares Pegas,
Commentaria [...], cit., tomo 9, ibid., cap. 6, n. 18). As jugadas eram pagas pelos colonos (Manuel Álvares Pegas,
Commentaria [...], cit., tomo 9, ibid., ns. 19 e 202).

341
Direito das coisas
este imposto, as terras reguengas eram também chamadas terras jugadeiras, embora a
correspondência exata entre as duas categorias fosse controvertida.
§ 1153. Também a distinção entre terras reguengueiras e terras puramente patrimoniais,
que era sobretudo baseada na circunstância formal do registo dos bens no tombo dos
“próprios da coroa”, oferecia dificuldades conceituais, de que a doutrina se dava conta.
Manuel Álvares Pegas exprime essas dificuldades, logo no início do seu comentário a Ord.
fil.,2,30: “[3.] Embora seja certo que estes bens reguengueiros sejam bens do príncipe e se
enumerem entre os bens do rei [regalia], como defende Portugal e prova Ord. tit. 2,16, já
comentada, no entanto tenho dúvidas sobre em que diferem dos outros bens patrimoniais a
que antes nos referimos. E Valasco1733 opina que são certos prédios que estão em
propriedade plena nos possuidores salvo cânon ao rei, com o qual se transmitem para
qualquer outra pessoa [doutrina, decisão judicial] e, assim, podem ser divididos, se isso for
costume [...], o que não é irracional, pois, por direito comum, a divisão da enfiteuse é válida
[...]. [4.] Mas os referidos doutores falam em termos muito gerais, que não explicam
exatamente a minha proposição. Primeiro, porque entre os prédios que pertencem ao
príncipe anumeram os fiscais, feudatários, reguengueiros e enfitêuticos e entre todos estes
há muita diferença, embora em todos eles se pague alguma coisa, tributária ou em cânon.
Segundo, porque também estes prédios se dividem em duas espécies, como se prova de
Ord. fil., 2, 16 e 17. Terceiro, porque se encontram alguns bens reguengos que não se
podem alienar, nem doar, nem deixar em testamento, como se vê em Ord. fil., tit. 2,45, em
que vários bens são tributados com tributos daqueles de que se fala nos reguengos. E sei
que alguns bens são reguengueiros, que pagam tributos a algum castelo e seu alcaide, e
que não pagam imposto ou cânon ao príncipe, e que não foram considerados neste assunto
[...]”1734.
§ 1154. Poucas destas terras reguengueiras – como, de resto, as terras patrimoniais do
rei – eram exploradas diretamente ou cedidas a título de arrendamento. Quando o eram, a
sua administração era assegurada pelos almoxarifes e seus oficiais: os almoxarifes do reino
ou de almoxarifados especiais1735. Quando doadas, as terras jugadeiras ficavam no domínio
pleno (ou alodial) do possuidor, sem comisso, laudémio ou necessidade de licença do
príncipe para alienar, a não ser que tivesse havido pacto em contrário1736. Então, podiam ser
vendidas, aforadas, dadas em censo, integradas em capela ou morgado1737, sendo as suas
rendas igualmente administradas pelos almoxarifados respetivos. Se a jugada não fosse
paga, o jugadeiro não caía em comisso, como aconteceria se fosse um foreiro. Se não fosse
cultivada, a jugada não era devida, pois supunha uma colheita. Mas o prédio podia ser
retirado ao seu dono e dado em sesmaria a quem o quisesse cultivar1738.
§ 1155. Mas o rei também podia dar terras reguengas em enfiteuse, ou impor-lhe um
censo. Porém, a criação de uma segunda imposição – neste caso, o foro ao rei - sobre a

1733 Álvaro Valasco, Quaestiones iuris emphyteutici, cit., qu. 13, n. 1,


1734 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9, ad 2,30, rubr., ns. 3 e 4, p.330.
1735 Cf. Ordenações da fazenda, de 17.10.1516, em José Roberto Monteiro de Campos Coelho e Sousa

(org.), Systema […], cit.; António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 116, 214.
1736 V. Ord. fil.,2,17; Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9, ad 2,33, rubr. cap. 4,

ns.12 e 13; ns. 241 ss..


1737 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 26, n. 7.

1738 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9, ad 2,33, rubr. cap. 5, n. 17..

342
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
mesma terra libertava-a do pagamento da jugada. Não porém, se a terra jugadeira fosse
dada em enfiteuse pelo seu possuidor, pois nesse caso não se verificavam as razões para
que a jugada deixasse de se pagar1739.
4.2.2.5 A concessão de coisas públicas.
§ 1156. A concessão de bens da coroa é tratada a propósito dos bens da coroa do
reinos (v. cap. 2.4.3.5) e do contrato de doação (v. cap. 6.9.2.1.2).
§ 1157. O regime de concessão de ofícios foi referido no capítulo a estes dedicado (v.
cap. 2.6.5.1).
§ 1158. A concessão de mercês é referida a propósito do contrato de doação (v. cap.
6.9.2.1.1).
§ 1159. A concessão de terras sem jurisdição foi tratada no cap. 4.2.2.4. Uma
modalidade especial (as sesmarias) será tratada de seguida.
4.2.2.6 Sesmarias.
§ 1160. A figura fora inspirada pelo direito romano (agri deserti: C., 11.62. De fundis
patrimonialibus et saltuensibus et emphyteuticis et eorum conductoribus; C.,11,58; De
censibus et censitoribus et peraequatoribus et inspectoribus,7,2), aparecera na época
medieval e estava regulamentada com detalhe nas Ordenações (Ord. fil., 4,43), na
sequência de uma lei de (28.5) 13751740.
§ 1161. Podiam ser objeto de concessão em sesmaria quaisquer terras incultas, quer
aquelas que nunca tivessem sido apropriadas e permanecessem desertas, e vagas para o
rei (Ord. fil., 2,26,171741), quer as que os donos mantivessem improdutivas por mais de um
ano, sem uma justa causa; já que a lei pretendia, não apenas promover novos
arroteamentos, como impedir o abandono de terras já cultivadas.
§ 1162. Só podiam ser dados em sesmaria os terrenos desertos que pertencessem ao
príncipe por direito comum, nomeadamente se ele lhes tinha imposto um tributo em sinal da
sua superioridade como rei1742.

1739 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9, ad 2,33,rubr, ns. 234 a 239. As

razões eram que o rei (neste caso, por meio de um colono seu), não devia pagar impostos a si mesmo
e de que uma coisa não devia pagar dois tributos (como acontecia na sisa, que não era paga pelas
vendas de coisas do rei), embora pudesse pagar duas prestações privadas.
Arq. Hist. Mun. Coimbra /Pergaminhos Avulsos, nº 29. [fl. 1] V. https://www.cm-
coimbra.pt/index.php?option=com_docman; http://www.silb.cchla.ufrn.br/downloads/tabelmon.pdf. Fontes
doutrinais: Amaro Luis de Lima, Commentaria ad Ordinationes Regni Portugalliae, (ex liv. 4,36 [usque
4,79,3]) ad perficiendum operam ab Emmanuel Gonçalves da Silva, I (e único), Olisipone, Francisco
Luis Ameno, 1761; Álvaro Valasco, Tractatus de iure emphyteutico […], cit., qu. 8, ns. 34 ss.; Jorge de
Cabedo, Decisiones [...], cit., 2 p., dec. 112, n. 4; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit, 1,7,3
e 4; 3,1,8; Historia […], § 61.Manuel de Almeida e Sous (Lobão), Notas […] a Melo […], cit., 1, ad 1,7, 3
e 4, p. 231; 3, ad 3,1,8 p. 63;
1741 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.,4,43,pr., ns. 3 a 5.

1742 Terras tributárias ou fiscais, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 112, n. 1; Domingos
Antunes Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., liv. 3, cap. 3 a 41). Assim se entende a observação de Manuel
Álvares Pegas de que uma terra jugadeira podia ser dada em sesmaria, caso não fosse cultivada (“Si terra, ex qua
jugata solvenda esset, non colatur, et praemissa notificatione dominus non parverit, alteri in perpetuum
titulo, vulgo sesamria concedi potest”), Comentaria […], cit., tomo 9 ad Ord. fil. 2,33, gl. 1, cap.5, n. 17.

343
Direito das coisas
§ 1163. As terras vagas eram reais, como real era a prerrogativa de tirar as incultas aos
seus donos por causa da utilidade pública. Tal prerrogativa apenas era delegável por
expressa doação ou comissão. Daí que os senhores das terras e os mestres das ordens não
se pudessem apropriar das terras, devendo antes dá-las em sesmaria, e sem qualquer
pensão1743. Nas terras das Ordens militares, as sesmarias eram do rei, enquanto rei, e não
enquanto mestre da Ordem1744. Por isso, as sesmarias não podiam ser dadas por priores ou
comendadores, em enfiteuse (isto é, contra pensão ou cânon) (Ord. fil.,4,43,15), como
alguns defenderiam, muito erradamente1745. Muito menos se podiam dar em sesmaria terras
que pertencessem aos povos dos concelhos, para seus pastos e criações1746. Jorge de
Cabedo refere expressamente (loc. cit.) o caso da província do Brasil, que pertencia à ordem
de Cristo, em que as terras seriam dadas em sesmaria pelos capitães, sem pensão, por
carta passada em nome do rei e com uma dízima que pertencia ao rei como Mestre da
Ordem de Cristo. Também aí as terras vagas não podiam ser dadas em enfiteuse pelos
vereadores dos concelhos, pois não eram bens próprios desses concelhos, mas públicos de
todos os cidadãos e vizinhos, só podendo ser dados em sesmaria (ou seja, sem pensão).
§ 1164. Em contrapartida, não podiam ser dadas em sesmarias as terras desertas
situadas nos termos dos concelhos que não tivessem sido reservadas expressamente pelo
rei como terras fiscais ou tributárias da coroa, por se presumir serem comuns dos seus
vizinhos, para pastos e outros usos coletivos comuns dos povos de um concelho, por antiga
concessão régia1747. Cabedo cita um aresto dos finais do séc. XVI em que este princípio é
recebido: “Julgouse em hum feito da Lourinhãa, que veio por apelação do Almoxarife, que se
não podiam dar terras de sesmaria, quando prejudicavão o geral proveito dos moradores: em
Julho de 1598. [...]”; e comenta “Fallit hoc nisi Princeps tales fundos sibi fecerit vectigales,
quia tunc pertinent ad Principis coronam, seu fiscum”, citando o texto das Ord. man. [4,67,8]
correspondente a Ord. fil., 4,43,12 - "que não forão coutados, nem reservados pelos Reys
que ante nós forão"1748.
§ 1165. A lei previa, porém, que também se pudessem dar em sesmaria terras dos
concelhos, ouvido o procurador do concelho e os vereadores, se da concessão não
resultasse prejuízo atendível para os pastos e outros cómodos dos vizinhos1749.
§ 1166. Esta questão de saber se os terrenos incultos nos termos dos concelhos, eram

1743 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 112, n. 3, Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad
Ord. fil.,4,43,15, n. 1.
1744 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.,4,43,15, ns. 3 e 4.
1745 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 112, n. 4.
1746 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2 aresto 10.
1747 Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil., 4,43,pr., n.6; Idem., ad Ord. fil., 4,43,9, n. 5; Idem,
ad Ord. fil.,4,43,12, n. 1; abona-se em Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 112 (“De agris desertis”), ns.
2 e 3; Idem., p. 1, aresto 46; Álvaro Valasco, Tractatus de jure emphyteutico […], cit., qu 8, n. 38 a 42;
Francisco de Caldas Pereira e Castro, Analyticus commentarius sive ad typum instrumenti emptionis
[…], cit., cap. 21, n. 6). Ord. fil.,4,43,12, Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., Ord. fil.,4,43,12, ns. 2 a 4. Jorge
de Cabedo, Decisiones [...], cit..
1748 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p.1, ar. 46.
1749 V. Ord. fil.,4,43,9; Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., liv. 3, cap. 43, n. 90,
Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.,4,43,9, ns. 1 e 2; Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1,
aresto 46. Aos vizinhos competia uma ação de dano contra os concessionários, Mauro Luís de Lima, Commentaria
[...], cit., ad Ord. fil.,4,43, 12, n. 2.

344
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
do rei ou dos povos era crítica. No território do reino, integralmente dividido em concelhos, a
presunção era a de que os terrenos incultos eram comuns. Isto terá levado ao desuso da
figura das sesmarias, pois estas só continuariam a ter lugar ou em terrenos averiguadamente
do rei (terras tributárias ou foreiras da coroa, que a esta pagassem algum tributo agrário,
como jugadas, ou um foro enfitêutico ou censítico) ou relativamente a terrenos particulares,
vagos por incúria dos donos. Mas no Brasil, de muitas terras vagas e com limites indefinidos,
a regra parecia ser a da natureza real das terras ermas, exceto no caso em que
pertencessem a termos concelhios bem determinados.
§ 1167. Quanto às terras incultas de propriedade particular também não se davam em
sesmaria, pois se entendia que cabia ao dono decidir se as terras deveriam ser cultivadas ou
ficar em pousio, servindo para usos complementares de outras leiras cultivadas (rotação de
culturas, pasto do gado, matos para estrume ou camas dos animais)1750. Para além disso, os
proprietários tinham direito a manter pousios os terrenos ermos contíguos às suas
propriedade (as chamadas “saídas)1751.
§ 1168. Os bens abandonados vinculados a morgados ou capelas não se davam em
sesmaria, pois isso importaria a sua alienação; mas obrigava-se os administradores a cultivá-
los, o mesmo acontecendo nos bens administrados por tutores1752.
§ 1169. Os almoxarifes ou os sesmeiros por estes nomeados1753 citavam os donos
(nominalmente ou em pregão, no caso de desconhecidos) para apresentarem uma
justificação da falta de cultivo durante pelo menos um ano1754. Na falta de justificação, para
além da imposição de uma pena arbitrária medida pela culpa de não cultivar1755, a terra (ou a
parte dela não cultivada) era concedida por períodos de cinco anos, ou menos, de acordo
com a qualidade da terra1756. Se o dono apresentasse justificação para a falta de cultivo, esta
era atuada pelo notário e registada no título de concessão, para memória futura1757. O
conhecimento de reclamações quanto à concessão cabia aos almoxarifes, se as terras
fossem enfitêuticas ou tributárias à coroa; ou, se as terras eram isentas, ao juiz ordinário do
lugar da contenda acerca da sesmaria1758.
§ 1170. As sesmarias concediam-se sem qualquer pensão adicional: se eram terras
fiscalmente isentas, continuavam como tal; se fossem tributárias, não se lhes impunha outro
tributo (Ord. fil.,4,43,13). A lei era explícita e rigorosa, não admitindo a relevância de costume
em contrário, mesmo imemorial. Todavia, Amaro Luís de Lima lembra, no comentário, que o

1750 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.,4,43,11, ns. 1 a 4: cada é um árbitro das suas
coisas, desde que disponha delas de acordo com as leis e os bons costumes; sobre tentativas de fraude à lei, Ord.
fil.,4,43,8.
1751 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.,4,43,15, n. 6.
1752 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.,4,43,6, ns. 1 e 2; lembra Ord. fil.,1,62,50 sobre
a remoção de tutores faltosos.
1753 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.,4,43,pr., n. 2.
1754 A falta de citação originava a nulidade do processo subsequente (Mauro Luís de Lima, Commentaria
[...], cit., ad Ord. fil.,4,43,1, ns. 1 a 3; ad Ord. fil.,4,43,2.
1755 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., da Ord. fil.,4,43,4, ns. 4 e 5.

1756 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.,4,43,3 ns. 1 e 2; ad Ord. fil.,4,43,4, ns. 1 e 2.

1757 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.,4,43,3, n. 3.

1758 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.,4,43,5, n. 3.

345
Direito das coisas
costume imemorial era o melhor título do mundo1759, abrindo para o reconhecimento de
antigas práticas de conceder sesmarias contra pensões suplementares.
§ 1171. No Brasil, as sesmarias têm um florescimento, a partir de 1530, ano em que
Martim Afonso de Sousa, capitão mor e governador, recebe o encargo de dar terras em
sesmaria. O regime das sesmarias brasileiras tem umas quantas especificidades, umas
terminológicas (como o uso da palavra sesmeiro para o concessionário da sesmaria), outras
de regime, como o estabelecimento de um foro, a partir de 1695 (CR 27.12.1695; antes
pagavam apenas o dízimo ao rei, v. alv. 8.12.1590), pelo menos para certas zonas; ou a
confirmação real da carta de concessão, passados três anos (a partir de 1698); ou, ainda, o
estabelecimento de limites espaciais às concessões (a partir de 1697)1760.
4.2.3 Comuns de todos.
§ 1172. Aos bens comuns de todos – como o ar ou o alto mar – já antes nos referimos
ao tratar dos bens públicos.
4.2.4 De uma universidade.
§ 1173. Os bens comuns eram os que estivesse apropriados coletivamente por uma
comunidade e destinados a um uso comum. Em rigor, o seu estatuto assemelhava-se ao dos
bens em compropriedade, que pertenciam a mais do que uma pessoa, como os bens dos
sócios, os bens comuns dos cônjuges ou os bens que tivessem ficado indivisos entre os
herdeiros. A diferença era a de que os bens comuns tinham esse estatuto como que por
natureza, por estarem vinculados aos interesses de uma comunidade natural, como um
município ou uma corporação.
§ 1174. Para este efeito, uma universidade era um conjunto de várias pessoas,
designado por um nome especialmente atribuído (como um conjunto de cidadãos, de
estudantes e professores, de moleiros, de alfaiates ou de outros artífices). Esta entidade
coletiva podia ser proprietária de coisas em comum, como matas, pastos, rendas ou somas
de dinheiro guardadas em arca comum, que então se diziam bens da universidade, pois não
pertenciam a cada um dos membros individualmente, mas a todos em conjunto, pois
estavam destinadas conjuntamente aos usos de todos1761. Como este uso coletivo das
coisas não tinha tido origem numa deliberação, mas decorria da própria existência dessa

1759 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad 13, n. 4.


1760 Bibl.: Erivaldo Fagundes Neves, "Sesmarias em Portugal e no Brasil", Politeia. História e
sociedade, 1.1(2001) 111-139; Marcia Mota, Nas fronteiras do poder. Conflitos de terras e direito
agrário no Brasil de meados do séc. XIX, Rio de Janeiro, Vício de Leitura, 1998; Laura Beck Varela,
Das Sesmarias à Propriedade Moderna, Rio de Janeiro: Renovar, 2005; Carmen Alveal, Converting
Land into Property in the Portuguese Atlantic World, 16th-18th Century. Tese (Doutoramento em
História) – Johns Hopkins University, 2007; Rafael Chambouleyron e Karl-Heinz Arenz, Anais do IV
Encontro Internacional de História Colonial. Vol. 2. Terra e império: os direitos de propriedade na
América portuguesa em perspectiva comparada, Belém, Açaí, 2014. Projeto de publicação de cartas de
sesmaria: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/em-dia/demarcacao-de-territorio;
1761 “Universitas collectio plurium hominum, uno nomine specialiter eis deputato, ut est universitas

civiumn, vel scholarum … collegium pistorium, sartorum et aliorum artificium, qui possunt habere res
communes, nemora, pascua, piscinas, salinas, vectigalia, et aliam item pecuniam in aerario seu arcam
communem, et hae dicuntur res universitatis, quae non sunt singulorum separatim, sed omnium et
universirum de universitate usibus & conjunctim destinatae”, Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum
[...], cit. ad 2,1,6, n. 1.

346
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
comunidade, estas coisas estavam naturalmente votadas ao uso daqueles que fizessem
parte dela não podendo, por isso, ser apropriadas individualmente por nenhum dos
membros, embora pudessem ser usadas por cada um1762. Por isso, aquilo que pertencia à
universidade não era dos particulares, sendo também certo que esta separação patrimonial
entre a universidade e os seus membros também valia para as dívidas1763.
§ 1175. A respublica também era uma universidade, com a particularidade de
compreender a totalidade das pessoas de uma certa circunscrição territorial. Neste sentido,
as coisas destinadas à utilidade comum dos cidadãos eram comuns a todos eles, merecendo
a classificação de coisas comuns públicas e não podendo ser cedidas a usos particulares
incompatíveis com o uso público1764. Em sentido estrito, respublica era só a cidade de Roma
ou aquela onde vivesse o imperador ou um rei ou autoridade que não reconhecesse
superior. Neste sentido estrito, as cidades e os burgos que reconhecessem superior tinham
uma natureza privada. Porém, em sentido lato, respublica aplicava-se a qualquer cidade em
que houvesse jurisdição ordinária, ou seja, juízes próprios e seus oficias, fossem eles
instituídos pelo rei ou pelo povo1765. E, por isso, os bens dos concelhos eram assimilados a
bens públicos, votados aos usos comuns aos vizinhos.
§ 1176. No plano patrimonial, as universidades eram consideradas como menores,
devendo os seus atos de disposição de bens serem confirmados pelo rei, como seu protetor,
e gozando do privilégio de poderem pedir uma restitutio in integrum (v. cap. 7.1.3.4) no caso
de serem lesadas1766.
§ 1177. Em Portugal, entre os bens comuns, neste sentido, avultam os bens dos
concelhos1767, terras apropriadas coletivamente por estes e que nos forais aparecem

1762 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit. ad 2,1,6, n. 2.


1763 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit. ad 2,1,6, n. 3. Se a universidade fosse
condenada e não tivesse bens, era obrigada a lançar uma coleta sobre os seus membros, ibid., n. 4.
Por outro lado, a coletividade não ficava obrigada por dívida contraída pelo seu administrador a não ser
que tivesse atribuído um especial mandato para tal ao administrador ou que a soma mutuada fosse
gasta em utilidade comum, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, nº 39.
1764 As coisas deputadas para uso da república não podiam ser vendidas, doadas ou obrigadas,

sob pena de nulidade nullius momenti, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, n. 40.
1765 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, n. 36.

1766 C.11.30.3, “Imperator Alexander Severus. Rem publicam ut pupillam extra ordinem iuvari

moris est”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, nº 37 e 38. O mesmo acontecia com
o fisco real (“Nota quod Rex, & fiscus funguntur jure minoris, & restituuntur”, António Cardoso do
Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Rex”, add. (ed. 1740, p. 380.)
1767 O surgir dos concelhos deu origem ao aparecimento de novas formas de apropriação do solo

ou, pelo menos, deu uma nova forma jurídica a antiquíssimos modelos sociais de utilização da terra. A
primeira categoria de terras dentro dos alfozes concelhio é a das terras atribuídas a título individual,
perpétuo e hereditário aos seus habitantes, mediante certas contraprestações contidas no foral. Eram
terras de propriedade alodial sujeitas apenas a ónus tributários (terrae de ius privatum salvo canone).
Outra categoria era a das terras pertencentes à coroa e que esta tinha reservado para si depois da
constituição do concelho. Eram os reguengos do concelho, sujeitos aos regimes dos reguengos em
geral, e cujos moradores gozavam de determinados privilégios em relação aos deveres dos vizinhos
para com o concelho (Ord. fil.,2,30 e 31). CF. António Manuel Hespanha, História das instituições […],
cit., 137.

347
Direito das coisas
designados por "baldios", "matos maninhos", pauis, "pegos"1768. Sobre elas impendia um
direito coletivo de uso, traduzido no direito de apanhar lenha, de caçar e pescar, de trazer
gados a pastar. No entanto, desde os tempos mais recuados que este direito das
comunidades estava sujeito a usurpações: ou por parte do senhor da terra (eventualmente
também das oligarquias municipais), que se apropriava destas terras e as dava de
arrendamento ou de foro a cultivadores individuais, ou dos próprios concelhos, que os
aforavam a particulares para obter receitas ("rendas do verde", que englobavam também as
rendas de pastagem pagas pelos criadores de fora do concelho que tivessem neste o seus
gados a pastar) ou pura e simplesmente os distribuíam pelos notáveis da governança.
Mesmo sobre a propriedade individual alodial impendia um direito coletivo aos pastos, do
qual apenas estava isenta a propriedade coutada, pelos funcionários concelhios ou reais
("couteiros", "juízes das coutadas"), a favor do proprietário.
§ 1178. Dos concelhos podiam ainda ser edifícios ou lugares de uso comum, como
paços ou casas, passais, terreiros ou logradouros, açougues, celeiros, cuja propriedade era
da universidade, o uso porém de todos, não podendo ser, por isso concedidos (ou aforados)
a particulares, sem licença do rei1769.
4.2.5 Coisas de ninguém.
§ 1179. Coisas havia que não eram de ninguém (res nullius)1770. Algumas, eram de
ninguém por natureza, como os animais selvagens – terrestres, peixes ou aves -, cuja
propriedade era, por isso, atribuída ao primeiro ocupante. Outras, eram-no por facto humano,
como as coisas abandonadas pelos seus donos (derelictae a domino)1771; o abandono das
coisas pelo seu dono não se presumia1772. Na dúvida, as coisas presumiam-se de
alguém1773. Uma vez que a propriedade não dependia da Graça, as coisas dos infiéis não

1768 Sobre as modalidades sociais, políticas e jurídicas da gestão dos bens comuns dos

concelhos, v. Laureano M. Rubio Perez, “El regimen comunal y la gestión del común en el noroeste de
la Peninsula Iberica, siglos XV-XIX” em http://congresonoroiberico.com/documentos/20121105%20-
%20LAUREANO%20M.%20RUBIO%20-%20ponencia.pdf.; MARÍA JOSÉ PÉREZ ÁLVAREZ & LAUREANO M.
RUBIO PÉREZ, “Familia y comunidad rural. Modelos agrarios, colectivismo social y comportamientos
familiares en la provincia de León durante la edad moderna”, em
http://revistas.usal.es/index.php/Studia_Historica/article/view/shhmo201436177222
1769 V. Ord. fil.,4,43,12 e 15; 1,66,17. Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 2, dec. 112; p.

1, ar. 46.
1770 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit. 2,1,7.

1771 O abandono de uma coisa (derelictio) supunha não apenas um ato físico – de largar o bem,

de deixcar de o usar (abjectio) - mas ainda a intenção de abandonar (o animus derelinquendi). Os


exemplos mais comuns eram o abandono de animais ou o lançamento ao mar da carga de uma nave,
para a salvar (cf. D.14, 2 14.2. De lege Rodia [Rhodia] de iactu). Se faltava a intenção de abandonar,
como no caso de uma coisa perdida, a propriedade não se extinguia, devendo o achador entregar a
coisa ao dono, se soubesse de quem era, ou anunciar publicamente (por pregão ou comunicação às
autoridades) o achado. Se o dono não aparecesse, a coisa devia ser entregue aos pobres e não
apropriada pelo achador (salvo se este mesmo fosse pobre, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit.,
s. v. “Res”, n. 20). Além disso, o achador não podia usucapir a coisa (António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., s. v. “Res”, n. 19), nem sequer pedir alvíssaras pela sua entrega ao dono (António Cardoso do
Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, n. 22).
1772 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, n. 21.

1773 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit. ad 2,1,7, n. 3.

348
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
eram res nullius, nem podiam ser ocupadas. Porém, as coisas que já tinham sido de cristãos
e que lhes tinham sido usurpadas pela força, tornavam-se de quem as reconquistasse, em
domínio pleno, podendo ser guardadas pelo conquistador ou atribuídas por ele a outrem1774.
Este regime não era senão a aplicação do princípio geral de que os bens tomados (praeda)
(em guerra justa) ao inimigo ficavam a pertencer ao general vencedor1775. O facto de a
guerra se destinar a recuperar coisas injustamente esbulhadas apenas a justificava (a
tornava justa).
4.2.6 Coisas particulares.
§ 1180. As coisas que não eram sacras, públicas, de universidades ou de ninguém,
eram particulares. Esta era a situação comum das coisas e, por isso, era o que se presumia
que elas fossem. Trataremos dos poderes que os particulares podiam ter sobre as coisas ao
descrever os diversos direitos que sobre elas podiam incidir.
§ 1181. Por vezes, os juristas consideravam como pertencendo a uma categoria
diferente aquelas coisas que, sendo particulares, não eram plenamente de ninguém, por
ninguém poder dispor dos direitos sobre elas. Isto acontecia nas coisas de tal modo comuns
que nenhum dos sócios podia dispor delas por si só, necessitando da cooperação ou
consentimento de outrem. Este tipo de direito coletivo sobre coisas não era caraterístico da
tradição romanística, mas é conhecido no direito comum por corresponder aos patrimónios
em mão comum, de origem germânica (Gesamthandsgemeinschaft)1776. Mas também existia
naquelas coisas sobre as quais os direitos estavam suspensas, como acontecia com as
coisas hereditárias e as coisas litigiosas. Nas coisas hereditárias, os virtuais direitos de
herdeiros e legatários estavam suspensos até à adjudicação da herança (addictio
hereditatis)1777 (v. cap. 5.2.12). No caso da coisa litigiosa, a sua transação estava suspensa
lite pendente, ou seja, desde a litis contestatio até à decisão da causa1778 (v. cap. 7.1.9.3).
4.2.7 Outras divisões da coisas. Coisas corpóreas e incorpóreas, móveis ou
imóveis.
§ 1182. Além disso, as coisas podiam ser corpóreas e incorpóreas, móveis, ou imóveis.
As coisas corpóreas eram as que tinham uma entidade física, as incorpóreas, as que
careciam disso, como os direitos. As coisas de sua natureza imóveis ou estáveis eram as
que não podiam ser movidas, como os prédios, as que só muito dificilmente o podiam ser,
como lagares e cubas, mas também certos direitos de grande permanência, como as rendas

1774 “Regnum quod detinetur a faucibus Turcarum, Maurorum, aut quorumcumque infidelium,
potest a quocumque recuperari; & optimum, & justum bellum est illud,quod movetur contra infideles, &
inimicos nostrae fidei Catholicae, & quicumque redemerit, aut recuperaverit, consequetur plenum
dominium illius […]” António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Rex”, 18.
1775 Inst. Gaii, 2, 69.

1776 Distinguia-se da compropriedade porque nesta cada um podia dispor da sua parte, embora

não do todo.
1777 Salvo para pagamento de dívidas da herança, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.

“Res”, n. 17. Em Portugal, a carta de Lei de 9 de Setembro de 1769, § 1, distinguiu entre bens
hereditários e adquiridos, identificando os primeiros com bens de família que não podiam ser deixados
a estranhos havendo familiares tá ao 4º grau de direito canónico, embora não definisse uns e outros.
Essa lei foi revogada por D. de 17.7.1778 (cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 3,1,10).
1778 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, n. ns. 7 a 10.

349
Direito das coisas
anuais, as pensões, e os arrendamentos por longo tempo, isto é, por dez anos1779. Uma outra
distinção separava as coisas genéricas das coisas em espécie, estas últimas determinando-
se, não por uma individualidade, mas por peso, conta ou medida. A consequência mais
importante da distinção era a de que a obrigação que tivesse como objeto uma coisa
específica se tornava nula pelo desaparecimento da coisa, enquanto que a que incidisse
sobre um género podia sempre ser cumprida por equivalente (genus nunquam perit).
4.3 Os direitos sobre as coisas.
§ 1183. Havia vários tipos de direitos sobre as coisas (iura in re)1780: a posse
(possessio), o domínio (dominium), vários outros direitos sobre prédios, o penhor (pignus) e
a hipoteca (hypotheca) (v. cap. 6.9.2.3.2).
4.3.1 A posse.
§ 1184. Um conhecido dicionário jurídico seiscentista1781 define posse da seguinte forma:
“A posse é aquele direito pelo qual alguém tem um verdadeiro poder sobre uma coisa
corpórea, designando a detenção da coisa corpórea a partir de imposição dos pés”1782. O
autor segue explicando, com base em textos medievais, sobretudo canonistas, que as coisas
incorporais – como os direitos e as servidões -, por não poderem ser apreendidas
fisicamente, não podiam ser objeto de posse, mas apenas de como que de uma posse (quasi
possessio). Esta vinculação materialista da posse – que caracterizaria também os direitos
germânicos – contrastava com a extensão do conceito a essas situações de detenção de
coisas imateriais desprovidas de uma entidade corporal.
§ 1185. A compatibilização entre o lado material da posse, a sua ligação a uma situação
de poder de facto sobre um corpo, e o seu lado desmaterializado, que autorizava a falar de
quase que uma detenção de um direito, faziam-na os juristas ao distinguir a posse natural e
a posse civil, na esteira de um texto do Código de Justiniano1783. Dando-lhe, porém, uma
pequena volta. A posse natural não seria a posse sobre coisas materiais, mas a posse que
se traduzia em atos materiais, externos, de uso (corpus possessionis). Enquanto que a
posse civil não seria a que se exercia sobre coisas imateriais, mas antes aquela que se
traduzia numa disposição puramente interna, a intenção de possuir a coisa para si mesmo ou
em nome próprio (animus possidendi), a qual produzia efeitos também imateriais de direito,
ligados a uma intenção de deter1784. Ambas podiam coexistir. Mas podia ocorrer que se

1779 Ord. fil.,3, 47, pr., e liv. 4, 48, 8.


1780 Que se distinguiam dos direitos às coisas (iura ad rem), que consistiam em obrigações de
uma pessoa em relação a outra referentes a coisas. Sobre esta sistematização, Arnold Vinius, In
quattor libros Institutionum […], cit., 2,1,11,1.
1781 “Possessio est ius quoddam, quo aliquis rem corporalem vere in potestate habet, et dicitur

corporalis rei detentio a pedum positione, quoniam sola corporalia possidentur, incorporalia vero non
possidentur, sed quasi, et quasi traduntur per potentiam, & usum; incorporalia enim non possunt
corporaliter aprhendi, sicut sunt iura et servitutes, & ideo non possidentur António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., v. “Possessio”, n.1.
1782 D.41.2 De adquirenda vel amittenda possessione, 1: Paulus libro 54 ad edictum.”Pr. Possessio
appellata est, ut et Labeo ait, a sedibus/pedibus (?) quasi positio, quia naturaliter tenetur ab eo qui ei insistit, quam
Graeci katoxyn dicunt”.
1783 7.32.10. “Imperator Constantinus. Nemo ambigit possessionis duplicem esse rationem, aliam quae iure
consistit […]”.
1784 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Possessio”, n.3 s..

350
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
distribuíssem por titulares diferentes. O exemplo típico era o da enfiteuse (da enfeudação, do
usufruto), em que o senhor direto detinha a posse civil da coisa, sem qualquer tradução
fáctica (por isso, falava-se da nua propriedade), e o enfiteuta (colono, feudatário,
usufrutuário) detinha os poderes palpáveis de usar a coisa, a sua posse útil1785.
§ 1186. A distinção, cuja construção foi laboriosa, tinha alguns pontos fracos. Um deles
era que algum conteúdo interno era necessário para distinguir a posse da mera detenção de
uma coisa, como a do arrendatário, do depositário, do guarda. É que estes, satisfazendo o
aspeto externo da situação de posse, não tinham a intenção interna de possuir em nome
próprio, agindo como possuidores em nome alheio, simples detentores1786. E, por isso, a sua
detenção material da coisa – a mera detenção - não se considerava como posse nem
conduzia a nenhuma das consequências desta (nomeadamente, usucapião, proteção judicial
por remédios possessórios).
§ 1187. Esta distinção refletia-se nas formas de adquirir e de perder a posse. A posse
natural adquiria-se por atos humanos externos relativamente a uma coisa: usá-la (abrir e
fechar as suas portas, deter as suas chaves, cultivá-la), exercer os direitos correspondentes
(receber os proventos de uma coisa, de um direito ou de um cargo), exibir por atos externos
uma qualidade (v.g., a de filho, a de nobre). E perdia-se ou pelo abandono da coisa possuída
ou pelo consentimento de atos externos de uso exercidos por outros e incompatíveis com o
próprio uso1787. Ou seja, tudo se passava no plano dos comportamentos fácticos. Já a posse
civil, consistindo apenas numa intenção e num efeito de direito correspondente, embora
exigisse um ato inicial que exprimisse a intenção de possuir (animus possidendi)1788, não
precisava de outros factos externos subsequentes, extinguindo-se quando desaparecesse a
tal intenção de possuir1789. Porém, o fim da posse civil podia também ser traduzida por um
ato expresso de renúncia ou transferência da posse1790. Tal era o caso de um contrato de
cedência da posse, como a venda, a troca, a doação ou o constituto possessorio, cláusula
(ou pacto) pelo qual se convencionava que a posse da coisa vendida mudasse de natureza
por mero efeito do contrato (v.g., de posse em nome próprio a mera detenção em nome de
outrem) independentemente de um ato material de transferência1791. De qualquer modo, tudo
(quase tudo, fora o ato inicial de manifestação do animus possidendi) se passava no plano
do direito.

1785 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Possessio”, ns. 4-5.
1786 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Possessio”, n. 39.
1787 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Possessio”, n.11.

1788 Por exemplo, um contrato de compra e venda, que provava tanto a intenção do vendedor de

abandonar a posse da coisa, como a do adquirente, de entrar nela. Se a compra e venda contivesse
uma cláusula de constituto possessorio, este documentava a intenção de alterar a natureza da posse
(de posse em nome alheio para posse em nome próprio, ou o contrário).
1789 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Possessio”, n.10. Mas não se perdia pela

simples passagem do tempo sem uso externo, pois este não era exigido para este tipo de posse, nem
implicava o desaparecimento da intenção de possuir, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Possessio”, n.11.
1790 Tal como a posse natural, a posse civil extinguia-se pelo perecimento da coisa ou de

desapropriação por decisão do príncipe, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,2,7.
1791 Por exemplo, venda de uma coisa, com sua retenção pelo vendedor, mas agora como

arrendatário.; ou compra de uma coisa pelo locatário, que assim passava a possuidor em nome próprio.
Cf. um caso em Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 106, per totam.

351
Direito das coisas
§ 1188. Outra consequência da distinção entre posse natural e civil era que, sendo a
posse natural uma situação de facto, podia ser adquirida por incapazes de atos jurídicos a
favor daqueles que fossem a sua cabeça, em termos de direito (os filhos, mesmo se
crianças, em relação ao pater; os escravos, em relação aos donos). A aquisição da posse
civil já era mais exigente, pois baseava-se numa intenção reconhecida como válida pelo
direito e, por isso, não podia ser protagonizada por incapazes1792. Podia, porém, ser
adquirida por pessoa diferente do possuidor, nos casos em que alguém atuava em nome e a
favor de outrem (como o procurador, o gestor de negócios, o amigo, o colono ou o
inquilino)1793.
§ 1189. Também se relacionava com o peso da ideia de que a posse consistia em atos
materiais a tese de que a posse do defunto não se transmitia aos herdeiros, ao contrário do
que acontecia com o domínio. Isto porque o domínio era um direito, que sobrevivia à morte
do seu titular, enquanto que a posse seria uma situação detenção de facto, exigindo
apreensão e exercício atual, que terminava com a morte do titular1794. Apesar desta tese não
ser unânime1795, ainda nos finais do séc. XVI é a defendida por Álvaro Valasco numa
consulta expressamente dedicada ao assunto. O tema da consulta era intrincado, pois
comportava várias questões. Fora feita uma doação de bens da coroa a um certo conde,
com dispensa da Lei mental para que as filhas sucedessem na falta de filhos. O donatário
morrera sem filhos, sucedendo-lhe uma filha, a qual renunciara em vida no filho primogénito,
morto ainda em vida da mãe, mas que tinha um filho, que entrou em posse da herança,
tendo esta sido disputada pelo irmão secundogénito do pai. O neto pretendeu defender a
posse da herança, mesmo antes de ser decidida a questão dos seus direitos à herança1796 e,
nesse âmbito, levantou-se a questão de saber se ele era possuidor e se, por isso, podia
recorrer aos remédios possessórios (de que trataremos adiante, v. cap. 7.1.3.4). O neto
alegava que sim, pois ele seria a mesma pessoa do pai e gozaria da mesma situação jurídica
dele, como defendia a Glosa1797. Valasco não concordava1798, sobretudo por uma razão que
se relacionava com a natureza material da posse: só por um artifício do direito civil – diz – se
entende que pai e filho são a mesma pessoa … o filho parte do corpo ou carne do pai (“pater
& filius censetur una & eadem [persona] […] [filius] censetur portio corporis paterni […] caro

1792 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Possessio”, ns. 8-9.
1793 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Possessio”, n. 6.
1794 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 126, n. 13; Pascoal de Melo, Institutiones iuris

civilis [...], cit., 3,2,6.


1795 A Glosa estabelecia a transmissão da posse aos filhos, António Cardoso do Amaral, Liber

[...], cit., v. “Possessio”, n.16; mas não, em geral aos herdeiros (v. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.,
cons. 126, 2 a 4). Em sentido contrário, para além de Valasco, Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec.
118, n. 18.
1796 Neste ponto, a questão era a da preferência dos filhos de filhos (direito de representação) aos

irmãos de filhos, questão muito debatida na vigência da Lei mental (v. cap. 5.4.6) e só decidida, pela
concessão do direito de representação, no reinado de D. João IV (cortes de 1641), cf. António Manuel
Hespanha, As vésperas […], cit., 405.
1797 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 126, n. 1.

1798 Porém, Valasco achava que a posse do marido aproveitava à mulher que vivesse com ele,

Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 180, n. 5. Mas aqui o argumento era o da comunhão do
casal.

352
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
patris”)1799. Porém esta posse “civilíssima” (isto é, artificialíssima) seria “imaginária e
desprovida de factos externos (effectus)” e insuficiente para que o filho pudesse usar de
remédios possessórios sem qualquer ato real de posse”1800. A regra da identidade entre pais
e filhos valia, mas só quanto àquilo que fossem efeitos de direito, mas não já quanto àquilo
que decorresse necessariamente de factos, como a posse natural1801. Para além de que não
haveria qualquer base textual que consagrasse a continuidade da posse nos filhos1802.
Diferente desta era a questão da posse do estado de parentesco, que se podia herdar de um
parente, pois os parentes de parentes eram parentes entre si1803
§ 1190. A possessio ou a quasi possessio protegiam uma gama muito vasta de
situações em que em que o direito não protegia mais do que a manutenção do estado atual
das coisas, sem cuidar – para já – dos seus fundamentos. Neste sentido, a proteção da paz,
mais até do que a proteção da justiça, era o objetivo predominante. Para evitar rixas,
mantinha-se tudo como estava, até que os fundamentos da situação atual pudessem ser
averiguados mais detidamente. Os direitos do possuidor atual eram assumidos enquanto
correspondentes a uma situação de facto, não enquanto correspondentes a um direito bem
fundado. E impedia-se qualquer perturbação que pusesse em causa o equilíbrio existente. A
doutrina relacionava esta garantia da posse com a garantia da paz, que constituía uma das
missões mais importantes dos magistrados da república. Por isso, ninguém – nem o
possuidor injusto ou o simples detentor - podia espoliar outrem da sua posse, por alta
recreação, sob pena de ser castigado por isso (para além de perder a coisa espoliada)1804;
ninguém podia ser desapossado das suas coisas sem ser ouvido1805; e, mesmo a
apropriação por mandato judicial da coisa cuja posse fosse controversa, depositando-a nas
mãos de um depositário (sequestro), era uma medida excecional, que só podia ser decretada
se houvesse perigo sério de rixa1806.
§ 1191. Para que o possuidor merecesse proteção bastava-lhe provar poucas coisas:
que a sua posse se verificava, que correspondia a uma situação pública e pacífica e que
alguém a tinha perturbado ou ameaçava fazê-lo.
§ 1192. A prova da posse consistia em demonstrar que o possuidor, publica e
pacificamente, exercia os direitos sobre a coisa – se se tratasse de uma coisa corpórea
(habitar, cultivar, utilizar) - ou gozava do estatuto que ela proporcionava - se se tratasse de
uma coisa incorpórea, como uma estatuto (por exemplo, ser filho, ser familiar, ser vizinho,
ser cristão velho, ser nobre, estar isento de certo imposto, ser titular de uma servidão

1799 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 126, n. 4.


1800 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 126, n. 10.
1801 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 126, n. 12.
1802 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 126, n. 11; ao contrário do que acontecia em
Castela para os morgadios (Lei de Toro, 45). No direito feudal, a posse do feudatário não se continuava
nos filhos (“Possessio in feudis existens in patre non continuatur in filio”, Álvaro Valasco, Decisiones
[...], cit., cons. 126, n. 14.
1803 “Quasi possessio consanguinitatis ad omnes descendentes transit”, Gabriel Pereira de

Castro, Decisiones […], cit., dec. 25, n. 12.


1804 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 191, ns. 11 a 15.

1805 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 191, ns. 16 e 17.

1806 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 191, ns. 35 ss..

353
Direito das coisas
predial1807). A prova referia-se, basicamente, ao estado atual, e não às suas causas ou
origens; a atualidade da posse supria a maior parte dos seus defeitos e atribuía ao possuidor
uma preferência sobre todos os outros1808 quanto a essa posse1809, obrigando quem a
quisesse contestar a discutir, não a sua existência fáctica, mas também o seu fundamento ou
título (ao passo que o possuidor, para defender a sua posse, não tinha que se meter nesta
questão)1810. Referindo-se ao momento atual, a alegação da posse pelo possuidor
dispensava a prova da sua antiguidade ou prescrição. Assim, bastava provar o recebimento
de uma prestação de uma renda, de um salário de um ofício ou benefício para provar que se
estava na posse desse direito ou estatuto1811. Só a discussão da sua propriedade é que
exigia uma prova mais substancial ou mais constante. Em alguns casos, como na prova da
posse de benefícios eclesiásticos, exigia-se a exibição de um título com alguma aparência de
validade (“título colorido”, titulus coloratus vel putativus1812). Para além disso, era preciso
provar que a posse era pública (a não escondida, clam), pacífica e em nome próprio. O ser
pacífica excluía a posse obtida por esbulho violento (vi armata), ou mesmo apenas aquela
que fosse obtida por decisão – de um magistrado ou do príncipe – sem que o anterior
possuidor fosse ouvido1813.
§ 1193. O ser em nome próprio excluía, em princípio, os meros detentores1814. Mas não
faltava quem entendesse que, mesmo estes deviam ser protegidos1815, justamente

1807 O caso mais nítido de uma servidão que se exercia sem a prática de qualquer ato era o das

servidões prediais negativas, em que o direito era o de que o dono do prédio serviente se abstivesse de
certos usos (não construir mais alto, altius non tollendo; suportar as águas pluviais do prédio
dominante; não abrir janelas ou frestas sobre este) (v. cap. 4.3.7).
1808 “In pari causa potior est condtio possidentis”, Jorge Cabedo, Decisiones […], cit., p. 1, dec.

121.
1809 Por isso, mesmo o possuidor injusto (mas não o violento) tinha que ser ouvido antes de lhe

ser tirada a posse, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.. cons. 191, n. 2 a 4.
1810 Por isso é que ninguém podia pôr-se na posse de uma coisa por sua exclusiva iniciativa (“sua

authoritate”), tendo sempre que recorrer a um magistrado, invocando melhor direito do que o do
possuidor atual.
1811 Um só ato basta para adquirir a quasi possessio, Jorge Cabedo, Decisiones […], cit., p. 2,

dec. 61; para provar a posse de uma renda anula bastava provar que se tinha recebido uma, Miguel
Reinoso, Observationes […], cit., obs. 62, ns. 9-10; o direito de apresentar provava-se por uma
apresentação, Miguel Reinoso, Observationes […], cit., obs. 62, 42.
1812 Como era o provimento de um benefício eclesiástico por um superior, como o bispo, mesmo

antes de averiguar de possíveis vícios de forma, de competência ou de fundo desse provimento


(nomeadamente, se não fora feito poe erro ou engano, obreptio, subreptio). Em todo o caso, alguns
juristas entendiam que essa aparência não existia se o bispo provia um benefício de provimento pelo
Papa. Eram muito comuns os conflitos entre beneficiários providos pelo ordinário local (bispo) e outros
que tinham obtido em Roma idêntico provimento. Por via de regra, o direito do Reino era hostil a quem
obtinha cartas de Roma (v. Ord. fil., 2,13 e 15).
1813 O possuidor justo ou injusto (!) não podia ser espoliado sem ser ouvido, Álvaro Valasco,

Decisiones [...], cit.. cons. 191, n. 2 a 4.


1814 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Possessio”, n. 38.

1815 O possuidor atual não podia ser esbulhado da posse, mesmo que fosse um simples detentor,

Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 213 n. 11. Só que devia chamar à demanda em que defendia
a sua posse a pessoa em nome da qual possuía (v. Ord. fil., 3,45,10); António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., v. “Possessio”, n.39.

354
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
considerando o interesse público na manutenção do que estava estabelecido.
§ 1194. A predominância do elemento material sobre o elemento intencional explicava
que a intenção de possuir se presumisse1816.
§ 1195. A posse traduzia um direito de uso de uma coisa ou direito. Nesse sentido
representava um valor patrimonial. No reino, como regra geral, o valor da posse equivaleria a
metade do da propriedade1817.
§ 1196. Porém, para além de constituir este valor, a posse tinha outros efeitos.
§ 1197. O primeiro era de gerar, em certas circunstâncias, responsabilidade pelo
perecimento ou deterioração da coisa perante o seu proprietário. Era o caso do possuidor de
má fé – i.e., que sabia que a sua posse não era conforme ao direito (iniusta possessio),
conhecendo os vícios de que ela padecia1818 – o qual devia entregar a coisa intacta ao
proprietário, no caso de ele a reclamar, respondendo pela sua destruição ou deterioração,
culposa ou casual1819, e pelos seus frutos1820, e sendo, em caso de perecimento, obrigado a
restituir equivalente ou aquilo que se tivesse fabricado com ela ou que com ela o possuidor
tivesse lucrado1821 A situação do possuidor de boa fé - que ignorava os vícios da sua posse –
era muito mais favorável, pois apenas respondia pelos danos que a coisa tivesse sofrido por
sua culpa, além de que não era obrigado a restituí-la em espécie, caso isso não fosse
possível, podendo entregar ao dono um equivalente correspondente àquilo com se
locupletara pelo fato da posse (nomeadamente, o preço pelo qual a vendeu1822), deduzidos
os gastos feitos com ela1823.
§ 1198. Uma outra consequência da posse era poder conduzir à aquisição da
propriedade pro prescrição, como veremos adiante. Mas também aqui, estava muito
dificultada a usucapião pelo possuidor de má fé, pois só se admitia a prescrição de tempo
longuíssimo acompanhada de negligência do seu dono na reclamação da coisa1824
§ 1199. A defesa da posse começou por ter em vista mais o interesse de todos na
manutenção do que estava estabelecido do que a proteção da posse de um particular. Daí

1816 “Possidendi voluntas praesumitur im dubio”, Diogo Marchão Themudo, Decisiones […], cit.,
dec. 24, n. 21.
1817 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 51, n. 47.

1818 Possuidor de boa fé era o que julgava que a coisa era sua, por erro de facto ou de direito; de

má fé o que sabia que ela não o era, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Possessio”, ns. 28-
29. Se a questão da propriedade da coisa fosse levada a juízo, o possuidor tornava-se de mé fé depois
da litis contestatio, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Possessio”, n.30.
1819 Respondia pela (sua) culpa nos prejuízos da coisa, mas também pelo caso fortuito, António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Possessio”, n.22-23.


1820 Colhidos ou a colher, no caso de nem sequer ter um título de posse, ou apenas pelos frutos

ainda a colher, se acaso o tivesse. Deviam ser deduzidas as despesas feitas, porque a restituição dos
frutos sempre se entendia como autorizando a retenção das despesas, António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., v. “Possessio”, n.21.
1821 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Possessio”, n.25.

1822 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Possessio”, n.36.

1823 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Possessio”30-33. Mas apenas os gastos

necessários ou úteis, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Possessio”, n.34.
1824 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Possessio”, n.24.

355
Direito das coisas
que os meios de proteção da posse (os chamados remédios possessórios) tivessem gozado
de uma grande eficácia, quer pelo pouco que havia a provar para um possuidor se valer
deles, quer pela simplificação processual que os caraterizava.
§ 1200. Na origem (romana), a defesa da posse era assegurada por ordens (interdicta,
proibições)1825 dos magistrados (pretores), no sentido de que fosse respeitada a posse de
quem detinha as coisas, ainda que os possuidores não tivessem direito a uma reivindicatio,
por não serem proprietários segundo o ius civile. Do que se tratava, não era de proteger a
propriedade dos particulares, mas antes de salvaguardar a paz pública. Segundo a
gravidade da perturbação da posse, podiam ser pedidos interditos que garantiam a posse (uti
possidetis, como possuías), que condenavam o seu esbulho pela força (unde vi, onde houve
violência) ou, mais severamente, que puniam o uso de força armada (vi armata, com
violência usando armas)1826.
§ 1201. No direito comum, a proteção da posse combinava meios que vinham do direito
romano com outros que vinham do direito canónico (como a ação de esbulho, actio spolii1827)
e, ainda outros, dos direitos dos reinos1828.
§ 1202. Em toda esta tradição, esteve sempre clara a distinção entre os remédios
possessórios, que incidiam sobre o facto da posse e suas condições de validade ("nec vi nec
clam nec precario", não violenta, não clandestina, não precariamente ou em nome de
outrem) e os meios petitórios que permitiam ao proprietário defender a justiça da sua
posição: reivindicação, ação negatória (v.g., de servidão), ação de extremas (actio finium
regundorum). Os interditos ou outros remédios possessórios que derivassem deles (como as
cartas tuitivas, em Portugal) eram, portanto, medidas cautelares para proteger a posse que
tivesse sido esbulhada ou ameaçada de tal. Com eles, o que se pretendia era manter ou
recuperar uma situação de facto que estava estabelecida, e não discutir e acertar a questão
do direito de propriedade ou do estatuto jurídico da coisa. Isso devia ser discutido no âmbito
de uma ação dirigida especificamente a esse fim. Daí que, nesta fase cautelar, o perturbador
da posse não pudesse pretender discutir – por meio da interposição de uma exceptio - a
questão da propriedade.
§ 1203. Em Portugal, na primeira época moderna, a posse era protegida, junto dos
tribunais comuns, por meio dos interditos de conservação (retinendae possessionis) ou de
recuperação da posse (recuperandae possessionis). Porém, ao lado deles, a ação de espólio
(actio spolii), provinda do direito canónico, ia ganhando uma popularidade cada vez maior,
nomeadamente por não estar sujeita aos prazos dentro dos quais tinham que ser pedidos os
interditos romanos.
§ 1204. Mas, como a manutenção da paz e a correção das violências era uma atribuição
real, pelo menos a partir do fim do séc. XV, apareceu a possibilidade de pedir ao rei a graça
de uma carta especial de proteção da posse (carta tuitiva, de tuere, lat. proteger, cf. Ord.
fil.,3,3,6; Reg. Des. Paço, 118)1829. A medida era sobretudo cobiçada para aqueles casos em

1825 “Restituas”, “Exhibeas”, “Vim fieri veto”.


1826 Sobre os interditos, súmula em
http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/secondary/SMIGRA*/Interdictum.html.
1827 Dec. Grat., causa 3, qu. 1, c. 3 ("Redintegranda sunt omnia expoliatis vel ejectis episcopis").

1828 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Possessio”, n.40.

1829 Como atos de graça, as cartas tuitivas deviam ser pedidas ao Desembargo do Paço, v.

Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 2, ad Ord. fil.,2,3, 6, gl. 11, n. 7-8

356
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
que o perturbador da posse era um poderoso, perante o qual os juízes das terras pudessem
vacilar.
§ 1205. O regime das cartas tuitivas, uma especialidade do direito português, foi descrito
por Álvaro Valasco numa consulta recolhida no seu célebre livro Consultationum […]1830.
Segundo ele, as cartas tuitivas correspondiam ao interdito ao interdicto uti possidetis (D.,
43.17 Uti possidetis), com a especialidade de que não se pediam a um juiz mas ao rei –
como protetor dos miseráveis1831, no prazo de um ano a contar do esbulho ou ameaça. O
seu uso era frequente nas causas eclesiásticas1832.
§ 1206. O pedido da carta tuitiva – tal como o libelo da ação de espólio ou o pedido de
um interdito – tinha que conter a prova de que a posse existia ao tempo do pedido1833 e fora
perturbada. No caso de benefícios eclesiásticos, requeria-se a exibição de um título para a
posse, pelo menos com aparência de validade (titulus coloratus) 1834. Nos outros casos, tinha
que se provar a posse em sentido própria – não a simples detenção1835 -, quer natural, o que
implicava provar atos, quer civil, o que significava provar um facto que gerasse esse efeito de
direito1836. Porém, as cartas tuitivas davam-se mesmo para proteger a mera detenção, pois o
seu fim era o de evitar violências1837.
§ 1207. As cartas eram passadas ou contra certa pessoa, que ficava proibida de
perturbar a posse, ou genericamente contra eventuais tentativas de espólio1838
§ 1208. Os remédios possessórios podiam ser conservatórios (ou de manutenção da
posse, retinendae possessionis, como o interdicto uti possidetis) ou restitutórios (ou de
restituição da posse, restituendae possessionis, como os interditos unde vi e vi armata, ou a
actio spolii)1839.
§ 1209. Em todos estes remédios possessórios, a causa era, segundo o direito comum,
sumária, sem publicação das provas, nem das testemunhas. Em Portugal, porém, Valasco
testemunhava a prática de não se proceder sumariamente, antes por processo ordinário,
dando origem a largas demandas sobre questões de posse. Segundo ele, esta prática era
errada, pois aqui ainda não se tratava da substancia da causa, que haveria de ser discutida

1830 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons., 76.


1831 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 2, ad Ord. fil., 1,3, gl. 11, n. 1.
1832 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 76, n. 2. Sobretudo quando a posse de um
benefício concedido no reino era contestada por um beneficiário provido em Roma.
1833 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 76, n. 12.

1834 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 76, n. 3-5. Também Manuel Álvares Pegas,
Commentaria […], cit.., tomo 2, ad Ord. fil.,2,3, 6, gl. 11, n. 17 ss. Como se tratava de uma medida de
graça, não se ouviam as partes, ibid., n. 15.
1835 Posse em virtude de contrato de comodato, depósito, locação ou de custódia; posse por

incapaz de posse, como o escravo.


1836 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 76, n. 9.

1837 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 76, ns. 10/11.
1838 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 76, n. 13
1839 Que se refletem em Ord. fil., 4,58. Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 2, ad

Ord. fil., 2,3, 6. 11, n. 7 a 10. Cf. ainda Ord. fil., 3,40 (“o que nega estar em posse da cousa que lhe
demandam”); 3, 68 (“que em feito de força nova se proceda sumariamente sem ordem de Juízo"); 4, 58
(“dos que tomam forçosamente a posse da cousa que outrem possui”).

357
Direito das coisas
numa ação sobre a questão da propriedade (ou causa petitoria, petitorium). Daí que também
no pedido das cartas tuitivas se devesse agir sumariamente, pois elas eram concedidas sem
prejuízo do direito de domínio e de posse1840.
4.3.2 O domínio.
§ 1210. O domínio era de direito das gentes1841,embora as formas de o adquirir fossem
estabelecidas pelo direito civil1842.
§ 1211. O domínio era correntemente definido como o direito (ou faculdade jurídica) de
usar, dispor, de forma perfeita (ou seja, por qualquer forma), de uma coisa, apenas com as
limitações impostas pelo direito (com a extensão que a palavra então tinha) ou por
convenção.
4.3.2.1 Os modos de adquirir o domínio.
§ 1212. O domínio adquiria-se por vários modos, de que se tratará a seguir. Segundo o
direito comum, adquiria-se por natureza (direito natural ou direito das gentes). E, de acordo
com direito civil, e observados os seus requisitos, adquiria-se pela própria autoridade do
direito civil1843, que estabelecera a aquisição do domínio por usucapião1844, por aluvião, por
especificação, por confusão1845, por convenção (doação, troca, venda, mutuo) acompanhada
de tradição1846, por adjudicação judicial. Adquiria-se, ainda, por autoridade do príncipe, que
podia tirar a um e dar ao outro, havendo justa causa. Também os modos de extinção do
domínio serão tratados adiante.
§ 1213. Os modos de adquirir o domínio podiam ser de direito das gentes ou de direito
civil. Basicamente, esta era a distinção mais clara que surgia nas fontes romanas1847. Outras

1840 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 76, n., 16. Também na causa de sequestro, em
que se entregava uma coisa litigiosa a alguém, por se temer rixa sobre a sua posse, se usava o
processo sumário, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 76, n. 17.
1841 E não por direito divino, já que a propriedade não dependia da fé do proprietário. Cf.

interessante discussão, que aborda este aspeto, sobre o direito dos cristãos aos bens dos infiéis, a
propósito, do saque da conquista de Túnis, em 1535, António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 335
(uma escrava reclama, em 1575, a sua liberdade, por ter sido injustamente cativada).
1842 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Dominium”, n. 1

1843 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Dominium”, n. 3.


1844 Note-se que o domínio não se perdia por não uso ou por prescrição extintiva, porque era
perpétuo por natureza, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, d. 208, n. 8; também por isto, mão
se tinha domínio quando se gozasse de um direito revogável sobre uma coisa, Reinoso, obs. 6, n.18,
36.
1845 Se duas coisas se misturassem a ponto de formarem uma nova coisa indivisível, esta ficava a

ser dos proprietários das antigas, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Res” 18.
1846 Esta era a regra geral: a aquisição do domínio pressupunha a tradição, não bastando a

simples convenção e respetivo título, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Dominium”, n. 4;
Reinoso, obs, 19, n. 1. Porém, aquele que transferisse a coisa, tinha que ter sobre ela os direitos que
transmitia (“tradens rem alicui non potest illi plus transferre dominii quam illud quod habet in re”),
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Dominium”, n. 5.
1847 Cf. I.,2,1,11: “Singulorum autem hominum multis modis res fiunt: quarundam enim rerum

dominium nanciscimur iure naturali, quod, sicut diximus, appellatur ius gentium, quarundam iure civili.
commodius est itaque a vetustiore iure incipere”.

358
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
distinções são aí menos claras, bem como certas distinções, que só aparecem mais tarde,
como formas originárias e derivadas de aquisição do domínio, ou certas categorias como a
acessão (accessio) ou a especificação (specificatio), termos que não ocorrem nas fontes. Se
quiséssemos estar mais próximos das distinções que subjazem aos diversos regimes
previstos nas fontes, distinguiríamos o regime de apropriação de coias de ninguém, o da
apropriação de coisas novas, o da apropriação de coisas de outrem ou o da confusão ou
mistura de coisas.
4.3.2.1.1 Ocupação (occupatio).
§ 1214. A ocupação era o primeiro modo de adquirir o domínio, segundo o direito das
gentes. A ele se referem os §§ 12 a 16 do Livro 2,1 De rerum divisione das Institutiones de
Justiniano, relativos à captura de animais terrestres (ferae), de peixes, de abelhas e de aves.
§ 1215. A caça en a pesca visavam a apropriação de animais bravios que, na sua
liberdade natural, não eram de ninguém1848. Pela apreensão física, as presas tornavam-se do
caçador, ainda que apanhadas em terreno de outrem1849. Mas também perdiam esse
estatuto se fossem de novo soltas (I., 2,1,12) ou se, apenas feridas, conseguissem fugir. Isto
era singular na ocupação, pois a coisa ocupada, por regra, ficava definitivamente do
ocupante.
§ 1216. Podia haver limitações de direito civil à caça e à pesca1850, tal como havia
direitos senhoriais reservando para o rei1851e para os senhores certos animais, aves ou
peixes1852. Mas, como a ocupação era um instituto de direito das gentes, as proibições de
caçar ou pescar, podendo dar origem a sanções não impediam a ocupação, já que o direito
civil não mudava a natureza selvagem dos animais1853. Mais complicado era o caso de certos
animais que, embora algo domesticados (mansuefactae), nunca se fixavam num sítio, pois
nunca perdiam a sua liberdade natural, como as abelhas, os pavões, as pombas e os
veados. As Institutiones consideravam-nos como selvagens, podendo ser ocupadas, a

1848 Também eram de ninguém as coisas sagradas e as públicas, mas estas não podiam ser

ocupadas. O mesmo se diga das coisas da herança jacente, que também não eram de ninguém até à
aceitação da herança, Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., ad 2,1,12, n. 2.
1849 Os donos podiam proibir a entrada nos seus prédios para caçar. A contravenção originava

uma actio iniuriarum, para pedir indemnização por danos, mas não mudava a natureza selvagem do
animal e, logo, a sua ocupação pelo caçador, Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., ad
2,1,12,n 3. Podia haver costumes locais de as pescarias ou as caçadas (ou parte delas) serem dos
donos dos prédios onde ocorressem. Cf. alv. De 1.6.1776, autorizando a prisão dos caçadores intrusos
em quintas muradas enquanto não tivessem pago os danos causados-
1850 V. Ord. fil.,5,88 e 91. Uma lei de 1.7.1776 proibiu aos plebeus a caça na Estremadura. Uma

lei de 12.4.1612 proibiu a caça com espingarda; outra, de 23.2.1624, restringiu a caça às perdizes.
Segundo o direito canónico, os clérigos não podiam caçar, para não se distraírem do culto divino. Cf. o
Regimento do Monteiro-mor e o do Juiz das Coutadas em José Roberto Monteiro de Campos Coelho e
Sousa (org.), Systema […], cit., vol. II; Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 13, ad Ord.
fil.,3,5, p. 154.
1851 Cf, Ord. fil., 2,2614, rendas das pescarias. A baleia e os peixes maiores eram chamados

“peixes reais”, não podendo ser tomados pelos que os apanhassem, antes pertencendo à fazenda real
(Regimento da Fazenda Real, cap. 94 do, foral de Setúbal).
1852 Cf. Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., ad 2,1,12, ns. 2 e 3; 13, n. 3.

1853 Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., ad 2,1,13, n. 3.

359
Direito das coisas
menos que já estivessem no costume de ir e voltar1854. Mas o direito português obrigava o
achador a apregoar o achamento de animais destes durante algum tempo até os considerar
de novo ocupados1855.
4.3.2.1.2 Conquista.
§ 1217. Também as coisas – móveis e imóveis, - que se tomavam aos inimigos eram
consideradas pelo direito das gentes como ocupadas. Os próprios inimigos podiam ser
escravizados (v. cap. 3.1.1.1)1856. Como as guerras eram públicas, no sentido de que eram
feitas pelos povos ou seus príncipes, como chefes dos exércitos, e como os soldados faziam
a guerra em nome deste, as presas de guerra pertenciam ao príncipe, que as podia, depois,
dar ou ceder; para alguns, porém, esta publicização não tinha lugar nas coisas móveis e
semoventes (animais), que ficavam ao soldado que as tomasse1857. A Ord. fil., 2,32,1
entregava ao primeiro ocupante os navios inimigos ou corsários naufragados. Mas esta
ordenação foi revogada pela lei de 13.12. 1713, que entregou estes despojos à fazenda
régia.
4.3.2.1.3 Achamento.
§ 1218. Segundo o direito natural, era ainda suscetível de ocupação pelo achador aquilo
que fosse objeto de achamento (inventio), quer nunca tivesse sido de ninguém, quer se já o
tivesse sido (tesouros e coisas abandonadas1858)1859. Assim, podia ser ocupado o que se
encontrasse nas praias, por ser um produto do mar (lapilli, gemmae, margaritae, conchyliae).
Já as minas e veios de metal eram do rei, pelo que não podiam ser ocupados1860 ou
apropriados pelo achador; ao qual, no entanto, podiam ser concedidos per mercê régia1861.
§ 1219. As coisas achadas que já tivessem sido de alguém pertenciam ao seu antigo
dono, devendo ser-lhes entregues, sendo conhecido do achador, sem pedido de alvíssaras
pelo achamento1862. Não conhecendo o dono, o achador devia apregoar o achamento e, se
ninguém aparecesse, dar as coisas aos pobres (cf. § 1179). As Ordenações referem
especialmente o achamento de coisas provenientes de naufrágios, assegurando a
propriedade delas aos seus donos originários (cf. Ord. fil.,2,32). A ocupação por achamento
supunha um ato físico de tomada ou ingresso, mas mantinha-se mesmo que esse elemento
físico deixasse de existir (ao contrário do que acontecia nos animais selvagens)1863.

1854I., 2,1,14-15. Já as galinhas (coelhos, ovelhas e cabras domésticos) eram tidas como
domésticas (mansuetae), I.,2,1,16. A sua apreensão por outrem dava origem a uma actio furti.
1855 V. Ord. fil., 5,62,3 e 3,94.

1856 Cf. CL de 20.12.1713.

1857 Cf. CL 20.12.1713.


1858 Como as moedas lançadas à multidão.
1859 I., 2,1,18.

1860 V. Ord. fil.,2,26,16.

1861 V. Ord. fil.,2,34; outra legislação em Pascoal Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 3,3,6

(sobre os diamantes, alv. 24.12.1734).


1862 V. Ord. fil., 5,62,4; mas deviam ser pagas ao achador as despesas com a conservação da

coisa.
1863 Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2,1,18.

360
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 1220. O achamento de tesouros – coleções de bens preciosos encontrados, cujo dono
não era conhecido1864 - tinha um regime especial. Se o tesouro tivesse sido encontrado em
terreno próprio ou terreno sagrado, ou se tivesse sido objeto de uma busca intencional em
terra de outrem, pertenceria ao ocupante; mas tando sido achado fortuitamente em terreno
de outrem, o achador tinha que o repartir com o dono do terreno ou com o fisco (cf. I.,2,139;
V. C., 10.15. De thesauris). Este era também o regime do direito comum e das Siete Partidas
(III, 28, 45). O direito português foi restringindo progressivamente os direitos do achador. As
Ord. af. (2,7,5) reservavam a terça para o rei, sendo o tesouro achado em terreno do
achador; ou, no caso de o achado se dar em terreno do rei ou em lugar público, atribuíam ao
rei dois terços. As Ordenações filipinas declaravam serem do rei “todos os bens vagos, a que
não he achado senhor certo” (Ord. fil., 2,26,16 e 17)1865. No entanto, a doutrina hesitava em
enquadrar os tesouros nesta disposição, preferindo aplicar o regime do direito comum1866.
4.3.2.1.4 Aquisição dos frutos.
§ 1221. Os frutos ou o locatário das coisas seguiam a situação da coisa, sendo do seu
proprietário (perceção, percepto). No entanto, se a coisa estivesse possuída, de boa fé, por
um não proprietário (maxime, por um não proprietário, como o usufrutuário ou o locatário),
este fazia seus os frutos1867. A justificação era o contrato que lhe atribuía a posse da coisa, a
consideração da boa fé da posse ou a compensação pelo trabalho de cultivo manutenção da
coisa1868. Também o usufrutuário1869 se apropriava dos frutos das coisas alheias por ele
usufruídas.
§ 1222. Nos frutos do gado incluíam-se, além do leite e da lã, as crias, tudo se tornando
do possuidor de boa fé ou do usufrutuário por direito natural. Não assim, porém, as crias das
escravas, cujos filhos eram do proprietário, pois seria absurdo que uma pessoa pudesse ser
considerada como fruto, já que os frutos foram criados para os homens1870. A ideia de que
um recém-nascido de uma escrava não podia ser um fruto seria de origem estoica,
relacionando-se com um conceito de dignidade humana. O jurista Ulpiano1871, porém,
justificava a solução num plano mais técnico: os frutos da escrava seriam os seus serviços,
não os seus partos, pois não eram compradas para parir, mas para servir com o seu trabalho
(“quia ancillae non ad hoc comparantur ut pariant, sed ut serviant”).

1864 Cf. D.41,1,31,1 ("vetus quædam depositio pecuniæ, cujus non extat memoria, ut jam dominum non

habeat"; Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit. ad 2,1,7, n. 1. Cf. também Arnold Vinnius, In
quattor libros Institutionum [...], cit., 2,1,39.
1865 Cf. C.,10.15. De thesauris.

1866 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., p. 3, cap. 13, n. 91; Jorge

de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 56.


1867 Cf. I., 2,1,48; Ord. fil., 2,53,5. A solução não era unânime, distinguindo os autores entre posse

onerosa e posse gratuita, entre frutos naturais e industriais, percebidos e pendentes. Pascoal de Melo
(em Institutiones iuris civilis […], cit., 3,3,9) discute esta questão brevemente.
1868 Cf. Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2,1,35 (v. I.,. 2,1,35; D. 22,1,45 e

D.41,1,48).
1869 Cf. Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2,1,16.

1870 Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2,1,11, n. 4; I., 2.1.19 (e comentário de

Vinnius). Incluíam-se aqui os filhos das escravas, pois, tais como as crias dos animais, tinham sida
como que vísceras da mãe; Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2,1,37,1.
1871 V D.5.3 De hereditatis petitione, 27.

361
Direito das coisas
4.3.2.1.5 Acessão natural (accessio naturalis).
§ 1223. Por direito das gentes também acediam ao prédio, incorporando-se no
património do seu dono, as coisas que por aluvião lhe acrescessem, por mudança nas
margens1872, por arrastamento pela força das águas – v.g., de uma árvore -1873 ou por
surgimento de ilhas1874. A este modo de adquirir chamou-se, na tradição romanística,
accessio naturalis1875.
§ 1224. Diferente era a aluvião (alluvio1876), que era aquilo que os rios acrescentavam
paulatinamente a um prédio e que ficava incorporado neste por direito das gentes.
4.3.2.1.6 Acessão por facto humano ou industrial (accessio artificialis vel
industrialis).
§ 1225. Apropriação de coisa de outrem por facto humano1877. Dava-se quando duas
coisas (de donos diferentes) eram unidas de forma tão indissociável que uma (a coisa
secundária) se torna parte de outra (a principal), não se podendo dizer que surgia uma coisa
nova, mas antes que se juntava uma coisa acessória à principal. O dono da coisa principal
tornava-se dono do secundária (“per praevalentiam alienam rem trahit meam”, D.,6,1,23,4)
1878. A identificação da coisa considerada principal podia ser duvidosa. O solo era-o, com

certeza, relativamente a plantas (aedificatio1879 e plantatio: cultivos, plantios, árvores1880) ou


construções fixas (superficies solo cedit).
§ 1226. Outros exemplos famosos eram o da escrita em relação ao pergaminho, nos

1872 Cf. Inst Gaii,2,70. Caso mais relevante era o da mudança de curso do rio, em que, sendo o rio
privado, o antigo leito ficava a pertencer aos donos dos prédios antes ribeirinhos. Sendo o rio público, o
novo leito tinha a mesma natureza, mas o antigo perdia-a, Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum
[...], cit., 2,1,23.
1873 Neste caso, excecionalmente, o antigo proprietário, sendo identificável, mantinha os seus

direitos.
1874 Distinguia-se o aparecimento de ilhas no mar - fenómeno raro, que ficavam públicas do

senhor do reino adjacente (v. Ord. fil.,2,26,8) ou de ninguém e então sujeitas ao regime da ocupação -
do de ilhas nos rios - mais frequente, regido pela regra da acessão (se as ilhas ficavam no meio do rio,
confrontando prédios de ambas as margens, seriam compropriedade dos donos dos prédios fronteiros;
outros juristas pensavam que isto só ocorria se o rio não fosse público, pois se o fosse, as novas ilhas
também o eram, Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2,1,22).
1875 Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2,1,20.

1876 Inst Gaii,2,70; D.41,1,7.

1877 Accessio não é um termo romano; os juristas romanos designam a accessio como um modo

específico de ocupatio; v.
http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/secondary/SMIGRA*/Accessio.html.
1878 “Quando duas coisas, qualquer delas podendo subsistir por si, são de tal forma unidas que

façam parte do mesmo corpo […], a parte inferior sempre cede à parte mais importante (praestantior)”,
Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2,1,26,n. 2). Esta importância podia avaliar-se
pelo tamanho. Se o tamanho era igual, decidia o preço.
1879 O que edifica em solo próprio com materiais alheios fica dono do edifício, Arnold Vinnius, In

quattor libros Institutionum [...], cit., 2,1,29. O que edifica em solo alheio não adquire o edifício, Arnold
Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2,1,30
1880 Cf. § 1. Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2,1,31-32.

362
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
livros, em que o suporte era considerado o principal, e os da tecelagem (textura), da
tinturaria (tintura)1881, da ornamentação (decoratio), da cobertura de fémeas (seminatio). Em
todos estes casos, a substância junta acedia ao principal e era apropriada pelo dono deste.
Diferente era o caso da pintura de um quadro, em que a pintura era considerada a parte
determinante à qual aderia o suporte (tabula; tabula picturae cedit)1882. Se a hierarquia não
se conseguisse estabelecer, as coisas confundidas ficavam comuns1883.
§ 1227. Quando alguém perdia para outro a propriedade (por acessão ou por
especificação [v. a seguir]) tinha direito a ser indemnizado pelo valor da propriedade perdida
(por meio de expedientes diversos)1884.
4.3.2.1.7 Especificação (specificatio).
§ 1228. A especificação (specificatio) era um termo criado pelos juristas medievais, a
partir de rem (speciem) novam facere, locução que aparece nas fontes romanas1885. Dava-se
quando se fazia uma coisa nova a partir de outra coisa. Isto podia acontecer por fusão
intencional de coisas diferentes [novam speciem faciendo]; ou por aplicação de trabalho e
indústria a um material alheio já existente, de modo a transformá-lo irreversivelmente numa
coisa nova1886).
§ 1229. Se a reversão fosse impossível, se se tivesse agido em nome próprio (por e
para si1887) e de boa fé (pensando o artífice que o material era seu)1888, o fabricante fazia-se
proprietário da coisa, devendo, porém, indemnizar o verdadeiro dono do material pelo seu
valor. Se, pelo contrário, a reversão era possível1889, a coisa continuava a pertencer ao
proprietário original, mas o fabricante tinha direito a ser indemnizado pelo trabalho, se tivesse
agido de boa fé.
§ 1230. Este modo de aquisição da propriedade referia-se a processos muito comuns na
agricultura, na metalurgia, na construção civil ou naval, na farmácia, na marcenaria. Por isso,
este ponto de direito constitui um bom campo para observar a reação do direito perante a
modificação das práticas sociais de produção de bens. A bondade das soluções para as
diferentes situações havia de depender da “novidade” da coisa (species) produzida, da
reversão do processo de fabrico, do valor relativo dos materiais e do trabalho e indústria no
fabrico. Mas também tanto de conceções filosóficas acerca do que são as coisas como dos
processos sociais pelos quais se efetuava a produção ou transformação.
§ 1231. No direito romano confrontavam-se duas escolas a respeito da propriedade da

1881 Cf. Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 21,1,33 e 2,1,26.
1882 Cf. Gaius, II.73; cf. Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2,1,34.
1883 I.,2,1,27.
1884 I.,2,1,26, n. 4.
1885 “Aliud sit materia, aliud navis”, D.13,7,18,3)

1886 Inst. Gaii, 2.29. Fabrico de vinho feito de uvas alheias, de azeite com azeitonas alheias, de

mulsum ou hidromel (misturando vinho e mel), de um móvel, de uma casa, de um navio, de um vaso de
barro cozido.
1887 Se não trabalhava para si, mas como empregado de outrem, eventualmente do dono do

material, adquiria para o patrão.


1888 Se agiu de má fé, é punível como ladrão.

1889 Exemplo: fabrico de um vaso de metal que pudesse ser refundido.

363
Direito das coisas
coisa novamente fabricada. Enquanto que os sabinianos, inspirados na ontologia dos
estoicos, entendiam que não surgia uma coisa nova, pois a substância das coisas era a sua
matéria (sine materia nulla species effici potest) e atribuíam a propriedade do artefacto ao
dono dos materiais, os proculeianos, inspirados na ontologia de Aristóteles, em qua a forma
constituía a verdadeira natureza das coisas, atribuíam a nova coisa ao seu fabricante, que a
ocuparia ao mesmo tempo que lhe dava existência (quod factum est, nullius nulla fuerat). No
direito justinianeu1890 adotou-se uma via média, em que a propriedade era atribuída ao
fabricante – como propunham os proculeianos - sempre que os materiais originais não
pudessem ser de novo reconstituídos; mas em que se entregava a nova coisa ao dono dos
materiais – como queriam os sabinianos – se eles se pudessem separar de novo.
Aparentemente, o que justificava esta solução era a impossibilidade ou dificuldade de, em
certos casos, identificar as matérias originais e os seus donos, pelo que se atribuía, nesses
casos, a propriedade ao autor da coisa final1891. Mas o conceito de “coisa nova” também
influía, pois era claro que a coisa era outra, definitivamente, se o processo de fabrico não
pudesse ser revertido e o contrário no caso inverso.
§ 1232. No direito comum, tendeu a prevalecer a solução de que a coisa, sendo nova,
pertencia ao fabricante. Novo era o vinho em relação às uvas; o azeite, em relação às
azeitonas; o barco, casa e móvel, em relação à madeira. Mas não o trigo (ou outros cereais
ou leguminosas), em relação às suas sementes. Mesmo no caso de a coisa ser nova, havia
que averiguar a natureza da atividade do fabricante. Nomeadamente, se este tivesse feito a
coisa em nome de outrem (por exemplo, um artesão trabalhando a mando e por conta de
outrem). Ou, a sabendas, com matéria de outrem. Nestes casos, a coisa seria do mandante
da obra ou do dono dos materiais, respetivamente1892.
§ 1233. Como se disse, à acessão correspondia também uma perda de propriedade,
que deveria ser indemnizada, a não ser nos casos de mé fé (em que o dono da coisa
acessória sabia que a principal era de outro).
4.3.2.1.8 Confusão (confusio) e mistura (mixtura).
§ 1234. Nas coisas que eram o produto da fusão, acordada ou casual, de líquidos ou
metais fundidos da mesma espécie, mas de tal modo que a sua separação fosse impossível
(confusão, confusio)1893, a propriedade da massa resultante era comum, na proporção da
matéria prestada por cada um. Se as coisas eram de diferente espécie, a espécie resultante
era diferente e, por isso, seguiam-se as regras da especificação, ficando a coisa do
fabricante) 1894.
§ 1235. A mistura (commixtio) era a junção de coisas sólidas de donos diferentes, de tal
modo que a sua separação podia ser difícil, mas não impossível. Se a mistura tivesse sido
feita por consenso, a massa resultante ficaria em propriedade comum, pois se entendia que
eles, ao juntá-las, as tinham querido comunicar. Se tivesse sido feita por acaso ou por

1890 I., 1,1,25.


1891 Cf. http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/secondary/SMIGRA*/Accessio.html;
http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/secondary/SMIGRA*/Confusio.html.
1892 Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2,1,25, n.4.

1893 Vinho com vinho, prata com prata, dinheiro com dinheiro.

1894 Se duas coisas se misturassem a ponto de formarem uma nova coisa indivisível, esta ficava a

ser dos proprietários das antigas, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Res” 18.

364
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
vontade de um só, a solução era a mesma, mas cada um podia retirar a sua parte, sendo
isso possível1895.)
§ 1236. Se o processo de união não se pudesse reverter, aquilo que se unira ao
elemento principal (não necessariamente o mais valioso) preexistente ficava a pertencer ao
dono deste.
§ 1237. A confusão também podia ocorrer com direitos. Assim um crédito e um débito
podiam acabar na titularidade da mesma pessoa. Nesse caso, as obrigação extinguia-se1896.
O mesmo no caso de o credor ter herdado o penhor ou de o dono do prédio serviente se ter
tornado dono do prédio dominante ou o contrário1897.
4.3.2.1.9 Tradição.
§ 1238. A tradição romanística não encontrava nas fontes a distinção entre aquisição
originária – a que englobaria os meios de aquisição anteriores – e aquisição derivada – a que
pertenceriam os seguintes – tradição e usucapião. Na sistematização das Institutiones, a
tradição (traditio) aparecia ligada às modalidades de aquisição de que se falou (“I.,2,1,40,
“Per traditionem quoque jure natural res nobis acquiruntur …”), como uma forma de adquirir
de direito natural. Já a usucapião aparecia mais à frente (I.,2,6), como uma forma de
aquisição de direito civil.
§ 1239. A tradição (traditio) era um modo de aquisição de direitos sobre coisas que, para
além da apreensão pelo adquirente, exigia um ato de vontade do transmitente, por isso se
distinguindo da ocupação1898. Este ato consistia numa entrega natural – de mão em mão –
ou simbólica1899 da coisa, acompanhada da respetiva aceitação ou apreensão. Mas exigia-se
ainda um título ou causa que justificasse este comportamento (compra, doação, troca)1900,
pois não se presumia que alguém entregasse a outrem as suas coisas sem uma causa, nem
que ela fosse apenas a de que as queria dar.
§ 1240. O transmitente tinha que ser dono1901, pois não podia transmitir direitos quem
não os tivesse1902, e não estar enganado sobre a causa da transmissão.
§ 1241. A exigência da tradição justificava-se para reforçar a segurança do comércio
jurídico, estando consagrada quer nas fontes romanistas1903, quer no direito português1904.

1895 Cf. D..41,1,7,8; D.46,3,78; D.6,1,3,2D.6,1,5.


1896 Cf. D.46,3,75.
1897 “Gaius libro septimo ad edictum provinciale. Servitutes praediorum confunduntur, si idem
utriusque praedii dominus esse coeperit” (D.8,6 Quemadmodum servitutes amittuntur,1).
1898 Cf. I.,2,1 De rerum divisione, 40; Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., ad

2,1,40; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 3,3,10.


1899 Por um equivalente simbólico que simplificasse a tradição em espécie (tomar um punhado de

terra, cortar um ramo de árvore, pegar nas chaves, abrir e fechar uma porta, indicar com o dedo).
1900 Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit. 2,1,40, n. 1 a 5.; cita o jurista Paulus

(D.41,1 41.1 De adquirendo rerum domínio, 31, pr.); “Nunquam nuda traditio transfert dominium, sed ita
si venditio aut alia justa causa praecesserit, propter quam traditio secuta sit”, Arnold Vinnius, In quattor
libros Institutionum [...], cit., 2,1,5.
1901 Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2,1,40, 4-5.

1902 Por isso, o possuidor de boa fé não podia transmitir senão a posse, mas não a propriedade.

1903 C.,2,3 De pactis, 20: "traditionibus et usucapionibus dominia rerum non ex nudis pactis

365
Direito das coisas
Porém, no direito português não se requeria qualquer cerimonial de tradição1905, nem sequer
a elaboração de escritura, salvo nos casos expressamente indicados na lei1906.
4.3.2.1.10 Usucapião (usucapio) ou prescrição (praescriptio) aquisitiva.
§ 1242. Para além dos modos de adquirir de direito natural ou das gentes, o direito civil
estabelecera outros, uns de aquisição de uma universalidade de bens, como a herança (v.
cap. 5.2.11), outros de bens determinados, como a usucapião, a doação (v. cap. 6.9.2.1.1)
ou os legados (v. cap. 5.2.14), entre outros.
§ 1243. A prescrição podia incidir sobre coisas e sobre direitos, quer para os adquirir,
quer para os extinguir pela mera passagem do tempo. O seu impacto no direito comum era
enorme, pois era através delas que se constituía ou se extinguia uma quantidade imensa de
relações e situações jurídicas. Com poucas exceções (v. adiante), quase tudo se podia
ganhar e perder por meio de uma posse duradoura, pacífica e pública. A prescrição era a
transcrição no direito da passagem do tempo, que fazia e desfazia a natureza das coisas.
Embora respondendo negativamente, alguns juristas colocavam mesmo a questão de saber
se os pecados deixavam de o ser por prescrição, ou seja, por um uso continuado de os
praticar ou por uma prática continuada (da Igreja, da comunidade) de não os ter como tal1907.
§ 1244. A usucapião (usucapio) era definida como uma forma de aquisição de direitos
sobre uma coisa, fundada na passagem do tempo fixado na lei e estabelecido para punir os
negligentes e certificar a situação das coisas, evitando os litígios1908. Os juristas entendiam
que ela se equiparava a um pacto, tendo uma eficácia semelhante1909; outros, porém,
recordavam que, pelo menos no direito português, ela não podia ser título aquisitivo de bens
que se podiam ceder por contrato (como os bens da coroa ou os direitos reais [regalia] (v.
cap. 2.4.3.5), que podiam ser doados, mas não adquiridos por prescrição). A prescrição dava
origem ou a uma ação para pedir a coisa usucapta ou a uma exceção para paralisar a ação
reivindicatória do anterior proprietário1910.
§ 1245. A usucapião de direitos, ou seja, de faculdades abstratas que, frequentemente,
não tinham um corpus físico, colocava alguns problemas dogmáticos. O que era a sua posse

transferentur". Cf. Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2,1,2.
1904 Embora apenas indiretamente: Ord. fil.,4,7,pr. e 2: "o que primeiro houver a entrega d'ella

será d'ella feito verdadeiro senhor”.


1905 Havia, porém, simbologias usuais: usava-se atirar ao ar um punhado de terra e cortar um

ramo.
1906 V. Ord. fil.,4,19,pr. (contratos necessários para a substância ou validade da transação); Ord.

fil.,3,59 (para a prova).


1907 “Não pode considerar que por prescrição não é pecado o que a Igreja declarou ser pecado”,

Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit. cons. 133, n. 12.


1908 Cf. D.41.3, De usurpationibus et usucapionibus, 3: “Usucapio est adiectio dominii per

continuationem possessionis temporis lege definiti”. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Praescriptio”, n. 80.
1909 “Tantumdem illa tribuunt, quantum pactum, habet vim contractus", António da Gama,

Decisioones [...], cit. dec. 278, n. 2.


1910 Cf. D.50, 16 De verborum significatione, 28, pr.; I.,2,6. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber

[...], cit., v. “Praescriptio”, n. 1-2. Cf. I.,2,6;, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,3,11 e
3.4.1.

366
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
contínua ? A resposta era: o seu exercício. Mas, por vezes, o seu exercício não exigia
nenhuma atividade, como no caso dos direitos negativos (i.e., direito a que o outro não faça).
Nestes casos, era duvidoso o que fosse a posse deste direito. O mesmo se diga em “direitos”
a um benefício gratuito de outro (v.g., a um ato régio de graça, uma mercê). Dadas estas
dificuldades, havia autores que excluíam estas situações da possibilidade de serem
usucaptas1911.
§ 1246. Os requisitos da prescrição eram quatro: (i) o convencimento do possuidor de
que a coisa era sua e de que podia dispor dela, ainda que estivesse errado (boa fé); (ii) a
existência de um título que atribuísse a propriedade da coisa ao possuidor, ainda que,
realmente, o título não fosse válido (justo título); (iii) a posse contínua durante um certo
período de tempo (lapso do tempo); (iv) o caráter jurídico da posse, ou seja, o
reconhecimento pelo direito daquela posse sobre aquela coisa (posse não viciosa)1912.
§ 1247. A prescrição requeria boa fé, justo título e posse válida e contínua em nome
próprio.
4.3.2.1.10.1 Boa fé.
§ 1248. A boa fé (v. cap. 6.4.1) era o desconhecimento legítimo de que a coisa era
alheia ou, ampliando um pouco, o desconhecimento dos vícios da posse1913. Este
convencimento da titularidade da coisa presumia-se1914. Mas não existia em certas situações,
como se o possuidor que tivesse um título de que resultasse ser a coisa alheia (v.g., um
contrato de locação um instrumento de aforamento, uma carta de doação régia); se a posse
tivesse sido obtida por violência1915 se tivesse sido furtada1916; se o adquirente tivesse sido
avisado de que a coisa não era do vendedor; se a comprou a quem não podia vender1917; ou
se a posse tivesse sido contestada em juízo e essa contestação tivesse sido reconhecida
como possível, na fase da litis contestatio.
§ 1249. A boa fé presumia-se1918.
§ 1250. Pelo direito canónico, a boa fé era indispensável para que a prescrição
(aquisitiva ou extintiva) tivesse lugar1919, não sendo a má fé suprida por nenhuma
circunstância, nomeadamente pelo alongamento do período de prescrição1920.
§ 1251. Em contrapartida, o direito civil só exigia a boa fé no início da posse, podendo

1911 Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 65, n. 30 e 34.


1912 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 3.
1913 Cf. 50.16.109: “Bonae fidei emptor esse videtur, qui ignoravit eam rem alienam esse, aut

putavit eum qui vendidit ius vendendi habere, puta procuratorem aut tutorem esse”.
1914 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 12.

1915 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 14.

1916 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 14.

1917 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 13.

1918 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 125, n. 11.
1919 Cf. Decretales, 2,26 De praescritionibus, caps. 5 e 20. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., v. “Praescriptio”, n. 4.
1920 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 11 (“nem que durasse mil

anos”).

367
Direito das coisas
ela desaparecer depois sem que isso impedisse a prescrição1921. Por outro lado, o direito civil
admitia que uma posse mais longa compensasse a má fé. E, assim, a prescrição imemorial
saneava todos os vícios - presumindo a boa fé e induzindo título legitimo1922 -, fazendo
prescrever aquelas coisas que, de outro modo, não prescreveriam1923. Ora a doutrina
entendia que que o direito canónico devia ser sempre preferido ao civil, nestes casos em que
este último conduzia a soluções de pecado (“critério do pecado”)1924. Por isso, era uma
doutrina comum que nenhuma lei ou costume podia validar a prescrição de má fé1925.
§ 1252. As Ordenações não tratavam expressamente do regime geral da prescrição.
Mas, por certos dos seus preceitos, podia entender-se que tinha recebido o regime de direito
comum, preferindo, nas Ord. fil.,(na sequência de uma lei de D. João III, depois recebida nas
Filipinas), a solução do direito canónico na questão da exigência da boa fé 1926. Assim, no
direito português, requeria-se sempre boa fé, em toda e qualquer prescrição1927, tanto no
autor como no seu sucessor (universal ou particular), pelo que o possuidor de má fé em
tempo nenhum podia usucapir.
4.3.2.1.10.2 Justo título.
§ 1253. O título justo era aquele que, na convicção do possuidor, justificava a sua posse
como correspondendo a propriedade, ainda que o possuidor estivesse enganado quanto à
validade do título1928. Sem ele, não se podia gerar prescrição.
§ 1254. No entanto, a prescrição de longuíssimo tempo e a imemorial supriam o justo
título e a boa fé ou, pelo menos, tornavam-nos presumíveis, pelo que não tinham que ser
provados pelo possuidor1929. Para mais, entendia-se que, se faltasse o título, mas se
houvesse posse contínua e de boa fé, a coisa acabava por se transferir para o possuidor,
não por usucapião, mas por se extinguir por prescrição a ação do proprietário para
reivindicar a coisa.
§ 1255. Nas servidões e direitos incorporais não era preciso título1930.
4.3.2.1.10.3 Posse contínua.
§ 1256. A prescrição exigia a continuação da posse por um certo lapso de tempo,

1921 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, ns. 16-17.
1922 Ou demonstrando a existência de um privilégio (contra o direito geral) que legitimasse a
propriedade da coisa (mesmo naquilo que era reservado ao príncipe), cf. António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 19 (também. Álvaro Valasco, Tractatus de jure emphyteutico […], cit.,
qu. 8, n. 36.
1923 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 18.

1924 As soluções jurídicas deviam tender para a salvação das almas (in salutem animae), cf.

António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 16.


1925 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit. cons. 125, n. 6.

1926 Ord. fil.,4,3,1; Ord. fil., 4,79,pr (in fine); Ord. fil.), 2,53,5. Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris

civilis [...], cit., 3,4,8.


1927 V. Ord. fil.,4,79, pr. in fin); Ord. fil.,2,53,5.

1928 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 7.

1929 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,4,2 e 8.

1930 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 73.

368
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
variável, de acordo com as situações.
§ 1257. Pelo direito comum, os prazos da prescrição ordinária1931 eram de 3 anos para
os móveis, ou de 10 anos para os imóveis, entre presentes (i.e., habitando o mesmo lugar)
1932 ou de 20 anos entre ausentes1933. A prescrição das servidões tinha alguma

especialidade, dado que elas podiam consistir num fazer ou num não fazer, com caráter
contínuo ou descontínuo. Assim, as servidões contínuas - de passagem, de aqueduto, de
pescar - seguiam a regra geral1934. Para a aquisição das servidões descontínuas, porém, era
preciso tempo imemorial, se não existisse título1935; para a sua caducidade, eram precisos 20
anos (entre presentes ou ausentes).
§ 1258. A prescrição extintiva do direito a intentar ações reais equivalia à usucapião e
tinha os mesmos prazos1936.. As ações pessoais visando reclamar coisas prescreviam em 30
anos mesmo prazo. O mesmo acontecia com as prestações anuais ou mensais1937.
§ 1259. Havia, depois, prazos especiais de prescrição para certas situações e com
efeitos diversos. A de longuíssimo tempo era a de 30 ou 40 anos, a prescrição centenária a
de 100 anos, a prescrição imemorial era aquela que se traduzia numa posse imemorial (cujo
início já não era lembrado, cujus memoria non exstat) 1938.
§ 1260. A prescrição de longuíssimo tempo (de 30 ou 40 anos) existia para os casos
previstos no direito comum 1939. A prescrição de 40 anos com título valia tanto como a
imemorial1940.
§ 1261. A prescrição centenária ou imemorial era a mais poderosa. Os autores diziam
que ela equivalia a título, a decreto do príncipe ou a lei1941. Por direito comum, era bastante
para usucapir qualquer direito real, pois por tempo imemorial adquiriam-se mesmo as coisas
imprescritíveis1942, correspondendo a privilégio ou direito adquirido1943 e sendo, portanto, a

1931 Havia prazos especiais para determinados tipos de bens, prescrições extraordinárias.
1932 Presentes eram os que viviam na mesma cidade; outros ampliavam aos da mesma comarca,
Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. p. 1, Aresto 42.
1933 C.,7.31. De usucapione transformanda et de sublata differentia rerum mancipi et nec mancipi,

l. un..
1934 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 76.

1935 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 73; com titulo, tempo

ordinário, Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 65, n. 36.


1936 Cf. I.,2,6,pr.; C.,7,31,2. Textos das Ord. fil., que podiam servir de apoio: Ord. fil.,1,84,23;

4,3,1, Ord. fil.,4,79. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 10.
1937 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, 35.

1938 V. Ord. fil., 1,62,51: “por tanto tempo que a memoria dos homens não he em contrario”; cf.

António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 4.


1939 Uma especialidade: a prescrição de longuíssimo tempo era exigida no caso de usucapião da

coisa dada em penhor ao credor penhoratício Ord. fil.,4,3,1 entre presentes, 30 anos; entre ausentes,
40 anos.
1940 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 65, n. 35.

1941 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 163, n. 3; Miguel de Reinoso, Observationes [...],

cit., obs. 16, ns. 14 ss. ou obs. 65, n. 23 (esta “observação” incide toda ela sobre a prescrição
imemorial).
1942 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 141, ns. 7 e 8.

369
Direito das coisas
única que corria contra o rei ou contra a igreja ou seus direitos1944. Também constituía título
bastante para a instituição de morgados e capelas1945.
§ 1262. Havia uma prescrição de breve tempo (3 anos) quanto ao pagamento dos
salários de criados1946.
4.3.2.1.10.4 Posse legítima (não viciosa).
§ 1263. Sem uma posse de quem reclama a prescrição, válida perante o direito, não
podia haver prescrição1947.
§ 1264. Deste modo, não podia correr quando a coisa fosse possuída por força1948, de
forma clandestina ou em nome de outrem1949 (como precarista1950, foreiro1951, credor
penhoratício, usufrutuário1952)1953. No entanto, entendia-se que a usucapião podia existir,
para os dois aldos, no contrato de colonia1954
§ 1265. Usucapir supunha a possibilidade de possuir em nome próprio e, por isso,
capacidade civil. Em alguns casos, a posse do escravo, do filius famílias ou dos menores
podia valer como título de aquisição para o dono ou pater1955. O herdeiro herdava a posse
com a mesma qualidade (v.g., boa ou má fé) da do de cujus1956.

1943 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 65, ns. 1-2.
1944 Cf. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, ns. 20 e 21. Segundo
Álvaro Valasco, nos termos do direito comum, a prescrição imemorial podia ser alegada contra os bens
reservados para o príncipe e os bens particulares da coroa, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., dec.
120, n. 20.
1945 V. Ord. fil.,1,62,51. Cf., porém, a lei de 13.8.1770, que requeria título.

1946 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 334, ns 1 ss. Presumia-se a boa fé do patrão,

se pagasse os salários por ecónomo ou feitor, António da Gama, Decisiones [...], cit., 34, n. 8.
1947 Cf. D.41.3 De usucapionibus et usurpationibus, 25: “Sine possessione usucapio contingere

non potest”. Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 6, n. 2; assim, um leigo que usasse
cobrar dízimos, nunca prescrevia, pois a sua posse não podia ser validada pelo direito canónico, Miguel
de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 65, n. 23.
1948 Nem mesmo a favor do sucessor do espoliador, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit.,

v. “Praescriptio”, n. 51.
1949 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 25.

1950 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 34.

1951 O domínio direto (que é civil, e não exige corpus) não prescrevia a favor do colono, cf.

António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 33; o enfiteuta não podia prescrever
contra o senhor se o reconhecesse como tal, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 192, n. 2
1952 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 41.

1953 Nem para constituir direitos ou situações que o direito não permitia; por isso, não se podia

contrair matrimónio ilícito por prescrição, de forma a torná-lo lícito (v.g., passando por cima de
impedimentos), cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 31.
1954 A colonia (arrendamento rural) prescrevia provando o não pagamento da renda por 30 ou 40

sem expulsão do colono, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 192, ns. 7-8; a regra só tinha lugar
nos colonos de prédios rústicos, porque no de urbanos tratava-se de inquilinato, Álvaro Valasco,
Decisiones [...], cit. cons. 192, n. 11 e cons. 157, n. 35.
1955 Cf. D.41.3 De usucapionibus et usurpationibus, 4.

1956 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 71.

370
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 1266. De igual moo, a prescrição não podia correr em relação a coisas que, por direito,
não pudessem ser possuídas por particulares1957. Ou que - por força de lei, cânone ou
vontade do testador – não pudessem por ser alienadas1958. O caso dos morgadios era
interessante. Como o administrador do morgado não podia alienar, prejudicando o casco de
bens que tinha sido vinculado, a prescrição (e apenas a de 40 anos) só prejudicava aquele
contra quem prescreveu, mas não os seus sucessores, cujos direitos tinham sido fixados na
instituição do morgado1959.
§ 1267. A prova da posse fazia-se pelos meios comuns de prova (v. cap. 7.1.9.5). Na
prescrição imemorial prova fazia-se por fama e de outiva1960.
4.3.2.1.10.5 Coisas imprescritíveis.
§ 1268. A prescrição não corria contra coisas que não pudessem ser adquiridas por
particulares, como já vimos1961 (v. cap. 4.2.1 a 4.2.3).
§ 1269. Assim, a prescrição não corria nas coisas fora do comércio, nas sagradas ou
religiosas, nas públicas ou que estão na posse de alguma cidade, como também não corria
quanto a homem livre ou escravo fugitivo1962.
§ 1270. Quanto às coisas públicas, a questão da prescrição tornou-se um tópico crítico,
pois, numa época em que os registos eram raros, a titularidade de poderes públicos ou
jurisdicionais era, muito frequentemente, apenas a posse de exercer esses direitos ou cobrar
esses impostos.
§ 1271. Em geral, a prescrição - salvo, para alguns e apenas em alguns casos, a
centenária e a imemorial1963 - não podia correr contra os direitos supremos do imperador ou
do rei que não reconhecesse superior, nem contra o papa, pois ninguém podia deixar de
reconhecer a sua respetiva superioridade1964. Ou seja, ninguém se podia apropriar, por
qualquer modo incluindo a prescrição, daquilo que estava reservado aos reis em sinal de
reconhecimento do seu poder de jurisdição, nem podia invocar o direito prescrito de se eximir
à sua obediência1965.

1957 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 39. Cf. ainda Pascoal de

Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,4,11.


1958 Ainda que a posse fosse anterior ao facto que as tornou inalienáveis, cf. António Cardoso do

Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 40.


1959 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 63. Por isso, os direitos

usucaptos caducavam com a chegada de um novo administrador, que recuperava o morgadio na sua
condição originária.
1960 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 79.

1961 Cf. D.41.3 De usucapionibus et usurpationibus, 9: “Gaius libro quarto ad edictum provinciale.

Usucapionem recipiunt maxime res corporales, exceptis rebus sacris, sanctis, publicis populi Romani et
civitatium, item liberis hominibus”.
1962 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 30.

1963 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, ns. 20 e 21.

1964 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 23.
1965 “Iurisdictionalia & concernentiam iurisdictionem non praescribantur in hoc regno, etiam per
tempus immemoriale, licet aliud de iure communi atento”, Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit.,
obs. 65, n. 29. Pelo direito do reino, não podiam prescrever (ser usucaptos) nem a as jurisdições, nem
os direitos reais, nem o padroado régio, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt.2, dec. 65, ns 1 a 3. A

371
Direito das coisas
§ 1272. Embora, atento o direito comum, houvesse uma certa flutuação nesta
imprescritibilidade das regalia majora1966, no direito português era claro que elas não podem
ser usucaptas. Assim, no direito português, um senhor não podia usucapir o direito de última
apelação para o príncipe, embora isso fosse admitido por alguns autores de direito
comum1967.
§ 1273. Também o direito de criar ofícios não se adquira por prescrição1968 (v. cap.
2.4.3.5).
§ 1274. Do mesmo modo, nenhum senhor da terra ou castelo podia adquirir jurisdição
régia pelo simples decurso do tempo1969, sendo obrigado a mostrar cartas de concessão ou
doação1970. Também os limites territoriais dos espaços jurisdicionais não prescreviam1971.
§ 1275. Não corria também para adquirir direitos sobre a via pública, como pôr
passadiço ou latada avançada sobre ela, a não ser que houvesse esse costume, "como
acontece – lembra António Cardoso do Amaral - no concelho de Ruivães, onde eu nasci,
onde todas as ruas são cobertas de videiras sobre latadas de madeira, na parte de cima, de
modo a não impedir a servidão"1972. Nem tão pouco corria prescrição de longo tempo em
relação a aqueduto público destinado ao uso da cidade1973.
§ 1276. Também os bens do rei estavam protegidos contra a sua usucapião por
particulares. Os patrimoniais e fiscais só prescreviam a favor de particulares por prescrição
de 40 anos; os regalia majora e minora, os bens que continham jurisdição, os impostos,
nunca se extinguiam por prescrição a favor dos súbditos 1974. Mas extinguiam-se por
prescrição de 30 anos os direitos de cobrar prestações (forais) anuais ou mensais1975.
Relativamente a estes direitos “de foral”, como as jugadas ou censos “domaniais”1976, alguns
defendiam que a prescrição aquisitiva (usucapião) imemorial corria, favor dos senhores,
mosteiros ou concelhos1977, como forma de obter prestações deste tipo1978. Mas,
normalmente, referiam-se a uma posse imemorial já na altura em que os forais tinham sido
reformados por D. Manuel.

não ser em virtude de privilégio pois o príncipe teria uma intentio fundata em relação a tudo aquilo que
pertence à jurisdição real, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 24.
1966 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., dec. 120, n. 20 e 21.

1967 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 40, n. 13.

1968 Pois nas coisas relativas à superioridade do império ou aos tributos, não há prescrição nem

imemorial, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 33, n. 2.


1969 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 25.

1970 Álvaro Valasco, Tractatus de jure emphyteutico […], cit., qu. 8.

1971 Não prescrevem os termos das paróquias ou das dioceses, cf. António Cardoso do Amaral,

Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 32..


1972 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 36.

1973 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 37.

1974 Cf. v. Ord. fil.,2,27,1; cf., cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 44.

1975 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, 35.
1976 I.e., devidos ao senhor, não ao proprietário (como os foros enfitêuticos). V. Ord. fil., 2,27,1.
1977 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 67.

1978 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit. cons. 167, n. 22.

372
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 1277. No caso dos direitos jurisdicionais e disciplinares da Igreja, a prescrição também
não corria1979. Os prelados inferiores não podiam usucapir contra os bispos quanto às suas
atribuições reservadas1980. Porém, o rei podia adquirir dos bispos a apresentação de
benefícios por prescrição imemorial, assim como os bispos podiam adquirir estes direitos
contra o papa1981.
4.3.2.1.10.6 Contra quem não corria a prescrição.
§ 1278. Uma outras limitação da usucapião é que não corria contra certas pessoas, nuns
casos em razão da sua dignidade, noutros casos com intuito de as proteger.
§ 1279. Não corria, desde logo, contra incapazes ou pessoas atingidas por alguma
capitis diminutio, enquanto o fossem. Era o caso dos menores1982, da mulher casada1983, do
ausente em serviço da república1984.
§ 1280. Também a Igreja estava mais protegida. Decerto, pela dignidade do seu múnus,
mas também porque, como corporação, tendia para ser equiparada ao menor. Por isso,
embora a igreja usucapisse contra privado por 10 anos (ou 30 sem título), o privado só
adquiria contra a Igreja, com prescrição de 40 anos com título e, sem isso, com prescrição
imemorial1985. Para além disto, os direitos e bens episcopais não prescreviam sede
vacante1986, enquanto o prelado estivesse impedido (v.g., por excomunhão), ou enquanto
vivesse o prelado que os tivesse alienado1987.
§ 1281. Existiam ainda inúmeras prescrições extraordinárias, a que correspondiam
prazos diversos para exercer direitos ou pedir providências1988.

1979 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, ns. 38 e 43.
1980 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, ns. 27 e 66.
1981 Ou vice versa, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 22.

1982 “Praescriptio dormit dum pupillaris aetas durat, nisi emens a pupillo putet illum esse maiorem”,

cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 60. Por exemplo, nas coisas vendidas
por menores sem autorização do tutor, a prescrição a favor do comprador não corria enquanto durasse
a menoridade, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 61. As Ordenações
excetuavam a prescrição por tempo longuíssimo: Ord. fil.,4,79,2; Ord. fil.,3,41,6..
1983 Não corria contra os bens dotais constante matrimonio, pois a mulher não tinha capacidade

para agir por si, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 64.
1984 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 56.

1985 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 65.
1986 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 55.
1987 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 59.

1988 Cf., Exemplos em Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,4,14: Com efeito, a

acusação criminal prescrevia por 20 anos, Ord. fil.,1,84,23; a quereIa (cf. v. cap. 8.1.6.3) devia ser
apresentada ao juiz dentro de 1 ano, Ord. fil.,5,2,4 e 117; a apelação (cf. v. cap. 8.1.6.4.23) devia ser
interposta dentro de 10 dia (Ord. fil.,3,70) e prosseguida no juízo superior dentro de 6 meses (Ord.
fil.,3,70, 3 e 4); a exceção non numeratae pecuniae (de dinheiro não recebido) devia ser oposta dentro
de 60 dias (Ord. fil., 4,51); os herdeiros não tinham que prestar contas aos testamenteiros passados 25
anos (Ord. fil.,1,62,8 e 22); os salários dos escrivães e tabeliães prescreviam 3 meses depois de dada
a sentença (Ord. fil., 1,70, 19; e 1,8); só dentro de ano e dia se podia acionar por damno infecto (por
dano causado) e pelo interdito quod vi aut clam (por dano violento ou oculto), Ord. fil.,1,68,25); a
mulher só podia demandar o seu estuprador até 1 ano depois de deixarem de ter relações (Ord. fil.,

373
Direito das coisas
4.3.2.1.10.7 Termos, suspensão e interrupção.
§ 1282. A prescrição corria a partir do momento em que o proprietário pudesse propor
uma ação de reivindicação da coisa (ou, no caso da prescrição extintiva de créditos, desde o
momento que o crédito se tornasse exigível)1989. Circunstâncias de impacto geral1990
(suspensão natural, como o roubo da coisa ou circunstâncias de força maior que impedissem
a posse ou o exercício da ação reivindicatória, como no caso de peste) suspendiam o curso
do prazo1991. Interrompida naturalmente, recomeça quando a posse se restaurar1992.
§ 1283. A interrupção da prescrição dava-se pela manifestação formal por parte do
proprietário de que reclamava a propriedade da coisa. Esta manifestação podia ser a retoma
(não violenta nem clandestina) do uso da coisa ou (spolius), ou a citação ou litis contestatio
de uma ação de reivindicação (ou de cobrança do crédito) por ele proposta1993.
4.3.2.2 Os poderes do proprietário.
§ 1284. Os poderes do proprietário consistiam na propriedade ou domínio (dominium,
cuja definição corrente era “o direito perfeito [i.e., pleno] de ter, possuir, fruir, usar e dispor de
alguma coisa, pelo arbítrio da sua vontade ou segundo algum modo determinado e definido
por algum poder superior ou autoridade”1994. Esta definição parece muito alargada, mas de
facto não o é tano. Por um lado, a referência ao carácter arbitrário do uso herda da palavra
arbitrium a ideia de ponderação e medida destacada no conhecido estudo de Massimo
Meccarelli1995 ” que, justamente, limitava o arbítrio àquilo que podia ser razoavelmente,
opondo-o ao desordenado e inconceptível de ser justificado (licentia). Por outro lado, este

5,23,2); a Acão de nulidade prescrevia por 40 anos; a de lesão enorme, por 30. Melchior Febo,
Decisiones [...], cit., Decisiones [...], cit., dec. 82, n. 7.
1989 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, ns. 47 e 48.

1990 A interrupção natural aproveitava a todos, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.

“Praescriptio”, n. 77. A civil, só aproveitava àquele contra aquele contra quem a prescrição era
invocada, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 78.
1991 Cf. D.41.3 De usucapionibus et usurpationibus, 5; “Gaius libro 21 ad edictum provinciale

Naturaliter interrumpitur possessio, cum quis de possessione vi deicitur vel alicui res eripitur. Quo casu
non adversus eum tantum, qui eripit, interrumpitur possessio, sed adversus omnes. Nec eo casu
quicquam interest, is qui usurpaverit dominus sit nec ne: ac ne illud quidem interest, pro suo quisque
possideat an ex lucrativa causa”. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 48.
1992 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 63, n. 8.

1993 Cf. D.41.3.2. cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, n. 78. Para a

interrupção da prescrição: na prescrição de 30 ou 40 anos, bastaria a citação; na de longo tempo, seria


necessária a litis contestatio, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit. dec. 63, n. 7. A questão era
discutida.
1994 “Ius perfectum habendi, possidendi, fruendi, utendi ac disponiendi de aliqua re, pro voluntatis

arbitrio aut secundum aliquem modum determinatum, & deffinitum aliqua superioritate, vel auctoritate”,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Praescriptio”, v. “Dominium”, n. 1. A definição de Bártolo
era “ius in re corporali perfecte disponendi nisi lege prohibetur”, glosando D.41,2 De adquireda poss., 17, 1:
“41.2. De adquirenda possessionem, 17: Pr. Si quis vi de possessione deiectus sit, perinde haberi debet ac si
possideret, cum interdicto de vi reciperandae possessionis facultatem habeat. 1. Differentia inter dominium et
possessionem haec est, quod dominium nihilo minus eius manet, qui dominus esse non vult, possessio autem
recedit, ut quisque constituit nolle possidere. Si quis igitur ea mente possessionem tradidit, ut postea ei restituatur,
desinit possidere”.
1995 Massimo Meccarelli, Arbitrium […], cit..

374
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
uso “arbitrário” da coisa está circunscrito (determinatum) e limitado (deffinitum) por poderes
superiores.
§ 1285. Se se examinar um pouco mais detidamente o regime da propriedade
percebemos melhor que se tratava de um complexo de direitos e de deveres com um
conteúdo fluido, bem longe de um direito pleno, unilateral e exatamente definido sobre uma
coisa objetivamente identificada1996.
§ 1286. Por um lado, o uso da propriedade estava diversamente limitado por restrições
legais ou estatutárias, introduzidas pelo príncipe (ou outra entidade que não reconhecesse
superior, nos termos daquilo a que mais tarde se chamará o seu dominium eminens: aqui se
inclui a possibilidade de confisco, de expropriação1997, de regulamentação edilícia. Por outro
lado, o proprietário tinha que se conformar com restrições ao uso da coisa originadas nas
relações de vizinhança, urbana ou rústica. Por fim, a fruição estava limitada pela ideia de
“uso honesto” ou uso conforme à natureza, que podia obrigar a cultivar, proibir a destruição
de coisas úteis, impedir usos desonestos (meretrício1998, negócios usurários).
§ 1287. Em contrapartida, a propriedade dava direitos sobre prédios vizinhos. Por um
lado, um direito geral a uma pretensão de propriedade sobre prédios contíguos abandonados
– as chamadas: entradas e saídas1999. Por outro, alguns direitos de interferir no uso de
prédios vizinhos. O proprietário podia exigir a expulsão do prédio vizinho de pessoas
barulhentas e rixosas2000 ou de prostitutas2001, pois se presumia “uma certa sociedade e
fraternidade entre vizinhos”, que explicava que se matasse a ovelha infetada para quem não
contaminasse todo o rebanho” ou que para que “o exemplo do mal não provocasse e
perturbasse os que vivem honesta e sossegadamente”2002.
§ 1288. O dono também podia celebrar convenções com outros acerca dos seus bens.
O limite, num caso ou noutro, era a lei e o prejuízo de outrem2003. Porém, o domínio estava,
como se disse, sujeito às leis da sociedade, devendo o dono usar da coisa segundo as
normas prescritas, sem que por isso fosse menos dono. Daí que as proibições de alienar,
que impendiam sobre o marido, sobre os tutores, sobre os administradores de morgado,
sobre os donatários de bens da coroa, não os faziam menos donos ou senhores2004, nem

1996 V. Virpi Mäkine, Property Rights in the Late Medieval Discussion on Franciscan Poverty,
cit..
1997 V. Ugo Nicolini, La proprieta, il principe e l'espropriazione per pubblica utilita […]: U. Nicolini,
“Espropriazione per pubblica utilità”, cit..
1998 Quem alugasse a sua casa para prostituição, perdia-a (Manuel Álvares Pegas, Commentaria

[…], cit. ad 1,22, glos. 5, n. 6).


1999 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.,4,43,15, n. 6

2000 Que incomodariam sobretudo os advogados e os estudantes, que eram incomodados nos

seus estudos, nomeadamente pelos artesãos (ex., os que usam de martelos e malhos, como os
latoeiros), Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit. ad 1,22, glos. 5, n. 16. Refere uma sentença
de 1660 a favor de um advogado.
2001 “Mulher que publicamente se prostitui e vende o corpo, não a que por amor ou espírito de

serviço aceita alguns homens”, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 3, ad 1,22, glos. 5,
n. 11. A “Lei dos julgadores dos Bairros de Lisboa” regulava o exercício da prostituição (transcrita em
Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 5, ad 1,65, gl. 17, e tomo 3, ad 1,22, gl. 6).
2002 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit. ad 1,22, glos. 5, n. 9.

2003 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Res”, n. 33.

2004 Cf.. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit. 194, n. 22.

375
Direito das coisas
sequer eram entendidas como dando origem a uma divisão do domínio. Tratava-se apenas
de limitações ao domínio, de modo a salvaguardar o interesse da república e dos
cidadãos2005. Nas coisas comuns a vários particulares, a disposição da coisa exigia,
naturalmente, o acordo dos sócios ou comproprietários.
§ 1289. Como o domínio podia integrar um complexo vasto de diferentes direitos2006, a
doutrina distinguia várias espécies. O domínio jurisdicional (domnium iurisdictionis)2007, que
consistia na titularidade da jurisdição, ou seja do poder de dar ordens e de exercer a
jurisdição; o dominium eminens, de que se falará muito no séc. XVIII, para referir o direito do
príncipe sobre as terras dos súbditos, que explicava os seus poderes de expropriação e de
imposição fiscal; o domínio direto (dominium directum, ou nua propriedade2008), que consistia
numa intenção protegida pelo direito2009 de ser dono de uma coisa sobre a qual não se
dispunha de um poder de uso, mas que obrigava aquele que detinha a faculdade de uso a
prestar serviços ou pagar um cânon; o domínio útil (dominium utile, ou usufruto),
correspondente em negativo ao anterior, facultando o uso de uma coisa, contra o pagamento
de certas prestações de serviços ou bens pagas ao senhor direto como reconhecimento do
seu domínio2010; domínio doméstico (dominium domesticum)2011, significando o poder do
pater sobre as coisas e pessoas da casa. Era esta multiplicidade de espécies de dominium
que explicava que pudesse haver mais do que um dono (ou senhor) da mesma coisa,
embora os seus domínios não pudessem ser da mesma espécie, pois não podia haver duas
pessoas a exercer os mesmos poderes sobre a integralidade da coisa2012. Havia ainda quem
falasse em quasi dominium, não no mesmo sentido em que se falava em quasi possessio,
mas no de referir o direito adquirido por quem comprasse, de boa fé, uma coisa a quem não
fosse dono dela ou o do herdeiro à herança: não a podia defender com a reivindicação, mas
era titular de uma actio publiciana 2013.

2005 V. Ord. fil.,4,107,pr.,início. Do mesmo tipo eram outros institutos que limitavam ou

condicionavam o direito de propriedade: prescrição por parte de terceiros, expropriação, insinuação das
doações, solenidades dos contratos e testamentos.
2006 Cf. Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., II, 11, n. 4.

2007 “Dominus (iurisdictinis) est ille qui dominium iuste, & legitime acquisivt in iusto bello, aut per
legitimam succesionmem, sive per consensum seu electionem populi habentis potestatem eligendi
dominum, aut per institutionem principis vel aligius superior habendi iurisdictionem & potestatem
eligendi dominum”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Dominium”, n. 1.
2008 A palavra “propriedade” era usada para designar a nua propriedade. Arnold Vinnius, In

quattor libros Institutionum [...], cit., ad 2,1,11,3.


2009 Requeria, portanto, animus dominandi, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.

“Dominium”, n. 2.
2010 Cf Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., II, 11, n. 4. Esta distinção entre

dominium directum e utile ocorria nos bens feudais e na enfiteuse. Em Portugal, entendia-se que não
havia bens feudais (apesar de Ord. fil.,5,6,16-17), v. cap. 2.4.3.5.
2011 “Dominus tenetur corrigere quemcumque de familia sua”, António Cardoso do Amaral, Liber

[...], cit., v. “Dominium”, n. 5; “potest servum suum castigare”, António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., v. “Dominium”, n. 6.
2012 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 244, n. 1. Mas podia haver comproprietários,

que senhoreassem uma parte indivisa da coisa (metade, um terço, etc.).


2013 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., II, 11, n. 8. A actio publiciana era uma

actio in rem (utilis) concedida pelo pretor para tutela dos possuidores de boa fé com um título que

376
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 1290. O proprietário podia reivindica a sua coisa em juízo por ações reais2014, que
incidiam sobre a coisa, independentemente de quem a possuísse2015. e também defendê-la
extrajudicialmente (mesmo pela força, desde que imediatamente e quando não fosse
possível recorrer ao auxilio do juiz, Ord. fil., 4, 58, 2).
4.3.3 A enfiteuse.
§ 1291. Francisco Caldas Pereira de Castro, 1543-1597, porventura o mais destacado
dos juristas que trataram extensamente da enfiteuse nos finais do séc. XVI destacava, a
propósito de uma discussão de que falaremos, o caráter emblemático da enfiteuse quanto
aos modos de possuir e transmitis os bens. O reino de Portugal seria uma única e imensa
enfiteuse. Ter terras era ter concedidos certos rendimentos anuais, mas não a possibilidade
de dispor delas, por morte e em vida. Era assim que se possuíam os morgados, as capelas,
os bens da coroa, os bens emprazados, os bens censíticos. Era assim que o rei tinha a
maior partes das suas terras, mesmo as terras jurisdicionais e até o reino. Era assim que os
senhores jurisdicionais tinham as terras da coroa dos reinos. Era assim que os bispos, as
mitras e os abades dos mosteiros tinham as terras da Igreja. Era assim que os oficiais tinham
os ofícios, de disposição limitada pela graça do rei e pelos direitos dos filhos. Era assim que
os lavradores tinham as suas herdades, tomadas de rendas por vidas ou longo tempo.
Quase como meros administradores, a quem tinha sido concedido um domínio útil, mas não
um pleno poder de disposição, que estava noutrem (a coroa do reino, a Igreja, as famílias, os
senhores diretos)2016. A fortuna eram, na verdade, constituída por rendas, mas não por bens.
§ 1292. Esta constituição social (e jurídica) da terra tinha alguns traços estruturais: a
precariedade da concessão, a indisponibilidade por vida ou por morte e a indivisibilidade. E
isto gerava um habitus social correspondente: a dependência em relação ao concedente, um
poderoso ou protetor de quem se esperava liberalidade e constância; a inculcação de um
modelo de sociedade em que os indivíduos contavam menos do que as entidade
transindividuais (a família, a Igreja, a Coroa) e em que os laços de solidariedade que estas
entidades causavam se projetava na vinculação e indivisão do seu património dos
particulares.

acreditavam ser válido, v. cap. 7.1.3.2.


2014 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Res”, 23. A reivindicação era um elemento

típico e indispensável do domínio. Quem não dispusesse dela não era proprietário. Mas, em
contrapartida, quem não fosse proprietário não a podia usar. Cf.. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.
172, n. 12.
2015 Podia reivindicar a coisa própria de qualquer possuidor a quem tivesse sido entregue sem ser

em nome do proprietário, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Res”, n. 23; mesmo que o
possuidor a tivesse, entretanto, dado em penhor, já que o proprietário não era afetado por atos de
disposição praticados por terceiros (res inter alia acta gesta non nocet nec prodest), António Cardoso
do Amaral, Liber [...], cit., v. “Res”, ns. 24-25 (exceções à regra).
2016 “Se considerarmos tanto os bens temporais como eclesiásticos, o que é este reino senão

uma única e universal enfiteuse ? Nos reinos de Portugal quase todas as propriedades (possessiones),
como capelas, morgados, igrejas, bens da coroa, são vinculadas (addictae). Tiradas estas, apenas fica
uma porção exígua. O que são os proventos e rendimentos das capelas, dos morgados, das igrejas, ou
dos bens da coroa, senão várias e inumeráveis concessões enfitêuticas ? O quê, senão benefícios de
senhores [úteis, enfiteutas], distribuídos a várias pessoas ? O quê, senão um número frequentíssimo de
enfiteuses ?”, Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus, de renovatione emphyteutica [...],
cit., qu. 11, n. 21.

377
Direito das coisas
§ 1293. Não era que tudo fosse enfiteuse, mas que quase tudo se usava e se transmitia
como se o fosse. O que restava - por exemplo, os bens alodiais em exploração direta, os
bens arrendados, os bens censíticos ou censuais, ainda assim com pontos de contacto -, de
que se pudesse dispor livremente, pouco representava.
§ 1294. Por isso, entender a enfiteuse e a pré-compreensão da sociedade que lhe
subjaz é dispor de uma poderosa chave interpretativa para a sociedade de Antigo Regime.
§ 1295. A enfiteuse2017 (também designada por prazo2018 ou emprazamento) era um
direito, perpétuo ou temporário, sobre um bem (imóvel) que permitia ao possuidor (enfiteuta,
colono) melhorá-lo e gozar dos seus rendimentos e frutos, pagando certo cânone (foro ou
pensão) em reconhecimento do domínio direto de outrem2019. Alguns autores acrescentavam
como elemento essencial da enfiteuse a obrigação para o enfiteuta de não vender os bens
sem consentimento do senhorio direto e de, no caso de venda, pagar a este um certa quantia
(laudémio), como que gratificando-o por não exercer o seu direito de preferência2020.
§ 1296. A origem da enfiteuse parece que estaria na forma romana de conceder os
prédios públicos tributários (vectigales), pelos quais os concessionários pagavam uma
prestação anual perpétua2021, dependendo a concessão de renovação e estando sujeita a
caducidade (commissum) no caso de se violarem as condições da concessão.
4.3.3.1 Natureza da enfiteuse
§ 1297. A estes traços estruturais que constavam da definição, a lei portuguesa
acrescentava a indivisibilidade2022.
§ 1298. A enfiteuse era declarada por lei2023 como indivisível, não pela sua natureza –
pois nada impedia que fosse dividia em glebas -, mas porque a lei portuguesa queria,

2017 Do grego εηµύτευσις, proveniente do verbo έµφυτεύω, plantar; daí “lugar para plantar e fazer
frutificar”.
2018 De placitum, aprazimento, gosto, graça.
2019 “Contractus meliorationis, seu datio, per quam utile dominium rei immobilis transfertur in
perpetuum, vel ad tempus, pro quo solvitur aliquid reale, per tempora constituta, directo domino, in
recognitione dominii”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, n. 1; Pascoal de
Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11,1. Fontes legais e doutrinais: Fontes: D.6.3 Si ager
vectigalis, id est emphyteuticarius, petatur; C.,4.66. De emphyteutico iure (também, C.11.62 a 65); Ord.
af.,4,78-80, Ord. man.,4,63-65; Ord. fil.,4,36 a 41; Álvaro Valasco, Tractatus de jure emphyteutico […],
cit., pt. 1, qu. 1; Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., qu. 1 e ss.; Francisco
Pinheiro, De censu et emphyteusi, cit., pt. 2, disp. 1; Manuel Barbosa, Remissiones […], cit, ad Ord. fil.,
4,36 ss.; Luís de Molina, Tractatus de iustitia […], cit., tract. 2, disps. 10, 444 a 447, 472-473; João
Baptista Fragoso, Regimen […], cit., pt. 3, disp. 9, ns. 1 a 5 e 7; Mauro Luís de Lima, Commentaria […],
cit., ad Ord. fil., 4,36 e ss..
2020 “Non censetur emphyteuticus contractus quando in eo non fuit adjecta clausula, quod fundus

nun potest vendi irrequisito domino, & absque eo quod laudemium illi solvatur”, Jorge de Cabedo,
Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 153, n. 1.
2021 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11,2.

2022 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, n. 16; Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11,18.


2023 Ord. fil., 4,36,1 ("e por quanto o foro não há-de ser partido entre muitos") e Ord. fil.,4,96,23

(“E porque os taes bens, segundo a natureza dos foros, não se hão de partir, e hão de :andar em uma
só pessoa”).

378
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
segundo aí se diz, evitar a confusão dos foros pela sucessiva partição entre os herdeiros.
Este não era o regime de direito comum, que considerava a enfiteuse como divisível,
assimilando-a aos feudos2024. O regime de indivisibilidade – que era o da Coroa do Reino,
das jurisdições, dos bens da coroa e dos morgados – vai daria à enfiteuse um leve sabor
aristocrático. Como a proibição de dividir era apenas de direito régio, ela poderia ser
afastada por costumes imemoriais das regiões2025. E, assim, na província de Entre Douro e
Minho, a indivisibilidade era mitigada: embora só um dos herdeiros se relacionasse com o
senhorio para pagar integralmente o cânone, cada herdeiro ficava com a sua parte dos bens
emprazados, pagando ao cabecel a sua quota deste 2026. Nas outras regiões, havendo vários
herdeiros, um apenas (o cabecel) ficava com os bens enfitêuticos, dando tornas aos outros
pelo valor que lhes caberia se houvesse divisão2027. O cabecel era escolhido por votos dos
herdeiros. Na falta de acordo maioritário, os bens deviam ser vendidos no prazo de seis
meses2028.
§ 1299. Outra característica da enfiteuse acrescentada pelo direito régio era a de apenas
se permitir o emprazamento de imóveis2029.
§ 1300. Características naturais da enfiteuse, que nela não podiam faltar nem ser
afastadas por pacto eram: a divisão de domínios (direto e útil) entre o senhor (senhorio) e o
enfiteuta (colono), não podendo este último alienar por sua vontade os bens sem os oferecer
à preferência (prelação) do senhor2030 e perdendo o seu direito se não pagasse o cânone por
3 anos.
§ 1301. Em contrapartida, não eram naturais, sendo alteráveis pelo pacto de
constituição2031, a existência e montante do laudémio, o pagamento pelo senhor das
benfeitorias feitas pelo colono, a formalidade da constituição – na enfiteuse eclesiástica, a
escritura pública era necessária -, modo, qualidade e tempo do pagamento do cânon, a
ordem de devolução sucessória dos bens emprazados2032.
4.3.3.2 Contra distinção entre enfiteuse e outras situações fundiárias.
§ 1302. A constituição jurídica da terra era complexa, na sociedade de Antigo Regime. O

2024 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, n. 24.
2025 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 78.
2026 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11,18.

2027 O que havia, portanto, era divisão ideal, apenas para calcular o valor da parte que competiria

a cada herdeiro e pela qual ele teria de ser indemnizado pelo cabecel.
2028 Sem direito de preferência do senhorio direto, nem laudémio, pois a venda não fora decidida

pelos herdeiros, mas pelo direito; cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 53, ns. 1 a 3; Jorge de
Cabedo, Decisiones [...], cit., [...], cit., pt. 1, dec. 107, n. 1 ss.; António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., v. “Emphyteusis”, n. 24.
2029 V, Ord. fil.,4,37, pr. ("herdade, vinha, casa, olival ou outra possessão de foro").

2030 V. Ord. fil.,4,38,pr. e 1; mesmo que no pacto estivesse permitida a venda sem consentimento
do senhor, cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 116, n. 1.
2031 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11,3

2032 Antes de tudo, nestas condições não naturais do contrato, valia o pacto, desde que não se

subvertesse totalmente a substância do instituto, por contrariar algum dos seus elementos naturais,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, n. 14; Pascoal de Melo, Institutiones iuris
civilis [...], cit., 3,11,3.

379
Direito das coisas
que se passava era que os juristas tentavam enquadrar em figuras dogmáticas da tradição
romanística a multiplicidade infinita de situações concretas, associando-lhes nomes,
conceitos e regimes jurídicos típicos. Assim, impunha-se um importante esforço de
diferenciação conceitual, sobre a qual assentavam consequências normativas e
institucionais.
4.3.3.2.1 Enfiteuse e locação (colonia simples).
§ 1303. Distinguia-se a enfiteuse da locação (também chamada colonia simples) (v. cap.
6.9.2.2.3), pois esta última não criava uma situação real. Assim, a posição do locatário era
tutelada por uma ação pessoal. Além disso, a renda da locação não era paga em
reconhecimento do domínio direto, mas como a retribuição da cedência do direito de cultivar
e receber os frutos, devendo haver alguma correspondência entre a pensão e os frutos,
nomeadamente para efeito de reduzir aquela quando estes diminuam drasticamente, ou para
decidir acerca da lesão enorme, por insuficiência ou excesso gritantes das rendas. Esta
correspondência cânon-frutos era muito atenuada na enfiteuse, pois a função do cânone era
outra2033. Para designar, em geral, os que pagavam pensões fundiárias usava-se a palavra
colono. Diziam-se simples colonos os que cultivavam o prédio alheio, como arrendatários ou
locatários, pagando renda certa ou parciária2034 ou certos serviços (não havia colonos
adscritícios, v. Ord. fil.,4,42).
§ 1304. Já a locação por longo tempo era considerada como uma espécie de alienação
pela qual se transferia o domínio útil2035, embora, em rigor, não houvesse laudémio nem
comisso2036. Outra espécie de locação era a constituição de um direito de superfície, ou seja
do direito de ter uma coisa edificada ou plantada em solo alheio (v. cap. 4.3.10).
4.3.3.2.2 Enfiteuse e censo.
§ 1305. Considerada como uma questão muito importante, dada a frequente ocorrência
dos dois institutos e a também frequente incerteza dos regimes pactados, era a distinção
entre enfiteuse e censo2037.
§ 1306. Os censos eram uma instituição muito antiga, que aparecia nas Siete Partidas
(3,18,68), remontando ao direito feudal. O censo podia ser com “investidura” – um ato solene
em que o senhor da coisa transferia para outro o domínio útil dessa coisa mediante certas
palavras, sob condição de fidelidade e estipulação de serviços militares ou de outras
prestações pessoais – ou simples. O primeiro correspondia a um contrato feudal, não
estando em uso em Portugal. O segundo transferia o para o colono censitário o domínio
pleno, com livre alienação e sem comisso por não pagamento do foro, embora
permanecesse a obrigação de pegamento do foro. Assim e segundo a distinção dogmática,
embora no censo também houvesse divisão de domínios, o colono (censitário) era senhor
pleno da coisa, podendo aliená-la livremente, não pagando laudémio e não perdendo a coisa

2033 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11,4.


2034Cf. “colono parceiro”, em Ord. fil.,4,45,2.
2035V. Ord. fil.,3,47,pr.; 3,48,8.
2036 Cf., no entanto, Ord. fil.,4,38-39, que parece referir-se também à locação de longo tempo. Cf.

Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11, 4 nota.


2037 Cf. Álvaro Valasco, Quaestiones iuris emphyteutici [...], cit., qu. 32.

380
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
por não pagamento do censo2038. Na dúvida sobre se a situação era enfitêutica ou censítica,
preferia-se presumir a situação de maior liberdade de disposição que era a do censo2039. Os
bens censíticos que pagassem pensão ao rei estavam muito próximos dos bens chamados
reguengos (v. cap. 4.2.2.4), pois ambos pagavam uma quantia ao rei, ou como tributo em
reconhecimento do seu senhorio natural (no caso dos reguengos), ou como pensão
contratual perpétua (no caso do censo)2040. Era uma das tais questões intrincadas que
resultavam da incerteza quanto à natureza da pensão, da qual dependia o encaixe de
antiquíssimas situações agrárias na dogmática da doutrina jurídica moderna.
4.3.3.2.3 Enfiteuse e feudo.
§ 1307. Também nos feudos, havia elementos próximos da enfiteuse2041. Um deles era a
divisão do domínio, pois o feudo era a concessão benévola por alguém de uma coisa imóvel
de tal modo que permanecesse no concedente apenas a propriedade da coisa imóvel,
transitando o seu usufruto para o adquirente e seus herdeiros, varões e mulheres (se
expressamente referidas), ficando-lhes a pertencer perpetuamente, para que sirvam
fielmente o seu senhor”2042. A diferença entre enfiteuse e feudo consistia, porém, em que
feudo importava homenagem (serviços pessoais) e serviço militar (ad militandum)2043, ao
passo que a concessão enfitêutica não exigia qualquer vínculo político pessoal2044 e era feita
com a finalidade de cultivo (ad cultivandum). Em Portugal, não existiam feudos; mas a
doutrina aproximava deles as beetrias, o domínio de solar, a obrigação de servir a cavalo e
as capitanias dos castelos (alcaidarias-mores); mas não as doações de bens da coroa2045 (v.

2038 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, n. 3; Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11,5.


2039 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 153, ns. 1-2; todavia, em sentido

contrário, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 37, n. 10: se a pensão corresponde aos
frutos, presume-se que se trata de arrendamento (colonia); quando ela é módica, como costuma ser
nos casos de censo e de enfiteuse, presume-se que se trata de enfiteuse.
2040 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11,11, Nota.

2041 De modo a autorizar o uso do argumento ab emphyteusi ad feudum e vice versa. Cf. Álvaro

Valasco, Quaestiones iuris emphyteutici […], cit., qs. 38-41, 51.


2042 Cf. Marius Giurba, Repetitiones […], cit., Prael. II, n. 1.

2043 Cf. Siete Partidas, 4,25-26, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11,5-6.
2044 V. Ord. fil..4.42.
2045 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11, 6 nota. Sobre a distinção entre

feudos e doações dos bens da coroa, v. António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., ps. 407-409.
O carácter não feudal das concessões de bens da coroa fora enfaticamente declarado( nas Ord. man.,
2,17,2. Com este princípio, obtinham-se alguns resultados práticos. O primeiro deles era o de distinguir
as obrigações dos donatários das dos feudatários. Na verdade, o serviço feudal tinha um carácter
pessoal, mas limitado aos termos do pacto de enfeudação. Em contrapartida, entendia-se que os
serviços dos donatários, embora também de natureza pessoal, eram ilimitados, consubstanciados
numa promessa genérica de obediência (Ord. man.,2,17,3). Eles serviriam enquanto vassalos naturais,
sem limitações na guerra defensiva e até ao limite daquilo que pudessem (tantum intra vires) na guerra
ofensiva. O segundo era o de estabelecer o carácter em princípio temporário da de bens da coroa,
contra o carácter perpétuo da concessão feudal. O terceiro era o de sublinhar o carácter indivisível dos
bens da coroa (Ord. man., 2,17,2; 2,14; 2,25) contraposta à natureza em princípio divisível da
concessão feudal, só afastada no caso de concessões que contivessem dignidades ou em que o pacto
fixasse o contrário. Finalmente, a última consequência da distinção entre feudo e doação régia era a de

381
Direito das coisas
cap. 2.4.3.5).
4.3.3.2.4 Enfiteuse e concessões precárias de coisas eclesiásticas.
§ 1308. Estas concessões precárias de coisas eclesiásticas eram feitas pelos bispos, no
exercício do seu poder económico (doméstico), a clérigos ou pessoas necessitadas,
podendo ser de bens móveis e não obrigarem ao pagamento de pensão2046.
4.3.3.3 Espécies de enfiteuse.
§ 1309. A enfiteuse podia ser secular, quando incidisse sobre bens profanos, e
eclesiástica, quando bispos, reitores ou administradores de igrejas ou casas religiosas
concedessem bens eclesiásticos 2047.
§ 1310. As Ordenações dispunham que a enfiteuse eclesiástica fosse regulada pelo
direito canónico (Ord. fil.,4,39,2 in fine). Daí que o seu regime pudesse ser diferente do da
profana.
§ 1311. A doutrina começava por se perguntar da sua legitimidade, pois tratava-se de
uma forma de alienação de coisas da Igreja, em princípio proibida2048. Apenas se justificaria
por causa da necessidade ou da utilidade da Igreja em fazer cultivar terra de outro modo
inculta2049; por isso, estaria excluída a concessão enfitêutica de terras cultivados e férteis, a
não ser que estas por costume andassem em enfiteuse2050.
§ 1312. Não podia ser constituída sem as solenidades e requisitos do direito canónico,
requerendo escritura pública, não apenas para prova, mas também como formalidade
essencial2051. A sua concessão importava poderes de plena disposição, como os dos bispos
e dos abades; porém, os comendadores das ordens militares não a podiam conceder sem
autorização do mestre, pois não tinham tais poderes2052.
§ 1313. Não podia conceder-se em perpétuo ou por mais de três gerações ou vidas;
alguns autores excetuavam o caso de emprazamento de terra inculta, para a tornar mais
atrativa ao foreiro2053.
§ 1314. Era bastante generalizada a opinião que sustentava que a Igreja podia adquirir e
reter perpetuamente os prazos vindos a si por comisso, devolução do domínio útil pelo

que os feudos se regulavam pelo direito feudal, contido nos Libri feudorum, nomeadamente quanto à
interpretação e integração das suas cláusulas, enquanto que as doações régias se regiam pelo direito
pátrio, legislado ou consuetudinário, embora o direito feudal vigore como direito subsidiário.
2046 Cf. Álvaro Valasco, Quaestiones iuris emphyteutici [...], cit., qu. 34; Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11, 5.


2047 V. Ord. fil.,4,39; Novelas. 7,3 e 120,6.

2048 Cf. C.1.2. De sacrosanctis ecclesiis et de rebus et privilegiis earum, 14 e 17; Decretais, 3,13
De rebus ecclesiae alienandis vel non, cap. 5.
2049 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, n. 12.

2050 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, n. 12.

2051 Cf. Novelas 7, pr., e Novelas 120 cap. 5; Ord. fil.,4,19, pr.; Jorge de Cabedo, Decisiones [...],

cit., pt. 1, dec. 13, n.4; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11, 28.
2052 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, n. 23.

2053Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, n. 22; se se concedesse por

mais, era reduzida a 3 vidas, António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 72, n. 2. Para as modificações
pombalinas, v. CL de 9.9.1769, § 26.

382
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
foreiro, aquisição deste domínio pelo senhorio nos casos em que tinha direito de preferir na
venda dele2054. Porém, esta consolidação do domínio nas mãos da Igreja contrariava as leis
de desamortização de 11 de 30 de Julho de 1611. Por isso, segundo a lei 4.7.1768 e o Alv.
de 12.5.1768, estas terras reintegradas no domínio pleno da Igreja deviam ser de novo
emprazadas pelas igrejas, conservando-se as pensões antigas.
§ 1315. Outra especialidade relevante deste tipo de enfiteuse era a de bastar o não
pagamento do cânone por 2 anos para dar lugar a comisso; em compensação, o enfiteuta
podia purgar a mora, satisfazendo rapidamente as pensões antes da contestação da lide (v.
Ord. fil.,4,39,2)2055.
§ 1316. Em suma. As especialidades da enfiteuse concedida pela Igreja decorria, ou da
aplicação direta do direito canónico, ou de um favorecimento da Igreja (nomeadamente, no
caso de redução do prazo de comisso), ou da política da coroa no sentido de restringir a
propriedade eclesiástica.
§ 1317. A enfiteuse podia ser perpétua ou temporária2056. Presumia-se que era
constituída apenas por vidas (por uma vida) e não em perpétuo2057. Mas os autores discutiam
este ponto, tanto mais que, por um lado, a presunção da renovação dependia do costume da
região2058; e, por outro lado, porque o ponto se relacionava com a polémica acerca da
renovação da enfiteuse, a que nos referiremos mais tarde. Era muito comum a enfiteuse em
3 vidas, por vezes com pacto de renovação findas estas2059.
§ 1318. Quanto à ordem de sucessão, os atos de instituição de enfiteuse (pacto et
providentia, investitura) podiam estabelecer três modelos básicos2060: a enfiteuse hereditária
(v. Ord. fil.,4,36,7; 4,96,23); a enfiteuse familiar (v. Ord. fil.,4,96,24); e a enfiteuse de
nomeação (Ord. fil.,4,36-37), podendo esta ser livre, hereditária ou familiar, dependendo do
teor do pacto2061. A enfiteuse que não fosse hereditária, dizia-se de pacto et providentia, pois
a fonte da ordem sucessória não era o direito hereditário, mas o estabelecido no pacto de
constituição da enfiteuse.
§ 1319. Na enfiteuse hereditária, expressa pela cláusula “suceda Titius e seus herdeiros
e sucessores”2062 (podia ter outras condições, filho, varão), sucedia-se segundo a ordem de
sucessão legítima (iure hereditário, v. 5.3 ), como se os bens não tivessem uma ordem

2054 V. Ord. fil.,1,62,48 e Ord. fil.,2,1,6, que se permitia às comunidades eclesiásticas adquirir
prazos sem restrição de tempo.
2055 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, n. 7; Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11, 28.


2056 V. Ord. fil.,4,39, pr. e Ord. fil.,2,1,6 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.

“Emphyteusis”, n. 13. Com a legislação pombalina, a enfiteuse temporária passou a ter que ser por 3
vidas (CL. 3.11.1757); antes podia ser dada pela vida do enfiteuta ou por 10 anos (v. Ord. fil.,4,38-39).
2057 Para designar a enfiteuse perpétua usavam-se os nomes de fateusim, aforamento, enfatiota.

2058 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 276, n. 3; no sentido da perpetuidade, Pascoal

de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11,18.


2059 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, n. 13.

2060 Para as fórmulas que indiciavam cada modelo, Álvaro Valasco, Quaestiones iuris

emphyteutici [...], cit., qu. 4, n. 8; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11,8.
2061 Cf. v. Ord. fil.,4,38, ult..

2062 Cf., Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11,21.

383
Direito das coisas
sucessória especial. A única especialidade em relação à sucessão legítima era a de que o
fisco não sucedia pois, no caso de faltarem sucessores legítimos, os bens voltavam ao
senhorio direto2063. Além de que, como se disse antes, sendo vários os herdeiros, a enfiteuse
se encabeçar num deles. O pacto podia estabelecer certas condições para que os herdeiros
sucedessem na enfiteuse (linha masculina, varonia, primogenitura, legitimidade); neste caso,
na enfiteuse sucediam apenas os herdeiros que satisfizessem essas condições
suplementares.
§ 1320. Na enfiteuse familiar, expressa pela cláusula “suceda Titius e a sua família”2064,
os bens enfitêuticos não entravam na herança do enfiteuta, sendo devolvidos segundo uma
ordem sucessória própria, diferente do direito hereditário comum. Essa ordem hereditária
especial era o “direito de sangue”, a pertença à família do último possuidor da enfiteuse,
direito que fora fixado pelo senhorio direto no pacto de constituição da enfiteuse. Então o
sucessor não o era por ser herdeiro do último enfiteuta, mas por benefício do senhorio direto
ao estabelecer aquela ordem de sucessão dos bens enfitêuticos. Também aqui, havendo
vários herdeiros, teria lugar o encabeçamento. E o fisco nunca sucedia. Em contrapartida,
podiam suceder os filhos deserdados, ou que tivessem recusado a herança, pois não
sucediam como herdeiros. Tal como na enfiteuse hereditária, também na familiar podiam ser
estabelecidas condições suplementares para suceder nos bens (primogenitura2065, varonia,
legitimidade2066).
§ 1321. A enfiteuse de nomeação exprimia-se pela forma “quem o último possuidor
escolher”, podendo este ser mais ou menos livre na escolha, pois o senhorio direto podia
impor condições limitativas à eleição e nomeação (v. Ord. fil.,4,37)2067. Podiam ser nomeados
todos os que não se achassem especialmente proibidos. A nomeação em vida, uma vez
feita, não podia ser revogada2068: Mas, no caso de a escolha dever ser feita por morte,
aquele a quem cabia a escolha podia alterá-la até ao momento da morte, valendo, por isso, a
ultimamente feita.
4.3.3.4 Quem podia emprazar e quem podia ser chamado a suceder no prazo.
§ 1322. Podiam emprazar os que tivessem a livre administração dos bens a dar em
prazo. Todos podiam receber bens em enfiteuse2069. Constituíam exceção: os eclesiásticos
que não podiam receber em enfiteuse bens reguengos2070; os corpos de mão morta2071; e os
magistrados, quanto o senhor direto concedente estive sob sua jurisdição2072.

2063 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11,20.
2064 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11,22.
2065 Considerava-se primogénito o filho mais velho que o fosse ao tempo do falecimento do

enfiteuta, devendo esse ser preferido ao neto filho do filho mais velho que faleceu em vida de seu pai,
Ord. fil.,4,36,2. Para comparação com idêntica questão na sucessão dos morgados, v. cap. 5.4.6
2066 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11,23.

2067 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11,24.

2068 V. Ord. fil., 4,37, 2; cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11,25.

2069 As mulheres eram admitidas à enfiteuse, mesmo à eclesiástica, António Cardoso do Amaral,

Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, n. 28.


2070 V. Ord. fil., 2,16.

2071 V. Ord. fil.,2,18.

2072 V. Ord. fil.,4,15.

384
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 1323. Na enfiteuse eclesiástica, não eram admitidos à sucessão os Filhos naturais
nem os espúrios ou os incestuosos, pelo desfavor com que eram tratados pelo direito
canónico (v. cap. 3.2.42073. Na enfiteuse profana hereditária, os direitos à vocação dos filhos
naturais, espúrios ou incestuosos dependia dos seus direitos sucessórios (v. cap. 5.3.1.1),
pois nela eram chamados enquanto herdeiros. Já na enfiteuse profana ex pacto et
providentia, fosse ela familiar ou de nomeação, a vocação de bastardos, espúrios ou
incestuosos dependia do teor das cláusulas do pacto. Em geral, os filhos naturais podiam ser
chamados, estando compreendidos na designação geral de “filhos”2074. Esta palavra incluiria
também os espúrios e os incestuosos, o mesmo acontecendo no caso de nomeação livre;
mas a opinião não era unânime2075. Quanto aos filhos de segundo matrimónio, o seu direito à
vocação com os filhos do primeiro, dependeria do costume da região2076
4.3.3.5 Que coisas se podiam aforar.
§ 1324. Podiam ser dados em enfiteuse coisas imóveis ou pegadas ao solo, que
estivessem no comércio2077, nomeadamente prédios, rústicos e urbanos, cultivados ou
incultos2078. Eram “coisas pegadas ao solo” as casas ou barracas de madeira, as árvores, os
moinhos de água ou de vento. Os tributos ou rendas perpétuos ou a mais de 10 anos eram
imóveis, podendo ser aforado2079, mas não se podiam aforar os direitos e ações reais, os
bens da coroa e os de morgado2080. Uma lei de 25.7.1766 estabeleceu que os bens comuns
dos concelhos só pudessem ser emprazados com autorização do Desembargo do Paço.
4.3.3.6 Como se constituía e como se provava.
§ 1325. A enfiteuse constituía-se por contrato (de enfiteuse) ou por testamento. A
vontade do concedente constante do ato de instituição devia ser rigorosamente observada

2073 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 334, ns. 19 a 21; António da Gama, Decisiones

[...], cit., dec. 149, n.4; Ibidem, dec. 377, n. 6; Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 30, n. 4. Alguma
doutrina admitia, porém, que sendo de livre nomeação, se pudessem nomear os filhos naturais
(Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec.,161, n. 8).
2074 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 147, ns. 1 a 13, invocando, Ord. man.,4,62,4 (a

que corresponde Ord. fil.,4,36,4). Cf., porém, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 334. n. 7, em
que estende ao direito civil o desfavor canónico em relação aos bastardos.
2075 “Embora os espúrios sejam incapazes para ser nomeados para a enfiteuse eclesiástica,

podem ser expressamente chamados pelo concedente ou pelo enfiteuta a que for concedida a
faculdade de nomear livremente quem quiser” (Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 30, n. 6).
Porém, “a concessão geral de nomear para enfiteuse não inclui espúrios e incestuosos” (António da
Gama, Decisiones [...], cit., dec. 377, n. 6).
2076 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 233, n. 9.

2077 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, n. 11; Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11, 9.


2078 Nas casas, a pensão só podia constar de dinheiro e aves (Ord. fil.,4,40), pois seria aquilo de

que os habitantes das cidades mais comummente podiam dispor.


2079 V. Ord. fil.,3,47,pr. e 5.

2080 Porque não podiam ser alienados, levando a que o senhorio perdesse os laudémios, v. Ord.

fil.,2,35,25; Ord. fil.,4,41; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, n. 26. Porém,
estas interdições cessavam por licença do rei, Ord. fil.,2,35,25; Regimento do Desembargo do Paço,
ns. 39-40.

385
Direito das coisas
(ad unguem), sendo de atender enquanto não contrariasse a natureza do instituto2081. A
escritura em tabelião não era um requisito substancial da enfiteuse, servindo apenas para a
sua prova (exceto na enfiteuse eclesiástica, que requeria instrumento escrito2082). Daí que a
enfiteuse se pudesse constituir por prescrição, havendo um uso antigo de o enfiteuta pagar
uma pensão constante ao senhor. Assim, se alguém pagasse pensão uniforme por 40 anos,
presumia-se a existência uma enfiteuse perpétua2083.
4.3.3.7 Como se extinguia.
§ 1326. A extinção da enfiteuse podia ocorrer por várias causas, umas vezes por culpa
do enfiteuta, outras sem ela. Extinguia-se, sem culpa do enfiteuta, nos casos de: extinção da
coisa, cessão ou renúncia do domínio útil no senhorio (aceitando este essa renúncia),
prescrição extintiva (do senhorio direto) por não pagamento do cânone por 40 anos, extinção
das vidas ou cumprimento do prazo do contrato, por qualquer causa de consolidação dos
dois domínios na titularidade de um dos domini, falta de sucessores. Por culpa do possuidor
a enfiteuse perde-se: por falta de pagamento do cânone durante três anos (comisso: Ord.
fil.,4,38 e 392084); por grande deterioração da coisa2085; por alienação da coisa sem
conhecimento do senhorio (Ord. fil.,4,38,pr.); por determinação da lei penal, por condenação
em crime que previsse esta pena (como na lesa-majestade) 2086.
4.3.3.8 Direitos do enfiteuta.
§ 1327. Uma vez constituída a relação enfitêutica, são os seguintes os direitos de
senhorio e enfiteuta2087.
§ 1328. O principal direito do enfiteuta é o de colher toda a utilidade e proveito do prédio,
como senhor útil dele2088. Este direito constitui, de algum modo, também um dever, pois ele
não podia deixar de cultivar a terra, tornando-a infrutífera pelo abandono, nem podia
renunciar ao domínio útil sem a autorização do senhorio2089. Podia, porém, subconceder a

2081 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, n. 14.
2082 V. Ord. fil.,4,19.
2083 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, n. 33; Gabriel Pereira de
Castro, Decisiones […], dec. 37, n. 8; António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 127, n. 1 (presume a
existência de título); o pagamento do cânon por 10 anos já bastava para presumir a existência de uma
enfiteuse temporária, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, n. 33.
Correspondentemente, o não pagamento de pensão por 40 anos extinguia a enfiteuse, consolidando os
dois domínios no colono, António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 149, n. 5.
2084 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, ns. 7 e 8. Porém, mas o

senhorio tinha que pedir a declaração do comisso; também podia optar por pedir o cânon em atraso e a
indemnização pela mora: ibid., n. 9 podia optar pelo pedido de indemnização pelo dano, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, n. 9.
2085 Cf. Novela 120, cap. 8.

2086 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11,17.

2087 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11, 12.
2088 A designação de útil dada ao domínio do foreiro parece expressiva, porque contém uma
referência à utilidade que o colono retirava do prédio. Porém, a designação provém do facto de os seus
direitos sobre a coisa não serem tutelados por uma ação direta (a reivindicatio), mas por uma ação útil,
uma vez que a ação direta pressupunha o domínio direto, que ele não tinha.
2089 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, n. 35.

386
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
enfiteuse, se isso fosse permitido pelo pacto e se o senhorio nisso consentisse2090.
§ 1329. Ou, mais radicalmente, o enfiteuta podia alienar o domínio útil, por venda ou
troca, a que eram equiparados o arrendamento por longo prazo2091 e também o
subemprazamento. Mas tudo isto apenas com o consentimento do senhorio, que devia poder
evitar uma alienação que o prejudicasse2092, e pagando laudémio2093. O direito do senhorio
de aprovar a alienação e de receber o respetivo laudémio não existia no caso de alienações
forçadas, como: as feitas por mandato do juiz2094; as alienações de parcelas feitas pelos
herdeiros ao herdeiro encabeçado; ou a alienação que tinha que ser feita no caso de os
herdeiros não concordarem com o encabeçamento2095. No caso de o domínio útil ter sido
concedido pelo pai como dote de filha, uma vez que ele estava obrigado a dotar, a alienação
não era considerada como voluntária e, por isso, não dependia de autorização do senhorio
direto nem pagava laudémio2096.
§ 1330. A doutrina ponderava que, na realidade, o senhorio direto não tinha um direito a
autorizar a alienação. Mas apenas a ser informado dela, para poder exercer o seu direito de
preferência. E que, por tanto, o foreiro apenas tinha que notificar o senhorio da alienação e
do preço por que a fazia. Perante esta notificação, o senhorio, ou preferia, ou não, consoante
lhe parecesse aceitável ou não o novo colono. Se não preferisse e nada dissesse no prazo
de dois meses, a venda ficava firme e era-lhe devido o laudémio2097. Logo, uma aprovação
formal da aceitação pelo senhorio do novo foreiro não seria precisa. A falta de notificação e
tradição da coisa para o adquirente2098 causava a queda em comisso – o que importava a
caducidade da enfiteuse, se o senhorio assim quisesse – bem como a nulidade da venda2099.
§ 1331. O enfiteuta não tinha direito a ser ressarcido do valor das benfeitorias correntes,
desde que necessárias ou úteis, por ele feitas no prédio, no caso de a enfiteuse terminar (cf.
cap. 4.3.4, sobre a colonia). De facto, estas benfeitorias tinham sido feitas em coisa própria e
correspondiam ao seu dever de manter a coisas produtiva. Podia, porém, ser indemnizado
de benfeitorias importantes e extraordinárias, que correspondessem a melhoramentos mais
do que normais e correntes.
§ 1332. O colono dispunha de uma ação real útil (utilis actio in rem, no direito romano, a
actio vectigalis, D., 39, 2, 15, 26) para pedir a coisa a quem usurpasse o seu uso, mesmo ao

2090 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, n. 4


2091 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 92.
2092 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11,15. O prejuízo podia decorrer da

menor fiabilidade ou competência agrícola do novo foreiro; mas também de ele ser uma pessoa
poderosa, de quem fosse difícil exigir o pagamento do cânone, cf. Melchior Febo, Decisiones […], dec.
167, n. 19.
2093 V. Ord. fil.,4,38,pr; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, n., 5.

2094 V. Ord. fil.,4,36,1; Ord. fil.,3,93,ult.

2095 V. Ord. fil.,4,36,1.

2096 V. Ord. fil.,4,37,2) cf. Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 113, ns. 1 ss..; Pascoal de

Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11, 13.


2097 V. Ord. fil.,4, 38; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, n. 6.

2098 Era necessária a tradição do bem, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.

“Emphyteusis”, n. 6. O comisso podia ser pedido pelo senhorio num prazo de 5 anos, cf. íbid..
2099 V. Ord. fil.,4,38,1. Ord. fil.,4,38,1.

387
Direito das coisas
senhorio direto (cf. D.,6,3,1,2). Goza ainda de ações e interditos possessórios para proteger
o seu domínio.
§ 1333. Tinha o dever de pagar os tributos que recaíssem sobre a coisa
(nomeadamente, a jugada, v. cap. 4.2.2.4, § 200), de não a deteriorar e suportar os danos
que a atingissem.
4.3.3.9 Direitos do senhorio.
§ 1334. O primeiro direito do senhorio era o de receber o cânone, foro ou pensão2100.
§ 1335. Este podia consistir em dinheiro ou em frutos, dispondo as Ordenações que o
foro de casas tinha que ser em dinheiro ou em aves2101.
§ 1336. O foro era, em geral módico, pois não tinha relação com os frutos, mas com o
reconhecimento do senhorio direto2102. Daí que não se reduzisse por esterilidade da
coisa2103. Isto também era relevante para determinar se tinha ou não havido lesão, pois o
foro apenas se considerava excessivo se, de acordo com as regras da lesão, fosse superior
ao dobro do que fosse justo para a cedência de domínios úteis2104, independentemente do
valor da renda nos arrendamentos de bens do mesmo tipo, as quais se relacionavam com a
produtividade da coisa.
§ 1337. A pensão não podia ser remida nem aumentada pelo senhorio, mesmo no caso
de renovação; mas Pascoal de Melo informa que era prática aumentar as pensões aquando
das renovações2105. A espécie em que o foro se pagava poderia mudar. Assim, se se pagava
uma quarta do vinho e se se plantassem outras espécies, pagar-se-ia também uma quarta
das novas produções2106.
§ 1338. Outro importante direito do senhorio era o já referido direito de preferência na
alienação dos bens enfitêuticos. Como se disse, este direito apenas tinha lugar nas
alienações voluntárias (v. Ord. fil.,4,38). Relacionado com o direito de preferência (ou
prelação) estava o direito ao laudémio, no caso de alienação da coisa aforada; que alguns
consideravam como uma compensação do consentimento prestado à alienação da coisa.
Também só era devido nos casos em que houvesse direito de preferência, mas em que ele
não tivesse sido exercido2107. O laudémio era a quadragésima parte do preço (Ord.
fil.,4,38,pr), podendo pactuar-se outro. Por direito comum, era devido pelo comprador; mas,

2100 O direito ao foro era tutelado por uma ação contra os sucessivos foreiros, v. Ord. fil.,4,36,5.

Na enfiteuse eclesiástica, mas não na profana, o senhorio gozava de uma hipoteca tácita sobre a coisa
aforada.
2101 V. Ord. fil.,4,40.

2102 Uma pensão grande induzia a que se tratava de um arrendamento e não de uma enfiteuse, e

vice versa, Miguel de Reinoso, Observationum […], cit., obs. 59, ns. 9 e 11.
2103 Cf. Cf. Miguel de Reinoso, Observationum […], cit., obs. 59, n. 7. Ao contrário do que

acontecia no censo, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, n. 34 e 35. Se a
esterilidade fosse grande, o foro devia ser reduzido equitativamente, v. Manuel Barbosa, Remissiones
[…], ad Ord. fil.. 4,39, n. 18; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, n. 34-35.
2104 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 257, n. 1.

2105 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11,13

2106 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, n. 37.
2107 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11, 17.

388
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
pelo direito pátrio, era devido pelo enfiteuta vendedor2108.
§ 1339. Outro direito do senhorio era o de reaver a coisa aforada por comisso. A
principal causa de comisso era o não pagamento do cânon. Na enfiteuse eclesiástica, por 2
anos; na profana, por 3 anos. O comisso não ocorria automaticamente, sendo necessário
que o senhorio o pedisse, pela actio [pessoal] comissi) 2109. O comisso também ocorria, como
vimos, no caso de alienação da coisa aforada pelo enfiteuta sem autorização do senhorio; ou
seja: vendendo, escambando, subemprazando, hipotecando ou penhorando, arrendando a
longo prazo; sempre se exigindo a tradição da coisa. Também a deterioração grave da coisa
podia gerar comisso2110.
4.3.3.10 Renovação e consolidação.
§ 1340. O direito à renovação da enfiteuse foi uma questão famosa, que dividiu a
doutrina desde o séc. XVI ao séc. XVIII. A dureza da discussão e a ênfase posta na defesa
das respetivas soluções – traço verdadeiramente excecional no discurso sereno dos juristas
da época - mostra que se tratava de uma questão considerada como socialmente crucial,
pela qual passava o bem estar geral da república.
§ 1341. A questão da renovação só se punha no caso de caducidade da enfiteuse sem
culpa do foreiro2111. Nos casos de caducidade por culpa do foreiro (por exemplo, por
comisso, delito, devolução ao senhorio direto, prescrição extintiva) nunca havia renovação
automática, porque então o senhorio devia poder decidir se queria voltar renovar o
emprazamento a tal foreiro, culpado ou negligente, ou concedê-lo a um terceiro ou, então,
ficar com ela livre2112. A renovação também não tinha lugar nos emprazamentos perpétuos,
mas apenas nos temporários – nomeadamente nos de vidas - esgotado o prazo da
concessão. Para os autores para quem a perpetuidade se presumia, a questão da renovação
tinha menos relevo. Mas para aqueles que entendiam que a enfiteuse se presumia feita por
uma vida, a questão da renovação tornava-se num ponto central. Não ocorrendo a
caducidade, os bens de prazo ficavam para os sucessores do enfiteuta, nos termos do pacto
ou do regime supletivo estabelecido nas Ordenações (Ord. fil.,4,36,2).
§ 1342. Havendo caducidade não culposa e renovação, os bens eram concedidos de
novo ao enfiteuta ou seu sucessor, retornando a enfiteuse ao estado pristino2113 com o
mesmo regime originalmente estabelecido. Como se tratava, justamente, de uma renovação,
o senhorio não devia aumentar o cânon nem exigir qualquer quantia pela renovação. A

2108 V. Ord. fil.,1,62,48; 4, 38, pr..


2109 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 119, ns. 4 e ss.; v. ns. 7, 11 e 13;
outros diziam que operava ipso iure, mas com a cláusula tácita si dominus voluerit, v. Miguel de
Reinoso, Observationum […], obs. 59, ns. 1 ss.. Nesta última opinião se poderia fundar o direito do
senhor de se reapropriar da coisa por autoridade própria (i.e., sem recurso ao tribunal), no caso de
comisso; direito que se hesita em reconhecer, v. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., dec. 173, n. 9.
2110 Cf. António da António da Gama, Decisiones [...], cit., Decisiones [...], cit., dec. 17; Ibidem,

dec. 147, ns. 1 e 5 (“agros per limites dividens, arbores fructiferas extirpans”); mas não arrancando
oliveiras que produzissem pouco, ou substituindo umas árvores por outras ou por vinha (Álvaro
Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 50, ns. 5 e 6.
2111 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv.1, qu. 8, n. 1 ss.; Pascoal

de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11,26.


2112 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11, 26.

2113 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, n. 30.

389
Direito das coisas
renovação devia ser pedida no prazo de um ano depois da extinção2114.
§ 1343. No caso de caducidade de uma enfiteuse temporária, se o pacto nada
dispusesse em contrário, os bens voltariam livres ao senhorio, segundo o princípio do favor
libertatis, pois a condição de propriedade livre (ou plena) seria a condição natural a que os
bens regressariam se findasse o direito que comprimia o direito de propriedade. A prática, no
entanto, seria diversa, presumindo-se o direito do foreiro à renovação, pelo que era frequente
incluir no pacto uma cláusula expressa de não renovação, estabelecendo que o senhorio
receberia os bens livres no fim do prazo da concessão. Esta cláusula, para uns, seria válida
e representaria uma renúncia do foreiro a pedir a renovação. Para outros, porém, seria nula
ou ineficaz2115.
§ 1344. Em 1610, António Cardoso do Amaral descreve em termos dramáticos a
situação social e política – que, para ele, afetaria a paz e justiça na República - que decorria
desta indecisão. “Há tanta malícia no nosso tempo quanto aos contratos de enfiteuse –
escreve ele2116 - que quase ninguém trata de pedir a renovação dentro do ano, nem depois
disso, para que os contratos de enfiteuse se tornem confusos. De onde os senhorios diretos,
as igrejas e os conventos, sofram hoje grande prejuízo por causa da opinião de alguns dos
juristas portugueses que afirmam, sem fundamento de direito, que o senhor direto é obrigado
a renovar a enfiteuse apesar da renovação não ser pedida no prazo de um ano a partir da
extinção das vidas e também apesar de no contrato de investidura se estabelecer que,
acabadas estas vidas, os bens enfitêuticos regressassem ao dono livres, sem exceção ou
controvérsia de opinião. E, principalmente, não faltaram juízes que assim julgaram. Queira
Deus que a sua alma não esteja no inferno pelos prejuízos que hoje sofrem a Igreja e os
senhores diretos”. E continua2117, rebatendo as razões alegadas por estes juristas
subversivos, à testa dos quais colocava Álvaro Valasco, um especialista respeitado e
seguido em matéria de enfiteuse, sobre que publicara um tratado, em 1569: “Nem é uma
razão adequada a de estes juristas portugueses que dizem que a república sucumbiria
totalmente se se negasse a renovação aos descendentes ou herdeiros do último enfiteuta
[...] como diz Valasco (cons. 123, n. 12118), pois penso que mais sucumbirá a república se
não se observar o direito, pois a mesma república é sustentada tanto pelas armas como
pelas leis [...] o juiz inferior, posto pelo Supremo Pontífice ou pelo Príncipe, é o guardião das
leis e não deve governar-se pelo seu senso [...] e a razão natural não consente que se tire o
direito do senhorio direto para o dar ao enfiteuta [...], não devendo [o senhorio] ser dele
privado, por um interesse particular [do enfiteuta]”.
§ 1345. Realmente, o tema da renovação da enfiteuse tornara-se numa momentosa
questão polémica, sobre a qual os autores divergiam.
§ 1346. Álvaro Valasco era o jurista a quem Amaral imputava a liderança da corrente
favorável à renovação obrigatória dos prazos. Na sua monografia sobre a enfiteuse,

2114 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, n. 31.
2115 Haveria decisões da Casa da Suplicação nesse sentido, embora houvesse quem
considerasse esta cláusula como nula ou ineficaz (Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 123, n.
13, e outros), posição a que outros negavam qualquer fundamento jurídico, António Cardoso do
Amaral, Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, n. 15.
2116 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emphyteusis”, n. 31.

2117 Cf. Ibid.,

2118 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 123, n. 1 ss..

390
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
publicada em 1569, todavia, Valasco pouco se refere à renovação da enfiteuse. E, quando o
faz2119, apenas segue a opinião de Bártolo sobre a obrigatoriedade da renovação no caso de
ter havido melhoramentos no prédio. Em todo o caso, também é o autor referenciado por
Francisco Caldas Pereira de Castro como emblemático da receção em Portugal da equidade
bartolina2120. Trinta anos mais tarde, nas Decisiones, as suas opiniões parece terem-se
consolidado no sentido da renovação, como veremos.
§ 1347. Em 1585, este Caldas Pereira, reconhecendo o mérito da obra de Valasco, mas
lamentando a sua escassez em tema da renovação2121, publicara uma obra monográfica
sobre a renovação da enfiteuse, em que fora muito enfático no sentido de reconhecer a sua
obrigatoriedade, apesar da existência de pacto em contrário. O principal da argumentação,
com detalhada referência de autores e decisões judiciais, vem na qu. 8 do livro 12122. O autor
começa por expor o estado da questão no direito comum, em que a opinião mais reputada -
inspirada num comentário de Bártolo a C.,7.41. De adluvionibus et paludibus et de pascuis
ad alium statum translatis, 3 - era a de que a equidade exigia que a enfiteuse devesse ser
renovada quando, findas as vidas, houvesse um sucessor do último enfiteuta. Dos juristas
portugueses teriam seguido esta opinião Álvaro Velasco (no Tractatus), António da Gama e o
seu mestre Manuel da Costa, que se fundavam na analogia com a obrigatoriedade da
renovação da doação de bens da coroa aos filhos de donatários beneméritos2123.
§ 1348. Essa opinião estaria recebida no reino, não apenas em relação às enfiteuses
dadas por privados, mas também nos prazos de bens públicos2124. A questão seria mais
discutível na enfiteuse eclesiástica, em que o favor ecclesiae e a especial força de pactos
ratificados por juras, tornaria mais atendível a recusa da renovação, sobretudo se houvesse
um pacto de non renovando2125. Mas o autor, reconhecendo embora a existência de opiniões
e decisões contrárias2126, decidia-se, mesmo aqui, pelo reconhecimento do direito à
renovação (n. 18). Citava, em apoio, uma decisão antiga (de 1564), que, em segunda
instância, corrigira uma anterior decisão do ouvidor, condenando no recurso a duquesa de
Bragança à renovação de um prazo em Guimarães, apesar de haver uma cláusula do pacto
em contrário e de a autora invocar a necessidade de reaver os bens livres; e outra muito
recente (1584), da Casa da Suplicação, que obrigava o mosteiro de S. Vicente a fazer o

2119 Cf. Álvaro Valasco, Quaestiones iuris emphyteutici [...], cit., qu. 2, n. 7.
2120 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 8, n. 19.
2121 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 1, n. 1.
2122 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 8, pg. 56 ss. (da ed.
original).
2123 Que deviam ser renovados aos filhos dos que morressem na guerra. V. Ord. Man., 2,17,12;
Ord. fil.,2,35,2.A doutrina que estende a obrigatoriedade geral da confirmação da doação é, portanto,
uma extensão do preceito legal, por identidade de razão, equiparando os serviços não militares à morte
na guerra.
2124 Cita decisão inédita da Casa da Suplicação de 1576 relativa a emprazamento de armazéns

régios, Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 8, n. 3.
2125 Discussão detalhada, Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu.

8, ns. 5 ss..
2126 Cita duas decisões, em sentido oposto, de António da Gama: no sentido de não reconhecer o

direito à renovação, dec. 41, n.6; em sentido contrário, dec. 326, n. 8; e refere que havia decisões dos
tribunais da corte que negavam a obrigação de renovar.

391
Direito das coisas
mesmo.
§ 1349. Noutra das quaestiones, o autor desenvolve de forma expressiva o
argumentário, ao discutir a afirmação de que “findas, as vidas do prazo, os filhos, ou
descendentes do ultimo possuidor, não possam pedir renovação, nem o directo senhorio
fique obrigado, por nenhua via, a renovarlhe o dito prazo, antes o possa dar libremente, e
emprazar a quem quizer, e fazer delle o que lhe aprouver". Vale a pena uma citação mais
longa. Resolver a questão pressupunha confrontar duas opinião comuns, uma favorável à
inexistência de um direito à renovação; e outra, mais provável, defendida por Bártolo,
reconhecendo a obrigatoriedade da renovação, por exigência da equidade. Segundo ele, “a
opinião desfavorável à renovação “parece bastante provável, pois as palavras do pacto
demonstram que se tinha concordado nisto, não obstando o argumento de que assim se
tirava aos descendentes um direito adquirido pois, embora se lhe infligisse um prejuízo, não
se podia dizer que que tinham adquirido um direito pelo pacto, mas apenas uma expectativa
futura”2127. Pelo que se deveria concluir “que a renovação não é devida aos descendentes e
parentes do último possuidor, pois, logo desde o início, a enfiteuse tinha sido concedida com
a cláusula de não renovação no fim das vidas estipuladas, importando isto uma renúncia a
algum direito à renovação”2128. No entanto, a melhor opinião não seria esta, pois haveria que
corrigir o rigor do direito por considerações de equidade, atinentes ao interesse público2129.
E, de facto, esta consideração da equidade fora sendo recebida em Portugal2130. O que se
explicava pelos supremos interesses públicos coincidentes com a proteção das expetativas
dos enfiteutas2131: “Porque aquela convenção, que não afeta apenas às coisas da família,
mas também o prejuízo público, é de todo de condenar como contrária aos bons costumes e
à utilidade pública [...]. E também contrária à caridade e deveres que os homens têm de
conceder benefícios [...]. A paz e sossego de todo o reino consiste na renovação da
enfiteuse: nem o colono, nem o lavrador, nem o cliente, nem o enfiteuta, cultivariam o prédio
enfitêutico ou atribuído em benefício, nem reparariam os edifícios em ruínas, nem aplicariam
o seu trabalho e indústria ao solo estéril, para o tornarem cultivável, nem melhorariam as
propriedades enfitêuticas, deste modo aumentando os rendimentos dos senhores [diretos],
se deixassem de contar com o benefício da renovação”. Isto explicaria a nova orientação do

2127 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 11, n. 14
2128 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 11, n. 18.
2129 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 11, n. 21: ”ainda

que esta opinião seja verdadeira por direito estrito, parece que é mais equitativa e mais útil à república
a opinião contrária, apesar do referido pacto que exclui de todo o benefício salubérrimo e utilíssimo da
renovação da enfiteuse. Tanto por aquilo que antes dissemos na qu. 8 ad fin., como também porque a
renovação da enfiteuse diz respeito ao direito e autoridade públicos, a que não se pode renunciar por
pacto [...]. É que o “edito” [opinião doutrinal destinada a aperfeiçoar o direito estrito] da renovação da
enfiteuse, à imagem do edito do pretor, que sempre olhou as coisas na perspetiva de uma equidade
suprema, foi promulgado e recebido pelos costumes dos povos em todas as províncias e reinos que
pertencem ao império e religião cristãos”.
2130 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 11, n. 21: “Parece

que entre nós, tida em conta a autoridade e a utilidade, já foi progressivamente introduzido o direito
público de conceder e de renovar [a enfiteuse]. Porque se, por causa desta convenção e pacto
perniciosos à República, abolirmos este direito, subverter-se-ia aquela equidade da renovação
(sepultando a justiça natural e civil) que recomenda que, findas as vidas, a enfiteuse seja renovada aos
descendentes e agnados mais próximos”.
2131 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 11, n. 21.

392
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
direito pátrio, que afastava a cláusula de não renovação: “A isto não obsta aquela capciosa e
imoral cláusula, pois exclui toda a equidade e humanidade no comércio entre os homens e
apagai e destrói totalmente o compromisso e obrigação da renovação, causando vários
inconvenientes à república […]2132. Assim como a cláusula “ut finita tertia generatione
emphyteusis libera, et expedita ad dominum revertetur, cum omnibus melioramentis”, pelos
costumes do nosso povo, recebidos neste reino, não prejudica a renovação […], assim
também não o prejudica a referida cláusula em que as partes expressamente renunciam à
renovação. Pois o alcance e eficácia (vis et energia) das duas cláusulas é precisamente a
mesma. É que também pelas palavras libere & expedite revertatur pensavam impedir tal
renovação […]”.. Uma remoção idêntica à da cláusula do pacto se devia também aplicar aos
estatutos ou compromissos jurados existentes em certas comunidades eclesiásticas que
proibiam a renovação dos prazos”2133. Seria tão forte este direito à renovação que o pedido
de prazo em que houvesse sucessores do anterior enfiteuta equivaleria ao pedido de
benefício de pessoa viva, senso equiparado a um furto2134. Porém, a prática de julgar ainda
dominante em alguns tribunais da corte era no sentido de atender aos pactos de não
renovar. Mas isto não aconteceria na Casa da Suplicação, em que, mais do que a vinculação
dos pactos, se atendia aos vínculos da equidade e da razão natural e onde, por isso, “todos
os dias se obriga os senhorios a fazerem a renovação, apesar de tais cláusulas; ligados por
uma força e vinculação mais do que inflexíveis. Isto mostra larga e exuberantemente a
equidade da razão”2135.
§ 1350. Voltemos ao vibrante texto de António Cardoso do Amaral contra a
obrigatoriedade da renovação. O que dele se conclui é que, na segunda metade do séc. XVI
e, sobretudo, na viragem para o séc. XVII, a prática judicial se vinha alterando
profundamente, por causa dos tais juízes que, pouco piedosos em relação aos direitos das
igrejas e dos senhorios, tinham começado a reconhecer os direitos dos foreiros à renovação
enfitêutica. De acordo com a informação de Caldas Pereira, pioneiros nesta mudança tinham
sido os desembargadores da Casa da Suplicação. Por outro lado, a vivacidade com que o
assunto é discutido pode indiciar que a terra se estava a tornar mais rara ou que os valores
das suas rendas estavam a subir, procurando os senhores diretos aumentar a rentabilidade
dos seus aforamentos, recuperando as terras de uns para as dar a outros, em vez de manter
os contratos antigos.

2132 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 11, n. 21.
2133 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 11, n. 31: “Disto se
segue a dúvida frequente de saber se a promessa jurada de não renovar a enfiteuse finda, por extinção
da terceira vida tira o benefício do filho ou dos descendentes do último possuidor, Francisco Caldas
Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., qu. 11, n. 23. Existem em alguns mosteiros, alguns estatutos
particulares, mesmo jurados, e também em algumas igrejas catedrais, pelos quais é proibido que os
bens enfitêuticos voltem aos concedentes, sendo estes obrigados a renovar aos descendentes ou
herdeiros do último possuidor. E a resolução é que estatutos ou promessas de não renovar não se
observem e que não se impeça o benefício da renovação, pois, como a renovação diz respeito a um
interesse público e como do estatuto e promessa de não renovar resulte proibido um ato principalmente
em favor do interesse público, eles [estatutos e promessas] não podem ficar mais firmes pelo juramento
[...], cit., o que corresponde a uma opinião comum [...]”
2134 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 5, n. 1 ss. (maxime,

ns. 11 e 12).
2135 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 11, n. 22.

393
Direito das coisas
§ 1351. No início do séc. XVII, concomitantemente ao aparecimento das novas
Ordenações, as opiniões sobre a renovação ainda não eram absolutamente claras no
sentido de um irrestrito direito à renovação.
§ 1352. Jorge de Cabedo, que publica, em 1602, logo a seguir à reforma das
Ordenações, sustenta uma opinião recuada, pelo menos quanto à enfiteuse eclesiástica. Os
mosteiros eram obrigados a renovar a enfiteuse, findas as vidas2136. Mas isto só acontecia,
não por um direito à renovação, mas como uma solução de equidade no caso de ter havido
melhorias que fosse justo compensar, princípio que ocorreria tanto na enfiteuse eclesiástica
como na profana, quer fosse dada em três vidas, quer por certo prazo2137. Por outro lado, a
instituição eclesiástica só podia negar a renovação, se provasse a sua pobreza2138.
§ 1353. Nas suas Decisiones (publicadas postumamente, em 1605), que seguramente
tiveram maior difusão do que o Tractatus e às quais se deve referir António Cardoso do
Amaral, Álvaro Valasco pronunciava-se pelo dever do senhorio de renovar o emprazamento
aos sucessores do último enfiteuta2139, apenas admitindo que ele pudesse reter o prazo por
necessidade superveniente (que tinha que ser provada)2140. Em todo o caso, a tutela do
direito dos sucessores do enfiteuta era apenas prudente, pois não se lhes concedia uma
ação real para recuperar os bens, mas apenas uma ação pessoal para serem indemnizados
pelos prejuízos que decorriam da não renovação2141. Porventura, isto já era um motivo
bastante para desincentivar a não renovação.
§ 1354. No fim da primeira década do séc. XVII (1621), Gabriel Pereira de Castro faz o
ponto da situação, já então francamente favorável à obrigatoriedade de renovação dos
prazos. Segundo ele, já se reconhecia nessa época aos filhos e descendentes do enfiteuta
um direito legal – ou seja, segundo o direito estrito, e não apenas segundo a equidade – à
renovação, o que provaria que “a equidade acerca da concessão, renovação e legado de
prazos obriga a muita coisa contrária ao rigor do direito [refere-se ao direito sobre a
obrigatoriedade de cumprir as cláusulas pactadas, neste caso a de não renovação]”2142.
Inicialmente, a renovação obrigatória só teria sido admitida se tivesse havido benfeitorias.
Porém, com o tempo, tinha-se fixado a opinião de que bastava que não tivesse havido
deterioração da coisa. Por sua vez, a eficácia da cláusula de não renovação tinha perdido
progressivamente terreno2143. Esta nova corrente doutrinária e jurisprudencial fora-se
formando pouco a pouco, tornando-se finalmente pacífica a opinião de que enfiteuse se
podia renovar, debaixo das cláusulas do título originário2144, chegando ao ponto de se opinar

2136 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 203 (discutindo principalmente o direito à
renovação na enfiteuse eclesiástica).
2137 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 203, ns. 6 e 7.

2138 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 203, ns. 1 e 2.
2139 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 157, ns. 1 ss.. No Tractatus, o assunto é tratado
na qu. 28, n. 17.
2140 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 157, n. 17.

2141 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 172, n. 8.


2142 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 128, n. 1.
2143 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 128, n. 2.

2144 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 128, ns. 3 e 4

394
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
que a renovação devia ser declarada oficiosamente pelo juiz2145. Num outro passo2146,
Gabriel Pereira de Castro confirma a opinião de que a equidade obrigava a que o senhorio
renovasse a enfiteuse e que isto obrigava a considerar nulos os pactos contra o benefício da
renovação. De tal modo que o direito à renovação já era tido como estando compreendido no
património dos herdeiros.
§ 1355. Melchior Febo, que publica dois anos antes, dá um testemunha idêntico, ao
afirmar que “a renovação da enfiteuse é hoje concedida não apenas por equidade, mas
também pelo rigor do direito”2147. Estes dois autores publicam uma década depois de António
Cardoso do Amaral, de onde se pode admitir que nesta década se tenha consumado a
evolução no sentido da consolidação dos prazos que este dramaticamente temia.
§ 1356. Cerca de duzentos anos mais tarde, a questão continuava a ser considerada
como frulcral para o destino do reino, agora numa perspetiva fisiocrática de valorização da
agricultura. E, por isso, a lei de 7.9.17692148 adotou como solução legal a chamada “equidade
bartolina“ que consagrava a obrigatoriedade da renovação do contrato enfitêutico, mesmo
temporário e mesmo com pacto de não renovação, a favor de descendentes, ascendentes e
herdeiros colaterais, uma solução para que já apontavam as Ordenações (Ord. fil.,4,36,2)2149.
4.3.4 Os censos.
§ 1357. As situações de censo constituíam uma zona particularmente vaga na
constituição fundiária de Antigo Regime.
§ 1358. Os autores seiscentistas definiam, em geral, o censo como “o direito de receber
periodicamente (ao ano, ao mês ou com outra periodicidade) uma pensão pecuniária em
dinheiro ou em outro género” (como cereais, vinho ou azeite)2150. Porém, a palavra era usada
para descrever várias situações em que se recebia periodicamente uma parte dos frutos de

2145 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 128, n. 5. Havia uma ação pessoal
para a exigir, Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., qu. 20.
2146 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 31, n. 4.

2147 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 161, n. 36.
2148 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11,26.
2149 Principal bibliografia sobre a enfiteuse em Portugal e no “império português”: Luís Cabral de

Moncada, A reserva hereditária no direito peninsular e português, 1, Coimbra, França & Arménio, 1916;
Mário Júlio de Almeida Costa, Origem da enfiteuse no direito português, Coimbra, Coimbra Editora,
1957; Margarida Durães, “Herdeiros e não herdeiros: nupcialidade e celibato no contexto da
propriedade enfiteuta”, Revista de história económica e social, 21(1987), ps. 49 ss.; Ramon Villares
(1988) “Los foros de Galícia : Algunos problemas y comparaciones (Galicia, Portugal y Valencia)”, em
Ler História, 12(1988); Joel Mata, “Práticas da enfiteuse em Portugal nos séculos XIV-XVI”, em
Lusíada. Direito, Porto, 3.1(2011), em http://www.cepesepublicacoes.pt/portal/pt/obras/praticas-da-
enfiteuse-em-portugal-nos-seculos-xiv-xvi. Sobre os prazos do Zambeze: Alexandre Lobato,
Colonização senhorial da Zambézia e outros estudos, Lisboa, J.I.U., 1962. Allen Isaacman,
Mozambique: the africanization of a European Institution. The Zambezi Prazos. 1750-1902, Madison,
The University of Wisconsin Press, 1972; M.D.D. Newitt, Portuguese settlement on the Zambesi,
London, Longman, 1973; Eugénia Rodrigues, Portugueses e Africanos nos Rios de Sena. Os prazos da
Coroa nos séculos XVII e XVIII, Universidade Nova de Lisboa, Dissertação de Doutoramento em
História, 2002.
2150 Cf. “Census est quoddam ius recipiendi aliquam pensionem precuniariam, aut alteriur rei, utilis

in annum, aut mensem, seu aliud tempus, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Census”, n. 1.

395
Direito das coisas
um prédio, sem que frequentemente se soubesse como surgira e como se justificava essa
situação, nomeadamente, se era uma prestação contratual, se o sinal de divisão de domínio
ou, mesmo, se se tratava de uma obrigação de tipo tributário2151
§ 1359. Situações em que um prédio pagasse uma pensão a alguém era muito comum,
podendo ter as mais diversas origens. Ou se tratava de um tributo em sinal de
reconhecimento de jurisdição, ou de uma forma de lembrar um antigo domínio, ou de uma
expressão de gratidão de um donatário. Ou, por fim, de uma forma de remunerar um
empréstimo.
§ 1360. O direito comum tardio conhecia a figura do censo, sobretudo pela
regulamentação que o instituto tinha tido no direito canónico, depois de várias bulas papais
(de Martinho V, de Calisto III e de Pio V) que procuravam impedir que, sob capa de tais
contratos fundiários, se encobrissem usuras. Os autores distinguiam duas espécies típicas
de censo, o censo reservativo e o censo constitutivo ou consignativo2152: “o censo constitui-
se, em primeiro lugar, quando alguém transmita a outrem um bem seu, com todo o domínio
direto e útil, mas com o ónus de que o que o recebe fique obrigado um certo censo todos os
anos [censo reservativo]. Em segundo lugar quando se compra de outrem um censo anual
sobre a coisa do vendedor, prometendo o vendedor pagar um censo anual, obrigando e
hipotecando uma coisa a esse censo [censo constitutivo ou consignativo]2153.
§ 1361. Muito frequentemente estes contratos encobriam negócios usurários, pelos
quais alguém emprestava capital a outrem - sob a forma da entrega do bem (censo
reservativo) ou do preço por que comprava a renda (censo constitutivo) – contra o
pagamento de um juro – sob a forma de uma pensão a pagar pelo bem transmitido pelo
mutuante ao mutuário (censo reservativo) ou por um bem retido pelo mutuário, mas adstrito
ao pagamento da pensão ao mutuante (censo consignativo). Este caráter suspeito dos
censos levou a que houvesse sucessivas intervenções legislativas dos papas (Martinho V,
Calisto III) sobre estes negócios, de modo a precaver que eles servissem para encobrir
usuras,
§ 1362. A última delas foi um motu proprio de Pio V, de 15692154, recebido geralmente
nas ordens jurídicas temporais2155, em que se estabeleciam uma série de preceitos
destinados a assegurar que se tratava apenas de um negócio de auxílio a pessoas que
necessitassem de constituir uma renda perpétua a seu favor, mediante uma retribuição

2151 Como que um pagamento de uma soma em reconhecimento de sujeição, António Cardoso do
Amaral, Liber [...], cit., v. “Census”, n. 1.
2152 V. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Tratado pratico e compendiario dos censos […];

Mário Júlio de Almeida e Costa, Raízes do censo consignativo […], cit..


2153 “Census autem constituitur primo, ut quid tradat rem suam allcui et in eum transferat omne

dominium directum et utile cum onere quod acciptens rem teneatur solvere certum censum singulis
annis. Secundo modo emendo ab alio annuum censuum super re venditoris, et venditor promittit solvere
annuum censum et obligando et hypotecando rem certam pro ipso annuo censu”, definição de Follerio
(final do séc. XVI, citado por E. Bussi, La formazione dei dogmi […], cit., v. 2, 126).
2154 V. texto em António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Census”, n. 2.

2155 Mesmo nos territórios não sujeitos ao papa, em virtude do critério do pecado, pois o regime

da constituição pontifícia se destinava a definir e a evitar os censos inquinados pelo pecado da usura,
limitando-se a declarar o direito natural e divino António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Census”,
n. 19. Sobre o tema, Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 133; Manuel de Almeida e Sousa
(Lobão), Tratado práticos dos censos […], cit., cap. II, §§ 15 ss..

396
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
adequada (“ad sublevandas quotidianas pauperum et maxime negociantium necessitates et
ut possit quilibet sibi providere de pecuniis […]”, como refere Follerio, no passo antes citado).
De acordo com este novo regime2156, o censo tinha que incidir sobre uma coisa certa, imóvel
(ou tida juridicamente como tal), transmitida por um certo preço, justo e em dinheiro contado,
podendo a pensão ser remida pelo que se obrigara a pagá-lo2157.
§ 1363. A constituição do censo tinha, por tanto, que ser feita sobre coisa imóvel
certa2158, não podendo ser constituída sobre uma pessoa2159, sem que houvesse uma coisa
onerada com o pagamento da pensão. Não se podia constituir senão em coisa própria e
livre; não em coisa enfitêutica, feudal, regalenga (jugadeira), hipotecada2160 ou vinculada2161.
Se o bem não fosse próprio ou livre, o censuário podia acionar o que tinha prometido o
censo pelos danos ou mesmo com a actio furti2162
§ 1364. A constituição da renda tinha que ser feita por um preço justo, pois um preço
baixo equivalia a uma renda (ou juro) alta, ou seja, a um contrato usurário2163. Para facilitar a
avaliação, a pensão tinha que consistir numa quantidade certa, sob pena de se considerar
usurária, embora pudesse ser de diversos géneros (dinheiro, cereais, vinho, azeite, aves)
2164. A justeza do preço de uma renda não tinha necessariamente a ver com a comparação

entre a renda constituída e a produtividade de prédio2165, mas com o custo do capital numa
certa zona; e, por isso, tinha que se aferir pelos costumes do lugar2166. Em Portugal, os juros
tinham sido limitados por várias leis (de 13.1.1615, 23.5.1698, 16.1.1773 e 4.8.1773. A
justeza do preço dos censos era avaliada de acordo com elas, mas também de acordo com a
duração do censo. Assim, com base em autores teólogos e juristas seiscentistas, Manuel de
Almeida e Sousa (Lobão) estabelece os seguintes preços para os censos: os censos
perpétuos irremíveis deviam ser comprados à razão de 30 por 1 (juro de c. 3,5 %)2167; os
perpétuos remíveis, a 20 por 1 (5 %); os de duas vidas, a 12 por 1; os em uma vida, a 10 por
1 (10 %)2168.

2156 Que, no entanto, não se aplicava aos censos já constituídos, António Cardoso do Amaral,

Liber [...], cit., v. “Census”, n. 23.


2157 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Census”, n. 2.

2158 Até ao motu proprio de Pio V, o censo podia ser constituído sobre todos os bens, António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Census”, n. 16.


2159 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Census”, n. 3

2160 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Census”, n. 17.
2161 Cf. Melchior Febo, Decisiones […] cit., dec. 120, n. 4.
2162 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Census”, n. 17.

2163 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Census”, n. 18.

2164 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Census”, n. 21.
2165 No entanto, se o bem se tornasse estéril ou a sua produção decaísse muito, o censo era
correspondentemente afetado, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Census”, n. 2 e 26;
Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 58, ns. 1 a 6.
2166 Cf. Diogo Marchão Temudo, Decisiones […], cit., dec. 85, n. 2. A menos que o por lei do

príncipe se fixasse a razão do censo (como acontecia em Portugal, em que o juro era fixado em 5 %)..
2167 Ou seja, comprava-se por 30 uma pensão perpétua de 1, o que correspondia a um juro anual

de 3,3 %.
2168 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Tratado pratico e compendiario dos censos […], §§

397
Direito das coisas
§ 1365. O censo podia ser constituído por doação ou testamento, além de se poder
adquirir por usucapião de 40 anos2169.
§ 1366. O prédio censual (ou censítico) podia ser livremente alienado e dividido, sem
que houvesse lugar a pagamento de laudémio2170, mas sobre ele, ou sob cada uma das suas
partes, impendia o dever de pagar a pensão, independentemente da identidade do seu
possuidor, já que o ónus do censo era um ónus real. Na verdade, o censo devia ser pago
pelo dono da coisa censítica, não se podendo excluir isto na sua venda2171. Se o prédio fosse
parcialmente vendido ou dividido entre vários compradores, o censuário podia pedir o censo
ao dono de qualquer das partes, pois “o censo é devido por todo o prédio”2172. A doutrina não
era unânime quanto a saber se o dono do censo tinha ou não direito de preferência na venda
do prédio2173.
§ 1367. O não pagamento do censo não dava lugar a comisso, por não pagamento do
censo ficando o censuário apenas obrigado a pagar os juros de mora2174. Mas prescrevia, se
não pago durante 10 anos2175.
§ 1368. O censo era constituído sem prazo, sendo, por isso, tendencialmente perpétuo.
Mas podia ser remido pelo vendedor em parte ou no todo, não se podendo renunciar a esta
faculdade2176.
§ 1369. Do censo resultava uma ação real sobre os rendimentos da coisa ou uma ação
pessoal dirigida àquele que se obrigara a ele2177.
4.3.5 A colonia.
§ 1370. A colonia constituiu uma forma específica de contrato agrário que se
desenvolveu e manteve na ilha da Madeira. Tratava-se da cedência precária a outrem do uso
útil da terra, contra o pagamento de uma meação dos frutos2178, mantendo o senhorio a
possibilidade de, a todo o tempo, pôr fim ao contrato, atribuindo ao colono a propriedade das

40 ss..
2169 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Census”, ns. 15 e 22.
2170 Cf António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Census”, ns. 5 e 6.
2171 Pois o censo era um direito real que recaía sobre a coisa, como uma hipoteca (“quoniam
census ille est ius quoddam reale ipsi rei impositum, et ab ipsa debetur, nec est necesse exprimere, ut
pro solutione census praedium ipsum sit hypothecatum", António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Census”, n. 12).
2172 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Census”, n. 13.

2173 Cf. No sentido afirmativo, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Census”, n. 11; no

sentido negativo, António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 91, n. 3.


2174 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Census”, n. 7 (só danos); Álvaro Valasco,

Decisiones […], cit., cons. 35.


2175 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 63, n. 5.

2176 V.g. se o censo tivesse sido vendido por 100, podia ser remido um quarto dele por 25,

António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Census”, n. 10.


2177 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec., 66, n. 1; E. Bussi, La formazione […],

cit., v. 2, 133.
2178 O colono tinha o dever de pagar ao dono do chão, prestações periódicas, calculadas em

metade de certos produtos, pois podiam não ser todos atingido (“meias” ou “demídia).

398
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
benfeitorias que, porém, estavam sujeitas à autorização do senhorio. O colono dispunha de
poderes de disposição quase plenos sobre as benfeitorias, que podia vender ou deixar por
morte, mesmo dividindo-as, salvo o direito de opção do senhorio. E que lhe deviam ser
pagas pelo senhorio, se pusesse fim ao contrato.
§ 1371. Trata-se (pois ainda subsiste)2179 de um dos afloramentos mais claros da ideia
de divisão da propriedade sobre uma mesma coisa. No senhorio reside uma propriedade
permanente que consiste no direito a receber o foro, de remir o contrato, com opção de
compra das melhorias, e de autorizar as melhorias, condicionando assim, indiretamente, a
produção e a própria vida do colono. Ao colono pertence o direito de cultivar a terra, nos
limites estabelecidos pelo estado em que esta se encontrava e pela autorização de melhoras
pelo senhorio, e de transmitir em vida ou por morte, indivisas ou divididas, as benfeitoria,
salva a preferência do senhorio.
§ 1372. O facto de os dois direitos terem uma natureza real – os dois eram propriedade,
embora limitada – fazia com os seus titulares tivessem ambos importantes faculdades, com
destaque para a possibilidade de alienar a sua “parte” da coisa por ato inter vivos ou mortis
causa. Para além de poderem usar de todas as formas de tutela próprias da propriedade
(ação de reivindicação, meios cautelares de tutela (embargos, interditos, etc.).
§ 1373. Trata-se, por outro lado, de uma sobrevivência da modalidade mais opressiva de
cedência do uso do solo, em que o colono está privado da plena direção da exploração
agrícola, não podendo modificar a gleba, mudar os cultivos ou as suas técnicas, construir ou
modificar coisas acessórias ao cultivo (como casas de habitação, currais, celeiros, poços)
sem autorização do senhorio. Livremente, apenas podia trabalhar e recolher metade do
produto do seu trabalho. Para além de que a repartição do produto a meias – que era o mais
normal – representava uma forma de partilha muito mais gravosa do que a habitual nos
contratos de enfiteuse ou de locação. De facto, a meação ou dimidia dos frutos, calculada
sobre o valor bruto destes – i.e., sem deduzir as despesas de cultivo – era muito mais do que
um arrendatário costumava pagar para cultivar terra alheia2180.
§ 1374. Tem sido discutida as razões do aparecimento e manutenção desta forma de
cedência agrária na Madeira2181. Desta discussão podem extrair-se algumas ideias sobre as

2179 Bibliografia sobre a história contemporânea do instituto: João Lizardo (org.), Caseiros e

senhorios nos finais do séc. XX na Madeira. O processo de extinção da colonia, Porto, Afrontamento,
2009.
2180 No século XVIII, tomaram-se medidas legislativas para reduzir os foros enfitêuticos pagos no

Algarve, por se considerar que estes eram leoninos, causando ao colono uma lesão enorme, ao
exceder aquilo que era, na altura, uma remuneração normal (e, então, legal) do capital (5 %) (alvarás
de 15.9.1776 e de 16.1.1773). Assim como se começou a propor, na doutrina jurídica, que o cálculo
das rendas que consistiam numa quota parte dos frutos, fosse feito sobre o produto líquido (o produit
net dos fisiocratas franceses), deduzidas as despesas. Realmente, segundo a visão contratualista das
cessões agrárias, a desproporção das vantagens dos dois contraentes criava uma situação abusiva ou
leonina que, racional e livremente, não poderia ter sido querida. Cf. António Manuel Hespanha, O
jurista e o legislador na construção da propriedade burguesa, versão polic., Lisboa, 1980, 80 pp.
(https://drive.google.com/file/d/0BxG11aEdnDQ2bndBeGRNRFJ6WFk/view?usp=sharing); versão
abreviada (sem aparato crítico completo), Análise social, 61-62(1980), 211-236, nota 33.
2181 Bibliografia sobre a história da colonia: Jorge de Freitas Branco, Camponeses da Madeira. As

bases materiais do quotidiano do arquipélago (1750-1900), Lisboa, Dom Quixote, 1987; Nelson
Veríssimo, Relações de poder na sociedade madeirense do século XVII, Funchal, Secretaria Regional
do Turismo e Cultura, 1999; Benedita Câmara, “The Portuguese Civil Code and the colonia tenancy

399
Direito das coisas
particulares razões que a explicam. Originalmente, as terras da ilha terão sido dadas em
sesmaria pelos capitães gerais, como no Brasil (v. cap. 4.2.2.6). Com o objetivo de evitar a
dispersão das terras, aqui concedidas em pequenas glebas dada a exiguidade do território,
muitos dos concessionários vincularam-nas a morgados e, sobretudo, capelas. Isto
dificultava, porém, a sua exploração por colonos, pois as terras vinculadas não podiam ser
dadas em enfiteuse nem arrendadas por períodos longos (v. cap. 5.4.3). Por outro lado, os
altos rendimentos permitidos pela escassez de terra e esperados pelos senhores diretos
eram muito superiores àqueles que se costumavam exigir como cânon enfitêutico, podendo
ser considerados lesivos e, consequentemente, reduzidos (cf. cap.6.6). Por outro lado, a
prática de renovação forçosa da enfiteuse, que se terá estabelecido nos finais do séc. XVI,
também desagradaria aos senhorios, sobretudo num mercado de terra tão propício à
especulação, como o da Madeira. A parceria agrária (ou contrato de meias) também não era
satisfatória, porque, embora permitisse exigir a metade dos frutos, desprotegia o colono
quanto ao destino das benfeitorias; as quais, dada a orografia da ilha, eram muito
dispendiosas (despedra, construção de muros de suporte, levadas de água). Encontrar uma
solução satisfatória para este complexo de pretensões passava por estabelecer uma forma
de contrato agrário que: (a) permitisse a vinculação do domínio direto, para evitar a sua
dispersão; (b) facultasse aos administradores dos vínculos formas perpétuas de cedência
das terras vinculadas; (c) oferecesse aos colonos uma posse útil da terra por um período
tendencialmente longo e lhes assegurasse a propriedade, quase irrestrita, das melhorias,
com direitos de transmissão por vida e em morte2182; (c) porém, permitisse ao senhorio pôr

contract in Madeira (1867–1967)”, Continuity and Change, 21.2(2006), pp 213‐233 (em


http://www.researchgate.net/publication/231871653_The_Portuguese_Civil_Code_and_the_colonia_ten
ancy_contract_in_Madeira_%2818671967%29; ou http://www.isnie.org/ISNIE06/Papers06/03.1/camara.doc; );
Benedita Câmara, "Colonia contract of Madeira was not classified as emphyteusis by the Portuguese
civil code (1867). The new legal framework allowed long term cooperation between agents?".ou “O
contrato de colonia: ambiguidade entre a parceria e a enfiteuse? Que mudou no relacionamento entre o
senhorio e o colono após 1867?”, comunicação ao XXIII Seminari d'Història Econòmica i Social. Les
pràctiques emfitèutiques a l'època moderna i contemporània. Una perspectiva comparada, Universitat
de Girona, 16, 18 de juny de 2011, em http://www.udg.edu/Portals/87/IRH/CRHR/TEXT_Benedita_5.pdf/;
também em http://www4.fe.uc.pt/aphes31/papers/sessao_3d/benedita_camara_paper.pdf)
2182 Por direito comum, as melhorias (ou benfeitorias, melioramenta) dividiam-se em necessárias,

quando evitassem a ruina ou esterilidade da coisa esterilidade (cuidar da saúde ou vestido dos
escravos, encanamento de rio ou defesa das margens, restauro de casas velhas, reposição de árvores
mortas, construção ou reparo de cercas, semeaduras, recuperação ou defesa judicial da coisa, Manuel
Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 1, ad. 1, proem, gl. 43, n. 60 ss.), úteis, quando
valorizavam a coisa, embora a sua não realização não a deteriorasse (ibid., tomo 1,, ad. 1, proem, gl.
43, n. 81-82), dirigidas à produção e perceção dos frutos (como as semeaduras, cultivos e colheitas,
ibid., ad. 1, proem, gl. 43, n. 94; tom. 7, ad 1,87, gl. 24, ns. 3 ss.) e voluptuárias as que apenas
adornavam, mas não aumentavam os frutos, (como a pintura de casas, a construção de jardins, ibid.,
tomo 1, ad. 1, proem, gl. 43, n. 91). A regra geral era a de que as benfeitorias eram de quem as tinha
feito (melioramenta illius sunt, qui fecit, cum ad meliorantem pertineant, ibid., tomo, 1,ad. 1, proem, gl.
43, n. 3; ou seus herdeiros, ibid., ad. 1, proem, gl. 43, ns. 4 e 5). O melhorante tinha sempre do direito
de ser ressarcido pelo dono da coisa, gozando para isso de uma ação pessoal e por vezes, de ação
real e direito de retenção (ibid., ad. 1, proem, gl. 43, ns. 90 ss.); no caso das benfeitorias voluptuárias
podia retirá-las se isso fosse possível sem deterioração da coisa. Especificamente para o caso da
enfiteuse, v. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 1, ad proem., gl. 43, n. 132; para o
arrendamento, ibid., n. 135. Nestes termos, não se vê bem qual seria a especificidade da colonia, salvo
porventura a configuração do direito às benfeitorias como um direito real, acionável por uma ação real.

400
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
fim ao contrato, pagando estas melhorias; (d) lhes permitisse, além disso, um certo controlo
da atividade agrícola, por meio da faculdade de autorizar ou não as melhorias.
§ 1375. Na literatura jurídica anterior ao séc. XIX não se encontram referências
específicas à colonia madeirense. Colonia é antes um termo geral para os contratos agrários,
em que o colono pagava ao senhor uma pensão periódica, o que acontecia na enfiteuse, no
arrendamento, na parceria e até nas terras jugadeiras2183. As suas especificidades explicar-
se-iam por cláusulas próprias que podiam ser introduzidas no contrato enfitêutico ou de
arrendamento. Só nos meados do séc. XIX é que a situação da colonia aparece como um
instituto específico, claramente distinto da enfiteuse, da parceria e do arrendamento. Da
primeira separavam-na a possibilidade de expulsão do colono e a possibilidade de transmitir
e dividir as benfeitorias; da parceria, a divisão do domínio e consequente direito real do
colono sobre as benfeitorias; do arrendamento, o caráter tendencialmente perpétuo.
§ 1376. A reação jurídica contra estas formas de relações fundiárias começou com o
pensamento fisiocrático, que defendia o desenvolvimento económico com base no progresso
da agricultura baseado na abolição de encargos sobre a terra e com a garantia de liberdade
de decisão dos contraentes, nomeadamente dos cultivadores. Isto levou à abolição dos
direitos banais e dos direitos de foral, à extinção parcial ou, mais tarde, total dos morgadios
(e fideicomissos), do uso e habitação, dos censos. Mesmo antes das revoluções, as ideias
fisiocráticas levaram à restrição aos morgados e capelas, à redução de foros excessivos (por
exemplo, no Algarve), a propostas de abolição dos forais (reinado de D. João VI). Ao mesmo
tempo, esta ideia de liberalismo agrícola difundiu uma imagem negativa de todas as formas
de uso da terra que não concentrassem num só todos os poderes de disposição da empresa
agrícola. A compropriedade, a enfiteuse, a parceria – ou seja, todas as formas imperfeitas de
propriedade – passaram a ser tidas como prejudiciais. Na ilha de Porto Santo, a colonia
parece ter sido abolida e transformada em censo no séc. XVIII, sem direito de expulsão e
com redução do foro a 1/5 ou 1/8. Mas não na ilha da Madeira.

2183 Por exemplo, no v. “Colonus” do índice de Solano do Vale a Pegas, remete-se para “caseiros”
e “rendeiros”, “Emphyeuta”, “Locatio”, “Jugata”, “Forus”, “Reguengos” (Manuel Álvares Solano do Vale,
Index generalis […], cit., v. “Coloni”. Em Bento Pereira, o verbete “Colonia. Colonus” refere-se à
locação (v. Bento Pereira, Promptuarium […], cit.). Cf. dados complementares sobre o termo “colonia” e
“colono” no cap. 4.3.3.2.1. Por sua vez, Pascoal de Melo escreve: “A palavra colono abrange,
geralmente, todos os arrendatários de campos, e, por isso, também os próprios censuários e enfiteutas.
Dizem- se, porém. simples colonos s que cultivam um fundo alheio mediante o pagamento de certa
pensão em dinheiro corrente ou em certa quantidade de frutos; se esta quantidade for incerta, par
exemplo, a terça parte dos frutos, o arrendatário toma o nome especial de colono parceiro, o qual é
mais um verdadeiro sócio nos frutos que um arrendatário, Ord. liv. 4, tit. 45, 5 2, lei 25, 5 6, do tit.
Locati, Valasco, Quaest. 30, Schilter, Exercit. XXXI, $ 7; no Alentejo este colono chamava-se poneiro,
Lei de 9 de Julho de 1773. § 14, talvez da palavra grega poneiros Além disso, os colonos são ou totais,
isto é, principais, os que receberam sozinhos a coisa dada a censo, enfiteuse, ou locação de longo
tempo, ou parciais, os que têm, parcialmente, a coisa em comum com outros. A dita lei de 9 de Julho
de 1773, § 14, que hoje está abrogada, ou melhor suspensa, pelo Decreto de 17 de Julho de 1778 até
promulgação do Novo Código, manda se adjudiquem ao colono principal todos os fundos e possessões
comuns acessórias e menos principais. Também há quem chame colonos aos que são obrigados a
pagar ao respetivo senhorio, pelo fundo que cultivam ou habitam, não já certo dinheiro, nem certa on
incerta porção de frutos, mas certos trabalhos servis; no entanto, estes homens assemelham-se mais à
constituição feudal, isto é, servil, do que à enfitêutica ou colonária (Tit. 13, 5 a 11). Não temos colonos
originários e adscriptícios, Ord. Iiv. 4, tit. 42 (Instituições, Do direito das pessoas, Tit. 1, g XIII)” (usei a
tradução de Miguel Pinto de Menezes).

401
Direito das coisas
§ 1377. A reação dos titulares de rendas sobre a terra seguiu uma de duas vias. A
primeira foi a de argumentar que a abolição dessas rendas (de direitos banais, de direitos de
foral, de servidões pessoais de base fundiária, nomeadamente) constituía uma ofensa do
direito de propriedade, que as constituições agora consagravam como um direito sagrado.
Não admira, pois o argumento da proibição do confisco, foi utilizado mesmo quanto à
abolição da escravatura (ou seja, submissão do valor da liberdade pessoal ao da
propriedade). A outra via de reação foi a de disfarçar rendas com origem nas relações
sociais de tipo feudal em relações de natureza contratual, ou seja, produto das vontades
“livres” dos foreiros.
§ 1378. A compropriedade, a enfiteuse, a parceria – ou seja, todas as formas imperfeitas
de propriedade – passaram a ser tidas como prejudiciais. O Código Civil de 1867 não incluiu
a colonia entre as formas de propriedade imperfeita artº 2189 e, com isto, tê-la-á abolido
tacitamente, sujeitando as situações até aí assim conceituadas ao regime da enfiteuse artº
1689 ss.2184.
4.3.6 As situações agrárias. Quadro sinótico.
§ 1379. Reunimos num quadro a caraterização simplificada das várias situações reais.
Tipo Duração Foro Laudémio Comisso Indivisão Domínio Tributo Dízima
Herdades Perpétua Não Não Não Não Pleno Não Sim
Jugadeiras Perpétua Não Não Não Não Pleno Sim Sim
Enfiteuse Convenção Sim Sim Sim Sim Dividido Não Sim
Pleno
Censos Convenção Sim Não Não Não Não Sim
onerado
Perpétua
Sesmarias Não Não Não Não Não Não Sim
condicional
Dividido
Colonias Convenção Sim Não Não Não Não Não
precário
Servidão Perpétuo Não Não Não Sim - Não Não
Usufruto e
Perpétuo Não Não Não Sim Dividido Não Não
Uso

4.3.7 As servidões.
§ 1380. No direito romano justinianeu, as servidões – como a herança e o usufruto -
eram consideradas como coisas incorporais, que consistiam num direito2185 sobre coisa de

2184 O DL 47 937, de 15.09.67 (art.º1, n.º1), proibiu, para o futuro, a celebração de contratos de

colonia, reconhecendo, porém, os contratos celebrados até à sua entrada em vigor, que continuariam
regidos pelo direito costumeiro e pelos usos locais, o que quer dizer que se mantinham os chamados
os direitos reais menores, ou seja, os direitos reais do colono sobre as melhoras, que continuaram a
poder ser transmitidos quer inter vivos, quer mortis causa. Mantendo-se também os direitos do senhorio
à dimidia, à autorização das melhoras e à expulsão do colono.
2185 Cf. “Incorporales autem sunt [res] quae tangi non possunt, qualia sunt ea quae in iure consistunt: sicut
hereditas, usus fructus, obligationes quoquo modo contractae. nec ad rem pertinet quod in hereditate res corporales
continentur: nam et fructus qui ex fundo percipiuntur corporales sunt, et id quod ex aliqua obligatione nobis debetur
plerumque corporale est, veluti fundus, homo, pecunia: nam ipsum ius hereditatis et ipsum ius utendifruendi et ipsum
ius obligationis incorporale est. 3. Eodem numero sunt iura praediorum urbanorum et rusticorum, quae et servitutes
vocantur”, I.,2,2

402
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
outrem2186.
§ 1381. O conceito era tão vasto que nele podiam caber a jurisdição sobre uma
coisa2187, o direito a serviços pessoais (serviços relativos a uma pessoa, servidões pessoais)
ou o direito a comodidades úteis ao uso de uma coisa de que se fosse proprietário (servidões
relativas a uma coisa, servidões reais)2188.
§ 1382. As servidões pessoais eram direitos que recaíam sobre uma coisa alheia
relativos a serviços pessoais a prestar ao titular pelo proprietário dessa coisa. Tais serviços
podiam ser muito variados: prestar-lhe certos dias de trabalho, fazer-lhe carretos de bens,
permitir o pasto dos seus rebanhos2189, permitir a exploração por outrem de pedreiras no seu
prédio2190, obrigar os habitantes de um lugar a moer os cereais num certo moinho, ou a cozer
pão num certo forno2191.
§ 1383. As servidões reais eram devidas a uma coisa (um prédio, o prédio dominante),
consistindo no direito a vantagens no seu uso proporcionadas pela limitação das faculdades
de uso do prédio serviente. Havia limitações “naturais” ao uso dos prédios, seja em função
da utilidade pública, seja em benefício de prédios vizinhos. Essas limitações constavam de
normas de regulamentação urbanística2192 ou de disciplina das relações de vizinhança
urbana, em Portugal a cargo dos almotacés2193, ou de da natureza e disposição dos terrenos.
Porém, estas limitações de uso não constituíam servidões, pois estas necessitavam de um
facto humano constitutivo2194. O prédio superior tinha, por natureza, o direito de fazer correr
as águas da chuva ou de veios subterrâneos para o prédio inferior, sem que o dono deste o
pudesse impedir. Os seus donos podiam construir “até ao céu”, prejudicando o sol e as
vistas dos prédios vizinhos, cuja utilidade podia ficar limitada por isso2195. Tal como podiam

2186 Cf. Giuseppe Grosso, Luigi Raggi, Manlio Udina, “Servitù”, em Enciclopedia Italiana (1936),

em http://www.treccani.it/enciclopedia/servitu_%28Enciclopedia_Italiana%29/. Sobre a tradição jurídica


portuguesa, António Pinto de Meyrelles Barriga, As servidões prediais em direito peninsular e
português: subsídios para a história do direito português, Lisboa, Instituto Superior de Ciências
Económicas e Financeiras, [1934]; António Santos Justo, “A base romanista do direito luso-brasileiro
das coisas: algumas figuras jurídicas”, Revista da Ordem dos Advogados, 69.1-2 (2009), pp. 73-107;
Ricardo Lopes, “O direito de propriedade e as relações de vizinhança”, Scientia Iuridica, 13 (1954), pp.
478-495.
2187 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 18 (“as servidões mistas que

se devem à coisa da pessoa, como é o usufruto ou a jurisdição e similares”.


2188 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 1.

2189 Se os rebanhos fossem os de certo prédio do beneficiário da servidão, tratava-se de uma

servidão real, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 17.
2190 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 43.

2191 Este direito do proprietário do moinho ou do forno fundavam-se em presumidos privilégios

nesse sentido, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n., ns. 46 e 47. Pascoal de Melo
refere a obrigação dos habitantes de terras do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra de fazer as suas
moendas nos moinhos do mosteiro, ou dos vizinhos de Tomar e de Setúbal de usar formos senhoriais;
ou ainda a obrigavam de morar e de cultivar que impendia sobre certos moradores dos reguengos (v.
Ord. fil.,2,17), Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,13,2.
2192 V. Ord. fil.,1,68,18 a 21.

2193 V. Ord. fil.,1,68,22 ss..


2194 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 9.
2195 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 34. Mas já não se poderiam

403
Direito das coisas
tapar o ar e vento aos vizinhos com muros de que necessitassem. Porém, como a natureza
das eiras era a de ter vento para separar o grão da palha, os prédios em que estivessem
tinham por natureza direito a manter essa aragem, a benefício da agricultura, ainda que isso
importasse uma limitação ao uso dos prédios confinantes2196. O mesmo acontecia com as
limitações de uso de prédios que decorressem do dever de respeitar a privacidade dos
vizinhos, que impedia que os donos dos prédios abrissem portas e janelas, ou construíssem
terraços devassando prédios vizinhos2197
§ 1384. O que era natural era a plenitude do domínio ou liberdade do prédio2198. E, por
isso, a existência de uma servidão pressupunha um facto do homem que modificasse essa
natureza2199. Por exemplo. Os prédios inferiores recebiam naturalmente as águas que
fluíssem dos superiores. Mas, como esta mera sujeição que decorria da natureza não criava
uma servidão a seu favor, para que tivessem direito a essa água era preciso que tivessem
efetuado obras de captação no prédio superior2200.
§ 1385. Dado que se tratava de relações ente coisas (indiretamente, de relações entre
pessoas, mas pelo facto de serem proprietárias de certas coisas) nem requeriam qualquer
ação (facere) do dono do prédio serviente2201, nem podiam subsistir sem essas coisas2202. E,
por isso, as servidões eram consideradas como coisas acessórias do prédio a que
serviam2203, não podendo ser objeto autónomo de alienação, independentemente do prédio a
que serviam2204. O facto de a servidão ser uma coisa incorpóreas impedia que se pudesse
ter posse dela em sentido próprio. Mas o conhecimento e consentimento (sciencia et
pacientia) do dono do prédio serviente ao exercício da servidão configurava uma quase
posse (quasi possessio) que podia conduzir à usucapião de uma servidão
correspondente2205. Até ser fixada numa parte específica do prédio serviente (que devia ser a
menos gravosa para ele), a servidão era devida por todo o prédio. As servidões, como coisas

tapar as vistas do mar, do céu, do curso do rio (o A. Invoca, enlevado, as vistas do Douro e do Tejo.
“sicut est fluvius Durius,vicinus meus, quia Durius vocatur eo quod per dura saxa delabitur, aut Tagus”
…, cf. ibid., n. 35) ou o sol que aquecia o terraço, ibid..
2196 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n., 33.

2197 “de modo a ver os seus segredos, as moças ou as freiras [que habitassem o prédio vizinho],

pois isso não se pode fazer em desrespeito de outrem”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Servitus”, n., ns. 36 e 38.
2198 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., dec. 125, n. 12.

2199 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 9.

2200 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 10.
2201 Apenas uma aceitação (pati).
2202 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 2. Os prédios podiam ser

urbanos, se destinados a morar, fosse em cidades ou em aldeias, ou rústicos, se destinados ao cultivo,


embora pudessem conter estábulos ou cabanas Servidões reais são as que se devem a uma coisa,
não podendo existir sem elas, a dominante e a serviente, urbanas ou rústicas, como apoio da
exploração agrícola, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n., ns. 3 e 4.
2203 Por isso, as servidões seguiam a coisa: vendido o prédio vendiam-se a servidões, cf. António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 32.


2204 Por exemplo, não se podia ceder a água de uma servidão de rega para uma utilidade de

outro prédio ou pessoa.


2205 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 11.

404
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
incorpóreas, eram indivisíveis2206.
§ 1386. As servidões reais (ou prediais) podiam ser de diferentes tipos: oneris ferendi
(de apoiar sobre o prédio serviente determinada construção); a tigni immittendi (colocar
traves), cloacae (de esgoto), projiciendi (de avançar uma construção sobre o prédio
serviente), altius tollendi (de poder construir mais alto), estilicidii (de verter a água da chuva
sobre os prédios vizinhos), passu, iter ou viae (de passagem), pascendi (de trazer gado a
pastar), pecoris ad aquam adpulsus (de levar o gado a beber),de abrir portas ou janelas ou
de ter vistas sobre o prédio do vizinho (prospectu).
§ 1387. As servidões eram contínuas se se traduziam num uso contínuo e atual, como
no caso do direito de superfície ou no de assentar uma trave no muro do vizinho (tigni
immitendi)2207. Eram, em contrapartida, descontínuas, se dependessem de facto humano que
não se produzisse continuamente, como no caso das servidões de passagem, de pasto, de
aqueduto, de usar poço, de dar de beber ao gado, de usar fonte, de regar2208. A natureza
contínua ou descontínua da servidão relevava para o regime da prescrição. As servidões
contínuas e quase contínuas, exercidas pelo dono do prédio dominante com conhecimento
do dono do prédio serviente, pacificamente e como direito próprio (nec vim nec clam, nec
precario2209), adquiriam-se por prescrição de 10 anos entre presentes, e de 20 entre
ausentes2210. Já as descontínuas necessitavam de um exercício por imemorial2211. A
distinção também tinha efeitos na extinção da servidão: a servidão contínua perdia-se por 10
ou 20 anos2212;a descontínua só se perdia por não uso pelo duplo deste tempo2213.
§ 1388. A servidão estava protegida por ações próprias. A ação confessória de servidão
(actio confessoria servitutis ou vindicatio servitutis) dirigia-se contra o que perturbava ou
impedia o exercício da servidão; a ação de negação da servidão (actio negatoria servitutis)
dirigia-se contra o que exercitasse uma servidão não devida2214. Podia ainda pedir-se o
reconhecimento da servidão acionando o dono do prédio serviente com a ação do contrato
pelo qual tivesse sido constituída2215.
§ 1389. O uso da servidão também podia ser defendida cautelarmente por interditos

2206 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, ns. 6 e 7.
2207 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 13.
2208 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. ns. 14 a 17. Algumas
servidões, embora consistindo em aos descontínuos, supunham uma intenção contínua de uso. Era o
caso do usufruto ou da jurisdição. Seriam servidões mistas, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., v. “Servitus”, n. 18.
2209 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 22.

2210 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 19.
2211 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 20.
2212 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 23. Nos prédios urbanos

requeria-se que o dono do prédio serviente fizesse oposição ativa ao exercício da servidão, ibid., ns.
23, 26 e 39.
2213 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 24; a servidão devida a prédio

da Igreja só se perdia por não uso de 40 anos, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”,
n. 25.
2214 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 5.

2215 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Servitus”, n. 6.

405
Direito das coisas
possessórios2216.
4.3.8 O usufruto
§ 1390. O usufruto estava definido no Digesto como o direito de usar e fruir coisas
alheias sem alterar a substância delas2217. Este uso não estava restrito àquilo estritamente
necessário, mas podia compreender todas as utilidades e frutos que a coisa podia
disponibilizar a um usuário prudente, mesmo para além das necessidades do usufrutuário.
Por isto se distinguia do direito de uso, que apenas autorizava ao uso estritamente
necessário2218.
§ 1391. Os limites do uso da coisa estavam na necessidade de não a destruir ou
modificar essencialmente e de fazer dela um uso prudente, como aquele que dela faria um
bonus pater familias2219. O usufruto era uma espécie de servidão universal, pois compreendia
todas as utilidades da coisa. Alguma doutrina considerava o usufruto como uma parte do
domínio2220 e, por isso, restringia a sua constituição sobre bens da coroa doados2221, já que a
constituição de usufruto induzia alienação2222 e o donatário da coroa não podia alienar os
bens doados. Pela mesma razão, o usufruto não podia ser constituído pelo enfiteuta sem
autorização do senhor direto2223.
§ 1392. Os bens consumíveis, que se esgotam no seu próprio uso, não podiam ser
objeto de usufruto. A cessão do seu uso era apenas um quase usufruto, já que o usufrutuário
era obrigado a restituir ao proprietário coisas da mesma quantidade e qualidade ou o seu
valor, quando terminasse a concessão2224.
§ 1393. O usufrutuário devia pagar uma caução usufrutuária, garantindo o valor dos
bens do usufruto que seria restituída quando o usufruto acabasse2225.
§ 1394. O disfrute das comodidades da coisa trazia, em contrapartida, a obrigação de
suportar todos os ónus reais2226; nisto, também o usufrutuário equiparava-se ao enfiteuta2227
§ 1395. O usufruto podia ser constituído por ato inter vivos ou por testamento. Ou podia
decorrer da lei, que estabelecia usufrutos a favor de certas pessoas em certas situações2228.

2216 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria […], cit.; refere-se ao usufruto, mas este era uma
espécie de servidão, pg. 234, n. 14.
2217 D.7,1,1: “Usus fructus est ius alienis rebus utendi fruendi salva rerum substantia”.

2218 D.7,1,8 De usu et habitatione,1: “Constituitur etiam nudus usus, id est sine fructu […]”.

2219 Cf. I.,2,1,38; cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,13.
2220 Cf. “Usufructus pars dominii reputantur”, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo
9, ad 2,33, gl. 1, cap. 24, n. 217
2221 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 10, ad 2,35, cap. 21, n. 13.

2222 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 73, n. 7.


2223 Cf. António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 299, n. 1.
2224 Cf. D.7.5. De usu fructu earum rerum, quae usu consumuntur vel minuuntur; cf. Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,13,8.


2225 Cf.. Ord. fil.,4,91,4; Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,13,7.

2226 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 116, n. 2.

2227 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 201, n. 7.

2228 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,13,5

406
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
O principal usufruto legal previsto na lei portuguesa era o usufruto a favor do pai (mas não da
mãe) nos bens adventícios dos filhos (Ord. fil.,4,97,19; v. cap 3.2.4)2229. Mas o direito do
reino também atribuía às viúvas pobres o usufruto de uma quarta parte dos bens do
marido2230.
§ 1396. O usufruto extinguia-se: com a morte do usufrutuário, pois tratava-se de um
direito pessoal, que não passava aos herdeiros (nem se podia alienar)2231; pelo perecimento
da coisa; pela consolidação do usufruto com a propriedade da coisa (i.e., se o usufrutuária a
adquirisse); pelo não uso da coisa por um período de 10 anos2232; pela emancipação dos
filhos de cujos bens adventícios o pai tivesse o usufruto (v. Ord. fil.,4,97,19)2233. Finalmente,
perdia-se por um uso que excedesse os limites dos poderes do usufrutuário2234.
4.3.9 Uso e habitação.
§ 1397. O uso simples contém menos direitos do que o usufruto, pois o usuário apenas
pode usar das comodiades da coisa que lhe sejam estritamente necessárias, não podendo,
por exemplo, vender os frutos de que não necessite (v. I.,2,1,5). Como era um instituto
menos usado, na dúvida, entendia-se que era o usufruto que era concedido.
§ 1398. Mais limitado ainda era o direito de habitação (I.,2,1,5), como direito restrito de
habitar uma casa, mas não de dispor dos frutos e outrras amenidades que ela
proporcionasse2235.
4.3.10 Direito de superfície.
§ 1399. O direito de superfície era o direito de ter alguma coisa edificada, plantada ou
colocada em solo alheio. A doutrina hesitava em a considerar como uma cedência de
domínio útil ou uma locação, que se distinguia da enfiteuse por não ter laudémio, nem

2229; Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 7, ad 1,87, gl. 8, n. 74 a 88. (com as

limitações da regra); ou nos bens dos escravos, ibid., n. 89outros casos menos relevantes de
constituição de usufruto legal: (i) a favor do pai ou a mãe que, havendo filhos do primeiro matrimónio,
contraiu segundas núpcias, nos que herdar ab intestato de filho já falecido (Ord. fil.,4,91, 2 e 4); (ii) à
bínuba quinquagenária, existindo filhos do primeiro matrimónio, nos bens que já tinha ou adquiriu
depois do segundo casamento (Ord. fil.,4,105); (iii) pelo alv. 17.8.1761,§ 7, à viúva fidalga na décima
parte dos da herança ou património do marido, incluindo morgados e bens da coroa, v. Pascoal de
Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,13,5.
2230 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., pt. 3,c. 23, n. 12..

2231 Cf. “Quidquid personale est”, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 10, ad 2,35,

cap. 38, n. 22; ib., tomo 2, ad 1,3, gl. 96, cap. 4., n. 83. No entanto a inalienabilidade do usufruto da
alienabilidade das suas comodidades (cf. Reinoso, obs. 73, n. 8); por isso, a comodidade dos frutos
podia ser vendida pelo usufrutuário, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit. cons. 66, ns. 23 e 24.
2232 Cf. Perde-se pelo não uso, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 10, ad 2,35,

cap. 78, n. 36.


2233 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 7, ad. 1,87, gl. 8, n. 90 e 103

2234 I.,2,4,3: “Finitur autem usus fructus morte fructuarii et duabus capitis deminutionibus, maxima et media,
et non utendo per modum et tempus. quae omnia nostra statuit constitutio. item finitur usus fructus, si domino
proprietatis ab usufructuario cedatur (nam extraneo cedendo nibil agitur): vel ex contrario si fructuarius proprietatem
rei adquisierit, quae res consolidatio appellatur. eo amplius constat, si aedes incendio consumptae fuerint vel etiam
terrae motu aut vitio suo corruerint, extingui usum fructum et ne areae quidem usum fructum deberi”.
2235 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,13,9; Manuel de Almeida e Sousa

(Lobão), Notas […] a Melo […], cit., nota a Melo 3,13,9.

407
Direito das coisas
comisso2236
4.3.11 Direito ao pasto.
§ 1400. O direito de pasto (pascua) era, em sociedades com gados locais, mas também
com gados de transumância, como era o caso das comunidades rurais peninsulares, uma
das mais importantes servidões prediais2237.
§ 1401. Já nos forais medievais se encontram frequentes afloramentos destes direitos
aos pastos, que estavam muito dependente dos costumes das regiões. Em certas delas, os
gados estavam autorizados a pastar nos prédios públicos e particulares. Noutras, apenas em
certo tipo de prédios. Noutras, enfim, o direito a pasto dependia da constituição de uma
servidão, não estando os proprietários naturalmente obrigados a sofrer a entrada de gados
alheios.
§ 1402. Já referimos o direito ao pasto a propósito do regime dos bens comuns dos
concelhos, embora estes tivessem usos comuns que iam para além do pasto
(aproveitamento da lenha, apanha de colmeias, direitos de caça e de pesca, etc.).
Deiferentes eram estes direitos a que agora nos referimos, assentes numa relação particular
entre os donos de dois prédios, numa servidão.
§ 1403. Neste último caso, a servidão de pasto podia ser pessoal (abrangendo os
rebanhos de certa pessoa ou de certa comunidade – um mosteiro, os moradores de um
concelho ou de uma aldeia) ou real, servindo então apenas os rebanhos pertencentes a certo
prédio. Num caso ou noutro, era tida como um direito inalienável, ou por ser pessoal, ou por
ser um acessório do prédio dominante. Existindo este direito, o dono do prédio serviente era
obrigado a sofrê-lo, não podendo murar o prédio, nem fazer aí cultivos incompatíveis com o
pasto de animais (fazendo-os, não tinha direito a ser indemnizado pelos estragos causados
pelo gado), nem mesmo apascentar o seu gado se o pasto não chegasse para os animais de
ambos2238.
§ 1404. Diferente deste direito que provinha de uma servidão de compáscuo era o direito
dos vizinhos a usar os pastos comuns e atribuídos pelos vereadores, segundo os costumes
antigos (Ord. fil.,1,66,5 6) ou segundo o teor de privilégio real2239. Como se tratava de bens
públicos (v. cap. 4.2.4), não podiam ser adquiridos por ninguém, nem por prescrição
imemorial, tal como não podiam ser alienados pelos vereadores ou pelo senhor da terra2240.

2236. Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,11,5. Sobre este direito na tradição
romanística, v. “Superficies” em LocusCurtius
(http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/secondary/SMIGRA*/Superficies.html); Adriano Rocca
(org.), […], Venezia, G. Antonelli, 1847-69, Volume 5, v. "Locazione", n. 47 (em
https://books.google.pt/books?id=OBVfAAAAcAAJ&pg=PA74&lpg=PA74&dq=superficies+contratto+dirit
to+romano&source=bl&ots=E5e1H0KAGE&sig=fLDdxKgq1_OoG5aGdzbih0Rk208&hl=pt-
PT&sa=X&ei=JBDWVP3yL4L_sATGo4HoAQ&ved=0CCsQ6AEwAw#v=onepage&q=superficies%20con
tratto%20diritto%20romano&f=false).
2237 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 3,13,10.

2238 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit.,,3,13,10.

2239 Cf. Privilégios dos pastores serranos de passarem os seus gados para o Campo de Ourique,

Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 7, ad reg. Des. Paço, cap. 89, in fine.
2240 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 11, ad 2,35, cap. 268, n. 4. Salvo

autorização régia por um ato puro de graça, que não era sequer da competência do Desembargo do

408
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

Paço, como fora julgado sobre a alienação de pastos comuns a favor das freiras de S. Bernardo de
Portalegre, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 11, ad 2,35, cap. 268, n. 2. O uso dos
pastos era regulado nos forais (v. sentenças dos montados de Campo de Ourique ou dos matos de
Alcobaça) e vigiado pelos juízes do verde ou pelos funcionários do concelho. Cf. decreto de 1612
mandando restituir à Câmara do Crato pastos e ervagens matos e ramas do seu termo, Manuel Álvares
Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 7, ad regim. Senatus Palat., cap. 96, n. 1 (toda a contenda, até ao
n.32); sobre direitos dos povos das várias aldeias do concelho de Alcobaça a madeiras, estacas,
montados para os porcos e pastos para os bois nas matas, ibid., tomo 9, ad 2,27, gl. 3, n. 61.Sobre os
montados de Campo de Ourique, António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit.., 225, reg.
19.1.1699, JJAS, pg. 424; o gado que usava os pastos deste campo estava sujeito a um imposto que
consistia numa pequena percentagem das cabeças de gado (“monta”); sentença relativa aos montados
de Campo de Ourique, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9, ad 2,26, gl. 16, n. 40;
Sobre bens patrimoniais do rei deste tipo, lezírias, pauis, montados, matas montarias, pinhais, António
Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit.. 225 ss..

409
Direito das coisas

410
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
5 As sucessões.
§ 1405. A sucessão era um outro meio de se adquirirem coisas, a título universal (como
na herança) ou a título particular (como nos legados). A sucessão podia ser deferida de
acordo com a vontade do falecido (de cujus, de cujus sucessione agitur, expressa num
testamento, ou pela lei, caso este faltasse.
5.1 Fontes do regime sucessório no direito comum.
§ 1406. No direito sucessório de direito comum confluem tradições jurídicas muito
diferentes.
§ 1407. Por um lado, a tradição jurídica romanista, ela mesmo produto de uma longa e
evolução. Os textos do Digesto reportam-se a uma fase mais antiga, em que a sucessão era,
principalmente, dominada pela preocupação de garantir a substituição política e jurídica do
de cujus, a qual era feita por um ato solene e público de instituição de herdeiro (inicialmente
perante os comícios reunidos), o testamento. Esta fase publicista e formalista é temperada
pelo direito pretório que, sem apagar alguns dos traços anteriores, introduz uma nova
dimensão na sucessão, a de dar destino ao património do falecido, admitindo à sucessão
outros seus familiares, segundo uma ordem que se supunha seria a dos seus afetos: os
ascendentes, os parentes consanguíneos, e o cônjuge (v. cap. 3.2.5. Embora o sistema
sucessório romano fosse bastante igualitário no que respeita ao género, sobre ele pesava
fortemente a estrutura jurídica da família, com as suas distinções entre casamento cum
manu (em que a mulher estava submetida ao poder marido, como se fosse uma filha,
também para efeitos sucessórios) e casamento sine manu (em que a mulher não dependia
do marido, nem era uma sua parenta “política”, tendo por isso diminutos direitos
sucessórios). Justiniano reformou profundamente o direito sucessório clássico, em
constituições posteriores à elaboração das Institutiones e do Digesto ( as Novelas 115 e
118). Aí, muitas das antigas distinções desapareceram ou foram atenuadas, daí resultando
um direito sucessório ainda centrado no testamento, basicamente como expressão formal de
uma vontade do testador, muito pouco limitada, de dispor dos seus bens para depois da
morte2241.
§ 1408. Outra tradição era a dos direitos locais, nomeadamente de origem germânica,
implantados nos reinos e cidades alto-medievais. Aí dominava um sistema sucessório
estabelecido pela natureza ou pelos deuses, que limitava muito a vontade do de cuius,
distribuindo os bens, de acordo com a sua diferente natureza (feudais, de família, adquiridos,
do lado paterno, do lado materno), pelos herdeiros2242.
§ 1409. Por fim, a tradição do direito canónico, que encarava o testamento como um
complemento do sacramento da confissão, tendo como fim principal tomar disposições para
a salvação da alma, como fazer legados pios (ad pias causas), mandar rezar missas pelo
alma ou mesmo apenas declarar a sua fé e pedir perdão a Deus. Por isso, o direito canónico
quase apenas se preocupou com estes testamentos piedosos, procurando discipliná-los2243,
supervisionar a sua feitura2244, vigiar o seu cumprimento2245, reclamando a jurisdição sobre

2241 Cf., entre muitas sínteses, a de Álvaro d’Ors, Derecho privado romano, §§ 288 ss.. Em

suporte digital, por ex. http://www.treccani.it/enciclopedia/testamento_(Enciclopedia-Italiana)/.


2242 Helmut Coing, Europäisches […], cit., § 119 ss..

2243 Cf. g., simplificando as suas formalidades

2244 Promovendo a intervenção do cura de almas (ou pároco) na sua elaboração.

411
As sucessões.
eles.
§ 1410. O que resulta, na época moderna, desta confluência de tradições é um regime
complexo, em que se notam, como num sítio arqueológico, os sinais das várias camadas
Das mais antigas ficou a necessidade de instituição de herdeiro, alguns formalismos (como o
número de testemunhas: cinco, sete ou oito2246); da sucessão pretória, depois acolhida por
Justiniano, a chamada dos cognados; da sucessão “germânica”, o primado de uma ordem
natural de sucessão, o direito de alguns dos parentes a uma quota nos bens, a coexistência
de várias massas de bens com distintos regimes sucessórios (os de família, os paterno ou
maternos, os feudais, os de morgado); da camada canónica, o regime diferenciado do
testamento piedoso (ad pias causas), a reclamação da jurisdição eclesiástica sobre os
testamentos, a desvalorização da instituição de herdeiro2247.
§ 1411. Com o jusracionalismo, o regime de direito comum é sujeito a críticas e
tentativas de reforma, por vezes contraditórias. A ideia de sucessão natural ganha força,
tanto mais que ela correspondia a ideias de vinculação da herança a uma comunidade
familiar que interessava à política linhagística, querida das grandes casas. Isto levava a
restringir a liberdade testamentária e a consagrar a primazia da ordem da sucessão intestada
(ou legítima)2248. Mas, em contrapartida, a ideia individualista/voluntarista de liberdade de
disposição valorizava a vontade do testador, sobretudo no sentido de reduzir as exigências
formais dos testamentos, limitadas àquelas que garantiam a liberdade e autenticidade da
intenção do testador (mens testatoris)2249. Por outro lado, de acordo com o pensamento
regalista, combatiam-se as pretensões eclesiásticas na matéria, negando ao direito canónico
vigência perante os tribunais temporais, bem como a subsistência da jurisdição eclesiásticas
para julgar as questões conexas.
5.2 O testamento e a sucessão testamentária.
5.2.1 O testamento. Noção.
§ 1412. A definição acolhida de testamento era a que constava de D., 28.1.1 (Qui
testamenta facere possunt et quemadmodum testamenta fiant: “O testamento é a
declaração, feita de acordo com o direito, acerca da vontade sobre aquilo que alguém quer
que seja feito depois da sua morte” (Modestinus libro secundo pandectarum. Testamentum
est voluntatis nostrae iusta sententia de eo, quod quis post mortem suam fieri velit).
§ 1413. No direito português, embora houvesse costumes anteriores, nomeadamente
provenientes do código visigótico, o regime testamentário tinha sido objeto de uma profunda
reforma legislativa, inspirada pelo direito comum, no tempo de D. Afonso V (Ord. af., 4, 97,

2245 Instituindo os bispos como executores testamentários.


2246 Cinco era o número de testemunhas da mancipatio testatória na fase arcaica do direito
romano; sete, estas cinco mais o libripens e o emptor família; oito, os anteriores mais o subscritor do
testamento). Estes números “mágicos” mantiveram-se, mesmo quando o seu originário sentido
cerimonial se perdera completamente.
2247 Boa síntese em Helmut Coing, Europäisches […], cit., ibid..

2248 Na legislação pombalina, há exemplos destas leis que limitam a disposição dos bens para

fora do círculo dos parentes mais próximos, ou a sua dissipação em legados (carta de lei de L.
9.9.1769, revogada pelo Dec. 17.7.1778).
2249 Um bom exemplo destas perplexidades é Pascoal de Melo, nas suas Institutiones iuris civilis

(3,5), cuja versão do regime sucessório está longe de refletir fielmente a doutrina dos sécs. XVI e XVII.

412
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
98, 99, 100, 101, 102 e 103)2250
§ 1414. O testamento era considerado ser de direito das gentes, embora as suas
formalidades pudessem ter sido tornadas mais exigentes pelo direito civil de cada lugar2251.
Como o direito civil devia ser preferido ao direito das gentes, o testamento regia-se pelos
costumes do lugar onde fora feito, desde que estes não dessem lugar a falsidades ou a
violação do direito natural2252. Eventualmente, incidindo sobre bens imóveis, teriam que ser
respeitadas as formalidades do lugar em que estes se situassem.
§ 1415. Por força da antiquíssima tradição do direito romano arcaico, seguia-se
entendendo que não era válido sem a instituição de herdeiro2253, por isso se distinguindo de
um documento menos solene, mas menos eficaz também, de dispor para depois da morte, o
codicilo. O direito racionalista, na esteira do direito canónico, deixa de reconhecer a
instituição de herdeiro como uma condição da instituição de herdeiro2254.
§ 1416. Considerava-se que da substância do testamento faziam parte a forma e
solenidades – ou pelo seu caráter originariamente público e quase sagrado, ou pela
necessidade de garantir a autenticidade da declaração do testador -, a qualidade da pessoa
do testador (capacidade testamentária ativa) e as qualidades das pessoas dos herdeiros e
legatários (capacidade testamentária passiva)2255. As diferenças do regime quanto a estes
pontos, nomeadamente quanto ao primeiro, ditavam a existência de várias espécies de
testamentos. Assim, o testamento ou era público ou particular, conforme assentasse em fé
pública ou apenas particular; civil ou militar; escrito ou nuncupativo; aberto, ou cerrado;
solene, ou menos solene (privilegiado)2256. Estas distinções, que variam um pouco conforme
os autores davam origem a diversos tipos de testamentos, de que se destacam os seguintes.
5.2.2 Espécies de testamento e suas formalidades.
§ 1417. O testamento público era o feito perante o príncipe (ou perante o juiz e registado
em auto judicial2257), em que se omitiam todas as formalidades, pois a garantia deste excluía
qualquer falsidade2258.
§ 1418. O testamento tabeliónico2259era feito por um notário ou tabelião e firmado por
ele2260. Era o testamento ordinário, com as formalidades de regra. Como formalidades2261,

2250 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,3.


2251 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 1.
2252 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons., 104, n. 22.
2253 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 2. Havia exceções. A mais
importante era a do testamento de causas piedosas (ad pias causas), provindo do direito canónico, que
validava testamentos sem instituição de herdeiro,
2254 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5.

2255 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 5.


2256 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 5; Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,4.
2257 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,5.

2258 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 45.
2259 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,6.
2260 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,6.

2261 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 81, ns. 1 e 2.

413
As sucessões.
exigia cinco testemunhas, por direito pátrio (Ord. fil.,4,80), sete por direito comum2262, todas
maiores de 14 anos, varões2263, livres, que soubessem assinar e que não estivessem por lei
impedidas de o ser2264. As testemunhas deviam ser rogadas, ou seja, convocadas
especialmente para isso2265. O testamento devia ser assinado pelo testador ou por alguém
por si, que declarasse a qualidade com que assinava (Ord. fil.,4,80,pr.). A doutrina explicava
a importância deste formalismo pelo facto de o ato de testar pressupor grande ponderação
de juízo e de vontade2266.
§ 1419. Nos finais do séc. XVIII, e para simplificar os requisitos formais dos testamentos,
que os praxistas tinham complicado, a doutrina insiste em que a regra mais importante para
a validade do testamento era a de que apenas se requeriam as formalidades expressamente
contidas nas palavras das Ordenações2267. A preocupação com a simplificação das
formalidades do testamento já vinha do direito canónico, que supria algumas delas no caso
de testamento feito perante o pároco; mas esta simplificação, muito favorável à Igreja, não a
admitia o direito racionalista, tendencialmente laicizante.
§ 1420. Estas formalidades gerais dos testamentos tabeliónicos eram dispensadas em
certos casos especiais2268. Nos testamentos feitos nas aldeias, onde normalmente houvesse
pouca gente, bastariam três testemunhas (cinco por direito comum) Ord. man.,4,76,ult. (que
não passou para as Ord. fil.). A razão de ser da exceção era a pequenez do lugar, não a
rusticidade das pessoas (mas isto era discutido) 2269. Em tempo de peste, também bastavam
três testemunhas, conforme o direito comum e a praxe corrente em todos os tribunais em
Portugal2270. Os testamentos feitos pelos pais aos seus filhos também valiam apenas com a

2262 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, ns. 26 e 40.
2263 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, 27; as mulheres sendo
excluídas propter fragilitatem sexus. Pelo direito canónico, eram, porém, admitidas segundo alguns
autores; outros entendiam, no entanto que isto só acontecia nos testamentos ad pias causas. Eram
admitidas nos codicilos, ibid..
2264 Podiam ser testemunha as pessoas que não estivessem expressamente proibidas, Pascoal

de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,11. Estavam-no as mulheres, exceto nos testamentos
feitos ao tempo da morte (Ord. fil., 4,80, 4), os impúberes, os furiosos, os mudos, os surdos, os cegos,
os pródigos, os herdeiro, seus filhos, pai e irmãos não emancipados (mas podiam ser testemunhas a
mãe, o avô, os irmãos emancipados, os criados e os legatários, Ord. fil.,4,85. 85); v. Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis [...], cit.,,3,5,11-12; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Testamentum”, n. 28. O monge não podia escrever testamento com deixas a um mosteiro; uma CL de
25 de Junho de 1766 proibia deixas ao que escreveu e seus familiares; mas foi revogada, Pascoal de
Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,12.
2265 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 31 (“presente e rogado”);

esta exigência não existia nos testamentos nuncupativos, nem nos militares, em que bastavam duas ou
três testemunhas, de qualquer modo presentes (ibid., n. 46; cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.,
cons., 104, dedicada aos testamentos militares).
2266 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 83, n. 2.

2267 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5, 6.nota.

2268 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,15.
2269 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 8, n. 5 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.,
cons. 117, ns. 2 e 3 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 39.
2270 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 42; formalidades, António

da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 81, ns. 1 e 2.

414
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
assinatura do pai e de duas testemunhas desta assinatura2271.
§ 1421. O testamento aberto era feito pelo testador, ou por um particular a seu rogo2272,
e igualmente assinado por cinco testemunhas, varões, maiores de 14 anos e livres. Era
subscrito pelo testador e por aquele que escreveu o testamento, que era tido como tabelião.
Ao contrário do testamento tabeliónico, cujo conteúdo fazia fé por ser escrito por um oficial
público, este devia ser lido diante das testemunhas, antes de estas o assinarem, para que
elas pudessem atestar a autenticidade do seu conteúdo2273.
§ 1422. O testamento cerrado ou místico era escrito e fechado pelo testador, ou por
outrem a seu mandado, e entregue pelo testador, na presença de cinco testemunhas varões,
maiores de 14 anos e livres, ao tabelião, que lhe perguntava perante elas se o testamento
era seu; se o testador dissesse que sim, o tabelião fazia um instrumento de aprovação,
apenso ao testador e assinado pelo testador e pelas as cinco testemunhas2274.
§ 1423. O testamento nuncupativo era uma declaração oral do testador acerca da
sucessão dos seus bens. Pelo direito justinianeu, era admitido em geral, embora com a
exigência de mais testemunhas, como um testamento de direito civil2275. Nas Ordenações
filipinas, a sua validade aparecia condicionada ao facto de ter sido feito na iminência da
morte e de o testador não se restabelecer2276. A generalidade da doutrina continuava, porém,
a entender que se podia testar nuncupativamente em qualquer altura, embora as
testemunhas devessem, neste caso, ser todas homens, segundo o regime geral do direito
comum2277. Neste caso, o testamento valia para sempre, isto é, enquanto não fosse
revogado2278. Como as suas exigências formais eram menores, a doutrina entendia que se
os testamentos não pudessem valer como escritos, por falta de forma, valeriam como
nuncupativo, se tivessem forma bastante para tal, já que a substância do testamento era a
declaração de vontade do testador e sua prova2279.
§ 1424. Próximo do testamento estava o codicilo, originariamente uma declaração sobre
a sucessão dos bens, complementar a um testamento e, por isso, não contendo instituição

2271Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 41; valeria como codicilo,
presumindo-se que continha cláusula codiciliar, Tomé Valasco, Allegationes […], cit., all.. 61, ns. 26-27;
formalidades, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 32, n. 1.
2272 Não podia ser um herdeiro aí instituído, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.

“Testamentum”, n. 78.
2273 V. Ord. fil.,4,80,3; cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,7.

2274 V. Ord. fil., 4,80, 1 e 2.; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n.
51.
2275 Cf. I.,2,10,14 – “Sed haec quidem de testamentis quae in scriptis conficiuntur. si quis autem

voluerit sine scriptis ordinare iure civili testamentum, septem testibus adhibitis et sua voluntate coram
eis nuncupata, sciat hoc perfectissimum testamentum iure civili firmunque constitutum”.
2276 Atenuava-se o formalismo, pois apenas se exigiam perante seis testemunhas, homens ou

mulheres. V. Ord. fil., 4,80,3. Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,9. A doutrina
também entendia que não se exigia a rogatio das testemunhas.
2277 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,9.

2278 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., a Ord. fil., 4,80,3; António Cardoso do Amaral,

Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 40.


2279 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 51 n. 2.

415
As sucessões.
de herdeiros2280. A eficácia dos codicilos estava limitada por esta sua natureza subsidiária: só
os podiam fazer os que pudessem testar; neles não se podia nem instituir herdeiro, nem
revogar uma instituição; bastavam quatro testemunhas, varões ou fêmeas, contando o que
escrevesse o documento (nas pequenas povoações, apenas três testemunhas). Como as
formalidades dos codicilos eram menores, podia-se inserir num testamento a cláusula
codiciliar, determinando que o testamento, se não pudesse valer como tal, valesse como
codicilo (v.g., “quero que o testamento valha de qualquer modo”). Como os codicilos tinham
as limitações antes referidas, nem tudo se salvava; mas, normalmente, isto permitia manter
os legados (mas não, claro, as instituições de herdeiros)2281
§ 1425. Havia ainda espécies chamadas privilegiadas de testamentos, que obedeciam a
regimes especiais de validade.
§ 1426. O testamento militar tinha uma antiga tradição no direito romano e vinha
regulado nas Ordenações (Ord. fil.,4,83). Podia ser feito pelos militares em campanha2282 e
caracterizava-se pela dispensa das formalidades ordinárias: bastavam duas ou três
testemunhas e dispensava-se a sua rogatio2283.
§ 1427. Também o testamento piedoso (ad pias causas, ad exoneradam conscientiam),
que se traduz essencialmente em legados a favor da alma, ou legados pios (missas,
esmolas, dádivas a instituições religiosas), embora pudesse conter legados profanos. Pelo
direito canónico, era válido só com duas ou três testemunhas2284, desde que escrito por mão
própria e selado com o selo do testador. Valia ainda que não contivesse instituição de
herdeiro2285, pois a sua finalidade era principalmente espiritual; e uma causa piedosa faria
valer uma disposição nula (cum cessat falsídia)2286. A opinião comum era a de que esta
validade não se estendia ao foro secular; mas muitos autores perfilhavam a opinião
contrária2287. Os juristas racionalistas e regalistas, como Pascoal de Melo, irão negar a sua
validade temporal2288.
§ 1428. O testamento de estrangeiros não era, em rigor, um testamento privilegiado. Só

2280 V. Ord. fil., 4,86; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, ns. 32 a 36,
47 e 55.
2281 António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 126, n. 4; sobre esta cláusula, Melchior Febo,

Decisiones [...], cit., dec. 13, n. 34, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,56 e 57.
2282 E, segundo alguma doutrina, pelos cavaleiros das ordens militares e, segundo opinião ainda

mais problemática, pelos clérigos e pelos doutores, v. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit.,
3,5,15.
2283 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 46; Álvaro Valasco,

Decisiones [...], cit., cons., 104, toda ela (com referência aos testamentos feitos em nau militar ou nas
fortalezas da Índia); Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,15.
2284 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”,, 43. Dispensava-se a rogatio,

cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 81., ns. 3 e 4.


2285 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons., 145.

2286 Cf. Diogo Marchão Themudo, Decisiones [...], cit., dec. 96, n. 60.
2287 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 67, per totam, especialmente ns. 1,6 e 7 (Bento
Pereira, Promptuarium [...], cit., 1885).
2288 A constituição de Alexandre III que o autorizara (no cap. Relatum 11 do tit. 3,26 De

testamentis das Decretais) nunca teria sido recebida pelas leis ou costumes de Portugal, Pascoal de
Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,17.

416
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
que se tinha que atender à lei relevante para determinar as suas formalidades. Em princípio,
esta era a lei do lugar em que o testamento era feito. Assim, os testamentos de portugueses
nas terras “dos mouros” deviam ser feitos segundo o costume do lugar ou, não sendo este
conhecido, segundo o ius gentium (duas testemunhas); as formalidades dos testamentos
feitos no mar eram reguladas pelo direito do porto a que o mar fosse adjacente (ou pelo ius
gentium se este fosse desconhecido)2289; os testamentos feitos em nau portuguesa eram
considerados testamentos militares; os testamentos de estrangeiros em Portugal obedeciam
ao direito português. Em qualquer dos casos, tinha que se atender à lei do lugar da situação
dos bens imóveis deixados, pois era por esta que se definia a validade das cláusulas
testamentárias a eles relativas (statutum unius regni non extenditur ad bona sita extra
territorium statuentium)2290.
§ 1429. Também o testamento dos cônjuges entre si, feito, como se dizia, “de mão
comum”, no qual eles mutuamente se instituíam herdeiros, não era um testamento
privilegiado, visto que requeria as solenidades ordinárias. A sua especialidade provinha de
um regime algo especial quanto à revogação. Qualquer um dos cônjuges podia, em princípio,
revogar a sua parte sem o conhecimento do outro, visto que, na realidade, os testamentos
eram dois, sendo lícito a cada um mudar de intenção. Em todo o caso, havia quem
entendesse que, nomeadamente se figurasse no testamento uma cláusula proibindo a
revogação, havia um condicionamento da deixa de um pela deixa do outro, uma espécie de
instituição sinalagmática, que impediria a revogação unilateral. Esta opinião, contudo, não
era comum, optando a doutrina pela regra geral da revogabilidade das deixas
testamentárias2291.
5.2.3 Requisitos substanciais do testamento.
§ 1430. Para além destas solenidades externas, condicionavam a validade do
testamento certas circunstâncias substanciais, relativas à vontade do testador, como
essência do testamento2292. Estas circunstâncias tinham que ver com a capacidade
testamentária ativa, com a possibilidade de querer e de saber o que se queria, com a
liberdade de decisão do testador e com o requisito de instituição de herdeiro ou de
deserdação expressa, que fora herdado da fase mais antiga do direito romano2293.
§ 1431. A capacidade testamentária ativa2294 era recusada2295 ao furioso e afins (salvo

2289 Nos limites das navegações portuguesas, vigorava o direito português, Álvaro Valasco,
Decisiones [...], cit., cons., 182 n. n. 17; mas podia aplicar-se o direito especial dos testamentos feitos
em lugar ermo (Ord. man. 4,76, ult.), ibid., n. 18.
2290 Sobre estes casos, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons., 182, ns. 2 a 19..

2291 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons., 182, n. 7; Pascoal de Melo, Institutiones iuris

civilis [...], cit., 3,5,18. Note-se que o testamento conjunto dos dois cônjuges, escrito pelo marido, e em
que eles se instituem mutuamente herdeiros era nulo na parte da instituição do marido, porque o
herdeiro não podia escrever o testamento, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Testamentum”, n. 79. Sobre os testamentos em mão comum dos cônjuges, Bento Pereira,
Promptuarium [...], cit., “Testamentum”, n. 1870.
2292 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,19.

2293 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,19.

2294 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 6 ss..

2295 V. Ord. fil.,4,81.

417
As sucessões.
nos intervalos lúcidos)2296,
aos impúberes2297, ao pródigo (declarado judicialmente como
tal) , ao surdo mudo de nascença ou ao que não possa exprimir o nome do herdeiro2299,
2298

ao filho família2300, ao escravo2301 ou aos cativos de guerra, aos condenados em pena que
importasse a morte civil2302, aos usurários que não prestassem caução de restituir as
usuras2303; aos excomungados (pelo menos, aos públicos), pois estão excluídos da
comunidade, aos banidos (degredados, privados aquae et ignis2304); aos hereges, pois os
seus bens eram ipso facto tidos como confiscados2305; aos infames2306; aos condenados por
lesa majestade2307. Em contrapartida, podiam testar os estrangeiros2308, como se disse.
§ 1432. De direito comum, os monges professos com três votos não podiam testar, pois
perdiam o domínio dos seus bens2309. Isto era confirmado pelas Ordenações (Ord. fil.,4,81,4,
que estabelecia esta proibição para os que tivessem feito os três primeiros votos (pobreza,
castidade e obediência)2310. No entanto, os direitos de muitos reinos (v.g., França, Espanha e
Portugal) autorizavam os restantes clérigos a testar de seus bens, mesmo os adquiridos em

2296 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 7 (mentecapto, fatuus, v.
Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 97, ns. 1 ss.). Sucediam, não os herdeiros ab intestato
do furioso, mas os herdeiros ab intestato do testador, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Haereditas”, n. 5.
2297 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 10: 14 anos nos rapazes

e 12 nas raparigas. Sucediam os seus herdeiros legítimos.


2298 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 12.

2299 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, ns. 8 e 9. Os cegos podiam

testar, mas exigia um número maior de testemunhas: sete ou oito testemunhas, além do notário,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 24.
2300 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 11. Só podia dispor dos

bens castrenses ou quase castrenses. V. Ord. fil.,4,81,3; Tomé Valasco, Allegationes […], cit., all. 29,
ns. 114 ss..
2301 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 16.

2302 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 13: degredados, cárcere
perpétuo, morte natural (embora a prática, segundo diz, fosse a de deixar o condenado fazer
testamento antes da execução, se não houvesse confisco dos bens). Aos que fossem feitos
prisioneiros pelo inimigo aplicava-se o regime romano do postlimínio. Pascoal de Melo afasta estas
causas de incapacidade testamentária (Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,21).
2303 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 14.

2304 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 15.

2305 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 18.
2306 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 21.
2307 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 22.

2308 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,21.
2309 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 16; António da Gama,
Decisiones […], cit., dec. 308.
2310 Mas valia o testamento feito antes (e, por isso, o dos noviços). Cf. António Cardoso do

Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 16, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,
24. Logicamente, este testamento não podia ser revogado depois dos votos. Discutia-se se a entrada
em religião rompia o testamento quando fosse imprevista no momento da feitura deste e acompanhada
da intenção de plena dedicação à vida religiosa, cf. ibid..

418
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
razão do ofício ou com os proventos deste2311. Esta possibilidade de dispor de todos os bens,
independentemente da sua origem, não provinha do direito canónico primitivo, mas antes se
explicava pela conveniência em evitar litígios sobre a origem dos bens que, no baixo clero,
teriam pouco relevo económico. Já nos testamentos dos bispos, se restringia a sua
capacidade de disposição aos bens hereditários e adquiridos a título pessoal e, ainda assim,
só com autorização do Papa2312, não se estendo, assim, aos bens obtidos em razão do ofício
(o que se presumia nos seus bens)2313. Os cavaleiros das ordens militares podiam testar (de
acordo com uma bula Júlio II, de 12.12.1505). Os de Malta, só com licença do mestre e do
rei2314.
§ 1433. A liberdade de testar era essencial num ato destinado, justamente, a dar conta
das disposições livres do testador quanto aos seus bens2315. Por isso, era nulo o testamento
extorquido pela força, medo ou dolo mau, sendo privado da herança, como indigno, aquele
que impedisse alguém de testar, não chamando as testemunhas ou o tabelião2316. Também
era nulo o testamento daquele que fosse induzido a fazê-lo por blandícias ou carinhos
exagerados e dolosos, por pedidos constantes ou por ameaças2317.
§ 1434. As restrições aos pactos sucessórios ou à sua obrigatoriedade em relação aos
que os subscreviam também tem a ver com a salvaguarda desta liberdade de testar. De
facto, pelo pacto sucessório alguém obrigava-se a dispor de certa maneira dos seus bens, a
revogar um testamento já feito ou a não o revogar2318. Isto comprometia o princípio de que a
vontade do testador devia manter-se livre e mutável (ambulatoria) até à morte. Daí que o
direito dispusesse que os pactos sucessórios (e testamentos em mão comum, que
implicitamente continham o pacto de que cada parte não podia modificar o testamento sem o

2311 V. Ord. fil.,2,18,5. Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 95, ns. 19-21;

Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 74, n. 13; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit.,
3,5,23. O testamento regia-se pelo direito canónico, quanto às formalidades (duas testemunhas,
perante o pároco). Para valer no foro secular, tinha que obedecer às formalidades do direito civil; cf.
Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons., 74; Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 7, n. 30.
2312 Cf. Diogo Marchão Themudo, Decisiones [...], cit., dec. 90; Pascoal de Melo, Institutiones iuris

civilis [...], cit., 3,5, 23.


2313 Sobre os testamentos dos cardeais, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,26.

Sobre os testamentos régios, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,27 (podiam testar
os seus bens particulares, com as formalidades ordinárias.)
2314 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,25.

2315 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,28.

2316 V. Ord. fil., 4,84, pr. e § 3, ns. 1, 2 e 3; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.

“Testamentum”, ns. 111-112.


2317 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., pt. 1., dec 25; dec. 68, ns. 5 a 7 (“Testamentum

annulatur, quando blandiciae habent admistum dolum, vel sunt admitxtae mine, aut verbera … Idem est
dicendum, si intervenient preces importunae, vel seduxio uxoris per mariti suasiones”); Manuel
Barbosa, Remissiones […], cit., à Ord. liv. 4, 84.
2318 Os pactos sucessórios ou eram de sucedendo ou de non sucedendo. Pelo pacto de

sucedendo convencionava-se que alguém fosse instituído herdeiro por outro; pelo de non sucedendo,
alguém se obrigava a renunciar uma certa herança futura (Ord. fil., 4,70, com fonte nos direitos
justinianeu e canónico). Para os juristas jusracionalistas, estes pactos eram tendencialmente válidos.
Havia ainda o pacto acerca de herança de pessoa viva, que era considerado imoral, pois se entendia
fazia perigar a vida dessa pessoa (Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 164, per totam).

419
As sucessões.
consentimento da outra) só valiam como disposições mortis causa, mantendo-se a vontade
do testador ambulatória até à morte. A única exceção admitida era a de pactos
sinalagmáticos, em que a promessa de testar de certa forma tivesse tido uma
contrapartida2319. Para além disto, o direito dispunha que se não considerasse perjuro o
testador que alterasse o testamento, tendo jurado não o fazer.
5.2.4 A instituição de herdeiro.
§ 1435. Para o direito romano, incluindo a sua última fase, a instituição de herdeiro era
da essência do testamento2320. O direito comum acolheu este princípio, que, subvertidas as
funções políticas que o testamento tinha na cultura romana pré-clássica e clássica, não fazia
já grande sentido. Mas é preciso esperar pela segunda metade do séc. XVIII para que a
instituição de herdeiro perca este papel central no direito testamentário2321.
§ 1436. Podiam ser instituídos herdeiros2322 todos aqueles que o direito não excluísse da
capacidade testamentária passiva (factio passiva testamenti)2323. O testador podia dispor
livre e plenamente – v.g., preterindo familiares a favor de estranhos2324 - de todos os seus
bens, salvaguardada, porém, a parte que devesse ficar para os herdeiros forçosos (v.
5.3.1)2325. Podiam ser instituídos herdeiros a alma ou os pobres, ficando a distribuição a
cargo do testamentário2326.
§ 1437. A instituição de herdeiro (tal como a deixa de legados) podia ser feita a termo (a

2319 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,49.


2320 I.,2.20 De legatis, 34: “Ante heredis institutionem inutiliter antea legabatur, scilicet quia
testamenta vim ex institutione heredum accipiunt et ob id velutii caput atque fundamentum intellegitur
totius testamenti heredis instituto”. Para os juristas jusracionalistas, esta regra devia-se a uma
superstição dos romanos, sem um suporte racional; v. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons., 68, n.
2; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,29.
2321 “A instituição de herdeiro não é da essência do testamento”, afirma enfaticamente Pascoal de

Melo (Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,29), abonando-se nos autores do usus modernus.
2322 Usava-se a palavra hereus (hereo) para designar o herdeiro ou o proprietário alodial.

2323 Os incapazes de serem herdeiros eram: os religiosos regulares (Ord. fil.,4,81,3 e 4; poderiam,

no entanto, receber uma renda vitalícia para alimentos, além de legados), os proscritos ou
desnaturalizados, os hereges (Ord. fil.,5,1,pr.), os apóstatas (Ord. fil.,4,81), os filhos e netos de
condenados por lesa-majestade (Ord. fil.,5,6,13; mas não as filhas), os clérigos instituídos por outros
clérigos (Ord. fil.,2,18,7), os colégios e corpos, quer seculares, quer eclesiásticos, de mão morta (cf.
Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2,5,31, sendo a doutrina anterior mais permissiva,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Haereditas”, n. 18), os cativos (que se presumiam
mortos, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Haereditas”, n. 52). Os mentecaptos e os
pródigos podiam ser instituídos, mediante aceitação do curador (cf. António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., v. “Haereditas”, n. 21). A capacidade hereditária era referida ao momento do deferimento da
herança, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,37; no direito romano, a aferição era
mais complicada, abrangendo vários momentos e isto reflete-se ainda na doutrina do direito comum (cf.
Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 63, n. 4).
2324 Note-se que o testamento que instituísse um espúrio podia ser querelado por um herdeiro

legítimo preterido, Gama dec. 143, n.1.


2325 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,29 ss.. Uma lei de 9.9.1769

(revogada por um dec. de 17.7.1778) limitou o direito de ser instituído herdeiro a quem fosse parente
agnado do testador até ao 4º grau.
2326 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Haereditas”, n. 19.

420
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
quo e ad quem) ou sob condição, desde que esta não fosse inepta ou irracional, caso em
que não obrigava o herdeiro ou legatário2327. Não valiam como tal as condições consideradas
desonestas, por limitarem a liberdade natural (como as de não casar, de se manter viúvo, de
viver castamente)2328, que tornavam nulo o testamento, sendo apostas à instituição de
herdeiro2329.
5.2.5 A preterição de herdeiro.
§ 1438. No direito português, tal como no direito comum, todos os descendentes de
qualquer idade, categoria (mesmo os póstumos2330) e sexo, quer estivessem sob a patria
potestas (haeredes sui), quer tivessem sido emancipados, deviam ser expressamente
referidos no testamento, tanto pelo pai, como pela mãe, fosse para os instituir como
herdeiros, fosse para os deserdar. Se eles fossem preteridos ou deserdados sem justa causa
ou sem declaração desta, o testamento era nulo, embora ficassem firmes os legados que
não excederem a terça dos bens (quota disponível)2331.
§ 1439. Isto valia igualmente para os outros herdeiros forçosos (v. caps. 5.3.1.1 e ss.):
pais e irmãos (estes só se fossem preteridos por pessoa infame, Ord. fil.,4,90,1). Esta regra
não se aplicava aos testamentos dos clérigos, pois estes dispunham livremente dos bens,
salvas as legítimas2332, nem aos dos militares, nos bens castrenses e quase castrenses2333.
§ 1440. Um irmão podia preterir outro irmão, desde que não fizesse seu herdeiro uma
pessoa infame, caso em que esse irmão devia ser instituído ou deserdado, se houvesse
causa para tal (maquinação contra a sua vida; acusação crime do irmão contra o testador;
maquinação para lhe fazer perder todos os seus bens; trato sexual com a mulher do
testador)2334.

2327 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 96; Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,32. O legado ciente de coisa alheia obrigava o herdeiro a adquirir
essa coisa a entrega-la ao legatário, cf. ibid., n. 98; o testador não revogava o legado penhorando ou
hipotecando a coisa, apenas obrigando o herdeiro a levantar o ónus; mas entendia-se que a alienação
da coisa legada correspondia à revogação do legado, cf. ibid., n. 103.
2328 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,34. Mas a doutrina admitia a instituição

da esposa, com a condição de não voltar a casar (Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 87, n. 15).
2329 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,36.

2330 O testamento que excluísse os nascituros era nulo (“in quo praeteritus venter, hoc est proles

in ventre, est nullius momenti”), Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 124, n. 44. No testamento em
que se tivesse preterido um filho póstumo, caíam as instituições de herdeiro, mas mantinham-se os
legados se o testador sabia que a mulher estava prenha, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Testamentum”, n. 60.
2331 V. Ord. fil., 4,82, § 1 e 5; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n.

62; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,38 3. Todavia, não era necessária a
instituição especial dos filhos quando o pai dispunha da terça em favor de um dos filhos, porquanto se
entendia que com este facto ele não preteria os outros, mas os instituía a todos quanto ao restante,
Ord. fil.,4,82; cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], dec. 78, n. 1.
2332 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 64. Esta exceção não era

pacífica (Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 88, ns. 2,4 e 6).
2333 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 65.

2334 V. Ord. fil.,4,90,€ 2, inspirado na Nov. 22, cap. 47.

421
As sucessões.
5.2.6 A deserdação.
§ 1441. Para além de não poderem ser preteridos, os filhos também não podiam ser
deserdados, a não ser pelas causas previstas nas Ordenações (Ord. fil.,4,88, cuja fonte era a
Nov. 115)2335 , a saber: injúria aos pais (§§ 4 e 5); acusação ou denúncia criminal contra eles
(§§ 6 e 11); convívio com feiticeiros (§ 7); maquinação contra a vida dos pais (§§ 8 e 9);
incesto com a madrasta ou com a manceba do pai (§ 10); recusa de fiança ou resgate ao pai
preso ou cativo (§§ 12 e 16); impedimento a que o pai faça testamento (§ 13); 10); recusa ou
negligência em cuidar do pai furioso ou enfermo (§§ 14 e 15); heresia (§ 17); meretrício,
concubinato público ou casamento sem consentimento paterno de filha menor de 25 anos (§
1)2336. Todas estas causas valiam também a favor de outros ascendentes poderem deserdar
descendentes (Ord. fil.,4,88,18). Eram, por isso, herdeiros forçosos (ou legitimários), com
direito a dois terços da herança (cf. 5.3.1.1).
§ 1442. Os filhos podiam deserdar os pais por sete causas, indicadas na Ord. fil.,4,89,
inspirada na mesma Novela de Justiniano (Nov. 115, cap. 4): maquinações contra a vida dos
filhos (§ 1); estupro da mulher ou barregã do filho (§ 2); impedimento a que o filho fizesse
testamento (§ 3); envenenamento pelo pai da mãe de seu filho, ou por esta daquele (§ 4);
recusa, negligência no cuidar do filho furioso (§ 5); recusa em resgatar o filho (§ 6); heresia
do pai (§ 7). 2337. As causas da deserdação deviam ser declaradas no testamento, e
provadas pelo herdeiro instituído (Ord. fil.,4,82,2).
§ 1443. Também os irmãos não podiam ser deserdados a favor de pessoa infame (Ord.
fil.,4,90, 2).
§ 1444. Alguns autores defendiam que os clérigos podiam deserdar pai e mãe, mas esta
opinião não era a comum.
5.2.7 As substituições.
§ 1445. A matéria das substituições tinha como fonte o direito romano, em que era uma
matéria complicada e cheia de subtilezas. Foi nele que se inspirou a Ord. fil.,4,87. As
substituições eram a instituição de herdeiro, para o caso de o primeiro instituído não poder
aceitar a herança (“em segundo grau”, Ord. fil.,4,87)2338. Tinha cinco espécies, a saber.
§ 1446. A substituição vulgar era a indicação de um herdeiro em segundo grau se o
primeiro instituído não o pudesse ser, por não ter aceitado a herança ou por não o ter podido
fazer (por pré-morte, por incapacidade) (Ord. fil.,4,87,1)2339. A substituição recíproca dava-se
quando o testador dispunha que os vários herdeiros instituídos se substituíssem entre si, no
caso de a instituição se frustrar em relação a qualquer deles (Ord. fil.,4,87, 5). A substituição
pupilar era aquela em que o testador nomeava um outro herdeiro para substituir o seu filho
pupilo (varão menor de 14 anos ou fémea menor de 12) para o caso de este falecer em
idade pupilar (Ord. fil.,4,87, 7). A substituição exemplar era a que um ascendente fazia para

2335 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,43.
2336 Sobre a deserdação no direito comum, v. Julius Kirschner, “Baldus de Ubaldis on
disinheritancecit..
2337 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 88, ns. 2,4,6.

2338 Fontes doutrinais: Bento Pereira, Promptuarium […], cit., n. 1817.

2339 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 126, ns. 4 ss.; Álvaro Valasco, Decisiones [...],

cit., cons., 53, n. 3. Em geral, Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 1823.

422
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
o caso de o instituído, naturalmente impedido de fazer testamento (furioso, mentecapto,
surdo-mudo), morrer enquanto esse impedimento durasse (Ord. fil.,4,87,11). Finalmente, a
substituição compendiosa era aquela que o testador fazia para o caso de morte de um
herdeiro (Ord. fil.,4,87,12)2340. Apesar de a lei não a referir, a doutrina reconhecia ainda como
válida a substituição fideicomissária, em que o testador autorizava o primeiro instituído a ser
substituído, no caso de se verificar ou não certa condição ou de transcorrer um certo período
de tempo (ex.: “Deixo os meus bens a Pedro, que os passará a seus filhos, quando tiverem
18 anos”; ou “que os passará a Paulo, se este não for para a Índia”).
5.2.8 A interpretação dos testamentos.
§ 1447. A vontade do testador era o fundamento do testamento, devendo ser
rigorosamente cumprida, a não ser que fosse imoral ou ilegítima2341. Esta centralidade da
vontade também explicava as normas especiais de interpretação dos testamentos, que devia
procurar atingir, de forma mais plena do que nos outros atos2342, essa vontade,
reconstruindo-a a partir de indícios e conjeturas verosímeis2343, dentro daquilo que
conduzisse a soluções legais2344. Por outro lado, sendo o testamento um ato de interesse
público, devia ser feito o possível para manter o testamento válido2345. Daí que, sendo
alguma cláusula inválida ou insanavelmente obscura, devia procurar-se reduzir o testamento
às cláusulas válidas, mantendo-o de pé2346.
5.2.9 Testamentos nulos, rotos, inoficiosos e vazios.
§ 1448. Em todo o caso, a validade do testamento podia não ser possível. Nesses
casos, o testamento dizia-se nulo, roto (ruptum), inoficioso e vazio (destitutum)2347.
§ 1449. O testamento dizia-se nulo quando estivesse em absoluto e desde o início
destituído de todo o efeito ou por incapacidade (inabilidade) do testador (Ord. fil.,4,81), ou
por omissão das solenidades prescritas (Ord. fil.,4,80), ou por falta de instituição ou
deserdação não justificada dos filhos (Ord. fil.,4,82,2) ou dos pai e mãe (Ord. fil.,4,82,1 e
4,91). Nestes casos, o testamento podia ser atacado por um herdeiro legítimo por meio de
uma ação declaratória de nulidade2348.

2340 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 126, n. 10.
2341 Encontram-se exemplos como: tratar o seu cadáver de forma ímpia (por exemplo, deitando-o
ao mar), desobrigar o testamenteiro da prestação de contas, fazer alguém herdeiro com a condição de
este doar os bens a um filho espúrio do testador, como forma de contornar a proibição de instituir
herdeiros os filhos espúrios, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Haereditas”, n. 10.
2342 “Plenior quam in donationibus et contractibus”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.

“Testamentum”, n. 75.
2343 “Ex verissimile et quae sunt verisimilia in ultimis voluntatibus”, António da Gama, Decisiones

[...], cit., dec. 224, n. 14.


2344 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, 101; “[testamentum ] videtur

se conformare cum jure communi”, António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 206, n. 26.
2345 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 17, obs. 6 ss. (“publice interest [est]

testamenta sustineri et conservari”).


2346 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 76.

2347 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 56.

2348 E não pela petição dos bens contra o testamento (bonorum possessio contra tabulas), nem

423
As sucessões.
§ 1450. O testamento roto era aquele que se tornava nulo pela mudança do estado do
testador para um que não lhe permitisse testar (v.g., o de escravo2349) ou, muito mais
frequentemente, pelo nascimento e consequente preterição de um póstumo2350 ou pela
feitura de outro testamento, solene e perfeito (Ord. fil.,4,84,2). A revogação de um
testamento por outro era possível mesmo que o primeiro contivesse uma cláusula de não
revogação, pois a vontade do testador era deambulatória até à morte (era a sua última
vontade)2351.
§ 1451. O testamento inoficioso (i.e., que não cumpre o seu ofício ou função) era o
testamento feito validamente, em que aqueles a quem era devida a legítima tivessem sido
deserdados ou preteridos por causa justa mas falsa2352. Podia ocorrer entre pais, filhos e
irmãos, que eram os que tinham legítima2353. Uma vez rescindido o testamento, pela querela
de testamento inoficioso, somente se viciava a instituição de herdeiro, ficando firmes os
legados e outras cláusulas testamentárias (cf. Ord. fil.,4,90).
§ 1452. Dizia-se (destituctum) aquele em que não fosse instituído herdeiro2354 ou em que
o instituído não aceitasse a herança ou não a pudesse receber, devido a morte ou não
cumprimento da condição. Este testamento, tal como o nulo, não tinha qualquer valor, tanto
quanto à instituição, como quanto aos legados e outras cláusulas2355. Semelhante era o caso
de o herdeiro, depois de feito o testamento, ter cometido um ato infame contra o testador
(como ter relações íntimas com a sua mulher ou viúva), pois então se tornava indigno da
herança, a qual ficaria para o fisco2356.
§ 1453. Discutia-se sobre se a quota deixada a herdeiros ou legatários não válidos (ou
que não tivessem aceitado a herança) acrescia à dos herdeiros válidos (direito de acrescer)
ou se, pelo contrário, se deferia pela ordem de sucessão ab intestato. O direito de acrescer
explicar-se-ia por repugnar ao princípio de que ninguém podia morrer em parte testado e em

pela querela de testamento inoficioso, que ambas supunham um testamento válido. Estas distinções
quanto às ações disponíveis perderam o interesse no direito comum tardio, que não obrigava a indicar
o nome da ação (v. 7.1.3).
2349 Aquele que ingressava numa ordem religiosa não sofria uma diminuição da capacidade

jurídica e, por isso, o testamento por ele feito antes de professar não se tornava roto; cf. Álvaro
Valasco, Praxis partitionum […], cit., cap. 16, n. 17.
2350 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 59; ou legitimação de um

natural ou espúrio, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 73.
2351 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 66-69 (“voluntas testatoris

est deambulatoria usquem ad extremum vitae exitum”). A doutrina obrigava, no entanto, a que, se o
primeiro testamento contivesse essa cláusula (ou fosse garantido mediante a invocação do credo, do
padre nosso ou de fórmula religiosa semelhante (“nisi in eo scribantur articuli fidei auto ratio dominica
vel similia “), o testamento revogatório o referisse expressamente (“não obstante tal testamento e tais
palavras”). Cf. ainda, António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 209, n. 2.
2352 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 70.

2353 Nos irmãos apenas no caso da sua preterição por pessoa infame a dos irmãos, só em certos

casos, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 90.
2354 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons., 165, ns. 2 ss..

2355 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,5,54. Mas, se fosse instituído um herdeiro

incapaz ou que morresse antes do testador, e outro fosse instituído para o “resto da herança” este
herdava tudo, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Haereditas”, n. 17
2356 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Haereditas”, n. 51.

424
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
parte intestado2357. Pascoal de Melo é de opinião de que o direito de acrescer não tinha sido
recebido e que a regra testatus não tinha nenhum fundamento racional2358. Mas a doutrina
anterior admitia esse direito2359.
5.2.10 A execução dos testamentos.
§ 1454. A execução dos testamentos2360 competia aos testamenteiros nomeados pelo
testador e, subsidiariamente, aos herdeiros. Segundo o direito canónico, os bispos
supervisionavam a execução dos testamentos2361, tarefa que, por direito régio, competia aos
provedores das comarcas e aos juízes dos resíduos2362. O testamenteiro podia não aceitar a
missão, tendo-a aceite, não a podia abandonar2363.
§ 1455. O testamenteiro devia executar o testamento no prazo indicado pelo testador
(Ord. fil.,1,62,pr.) ou, na falta de prazo deste, dentro de um ano e um mês a contar da data
da morte. Devia obrigatoriamente prestar contas e a fazer inventário da herança. Podia ser
removido, pelo juiz, no caso de faltar às suas obrigações dolosamente. Podia ter direito a
uma recompensa, estabelecida pelo testador, embora os seus serviços fossem por natureza
gratuitos, pois eram prestados em nome da amizade2364.
5.2.11 A herança.
§ 1456. A herança era a sucessão universal dos bens (coisas, direitos e deveres não
pessoais) de um defunto, deduzido o dinheiro devido a outrem (aes alienum) 2365.
§ 1457. Antes de ser aceite pelos herdeiros, a herança dizia-se jacente (v. Ord.
fil.,3,80,1), constituindo uma universalidade (como tal podendo ser vendida)2366, até aceite
considerada como res nullius. Representava a pessoa do defunto e, como tal, podia
proceder-se em juízo contra ela, como se procedia contra um pupilo (dando-lhe curador2367.
5.2.12 A aceitação da herança.
§ 1458. Pelo direito comum, na esteira do que acontecia no direito romano, os herdeiros
do seu (haeredes sui, os que estavam sob a patria potestas do de cuius) não tinham que

2357 Cf. I.,2,14,4: “neque enim idem ex parte testatus et ex parte intestatus decedere potest”.
2358 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit. 3,6,23.
2359 Cf., v.g., Álvaro Valasco, De partitionibus […], cap. 17. n. 31.
2360 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., v. “Testamentum”, ns. 1931 ss..
2361 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 105.

2362 V. Ord. fil.,1,62,23; cf. António Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., pt. 1, cap. 49 (Juízo
dos resíduos e das capelas; causas pias, cumprimento dos legados pios e bens dos ausentes); Pascoal
de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,6,14 e 16.
2363 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Testamentum”, n. 107; sobre o regime das

testamentarias, ibid., ns. 109 ss.


2364 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., v. “Testamentum”, ns. 1931 ss.; Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit. 3,6,16.


2365 “Haereditas est successio in universum ius, quod defunctus habui tempore mortis, António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Haereditas”, ns. 1 e 8.


2366 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Haereditas”, n. 9.

2367 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Haereditas”, n. 14; Álvaro Valasco,

Decisiones [...], cit., 68, ns. 10 a 15.

425
As sucessões.
aceitar a herança (adire haereditatem), recebendo-a ipso iure2368. Já os outros (haeredes
extranei) tinham que a aceitar, para que ela se lhes transmitisse2369.
§ 1459. A herança entendia-se aceite pela prática de qualquer pacto ou contrato sobre
bem que lhe pertencesse2370 (por “se agir como herdeiro”2371). A herança podia ser aceite
puramente ou sob condição (v.g., se for solvável). Também podia ser aceite no todo ou
apenas em parte, pois não fora recebida no direito português a regra romana nemo pro parte
testatus et pro parte intestatus decedere potest2372. Os incapazes aceitavam a herança pelos
seus representantes; o filho família podia aceitar por si, pedindo antes autorização ao pai2373.
O prazo para aceitar a herança era marcado pelo juiz a pedido dos credores. Decorrido o
prazo, a herança tinha-se como repudiada, quando pedida pelo herdeiro substituto; por
aceite, quando pedida pelos credores ou legatários2374.
§ 1460. A herança não aceite era devolvida ao herdeiro legítimo seguinte, não passando
aos herdeiros do herdeiro que não a aceitara, pois nunca tinha sido dele. Salvo se este não a
tivesse aceitado por alguma dúvida em que fosse justo dar um tempo de reflexão e,
entretanto, tivesse morrido. Sucedia o contrário se o herdeiro fosse haeres sui, pois aí não
era necessária a aceitação, ficando então a herança, não aceite nem repudiada, para os
filhos e, falecidos estes, para os seus herdeiros2375. O herdeiro podia repudiar a herança,
mas não depois de a ter aceitado2376.
5.2.13 A situação jurídica do herdeiro.
§ 1461. Uma vez aceite, a representação da pessoa do defunto passava para o
herdeiro2377, que respondia pelo património hereditário, tanto nas vantagens como nos
inconvenientes. Assim, podia usar dos direitos do defunto em vez dele, desde que não
fossem direitos pessoais e, por isso, intransmissíveis; competiam-lhe todas as ações do
defunto, desde que a natureza da ação o permitisse; sendo haeres sui aproveitava a posse
do de cuius2378; substituía o defunto nas suas posições contratuais2379; respondia, em

2368 O mesmo aconteceria com a Igreja, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 109, n.
4.
2369 Pascoal de Melo já dá esta distinção como supérflua, Pascoal de Melo, Institutiones iuris
civilis [...], cit., 3,6,4.
2370 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “testamentum”, n. 94.

2371 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt.1. dec. 61, ns. 1 ss..

2372 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 134, n. 5.

2373 Se este a negasse, adquiria-a sem mais, Ord. fil.,4,98,3.

2374 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,6,10; sobre o tempo para aceitar e

repudiar, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons., 96.


2375 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Haereditas”, n. 6.

2376 V. Ord. fil.,4,87. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Haereditas”, n. 49..

2377 V. Ord. fil.,4,48,3.


2378Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Haereditas”, n. 15; por ser como que a
pessoas do de cuius; já o herdeiro estranho não aproveitava a posse do falecido (Álvaro Valasco,
Decisiones [...], cit., cons., 126, ns. 2 e 3) (v. cap. 4.3.1).
2379 Era obrigado a manter o locatário, o que não acontecia com o legatário (que herdava as

coisas e não a posição jurídica do testador), António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Haereditas”,
n. 14.

426
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
princípio, pelas dívidas, pelos legados e pelas despesas do funeral, na parte correspondente
à quota da herança que, como herdeiro, lhe coubesse (responsabilidade parciária)2380 2381;
devia cumprir as dívidas de alimentos o de cujus2382; embora não respondesse pelos delitos
do defunto, respondia pelos danos que decorrem desses delitos2383 e por aquilo em eles o
tivessem beneficiado. Para além disso, tinha que cumprir as instruções do defunto, a não ser
que tivesse justa causa para não o fazer2384.
§ 1462. Os herdeiro ficavam obrigados plenamente pelas dívidas da herança. Podiam,
porém, requerer o benefício de inventário2385, possibilidade introduzida por Justiniano de o
herdeiro limitar a responsabilidade pelas dívidas dela ao montante de ¾ dos bens herdados
(reservando para si a quarta Falcidia)2386. Os juristas jusracionalistas, em contrapartida,
defendiam que o herdeiro nunca respondia ultra vires hereditatis, pelo que o pedido de
inventário seria apenas uma cautela recomendada pela prudência, sobretudo porque, no
foro, ainda dominava a anterior doutrina da responsabilização plena do herdeiro pelas
dívidas da herança2387. Já os legatários não respondiam pelas dívidas do defunto.
§ 1463. O inventário da herança era obrigatório para os que administrassem bens
alheios e sempre que houvesse filhos menores ou herdeiros incapazes. Era da competência
oficiosa do juiz dos órfãos e, no caso de herdeiros incapazes, dos juízes ordinários (Ord. fil..,
1,78,7; 1,79,13; 1,88,8.
5.2.14 Os legados.
§ 1464. O direito pátrio que regulava os legados era, basicamente, o direito comum, que
já influenciara muito o direito testamentário das Siete Partidas (v. Part. VI, tit. 9)2388.
§ 1465. A regra era a plena liberdade de fazer legados, salva a quota dos herdeiros
forçosos2389. Podiam fazer legados os que podiam testar e recebê-los os que podiam receber
heranças2390. Os legados mantinham-se, apesar da preterição dos herdeiros ou deserdação
sem causa, ou mesmo que o testamento fosse destituto, mas não no caso de nulidade do

2380 No caso das dívidas ao fisco, a responsabilidade era agravada, v. Ord. fil.,2,52,5.
2381 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Haereditas”, ns. 25 a 28.
2382 Cf. Diogo Marchão Themudo, Decisiones [...], cit., dec. 28, ns. 7 e 11.
2383 Cf. Diogo Marchão Themudo, Decisiones [...], cit., dec. 23, n. 4.
2384 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Haereditas”, ns. 23, 40 e 41.

2385 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Haereditas”, n. 35.
2386 Pedia-se no prazo de 30 dias a partir da notícia da instituição do herdeiro. A lei Falcidia
datava de 41 a. C.
2387 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,6,9-10. Informa que, de qualquer modo, a

praxe dos inventários era pouco rigorosa (cita Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons., 52.
2388 Fontes doutrinais, Bento Pereira, Promptuarium iuridicum [...], cit., ns. 990 a 1011.

2389 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,7,3.

2390 Embora não pudesse instituir os filhos espúrios como herdeiros, podia fazer-lhes legados a

título de alimentos, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “legatum”, n. 3. Se não pudessem ser
tidos como tal, esses legados ficavam para o fisco, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“legatum”, n. 18.Também valia o legado feito a um religioso, pois se entendia que se destinava a
alimentos ou a atos de culto, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Legatum”, n. 4.

427
As sucessões.
testamento por falta de forma2391.Já os legados a pessoas que morressem antes do
testador, mas depois do testamento, eram tidos como não escrito2392. Frequentes eram os
legado de causas pias consistindo em deixas a bem da alma do testador (em louvor de Deus
ou dos santos, para a salvação da alma, à Igreja ou lugar pio, aos pobres, a bem de lugares
públicos, como pontes, fontes, caminhos, etc.)2393. O legado torpe ou instituído com palavras
insultuosas não valia (cf. ibid., v. “Legatum”, n. 32).
§ 1466. O legado incluía os crescimentos da coisa (mesmo a casa que se construiu
sobre o solo legado)2394 e as coisas acessórias (casa com o seu aido; água com os seus
cano; servidões; loja com os seus débitos, crédito e mercadorias2395.
§ 1467. O legado condicional só era devido, cumprida a condição2396. A condição
impossível, imoral ou contra a lei tinha-se por não escrita, valendo o legado como firme2397. O
legado com a condição de nunca ser alienado, equivalia a um fideicomisso familiar, em que
os bens ficavam perpetuamente na família do legatário2398.
§ 1468. Independentemente da revogação do testamento, eram tidos como revogados
os legados feitos a pessoa em relação à qual se tivesse gerado uma inimizade superveniente
ou que tivesse vindo a caluniar o testador (por exemplo, instaurando contra ele uma ação
sobre o seu status2399). O legado extinguia-se perecendo a coisa legada; mas não se o
testador tivesse vendido a coisa, caso a que o herdeiro ficava obrigado pelo seu valor2400. O
legado de uma coisa alheia, obrigava o herdeiro pelo preço2401.
§ 1469. O legado podia ser repudiado; no caso de legado condicional, só realizada a
condição ou cumprido o tempo2402. Tal como os bens instituídos a favor de herdeiros que não
aceitassem ou não pudessem aceitar a herança, os legados repudiados ficavam para o
herdeiro, em virtude do direito de acrescer2403.

2391 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “legatum”, ns, 5 e 29.
2392 Ficando os bens legados para os herdeiros instituídos, António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., v. “legatum”, n. 15.
2393 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “legatum”, n. 68.

2394 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “legatum”, n. 41.

2395 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “legatum”, ns. 47 a 49.
2396 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit. 3,7,15.
2397 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “legatum”, n. 25. Vale a condição de a viúva

permanecer viúva, mas não a condição geral de não casar ou de guardar virgindade, António Cardoso
do Amaral, Liber [...], cit., v. “legatum”, n. 28. Porém, Pascoal de Melo é de opinião diversa: a condição
impossível ou o uso de expressões injuriosas para o legatário invalidariam o legado (tal como acontecia
na instituição de herdeiro), Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit. 3,7,14.
2398 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “legatum”, n. 64.

2399 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “legatum”, n. 30.

2400 A menos que o herdeiro provasse a intenção de revogar o legado, cf. António Cardoso do

Amaral, Liber [...], cit., v. “legatum”, n. ns. 35-36; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit.
3,7,17.
2401 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “legatum”, n. 59.

2402 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “legatum”, n. 22; contra, Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit. 3,7,16.


2403 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “legatum”, n. 19.

428
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 1470. Na interpretação dos legados deviam usar-se os sentidos da linguagem
corrente2404.
§ 1471. Os legados podiam ser pedidos por ação de reivindicação ao herdeiro que
tivesse aceitado a herança. No foro português, costumava usar-se o meio mais expedito da
assignação de 10 dias2405.
5.2.15 Os fideicomissos.
§ 1472. O direito justinianeu equipara aos legados os fideicomissos2406. A matéria dos
fideicomissos era considerada como difícil, entre os juristas do direito comum. Mas, ao
mesmo tempo, tinha-se tornado num ponto de direito de grande interesse, porque, já desde a
época romana que os fideicomissos se tinham tornado num instituto muito usado, quer para
contornar proibições do direito testamentário quando à disposição dos bens, quer para
impedir que os bens saíssem de uma família aquando das heranças.
§ 1473. No direito português, a centralidade dos fideicomissos era bastante menor,
sobretudo porque o instituto dos morgados (v. cap. 5.4), permitia atingir o segundo fim.
§ 1474. Um fideicomisso (< fide comissum, entregue à confiança) era a instituição pelo
testador de um herdeiro ou legatário (fiduciário), com o pedido formal (“rogo, volo, fidei tuae
committo”) de que transmitisse por morte (restituere) os bens da herança (ou apenas alguns
especificamente designados)2407 a outrem (fideicomissário)2408. Podia ser instituído por
testamento, mas também por codicilo e mesmo por contrato inter vivos (v.g., doação)2409. O
fideicomisso de família perpétuo – em que se designava como fideicomissário uma pessoa e
os seus descendentes, ou em que se incluía uma condição de que os bens não pudessem
ser alienados - permitia justamente que os bens se mantivessem na família para sempre e
correspondia, por isso, a um morgadio, em que a sucessão se deferia pela ordem sucessória
ab intestato2410. O direito justinianeu impedia que o fideicomisso de família durasse mais do
que quatro gerações; mas o direito comum aboliu esta limitação e permitiu que este tipo de
fideicomissos fosse constituído por ato entre vivos; a partir daí, ele tornou-se na forma típica
de garantir a preservação do património das famílias abastadas ou com preocupações

2404 Regras de interpretação, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit. 3,7,9 a 12.
2405 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “legatum”, n. 10; Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis [...], cit. 3,7,5.
2406 Cf. D.30 a 32 De legatis et fideicomissis; I.,2,20 De legatis e 23 De fideicommissariis

hereditatibus.
2407 O herdeiro fideicomissário tinha que ficar sempre com, pelo menos, ¼ dos bens (quarta

trebellianica). Esta correspondia à quarta falcidia, que limitava a obrigação do herdeiro de responder
pelas dívidas da herança a uma quarta parte. O senatusconsultum Trebellianum estendeu este regime
às obrigações do herdeiro fiduciário de restituir a herança aos fideicomissários.
2408 António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 135, n. 2.

2409 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit. 3,7,19.

2410 Cf. António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 206, n. 25. Normalmente, continha uma

cláusula a favor da alma do testador. “Fideicomissum perpetuum in família inducitur quotiescunque


relinquuntur bona cum onere missarum, & ut in illis descendentes in perpetuum, etiam si ex aliqua
ratione non sit maioratus”, Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 120, n. 19: “Fideicomissum
perpetuum censetur inductum inter omnes de família, si testaror bona relinquat duobus de domo, &
progénie sua onere distribuendi tertiam pecuniae quantitatem inter pauperes”, Miguel de Reinoso,
Observationum […], cit., obs. 68, n. 1..

429
As sucessões.
linhagísticas. Manteve-se assim até muito tarde (na Alemanha, até 1938), tal como
aconteceu com o morgadio, em Portugal
5.3 A sucessão legítima ab intestato ou legítima.
§ 1475. A sucessão que se deferia de acordo com a lei era chamada legítima2411. Porque
não se baseava num testamento, chamava-se ab intestato.
5.3.1 A ordem sucessória.
§ 1476. A ordem legítima de sucessão era, assim, de direito civil, embora o chamamento
das primeiras classes (filhos e descendentes) se fundasse naquilo que se entendia ser o
impulso natural dos pais em relação aos filhos (mesmo dos naturais e espúrios)2412, pelo que
se entendia que os direitos hereditários destes – tal como os seus direitos a alimentos
paternos - eram de direito natural e, por isso, inalteráveis pela lei2413. O que poderia variar,
de acordo com o direito de cada cidade, era a extensão ou configuração destes direitos,
nomeadamente, a quota dos bens a que os filhos tinham um direito (quase) inviolável – a
legítima2414. Pelos meados do séc. XVIII, a leitura da natureza altera-se, a ponto de se
considerar a ideia mesma de sucessão como artificiosa, já que, por natureza, as coisas
seriam de ninguém, sendo apropriadas apenas pelos chamados títulos originários de
apropriação2415 (v. cap. 4.3.2.1).
§ 1477. No direito romano, a ordem legítima de sucessão variou muito. Inicialmente só
os filhos sujeitos a seu pai, fazendo parte da família política do pater (agnados) (v. § 919),
eram herdeiros forçados, pois, fazendo parte do corpo do pai, na verdade herdariam o que já
era seu (haeredes sui et necessarii). Mais tarde, este direito foi alargado aos cognados
(emancipados ou sui iuris) pelo direito pretório2416. Mas só a Autêntica 118 (Justiniano, ano
543) aboliu a distinção entre agnados e cognados, ou entre varões e mulheres, constituindo
a principal fonte do regime de direito comum2417.

2411 Fontes romanas: D.38.16 De suis et legitimis heredibus; C.6.55. De suis et legitimis liberis et

ex filia nepotibus ab intestato venientibus, mas, sobretudo a Novela 118 (v. http://droitromain.upmf-
grenoble.fr/Corpus/Nov118.htm). A fonte doutrinal mais usada foi Domingos Antunes Portugal,
Tractatus de donationibus [...], cit., caps. 18 e 19 (com muitas ulteriores referências); também, Pascoal
de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,8.
2412 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. n.18, n.5.

2413 Doutrinalmente, discutia-se se a sucessão tinha um fundamento no direito divino, natural ou

civil. Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, ns. 2 ss..
2414 Por justa causa, podia ser tirada, Cf. Domingos Antunes Portugal, liv. 3, cap. 18, ns. 7 e 8. Mas, de resto,
tinha que ser respeitada, nem o príncipe a podendo dispensar, ibid., ns. 9-10. Havia uma certa intermutabilidade ou
compensação entre legítima e alimentos, o que autorizava o pai que instituísse um morgado que privava os filhos
segundos das suas legítimas a substituí-las por alimentos, ibid., liv. 3, cap. 18, n. 8.
2415 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,8,2, com referência à nova

mundividência quanto à apropriação das coisas.


2416 Por meio de um decreto de entrega da posse dos bens a filhos que não fossem herdeiros

segundo o ius civile: bonorum possessio unde liberi (contra tabulas), Domingos Antunes Portugal,
Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap.18,n.13.
2417 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19, n. 43.

Sobre a sucessão romana, confrontada com a hebraica, Francesco Lucrezi, La successione intestate
[…], cit..

430
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 1478. A ordem sucessória de direito comum, basicamente recebida no direito
português2418, incluía os seguintes grupos: descendentes, ascendentes, colaterais, cônjuge e
fisco2419.
5.3.1.1 Os descendentes.
§ 1479. O primeiro grupo é o dos descendentes2420, começando pelos filhos. Primeiro os
filhos legítimos, nascidos de um matrimónio válido, sem distinção de varões ou fémeas2421.
Os direitos sucessórios dos filhos existiam quer em relação à herança de seu pai, como de
sua mãe2422. Nos legítimos incluíam-se os póstumos, nascidos até ao 10º mês depois da
morte do pai, período considerado como de possível geração2423. Os filhos legitimados por
subsequente matrimónio ou carta régia de graça2424 também eram tidos como legítimos2425.
Apesar de entre escravos não poder haver matrimónio pelo direito romano (só coabitação, ou
contubernium), o direito canónico tinha validado este casamento, pelo que os filhos de
escravos casados eram legítimos e eventuais herdeiros de seus pais2426. Os filhos dos
estrangeiros nascidos de legítimas núpcias também gozavam destes direitos2427.
§ 1480. Outra era a situação dos filhos ilegítimos ou naturais, nos quais se incluíam os
espúrios e os filhos de coito condenado (coitus damnatus).
§ 1481. Filhos naturais eram, pelo direito canónico, os nascidos de pais que não fossem
casados. Porém, para que tais filhos fossem considerados como naturais de seu pai, a
relação concubinária tinha que ser estável e única de parte a parte. O concubinato breve e
vago não era suficiente para criar uma relação de filiação, ainda que natural, com o pai.
Parece que, nos sécs. XVI e XVII, o rigor já não era tão grande que não se admitisse que um
homem com várias concubinas tivesse filhos naturais delas2428.
§ 1482. Por direito comum, os filhos naturais só herdavam se seus pais, se não
houvesse filhos legítimos (ou a mãe)2429. Se não houvesse descendentes, mas houvesse
ascendentes, só herdavam por disposição testamentária e, ainda assim, só nos limites da

2418 V. Ord. fil.,4,96. O direito português como que assume implicitamente a ordem sucessória do
direito comum, apenas a esclarecendo ou adaptando em limitados pontos.
2419 Cf. Nov. 118, Ord. fil.,4,96, pr.. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […],cit., v. “Haereditas”,

ns. 1 e 2.
2420 V. Ord. fil.,4,82, 4,96.

2421 O alv. de 17.8.1761 privou as filhas dos nobres da legítima dos pais, mantendo-lhes o direito

a alimentos. Muito criticado, foi revogado pelo Dec. de 17.7.1778.


2422 Era a solução introduzida no direito romano pelo senatusconsulto Orficiano (de 178 d.C., cf.

D.38, 17; C.,6, 57). Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18,
n. 21.
2423 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 23.

2424 Tratamento exaustivo das legitimações em Manuel Álvares Manuel Álvares Pegas,

Commentaria [...], cit., Commentaria […], cit., tom. 2, ad Ord. fil.,1,3,1, gl. 4 (ps. 6-93); A legitimação
pelo príncipe, Jorge de Cabedo, Decisiones […], pt. 2, dec. 69, per totam.
2425 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 52.

2426 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 31.
2427 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 35.
2428 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 47.

2429 V. Ord. fil.,4,91, 92, 1 e 3, que Portugal entendia dever ser entendido neste sentido.

431
As sucessões.
terça (uncia hereditatis), pois tinha que ser salvaguardada a legítima (duae unciae
hereditatis) dos ascendentes2430. Os filhos naturais não tinham uma quota legítima que
tivessem forçosamente que herdar e, por isso, não podiam arguir de inoficioso um
testamento que os deserdasse (querela innoffciosi testamenti)2431. Os netos que fossem
filhos legítimos de filhos naturais também não sucediam; mas sucediam os que fossem filhos
naturais de filhos legítimos, uma distinção estranha que se explicava pelo facto de os netos
herdarem por direito de representação do pai, cujo estado assumiam2432.
§ 1483. O direito português acolhia o regime do direito comum, mas apenas para os
nobres. O filho natural de nobre não herdava2433. Mas, se fosse plebeu sucedia com os
outros filhos legítimos2434. Daí que, no direito pátrio, todas as restrições sucessórias dos
filhos naturais só valiam para o caso de filhos de nobres2435. Estes direitos sucessórios
abrangiam também os filhos tidos de escrava própria ou alheia2436.
§ 1484. Os filhos espúrios eram, em sentido genérico, os filhos de pai incógnito (“cui
pater est populus, non habet ille patrem”)2437. Em sentido estrito, eram os que provinham de
pais que, por direito canónico, não se pudessem casar. Não tinham direitos sucessórios ab
instestato, por qualquer dos direitos2438. Para além disso, não podiam ser instituídos
herdeiros, nem receber nada nada dos bens dos pais, por testamento ou contrato
lucrativo2439. Estas restrições estendiam aos seus descendentes, mesmo legítimos2440; no
entanto, os espúrios podiam ser legitimados e, com isso, obter direitos sucessórios plenos.
Este era um dos casos em que a legitimação podia ter interesse, do ponto de vista
sucessório, para um plebeu.

2430 Cf. 4, 49, 1 e 3. Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap.
18, n. 39. Podiam também ser incluídos, por testamento, na linha de sucessão de morgados.
2431 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 40 (não

no caso de plebeu); ibid., lib. 3, cap. 18, n. 51


2432 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, ns. 49-50.

2433 V. Ord. fil.,4,91,1.


2434 Ord. fil.,4,92; cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap.
18, ns. 33 e 49.
2435 Um investido em ordens sacras era tido como cavaleiro, pelo que o seu filho natural não

sucedia, Tomé Valasco, Allegationes […], cit., all 6, n. 28.


2436 Ord. fil.,4,92, pr.; Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3,cp.

18, n. 34. Que também podiam suceder na administração de um morgado; cf. Miguel de Reinoso,
Observationes […], cit., obs. 33, n. 1 ss..
2437 “Et ideo quasi nati incerto patre spurii solent appellari”, Domingos Antunes Portugal, Tractatus

de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 65. Outras designações: “filhos das ervas”, “filhos das
malvas”, “filhos de Deus”, “filho das ervas e neto das águas correntes”, “filhos da silveira, “filhos do
palheiro”; “filhos bravos”; “filhos do boto” (norte de Brasil); "filhos do vento" (África colonial portuguesa);
hervoeira significava prostituta (cf. António Amaro das Neves, "Filhos das ervas: a ilegitimidade no
Norte de Guimarães (séculos XVI-XVIII)". Guimarães, NEPS - Universidade do Minho, 2001
(https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/209/1/FilErvasAAN.PDF).
2438 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 65-66.

2439 Mas podiam receber do avô, que não era parte na infâmia do seu nascimento, Domingos

Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, ns. 67 e 87).
2440 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 67.

432
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 1485. Os filhos de “de coito danado” eram aqueles que provinham de relação, não
apenas proibida pelo direito, mas punida, como os filhos de relações incestuosas, os filhos
de clérigos de ordens maiores, os filhos de concubina mantida no domicílio conjugal2441. Nem
sequer podiam ser legitimados por graça régia, pois não se podia apagar o pecado2442.
Estavam privados de direitos sucessórios em relação ao pai2443, mas sucediam à mãe, tendo
até direito à legítima2444. Porém, se a mãe fosse “ilustre” (nobre), já não sucediam se
existissem filhos legítimos2445.
§ 1486. Os filhos adotivos2446 também herdavam2447, indistintamente com os filhos
legítimos e naturais, embora os filhos adotivos fossem como que “filhos fictícios e
imaginários” 2448, produto de uma artificalis generatio2449. Este caráter artificial da filiação
adotiva explicava que ela, atribuindo certos direitos e obrigações (por exemplo, os direitos a
alimentos, nos dois sentidos), fosse uma situação passageira. Daí que a palavra filho, na lei
ou em atos jurídicos, não compreendesse, em princípio, os adotivos e que os direitos
sucessórios destes terminassem com a emancipação2450. As adoções eram feitas por carta
régia2451, embora a doutrina seiscentista pusesse em dúvida se estavam em uso2452.
§ 1487. Entre os descendentes contavam-se ainda os netos, bisnetos, etc. que
herdavam por “representarem” o pai2453. Isto queria dizer que os filhos de um filho pré-morto
herdavam aquilo que teria cabido ao pai, se fosse vivo (direito de representação); assim,
concorrendo filhos com netos, a herança não se dividia por cabeças (per capita), mas por
estirpes (per stirpes) 2454.

2441 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 84.
2442 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 97. Invoca uma
decisão do Desembargo do Paço de 4.8.1634.
2443 Os filhos de coito danado, por direito comum não sucedem, António da Gama, Decisiones

[...], cit., dec. 322, n. 2.


2444 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 73. Era

discutido se herdavam dos colaterais ou consanguíneos da mãe; a opinião afirmativa era a mais
comum, Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 87.
2445 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, ns. 84-85.

2446 O direito romano distinguia a adoção de filhos famílias de outrem da adrogação de sui iuris.
2447 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 99-100.
2448 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 108.

2449 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.,1,3, gl. 5, n. 7.
2450 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, ns. 108-111
2451 V. Ord. fil.,2, 35, 12; 2, 56; 3,9,2; 3,85,2.

2452 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 2, ad Ord. fil., 1,3, gl. 5 (p. 93); Jorge

de Cabedo, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 70, n. 4 (em desuso); Domingos Antunes Portugal,
Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 106 (as leis não caducariam e ele próprio já teria
visto adoções).
2453 Nov. 118, Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19, n. 3;

Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,8,5.


2454 O direito de representação aparecera no direito justinianeu (Nov. 118), sob duas formas: a

representação do filho pelo neto e a representação de um colateral pelos seus filhos. Nesta último
caso, porém, a divisão da herança fazia-se por cabeças, Domingos Antunes Portugal, Tractatus de
donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19, ns. 46-48.

433
As sucessões.
§ 1488. Os descendentes eram herdeiros forçosos ou necessários, não apenas no
sentido de que não podiam ser preteridos (omitidos no testamento) ou deserdados sem
causa, mas ainda no de que lhes cabiam, necessariamente, 2/3 da herança (v. Ord. fil.,4,92)
(legítima). Esta “necessidade” de instituição dos descendentes não era apenas formal, como
no direito romano, que se bastava com a sua instituição expressa ou deserdação, desde que
justificada, mas também substancial, pois lhes reservava uma quota parte dos bens da
herança (a “legítima”), que as Ordenações implicitamente fixavam em 2/3 (Ord.
fil.,4,82,pr.)2455. Os bens que constituíam a legítima não podiam ser onerados, pois isto
diminuía o seu valor2456.
§ 1489. Para o cálculo do valor da herança e determinação tanto da quota dos herdeiros
forçosos (globalmente, 2/3) como da quota de que o testador podia livremente dispor (“quota
disponível”), deviam ser trazidos à herança os bens doados pelo testador em vida a seus
descendentes. Só depois desta colação (v. cap. 5.6) (collatio), se procedia ao cálculo,
considerando as doações como antecipações das legítimas dos respetivos herdeiros
forçosos2457. A legítima existia ainda para os pais (v. Ord. fil.,4,82,4 e Ord. fil.,4,89) e, em
certa medida, para os irmãos, que podiam arguir a nulidade de um testamento em que
fossem preteridos por um herdeiro infame (Ord. fil.,4,90, mas aqui trata-se antes de uma
limitação à deserdação do irmão em favor de uma pessoa indigna).
§ 1490. A legitima dos herdeiros forçosos podia ainda ser prejudicada por doações em
vida feitas a terceiros. Computado o valor das legítimas e concluindo-se que as doações a
terceiros as ofendiam, os atos de liberalidade podiam ser reduzidos2458.
5.3.1.2 Os ascendentes.
§ 1491. Não havendo descendentes, herdavam os ascendentes (Ord. fil.,4,91), por
proximidade de grau, sem direito de representação2459. Sendo de igual grau, dividiam a
herança. Discutido era já se herdavam indistintamente, independentemente da linha –
paterna (pai e seus ascendentes) ou materna (mãe e seus ascendentes) – a que
pertencessem e da proveniência dos bens. No direito comum, Bártolo defendera a regra
paterna paternis, materna maternis, segundo a qual os bens de família seriam herdados

2455 A reserva de uma parte da herança para os descendentes (para a família) não é de origem

romana, mas antes germana. O direito romano conhecia a reserva de uma parte (quarta parte) da
herança para o herdeiro, mas apenas em relação às dívidas da herança (quarta falcidia). Cf. Rafael M.
Carnicero Giménez de Azcárate.. “La preterición de herederos en el Derecho común y en el Derecho
aragonés.”, Cuadernos "Lacruz Berdejo", http://www.derecho-
aragones.net/cuadernos/document.php?id=170.
2456 Havia uma vasta casuística sobre os ónus que podiam ou não recair sobre as legítimas.

2457 A collatio bonorum (aportação de bens) era a junção de uma massa de bens a outra, a fim de

se efetuarem cálculos. Para este efeito, o valor dos bens doados em vida pelo testador a seus filhos
(ou os dotes dados às filhas) eram adicionados ao dos bens da herança, para se calcularem as
legítimas e a quota disponível, e depois imputados à parte que cabia ao filho respetivo (D.37,6;
C.,6,20).
2458 Cf. I.,2,18; C.,3,29. As condições desta redução eram discutias, pois também se tinha que ter

em conta as legítimas expectativas dos donatários. Era considerado decisivo o caráter gratuito da
doação e a intenção de prejudicar os herdeiros ou, pelo menos, a leviandade do doador quanto a isto.
Discutia-se ainda o momento relevante para efetuar o cálculo da legítima, se o tempo da doação ou
antes o tempo da morte do doador.
2459 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19, ns. 3 e 4.

434
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
pelos ascendentes da linha paterna e os de família da mãe, pelos ascendentes de linha
materna. Esta seria a opinião comum2460, embora Domingos Antunes Portugal considerasse
ser mais razoável a indistinção, sobretudo no caso de o casamento dos progenitores do de
cujus ser de comunhão geral. E, segundo diz, essa seria a jurisprudência estabelecida, que
apenas aplicava a regra bartolina no caso de os pais do de cujus serem casados em regime
dotal2461. Os ascendentes eram herdeiros forçosos, devendo necessariamente receber 2/3 da
herança2462. Havia casos em que os ascendentes não herdavam, como, v.g., se a mãe
tivesse casado antes de um ano a contar do falecimento do pai ou se este casasse em
segundas núpcias2463.
5.3.1.3 Os colaterais.
§ 1492. Pelo direito comum, os colaterais concorriam com os ascendentes; mas, pelo
direito do reino, os ascendentes excluíam colaterais (Ord. fil.,4,91 pr). Só não havendo
ascendentes, herdavam os colaterais, a começar pelo mais próximo2464, independentemente
de serem agnados ou cognados, homens ou mulheres2465. Não sucediam os colaterais que
fossem filhos naturais ou espúrios. A proximidade era contada pelos graus de direito civil
(Ord. fil.,4,94) (v. § 919), e não pelos do direito canónico (§ 866), que só se usavam para
estabelecer os impedimentos matrimoniais (v. Ord. fil., 5,124,4). Os colaterais herdavam até
ao décimo grau (Ord. fil.,4,94)2466..
5.3.1.4 Os cônjuges.
§ 1493. Não havendo parentes até ao 10º grau, sucediam os cônjuges (Ord. fil.,4,94),
uma novidade introduzida nas cortes de Elvas de 1361, preferindo o cônjuge ao fisco2467. O
matrimónio e a comunhão de vida deviam subsistir no momento da morte do de cuius(Ord.
fil.,4,94, "a qual juntamente [...]"), embora também se admitisse a sucessão do cônjuge
separado, se ele não fosse o culpado da separação2468. O cônjuge putativo (i.e., por
casamento que não era válido, apesar do convencimento dos alegados cônjuges) não tinha
direitos sucessórios2469. Os afins nunca sucediam2470.
5.3.1.5 O fisco.
§ 1494. Se, na falta de testamento, todas estas classes sucessórias falhassem, o

2460 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., 2, dec. 34, n.9.
2461 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19, ns. 6-8.
2462 Of,.4,91,1; CF. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19,
n. 11.
2463 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap.19, n. 14-40.
2464 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19, ns. 11 e 41.
2465 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19, n. 43.
2466 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19, n. 45.

2467 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap., 19, ns. 49-51.

2468 V. Ord. fil.,4,45. Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3,

cap., 19, ns. 55 e 56; Pasccoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 3,8,18. As causas de divórcio
e de separação (quoad thorum et cohabitationem) eram o adultério (mesmo sem consumação carnal),
as sevícias, o crime em que houvesse perigo da alma do outro cônjuge, ibid., liv. 3, cap. 19, ns. 53-57.
2469 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19, n. 58.

2470 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Haereditas”, n. 3,

435
As sucessões.
herdeiro dos bens seria o fisco2471,
recebendo os bens com os respetivos ónus (Ord. fil.,
2,26,17). Em Portuga2472l, porém, os bens dos morriam sem testamento e sem herdeiros
legítimos – mesmo os estrangeiros - eram consignados à redenção dos cativos.
§ 1495. Exceção era o caso de sucessão de libertos, em que o patrono – e seus
consanguíneos até ao 5º grau - tinha direitos sucessórios2473.
5.4 Os morgados.
5.4.1 Noção
§ 1496. Os morgados eram conjuntos de bens cuja transmissão por morte obedecia a
uma ordem sucessória estabelecida, para sempre, pelo instituidor no documento de
instituição, diferente da ordem de sucessão legítima (v. 5.3). Neste sentido, tratava-se de
uma ordem sucessória especial ou privilegiada, que afastava (dispensava) para sempre a lei
geral relativa à ordem sucessória. Este foi o pretexto para, no séc. XVIII, se exigir a
autorização do rei – a quem competia exclusivamente dispensar a lei – para a constituição
de morgados. Porém, antes dessa época, admitia-se a livre instituição de morgados, como
uma emanação da liberdade de disposição dos seus bens. A não ser que isso violasse os
direitos de sucessores obrigatórios (heredes sui), como os filhos (v. 5.3.1.1), como no caso
de a instituição do morgado ofender as legítimas dos filhos. Nestes casos, requeria-se, sim, a
autorização do rei.
§ 1497. O morgado era definido como o direito de suceder nos bens que tivessem sido
deixados com a condição de ficarem unidos perpetuamente na família, deferindo-se ao
herdeiro primogénito mais próximo2474. A ordem sucessória estabelecida pelo instituidor
podia não ser a primogenitural; mas então não se devia chamar propriamente de
morgado2475.
§ 1498. Assim, as características estruturais dos bens de morgado eram a sua
indivisibilidade, a inalienabilidade e a vinculação à família.

2471 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, caps. 14, 15 e 20.

Apesar de alguma doutrina no sentido afirmativo, os colégios ou universidades não eram herdeiros
legítimos dos seus membros, substituindo o fisco, Domingos Antunes Portugal, Tractatus de
donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 20, n. 37. Assim, a Igreja ou os mosteiros não herdavam os bens dos
eclesiásticos (Ord. fil.,2,18,7), a não ser que estes os tivessem recebido em razão do seu ofício. O
direito dos espólios (i.e., reclamação pela Igreja dos bens dos clérigos) não fora recebido (CL.,
9.9.1609), nem tão pouco a lutuosa, tomada pela Igreja dos bens (ou parte deles) dos párocos
falecidos sem testamento (portio canonica). Os senhores das terras também não eram herdeiros em
vez do fisco, pois esta regalia não se lhes transmitia.
2472 V. Ord. fil.,1,89,1; cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Haereditas”, n. 4.

2473Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19, n. 60.
2474Cf.. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Maioratus”, n. 1: “ius succedendi in bonis,
ea lege relictis, ut in família perpetuo conserventur, & deferantur proximiori primogenito, per ordinem
succesivum”; esta definição era de Luís de Molina, o autor ibérico mais citado nesta matéria, por causa
do seu tratado De primogeniorum hispanorum origine ac natura, 1573. Em Portugal, fez autoridade o
Tractatus de exclusione, inclusione, successione et erectione maioratus, de Manuel Alvares Pegas,
1685. Antes a questão foram tratada por quase todos os decisionistas dos sécs. XVI e XVII.
2475 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Maioratus”, n. 1.

436
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 1499. A finalidade dos morgados era a conservação da memória da família2476 por
meio da permanência de certos bens que o instituidor considerara nucleares na posse
perpétua de parentes seus. Daí que se falasse em vínculos, para destacar esta vinculação
dos bens a uma família. Ter isto em conta era importante na interpretação das regras de
sucessão estabelecidas, pois elas deviam favorecer e não prejudicar esta finalidade2477.
§ 1500. A origem dos modelos institucionais que integram o núcleo do instituto podem
ter provindo da ideia bíblica de primogenitura e da ideia germânica de propriedade familiar
indivisível (in gesamten Hand).
§ 1501. As figuras próximas dos morgados eram as capelas e os fideicomissos (v. cap.
5.2.15)2478.
§ 1502. A liberdade de definir a ordem sucessória de um morgado era muito grande. A
ordem de sucessão estabelecida devia ser respeitada rigorosamente (ad unguem), o mesmo
acontecendo com outras condições que podiam ser impostas aos sucessivos herdeiros dos
bens (morar em certa terra, cumprir certas obrigações pias ou outras, etc.). Daí que a sua
capacidade de disposição dos bens estivesse bastante limitada, por se lhes chamando
apenas “possuidores” ou “administradores” dos bens vinculados, sendo removidos dessa
posse a favor do sucessor mais próximo se violassem as condições estabelecidas2479.
§ 1503. As condições de sucessão dos morgados constavam do documento de
instituição, que podia ser um testamento ou um contrato (normalmente uma doação,
contendo condições quanto à transmissão dos bens doados2480)2481. No entanto, as

2476 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 133, ns. 1-3.
2477 Ibid.; daí que se pudesse presumir não ser da vontade do instituidor chamar à sucessão
alguém em que a família se extinguisse, como uma mulher ou um clérigo (Jorge de Cabedo,
Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 133, n. 3).
2478 A principal diferença era a de que os fideicomissos não incluíam a cláusula da indivisibilidade

e não privilegiavam a linha masculina.


2479 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Maioratus”, n. 3.

2480 Por exemplo, uma doação régia de bens da coroa, com o estabelecimento de uma ordem
sucessória específica (por exemplo, o de não sucederem mulheres, ou de haver direito de
representação sucessória, v. Ord. fil.,2,35,1 e 4).
2481O Arquivo Nacional da Torre do Tombo encerra documentação riquíssima sobre morgados (e

capelas) pois era obrigatório o envio à Torre do Tombo de um exemplar da sua instituição: (i) instituição
de Morgados e capelas. 1422/ 1852. 30 liv. Portugal, Torre do Tombo, Morgados e Capelas (Col.); (ii)
sentenças relativas a Morgados e Capelas. 1414 / 1860. 24 liv. Portugal, Torre do Tombo, Morgados e
Capelas (Col.); (iii) registos vinculares. 149 proc. Portugal, Torre do Tombo, Morgados e Capelas (Col.)
(v. http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=4223346). Aí há também pareceres jurídicos sobre este
disputadíssimo tema: Parecer sobre “as benfeitorias feitas em bens de morgado”, por Francisco
Carneiro. Portugal, Torre do Tombo, Armário Jesuítico, liv. 8, f. 403; Parecer sobre “a obrigação que
tem o sucessor no morgado de pagar as dívidas de seu pai”. Portugal, Torre do Tombo, Armário
Jesuítico, liv. 8, f. 407; Parecer sobre “se uma pessoa que largou o morgado a seu filho em vida com
obrigação de pagar as dívidas, e se fez religioso pode estar seguro na consciência”. Portugal, Torre do
Tombo, Armário Jesuítico, liv. 8, f. 409; Parecer “sobre se um perde ‘ipso facto’ o Morgado do Algarve
faltando as condições dele”.1636-07-10. Portugal, Torre do Tombo, Armário Jesuítico, liv. 14, f. 409;
Parecer “sobre o Morgado de João Esmeraldo acerca da exclusão de bastardos e outras dúvidas”.
1638-02-28. Portugal, Torre do Tombo, Armário Jesuítico, liv. 14, f. 452; Parecer “sobre o suceder em
outro morgado fêmea filha do último possuidor”, relativo a D. Leonor, filha de Afonso de Torres. 1638-
03-10. Portugal, Torre do Tombo, Armário Jesuítico, liv. 14, f. 454; “Testamento do doutor Gabriel

437
As sucessões.
condições de administração e de sucessão também podiam resultar do costume longo
relativo à forma de sucessão de certos bens, que denotasse que estes eram bens
vinculados2482.
§ 1504. Como as Ordenações estabeleciam uma ordem sucessória dos morgados para
suprir obscuridades ou lacunas da ordem estabelecida pelo instituidor (v. Ord. fil.,4,100),
distinguiam-se (com importantes efeitos práticos a partir da legislação pombalina sobre o
assunto2483) os morgados em que se observava a ordem definida na lei daqueles que
obedeciam a distintas condições de sucessão – exclusão das mulheres ou, pelo contrário,
preferência pela linha feminina, exclusão de clérigos, etc. - ou outras. Os primeiros eram os
morgados regulares, os segundos, os irregulares.
§ 1505. A legislação pombalina, nomeadamente a lei de 3 de Agosto de 1770, alterou
profundamente a disciplina dos morgados, no sentido de dificultar a sua constituição, de a
sujeitar a licença régia e de reduzir a liberdade do instituidor na aposição de cláusulas
sucessórias ou outras, limitando a ordem de sucessão à estabelecida na lei2484.
5.4.2 Instituidor e instituição.
§ 1506. A instituição de morgados (e, também, capelas) era, por regra, livre. Podiam-nos
instituir leigos ou clérigos2485, nobres ou plebeus, varões ou mulheres, ao abrigo da sua
liberdade de testar. Algumas restrições provinham, não da qualidade das pessoas, mas da

Pereira de Castro, que fala na capela de Sacavém e vincula o morgado que tomou na sua terça a
fazenda da Beira Ninães, Frazão e outros”. 1632-10-14. Portugal, Torre do Tombo, Cartório dos
Jesuítas, mç. 23, n.º 125 (v. Documentação sobre morgados (http://antt.dglab.gov.pt/exposicoes-
virtuais-2/extincao-dos-morgados-e-capelas/)..
2482 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 132, n. 16 (por costume, podia introduzir-se alguma

qualidade ou requisito na sucessão de morgados numa família; Gabriel Pereira de Castro, Decisiones
[...], cit., dec. 21, n. 8 (o modo de suceder num morgado fixava-se por um costume de 40 anos).
2483 A lei de 3.8.1770 deixa de permitir aos instituidor afastar-se das regras de sucessão

estabelecidas por lei.


2484 Legislação ulterior relevante: [Carta de Lei por que Vossa Magestade […] ocorrrendo aos

abusos que se introduziram nas instituições dos morgados […] ha por bem dar as providencias
competentes [...] determinando a qualidade de pessoas e rendimento competente para a fundação de
morgados; excluindo [...} as clausulas contradictorias, exquisitas e prejudiciais […] e reduzindo-os todos
à natureza de morgados regulares [...]. [Lisboa], Regia Officina Typografica, [1770]; Alvará com força
de ley sobre a posse dos morgados: de 9 de Novembro de 1754, Lisboa, Chancelaria Mor da Corte e
do Reino, 1754; “Carta de lei pela qual ficam desde já abolidos todos os morgados e capelas
atualmente existentes no continente do reino, ilhas adjacentes e províncias ultramarinas e declarados
alodiais os bens de que se compõem”, em Diário de Lisboa: folha oficial do Governo Português. N.º 111
(1863 maio 20), pg. 1519; Decreto pelo qual serão abolidos todos os morgados e capelas, cujo
rendimento líquido não chegar a duzentos mil reis. Portugal, Torre do Tombo, Biblioteca, Collecção de
Decretos e regulamentos publicados durante o governo da Regência do Reino estabelecida na Ilha
Terceira, Lisboa, Imprensa Nacional, 1836 (1832 abril 4), ps. 19-22.
2485 Mesmo com os bens que lhe tenham sido doados intuitu ecclesiae (a favor da Igreja), pois por

costume geral estes bens eram considerados como suscetíveis de ser doados ou deixados em
testamento (constituíam o chamado espólio, v. Ord. fil.,2,18,7), António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., v. “Maioratus”, n. 2. Em Portugal, porém, um clérigo não podia instituir morgado nem capela a favor
de outro clérigo com bens por ele comprados, sem licença do rei ( Ord. fil.,2,18,5). Isto relacionava-se
com a política régia de contenção da propriedade eclesiástica.

438
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
situação dos bens – que deviam ser de livre disposição - ou de direitos que os onerassem,
como os direitos sucessórios dos herdeiros necessários2486.
§ 1507. Os morgados (e capelas) instituíam-se tipicamente por testamento, mas também
podiam criar-se por contrato – por exemplo, doações2487, contratos dotais - de que
resultassem condições perpétuas relativas à indivisibilidade e inalienabilidade dos bens.
Como se exigia a intenção de vincular, o uso, mesmo longo, de transmitir os bens com as
condições típicas dos morgados não era um título constitutivo. Todavia, fazia presumir uma
instituição antiga. Realmente, a escritura não era um requisito essencial2488, pelo que os
morgados se podiam provar por confissão2489, testemunhas, fama por espaço de longo
tempo, uso continuado e prescrito de transmissão obedecendo a uma ordem sucessória
típica dos morgados (masculinidade, proximidade, família)2490.
§ 1508. Era matéria de interpretação o determinar-se se houvera a intenção de instituir
um morgado2491. Gozando o morgado de um regime excecional, não se presumia que os
bens fossem de morgado, pelo que isto havia de decorrer de cláusulas expressas ou de
indícios2492. Considerava-se que existia um morgado se houvesse uma cláusula
estabelecendo a vocação de filhos e descendentes da prole e família do instituidor (pois não
bastava ser o sucessor mais próximo do último possuidor), para todo o sempre, ou a
proibição perpétua de alienar2493. Em contrapartida, a intenção de vincular não se deduzia da
mera imposição perpétua de celebração de missas2494.
§ 1509. Para se tratar de morgado era, portanto, preciso que se estipulasse
inseparabilidade e indivisibilidade dos bens, bem como a sua vinculação à família designada
na instituição, pois esta era a caraterística dos morgados ibéricos2495. As dignidades, como
ducados, condados e marquesados, ou as jurisdições também eram indivisíveis, sendo
considerados como morgados, pelo que na sua sucessão se observava o regime dos
morgados2496.
§ 1510. Em Portugal, o costume de não dividir os castelos e as honras, ou seja, os bens
que importavam o exercício de poder, vem da baixa Idade Média (v. § 439.). A fonte era a lei
Praeterea, dos Lib. feud., 2, 55, pr.-1, sendo já frequente na segunda metade do século XIV,

2486 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Maioratus”, n. 2.


2487 Por exemplo, uma doação para constituição de dote ou uma doação régia bens da coroa
criavam morgados nos quais incorporavam esses bens.
2488 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 153, n. 11.

2489 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 22, ns. 20-21.

2490 Era morgado se se tivesse deferido a sucessão pela forma de morgado por mais de 40 anos,

António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 218, n. 2.


2491 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 82, ns. 3 a 7.

2492 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 82, n. 6.

2493 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Maioratus”, n. 8; Jorge de Cabedo,

Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 96, n. 1.


2494 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Maioratus”, n. 4; Melchior Febo, Decisiones

[...], cit., dec. 120, ns. 9 e 10 a 17. Por que palavras se considerava estar a instituir-se um morgado, v.
Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 143.
2495 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Maioratus”, n. 5.

2496 Cf.. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Maioratus”, n. 6-7.

439
As sucessões.
com o argumento, que depois se manteve, da necessidade de manter o poder das
famílias2497, no qual se apoiava o próprio poder da coroa. Parece, no entanto, que este
objetivo de evitar a usura do poder económico se acompanhava de um objetivo de natureza
simbólica. A adoção da indivisibilidade e primogenitura tinham, antes de mais, o efeito de
evocar o sistema linhagístico em uso na sucessão da coroa e das dignidades. A progressiva
importância dos elementos simbólicos ligados ao esquema primogenitural puro levou a que
sectores nobiliárquicos (mas não os juristas) insistissem na exclusão da linha transversal - o
que aumentava significativamente o risco biológico da extinção da estirpe - e na consagração
do direito de representação em favor do neto, filho do primogénito pré-morto, que, então,
afastaria o secundo-génito (v. adiante).
§ 1511. Com a contínua aristocratização do pensamento social durante os séculos XVII
e XVIII, com o progressivo realce dos direitos de todos os filhos à herança e com o advento
das conceções individualistas quanto à liberdade de disposição dos bens e à vantagem
(económica e fiscal) da sua circulação, reforçou-se a tendência para restringir, em nome da
natureza da família, a liberdade de instituir morgados àqueles casos em que o interesse
público justificasse os prejuízos decorrentes da vinculação2498. Permitir ou não a vinculação
passou a depender do modo como se entendesse o equilíbrio justo entre a "igualdade
natural dos filhos", a "política de reputação das famílias" e a "política da república". A
primeira, hostil aos morgados; a segunda buscando-os como meio de adquirir ou manter o
lustre social; a terceira, procurando combinar as vantagens fiscais e económicas da
circulação dos bens com a existência de uma nobreza poderosa em volta do trono
§ 1512. Já no séc. XVI, Luís de Molina exigia que a autorização régia para instituir
morgados em prejuízo dos restantes filhos apenas fosse concedida no caso de o instituidor
ser nobre ou de qualidade e riqueza2499. Pois as famílias de humilde ou obscura origem nada
teriam a perpetuar, antes procurando nos morgados um meio de, confundindo a natureza, se
insinuarem entre os nobres2500. Esta "política das famílias" devia ser corrente, pois Manuel
de Almeida e Sousa (Lobão), justificando as medidas restritivas tomadas no tempo de
Pombal, fala de "huma geral mania de instituir vinculos em predios de ridiculos rendimentos"
(ibid., 14), apesar das limitações que alguma doutrina (não dominante no foro) tendiaa
introduzir.
§ 1513. É apenas com as leis de 3.8. e 9.9.1770 que a "política da república" impôs às
"políticas das famílias" um equilibrado respeito pela "direitos naturais de todos os filhos à
herança", concretizando as condições (quanto à qualidade das pessoas e quanto à
importância dos bens vinculados) juridicamente necessárias, para que os morgados

2497 Cf. Henrique da António da Gama, Decisiones [...], cit. Barros, História […], cit., vol. 8, 267,
279.
2498 Já no direito seiscentista português, os direitos dos filhos eram acautelados: a livre instituição

só se admitia pelas forças da quota disponível ("terça"); no caso de a instituição se fazer em prejuízo
da quota legitimária dos filhos, carecia-se de um ato de graça do rei (por intermédio do seu tribunal de
graça, o Desembargo do Paço), por se tratar de uma derrogação dos direitos dos filhos (Manuel
Álvares Pegas, Tractatus de exclusione […], cap. 3, ns. 1 e 2).
2499 Luís de Molina, De primogeniorum hispanorum, liv. 1, cap. 14, n. 8.

2500 Cf. Manuel de Almeida e Sousa de Lobão, Tratado prático de morgados, 1, cap. 9, n. 12 e

literatura aí citada.

440
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
anteriores subsistissem ou outros novos se pudessem instituir 2501.
5.4.3 Bens de morgado.
§ 1514. Os bens (ou direitos) incluídos num morgado deveriam estar em condições de
ser sujeitos às condições inerentes à sua perpétua vinculação a uma família. Daí que se não
pudessem constituir morgados sobre direitos obrigacionais (iura ad rem) ou direitos reais
(iura in re) temporários (como os do colono de uma enfiteuse de duração limitada2502), ou
seja sobre bens de que o instituidor não tivesse uma disponibilidade absoluta, como os bens
que os filhos administrassem por consentimento dos pais. Dada a natureza perpétua dos
morgados, também não podiam ser constituídos sobre bens perecíveis ou que
desaparecessem facilmente, como os bens móveis. Podiam, todavia, vincular-se bens
móveis preciosos ou rendimentos, pensões e juros, desde que não estivessem sujeitos a
remissão (i.e., perpétuos).
§ 1515. Por outro lado, uma pessoa com filhos apenas dispunha de disponibilidade
absoluta sobre os bens que não pertencessem às legítimas dos filhos. Daí que os bens
vinculados devessem caber na quota disponível do instituidor (ou terça).2503 No caso de os
bens do morgado excederam a legítima, era necessária a licença do rei e a constituição de
alimentos aos filhos excluídos2504. A doutrina era, porém, complacente, admitindo que os
filhos podiam consentir na ofensa das suas legítimas, mesmo tacitamente, não se opondo à
sucessão de morgado2505.

2501 Cf. comentário detalhado em Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,3,9 e Manuel de

Almeida e Sousa de Lobão, Tratado prático de morgados, 1, cap. 9, ns. 13 ss.; 3 (maxime, sobre as
categorias admitidas de nobreza, 6 ss.; sobre as qualidades dos comerciantes, agricultores [não os da
pequena agricultura ao norte do Tejo, mas os da grande agricultura do Alentejo] e letrados que podiam
instituir morgados, v. 13 e 16). A legislação pombalina alargava ainda a necessidade de licença régia a
toda e qualquer instituição de morgado (ibid., n. 13) e reduzia a uma única (a da Ord. fil.,4,100) a
fórmula de sucessão nos morgados (ibid., n. 10). Esta última disposição implicava, v.g., a revogação da
legislação anterior que impedia a união de morgados, a exclusão ou prejuízo das mulheres da
sucessão nos vínculos, a exclusão de cristãos-novos. Note-se, em todo o caso, como a interpretação
que Lobão faz desta última regra (ao admitir substituições fideicomissárias complementares à vocação
sucessória estabelecida na lei, nos termos da Ord. fil.,4,87) lhe tira muito do seu alcance, v. Manuel de
Almeida e Sousa de Lobão, Tratado prático de morgados, 1, cap. 9, 15 ss..
2502 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 214, ns. 3, 10 e 11. Mesmo em relação a bens

enfitêuticos perpétuos, a vinculação exigia a autorização do senhorio direto, pois este ficaria privado de
receber o laudémio, já que os bens vinculados eram inalienáveis, Melchior Febo, Decisiones [...], cit.,
dec. 5 (que refere uma decisão da Casa da Suplicação no sentido da impossibilidade de vincular o
domínio útil, mesmo que perpétuo, dec. n. 4); mas havia opiniões contrárias: Gabriel Pereira de Castro,
Decisiones [...], cit., dec. 26, n. 2; Manuel Álvares Pegas, Resolutiones forenses […], cap. 9, n. 30. Mas
na prática esta vinculação fazia-se, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 26, n. 7.
2503 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Maioratus”, n. 3.

2504 Cf. Tomé Valasco, Allegationes […], cit., all. 62, ns. 8 a 10. No caso de se deixar íntegra a

legítima, não se carecia de autorização do rei (v. Ord. fil.,4,82), Melchior Febo, Decisiones [...], cit.,
dec.212.
2505 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit. dec. 5, n. 12-13 (); António da Gama,

Decisiones [...], cit., dec. 218, n. 4., n. 25; discutindo os requisitos do consentimento, Melchior Febo,
Decisiones [...], cit., dec. 112.

441
As sucessões.
5.4.4 Chamados à posse ou administração.
§ 1516. Não havia, em geral, restrições quanto às pessoas que podiam ser chamadas a
possuir ou administrar morgados.
§ 1517. As mulheres (e a linha feminina ou cognatícia) podiam ser chamadas a suceder
nos morgados2506. A sua exclusão em absoluto (cláusula da masculinidade, que incluía a
exclusão da linha feminina e, por isso, reservava a sucessão aos agnados varões) era
mesmo considerada odiosa (i.e., contra os princípios do direito) e, por isso, só podia ser
instituída por palavras expressas. Mesmo a exclusão apenas relativa – ou seja, o
afastamento de mulheres por varões de grau mais remoto – também repugnava ao direito,
devendo ser abertamente estabelecida2507. Ou seja, o regime comum, em conformidade com
o qual se deviam interpretar as disposições do instituidor, igualava sucessores femininos (ou
por linha feminina, i.e., cognados) e masculinos (e por linha masculina, i.e., agnados)2508. Já
então, porém, havia doutrina e decisões dos tribunais da corte favorecendo a linha
masculina, por ventura por analogia com o que a Lei Mental dispunha para os bens da
coroa2509.
§ 1518. As Ordenações filipinas reforçam um pouco a masculinidade da sucessão dos
morgados (aproximando-a da sucessão nos bens da coroa), pois a preterição das mulheres
por varões do mesmo grau passa a fazer parte do regime supletivo então estabelecido ( Ord.
fil.,4,100,1), sendo, por isso, o regime aplicável sempre que a paridade entre varão e fémea,
concorrendo no mesmo grau, não fosse expressamente estabelecida pelo instituidor2510. Em
todo o caso, a sucessão feminina continuou a poder ser estabelecida e até se presumia nos
morgados instituídos por mulheres2511. De qualquer modo, estando verificada a sucessão
numa mulher, esta não era prejudicada pela superveniência de varões2512.
§ 1519. Nos morgados que incluíssem bens que tivessem anexa jurisdição, como era o
caso dos bens da coroa, ou que contivessem alguma obrigação que não pudesse recair em
mulher, os filhos preferiam as filhas2513, como estava expressamente estipulado na Lei
Mental ( Ord. fil.,2,35,4).

2506 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit. dec. 5, n. 1.


2507 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 208, ns. 1 ss.. Gabriel Pereira de Castro
apenas dá preferência à linha masculina quando as mulheres tivessem sido excluídas: Gabriel Pereira
de Castro, Decisiones [...], cit.; dec. 50, ns. 1 a 3 (quando as mulheres não são excluídas, o filho de
filha mais velha exclui o filho de filho mais novo; mas quando as mulheres são excluídas, o filho de
varão mais novo prefere o de filha mais velha).
2508 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 59, ns. 1 e 3. Chamando-se

ascendentes, incluía-se a mãe, ibid., n. 5


2509 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 337, n. 1: foi definido em muitos casos no

senado que o filho mais novo deve preferir-se à filha mais velha, embora antigamente prevalecesse
uma opinião contrária.
2510 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., dec. 208, n. 6; Melchior Febo, Decisiones […], cit.,

dec. 192, n. 3.
2511 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 33, n. 15. Um exemplo: Catarina

Fernandes instituiu um morgado em 1471 e chamou em primeiro lugar a sua irmã e depois a filha que
dela nascesse. António da António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 307.
2512 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 208, n. 8.

2513 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 337, n. 14.

442
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 1520. Os clérigos não estavam, por via de regra, excluídos da sucessão nos
morgados. Alguns autores negavam que pudessem suceder em morgados com dignidade e
jurisdição anexas, pois não podiam exercer cargos seculares nem exercer jurisdições
temporais, quer pelo direito canónico, quer pelo direito pátrio ( Ord. fil.,2,35,10)2514. Mas essa
não era a opinião mais generalizada, que afirmava que, sucedendo, podiam delegar a
jurisdição num delegado ou exercê-la pessoalmente, desde que não aplicassem por si penas
que infundissem sangue (morte ou mutilação)2515.
§ 1521. Mais duvidosa era a sucessão de monge, como consanguíneo mais próximo.
§ 1522. Uns respondiam afirmativamente; mas a melhor opinião parecia ser a contrária,
pois a sucessão de uma pessoa monástica prejudicava a finalidade básica dos morgados,
que era a continuação da família e da sua memória2516. Havia quem distinguisse se o caso
de monge que podia suceder para a comunidade daquele que era incapaz de suceder,
mesmo para esta, estando morto para o mundo. Neste último caso, o monge não poderia
suceder no morgado. No primeiro caso, sim, pois poderia o mosteiro assumir a sucessão e
as obrigações eventualmente estabelecidas pelo instituidor. Mas não deixava de ser
problemático que esta sucessão garantisse a finalidade do instituidor de manter a memória
da família2517. De qualquer modo, os instituidores de morgado ou de capela podiam apor
condição de que um mosteiro não sucedesse2518.
§ 1523. No caso de morgados jurisdicionais, a estas dificuldades ainda se
acrescentavam as das sucessões de eclesiásticos em morgados com dignidades ou
jurisdições anexas. E, de facto, não existia o costume de monges sucederem neste tipo de
morgados2519. Os cavaleiros de Cristo, Santiago, São Bento de Aviz, Calatrava e Alcântara,
apesar de serem verdadeiros clérigos, com os três votos, tinham por costume adquirido o
direito de sucederem em morgados, patrimoniais ou jurisdicionais2520.
§ 1524. Por vezes, os instituidores estipulavam que não sucedessem pessoas que não
pudessem contrair casamento e fazer desaparecer a família (loucos, surdos-mudos, cegos,
ou cavaleiros de ordens militares obrigados ao celibato. Nesse caso, respeitava-se a vontade
do instituidor2521.
§ 1525. Outras dúvidas diziam respeito aos direitos sucessórios dos filhos naturais. A
regra era a de que isto dependia da fórmula da instituição, que podia admitir ou excluir a

2514 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Maioratus”, n. 16.
2515 Por isso, podia-se ser bispo e conde ao mesmo tempo, delegando-se a jurisdição que não se
pudesse exercer pessoalmente, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Maioratus”, n. 16
(citando Gomez e Molina); a interpretação era duvidosa, tratando-se de bens da coroa, em face de Ord.
fil.,2,35,10; mas a acumulação do bispado de Coimbra com o condado de Arganil mostra que a
dificuldade não era insanável.
2516 António da Gama regista as duas opiniões, preferindo a segunda: António da Gama,

Decisiones [...], cit. dec. 84, n. 6; ibid., dec. 48, n. 3.


2517 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Maioratus”, n. 17.

2518 Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 137, n. 30..


2519 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Maioratus”, n. 17.
2520 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Maioratus”, n. 18.

2521 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Maioratus”, n. 18.

443
As sucessões.
linha bastarda2522.Na dúvida, entendia-se que os filhos naturais tinham os mesmos direitos
do que os legítimos, pelo menos nos plebeus, pois era isso que acontecia na sucessão dos
bens em geral ( Ord. fil.,4,92)2523. Mas havia autores que, recolhendo uma tradição textual
que remontava às Siete Partida2524s, ou tendo em vista, possivelmente, o caso de nobres,
cujos filhos naturais tinham menos direitos hereditários do que os legítimos (v. 3.2.4), ou,
ainda, refletindo o regime de sucessão dos bens da coroa2525, defendiam que, segundo a
regra (regulariter), os filhos naturais não sucediam nos morgados2526. Depois da lei de 1575
que esteve na origem do tit. Ord. fil.,4,100, a tese da exclusão dos bastardos podia
argumentar com o texto da Ordenação 4,100, pr. (“filho, ou neto, ou descendentes legítimos”)
e tornou-se dominante.
§ 1526. Diferentes da incapacidade genérica de serem chamados a suceder eram as
incapacidades concretas de um determinado sucessor. Que fosse furioso natural e
permanente2527 ou mentecapto2528, caso em que não poderia assumir a sucessão, passando
a administração ao seguinte chamado. Que fosse surdo-mudo de nascença, em que não
podia suceder senão no morgado patrimonial, mas não no jurisdicional2529. Em geral,
portanto, a incapacidade pessoal fazia passar ao sucessor seguinte2530.
5.4.5 Ordem sucessória.
§ 1527. A ordem sucessória era a estipulada pelo instituidor2531. Na verdade, o sucessor
de morgados não era chamado pelo direito hereditário (iure hereditario), mas por um direito
particular (iure particulari, ex pacto et providentia)2532. Por isso, o fundamental era a
interpretação das cláusulas do pacto que exprimiam a vontade do instituidor2533. Na falta ou

2522 V. Ord. fil.,100,4,3.


2523 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 33 (sim, n. 11); obs. 53, n. 21 (mas não
espúrios, porque a memória do instituidor não se conservava nos espúrios, ibid., obs. 53, n. 29); foi
julgado no Senado que não se podiam instituir naturais ou bastardos em prejuízo dos legítimos, ibid.,
obs. 58, n. 30.
2524 Siete Partidas,2,15,2: Lei de Toro, 40; Nueva Recopil. 5,7,11. A lei de 3.8.1770 adota esta

orientação casticista.
2525 V. Ord. fil.,2,35,1: “filho legítimo barão maior”.

2526 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 13, n. 7.

2527 A loucura por acidente superveniente não incapacitava para a sucessão, pois se entendia que

o nascido são podia administrar o morgado por um curador, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit.,
v. “Maioratus”, n. 13.
2528 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Maioratus”, n. 13.

2529 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Maioratus”, n. 14. Se fosse são de juízo e

delegasse o exercício da jurisdição, podia suceder. O cego podia suceder em todos os morgados,
embora devesse exercer a jurisdição por interposta pessoa, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit.,
v. “Maioratus”, n. 15.
2530 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Maioratus”, n. 11 (e 12).

2531 V. Ord. fil.,100,4,3.


2532 Por isso, podia suceder mesmo quem repudiasse a herança, António da Gama, Decisiones
[...], cit. dec. 174, n. 16.
2533 Cf. regras de interpretação de expressões usadas para definir a ordem de vocação, Gabriel

Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 8.

444
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
obscuridade da instituição, a ordem era a estabelecida pelo direito para este instituto. Em
Portugal, até às Ordenações Filipinas, discutia-se que ordem fosse essa. António da Gama
(Decisiones [...], cit.) apontava várias possibilidades: a de ser a dos fideicomissos, como
aconteceria em toda a Espanha2534, a dos feudos, a dos bens da coroa, estabelecida na Lei
Mental, ou a da sucessão do reino2535. As Ordenações filipinas procuraram clarificar a ordem
de chamada para a transmissão dos morgados ( Ord. fil.,4,100,1 e 2). Esta clarificação foi
feita com base na jurisprudência quatrocentista e quinhentista e nas extravagantes de D.
Sebastião de 15.9.1557 e dizia-se que correspondia à ordem da sucessão do reino. A
mesma clarificação fora feita pela lei 40 de Toro (de 1505) e pela Nueva Recopilación (5,7).
Mas esta ordem não vinculava os instituidores, servindo apenas para suprir as deficiências
do pacto de instituição, no qual se podiam estabelecer toda a sorte de regras sucessórias ou
de condições (masculinidade estrita, exclusão de pessoas eclesiásticas, exclusão de
cognados, sucessão por escolha do possuidor ou de outrem, condição de casar, de morar
em certa terra, de ser doutor, etc.).
§ 1528. Fosse como fosse, a ordem instituída devia ser observada ad unguem, valendo
como lei, apenas podendo ser revogada pelo costume de longo tempo, que valia como
lei2536. Assim, a regra de sucessão usada na primeira vocação devia usar-se nas seguintes,
salvo disposição em contrário2537. Nem a transação feita pelo possuidor do morgado, nem a
prescrição, podiam afastar ou prejudicar os sucessores instituídos2538.
§ 1529. Podia acontecer que o instituidor deixasse a vocação à discrição da escolha
(eleição) do possuidor do morgado, como se verá.
§ 1530. Mais tarde, com a lei pombalina de 3.8.1770, passa-se a considerar que a
ordem legal exprimia a substância da sucessão dos morgados (ordem substancial), pelo que
o pacto de instituição apenas acrescentava “qualidades” (ordem da qualidade), de futuro
tidas como irrelevantes2539.
§ 1531. Um pretendente ao chamamento podia pedir, em vida do possuidor, a
declaração judicial dos seus direitos, nomeadamente se houvesse diffamatio, ou seja, se o
possuidor ou outros alegados sucessores propalassem que esse candidato à sucessão não
tinha direito a ela, ou se o possuidor do morgado dissipasse os bens2540.
§ 1532. Na sucessão eram tidos em conta, segundo uma combinatória que decorria ou
do pacto ou da lei, os princípios hierarquizadores da linha, do grau, do género e da idade.
Em princípio, a linha prejudicava o grau e este a preferência do género e esta a preferência
da idade. Ou seja, a sucessão deferia-se ao varão mais velho de mais próximo grau dentro

2534 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit. 92, n. 2.


2535 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 174, n. 16. Pascoal de Melo, opina que eram
as leis da sucessão da coroa que se aplicavam nos morgados, na falta de disposições do instituidor
(Institutiones iuris civilis […], cit., 3,9,3).
2536 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 121, n. 2.

2537 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 171, n. 2.


2538 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 84, n. 1.
2539 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 3,9,14.

2540 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 184, n. 1 (diffamatio, ns. 4 a 9; dissipação de

bens, n. 10); podia pedir caução aos possuidor, ibid., n. 18.

445
As sucessões.
da linha preferente2541.
Tudo isto, repete-se, salva disposição em contrário do instituidor.
§ 1533. Vejamos cada um destes elementos.
§ 1534. Quanto à linha.
§ 1535. Podiam distinguir-se várias linhas: a primogenitural, a masculina e a feminina; a
agnada e a cognada; as descendente, ascendente, e colateral; a legítima e a ilegítima; as
dos eventuais diversos casamentos do instituidor.
§ 1536. A relevância das linhas na ordenação da parentela decorria daquilo que o
instituidor tivesse estabelecido. Na falta de disposição, valiam as seguintes regras gerais2542:
(1) Preferia-se a da linha primogénita; (2) Não se passava para outra linha até que se
esgotasse a anterior; (3) Eram chamados sucessivamente os primogénitos dentro da linha,
não se passando ao segundo sem se esgotar a linha do primeiro2543; (4) Extinta a linha
descendente, passava-se ao primogénito dos colaterais e, extinta esta linha, seguia-se a do
segundo; e assim sucessivamente; (5) Os ascendentes, como tal, não sucediam nos
morgados (não sucedia o pai, que era o parente mais próximo em grau, mas o irmão)2544
§ 1537. O equilíbrio entre agnados e cognados estava relacionado com a anterior
distinção, pois agnados eram os parentes por via masculina e cognados também os parentes
por via feminina2545 (v. § 919). Também dependia da vontade do testador, expressa ou
colhida por indícios2546.
§ 1538. Porém, a linha consanguínea tinha o importante efeito de limitar o grupo de
pessoas que podiam suceder no morgado, já que não se admitia que a sucessão pudesse
cair num estranho à família do instituidor2547
§ 1539. A extinção da linha consanguínea, levantava a dúvida sobre se devia ser
chamado um sucessor estranho à família do instituidor ou o fisco, inclinando-se a doutrina
para a última solução, pois destinando-se o morgado a perpetuar a memória da família,
extinguia-se o seu objeto quando já não existisse família; e, então, a sucessão passava a
reger-se pela ordem sucessória ab intestato, em que, na falta de parentes até ao 10º grau,

2541 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 22, n.12; António de Sousa de Macedo,
Decisiones [...], cit. dec. 16, ns. 5 a 7; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], 3,9,16;. Todos
invocando Ord. fil.,4,100,pr..
2542 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 3,9,17.

2543 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 93, n. 1.


2544 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit. dec. 5. Esta regra tinha limitações (v.g., Gabriel
Pereira de Castro, Decisiones [...], cit. dec. 48, n. 5: a mãe preferia o irmão) e, como todas, podia ser
afastada por disposição do instituidor.
2545 A linha cognatícia era, por isso, a série de pessoas ligadas pelo mesmo sangue por

descenderem do mesmo tronco; continha vários graus, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […],
cit., 3,9,14 nota.
2546 Quando é que o morgado era de agnação e quando de cognação, Melchior Febo, Decisiones

[...], cit., dec. 39, n. 1. Em síntese, no primeiro, só eram chamados os parentes por via masculina e no
segundo também eram chamados os parentes por via feminina.
2547 V. Ord. fil.,4,100,2: “o parente mais chegado ao último possuidor, sendo do sangue do

instituidor”; Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit. dec. 59, n. 7, Manuel Álvares Pegas,
Tractatus de inclusione et exclusione maioratus […], cit., t. 2, cap. 9, ns. 89, 130, 438-440, 707. Como
sempre, o instituidor podia afastar este limite, embora isto chocasse com a natureza dos morgados,
fazendo supor que se tratava antes de um fideicomisso.

446
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
sucedia o fisco (v. 5.3.1.5)2548. As Ordenações filipinas decidiram no sentido de que, extinta a
família consanguínea, ninguém mais pode ser admitido à sucessão do morgado (Ord.
fil.,100,4,2).
§ 1540. Já atrás foi referido o equilíbrio entre a linha masculina e feminina, tendo-se
visto que ele dependia da vontade do instituidor e que, na ordem sucessória supletiva se foi
tendendo da equiparação para o favor à linha masculina2549. Assim, as Ordenações filipinas
estabeleceram que o varão preferisse a fêmea, ainda que esta fosse mais velha, se o
contrário não fosse disposto pelo instituidor ( Ord. fil.,100.4,1).
§ 1541. Também já se disse que, no caso de peões, em princípio não relevava a
distinção entre filhos legítimos e ilegítimos; mas isto estava dependente da vontade do
instituidor. Alguns autores afirmam, radicalmente, que os ilegítimos não fazem parte da
família2550, mas isto deve referir-se aos filhos bastardos de nobres.
§ 1542. As linhas que se estabeleciam em função dos vários casamentos em princípio
não eram relevantes, pelo que se deviam considerar no mesmo plano os filhos dos primeiro
e segundo matrimónio2551.
§ 1543. Quanto ao grau (v. cap. 5.3.1).
§ 1544. O sucessor mais próximo em grau preferia, em princípio os mais remotos2552.
Este era, talvez, o princípio menos sujeito a variação, porque regularmente aceite pelos
instituidores, embora pudesse ser prejudicado pela relevância das linhas.
§ 1545. A proximidade contava-se em relação ao último possuidor e não em relação ao
instituidor (mesmo que se dissesse “ao meu parente mais chegado”); e, assim, o filho do
possuidor preferia ao filho do instituidor2553.
§ 1546. Quanto à idade.
§ 1547. Em geral, no mesmo grau, os mais velhos preferiam aos mais novos2554, pois se
presumia a instituição da regra da primogenitura2555. Segundo as Ordenações filipinas (Ord.
fil.,100,4,pr.; mas não as anteriores) havia direito de representação dos mais velhos falecidos
antes da abertura da sucessão pelos seus filhos. Ou seja, em Portugal, a partir dos inícios do
séc. XVII, vigorava um conceito próprio de primogenitura, referido ao momento do

2548 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit. 193, ns. 1 a 4. O sucessor deve ser da prole do
instituidor, não bastando ser o mais próximo do possuidor, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons.
123, n. 7.
2549 Cf. síntese: a mulher mais velha prefere ao irmão mais novo, se o contrário não estiver

disposto; mas também se julgou de modo inverso, António da Gama, Decisiones [...], cit. dec. 129, n. 1.
2550 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 14, n. 4.

2551 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit. dec. 122, ns. 1 e 2.

2552 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 174, n. 5; Melchior Febo, Decisiones [...], cit.,

dec. 104, n. 3; ibid., dec. 143, n. 16.


2553 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit. dec. 7, n. 5.

2554 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit. dec. 21, n. 5 (sempre se têm por chamados

os mais velhos).
2555 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 24, n. 24. Se os filhos fossem gémeos e

não se soubesse qual tinha nascido primeiro, o pai decidia; na falta de decisão, dividia-se o morgado,
se se pudesse dividir; se não, decidia o juiz, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Maioratus”,
n. 20.

447
As sucessões.
nascimento2556. Antes, este conceito convivia com um conceito impróprio de primogenitura
em que o mais velho era o que o fosse à morte do possuidor do morgado, ainda que fosse
filho de filho ou filha mais novos2557. Por isso se dizia, neste conceito, que a primogenitura se
reportava, não ao momento do nascimento, mas ao momento da abertura da sucessão à
morte do possuidor do morgado. Isto implicava a negação de direito de representação dos
filhos mais velhos pré-falecidos. Tal conceito de primogenitura era o estabelecido pela Lei
Mental para a sucessão nos bens da coroa (v. Ord. fil.,2,35,1)2558 e podia ser adotado,
mesmo depois das Ord. fil. Pelo instituidor, quando este excluísse o direito de representação
dos filhos mais velhos pré-falecidos pelos seus filhos.
§ 1548. Nos morgados de eleição, o que contava era a escolha do possuidor e não
ordem de sucessão pré-estabelecida2559.
§ 1549. A escolha podia ser condicionada ou livre. No primeiro caso, o possuidor estava
condicionado por critérios estabelecidos pelo instituidor, como por exemplo, a pertença à
família ou ao tronco do instituidor2560. No segundo caso, a escolha podia ser absolutamente
livre2561, embora limitada pelo arbítrio de um homem prudente, não se considerando válidas
as escolhas não razoáveis ou que contrariassem as finalidades gerais da instituição2562.
Havia quem restringisse ainda mais a liberdade de escolha, admitindo-a apenas entre
pessoas do mesmo grau2563.
§ 1550. A escolha de dois era possível, mas o morgado permanecia indiviso2564.
§ 1551. O nomeado adquiria o direito de agnação, para si e para os seus sucessores2565;
embora por eleição não se pudesse adquirir a consanguinidade, pois esta era um facto da
natureza, a nomeação fazia com que ela se se passasse a presumir2566.
§ 1552. Uma questão famosa do direito da sucessão dos morgados era, como se viu, a
da concorrência entre neto filho de filho maior pré-falecido e filho segundo. As Ordenações
filipinas procuraram clarificar a ordem de chamada para a transmissão dos morgados ( Ord.
fil.,4,100).

2556 Cf. cortes de 1641 (cap. 27 da nobreza e 26 do clero); cf. capítulos gerais, pp. 55, 76 e 81. Cf.

António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., III.5.


2557 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Maioratus”, n. 19.

2558 Porém, Ord. fil.,2,35,2 abria uma exceção para os filhos pré-falecidos na guerra, caso em que

haveria direito de representação.


2559 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 286, n. 2; sobre a eleição, Bento Pereira,

Promptuarium [...], cit. 1135 ss.


2560 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 8, n. 1.

2561 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 109, n. 2 (de que palavras se inferia, ns. 3 a 7);

existia plena liberdade de escolha, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1., dec. 143, n.1.
2562 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 109, n. 8.

2563 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 25, n. 1.
2564 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 21, n. 1. Exemplo, Jorge de Cabedo,
Decisiones [...], cit., pt. 1, arest. 97.
2565 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 25, n. 17.

2566 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 25, n. 7.

448
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
5.4.6 O direito de representação.
§ 1553. A primeira questão que definiram foi a da concorrência entre o neto filho do
primogénito pré-falecido e o filho segundogénito2567, estabelecendo que o neto preferiria ao
filho segundogénito, por direito de representação de seu pai2568 .
§ 1554. Aparentemente, isto deveria ter encerrado uma árdua controversa doutrinal que
tinha dividido os juristas nos séculos anteriores, e não apenas em Portugal, a ponto de
Bártolo ter dito que certezas nesta questão provinham mais da superstição do que da
discrição2569.
§ 1555. Podemos comparar o estado da questão antes e depois das Ord. fil.
Comparando uma decisão famosa de António da Gama2570, publicada em 1578, com uma
observação de Miguel de Reinoso, publicada em 1625.
§ 1556. António da Gama discute uma sentença sobre a sucessão num morgado
instituído por Catarina Fernandes, em 1471, em que se chamava em primeiro lugar a irmã da
instituidora, logo depois a filha dela nascida e depois da morte desta, o seu filho ou filha
primogénitos (natu maiorem). O morgado deferiu-se por esta ordem até Gaspar Guerreiro,
que deixou um filho segundogénito, Melchior Guerreiro, e o neto, filho do filho primogénito,
João Guerreiro, entre os quais se gerou um litígio, em que cada um reclamava a preferência.
A sentença decidia a favor do neto.
§ 1557. Esta orientação correspondia a uma opinião tida como comum, nomeadamente
em todas as Espanhas2571, congregando os votos de juristas célebres, desde Bártolo,
Grammaticus e Tiraquellus, a peninsulares como Covarrubias, Gregório Lopez, Luis de
Molina, Manuel da Costa2572 e Diogo de Sá2573. Do ponto de vista dogmático, o fundamento
do direito do neto seria, principalmente, o seu direito de representar o pai, que decorria do
facto da essencial identidade entre o pai e os seus filhos, nomeadamente o primogénito, que
o pai quereria honrar, mais do que a todos os outros, como já diziam as Siete Partidas
(2,15,2). O direito de representação seria, por isso, um facto de direito natural, legal
(romano)2574 e costumeiro2575. Mas corresponderia ainda à presumível intenção do instituidor
que, movido pelos referidos afetos naturais, pretenderia privilegiar a sua geração

2567 Portanto, tio paterno (patruus) do neto por via primogenitural. A questão podia formular-se em

termos mais gerais: a concorrência entre o neto, filho de um filho pré-falecido, e um filho nascido depois
deste, mas que tivesse sobrevivido ao pai.
2568 No mesmo sentido tinham decidido as Siete Partidas, (2,15,2), ao tratar da sucessão régia, e

a l. 40 de Toro, de 1505, em Castela, ao tratar da sucessão nos morgados.


2569 Segundo António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 307, n. 2.

2570 Decisiones […], cit. dec. 307, n. 1.

2571 Este argumento era tido como irrelevante pelos defensores dos direitos do filho segundo, pois

o direito estrangeiro (aliás variável, pois o de Nápoles favoreceria o filho segundo) não se aplicaria em
Portugal, António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 307, n. 22.
2572 No seu Tractatus de regni successione, cit.).

2573 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 307, n. 2 e n. 14 a 16.

2574 Invocam-se textos de direito romano relativos à divisão de coisa comum, às partilhas e à

sucessão de bens de libertos.


2575 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 307, ns. 8 a 10.

449
As sucessões.
primogénita2576. Esta primazia da linha primogenitural levaria a que ela constituísse um grau
anterior ao das estirpes dos outros filhos; e, por isso, que os dois candidatos, neto
primogenitural e filho segundo, nem sequer estivessem no mesmo grau.
§ 1558. A opinião contrária, favorável ao filho segundo (ou tio paterno do anterior,
patruus) também era seguida por juristas de muita autoridade (Alexandre de Imola, Mateo de
Afflicits), tendo a seu favor sentenças antigas de tribunais portugueses, cuja jurisprudência
António da Gama dizia ser variável, de acordo com as circunstâncias de cada caso. Num
litígio sobre as doações de bens da coroa aos barões do Alvito, embora houvesse votos de
juristas para os dois lados, decidira-se a favor do filho segundo2577. A argumentação
baseava-se na letra da doação (em que se dizia que os bens haveriam de se transmitir ao
“filho maior barão”), bem como na letra da Lei Mental2578 que dispunha que os bens da coroa
doados se transmitiriam “ao filho legítimo maior barão que dele [donatário] ficar”2579. Mas
argumentou-se ainda com pontos doutrinais. Que o filho estava em grau mais próximo do
que o neto; que, se se argumentasse que o neto era como se fosse filho - pois constituía a
mesma pessoa que ele ou o representava -, ambos os argumentos se baseavam em ficções
de direito, que não podiam prevalecer sobre a realidade efetiva das coisas (cf. ibid., n. 6). Por
isso, o neto só teria direito de preferência se concorresse com irmãos seus ou com primos
seus, faltando de todo os filhos do anterior possuidor do morgado2580. Que o direito de
representação só existia no caso de sucessão nos bens do pai, mas não já no caso de
transmissão de bens concedidos ao pai, como era o caso dos feudos ou das doações de
bens da coroa, em que a causa eficiente da devolução não eram os afetos naturais mas a
vontade do concedente2581. Que a solução era coerente com o que se dispunha quanto à
sucessão na enfiteuse (Ord. man., 4, 62; depois, Ord. fil.,4,37). Esta era a opinião de António
da Gama, que entendia que a vocação do “maior” (mais velho) se reportava, não ao
momento do nascimento, mas ao momento da morte. E, assim, excluía que o filho pré-
falecido alguma vez tivesse tido algum direito que pudesse transmitir ao filho ou que este,
como parte da pessoa do pai, pudesse reclamar2582. Esta opinião de António da António da
Gama também afetava a sua opinião sobre a sucessão da coroa do reino que ele entendia
se deveria deferir, neste caso, ao filho segundo, de tal modo se explicando o cuidado dos
reis que tal não desejavam, de explicitar nos seus testamentos os direitos de sucessão dos

2576 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 307, n. 12.
2577 António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 307, n. 2.
2578 Transcrito em Ord. man., 2,17,1 (depois, em Ord. fil.,2,35,1).
2579 A decisão refere mais sentenças relativas à sucessão de bens da coroa doados aos

Menezes, conde de Cantanhede, e aos Faria, alcaides-mores de Palmela, em que se decidiu a favor do
filho segundo, justamente com base na letra das Ordenações.
2580 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit.. dec. 307, n. 5.

2581 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 306, n. 14.

2582 António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 307, ns. 3 e 4. Em contrapartida, os que

defendiam os direitos do neto, faziam uma distinção subtil entre a sucessão nos bens – que nunca se
dera no filho pré-falecido e que, portanto, este não podia transmitir ao seu filho – e o direito a suceder
neles. Esse direito tinha-o ele, estando incorporado no seu património, tendo-o transmitido por morte a
seu filho, n. 7 (“non ex vi transmissionis, quia cum hereditas viventes [scl. patris] non sit delata, non
potest transmiti, sed ex vi repraesentatione, n. 10: também, n. 12).

450
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
netos filhos de filho pré-falecido2583.
§ 1559. Em suma – defende António da António da Gama (ibid., n. 25) - se se tratasse
de bens sujeitos à Lei Mental, os bens de morgado passavam ao filho segundo, por causa da
letra da lei. Se se tratasse de bens patrimoniais e se se dizia que sucederia o “filho maior”,
deferia-se também a sucessão ao filho segundogénito, pois esta qualidade de maior idade
não se verificava no neto. Se se dizia que sucederia o “filho”, não se referindo a qualidade de
maior idade, de novo se devia preferir o segundogénito, pois o neto não era filho. Mas
António da Gama reconhecia que estas soluções – muito favoráveis a uma ordem sucessória
nos morgados que os aproximava da sucessão na coroa e nos bens jurisdicionais - não eram
seguras, dada a variabilidade da jurisprudência dos tribunais.
§ 1560. Alguns autores contemporâneos excecionavam o caso de o filho primeiro ter
morrido na guerra ou em cativeiro2584-, pois, nesse caso, o filho poderia representar o pai
pré-falecido, nos termos de uma regra geral sobre os direitos dos filhos de militares mortos
em combate (v., para os ofícios em geral, cap. 2.6.5.3)2585.

2583 Como acontecera no testamento de D. Dinis, de D. João I, e no contrato de casamento de D.


Afonso (V) com D. Joana, a Excelente Senhora, cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 307, n.
23. A regra de sucessão do reino foi discutida, nessa altura por Manuel da Costa, no seu citado tratado
acerca da sucessão do reino [In celeberrimas iuris Cesarei leges, & paragraphos Commentarii, & de
maoiratu bonorum patrimonialium, et de regni successione [...]], e por Álvaro Valasco (Decisiones […],
cit., cons. 167, ns. 16 a 19 [discute se a sucessão do reino se defere pela ordem de sucessão dos
morgados ou não, concluindo ser mais provável resposta negativa), e será regulada pelo alv. 9.9.1641
e pela L. 12.4.1698. Em 1632, são publicadas as alegadas atas das cortes de Lamego, que
estabeleceriam o seguinte sobre a ordem de sucessão: “[…]Viva o Senhor Rei Dom Afonso, e possua o
Reino. Se tiver filhos varões vivam e tenham o Reino, de modo que não seja necessário torná-los a
fazer Reis de novo. Deste modo sucederão. Por morte do pai herdará o filho, depois o neto, então o
filho do neto, e finalmente os filhos dos filhos, em todos os séculos para sempre. Se o primeiro filho do
Rei morrer em vida de seu pai, o segundo será Rei, e este se falecer o terceiro, e se o terceiro, o
quarto, e os mais que se seguirem por este modo. Se o Rei falecer sem filhos, em caso que tenha
irmão, possuirá o Reino em sua vida, mas quando morrer não será Rei seu filho, sem primeiro o
fazerem os Bispos, os procuradores, e os nobres da Corte do Rei. Se o fizerem Rei será Rei e se o não
elegerem, não reinará. Disse depois Lourenço Viegas Procurador do Rei, aos outros procuradores: ‘Diz
o Rei, se quereis que entrem as filhas na herança do Reino, e se quereis fazer leis no que lhes toca?’.
E depois que altercaram por muitas horas, vieram a concluir, e disseram: “Também as filhas do senhor
Rei são de sua descendência, e assim queremos que sucedam no Reino, e que sobre isto se façam
leis”, e os Bispos e nobres fizeram as leis nesta forma. Se o Rei de Portugal não tiver filho varão, e tiver
filha, ela será a Rainha tanto que o Rei morrer; porem será deste modo, não casará se não com
Português nobre, e este tal se não chamará Rei, se não depois que tiver da Rainha filho varão. E
quando for nas Cortes, ou autos públicos, o marido da Rainha irá da parte esquerda, e não porá em
sua cabeça a Coroa do Reino. Dure esta lei para sempre, que a primeira filha do Rei nunca case senão
com português, para que o Reino não venha a estranhos, e se casar com Príncipe estrangeiro, não
herde pelo mesmo caso; porque nunca queremos que nosso Reino saia fora das mãos dos
Portugueses, que com seu valor nos fizeram Rei sem ajuda alheia, mostrando nisto sua fortaleza, e
derramando seu sangue. Estas são as leis da herança de nosso Reino, e leu-as Alberto Chanceler do
senhor Rei a todos, e disseram, boas são, justas são, queremos que valham por nos, e por nossos
descendentes, que depois vierem”.
2584 Como acontecera em alguns dos casos relatados por António da Gama (como os do barão do

Alvito, ou do conde de Cantanhede).


2585 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., dec. 148; Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1,

dec. 147, ns. 1 a 3.

451
As sucessões.
§ 1561. As “observações” de Miguel de Reinoso saíram em 1625, tendo o autor morrido
em 1623. De qualquer modo, são posteriores às Ordenações filipinas, com o seu texto
expresso sobre a sucessão dos morgados que decidia este ponto da concorrência de neto
primogenitural com filho segundo no sentido do neto ( Ord. fil.,4,100). Miguel de Reinoso
sustentava2586 esta preferência do neto com base no direito de representação, atribuindo-lhe
os direitos preferenciais à sucessão. Isto fazia com que desenhasse as linhas e os grau de
uma forma diferente de Gama. A cada filho corresponderia uma estirpe e a estas, diferentes
linhas e graus sucessórios. Cada estirpe ou linha sucessória iniciar-se-ia quando nascia cada
um dos filhos e receberia os seus direitos. Isto queria dizer que, embora na ordem
sucessória geral, todos os filhos estivessem no mesmo grau, na ordem sucessória dos
morgados, cada filho como que estava num grau (ou linha) diferente dos irmãos, de tal
maneira que não se podia passar ao grau (ou estirpe, linha) seguinte enquanto houvesse
sucessores do grau anterior2587. Assim, o filho primogénito teria recebido à nascença, para si
e para a sua estirpe ou linha, o direito de primogenitura que transmitiria por morte ao seu
filho primogénito, embora nunca tivesse recebido os bens a que esse direito se referia2588.
Por isso, morto o pai, o neto recebia o direito de primogénito, que podia fazer valer perante
os tios. Reinoso reconhecia que esta opinião era controversa na doutrina do direito comum,
mas constatava que a Ord. fil.,4,100 tinha decidido a favor dos direitos do neto, seguindo o
que também corresponderia ao direito consuetudinário em quase todo o lado, e também nas
Espanhas2589. Como o preceito das Ordenações era uma lei declaratória, ela aplicar-se-ia a
todos os morgados, mesmo os constituídos antes2590.
§ 1562. Na lógica desta doutrina, a preferência dos netos aproveitava também às netas,
ou porque, apesar de os varões preferirem as fêmeas do mesmo grau, não existiria no caso
uma igualdade de grau, ou porque as netas reclamavam não um direito seu, mas um direito
do pai, cuja entidade assumiam. Este princípio valia nos morgados patrimoniais2591. Mas
também nos morgados de bens da coroa, pois o novo preceito de Ord. fil.,100,4 tinha feito
com que o termo “maior” significasse agora “primogénito” e, sendo assim, a referência de
Ord. fil.,2,35 ao filho maior devia ser agora entendida como referindo-se ao filho primogénito,
por si ou pelo seu representante natural, preterindo, portanto, o filho segundo2592.
§ 1563. Se compulsarmos recolhas de opiniões do primeiro terço do séc. XVII,
continuamos, porém, a verificar, não apenas que esta questão era muito discutida, como que
a opinião que favorece o filho segundo – seguindo o modelo da sucessão nos bens da coroa
adotado da Lei mental (v. Ord. fil.,2,35), mas afastando-se do modelo de sucessão dos
morgados estabelecido nas mesmas (v. Ord. fil.,100,4,pr.) – continuava a ter um grande
impacto doutrinal2593. Isto pode explicar-se ou porque este modelo se adequava mais ao

2586 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 23.


2587 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 23, n. 6.
2588 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 23, ns. 1 a 4.
2589 Cita as Leis de Toro, n. 40; Nueva rec. 5,7,5); cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit.,
obs. 24, ns. 1 e 2; obs. 25, ns. 3 a 6; também, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 192, ns. 20 a 23
(direito inglês, francês e espanhol).
2590 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 24, n. 3-10.

2591 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 24, ns. 13 e 14.
2592 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 24, ns. 17 a 19.
2593 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Maioratus”, n. 9; Álvaro Valasco, Decisiones

452
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
espírito nobiliárquico dos morgados, ou porque as discussões sobre o assunto dos juristas
da época diziam mais frequentemente respeito a morgados de bens da coroa, em que se
observava a preferência do filho segundo sobre o neto.
5.4.7 Poderes do possuidor
§ 1564. Os poderes do possuidor do morgado sobre os bens que o constituíam estava
limitado pelo facto de ele os dever deixar intactos ao seu sucessor, para assim se cumprir a
finalidade de vinculação à família estabelecida no pacto. Para exprimir este caráter limitado
dos seus poderes a doutrina seiscentista portuguesa chama-lhe principalmente “possuidor”
(e não administrador, como ocorrerá mais tarde, no séc. XIX). Embora alguns insistissem em
que se tratava de um “verdadeiro dono”2594, ponderava-se que, como não podia usar de
ações diretas, mas apenas de ações úteis, dificilmente poderia invocar essa qualidade2595.
Realmente, o possuidor do morgado, se dispunha de ações para reivindicar os bens dos
herdeiros do anterior possuidor2596, não tinha uma ação reivindicatória para reclamar os bens
de terceiros que os possuíssem2597, tendo que usar de uma ação possessória2598, que
presumia a posse do bens, ou, eventualmente, uma ação útil2599 (v. 7.1.3).
§ 1565. Era investido neste direito por força do pacto de instituição aquando da morte do
anterior possuidor, sem necessidade de qualquer outro título ou mandado2600, podendo
entrar nos bens do morgado por iniciativa própria2601. Antes mesmo de tomar posse do
morgado, podia pedir providências cautelares no caso de delapidação dos bens e ser
garantido com uma caução, fiança ou uma proibição de alienação dirigida ao atual
possuidor2602.
§ 1566. Mais do que a conceituação da posição do possuidor interessava a
determinação dos seus poderes. Era certo que ele não podia dividir os bens, assim como
não podia aliená-los2603, salvo para a redenção do sucessor do morgado se caísse cativo e

[…], cit., cons. 121, n. 6; António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 107, n. 2; Gabriel Pereira de
Castro, Decisiones [...], cit. dec. 116, ns. 1 a 3.
2594 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons, 116, n. 5; é senhor de pleno direito, Álvaro

Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 122, n. 6.


2595 Cf. o mesmo Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 195, ns. 6 a 10.

2596 Os sucessores de morgado constituído por contrato não se tornavam donos dos bens dono
senão por tradição, aliás tinham apenas uma ação ex contratu, ineficaz em relação a terceiros que
possuíssem bens do morgado, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 194, n. 11.
2597 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 194, ns. 7 ss.; 59; sim, em Castela, n. 21; mas

não por direito comum e pátrio, n. 21.


2598 Como possuidor, podia recorrer às ações e aos remédios possessórios, Álvaro Valasco,

Decisiones [...], cit., cons. 194, n. 15.


2599 Realmente, nesta época, a distinção era meramente académica, dado que estas

classificações romanas não tinham conteúdo prático.


2600 Podia ser investido na posse ainda em vida do antecessor, prevalecendo a sua posse contra

um herdeiro legítimo, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 191, n. 108, 1 ss. (a propósito do
esbulho: Ord. fil., 4,58).
2601 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 191, ns. 26 a 28.

2602 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Maioratus”, n. 28.

2603 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Maioratus”, ns. 21-23; Bento Pereira,

453
As sucessões.
não pudesse ser resgatado apenas com os frutos do morgado2604. Também era admitida a
venda para pagar dívidas ou despesas feitas para a conservação dos bens, embora isto com
limitações. De facto, cada possuidor era obrigado a conservar e melhorar os bens. Isto devia
ser feito por força dos rendimentos do morgado, pelo que cada possuidor não estava, em
princípio, obrigado aos filhos do antecessor pelas despesas úteis por este feitas, em gastos
de conservação ou em lides judiciais2605. Alguns autores distinguem consoante as despesas
eram pequenas ou grandes.
§ 1567. A permuta, como alienação, também estava, em princípio, proibida2606
§ 1568. Também estava impedido de outros atos que implicassem disposição perpétua.
Tal era o caso da constituição de um usufruto2607, de hipoteca2608, da imposição de um censo
perpétuo2609, do arrendamento por longo tempo2610. O caso da sua dada em enfiteuse era
bastante discutida, o que se entende, dada a popularidade das concessões enfitêuticas. A
opinião comum era a de que o possuidor do morgado não podia dar bens do morgado em
enfiteuse perpétua ou em vidas, de modo que excedesse a vida do mesmo possuidor2611. Na
prática, porém, as situações em que os bens estavam tradicionalmente aforados ou em que
essa era a solução mais adequada ao seu cultivo, deviam ser muito frequentes. Pelo que se
introduziam regras que flexibilizavam bastante a possibilidade de aforamento. Ele era
possível se a entrega em enfiteuse fosse de evidente necessidade para o morgado; se fosse
costume aforar os bens; se os bens estivessem assim à data da constituição do morgado2612;

Promptuarium [...], cit., ns. 1181 ss.


2604 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Maioratus”, n. 23 (decisão da Casa da

Suplicação em Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 30, n. 16).


2605 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 116, ns. 7 ss.; Jorge de Cabedo, Decisiones

[...], cit., pt. 1, dec. 111, ns. 2 e 5; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Maioratus”, n. 27. A
questão era indecisa, dependendo de complicada casuística: Jorge de Cabedo, porém, defende o
contrário (o possuidor ficaria obrigado pelas dívidas do antecessor em utilidade do morgado, podendo
aceitar a sucessão a benefício de inventário Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2., dec. 110, ns.
4 e 6).
2606 Admitia-se a permuta com licença do rei, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec.

176, n. 1, de acordo com a regra geral sobre os poderes do rei de dispensar a lei. Em todo o caso,
como estavam em causa os direitos dos sucessores seguintes, requeria-se a autorização destes, ibid.,
n. 2, também de acordo com a regra de que nem o rei podia ofender direitos adquiridos. As coisa
recebidas em troca ficam com a natureza de bens vinculados, ibid., n. 3.
2607 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 73, ns. 1 a 7; mas podia ceder

temporariamente os frutos, Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 73, n. 10.
2608 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 84, n. 5.

2609 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 120, n. 4.

2610 O sucessor não estava obrigado a manter o colono de arrendamento por tempo longo feito

pelo seu predecessor, pois tal arrendamento equivalia a alienação, António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., v. “Maioratus”, n. 26.
2611 António Gomez, apud Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., dec. 95, n. 2 e 9, António da

Gama, Decisiones [...], cit., dec. 192, n. 3; este autor refere uma sentença favorável ao aforamento em
três vidas, mas discorda da decisão (António da Gama, Decisiones [...], cit. dec. 16), requerendo, pelo
menos, autorização do rei, disposição do instituidor ou sentença, ibid., dec. 192, n. 3.
2612 Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., dec. 70, ns. 28, 39 e 48.

454
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
ou se estivessem dados em enfiteuse por longuíssimo tempo2613.
§ 1569. Os atos de alienação eram nulos2614. Todavia, para proteger as expetativas do
comprador, não podiam ser desfeitos em vida do vendedor, mas apenas pelos sucessores, a
não ser que o comprador soubesse que se tratava de bens de morgado2615.
§ 1570. Os bens perdiam a natureza vincular se tivessem sido alienados (tricenal) nos
últimos trinta anos ou se houvesse memória disso2616. Os morgados também se extinguiam a
pedido do possuidor, mas com licença régia2617.
5.5 As capelas.
§ 1571. As capelas eram conjuntos de bens deixados a alguém (o patrono) com a
condição de, pelo seu rendimento, se mandarem rezar missas pela intenção estabelecida
pelo instituidor ou de outros encargos pios (missas rezadas ou contadas, aniversários,
sufrágios)2618. A sua finalidade era, portanto, diferente da dos morgados. Nas capelas não se
tratava de perpetuar a memória de uma família, mas de assegurar a realização perpétua dos
atos piedosos dispostos na instituição2619. Com ónus deste tipo ocorriam também nos
morgados, havia a necessidade de distinguir as duas instituições, pois os seus regimes
tinham especificidades. As Ordenações faziam isto – a propósito da definição das
competências dos provedores das comarca, a quem competia a tutela das capelas –
estabelecendo que se consideraria capela a deixa de rendimentos destinados ao sustento de
atos piedosos, reservando uma quota para a remuneração do possuidor ou administrador
desses rendimentos (ou bens)2620. Em contrapartida, seria morgado a deixa de rendimentos
ou bens com a obrigação de realizar atos pios, ficando o remanescente das rendas para o
administrador2621.

2613 Até 3 vidas, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Maioratus”, n. 25.; Miguel de

Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 70, n. 21 ss..


2614 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 133, n. 15.

2615 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 133, n. 16; Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.

Cons. 184, n. 13; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Maioratus”, n. 24.
2616 Prescrição aquisitiva da liberdade, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 132 n. 20; ibid.,

cons. 167, n. 17; Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec.,52, n. 1.
2617 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons 130, n. 18 ss..

2618 Cf. Luís de Molina, Tractatus de iustitia et de iure [...], cit., disp. 576; Bento Pereira,

Promptuarium [...], cit., ns. 136-141; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 3,10,1 ss..
2619 Assim, como nas capelas não estava em causa a memória da família, na falta de sucessores

parentes do instituidor, o rei devia nomear administrador, António da Gama, Decisiones [...], cit., dec.
193, dec. 288.(cita sentença antiga de desembargadores, neste sentido, ibid., dec. 280, n. 2).
2620 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 21, n. 1 (“Capella dicitur cum certa

quota administratoribus assignata”).


2621 “E por não vir em duvida qual he morgado ou capela, declaramos ser morgado, se na

instituição que dos bens os defuntos fizeram, for conteudo que os administradores, ou possuidores, dos
ditos bens cumpram certas missas, ou encargos, e o mais que renderem hajam para si, ou que os
instituidores lhes deixaram os ditos bens com certos encargos de missas, ou de outras obras pias. E se
nas instituições for conteudo, que os administradores hajam certa coisa ou certa quantia das rendas,
que os bens renderem, assim como o terço, quarto, ou quinto, e o que sobejar se gaste em Missas, ou
outras obras pias. Em este caso, declaramos não ser morgado, senão capela” ( Ord. fil.,1,62,53).

455
As sucessões.
§ 1572. O ónus tinha que ser perpétuo e tinha que estar expressa a inalienabilidade dos
bens, já que a linha sucessória encarregue de os administrar e de cumprir o encargo fora
escolhida pelo instituidor pela especial confiança que lhe mereceria. Se a alienalibilidade não
estivesse estipulada, tratar-se-ia de uma doação ou deixa com encargos pios, eventualmente
perpétuos e, por isso, transmitidos com a coisa, mas não de uma capela2622. Perpetuidade de
vinculação era, então, uma característica essencial das capelas.
§ 1573. O regime da instituição, sucessão e condições de administração das capelas era
o mesmo dos morgados2623 2624. Na satisfação do ónus devia atender-se ao disposto na carta
de instituição, embora a doutrina formulasse normas interpretativas e supletivas2625.
§ 1574. Às obrigações de administração da capela e de satisfação dos seus encargos
pios, correspondiam direitos dos patronos quanto à apresentação dos benefícios e ofícios
associados e quanto à retenção de certa parte dos rendimentos (v. antes § 428).
§ 1575. A legislação pombalina estabeleceu para as capelas um regime diferente do dos
morgados. A Lei de 9.9.1769 determinou. (1) a obrigatoriedade de licença régia (ou do
Desembargo do Paço) para a instituição de capela em bens móveis ou em dinheiro, §§ 14 e
17; (2) a inadmissibilidade de encargos pios que excedessem a décima parte dos
rendimentos anuais dos bens da capela, § 19; (3) a extinção das capelas de rendimento para
o administrador inferior a 100 000 rs. anuais, § 21; (4) a integração na Coroa, sem os
encargos, das que vagassem por qualquer titulo, ibid2626.
5.6 Partilhas e colações.
§ 1576. Uma vez aceite a herança e sendo vários os herdeiros, havia que proceder à
partilha dos bens, concretizando as partes alíquotas a que cada herdeiro tinha direito. Como
alguns dos herdeiros (herdeiros necessários, herdeiros do seu, heredes sui) podiam ter
direitos “naturais” sobre uma quota da herança (as legítimas), havia também que calcular
essa parte e saber se algumas das liberalidades do de cujus, feitas em vida ou no
testamento, violavam este seu dever de respeitar as legítimas dos herdeiros necessários
(i.e., se eram contrárias a esses deveres, ou inoficiosas), a fim de serem reduzidas aos seus
limites. Era disto que se tratava nas partilhas e colações2627

2622 Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 68, ns. 18 ss; Melchior Febo, Decisiones [...],

cit., dec 119, ns. 9 ss.; Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 96, n. 1.
2623 Em todo o caso, não era válida a instituição de capela, em que fossem chamados à

administração igreja, mosteiro, religiosos ou clérigos, Manuel Mendes de Castro, Practica [...], cit., t. 2,
liv. 1, cap. 11, n. 94.
2624 As capelas fundadas por D. Afonso IV na Igreja de Lisboa (“capelas de D. Afonso V”), com

importantes rendimentos e senhorios, eram administradas por um provedor e ouvidor especiais, do qual
se apelava Mesa da Consciência (Reg. De 3.1.1561), Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit.,
3,10,9
2625 Como se deviam cumprir as obrigações de missas, Miguel de Reinoso, Observationes [...],

cit., obs. 7; como se procedia no caso de os rendimentos serem insuficientes para os ónus, Ord.
fil.,1,62,55.
2626 Atendendo à ofensa de situações consolidadas à sombra do direito anterior, o Decreto de

17.7.1778 suspendeu, até à promulgação do Novo Código, os §§ 18, 19, 20 e 21 da referida lei, que
dispunham sobre a extinção das instituições vinculares insignificantes, e da abolição ou redução dos
encargos pios, permitindo a instituição de, desde que o Rei as autorizasse, § 8.
2627 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Collatio”; Bento Pereira, Promptuarium [...],

456
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 1577. A partilha fazia-se ou extrajudicialmente, por acordo entre os herdeiros, reduzido
a escrito se isso fosse obrigatório2628, ou por meio de partidores (avaliadores, partidores,
escolhidos pelas partes, pela câmara do lugar pelo juiz, Ord. fil.,3,17,2), ou judicialmente
(Ord. fil.,4,96,18). O próprio testador podia proceder, em vida, à partilha, para prevenir
futuros dissídios2629. A divisão feita amigavelmente entre os filhos em vida do de cujus podia
ser revogada até à morte deste2630. Mas a que fosse feita por contrato entre pais e filhos
emancipados não podia ser revogada, de acordo com a regra de que as partilhas feitas não
se desfaziam2631.
§ 1578. A partilha judicial efetuava-se, no direito romano, por meio da actio familiae
erciscundae, uma espécie de reivindicatio posta à disposição dos herdeiros legítimos ou
testamentários, com título, para reclamar de um herdeiro a divisão da herança2632. Distinguia-
se da ação de petição da herança, logicamente anterior, que era dada a um herdeiro com
título para ser reconhecido como tal por alguém que lhe negava essa qualidade,
nomeadamente, um possuidor sem título dos bens hereditários2633. Uma e outra fundavam-
se no facto de que o herdeiro tinha um direito real sobre a herança, uma vez esta aceite por
ele. Em pouco se distinguiam da reivindicação2634. Uma lei de D. Afonso IV, depois inserida
nas Ordenações, importara para o direito pátrio o núcleo do regime da tradição
romanística2635.
§ 1579. Qualquer herdeiro podia propor a ação de partilhas, devendo serem todos
citados. A partilha era pedida ao que estivesse na posse dos bens hereditários (cabeça de
casal, frequentemente, o cônjuge sobrevivo ou um dos filhos herdeiros2636).
§ 1580. O possuidor da herança devia fazer o inventário da herança, dentro de 30 dias a
contar do falecimento2637. Nele se descreviam todos os bens imóveis, móveis e dívidas, e
seus valores avaliados por louvados2638. As coisas alheias na posse do de cujus
(comodadas, depositadas, recebidas em penhor) deviam ser descritas como tal, indicando o

cit., vs. “Collationes”, “Divisio”, “Partitio”; Álvaro Valasco, Praxis partitionum et collationum, inter
haeredes, […], cit.; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,12.
2628 O que acontecia se o valor da herança excedesse certa quantia (Ord. fil.,3,59).

2629 Cf. Álvaro Valasco, Praxis partitionibus […], cit., cap. 20, 3.
2630 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 127, ns. 1-2.
2631 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 127, ns.4-5 e 7.

2632 Cf. D.10.2 Familiae erciscundae; C.,3.36 Familiae erciscundae. Cf. Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,12,1.


2633 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,12,1.

2634 Não se pedia coisa certa e determinada, mas uma universalidade; prescreviam por 30 anos,

como ações pessoais, e não por um ano, como a reivindicatio, uma ação real.
2635 Ord. af., 4,107, Ord. man.,4,77, Ord. fil.,4,96; v. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...],

cit., 3,12,2.
2636 Cf. v. Ord. fil.,4,95, pr.; Ord. fil.,4,96,9; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit.,

3,12,5.
2637 Havendo menores de 25 anos, o inventário devia ser feito pelo juiz dos órfãos (Ord.

fil.,1,88,4).
2638 V. Ord. fil.,1,88,5.

457
As sucessões.
título a que estavam na herança2639.
Coisas alheias eram também os bens vinculados, pois
não entravam na herança nem neles se sucedia iure hereditario, mas por uma vocação
especial (v. 5.4)2640. Daí que não devessem entrar no inventário, a não ser para as declarar
estranhas à sucessão, nem deveriam ser trazidas à colação (v. a seguir).
§ 1581. Os legados não se partiam, pois o seu destino tinha sido estipulado pelo
testador. A partilha também podia resultar de uma divisão feita informalmente pelos filhos e
mantida por longo tempo2641. As despesas pendentes imputavam-se ao acervo comum e
dele se deduziam: funeral, pagamento de soldadas, alimentos em dívida, arras não pagas.
Também os frutos pendentes eram imputados ao comum2642.
§ 1582. Os quinhões eram feitos pelo juiz e atribuídos por ordem sua2643. Havia coisas
que não admitiam divisão, ou pela própria natureza ou por disposição do direito. À primeira
categoria pertenciam as materialmente indivisíveis e todas as que se destruiriam com a
divisão (como o escravo, o cavalo, o lagar, o moinho). À segunda categoria pertenciam as
ações e os direitos incorpóreos (como as servidões2644, dívidas e créditos). Neste caso, as
coisas deviam ser atribuídas a um dos herdeiros, que compensava os outros pelo valor da
quota que lhes pertencesse (das tornas); também podiam permanecer em comunhão,
vender-se ou arrendar-se, distribuindo-se pelos herdeiros uma quota do rendimento2645.
Também a enfiteuse hereditária ou familiar não se dividia, devendo ser encabeçada num dos
herdeiros (v. 4.3.3).
§ 1583. A distribuição natural da herança entre os filhos era a igualitária2646, embora se
admitisse que o de cujus quisesse introduzir diferenças entre os herdeiros, favorecendo uns
mais do que os outros, ainda em vida, por partilha por ele feita; ou, depois da morte, por
especiais legados feitos no testamento, ressalvada sempre a parte que cada um tinha
forçosamente que ter na herança (legítima). Isso fazia com que se devessem levar em conta,
no momento da partilha, as liberalidades feitas ainda em vida pelo pai aos filhos, para
determinar duas coisas. A primeira era saber se a doação em vida era apenas um
adiantamento da parte que o filho teria na herança ou era antes uma liberalidade especial
que cumulava ao quinhão hereditário. Ou seja, se a doação era por conta da legítima ou
antes por conta da quota disponível. A outra questão era a de saber se, tratando-se de uma
liberalidade extra feita pelo pai a um dos filhos ela cabia na quota disponível (na terça) de
que o pai podia livremente dispor ou se, pelo contrário, ofendia a legítima dos outros filhos.
Para isto serviam as colações.
§ 1584. A colação2647 era a apresentação pelos filhos à herança das coisas ou rendas

2639 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,12,11.
2640 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit. dec. 96, ns. 4-5; Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,12,9.
2641 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 320, n. 5.

2642Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 308.


2643V. Ord. fil.,4,96, 2, Ord. fil.,4,96,6. Na partilha extrajudicial dominava uma regra que era tida
como sendo a mais equitativa: dividia o mais forte e escolhia o mais fraco.
2644 O seu exercício pode ser dividido.

2645 V. Ord. fil.,4,96,5; cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,12, 8.
2646 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Collatio”, cit., n. 21.
2647 A palavra colação tinha dois significados em direito: esta, de trazer bens à herança (collatio

458
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
recebidas do pai por doações em vida2648, para serem calculadas as legítimas de todos os
filhos e verificado se estas doações as ofendiam2649.
§ 1585. Só os herdeiros que tinham legítimas (os herdeiros forçosos) é que tinham que
que trazer as doações à colação2650. Por isso, esta obrigação não impendia sobre herdeiros
que não os filhos2651 (ascendentes, outros parentes, estranhos, filhos bastardos não
legitimados de nobres2652). Como também não impendia sobre os filhos que recusassem a
herança (e que, portanto, não eram herdeiros)2653.
§ 1586. Depois, estes filhos só tinham que trazer à colação os bens que tivessem
recebido dos pais como liberalidade; ou seja, os bens que os pais lhes tivessem doado por
força da quota disponível, como liberalidade adicional. Esta liberalidade não se presumia,
antes se partindo do princípio de que as doações em vida eram antecipações daquilo que os
filhos iriam herdar. E, por isso, as doações tinham que ser trazidas à colação, para serem
calculadas e, eventualmente, reduzidas2654; mesmo que o de cujus declarasse que queria
beneficiar o filho e tornar essa doação definitiva, pois ele nunca poderia prejudicar a legítima
dos outros2655.
§ 1587. Em contrapartida, não tinham que ser conferidas (trazidas à colação) aquelas
dádivas que correspondessem ao cumprimento de deveres parentais2656, pois não se tratava
de liberalidades. Nem tão pouco eram conferidos os bens que fizessem parte de pecúlios
que os filhos tivessem ganhado com o próprio trabalho (como os pecúlios adventício,
castrense e quase castrense)2657 ou que o filho tivesse recebido de outrem que não o pai

bonorum), e a de provimento (provisio) num ofício eclesiástico, António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., v. “Collatio”, cit., n. 2 [a 19]).
2648 Também o ofício comprado para o filho tinha que ser trazido à colação, António Cardoso do

Amaral, Liber [...], cit., v. “Collatio”, cit., n. 32.


2649 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,12,12.

2650 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Collatio”, cit., n. 22.

2651 Ou netos que representassem um filho pré-morto ou que tivessem recebido doações de seu
avô, que pudessem ser reputadas como adiantamentos da herança do pai, António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., n. 29..
2652 V. Ord. fil.,4,97,pr..

2653 Cf, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Collatio”, n. 43.

2654 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Collatio”, n. 24.
2655 Noutros direitos, as doações aos filhos podiam ser definitivas, por não haver garantia de
legítima, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Collatio”, cit., n. 28.
2656 Como as despesas, com comida, criação, vestido e educação, tudo proporcionado ao estado

da família. Nomeadamente, cabiam aqui, as vestes quotidianas, mas não as de festa ou as joias, as
despesas com estudos (se o filho foi preguiçoso e não obteve aproveitamento, as despesas deviam vir
à colação), o ensino de ofício e as despesas com viagens, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Collatio”, cit., n. 25, 32-33, 38; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 12. Os dotes de
matrimónios espirituais ou carnais eram da obrigação dos pais e, logo, não vinham à colação (Ord.
fil.,4,97,pr.), António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Collatio”, cit., n. 31. O mesmo com as
quantias pagas para livrar o filho da cadeia ou para pagar os delitos por ele cometidos, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n., 36.
2657 Grosso modo, bens recebidos de terceiros intuitu personae, bens adquiridos em ofício ou

profissão, bens adquiridos na milícia), António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Collatio”, cit., n.
40-41. Se o pai fosse rico e o filho indolente, presumia-se que os bens que administrava eram do pai; o

459
As sucessões.
(v.g., as doações régias)2658.
Já o pecúlio profectício, na realidade pertencente ao pai, mas
entregue ao filho para administração, devia ser conferido2659.
§ 1588. Como já se disse, o morgado não vinha à colação, porque não fazia parte da
herança. Por outro lado, não podia ser instituído em prejuízo das legítimas dos filhos ou, a
menos que isso tivesse sido validado por licença régia (v. 5.4)2660.
§ 1589. Se as liberalidades trazidas à colação, avaliadas no momento da morte,
excedessem a quota disponível e ofendessem a legítima dos outros filhos, eram
consideradas excessivas ou inoficiosas (v. Ord. fil., 4,97,4 n. 13) e reduzidas ou anuladas2661.
§ 1590. À partilha seguia-se a entrada em posse, que não era adiada pelos eventuais
recursos2662. Uma vez feitas, as partilhas não podiam rescindir-se, a não ser em casos muito
contados (erro, lesão enorme). Mas podiam ser reformadas ex aequo et bono2663.

contrário, se o pai fosse pobre e o filho trabalhador. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 26
e 27. Cf. 3.2.4.
2658 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Collatio”, cit., n. 30.

2659 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Collatio”, cit., n. 25-26.

2660 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit. dec. 96, ns. 4-5.
2661 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,12,13.
2662 V. Ord. fil.,4,96,22; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,12,14.

2663 V. Ord. fil.,4,96,18. Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit. cons. 168, n. 2 (“Hodie per legem

extravagantem non rescinduntur”); Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,12,14-15.

460
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
6 As obrigações.
6.1 Introdução.
§ 1592. As “obrigações” tiveram uma autonomização mais problemática como uma das
divisões principais do direito (ao lado das “pessoas”, das “coisas” e das “ações”). Nas
Instituições de Justiniano, a matéria das obrigações ocupa os título 3, 13 a 4, 5, dividindo-se
assim por dois livros, mas sendo anunciada como uma das divisões do direito civil (“Nunc
transeamus ad obligationes […]”)2664. No entanto, nem corresponde ao título ou epígrafe de
nenhum dos quatro livros, nem aparece na conhecida classificação das partes do direito
(pessoas, coisas e ações) 2665. Por isso, no direito comum tardio suscita sempre esse
problema da relação das obrigações com as “partes” do direito.
§ 1593. Um dos autores que discute a questão longamente é Arnold Vinnius2666. Na
anterior tradição romanística, as obrigações eram incluídas em alguma das três partes
referidas no Digesto. A tradição mais antiga, em que se incluiria um dos autores das
Instituições de Justiniano, Teófilo, e o grande Acúrsio, incluía as obrigações na parte das
ações, solução insinuada por ventura pela ordem dos títulos das Instituições, em que o
tratamento das obrigações antecede imediatamente o das ações, sendo como que um seu
proémio. No plano argumentativo, Vinnius justificava esta precedência das obrigações em
relação às ações pela ideia de que as obrigações eram a causa das ações e como que “as
suas mães” . Uma tradição mais moderna, que Vinnius identificava com Hermann
2667

Vulteius (1565-1634; Commentarius in Institutiones iuris civilis, 1598), considerava que as


obrigações pertenciam ao direito das pessoas, como sua inerência ou extensão . Vinnius
2668

tão pouco ousou autonomizar a matéria das obrigações, antes a incluindo na parte das
coisas, como um dos tipos de vínculos que as ligavam às pessoas, neste caso um direito a
elas (ad rem), enquanto no caso do vínculo tratado propriamente no livro das coisas se
trataria de um direito sobre elas (in re).

2664 Segue: “[…] Obligatio est iuris vinculum, quo necessitate adstringimur alicuius solvendae rei,
secundum nostrae civitatis iura. […]”, 1, 3, 13, pr..
2665 Esta divisão aparece num fragmento do Digesto (D.1,5,1 extraído das Institutiones de Gaio:

“Gaius libro primo institutionum, Omne ius quo utimur vel ad personas pertinet vel ad res vel ad
actiones”; isto não aparece nas Institutiones de Justiniano, embora se lhe aluda implicitamente (em 1,
3, pr., 2, 1, pr. e 4, 1, pr.). No entanto, estas estão divididas em quatro livros, e não em três, e esta
divisão não é consistente com a sistematização em pessoas, coisas e ações. O livro II é heterogéneo e
a matéria alegadamente das ações (nas quais estariam incluídas as obrigações) está dividida, com
critério pouco aparente, pelos livros 3 e 4 (em 4, 1, pr.. sugere-se que nos títulos do livro 3 se trata das
obrigações ex contrato e nos do livro 4, das que provêm de delito; mas nem isto se observa).
2666 No seu Commentarius às Instituições (Commentarius in quatuor libros Institutiononum […],

cit., ad 3, 14; que corresponde a 3, 13, na ed. de Krüger).


2667 Vinnius contrapõe que as obrigações também podem ser consideradas como a causa dos

direitos sobre as coisas (in rebus), na medida em que estes se estabelecem na sequência de direitos
às coisas (ad res), que correspondem a obrigações (ibid., ad 3, 14, n.2).
2668 Vinnius observa que isto pode ser dito de institutos como o uso ou o usufruto, que a doutrina

incluía pacificamente na parte das coisas, além de que os direitos e deveres das obrigações não
variariam com o estado das pessoas e, por isso, não caberiam em direitos definidos como “quod
persona assistit quatenus persona est, id est jus, quisque in civitate sensetur propter statu et qualitatem
personae suae” (ibid., ad 3, 14, n.2)..

461
As obrigações.
§ 1594. Esta menor visibilidade das obrigações no plano da taxonomia jurídica do ius
commune explicará o caráter disperso do seu tratamento e a sua quase irrelevância como
categoria que agrupasse as matérias comuns a vários institutos e negócios jurídicos e
permitisse construir uma dogmática comum a eles.
§ 1595. As Institutiones contém uma escorreita definição de obrigação: “um vínculo
jurídico em razão do qual somos forçados a pagar, fazer ou disponibilizar algo a alguém, de
acordo com o direito da nossa cidade”, I.,3,13). E prosseguem, indicando as suas espécies:
civis e pretórias ou contratuais, quase contratuais, delituais e quase delituais . Esta
2669

definição proemial, com as suas divisões, é muito semelhante à que se faz para as actiones;
e permitiria um tratamento encadeado (ex genere et differentia) das figuras que geravam
deveres e os correspondentes direitos. Porém, o direito comum não desenvolveu, a partir
desta definição e classificação anexa, uma “teoria geral das obrigações” com o âmbito e
desenvolvimento que lhe virá a dar a pandectística do séc. XIX .
2670

6.2 A fonte do vínculo obrigacional.


§ 1596. O desenvolvimento dogmático de I.,3,13 ocupa-se principalmente da fonte do
vínculo obrigacional, nomeadamente da eficácia da natureza (da razão natural) na geração
de obrigações, uma questão cuja importância foi crescendo, mesmo ainda no direito romano,
à medida que se ia tornando obsoleta a conceção formalista e ritualista do direito romano
mais antigo, para a qual só declarações formalizadas e rituais podiam gerar obrigações
jurídicas. Já o direito justinianeu, no passo citado, salientava a variedade das fontes das
obrigações (“Segue-se a divisão em quatro espécies; na verdade, as obrigações são
provenientes de um contrato, ou de um como que contrato, ou de um malefício (delito) ou de
um como que malefício. Primeiro devemos considerar as que provêm de um contrato.
Destas, há quatro espécies: é que ou se contrata em virtude de uma coisa [que se entrega
ou se recebe] (re) ou por palavras, ou por escrito ou por consenso”, I.,3,13,2). Na fase tardia
do direito comum já eram raras as obrigações cuja fonte fosse exclusivamente o formalismo
do direito civil estrito. Quase todas tinham fundamento fora dele, naquilo que era descrito
como a razão natural, como quer que esta fosse entendida.
§ 1597. A doutrina jurídica moderna relaciona-se, no plano do tratamento dogmático da
obrigação, com um período de transição entre uma conceção antiga, predominantemente
objetivista da obrigação e uma conceção moderna, em que a obrigação é vista como uma
consequência de elementos subjetivos, a vontade das partes2671 2672. A valorização do

2669 “1. Omnium autem obligationum summa divisio in duo genera deducitur: namque aut civiles

sunt aut praetoriae. civiles sunt, quae aut legibus constitutae aut certe iure civili comprobatae sunt.
praetoriae sunt, quas praetor ex sua iurisdictione constituit, quae etiam honorariae vocantur. 2.
Sequens divisio in quattuor species deducitur: aut enim ex contractu sunt aut quasi ex contractu aut ex
maleficio aut quasi ex maleficio. prius est, ut de his quae ex contractu sunt dispiciamus. harum aeque
quattuor species sunt : aut enim re contrahuntur aut verbis aut litteris aut consensu. de quibus singulis
dispiciamus”, I.,3,13,1.
2670 Ou seja, fontes das obrigações, capacidade obrigacional, objeto das obrigações,

cumprimento e incumprimento, transmissão e extinção das obrigações.


2671 A oposição entre estes dois conceitos de obrigação foi magistralmente desenhada por Michel

Villey (“Préface historique à l'étude des notions de contrat", em Archives de philosophie du droit,
13(1968), 1-11), que destaca de que modo a ideia dominante até ao jusracionalismo foi a de que a
fonte das obrigações residia em tipos objetivos de relacionamento entre as pessoas, pouco modeláveis
pela vontade das partes. O individualismo jusracionalistas (sobretudo dos filósofos e dos moralistas,

462
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
consenso como fonte da obrigação, já presente no direito justinianeu2673, tinha sido reforçada
pela posição dos canonistas de que o cumprimento de uma promessa era também exigível
no plano teológico, como forma de evitar o pecado da mentira. Mas ainda permaneciam
muitos vestígios de outros fundamentos – digamos, objetivos - da obrigação, bem como da
ideia de que estes mesmos dados objetivos – de natureza, de justiça – podiam limitar a
capacidade vinculativa das promessas. Ou seja, permanecia muito de um conceito pluralista
das fontes da obrigação, não se tendo ainda verificado a consolidação do consensualismo
que caraterizará o direito jusracionalista2674.
§ 1598. Na doutrina portuguesa seiscentista, o conceito de “obligatio” não despertava
grande entusiasmo2675.
§ 1599. Quem lhe dedica um pouco mais de atenção é António Cardoso do Amaral que,
no respetivo verbete2676, aborda muito brevemente alguns pontos dispersos sobre a
capacidade para se obrigar e sobre os requisitos do objeto da obrigação, antecedidos por
algumas notas sobre as questões conceituais mais gerais.
§ 1600. A obrigação era aí definida como um vínculo de direito que obrigava
necessariamente (necessitate) a dar ou a fazer algo a alguém2677.
§ 1601. A “necessidade” deste vínculo podia provir, ou apenas da natureza, ou apenas
do direito positivo, ou de uma coisa e outra.
§ 1602. As obrigações que provinham apenas da natureza (obrigações meramente
naturais) vinculavam porque, tendo o obrigado consentido na obrigação, a equidade natural
(ou razão natural e da gentes2678) obrigava cada um a cumprir as suas promessas2679.

não dos juristas), não apenas instalou uma nova conceção voluntarista da obrigação, como releu e
reinterpretou a esta luz os textos anteriores.
2672 Cf. Emílio Bussi, La formazione dei dogmi di diritto privato nel diritto commune (diritti reali e

diritti di obligazione), cit. (vol. 2); Reinhard Zimmermann, The law of obligations […], cit.; Raffaele
Volante, “I giuristi e il contrato”, em Trecanni.it (2012) (http://www.treccani.it/enciclopedia/i-giuristi-e-il-
contratto_%28Il_Contributo_italiano_alla_storia_del_Pensiero:_Diritto%29/) (glosadores); Andrea Massironi,
Nell'officina dell'interprete. La qualificazione del contratto nel diritto comune […], cit. (comentadores e
pós-comentadores).
2673 Cf. Lihong Zhang, Contratti innominati nel diritto romano […], cit..

2674 Que alguns entendem ter sido decisivamente preparado pela Segunda Escolástica. Cf., neste

sentido, Wim Decock, Theologians and Contract Law: […], cit., numa narrativa que tende a valorizar os
germes voluntaristas e “liberais” da doutrina jurídica moderna das obrigações e dos contratos.
2675 Cf. a magreza das referências a “obligatio” em Bento Pereira, Promptuarium […], cit;

Agostinho Barbosa, Repertorium […], cit., v. “Obligatio”; António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v.
“Obligatio”; ou no índice de Manuel Álvares Pegas (v. Manuel Solano do Vale, Index […], cit., v.
“obligatio”).
2676 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit..

2677 “Vinculum iuris quo necessitate astringimur ad alinquem dandum vel faciendum”, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 1.
2678 “Quaedam est inducta ratione natural, vel gentium, quae ex conventione, seu promissione

oritur”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 2.


2679 “Naturalis tantum est illa, quae contrahitur per consensum inter quemcumque capacem

rationis, et ahec obligatio non obligat nisis ex aequitate naturali, qua tenetur unusquisque adimplere
promissa”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 1.

463
As obrigações.
Mesmo aqui, o que era “natural” não era a liberdade da vontade, mas o cumprimento das
promessas: expressa uma vontade, a equidade ou razão naturais obrigavam a que se
cumprisse. Mas continuava a haver coisas que não se podiam legitimamente querer, por
contrariarem a natureza2680 ou a justiça2681. Ou que, podendo ser queridas, não era natural
que se exigisse o seu cumprimento, por exemplo, por terem mudado radicalmente as
condições que se verificavam à data em que se tinha querido2682. Num único caso se
entendia que o cumprimento da promessa se devia manter apesar da torpeza do objeto da
obrigação, o das promessas ratificadas por juramento (e, mesmo assim, apenas no caso de
a intenção torpe ter sido apenas do credor), por aí estar em causa a salvação da alma2683.
§ 1603. Mas havia uma segunda espécie de obrigações naturais2684, as que decorriam
apenas do instinto da natureza, despertado por serviços ou benefícios recebidos, que fazia
com que cada um se sentisse naturalmente obrigado a fazer bem aos que o tivessem
beneficiado2685. Manuel Álvares Pegas vai ainda mais longe no reconhecimento deste âmbito
natural das obrigações, ao dizer que se estava obrigado a fazer todo o que beneficiasse
outrem e não prejudicasse o próprio2686
§ 1604. Embora Amaral não fale delas neste sitio, a doutrina contemplava ainda um
terceiro género de obrigações naturais, em que a “natureza” (ou seja considerações sobre a
equidade natural das situações) tinha um impacto de outro tipo: não o de criar uma
obrigação, mas antes o de levar o direito civil a limitar os efeitos de uma promessa, não
atribuindo uma ação ao credor, mas apenas um direito de retenção da prestação. Era o que
se passava nos casos em que a obrigação não era tutelada por uma ação mas dava ao
credor, não o direito de a exigir, mas apenas o de reter o que lhe fosse pago
voluntariamente. Isto acontecia com as obrigações do pupilo, já capaz de entender (puber),
contraídas sem intervenção do tutor ou curador; com as fianças dadas pela mulher, em
contravenção com o senatusconsulto Velleianum ; ou do menor que tivesse contraído
2687

mútuo, contra as disposições do senatusconsulto Macedonianum ; ou das obrigações


2688

acessórias estabelecidas num contrato reprovado pelo direito (Ord. fil.,4,48,1). Embora estas
obrigações não dessem origem a uma ação, pelo que o credor não as podia exigir em juízo,

2680 I.e., havia objetos impossíveis que invalidavam a obrigação (ad impossibilita nemo cogitur;

D.50,17,135: [Ulpianus] “Ea, quae dari impossibilia sunt vel quae in rerum natura non sunt, pro non
adiectis habentur”), António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 10.
2681 De pacto ou promessa torpe não surge nenhuma obrigação, António Cardoso do Amaral,

Liber [...], cit., n. 14.


2682 “Obligatio generalis semper censetur continere tacitam conditionem, si res in eodem statu

persistat, quo era tempore contractus”, pelo que a obrigação não valia para uma circunstância nova e
não pensada, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 12.
2683 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 14.

2684 A mesma sistematização aparece em S. Tomás, Summa theol., 2a.2ae., qu. 106, arts. 4 a 6.

2685 “Secundam est obligatio naturalis, aque causatur solum instinctu naturae, propter servitia, seu

benefitia, & ita naturaliter obligamur benefacere benefacienti nobis”, António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., n. 2.
2686 “Quod mihi prodest, & tibi non nocet, teneris facere”, Manuel Álvares Pegas, Commentaria

[…], cit., n. tomo 6, ad 1,68, gl. 27, n. 28 (p. 71).


2687 Este senatusconsulto (46 d.C.) proibia as mulheres de serem fiadoras.

2688 Este senatusconsulto (27 a.C, ) proibia os menores de pedirem dinheiro emprestado (mútuo).

464
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
tinham certos efeitos das obrigações, nomeadamente, o de impedir o devedor natural que
tivesse pago espontaneamente de repetir o que pagou, como indevido (condictio indebiti) ou
o de autorizar o credor a compensar com este crédito natural um débito civil que tivesse em
relação ao mesmo devedor .
2689

§ 1605. Até que ponto é que o direito civil acolhia estas consequências da equidade ou
razão natural, atribuindo aos credores uma ação ? Ou seja, que relação havia entre as
obrigações naturais e as obrigações civis ?
§ 1606. Do primeiro grupo de obrigações naturais, umas eram corroboradas pelo direito
civil, dando lugar a uma ação, como no caso de uma convenção prevista pelo direito positivo
(legitima conventio)2690. Outras não tinham este amparo do direito civil, não dispondo
portanto o credor de uma ação para fazer cumprir a obrigação2691.
§ 1607. As obrigações naturais do segundo grupo (as que que provinham do benefício e
da gratidão) nem seriam rigorosamente jurídicas, pois o seu fundamento era esse “instinto da
natureza”, mas nem sequer a equidade ou razão natural ou das gentes. Tratamos delas a
propósito do estatuto jurídico dos atos gratuitos ou liberais, aí se vendo que elas geram, não
rigorosamente um débito (e uma obligatio), mas um quasi-debitum (e uma quasi obligatio ou
obligatio antidoralis). A estas obrigações chamava-se antidorais ou remuneratórias, sendo
geradas, não por uma convenção, mas pelo próprio facto do benefício, em virtude de um
impulso natural que obrigava à gratidão e à remuneração. Como obrigação natural, este
vínculo obrigava todas as pessoas capazes de razão, independentemente do seu estado
(mesmo os escravos ), que tivessem recebido um favor ou benefício: uma doação, a
liberdade, etc.. Ao passo que as obrigações civis não obrigavam senão pessoas capazes de
vontade, estão recaíam sobre capazes e incapazes, todos eles sensíveis aos instintos
naturais. Por vezes, o vínculo antidoral seria tão forte que daria origem a uma ação para
exigir a prestação remuneratória (“dava ação”). O exemplo mais notável, no direito comum,
era o da retribuição, por meio de mercês, dos serviços prestados pelos vassalos. Outras
vezes, a obrigação antidoral apenas tinha como efeito impedir o concedente de retirar a
concessão (como se ela fosse gratuita ou indevida), tornando a doação (”remuneratória”)
irrevogável pelo doador. Ideia que também se aplicava no contexto das doações feitas em
remuneração de serviços, nomeadamente pelos reis.
§ 1608. Excecionalmente, havia, em contrapartida, obrigações que apenas obrigavam
por direito civil, não gozando de qualquer obrigatoriedade no plano da razão ou dos instintos

2689 António Cardoso do Amaral, Liber […]¸ v. “Obligatio”, n. 6-8; Arnold Vinnius, Commentarium
[…], cit., ad I., 3, 14, n. 8, pg. 696 in cap.; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 1, 5.
Outras obrigações do mesmo tipo eram as que impendiam sobre o testamenteiro de um testamento
nulo por falta de forma quanto ao cumprimento das disposições testamentárias (Arnold Vinnius,
Commentarium […], cit., ad 3, 14, n.8); ou a de pagar as dívidas de jogo (v. António Cardoso do
Amaral, Liber […], cit., v. “Ludus”, n. 4)
2690 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 2.

2691 Os exemplos destes últimos casos relacionavam-se os dois com obrigações criadas por

pactos que, na tradição do direito romano, não davam origem a ações de direito civil (actiones legis),
mas apenas – quando muito – a exceções (D. 2,14 De pactis, 1). Era o caso de se apor a um contrato
um pacto pelo qual o credor não pudesse reclamar o crédito em juízo (pacto de non petendo), ficando o
credor obrigado apenas naturalmente a não chamar o devedor a juízo (António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., n. 2); ou o caso de alguém se ter obrigado ao pagamento de certa quantia por um pacto
nu (António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 2).

465
As obrigações.
naturais. Era o caso de alguém ter contraído uma obrigação formalmente válida perante o
direito, mas que se justificava perante a equidade ou os afetos naturais2692.
§ 1609. Todavia, o mais comum eram as tais obrigações naturais corroboradas pelo
direito civil – tanto naturais como civis -, surgidas quando alguém se tivesse obrigado tendo
capacidade para o fazer e fazendo-o com as solenidades exigidas pelo direito. Ficando então
vinculado juridicamente e sujeito aos meios de constrangimento do direito (nomeadamente, a
uma ação). Esta obrigação perante o direito civil fazia-se por contrato (ex contractu), por
delito (ex delicto), por uma situação que o direito tratava como contrato (ex quasi contractu)
ou como delito (ex quasi delicto)2693.
§ 1610. Compreendendo uma gama tão vasta de vínculos, difícil era que a obrigação
suscitasse uma teoria geral, como a que veio a aparecer mais tarde. Já nas Institutiones, de
Justiniano, o parentesco dos temas tratados nos preceitos dos títulos dedicados às
obrigações é prejudicado pelas divisões destas em espécies (re, verbis, litteris, consensu)
com um regime jurídico muito diferente2694. No citado verbete “Obligatio”, António Cardoso do
Amaral apenas consegue reunir, neste âmbito genérico, duas regras sobre capacidade
obrigacional2695, e menos de meia dúzia sobre termo e mora das obrigações2696. O resto dos
temas gerais seria tratados noutros verbetes (contractus2697, debitum) ou sob os nomes dos
vários contratos (emptio venditio, locatio conductio, societas, mandatus; mas também
commodatum, depositum, etc.).
6.3 A ascensão do consensualismo.
§ 1611. Entre estes temas tratados por António Cardoso do Amaral no verbete “obligatio”
não estão o das condições da eficácia jurídica da vontade. Isso também torna ainda
problemático que o consensualismo fosse o eixo principal da dogmáticas das obrigações. De
facto, se o assentimento comum (consenso) era um elemento importante neste domínio,
igualmente importantes eram outros elementos que podiam fundamentar o vínculo
obrigacional ou limitar a eficácia do consenso e que também eles apareciam muito em
destaque no universo textual tido como referência para a dogmática jurídica moderna2698.
Entre estes elementos contam-se: (i) a observância de fórmulas e rituais, como na stipulatio;
(ii) a justiça substancial das promessas, como o estabelecimento de um preço justo; (iii) a
consideração de cláusulas substanciais ou naturais de cada tipo contratual (substantialia e
naturalia contractus); (iv) a naturalidade de certos instintos como a gratidão; (v) uma certa
lógica material das situações (como a entrega de um objeto a outrem, nas expetativa de o

2692 O exemplo é o de alguém que, na expectativa de uma futuro recebimento que acabou por
não ter lugar, fez um documento em que declarou ter recebido, comprometendo-se a pagar, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 4.
2693 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., ns. 5 e 6.

2694 Cf. I.,3,14 ss..

2695 Dos escravos, quanto às obrigações naturais, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n.

10; dos escravos e filhos família quanto às obrigações civis, ibid., n. 21.
2696 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., ns. 15 a 18.

2697 O próprio Digesto continha um texto que incitava à equiparação entre obrigação e contrato:

D.5,1,20: [Paulus], “Omnem obligationem pro contractu habendam existimandum est, ut ubicumque
aliquis obligetur, et contrahi videatur […]”.
2698 Nomeadamente, o texto das Institutiones, 3,13 a 3,27.

466
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
receber de volta, a gestão de negócios de outrem); (vi) a produção de danos, não por dolo,
mas com culpa grosseira. Nada disto tinha a ver com a vontade; muitas vezes, contrariaria
mesmo a vontade. Mas tinha como consequência gerar obrigações) (v. cap. 6.6).
§ 1612. Fosse como fosse, a vontade de se obrigar havia de ser válida (“livremente
consentida”, cf. Ord. fil.,3,34,1;Ord. fil.,4,71) ou seja, isenta de vícios da vontade, como o
erro, o dolo ou a coação2699. Os celebrantes haviam de ter suficientes mens et memoria2700.
A simples perturbação do espírito, como a causa pela ira momentânea, prejudicava a sua
validade2701.
§ 1613. Assim, na maior parte dos tipos obrigacionais – as que derivavam de pactos e
contratos - o consentimento - e, portanto, a vontade - eram elementos realmente
constituintes e isto foi provocando uma progressiva relacionação da obrigação com a
vontade (consensualismo) teve consequência dogmáticas2702, desde logo a de que apenas
se podiam obrigar os que podiam consentir e dispor das suas coisas. O que excluía os
menores sem consentimento dos tutores e os restantes incapazes2704. Em contrapartida,
2703

o princípio da vontade admitia como válidas as obrigações entre pais e filhos, ao contrário do
que acontecia no direito romano (por aí se entender que constituíam a mesma pessoa).
6.4 Os vícios da vontade.
§ 1614. A averiguação das condições psicológicas da formação da vontade não tinha, no
direito comum, a centralidade que hoje tem quando se trata de determinar a validade dos
atos jurídicos de uma pessoa. Isto era uma consequência do facto de os efeitos jurídicos dos
atos das pessoas tenderem a ser considerados como algo que estava determinado
objetivamente, por efeito direto da natureza das coisas ou da realização de alguma
formalidade ou ritual. Este formalismo, que era típico do direito romano mais antigo, foi sendo
progressivamente substituído pela ideia de que os efeitos dos atos das pessoas decorriam
de terem sido queridos por elas. Por isso, tornou-se progressivamente mais importante
averiguar como se tinha formado essa vontade, se por um processo psicológico natural ou,
pelo contrário, por um processo viciado por ocorrências que impediam que se falasse de
uma vontade, como acontecia quando alguém decidia sob o efeito da ignorância (ignorantia,
error), de um engano (dolus), de uma ameaça (metus). Estas circunstâncias patológicas
constituíam vícios da vontade. Uma circunstância contígua a estas era a de alguém ter
querido certos efeitos mas, para defraudar alguma proibição ou impossibilidade jurídica, ter
declarado querer outros (simulatio, fraus); aqui, não tinha ocorrido nenhum vício de vontade,

2699 Os vícios da vontade são tratados em António Cardoso do Amaral (Liber […], cit.)

pontualmente nos verbetes gerais de “Obligatio” e “Contractus” ou, sobretudo, sob os respetivos nomes
(error, dolus-fraus, metus). Em Pascoal de Melo, a propósito dos contratos comerciais, no livro I das
Institutiones (1,8,5 ss.).
2700 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit. v. “Contractus”, n. 15.

2701 “Contractus calore iracundiae celebratus non valet”, a não ser que confirmado, excetuava-se

um contrato a favor de causas piedosas, que valia, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Contractus”, cit., 25
2702 Sobre a ascensão do consensualismo ou voluntarisno, i.e., da ideia de que a fonte das

obrigações é a vontade, v. Helmut Coing, Europäisches Privatrecht […], cit., 405 ss..
2703 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 13,5; 2,4,14.

2704 Furiosos, mentecaptos, pródigos, impúberes, menores, filhos-familias, Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 4,1,9;4, 2,3.

467
As obrigações.
mas existia uma discrepância entre a vontade explícita, declarada, e a vontade real,
ocultada.
§ 1615. Não admira, em face desta eficácia apenas lateral da vontade na produção de
efeitos de direito, que não encontremos no direito comum uma teoria unitária dos hoje
chamados vícios de vontade, nem sequer um “lugar” único para tratar do tema. Cada
negócio jurídico era afetado diferentemente por várias circunstâncias2705. Também não
admira que o “vício” não consistisse apenas numa malformação puramente psicológica,
digamos, da vontade, mas incluísse alguns elementos “morais”. Não se tratava apenas de
que certa vontade se tivesse formado em virtude de uma circunstância anormal (um erro,
uma ameaça externa), mas também de que ela se devesse a um comportamento intelectual
inadequado, como o descuido, a leviandade, a omissão de um dever de indagação ou de
reflexão. Finalmente, a diferente relevância da vontade na produção de efeitos jurídicos
explica a diversidade dos efeitos jurídicos dos diversos vícios de vontade em cada negócio.
Nuns – os mais formais, considerados como descendentes dos negócios “de direito estrito”
(stricti iuris) -, certos vícios de vontade, como a ignorância, eram menos relevantes; noutros
– menos formais, descendentes dos negócios contraídos sob a égide da “boa fé” (bonae
fidei) – esses mesmos vícios relevavam. Nuns caos, davam lugar à dissolução do negócio
(restitutio in integram)2706. Noutros apenas punham à disposição da parte cuja vontade fosse
imperfeita uma exceptio, para inutilizar a actio da outra parte. No ius commune mais tardio,
caída que fora a distinção entre negócios de direito estrito e de boa fé e não sendo mais
usado o processo romano com os seus ritos, fórmulas e expedientes, esta diversidade de
regimes deixou de fazer muito menos sentido do que a construção de uma teoria geral dos
vícios de vontade2707. Mas esta tardou muito em surgir, continuando a matéria a ser tratada
dispersamente e com recurso às antigas distinções romanistas.
6.4.1 A ignorância ou erro.
§ 1616. O defeito menos grave da vontade era a ignorância (ignorantia), relevante, do
ponto de vista do direito, em dois contextos. Um era o da vontade negocial, em que a
invocação da ignorância (desculpável) podia favorecer aquele que se tivesse concordado
com algo que não queria, pelo que o erro tinha efeitos positivos (in bona parte). Um outro era
o da responsabilidade por danos, em que a ignorância (também desculpável) podia excluir a
imputação da culpa ao agente causador.
§ 1617. A atual dogmática jurídica prefere falar de erro a falar de ignorância, exigindo,
por isso, um conhecimento positivo mas falso para invalidar a vontade negocial. O direito

2705 Cf. Helmut Coing, Europäisches Privatrecht […], I., 413. Na origem deste regime variável de

ineficácia dos negócios jurídicos estava o direito romano, em que, por exemplo, os chamados vícios de
vontade são tratados de forma dispersa e com consequências diversas, que vão desde a nulidade ipso
iure (originando a denegação da ação), à dissolução por uma restitutio in integrum ou à inutilização da
actio do credor por uma exceptio. A sede textual nas fontes também é dispersa. No Digesto, a
ignorância é tratada em D.22, 6, De ignorantia iuris et facti; o dolo, em D.4.3 De dolo malo; a cocção
em D.4, 2, Quod metus causa gestum erit.
2706 Sobre a distinção entre contratos de direito estrito e contratos de boa fé, v. adiante cap. 6.9.2

2707 Em que o erro, o dolo, a coação e, porventura, a simulação fossem tratadas conjuntamente.

Em que se distinguissem os efeitos em termos de categorias gerais, como “nulidade”, “anulabilidade”,


“ineficácia”, “rescisão”, pleno iure (ou ipso facto) ou [tantum] ope sententia judicis, ex tunc ou ex nunc,
erga omnes ou apenas relativa

468
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
comum falava antes de ignorância, bastando-se com um puro desconhecimento2708.
§ 1618. O juízo sobre o estado de ignorância incorporava não apenas uma constatação
de que alguém não sabia algo – o simples desconhecimento (nescientia) -, mas ainda um
juízo de valor sobre esse estado de desconhecimento. A ignorância era o desconhecimento
de algo que se devia conhecer. A literatura jurídica2709 distinguia, na verdade, entre: (i) o
mero desconhecimento (nescientia, nescire), que tanto podia prejudicar o que não sabia, se
este devia saber (in mala parte)2710, como protegê-lo (in bona parte), se ele não devia
saber2711; (ii) a ignorância, que era um desconhecimento indevido2712, que afetava
negativamente (desfavoravelmente, in mala parte) a situação do que não sabia, impedindo-o
de alegar essa ignorância e valer-se dela como escusa; (iii); o erro, um estado de
conhecimento, mas equivocado2713; (iv) a hesitação (titubatio), uma incapacidade de se
decidir entre dois conhecimentos diferentes ou contraditórios2714.
§ 1619. De um ponto de vista consensualista, a ignorância devia levar à nulidade do
negócio, visto não se poder dizer que consentia quem ignorava ou laborava em erro. Esta
era uma das leituras possíveis de um texto muito conhecido do Digesto (D.,2,14,1,32715), em
que se dizia que não havia um pacto sem uma convenção (i.e., sem uma “reunião”
[con+venire] de vontades: “[…] nullum esse contractum, nullam obligationem, quae non
habeat in se conventionem, sive re sive verbis fiat […]”) e que, sem uma intenção comum,
não se podia falar de convenção (“[…] ita et qui ex diversis animi motibus in unum
consentiunt […]”. A generalidade da afirmação de que um contrato e uma obrigação não
podiam valer sem consenso é, porém, muito simplificadora, porque o mesmo texto logo
acrescenta que o tal consentimento prévio podia consistir em palavras (verbis), mas também
numa situação ou comportamento objetivos (re)2716. Embora se encontrem, no direito
comum, afirmações genéricas que estabelecem que a falta de consenso dava origem à

2708 “Julgava algo que não era assim” (e.g. “Julgava que o objeto era do vendedor, que as
moedas eram autênticas, que a noiva era virgem”) vs. “Não julgava nem sabia nada”. O primeiro
requisito para poder invocar o erro é mais exigente do que o segundo.
2709 Cf., v.g., António de Nebrija, Vocabularium […], cit. Cf. “Ignorare”.

2710 Neste caso, não podia invocar o desconhecimento, para se escusar. Equivalia à ignorância

em sentido estrito.
2711 Neste caso, podia invocar o desconhecimento.

2712 “Ignorantia proprie est ignorare illud,quod quis tenetur scire”, António Cardoso do Amaral,

Liber […], cit. v. “Ignorantia”, n. 1 (de direito divino, natural, canónico e civil).
2713 “Error autem est cum aliud est quam credat”, Antonio de Nebrija, Vocabularium […], v.

“Ignorare”.
2714 “Diversa vel contraria scire videor, nec alicui eorum magis animum aplico”, António de Nebrija,

Vocabularium […], v. “Ignorare”.


2715 “3. Conventionis verbum generale est ad omnia pertinens, de quibus negotii contrahendi transigendique
causa consentiunt qui inter se agunt: nam sicuti convenire dicuntur qui ex diversis locis in unum locum colliguntur et
veniunt, ita et qui ex diversis animi motibus in unum consentiunt, id est in unam sententiam decurrunt. Adeo autem
conventionis nomen generale est, ut eleganter dicat pedius nullum esse contractum, nullam obligationem, quae non
habeat in se conventionem, sive re sive verbis fiat: nam et stipulatio, quae verbis fit, nisi habeat consensum, nulla
est”.
2716Outros textos do Digesto de sentido consensualista: D.44, 7, 55; D.50, 17, 116 (refere-se à
força e ao temor (pr.: “Nihil consensui tam contrarium est, qui ac bonae fidei iudicia sustinet, quam vis atque
metus”) e ao erro (n. 2: “Non videntur qui errant consentire”).

469
As obrigações.
nulidade2717, a verdade é que o leque de consequências era, como já se disse, mais
diversificado, indo da plena reconstituição do estado anterior (restitutio in integrum) a meios
processuais de defesa (exceptiones) ou até à pura e simples irrelevância. A distinção das
várias situações e respetivas consequências dependia da qualidade da pessoa que invocava
a ignorância, da natureza da ignorância, do objeto sobre que esta incidia, do tipo de negócio
em que ela ocorria.
§ 1620. Para afetar o contrato, a ignorância devia ter sido decisiva na própria decisão de
celebrar aquele contrato (erro sobre a substantia contractus) l2718) com aquela pessoa (erro
sobre qualidades essenciais da pessoa do outro contraente2719), e não apenas nos motivos
(psicológicos) para contratar ou numa das circunstâncias acessória do contrato (acessoria
contractus, como o preço, por exemplo).
§ 1621. A ignorância podia ser sobre o direito ou sobre os factos2720. A primeira incidia
sobre o conteúdo dos direitos divino ou natural, canónico ou civil. Como todas as pessoas
deviam ter algum conhecimento destes direitos, ou pela sua evidência ou pela natureza
política dos homens, a ignorância sobre estes direitos era culposa e não relevava2721. Já se a
ignorância incidia sobre alguma norma particular (statutum) de direito local apenas era
irrelevante para os locais, que tinham obrigação de a conhecer, mas não já para os
estrangeiros2722. Esta irrelevância da ignorância do direito não valia para aqueles que tinham
uma boa escusa para não o conhecerem, como os impúberes, os menores e dos
soldados2723. Mas também os rústicos, pela sua simplicidade de espírito2724, ou as mulheres,
pois o direito devia proteger a sua “fragilidade”2725.
§ 1622. A ignorância sobre os factos também dependia da qualidade das pessoas, nos
termos anteriores. Mas dependia ainda da sua natureza2726. Os juristas distinguiam, a este
propósito, entre: (i) a ignorância fingida (afetada, falsa), dos que ignoravam devendo
conhecer, podendo e devendo ser evitada e não sendo relevante como escusa2727; (ii) a

2717 Na esteira de textos romanos: D.5, 1, 2, pr. (erro sobre a jurisdição do juiz); D.44, 7, 57; D.50,

17, 116, 2 (ambos bastante explícitos).


2718 Cf. D.18, 1, 16 e 34 (sobre o objeto da compra e venda)

2719 Como o seu estado, as suas qualidades, sempre que essenciais para o objeto do contrato

(v.g., nobreza, perícia, virgindade).


2720 Fonte romana: D.22, 6, De ignorantia facti et iuris.

2721 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit. v. “Ignorantia”, n. 2-3 (mas já relevava se o erro

tivesse sido provocado por outrem: “dolum tamen bene excusat”, ibid., ).
2722 A não ser que o estatuto fosse conforme ao direito comum, ibid..

2723 Por estarem longe de casa e não terem notícias da terra (a fonte para esta inclusão dos

soldados entre os ignorantes protegidos é D.22, 6, 9, 1; mas era duvidoso que pudessem invocar a
ignorância do direito natural, comum a todos os seres humanos.
2724 “Ubi non datur malicia, est parcendum rustici simplicitati”, António Cardoso do Amaral, Liber

[…], cit. v. “Ignorantia”, n. 5.


2725 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit. v. “Ignorantia”, ns. 4-6.

2726 O mesmo se pode dizer da ignorância de direito. Só que esta, salvo nos casos excecionais

antes referidos, era considerada sempre como ou fingida ou supina.


2727 “Quis ignorat quod scire potuit et teneatur, sed noluit”, António Cardoso do Amaral, Liber […],

cit. v. “Ignorantia”, n. 7.

470
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
crassa ou supina, dos que ignoravam aquilo que o comum das pessoas da sua qualidade
sabia2728; também não relevava; e (iii) a ignorância provável ou invencível, comum e geral, de
coisas que normalmente não era preciso saber, mesmo pelos que fossem cuidadosos e
diligentes; esta, sim, relevante como escusa. Mais grave ainda do que ignorância fingida era
o erro intencional ou fraude, em que se simulava querer uma coisa, quando na verdade se
queria outra, para enganar o declaratário (quem não podia doar, dizia que vendia; não podia
prestar fiança, declarava que devia2729).
§ 1623. Determinar, nos casos concretos, se tinha havido ignorância e de que grau, era
matéria de prova. Considerava-se provável e presumível a ignorância acerca de facto alheio,
a não ser que fosse público e muitas vezes tratado; improvável, a que versasse algo que a
maior parte das pessoas sabia ou facto próprio e não muito antigo2730. Havia uma maior
exigência – e, portanto, uma mais vasta irrelevância do erro como escusa - se o que se
enganou devesse averiguar melhor, em razão do seu ofício, tal como acontecia com quem
devesse aprovar alguém para ordens, ofício ou benefício, quanto às qualidades dos
candidatos2731. Como facto interno da consciência, o estado de ignorância podia provar-se
por juramento do que a invocasse, entendendo-se que a recusa em jurar presumia o
conhecimento2732.
§ 1624. Em todos os casos em que, segundo os anteriores critérios, a ignorância fosse
relevante, funcionava porém a regra de que ela não seria de atender nos contratos de direito
estrito ou sempre que a sua invocação originasse um lucro para quem a tivesse invocado2733.
Verifica-se, assim, a já referida limitação do princípio da vontade por razões jurídicas
objetivas: apesar de uma vontade sã não ter existido, havia outras razões – substanciais ou
formais – para que o negócio subsistisse. Mais tarde, os autores jusracionalistas irão
procurar acomodar a proteção do contraente ignorante com a dos outros contraentes,
evitando que estes vissem prejudicadas as suas expectativas negociais por um erro alheio,
mesmo que desculpável2734.
§ 1625. À medida que o direito se foi desformalizando e que se foram tornando
obsoletas as distinções entre as convenções com base nas suas formalidades (v.g.,
contratos de direito estrito e contratos de boa fé), ou se foi deixando de usar a ordem
processual romana e caindo em desuso os seus institutos2735, as consequências da
ignorância começaram a estar cada vez mais ligadas ao modo como ela afetava a vontade e
a apontar para a nulidade. Porém, as antigas distinções não deixavam de ser recordadas e
de influenciar a solução dos casos. Ao mesmo tempo que se acrescentaram, no último direito
comum racionalista, formas de compensar o declaratário pelos prejuízos que lhe pudessem
advir da relevância do erro.

2728 “Est illa qua quis ignorat illud quod omnes suae qualitatis scire solent, et facile poterat, sed

scire non curavit”, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit. v. “Ignorantia”, n. 7.
2729 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit. v. "Dolus et fraus", n. 16.

2730 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit. v. “Ignorantia”, n. 9 e 11.

2731 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit. v. “Ignorantia”, n. 10.

2732 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit. v. “Ignorantia”, n. 11.


2733 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit. v. “Ignorantia”, n. 6.
2734 Cf. Helmut Coing, Europäisches Privatrecht […], I., 418 ss..

2735 Cf. g., alternativas processuais que tinham a mesma consequência processual de inutilização

da pretensão, como a denegatio actionis, a restitutio in integrum ou a exceptio.

471
As obrigações.
6.4.2 O dolo.
§ 1626. O dolo podia ser descrito como um erro provocado por uma artimanha, falsidade
ou maquinação de outrem destinada a enganar (“omnis calliditas, falsitas, et machinatio
adhibita ad alterum circunveniendum, fallendum & decipiendum, cum aliud simulatur, & aliud
agitur”)2736. Embora em todos os contratos cada parte tentasse favorecer os seus interesses,
encarecendo a sua prestação e desmerecendo a da outra parte, e sempre houvesse, neste
sentido genérico, algum intuito de influenciar o outro contraente2737). Tal como no erro,
entendia-se que não se podia falar, aqui, em consentimento, pelo que o dolo podia ser
invocado pelo enganado para invalidar o contrato2738.
§ 1627. Em princípio, o dolo tornava nulos ipso iure2739 os contratos, pelo menos os
menos formais (i.e., os “de boa fé”, no sentido romano), desde que a manobra dolosa
incidisse sobre a decisão de contratar, e não apenas se se quisesse enganar quanto a uma
cláusula, v.g., o preço2740. No dolo, o regime de invalidação do contrato era mais agressivo,
pois não havia que acautelar tanto o interesse da outra parte, já que, normalmente, esta
conhecia o vício da vontade da vítima, pois fora ela que o causara, com as suas artimanhas.
No entanto, como no erro, esta linha geral de orientação podia sofrer desmentidos. Desde
logo, a vítima podia ter interesse em manter o contrato e, por isso, querer que ele
valesse2741. Por outro lado, o dolo podia ser de terceiro, caso em que, ainda que tivesse dado
causa ao contrato, não impedia que este valesse2742. Também nos contratos mais formais
(i.e., “de direito estrito”), o dolo não os anulava ipso iure, dando apenas direito a uma
exceptio2743. O dolo não relevava, ainda, nos contratos em que se aceitavam bens
espirituais, pois não se podia entender ter sido enganado aquele que, no fim de contas,
tenha querido o melhor dos fins2744.
§ 1628. O dolo, como intenção de enganar, podia ocorrer nos contratos, nos
testamentos e na feitura das leis ou na sua interpretação, respetivamente sobre o legislador
e sobre o intérprete, quando alguém induzia a promulgar certa lei2745 ou a interpretar o direito

2736 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Dolus et fraus”, n. 1. Fontes romanas: D.4, 3,

De dolo malo; D.44, 4, De exceptio doli. A definição latina é do jurista romano Labeo, em D.4, 3, 1, 2).
No direito português, v. Ord. fil., 3,34, 1; 3, 59, 25.
2737 Falava-se, então, de dolus bonus (D.4, 3, 1, 3).

2738 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “ Dolus et fraus”, n. 2.

2739 A nulidade ipso iure correspondia à denegação da ação.

2740 Também se discutia se o dolo dava origem a uma ação (para pedir a nulidade do contrato) ou

se apenas podia fundar uma exceção (para inutilizar a ação a pedir o cumprimento), António Cardoso
do Amaral, Liber […], cit., v. “Contractus”, ns. 18 e 21.
2741 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “ Dolus et fraus”, n. 2

2742 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “ Dolus et fraus”, n. 4 ss..

2743 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “ Dolus et fraus”, n. 7; v. “Contractus”, ns. 18 e
21.
António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Contractus”, n. 19.
2744

2745Por exemplo, dando ao legislador informações falsas (obreptio) ou subtraindo-lhe


informações verdadeiras (subreptio). Neste caso, o vício era arguível não apenas pelo enganado, mas
por qualquer pessoa que fosse prejudicada por aquela lei.

472
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
de certa maneira2746. Em sentido diferente, o dolo como intenção, era necessário nos
delitos2747.
§ 1629. O dolo, tal como a fraude, provava-se por conjeturas2748.
6.4.3 A fraude ou simulação.
§ 1630. Próximo do dolo estava a fraude, um engano dirigido a terceiros e não a uma
das partes do negócio, como o dolo. A fraude, também era designada por simulação2749, era
uma manobra pela qual se mostrava exteriormente querer algo que não correspondia às
verdadeiras intenções das partes2750. Distinguia-se do erro, tanto porque incluía a intenção
de enganar, como porque reunia o acordo das partes e, portanto, dela não se podia dizer
que afetava a convenção por falta de consenso (na verdade, era um erro combinado).
Distinguia-se do dolo, porque aquele que se queria enganar não era parte no negócio, mas
um terceiro2751. Os autores distinguiam várias espécies de simulação: aquela em que
simulava um negócio que realmente não se queria (actus imaginarius, corpus sine spiritu)2752;
aquele em que se simulava fazer um contrato e na verdade se queria e se fazia outro2753; ou,
finalmente, aquele em que se interpunha um terceiro capaz para realizar, como testa de
ferro, um negócio que se queria celebrar com alguém inábil para isso2754. Outros faziam
classificações mais detalhadas2755
§ 1631. A simulação não se presumia, antes se devia provar por indícios ou
conjeturas2756, não apenas leves, mas fortes ou veementes2757.

2746 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “ Dolus et fraus”, n. 13.
2747 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “ Dolus et fraus”, 10.
2748 Agostinho Barbosa, Repertorium […], v. “Fraus”. No caso da fraude, ou simulação, uma

conjetura baseava-se na proximidade de sangue ou amizade entre os conluiados (parentes,


domésticos, criados), ibid.; Melchior Febo, Decisiones […], I., dec. 37, n. 3.
2749 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], cit., v. “Fraus”, 1767-1769; maior desenvolvimento em

Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 154, per totam; Fernando Rebelo, Opus de
obligationibus iustitiae [...], cit., pt. 2, liv. 2, qu. 6, sect. 1. No direito português, Ord. fil., 4,71 (e respetivo
comentário de Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., ad. cit. ordenação.
2750 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 154, n. 1: “Quaedam machinatio, per quam

aliud exterius ostenditur, aliud vero intrinsecus intendunt partes”.


2751 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 154, n. 1.

2752 Simulam uma venda ou doação, apenas para agradar a terceiro; ou para defraudar os

credores do vendedor/doador.
2753 Quero dar uma fiança, mas coobrigo-me como devedor principal. Quero contrair uma usura,

mas contrato um censo consignativo ou uma venda com pacto de retrovendendo.


2754 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 154, n. 2.

2755 Ex.: 1. Uma coisa por outra; 2. Uma pessoa por outra; 3. um contrato por outro; 4. um modo

por outro; 5. um nome por outro; 6. um tempo por outro, 7. uma quantidade por outra, 8. um facto por
outro, 9. um lugar por outro, 10. um sinal por outro, 11. um juramento por outro. Cf. Álvaro Valasco,
Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 154, n. 12.
2756 No caso da fraude, ou simulação, a proximidade de sangue ou amizade entre os conluiados

(parentes, domésticos, criados), v. Agostinho Barbosa, Repertorium […], cit., v. “Fraus”; Melchior Febo,
Decisiones […], I., dec. 37, n. 3.
2757 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 154, ns. 16 a 24.

473
As obrigações.
§ 1632. A simulação era relevante quando invocada por terceiros prejudicados, como o
fisco ou os credores, uns e outros defraudados pelo negócio simulado. Nestes casos, os
contratos eram nulos ipso iure2758 ou dava-se aos prejudicados uma exceptio (ob fraudem
creditoris) 2759. No caso de não haver prejuízo de terceiros2760, o contrato simulado era, em
princípio, válido2761., a não ser que o negócio escondido fosse contra o direito2762 ou imoral
(turpis)2763.
6.4.4 A coação.
§ 1633. A coação consistia numa ansiedade ou tremor do espírito provocado por uma
ameaça (mina) de mal presente ou futuro2764. O padrão para avaliar as seriedade e
gravidade da ameaça – e, portanto, a sua relevância para este efeito de rescindir um negócio
jurídico - era o de uma pessoa “constante” (vir/mulier constans)2765. O simples temor
reverencial, habitual no contexto das relações domésticas (entre marido e mulher ou entre
patrono e libertos), as ameaças de brincadeira, as improváveis ou aquelas que não poderiam
ser levadas a cabo, não eram relevantes2766. Por outro lado, o sofrimento com que se
ameaçava tinha que ser grande, implicando a morte ou tortura física (cruciatum salutis, aut
corporis)2767, a liberdade ou a perda de todos os bens ou da maior parte deles2768.
Finalmente, a ameaça devia ser injusta, ou seja, o mal não podia ser um direito de quem
ameaçava, como se alguém fosse ameaçado pela autoridade eclesiástica competente com
uma excomunhão que tivesse merecido em virtude do seu comportamento ou, pelo seu
credor, ou com a execução de uma dívida que tivesse contraído. Nestes casos, bem se
podia dizer que o coacto se deveria queixar de si mesmo, pois se tinha posto numa situação

2758 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 154, n. 30; além de ser pecado, como mentira

que era (ibid., n. 40).


2759 Fonte: D.42.8 Quae in fraudem creditorum facta sunt ut restituantur.

2760 Era o caso de contratos simulados feitos para escapar a uma ameaça ou apenas para

ostentação (honoris causa: ex. fingir fazer uma doação vultuosa ou dar um grande dote, apenas para
presumir riqueza), Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 154, n. 11.
2761 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 154, ns. 5 e 6. Entre as partes, sendo válido o

negócio que realmente queriam, era este que valia, convertendo-se um contrato no outro; sendo
inválido o negócio escondido, valia o simulado, Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 154, n.
3.
2762 Uma proibição legal, como a proibição de as mulheres prestarem fiança, ou de os filhos

família contraírem empréstimos em dinheiro; uma consequência fiscal, como a fraude sobre o preço
nos impostos calculados sobre o valor da coisa alienada (sisas, dízimas).
2763 Na verdade, o contrato simulado para prejudicar terceiro caía nesta categoria.

2764 “Metus est instantis, vel futuri periculi trepidatio mentis”. Diferia da violência efetiva, que

obrigava e não podia ser repelida, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Metus”, n. 1.
2765 Não relevando, em contrapartida, o medo das pessoas assustadiças ou nervosas, António

Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Metus”, n. 10.


2766 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 130, n. 21; António da Gama, Decisiones […], cit.,

dec. 250, n. 3; todavia, o medo reverencial chegava para rescindir um negócio em que ocorresse uma
lesão enorme, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 30, n. 3.
2767 António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 250, n. 3.

2768 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Metus”, n. 2.

474
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
de fragilidade2769.A doutrina referia, como exemplos, o caso do devedor que era ameaçado
com a cobrança da dívida ou da liberta que era ameaçada pelo patrono de ser reescravizada
se não lhe desse algo que tinha prometido; mas notava também que não era este o caso do
adúltero ou ladrão apanhado em flagrante e ameaçado de morte pelo marido ou dono das
coisas, já que a imposição da pena não competia a este último2770.
§ 1634. O contrato, negócio jurídico ou ato judicial (testemunho, coação), realizado
numa situação de temor justificado (ob metu justo et probabile) podia ser rescindido por meio
de uma restitutio in integrum (ob metu)2771. Era o caso do contrato entre o preso e aquele que
o tivesse mandado prender ou sob cuja custódia estava2772. Para além disso, a coação era
um ato ilícito e um pecado2773, não podia ser arguida pelo autor dela e obrigava à restituição
de tudo quanto se tivesse extorquido. De forma correspondente, a abstenção de realizar
certos atos podia também ser suprida, se se provasse que tinha sido provocada por coação.
O caso típico era o da não apelação, sempre que tivesse sido devida a ameaças do juiz ou
da outra parte para que não se recorresse2774. Não se encontra nas fontes referência a
idêntica relevância no caso de um coacto não contratar ou não testemunhar.
§ 1635. A coação devia ser arguida no prazo de um ano, pois tal era o prazo para a
dedução das ações pretórias2775.
§ 1636. O metus purgava-se pela confirmação livre do ato2776.
§ 1637. A velha distinção entre negócios mais formais (stricti iuris) e menos formais
(bonae fidei) continuava a pesar sobre a doutrina, havendo quem continuasse a afirmar que
os contratos (por oposição aos meros pactos) não podiam ser rescindidos por coação2777.
Todavia, era, por exemplo, pacífico que a coação autorizava a rescisão do casamento2778.
§ 1638. A coação provava-se por conjeturas e indícios indubitáveis2779. O protesto de
que o negócio fora realizado sob coação, constante do próprio ato negocial, ajudava a prova,
mas não era exigível, pois podia desencadear a ameaça; daí que fosse dispensável2780.
Havia um certo favor quanto à prova da coação, sendo comum a referência de que duas
testemunhas sérias que afirmassem ter havido ameaças valiam mais do que vinte que

2769 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Metus”, n. 4.


2770 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Metus”, n. 11.
2771 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Metus”, n. 5; Álvaro Valasco, Decisiones […],
cit., II, 142, n. 7.
2772 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Contractus”, n. 28.

2773 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Metus”, n. 3.

2774 O coacto devia protestar das ameaças perante o juiz ou perante homens bons; mesmo que

este protesto não fosse feito, ainda por medo de que isso chegasse ao conhecimento de quem
ameaçava, a apelação deveria ser recebida, provada a ameaça por testemunhas, António Cardoso do
Amaral, Liber […], cit., v. “Metus”, n. 6.
2775 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Metus”, n. 14.

2776 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Metus”, n. 13.

2777 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 30, ns. 9-10: “Contractus metus gesti

validi sunt”.
2778 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Metus”, n. 8.

2779 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Metus”, n. 7.

2780 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 30, n. 8.

475
As obrigações.
dissessem o contrário2781.
§ 1639. O regime da coação permite ter um relance sobre esta sociedade de fortes
poderes fácticos, como era a sociedade de Antigo Regime. As mulheres são apresentadas
como seres mais frágeis, cuja atemorização era mais fácil2782. Quando casadas, estariam tão
sujeitas a ameaças dos maridos que este estado de coagidas era considerado que como
permanente2783, como uma extensão provável do temor reverencial que deviam ao seu “pai
político” e que incluía o dever de suportar as suas ameaças e os seus ralhos2784. Ainda no
âmbito do mundo doméstico, aparecem os patronos a coagir os libertos – as fontes falam
mais de libertas, por razões que se imaginam facilmente -, forçando-os a dar-lhes coisas ou
a prestar-lhes serviços e favores. No foro, o juiz ameaçava as partes com a prisão,
nomeadamente se ousassem recorrer dos seus atos. E as partes, assustadas, sentiam medo
de sequer protestar, perante homens bons, da violência que se lhes fazia. Os poderosos
atemorizavam as testemunhas e os seus adversários mais fracos, forçando-as à transação
ou à desistência da lide ou a não recorrer de sentenças desfavoráveis. Os clérigos
ameaçavam os leigos com a excomunhão, tanto quando ela se justificava como quando isso
não acontecia. A violência era tão endémica que a coação, embora não se presumisse, era
mais facilmente provada, exigindo-se menos testemunhos e aceitando-se a sua
habitualidade em certos casos (como na família). Se o direito formal fosse efetivo, muitos
negócios sucumbiriam perante a rescisão por coação.
6.4.5 A renúncia à invocação dos “vícios da vontade”.
§ 1640. A prática encontrou formas de diminuir a incerteza negocial causada pela
possibilidade de invocar estas circunstâncias que afetavam a validade dos contratos. Tais
eram as cláusulas de renúncia, pelas quais, no próprio contrato as partes (ou apenas uma
delas), se comprometiam a não usar dos seus direitos de invocar vícios de vontade. Estas
cláusulas cabiam na figura geral de renúncia a direitos
§ 1641. A renúncia era uma desistência consciente2785 de um direito próprio2786. Era um
pacto estrito, que só incluía aqueles direitos que estivessem expressamente enumerados, e,
por isso, de interpretação restritiva2787. Daqui decorria que só se podia renunciar a direitos
próprios e quando a renúncia não causasse prejuízos a terceiros2788 e que não se era

2781 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Metus”, n. 7.


2782 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., “Metus”, n. 9; António da Gama, Decisiones […],
cit., dec. 346, n. 1 (as mulheres, mesmo as constantes, são mais fáceis de coagir a contratar ou a
rescindir contratos).
2783 Pressupunha-se que a ameaça do marido dura enquanto durar o matrimónio, António da

Gama, Decisiones […], cit., dec. 346, n. 4.


2784 António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 250, n. 4 a 6: as simples ameaças do marido, a

não ser que usuais, não configuravam coação.


2785 Daí que não valesse se feita por erro, dolo ou coação, António Cardoso do Amaral, Liber […],

cit., v. “Renunciatio”, n.. 45.


2786 “Est intima refutatio rei, vel proprii iuris, quam quis scienter facit”, António Cardoso do Amaral,

Liber […], cit., v. “Renunciatio”, n. 1.


2787 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Renunciatio”, n. 1.

2788 “Renunciare potest unusquisque iuri suo sine incommodo alterius”, António Cardoso do

Amaral, Liber […], cit., v. “Renunciatio”, n. 18.

476
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
possível fazer renúncias gerais a direitos que não se soubesse ter ou a direitos futuros ou
eventuais2789.
§ 1642. Admitia-se, em todo o caso, o pacto de renúncia a toda a proteção do direito
(auxilium legis), que consistia num pacto de que não se recorreria aos meios de proteção
jurídica e judicial (actiones, exceptiones appelationes) que o direito desse em certa
circunstância2790. A renúncia aos meios de proteção dos contraentes ignorantes, enganados
ou coactos era deste género e, por tanto, valia. No entanto, havia uma limitação que podia
prejudicar a renúncia nestes casos: não era admitida a renúncia que ofendesse a equidade
natural ou contivesse uma lesão dos bons costumes2791ou, o que podia alargar ainda mais a
impossibilidade de renúncia, não se podia renunciar a uma proteção que o juiz pudesse
conceder oficiosamente (ex officio suo)2792. No direito comum tardio, tornaram-se ainda
irrenunciáveis os direitos que tivessem uma natureza pública, como seria, por exemplo, os
privilégios da nobreza (Ord. fil., 5, 120, 12)2793, o que permitiria, progressivamente, incluir
“direitos irrenunciáveis” (ou seja, direitos pessoais cuja renúncia afetasse a equidade e os
bons costumes: direito à vida, à liberdade, ou a certas proteções do interesse da
república)2794.
6.5 Outras consequências do consensualismo.
§ 1643. O consensualismo tornava a geração de obrigações independente de qualquer
fórmula ou rito2795. Excecionalmente, a lei podia exigir alguma formalidade, como a escritura
pública (que devia conter a data e ser roborada por duas testemunhas, Ord. fil.,1,78,4;
1,24,16)2796. Noutros casos, a forma escrita era exigida, não como formalidade, mas apenas
como meio técnico de comunicar, como no caso dos negócios entre ausentes, feitos por
carta.
§ 1644. Outra consequência do princípio consensual era a de que só o próprio se podia

2789 António Cardoso do Amaral, Liber […], v. “Renunciatio”, cit., n. 23; como, por exemplo, a
herança futura. Sobre a renúncia à invocação de casos fortuitos futuros que afetassem o cumprimento
dos contratos: não se podia renunciar aos casos fortuitos em geral; mas podia renunciar-se à eficácia
de casos fortuitos de tipo especificado, e então a renúncia valeria em relação a esses ou a casos
menos relevantes, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Renunciatio”, n. 47, e 48. Cf. ainda
ibid., v. “Contractus”, ns. 10 e 11.
2790 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Renunciatio”, ns. 18 e 30.; mesmo assim,

aquele que renunciasse a todas as exceções e proteção legal não era prejudicado em relação aos
direitos que não soubesse ter.
2791 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Renunciatio”, n. 42; era nula, Álvaro Valasco,

Decisiones […], cit., cons. 173, n. 22.


2792 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Renunciatio”, n. 43.

2793 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […]. dec. 83, n. 2.

2794 Cf. g., os privilégios do Senac. Velleianum ou do Senac. Macedonianum, a renúncia à

arguição da lesão (“de jure regio renunciatio laesionis non valebit”, Gabriel Pereira de Castro,
Decisiones […], cit., dec. 65, n. 2).
2795 Sobre o ritualismo do direito mais antigo, v. Everardo Otto (1685-1756), De jurisprudentia

symbolica exercitationum trias, Trajecti ad Rhenum [Utrecht], Matthaeus Vish, 1735;


http://books.google.cl/books/about/Everardi_Ottonis_De_jurisprudentia_symbo.html?hl=it&id=x1ZDAAAAcAAJ], 4,
1, 9.
2796 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 1, 9,

477
As obrigações.
obrigar e não outrem por ele2797,
a não ser que o aceitasse (ratificasse)2798. Bem como a de
que, sendo estabelecidas pelo consenso, as obrigações extinguir-se-iam também pelo
consenso, salvo quando esse consenso se formava no contexto de um sacramento (em que
a Deus era também envolvido), pois então o consenso, estabelecido perante Deus e
suscitando a sua intervenção, não podia ser desfeito apenas pela vontade dos homens. Era
o que acontecia no batismo e no casamento, que, por isso, não se podiam dissolver2799.
§ 1645. Finalmente, a centralidade da vontade na génese das obrigações levava a que a
dogmática dos pactos fosse central no âmbito da dogmática das obrigações.
6.6 Limites do consensualismo: possibilidade e licitude.
§ 1646. Recordemos que havia, no entanto, elementos que condicionavam a validade
dos negócios que não se relacionavam com a vontade das partes.
§ 1647. Assim, o objeto da obrigação tinha que poder ser querido e querido licitamente.
Daí que não pudesse ser impossível2800 ou ilícito (Ord. fil.,4,70,3)2801. Por isso, não valiam -
nem sequer no espiritual - os pactos contra o que a lei determinasse por razões de ordem
pública [“favorem publicum vel publicam utilitatem”], nem que contivessem torpeza§ 1.
ou intenção de prejudicar outrem. Era o que acontecia com o pacto no sentido de que algo
que a lei estabelecesse como delito não fosse considerado como tal, pois tal pacto
convidaria a delinquir2802. Também os pactos contra os bons costumes não obrigavam, nem
no espiritual2803. Um exemplo era o dos pactos sobre a sucessão futura (i.e., sobre herança
de pessoa viva) eram considerados imorais, a menos que o autor da sucessão consentisse
neles2804. Outro era o do pacto ou contrato que importasse lesão enorme, ou seja, em que o
preço fosse inferior a metade ou superior ao dobro do justo valor da coisa2805. Também a
cláusula ou pacto de quota litis, pelos quais se convencionava que a retribuição do mandato
judicial seria uma quota do que se ganhasse na ação2806.

2797 Salvo no caso de o terceiro ser mandatário ou procurador. Diferente do procurador era o

intermediário (ou proxeneta, mediador, corretor).


2798 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 2, 4.

2799 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Obligatio”, n. 7.

2800 Ad impossibilia nemo tenetur. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Obligatio”, n.

10, v. “Pactum”, ns. 13-14 (“não vale o pacto sobre coisa impossível, de direito ou de facto”, ou “fora do
comércio”).
2801 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Obligatio”, n. 14. Eram ilícitas as

convenções sobre condições indisponíveis, como a liberdade; e, por isso, a obrigação de trabalho
perpétuo não era válida, pois equivalia à sujeição de um homem que nasceu livre à escravidão. Porém,
valia a obrigação de servir para sempre numa igreja ou hospital, pois a obrigação de servir a Deus não
seria escravidão, antes libertação (ibid., n. 9).
2802 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Pactum”, n. 24.

2803 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 104, n. 6 (“contractus contra bonos mores in

neutro foro obligant”).


2804 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Pactum”, n. 20; exemplos, ibid., ns. 21-22.

2805 Miguel Reinoso, Observationum […], cit., obs. 30, n. 23 (“Laesio enormissima annulat

contractum”).
2806 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Pactum”, n. 37.

478
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
6.7 As cláusulas acessórias dos contratos.
§ 1648. Existiam cláusulas que podiam ou não figurar num contrato, condicionando a
sua eficácia ou estabelecendo uma certa maneira de o cumprir. Não eram cláusulas
necessárias, como as referentes às partes ou ao objeto contratuais, mas acessórias. As
cláusulas acessórias típicas eram as condições, o termo e o modo, que se definem adiante.
§ 1649. Não se encontra, na doutrina do direito comum, um tratamento geral destas
figuras, como hoje acontece na teoria geral dos contratos ou, até, dos negócios jurídicos.
Elas eram tratadas a propósito dos atos, negócios ou contratos, em que apareciam mais
frequentemente. A condição costumava ser tratada no regime da instituição de herdeiro,
eventualmente da doação e compra e venda. O termo era tratado a propósito dos termos ou
prazos processuais. O modo era referido de forma dispersa ou não era sequer
autonomizado; às vezes era abordado juntamente com a condição, da qual se aproximava.
§ 1650. Autonomiza-se aqui a condição, como uma figura geral, porque, de todos estas
cláusulas acessórias, é a que merece mais atenção da doutrina.
6.7.1 A condição.
§ 1651. A condição (conditio) era um evento futuro que suspendia o ato jurídico até que
a condição fosse realizada2807. Esta definição corresponde à condição suspensiva, que era a
única reconhecida pelo direito romano clássico (como, aliás, pelo common law)2808. Porém, o
direito romano justinianeu veio a admitir também a condição resolutiva, verificada a qual, o
contrato se dissolvia. A construção da condição resolutiva era artificiosa, valendo-se de uma
ficção para conseguir repor as coisas na situação original, se a condição não fosse realizada.
Desdobrava-se o negócio condicional num negócio puro (i.e., sem condição) e ficcionava-se
um negócio inverso em que a anterior condição resolutiva aparecia como suspensiva. Assim:
a venda condicional (resolutiva) “A venda a B o escravo Pamphilum sob a condição de lhe
ser pago até a certa data” transformava-se numa venda pura “A venda a B o escravo
Pamphilum” a que se juntava o negócio condicional (suspensivo) “B doa a A o escravo
Pamphilum sob a condição de B não o ter pago a A até certa data”. Alternativamente,
aplicava-se aos negócios sob condição resolutiva o mesmo artifício usado para obrigar à
restituição um beneficiário que não cumprisse uma condição negativa. As condições
negativas “Dou a A se A não casar” apenas se podiam realizar com a morte do beneficiário
do negócio, pois só então se sabia que ele não fizera aquilo que estava proibido pela
condição. Todavia, isto tirava quaisquer efeitos úteis ao benefício. Por isso, a partir do séc. I
a.C, os negócios sujeitos a uma condição negativa eram logo feitos válidos como se fossem
puros, devendo porém os beneficiários prestar uma garantia (por meio de uma stipulatio) de
que restituiriam os bens no caso de incumprirem a condição não fazer. Era a chamada cautio
Muciana, que passou a aplicar-se também aos casos de condição resolutiva. Como a
condição resolutiva justinianeia se baseava na ficção jurídica de um pacto acessório que
compensava o negócio condicional, a doutrina de direito comum quase que tratava apenas

2807 “Conditio promissionis, seu contractus est futurus eventus in quam actus suspenditur donec

conditio eveniat”, cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Conditio”, n. 2
2808 Cf. D.De verborum obligatione, D.45.01,85,7 (“Quicumque sub condicione obligatus curaverit,

ne condicio exsisteret, nihilo minus obligatur”). Cf. Daniele Berardi, L’avveramento fittizio della
condizione, 2012, tese de doutoramento na Università degli studi di Padova (http://paduaresearch.
Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit..unipd.it/2780/1/tesi_pdf.pdf, 26.02.2014).

479
As obrigações.
da condição suspensiva2809.
§ 1652. Nos negócios condicionais, era a realização integral2810 da condição que
disparava a existência do contrato. Assim, antes de se cumprir a condição da venda, a coisa
não era do comprador, nem este a podia reclamar com uma reivindicatio2811. Também no
casamento, o contrato não surtia efeito enquanto a condição não fosse cumprida e, por isso.
nenhum dos cônjuges podia ser obrigado a consumá-lo pendente conditione2812.
§ 1653. A condição devia cumprir-se nos exatos termos e pessoas2813. Podia consistir
em facto de quem a apôs, daquele a quem a sua realização interessa, ou de terceiro.
§ 1654. Todos os negócios que resultem de um ato de vontade podiam ser
condicionados2814.
§ 1655. Porém, a condição impossível, ilícita ou torpe2815 invalidava qualquer contrato,
tanto de boa-fé, como de direito estrito; aposta a um legado ou testamento não os viciava,
mas tinha-se como não escrita; aposta na instituição de herdeiro ou noutro também se tinha-
como não escrita2816.
§ 1656. O mesmo acontecia no matrimónio, valendo o acordo dos nubentes como puro;
mas se fosse contrária aos fins do casamento2817 e os dois cônjuges nela tivessem
consentido, invalidava o matrimónio por não se poder dizer que houvera acordo em realizar o
ato com os seus fins inquebrantáveis2818. Ainda relativamente ao casamento, não era lícito
apor em qualquer negócio, nomeadamente em doação ou deixa testamentária, a condição
de o beneficiário casar, ou casar com certa pessoa, porque se entendia que isso limitava a

2809 A condição negativa só se realizava quando se tornasse impossível (v. António da Gama,
Decisiones […], cit., dec. 160, n. 4); nomeadamente pela morte daquele de quem dependia a sua
realização (v. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., 112, n. 1) e dec. 316, n.1; a de não ter
filhos, admitia-se que se desse como cumprida quando não fosse verosímil que os viesse a ter, António
da Gama, Decisiones […], cit., dec. 160, n. 4.
2810 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Conditio”, n. 3 ss..

2811 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Conditio”, n. 5; Álvaro Valasco, Decisiones [...],

cit., cons. 120, n. 17 (“Conditione deficiente deficit dispositio sub illa concepta”).
2812 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Conditio”, n. 22.

2813 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Conditio”, n. 9. Por isso, na realização da

condição, é relevante a pessoa que a realizava (Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 59,
n. 8). Mas, em princípio, podia passar para os herdeiros de quem a deveria ter realizado, se não fora o
seu falecimento (António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Conditio”, n. 16; Melchior Febo,
Decisiones […], cit., dec. 83, n. 6; Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 171, nº 9.
2814 Em tudo se admitem ónus e condições, Álvaro Valasco, Decisiones […], cons. 27, n. 9; para

as doações, Jorge de Cabedo, Decisiones […], pt. 2, dec. 31, n. 1. No direito romano, havia atos que
não sofriam condição (actus legitimi), como a datio tutoris, mancipatio, in iure cessio, etc..
2815 A doutrina estende este regime às condições contrárias a lei do príncipe, estatuto, cânones

ou bons costumes; tal condição seria desonesta (contra a natureza) ou ridícula (António Cardoso do
Amaral, Liber […], cit., v. “Conditio”, n. 24); “leis e bons costumes”, escreve Melchior Febo, Decisiones
[…], dec. 121, n. 10.
2816 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Conditio”, ns. 19, 20 e 24.

2817 Por exemplo, a condição de não ter filhos.

2818 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Conditio”, n. 21.

480
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
liberdade essencial à decisão matrimonial2819.
§ 1657. Em geral, a condição contra a natureza e substantia do contrato ou do ato
viciava-o, pois este não podia subsistir sem ela2820. A condição inútil, como a de não vender
aposta em doação ou venda feita à Igreja (que não podia alienar os seus bens [amortização])
era tida como realizada, e o contrato valia2821. A condição tornada impossível por caso
fortuito valia ou não, dependendo da vontade presumida de quem a tivesse aposto2822.
6.7.2 O modo.
§ 1658. O modo aproximava-se da condição, enquanto configurava um encargo
acessório que impedia sobre um dos contraentes. No entanto, tratava-se de uma verdadeira
cláusula contratual, que gerava uma obrigação, e não apenas de uma condição que
impendia sobre a validade do contrato2823.
6.7.3 O termo.
§ 1659. O termo (dies) era a fixação de um prazo que ou suspendia (termo suspensivo,
a quo) ou resolvia (termo resolutivo, ad quem) o contrato. Os termos não se presumiam2824,
mas podiam ser apostos em qualquer negócio cujos efeitos não fossem, por natureza,
perpétuos, como era o caso da constituição da propriedade ou da constituição de herdeiro
(semel heres semper heres)2825.
6.8 A extinção das obrigações.
§ 1660. As obrigações podiam extinguir-se por vários modos2826. O principal era o
pagamento (solutio)2827. Outros eram o mútuo consenso (eventualmente transformando uma

2819 “As condições que repugnam à liberdade do matrimónio são proibidas”, escrevia Jorge de

Cabedo, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 31; por isso, o legado à filha com a condição de casar com
certa pessoa seria de rejeitar (António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 314 n. 3); mas se aquele que
devia realizar a condição, casando, se casou sem saber da condição, o negócio valia, António da
Gama Decisiones […], cit., dec. 125 n. 1. Já a condição de não casar, valia apenas no já casado,
quanto a casamentos futuros, depois de morto o cônjuge atual (Gabriel Pereira de Castro, Decisiones
[…], cit., dec. 112, n. 1.
2820 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Conditio”, n. 25.

2821 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Conditio”, n. 18.

2822 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Conditio”, n. 9-10.


2823 “Dou-te isto, mas obrigas-te a fazer aquilo”; e não “Dou-te isto, se fizeres aquilo”. Sobre a
distinção, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 98, n. 1.
2824 Outras cláusulas usuais: in diem addictio: o contrato deixava de obrigar o vendedor se, até ao

fim do dia designado, este recebesse uma melhor oferta; lex commissoria: a coisa voltava à
disponibilidade do vendedor se o comprador não pagasse dentro de certo prazo
2825 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Obligatio”, n. 17/18 (“quod sine die debetur,

statim debetur”).
2826 No direito romano clássico: “Verborum obligatio aut naturaliter resolvitur aut civiliter:

naturaliter veluti solutione aut cum res in stipulationem deducta sine culpa promissoris in rebus humanis
esse desiit: civiliter veluti acceptilatione vel cum in eandem personam ius stipulantis promittentisque
devenit” (D.46.3.107; v. ainda D.46,2 a 8.
2827 Adolf Berger, Enciclopedic dictionary […], cit., v. “Solutio”; D.46,3; C.,8,42.

481
As obrigações.
obrigação noutra, novatio2828),
a compensação (compensatio)2829, a confusão (confusio)2830, a
prescrição (praescriptio) e o perdão (remissio)2832.
2831

§ 1661. O pactum de non petendo realmente não extinguia a obrigação, apenas


impedindo exigir o seu cumprimento coercivo, por meio do recurso a uma ação.
§ 1662. Os jurisconsultos portugueses modernos recolhiam o fundamental da doutrina
romanística, negligenciando, no entanto, as formas de extinção das obrigações caídas em
desuso (como a acceptilatio).
§ 1663. O pagamento era definido como a entrega daquilo que se devia, com a
consequente liberação do devedor2833. Conhecia uma forma verdadeira e natural, a entrega
da coisa devida; e outra fictícia e apenas civil, quando o efeito liberatório era conseguido por
uma entrega equivalente ou feita por outrem, nestes casos com o acordo do credor2834,
§ 1664. O pagamento devia corresponder pontualmente àquilo que fora convencionado,
a não ser que algo tivesse sido posteriormente convencionado. Devia ser feito ao credor –
sendo capaz e estando no seu juízo2835 -, não liberando se feito a outrem2836. Devia ser feito
no tempo e no lugar convencionado2837. Devia consistir na coisa convencionada e não
noutra, nem que fosse no seu valor2838. As obrigações que constavam de moedas ou de
géneros por medida podiam levantar problemas se as moedas ou medidas tinham variado.
Em princípio, deviam ser tidas em conta as suas variações, exceto se tivesse sido
convencionado que a obrigação era para ser cumprida segundo o valor das moedas ou das
medidas no tempo da convenção2839.

2828V. D.46,2 De Novationibus et delegationibus.


2829“Debiti et crediti inter se contributio”; D.16,2 De compensationibus; LU, v. “compensatio”.
2830 “Confusio est cum debitor et creditor una persona fit” (cf. D.46,3,75); um caso especial era o

da extinção das servidões por confusão dos prédio serviente e dominante num mesmo dono (“servitutes
praediorum confunduntur, si idem utriusque praedii dominus esse coeperit”, D.8,6,1.
2831 D.44,1 De exceptionibus praescriptionibus et praeiudiciis; C.,8,35 De exceptionibus sive

praescriptionibus.
2832 V. um caso particular (perdão de rendas, remissio mercedis, D.19.2.15.2).

2833 “Solutio est traditio illius quod debetur & liberatio ab obligatione”, António Cardoso do Amaral,

Liber [...], cit., v. “Solutio”, n. 1.


2834 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Solutio”, n. 1.

2835 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Solutio”, n. 7.

2836 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Solutio”, n., ns. 2 e 3. Porém, livrava o

pagamento feito, por ignorância, ao possuidor, mesmo de má fé, ou ao usurpador, ibid., n. 5.. Também
valia o pagamento um procurador cuja procuração tivesse sido revogada, mas sem o conhecimento do
devedor, ibid., n. 8; mas não ao procurador sem poderes
2837 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Solutio”, n. 12 (salvo em caso de justa

causa.Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 47, n.5. O tempo de pagamento de obrigações em
géneros agrícolas costumava ser o das colheitas, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Solutio”, n. 21.
2838 Cf., António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Solutio”, n. ns. 13 e 14; Álvaro Valasco,

Decisiones […], cit., cons. 157, n. 3.


2839 Mas a questão podia ser complicada, se as moedas ou medidas originárias tinham deixado

de existir. Então, tinha que se encontrar o seu equivalente no momento do pagamento, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Solutio”, n. 15, António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 374,

482
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 1665. O pagamento devia ser provado por quem o alegava, exibindo o recibo, embora
se admitissem as restantes provas de direito2840.
§ 1666. O pagamento indevido podia ser repetido, a menos que que consciente, pois
então se entendia corresponder a uma doação; no entanto, presumia-se a ignorância do
caráter indevido da prestação. Esta ignorância só relevava se recaía sobre os factos, mas
não se se tratasse de ignorância sobre o direito (ignorantia iuris)2841.
§ 1667. A falta de pagamento atempado constituía o dever em mora. A mora dava-se
“quando não se faz aquilo que se devia fazer no tempo devido, ou no dia da interpelação
[nas obrigações sem prazo estipulado para o cumprimento2842]”2843. O principal efeito da
mora era o de obrigar o devedor a pagar juros (interesses) desde o momento da mora até ao
do pagamento, a menos que tivesse uma justa causa para não pagar, que pudesse alegar
como exceção2844. Outro efeito era o da inversão do risco (periculum), que passava a correr
pelo devedor em mora2845.
6.9 As obrigações contratuais (ex contractu).
6.9.1 Os pactos e os contratos.
§ 1668. Um pacto era o acordo entre duas ou mais pessoas em dar ou fazer algo que
todas quisessem .
2846

§ 1669. No direito romano mais antigo, o pacto era uma convenção informal, sem nome,
causa ou forma jurídica, contraposta às convenções contratuais que, pelo contrário, tinham
um nome e uma forma determinada. Esta distinção, que não se mantivera sequer no direito
romano mais tardio , não tinha sido plenamente recebida pelo direito comum.
2847

n. 2. A equivalência podia fazer-se pela razão entre moedas antigas e novas ao tempo do contrato, se
se tivesse tido em vista o género de moeda, ou ao tempo do pagamento, se apenas se considerara o
valor delas, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Solutio”, n., ns. 19 e 20.
2840 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Solutio”, n. 24.

2841Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Solutio”, n. 27.


2842“Quod sine die debetur, statim debetur” (o que é devido sem uma data para pagar é devido de
imediato).
2843 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Mora”, n. 1.
2844
Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Mora”, n. 2 (uma exceção que afastava a mora era o
débito não estar acertado (liquidado), ibid., n. 5.
2845 “Damna sunt reficienda ei qui ob moram debitoris passus est”.
2846 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […]¸cit., v. “Pactum”; Pascoal de Melo, Institutiones iuris
civilis [...], cit., 4, 2.
2847 Cf. D.2,14, De pactis, 1, 2 (“D.2.14.1. Ulpianus libro quarto ad edictum. pr. Huius edicti

aequitas naturalis est. Quid enim tam congruum fidei humanae, quam ea quae inter eos placuerunt
servare? 1. Pactum autem a pactione dicitur (inde etiam pacis nomen appellatum est). 2. Et est pactio
duorum pluriumve in idem placitum et consensus. 3. Conventionis verbum generale est ad omnia
pertinens, de quibus negotii contrahendi transigendique causa consentiunt qui inter se agunt: nam sicuti
convenire dicuntur qui ex diversis locis in unum locum colliguntur et veniunt, ita et qui ex diversis animi
motibus in unum consentiunt, id est in unam sententiam decurrunt. Adeo autem conventionis nomen
generale est, ut eleganter dicat pedius nullum esse contractum, nullam obligationem, quae non habeat
in se conventionem, sive re sive verbis fiat: nam et stipulatio, quae verbis fit, nisi habeat consensum,
nulla est. 4. Sed conventionum pleraeque in aliud nomen transeunt: veluti in emptionem, in locationem,

483
As obrigações.
§ 1670. Neste, em parte por influência do “consensualismo” do direito canónico , em
2848

parte pela progressiva atenuação do formalismo do direito romano clássico, a distinção entre
pacto e contrato torna-se incerta. Por um lado, mantém-se presente a distinção, que aparece
nas fontes romanas, mas, por outro lado, as formas contratuais romanas deixam de se usar
ou perdem relevância para determinar o valor e regime das convenções. Quando se chega
ao direito comum tardio, o que prevalece é o uso da noção de pacto como noção geral
(nomen generale), distinguindo, no seu seio, as convenções mais formais, perfeitas ou
principais (pactos vestidos, pacta vestita) das menos formais, imperfeitas ou acessórias
(pactos nus, nuda pacta).
§ 1671. Uma sinopse típica da matéria é a de António Cardoso do Amaral2849, que agora
se segue.
§ 1672. “Pacto - escreve Amaral – é o mesmo que acordo (placitum) e consenso;
falando de um modo geral chama-se pacto a todo o contrato, mas, quando têm um nome
específico não se usa a denominação genérica, mas a da sua espécie e, assim, quando te
vendo uma coisa minha, diz-se “venda” [e não “pacto”] e assim por diante, de onde se segue
que, ainda que “pacto” compreenda todos os contratos e convenções, se use o seu
específico nome para cada um” (n. 1). Neste sentido, o conceito de contrato aparece como
mais reservado para os contratos que tinham um nome e um regime jurídico (uma ação)
específico e o de pacto serviria para os inominados.
§ 1673. Seguidamente, o autor afina mais os conceitos, ao distinguir pacto vestido e
pacto nu2850. “Um pacto diz-se vestido em várias circunstâncias2851. Ou quando é revestido
de palavras, como na estipulação (stipulatio), em que a uma pergunta se segue uma
resposta […], ou quando se reveste de letras [escritas] […], ou de consentimento, como nos
contratos que se perfazem pelo simples consentimento […], ou por algo que está inerente ao
contrato, como quanto te vendo uma casa com o pacto de que eu ainda aí habite durante um
ano […], ou pela intervenção de uma coisa, como quando te prometo dar-te algo, para que
me dês ou faças algo (ns. 3-4)2852. Embora o consenso se pudesse manifestar destas quatro

in pignus vel in stipulationem”.


2848 “[…] Os pactos baseados na equidade geram ação, obrigação e exceção por direito canónico,

pois o direito natural e divino [em que se fundava o direito canónico] obriga aquele que prometeu algo a
cumprir”, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Pactum”, n. 6. Sobre o reconhecimento da
eficácia vinculativa dos pactos, v. Wim Decock, Theologians and Contract Law: […], cit..
2849 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Pactum”.

2850 Sobre esta e outras distinções dogmáticas do direito moderno dos contratos, Andrea

Massironi, Nell'officina dell'interprete. La qualificazione del contratto nel diritto comune (secoli XIV-XVI),
cit.
2851 Outra formulação: “Contractus quattor modis celebrantur, videlicet re, verbo, litteris, &

consensu”, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Contractus”, ns. 1-2.
2852 “Pactum vestitum dicitur multis modis, aliquando enim vestitur verbis, puta per stipulationem

praecedente interrogatione, secuta responsdione, […] aliquando vestitur litteris […] aliquando consensi,
ut contractibus, qui solo consensu perficiuntur […] aliquando cohaerentia contractus, puta vendo tibi
domum eo pacto, ut ibi inhabitem per annum […] aliquando interventu rei, veluti promisi tibi aliquid dare,
ut tu aliqui mihi dares, au faceres et simulae dedi”, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v.
“Pactum”, n. 4. Os juristas romanos arrumavam os contratos de acordo com esta tipologia das formas
de exprimir o consenso da seguinte forma: Por consenso: emptio venditio, locatio conductio,
mandatum, societas. Por entrega de uma coisa: mutuum, depositum, commodatum, pignus; Por

484
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
diversas formas, a origem do contrato era sempre o consenso e não as circunstâncias
externas que o “vestiam”. Por isso, estas deviam ser encaradas sempre como indícios do
consenso das vontades: “magis celebratur voluntate contrahensium, quam verbis, et ideo
magis inspicitur voluntas, quam conceptio verborum”2853 2854.
§ 1674. Em contrapartida, o pacto nu “é aquilo que apenas está na mente e na pura
intenção estar de acordo, sem qualquer invólucro externo, como, por exemplo, quando te
prometo dar cem, sem qualquer pergunta anterior tua [como na stipulatio], nem escrito, nem
nada do que antes se referiu, e tu aceitas; então o pacto diz-se nu” (n. 5) . Feita esta
2855

distinção (a partir da causa eficiente), distingue de novo, agora a partir do regime jurídico de
cada espécie (a partir da causa final): “O pacto nu, segundo o direito civil [direito estrito] não
gera uma obrigação, mas apenas uma exceção […], enquanto que os pactos baseados na
equidade, por direito canónico, geram ação, obrigação e exceção, pois o direito natural e
divino obriga aquele que prometeu cumprir algo […]” ( n. 6). Daí que, por direito civil, os
pactos apenas geravam meios de defesa contra ações da outra parte (exceptiones),
enquanto que os contratos geravam ações.
§ 1675. A partir daqui, já se perfila a distinção – sempre imprecisa e variável – que
tendeu a prevalecer no direito comum entre “pacto” e “contrato”. O contrato era um acordo
autónomo ou principal, revestido de alguma forma, que gerava automaticamente um meio
jurídico para fazer cumprir as obrigações que dele decorriam. Equivalia a um pacto vestido.
O pacto, pelo contrário era um acordo absolutamente informal ou a que faltava algo2856 para
ser imediatamente exequível em direito e que, por isso, não gerava uma ação, embora
pudesse ser usado como fundamento de um meio de defesa (exceptio). Equivalia a um pacto
nu.
§ 1676. O contrato era, deste ponto de vista, a categoria juridicamente mais solene,
definitiva, com um regime jurídico mais preciso e com uma garantia judicial mais completa.
No seu âmbito, os juristas seiscentistas continuam ainda a fazer distinções provenientes do
direito romano, mas com um alcance prático cada vez menor.
§ 1677. A que tinha tradições textuais mais importantes era a que distinguia contratos
nominados de inominados.
§ 1678. Uns contratos seriam “nominados” – i.e., tinham um nome, gerando
automaticamente (eo ipso quod sunt in esse producti ) uma ação civil [actio legis] específica,

recitação de palavras: stipulatio, dotis dictio, iurata promissio liberti. Por um escrito: obligatio litteris
contracta.
2853 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Contractus”, n. 12.

2854 As circunstâncias (res), que aqui funcionam como sinais de uma vontade de contratar, podem

também gerar diretamente uma obrigação não fundada na vontade (ex quasi contratu). Era o caso da
gestão de negócios sem mandato, que gerava obrigações para o gestor e para o dono do negócio, tal
como a tutela ou curatela voluntárias (v. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Contractus”, n.
3).
2855 “Pactum nudum est illud quod est in mentis, & puris finibus (intenções) conventionibus, sine

aliquo vestiemnto, puta promitto tibi dare centum, sine aliqua interrogatione praecedente, nec litteris,
nec aliquo supra relatis, & tu consentis, tunc dicitur pactum nudum”, António Cardoso do Amaral, Liber
[…], cit., v. “Pactum”, n. 5.
2856 Por exemplo, o acordo definitivo de algum dos intervenientes.

485
As obrigações.
prevista na lei das XII Tábuas2857.A ação tinha um nome determinado e importava regime
processual específico., a qual tinha esse nome (compra e venda [emptio, venditio],
arrendamento [locatio, conductio], sociedade [societas], mandato [mandatum]). Como
produziam automaticamente uma ação, faziam efeito imediato, não sendo possível o
arrependimento (poenitentia)2858
§ 1679. Os contratos diziam-se inominados, porque não tinham nome próprio,
correspondendo o seu conteúdo à vontade das partes: do ut des, do ut facias, facio ut facias,
facio ut des2859. As pretensões jurídicas que deles decorriam também podiam ser várias:
aquele que cumpriu a sua parte podia agir contra o adversário para que cumprisse o que
prometera; ou podia repetir o que tivesse prestado em cumprimento da sua obrigação; ou
podia pedir uma indemnização (id quod interest, em função da descrição dos factos feita no
libelo) (v. cap. 7.1.9.2). O seu regime, embora se pudesse aproximar do de algum dos
contratos nominados era o que mais conviesse à situação que gerara o contrato2860. Não
geravam uma ação enquanto não se produzisse a causa, ou seja, enquanto não se verificava
a prestação por uma das partes2861
§ 1680. Outra distinção, na época moderna de pouca monta (ou nenhuma), era feita
entre contratos de boa fé, expressão justinianeia que se aplicava aos contratos que davam
origem a ações e boa fé (actiones bonae fidei) (v. cap. 7.1.3). Pertenciam a esta categoria os
contratos consensuais e os contratos reais (ex re, com exceção do mutuum): (emptio,
venditio, locatio conductio, negotiorum gestio, mandatum, depositum societas, tutela,
comodatum, pignus, familiae erciscundae, os contratos praescriptis verbis, permutatio,
hereditatis petitio). Os contratos reais geravam ações de direito estrito (stricti iuris) (stipulatio,
mutuum, arbitrium, etc.) .
2862 2863

§ 1681. Estas classificações dos contratos, como estavam frequentemente da natureza


e classificação dos meios processuais usados para os garantir, perderam muita da sua
relevância quando desaparecem o sistema processual romano, com as suas oposições entre
ações civis e pretórias, ações de boa fé e de direito estrito. Na época moderna, isto tinha
desaparecido. Em Portugal, as Ordenações tinham estabelecido que do libelo não tinha que
constar o nome da ação, mas apenas o pedido e os seus fundamentos (v. cap. 7.1.3). Não
obstante, a referência a estas classificações e a sua análise continua a ser regularmente

2857 Estes contratos davam imediatamente lugar à ação, pois o seu regime estava

inequivocamente fixado por lei, quer quanto ao pedido, quer quanto à causa de pedir (ou seja, a lei
fixava a fórmula da ação, nas estando nem no arbítrio das partes, nem no do juiz. Cf., D.2,14,7,1. Cf.
António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Contractus”, n. 6. Como nesta fase do direito comum, a
petição inicial (libelo) não tinha que indicar o nome da ação, este automatismo deixava de existir e,
portanto, a distinção entre contratos nominados e inominados tornou-se irrelevante.
2858 Ao contrário do que acontecia nos inominados, cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit.,

v. “Contractus”, ns. 6, 8 e 9.
2859 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Contractus”, n. 5.

2860 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Contractus”, ns. 4-5.

2861 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Contractus”, n. 6.


2862 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Contractus”, n. 7.
2863 No período final do direito comum, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit.

declarará, coerentemente, todas estas distinções como inúteis (Institutiones iuris civilis […], cit., 4, 2, 1-
2).

486
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
feita., evidenciando uma permanência de objetos discursivos sem referente na prática do
direito, ou mesmo disfuncionais em relação a ela.
§ 1682. Podia convencionar-se que, no futuro, se haveria de convencionar (pactos de
contrahendo, contratos promessas), mas as simples tratativas ou conversações que
antecedessem os pactos não eram elas mesmas considerados pactos, pelo que a quebra de
negociações não constituía em responsabilidades pela não realização do negócio .
2864

Concluído o pacto, estavam criadas as respetivas obrigações .


2865

§ 1683. Os pactos, tal como os contratos, tinham que ser cumpridos (pacta sunt
servanda) pontualmente (i.e., ponto por ponto, rigorosamente). Nos pactos, mais
exclusivamente dependentes da vontade do que os contratos, esta era o principal critério de
cumprimento, como se vê na teoria da interpretação, em que a averiguação da vontade era o
essencial, sobrepondo-se aos elementos literais das cláusulas convencionadas . As
2866

cláusulas obscuras ou ambíguas do pacto valiam contra quem as tivesse aposto, por se
presumir que agira maliciosamente ou capciosamente ao fazê-lo . Na dúvida, presumia-se
2867

que os contraentes se teriam conformado com a lei ou os costumes do reino ou com a


2868

interpretação normalmente dada às diferentes cláusulas que ocorriam frequentemente e que


fora sendo recolhida num género literário próprio .
2869

§ 1684. Nos contratos, mais formais do que os pactos, embora as partes pudessem
modelar o seu conteúdo de acordo com as suas vontade, havia preceitos que decorriam do
regime jurídico de cada tipo contratual o qual se entendia ter sido aceite pelas partes (natura
contractus) ou se impunha mesmo à vontade das partes (nomen contractus, substantia ou
2870

substantialia contractus) . Esta teoria de que os contratos (ao contrário dos simples pactos)
2871

tinham uma natureza objetiva diminuía o arbítrio dos contraentes e amarrava-os a


2872

2864 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 2, 7.


2865 O constitutum, pacto pelo qual alguém prometia cumprir obrigação própria já assumida, era
inútil. O constitutum in alieno era, de facto, uma fiança, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...],
cit., 4, 2, 8.
2866 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Contractus”, n. 12: “Magis celebratur voluntate

contrahensium, quam verbis, et ideo magis inspicitur voluntas, quam conceptio verborum”. Cf. ainda
Miguel Reinoso, Observationes […], cit., obs. 41, n. 23; Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 185, n.
18.
2867 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Pactum”, n. 38.

2868 “Os contraentes sempre se limitam nos seus contratos às leis que regulam esses contratos”,

Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 16, n. 18; “os contratos são interpretados segundo o costume
do reino”, Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 75, n. 3.
2869 Cf. g., Agostinho Barbosa, Remissiones doctorum de dictionibus et clausulis in utroque iure

contentis, Romae, Bartholomaei Zannette, 1621; ou Tractatus varii [...] Clausulae usufrequentes [...],
cit...
2870 “Contractus est observandus secundam formam, & substantiam ipsius contractus, nec possit

aliquis eorum contrahensium ultra formam contractus aliquid agere [...] semper enim substantialia
contractus sunt attendenda [...] illum tamen, quod venit ex natura conractus, habetur pro cauto [...]”,
António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Contractus”, n. 17.
2871 “Unde dicitur pactum rumpit leges, contractus autem dat leges”, António Cardoso do Amaral,

Liber […], cit., v. “Contractus”, n. 12.


2872 “Pacta contra substantia contractus non obligant”, Melchior Febo, Decisiones […], cit., d.111,

ns. 17-18. Não já no caso de a contradição apenas envolver cláusulas acidentais (António Cardoso do

487
As obrigações.
cláusulas eventualmente não queridas .
2873

§ 1685. Mais tarde, houve quem defendesse a posição mais permissiva de que os
pactantes não tinham que cumprir os pactos se indemnizassem as outras partes dos danos
decorrentes da frustração do cumprimento (id quod interest). Esta era a posição de Christian
Thomasius, na dissertação An qui factum promittit, liberatur praestando id quod interest; mas
não constituía a opinião dominante .
2874

§ 1686. Como convenções fundadas no direito natural, que obrigava a que as


promessas fossem cumpridas, os pactos (e contratos) obrigavam toda a gente. Mesmo o
príncipe. A questão foi muito abordada pela doutrina do direito comum tardio, que se
interrogava sobre se o príncipe, liberto da obediência às leis civis , não estaria também
2875

desobrigado de cumprir os contratos . A resposta dominante era a de que estava vinculado


2876

aos contratos, dado o fundamento natural, e não político ou civil, da obrigação de cumprir as
convenções; pelo que o príncipe ficava obrigado pelo direito natural, de cuja obediência não
estava liberto . Apenas no caso de o contrato causar um enorme prejuízo para a coroa,
2877

como cabeça da república , por uma causa superveniente e não previsível no momento da
2878

sua celebração, é que o príncipe poderia rescindir ou não cumprir um contrato por si firmado.
§ 1687. Uma forma específica de pacto, com importância no âmbito de um litígio, era a
transação , pela qual se convencionava decidir uma questão duvidosa, dando, retendo ou
2879

prometendo algo. Também a transação estava sujeita às limitações dos pactos,


nomeadamente quanto à disponibilidade do objeto e quanto à sua licitude2881. A transação
2880

Amaral, Liber […], cit., v. “Pactum”, n. 27). Também se dizia que o pacto feito contra a substância do
contrato não valia, exceto no caso de apenas contrariar cláusulas acidentais do ponto de vista dessa
substância, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Contractus”, n. 27.
2873 Cf. g., a clausula rebus sic stantibus. Em todas as convenções se pressupunha a existência

de uma cláusula tácita de que elas valeriam apenas se se mantivessem as condições existentes ao
momento da celebração, pois não teria sido prevista a uma alteração das circunstâncias (condição
tácita “eodem statu persistere res, quam erat tempore contractus, cum casus superveniens, non esset
dictum nec cogitatum”, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Obligatio”, n. 11).
2874 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 2, 5; sobre “id quod interest”, Raffaele

Volante, “Id quod interest. Il risarcimento in equivalente nel diritto comune”, Diritto libero, 2012, em
http://www.academia.edu/3440582/Id_quod_interest._Il_risarcimento_in_equivalente_nel_diritto_comune, em
10.2.2014.
2875 Limitando o alcance do princípio, António Manuel Hespanha, As vésperas […], p. 480 ss..

2876 Discussão: Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 120 ns. 7-14; Miguel Reinoso,

Observationes […], cit., obs. 57, ns. 3-5. Sobre o tema dos limites contratuais e legais ao poder do
príncipe, v., em síntese, António Manuel Hespanha, As vésperas […], p. 480 ss. max.p. 481 e nota 18.
2877 Cf., v.g., Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], dec. 120, ns. 1-3.

2878 Não bastava o prejuízo do fisco, como património do príncipe.

2879 D. 2, 15, De transactionibus; Ord. fil., 3,78, 1; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...],

cit., 4, 2, 9.
2880 Algumas limitações na transação (para proteger de si mesma a parte transigente), Pascoal de

Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 2, 11, 1 Nos processos crime, podia-se transigir quanto aos
danos ou à retaliação privada (direito de denunciar ou de acusar), mas não quanto à punição pública,
Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 2, 13 (v. Ord. fil., 1,3, 9).
2881 Discutia-se se a transação sobre o adultério, em que o marido ofendido desistisse da

acusação, era ou não imoral e ilícita, por equivaler a proxenetismo (ceder a mulher em troco de uma

488
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
era de interpretação estrita, podendo ser anulada por lesão (Ord. fil.,4,13,6). Como não era
uma decisão do juiz, mas das partes, não se podia apelar dela (Ord. fil., 3,78) .
2882

6.9.2 As espécies de pactos e contratos.


§ 1688. Passemos em revista o fundamental dos vários contratos nominados, para os
quais havia uma tradição dogmática específica.
§ 1689. Na ordem, seguimos o agrupamento feito, já nos finais do séc. XVIII, por
Pascoal de Melo2883.
§ 1690. Numa primeira categoria agruparemos os contratos beneficiais, pelos quais se
estipula que alguém dê ou faça a outrem uma certa coisa, sem se estipular uma
contrapartida para esse ato. A categoria compreendia a doação, à qual se equiparavam, em
certos aspetos, o mútuo, o comodato, o precário, o depósito e o mandato2884
§ 1691. Um contrato beneficial era aquele que consistia numa ação a favor de outrem,
fundada no bem querer. Em sentido mais estrito designava aquilo que se dava por amor ou
benquerença. A particular natureza dos contratos beneficiais relacionava-se justamente com
este caráter gratuito e benévolo, o qual estabelecia para eles certas regras específicas: (1)
não tinha sentido avaliar a igualdade das prestações; (2) só se lhes aplicavam as suas
regras específicas quando o seu cumprimento fosse voluntário, já não quando fosse exigido
judicialmente; (3) tratando-se de liberalidades, não deviam trazer prejuízos não suportáveis
para o benfeitor, pelo que este podia revogar o benefício no caso de necessidade grave e
imprevista; (4) careciam de acordo do beneficiário, nomeadamente pelas obrigações que
originavam, embora não no plano estritamente jurídico, a mais importante das quais era o
dever de gratidão, com as suas sequelas2885.
6.9.2.1 Os contratos gratuitos.
6.9.2.1.1 A doação.
§ 1692. Começamos pela doação.
§ 1693. A doação era um dos contratos que melhor revelava as crenças implícitas
acerca da ordem do mundo. Haveria uma ordem do mundo, em que as pessoas e as coisas
estavam ordenadas entre si. Essa ordem do mundo era estável, até certo ponto, indisponível.
A sua alteração era excecional e, por vezes impossível. Cada um tinha as suas coisas (ius
suum) e o direito protegeria esse quinhão primordial (patrimonium). As alterações da ordem
patrimonial eram possíveis, por meio da atos como que mágicos, como a recitação de
palavras ou a celebração de rituais, como acontecera com a celebração de contratos no
direito mais antigo, ou por meio da vontade, pactando, como acontecia no direito mais
moderno. Porém, estas alterações tinham que ter uma causa – causa eficiente, como a
razão que levou o doador a doar, ou causa final, como o objetivo do doador ao doar -,
inscrita na própria ordem da natureza. Essa causa era, no fundo, uma tendência natural para

quantia). A doutrina mais tardia (Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 2, 14, citando Chr.
Thomasius) considerava o negócio honesto.
2882 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 2, 15.

2883 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 1 e 2.

2884 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 1.

2885 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 2.

489
As obrigações.
manter o equilíbrio entre os patrimónios. De tudo isto decorria que a doação simples,
espontânea, arbitrária e incausada, puramente liberal, era possível, mas excecional, pelo
que, ocorrendo, devia ser verificado se o ânimo de doar – i.e., sem ser para recompensar ou
na perspetiva de um retorno futuro - existira mesmo ou fora apenas induzido por manobras
torpes para distorcer a vontade. Se se concluísse que essa vontade de dar tinha existido, ela
era respeitada pelo direito, embora sujeita a limitações quanto à pessoa do donatário, quanto
a expectativas de terceiros relativas ao património do doador e quanto ao objeto doado. Se
essa vontade de dar tivesse afinal uma causa natural, como o sentimento de gratidão pelo
que o donatário, antes, tinha feito em benefício do doador, a doação era, afinal, um
movimento natural de restauração do equilíbrio patrimonial. O donatário era recompensado
por um anterior benefício feito ao agora doador, restaurando-se, assim, um equilíbrio
primordial entre os dois. E, assim, a doação impunha-se no plano do direito e também no
plano de uma ordem natural anterior, reportada a equilíbrios patrimoniais originais e a
sentimentos que visavam a sua reposição (gratitudo). Por isso, estas doações com uma
causa (ob benemerita), ou remuneratórias, impunham-se ao próprio direito estrito, valendo e
sendo, pelo menos parcialmente, eficazes, mesmo quando este direito tendesse a não as
reconhecer. Este modelo ontológico parece explicar os traços do regime jurídico da doação,
nomeadamente, o instituto da insinuação, as proibições de doar, a eficácia natural e civil das
doações remuneratórias, as quais, ou eram válidas mesmo no caso em que doações
puramente liberais não o seriam ou, mais radicalmente, eram consideradas como o
cumprimento de contratos não beneficiais.
§ 1694. A doação era uma liberalidade gratuita, ou seja, não juridicamente devida2886.
§ 1695. O seu regime jurídico era profundamente condicionado por uma dupla suspeição
que recaía sobre ela. Ou de que, no fundo, as doações não eram gratuitas; ou de que, sendo
de facto gratuitas, a vontade que lhes dera origem não tinha sido sã. Daí que estivessem
sempre em risco de não valerem como doações, mas como contratos onerosos; ou de, se
fossem de facto contratos gratuitos, não valerem como contratos, por falta de vontade
suficiente. Valerem, de facto, como dádivas gratuitas2887, era algo que o direito não presumia
e que averiguava cuidadosamente, não fosse esse ato bizarro do doador carecer de
fundamento válido ou vir a perder esse fundamento com a mudança dos tempos.
§ 1696. A verdadeira doação (datum simpliciter) era, portanto, a que se explicava por um
sentimento de amizade, afinidade ou afeição entre o doador e o donatário - que devia ser
avaliado, quanto à sua pertinência e eficácia, em função da qualidade das pessoas e da
natureza daquilo que fora dado2888 - e sem qualquer outra causa que não a intenção liberal e

2886 D. 39, 5 De donationibus, 15, 2. Fontes: D.39, 5; I., 2, 7; C.,8, 53-56; Ord. fil., 4,62 a 66. Sobre

o regime de direito romano, Gordon Campbell, A compendium of Roman law […], 63 ss.. Muito
interessante sobre os “enigmas jurídicos” da doação, com referências aos planos não estritamente
jurídicos do tema, Carlos Ferreira de Almeida, Contratos […], cit., 9 ss.. Sobre a liberalidade no direito
comum, v. António Manuel Hespanha, “ Les autres raisons de la politique. L’économie de la grâce “, cit.;
Bartolomé Clavero, Antidora [...], cit..
2887 Os juristas opunham, por vezes, a datio (dação), pura e gratuita, à donatio (doação), causada

(ob causam) por um anterior benefício de sentido contrário.


2888 “Est consideranda amiticia, aut affinitas, vel affactio inter dantem, et accipientem, & qualitas

utriusque personae, & quantitas dati” [para se saber se se trata de uma doação simples ou de outro
contrato próximo, como o mútuo ou o comodato], António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v.
“Donatio”, n. 47.

490
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
a generosidade (largitudo, munificentia)2889. Isto era possível em pessoas virtuosas,
inspiradas pelo sentimento da liberalidade ou da graça, mas tão raro que não se devia
presumir2890. Antes pelo contrário: se o doador não invocasse por palavras a sua intenção
puramente liberal, esta não se presumia, antes se assentando em que a doação tivera “uma
causa”. Porém, tendo uma causa, o ato “em rigor não era uma doação, mas antes uma
remuneração ou recompensa, de serviços aceites de outrem”2891. De facto, a causa afastava
o espírito de liberalidade, essencial à verdadeira doação. Como escreveu Melchior Febo,
“não se diz ser grato aquele que apenas voltou a dar aquilo que recebeu”2892. Por isso é que
os serviços devidos ao pai (ao marido, ao patrono, ao rei, acrescentam alguns2893),
justamente porque são devidos em face de anteriores atos de cuidado ou de proteção, não
constituíam doações nem geravam naquele que é servido um sentimento de gratidão que o
obrigasse a voltar a beneficiar os filhos, a mulher, os libertos ou os súbditos2894. O mesmo se
diga da doação pela qual o pai instituía um dote a favor da filha (ou que prestava os
alimentos devidos aos filhos): não era um ato verdadeiramente beneficial, antes
correspondendo ao cumprimento de um dos deveres dos pais.
§ 1697. A doação simples era válida, embora limitadamente, pois a mera liberalidade
cedia perante expectativas fundadas ou direitos estabelecidos2895. Por isso, tendo uma certa
importância, a sua motivação tinha que ser averiguada pelo rei. As Ordenações (Ord. fil.,
4,62) dispunham que as doações de valor superior a 300 cruzados2896, tinham que ser
averiguadas e confirmadas pelo Desembargo do Paço, como tribunal colateral ao rei, num
processo que se chamava de insinuação2897. A este regime estavam também sujeitas
doações de menor soma, mas que, juntas, excedessem os ditos valores (para evitar a fraude

2889 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Donatio”, n. 4.


2890 Sobre as donationes ob benemerita, v. Miguel Reinoso, Observationes […], dec. 31 ss.: se
são verdadeiras doações, ibid., ns. 1-2; “in dubio censetur remuneratoria”, ibid., n. 3.
2891 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Donatio”, n. 5. Já no direito romano a doação

em sentido próprio era a doação gratuita: D.39, 5, 1, pr.: “Ulpianus […] propter nullam aliam causam
facit., quam ut liberalitatem et munificentiam exerceat […] Haec proprie donatio applelatur”.
2892 “Non dicitur tantum gratus qui tantum reddit quantum accepit”, Bento Pereira, Promptuarium

[...], cit., v. “Donatio”, n. 450; Miguel Reinoso, Obervationes […], cit., obs. 31, n. 16; v. também “qualiter
debeant essere benemerita ut donationem remuneratoriam faciant”, ibid..
2893 Este era o fundamento da opinião de que em Portugal, em que os vassalos nobres recebiam

uma contia, estes eram obrigados a servir o rei. Por isso, os seus serviços não eram benefícios feitos
ao rei e, logo, este não tinha que os remunerar. De onde as doações régias seriam doações simples e
não remuneratórias. Esta linha de argumentação não era a dominante.
2894 Miguel Reinoso, Observationes […], obs. 31, n. 4 (toda a decisão é importante).

2895 Como, por exemplo, as legítimas dos filhos ou de outros herdeiros necessários. Por isso, não
eram válidas as doações simples que as ofendessem
2896 500 áureos, pelo direito comum. No caso de serem feitas por mulheres (cujo ânimo era mais

frágil e menos esclarecido), a insinuação era obrigatória a partir de 150 cruzados.


2897 Originariamente, a insinuação traduzia-se na intervenção no ato de um notário público (C.,8,

53, 36, 3). Cf. António de Nebrija, Vocabularium […], cit., v. “Insinuatio”: “scriptura publica facta in
praesentia publicarum personarum”. Sobre o seu regime no direito comum tardio, em Portugal, Bento
Pereira, Promptuarium [...], cit., v. “Donatio”, n. 462 ss.; Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], tom.
2, ad Ord. fil.,1,3, gl. 6 (p. 94).

491
As obrigações.
à lei)2898.Na insinuação se averiguava se a vontade de doar era sã, isenta de vícios (as
Ordenações falam de “induzimento, arte, engano, medo, prisão, ou outro algum conluio“,
sendo este conluio, tipicamente, a simulação para prejudicar herdeiros ou credores) que a
invalidassem 2899, e também se a doação não teria alguma causa não expressa (como
remunerar serviços anteriores ou futuros, constituir um dote, beneficiar o outro cônjuge,
instituir um pecúlio para um filho, fazer uma deixa por morte2900, efetuar um
pagamento2901)2902 que mudasse a natureza do contrato.
§ 1698. Como a insinuação se destinava a validar algo que parecia pouco verosímil – a
doação puramente gratuita -, não era requerida no caso daquelas doações que em rigor não
o eram por terem uma causa2903. Assim, doação para instituir um dote (donatio causa dotis),
para prestar alimentos ou para causas pias não tinha que ser sujeita a insinuação2904. Pela
mesma razão de que correspondia ao cumprimento de um dever de gratidão, também a
doação remuneratória não obrigava a insinuação2905. Também a doação por causa de morte
(donatio mortis causa) não tinha que ser insinuada, por, na verdade, se equiparar a uma
deixa testamentária2906. Já as doações régias não tinham que ser insinuadas, mas porque o
doador já tinha essa natureza pública que certificava a seriedade da decisão de doar2907.
§ 1699. Assim, pela insinuação ou se invalidavam doações simples, realmente não
queridas, ou se transformavam doações simples em doações com causa, reforçando a sua
eficácia.
§ 1700. A determinação de uma causa para a doação mudava o seu regime,

2898 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Donatio”, n. 10.
2899 Para exigir a repetição da coisa doada, o doador dispunha da condictio indebiti, António
Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Donatio”, ns. 39 e 59. Mas existia também uma exceptio (ob
errorem) para o doador se defender de uma ação em que se pedisse o cumprimento da doação. A
repetição não tinha lugar se o doador estivesse obrigado a dar por uma obrigação de direito natural (de
gratidão). Daí que quem tivesse doado por uma por uma causa equivocada, não poderia repetir se
houvesse uma outra verdadeira causa para doar, ainda que apenas de direito natural.
2900 A doação mortis causa equivalia à deixa testamentária, mas devia ser aceite pelo donatário

(D.39.6, de mortis causa donationibus, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Donatio”, n. 38.
2901 Donatio remuneratoria, donatio dotis, donatio inter virum et uxorem, donatio peculii, donatio

mortis causa, donatio/datio in soluto.


2902 A nomeação para administrador de morgado ou cabecel de um prazo não era uma doação

Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 3.


2903 António da António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 163, n. 3.

2904 Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 1., dec. 135, n. 6; António da Gama, Decisiones [...],

cit., dec. 120, n. 1; António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Donatio”, n. 11.
2905 Desde que o benefício não excedesse o merecimento, António da Gama, Decisiones […], cit.,

dec. 213, n. 1; também dec. 302, n. 8.


2906 Sobre o seu regime, Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Donatio”, n. 60 ss.. Quanto à

forma, devia, por isso revestir a do testamento: 5 testemunhas, 2 no caso de ser feita a filho, António
Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Donatio”, n. 10. Em geral, a escritura de doação devia conter os
nomes de doador e donatário e a descrição precisa da coisa doada, António Cardoso do Amaral, Liber
[…], cit., n. 36.
2907 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 3.

492
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
fortalecendo-o. Em geral, a causa validava certas doações aliás inválidas2908 ou tornava a
doação mais firme, excluindo certas causas de revogabilidade superveniente que podiam
atingir a doação simples, como o nascimento de filhos do doador2909, a sua pobreza
superveniente ou a ingratidão do donatário2910. Por isso, as partes podiam ter um interesse
vital em alegar e provar a causa da doação, de modo a fazer com que ela valesse.
Realmente, embora uma doação simples valesse, em princípio, uma doação ob causam,
nomeadamente remuneratória (ou ob benemerita) valia mesmo em casos em que as
meramente simples fossem inválidas. Mas, para que isto acontecesse, não bastava dizer que
havia uma causa; era preciso prová-la2911.
§ 1701. Podiam doar as pessoas que podiam contratar ou que podiam dispor dos
bens2912. Assim, como os pais e os filhos in potestate eram tidos como sendo a mesma
pessoa2913 e, por isso, não podiam contratar entre si, também não podiam fazer-se
mutuamente doações. Embora o pai pudesse constituir pecúlios aos filhos ou sustentar os
seus estudos e isto, por vezes, fosse chamado de doação, realmente eram atos unilaterais
de disposição dos seus bens (v. cap. 3.2.4). Não podiam doar – de acordo com princípios
comuns a todos os contratos - o furioso, o demente e outros semelhantes, o menor de 15
anos sem autorização do tutor, o filho-familias, sem autorização do pai, a não ser pelas
forças do pecúlio de que tivesse administração2914; o mesmo quanto ao religioso ou ao
monge sem autoridade do superior2915.
§ 1702. Quanto à causa da doação (os merecimentos que ela remunerava), para além

2908 Por exemplo, as doações entre pessoas que não pudessem fazer doações entre si (v. abaixo)
2909 As doações ob causam ou as remuneratórias não eram revogadas pelo nascimento de filhos
(C, 8, 55, 8, que deu Ord. fil.,4, 65), Melchior Febo, Decisiones […], dec 86, 2 ss..
2910 A doação que tivesse uma causa não era revogável por ingratidão, nem carecia de

insinuação, Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 449, António da Gama, Decisiones [...], cit., dec.
163, n. 3.
2911 Nas doações entre pessoas proibidas de doar, a declaração dos merecimentos que se

compensariam com ela não bastava para as validar, Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 184, n.
20; ou dec. 31, n. 20: “Senatus saepe judicavuit non sufficere assertionem meritorum etiam inter
personas non prohibitas donare, si donatio summam a lege taxatam excedant, sed necessarium esse
meritorum probationem, ut si aequivaleant rei donatae, sustineatur donatio, se vero donatio excedat
merita, in eo excessu vitietur”. Para que as doações se digam remuneratórias os benefícios recebidos
deviam ser provados, bem como a sua equivalência com o bem doado (quanto ao excesso, a doação
diz-se simples e revogável), v. Bento Pereira, Promptuarium […], n. 449, Melchior Febo, Decisiones
[...], cit. dec. 86, n. 11. Também António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Donatio”, n. 8.
2912 Em contrapartida, estavam vedadas aos que não podiam dispor dos bens doados, ou por não

serem donos deles, ou por não poderem dispor dos seus bens, Não se podia doar coisa alheia ou que
tivesse sido confiscada; o usufrutuário não podia doar a plena propriedade; o prelado ou regedor de
uma igreja não podia fazer doações por força dos bens de uma igreja (salvo se isso fosse o costume do
lugar); v. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Donatio”, ns. 19-23. Mas o patrono poderia
doar bens do padroado sem autorização do bispo (v. ibid., n. 28.
2913 Cf. [Família: filiação].

2914 Castrense ou quase castrense, proveniente de exercício das armas ou de outro ofício público,

benefício ou dignidade.
2915 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Donatio”, ns. 17-18. O credor podia doar o

crédito, tal como um dizimeiro podia doar as dízimas a que tivesse direito, pois se tratava de coisas que
estavam no seu património (ibid., ns. 23 e 27).

493
As obrigações.
de – nas doações remuneratórias - dever ser proporcionada ao bem doado, sob pena de o
excesso deste ser considerado como doação simples ou absoluta, devia ser possível, lícita e
honesta. As doações feitas por uma causa (i.e., a razão de ser ou finalidade) impossível, de
direito ou de facto, eram válidas, se o doador soubesse dessa impossibilidade, pois se
entendia que, se sabia, estava a querer doar de forma pura ou incondicional2916. Não assim
se desconhecesse a impossibilidade ou se ela fosse superveniente, caso em que a doação
seria anulável. O mesmo acontecia se a causa fosse futura e não se verificasse ou se
verificasse por fato independente da vontade do donatário (“doo para que faças certa coisa e
não o fizeste ou o fizeste [isso foi feito] por outra razão”)2917.
§ 1703. A imoralidade ou torpeza da causa invalidava a doação. Assim, podiam ser
anuladas (e também revogadas) as doações feitas em fraude dos credores2918, as doações
feita por homem casado à sua concubina (mas não já por homem solteiro)2919 ou as doações
com finalidades desonestas ou criminosas2920. Este era o caso de doações feitas a um oficial
para obter um favor contrário aos seus deveres de ofício (como livrar alguém da tropa,
preferir um candidato a um lugar, julgar num certo sentido, nomeadamente contra direito)2921.
Nestes casos, distinguia-se o crime de corrupção da validade da doação. O crime verificava-
se sempre, quer por parte do doador, quer por parte do donatário, por causa da peita de um
oficial público. Se o que se pedia era a decisão que correspondia ao que o direito
estabelecia, o doador podia repetir o que doara, pois o donatário não lhe faria nenhum
obséquio em decidir a seu favor e, logo, faltava a causa para doar. Porém, se o que se pedia
era contra o direito, a doação era válida, não podendo o doador repetir, “pois houvera
torpeza de um e de outro lado”, embora o donatário devesse ser punido mais duramente,
indemnizar aquele que fora prejudicado pela sua decisão ilícita e perder para o fisco a coisa
doada2922. O regime que acaba de ser referido correspondia à regra geral de que a doação
com causa torpe não era anulável se havia intenção imoral apenas por parte do doador, mas
não do donatário.
§ 1704. Podia ser doado tudo o que estivesse no comércio. Discutia-se a possibilidade
de doar todos os bens, tendendo-se a responder que não2923, tanto por configurar um ato de
prodigalidade, como por induzir a supor que se tratava de uma doação simulada, para

2916 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Donatio”, n. 56.


2917 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Donatio”, n. 55.
2918 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Donatio”, n. 37.

2919 Doação feita à concubina por homem solteiro, vale, António Cardoso do Amaral, Liber […],

cit., v. “Donatio”, n. 16 e, por isso, o doador não pode repetir o doado, António da Gama, Decisiones
[...], cit. dec. 223, n. 3.
2920 “Datum ob turpem causam, non repetitur, & ex utraque parte extat turpis causa, in pari enim

causa turpitudinis, melior est conditio possidentis […]. Si tamen sit turpiendo ex parte accipientis tantum
repetitur, quod fuit datum, ab illo qui dedit […]. Non tamen si turpituto sit a parte dantios, vel utraque
parte”, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Donatio”, n. 51.
2921 As fontes doutrinais usadas referem-se, como exemplo, ao oficial militar encarregado de

recrutamento, ao juiz, ao notário, ao corredor das folhas (i.e., aquele que verificava os antecedentes
criminais de uma pessoa).
2922 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Donatio”, n. 52-53.

2923“An donatio omnium bonorum reservato usufructo valeat ? Pro utraque parte quaestionis est

opinio, sed neagtiva communior”, Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., v. “Donatio”, ns. 455-456;
António da Gama, Decisiones [...], cit., d. 348, n. 3.

494
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
sonegar o património e defraudar interesses protegidos de terceiros, nomeadamente de
credores2924. Os que admitiam uma doação com este âmbito convertiam-na ou numa doação
da herança (com o conteúdo que esta viesse a ter2925) ou numa doação apenas dos bens
presentes2926. Fosse como fosse, os credores gozavam sempre de uma actio pauliana para
anular a doação enquanto os prejudicasse2927. Nem as doações de todos os bens feitas à
igreja ou por causas piedosas escapavam a este regime de invalidade, no caso de
ofenderem as legítimas dos filhos (mesmo supervenientes) ou os direitos dos credores;
embora se considerasse que não pecavam por liberalidade excessiva (prodigalidade),
sobretudo se fossem feitas com a reserva do usufruto, pois nunca se daria de mais a Deus
ou para a salvação da alma2928.
§ 1705. Ainda que não se tratasse de doações de todos os bens, o montante das
doações podia importar a sua invalidade, sempre que fossem inoficiosas, ou seja, que, pela
sua importância (avaliada na altura da abertura da herança2929), comprometessem as
legítimas dos filhos2930. Os filhos prejudicados dispunham de uma ação (querela inofficiosae
donationis) para obter a sua revogação, mesmo que se tratasse de doações
remuneratórias2931. No direito comum, a querela inofficiosae donationis só aproveitava aos
filhos legítimos. No direito régio, aproveitava também aos filhos naturais de plebeu2932. As
doações feitas a um filho eram imputadas na sua legítima também podiam ser inoficiosas, se
ofendessem as legítimas dos outros2933.
§ 1706. As doações eram passíveis de condições ou de pactos anexos que
condicionassem a sua eficácia. Tais condições ou pactos, na verdade, não faziam mais do
que explicitar a causa que, não sendo realizada, invalidaria a doação. Tal como se disse

2924Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., v. “Donatio”, n. 457, Miguel Reinoso, Decisiones [...], cit.

obs. 41, per totam, maxime ns. 1-3, 4 ss..


2925 Como o donatário não era herdeiro não ficava obrigado a pagar as dívidas, cf., Miguel

Reinoso, Decisiones [...], cit., obs. 42, per totam, maxime, n. 2 ss..
2926 Miguel Reinoso, Decisiones [...], cit., 41, ns. 8 e 16; António Cardoso do Amaral, Liber […], v.

“Donatio”, cit., n. 14.


2927 Miguel Reinoso, Decisiones [...], cit., (“ex donatione omnia bona probatur et convincitur

fraus”). A ação pauliana era um expediente geral para proteger os direitos dos credores à garantia
constituída pelo património do devedor (v. António Cardoso do Amaral, Liber […], “Donatio”, cit., n. 85:
“cum aes alienum totum patrimonium respiciat”). Em todo o caso, não era concedida contra bens
doados ob benemerita, porque estes, à sua maneira, também eram devidos e até preferencialmente (já
que estes credores naturais a quem tivessem sido doados bens nem sequer entravam em concurso
com os credores civis, antes os preferiam, por não serem obrigados a restituir os bens). Cf. ainda
Álvaro Valasco Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit. cons. 188, n. 12 (os credores não podem revogar
uma doação onerosa que os defraude).
2928Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 465, António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 240,

n. 3; António Cardoso do Amaral, Liber […], v. “Donatio”, cit., n. 12-13.


2929 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 189.

2930 Sobre o seu regime, no direito comum, castelhano e português, Bento Pereira, Promptuarium

[...], cit., v. “Donatio”, n. 460; Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 188, ns 1-2.
2931 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 188, n. 5.

2932 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 94, ns. 7-8 e 15

2933 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Donatio”, ns. 84, 87.

495
As obrigações.
quanto à causa, as condições tinham também que ser possíveis, lícitas e morais2934. Se a
condição não fosse satisfeita pelo donatário (v.g., prestação de alimentos), caía a doação,
tendo o doador uma reivindicação contra o donatário2935.
§ 1707. A doação podia, também, conter um termo (ad tempus)2936.
§ 1708. O contrato não tinha uma forma prescrita (Ord. fil.,4,62,1), a não quando
tivessem por objeto algo cuja transferência exigisse escritura pública (Ord. fil., 3,25 e 30;
4,10 e 19). As doações mortis causa requeriam a forma dos testamentos (D., 39.6, de mortis
causa donationibus, 38).
§ 1709. O contrato de doação perfazia-se pela tradição da coisa ou pela aceitação do
donatário2937; no caso de doação com retenção do usufruto dizia-se que a coisa se transferia
“por ficção”2938.
§ 1710. A revogação da doação era autorizada ou pela superveniência de filhos2939, já
que se presumia que isso teria sido relevante na decisão do doador, ou por ingratidão do
donatário, a qual anulava a causa de doar2940. As doações remuneratórias não estavam
sujeitas a este regime de revogação, pois se entendia serem pagamentos devidos e, por
outro lado, porque nestes casos o donatário não tinha porque ficar obrigado ao doador.
Assim, a revogabilidade só existia nas doações simples e, porventura, nas doações de
dote2941. Também não eram revogáveis as doações acompanhadas de um pacto de non
revocando2942.
6.9.2.1.2 As doações de bens da coroa ou doações régias.
§ 1711. Em Portugal, mereceram um tratamento especial as doações de bens da coroa,
feitas pelo rei (v. cap. 2.4.3.5) 2943. Não tanto, no que diz respeito ao seu regime como
doações, mas sobretudo em virtude do objeto doado: jurisdições e bens da coroa (v. cap.
4.2.2.3).

2934 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Donatio”, n. 90.


2935 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Donatio”, n. 32; a condição de não alienar ou
de não alienar senão a certa pessoa, tornava nulas as vendas supervenientes feitas pelo donatário,
pois se tinha vendido uma coisa que não se tinha recebido, por falta de realização da condição e,
consequentemente, de consumação da doação, v. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v.
“Donatio”, n. 33; a doação de um ofício para quando vagasse pela primeira vez consome-se se o
donatário não o aceitasse dessa vez, cf. ibid., n. 35.
2936 António Cardoso do Amaral, Liber […],v. “Donatio”, cit., n. 45.

2937 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Donatio”, n. 44.

2938 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Donatio”, n. 31.

2939 Legítimos, naturais, mas não espúrios, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v.
“Donatio”, n. 43.
2940 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Donatio”, ns. 39-40. A decisão de revogar a

doação devia ser tomada no prazo de 5 anos sobre os atos de ingratidão, ibid., n. 40. A ingratidão não
podia ser invocada pelos herdeiros do doador, mas podia sê-lo pela sua mãe.
2941 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Donatio”, n. 41. Sobre as doações para

casamento (propter nuptias) e as doações de dote (donationes dotis), v. a secção sobre os regimes de
bens do casamento. Sobre os seus regimes, como doações, v. ibid., n. 63 ss..
2942 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Donatio”, n. 68.

2943 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 388 ss..

496
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 1712. Como doações, partilham com as outras uma comum natureza de atos
beneficiais, com todos as suas consequências. Vale, para elas, tudo o que foi dito acerca da
causa e da distinção, a partir daqui, entre doações simples ou puras e doações
remuneratórias. Quanto a isto, a doutrina – aparentemente mais próxima dos interesses dos
donatários do que dos interesses do rei - insistia no caráter remuneratório das doações, com
fundamento na insistência com que o direito régio, desde uma lei de 8.4.14342944, sublinhava
a natureza não feudal das concessões de terras, o que implicava que o serviço que os
vassalos prestavam ao rei não era obrigatório, mais voluntário ou liberal. Este caráter não
obrigatório, gratuito, dos serviços geraria no rei sentimentos de gratidão, causa de uma
obrigação antidoral de remunerar esses serviços com mercês. A doutrina desde cedo que
tendeu a considerar que o rei tinha o dever de retribuir com mercês os serviços dos seus
vassalos, que as doações de jurisdições e de bens da coroa eram um dos tipos dessa
retribuição e que, portanto, essas doações eram remuneratórias e quase tão firmes como
contratos onerosos, nos termos já descritos2945.
§ 1713. As Ordenações (v. Ord. Man., 2,17,12; Ord. fil.,2,35,2) estabeleciam a
obrigatoriedade de renovação das doações de bens da aos filhos dos donatários que
tivessem morrido na guerra. Este texto era invocado como uma afloração do princípio mais
geral da irrevogabilidade das doações remuneratórias. Na verdade, subentendia-se – um
tanto forçadamente - que a obrigatoriedade de renovar equivalia à proibição da revogação. E
que, portanto, a obrigatoriedade da confirmação da doação era uma extensão do princípio da
irrevogabilidade das doações remuneratórias.
§ 1714. Esta firmeza contratual das doações era ainda reforçada pela desnecessidade
de insinuação. De facto, no rei coincidiriam, como qualidades essenciais, a liberalidade e a
magnanimidade. Nestes termos, a virtude de ser liberal nunca degeneraria no vício da
prodigalidade, pois a grandeza da alma do rei levá-lo-ia a ser excessivo nas mercês. E,
assim, o favor régio nunca teria que ser avaliado quanto a excessos.
§ 1715. Em contrapartida, a especial natureza das coisas doadas – jurisdições e bens da
coroa - restringia esta firmeza. É que a Lei Mental, incorporada nas Ordenações (Ord. fil., 2,
35)2946, estabelecia uma série de princípios sobre as doações destes direitos reais (regalia),
alguns dos quais enfraqueciam muito as garantias dos donatários: nomeadamente, o caráter
pessoal (intuitu personae)2947 da doação e a proibição de que tais bens fossem alienados
pela coroa, mantendo sempre a sua natureza de bens do reino (da coroa do reino, bona
regiae coronae), mesmo se doados. Por isso é que as doações tinham que ser confirmadas,
tanto por morte do donatário – por causa da sua natureza pessoal -, como por morte do
doador – porque o rei tinha que deixar o património da coroa íntegro ao seu sucessor. Este
caráter precário das doações régias, estabelecido pela Lei Mental, foi em larga medida
subvertido pela doutrina, logo a partir do séc. XVI, justamente com base na ideia de que se
tratava de doações remuneratórias. Tendo esta natureza, havia como que um direito do

2944 Cf., depois, Ord. Man., 2, 17 (“queremos que nom sejam avidas por terras feudaes, nem ajam
natura de Feudo”).
2945 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 408 ss..

2946 Cf., com mais detalhes, António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 402 ss..

2947 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […}, cit., v. “Donatio”, n. 466; Jorge de Cabedo, Decisiones

[…], cit., p. 2, dec. 5, n.3.

497
As obrigações.
donatário – ou dos seus herdeiros2948
– à confirmação da doação, quando a lei exigisse que
ela fosse confirmada2949, ao mesmo tempo que a revogação das doações feitas era tida
como contra direito, a não ser por ato grave de ingratidão (nomeadamente, violação de
deveres estritos de vassalo)2950. “Princeps regulariter non revocat donationes a se factas”,
pelo menos sem uma causa ponderosa, escrevia Gabriel Pereira de Castro2951. A doutrina
era, em geral, muito favorável aos donatários. Para além da ideia de doação remuneratória e
dos correspondentes direitos do donatário à confirmação, os juristas jogavam ainda com a
aquisição dos bens doados por prescrição de 40 anos depois da primeira doação2952, com a
consolidação da doação feita na sequência de um contrato2953 e, finalmente, com o princípio
de que a falta de confirmação não privava os donatários do uso dos bens doados2954.
§ 1716. Para se precaver quanto à arguição da nulidade das doações régias por
violarem o direito ou os direitos de particulares, os reis costumavam inserir na doação certas
cláusulas de estilo. A jurisprudência cautelar incluía nestas cláusulas (i) a afirmação do rei de
que estava plenamente ciente da situação de direito e de facto (ex certa scientia) e (ii) de
que era de sua própria vontade (motu proprio) aquilo que dispunha na doação, (iii) sem
embargo de quaisquer direitos em contrário (non obstantibus), (iv) que revogava tão
expressamente como se os tivesse expresso na carta (pro expressis), (v) recorrendo, se
necessário fosse, ao seu poder extraordinário de rei (“de poder absoluto”, plenitudo
potestatis). Daqui decorria a forma de estilo: "Doo, de moto proprio, com ciência certa e
poder absoluto, e não obstante quaisquer direitos, que tenho por expressos, etc.". Com isto,
as doações régias adquiriam, dizia a doutrina, força de lei, dispensando qualquer direito ou
direitos, mesmo que apenas com levíssima causa2955.
§ 1717. Algumas divergências dos historiadores quanto à dependência ou não dos
senhores de terras em relação ao rei provêm justamente de nem todos se aperceberem
desta dualidade da natureza das doações régias. Por um lado, elas estão sujeitas ao regime
“centralizador” das Ordenações. Por outro lado, este regime assenta sobre o regime geral
das doações, tal como era desenhado pela tradição do direito comum. Embora mais obscuro
para os historiadores, este último regime era muito favorável aos donatários, ao supor que
estes tinham direito e ação à mercê e que, por isso, a doação, como remuneratória, tinha

2948 De acordo com a ordem especial de sucessão nos bens da coroa, prevista na Lei Mental.
Sobre o problema geral da sucessão nos benefícios, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 31, ns.
5-6.
2949 As doações podiam ser de três tipos: por uma vida, pela vida do concedente, ou

perpetuamente, v. Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 2, dec. 5, n. 2 ss.; sobre a prática das
confirmações de doações régias, v. António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 408 ss..
2950 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p.2, dec. 95, 12 ss.; p.2, dec. 75, ns. 5 ss. (v. 13:

revogação por lei geral).


2951 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 1, n. 6; embora estes princípios

fossem compensados pela ideia de que a causa se presumia (“in revocatione Principi causa
praesumenda est”, ibid., n. 7).
2952 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 1, n. 8.

2953 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], v. “Donatio”, cit., n. 38.

2954 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], ibid..

2955 Agostinho Barbosa, Tractatus varii […] De clausulis […], cit. clausulae 41 e 59, n. 1;

Domingos A. Portugal, Tractatus de donationibus […], liv. 3, cap. 44, ns. 17 a 21.

498
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
uma eficácia próxima dos contratos onerosos. A prática – outro nível de análise por vezes
descurado -, confirma a firmeza das doações régias, quase invariavelmente confirmadas e só
muito raramente revogadas2956.
§ 1718. A doutrina aproximava da doação outros tipos de contratos nominados em que
apenas uma das partes prestava. Limitando-se a outra a assentir. Então, costumavam
designar-se por contratos gratuitos; hoje, predomina a designação de unilaterais.
6.9.2.1.3 O comodato ou empréstimo.
§ 1719. Um deles era o comodato (Ord. fil.,4,50 [mútuo] e 4,53 [comodato]; D.,13,6,
Commodati vel contra) – também designado vulgarmente por “empréstido” (arcaico) ou
empréstimo, isto é, a cedência graciosa de coisa não fungível, para um certo e determinado
uso, para certo fim e por certo tempo, com a obrigação da sua restituição.
§ 1720. Distinguia-se do mútuo, que incidia sobre coisa fungível; do precário, que não
especificava um uso certo, nem um certo tempo, sendo apenas uma cedência livremente
revogável; e da locação-arrendamento, em que a cedência não era graciosa, mas
onerosa2957.
§ 1721. O comodato podia incidir sobre coisas móveis, semoventes (animais) ou
imóveis, ou ainda sobre direitos, como a servidão de habitação (i.e., empréstimo de uma
casa para morar, v. cap. 4.3.9); mas não já sobre coisas que se consumissem pelo uso, a
não ser que estas não fossem para usar, mas apenas para ostentação2958. A coisa
emprestada devia pertencer ao comodante2959. Se o fim da cedência da coisa constasse do
contrato, o uso para outro fim configurava furto de uso, gozando então o comodante de uma
actio furtiva para recuperar a coisa, mesmo antes de decorrido o prazo2960. Não devia haver
qualquer retribuição pelo uso da coisa, aliás tratar-se-ia de locação2961
§ 1722. O comodato era irrevogável antes de se cumprir o prazo ou realizar a finalidade
para que se fizera a cedência2962, ao contrário do que acontecia no precário, livremente
revogável, pois não se convencionava a finalidade da cedência, nem um prazo para a
restituição2963. Morrendo o comodante ou o comodatário, o contrato transferia-se para os
herdeiros2964.
§ 1723. Como era cedida uma coisa determinada para certo fim, o comodante devia

2956 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 408 ss..
2957 “Commodatum est gratuita concessio alicuius rei, facta specialem usum & cum tempore
definito tacite vel expresse (commodo tibi equum ad eundem Romam, librum ad transcribendum)”. Na
falta de especificação do uso ou do tempo, tratava-se de um precário António Cardoso do Amaral, Liber
[…], cit., v. “Commodatum”, 1. Cf. também Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4, 3, 4.
2958 Como o empréstimo de dinheiro apenas para que o comodatário ostentasse riqueza. Neste

caso, embora a restituição não tivesse que ser a das mesmas moedas, mas apenas da mesma soma,
as moedas não eram consumidas, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Commodatum”, 4.
2959 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Commodatum”, 6.

2960 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Commodatum”, 7.

2961 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Commodatum”, 10.


2962 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Commodatum”, 2
2963 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Commodatum”, n. 3.

2964 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Commodatum”, n. 4.

499
As obrigações.
informar o comodatário dos vícios da coisa2965. O comodatário era obrigado às despesas
necessárias e normais de manutenção da coisa2966.
§ 1724. Existia alguma especificidade nestes contratos relativamente a saber sobre
quem recaía o dano da coisa. Em regra, o dano recaía sobre o dono da coisa (res suo
domino perit; Ord. fil.,4,50,pr e 4,53,1), salvo convenção em contrário. Na verdade, o domínio
da coisa não passava para o comodatário, continuando o comodante a ser o dono dela. O
dano doloso responsabilizava aquele que tivesse tido a intenção de o causar. Mas o facto de
uma das partes obter os benefícios gratuitamente fazia com que respondesse tanto pelo
dano doloso como também pelo culposo, mesmo que a culpa fosse levíssima (Ord.
fil.,53,2)2967, pois o negócio tinha sido gratuito para si. Já se o comodato tivesse siso
contratado também em proveito do comodante, a responsabilidade do comodatário reduzia-
se, pois já não se tratava de um negócio gratuito, ou totalmente gratuito, para ele2968.
Diferentemente no precário e depósito, em que o emprestador podia revogar livremente o
contrato se entendesse que a coisa corria riscos na mão daquele que detinha a coisa
emprestada, em que este último apenas respondia por dolo. O comodatário apenas
respondia por caso fortuito em três casos: se tivesse tido culpa na geração do caso fortuito,
se isso tivesse sido pactado, ou se estivesse em mora2969. Ou seja, o comodatário não
respondia pela deterioração ou perecimento da coisa cedida se lhe tivesse dado o uso
contratado e se ela se tivesse deteriorado sem culpa sua2970. Diferentemente do caso de
mútuo, pois o mutuário adquiria o domínio da soma mutuada e, por isso, recaía sobre ele o
prejuízo da perda fortuita, em obediência ao princípio de que recai sobre cada um o prejuízo
da perda das próprias coisas (res suo domino perit)2971.
§ 1725. Se a coisa se tivesse perdido, sendo o comodatário responsável de acordo com
as regras anteriores, estava obrigado a restituir o seu valor (aestimationem)2972.

2965 Respondendo pelos prejuízos caso soubesse dos vícios e não os comunicando ao
comodatário, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Commodatum”, n. 9.
2966 Mas não se estas fossem elevadas, como o tratamento caro de um escravo emprestado ou a

sua recuperação no caso de fuga (António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Commodatum”, n.
15).
2967 As distinções da culpa em grave, leve e levíssima (lata, levis, levissima) eram de direito

romano. A calibragem da culpa originava, porém, grandes incertezas doutrinais (v. cap. 8.1.4.2)..
2968 Exemplo de comodatos com os quais o comodante tinha benefícios: o empréstimo de roupas

para o comodatário ir visitar o comodante, em que lucrava a reputação do comodante (neste caso, o
comodatário respondia apenas por dolo e culpa grave); empréstimo de baixela para receber um amigo
comum em casa do comodatário (este responde por dolo e culpa, como na venda. locação, etc.). Cf.
António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Commodatum”, n. 13. Cf. Pascoal de Melo, Institutiones
iuris civilis, cit., 4, 4, v.
2969 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Commodatum”, n. 16.

2970 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Commodatum”, n. 14.
2971 “Commodatarius non possidet rem comodatam, sed semper dominium remanere apud
commodantem […]”; já no mútuo, embora o mutuário adquirisse o domínio das coisas, elas não
pereciam, porque “as coisas genéricas nunca se perdem” (“mutuarius consequitur dominium pecuniae
mutuae, & obligatur in genere [genus nunquam perit]: perdeu aquelas moedas, mas restitui outras]”,
António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Commodatum”, ns. 16-17.
2972 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Commodatum”, n. 5.

500
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
6.9.2.1.4 O mútuo.
§ 1726. Outro contrato gratuito era o mútuo, um contrato gratuito que “fazia do meu teu”,
como explicavam os autores a partir de um ingénuo argumento etimológico
(“meum”+”tuum”). Constava de uma cedência gratuita e por certo tempo, de uma quantidade
de coisas fungíveis, ou seja, que se especificassem apenas por conta, peso ou medida - o
que incluía a moeda, mas também cereais, vinho, azeite, metais, lenha, etc. - ou que se
consumisse pelo uso (Ord. fil.,4,50)2973. Como contrato gratuito, o mútuo não dava origem ao
pagamento de uma contraprestação pelo uso da coisa (usuras); se o devedor restituísse algo
mais (crescimento) do que o emprestado (principal), então o contrato transformava-se num
de mútuo oneroso ou usura2974, salvo se esse acréscimo correspondesse aos juros de mora,
que compensavam a dilação do pagamento.
§ 1727. No direito romano, o mútuo era sobretudo tratado a propósito do senac.
Macedoniano, que proibia os empréstimos de dinheiro a filhos-família, concedendo-lhes uma
exceptio para inutilizar a condictio (actio mutui) do credor. Os filhos não eram, por isso,
obrigados a pagar e, se pagassem voluntariamente, dispunham de uma condictio (indebiti)
para recuperarem o que tinham pago, pois, nestas circunstâncias, o mútuo não gerava nem
obrigação civil, nem natural2975. A proteção dos filhos era tão forte que se entendia que eles
nem sequer ficavam obrigados por terem jurado cumprir2976. Não valia, no entanto, para os
filhos que estivessem longe, como soldados ou como escolares, e que pedissem emprestado
para as despesas relacionadas com as suas atividades, caso em que ficavam obrigados,
bem como os pais por eles (Ord. fil., 4,50,4).
§ 1728. Porém, as situações em que que se pedia dinheiro ou géneros por algum tempo
– num aperto, até à próxima colheita (São Miguel, 29 de Setembro), até à venda do gado, até
à abertura do vinho novo (ou matança do porco, São Martinho, 11 de Novembro), até ao
regresso de viagem, até à feira – devia ser muitíssimo corrente, fazendo parte dos processos
correntes de sobrevivência e de financiamento das sociedades camponesas. Os juristas
portugueses de seiscentos, porém, raramente se ocupavam do mútuo simples, decerto
porque demandas sobre ele raramente chegassem ao foro. Interessava-os, sim, o mútuo
oneroso, ou usura, um tema muito discutido na doutrina jurídica e teológica medieval e
moderna.
6.9.2.1.5 A usura.
§ 1729. A usura – ou seja, o empréstimo de dinheiro contra o pagamento de um
crescimento ou usuras, em virtude pacto prévio ou de espectativa nesse sentido2977 - era tida

2973 “Mutuum est quod aliqui praestatur ut tempore reddat”, António de Nebrija, Vocabularium […],

cit., v. Mutuum”. V. também Manuel Barbosa, Remissiones […], ad Ord. fil., 4,50. Fontes romanas:
D.12.1 De rebus creditis si certum petetur et de condictione; C.,4, 1, De rebus creditis, e C.,4, 2, Si
certum petatur.
2974 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit, 1, 8, 14-15.

2975 Cf.. Manuel Barbosa, Remissiones […], ad Ord. fil., 4,50, n. 3-4. Normalmente, o mútuo

gerava uma actio mutui a favor do mutuante.


2976 No direito português (e no espanhol) a ratificação dos contratos por pactos jurados não era

permitida (para não alargar a competência dos tribunais eclesiásticos).


2977 “Usura est quidquid sorti principali accedit; lucrum tacitum, vel expressum quod ratione mutui

suscipitur, pacto seu spe praecedente”, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Usura”, n. 1.

501
As obrigações.
como proibida pelos direitos divino e natural e, segundo a opinião comum, também pelo
direito civil2978. Para além de ilícita, a usura era crime e pecado mortal, além de que negar
isto constituía heresia2979. Porém, como emprestar dinheiro era uma graça, o tema da usura
recaía na discussão acerca dos deveres de gratidão e da forma de os compensar; e, assim,
não se considerava ser usuras aquilo que o devedor oferecesse ao credor como expressão
da sua gratidão, atentas o valor da dádiva e a riqueza e condição dos intervenientes2980.
Todo o excesso do pagamento sobre o capital mutuado era ilício e imoral, pois embora quem
emprestasse corresse riscos, esse lucro não seria honesto, “indo para além da natureza do
mútuo”2981.
§ 1730. Esta ideia de que da natureza do mútuo fazia parte apenas a restituição da
coisa, permitia que se incluíssem na restituição os “crescimentos naturais” da coisa mutuada,
como os frutos das sementes, as crias dos animais (mas não o parto das escravas)2982. Por
outro lado, o facto de se ter o dinheiro parado e sob risco num banco (ou monte de piedade,
“montepio”) autorizava a que se recebesse algo para além do capital aí depositado2983. Daí
que os costumes do lugar ou a lei do príncipe pudessem estabelecer um montante legítimo
para o crescimento do capital. Em Portugal, legislação do séc. XVII fixou em 5 % o juro justo
para certos negócios, como a compra de rendas (v. cap. 4.3.4).
§ 1731. Os contratos usurários eram nulos de pleno direito, podendo esta nulidade ser
invocada pelos próprios (“contra factum proprium venire”2984)2985. Os usurários conhecidos2986
incorriam em excomunhão automática (ipso iure), eram privados de sepultura cristã2987, eram
infames e indignos de ocuparem benefícios ou ofícios2988, viam os seus testamentos
anulados, deviam ser expulsos das corporações de que fizessem parte, bem como ser
expulsos por quaisquer autoridades das terras sob a jurisdição2989.
§ 1732. Esta agressividade em relação à usura tinha, porventura, relação com a

2978 Cf.. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Usura”, n. 2.


2979 Cf.. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Usura”, n. 4.
2980 “Non est usura recipere aliquid ultra sortem principalem, gratia oblatum a debitore, cum tamen

creditor sine spe illius mutuasset. Considerata tamen quantitate donati, & paupertate, seu liberalitate
debitoris donantis. Si autem mutuans haberet mentem depravatam sperando aliquid a debitores usuram
commiteret”, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Usura”, n. 1.
2981 Cf.. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Usura”, n. 4.

2982 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Usura”, n. 6 (“hoc tamen non habet locum

in foetu ancillarum, quamvis in foetu pecudum locum habeat”). Cf. a discussão de outros casos (vender
uma coisa por preço superior ao da compra, n. 8; comprar com obrigação de retrovender, ns. 9-10) nos
números seguintes.
2983 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Usura”, n. 15.

2984 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Usura”, n. 8.

2985 V. Ord. fil.,4,67.

2986 Ou seja, os condenados como tal, ou confessos em juízo (António Cardoso do Amaral, Liber

[…], cit., v. “Usura”, 18), ou os que tivessem essa fama pública (ibid., n. 19, onde se discorre sobre a
prova da usura). O crime era de foro misto, podendo ser conhecido por uma e outra jurisdição (ibid., n.
20).
2987 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Usura”, n. 16.

2988 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Usura”, n. 21-22.

2989 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Usura”, n. 13.

502
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
agressividade antijudaica da cultura europeia moderna, em que a figura do usurário era
relacionada com o “judeu onzeneiro” (o que cobrava juros a 11 %, ou seja, a mais de 10 %, a
décima que se pagava a Deus e se podia exigir aos familiares2990). Mas relacionava-se
seguramente com a antipatia que a cultura tradicional tinha pelo que lucrava com a pobreza
e necessidade dos outros, pelo que tirava rendimento de coisas inertes que, como o dinheiro,
não se reproduzem (“nummi non faciunt nummos”). Uma antipatia que, mais
moderadamente, se alargava à finança e ao comércio, outra atividade especulativa estranha
às comunidades camponesas de outrora.
6.9.2.1.6 O lucro legítimo dos comerciantes. O contrato de câmbio.
§ 1733. Como o direito comum se organiza segundo uma lógica corporativa, assente na
ideia de que cada grupo (ou corporação) goza do seu direito, a doutrina entendia que o
grupo específico dos comerciantes, dedicado justamente a lucrar com a atividade de comprar
e vender, estava por natureza desobrigado de um direito que não reconhecia a legitimidade
do lucro, regendo-se por um direito diferente2991.
§ 1734. Uma das diferenças dizia respeito a uma atitude positiva quanto ao lucro, ou
seja, ao facto de a mera transação de uma coisa poder gerar, por si mesma, um excesso no
seu valor. “Diz-se lucro – escreve António da Gama2992 – aquilo que sobra, uma vez
deduzidos os gastos [na compra da coisa e na sua conservação], a avaliação do trabalho [de
a comprar, manter e vender] e os danos”.
§ 1735. O lucro justificava-se pela natureza da própria atividade do comerciante, que
juntava, por si mesma, valor às coisas2993. Daí que qualquer dilação no pagamento de uma
compra a um comerciante interrompia esse fluxo de criação de valor, impedindo-o de realizar
lucros. Por isso, o juro exigido pela espera do pagamento era como que uma indemnização
(tantundem) ao credor/comerciante pelo que ele poderia ter ganho se tivesse recebido o
dinheiro antes2994 (“lucro cessante”2995). Daí que a prova que era preciso fazer para se
justificar o juro era a de que aquele comerciante concreto, se tivesse tido aquele dinheiro nas
mãos, teria comprado coisas que, naquelas circunstâncias de mercado, teriam dado certo
lucro2996. Ou seja, o lucro – e, logo, o juro - não se podia estimar em abstrato nem fixar-se

2990 Cf. Deuter., 24, 19-20.


2991 Sobre contratos de comerciantes em Portugal nas épocas medieval e moderna, v. Filipe
Themudo Barata, “Negócios e crédito [...]”, cit..
2992 António da Gama, Decisiones […], cit., d. 110, n. 26. Ou “lucrum dicitur quod superest

deducto capitali […]”, Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 47, n. 28.
2993 A análise clássica da figura do comerciante é a de Werner Sombart (1863-1941): Der

moderne Kapitalismus. Historisch-systematische Darstellung des gesamteuropäischen


Wirtschaftslebens von seinen Anfängen bis zur Gegenwart, 1916, reed., München, DTV, 1987; Luxus
und Kapitalismus, München, Duncker & Humblot, 1922.
2994 António da Gama, Decisiones […], cit., 110.

2995 Distinção entre dano emergente e lucro cessante em Miguel de Reinoso, Observationes […],

cit., obs. 9, per totam.


2996 Provava-se por testemunhas, que testificassem todos estes pontos, António da Gama,

Decisiones […], cit., dec. 110, n. 16 e 20; Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 107, n. 6 [ambas
as decisões são todas elas interessantes].

503
As obrigações.
numa quantia certa, pois variava com o tempo e o lugar2997.
§ 1736. Nestes termos – apesar de tudo, limitados –, o dinheiro dado, entre
comerciantes, sob certo juro, “à rezam de juro”, não constituía usura reprovada2998.
§ 1737. Outro negócio próprio dos comerciantes e em que também se verificava algum
excesso entre a quantia a pagar e a quantia originalmente devida era o contrato de câmbio.
§ 1738. O contrato de câmbio2999 era o contrato pelo qual alguém se comprometia a
fazer pagar a outrem, em lugar diferente, uma certa quantia, dando uma correspondente
ordem de pagamento expressa num escrito formal (carta ou letra de câmbio).
§ 1739. Originariamente, o contrato de câmbio destinava-se a resolver o problema da
distância entre o devedor e o credor, bem como, eventualmente, o da diversidade de
moedas. Para isto, o devedor (“sacador”, “passador”, scribens) dava uma ordem (“saque”) a
um seu correspondente numa praça estrangeira (“sacado”), pelo qual este deveria pagar
certa soma, à vista3000, num certo prazo ou numa data fixada na letra, ao credor do devedor
designado na letra (“tomador”, “cobrador”, recipeins). A ordem devia ser aceite pelo sacado
(“aceite”). O beneficiário da letra podia, por sua vez, ceder a terceiros os seus direitos de
receber aquela quantia, por meio de uma transferência de crédito, escrita sobre a letra, a que
se chamava “endosso” (ou “pertence”). Uma vez aceite a ordem pelo sacado, este ficava a
ser o primeiro responsável pelo pagamento, exonerando o sacador. Não se verificando o
aceite, o tomador devia denunciar formalmente este facto mediante “protesto”, ou seja, um
ato formal perante um notário público, que certificasse a falta de aceite. O protesto tinha o
efeito de responsabilizar de novo o sacador pelo cumprimento da obrigação3001, dando
também ao tomador uma ação contra o sacador para lhe exigir o montante em dívida e os
juros3002.
§ 1740. A letra era um documento formal, que devia conter todas os dados que
permitissem identificar a obrigação (o tempo do pagamento; a quantia a pagar; o lugar da
emissão; a data de emissão) e os vários obrigados (nome do sacador, do sacado e do
tomador; eventualmente dos beneficiários de endosso)3003. Uma vez emitida, a letra titulava o
negócio, que passava a valer tal como constava dela, sem que se tivesse que averiguar a
sua causa ou as suas circunstâncias. Por isso, o negócio não podia ser alterado ou
rescindido, depois de emitida e aceitada a letra3004. Por isso também, a letra era um

2997 A menos que, desde o princípio, se pudesse calcular, António da Gama, Decisiones […], cit.,
dec. 110, n. 18-19. Também era natural que se mantivesse nas ocorrências seguintes de uma feira,
Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 84, n. 2.
2998 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 84, n. 3.

2999 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,3,27.


3000 À vista da letra, i.e., na sua apresentação a pagamento.
3001 O sacador ficava obrigado até ao aceite, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec.

126, n. 4-5. Na falta de aceite, o sacador ficava obrigado, Melchior Febo, Decisiones […], dec. 207.
3002 Melchior Febo, Decisiones […], dec. 217, n.6. Sobre o processamento das letras das praças

do norte da Europa (Holanda), Roma e do reino, ilhas e Brasil, “Estilos mercantis da Praça de Lisboa, e
Reyno de Portugal”, em Manuel Solano do Vale, Index […], cit. vol. 3, v. Mercatura, p. 271 ss.); Manuel
Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 4, ad. Ord. fil., 1,51, gl. 4, cap. 4.
3003 António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 336, n. 1.

3004 Melchior Febo, Decisiones […], dec. 203, n. 7; dec. 208, ns. 7-8.

504
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
instrumento muito flexível na sua utilização, já que a causa por detrás de cada uma das
obrigações dela constantes era irrelevante. O sacador podia ser o devedor e o sacado um
seu agente. Mas o sacador também podia ser o credor e o sacado o devedor, como quando,
numa venda com espera de preço, a emissão da letra se destinava a que o credor pudesse
obter de terceiro, a quem endossava a letra e transmitia o seu crédito, a imediata realização
do preço (“desconto da letra”).
§ 1741. O contrato de câmbio podia dar origem a crescimentos do capital, justificados ou
pela dilação no tempo do pagamento, ou pela distância entre o lugar de emissão da ordem
de pagamento e o lugar da satisfação deste ou pela diferença de moedas na praça do
devedor e na praça do credor. Existiam outros documentos mercantis, pelos quais se
notificavam dívidas, por exemplo, as “cartas de aviso”. Mas estas não tinham os efeitos
jurídicos da letra3005.
§ 1742. A ação cambial era sumaríssima (Ord. fil., 3,25)3006.
6.9.2.1.7 O precário.
§ 1743. Outro contrato gratuito era o precário3007, um contrato gratuito que consistia
concessão gratuita do uso de uma coisa por um tempo indeterminado3008, podendo ser
livremente revogado (“quando cumque ei placuerit, & propria authoritate”), desde que da
distratação não resultasse prejuízo para o precarista3009. A doutrina distinguia entre o
precário em sentido estrito (precarium neutris generis) e as concessões vinculados a um
certo tempo ou periodicidade, como a concessão de uma renda periódica ou de uma terra
por períodos de um ano, ou de um quinquénio, renováveis enquanto o concedente quisesse,
atendíveis os usos locais. A este tipo de precário, que se aproximava das concessões
enfitêuticas, renováveis por períodos, ad nutum, chamavam precário feminino (precarium
foeminini generis, talvez para evocar a sua natureza não tão rígida3010.
§ 1744. O precário podia consistir na cedência de bens, móveis, semoventes e imóveis,
ou de direitos3011.
§ 1745. O precário era uma concessão pessoal, que se extinguia por morte do
precarista, mas não do concedente, embora os herdeiros deste mantivessem a possibilidade
de o rescindir3012. Também se extinguia pela venda da coisa, a menos que o novo dono o

3005 António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 336, n. 1.


3006 Fonte: Clementinas, 5,11,2 Saepe contingit.
3007 D.43.26, de precario, 1; C.,8,9, De precario et de Salviano interdicto; António Cardoso do

Amaral, Liber […], cit., v. “Precarium”, ns. 1 e 3; Álvaro Valasco, Tractatus de iure emphyteutico […],
cit., p. 1, qu. 34; Luís de Molina, Tractatus de iustitia […], cit., tract. 2, disp. 294 e 298; Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis, cit., 4, 2, 7.
3008 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,2,7.

3009 Por isto se distinguia da doação que só excecionalmente podia ser revogada. Não se podia

convencionar a não revogabilidade do precário, por isso ser contra a natureza do contrato, António
Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Precarium”, n. 3.
3010 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Precarium”, ns. 3-4.

3011 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Precarium”, n. 4.

3012 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Precarium”, n. 6.

505
As obrigações.
renovasse3013
§ 1746. O precarista só responde por dolo e culpa grave, como já referido.
6.9.2.1.8 O depósito.
§ 1747. O depósito era também um contrato gratuito. Pelo depósito, alguém recebia do
proprietário de uma coisa, móvel ou semovente, a sua posse, para guardar essa coisa até
que ela lhe fosse pedida de novo, sem exigir por isso qualquer recompensa3014. Se houvesse
uma retribuição ao depositário, já não se tratava de um depósito, mas de um outro contrato
(inominado)3015. O domínio e propriedade ficavam no depositante3016.
§ 1748. O depósito podia ser convencional ou judicial (por autoridade do juiz: Ord. fil.,
1,62,26, 3,86: 4,49). Para estes casos, podiam existir depositários públicos. O depósito
judicial dava-se no caso dos bens penhorados3017 ou no caso de as coisas em litígio
correrem risco de se perderem. Neste caso, chamava-se sequestro3018; era excecional,
verificando-se apenas por receio justificado e importante de risco para as coisas objeto do
litígio (magna et justa causa3019). O depósito de certa quantia (pecunia numerata) era
considerado como mútuo3020. Na verdade, o comodato ou o mútuo eram considerados como
depósitos irregulares3021.
§ 1749. Também a mulher ou as filhas podiam ser objeto de depósito, o que era
frequente na pendência de uma ação de separação, por exemplo por sevícias3022.
§ 1750. O depositário tinha as coisas apenas para a sua guarda e não para as usar; se
as usasse contra a vontade do depositário, era obrigado pelo depósito (actio depositi) e pelo
furto (actio furti)3023. Devia restituir a coisa, quando pedida, não gozando do direito de
retenção (v.g., para ser reembolsado de despesas necessárias feitas com a coisa)3024, nem
podendo invocar nenhuma circunstância para se eximir à restituição (v.g., a
compensação)3025, já que o escrito de depósito tinha o valor de título executivo a favor do

3013 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Precarium”, n. 7.


3014 “Depositum est illud quod custodiendum alicui datur, ut suscipiens, restituatur illammet rem,
quam susceperit”, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Depositum”, n. 1. Fonte romana: D.16,
3 Depositi vel contra; fonte de direito português: Ord. fil., 4,49, 1. Bibl.: Luís de Molina, Tractatus de
iustitia […], tract. 2, disps. 522-527; Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., 404 ss.; Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis, cit., 4, 3, 8.
3015 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Depositum”, n. 1.

3016 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Depositum”, n. 2.

3017 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 406; chamava-se negócio fiduciário.
3018 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Depositum”, n. 3; v. “Sequestratio”; Pascoal
de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4, 3, 9.
3019 Como pena, no caso de delito capital; como medida preventiva, em caso de receio de rixa ou

tumulto; como medida de segurança da coisa (Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4, 3, 9).
3020 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Depositum”, n. 12.

3021 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4, 3, 8.

3022 “Depositum uxoris (in monasterio) et puellae”: Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 404.

3023 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Depositum”, n. 11.
3024 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Depositum”, n. 13.
3025 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], dec. 89, ns. 2 a 5; Jorge de Cabedo, Decisiones […], p.1,

506
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
depositante3026. Nada podia alegar para impedir a exibição e entrega, nem compensação,
nem despesas. Esta obrigação estrita de imediata restituição ainda podia ser reforçada pela
inserção no contrato da clausula depositaria, pela qual as partes convencionavam que não
se ouvisse o depositário em juízo antes de entregar a coisa ao depositante, embora fosse
frequente que o depositário obtivesse uma dispensa régia, para poder alegar em juízo antes
de efetuar a restituição3027. A falta de entrega originava a prisão do réu3028.
§ 1751. O depósito fazia-se, em regra, por comodidade do depositante. Este facto,
combinado com a circunstância de a propriedade da coisa depositada ficar no depositante,
ditava as regras da responsabilidade pela deterioração ou perda da coisa. O depositário,
simples possuidor gratuito, só respondia pelo dolo ou a culpa grave (lata)3029. Já responderia
também por culpa leve: se tivesse remunerado ou se tivesse tirado vantagens do depósito,
se isso tivesse sido convencionado, ou se estava em mora3030. Se o contrato aproveitasse
aos dois, o depositário respondia por dolo e culpa, mesmo leve3031. Se as coisas (v.g., trigo,
vinho ou azeite) corressem o risco de se deteriorar ou de se perderem (morrerem, no caso
de animais), o depositário devia comunicar ao juiz que receava pela corrupção ou morte;
este, tendo averiguado a situação (causa cognita), podia decidir da venda das coisas antes
que se estragassem ou perecessem, desobrigando-se o depositário pela restituição do que
obtivera na venda. De outro modo, seria responsável (por culpa) pelo valor (aestimatio) das
coisas3032.
6.9.2.1.9 O mandato.
§ 1752. O mandato era outro contrato gratuito, pelo qual alguém cometia a outrem a
administração de um negócio seu3033. Um exemplo notável é o do mandato judicial, passado
a advogados ou a outros procuradores judiciais e extrajudiciais3034 3035.

d.62
3026 A causa de depósito era sumária (Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 404; Álvaro

Valasco, Allegationes […], all. 65, n. 43.


3027 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 407; desenvolvimentos, Miguel Reinoso,

Observationes […], obs., 45, ns. 1 ss.


3028 Cf. Miguel Reinoso, Observationes […], obs., 45, n. 8

3029 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Depositum”.

3030 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Depositum”, n. 6. Mas não já se a coisa

também se perdesse ainda que estivesse no depositante António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v.
“Depositum”, n. 7.
3031 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Depositum”, n. 8.

3032 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Depositum”, n. 10

3033 “Mandatum dicitur quando aliquis ad satisfactionem suae voluntatis aliquid imponit alicui, & fit

ad commodum mandantis, nam si esset ad utilitatem illius, cui mandatum commititur, non dicerentur
tunc mandatum, sed persuasio”, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Depositum”, n. 1;
Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 43, 10.
3034 Sobre os advogados (C, 2, 7, De advocatis diversorum judiciorum; Ord. fil., 48). Em Portugal,

tinham que ter uma licenciatura de cinco anos em Leis ou Cânones e fazer exame na Casa da
Suplicação (Ord. fil., 1,48, 1). Na Casa do Porto e nas restantes cidades e vilas do reino eram
admitidos por provisão do Governador, corregedores e juízes, sem prévio exame (Ord. fil., 1,48, 2-3).
Os não letrados eram admitidos a advogar por meio de uma licença ou provisão do Desembargo do
Paço. Os advogados, como mandatários, eram responsáveis por dolo, culpa ou ignorância ( Ord. fil.,

507
As obrigações.
§ 1753. O mandato devia ser cumprido segundo as instruções do mandante, sem
míngua nem excesso, mas podendo cumprir-se por forma equivalente. Era de interpretação
estrita, não se estendendo a casos não expressos, Aquilo que fosse feito para além do que
fora mandado era nulo e inexistente3036. No âmbito das instruções dadas, o mandatário devia
desincumbir-se com cuidado e prudência, aliás devia indemnizar pelos danos culposos que,
se o mandato fosse gratuito, seriam apenas os provenientes de culpa grave. O
incumprimento doloso gerava infâmia, pois correspondia a uma quebra intencional das
instruções do dono do negócio. Aquela margem de arbítrio que cada um tem em relação às
suas coisas extinguia-se se se tratava de coisas de outrem3037.
§ 1754. Podiam passar procurações ou mandatos todos os que pudessem administrar
os seus bens. Não podiam ser mandatários os menores de 25 anos, os infames e os
poderosos (Ord. fil.,1,48, 19 ss.). O mandato especial exigia escritura pública (Ord. fil.,3,29),
salvo no caso de mandantes nobres, para os quais bastava escrito particular.
§ 1755. O mandato podia ser livremente revogado, enquanto as instruções não tivessem
começado a ser executadas (re integra), se o mandato fosse da exclusiva utilidade do
mandante, pois se também fosse da utilidade do mandatário (mandato imperfeito) só podia
ser revogado com o consentimento deste (Ord. fil.,3,27; 1,48,9)3038. O mandato especial
derrogava o mandato geral anterior3039. Sendo uma comissão pessoal, o mandato cessava
por morte do mandante, embora os efeitos dos atos já realizados pelo mandatário se
mantivessem3040. No caso do mandato judicial, este extinguia-se pela sentença definitiva, por
morte do mandante, do mandatário ou de qualquer litigante, ou por revogação do mandato
(Ord. fil.,3,26,pr). O procurador podia desistir ou renunciar (Ord. fil.,3,26,1). No direito romano
tardio, os poderes do procurador judicial era tão grandes que, depois da contestação da lide,
decidia livremente sobre a gestão da causa, sendo considerado como senhor da lide
(dominus litis).
6.9.2.2 Os contratos onerosos
§ 1756. Os contratos onerosos compreendiam os contratos de troca, compra e venda,
locação de coisas e de serviços, sociedade, contrato enfitêutico, além de todos os outros
contratos inominados em que uma das partes prestava a outrem algo, a troco de uma
contraprestação3041.

1,48, 10 e 17; Bento Gil, Directorium […], cit.. Não venciam salário, mas honorários (v. Ord. fil., 1,92;
ordenação que estava em desuso no séc. XVIII, em que o que pediam podia ser corrigido pelo
prudente arbítrio do juiz, levando em conta o valor da causa, a perícia demonstrada e o uso do foro).
Era proibida a quota litis (Ord. fil., 1,92, 11. Os procuradores (Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,
cit., 43, 11) podiam ser judicias ou extrajudiciais.
3035 Cf. A terminologia jurídica usava também a palavra mandante no sentido do que mandava

outrem praticar um crime, v. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Depositum”, ns. 2-6.
3036 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Mandatum”, ns. 7-8.

3037 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Mandatum”, n. 9.

3038 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Mandatum”, n. 11.
3039 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Mandatum”, n. 14.
3040 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Mandatum”, n. 10.

3041 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 12.

508
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
6.9.2.2.1 A troca (permutatio).
§ 1757. A troca era a entrega de uma coisa certa contra o recebimento de outra
equivalente, também certa. Em termos latos, isto acontecia em todos os contratos onerosos,
dos quais a troca constituía como que um modelo3042. Por isto, o seu regime estendia-se a
outros contratos inominados em que se dava, ou uma coisa certa por uma incerta, ou uma
incerta por uma certa, ou uma ação por uma coisa, ou uma coisa por uma ação, ou uma
ação por uma outra ação3043. Como contrato inominado, a troca dava lugar a uma ação
genérica do tipo da actio praescriptis verbis, criada pelos pretores para todos os contratos
inominados, em que se pedia que se condenasse o réu naquilo que se averiguasse que
competia ou que era adequado - id quod interest, quidquid oportet (aquilo que interessa, o
que for conveniente) -, em face de uma situação contratual descrita na petição inicial
(intentio. Note-se que época do direito comum, o autor não tinha que indicar o nome da ação
na petição inicial; e, por isso, em todas as ações se pedia aquilo que se justificasse em face
da situação descrita no libelo ou petição inicial (intentio).
§ 1758. A troca, no direito romano, não se perfazia por mero consenso, antes exigindo a
entrega das coisas permutadas (D., 19,4 De rerum permutatione; C., 4.64. De rerum
permutatione et de praescriptis verbis actione). Este requisito de que o consenso fosse
“revestido” da entrega das coisas para que o contrato se perfizesse mantém-se na doutrina
do direito comum tardio3044. De tal modo que se um dos contraentes não cumprisse, apenas
podia exigir a restituição da coisa (por uma condictio indebiti ou uma reivindicatio), mas não
podia exigir que o outro cumprisse, entregando a sua parte, pois não havia contrato se o
consenso não tivesse sido tornado real pela entrega das coisas permutadas3045. Os
progressos de um modelo consensualista do direito fazem com que, nos finais do séc. XVIII,
Pascoal de Melo já considerasse que a troca era meramente consensual3046.
§ 1759. Embora a proximidade entre a compra e venda e a troca fizesse com que esta
última não fosse tratada pela doutrina com muito desenvolvimento, um caso havia em que
esse tratamento diferenciado se justificava – o da troca de benefícios ou ofícios eclesiásticos,
contendo atribuições espirituais. Neste caso, sendo a venda impossível, por não se poder
pôr preço temporal a coisas espirituais (simonia), a troca ficava a ser a única forma de
transferir benefícios ou ofícios entre os beneficiados3047. O direito exigia, porém, para além
do consenso dos permutastes, a autorização dos superiores, ou seja, daqueles que tinham o
poder de apresentar ou eleger o titular do benefício. Normalmente, isto fazia-se resignando
cada um nas mãos do superior, esperando que este, sem qualquer pacto que o vinculasse,
conferisse o cargo ao outro renunciante. De outro modo, os contratos seriam simoníacos3048.

3042 “Permutatio est praestatio unius rei certae, pro altera certa [...] et est verbum generale

pertinens ad omnem contractum”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Permutatio”, n. 1.
3043 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 4.

3044 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Permutatio”, n. 2.

3045 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Permutatio”, n. 9: “solus consensus,

interventu rei non est vestita”.


3046 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 13.

3047 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Permutatio”, n. 11.

3048 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Permutatio”, ns. 6 e 8.

509
As obrigações.
6.9.2.2.2 A compra e venda (emptio venditio).
§ 1760. A compra e venda3049 era considerada como um dos mais importantes contratos
“de direito das gentes” (uma classificação de novo a ganhar sentido, pois justificava a
validade do contrato no contexto das relações com povos não europeus ou das franjas da
Europa). Nas Ordenações filipinas, é um dos contratos mais detalhadamente regulados,
embora a sua disciplina legal corresponda, em geral, à do direito comum. No essencial, este
contrato consistia na prestação de uma coisa certa contra o pagamento de uma quantia de
dinheiro também certa3050. Para a sua validade plena – ou seja, para ter todos os efeitos
reais de transferência da propriedade (os principais) e obrigacionais (que eram acessórios) -
eram indispensáveis o consenso, a determinação da coisa e do preço e a efetiva entrega das
duas prestações3051. Porém, o simples consenso já produzia, pelo menos, o efeito de o
contrato não ser nulo por falta de entrega da coisa ou de pagamento do preço, atribuindo
ações a cada uma das partes para exigir o cumprimento ou uma ação de ressarcimento de
danos pelo incumprimento (pagamento de juros ou com multa do duplo, do triplo e
outras)3052.
§ 1761. No direito romano clássico, a compra e venda era um negócio consensual
destinado a transferir informalmente a propriedade das coisas vendidas, o que, no direito
mais antigo, só se produzia por meio do cerimónia ritual da mancipatio, apenas autorizada a
cidadãos romanos. Em contrapartida, a emptio venditio estava acessível a todos,
desempenhando assim um papel muito importante no comércio com não cidadãos. Produzia
efeitos tanto reais como meramente obrigacionais. Quanto aos efeitos reais, dava origem a
uma ação pretória, a actio publiciana, para reclamar a coisa vendida de vendedor ou de um
terceiro; esta ação ficcionava que o comprador tinha a posse e que tinha transcorrido o
tempo necessário para a usucapião a favor dele; além disso, que gozava ainda de uma
replicatio doli para opor à exceptio iusti dominii eventualmente oposta pelo vendedor que
mantivesse a coisa consigo3053. Quanto a efeitos obrigacionais, gerava uma ação – actio
empti, inicialmente concedida, não pelo direito civil, mas apenas pelo pretor peregrino, nos
quadros do ius gentium3054 -, a favor do comprador para obrigar o vendedor a indemnizá-lo
pelo que correspondesse (id quod interest) aos danos produzidos pelo incumprimento do
contrato (ou vice-versa: actio venditi).

3049 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n.; Ord. fil.,4,122.
3050 V. Ord. fil.,4,1,1.
3051 “Quaedam alienatio, qua dominium, & possessio rei venditae transfertur, per traditionem
ipsius dominii, vel si non est dominus vere, & realiter, usucapiendi conditio, tranfertur in ementem soluto
pretio”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 1. Nas coisas “móveis” (nec
mancipi, scl. Menos importantes), dava imediatamente origem a uma ação para pedir a coisa; nas
coisas “imóveis” (mancipi, scl., mais importantes) punha o comprador na situação de poder adquirir a
coisa por usucapião e de usar a actio publiciana.
3052 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 125; Tomé Valasco, Allegationes […], all.

28, n. 48.
3053 Caso o comprador estivesse na posse da coisa e o vendedor a reclamasse, o comprador

dispunha de uma exceptio rei venditae et traditae.


3054 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 1. Cf. D.19.1; C.,4,49 (cf.

D.19.1.1, pr.: “Ulpianus libro 28 ad Sabinum. Si res vendita non tradatur, in id quod interest agitur, hoc
est quod rem habere interest emptoris: hoc autem interdum pretium egreditur, si pluris interest, quam
res valet vel empta est”).

510
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 1762. Com os progressos do consensualismo, a doutrina da segunda metade do séc.
XVIII começou a defender que nem a tradição da coisa nem o pagamento do preço eram da
essência do contrato. Para os racionalistas-consensualistas, a venda perfazia-se pelo mero
consenso, mesmo quando a coisa permanecesse na posse do vendedor. Daí que o
incumprimento dos deveres de entrega da coisa e de pagamento do preço não anulassem a
venda, mas gerassem ações visando o seu efetivo cumprimento (actio empti, actio venditi).
§ 1763. A natureza consensual do contrato, para além de permitir – ainda que com os
limites da natureza do contrato – pactos modificativos do regime ordinário da compra e
venda, exigia que o contrato fosse livre. Excecionalmente, admitia-se que se fosse obrigado
a vender, por razões de interesse público (expropriação)3055; mas já não se considerava
necessário o consentimento de familiares na venda dos bens de avoenga3056. Podiam
comprar e vender todos os que podiam dispor dos seus bens3057. Porém, o vendedor apenas
podia vender coisas suas, de que pudesse dispor, de acordo com o princípio de que ninguém
podia transferir para outrem mais do que aqueles direitos que tivesse3058. Daqui decorriam
várias consequências práticas: a venda de coisa comum não valia a não ser na parte do
vendedor3059; não valia a venda pelo marido de coisas imóveis da mulher3060, o mesmo
acontecendo da venda pelo pai das coisas dos filhos3061. Em alguns casos, porém, o não
dono podia vender: tal era o caso da venda de coisa do menor com mandato do juiz ou da
venda de bens do devedor feita pelo executor judicial3062. Por vezes havia inabilidades

3055 Pode-se obrigar à venda, perante carestia ou extrema necessidade da república, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 78; v. Ord. fil., 4,11. O príncipe podia obrigar
a vender, mesmo apreço mais baixo do que se comprou, v. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2,
dec. 94, n. 4 ss.. Por provisão régia também se podia obrigar alguém a vender a favor de conventos,
para que tivessem habitações mais cómodas e decentes, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p.1,
dec. 105, n. 1 a 5; o mesmo para melhorar uma igreja (v.g., venda de servidão altius non tollendi,
permitindo à igreja ultrapassar a altura de edifícios vizinhos). Mais tarde, estabelecem-se casos de
venda forçada da propriedade ou de servidões no interesse dos prédios confinantes ou encravados que
carecessem de serventia (alvs. 9.7.1773 e 14.10.1773, Dec. 17.7.1778). Estas vendas forçadas deviam
respeitar o justo preço, v. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 105 (per totam); também, em
geral, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 22, n. 1 ss..
3056 Ord. fil.,4,11,pr..

3057 Exceção: salvo juízes e oficiais não perpétuos, na área da sua circunscrição: Ord. fil.,4,15.

3058 “Nemo potest plus iuris in alienum transferre quam ipse habet in re vendita”, António Cardoso

do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 15.


3059 Nem prejudicava o sócio, a não ser pela usucapião do comprador de boa fé, que atingia a

coisa por inteiro, uma vez que a usucapião era indivisível (“nemo pro parte usucapire potest”), António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 14. Nas sociedades de comerciantes, porém,
um podia vender mais do que a sua parte, se se entendesse que isso cabia nos seus poderes de
gestão (v.g., se os sócios comerciassem cada um em seu lugar ou se as coisas vendidas fossem as
que faziam parte do negócio, rei venales).
3060 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 64 (Ord. fil.,4,48).

3061 O filho pode pedir a revogação António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-

venditio”, n. 65.
3062 Em ambos os casos, as vendas deviam ser feitas em leilão (subhasta), para garantir as

melhores condições de preço; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, ns. 40-
41. Sobre a venda por leilão, v. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., v. “Venditio>”, nº 2008; também
v. “Subhastatio”.

511
As obrigações.
relativas: o pai não podia vender aos filhos que estivessem sob o seu pátrio poder, pois se
tratava de um negócio como que consigo mesmo; em geral, qualquer venda feita a um filho
carecia do consentimento dos outros, mas, neste caso, por suspeita de esconder uma
doação que prejudicasse as legítimas destes últimos3063.
§ 1764. Como a coisa devia pertencer ao vendedor, este respondia pela legitimidade dos
seus direitos sobre ela perante o comprador de boa fé3064 (garantia da evicção)3065. A evicção
era da natureza do contrato de compra e venda3066, não podendo o comprador renunciar a
esta proteção3067. Por isso, sendo a coisa vendida reclamada por outro como seu dono (ou
seu enfiteuta ou seu credor hipotecário3068), o comprador3069 devia denunciar este facto ao
vendedor3070, para lhe ser concedida uma ação de evictione, pelo preço pago e pelas
despesas que tivesse tido que fazer na manutenção ou melhoramento necessário da coisa
comprada (deduzidos os frutos recebidos3071), ou uma ação quanti minori para poder repetir
uma parte do preço correspondente à desvalorização da coisa proveniente dos ónus
omitidos pelo vendedor3072. Porém, esta garantia – bem como a possibilidade de aquisição
por usucapião, se o vendedor estivesse de boa fé3073 - cessava se o comprador estivesse de
má fé, ou seja, se soubesse que o vendedor não era dono, que não podia dispor daqueles
bens ou da herança ou que, vendendo, tinha excedido os seus poderes ou o mandato3074;
nestes casos, o comprador perdia tanto a coisa como o preço pago, não prejudicando a
venda o verdadeiro dono3075.
§ 1765. A coisa objeto do contrato devia ser certa3076 (e própria do vendedor; aliás este

3063 Ord. fil.,4,12; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 66; Pascoal
de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 14.
3064 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 30.

3065Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., v. “Evictio”.


3066Mas também existia na troca ou na enfiteuse, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Emptio-venditio”, n. 23.
3067 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 21.

3068 Nestes casos, entendia-se que existiam direitos reais que comprimiam o direito de
propriedade do vendedor e que, portanto, faziam com que a coisa vendida não fosse integralmente
sua, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 24.
3069 Ou o credor, no caso da dação em pagamento, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.

“Emptio-venditio”, n. 24.
3070 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 21; no caso da venda

judicial, o obrigado à evicção era o devedor, dono do património a ser vendido, António Cardoso do
Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 25.
3071 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 26.

3072 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 59-60.

3073 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 10. A usucapião da

integralidade da coisa também era possível a favor do adquirente de boa-fé de uma coisa sobre que
recaísse um ónus (v.g., pensão, servidão, fideicomisso), António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Emptio-venditio”, n. 7.
3074 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 5.

3075 E, sendo a coisa roubada, o comprador que o soubesse ficava suspeito de participação no

furto, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 6 e 9.


3076 Ord. fil., 4,2,pr..

512
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
respondia por evicção), estar no comércio3077 e não ser litigiosa3078. Podiam vender-se
direitos (como o direito a uma renda ou a um usufruto3079). As mercês régias3080 e os
ofícios3081 não podiam ser vendidos. A vida e o corpo não podiam ser comprados ou
vendidos3082. Mas admitia-se a venda de si mesmo, feita por homem livre (v. cap. 3.1.1.1)3083.
§ 1766. A determinação do objeto podia exigir certas regras de interpretação. Assim, a
venda de todos os bens incluía os bens móveis e imóveis do vendedor, ao tempo do
contrato3084; a venda de um prédio, incluía todos os direitos reais e frutos extantes (colhidos
mas não consumidos) ou pendentes, salvo convenção em contrário3085; mas não a madeira
já cortada3086; a venda de vinho não incluía as vasilhas3087; a venda do direito à água incluía
o aqueduto ou cano3088; a venda de um terreno incluía casas e árvores; a venda de uma
casa, horta ou quintal, incluía o que aí se encontre para uso contínuo3089; na venda um
prédio, reservadas as pedras (de cantaria), entendiam-se reservadas apenas as já
extraídas3090; a venda de caçadas ou pescarias abrangia tudo o que se apanhasse3091; a
venda de coisa dada em enfiteuse incluía a sua renovação por morte do enfiteuta (v. cap.
4.3.3.9)3092.

3077 Não estavam no comércio: as coisas sagradas e as espirituais António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 2 (v. também António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Emptio-venditio”, n. 73); as que estivessem reservadas para o uso da República (deputatae usui
reipublicae, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 74). Também as coisas
públicas ou as comuns a todos estavam fora do comércio.
3078 Ord. fil.,4,10.

3079 Assim, a venda de uma renda anual por uma vida era lícita, Melchior Febo, Decisiones […],

cit., dec. 201, n. 14. A doutrina considerava que a venda do usufruto correspondia a uma locação,
Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 75, n.10.
3080 Ord. fil., 4,14.

3081 Ord. fil.,1, 80, 20; 1,96; v. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 1, 8, 22, 24, 25.

3082 Sobre a compra e venda de escravos: Luís de Molina, De iustitia […], cit., liv. 2, disps. 336-

340, 366-369, 379.


3083 O homem que se vendesse ou consentisse na venda feita de si ficava escravo, António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 44. Mas se alguém tomasse um homem livre
e o vendesse incorria em pena de morte, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-
venditio”, n. 45.
3084 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 50.

3085 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 49.

3086 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 49.


3087 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 47.
3088 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 77.

3089 O conceito de fundus instructus servia para designar a universalidade de coisas que

aparelhavam um prédio para o uso agrícola.


3090 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 113, n. 2.

3091 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 72.

3092 Havendo acordo do senhorio. Este era o uso, embora, por direito rigoroso, a venda não

devesse exceder a vida do vendedor, v. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”,
n. 76.

513
As obrigações.
§ 1767. O preço devia consistir em dinheiro contado3093 e ser certo3094 e justo3095.
§ 1768. A compra e venda era o contrato em que, tipicamente, podia existir uma falta de
correspondência entre o preço convencionado e o “justo preço”, uma noção que remetia para
a ideia de que as coisas tinham um valor objetivo, fixado na natureza e manifestado naquilo
que elas valiam para a maior parte das pessoas, nas condições correntes nos mercados
(“justo preço”)3096. De tal modo que seria lesivo qualquer acordo em que o preço combinado
se desviasse desse valor justo. Embora fosse normal que cada contraente tentasse valorizar
ou desvalorizar aquilo sobre que negociava – e que, por isso, todos os contratos
contivessem alguma lesão (lesão módica3097) –, o direito considerava como
insuportavelmente lesivos, e por isso nulos ou anuláveis, os contratos em que essa lesão
fosse enorme ou enormíssima3098; mesmo que o preço tivesse sido cientemente querido3099.
Enorme seria a lesão em que o preço convencionado fosse menor do que metade ou maior
do que o dobro do preço justo. Enormíssima a lesão muito superior a estes limites. No caso
de lesão enorme, o contraente lesado podia pedir ou a rescisão do contrato ou a restituição
(ou o suprimento, conforme os casos) da diferença entre o preço convencionado e o preço
justo (por uma actio quanti minori)3100. No caso de lesão enormíssima – que era definida, um
tanto vagamente, como aquela em que a regra da metade era muito excedida, avaliado o
excesso segundo o arbítrio do julgador -, o contrato era nulo de pleno direito3101. O benefício
da lesão tutelava a equidade natural e, por isso, era irrenunciável e invocável durante 15
anos3102, levando à nulidade do contrato3103.

3093 Ord. fil., 4,22.


3094 Podia, no entanto, ser deixado a arbítrio de terceiro (Ord. fil., 4,1, 1; 4, 2, pr.).
3095 Ord. fil., 4,13.

3096 Sobre o preço, Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 1990; João Baptista Fragoso,
Regimen […], p. 1, liv. 7, disp. 19, §§ 2-3); Ord. fil., 4,20 (preço do trigo). “Iustum pretium ex communi
aestimatione hominum consensum”, v. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 43, 1 (mas toda a
decisão é sobre o tema); seriam justos os preços do mercado ao tempo do contrato (ibid., n. 2), os
fixados em leilão (Melchior Febo, dec. 201, ns. 18-19) ou os taxados (Jorge de Cabedo, Decisiones [...],
cit., p. 2, dec. 92; v. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., 44, n. 1 ss.; por exemplo, o preço do peixe,
fixado pelos almotacés, Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 1992); o preço justo era um padrão
geral, que não tinha em consideração o preço de custo daquela coisa ou as despesas que ela deu
(Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 43, n. 6 ss.).
3097 Sempre fosse inferior a metade, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-

venditio”, n. 59.
3098 Ord. fil., 4,13, 1; C.4,44 De rescindenda venditione, 2.

3099 Ord. fil.,4,13,9.

3100 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 58.

3101 Por se entender que havia dolo do contraente lesante, António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., v. “Emptio-venditio”, n. 57; não se aplicava Ord. fil.,4,13,5.
3102 Ord. fil.,4,13,9; Ord. fil.,4,13,5.

3103 Ord. fil.,4,13,ult., com a consequente restituição dos frutos da coisa desde o momento da

perfeição do contrato. Pascoal de Melo preferia um regime restritivo da relevância da lesão, limitado à
rescisão do contrato com efeitos ex nunc (somente a partir da invocação da lesão); mas reconhecia
que essa não era a tendência do foro (Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 17).

514
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 1769. A compra e venda podia ser acompanhada de pactos adicionais3104, desde que
estes não fossem contra a natureza do contrato. Entre estes, o pacto de espera do preço,
muito comum na compra de géneros agrícolas, a pagar quando se verificasse uma receita do
lavrador (venda na feira ou venda da próxima colheita)3105; o pacto de retrovendendo, pelo
qual o comprador se comprometia a devolver a coisa comprada e a receber de novo o preço
por ele pago3106; a addictio in diem, que permitia ao vendedor a adjudicação da coisa a
outrem no caso de este cobrir a oferta do comprador inicial até um certo dia; o pacto
comissório (lex commssoria), que autorizava o vendedor à rescisão do contrato e à
recuperação da coisa se o preço não fosse pago dentre de certo prazo3107; pacto de
protimense (de prelação), que dava ao vendedor (ou a terceiro) o direito de preferir, preço
por preço, na revenda da coisa3108; o pacto de venda a contento, consistindo numa cláusula
de rescisão caso a coisa não agradasse ao comprador3109; o pacto de que o comprador não
pagasse as pensões devidas e já vencidas que onerassem o prédio3110; o pacto constitutum,

3104 Ord. fil.,4,4,pr.. Alguma doutrina limitava a validade destes pactos a 30 anos, v. António da

Gama, Decisiones […], cit., dec. 247, ns. 3-4.


3105 A venda de pão / trigo com dilação no pagamento do preço era válida, Melchior Febo,

Decisiones […], cit., dec. 201, n. 16.


3106 V. Ord. fil.,4,4,pr.. O pacto de retrovendendo (ou com cláusula de reversão) encobria

frequentemente negócios usurários. O prestamista ficava com uma coisa daquele que necessitava de
dinheiro, até que ele pudesse pagar, lucrando, ou com os frutos da coisa ou com a diferença para
menos entre a quantia emprestada (o preço pago) e o valor real da coisa, com a qual ficaria se o
devedor não a pedisse de volta (v. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n.
53) ou com a diferença para mais entre o preço (simulado) que tivesse sido (falsamente) declarado,
mais alto do que a soma efetivamente dada pelo comprador ao vendedor, e que era o que o vendedor
teria que devolver ao comprador (v. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n.
57). Cf. exemplo de pacto de venda de terra de trigo por 200 cruzados, podendo o vendedor desfazer a
venda e recobrar o preço durante 5 anos, mas não antes de dois anos; o juro eram os frutos, ou a
diferença entre o preço pago pelo comprador e o valor da terra daí a 5 anos (Álvaro Valasco,
Decisiones [...], cit., cons. 41); se o preço fosse inferior num quarto do valor seria usura (António da
Gama, Decisiones […], cit., dec. 82). Presumia-se que se tratava de um contrato usurário se o
comprador fosse usureiro habitual, v. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n.
53. Pelo direito do reino (Ord. fil., 4,4, 1) a venda a retro com diminuição do preço presumia-se
usurária; esta ordenação era contrária ao direito comum, pois este era mais exigente, requerendo três
circunstâncias: preço (simulado) inferior ao preço justo, pacto de reversão e compra por usureiro
habitual; por isso, esta ordenação só se deveria observava no foro secular, António Cardoso do
Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 53-56; Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 154, n.
34. Se a venda não fosse usurária, o vendedor que pudesse reverter a venda gozava de uma
reivindicativo (também contra terceiro a quem a coisa tivesse sido vendida, v. Gabriel Pereira de
Castro, Decisiones [...], cit., dec. 15, n. 6), logo que restituísse o preço, António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, ns. 53 e 56. Sendo usurária, o vendedor mantinha sempre a
possibilidade de reivindicar a coisa, pois, como o contrato era nulo, teria mantido sempre a propriedade
dela (Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons 70, ns. 8-9).
3107 Ord. fil.,4,5,3; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 58.

3108 Ord. fil., 4,11, 3.


3109 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 51; normalmente a
rescisão devia ocorrer num prazo fixado; se o prazo não estivesse expresso, valia por 60 dias.
3110 Mas não as futuras, porque isso equivaleria a vender o prédio livre, quando ele era onerado

(v. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 59).

515
As obrigações.
pelo qual o vendedor vendia com uma obrigação para o comprador (por exemplo, manter os
arrendatários do prédio vendido)3111. Todos estes pactos vinculavam, devendo ser
cumpridos, sempre que não contrariassem a natureza do contrato3112.
§ 1770. Como o contrato era consensual, o documento escrito não era da substância do
contrato3113. No entanto, as Ordenações exigiam a escritura pública para que se pudesse
provar a aquisição de bens móveis de valor superior a 60 000 reis e de bens imóveis que
valessem mais de 4 000 reis3114. Como esta ordenação era contrária ao direito comum, só se
aplicava no foro secular3115.
§ 1771. O erro substancial3116 anulava a venda.
§ 1772. O contrato podia ser anulado, invocando coação ou dolo, por mero acordo antes
da perfeição do contrato3117. A venda com intenção dolosa ou fraudulenta do comprador era
nula, não podendo o comprador sequer adquirir a coisa por usucapião, nem mesmo de longo
tempo3118; o contrário, se dolo e fraude tivessem sido do vendedor3119. A venda feita em
fraude dos credores valia, mas podia ser revogada a pedido destes3120. A venda feita em
fraude da república não valia, perdendo o comprador de má-fé a coisa e o preço3121.
§ 1773. O regime do contrato de compra e venda decorria, em grande parte, do que se
entendia ser o momento da perfeição do contrato. Se se entendesse que o contrato apenas
se efetivava pela transferência mútua da coisa (traditio) e do preço, o risco e as utilidades da
coisa corriam pelo vendedor – como dono da coisa - enquanto a entrega não se desse. Mas,
feita a entrega, ainda que que o preço estivesse por pagar (como nas vendas com espera de
preço), o risco, tal como os cómodos, corriam pelo comprador, apesar de este não ter ainda
pago3122. Se se entendia que o contrato ficava perfeito no momento da convenção, ainda que
a coisa vendida se mantivesse na posse do vendedor (consensualismo), tanto o risco como
as comodidades da coisa (nomeadamente, os seus frutos) eram do comprador, como novo

3111 Sobre estes pactos, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 15.
3112 Tal seria o caso de um pacto que autorizasse qualquer dos contraentes a rescindir livremente
o contrato (v. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 59-60); ou aquele que
condicionasse a validade do negócio ao arbítrio de um dos contraentes (a venda sob condição do outro
querer, si volueris, é nula, António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 222, n. 6; v. Ord. fil.,4,1,1).
3113 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 37. Cf., porém, Ord. fil.,

4,19,1.
3114 V. Ord. fil.,3,59.

3115 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 37.

3116 Isto é sobre circunstâncias que levariam a não vender ou não comprar e não apenas a não

vender ou a não naquelas condições, v.g., erro sobre a coisa vendida a identidade e as qualidades
decisivas da coisa vendida; mas não já sobre o preço, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Emptio-venditio”, n. 12.
3117 V. Ord. fil.,4,2,3; Ord. fil.,4,19,1.

3118 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 11.

3119 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 8.


3120 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, ns. 8, 62.
3121 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, ns. 43, 62.

3122 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, ns. 38-39.

516
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
dono3123. As soluções para que apontava a doutrina seiscentista e setecentista eram mais
frequentemente coerentes com a ideia de que a perfeição correspondia ao momento da
entrega3124. Rescindido o negócio (por exemplo, por lesão apenas enorme; ou por erro), o
comprador tinha direito aos frutos que colhera na pendência, bem como a indemnização
pelas despesas necessárias e úteis feitas na manutenção da coisa e seu melhoramento3125.
§ 1774. O vendedor garantia o comprador, quer quanto à propriedade da coisa, quer
quanto às suas qualidades. Assim, era obrigado pela evicção ou seja, no caso de um terceiro
reclamar a coisa vendida alegando que ela era sua. E também pelos de vícios ocultos (isto é,
não visíveis nem comunicados pelo vendedor3126) da coisa, como as doenças ou manhas
dos animais (animais doentes, fémeas estéreis, cavalos assustadiços, bois bravos3127), caso
em que tinha que aceitar a devolução da coisa e a restituição do preço ou respondia por uma
ação (actio redhibitoria) pela diminuição do preço equivalente ao defeito3128. No direito
romano, a ação redibitória era uma ação pretória, cujo fundamento era a falsidade ou
omissão dolosa quanto aos vícios3129. O réu era condenado naquilo em que o comprador
tivesse sido prejudicado (quanti minoris ou id quod interest)3130. O comprador podia ainda
usar a actio ex empto, para reclamar do vendedor doloso o preço pago por uma coisa
defeituosa. No período do direito comum, de que aqui se trata, estas distinções eram
irrelevantes, porque o autor não tinha que indicar no libelo o nome da ação (cf. 7.1.9.2); em
todo o caso, a doutrina continua a discutir o nome da ação, nomeadamente porque elas
tinham diferentes prazos para serem intentadas (a actio ex empto só prescrevia depois de 30
anos; mas as ações pretórias - actio redhibitoria e quanti minoris - prescreviam muito antes,
6 meses ou um ano)3131. A responsabilidade do vendedor cessava se o comprador sabia ou
devia saber – por ser perito – do vício ou quando este sobreveio depois do contrato3132.
§ 1775. A venda sem tradição, embora tivesse efeitos obrigacionais (actio empti), não

3123 V. Ord. fil.,4,8; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 16.
3124 Por exemplo, Jorge de Cabedo defendia que, se se vendesse uma coisa por medida (por
exemplo, vinho; mas também uma área de terreno), o risco corria pelo vendedor, até à medição e
especificação, Jorge de Cabedo, Decisiones [...]. p. 1, dec. 102, n. 2; também António da Gama,
Decisiones […], cit., dec. 211, n. 3.
3125 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 161.

3126 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 61. Presumia-se que o

comprador ignorava as obrigações da coisa, se não fossem expressamente anunciadas pelo vendedor,
Melchior Febo, Decisiones [...], cit. dec. 115, n. 33. Mas se o comprador cientemente comprasse uma
coisa onerada (v.g., fiduciária) não podia acionar o vendedor pelo prejuízo (id quod interest), António da
Gama, Decisiones […], cit., dec. 20, n. 1.
3127 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 2007 (v. “Venditio quoad evictionem”). Sobre se o

escravo que está fugido dá lugar a evicção, Diogo Marchão Themudo, Decisiones […], cit., dec. 41, n.
1.
3128 Ord. fil.,4,17.

3129 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 74 (per totam).

3130 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 74, ns. 19 a 24.
3131 v. Nunzia Donadio, “Qualità promesse e qualità essenziali della res vendita: il diverso limite tra
la responsabilità per reticentia e quella per dicta promissave nel ‘diritto edilizio’ o nel ius civile”,
http://www.teoriaestoriadeldirittoprivato.com/index.php?com=statics&option=index&cID=129)].
3132 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., decs. 74, 29-30.

517
As obrigações.
transferia o domínio (a não ser que o vendedor com a coisa, mas como mero possuidor da
coisa do comprador, pelo constituto possessório). Por isso, o comprador só podia reivindicar
a coisa de terceiro depois da tradição3133. Daqui decorria que, na venda sucessiva da mesma
coisa a duas pessoas, preferisse aquela para quem a coisa tivesse sido transferida3134, pois
transferia o domínio, ao contrário do que acontecia com a outra venda, que mantinha no
vendedor o domínio e a possibilidade de vender3135.
§ 1776. Uma vez entregue a coisa vendida, a venda adquiria uma eficácia plena. Não
podia ser rescindida por falta de pagamento do preço, no caso de a venda ser feita com
espera de preço, embora o vendedor tivesse uma ação (actio venditi) para pedir o preço em
débito e o comprador estivesse obrigado ao pagamento de juros enquanto não pagasse3136.
§ 1777. Muitas vendas davam origem ao pagamento de sisas (gabellae)3137.
6.9.2.2.3 A locação (locatio conductio).
§ 1778. A locação era a cessão a alguém (conductor, locatário, colono3138, inquilino3139)
ou do uso de uma coisa ou de serviços (opera) contra o pagamento de uma quantia em
dinheiro (pensio, merx). Era um contrato inominado, tutelado, no direito romano, por uma
actio praescriptis verbis, com a qual qualquer das partes reclamava da outra aquilo que fosse
devido em face da situação descrita na petição inicial3140. Como, na locação de coisas, a
propriedade da coisa não se transferia, mas apenas o uso, o contrato de cedência de coisas
cujo uso consistia no seu consumo (coisas consumíveis) não era locação, mas mútuo, em
que não se restituíam as coisas locadas, mas outras do mesmo género3141. Por outro lado,
como se entendia que a cedência do uso da coisa por mais de dez anos correspondia à

3133 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 16.


3134 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 17-18 (o mesmo na
enfiteuse e no arrendamento de longo tempo [locatio longi temporis, em que se entendia que também
havia uma transmissão de uma parte do domínio, como na enfiteuse]); mas, segundo a melhor opinião,
não no arrendamento de pouco tempo, pois, in puncto iuris, o locador não transfere o domínio para o
locatário, ficando sempre o domínio no locador, pelo que a segunda locação é feita a domino, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 17). Na venda do senhorio útil da enfiteuse,
havia ainda que considerar em qual das vendas tinha o senhor consentido, preferindo esta, como
primeiro critério, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 18.
3135 Mas o vendedor respondia sempre pela frustração (id quod interest) da venda que não

pudesse valer (Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 172).


3136 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Emptio-venditio”, n. 38. Nestes casos de

espera de preço, passado o prazo para pagar, o vendedor podia pedir o preço ou a coisa, ibid..
3137 Quanto às sisas: Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., v. “Venditio”, n. 2021; também v.

“Gabella”. Contratos de que se pagavam sisas, v. Artigos das sisas, de 27.9.1476 (em José Roberto
[…] Soisa, Systema […], cit., vol. 1, cit., pp. 205); António de Sousa de Macedo, Decisiones […], cit.,
decs. 72-73.
3138 Nos arrendamentos rústicos.

3139 Nos arrendamentos urbanos, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Locatio

conductio”, n. 32.
3140 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Locatio conductio”, n. 1. O contrato fora,

originariamente, de direito das gentes, não formal e de boa-fé (António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., v. “Locatio conductio”, n. 10).
3141 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Locatio conductio”, n. 2.

518
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
transferência do domínio (útil), a locação por período superior a 10 anos equivalia a um
contrato enfitêutico, em que se dividia o domínio e se cedia o domínio útil ao locatário,
retendo o locador o domínio direto3142. Também se entendia que a cedência em que a renda
consistisse numa parte dos frutos (“parceria”) devia ser tratada como contrato de sociedade
e não como locação3143.
§ 1779. O objeto da locação podiam ser coisas móveis3144 ou imóveis3145, mas também
serviços (locação de serviços, locatio conductio operarum)3146 e de direitos3147. As servidões
reais (res servit rei) não se podiam arrendar porque eram inseparáveis do prédio servido;
mas, arrendado este, elas eram transferidas para o locatário.
§ 1780. Podiam locar-se todas as coisas que se podiam vender, pois se tratava de
contratos similares3148. Tratando-se de locação de serviços, estes tinham que ser lícitos e
honestos.
§ 1781. Valia na locação a regra de que ninguém podia transferir para outrem mais
direitos do que os que tivesse. E, por isso, bispo ou beneficiado não podiam arrendar
perpetuamente ou por longo tempo3149 os bens, rendimentos, ou direitos de uma igreja ou
mosteiro3150; também a locação feita pelo usufrutuário se extinguia com sua morte3151. Já o
herdeiro do locatário podia suceder-lhe na locação3152.
§ 1782. Embora a locação incidisse sobre um objeto certo, havia coisas que eram
universalidades reais, de tal modo que locada a coisa principal se entendiam locadas as
coisas ou utilidades anexas. A concretização deste princípio dependia, no entanto, do
convencionado, bem como de usos locais. Assim, a doutrina portuguesa entende que,
arrendado um terreno, não eram arrendadas as árvores aí existentes3153; mas, em

3142 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Locatio conductio”, n. 2; “locatio ultra decenium

est alienatio translato dominio in conductorem, cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit. 1086.
3143 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Locatio conductio”, n. 31. Cf., sobre este tipo de

arrendamento, Ord. fil., 4,45 (“terras a meias ou a terças)“.


3144 O atual aluguer. Ou semoventes: v.g., arrendamento de gados ou de colmeias (arrendamento

de gados e colmeias; a ordenação Ord. fil.,4,69 proibia estes contratos, decerto por suspeita de serem
usurários.
3145 O atual arrendamento.

3146 O atual contrato de prestação de serviços.

3147 Por exemplo, o arrendamento de ofícios (serventias de ofícios) ou o direito de cobrar tributos

(ou outras rendas, reais ou não).


3148 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Locatio conductio”, n. 3.

3149 Dez anos ou mais, porque o arrendamento de longo tempo (locatio longi temporis) – ou

renovável de modo a ultrapassar este período (cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Locatio
conductio”, n. 9) - equivalia à alienação do domínio útil, sendo que a alienação não cabia nos poderes
de um administrador, como o bispo em relação aos bens da igreja.
3150 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Locatio conductio”, ns. 7-8.

3151 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Locatio conductio”, n. 5. O mesmo

acontecia com a morte do administrador do morgado e do donatário de bens da coroa, Álvaro Valasco,
Decisiones […], cit., cons. 186, n. 13.
3152 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Locatio conductio”, n. 5.

3153 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Locatio conductio”, n. 26.

519
As obrigações.
contrapartida, o arrendatário podia vender pedras e barro, pelo menos até um limite não
abusivo, estimado por um homem bom3154.
§ 1783. O arrendamento era consensual, exceto se a renda excedesse a soma de
30 000 moedas, caso em que carecia de escritura pública3155. A entrega das chaves
efetivava a tradição3156.
§ 1784. O locador ficava obrigado pelos danos (id quod interest) causados por vícios
ocultos da coisa locada de que tivesse ou devesse ter conhecimento e de que, por tanto,
devesse notificar o locatário. Assim, o locador de vasilhas ficava obrigado a satisfazer pelos
danos, se o vinho tivesse azedado ou o azeite vertido por defeito das pipas ou dos cântaros.
Mas as fontes doutrinais atenuam a sua responsabilidade no caso de arrendamento de uma
pastagem em que houvesse ervas venenosas, apenas obrigando a não cobrar a renda3157.
§ 1785. O locatário, por seu turno, era obrigado à restituição pontual e integral da coisa,
não podendo sequer pôr em causa a propriedade do locador sem efetuar a prévia
devolução3158. Portanto, não a podia alienar (v.g., vender ou penhorar, pois não tinha
propriedade sobre ela), embora a pudesse arrendar para igual uso, se outra coisa não
tivesse sido estipulada3159. Quanto aos danos, o locatário era responsável pela deterioração
dolosa ou danosa da coisa, mas não por culpa levíssima ou por caso fortuito3160. Assim, se o
colono colhesse, ainda verdes, os frutos que de outro modo seriam colhidos pelo locador
depois do termo do contrato, responderia pelo dano; o mesmo, se deixasse de cultivar o
prédio, com prejuízo deste3161.
§ 1786. Sendo vários os locatários de uma mesma coisa, cada um respondia por uma
parte alíquota das obrigações contratuais (responsabilidade conjunta)3162.
§ 1787. O arrendatário podia reclamar do senhorio as despesas necessárias e úteis
feitas no prédio, gozando do direito de retenção da coisa locada até a esta indemnização3163.
§ 1788. Como não detinha a posse em nome próprio, mas em nome do proprietário
locador, o colono ou inquilino nunca podiam adquirir a coisa locada por usucapião (a não ser
que se tivesse invertido o título de posse – i.e., modificada razão jurídica pela qual o
possuidor detém a coisa)3164; um caso de inversão do título de posse decorria do pagamento
da renda por um período longo, o que gerava a presunção de que a terra não estava

3154 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 93, n. 1.
3155 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit. 1088.
3156 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit. 1094.
3157 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Locatio conductio”, n. 12.

3158 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Locatio conductio”, n. 15; Ord. fil., 4,54, 3.
3159 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Locatio conductio”, n. 14.
3160 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Locatio conductio”, n. 13.

3161 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Locatio conductio”, n. 18.

3162 “Unusquisque et non unus pro alio”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Locatio

conductio”, n. 25.
3163 Ord. fil.,4,54,1; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Locatio conductio”, n. 30, Bento

Pereira, Promptuarium [...], cit. 1088.


3164 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Locatio conductio”, n. 19.

520
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
arrendada mas dada em enfiteuse3165.
§ 1789. A renovação da locação fazia-se tacitamente, se o locatário continuasse na
posse da coisa3166, com conhecimento do dono, depois de findo o prazo3167.
§ 1790. O arrendatário podia ser despejado antes do termo do contrato apenas nos
quatro seguintes casos: (1) se o locador tivesse uma necessidade superveniente e
inesperada de habitar a casa arrendada3168; (2) se a casa arrendada passasse a ameaçar
ruína, a ponto de carecer de reparação indispensável3169; (3) se o locatário,
inesperadamente3170, usasse a coisa de modo a que esta sofresse deterioração (física ou de
valor)3171; (4) se, no caso de arrendamento por mais de cinco anos3172, o arrendatário não
tivesse pago a renda durante dois anos ou, sendo o arrendamento por menos tempo, se não
a pagasse pontualmente. A doutrina acrescentava a estes casos enumerados na lei, mais
uns quantos extraídos de princípios gerais. Tal eram os casos em que o locador adquirisse
um estado que exigisse morada mais digna (v.g., de cavaleiro, de doutor, de advogado, de
presbítero), em que um filho ou filha casassem, em que a casa em que habitava ameaçasse
ruína, em que a guerra ou a peste obrigassem o senhorio a deixar a sua casa3173 3174. Mas
ainda (Barbosa, cit., n. 12) se na casa ocorriam situações que assustassem os vizinhos (v.g.,
almas penadas ou zaragatas, tetris imaginibus vel tumultis). Devia ser dado algum tempo ao
inquilino (Barbosa, cit., n. 11).
§ 1791. Também o locatário podia, em alguns casos, pôr termo ao contrato ou reduzir a
renda. Em geral, o contrato de locação era rescindido a favor do locatário se este não
pudesse tirar partido da utilidade da coisa, por razões que lhe não fossem imputáveis3175. Os

3165 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Locatio conductio”, n. 19.
3166 No caso da prestação de serviços, se os serviços continuassem a ser prestados ao seu
tomador, com conhecimento deste.
3167 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Locatio conductio”, n. 17; com base em Ord.

fil.,4,23, a doutrina entendia que, no arrendamento de casas, se dava a renovação tácita do contrato; o
que era o contrário da regra de direito comum (v. Gabriel Pereira da Castro, Decisiones […], cit., dec.
98, n. 2). Sobre o aluguer de casas, Ord. fil.,4,23-24.
3168 Por exemplo, se casasse. Só se aplicava ao arrendamento de casas, mas não de prédios

rústicos (Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil.,4, 4, n.7). Mas entendia-se não valer nas
casas arrendadas a estudantes (Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil.,4,24, n.7).
3169 Neste caso, o arrendatário devia ser readmitido depois das obras.

3170 Manuel Barbosa seguia a opinião de que não podiam ser despejados os estudantes que

metessem prostitutas nas casas arrendadas, porque isso não era nem novo nem inusitado (Manuel
Barbosa, Remissiones [...], cit., v. 4, ad Ord. fil.,4,24, n. 5), a não ser que se pusesse em risco a honra
do senhorio ou o sossego dos vizinhos.
3171 Exemplos das fontes: meter na casa arrendada mulheres de má vida ou ladrões, como meter

porcos nas eiras, cortar árvores, não fazer reparos ou colheitas nos tempos devidos. Nestes casos, o
locatário responderia ainda pelos danos causados.
3172 Jorge de Cabedo diz que, nos arrendamentos eclesiásticos, o despejo era legítimo se o

arrendatário falhasse dois anos de renda; nos temporais, só com três rendas anuais em falta. Jorge de
Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 92 n. 4.
3173 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Locatio conductio”, n. 20.

3174 Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil.,4,24, 8-9.

3175 Se a culpa do não uso fosse do locador, este ainda tinha que indemnizar o locatário pelo

521
As obrigações.
exemplos habituais nas fontes são o não uso de uma casa ou não cultivo dos campos por
causa de guerra ou de peste3176. Também a diminuição da produção por uma causa natural
mas extraordinária (uma seca ou um mau tempo inabituais) podia dar direito à diminuição
proporcional (pro rata) da renda3177, se desse lugar a uma quebra da colheita de mais de
metade e esse prejuízo não fosse compensado pela abundância de anos anteriores ou
posteriores3178. Qualquer culpa do locatário, mesmo leve (como a culpa na escolha de
trabalhadores incompetentes), prejudicava a possibilidade de remir ou diminuir a renda3179.
Na enfiteuse, sendo o cânone apenas o reconhecimento do domínio eminente, não se
diminuía por esterilidade3180.
§ 1792. Embora a locação fosse um contrato temporário, o direito promovia a
estabilidade das situações. Nos arrendamentos de casas, interpretava o direito régio como
estabelecendo – contra a regra do direito comum – a renovação tácita. No arrendamento
rústico, fazia equiparar o arrendamento de longo tempo (mais de 10 anos) a um contrato
enfitêutico, com transmissão do domínio útil para o colono. Mesmo para arrendamentos mais
curtos, a doutrina entendia que o colono que o fosse por vários anos, embora não tivesse
direito à renovação, gozava de um direito de preferência de tanto por tanto3181. Entendia-se,
além disto, que o herdeiro – mas não o legatário3182 – não poderia despejar os inquilinos3183.
Em contrapartida, a venda da coisa locada fazia cessar o arrendamento, mas o locador-
vendedor ficava obrigado pelos danos causados pelo termo do contrato3184. Por vezes, a
estabilidade da posição do arrendatário era reforçada por hipoteca: o senhorio hipotecava ao
arrendatário a coisa locada, com o que ele cumulava as garantias de locatário com as de
credor hipotecário3185.
§ 1793. Uma espécie de locação era, como se disse, a locação de obras ou serviços.
Obedecia, em geral, ao regime da locação, sendo o locador o que prestava as obras ou
serviços (opera) e o locatário o que os recebia, contra o pagamento de uma mercê ou
salário3186. No entanto, no tratamento geral do contrato, os autores fixavam-se normalmente

dano, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Locatio conductio”, n. 23.
3176 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Locatio conductio”, n. 21.

3177 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Locatio conductio”, ns. 22-22. A remissão ou

redução da renda devia ser pedida antes da colheita, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Locatio conductio”, n. 22.
3178 V. Ord. fil.,4,27, 1.

3179 Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil.,4,27, 2, n. 2.

3180 Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil.,4,27, n.3.

3181 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., dec. 157, n. 33.


3182 Salvo no caso de colono da igreja, que devia ser mantido, Álvaro Valasco, Decisiones […],
cit., cons. 40, ns.- 1-2.
3183 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Locatio conductio”, n. 28.

3184 Salvo se outra coisa tivesse sido convencionada (“arrendo enquanto não venda”). No
arrendamento de longo tempo, a venda não prejudicava o domínio útil, que se entendia ter sido
transferido para o locatário, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Locatio conductus”, n. 27.
Também a venda em hasta pública não poria termo aos arrendamentos preexistentes (Bento Pereira,
Promptuarium [...], cit. 1094; Miguel Reinoso, Observationes […], obs. 35, ns. 2-3).
3185 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 76.

3186 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 125, n. 2.

522
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
na locação de coisas, não cuidando muito da prestação de serviços, talvez por esta não ser
frequentemente contratualizada, já que o trabalho ou decorria no âmbito do cumprimento de
deveres domésticos (“obséquios” dos filhos e enteados, dos que viviam por favor no âmbito
da casa) ou era prestado como uma troca de favores entre vizinhos (facio ut facias, facio
quia fecistis).
§ 1794. Assim, nem toda a prestação de serviços dava direito a uma recompensa: os
meninos só tinham direito a ser pagos depois dos catorze anos completos3187; os aprendizes
não tinham que ser pagos pelo trabalho prestado3188; os criados de estudantes a quem
tivesse sido dado dado tempo para estudar não venciam salário3189; as moças recolhidas em
conventos e que aí trabalhassem não eram remuneradas3190; o menino só tinha direito ao
salário depois de 14 anos completos (Ord. fil.,4,31,8); os criados admitidos sem necessidade
do patrão e apenas por instâncias deles próprios não ganhavam salário até que o patrão
tirasse deles algum proveito3191; os cantores, músicos, contadores de histórias, lutadores,
bobos, que se exibiam para divertir o senhor, não tinham salário, a menos que isso fosse
convencionado, bastando que se lhes desse de comer, cama e roupa3192; os enteados
apenas deviam vencer metade dos salários prestados a seus padrastos ou madrastas, pois a
outra metade corresponderia a deveres domésticos3193; não se deviam salários a quem não
costumasse fazer trabalho mercenário3194.
§ 1795. Dos que trabalhavam para outros, a situação mais dura era a dos criados
domésticos. A própria terminologia (“servo(a)”, “servir”) aproximava a situação dos criados da
dos escravos. Enquanto que o trabalhador diferenciado, cujo trabalho supunha o domínio
(mestria) de uma arte, era designado pela palavras “artífice” ou “mestre”, o trabalhador
indiferenciado era o “mecânico” (mechanicus) ou “obreiro” (operarius). Mas o criado
doméstico era o servo, próximo do escravo. De facto, no latim, a palavra servus (ou famulus)
designava uns e outros, assim como a palavra dominus era usada tanto para o dono
(proprietário) como para o senhor (patrão). Embora as Ordenações garantissem a liberdade
de trabalhar (Ord. fil.,4,28)3195, a lei e a doutrina estabeleciam regras bastante draconianas

3187 Ord. fil., 4,31, 8; Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1 n. 162, n. 5. As moças ganhavam
a partir de 12 anos (Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil., 4,1, 8.
3188 “O aprendiz de um oficial é quem deve, não o patrão”, escreve Jorge de Cabedo, Decisiones

[...], cit., n. 1 dec. 162, n. 4.


3189 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1 dec. 162, n. 3. Decerto porque o tema era familiar

aos autores, o tema dos criados dos estudantes – que por vezes eram também estudantes – era
bastante tratado pela doutrina, com expressa referência aos costumes de Coimbra: em Coimbra, os
criados (estudantes) dos estudantes tinham direito a ficar com o calçado que os patrões lhes dessem,
Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, ad 4, 29, pr..
3190 Melchior Febo, Decisiones […], cit., p. 1, aresto 49.

3191 Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil., 4,31,9, n. 2.

3192 Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, 31,5, n. 2.

3193 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 32; Miguel Reinoso, Observationes […], cit., obs.
27, n.28.
3194 Miguel Reinoso, Observationes[…], cit., obs. 27, n. 11; mas o ter trabalhado de graça para um

não obrigava a fazer o mesmo a outros, ibid., 14.


3195 O criado que tivesse adoecido não era obrigado, depois de curado, a servir o amo por outro

tanto tempo, Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil., 4,28.

523
As obrigações.
sobre os deveres dos criados quanto ao cumprimento dos seus deveres de serviço. Uma
delas era a de que os criados mecânicos tomados por certos anos, se fugissem, servissem
outros tantos anos, se o senhor assim quisesse3196. Também era proibido por lei o trabalho
sem paga (Ord. fil.,4,29). Mas a ordenação bastava-se com um qualquer pagamento
acordado entre o patrão e o serviçal3197, na falta da qual vigoraria o uso da terra para estes
contratos “a bem fazer”3198. No caso de se ter convencionado um pelote e uma capa, isso
obrigava a trabalhar um ano para o patrão; só um pelote ou só uma capa obrigavam a meio
ano de trabalho (Ord. fil.,4,30). Noutros casos, a lei taxava os salários (Ord. fil.,4,31). Mas as
dádivas ou legados dos amos eram tidos como correspondendo a pagamentos de salários,
pelo que, nestes casos em que tinham sido beneficiados, os criados não podiam reclamar
em juízo salários não pagos3199.
§ 1796. A regra para a fixação dos salários era, como se viu, a do consenso, completada
pela do costume3200.
§ 1797. Os salários eram pagos no fim do trabalho (no fim do dia, da semana, do ano),
salvo pacto em contrário3201. No caso de se justar a realização de uma tarefa, como a feitura
de uma casa, uma torre, um navio, o momento do pagamento dependia dos costumes ou da
natureza do trabalho3202. Se o pagamento incluísse somas para despesas da obra, estas
deveriam ser pagas antes ou escalonadamente3203. Os salários dos oficiais a tempo deviam
ser pagos no início3204; o mesmo valia nos emissários do príncipe3205; os dos corregedores e
dos juízes pagavam-se aos quartéis3206; o médico era pago quando o doente sarasse3207.
§ 1798. A regra geral quanto à obrigação de prestar serviços era a de que o patrão não
ficava desobrigado se o trabalhador não os prestasse por caso fortuito3208. Assim, os lentes

3196 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., dec. 155, n. 2.


3197 Valiam aqui os princípios da lesão, pelo que o contrato podia ser anulado se o salário fosse
inferior a metade do salário justo, ou o patrão acionado pelo que faltava (Cf. Manuel Barbosa,
Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil., 4,31,9, n. 3).
3198 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil., 4,19,1, n. 4.

3199 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil., 4,31, 10-11.

3200 Cf. Miguel Reinoso, Observationes […], cit., obs. 27, ns. 7-8.
3201 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Salarium”, ns. 2 e 7. Sobre os tempos e
condições dos pagamentos de salários, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 8, per totam.
3202 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Salarium”, n. 3, Jorge de Cabedo,

Decisiones [...], cit., p1, dec. 8, n. 5.


3203 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Salarium”, n. 5.

3204 Sobre a ordem de pagamento dos tesoureiros régios, António de Sousa de Macedo,

Decisiones […], cit., dec. 79; se os assentamentos eram de salários; se se podiam prejudicar os
salários assentados por novos assentamentos, ibid., decs. 84, 85, 87.
3205 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 8, ns. 3-4.

3206 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 8, n. 8.


3207 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Salarium”, n. 10; mas não dependia do êxito
da cura, Diogo Marchão Themudo, Decisiones […], cit., dec. 245, ns. 1-2 e 5; devia tratar os pobres de
graça, ibid., n. 4.
3208 A não ser que o trabalhador prestasse, nessas circunstâncias, os serviços a outrem, António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Salarium”, n. 6.

524
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
que não tivessem dado as lições por causa da guerra, da peste ou por caso fortuito, deviam
ser pagos3209. Porém, havia autores a defender que o trabalhador doente – ou que se
ausentasse sem licença do senhor - não cobrava salário3210.
§ 1799. Os criados respondiam pelos danos causados aos amos, sendo o prejuízo
descontado de seus salários (Ord. fil.,4,35)3211.
§ 1800. A mudança de patrão estava frequentemente condicionada ao consentimento do
antigo (Ord. fil.,4,30,2-3).
§ 1801. O despedimento estava regulado nas Ordenações (Ord. fil.,4,34). A regra aí
expressa era a de que o prazo do contrato devia ser respeitado e que qualquer denúncia
antes do prazo obrigava a pagar os salários até ao fim3212. No caso de o criado se despedir
antes do prazo, tinha que devolver o salário correspondente ao tempo em falta. No caso de
morte do trabalhador, o princípio era o de que teria direito a receber os salários até ao fim do
tempo, pois a morte era um caso fortuito3213; mas não seria isso o que se geralmente se
decidia3214.
§ 1802. A ação sobre salários era sumária3215. As condições processuais dos servidores
eram, em geral, tão fracas, que alguns autores lhes reconheciam o direito de se pagarem a si
mesmos pelos bens dos patrões, desde que o fizessem sem escândalo3216. A lei dispunha
que o direito aos salários prescrevia num prazo de 3 anos (Ord. fil.,4,32-33)3217. Em matéria
de prova, dizia-se que não era de acreditar no testemunho dos próprios sobre os seus
salários3218. Singularmente, opina-se que os trabalhadores tinham uma hipoteca a garantir os
salários: tal seria o caso se o patrão do navio tivesse pago outras despesas com o dinheiro

3209 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Salarium”, n. 5.


3210 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1 dec. 8, n. 30. Já o desembargador, segundo o
mesmo, podia cobrar os salários se estivesse doente (ibid., ).
3211 Os oficiais públicos podiam ser removidos por faltas, perdendo os respetivos salários, Jorge

de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 8, n. 34.


3212 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Salarium”, n. 8.

3213 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 8, n. 9 (“non stetit per eum quominus ad

finem temporis operas suas praestitisset”).


3214 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 8, 21-22, embora o rei por vezes fizesse

mercê aos herdeiros do resto do quartel, n. 23.


3215 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., n. 46. Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...],

cit., p. 2, cap. 38 (acerca da ação sumaria de serviços de moços e moças).


3216 "Nota quod famulum, cui non fuit solutum justum salarium a domino, nec dominus vult solvere,

si certo faciat sibi deberi, & debitum in rei veritate sit liquidum, & via iustitiae non potest recuperare, vel
quia deficiunt probationes, vel quia expendet magis, quam sibi debetur de salario, potest cum bona
conscientia suum salarium recuperare de bonis domini, veluti ea oculte, et sine scandalo auferendo
resoluit [...] etiam elapso trienio posse tuta conscientia hoc facere”, Manuel Barbosa, Remissiones [...],
cit., 4, ad Ord. fil.,4,32, n. 3.
3217 Só valia para criados, mas não para os que servissem a outro título, Gabriel Pereira de

Castro, Decisiones […], cit., dec. 46, 2 ss.; não valia se o prazo fosse interrompido, se se tivessem feito
contas ou se o pagamento tivesse sido prometido por escrito [tratava-se apenas de uma presunção de
pagamento], ibid., ns. 4 ss..
3218 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1 dec. 167, n. 6.

525
As obrigações.
que recebera para satisfazer os salários dos marinheiros3219.
6.9.2.2.4 A sociedade ou companhia.
§ 1803. O contrato de sociedade era aquele em que duas ou mais pessoas
convencionavam participar nos riscos e ganhos de uma atividade para aumentarem os
respetivos benefícios3220. O direito romano insistia nesta ideia de uma finalidade comum,
para distinguir o contrato de sociedade da simples compropriedade, em que várias pessoas
se encontravam na situação de serem (com-)proprietários da mesma coisa.
§ 1804. A sociedade podia compreender todos os bens (societas omnium bonorum,
aparentemente a forma mais antiga) ou apenas os afetados a um negócio ou atividade3221.
Quanto à sua duração, podia durar por certo tempo, ser constituída sem termo ou durar na
pendência de certa atividade (v.g., exploração de certa coisa comum, como campos, olivais
ou vinhas) ou de certo negócio lícito3222(v.g., gerir uma taberna, realizar uma viagem
comercial, explorar o arrendamento de um tributo)3223. No caso de constituição por um tempo
certo, mantinha-se até ao seu transcurso; no caso de participação num negócio ou empresa,
só podia desfazer-se se se extinguisse a causa que tivesse dado origem à atividade comum
ou esta deixasse de ser proveitosa. Se convencionada sem termo, rescindia-se por comum
acordo ou unilateralmente, se sobreviesse inimizade entre os sócios ou se um deles fosse
chamado para tarefa da república; de qualquer modo, um sócio não podia sair se disso
decorresse um prejuízo injusto para os outros3224.
§ 1805. A sociedade apenas compreendia as atividades de cada sócio relacionadas com
o seu objetivo, pelo cada sócio não obrigava os outros3225 em negócios estranhos à
sociedade3226.
§ 1806. O estatuto de sócio implicava uma certa igualdade e solidariedade, de tal modo
que não eram válidas as sociedades em que houvesse uma repartição desproporcionada, na

3219 Estes teriam uma hipoteca tácita sobre a soma paga, com direito de prelação, Gabriel Pereira

de Castro, Decisiones […], cit., dec. 45, ns. 1-8.


3220 “Societas est fortunae et periculi participatio inita tacite vel per conventionem inter duos, vel

plures, ob commodiorem usum et uberiorem quaestum”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
"Societas", n. 1 (fonte: D. 17,2, Pro socio; Ord. fil.,4,44); “a sociedade é um contrato de obrigações
recíprocas pelas quais todos se obrigam por facto de um”, Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec,
198, n. 3.
3221 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. "Societas", n. 3.

3222 “Societas rei turpis non obligat”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 32-33. V. Ord.

fil.,4,44,3.
3223 O testador podia instituir uma sociedade temporária entre os herdeiros, mas estes podiam

libertar-se se a sociedade fosse instituída no seu interesse (mas não no da alma do testador); a
sociedade perpétua não era válida, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. "Societas", n. 8.
3224 V. Ord. fil.., 4,44,5 a 8. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 6. Se saísse, respondia

pelos prejuízos causados aos outros, não ficando estes, por sua vez, obrigado a repartir com ele os
lucros, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. "Societas", n. 7.
3225 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 98, per totam.

3226 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 98. Se a sociedade era de todos os bens, a

regra era, porém, a de uma responsabilização da sociedade por todos os atos não exclusivamente
pessoais de cada sócio.

526
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
qualidade ou na quantidade, dos proventos e dos encargos (sociedades leoninas)3227, que
eram inválidas ou por contrariarem a natureza do contrato ou por estarem feridas de lesão
enorme. Mas podia convencionar-se que, quanto às aportações dos sócios, houvesse uma
especialização, contribuindo, por exemplo, um com o trabalho e indústria e outro com o
capital3228
§ 1807. O contrato de sociedade não dava lugar, como acontece hoje, a uma nova
entidade ou pessoa jurídica3229. Por isso, na gestão social, o princípio geral era o de que
cada sócio, sem o consentimento (expresso ou tácito) dos outros, apenas podia dispor da
sua parte no casco dos bens sociais (res communis)3230, embora se entendesse que podia
dispor por inteiro dos produtos com os quais a sociedade comerciava (rei venales)3231.
Correspondentemente, cada sócio não podia acionar o devedor da sociedade senão pela
sua parte, a não ser que fosse procurador do consócio3232. Nem podia, da mesma forma, ser
acionado um só sócio pelo conjunto das obrigações da sociedade, se todos possuíam pro
indiviso3233.
§ 1808. Esta regra da responsabilidade conjunta tinha exceções. Assim, se os sócios
gerissem um negócio estando cada um em seu lugar, cada um decidia in solidum e era

3227 V. Ord. fil.,4,44,9; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. "Societas", n. 9.
3228 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. "Societas", n. 4. Mas, opina António da
Gama (Decisiones […], cit., dec. 253, n. 1), quando houvesse um sócio capitalista não se podia
convencionar que o risco do dinheiro não recaísse sobre ele.
3229 “Universitas nihil aliud est nisi singuli homines qui ibi sunt”, dispunha a Glosa ordinária

(Glossa ad D.3,4,7,1). Porém, o direito justinianeu já continha alguns traços que antecipavam a
personalidade coletiva: Digesto, 3,4, Quod cuiuscumque,7,1 e 2 – “si quid universitati debetur singulis
non debetur, nec quod debet universitas singuli debent; in decurionibus vel aliis universitatibus nihil
refert, utrum omnes iidem maneant vel omnes mutati sint”. A personalidade coletiva é, no entanto,
sobretudo promovida pelo direito canónico, a partir da ideia de “corpo místico”, aplicada a igrejas,
mosteiros, abadias, paróquias, confrarias, que assim ganhavam a possibilidade de ser proprietárias,
devedoras, credoras, herdeiras; em suma, de serem titulares de direitos e deveres, como as pessoas
físicas (“collegium in causa universitatis fingatur una persona”), embora se chamasse a atenção para o
caráter ficcional do conceito (“proprie non est persona: tamen hoc est fictum positum pro vero, sicut
ponimus nos iuristae”).
3230 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. "Societas", n. 15. “Socii mercatores

exercentes unum traficum seu apothecam non obligantur in solidum, sed pro rata nisi consuetudo locit
fit in contrarium”, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 143, n. 4, numa consulta que trata dos
vários aspetos da questão dos poderes e responsabilidade dos sócios (v. também a sua consulta n. 98,
per totam). Casuística: podia arrendar casa ou prédio comum, ainda que com oposição do consócio, se
se costumava arrendar, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. "Societas", cit., n. 16; o mesmo
quanto ao cultivo de prédio comum, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 18.
3231 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. "Societas", n. 13. Porém, o fisco, sendo

sócio, podia dispor de toda a coisa comum por privilégio especial, António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., v. "Societas", n. 14.
3232 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. "Societas", n. 21.

3233 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. "Societas", n. 22. Isto valia mesmo para os

sócios gerentes que não fossem procuradores dos outros, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
"Societas", n. 23. Também os sócios de um navio comandado por um terceiro (patrão, capitão)
respondiam cada um pela sua parte, ibid., n. 25; mas os sócios de um negócio gerido por um feitor,
responderiam in solidum (Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons., n. 7).

527
As obrigações.
responsável também in solidum, sendo como que procurador dos outros3234; o mesmo
acontecia se tivessem dividido o negócio por ramos3235. A mesma regra da solidariedade
valia nos banqueiros, cambistas e prestamistas3236. Também os que eram sócios na
administração de coisas públicas (ou no exercício da tutela) respondiam in solidum perante a
república, mas não perante privados3237.
§ 1809. Eram imputáveis à sociedade as negociações em que todos os sócios
interviessem ou que tivessem sido registadas nos livros de contas ou de escrita da
sociedade3238.
§ 1810. Na partilha das despesas, todas as que fossem relativas ao objeto da sociedade
deviam ser imputadas a todos os sócios3239, a não ser que fossem causadas por um deles,
por dolo ou culpa grave3240. Nas sociedades de todos os bens, todas as despesas (mesmo
os dotes das filhas dos sócios) se reputavam da sociedade3241. Os prejuízos fortuitos – como
o furto ou o perecimento marítimo de coisas da sociedade - recaíam sobre a sociedade, a
não ser que tivesse havido negligência de algum dos sócios na geração desses prejuízos3242.
Havia a obrigação de prestação mútua de contas3243.
§ 1811. A sociedade extinguia-se com a morte, natural ou civil de um sócio, não
podendo passar aos herdeiros, pois a sociedade constituía-se em função da indústria de
cada pessoa3244. Porém, havendo mais de dois sócios, a morte de um não extinguia a

3234 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. "Societas", n. 26; Álvaro Valasco, Decisiones

[...], cit., cons. 98, ns. 4 a 7.


3235 “Tratando um da lã e outro dos panos”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.

"Societas", cit., n. 26
3236 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 143, n. 5.

3237 Mas se um pagasse´, tinha ação contra os outros, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit.,

v. "Societas", cit., ns. 27-28, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 98, ns. 7 ss.; a questão dos
poderes e capacidade judicial, ativa e passiva, dos sócios é tratada em Álvaro Valasco, Decisiones [...],
cit., cons. 143 (“An et quando ex pluribus mercatoribus sociis unius funditii, possit agere in solidum
contra debitores ejusdem negotiationibus, seu funditii; et an et quando unus ex sociis rem societatis
alienare, & valeat alienatio”.
3238 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. "Societas", n. 12.

3239 V. Ord. fil.,4,10 e 11. Por exemplo, as despesas com viagens devem ser pagas do acervo

social, António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 110, n. 2


3240 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. "Societas", n. 10. Os sócios estavam

obrigados a ser tão diligentes nas coisas comuns como nas próprias, ibid., n. 5.
3241 Exceto as despesas delituais ou culposas dos sócios, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.,

cons. 118, n. 5 ss.


3242 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 11; porém, António da Gama (Decisiones

[…], cit., dec. 253, n. 1-2) era de opinião que cada sócio respondia pela negligência e pelo risco das
coisas que gerisse).
3243 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. "Societas", n. 20.

3244 V. Ord. fil.,4,44,4. Este caráter “pessoal” da sociedade fazia parte da natureza do contrato.

Por isso é que uma decisão da Casa da Suplicação julgou que a sociedade não continuava nos
herdeiros, mesmo que os sócios originários tivessem disposto o contrário, v. Melchior Febo, Decisiones
[…], dec. 198, n. 1. Esta regra não valia nas sociedades de contratadores de impostos. Ibid, ns. 19-20;
46 a 51.

528
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
sociedade, a não ser que se convencionasse o contrário. Aquela que se constituísse para um
negócio dissolvia-se findo o negócio3245, ou quando os bens sobre que incidia a empresa
comum se perdessem, por exemplo pelo confisco3246.
§ 1812. O contrato de sociedade era – como o de seguro - um dos contratos típicos dos
comerciantes3247.
6.9.2.2.5 Contrato de seguro.
§ 1813. Os contratos aleatórios eram aqueles em que a prestação de uma das partes
dependia de um facto incerto3248, entre eles se computando os de seguro, de empréstimo
náutico, de jogo e apostas e de vendas de coisas futuras.
§ 1814. Pelo contrato de seguro (assecuratio) uma das partes aceitava o risco de
perecimento ou deterioração de uma coisa transportada contra o pagamento de uma certa
quantia (prémio)3249.
§ 1815. Como contrato baseado no consenso, o seguro exigia que as partes fossem
capazes de contratar e permitia a aposição de pactos modificativos que não contrariassem a
natureza do contrato.
§ 1816. O objeto do seguro podiam ser coisas ou pessoas. No transporte, não eram
apenas as coisas transportadas que podiam ser seguradas, mas também o próprio navio3250.
O objeto segurado podia já não existir no momento do seguro, desde que isso não fosse
conhecido do segurado3251.
§ 1817. O facto incerto de que dependia a prestação de uma das partes era um facto
fortuito, que não se podia relacionar com vícios da própria coisa (não podia ser, por exemplo,
a azedia do vinho ou o aparecimento de caruncho na madeira). Podia limitar-se o risco a um

3245 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. "Societas", n. 35.
3246 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. "Societas", n. 35.
3247 Sobre os contratos dos comerciantes, v. Pedro de Santarém, Tractatus de assecurationibus

et sponsionibus mercatorum […]; Miguel B. Salon, Controversiae de iustitia, et iure, atque de


contractibus, et commerciis humanis licitis ac illicitis: […], cit. Historiografia: Carlos Petit, “Del usus
mercatorvm al uso de comercio. Notas y textos sobre la costumbre mercantil”, cit..
3248 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4,3,21.

3249 Fontes: D.22, 1 e 2; C.,4,32-33, Decretales, 5,19; Sextum, 5,5; e Clementinae, 5,5; Part.,

1,6,46; Ord. fil., 4,67. Fontes doutrinais: São Tomás, Summa theologica, 2a.2ae, qu.78; Petrus
Santerna (Pedro de Santarém), Tractatus de assecurationibus et sponsionibus mercatorum […], cit.;
Luís de Molina, Tractatus de iustitia et de iure […], cit., tract. 2., disp. 303 ss.; Fernão Rebelo, Opus de
obligationibus iustitiae, religionis et charitatis [...], cit., p. 2, liv. 8; Pascoal de Melo, Institutiones iuris
civilis [...], cit., 4,3,22. Sobre o tratado de seguros de Pedro de Santarém, Moses Benzabat Amzalak, “O
Tratado de Seguros de Pedro de Santarém”, Anais da Universidade Técnica de Lisboa. Instituto
Superior de Ciências Económicas e Financeiras, vol. 26, t. 2 (1958).
3250 O segurador ficava obrigado pelo seu valor se ele se perdesse totalmente (mas já não se

apenas se danificasse, salvando-se a querena ou corpo da nave, carina manente, corpore exstante),
Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 56, n. 6 e 7.
3251 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons 64, n. 8; presumia-se que não tinha notícia,

sobretudo se o transporte se fazia para paragens longínquas, salvo se intermediasse entre o


perecimento e o seguro um tempo tal que permitisse a chegada de algum aviso, ibid., n. 10; também
António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 181, n.1.

529
As obrigações.
certo tipo de facto fortuito (v.g., perigo de mar, o incêndio, o assalto de piratas, rebaldaria [=
velhacaria] do patrão).
§ 1818. As formalidades e processos dos seguros marítimos em Portugal estavam
estabelecidos nos “Estilos mercantis da Praça de Lisboa, e Reyno de Portugal”3252. Os
seguros eram feitos na Casa dos seguros e o processo corria perante o ouvidor da
alfândega.
§ 1819. O pagamento do prémio não era considerado usurário porque o segurador como
que comprava o risco, que deixava de correr pelo dono da coisa, como seria normal (res perit
domino) para passar a correr pelo segurador3253. O prémio era fixado na convenção ou, em
muitas praças comerciais, nas leis sobre seguros (ver, em Portugal, o alv. 11.8.1791).
6.9.2.2.6 O empréstimo náutico.
§ 1820. O empréstimo náutico (foenus nauticus)3254 era uma espécie de mútuo em que o
mutuante suportava o risco de transporte por mar ou por terra, contra o pagamento, pelo
mutuário, de uma quantia para além do capital mutuado (juros, interesses, usura,
crescimento). O efeito prático era que o devedor (dono da coisa transportada) só pagava ao
credor se a coisa chegasse ao destino sã e salva. Do ponto de vista dogmático este efeito
era explicado dizendo que a propriedade da coisa segurada se transferia para o mutuante
durante o transporte, de modo que recaísse sobre ele o risco do seu perecimento fortuito.
§ 1821. Neste caso, os juros podiam exceder o capital e mesmo os juros lícitos3255, pois
ter-se-ia verificado uma compra do risco.
6.9.2.2.7 O contrato de jogo.
§ 1822. O regime das obrigações contratuais de um contrato de jogo dependiam de o
jogo ser permitido ou proibido.
§ 1823. O jogo era tratado com desconfiança pela teologia moral, de acordo com uma
tradição moral que já vinha do Antigo Testamento. Embora constituísse uma atividade lícita
de recreação do espírito3256, transformava-se normalmente num vício, levando a exageros
(excessus modi), que punham em risca o património e induzia a condutas imorais ou
criminosas (fraudes, roubos, superstição). Isso levava o direito a reprimir aqueles em que o
ganho fosse menos legítimo, por depender exclusivamente ou sobretudo da sorte e do azar,
não protegendo juridicamente os ganhadores e, eventualmente, punindo tais jogos como
crime3257.
§ 1824. Assim, o regime jurídico do jogo era dual. Nos jogos permitidos – em regra, os
que dependiam do engenho dos jogadores e que eram lícitos a leigos ou clérigos -, valiam as
regras de um contrato sob condição incerta3258. Nos jogos proibidos - que eram, por regra

3252Em Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], tomo 5, ad. Ord. fil., 1,51, gl. 4.
3253Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 56, ns. 1-3, 8.
3254 Miguel B. Salon, Controversiae de iustitia, et iure, atque de contractibus, et commerciis

humanis licitis ac illicitis: […], cit.; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4,3,23.
3255 Ord. fil.,4,67,6; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4,3,23.

3256 S. Tomas, Summa […], 2a.2ae, qu. 168, art.3.

3257 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Ludum”, 1.

3258 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Ludum”, 2.

530
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
geral, os de pura sorte, com intuito de lucrar (alearum et azardi, fortunae et infortunae)3259 -, a
proibição era a regra. O direito local (lei, estatutos, costumes) podia alterar esta regra,
nomeadamente permitindo certos jogos; isso aconteceu com tômbolas ou loterias,
nomeadamente a favor de finalidades públicas.
§ 1825. No direito romano, como era desconhecida esta proibição de jogo, o ganhador
tinha uma ação para reclamar o que tivesse ganhado, ao passo que o perdedor não podia
recuperar o que tivesse pago (por uma conditio indebiti; D., 11,5, De aleatoribus, 1, ult.; C.,
11,43, De aleae ludu et aleatoribus). No período do direito comum, o direito castigava os dois
jogadores destes jogos ilícitos: privava o ganhador da ação para reclamar os ganhos, e
também não autorizava o perdedor a repetir o que tivesse pagado. Apenas se tivesse havido
batota no jogo por parte do ganhador (engano, dolus malus), ou se este tivesse incentivado o
perdedor a jogar, ou, finalmente, se as perdas fossem desmedidas, prejudicando a família do
perdedor3260, se protegia o perdedor, permitindo-lhe repetir como indevido o que tivesse
perdido. Há porém notícia de que a prática portuguesa protegia mais o perdedor-devedor,
autorizando-o a repetir o que tivesse pagado3261, mesmo que este tivesse prometido, por um
outro pacto, pagar as suas perdas3262. Pela mesma lógica, não se consideravam válidos os
contratos feitos entre os jogadores no contexto do jogo, por se presumirem dolosos,
encobrindo dívidas de jogo3263.
§ 1826. Os jogos proibidos ainda eram punidos como crime3264. Por direito comum, a
pena era arbitrária, devendo o julgador considerar a qualidade dos jogadores e as quantias
jogadas3265. Também o incitamento ao jogo era punido com a mesma pena3266. As casas
onde se dessem habitualmente jogos públicos (tavolagens) deviam ser confiscadas. Nessas
casas, os injuriados ou roubados não tinham ação para exigir os danos que lhes fossem
causados3267. E o clérigo que mantivesse uma casa de jogo tornava-se indigno de receber
um benefício, para além de dever ser punido com pena arbitrária3268.
§ 1827. As apostas3269 eram permitidas pelo direito romano3270, mas restringidas pelo

3259 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Ludum”, 2.


3260 Levando o devedor a pagar com coisas suas, como joias ou roupas,
3261 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Ludum”, ns. 4 e 6. Esta prerrogativa de

repetir prescrevia por 50 anos; subsidiariamente, o fisco podia pedir a repetição a seu favor da quantia
perdida ao jogo, para a aplicar a bem da utilidade pública, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...],
cit. dec. 88, n. 1. O pai e o senhor podiam repetir somas perdidas pelo escravo ou pelo filho, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Ludum”, 5.
3262 Nem que tivesse havido um compromisso de pagar o que se perdera Gabriel Pereira de

Castro, Decisiones [...], cit. dec. 88, n. 3.


3263 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Ludum”, 6.

3264 V. Ord. fil., 5,82.


3265 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Ludum”, 3.
3266 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Ludum”, n. 7.

3267 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Ludum”, n. 4. Embora esta não fosse a

prática, em Portugal, ibid..


3268 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Ludum”, n. 8.

3269 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4,3,25.

3270 D.11,5, De aleatoribus, 3.

531
As obrigações.
direito comum3271 e proibidas pelo direito português3272, a não ser que o resultado
dependesse do valor, força ou engenho do apostador ou que fossem autorizadas em face de
um interesse público, como as loterias. Incluíam-se nas apostas as lotarias particulares, ou
“panelas de sorte” dos jogadores de feira (“rifas”, “vermelhinha”).
6.9.2.2.8 Compra de esperança ou de coisa futura.
§ 1828. Era licita a compra e venda de coisa futura3273, como compra e venda de algo
que se esperava (em que se tinha esperança que viesse a existir) - uma pescaria, uma
caçada, uma parição, uma colheita. O comprador ficava com uma obrigação firme de pagar o
preço. Mas o vendedor só teria que entregar a coisa se ela efetivamente viesse a existir3274.
Era nisto que o contrato era aleatório, já que a entrega da coisa dependia de um evento
futuro e incerto. O direito português proibia certas vendas de coisas futuras (Ord. fil.,5,76,4),
que podiam ser prejudiciais para os vendedores. Tal era o caso da venda da produção de
trigo futura, em que os lavradores, obrigados pelas premências das despesas de sustento
vendessem de antemão as colheitas. Porém, podiam vender-se os frutos já aparentes ou
pendentes, bem como a seara já crescida e apenas não colhida.
6.9.2.3 Convenções assessórias.
6.9.2.3.1 A fiança.
§ 1829. A garantia das obrigações tinha uma longa e conturbada história no direito
romano3275, onde tinha evoluído de uma coobrigação do fiador a par com o devedor3276 para
uma obrigação do fiador, constante de um pacto3277 que se acrescentava ao do devedor
principal, pelo qual o garante se obrigava ao mesmo e com as mesmas condições,
vinculando os seus herdeiros. Na época pós clássica e justinianeia, estavam estabelecidos
os traços gerais que encontraremos no direito comum, nomeadamente: o caráter acessório
da garantia, que a limitava aos termos e condições da obrigação principal3278; o caráter

3271 V. Luís de Molina, Tractatus de iustitia et de iure, tom. 2, tract. 2, de contractibus, disp. 109.
3272 Ord. fil.,5,82; alv. 16.5.1755, sobre jogos de cartas.
3273 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4,3,26; D.,18,1 De contrahenda emptione,

8,§ 1.
3274 Salvo, claro, se a não produção da coisa lhe fosse imputável por dolo ou culpa, segundo os

princípios gerais.
3275 Os conceitos centrais são os de satisdatio (no direito mais antigo) e intercessio, género de

que a fideiussio é uma espécie.


3276 Por meio de uma dupla promessa sacral (sponsio), em que ambos prometiam, num só ato, a

mesma coisa e se obrigavam como co-devedores (co-rei). Sobre a evolução do direito romano das
garantias, v. Ernst Levy, Sponsio, Fidepromissio, Fideiussio: Einige Grundfragen zum Römischen
Burgschaftsrechte, reimpr., Nabu Press 2013; Reinhard Zimmermann, The Law of Obligations: Roman cit.,
p. 118 ss..
3277 "Quod Maevius mihi debet, id fide tua iubes ?". "Fideiubeo". Este pacto não consistia num

juramento formal como a sponsio, mas antes numa promessa sob invocação da deusa Fides e, por
isso, acessível a não romanos.
3278 "Horum [scl. Fideiussorum] obligatio accessio est principalis obligationis", Inst. Gaii,3,126. O

adjetivo accessorius, porém, foi criado pelos glosadores ("in accessione... id est in accessoria
obligatione").

532
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
solidário, que permitia pedir a cada garante a totalidade da dívida3279; o caráter subsidiário,
que colocava o fiador como um obrigado de último recurso3280.
§ 1830. Para a doutrina do ius commune tardio, fiador (fideiussor) era o que garantia
uma obrigação alheia, mesmo que natural, por uma convenção suplementar, aposta ao
mesmo tempo ou depois da promessa inicial3281. Segundo a etimologia (comprometida com a
dogmática) destes juristas, fideiussio seria de “ordem assente na boa-fé”3282). O fiador
recomendaria ao credor a aceitação da obrigação do devedor principal, comprometendo-se
perante da deusa Fides a assumir os riscos dessa recomendação. Nesta estrutura
imaginada, a fideiussio estava estruturalmente próxima de outras formas de
responsabilização por ordens, como o mandato ou a responsabilização do pater pelos
negócios que tivesse cometido a filhos ou escravos (actiones quod iussum).
§ 1831. O seu regime jurídico assentava nos princípios estabelecidos pelo direito
romano pós clássico e justinianeu (acessoriedade, solidariedade, subsidiariedade), que em
geral se mantinham.
§ 1832. A obrigação do fiador era uma obrigação acessória, não apenas no sentido de
que provinha de uma convenção que se acrescentava à da constituição da dívida original,
mas também no sentido de que não subsistia sem a obrigação principal, nem em termos
mais gravosos do que esta3283. Isto queria dizer várias coisas. A primeira era a de que a
fiança supunha a validade da obrigação principal e não subsistia sem esta. Assim, era válida
a fiança das obrigações de menores, embora estas obrigações fossem naturais (e, por isso,
inexigíveis); mas era preciso que as obrigações originais fossem válidas3284. A segunda era a
de que a obrigação do fiador não podia ser mais gravosa do que a do devedor inicial, nem
quanto ao seu objeto, nem quanto ao seu modo ou circunstâncias3285. Discutia-se, por
exemplo, se a obrigação do fiador subsistia se o prazo da obrigação fosse prorrogado,
estendendo a obrigação do fiador para além do período temporal inicial. A generalidade dos
autores desonerava o fiador neste caso, ou porque a prorrogação configurava uma novação
da obrigação inicial3286, ou – numa argumentação menos conceitual – porque o alargamento
do prazo da dívida originava um ónus maior para o fiador3287. Em todo o caso, admitia-se –
como se viu - a garantia por fiança de uma obrigação natural e, com isto, concedia-se ao

3279 "[...] inter sponsores [...] lex Appuleia quondam societatem introduxitr", Inst Gaii, 3,122.
3280 C.,8,40,28). ("[creditor] veniat primum ad eum qui [...] debitum, [...] contraxit" (beneficium
excussionis vel ordinis).
3281 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Fideiussio”, n. 1; Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 28. Fonte: D.,45,1 de verborum obligationibus,1,4.
3282 “Fideiussor dicitur a bona fide iubendo”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.

“Fideiussio”, n. 1.
3283 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 131, n. 12 (a fiança é uma convenção acessória,

nunca principal).
3284 A obrigação do fiador era exigível pelo credor. E também era exigível a obrigação do menor

ou escravo de restituir ao fiador o que ele tivesse pago (António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Fideiussio”, n. 4 e 5).
3285 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Fideiussio”, ns. 2 a 5.

3286 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Fideiussio”, n. 20.

3287 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 132, ns. 15-16.

533
As obrigações.
credor uma ação contra o fiador, ainda que ele não a tivesse contra o devedor original3288.
Uma terceira consequência da subsidiariedade era a de que competiam ao fiador todas as
ações e exceções que competiriam ao devedor principal. Assim, o fiador gozava da ação por
lesão que competisse ao devedor3289, o mesmo se valendo para qualquer ação ou causa de
extinção que competisse ao devedor principal (v.g., prescrição)3290.
§ 1833. A obrigação dos fiadores, quando fossem vários, era solidária3291, respondendo
cada um deles por toda a dívida garantida, sem o benefício da divisão, mas sendo atribuídas
ao que pagasse as ações necessárias para efetivar contra os outros (e contra o devedor
principal3292) o seu direito de regresso pelo que houvesse pago3293. Este regime estava
consagrado nas Ordenações filipinas que, aqui, contrariavam o direito comum (Ord.
fil.,4,59)3294.
§ 1834. Por fim, a obrigação do fiador era subsidiária, não podendo ser acionado o fiador
sem que, previamente, o pagamento tivesse sido exigido ao devedor principal3295. A isto se
chamava o benefício da excussão ou da ordem, consagrado nas Ordenações (Ord. fil.,4,59,
pr.; Ord. fil.,4,3,pr.)3296. Era tão efetivo que a sentença condenatória do fiador era título
executivo contra o devedor3297; o fiador podia nomear à penhora os bens do devedor,

3288 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Fideiussio”, n. 6. Ou seja, se garantisse um
empréstimo de dinheiro a um menor, o fiador não se podia valer da exceptio Sanatusconsulti
Macedoniani, a qual, porém, aproveitava ao devedor principal (menor).
3289 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit. dec. 162, n. 5.

3290 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Fideiussio”, n. 7; Gabriel Pereira de Castro,

Decisiones [...], cit., dec. 17, n. 15. Mas não pode usar de uma restitutio in integrum ob aetatem, que
competisse ao devedor menor (cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Fideiussio”, n. 6).
3291 Este fora o regime originário da fiança no direito romano, pois o garante ou se obrigava na

mesma promessa com o devedor ou assumia para si tudo aquilo que ele devesse. Isto também
correspondia ao interesse do credor, pois ele não podia facilmente saber quantos eram os fiadores, de
modo a poder acioná-los pro rata.
3292 Para isso, o fiador podia obrigar o credor a transferir para ele as ações que tivesse contra o

devedor, para exigir deste o principal e os juros, com as eventuais garantias reais que tivesse, v. Bento
Pereira, Promptuarium [...], cit. n. 677; Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 180, ns. 6 e 9. Outros
autores atribuem ao fiador uma ação de mandato contra o devedor principal, que, assim, era
equiparado ao mandante nas obrigações que este tinha de ressarcir o mandatário pelas despesas que
este tivesse tido em função do mandato (Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit.., p. 1, d. 122, n. 1);
outos, preferiam falar de uma ação semelhante à do gestor de negócios (Pascoal de Melo, Institutiones
iuris civilis [...], cit., 4,3,38).
3293 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Fideiussio”, n. 14.

3294 E modificavam neste ponto o que antes estava estabelecido nas Afonsinas (Ord. af.,4,54); cf.

Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4,3,28.


3295 No direito romano clássico, o credor podia dirigir-se, indiferentemente, conta o devedor

principal ou contra o fiador. Mas isto originava um risco, em virtude da regra processual de que não
podia haver duas ações sobre a mesma obrigação (non bis in idem). Como as obrigações do devedor
principal e do fiador ou eram a mesma (unus actus) ou versavam sobre o mesmo, a ação contra um
(desde que ultrapassasse a fase da litis contestatio) precludia a ação contra o outro.
3296 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Fideiussio”, n. 15; António da Gama,

Decisiones [...], cit., dec. 379, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4,3,28.
3297 Conforme fora julgado na Casa da Suplicação, segundo Melchior Febo, Decisiones […], cit.,

dec. 180, n. 8.

534
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
prosseguindo a ação contra ele à sua custa3298. Casos havia em que este benefício não
funcionava. Não funcionava, naturalmente, se o devedor principal não pudesse pagar ou
estivesse ausente3299. Depois, cessava quando o fiador se tivesse obrigado como devedor
principal, pois isto equivalia a renunciar ao referido privilégio3300. Ou quando o fiador não o
invocasse como meio de defesa (exceção dilatória) antes da litis contestatio3301. Finalmente,
não havia subsidiariedade se a fiança era contratada entre comerciantes3302.
§ 1835. Podia dar fiança todo aquele que pudesse obrigar-se e dispor dos seus bens3303.
§ 1836. Porém, as mulheres que garantissem dívidas de outrem (de outros homens)
dispunham da exceptio Senatusconsulti Velleiani3304. Este Senatusconsulto tinha proibido as
mulheres de prestarem garantias (intercedere), já que, devido à sua fragilidade e
imprudência, facilmente seriam seduzidas ou enganadas por devedores sem credibilidade.
Isto aplicava-se, mesmo se o homem era o marido, pois este ainda seduziria mais facilmente
a pobre mulher. E, também, mesmo que a mulher renovasse a fiança passado um tempo
razoável para possibilitar uma melhor reflexão (dois anos). Embora a responsabilização da
mulher pudesse gerar, como ato de vontade, uma obrigação natural, o direito civil teria
afastado este efeito, pelo que nem naturalmente a mulher ficaria obrigada. O benefício do
Velleiano cessava sempre que: (i) a mulher tivesse exigido uma quantia pela prestação da
fiança, pois isto provava que não era ingénua3305; (ii) a mulher se tivesse feito passar por
homem3306; (iii) se garantisse a manumissão de um escravo ou o pagamento de um dote3307;
(iv) se a mulher fosse nobre e desempenhasse algum cargo de autoridade ou jurisdição3308;
(v) se a mulher fosse comerciante, pois nessa qualidade de mulheres não era de presumir a
imprudência e fragilidade. O direito comum admitia ainda que a mulher não se pudesse valer
desta exceção se tivesse renunciado a ela. Mas o direito português não admitia esta
renúncia, pois valeria para a renúncia a mesma consideração sobre a fraqueza das mulheres
que valia para a fiança3309.

3298 V. Ord. fil.,4,59,pr.; Cf. Manuel Barbosa, Remissiones […], a esta Ord. n. 3; Manuel Álvares

Pegas, Commentaria […], t. 12, ad 2,52,9, 18 ss.).


3299 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Fideiussio”, n. 16. O mesmo acontecia se a

obrigação principal fosse inexigível, como no caso das obrigações naturas (Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis [...], cit., 4,3,28).
3300 V. Ord. fil.,4,59,2; Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit. dec 185, n. 1; António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Fideiussio”, n. 16. Também não aproveitava a quem negasse
dolosamente ser fiador (Ord. fil.,4,59,1).
3301 Conforme Ord. fil., 3,49, 2.

3302 Segundo Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4,3,28.

3303 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Fideiussio”, n. 8; Álvaro Valasco,

Allegationes […], cit., all. 57, n. 1.


3304 V. Ord. fil.,4,6; cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4,3,29.

3305 V. Ord. fil.,4,61, 4 a 6.

3306 V. Ord. fil.,4,61,3.


3307 Ord. fil.,4,61,1 e 2; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Fideiussio”, n. 9.
3308 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4,3,29.

3309 V. Ord. fil.,4,61,6 e 9-10; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Fideiussio”, n. 9.

535
As obrigações.
§ 1837. O clérigo não devia garantir o leigo; mas, se o fizesse, ficava obrigado3310. ´De
resto, a identidade, qualidade e fiabilidade do fiador dependiam dos critérios do credor, que
não se poderia, mais tarde, queixar da sua má escolha.
§ 1838. A fiança podia ser dada em troco de uma remuneração3311.
§ 1839. A obrigação do fiador subsistia enquanto a dívida não fosse paga, a não ser que
se convencionasse um certo prazo para a garantia3312. O fiador não se podia livrar se não
excecionalmente3313 (por exemplo, se o devedor se tivesse ausentado para partes
longínquas ou remotas, onde fosse difícil acioná-lo para pagamento ou para regresso)3314. A
obrigação de garantir a dívida transmitia-se aos herdeiros do fiador, que por ela respondiam
conjuntamente (unusquisque pro sua parte), ao contrário do que acontecia com os
cofiadores3315.
§ 1840. O garante não ficava obrigado à prestação estrita prometida pelo devedor
principal3316, respondendo apenas pelo valor em que ela fosse avaliada (pelo interesse)3317.
§ 1841. Diferente da fiança era a garantia prestada por aqueles que se obrigassem
conjuntamente com o devedor principal (correi)3318. Tinham regresso por meio de uma ação
de gestão de negócios3319. Esta responsabilidade correal contraía-se por pacto anexo ao do
devedor principal.
§ 1842. Também se podia criar uma obrigação de garantia, mandando a alguém uma
carta com instruções de entregar a outrem uma coisa ou quantia3320. Mas a carta tinha que
conter uma ordem formal (iussum) de entregar por conta e risco do remetente (sua fide et
periculo), não bastando uma recomendação ou um pedido, nem uma carta abonatória da
fiabilidade daquele pretendia tornar-se devedor3321. Na verdade, tratava-se de uma situação
próxima daquela de quem encarregava outrem de um negócio e que, perante terceiros,
ficava responsável pelas obrigações do encarregado no âmbito desse negócio (por ações do

3310 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Fideiussio”, n. 10. Já o fiador leigo de clérigo
deveria responder perante o foro secular, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Fideiussio”, n.
11.
3311 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 18, n. 2.

3312 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 20, n. 4.


3313 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., dec. 36, ns. 1 e 2.
3314 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Fideiussio”, n. 21.

3315 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Fideiussio”, n. 22.

3316 Não era, de todo, obrigado a cumprir, como fiador, obrigações torpes ou imorais, António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Fideiussio”, n. 26.


3317 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit. dec. 64, n. 2.

3318 Cf. I.,3,16. De duobus reis stipulandi et promittendi; Ord. fil.,4,59,4; Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit. 4,3,30.


3319 D.12, 1, De rebus creditis, 32.

3320 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Fideiussio”, n. 24; Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 4,31.


3321 O que aconselhasse a conceder crédito a um pobre dizendo que ele era rico respondia pelo

mau conselho e, se tivesse aceitado dinheiro do devedor para o abonar, era obrigado pelo actio furtiva,
cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Creditor”, n. 15.

536
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
tipo quod iussu3322)3323.
§ 1843. Além de obrigações creditícias, havia outros comportamentos que podiam ser
garantidos por fiança. Era o caso das comparências em juízo, garantidas por fiadores
judiciais3324.
§ 1844. O regime destas fianças acompanha de perto o das anteriores: o fiador livrava-
se com a apresentação do garantido (normalmente, o réu) em juízo3325; a subsidiariedade da
obrigação fazia com que a fiança caducasse se o réu fosse preso3326. Também estas fianças
não podiam ser prorrogadas e, assim, a fiança dada para a primeira instância não se
prorrogava à segunda3327
§ 1845. A exigência de fiadores, nestes casos, decorria da lei, cabendo ao juiz avaliar da
sua necessidade e suficiência. Numa sociedade dominada pelas ideias de honra e de
pundonor, a exigência de fiadores implicava um juízo negativo sobre a pessoa sobre quem
recaía a obrigação, já que se suspeitava ou da sua capacidade (patrimonial) para cumprir ou
da sua fiabilidade moral. Daí que, para alguns autores, a exigência injustificada de fiadores
ou a sua recusa como inadequados podia configurar injúrias e disparar as consequentes
ações por parte dos injuriados. A doutrina tinha fixado algumas regras sobre a necessidade e
suficiência das fianças. Assim, a pessoa com bens e idónea3328 não era obrigada a dar
fiador3329; uma pessoa honesta e cumpridora, ainda que pobre, não tinha que dar fiador3330;
os poderosos, os quezilentos, os advogados cavilosos e, em geral, todos aqueles que
fossem difíceis de trazer a juízo ou de executar nos seus bens, não eram suficientes como
fiadores3331; o fiador devia ser da mesma província que o réu3332; podia reformar-se a fiança,
pedindo novo fiador, se o inicial se tivesse tornado não idóneo3333.
6.9.2.3.2 O penhor e a hipoteca.
§ 1846. O penhor ou contrato penhoratício era um pacto acessório pelo qual era
designada uma coisa especial ou todos os bens em geral para que o credor sobre eles

3322 Para as relações entre o mandante-fiador e o mandatário-devedor principal existiam as ações

directa e reversa de mandato.


3323 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4,3,32.

3324A doutrina designava este tipo de fianças por fideiussio in sisti, isto é, garantia de que alguém
comparece (sisto, sistere, stiti, statum, estar [de pé], aparecer; cf. to stand,stehen).
3325 Realmente, com a primeira apresentação, Melchior Febo, Decisiones […], cit., 194, n. 12;

mesmo que se tivesse comprometido a comparecer as vezes que fosse preciso, o fiador livrava-se com
uma primeira apresentação perante aquele juiz ou tribunal, ibid., 19.
3326 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 131, n. 6.

3327Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit. dec. 109, n.3.
3328 Era idóneo quem tinha bens imóveis (ou móveis que não pudessem ser facilmente
sonegados, como um rebanho, um estabelecimento na praça) suficientes para cobrir a dívida, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Fideiussio”, n. 31.
3329 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Fideiussio”, n. 29.

3330 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Fideiussio”, ns., 29 ss..
3331 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Fideiussio”, n. 31.
3332 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec 17, n.1.

3333 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Fideiussio”, n. 32.

537
As obrigações.
tivesse direitos preferenciais de execução de modo a aumentar a segurança de que uma
obrigação (principal) seria cumprida3334. Como pacto acessório, pressupunha a existência do
pacto principal, dando origem a uma ação3335 (actio pigneraticia ou hypothecaria) que ficava
na disponibilidade do credor, a par da ação que lhe competisse em razão do crédito principal
(actio personalis).
§ 1847. A distinção entre penhor e hipoteca relacionava-se com o facto de a coisa dada
em garantia passar (penhor) ou não (hipoteca) para a posse do credor3336.
Independentemente da tradição da coisa, o credor adquiria um direito real sobre a coisa, que
lhe permitia persegui-la mesmo nas mãos de um terceiro, embora não fosse título bastante
para adquirir por usucapião a coisa empenhada3337. A coisa empenhada transitava para o
credor com todos os seus ónus3338.
§ 1848. A constituição deste direito real, que se limitava a dar ao credor direitos
especiais de execução, não era aparente. Quando a coisa era entregue ao credor, ele
passava a possui-la e isso era um sinal, embora ambíguo ( pois não era aparente o título de
posse) de que a propriedade plena já não estava no seu dono originário, o devedor, e isso
poderia alertar quem a quisesse adquirir. Mas se a coisa nem sequer era entregue, como
aconteceria frequentemente nas coisas imóveis, o direito real de garantia do credor ficava
oculto, podendo ocasionar uma incómoda surpresa para quem adquirisse do devedor o bem
sujeito a penhor. Este foi um contínuo problema das hipotecas, origem de uma certa
instabilidade no mercado fundiário, que só virá a ser resolvido com a criação do registo
predial, já no séc. XIX3339.
§ 1849. De ambos os contratos, independentemente, portanto, da tradição da coisa dada
em garantia, nascia uma mesma ação para reclamar a coisa a quem quer que a tivesse – a
ação hipotecária3340. Tratava-se de uma ação real, pois se incorporava no estatuto jurídico da
coisa e a perseguia mesmo na mão de terceiro adquirente3341. Esta ação não precludia o uso

3334 “Est accessorium quoddam inductum ad maiorem securitates actus alterius, seu obligationis

principalis, actu principali manente in sua natura”, Miguel Reinoso, Observationes […], cit., obs. 61, n.
4; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,14,1)
3335 Cf. Miguel Reinoso, Observationes […], cit., 61, ns. 5 e 7.

3336 I.,4,6 De actionibus, 7; D.20, 1 De pignoribus, 17;“Pignus dicitur a pugno, quoniam res, quae

pignori dantur manu traduntur, et proprie constituitur in re mobili improprie tamen in re immobili [...]
pignus transit ad creditorem, hypotheca vero non transit, sed nuda convencione remanet obligata”,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Pignus”, n. 1
3337 Um terceiro podia adquiri-la por usucapião; mas, claro, onerada com o penhor, António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Pignus”, n. 24.


3338 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.. cons. 186, n. 4.

3339 Ainda em 1845, Manuel António Coelho da Rocha (instituições […], II, Nota DD ao § 633) se

queixava de que a complexidade do direito das hipotecas, nomeadamente por causa do caráter
obscuro dos direitos que elas geravam, bem como da incerteza na precedência dos créditos
hipotecários no concurso de credores. “Este artigo é dos mais importantes da jurisprudência, não só
pelos grandes interesses, que continuamente se debatem em taes questões, como pela influencia, que
a legislação relativa a estes objectos exerce sobre o gyro dos capitaes, e por tanto sobre o crédito e
economia publica”.
3340 “Hypotheca habere ius in re, et potest rem ipsam prosequi, in quemcumque transeat

possessorem”, Miguel Reinoso, Observationes […], cit., obs. 61, n. 8; v. Ord. fil.,4,3,pr.; 10,1
3341 Para além da actio pignoratitia, o credor gozava ainda de outras ações que competissem ao

538
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
da ação pessoal do credor contra o devedor, fundada na obrigação principal.
§ 1850. Já no direito romano justinianeu, não havia uma diferença prática entre penhor e
hipoteca, pois ambos os contratos permitiam o uso da actio pigneraticia3342
§ 1851. O direito real adquirido pelo credor penhoratício/hipotecário não prejudicava o
domínio direto sobre a coisa, que continuava no devedor (Ord. fil.,4,10,1)3343.
§ 1852. De acordo com o facto que lhe dava origem, o penhor podia ser convencional,
judicial, testamentário ou legal.
§ 1853. Penhor convencional ou voluntário era o constituído por contrato inter-vivos,
acompanhado ou não da tradição da coisa, com já se viu. O penhor judicial era o que, no
âmbito de uma ação, fosse ordenado pelo juiz sobre o património do devedor a fim de que se
procedesse à execução patrimonial ou se garantisse o pagamento das custas3344. Penhor
testamentário era o constituído em testamento para garantir obrigações nele estabelecidas,
como, por exemplo, a de cumprir os legados3345.
§ 1854. O penhor legal existia quando o direito afetava em especial certos bens à
garantia de um crédito, atribuindo ao credor um direito de prioridade na execução desses
bens ou concedendo-lhe mesmo o poder de os reter enquanto a dívida não fosse paga.
Estes direitos penhoratícios eram concedidos: (i) ao senhorio de prédio para cobrar as
rendas, sobre os frutos do prédio rústico ou os móveis de prédio urbano3346; (ii) à mulher
casada com dote, para a prestação dos bens dotais, sobre o património do pai dela3347; (iii)
ao credor de empréstimo para construção ou reparação de edifício, sobre esse edifício3348;
(iv) à Fazenda Real, nos bens dos seus devedores3349 ou sobre os bens dos rendeiros de
rendas reais e contratadores fiscais, por dívidas ao fisco, ou ainda sobre os bens dos chefes
militares (primipili) para se compensar de uma má administração militar3350); (v) à Igreja, para
se ressarcir da má gestão dos bispos, sobre os bens pessoais destes3351; (vi) aos pupilos,
para serem indemnizados por má administração da tutela, sobre os bens dos tutores3352; (vii)
aos legatários, sobre os bens da herança, para garantir o cumprimento dos legados3353; (viii)

possuidor legítimo de uma coisa, como a actio furtiva, para recuperar uma coisa penhorada que lhe
tivesse sido roubada, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Pignus”, n. 21.
3342 Cf. I., 4, 6 De actionibus, 7; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,14,1.

3343 No direito germânico o domínio transmitia-se, pelo que o penhor era semelhante a uma venda

com pacto de retrovendendo.


3344 Ord. fil.,3,86; cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,14,7.

3345 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,14,8.

3346 Cf. CL. 20.6.1774; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Pignus”, n. 5; Pascoal de

Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,14,10.


3347 Cf. D.20.2 In quibus causis pignus vel hypotheca tacite contrahitur.

3348 Em idênticas circunstância, mas relativas a arroteamento ou compra de prédio rústico, ou

construção ou reparação de navio para fábrica de navio; v. CL. 20.6.1774; cf. Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,14,10.
3349 Ord. fil.,2,52,5 a 7.

3350 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Pignus”, n. 5.


3351 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Pignus”, n. 5.
3352 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Pignus”, n. 5.

3353 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Pignus”, n. 5.

539
As obrigações.
aos titulares de direitos a alimentos, sobre os bens de quem os devesse prestar3354; (ix) ao
capitão do navio, sobre as coisas transportadas, para se pagar do frete3355; mas não ao
devedor de um negócio usurário, para obter do credor a restituição dos juros indevidos3356.
§ 1855. Já na segunda metade do séc. XVIII, Pascoal de Melo destaca uma nova
classificação do penhor, assente na fiabilidade do documento que documentava a sua
convenção3357. Aparentemente o que agora estava principalmente em causa – e que
determinava uma boa parte do regime jurídico do penhor, nomeadamente a hierarquia no
concurso de credores e a sua oponibilidade a terceiros – era a publicidade e fiabilidade do
título de constituição. Esta nova classificação decorria da CL de 20.6.1774, que revogara a
ordenação que regulava o concurso de credores no caso de penhor (Ord. fil.,3,91,pr.).
§ 1856. O penhor3358 podia ser geral, se se nomeavam todos os bens para a garantia da
dívida, atribuindo a esse credor, a mais da garantia geral que consistia na possibilidade
executar o património do devedor no caso de incumprimento, ainda o direito de perseguir os
bens do devedor mesmo se este os alienasse3359. Na universalidade dos bens do devedor
cabiam os seus bens móveis, os imóveis bem como outros seus direitos (nomina
creditorum)3360 3361. Ou podia ser especial, se se nomeava uma certa coisa como
particularmente obrigada à satisfação do credor3362.
§ 1857. Existindo a favor do mesmo credor os dois tipos de penhor, este devia
satisfazer-se prioritariamente pelo penhor especial e, só na insuficiência deste podia
executar o resto do património do devedor3363.
§ 1858. Podiam ser objeto de penhor (geral ou especial) todas as coisas que estivessem
no comércio. Daí que não pudessem ser dadas em penhor ou penhoradas judicialmente: o
homem livre3364; os vasos, livros, ornamentos sagrados ou eclesiásticos3365; os bens que não
pudessem ser alienados, como os de morgado ou de capelas3366; os bens dotais3367.

3354 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit. dec. 63,n. 4.
3355 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 330, n. 1.
3356 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit. dec. 271, n. 1.
3357 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,14,9.
3358 Seguidamente, usa-se a palavra penhor para designar genericamente qualquer das duas

garantias reais.
3359 O penhor geral compreendia todas as coisas existentes no momento da convenção

penhoratícia, bem como as que adquirissem de novo, existindo no património do devedor no momento
da ação penhoratícia: Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit. dec. 23, n. 4.
3360 D.42,1 De re judicata, 15,2; Ord. fil.,3,86,7-

3361 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit. dec. 23, n. 4.

3362 Ord. fil.,4,9,pr.; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,14,4.

3363 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit. dec. 23, ns. 1 e 2; Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,14,4.


3364 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Pignus”, n. 4; era punido com o exílio quem

o aceitasse como penhor.


3365 V. Ord. fil.,2,24; “Nisi justissima causa urgente”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.

“Pignus”, n. 3.
3366 Mas sim nas servidões pessoais, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Pignus”, n. 2.

3367 Mesmo que a mulher consentisse, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Pignus”, n.

540
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 1859. Para além disso, não se aceitava ou permitia a penhora das coisas essenciais à
vida quotidiana: vestidos, armas e camas, cavalos de fidalgos, cavaleiros e
desembargadores que não tivessem outros bens3368; esta impenhorabilidade foi estendida
pela doutrina mais tardia aos bois, arados, armas e vestidos de plebeus, se estes tivessem
outros bens3369.
§ 1860. Podiam convencionar a constituição de penhor todos aqueles que pudessem
alienar os bens penhorados3370. Isto excluía, em princípio, a entrega em penhor de bens
alheios3371 ou sujeitos a algum tipo de compropriedade ou divisão do domínio. Assim, eram
absolutamente impenhoráveis os bens dotais, ainda que e mulher consentisse; os bens
vinculados a morgado ou a capelas; os bens da coroa; as mercês reais (como juros, tenças,
assentamentos e moradias, Ord. fil.,4,55); os ofícios da justiça ou da fazenda3372; dos
ordenados dos juízes e seus oficiais3373, ou porque estes não eram do donatário ou por
causa da dignidade pública a que estes bens estivessem ligados (um pouco como nas coisas
sagradas). Relativamente impossível era o penhor dos bens comuns ou próprias da mulher,
que não valia sem consentimento desta3374; o das coisas dos pupilos, que não valia sem
autorização dos tutores ou do juiz3375; o do domínio enfitêutico útil, que não valia sem
autorização do senhorio (Ord. fil.,4,38,pr. e 1)3376.
§ 1861. Também não se podiam penhorar coisas litigiosas3377.
§ 1862. Do penhor nascia um direito real contra quem quer que fosse que tivesse a
coisa penhorada, que se fazia valer pela ação hipotecária (actio hypothecaria3378). Dirigida ao
devedor, pedia, em alternativa, o pagamento ou entrega da coisa para execução (Ord.
fil.,4,3,pr.). Em relação a um terceiro, que estivessem na posse da coisa, a actio
hypothecaria supunha a prévia execução do património do devedor sem resultados
suficientes para a satisfação do credor. O credor podia reclamar apenas a entrega da coisa,
mas não o cumprimento da obrigação, porque este terceiro não era devedor. Por sua vez, o

2.
3368 V. Ord. fil.,3,86,23; "Determinou-se que o leito de um cavaleiro fidalgo não era dos bens do

seu uso, e que se fizesse penhora nelle, e isso porque foi achado sem estar nele a cama, Melchior
Febo, Decisiones […], cit., p. 1. ar. 64.
3369 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,14,11.

3370 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Pignus”, n. 2.

3371 Porém, a doutrina admitia-a no caso de o dono a autorizar, António da Gama, Decisiones [...],

cit. dec. 321, n. 1 e 2.


3372 Cf. decr. 26.6.1688.

3373 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4,13,11.


3374 Mas valia se o penhor fosse estabelecido por lei, cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., d.
319.
3375 V. Ord. fil.,1,88,25 e 26; Ord. fil.,3,41 e 42; Ord. fil.,4,102 e 103.
Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.. cons. 186, n. 2.
3376

Ord. fil.,4,10,3,3; António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 199, n. 2.


3377

3378 V. Ord. fil.,4,10,1. A actio hypothecaria substituíra, no direito romano, as ações Serviana e

Quasi Serviana. A primeira era dada ao senhorio de um prédio rústico, para pedir as coisas que,
expressa ou tacitamente, garantiam a renda; a segunda era dada ao credor para pedir a coisa
penhorada (I., 4.6 De actionibus, 7).

541
As obrigações.
terceiro podia livrar-se pagando, em vez de devolver a coisa3379. Como ação hipotecária
coexistia com a ação pessoal, o credor pode preferir esta última, se o penhor não lhe parecer
bastante3380. Pelo direito português, a actio hypothecaria podia ser intentada num prazo de
10 anos sobre a data da constituição do penhor3381
§ 1863. No caso de concurso de credores, os credores penhoratícios tinham preferência
sobre os credores simples3382, pois estes dispunham de um direito real sobre a coisa
(D.,50,17,25)3383. A precedência dos credores privilegiados era matéria complicada e incerta.
Os juristas portugueses seiscentistas tinham-na simplificado, adotando como regra
generalíssima a regra da antiguidade, preferindo os penhores mais antigos aos mais
recentes, independentemente de se tratar de penhores gerais ou especiais3384 ou de se tratar
de penhor (com tradição da coisa) ou de hipoteca (sem tradição)3385. Esta regra aplicava-se
mesmo em concorrência com o fisco3386. Exceção era o caso de o credor mais antigo ter
consentido na sua preterição ou, devidamente citado para a execução não tivesse
comparecido ou não se tivesse oposto3387; ou o caso de credores pelas dívidas de doença do
de cujus ou do seu funeral3388
§ 1864. Tudo isto foi muito modificado pela carta de lei de 20.6.17743389. Esta lei atribuía
ao penhor/hipoteca constituído por escritura pública efeitos mais fortes, nomeadamente no
concurso de credores. De acordo com o novo regime, o penhor/hipoteca convencionado por
escritura pública preferia o penhor formalizado por um escrito particular3390, apenas cedendo
face ao penhor legal3391. Quanto aos credores não penhoratícios, valia a regra da qualidade
do título de dívida (escritura pública, escrito de fidalgo ou de comerciante, sendo irrelevantes
haver ou não escrito de menor qualidade, por estes não oferecerem qualquer fiabilidade) e,
depois, a precedência temporal da dívida. Mesmo assim, a matéria seguiu sendo conturbada

3379 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 99, n. 3 a 5.


3380 Mas então perde a qualidade de credor privilegiado, António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., v. “Pignus”, n. 15.
3381 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 21, n. 5.

3382 Entre os credores simples, tinha prioridade o primeiro que tivesse cobrado, desde que não

tivesse usado de violência na cobrança, pois se entendia que nenhum deles podia ser prejudicado pela
negligência dos outros, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Creditor”, n. 19.
3383 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Pignus”, n. 6.

3384 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit. dec. 23, ns. 1 e 2.

3385 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Pignus”, n. 6 e 26 (“A hipoteca geral anterior

prefere à hipoteca especial posterior, pois, quando vários concorrem com títulos diversos, o primeiro no
tempo é o primeiro no direito”); Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 107, n. 1.
3386 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Creditor, n. 17. Porém, a VL de 22.12.1761

reavivou a preferência da Fazenda Real (tit. 3, § 14).


3387 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Creditor”, n. 18.

3388 Manuel Mendes de Castro, Remissiones […], cit., liv. 3, p. 2, cap. 21, n. 178 e p. 1, liv. 3, cap.

21, n. 78.
3389 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,14,14.

3390 Entre os do mesmo tipo, vigorava a anterior regra da prioridade temporal, Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 4,13,12.


3391 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,4,13. Entre os penhores legais, preferia o

mais antigo, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,14,13.

542
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
até ao Código civil3392.
§ 1865. O penhor visava assegurar a satisfação do credor pela venda da coisa
penhorada. O direito romano não estabelecia as formalidades da venda, embora se
determinasse que a venda só podia ter lugar, nada estando convencionado, estando devedor
em mora e sendo notificado para pagar. Se fosse antecipadamente convencionada a venda,
não havendo pagamento até certa data (ou findo certo prazo) (addictio in diem), o vendedor
devia, mesmo assim, notificar o devedor antes de se proceder à venda3393. Se se tivesse
convencionado que as coisas penhoradas não podiam ser vendidas, este pacto tinha que ser
reduzido, de modo a não frustrar a garantia do credor. Então, autorizava-se a venda, mas só
após três notificações mediadas por um intervalo que, na prática portuguesa, era de um
dia3394 decorrido certo prazo sem pagamento (substituível por uma citação perante o juiz e
um mandato deste para que pagasse)3395. A venda, que devia ser feita em hasta pública,
para garantir um preço justo3396, tinha que ser notificada aos credores penhoratícios
(eventualmente por pregão), para que comparecessem, declarando e confrontando os seus
créditos e direitos sobre os bens vendidos3397. A sua não comparência significava desistência
dos seus direitos privilegiados. A venda devia começar pelos móveis, só depois se vendendo
os imóveis e restantes ativos (nomina debitorum); não se devia vender uma coisa valiosa
para cobrir um débito pequeno, a não ser que não se encontrasse outra facilmente
vendável3398.
§ 1866. Eram permitidos pactos (ou condições) no penhor, desde que não alterassem a
natureza deste3399. Destes pactos, alguns eram comuns. Era o caso do pacto de anticrese,
convencionando que o credor pudesse usar da coisa ou colher os seus frutos, desde que a
estimação deste uso não excedesse os juros legítimos e com a condição de entregar ao
devedor ou descontar na dívida os frutos excedentes (Ord. fil.,4,67,4). O pacto de anticrese
encobria um empréstimo com juros (para além da garantia real do penhor) e facilmente podia
degenerar negócio usurário. Outro pacto era o da addictio in diem, convencionando a venda
da coisa se não se pagasse a dívida garantida dentro de certo prazo (Ord. fil.,4,56)3400. Mas
não se podia apor o chamado pactum commisorium (pacto comissório), convencionando a
pura entrega da coisa ao credor, se a dívida não fosse paga, porque isto podia prejudicar

3392 Cf. Manuel António Coelho da Rocha, Instituições […], cit., II, Notas DD e EE.
3393 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Pignus”, n. n. n. n. 8.
3394 “Non una vice, videlicet ‘Solve, solve, iterum solve’” [a não apenas uma vez, como “Paga,

paga, e, de novo, paga”), António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Pignus”, n. 8.
3395 No direito romano, três notificações, espaçadas de dois anos (C.,8,27 De distractione

pignorum, 3,2; I., 2,8 Quibus alienare licet, 1); receção do direito português, em Ord. fil.,3,78,7).
3396 Ord. fil., 4,57; António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 199; Pascoal de Melo, Institutiones

iuris civilis [...], cit., 3,14,18.


3397 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Pignus”, n. 12.

3398 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Pignus”, ns. 13-14; de outro modo, a venda
era nula António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 199, n.1.
3399 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,14,19. Um exemplo de pacto impossível

era o de que a coisa não fosse vendida a favor do credor, pelo que, sendo aposto, tinha que ser
reduzido.
3400 Podia convencionar-se a venda por justo preço a arbitrar pelo juiz ou homem bom, decorrido

certo tempo, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Pignus”, n. 7.

543
As obrigações.
uma avaliação justa da coisa e configuraria, normalmente, um negócio usurário, pois, por
regra, a coisa valia mais do que o montante garantido3401.
§ 1867. Enquanto se mantivesse o penhor, o credor penhoratício respondia danos ou
perda por culpa e dolo, mas não pelo risco3402.
§ 1868. O penhor terminava3403 com o pagamento da dívida3404, com a desistência (por
remissão ou por resgate pelo devedor) do credor3405, com o fim do prazo por que fora
constituído, com a perda da coisa imputável ao credor, com a venda da coisa com pelo
credor3406 ou pelo devedor com o conhecimento do credor3407. Também se extinguia por
caducidade3408.
§ 1869. O penhor era também, como se disse, uma das fases da execução judicial –
penhora (v. cap. 7.1.11).
6.10 Os quase contratos. Introdução.
§ 1870. Depois de tratar das obrigações contratuais (v. cap. 6.8), as Instituições de
Justiniano (I.,3,27) agrupam um conjunto de obrigações que nem se fundam num contrato
nem num delito3409, mas antes de circunstâncias semelhantes a uma ou outra destas
categorias de contrato. Na obra de Gaius esta ideia de quase contrato não aparecia,
arrumando-se as obrigações que não provinham nem de contrato nem de delito sob a rubrica
mas “obrigações que provém de várias tipos de causas” (obligationes ex variis causarum
figuris3410), dizendo-se que provinham do própria direito que as criava em função de certas
circunstâncias do caso. Porém, um texto de Ulpianus já explica a existência destas
obrigações por convenções implícitas, embebidas em comportamentos dos sujeitos ou em
situações objetivas em que estes se colocavam, convenções que a equidade e a confiança

3401 V. Ord. fil.,4,56, in princ.; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Pignus”, n. 7 (é torpe

e injusto); cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,14,19.
3402 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Pignus”, n. 16. Por exemplo, os danos

causados pela tinha (salitre) nas paredes da casa ou a magreza das ovelhas causada pela fome
imputam-se ao credor a quem as coisas tivessem sido entregues, “quia sua culpa pereunt”; responde
tanto pelo dano como pelo interesse, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Pignus”, n. 17.
3403 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,4,20.

3404 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Pignus”, n. 23.

3405 Mas a entrega do penhor ao devedor, antes do pagamento da dívida, não induzia renúncia,

antes apenas uma entrega precária, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Creditor” 22.
3406 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 1, n. 5

3407 Equivalia à remissão, ficando o devedor com uma exceção (interventionis) contra a ação

penhoratícia do credor António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Pignus”, n. 9 e 10.
3408 O direito do credor sem a posse (hypothecaria) prescrevia em trinta anos contra estranho e

quarenta contra o devedor, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Pignus”, n. 25.
3409 I., 3, 27 De obligationibus quasi ex contractu: “Post genera contractuum enumerata

dispiciamus etiam de his obligationibus, quae non proprie quidem ex contractu nasci intelleguntur, sed
tamen, quia non ex maleficio substantiam capiunt, quasi ex contractu nasci videntur”. As obrigações ex
delicto e ex quasi delicto são tratadas em I.,4 e 5.
3410 D.44.7.1. Gaius libro secundo aureorum, pr. Obligationes aut ex contractu nascuntur aut ex

maleficio aut proprio quodam iure ex variis causarum figuris.

544
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
exigiam que se cumprissem3411.
§ 1871. Os racionalistas, com a sua visão consensualista do direito3412, valorizaram
muito esta ideia de que, onde os direitos não se pudessem explicar pelas vontades explícitas
– contratuais -, se explicavam por vontades implícitas – quase contratuais -, diferindo apenas
enquanto uns destacavam mais o consenso como génese da obrigação e outros mais a boa
fé ou equidade. Pascoal de Melo enuncia umas regras que conteriam os tais princípios da
boa fé que explicavam o surgir destas obrigações criadas diretamente pelo direito: (i)
ninguém deveria locupletar-se à custa alheia, com prejuízo de outrem; (ii) o exercício do
dever não deveria prejudicar ninguém; (iii) a ninguém deveria aproveitar a má intenção
(dolo); (iv) quem tivesse querido os antecedentes deveria querer as consequências; (v) devia
presumir-se que cada um aprovava o que lhe fosse útil3413. Estes princípios – cuja
relacionação com uma vontade presumida é, por vezes, bastante forçada – eram o cimento
que aparentaria os vários casos em que a tradição jurídica romanística criava obrigações
independentemente de uma convenção explícita ou de um delito (malefício, dano
intencionalmente causado); como era o caso da Ord. fil., 3,6,4 – que falava expressamente
de quase contrato para descrever umas quantas situações de obrigações não convencionais,
já reguladas da mesma maneira no direito romano. Umas dessas situações eram
semelhantes ao mandato, obrigando uma pessoa pelos atos de outra (casos das obrigações
do menor, do pupilo ou do dono do negócio no que respeita à indemnização do tutor, do
curador ou do gestor pelos atos praticados em seu favor). Outras dessas situações
relacionavam-se com os deveres de comproprietários ou vizinhos de dividir (actio communi
dividundo, actio familiae erciscundae) ou de fixar as extremas de prédios (actio finium
regundorum), ou do herdeiro quanto ao pagamento aos credores do de cujus e quanto à
entrega dos legados (actio legati). Outras, com situações variadas – e pouco aparentemente
ligadas à vontade presumida – em que sobre alguém impendia um dever de prestação a
outrem, como a de devolver a coisa entregue sem ser devida (condictio indebiti) ou sem uma
causa atendível (condictio ob causam dati causa non secuta, ob turpem causam), como a de
indemnizar aquele a quem se entregara uma coisa que não pertencia a quem a entregou
(evictio) o prestador, como a de restituir as coisas que tivessem sido entregues a outrem a
título precário (actio de receptis). No título seguinte das Institutiones3414, trata-se daquelas
obrigações que o direito imputa a alguém em virtude de um facto de outrem. Pela
contiguidade nas fontes e também porque a vontade do obrigado não esteve na origem da
obrigação, a doutrina aproxima-as das obrigações quase contratuais.
§ 1872. Como esta categoria era residual, nem sempre apareciam aqui listadas as
mesmas situações. Havia, no entanto, um certo consenso quanto à inclusão de certas

3411 “2.14.1. Ulpianus libro quarto ad edictum. pr. Huius edicti aequitas naturalis est. Quid enim
tam congruum fidei humanae, quam ea quae inter eos placuerunt servare? […] 3. Conventionis verbum
generale est ad omnia pertinens, de quibus negotii contrahendi transigendique causa consentiunt qui
inter se agunt: nam sicuti convenire dicuntur qui ex diversis locis in unum locum colliguntur et veniunt,
ita et qui ex diversis animi motibus in unum consentiunt, id est in unam sententiam decurrunt. Adeo
autem conventionis nomen generale est, ut eleganter dicat Pedius nullum esse contractum, nullam
obligationem, quae non habeat in se conventionem, sive re sive verbis fiat: nam et stipulatio, quae
verbis fit, nisi habeat consensum, nulla est.”
3412 Cf. Helmut Coing, Europäisches […], v. 1, 394/5.

3413 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,4,1.

3414 I., 3,28 Per quas personas nobis obligatio adquiritur.

545
As obrigações.
obrigações.
6.10.1 Gestão de negócios.
§ 1873. A gestão de negócios3415 contemplava as obrigações recíprocas daquele que
geria um negócio3416 de outrem - sobretudo de um ausente - sem que este soubesse e do
dono (ou beneficiário) desse negócio. A gestão de negócios de outrem era permitida, desde
que o dono do negócio não se opusesse. Ao passo que o gestor estava obrigado a prestar
contas, o dono do negócio tinha a obrigação de indemnizar o gestor pelas despesas
necessária feitas no âmbito da gestão do negócio ou na utilidade dele. Ambos dispunham da
actio de negotiis gestis, a directa, para exigir a prestação de contas; a contraria, para pedir a
indeminização pelas despesas de gestão. Os deveres de boa gestão e as responsabilidades
por ela que recaíam sobre o gestor eram as mesmas do mandatário a título gratuito3417.
§ 1874. Idênticos direitos e deveres tinham aqueles que administravam em proveito de
outrem um negócio marítimo ou terrestre. Para além disso, o dono do negócio (armador)
podia ser acionado pelas obrigações contraídas pelo administrador do negocio (capitão ou
mestre da nau) no âmbito da sua administração (actio exercitoria). A actio institutoria era
paralela, mas aplicável no caso de transportes por terra3418.
6.10.2 A administração da tutela e curatela.
§ 1875. A ação de tutela e de curadoria nasciam de um quase contrato porque o tutor ou
curador administravam, nos mesmos termos que um mandatário, o negócio do menor ou
pupilo. Por isso, deviam prestar contas e tinham o direito de ser indemnizados pelas
despesas necessárias e úteis feitas com a gestão3419.
§ 1876. Já as ações de pecúlio eram, do ponto de vista estrutural, uma coisa diferente:
ações em que uma pessoa respondia por outra3420. Davam-se contra o pai, pelas dívidas do
filho que gerisse um pecúlio, quando não fosse possível satisfazê-las pelas forças do
pecúlio3421 e quando o pai tivesse autorizado o filho a contratar em seu nome ou por seu
mandato. Originariamente, os credores dispunham das ações de in rem verso e quod jussu.
Mais tarde, da ação de mandato3422. Pascoal de Melo informa que esta responsabilidade do
pai pela gestão dos pecúlios dos filhos tinha caído em desuso, pois se entendia que o filho
que se ocupasse em qualquer comércio tinha sido emancipado. A menos que o pai,
expressamente, se tivesse responsabilizado pelo filho3423.

3415 D.3.5 De negotiis gestis; C.,2.18. De negotiis gestis; Ord. fil.,3,6,4; I., 3, 27 De obligat. ex
quasi contractus, 1; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,2,2; Helmut Coing, Europäisches
[…], v. 1, 497 ss.
3416 Negócio é um trabalho, o contrário de ócio (negatur otium, sine otio), António Cardoso do

Amaral, Liber [...], cit., v. “Negotium”, n. 2.


3417 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Negotium”, n. 3.

3418 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,4,4.


3419 I., 3, 27 De obligationibus ex quasi contractu, 2; Ord. fil.,3,6,4,2; Pascoal de Melo, Institutiones
iuris civilis, cit., 4,4,3.
3420 Cf. I.,3,28 Per quas personas nobis obligatio adquiritur.

3421 Ord. fil.,4,50,3.

3422 D.15,3; v. Helmut Coing, Europäisches […], 1, 498.


3423 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,4,6.

546
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
6.10.3 As obrigações estabelecidas pela Lex Rhodia de jactu3424.
§ 1877. A lex Rhodia de jactu (lei de Rodes sobre o lançamento ao mar de mercadorias)
mandava ressarcir aqueles cujas mercadorias tivessem tido que ser lançadas ao mar para
salvar o barco, à custa dos proprietários dos bens que tivessem sido salvos por isso. A ação
dava-se contra o patrão da nau, tendo este regresso contra os proprietários dos bens salvos.
Mais tarde, estende-se a situações de desastre (v.g., incêndio) em que se tivessem causado
danos a terceiros para salvar as coisas em perigo3425.
6.10.4 As obrigações derivadas da aceitação da herança (adhitio haereditatis)3426.
§ 1878. A aceitação da herança pelo herdeiro gerava, objetivamente, obrigações, como
as de pagar aos credores do de cuius e de entregar os legados ao legatário3427.
6.10.5 A divisão de coisa comum.
§ 1879. Como ninguém era obrigado a permanecer numa situação de compropriedade,
certas situações deste tipo geravam obrigações de dividir ou de demarcar, exigíveis por
ações. Era o caso da ação de divisão de coisa comum (I.,3.27 De obligationibus quasi ex
contractu, 3), de partilha de herança (v. cap. 5.2.11), de fixação de extremas (actio finium
regundorum, Ord. fil.,5,67) 3428.
6.10.6 A restituição de coisas recebidas.
§ 1880. Constituía uma obrigação independente de consenso a restituição daquilo que
se tivesse recebido em certas situações objetivas, como a de se dar alojamento,
estabulação, transporte. Esta obrigação recaía sobre os estalageiros, estabuladores, lojistas
(caupones), armadores (nautae) e outros transportadores, que – segundo o direito pátrio -
respondiam por culpa ou dolo (Ord. fil.,5,64) 3429.
6.10.7 O pagamento indevido.
§ 1881. Idêntica obrigação de restituir recaía sobre o que tivesse recebido de alguém
algo que não fosse devido. A isto correspondia, para quem tivesse pago algo de indevido,
sem saber que o era, uma ação para repetir o indevido (condictio indebiti)3430. O direito
justinianeu excetuava pagamentos indevidos feitos à Igreja; mas o última doutrina moderna
não sufragava este favor3431.

3424 Ord. fil.,2,32; D.14.2.2.pr.; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,4,5.
3425 Cf., relacionado, Ord. fil.,2,32; D.14.2 De lege Rhodia de iactu, 2.pr.; cf. António Cardoso do
Amaral, Liber [...], cit., v. “ Naufragium”, n. 3-4 (a ação dava-se contra o mestre da nau, tendo este
regresso contra os proprietários dons bens transportados). Cf. Helmut Coing, Europäisches […], 1, 497.
3426 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,4,7.

3427 I., 3,27 De oblig ex quasi contractu; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,4,7.
3428 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,4,8.
3429 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,4,9.

3430 D.12,6 De condictione indebiti, 1: “1. Et quidem si quis indebitum ignorans solvit, per hanc

actionem condicere potest: sed si sciens se non debere solvit, cessat repetitivo”; I., 3, 27 De oblig. quae
ex quasi contract., 6); Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,4,10.
3431 I,3,27,7: "7. Ex quibusdam tamen causis repeti non potest, quod per errorem non debitum

solutum sit […] tantummodo in his legatis et fideicommissis quae sacrosanctis ecclesiis, ceterisque

547
As obrigações.
§ 1882. Pressupõe-se um erro sobre a dívida, que se cria existente3432. Mas este erro
tinha que ser sobre os factos e não sobre o direito3433, pois, de acordo com os princípios
gerais sobre o erro, o erro sobre o direito não era relevante3434. Na idade média, apenas era
tido como irrelevante o erro sobre o direito que consistisse em se julgar ser civil (e, logo,
exigível) uma obrigação de facto natural. No entanto, esta restrição da irrelevância do erro
sobre o direito vai decaindo, até desaparecer no período racionalista. No entanto, Pascoal de
Melo, argumentando com o facto de que, depois da receção do direito comum, o direito se
tinha tornado hermético, porque escrito em língua estrangeira e pouco ordenado, defende a
relevância irrestrita do erro sobre o direito.
6.10.8 A repetição de entregas sem causa legítima.
§ 1883. Também estava obrigado a restituir aquele que tivesse recebido algo sem que
houvesse uma causa, ou em que houvesse causa, mas esta se tivesse frustrado3435 ou fosse
torpe3436 (sine causa, ob causam dati causa non secuta, ob turpem causam (de quem
recebeu, não de quem deu)3437.
6.10.9 A evicção.
§ 1884. O entrega do preço de coisa vendida ou dada em troca por não dono (evicção)
também era devida3438, pois a boa fé não permitiria o locupletamento à custa alheia (Ord.
fil.,3,45, D.,21,2 De evictionibus). O dever de evicção só existia nos contratos onerosos, Ord.
fil.,3,45,ult.3439).

venerabilibus locis quae religionis vel pietatis intuitu honorificantur, derelicta sunt, quae si indebita
solvantur non repetuntur.
3432 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,4,10; Helmut Coing, Europäisches […], v. 1,

494.
3433 Por exemplo, julgar-se válido um contrato, que todavia era nulo.

3434 V. D.22,6 De juris et facti ignorantia, 2. V. aplicação à condictio indebiti em C.,1,18,10: “Cum
quis ius ignorans indebitam pecuniam persolverit, cessat repetitio. Per ignorantiam enim facti tantum repetitionem
indebiti soluti competere tibi notum est.”.
3435 A obrigação de restituir uma coisa, recebida para certo fim que não se verificou é obrigado a
devolvê-la ou pela condictio, ou pela ação do contrato [v.g., actio commodati], ou pela ação praescriptis
verbis, ou por uma ação in factum concepta.
3436 Discutia-se sobre se o cliente podia pedir à prostituta o que lhe tivesse pago. Ulpiano, no

Digesto (D. 12,5 De condictione ob turpem vel iniustam causam,4,3) entendia que não, pois ela,
embora se dedicasse a atividades torpes, não as contratava torpemente justamente porque era essa a
sua profissão. No direito romano, não se podia repetir o que se desse à concubina ou à meretriz
registada perante os edis, pois essas relações não eram ilícitas. Mas o parente mais próximo
prejudicado podia repetir, pois o concubinato e a prostituição estavam proibidas aos cristãos, e o
terceiro não tinha que ser castigado pelo delito de quem tinha pago à concubina ou prostituta.
3437 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,4,11;; Helmut Coing, Europäisches […], v.

1, 495.
3438 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,4,12.

3439 O vendedor podia chamar a juízo (“louvar”) aquele de quem tivesse adquirido a coisa (louvar,

chamar a juízo) ao vendedor, para que possa auxiliar o possuidor (Ord. fil.,3,45,ult.).

548
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
6.11 Obrigações delituais (ex delictu).
§ 1885. Referidas as obrigações que tinham por fonte um contrato (v. cap. 6.8) e uma
situação considerada como quase contrato (v. cap. 6.10), passamos àquelas que derivavam
de um delito.
§ 1886. O dano causado por um facto contrário ao direito (delictum, iniuria, maleficium)
era uma fonte de obrigações. No direito romano, tal como nos é transmitido num texto das
Institutiones de Gaius3440, havia três fontes de obligatio ex delicto – o furto e o roubo,
ofendendo o direito de propriedade; a injúria [quod iure non fit] ou prática de algo contra
direito que ofendesse a integridade física ou moral de alguém; e a produção de um elenco de
danos ilícitos (damnum iniuria datum) previstos numa lei republicana do séc. III d.C. - Lex
Aquilia de damnis, possivelmente um plebiscito de 286 a.C.3441 -, sucessivamente alargada
pelo direito pretório. Nestes casos, o que causava o dano (nocens) era obrigado a pagar uma
pena (poena) ao lesado. No período do Império, o direito pretório começou a conceder ações
pretórias in factum conceptae para obrigar alguém a indemnizar outrem no caso de praticar
outros factos danosos e ilícitos. É a estes novos factos geradores de responsabilidade que a
doutrina jurídica chama quase delitos3442.
§ 1887. Também a razão de ser e natureza da pena variaram, do direito mais antigo ao
direito justinianeu. Na origem, a pena era uma soma pactada entre o autor do dano e o
lesado para que este último desistisse da vingança (vindicta) Sendo fixada pelo lesado, era
normalmente mais alta do que o valor do dano, pois comportava também um resto da
punição privada, ou vingança. Frequentemente, fixava-se, não no simplex, mas no duplum,
ou quadruplum3443. Esta natureza pessoal da reparação fazia com que: (a) ela fosse
intransmissível aos herdeiros do lesante; (b) fossem cumuláveis várias penas quando os
lesantes fossem vários; (c) ela pudesse ser substituída por uma entrega da pessoa do
lesante nas mãos do lesado (se in nexum dare). Com o aparecimento de juízos públicos para
punir ações que causassem um prejuízo à comunidade, alguns dos atos delituais
começaram a ser puníveis sob dois aspetos: enquanto ofensas a particulares davam origem
a ações destinadas a compensar os danos sofridos pelos lesados (actio iniuriarum, actio
damni iniuria dati, actio legis Aquiliae, actio reipersecutoria) e a outras (actiones poenales)
destinadas a punir o ato com uma pena, a favor do lesado ou do titular da jurisdição (da
respublica).
§ 1888. A imputação do dano ao lesante era, originalmente, uma imputação objetiva que
se satisfazia com o facto de que o dano se produzira por facto do autor, não exigindo a
possibilidade de imputação subjetiva desse facto ao autor, em termos de uma censura pelo

3440 “Transeamus nunc ad obligationes, quae ex delicto nascuntur, veluti si quis furtum fecerit,

bona rapuerit, damnum dederit, iniuriam commiserit: quarum omnium rerum uno genere consistit
obligatio, dum ex contractu obligationes intres genera diducantur, sicut supra exposuimus” (Gaii
Institiones, 3, 182; idem, D.44,7,4).
3441 Cf. D.9,2,1.

3442 Originariamente, contemplava-se apenas a morte de escravo ou animal ou o dano de coisa

animada ou inanimada (D.9.2.2, Gaius libro septimo ad edictum provinciale, pr. Lege Aquilia capite
primo cavetur: ‘Ut qui servum servamve alienum alienamve quadrupedem vel pecudem iniuria occiderit,
quanti id in eo anno plurimi fuit, tantum aes dare domino damnas esto’").
3443 I.,4,3 De lege Aquilia, 9.

549
As obrigações.
menos por falta de cuidado. A lei Aquilia apenas exigia uma ligeira3444. Havia casos de
responsabilidade sem culpa, sempre que alguém não agisse como objetivamente era
esperado que agisse, respondendo então pelos danos fortuitos; era o caso do guarda
(custos), do estalajadeiro, do estabulador (caupo) ou do mestre do barco (nauta) que
respondiam pelos danos fortuitos sofridos pelas coisas guardadas, abrigadas ou
transportadas; o do dono de animais que provocassem danos (actio de pauperie): o do dono
de coisas penduradas ou encostadas, suscetíveis de cair, que devia indemnizar pelos
estragos que estas causassem; o dos que lançassem coisas líquidas ou sólidas e, com isso,
lesassem alguém (actiones de effusis et dejectis, positis et suspensis).
§ 1889. A construção de um princípio geral segundo o qual o que causa um dano estaria
obrigado a indemnizar o lesado, desde que esse dano lhe fosse imputável em termos de
intenção (dolo) ou de falta do cuidado exigível (culpa) não aparecia, nem sequer no direito
justinianeu3445, embora este tivesse generalizado ainda mais a ideia de responsabilidade por
danos, sempre repartida, porém, em categorias distintas, conforme o antigo sistema de
ações.
§ 1890. A evolução ulterior, no direito comum medieval e moderno seguirá uma linha de
evolução que tende a: (a) separar as ações que derivam dos delitos públicos das que
emergem de delitos privados, orientando estas últimas para a indemnização do dano3446; (b)
flexibilizar a determinação do quantum da pena, em função do dano sofrido e das
circunstâncias do caso, na esteira de uma ideia que já estava presente no direito romano3447
e que era dominante no direito canónico3448; (c) vincular o dano à intenção e à culpa
considerando como casos apenas semelhantes a delitos (quase delitos, quod maleficium est
proximum) aqueles casos de ações que, de acordo com uma determinação da lei, geravam
deveres de indemnizar sem que culpa; (d) simplificar as particularidades das diversas
situações, subsumindo-as a um princípio geral de que quem causasse danos ilícitos, com
intenção ou negligência censurável, devia indemnizar num montante equivalente aos
prejuízos. No plano processual, esta simplificação correspondia ao abandono da
multiplicidade de ações para obter a indemnização e ao uso de uma só ação em que, com
base nos factos, se pedia uma indemnização correspondente aos danos efetivos (id quod
interest), aqui compreendo quer os prejuízos causados (danos emergentes), quer aquilo que,
por causa do delito, se tivesse deixado de ganhar (lucros cessantes). Mas o resultado final
desta evolução não se consumará antes da última fase do direito comum.
§ 1891. Na doutrina portuguesa dos sécs. XVI e XVII nota-se esta linha de evolução,
ainda em curso.
§ 1892. A produção de prejuízos no património de outrem era descrito como um ato

3444D. 9, 2, 44 pr., Ulp. 42 ad Sab.: “in lege Aquilia et levissima culpa venit”.
3445Síntese, com o trânsito para o direito comum e mais moderno, H. Coing, Europäisches […], §
100, p. 503-518
3446 Corolários desta evolução era a transmissibilidade do dever de indemnizar aos herdeiros e a

impossibilidade de acumular penas de vários lesantes relativas ao mesmo dano.


3447 D.48,19,13: D.48.19.13: “Ulpianus libro primo de appellationibus, Hodie licet ei, qui extra ordinem de
crimine cognoscit, quam vult sententiam ferre, vel graviorem vel leviorem, ita tamen ut in utroque moderationem non
excedat”.
3448 Decretum, II, causa XII, qu. 2, c. 11, § 1.

550
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
ilícito3449 ou delito - palavra que também aparecia como sinónimo de crime (malefício). E, de
facto, os seus aspetos penais – relacionados com o castigo ou vingança pela perpretação de
um ato contra o direito - e civis – relacionados com a prática de atos ilícitos que causassem
prejuízos a um particular -3450 apareciam tratados conjuntamente, o que contribuía para uma
grande falta de nitidez quanto a questões centrais.
§ 1893. O dano era definido como uma perda ou diminuição do património3451, pela qual
era responsabilizado aquele que a tinha causado. Já se formulava o princípio geral de que
estava obrigado a satisfazer o dano aquele por causa de quem o dano se tinha produzido3452.
Esta formulação estendia a responsabilidade aos casos de dolo, de culpa (compreendendo a
imperícia), mas também de um tipo de relação objetiva de causalidade (aquele que deu lugar
ao dano, “ope, est datum damnum”)3453. A responsabilidade era objetiva, sem necessidade
de dolo ou culpa, se o dano tinha sido causado por uma atividade ilícita (“aut dabat operam
rei illicitae”). E, de qualquer modo, sempre se teria que atender ao princípio geral do não
enriquecimento à custa alheia3454, o qual, neste domínio, podia gerar ambiguidades (v.g., que
decidir se, sem dolo ou culpa, se tivessem causado prejuízos a outrem, lucrando com isso ?).
§ 1894. Esta regra geral adequava-se ao que a lei e a doutrina estipulavam para os
casos concretos. Assim, entendia-se que não causava dano aquele que usasse licitamente
as suas coisas3455. Este princípio era muito relevante na determinação dos poderes do
proprietário fundiário; em princípio, podia fazer no seu prédio o que quisesse, mesmo com
prejuízo dos vizinhos, salvo se tivesse procedido com intenção de prejudicar ou se tivesse
violado as prescrições da lei relativa aos deveres de vizinhança. Podia construir livremente
(desde que não tirasse a luz ao vizinho, mas podia tirar as vistas, segundo alguns3456), podia
abrir poço (desde que o fizesse a mais de cinco pés da parede do vizinho), mesmo que o
poço prejudicasse poços ou fontes particulares (mas não públicas), podia cortar árvores do
vizinho que se projetassem sobre o seu prédio, já que as suas extremas iam até ao céu3457.
Também estavam excluídas de indemnização as situações de caso fortuito ou de força maior

3449 “ Qui facit quod lex permittit nulli facit damnum nec iniuriam ”, António Cardoso do Amaral,

Liber [...], cit., v. “Damnum” 8.


3450 A distinção entre delitos penais e delitos civis não correspondia à que era feita entre delitos

penais públicos e delitos penais privados, pois esta relacionava-se com a capacidade para acusar
judicialmente: no primeiro caso, a acusação competia a qualquer pessoa do povo; no segundo, só à
parte lesada; no direito canónico todos os delitos penais eram públicos, António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., v. “Delictum” 1.
3451 “Damnum, sive damnatio a demptio sive diminutio patrimonii”, António Cardoso do Amaral,

Liber [...], cit., v. “Damnum”, n. 1


3452 “Damnum non tantum dicitur datum ab illo qui da damnum intullit, set etiam ab illo qui causam

damni dedit, si non adhibuit diligentiam, quam debuit, aut dabat operam rei illicitae”, António Cardoso do
Amaral, Liber [...], cit., v. “Damnum”, n. 3; Pascoal de Melo, Institutiones iuris criminalis [...], cit., 7,2; 7,9.
3453 “Damnum tenetur satisfacere ille, cuius culpa, imperitia, aut ope, datum est damnum, pro illo

quod fecit, aut ex illo quod fuit secutum”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Damnum”, n. 4.
3454 Cf. Locupletari nemo debet cum jactura aliena, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.

“Damnum”, n. 12.
3455 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Damnum”, n. 8.

3456 Cf Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 35, ns. 5 a 7.

3457 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 35, per totam.

551
As obrigações.
(v.g., danos causados por um barco arrastado por corrente fortíssima3458). E, mais ainda, nos
casos em que os danos tivessem sido causados pelo próprio prejudicado ou por sua culpa
(negligência)3459.
§ 1895. Pelo contrário, os danos culposos ou dolosos geravam deveres de
indemnização: v.g., ferimentos em animal doméstico ou bravio (que costumasse voltar), ou a
deterioração de coisa de outrem3460.
§ 1896. O tratamento indistinto dos aspetos penais e indemnizatórios provocava
incertezas quanto à relevância da intenção má (dolo), exigível para os aspetos penais (v.
cap. 8.2.6.1), mas eventualmente dispensável para os aspetos civis de indemnizar pelo
prejuízo. Em geral, a doutrina dizia, como se disse, que o dano não era apenas causado por
uma prática intencional, mas ainda pela culpa ou imperícia que causou ou deu ocasião a um
dano. Alguma regras particulares, embora formuladas na perspetiva da punição penal,
cabiam neste princípio geral: a pessoa irada ou embriagada era responsável, embora
devesse ser punida mais levemente se a ira lhe fazia perder ou diminuir a razão3461; o furioso
e a criança na fase da infância eram irresponsáveis3462; o bêbedo era punido quando a
bebedeira lhe tirasse o entendimento, embora a pena devesse ser reduzida, até ao ponto de
não dever ser punido se estivesse bêbado sem culpa3463.
§ 1897. Porém, havia regras relativas aos delitos penais que não se aplicavam aos
delitos civis: por exemplo, a de que a simples intenção, desde que exteriorizada, era punível,
ainda que não se seguisse a concretização3464. Ou, pelo contrário, havia regras que só se
aplicavam à indemnização civil: por exemplo, a de que se podia punir sem culpa o
proprietário de casa superior pelos danos causados na inferior3465. Esta relativa indistinção
entre responsabilização penal e civil também se projetava sobre o âmbito da
responsabilidade civil. As Ordenações previam expressamente que se aceitasse querela e se
abrisse devassa se alguém cortasse árvores (Ord. fil.,1,65,32) ou danificasse horta ou pomar
(Ord. fil.,5,117)3466. Se se punha a questão se saber se estas disposições eram extensíveis à
destruição de uma semeadura, a resposta da doutrina era negativa, pois a lei penal não se

3458 Cf. António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 296.


3459 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Damnum”, n. 5 (o que alguém sofre por
própria culpa não deve ser imputado a outros, embora não se presuma que alguém danifique as suas
próprias coisas).
3460 Por exemplo, a mistura de algo no óleo ou azeite, por cuja causa estes se tivessem

estragado, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Damnum”, n. 6.


3461 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, ns. 45 e 47.

3462 “Cum non habeant intellectum”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, n.

46.
3463 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, n. 47.

3464 A intenção no delito penal era punida ainda que não se seguisse a consequência; a menos
que a intenção não tivesse nenhuma manifestação externa (proposita in mente retenta; conatus
deductus in actum exteriorem proximum e immediatum), António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Delictum”, n. 55.
3465 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, n. 39.

3466 Aqui havia também uma componente pública, que justificava a criminalização do

comportamento.

552
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
podia estender por analogia3467. Mas, porventura, isto só dizia respeito à punição pública,
mas não à indemnização de danos.
§ 1898. A combinação de aspetos penais ou civis oferecia ainda uma dupla justificação
para o regime da distribuição da responsabilidade entre pessoas que tivessem
comparticipado, uns direta outros indiretamente, na produção do dano.
§ 1899. A obrigação de prestar podia recair sobre outro que não o agente lesante, como
se alguém tivesse dado ordem a um criado seu para causar danos num prédio alheio3468. Isto
era compatível com a responsabilização penal do mandante, mas também com a
responsabilização civil de alguém pela ordem ou mandato dada (actio quod jussu)3469. Ao
contrário do que acontecia na pena criminal, na pena civil o seu pagamento por um dos
lesantes liberava todos os outros, para evitar o locupletamento sem causa do lesado3470.
§ 1900. Já a transmissibilidade aos herdeiros das responsabilidade pela indemnização
dos danos dependia da ênfase que se pusesse no caráter penal ou no caráter indemnizatório
da prestação do lesante. Se se destacassem a natureza penal, triunfava a
intransmissibilidade, pois, morto o delinquente, por regra a sua pena criminal não se
transmitia aos herdeiros3471. Se se tivesse em vista a compensação dos prejuízos, a
indemnização pecuniária compensatória devia passar para os herdeiros3472.
§ 1901. A doutrina portuguesa admitia, ao lado dos delitos, os quase delitos, a que as
Ordenações se referiam (como quase malefícios, Ord. fil.,4,76,5). Pascoal de Melo3473 define
os quase delitos como aqueles factos danosos cometidos ou só por culpa, ou por um acaso
combinado com culpa3474. A categoria surgiu a partir da distinção que já era feita nas
Institutiones entre obrigações provindas de delito (I.,4,1) e obrigações provindas de quase
delito (I.,4,5), agora reinterpretada de forma a responder à necessidade – que emergia num
contexto teórico voluntarista, de relacionação entre responsabilidade e vontade - de distinguir

3467 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 2, Aresto 60. Sobre as regras de interpretação e
integração na lei penal, cap. 8.1.2.
3468 O causador direto do dano não ficava isento de responsabilidade se, entes de praticar os

atos, estivesse consciente do seu caráter ilícito e danoso, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Damnum”, n. 9.
3469 Se a ordem para causar dano provinha de alguém com poder de mando (imperium), o inferior

ficava excuso, nos crimes leves (António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, n. 38); nos
mais graves, responsabilizava um e outro, porque ninguém tinha que obedecer forçosa e
invariavelmente, àquele que tivesse direito de dar ordens (António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Delictum”, n. 38).
3470 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Poena”, n. 54 (a pena que impende sobre

vários, se paga por um liberta todos se visa apenas o interesse do que a recebe [isto é, se é uma pena
civil]).
3471 Os delitos dos pais não oneravam os filhos, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.

“Delictum”, n. 33; os delitos extinguiam-se com a morte do delinquente, ibid., n. 34; a exceção era o
crime de heresia, punido também com a confiscação dos bens, que afetava os herdeiros, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, n. 34
3472 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 71, n.3; António Cardoso do Amaral,

Liber […], cit., v. “Poena”, ns. 34 e 35.


3473 Pascoal de Melo, Institutiones iuris criminalis [...], cit., 11,1.

3474 Exs. em Pascoal de Melo, Institutiones iuris criminalis [...], cit., 11, 6.

553
As obrigações.
factos intencionais de factos não intencionais no âmbito da teoria do delito. Serve, a partir
daí, para agrupar uma série de factos não intencionalmente danosos que geravam
responsabilidade pelo dano. Pascoal de Melo enumera situações que correspondiam às
previstas nas Institutiones, tais como: a decisão judicial dada por ignorância (Ord. fil.,1,5,4;
1,65,9; 1,60); o despejo ou arremeço de coisas com dano alheio; o tratamento médico
incompetente que lese o doente; os estragos nos bens dos hóspedes causados por criados
da estalagem. A fonte legal da responsabilidade de indemnizar, nestes casos, provinha de
títulos das Institutiones, que se consideravam recebidos, até pela referência expressa das
Ordenações a quase malefícios (Ord. fil,4,76,5).
§ 1902. O dano podia ser causado por homem livre, escravo, animal ou coisa3475 (v.g.,
uma telha que caísse do telhado, um barco levado pela corrente, uma casa que pegasse
fogo à vizinha).
§ 1903. Quanto ao montante do dano, havia relutância em admitir que ele pudesse
abranger mais do que os prejuízos causados na coisa ou no capital (danos emergentes),
excluindo-se que se tivesse que indemnizar pelos eventuais lucros, se a coisa ou capital não
se tivessem perdido3476. A exceção era a de dano causado a comerciante, que empregasse
usualmente a coisa deteriorada ou perdida num giro comercial determinado e cujos
proventos pudessem ser estimados3477. Nesse caso, haveria lugar a uma indemnização
pelos lucros cessantes. O mesmo acontecia, mas como castigo pela malícia do lesante, no
caso de danos causados com intenção (dolus malus)3478. Em geral, portanto, podia dizer-se
que o montante do dano não incluía senão os prejuízos que consistissem numa diminuição
efetiva do património (“perdas e danos”)3479, não se computando como tal um seu aumento
apenas previsível3480.
§ 1904. Havia duas ações que decorriam da produção do dano, uma criminal, ou seja,
para a aplicação de uma pena corporal ou pecuniária a favor do fisco, e outra civil, relativa ao
interesse e reintegração da coisa3481. Apesar de, no direito português, o nome das ações não
ter que ser indicado na petição inicial e, portanto, todas as ações fossem baseadas na
descrição dos factos e na formulação do pedido, a doutrina ainda recordava a variedade de
ações que o direito romano foi sucessivamente conhecendo para obrigar à indemnização de
danos. A esta diversidade não correspondiam, no entanto, consequências processuais
significativas3482. As Ordenações continham uma série de crimes de dano, causados por
homens livres3483 por escravos e por animais3484. Porém, estes preceitos, todos eles no

3475 Pascoal de Melo, Institutiones iuris criminalis [...], cit., 1,7,3.


3476 Miguel Reinoso, Observationes […], cit., obs. 9, ns. 3, 5 e 10.
3477 Miguel Reinoso, Observationes […], cit., obs. 9, n. 9 a 12.
3478 Cf. Miguel Reinoso, Observationes […], cit., obs. 9, n. 14.
3479 “Demptio sive diminutio patrimonium”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.

“Damnum”, n. 1; Miguel Reinoso, Observationes […], cit., obs. 9, n. 13.


3480 “Si lucrum iam erat radicatum, bene dicitur, qui lucrum perdit, damnum pati, si vero lucrum

non erat radicatum, sed erat quaerendum, non dicitur, tunc damnum pati, dum non est quaesitum”,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Damnum”, n. 1.
3481 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 169, n. 17.

3482 Pascoal de Melo, Institutiones iuris criminalis [...], cit., 7,6.

3483 Ord. fil.,5,78,1; Ord. fil.,5,75,pr.; Ord. fil.,5,86,5.

554
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
âmbito do livro V, sobre crimes e penas, contemplam quase só a pena criminal. Para fazer
valer a indemnização por danos, não se usava de nenhuma das ações existentes no direito
romano3485, que não tinham sido recebidas no foro português, mas antes se recorria a uma
ação inominada, em que com fundamento na situação que causara o dano, se pedia aquilo
em que se estimava a sua compensação.
§ 1905. O dano provava-se pelos meios usuais de prova; se tivesse sido praticado com
violência, provava-se por juramento da vítima3486.
§ 1906. Como delito penal, o dano prescrevia no prazo de 20 anos, segundo o direito
civil, sendo imprescritível pelo direito canónico.

3484 Ord. fil.,5,87,pr.,1 e 3.


3485 Actio (directa, utilis ou in factum) ex lege Aquilia (danos causados livre dolosamente); actio
noxalis (danos causados por escravo ou animal); actio de pauperie, actio de pascu (idem); actio
iniuriarum (civilis).
3486 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Damnum” 7.

555
As obrigações.

556
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

7 As ações.
7.1 O sentido social e político do direito processual do reino.
§ 1907. O processo vinha regulado no livro 3 das Ordenações e, para as especialidades
do processo criminal, no livro 5 (Ord. fil.,5,117 ss.). Complementarmente, as chamadas
“reformas da justiça” – modificaram alguma coisa ao disposto nas Ordenações. Só a última,
de 6.12.16123487, não foi incorporada nas Ordenações, por ter sido posterior à sua
promulgação.
§ 1908. Embora a doutrina processualista portuguesa de Antigo Regime esteja
continuamente a citar as fontes de direito comum, o processo é uma das matérias em que
havia particularidades importantes no direito pátrio.
§ 1909. Em 1736, Mateus Homem Leitão publicou uma obra com pretensões, a que deu
o título de Sobre o direito português3488, em que tratava de três matérias “difíceis e
quotidianas” que, a seu ver, caracterizavam o direito particular do reino. Todas elas eram de
direito processual – os agravos, as cartas de seguro e as devassas – e, realmente,
marcaram muito a prática do direito, o seu impacto social e a distribuição de poder que por
ele era feito.
§ 1910. Segundo este autor, a combinação destas três peculiaridades do direito
português tornavam os processos mais longos e mais incertos, contribuindo para o
descrédito da justiça. Nós acrescentamos que esses mesmos institutos aumentavam muito o
poder dos juízes ou, generalizando, o poder das figuras que dominavam o foro – juízes,
advogados, assessores, escrivães.
§ 1911. Os agravos alargaram enormemente as possibilidades de recurso em relação
àquilo que era o sistema romano de litigar, permitindo recorrer de praticamente todos os atos
do processo, por vezes com efeitos suspensivos, enredando a lide em discussões
intermináveis sobre matérias jurídicas obscuras. É difícil encontrar um instituto processual
que mais tenha contribuído para aumentar a litigiosidade e prolongar as demandas, um traço
que leigos e juristas, já na época, davam como característico do direito português. Por isso, a
generosidade de recurso, somada à incerteza do direito e das jurisdições, tornava os
processos numa meada de expedientes, de que os advogados – porventura mais do que as
partes – se aproveitavam e que os escrivães – porventura mais do que os juízes – ou
propiciavam ou impediam, conforme os seus interesses.
§ 1912. Esta difusão e alongamento dos processos judiciais, além de prejudicarem a
efetividade da condenação, promoveram muito o poder social dos juristas e dos funcionários
que dominassem o desenrolar da lide.
§ 1913. As cartas de seguro (Ord. fil.,1,58,40), outra novidade do direito processual
português, permitiam aos réus evitar a prisão depois da acusação, mantendo-se livres até à

3487 Cf. texto e comentário em António Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 1, no fim do

volume, onde também se pode ver uma lei sobre matérias de Justiça, de 26.6.1696.
3488 Mateus Homem Leitão, De jure lusitano tomus primus in tres utiles tractatus divisus. 1. De

gravaminibus; 2. De securitatibus; 3. De inquisitionibus, Emmanuelis de Carvalho, 1645, 3 tomos


(https://bdigital.sib.uc.pt/bg1/UCBG-4-A-25-2-5/UCBG-4-A-25-2-5_item1/index.html). Está editada em português
(Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2009.

557
As ações.
sentença final. Talvez uma forma de um aparelho judicial débil se acomodar à realidade da
sua debilidade, coonestando, deste modo, a impossibilidade de assegurar mais eficazmente
a comparência em juízo, jogando na cooperação do próprio acusado, ligado por uma
promessa de vir a tribunal. Fosse como fosse, a carta de seguro protegia os acusados e foi
apresentada pela doutrina iluminista (e alguma anterior) como uma notável, mas prejudicial,
particularidade do direito do reino.
§ 1914. As devassas eram averiguações ordenadas oficiosamente e dirigidas pelos
juízes numa lista vasta de crimes (Ord. fil.,1,65,31), a fim de combater o crime e expulsar do
seu território os homens malvados (facinorosos) (cf. Ord. fil.,1,58,5-15 e 31). Proibidas as
devassas gerais (Ord. fil.,1,65,31), consideradas prejudiciais e fonte de insegurança e
abusos, as Ordenações cometiam aos juízes uma larga competência para inquirir
oficiosamente de certos crimes. Esta especialidade do direito pátrio também era uma fonte
singular de poder para os juízes, letrados ou leigos, pois colocava as populações perante
uma ameaça permanente de perseguição criminal, pois a iniciativa de devassar dependia do
arbítrio dos magistrados.
§ 1915. Que acontecia aos processos de devassa (particular ou especial) em que não
sobrevinha querela de parte ? Na maior parte dos casos, acabavam sem acusação particular
(querela) e extinguiam-se. No séc. XVIII e início de XIX, numa zona remota do interior beirão
(Montemuro), dos processos iniciados por devassa, apenas em cerca de 1/3 havia querela
de parte. Ao notar que, no livro de registo das querelas, só se tinham registado 18, entre
1720 e 1834, um corregedor, na correição do pequeníssimo concelho de Cabril de Ester,
observa: "por este andar temos livro enquanto durar o mundo”3489. Apenas 14 % dos autos
iniciados eram finalmente julgados por um juiz ordinário; 13% eram decididos pelo
corregedor, quando ia em inspeção; 20% destes chegavam à Relação do Porto que,
normalmente, decidia de forma mais branda3490. Mas, entretanto, a querela atemorizara e
inquietara as pessoas, assinalando-lhes a dependência em que se encontravam em relação
à gente do tribunal. E o processo, prolongando-se no tempo e em segredo de justiça,
constituía um monstro adormecido que ameaçava continuamente reanimar-se.
§ 1916. Já nos inícios do séc. XIX, logo depois da Revolução, o despotismo do “tribunal”
continuava a ser apontado como um dos males do país: “Os Advogados passavam por
melhores, quando excogitavam mais pontinhos[…]; a chicana era a molla real dos processos.
O Escrivão só olhava aos meios de fazer mais pingue o officio, e tanto, que chegarão a
passar por synonimos entre a Plebe Escrivão, e Ladrão. O Julgador hora complicado com
muitos negócios, hora com o seu socego, hora com …, demorava o despacho dos autos, que
se cobrião de pó na conclusão, tempos, e tempos”3491.
§ 1917. Embora a obra de Homem Leitão destaque três institutos especialmente
importantes no processo criminal, pode ser referida para salientar o que há de novo e de

3489 Anabela Ramos, Violência justiça em terras de Montemor. 1718-1820, Viseu Palimagem
Editora, 1998, nota 67; acrescenta, a propósito de outro livro de registos que indiciava a arbitrariedade
na condução do processo: “Neste livro acho muito assentos de em aberto sem procedimento algum
contra os culpados", p. 98.
3490 Anabela Ramos, Violência […], cit., p. 108.

3491 Vicente Nunes Cardoso, “Advogado em Chaves”, “Projecto de hum Systema de Regulamento

para o Processo Civil de Primeira Instancia, por …”, em O Cidadão Literato. Periodico moral, e politico,
nº I., vol. I., 1 de Janeiro de 1821, 2 ss. (https://bdigital.sib.uc.pt/bg4/UCBG-misc365-nr5854/UCBG-misc365-
nr5854_item1/P23.html).

558
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
central no direito processual pátrio. Alguns dirão já na segunda metade do séc. XVIII, que
estas particularidades não tinham trazido nada de bom. É o caso de Pascoal de Melo que, ao
caracterizar os defeitos do direito processual português, refere como suas causas
precisamente estes pontos em que ele mais se destacava do processo de direito comum:
“concessão das diversas e múltiplas dilações, […] desmesurada frequência e facilidade do
juramento, […] diversos privilégios do foro, muito nocivos à República, […] diversos modos
de apelar e agravar, e outras coisas pequenas e insignificantes deste género […]”, sobretudo
pela latitude que nestes caos se abria ao arbítrio dos juízes (ibid.: “De facto, se todas as
questões fossem tratadas no foro conforme elas determinam, acabariam em poucos meses,
e, normalmente, dentro de um ano ou pouco mais”) 3492.
§ 1918. E, realmente, as especialidades do direito processual pátrio exprimiam-se em
dois níveis. Por um lado, havia normas – nas matérias acima referidas – que se afastavam
do direito comum. Por outro lado, essas normas estabeleciam um espaço de discreção do
juiz – ao decidir os recursos, ao dispensar o réu da prisão - que favorecia a emergência das
práticas processuais, jurídicas e sociais locais. Este duplo processo de “localização” do
processo civil marcou, seguramente, a prática jurídica de então, como então também foi
notado, no sentido de uma cultura jurídica e social de litigância chicaneira, de predomínio
social dos homens do foro, desde os escrivães até aos advogados e aos juízes, servindo (ou
servindo-se) dos seus clientes naturais, as elites comunitárias. Algumas destas
características podem ter marcado de forma duradoura a cultura do senso comum. Talvez
não por acaso, a sociedade marcada por esta matriz da prática jurídica mantém ainda hoje
uma conceção chicaneira do conflito, assente em expedientes processuais, muitas vezes
apenas dilatórios ou de acinte, imaginados por grupos de “especialistas” em direito e por
estes propostos aos titulares dos interesses em litígio. A sociologia brasileira dos anos ’50 do
séc. XX falou, a este propósito, de “bacharelismo”3493 ou, de forma ainda mais plástica, da
coligação entre o “coronel” – o fazendeiro tradicional, titular de interesses comunitários
dominantes – e o “genro” – o bacharel em direito, provindo de grupos emergentes urbanos,
que se casara com a filha do coronel e que o ajudava a traduzir esses interesses em
fórmulas jurídicas3494. Como autor ou como réu, todos participavam neste processo de
judicialização do conflito e no aprendizado das formas de agir e de reagir que ele
incorporava.
§ 1919. Seja como for, o processo parece constituir um ramo do direito tudo menos
adjetivo, quer quanto do seu impacto na ordem social e política de Antigo Regime, quer do
ponto de vista da dogmática do direito, como veremos.
7.1.1 Uma compreensão mais profunda dos expedientes processuais.
§ 1920. O direito processual romano era um direito ritualista3495. As ações eram como

3492 Institutiones juris […] criminalis, IV, Prefácio “Aos estudantes …”, último parágrafo
3493 Pedro Paula Filho, O Bacharelismo Brasileiro. Da Colônia a República, Campinas, 1997.
3494 Victor Nunes Lela, Coronelismo, enxada e voto. O município e o regime representativo no

Brasil, Campinas, 1949, p. 21 ss..


3495 Para uma primeiríssima noção acerca da estrutura do processo em Roma e sua evolução, v.

http://it.wikipedia.org/wiki/Lege_agere; http://it.wikipedia.org/wiki/Agere_Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,


2_formulas. Indicações bibliográficas para desenvolvimentos: MAX KASER, DIREITO PRIVADO ROMANO,
tradução de Samuel Rodrigues e Ferdinand Hämmerle, Lisboa, Fundação. Calouste Gulbenkian,1999;
Id. Das römische Zivilprozessrecht. Handbuch der Altertumswissenschaft. Abteilung 10:

559
As ações.
que fórmulas mágicas para obter um efeito. Como também as obrigações, estavam
relacionadas com palavras, declarações e comportamentos típicos fortemente ritualizados. A
sua eficácia não se relacionava com a existência ou não de um direito prévio, mas apenas
com o a recitação rigorosa da fórmula cumprimento rigoroso do ritual, o qual propiciava a
produção do efeito. Na sistematização das ações sobrelevavam estes aspetos formais. A
grande partição das ações assentava na sua forma. Nomeadamente, no facto de a sua
concessão se basear na ocorrência das precisas condições estabelecidas na lei (das Doze
Tábuas) (legis actiones, ações da lei) ou antes, como aconteceria mais tarde, de ter sido
ordenada pelo magistrado, por consideração de oportunidade (utilitas, aequitas), apesar de
não se verificarem os pressupostos legais para a sua concessão, nomeadamente, a falta de
um título ou negócio formais exigidos pela lei (actiones praetoriae, ações do pretor).
§ 1921. A escolha de actiones como epígrafe da terceira parte da sistematização de
Gaius-Justinianus traduz esta ideia de que as ações eram institutos jurídicos que tinham o
princípio em si mesmos, num ato fundador da lei que as concedia. E não, como mais tarde
se considerará, expedientes processuais para dar realidade a algo que lhes subjazia – um
direito, um contrato, um delito. As ações eram formais e não causais, no sentido de que
nelas não se tinha que identificar a causa da pretensão do autor, mas apenas que cumprir os
requisitos formais que a lei exigia para que a ação pudesse ser concedida. Por isso, o que
era indispensável na fórmula era a designação do nome da ação que se pedia (intentio) e
não tanto a descrição da situação de facto que fundaria a pretensão (demonstratio), a qual
só se tornava necessária quando a intentio (o pedido) era incerta3496, e justamente para
precisar o pedido.
§ 1922. A diluição deste formalismo inicia-se na fase clássica do direito romano, ainda
antes da lex Aebutia de formulis (c. 150 a.C.), e teve várias consequências.
§ 1923. A primeira foi a de enfraquecer a ideia de que o fundamento da ação estava
numa certa liturgia de atos ou de palavras, permitindo assim que emergisse a ideia de que o
fundamento da ação era a vontade, o consentimento, o pacto ou o contrato, a relação
jurídica subjacente, que se tornava na “substância” do direito (direito substantivo), reduzindo

Rechtsgeschichte des Altertums. Vol. 3.4. München 1996; outra bibliografia -


http://books.google.com.br/books?id=iklePELtR6QC&pg=PA791&lpg=PA791&dq=procedura+civile+romana&source
=bl&ots=OhY-CyzP0n&sig=IhN7mLyTLoP0NDQFjaXnDwPXc90&hl=pt-
PT&sa=10&ei=X9WLUfGDE4z89gSf8oCQAg&redir_esc=y#v=onepage&q=procedura%20civile%20romana&f=false.
3496 Gai Institutiones, 4.39. Partes autem formularum hae sunt: demonstratio, intentio, adiudicatio,

condemnatio. 4.40. Demonstratio est ea pars formulae, quae principio ideo inseritur, ut demonstretur
res, de qua agitur [aquela parte da fórmula, por isso inserida no início, em que se descreve aquilo por
que se age em juízo], velut haec pars formulae: quod Aulus Agerius Numerio Negidio hominem
vendidit, item haec: quod Aulus Agerius <apud> Numerium Negidium hominem deposuit. 4.41. Intentio
est ea pars formulae, qua actor desiderium suum concludit [aquela parte da fórmula em que o autor
indica a sua pretensão] velut haec pars formulae: Si paret Numerium Negidium Aulo Agerio sestertium x
milia dare oportere; item haec: Quidquid paret Numerium Negidium Aulo Agerio dare facere <oportere>;
item haec: Si paret hominem ex iure quiritium Auli Agerii esse. 4.42. Adiudicatio est ea pars formulae,
qua permittitur iudici rem alicui ex litigatoribus adiudicare, uelut si inter coheredes familiae erciscundae
agatur aut inter socios communi diuidundo aut inter vicinos finium regundorum. nam illic ita est:
Quantvm adiudicari oportet, iudex, Titio adiudicato. 4.43. Condemnatio est ea pars formulae, qua iudici
condemnandi absolvendiue potestas permittitur, velut haec pars formulae: Iudex, Numerium Negidium
Aulo Agerio sestertium x milia condemna. si non paret, absolve; item haec: Iudex, N. Negidium A.
Agerio dumtaxat x milia condemnato. si non paret, absolvito; item haec: Iudex, N. Negidium A. Agerio
condemnato et reliqua, ut non adiciatur dumtaxat.

560
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
o plano processual a um aspeto apenas adjetivo3497. Com isto, na sistematização temática do
direito proposta por Gaius, a pré-história da ação ganha protagonismo: genéticos passam a
ser o contrato e o delito que estão na origem das pretensões do autor. Então a epígrafe dos
“terceiros livros” das Institutiones passa a ser, não a ação, mas a obrigação ou, como em A.
Vinnius, a obrigação e o delito, o que leva à divisão do livro 3 em dois. Em Melo Freire, mais
limitadamente, mantém-se a unidade do “terceiro livro”, mas as obrigações ganham primazia
sobre as ações, sendo tratadas em primeiro lugar.
§ 1924. Em segundo lugar, a decadência do formalismo fez com que a explicitação do
nome da ação no libelo (intentio) se tornasse quase irrelevante, cedendo a primazia a uma
descrição substancial da matéria de facto que gerara a pretensão do autor3498. A
determinação do modelo de ação que se pedia passou a ser secundário, podendo cumular-
se ou usar-se alternativamente ações, desde que isso contribuísse melhor para a satisfação
do desiderato do autor. Nesse sentido, todas as ações passaram a ser modeladas pela
factualidade, pela situação em que surgia a demanda, correspondendo àquilo que no
processo romano clássico se chamava actiones in factum conceptae. Em contrapartida, as
ações formais, com nome e modelos fixos (actiones legis), tendem a desaparecer. Em
Portugal, as Ordenações (Ord. fil.,3,1,13) dispensam a nomeação do nome da ação no libelo,
substituindo-a por uma descrição suficiente dos factos em que se baseava a pretensão do
autor.
§ 1925. Depois, a desformalização e desritualização do processo fomentou uma
exposição menos atomística das formas de processo, cada qual ligada a uma ação
particular, o que culminou na identificação de princípios gerais comuns a todas as ações. No
seu Tratado da forma dos libelos (1549)3499, uma obra confessadamente prática, Gregório
Martins Caminha trata uma por uma as ações, tais como vinham enumeradas nas
Institutiones de Justiniano, sem se abalançar a uma visão de conjunto que salientasse traços
comuns ou princípios gerais3500. Mas João Martins da Costa (15--/16--), que anota
copiosamente a mesma obra c. de 50 anos depois (1610), já tenta libertar-se desta descrição
atomística de cada ação (libelo) para tentar identificar princípios gerais comuns a todas ou,
pelo menos, a um grupo delas. Segundo ele (Adnotatio I., ns. 1 e 2), os juízes discretos e os
advogados conhecedores mais antigos costumavam examinar diligentemente a forma dos

3497 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,VI,26: “todas as obrigações derivam do

consenso e não de palavras orais ou escritas”. Cf. também a nota ao texto. Num outro passo, ao
justificar que o livro 4, cujo tema tradicional eram as ações, incluísse as obrigações e até começasse
por estas, pondera que as obrigações são “como que as mães das ações” (“Prefácio” ao Livro 4).
3498 Modelo que o direito romano clássico conhecia, mas apenas para um certo tipo de ações, as

actiones praescriptis verbis ou as ações pretórias in factum conceptae.


3499 Coimbra, António de Mariz, 1558 (http://purl.pt/23247, 14.08.2013; a primeira edição é de 1549;

o A. foi corregedor em Cabo Verde, de 1560-1562). Nova edição, com anotações de João Martins da
Costa, a partir da ed. de 1610; ed. de 1764, p. 3 (http://bibdigital.fd.uc.pt/H-D-22-11/H-D-22-11_item2/H-D-22-
11_PDF/H-D-22-11_PDF_01-C-R0120/H-D-22-11.pdf, 2013.8.12; foi sendo reeditado até 1824).
3500 O mesmo faz Manuel Mendes de Castro, na sua célebre Practica lusitana […], cit., no seu

livro 4 (De actionibus, et quae in unaquaque earum de stylo requirantur), embora comece o livro por
dizer que muitas das distinções tradicionais das ações se tinham tornado escusadas na prática, pois o
nome da ação não tinha que se exprimir no libelo, A fórmula das ações hoje não é necessária,
bastando a exposição dos factos que fundavam o pedido (Ord. fil.,3,63, fin.); e, de facto, no livro 3
(Practica saecularis. De modo, et forma procedendi in causis civilibus, p. 77-139), adota uma exposição
geral da ordem e atos do processo.

561
As ações.
libelos e a qualidade da ação proposta, justamente porque a sentença se formaria de acordo
com o teor do libelo, conforme a Ordenação - (lib. 3, tit. 66, § 2: "Conforme ao libelo"). Em
contrapartida, os juristas “mais modernos”, teriam mostrado “de forma elegante” que “mais
do que descer aos particulares dos libelos, convém antecipar algumas coisas a partir de
proposições universais, pois, na verdade, os progressos de todas as disciplinas são
deduzidos corretamente a partir de preceitos gerais. As coisas gerais ou universais são sem
dúvida o fundamento de todas as especialidades e necessárias ao conhecimento das coisas
individuais”. “E assim – acrescenta (n. 2) -, para o esclarecimento de todos os libelos, é de
observar, em geral” uma série de definições e regras gerais3501.
§ 1926. Por fim, a desformalização do processo trouxe para primeiro plano outros
elementos da ação, nomeadamente o seu objetivo – obter uma coisa, obrigar a um
comportamento (pagamento, prestação de coisa ou de facto) -, o seu destinatário, os seus
requisitos (por exemplo, quanto a prova). São estes elementos que vão passar a constituir os
critérios de agrupamento das ações em géneros, embora subsistam ainda resíduos das
classificações antigas (v.g., a distinção entre ações diretas e ações úteis, entre ações de
direito estrito e ações de equidade, entre ações civis e ações pretórias). Porém, à medida
que ganhava relevo a finalidade da ação, as distinções formais iam, progressivamente,
sendo consideradas como irrelevantes.
§ 1927. Com este progressivo processo de desformalização do processo, nesta fase
tardia do direito comum muito pouco restava já dos elementos puramente rituais do processo
romano.
§ 1928. Um resíduo da das ações sujeitas a ritos (neste caso, ao rito da escrita) era a
ação chirografica, concedida para fazer valer as reclamações fundadas numa escritura
pública, sempre que a essa fosse reconhecido o valor de título executório direto. Neste caso,
para exigir os direitos constantes da escritura, bastava apresentá-la, sem necessidade de
outra demonstração (demonstratio) do direito3502. A causa da pretensão era a mera
existência de um documento e não qualquer situação de facto anterior a este. Em Portugal,
porém, a escritura pública não tinha esse valor executório, dando apenas lugar a uma ação
chamada assinação de dez dias, em que, citado o devedor e apresentada a escritura, ao
devedor era dado um prazo de 10 dias para provar o pagamento ou opor e provar as
exceções disponíveis, algumas das quais se podiam relacionar, não com o título executivo,
mas com a causa substancial que o antecedia. A assinação de 10 dias garantia também as
obrigações constantes de outros “títulos executivos”3503: letras de câmbio3504, livros dos
mercadores (para provar obrigações de quem os escrevesse), testamentos solenes,
sentença judicial transitada em julgado (Ord. fil.,3,258), escritura de dote, uma vez contraído

3501 “Plusquam ad particularia libellorum descendamus, ex universalibus nonnulla praelibare


operae pretium erit; enim vero omnis disciplinae progressus a generalibus praeceptis recte deducitur
[...] ubi eleganter exornat noviores. Generalia quippe, seu universalia sunt veluti cujusque artis
fundamenta ad omnium speciarum, atque individuorum congnitionem omnino necessaria. 2. Igitur ad
evidentiam omnium libellorum generaliter observandum est [...].”.
3502 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,27.

3503 A assinação de 10 dias não era uma ação executiva e, por isso, estes escritos que a

autorizavam não eram verdadeiros títulos executivos (v. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana
[…], cit., liv. 3,21,10, n. 57; Alexandre Caetano Gomes, Dissertações […], Diss. 6 a Ord. fil., 3,25.
3504 Tomé Valasco, Allegationes […], cit., all. 76; Melchior Febo, Decisiones […], cit., p. 1, Aresto

37.

562
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
o matrimónio3505, escrito particular reconhecido pelo autor3506. Era necessário que destes
documentos constasse o montante da dívida líquida e a sua causa, sem o que se teria que
recorrer à ação ordinária. Eram oponíveis as exceções ordinárias, que deviam ser provadas
dentro do prazo assinado. A apelação não suspendia a execução da sentença, mas o
recorrente devia prestar fiança para prevenir a restituição, no caso de a decisão superior lhe
ser desfavorável3507.
§ 1929. No processo criminal, restava o elenco formal dos crimes (nomina criminis), que
fazia com que o caráter criminal de uma ação dependesse da expressa definição pela lei
daquele comportamento como crime (tipicidade, v. cap. 8.1.2). Porém, esta exigência funda-
se, não na ideia de que havia um número fixo de ações, cada qual com os seus requisitos no
formalismo, mas na de tipicidade dos crimes – nullum crimen sine lege – que obstava a que
houvesse “crimes arbitrários”, ou seja, estabelecidos pelo arbítrio do juiz3508.
§ 1930. O desaparecimento de certas categorias de ações relaciona-se, também, com
novos equilíbrios quanto ao poder social de dizer o direito. As ações menos rigorosas quanto
a requisitos formais (ações in factum conceptae, utiles, aequitatis, arbitrariae), que alargavam
o poder dos magistrados, adequavam-se a períodos em que o poder de dizer o direito
(jurisdição) era difuso. Enquanto que, nos períodos de concentração do poder jurisdicional no
legislador, a liberdade de iniciativa e de conformação dos magistrados tendia a ser reduzida.
Esta antipatia pela discricionariedade dos magistrados e a preocupação em os amarrar a
normas jurídicas objetivas nota-se bem nas Institutiones de Pascoal de Melo, que tendia a
classificar todas as ações como de direito estrito, embora considerasse como direito bastante
mais do que aquilo que a lei expressava, incorporando aí os estilos dos tribunais e, até, a
doutrina por eles recebida. É, porém, certo que todos estes tipos menos formais de ações
tinham provindo da necessidade de ultrapassar o formalismo das legis actiones.
Desaparecido este, todas as ações se fundavam nos factos alegados, na utilidade dos seus
propósitos e num largo arbítrio do juiz para avaliar tudo isto. E, por isso, a distinção entre as
ações baseada em razões formais, deixava de fazer sentido, mesmo do ponto de vista
dogmático.
§ 1931. Nas Ordenações, caiu a distinção entre ações diretas e úteis (Ord. fil.,3,63,3),
que apenas tinha sentido no sistema formalista do processo romano por fórmulas (per
formulas), em que os magistrados supriam a impossibilidade de aplicar uma ação prevista na
lei (actio legis) ao caso sub judice; criando então uma extensão da ação (actio utilis)
adequada às circunstâncias do caso e que permitisse salvaguardar os interesses/utilidades
que a lei queria proteger na ação direta (actio directa).
7.1.2 O novo entendimento da ação na dogmática jusracionalista.
§ 1932. Segundo a conceção moderna do direito, que se vem a impor plenamente na
dogmática jurídica do séc. XVIII, as ações não eram direitos, mas meios de prosseguir os
direitos. Por isso, eram institutos adjetivos ou instrumentais para efetivar direitos pré-

3505 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,28.


3506 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,29 (desde que a obrigação não passasse
de 60.000 rs.; a prática era complacente quanto a este limite).
3507 Ord. fil.,3,25; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,28.

3508 Em contrapartida, havia penas arbitrárias, sempre que no estabelecimento de um crime não

se estabelecia a sua pena.

563
As ações.
existentes (abstratos, virtuais) a certos bens ou situações. E não dispositivos que exprimiam
diretamente a titularidade de pretensões jurídicas. A diferença é: “eu tenho uma coisa e, para
garantir isso, uma ação para a obter” ou “eu tenho uma ação para obter uma coisa e, por
isso, tenho essa coisa”. O contrário era verdade na tradição romana, em que as ações eram
dispositivos colocados pela lei nas mãos dos litigantes permitindo-lhes satisfazer as suas
pretensões. A sua origem estava no direito, que as outorgava ou negava, e não em situações
anteriores (“direitos”), já existentes na esfera jurídica de cada um, apenas carecendo de um
processo de efetivação.
§ 1933. Com o advento do legalismo iluminista, a ideia romana antiga de que as ações
tinham origem nas disposições da lei (legis actiones) foi recuperada, pois convinha a uma
política do direito que pretendia cercear os poderes de juristas e juízes. Assim, passou-se a
afirmar enfaticamente que todas as ações eram “civis” ou “legítimas”, pois, agora, todas
tinham origem na lei. As antigas ações pretórias, concedidas pelo pretor, não existiam mais,
já que os magistrados tinham que obedecer à lei e não podiam criar ações com base em
outra coisa que não nela. Isto valia, nomeadamente, para a equidade, que não podia ser
invocada a não ser quando autorizada pela lei, por costume antigo ou pelo uso do foro. Os
tópicos iluministas de reação contra os juízes e os juristas refletem-se, assim, na dogmática
processual.
§ 1934. O antiformalismo dominante levava a que não se distinguissem mais as ações
baseadas no direito estrito e as baseadas na boa fé, reduzindo a boa fé àquilo que a lei tinha
em conta, ou seja, apenas a vontade das partes. Assim, todas as ações geradas por
contratos provinham deles mesmos, como encontro de vontades, e não de extensões da
vontade das partes, excogitadas pelos magistrados, de acordo com o que chamavam os
princípios da boa fé. Todos os contratos eram realmente conformes à boa fé, porque a boa fé
era o respeito efetivo pela vontade das partes. Numa palavra, e combinando os dois
princípios, os juízes nem podiam estender a força da lei, criando ações “pretórias”, nem tão
pouco estender a força da vontade das partes, em nome de cláusulas que as partes não
tinham convencionado.
§ 1935. Existia, no entanto, algum arbítrio dos tribunais. Não podiam criar ações, mas
podiam acertar o pedido nelas feito pelo demandante, sempre que isto fosse indispensável.
Era o que acontecia nas ações arbitrárias, em que o juiz, por si ou com recurso a árbitros,
podia tornar certo, a seu arbítrio, aquilo que estivesse incerto na petição (ou libelo). Isto era
comum quando aquilo que se pedia fosse incerto na quantidade, dependendo de uma
avaliação dos dados de facto (partilha, frutos, ganhos ou interesses - id quod interest -, valor
de benfeitorias).
7.1.3 A classificação das acções.
§ 1936. Nos processualistas mais antigos, a classificação das ações continuava a ser
marcada pela que se encontrava nas fontes romanas, nomeadamente nas Institutiones de
Justiniano, estruturadas a partir das conceções formalistas que acabamos referimos.
§ 1937. Em Manuel Mendes de Castro3509, o tratamento das ações segue uma ordem
menos atenta a uma classificação por objeto ou finalidade do que à estrutura romana do
processo e às suas categorias.
§ 1938. Primeiro trata das ações civis (actiones legis) pessoais (dirigidas contra alguém

3509 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], cit., liv. 4.

564
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
individualizado), enumerando a condictio (c. 1)3510 e a actio furtiva (ou actio furti, c. 1)3511.
Depois, trata das ações civis reais (dirigidas a quem quer que estivesse em certa situação
objetiva relacionada com uma coisa), enumerando a reivindicatio (c.2.1)3512, as actiones
confessoria ou negatoria (c. 2.2)3513. Finalmente, trata das ações civis mistas (c. 3), como a
actio familiae erciscundae (c. 3.1)3514, a actio communi dividundi (c. 3.2)3515, actio finium
regundorum (c. 3.3)3516.
§ 1939. Seguidamente, Castro trata das ações pretórias, de que refere a revocatoria (c.
4.1.)3517, as Clavisiana e Fabiana3518, a Serviana hypothecaria (e pignoratitia) (c. 4.2)3519 e
outras ações pessoais pretórias (v. cap. 6.9.2.3.2), que alargaram a responsabilidade do
pagamento a outros que não o devedor originário, ou porque estas pessoas se obrigaram a
isso (por meio de um pacto, constitutum, donde actio de pecunia constituta), ou porque
mandaram outrem obrigar-se (actio quod iussu), ou porque tinham entregue a outrem um
conjunto de bens para que este os gerisse (actio institutoria, exercitoria3520, c. 6.2; actio de
peculio, c. 6.13521), ou porque tinham adquirido algo que não lhes era devido e que deviam
reembolsar ao seu dono (actio de in rem verso), ou porque tinham uma qualidade (ou
estavam numa situação) que criava responsabilidades (a de pai do devedor, actio adjectitiae
qualitatis).

3510 Pela qual se pedia algo certo (de dar ou de fazer) a alguém, por uma causa relevante

segundo o direito civil.


3511 Pela qual se pedia uma coisa roubada, ao ladrão, a seus herdeiros ou a alguém que lhes

tivesse comprado a coisa.


3512 Pela qual se pedia a entrega de uma coisa com fundamento num direito de propriedade

relevante para o direito civil.


3513 Na confissoria, pedia-se ao réu que confessasse ser o autor titular de um direito (de servidão

ou de outro direito incorporal, como o de cobrar décimas, de apresentar, de eleger) e que prometesse
abster-se de o perturbar; na negatoria pedia-se que o réu negasse ser titular do direito com fundamento
no qual perturba a propriedade do autor.
3514 Para dividir a herança, a pedido de um co-herdeiro, testamentário ou abintestado.

3515 Para pedir a divisão de coisa comum, por um dos comproprietários ou sócios.

3516 Para pedir a marcação ou remarcação das extremas de um prédio, em relação aos

confinantes, recorrendo à fama ou testemunhas.


3517 Ou actio Pauliana. Para revogar uma venda simulada em fraude dos credores, dos filhos ou

do fisco. Tinhas que se provar o débito e a intenção de fraude.


3518 Estas duas ações competiam aos patronos para revogar alienações feitas por libertos em

fraude dos patronos. Tinha que se provar a intenção de fraude.


3519 Dava-se para o proprietário (inicialmente, apenas de um prédio rústico) pedir do devedor ou

de terceiros adquirentes o prédio e as coisas que lá estivessem (invecta et illata) ou os frutos


produzidos, nos casos de incumprimento da dívida garantida. Também se usava para pedir os frutos
que se encontrassem no prédio arrendado, como compensação das rendas em dívida, pois o colono ou
arrendatário só adquiria os frutos uma vez paga a renda. A actio quasi serviana era uma extensão da
actio serviana a todos os bens - rústicos ou não - arrendados ou hipotecados.
3520 Dadas contra aquele que constitui um estabelecimento (taberna, negotium; actio institutoria)

ou contra o dono do navio (actio exercitoria), pelas obrigações contraídas pelo administrador do
estabelecimento ou patrão do navio e relacionadas com o exercício do negócio.
3521 Dava-se contra o pai, pelas obrigações contraídas pelo filho no âmbito da gestão dos bens

que o pai lhe tivesse concedido (peculium).

565
As ações.
§ 1940. Depois de uma referência às ações praetoriae praejudiciales (praetoriae quae ad
poenam competunt, c. 7) que visavam apenas uma declaração e não uma condenação3522,
tratava das ações de boa fé (actiones bonae fidei, c. 8.1), quase todas decorrentes de
contratos não (completamente) tutelados pelo ius civile. Refere a actio ex empto (§ 1)3523, a
evictio (§ 2)3524, a actio redhibitoria (§ 3)3525, actio ex vendito (§ 5)3526, a actio locati, conducti
(§ 6)3527, a actio pro socio (§ 7)3528, a actio depositi (§ 8)3529, a actio mutui (§ 9)3530, actio
commodati (§ 10)3531, actio mandati (§ 11)3532, actio negotiorum gestorum (§ 12)3533, as
actiones tutellae (§ 13)3534, a actio petitionis hereditatis (§ 14)3535, a actio pro dote (§ 15)3536 e
ação de rescisão de contrato sinalagmático por lesão.
§ 1941. Seguidamente, trata das actiones arbitrariae personales in rem scriptis (c. 9),
destinadas a impedir ações legítimas fundadas em contratos nulos: actio quod metus causa
(§ 1)3537; actio ex dolo (§ 2)3538. E, por fim, trata de algumas ações sumárias e de interditos:
actio ad exhibendum (§ 3)3539, interdictos (c. 10) possessórios3540. Fechava (c. 11) com as

3522 Muito frequentemente, eram ações sobre o estado das pessoas.


3523 Dada ao comprador para reclamar a entrega da coisa vendida e frutos vencidos.
3524 Pedindo o preço da coisa vendida que tivesse um defeito ou que não fosse do vendedor.
3525 Dada ao comprador de uma coisa defeituosa (veluti si vendatur domus, quae habet
phantasmata [!!!], vel qua habet malos vicinos) para resolver o contrato recuperando o preço (ou reduzir
este: actio quanti minoris, n. 4).
3526 Inversa à actio ex empto, para obter o pagamento do preço.

3527 Competia ao dono da coisa para ser indemnizado dos danos causados pelo locatário à coisa
(móvel, imóvel, trabalho) locada ou para obter a sua restituição findo o tempo do contrato; ou para pedir
o uso convencionado da coisa locada (D.19,2).
3528 Para um sócio obter do outro aquilo que lhe competisse segundo o contrato ou segundo a

equidade (ex aequo et bono).


3529 Para reclamar a coisa depositada e os seus frutos (directa) ou para pedir a coisa dada em

depósito (contraria).
3530 Para reclamar as prestações recíprocas de um contrato de empréstimo de dinheiro.

3531 Para reclamar as prestações recíprocas de um contrato de empréstimo de uma coisa.

3532 Para reclamar o cumprimento de um contrato de mandato.

3533 Para exigir o cumprimento das obrigações – de prestar contas, de pagar as despesas - que a

boa fé criava sempre que alguém gerisse um negócio de outrem sem mandato (l., 3.27, 1; D.3, 5, 1, 3).
3534 Do pupilo contra o tutor para que prestasse contas (directa) ou para que o tutor exigisse do

pupilo o pagamento das suas despesas na gestão (contraria).


3535 Dada a um herdeiro, com a qualidade já provada, para pedir a entrega da herança de alguém

que a possui.
3536 Para o genro pedir o dote ao sogro que consentiu no casamento, embora o dote não tivesse

sido prometido.
3537 Para que aquele sobre quem foi exercida coação se liberte da obrigação

(http://eprints.ru.ac.za/988/1/Metus.pdf).
3538 Para libertar das promessas aquele que foi enganado.

3539 Ação sumária dada ao proprietário, ao possuidor ou a alguém que tivesse interesse nisso

para reclamar do detentor de uma coisa a sua exibição.


3540 Unde vi - ordem para restituir uma posse antiga perturbada pela força, embora se presumisse

566
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
ações que provinham de malefícios: actio iniuriarum (§ 1)3541; actio legis Aquiliae (§ 2)3542;
actio noxalis3543.
§ 1942. Mais tarde, a ordem das exposições da matérias das ações terá mais em conta
o conteúdo da ação – aquilo que se pede – do que estas categorias formais legadas pela
história do processo romano. Assim, Pascoal de Melo já simplifica e substancializa bastante
a ordem expositiva. Para ele, são apenas quatro os tipos de ações: (i) ações sobre o estado
das pessoas (ou prejudiciais), (ii) ações em que se reclamam (de qualquer pessoa que seja)
coisas (reais, reivindicationes), (iii) ações em que se reclamam direitos a certa(s) pessoa(s)
(pessoais, in personam, condictiones [reclamações]), (iv) acções mistas, participando das
duas últimas categorias (Ord. fil., 3,15)3544.
§ 1943. É destes grupos que se trata em seguida. Mas o que é certo é que a memória
dos modelos romanos e do seu formalismo continuou a pesar sobre a dogmática processual,
sobrecarregando-a de nomes, de modelos, de formalidades e de distinções que já não
estavam em uso na prática.
7.1.3.1 As ações prejudiciais.
§ 1944. As ações prejudicais, relativas ao estado das pessoas, serviam para reivindicar
um dos três tipos de “estado” reconhecidos pelo direito civil: de liberdade, de cidadania (ou
civil, civitatis) e de família. Embora o estado não fosse uma “coisa”, há uma certa
semelhança entre estas ações e as ações reais, pois umas e outras tinham uma eficácia
geral, em relação a todos (erga omnes), e não apenas em relação à pessoa de quem se
reclamava o reconhecimento do estado3545. Entre as ações do primeiro tipo contam-se as
ações de liberdade, frequentes nas regiões onde a escravatura era corrente, e que serviam
para o alegado escravo requerer a liberdade contra o seu senhor3546. As ações sobre o
estado civil compreendiam a reclamação/o reconhecimento, não apenas da qualidade de
cidadão, mas também de outras situações civis relevantes numa sociedade de estados
(qualidade de cidadão ou de vizinho3547, titularidade de ofício, de dignidade ou de privilégio).
As ações sobre o estado de família visavam o reconhecimento de um estado familiar (de filho
[actio de partu agnoscendo], de titular de direito a alimentos, de outra qualidade ou estado

que qualquer posse nova, que não pudesse coexistir com a antiga, era clandestina ou viciada; uti
possidetis - ordem para manter uma posse pacífica e pública (nec vi nec clam nec precario), que
tivesse sido perturbada; adipiscendae hereditatis - ordem para que o herdeiro já reconhecido como tal
adquirisse a posse da herança vacante:
http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/secondary/SMIGRA*/Interdictum.html,
14.08.2013.
3541 Pedia uma certa soma como compensação do dano (damnum) causado por injúria (ato ilícito:

"quod non jure factum est, hoc est contra jus,” D.9, 2, 5.1;
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.04.0063:id=injuria-cn) ao injuriado.
3542 Pedia uma indemnização pelo dano causado por morte ou ferida infligidos culposamente ao

autor.
3543 Ação dada ao injuriado contra o dono ou pai do escravo ou filho injuriante. No caso de dano

causado por animais ou coisas competia a actio de pauperie.


3544 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 4,2,4).

3545 Pascoal de Melo, Institutiones […] civilis, cit., 4,7, nota

3546 D. De liberali causa (D.40,12; C.,7,16).

3547 Ord. fil., 2,55 e 56; D., ad municipalem (D.50,1).

567
As ações.
relativo à família)3548.
7.1.3.2 As ações reais.
§ 1945. As ações reais destinavam-se a reclamar a propriedade de uma coisa contra
uma posse que o autor considerava abusiva3549. No conceito de propriedade cabia o direito
direto sobre uma coisa, com a latitude que o conceito de direito direto (in re) então tinha,
abrangendo direitos adquiridos por herança, servidões, mas também os direitos do credor
sobre os bens penhorados ou hipotecados (dados em garantia real3550). Estas ações eram
dirigidas contra o usurpador de coisa, pelo que pressupunham a prova do direito real
ofendido (do autor), bem como a da posse abusiva (do réu). No caso de propriedade plena
sobre uma coisa certa e determinada, a ação disponível era a reivindicação, pela qual se
pedia ao possuidor (ou simples detentor, como o depositário) a coisa e os seus frutos3551.
§ 1946. Tanto em relação à coisa reivindicada, como aos seus frutos, funcionavam como
defesa várias exceções específicas, que contrariavam o direito do proprietário ou justificavam
a posse ou detenção. Era o caso da exceção de venda ou outro tipo de transação a favor do
possuidor, da de usucapião, ou da de direito de retenção. Estas podiam ser usadas pelo réu
para justificar a improcedência total ou parcial do pedido em relação à coisa reivindicada ou
aos seus frutos3552. O réu, caso fosse mero detentor, podia nomear [“louvar”] aquele de quem
tinha obtido a coisa, livrando-se da ação. Como a prova do domínio era difícil, esta ação
costumava ser cumulada com a ação publiciana (v. abaixo).
§ 1947. Havia outras ações reais, para cobrir outros casos em que os direitos do autor
não cumpriam os requisitos da propriedade quiritária (ou segundo o direito estrito).
§ 1948. Assim, ficcionava-se que existia a propriedade para permitir a recuperação da
propriedade por aquele que, estando ausente por causa justificada, a tivesse perdido para
outrem, por usucapião. Neste caso, a ação a usar não poderia ser a reivindicação, pois a
propriedade do autor já tinha sido perdida (por usucapião). Assim, na base de uma ficção de
que a usucapião não ocorrera, usava-se uma outra ação real – a ação rescisória3553. No
entanto, no caso de o direito dispor que a usucapião não podia correr contra ausentes ou
impedidos por justa causa, a ação rescisória era inútil, podendo usar-se a reivindicação, pois
a propriedade se mantinha no autor.
§ 1949. Outra ação real era a ação pauliana (ou ação revogatória pauliana)3554, utilizada
pelos credores para perseguir os bens que o devedor tivesse alienado a terceiros para, em
conivência com estes, defraudar os credores. Como os credores não eram proprietários dos

3548 Ord. fil., 3,9, 4.


3549 Cf. Anotação (Adnot. II) de João Martins da Costa a Caminha, Tratado da forma dos libelos,
ed. 1764, p. 5. Fontes: Ord. fil., 4,10 ("se hum homem demandasse a outro alguma cousa, dizendo ser
sua").
3550 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones […] civilis, cit., 3,1,12.

3551 I.,4 De actionibus,6,1; D.6,1 De rei vindicatione; C.,3,32.. V. Pascoal de Melo, Institutiones

iuris civilis, cit., 4,6,10.


3552 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 4,6,10

3553 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones […] civilis, cit., 4,6,14

3554 Cf. Gregório Martins Caminha, Tratado […], cit., ed. 1764, “Libello sobre a acção revogatória

pelos bens, que o devedor alheou em prejuízo do credor” e Annot. V (p. 11 ss.).

568
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
bens alienados, mas apenas contavam com eles como garantia dos seus crédito, o direito3555
autorizava-os a reivindicar os bens do devedor como se fossem o devedor e a alienação
fraudulenta não tivesse tido lugar. Em alternativa, podia usar-se uma ação pessoal contra o
devedor, para anular todos os atos em que tivesse diminuído o seu património – alienando
bens ou perdoando dívidas - em fraude dos credores, com a cumplicidade dos terceiros
beneficiados.
§ 1950. Um outro caso de ação real com fundamento num direito que não era a
propriedade plena era a ação publiciana, que se usava no caso de o autor ter um direito
sobre a coisa a reivindicar que não era ainda a propriedade – por exemplo, era seu
possuidor em condições suficientes para a adquirir por usucapião3556. O autor tinha que
provar a posse, a sua duração, o justo título. O demandado podia opor, por exceção, uma
posse melhor.
§ 1951. Como o direito à herança era considerado como quase propriedade, o herdeiro
(legitimo, testamentário ou pactício3557) ou o legatário também podiam usar de uma ação real
para pedir a herança contra alegados sucessores e, assessoriamente, para serem
reconhecidos como sucessores válidos – a ação de petição da herança3558. O réu podia
defender-se com exceções relativas à invalidade ou revogação do testamento ou da cláusula
testamentária ou quanto à legitimidade sucessória do autor. Uma forma especial de petição
de herança era a querela de testamento inoficioso em que se pedia a herança contra um
pretenso sucessor testamentário beneficiado por uma cláusula testamentária inválida3559.
Semelhante era a querela de doação inoficiosa.
§ 1952. Reais eram ainda as ações em que o dono do prédio dominante (servido)
reclamava o reconhecimento de uma servidão, real ou pessoal (serviços; v.g., direitos
banais), a favor desse prédio (ação confessória). Ou em que aquele de que se pretendia a
servidão exigia do dono do prédio dominante o reconhecimento da não existência da
servidão (ação negatória) 3560 3561. Aqui, o fundamento era um direito real não pleno, pelo que
a reivindicação, em sentido estrito, não poderia ser usada. O fundamento da ação negatória
era também um direito real – a presumida plenitude da propriedade (ou liberdade natural dos
prédios) -, que ficaria prejudicada pela existência de uma servidão passiva. Como se tratava
de ações reais, pressupunham que a servidão já estava constituída (por usucapião, contrato,
testamento). As exceções a esta ação relacionam-se com nulidades no título de constituição
da servidão, como a sua extinção, a sua desnecessidade, o seu caráter excessivo ou,
simplesmente, a não existência da servidão no momento da ação. Caso a servidão não
existisse, sendo apenas pedida a sua constituição, a ação a usar era antes uma ação
pessoal (v. cap.4.3.7).
§ 1953. Equiparada à propriedade plena era o direito do marido sobre os bens dotais na

3555 D.42,8 Quae in fraudem creditorum, 9 e 10.


3556 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,13.
3557 Isto é, instituído por pacto sucessório.

3558 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,16.


3559 D.5, 2 De inoficioso testamento; C.,3,28 De inoficioso testamento.
3560 Cf. Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., ed. 1764, Libelo na ação

confessória para pedir serventia, p. 6; Libelo na acção negatória para pedir serventia, p. 9.
3561 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,17.

569
As ações.
constância do matrimónio. Assim, estes podiam ser por ele reivindicados3562.
§ 1954. Outra ação real era a ação hipotecária, pela qual os credores hipotecários
pediam ao devedor ou a terceiros possuidores das coisas dadas em hipoteca, o pagamento
da dívida ou a entrega dessas coisas (Ord. fil.,4,3) 3563. As exceções oponíveis baseavam-se
ou em circunstâncias relacionadas com a validade ou permanência da dívida ou com o
caráter subsidiário da garantia hipotecária, que exigia que, antes de ser acionada, se
esgotasse o património do devedor, como garantia comum dos credores (privilégio de
excussão prévia). Note-se que a ação do devedor para obter de volta as coisas penhoradas,
uma vez paga a dívida, era uma ação pessoal, o que é consistente com a ideia de que o
direito do credor sobre elas era um verdadeiro direito real, tutelado por uma ação real.
§ 1955. Também no caso de o autor não-ser titular da propriedade plena, como nos
casos de domínio dividido (v.g., a enfiteuse), não estariam reunidas as condições para usar
da reivindicação direta, mas apenas da útil3564. Esta aproveitava a qualquer dos titulares do
domínio dividido. No caso da enfiteuse, por exemplo, qualquer dos donos (senhorios) podia
reivindicar o senhorio de que não estivesse em posse, se entendesse pertencer-lhe (o
senhorio direto podia reivindicar o domínio útil e o foreiro o senhorio direto). Havia quem
entendesse que esta distinção era inútil, pois as ações úteis apenas existiam devido a
especialidades do sistema processual romano e, na prática, tinham os mesmos efeitos.
§ 1956. Uma ação relacionada com a reivindicação era a de mera exibição da coisa (ad
exhibendum). O seu interesse era pequeno, já que se podia pedir a exibição na petição da
ação reivindicatória3565, embora houvesse casos em que o interesse em que a coisa fosse
exibida era autónomo (v.g., para exercer a opção ou escolha entre várias coisas, quando se
tivesse essa faculdade).
7.1.3.3 As ações pessoais.
§ 1957. Uma outra categoria de ações era a das ações pessoais.
§ 1958. As ações pessoais nasciam de uma obrigação pessoal, por sua vez originada
num facto lícito – contrato ou quase contrato - ou ilícito – delito ou quase delito – embora
esta enumeração de fundamentos da ação deixasse de fora algumas causas de pedir3566.
§ 1959. A ação geral para pedir o cumprimento de um pacto era a actio ex pacto3567. As
exceções que lhe podiam ser opostas eram relacionadas com factos que afetassem a
validade do contrato – como a invocação de erro, simulação, dolo, coação -, a
impossibilidade ou imoralidade da promessa -, o defeito de forma, a não verificação de uma
condição aposta no pacto (v.g. si nupseris, se casares) –, a cessação da causa de dever –
como o pagamento, a prescrição extintiva, a verificação de uma condição resolutiva, etc..
§ 1960. Se a causa do débito era um contrato, a ação para o exigir era a ação relativa a
esse contrato (ação de mútuo, de escambo ou troca, de mútuo, de locação de obras,

3562 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,12. Excecionalmente, a reivindicação

cabia à mulher (Ord. fil., 4,48 e 60).


3563 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,18.

3564 Cf. Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,11.
3565 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,9.
3566 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,1,3.

3567 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,19.

570
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
etc.)3568.As ações derivadas de contrato (ex contractu) tinham uma estrutura semelhante às
ações ex pacto, apenas com uma ou outra especialidade. Sempre que o pedido era certo
(v.g., quantia certa [condictio certae creditae pecuniae], quantidade certa de coisa genérica
[v.g., condicito triticaria], coisa certa [condictio certae rei]), as acções tomavam o nome e
regime das condictiones, cuja particularidade era a de não necessitarem de demonstratio ,
3569

ou seja, de uma explicação sobre aquilo que o réu devia fazer por força do contrato, pois
bastava indicar no libelo a coisa ou quantia certa por ele devida.
§ 1961. A defesa por exceção contemplava os casos de pagamento, compensação com
outro débito de sentido oposto, perdão ou prescrição extintiva. A estes acresciam as
exceções próprias de cada ação relativa a um contrato específico. Como exemplo: para a
ação por contrato de mútuo, existia a exceção de violação do Senatusconsulto Macedoniano,
que proibia o mútuo a menores (Ord. fil.., 4, 50, 2).
§ 1962. O tribunal competente era o do lugar da celebração do contrato que fundava a
ação.
§ 1963. As ações provenientes de contratos eram estendidas para poderem ser dirigidas
contra réus com quem não se tinha celebrado qualquer contrato, como as dirigidas contra o
mandante de um contrato para lhe exigir as prestações prometidas contratualmente pelo
mandatário. Aqui, o fundamento da ação não era o contrato, mas a equidade, que
responsabilizava o mandante pelas promessas do mandatário (ou procurador) desde que
essas promessas estivessem dentro do âmbito do mandato (actio quod iussum)3570.
§ 1964. No caso de ações por negócios formalmente semelhantes a contratos (quasi
contractus) e aos quais o direito conferisse os efeitos próprios desse contrato, esses efeitos
eram tutelados por ações pessoais especiais, denominadas pelo nome da situação para a
qual o direito concedia estas ações. Estas ações fundavam-se no direito, e não no contrato,
pois não havia contrato. Por exemplo, a gestão de negócios sem contrato de mandato
gerava ações (actiones negotiorum gestorum) que não decorriam de contrato, pois não o
tinha havido, mas diretamente do direito, que concedia a ação em virtude da natureza da
situação de facto. O gestor tinha uma ação pessoal para pedir ao dono do negócio o
ressarcimento por despesas feitas na gestão ou por benfeitorias no negócio gerido, enquanto
que o dono do negócio tinha uma ação pessoal contra o gestor para pedir contas da gestão e
para ser indemnizado de prejuízos do negócio sofridos por dolo ou culpa do gestor3571. Havia
outras situações em que a natureza da própria situação – neste sentido, alguns falam de
direito natural, ou de natureza das coisas - fazia com que o direito criasse ações para sanar
prejuízos injustos ou enriquecimento sem causa3572. É o caso de algumas ações
(condictiones) famosas: condictio indebitii, para reclamar aquilo que fora pago, por erro, sem
ser devido; conditio ex lege¸ para revogar uma doação por ingratidão do donatário (Ord. fil.,
4, 63).
§ 1965. As ações praescriptis verbis eram um resíduo do formalismo do processo civil

3568 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,20.


3569 Inst. Gaii, 4.40.
3570 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,20,3. Tratava-se do mesmo tipo de
fundamento que responsabilizava os pais pelos negócios dos filhos no âmbito do pecúlio.
3571 D. De negotiis gestis (D.3,5; C.,2, 28); Ord. fil., 4,99, 6.

3572 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,4.

571
As ações.
romano. Destinavam-se a reclamar prestações devidas por contratos sem nome no ius civile
e em que, portanto, não podiam ser usadas as ações próprias de um contrato previsto (com
nome) na lei. Na sua proposição (fórmula; mais tarde, libelo, petição inicial), relatava-se a
situação de facto, justificando-se com ela o que se pedia na ação (actiones in factum
conceptae). Com a desformalização do direito contratual, estas ações tornaram-se as mais
comuns. No libelo, embora se pudesse invocar um contrato determinado e enquadrar o
pedido na ação respetiva, o que se fazia era descrever a situação de facto ou citar as
palavras do contrato feito, justificando-se com isso o pedido ).
§ 1966. Certas ações participavam de características de ações reais e de ações
pessoais. Era o caso da ação de partilha, fundada num direito sobre as coisas, como era o
direito do herdeiro (ou legatário), mas também em obrigações pessoais de fazer ou de
prestar que recaem sobre o administrador da herança. Ou da ação de divisão de coisa
comum3573.
7.1.3.4 Interditos.
§ 1967. No conceito de ação cabiam também os interditos, ordens sumárias do tribunal
dirigidos a alguém para fazer ou se abster de certo comportamento ou, vistas as coisas do
ponto de vista do autor, pedidos dirigidos a um juiz para que tais ordens fossem emitidas.
§ 1968. Os interditos relacionavam-se frequentemente com questões de posse,
enquanto esta não pudesse ser defendida por uma ação que averiguasse a substância dos
direitos sobre a coisa. Tratava-se, portanto, de medidas cautelares, que asseguravam
provisoriamente uma situação de facto existente, enquanto a sua legitimidade não fosse
discutida em juízo. Consoante a finalidade e conteúdo da ordem judicial distinguiam-se em
retinendae possessionis (para conservar a posse), recuperandae possessionis (para
recuperar a posse) ou adspiciendae possessionis (para a entrega da posse).
§ 1969. No interdito retinendae possessionis ou uti possidetis (como possuis) o autor
pedia que o réu respeitasse a sua posse, tal como ela existia, enquanto não se provasse
judicialmente a sua insubsistência. Aplicava-se a direitos sobre coisas móveis ou imóveis, ou
sobre estados. Podia-se-lhe opor a exceção de que o réu era proprietário ou tinha uma
posse mais antiga ou melhor. Processava-se com menos formalidades do que as do
processo ordinário, podendo ser sumário quando se temesse a força armada por parte do
réu, caso em que se ordenava que ele se abstivesse disso3574.
§ 1970. O interdito recuperandae possessionis (ou unde vi, onde houve força)3575 visava
a recuperação da posse por alguém que dela tinha sido expulso pela força (por exemplo, a
expulsão violenta do colono ou rendeiro pelo senhor, cabendo também ao proprietário
negligente ou ausente cuja propriedade foi ocupada de má fé ou cujos rendeiros não
abandonassem o prédio arrendado no termo do contrato)3576. Este interdito não protegia
apenas coisas imóveis, mas também coisas móveis e incorporais como a jurisdição, a honra
ou qualquer outro direito3577. Na prática foi introduzida a ação de esbulho, para reintegrar na

3573 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,624.


3574 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,30; Ord. fil., 3,48.
3575 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6, 31.
3576 C., De adquirenda vel amittenda possessione (C.,7.32; D.41.2).

3577 Cf. Domingos Antunes Portugal, De donationibus [.], cit., p. 2, cap. 13, n. 139.

572
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
posse aquele que tivesse sido objeto de esbulho (força nova)3578. Ambos expedientes
processuais eram sumários, bastando a narração dos factos.
§ 1971. O prazo para a sua instauração era de ano e dia3579.
§ 1972. O interdito adipisciendae possessionis destinava-se a pedir a entrega da posse
dos bens da herança, sempre que esta estivesse na posse de outrem que não o
testamenteiro3580. O possuidor podia opor todas as exceções que invalidassem a sucessão
(v.g., não falecimento do de cujus) ou o título sucessório (nulidade do testamento ou cláusula
testamentária, falta de qualidade de sucessor por parte do autor), bem como a não pertença
do bem à herança.
§ 1973. Havia outros interditos. Destacam-se, pela sua frequência na prática, os que
visavam acautelar a disciplina jurídica das edificações urbanas, disciplina que decorria ou de
regulamentações camarárias ou dos direitos dos prédios vizinhos (direitos à luz e sol, às
vistas, à privacidade, à proteção contra as chuvas que caiam dos beirados vizinhos). O
interdito de denunciação de obra nova (operis novi nuntiatio)3581 pedia que o juiz intimasse o
que estava a construir um edifício para parar a obra enquanto não se provasse que tinha o
direito de construir por não haver impedimentos públicos (edilícios) ou particulares
(nomeadamente, impedimentos por direitos dos vizinhos). Este interdito só podia ser
intentado durante a obra, sendo substituído por um outro, este para pedir a demolição de
construção feita às escondidas ou usando de violência sobre o possível denunciante (quod
aut vi aut clam3582), se a obra já tivesse terminado. O edificante podia continuar a obra se
prestasse caução para garantir que a demoliria caso fosse considerada contra o direito3583.
7.1.4 Conclusão.
§ 1974. As ações tratadas por Pascoal de Melo correspondem às referidas por Manuel
Mendes de Castro ou por Gregório Martins Caminha. Já estes, que ainda se acomodavam à
ordem romana de exposição, notavam como o tratamento da matéria processual segundo os
nomes e classes do direito romano se tinha tornado artificial no foro . Com o desuso do
formalismo processual romano - que obrigava a indicar, na petição inicial (libelo) o tipo de
ação que se pedia -, o meio processual que o tribunal iria desencadear passou a decorrer
apenas da própria narração dos factos feita pelo autor na petição. Se lermos as fórmulas de
libelo de Caminha, verificamos que elas nada contém sobre os meios de direito para
satisfazer o autor, apenas descrevendo os factos e enunciando a pretensão do autor. Nesse
sentido, todas ações eram modeladas pelos factos (todas eram in factum conceptae). E,
assim, os dados de facto alegados podiam desencadear várias ações cumulativamente, que
se desenrolariam à medida que a averiguação mais detalhada e certa dos factos se fosse
verificando3584. Era o chamado concurso de ações, que se ia simplificando com o
apuramento dos fatos e a verificação da insubsistência de algumas delas. O processo

3578 Ord. fil., 3,48.


3579 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 1., dec. 82, n. 3.
3580 Cf. Manuel Mendes de Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], cit., 4, cap. 10, n. 3.

3581 D.39, 1, 12; Ord. fil., 1,66, 23 e 25; 3, 78, 4. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit.,
4,6,33.
3582 D.43.24 Quod vi aut clam,3-4.
3583 V. L. de 24.7.1713.
3584 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,34.

573
As ações.
deixara de ter uma espessura e dinamismo próprios, em que um rito processual gerava
“magicamente” um resultado material; passando, progressivamente, a constituir um meio
instrumental, adjetivo, para efetivar pretensões tuteladas pelo direito (substantivo).
7.1.5 Os elementos do processo.
§ 1975. Independentemente dos modelos tradicionais a que obedeciam os meios
processuais (ações, interditos), a forma de discutir juridicamente uma causa e de a decidir –
o juízo 3585, a palavra que então designava o que hoje chamamos de processo - tinha certos
elementos comuns, algo que parecia corresponder a uma ordem natural de processar uma
pretensão jurídica. Foi sobre esta ideia que se construiu a noção de que existia um processo
ordinário (ou comum) e uma teoria unificada do processo3586.
§ 1976. No clássico Vocabularium iuris (1559), de Antonio de Nebrija, registam-se vários
sentidos da palavra “juízo” (iudicium), sendo o correspondente ao que nos interessa o
seguinte: “instância ou ordem de discutir uma causa em direito, perante o juiz […] É um ato
legal de três pessoas, ou seja, o juiz, o autor e o réu, incidindo sobre a mesma questão e
sobre o mesmo juízo” (“instantia vel ordinatione causae discutendae in iure coram iudicem
[…] Est actus legitimus trium personarum, scilicet iudicis, actoris, & rei, super eadem
quaestione aut super eodem iudicium contractus” (v. “iudicium”). Cerca de um século depois,
um dicionarista português famoso define o juízo “como que a posição jurídica, na qual é
discutida a justiça [de uma situação] por aquele que tem jurisdição”3587 (“Dicitur iudicium
quasi iuris status, quo discutitur justitia ab illo, qui habet iurisdictionem [...]”. Já na segunda
metade do séc. XVIII, a definição é similar: “a discussão jurídica de uma causa e a sua
decisão feita por juiz competente” . Os juízos eram classificados segundo as causas, as
3588

pessoas dos litigantes, e os modos de litigar, sendo, por isso, cíveis ou criminais,
eclesiásticos ou seculares, ordinários ou sumários.
§ 1977. Os elementos necessários de qualquer juízo eram: (i) uma certa ordem
processual, pela qual se decidia o modo de discutir; (ii) um juiz competente; (iii) autores e
réus3589.
7.1.6 A ordem do processo.
§ 1978. A ordem processual podia ser de direito natural, válida para todas as causas,
estabelecendo tudo aquilo que, por natureza, devesse fazer parte de uma controvérsia
jurídica. A ordem processual civil compreendia, para além disto, as particularidades
estabelecidas por um direito específico de uma cidade ou reino. Elementos processuais
indispensáveis (naturais) eram. (i) a propositura da ação (libelo, petição inicial); (ii) o
chamamento a juízo (in ius vocatio, citação); (iii) a resposta do réu (contestação, defesa;
podia seguir-se a réplica do autor e a tréplica do réu); (iv) a prova; (v) o termo para a defesa
apresentar as suas provas; (vi) a decisão3590.

3585 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,7,1.


3586 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,7,2.
3587 Antonio Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Iudicium”.

3588 A definição é de Heinéccio, citada por Pascoal de Melo.

3589 Ord. fil., 3,20, Pr.


3590 Para a ordem judiciária romana justinianeia, que veio substituir o agere per formulas, v. Nov.,
N. 53, c. 3; N. 112, c. 2 e 3. Mais influente no processo medieval e moderno foi a ordem processual do

574
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
7.1.6.1 O processo ordinário.
§ 1979. O processo ordinário era o processo comum, tal como ele resultava das
Ordenações.
§ 1980. Embora houvesse especialidades para o processo criminal, o caráter comum do
processo civil fazia com que este fosse o regime supletivo no processo criminal, sempre que
não houvesse uma determinação especial para este. Adiante se especificarão as suas fases,
no direito português3591 (v. caps. 7.1.6.1, 8.1.6).
7.1.6.2 O processo sumário.
§ 1981. A forma processual mais próxima do processo natural era o processo sumário.
§ 1982. O processo sumário3592 aplicava-se às causas que requeressem um
processamento rápido, ou pela urgência de decisão ou pelo seu exíguo valor. Nestes casos,
as formalidades deviam ser apenas as da ordem natural do processo3593. Como o seu âmbito
de aplicação não estava expressamente determinado, a circunscrição da ordem sumária
dependia da doutrina, que aí incluía as ações prévias ou prejudiciais, as cambiais, as
agrárias, as politicas (de polícia), as possessórias, as executivas, as de obras pias, as de
pequena importância e as notórias. Ou seja, as preparatórias ou conclusivas de outras, as de
pequena monta ou muito simples (como aquelas em que o resultado fosse notório) e aquelas
em que a rapidez fosse um valor essencial (como acontecia nas cambiais ou, na fase final do
Antigo Regime, as relacionadas com o governo político).
§ 1983. A principal fonte para a determinação das formalidades do processo sumário era
uma constituição pontifícia compilada nas Clementinas (Clem.,5,11,2 Saepe contingit)3594,

direito canónico, contida nas Decretais (l. II). Cf. as leis pelas quais são recebidos em Portugal e
sucessivamente modificados os modelos processuais do direito comum (L. 21.7.1310, L. 15.9.1352, em
OA, 3,20; OM, 3, 15; L. 5.7.1526, LE-DNL; Ord. fil., 3,20).
3591 V. Ord. fil., 5,117 ss..

3592 Cf. António Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., Acções sumárias, p. 1, cap. 5, n. 2 ss.;

Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,7,13.


3593 Fixada nas Ords. Para a assignação de 10 dias, Ord. fil., 3,25.

3594 “Clem., 5,11,2 Saepe contingit causas committimus, & in earum aliquibus simpliciter & de

plano, ac sine strepitu, & figura iudicii procedi mandamus: de quorum significatione verborum a multis
contenditur, & qualiter procedi debeat dubitatur. Nos autem dubitationem hujusmodi (quantum nobis est
possibile) desidere cupoientes hac in perpetuum validatura constitutione sancimus, ut iudex, cui taliter
causam committimus, necessario libellum non exigat, litis contestationem non postulet, tempore etiam
feriarum ob necessitates hominum indultarum a iure, procedere valeat: amputet dilationum materiam,
litem quantum poterit faciat breviorem, exceptiones, appelationes dilatorias & frustratorias repellendo:
partium advocatorum & procuratorum contentiones & iurgia, testisque superfluam multitudinem
refraenando. Non sic tamen iudex litem abbreviet, quin probationes necessariae, & defensiones
legitimae admittantur. Citationem vero ac praestationem iuramenti de calumnia vel malicia, sive de
veritate dicenda, ne veritatis occultetur, per commissionem hujusmodi intelligimus non excludi. Verum
quia iuxta petitionis formam pronuntiatio sequi debet, pro parte agentis, et etiam rei, si quid petere
voluerit, est in ipso litis exordio petitio facienda, sive in scriptis, sive verbo, actis tamen continuo (ut
super quibus positiones & articuli formari debeant, possit haberi plenbior certitudo, & ut fiat deffinitio
clarior) inferenda. Et quia positiones ad faciliorem expeditionem litium propteer partium confessiones &
articulos ad clariorem probationem usus longaevus in causis admisit. Nos usum hujusmodi observari
volentes, statuimus, ut iudex sic deputatus a nobis (nisi aliud de partium voluntate procedat) ad dandum
simul utrosque terminum dare possit, & ad exhibendam omnia acta & munimenta quibus partes uti

575
As ações.
que determinava as formalidades que se deviam manter e as que podiam ser omitidas ou
simplificadas. A manter eram: a citação, a petição escrita, o juramento de dizer a verdade
(juramento de calúnia ou de malícia), os procedimentos de prova (embora simplificados), a
sentença escrita. Todos os outros atos processuais podiam ser simplificados ou omitidos:
acusação de parte, contestação da lide, prazos processuais, número de testemunhas,
exceções dilatórias ou peremptórias. Porém, se se baixasse para além deste mínimo de
formalidades, o tratamento da questão deixava de corresponder a um processo jurídico (sine
figura vel forma iudicii). Quando muito, poder-se-ia chamar um processo “tumultuário”, o que,
na verdade, não correspondia a processo algum.
7.1.7 Os elementos necessários do juízo.
§ 1984. Entre os elementos do juízo, destacam-se os seguintes.
7.1.7.1 Autor.
§ 1985. O autor3595, que é aquele que intenta ação para obter algum benefício, seja este
uma coisa (nas ações reais) ou uma prestação de alguém (nas ações pessoais)3596.
§ 1986. A capacidade processual ativa era a regra. A incapacidade, a exceção, que
devia estar expressa na lei. Entre as incapacidades processuais ativas contavam-se as que
atingiam: os banidos (Ord. fil.,5,126,7), os excomungados (Ord. fil.,3,49), os menores e os
filhos família (ou equiparados, como as mulheres casadas, em ações sobre todos os bens
que não fossem próprios seus), agindo por si sós (Ord. fil., 3,41) (v. cap. 3.2.4), os
magistrados, na área da sua jurisdição (Ord. fil.,3,9). Embora a propositura da ação
dependesse da vontade do autor, em certos casos podia-se ser demandado para que se
propusesse uma ação: por exemplo, o alegado escravo podia citar o alegado senhor para
que propusesse uma ação contra ele para provar a sua qualidade servil. Também o fiador
podia citar o credor para que intentasse uma ação contra o devedor principal para provar o
seu crédito.
§ 1987. O autor devia limitar-se a pedir aquilo que era autorizado pelo direito, embora o
conteúdo deste fosse sempre controverso. Por isso, a petição claramente abusiva – pelo seu
montante, por antecipação no tempo, ou por não se ter realizado a condição a que a dívida
estava sujeita - era penalizada, podendo implicar a condenação agravada nas custas
(singela ou agravada, v.g., dobro ou “tresdobro”, i.e., três vezes)3597. Um outro meio de limitar

volunt in causa post dationem articulorum diem certam, quandocunque sibi videbitur, valeat assignare:
eo salvo, quo ubi remissionem fieri contingeret, pro testibus producentis possint etiam instrumenta
produci, assignatione hujusmodi non obstante. Interrogabit etiam partes, sive ad earum instantiam, sive
ex officio ubicunque hoc aequitas suaderit. Sententiam vero deffinitivam (citatis ad id licet non
peremptorie partibus) in scriptis, & (prout magis sibi placuerit) stans, vel sedens proferat: etiam (si ei
videbitur) conclusione non facta, prout ex petitione, & probatione, & aliis actitatis in causa fuerit
faciendum. Quae omnia etiam in illius casibus, in quibus per aliam contitutionem nostram, vel alias
procedi potest simpliciter & de plano, ac sine strepitu & figura iudicii, volumus observari. Si tamen in
praemissis casibus solemnis ordo iudiciarius in toto vel parte non contradicentibus partibus observetur,
non erit processus propter hoc irritus, nec etiam irritandus. Data Avinione 13 Kalen. Decembris,
Pontificatus nostri anno secundo. FINIS”
(http://digital.library.ucla.edu/canonlaw/librarian?ITEMPAGE=CJC3&PREV).
3595 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], cit., liv. 1, c. 2.

3596 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,7,15.

3597 Ord. fil., 3,34-36; C.,3,10 De plus petitionibus.

576
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
a litigância excessiva era obrigar o autor a prestar caução pelas custas, a pedido do réu
(Ord. fil.,3,20,6).
7.1.7.2 O réu.
§ 1988. O segundo elemento do processo era o réu, aquele de quem se exigia um
comportamento3598.
§ 1989. A capacidade processual passiva abrangia todos os que podiam administrar os
seus bens. Como o direito de defesa era considerado um direito natural, a incapacidade
passiva era mais restrita do que a ativa; e, assim, os excomungados (Ord. fil.,3,49) e os
banidos (Ord. fil.,5,126,7) podiam estar em juízo para se defenderem.
7.1.7.3 O juiz (competente).
§ 1990. Finalmente, o juiz era o magistrado ou homem bom3599 constituído por
autoridade pública no poder de julgar uma ação (v. cap. 2.6). Como era um magistrado da
república, o seu comportamento devia exprimir disponibilidade para com todos, mas, ao
mesmo tempo, uma gravidade e serenidade que excluíam a excessiva familiaridade e a
leviandade de gestos e postura3600.
§ 1991. O juiz dispunha de competências que não dependiam de pedido das partes (ex
offcio) e que correspondiam àquilo que se chamava o seu officium nobile: dar ordem ao
processo, averiguar a verdade, administrar a justiça. Daqui decorria que devesse interrogar
os litigantes e testemunhas no que fosse relevante para a causa, rejeitar os pedidos não
pertinentes ou formulados de forma obscura, recusar testemunhas inábeis, não permitir
alegações contra o direito ou feitas de maneira conflituosa, não permitir manobras dilatórias.
Para além disso, tinha que julgar estudar a causa (Ord. fil.,3,66,pr.), em conformidade com o
direito (Ord. fil.,1,5,4) e com os fatos que estivessem nos autos (Ord. fil., ibid.). Podia ainda
suprir ex officio deficiências formais do processo. A pedido das partes, i.e., no exercício do
seu officium mercenarium, o juiz podia praticar todos os atos que fossem reclamados pelo
interesse de um só dos contendores. E, assim, tratando-se de atos deste tipo, só os podia
praticar sendo requerido3601. Vigorava quanto a estes atos, em pleno, o princípio do
acusatório, que considerava os atos processuais como expedientes exclusivamente na
disposição das partes.
§ 1992. Os juízes podiam ser ordinários ou delegados.
§ 1993. Os juízes ordinários eram os que detinham uma jurisdição ordinária ou própria,
sendo esta a que tivesse sido conferida, pelo povo, pelo costume, lei, príncipe ou
universidade para o conhecimento (perpétuo, em todo o tempo) de todas as causas ou de
negócios. A definição provinha da glosa e comentários (nomeadamente de Bártolo), ao texto
do Digesto, 2, 1, De iurisdictione, L. 5, more maiorum. Era como que uma jurisdição própria e
universal, apenas restringida pelo universo do corpo a que dizia respeito (o reino, uma certa
circunscrição territorial, uma certa corporação)3602. Se houvesse vários juízes concorrentes,
seria ordinário o que se antecipasse aos outros no conhecimento da questão (prevenindo a

3598 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 47,18.


3599 Aquele que cumpre os seus deveres, o seu officium.
3600 Cf. D.1,18 De officio praesidis, 19.
3601 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,7,22, com exemplos.

3602 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], cit., liv. 2, c. 2.

577
As ações.
jurisdição, efetuando a citação antes dos outros).
§ 1994. Os juízes delegados eram aqueles que apenas dispunham de jurisdição
especialmente delegada por um juiz ordinário3603. Como especial, a jurisdição do juiz
delegado estava delimitada pela carta de delegação, não podendo ser estendida a outros
casos (nomeadamente, prorrogada), nem subdelegada3604). Como delegada, podia ser
avocada pelo delegante, era exercida em nome destes e dava recurso para ele3605.
§ 1995. O juiz (o foro) devia ser competente para conhecer da causa. O foro era
competente em razão das causas gerais que determinavam o foro: domicílio, lugar do
contrato, situação da coisa litigada, lugar de prática do ato ilícito em causa . O foro geral
3606

era o do domicílio do réu. O foro do domicílio (próprio) era o lugar da residência. Portanto,
era no tribunal do concelho de residência do réu que ele devia, por princípio, ser demandado.
Quando ele fosse demandado na qualidade de como que extensão de outra pessoa (o
herdeiro, em vez do de cujus; a viúva, em vez do falecido marido) seguia-se o foro dessa
pessoa. Quem tivesse dois domicílios tinha dois foros e quem não tivesse nenhum
(vagabundos) podia ser demandado onde se encontrasse. Além do foro do domicílio próprio,
todos os naturais de um reino tinham como foro comum (patria communis) o tribunal régio,
onde podiam ser demandados, se se encontrassem na cidade onde este sediasse3607. O
lugar do contrato fixava aí o foro, porque se entendia que isso fora tacitamente
convencionado3608. Todavia, era necessário que o réu aí se encontrasse3609.
§ 1996. Nas ações reais, o foro era determinado pelo lugar da coisa (Ord. fil.,3,11,5-6;
45,10). E nas criminais, pelo lugar de prática do delito (Ord. fil.,1,76,1; 3, 6, pr. e 4).
§ 1997. A jurisdição (ou foro) podia ser prorrogada, quando as partes pacticiamente
acordassem sujeitar a causa a uma jurisdição diferente daquela em que se tinha
apresentado a petição inicial3610. Ou, por disposição da lei, quando a ação (reconventio)
nascia de uma outra anterior (conventio), como nos casos em que, no mesmo processo e
pela mesma causa, o réu pede algo contra o autor (non ego in te sed tu contra me)3611.
§ 1998. Estas regras de determinação do foro competente podiam ser afastadas por
privilégios de foro. Estes podiam ser em razão da causa ou em razão da pessoa. Os
primeiros prevaleciam sobre os segundos.
§ 1999. Na sociedade de ordens de Antigo Regime, os privilégios pessoais eram
inúmeros, estabelecendo foros especiais para certos estados. Na prática, era impossível

3603 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], cit., liv. 2, c. 3.


3604 Cf. António Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 1, cap. 52, n. 11.
3605 Cf. cap. 2.3. Enumeração dos juízes (jurisdições) em Portugal, Manuel Mendes de Castro,

Practica lusitana […], liv. 1, cap. 2. Iudicibus hujus regni.


3606 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,7,23.

3607 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,7,25-26.

3608 Ord. fil., 3,6,2; 2,1-3,

3609 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,7,27.


3610 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,7,30. Cf. cap. 2.3.
3611 Cf. Cassiano Malacarne, “A reconventio: uma exceção canônica ao privilégio do foro

eclesiástico e sua regulamentação em Portugal no começo do século 14”, em


http://www.revistas.ufg.br/index.php/Opsis/article/view/18355/12830#.UaydKEDvuuI.

578
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
enumerá-los exaustivamente, sendo também muito controversa a sua ordem hierárquica. Isto
era uma das causas da confusão jurisdicional, contra a qual, no séc. XVIII, reagem os
juristas iluministas. Em Portugal, Pascoal de Melo escreve: “[…] segundo eu posso
entender, nada mais funesto se pode conceber para a República que este privilégio do
foro, pois, além de as demandas se tornarem imortais, difíceis e complicadas, por se
costumarem pôr infinitas dúvidas sobre a competência de tal privilégio, que coisa há,
pergunto, mais alheia às razões da justiça e humanidade do que fazer vir de longe à
Corte, os agricultores, artífices, etc.? E sobretudo a requerimento dos mais poderosos
que aí moram, e aí desfrutam de muita autoridade e abundam em muitas riquezas?”3612.
§ 2000. Causas privilegiadas eram: as “meramente eclesiásticas”, que incidiam sobre
matérias espirituais (Ord. fil.,2,20,pr.); as da almotaçaria, que pertenciam à jurisdição dos
almotacés (Ord. fil.,2,1,20); as do fisco (Ord. fil.,1,9-10; 3,5,5); e as que, por determinação do
rei, geral (lei) ou especial (privilégio), fossem cometidas a certo juiz.
§ 2001. Em Portugal, tinham ainda privilégio de foro, nas ações em que fossem autores,
nomeadamente: (i) os clérigos3613; (ii) os cavaleiros das ordens militares3614 - nas causas
criminais, pois nas cíveis seguiam o foro comum3615; (iii) os cavaleiros de Malta, em todas as
causas3616; (iv) os soldados, nas causas crime (só após os alvs. 24.10.1764 e 14.2.1772,
sobre a jurisdição do Conselho de Guerra); (v) os estudantes da Universidade de Coimbra
(Ord. fil.,3,12,1). Gozavam de foro privilegiado, como autores ou como réus: (i) os moedeiros
(Ord. fil.,2,62, Alv. 25.5.1733); (ii) os desembargadores (Ord. fil.,1,1,8,6; 2, 59,10-13; 3, 5,
pr.); (iii) os juízes deputados, oficiais e tesoureiros do Tribunal da Bula da Cruzada3617; (iv) os
menores órfãos de pai, as viúvas, as mulheres (honestas) e as pessoas miseráveis (Ord.
fil.,3,5,3 e 5), que podiam escolher ou o juiz ordinário do lugar, ou o Corregedor do Cível da
Casa do Porto, como juiz das auções novas (Ord. fil.,3,39,5), ou os Corregedores do Cível da
Corte. Este privilégio não valia contra privilégios em razão da causa (v.g., fiscais ou de
almotaçaria); nem aproveitava aos privilegiados nos litígios com outro privilegiado mais forte,
como os desembargadores (Ord. fil.,2,59,13)3618.
§ 2002. Os privilégios de foro davam origem a foros (juízos ou tribunais) privilegiados,
para julgar as causas isentas da jurisdição comum.
§ 2003. O mais importante foro privilegiado era o foro eclesiástico (v. cap. 2.4.4.4)3619,

3612 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,7,32.


3613 Em que casos respondiam perante os juízos seculares, cap. 77. Competência dos tribunais
seculares sobre eclesiásticos (Ord. fil..,2,1; comentário em Manuel Álvares Pegas, Commentaria […],
cit., tom. 8, ad Ord. fil.,2,1); António Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 1, cap. 77. Pascoal
de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 1,30,2.
3614 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 3,48.

3615 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 1,11,12.


3616 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 3,54.
3617 Cf. o seu Regimento de 10.5.1634, § 84.

3618 A lei também podia restringir o privilégio em certas situações; por exemplo, não o
concedendo à viúva que fosse donatária de bens da coroa (Ord. fil., 2,35,5), ou que tivesse renunciado
ao privilégio.
3619 Cf. António Manuel Hespanha, “O Poder Eclesiástico. Aspectos Institucionais”, em José

Mattoso (dir.). História de Portugal. O Antigo Regime (1620-1807). v. 4., cit.; José Pedro Paiva, Os
bispos de Portugal e do Império (1495-1777), cit.; Patricia Ferreira dos Santos, Carentes de justiça, cit.;

579
As ações.
sempre objeto de contestação e de tentativas de limitação pela coroa e pela literatura jurídica
regalista, cujo principal representante em Portugal é Gabriel Pereira de Castro,
especialmente pela sua obra Tractatus de manu regia, de 16223620. Os principais argumentos
da controvérsia podem ver-se no “duelo escolástico” entre este autor e Francisco Suarez3621.
§ 2004. O foro eclesiástico era o foro comum para as causas eclesiásticas, ou em razão
da matéria (meramente eclesiásticas) ou em razão das pessoas3622.
§ 2005. O principal tribunal eclesiástico era o tribunal ordinário do bispado (câmara
episcopal, cúria episcopal, tribunal do bispo, tribunal da mitra). Apesar da tendência tardia de
não reconhecer aos juízos episcopais uma ordem processual especial, a doutrina jurídica
anterior aos meados do séc. XVIII defendia que, nos tribunais eclesiásticos, vigorasse o
processo canónico ordinário3623. Este conhecia um conjunto de ações que não existiam no
foro secular, relacionadas com as suas competências (nomeadamente, causas relativas a
esponsais ou matrimónios), bem como tinha procedimentos processuais específicos3624.
§ 2006. Os bispos tinham jurisdição eclesiástica ordinária sobre os fiéis das suas
dioceses3625. Nos casos de foro misto, exerciam a jurisdição se os tribunais episcopais se
adiantassem aos tribunais seculares no conhecimento da causa (prevenção, praeventio).
§ 2007. No exercício das suas funções jurisdicionais, os bispos eram assessorados por
outros oficiais. O principal oficial de justiça dos bispos era, porém, o vigário geral, que atuava
como delegado do bispo para as questões de justiça eclesiástica3626. Os vigários gerais
tinham uma competência muito extensa, a ponto de alguma doutrina os equiparar a juízes
eclesiásticos ordinários3627. No entanto, parece que, em rigor, não era assim. Nem a sua
competência era geral, pois não compreendia as causas matrimoniais e criminais,
reservadas aos bispos, nem davam justiça em nome próprio, mas antes em nome do
bispo3628, pelo que o bispo tinha sempre o poder de avocar e confirmar as suas decisões3629.

Pollyanna Gouveia Mendonça, Parochos imperfeitos: Justiça eclesiástica e desvios do clero no


Maranhão colonial, cit., max. p. 43 ss..
3620 Que, no entanto, viu a sua impressão suspensa por ordem régia, até que se expurgasse de

matérias que ofendiam as pretensões jurisdicionais do rei (v. alv.de 20.5.1622, no início). Em 1640, a
obra é incluída no Index, como acontece, no Index romano, com todas as obras de cariz regalista.
3621 Patricia Ferreira dos Santos, Carentes de justiça: juízes seculares e eclesiásticos […], cit., p.

71 ss..
3622 Cf. sobre os juízos eclesiásticos, Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […]

ecclesiastica (lib. 2); Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 1, caps. 50 ss..
3623 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (= liv. 2).

3624 Sobre eles, Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 1, caps. 56 a 74.
3625 Cf. Conc. Trento, sess. 6, De reformat., cap. 5; sess. 14, cap. 2; Manuel Mendes de Castro,
Practica lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cap.1, § 1; João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 2, liv.
8, disp. 18.
3626 Oficiais subalternos eram o promotor, o escrivão da câmara, o notário apostólico, o

distribuidor, o inquiridor, o contador, os meirinhos, com funções semelhantes aos seus correspondentes
nos tribunais seculares. Cf. Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 1, cap. 54.
3627 Cf. Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 1, cap. 52, ns. 3 a 5 (o vigário geral

faz tribunal com o bispo e é juiz ordinário). Atribuições dos vigários gerais, ibid., cap. 53.
3628 “Vicarius generalis venit sub nomie ordinarii”, João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 2,

liv. 8, disp. 10, § 4, n. 4; no entanto, “potest omnia quae episcopus, exceptis iis quae sunt ordinis

580
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 2008. No âmbito da diocese, podia haver outros juízes eclesiásticos. Podia, desde
logo, haver outros vigários episcopais (vigários forenses, ou da vara), que eram juízes
delegados para causas especiais3630. Mas também o juízo dos abades, prelados inferiores
aos arcebispos, que podiam deter jurisdição eclesiástica por costume ou privilégio3631, com o
âmbito determinado por tal direito especial (normalmente, o de uma comunidade regular).
Em todo o caso, não podiam exercer a sua jurisdição sobre causas matrimoniais e criminais,
reservadas aos bispos3632 e a sua jurisdição era cumulativa com a destes, sendo exercida
por uns ou outros de acordo com a regra da prevenção3633. O bispo podia ter um vigário
geral, separado, para os assuntos meramente espirituais, a que se chamava provedor
(provisor) 3634; mas, geralmente, era o vigário geral que acumulava estas atribuições.
§ 2009. Em alguns bispados havia uma mesa de juízes eclesiásticos, ou assessores dos
bispos, reunindo estes magistrados episcopais. A sua existência, competência e
funcionamento vinham regulados nas constituições do bispado3635. Os tribunais episcopais
eram designados, por vezes, por tribunais da mitra. Nos casos em que os bispos gozassem
também de jurisdição secular, como senhores de terras (como era, por exemplo, o caso dos
bispos de Coimbra, a quem os reis tinham concedido senhorios), havia uma certa confusão
entre a jurisdição senhorial do bispo e a sua jurisdição eclesiástica, ambas residindo no
tribunal episcopal3636.
§ 2010. Os arcebispos dispunham, além da jurisdição episcopal ordinária, para
conhecimento de causas em primeira instância, de uma jurisdição ordinária de recurso (em
apelação), que abrangia os fiéis das dioceses sufragâneas 3637. Por isso, as relações
eclesiásticas, instituídas nas arquidioceses (ou sés metropolitanas), julgavam os recursos
dos tribunais episcopais3638.
§ 2011. O Tribunal da Legacia ou Tribunal da Nunciatura Apostólica (ou do Collector) era
um tribunal de recurso das sentenças dadas nas causas eclesiásticas das metrópoles e dos
isentos. Julgava em 2ª instância as causas eclesiásticas das metrópoles e dos isentos, e em

episcopalis”, ibid., n. 6; sobre os limites das suas competências jurisdicionais, ibid., n. 15.
3629 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cap. 3, n. 2.

3630 Cf. Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 1, cap. 52, n. 6.
3631 Cf. Conc. Trento, sess. 24, De reformat., cap. 20; Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana
[…] ecclesiastica (lib. 2), cap.1, § 2, n. 5.
3632 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cap.1, § 2, n. 6.

3633 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cap.1, § 2, n. 7;

João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., 2, liv. 11, disp. 24.
3634 Cf. Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 1, c. 52, n. 14; também Manuel

Álvares Pegas, Resolutiones forenses […], cap. 18.


3635 Cf. Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 1, cap. 52, n. 16.

3636 Sobre a Mitra de Coimbra e a sua jurisdição, v.


http://www.uc.pt/auc/fundos/ficheiros/DIO_MitraEpiscopalCoimbra, 21.3.2014.
3637 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cap.1, § 5, n. 13;

João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., 2, liv. 7, disp. 17.


3638 Cf., para a da Bahia (criada em 1676), Regimento do Auditório Eclesiástico, do Arcebispado

da Bahia, metrópole do Brasil e da sua Relação, e Oficiais da Justiça Eclesiástica, e mais cousas que
tocam ao bom Governo do dito Arcebispado, ordenado pelo Ilustríssimo Senhor D. Sebastião Monteiro
da Vide, São Paulo, Typographia 2 de dezembro, 1853, p. 5-148.

581
As ações.
3ª instância as das outras dioceses3639.Constituiu-se por Breve de Júlio 3, em 21 de Julho de
1554, para evitar a expatriação da jurisdição e diminuir os recursos à Santa Sé3640. O
primeiro Legado da Santa Sé em Portugal foi o Infante D. Henrique. Do Juízo da Nunciatura
recorria-se para a coroa. Interposto recurso, devia o juiz Eclesiástico (ainda que fosse o
núncio, ou o seu auditor) cumprir imediatamente a sentença, mandando reparar a usurpação
ou violência. Os principais órgãos eram o núncio apostólico, o auditor geral das causas ou
auditor da legacia, o juiz comissário (executor das causas e negócios), o notário e o escrivão.
Este tribunal foi extinto por Decreto de 23 de Agosto de 18333641.. Dado que a sua
competência era apenas de recurso, este juízo não se devia imiscuir – sob pena de recurso
de “proteção régia” – na jurisdição dos juízes ordinários eclesiástico, avocando causas em 1ª
instância, visitando mosteiros isentos ou sujeitos ao ordinário, intervindo no governo das
ordens religiosas3642. A política regalista, sobretudo na segunda metade do séc. XVIII, tendeu
a reduzir e fixar a jurisdição deste tribunal. Assim, circunscrevia a sua jurisdição aos casos
expressamente previstos nas cartas que lhe fossem concedidas pelo rei, dando recurso
extraordinário para o Desembargo do Paço, ou ordinário para os juízes dos feitos da Coroa
da Casa da Suplicação no caso de abuso de jurisdição. Para além de que se lhe proibia a
imposição de censuras aos magistrados temporais e a execução das sentenças, sem
recurso ao auxílio do braço secular3643.
§ 2012. Também a capela-mor real tinha o seu juízo eclesiástico especial, o do capelão-
mor da capela real3644, com jurisdição cível e criminal sobre os eclesiásticos membros da
capela, em virtude de concessões papais (de Leão X, Clemente VII, Júlio 3 e Pio IV3645). A
sua jurisdição era cumulativa com a jurisdição temporal (neste caso, dos corregedores da
corte da Casa da Suplicação)3646.
§ 2013. Um juízo eclesiástico mais relevante era o do Juiz das Três Ordens Militares
Gozava de jurisdição crime3647 eclesiástica sobre os cavaleiros-comendadores3648 dessas

3639 Tratava-se de um recurso extraordinário (súplica, de terceira instância), teoricamente dirigido


ao Papa, mas julgado por este seu legado. Cf. cap. 1, § 6, n. 15; João Baptista Fragoso, Regimen [...],
cit., p. 2, liv. 4, disp. 10; António Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 1, cap. 79.
3640 António Manuel Hespanha, “O Poder Eclesiástico. Aspectos Institucionais”, em, José Mattoso

(dir.). História de Portugal. O Antigo Regime (1620-1807), v. 4., cit., 288; Graça Salgado (coord.).
Fiscais e meirinhos […], cit.. 119-120.
3641 (http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=4335877).

3642 A não ser no caso em que estes fossem negligentes, conforme as disposições do Conc.

Trento, sess. 24, De reformat, cap. 20; Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica
(lib. 2), cap. 1, § 6, n. 15.
3643 Francisco Salgado de Somoza, Tractatus de regia protectione […], cit., de 1647); Gabriel

Pereira de Castro, De manu regia tractatus […], cit., de 1622-1625; António Vanguerve Cabral, Pratica
judicial [...], cit., p. 1, c. 78; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,7,34.
3644 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cit., cap.1, § 3; Jorge de

Ataíde, Privilegia, facultates, jurisdictiones [...] Cappelani maioris regio, cit..


3645 Jorge de Cabedo, De patronatibus […], cap. 43.

3646 Cf. decisão de 1617, em Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib.

2), cap.1, § 3, n. 9.
3647 As causas cíveis em que fosse parte um cavaleiro-comendador eram da competência do

corregedor da corte da Casa da Suplicação (Ord. fil.,2,12,1).

582
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
ordens, como pessoas eclesiásticas e sobre as comendas, como benefícios eclesiásticos3649,
por concessão Pio IV (papa de 1559-1565) aos reis de Portugal, como grão-mestres das
Ordens e delegados ad hoc do Papa.
§ 2014. Também os cavaleiros da Ordem Militar de S. João de Jerusalém (do Hospital
ou de Malta) dispunham de um juízo privativo3650 que conhecia privativamente das causas
acerca de pessoas ou coisas da ordem3651. Neste caso, e ao contrário do que acontecia com
o juiz das outras ordens militares, o foro privativo incluía as ações crimes e cíveis.
§ 2015. Um outro juízo eclesiástico era o da Bula da Cruzada, que conhecia das
questões referentes a este imposto, como as relativas à cobrança das suas rendas3652. A
instância jurisdicional era o Tribunal ou Junta da Bula da Cruzada, que conhecia, por
apelação ou agravo, das decisões dos Comissários da Bula, bem como dos recursos das
decisões dos provedores, quando atuassem como juízes especiais dos oficiais e pessoas
privilegiadas da Bula (alv. De 28.9.1761).
§ 2016. Finalmente, o Tribunal da Inquisição (do Santo Ofício da Inquisição), com
competência exclusiva em matéria de heresia, apostasia, blasfémia e sacrilégio, bem como
em certos crimes sexuais, como a sodomia3653. Os seus tribunais de primeira instância, eram
os de Lisboa, Coimbra, Évora e Goa. Como instância de recurso, o Conselho Geral. Junto de
cada um destes tribunais existia um Juízo do Fisco, que decidia as questões relativas ao
confisco dos bens dos acusados e de certas questões incidentais, como os crimes de falso e
de resistência, bem como as causas em que uma das partes fosse um oficial da Inquisição
ou um seu privilegiado (“familiar do Santo Ofício”). Dando recurso para o Conselho Geral
7.1.8 Elementos acessórios do juízo.
§ 2017. Os processualistas falavam ainda de elementos acessórios do juízo.
§ 2018. Elemento acessório do juízo eram os que podiam patrocinar uma causa:
advogados e procuradores3654, defensores, assistentes e opositores, árbitros.
§ 2019. Os procuradores ou advogados encarregavam-se da defesa técnica das partes,
podendo ser leigos (“procuradores do número”) ou letrados (“advogados”)3655. Os defensores
eram admitidos nas causas criminais (Ord. fil.,3,7,2-3)3656, para justificar a ausência do réu
que, tendo sido citado, não tivesse comparecido (Ord. fil.,3,7,3; Ord. fil.,5, 126, 4; Ord. fil.,
3,20,3). Os assistentes eram os que participavam numa causa alheia para defender o réu,

3648 Ord. fil., 2,12,2.


3649 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cap.1, § 4.
3650 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cap. 1, § 8; Ord. fil., 2,2.

3651 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cap. 1, 8, n. 18.
3652 Cf. Regimento da Bula da Cruzada, de 10.5.1634, ns. 11, 12 e 16.
3653 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cap. 1, § 6; João

Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 2, liv. 5, disp. 13. Regimentos em 15.3.1570, 10.6.1620,
3.10.1630, 22.10.1640, 1.9.1774. Sobre ele, José Pedro Paiva e Giuseppe Marcocci, História Geral
da Inquisição Portuguesa, 1536-1821 […], cit..
3654 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,3,10-11.

3655 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], v. “Advocatus”; cf. Jerónimo da Silva Araújo, Perfectus

advocatus […], cit..


3656 Pascoal de Melo, Institutiones iuris criminalis, cit., 13,6.

583
As ações.
mas também o seu próprio interesse, pois a condenação do réu lhes seria diretamente
prejudicial. Para que a sua intervenção fosse autorizada era necessário que provassem o
seu interesse direto na decisão da causa (Ord. fil.,3,20,32). O opositor intervinha na causa
para excluir ambos os litigantes (Ord. fil.,3,20,31)3657. Alguns autores incluem ainda as
testemunhas entre os elementos pessoais do processo. Mas a opinião comum era a de que
não deviam ser consideradas como tal, já que podiam não existir3658.
§ 2020. A decisão de um diferendo (iudicium) podia ainda ser deferida a árbitros eleitos
por um acordo (compromissum) das partes. A doutrina definia o árbitro como "aquele juiz,
escolhido por acordo das partes, para julgar segundo a ordem do direito"3659. Era
considerado como juiz, gozando de jurisdição "como que delegada" (quasi delegata),
seguindo a ordem de juízo (salvo convenção das partes em contrário), tendo os atos
praticados perante ele os mesmos efeitos que os praticados perante o juiz ordinário3660 e
dando recurso das suas sentenças para as mesmas instâncias de recurso dos juízes
ordinários (os desembargadores dos agravos das relações)3661. Em suma, os árbitros eram
equiparados a juízes ordinários, com todas as funções destes3662. Esta jurisdição
compromissória representava, no fundo, um expediente dogmático para integrar na ordem
judicial os processos informais de composição de litígios que decorressem do acordo das
partes (inter volentes) e que eram muito frequentes na sociedade de Antigo Regime3663.
7.1.9 As fases do juízo.
§ 2021. A ordem de juízo nos tribunais seculares não era a mesma nas causas cíveis e
nas causas crime. Na exposição seguinte, seguimos a ordem processual cível, anotando
especialidades da ordem crime3664.
7.1.9.1 A citação.
§ 2022. A ação iniciava-se com o chamamento a juízo (in ius vocatio, citação), a ordem
pela qual o juiz mandava, a pedido do autor, chamar o réu a juízo, a fim de se defender3665,

3657 Sobre todos estes intervenientes, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Oppositio”, n.
8: “Uma pessoa pode opor-se a outrem por três razões: ou para remover aquele que iniciou a causa, ou
para o assistir, ou para impedir a sentença de execução”; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit.,
4,8.
3658 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Iudicium”, n. 3.

3659 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 1, liv. 5, d. 14, n. 1, p. 709, 1; Manuel Gonçalves

da Silva, Commentaria [...], cit., tom. 1, ad Ord. fil.,3,16, ad rubr., n. 1, p. 21.


3660 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 1, liv. 5, d. 14, p. 727, ns. 46 e 47: a sua

sentença, porém, não constituía título executivo, pois os árbitros não tinham império, tendo que ser
executada pelo juiz ordinário (ibid., p. 1, p. 712, ns. 14 ss.; Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria
[...], cit., vol. 1, ad Ord. fil., 3,16,2, p. 29).
3661 Ord. fil.,1,6,12; 1,37,pr.; 3,16,pr..

3662 Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria [...], cit., vol. 1, ad Ord. fil.,3,16,ns. 7/8; João

Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 1, p. 730, n. 63.


3663 Cf. António Manuel Hespanha, “Justiça e administração.[…]”, cit., p. 155 ss.; mais geral,

António Manuel Hespanha, Lei, justiça, litigiosidade […], cit..


3664 Sobre a ordem judicial nas causas crime. Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit.

p. 1, cap. 32.
3665 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], liv. 3, c. 1; Pascoal de Melo, Institutiones

584
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
ordem sem a qual o processo era nulo, pois o réu não citado não teria a possibilidade de se
defender (Ord. fil., 3,63,5; 3,75). A citação podia ser verbal (por palavra ou por escrito, direta
ou por edital público) ou real (por apreensão da pessoa ou da coisa: arresto). Tinha que
conter os nomes do juiz, dos autores e dos réus, a causa por que estes eram chamados a
juízo e o lugar e dia em que as partes deviam comparecer (Ord. fil., 3,1,5). A citação inepta,
por falta de competência do juiz ou por falta qualquer destes elementos, não produzia
efeitos, mas a cautela mandava que se comparecesse para alegar essas deficiências.
§ 2023. Embora a citação fosse o início formal do processo, ela não caía do céu, tendo
fundamento num conhecimento da situação de facto sobre a qual se litigava.
§ 2024. Nas causas cíveis, este conhecimento provinha de uma petição do autor para
que o tribunal interviesse em certo diferendo. Nas causas criminais, este conhecimento podia
provir de uma denúncia ou querela (v. cap. 8.1.6). Mas, além disso, também de uma
investigação oficiosa (da iniciativa do juiz, “devassa”) perante a fama ou rumor de que se
dera um crime3666.
§ 2025. A citação devia ser feita na pessoa do réu. Estando o réu escondido para a
evitar, a citação podia ser feita em sua casa, perante familiares ou vizinhos, que eram
notificados para lhe comunicarem o facto. Podia ainda ser feita no procurador do réu, se este
o tivesse (Ord. fil.,3,1,9). A citação por edital afixado nos lugares próximos do domicílio do
réu ocorria quando se citava pessoa incerta ou pessoa certa em lugar incerto ou de acesso
perigoso ou impossível (v.g., onde havia peste ou guerra, em casa de poderosos ou em
território coutado às justiças que citavam) (Ord. fil.,3,1,8; 2,53,1). Quando o lugar onde o réu
se encontrava pertencia à jurisdição de outro magistrado, este era requerido, por carta
precatória (rogatória, deprecada ou requisitória), a fazer a citação3667. A citação inicial
obrigava à comparência em juízo e em todos os atos processuais subsequentes. Apenas a
apresentação de testemunhas, a dedução de recurso e a execução exigiam uma nova
citação3668.
§ 2026. Um tipo especial de citação era a citação da alma (in animam), na qual se
intimava o réu a jurar pela alma que não estava obrigado àquilo que o autor pretendia. No
caso de o réu se recusar a jurar, o juramento era deferido ao autor que, para obter ganho de
causa, deveria jurar que o réu lhe estava obrigado naquilo que era pedido na ação (Ord.
fil.,3, 59, 6; 1,49,1)3669.
§ 2027. O réu devia comparecer no tribunal no dia fixado, ou no prazo de três dias. Caso
contrário era condenado à revelia (contumácia). Se aparecesse depois, era obrigado a
aceitar o processo no estado em que este se encontrasse (Ord. fil.,3,15,pr. e 1). Por isso, se
a sentença já tivesse sido dada, mas ainda não tivesse passado em julgado, podia recorrer.
Se já houvesse caso julgado, o réu podia, ainda assim, embargar a execução (Ord.
fil.,3,87,3). Se o contumaz ou revel fosse o autor, ou se prosseguia a ação sem a sua
audição ou se absolvia o réu da instância; se, citado mais duas vezes, não comparecesse,
punha-se termo à ação (Ord. fil.,3,20,18). O autor podia recorrer da absolvição da instância

iuris civilis, cit., 4,9,I.


3666 Cf. António Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit. p. 1, cap. 33 (“Por que meio se

descobrem os crimes”).
3667 Pena que tinha se não cumprisse a deprecada, Ord. fil., 5,119,4.

3668 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,9,11.

3669 Cf. Manuel Álvares Pegas, Resolutiones forenses practicabiles, cit., pt. 1, cap. 2, p. 64.

585
As ações.
por agravo por instrumento ou petição (Ord. fil.,3,14)3670.
§ 2028. Havia pessoas que não podiam ser chamadas a juízo, como as crianças, os
menores impúberes, os menores púberes sem os tutores ou curadores e os mentecaptos
(Ord. fil.,3,29,1; 41,8). Outras, não o podiam ser apenas durante impedimentos temporários:
os clérigos enquanto celebrassem a missa ou os fiéis que a ouvissem (Ord. fil.,3,9,7)3671; os
noivos durante os nove dias seguintes ao casamento (Ord. fil.,3,9,8); os cônjuges viúvos, a
mulher, os filhos e os irmãos dentro também dos nove dias destinados ao luto, Ord. fil.,3,9,9;
os que participavam em funerais até o corpo ser sepultado (ibid.); os enfermos, enquanto a
doença se mantivesse (Ord. fil.,3,9,10); os detidos em cárcere público ou em casa sob
custódia (Ord. fil.,3,9,12).
§ 2029. Razões de decência, relacionadas com as posições relativas de autores e réus,
impediam a citação de certas categorias de pessoas sem autorização do juiz. Era o caso das
pessoas a quem o autor devesse reverência, como os pais, naturais ou adotivos, os
padrinhos e madrinhas, os patronos (de servos libertos) (Ord. fil.,3,9,1 ss.)3672. Também em
matéria de citações se refletia a estrutura corporativa ou estamental do direito, pois havia
categorias de pessoas tinham o privilégio de não ser citadas sem licença régia, passada pelo
Desembargo do Paço (§ 46 do respetivo Regimento): (i) as câmaras (Ord. fil.,3,8); (ii) os
magistrados temporários (como os juízes ordinários ou de fora, os juízes dos órfãos, os
corregedores, etc.3673), nas causas cíveis, durante os seus mandatos (Ord. fil.,3,8 e 9)3674; já
os magistrados perpétuos, como os Desembargadores, etc., podiam citar e ser citados em
todas as causas sem necessidade de licença.
§ 2030. Além de tornar obrigatória a presença do citado em juízo, a citação marcava o
início da causa (Ord. fil.,4,10), bem como da litispendência3675, interrompia a prescrição
sobre a coisa litigiosa (Ord. fil.,4,79,1) e determinava como competente o juiz que ordenara a
citação quando houvesse uma competência alternativa entre dois juízes.
7.1.9.2 Libelo. Contradita e exceções.
§ 2031. Citado o réu, seguia-se a apresentação, pelo autor, do libelo ou petição inicial,
da qual deviam constar a descrição do facto, o fundamento da ação (ou causa de pedir) e a

3670 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,9,15.


3671 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 81.
3672 Sobre o tempo da citação, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,9,19. Sobre quem
pode fazer a citação, ibid., 20, 21. Sobre a citação da mais alta nobreza, “por carta de câmera”, ibid.,
22.
3673 Os juízes pedâneos, os vereadores e os almotacés não eram considerados como verdadeiros

magistrados, pois apenas exerceriam uma jurisdição económica. Cf. Melchior Febo, Decisiones […], p.
2; Aresto 19, n. 2.
3674 Nos feitos crimes não era necessária licença régia, podendo eles ser citados perante o

Corregedor do Crime da Corte, sendo suspensos do ofício (Ord. fil., 3,6, 5; 1, 7, 6; 1, 100; 3, 9; cf. Jorge
de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 1., dec. 209.
3675 Ou seja, do período em que a pendência daquela causa impedia que fosse proposta outra

idêntica, com os mesmos autores, réus, pedido e causa de pedir, ou que fosse alterado o estado
jurídico da coisa em litígio. A litispendência também marcava o período de vigência dos acordos feitos
pelas partes para valerem enquanto a questão fosse litigiosa, Decretais, 2, 16; Clementinas, 2, 5;
Sexto, 2, 8, Ut liti pendente nihil innovetur; Bento Pereira, Promptuarium […], cit., v. “Lis”, n. 1083.

586
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
pretensão (ou pedido)3676. Não era necessário indicar o nome da ação, pois se perdera o
formalismo das legis actiones fixas, tal como existia no direito romano (Ord. fil., 3,63). Mas,
em contrapartida, devia ser descrita a situação de facto que dera lugar à pretensão (um
direito real determinado, nas ações reais, ou uma causa do débito, nas ações especiais),
pois, desaparecido o formalismo antigo em que o nome da ação determinava o seu
desenvolvimento, era necessário a descrição da situação que dera origem a esta para
estabelecer o que devia ser discutido, provado e avaliado juridicamente.
§ 2032. O libelo devia ser breve, omitindo a antecipação de expedientes processuais
futuros (como as respostas a eventuais exceções opostas pelo réu), claro e certo, de modo a
poder ser entendido pelo réu (Ord. fil.,320,5), adequado ao assunto (apto) (Ord. fil.,3,20,16),
simples e bem ordenado, podendo ser organizado por artigos (articulado).
§ 2033. A estrutura do libelo era descrita pelos autores setecentistas como um silogismo
judiciário, “em que a premissa maior é a narração dos factos, a menor, a causa de pedir, e a
conclusão, a condenação do réu”. Note-se que a expressão silogismo judiciário, que viria a
ter tanto sucesso no legalismo, tem, aqui, outra estrutura. A premissa maior não é a lei (ou
um conceito jurídico), mas a situação de facto, o que é consistente com a ideia de que a
solução não decorre de uma regra jurídica, mas antes do direito imanente a uma situação
concreta3677. Dos exemplos dados3678 conclui-se, também, que com “descrição dos factos” se
entendia uma situação de facto típica e as suas consequências normativas (v.g., o
comprador a quem a coisa comprada foi entregue deve pagar o preço combinado). O
silogismo judiciário consistia, então, na subsunção da situação de facto concreta a uma
norma imanente a uma situação de facto típica, o que permitia deduzir que a solução jurídica
prevista nesta última se devia aplicar à situação concreta descrita no libelo. Entre os finais do
séc. XVI e o séc. XIX pontificou, na praxística portuguesa, o modelo de redação das fórmulas
dos libelos de Jerónimo Martins Caminha, na sua obra, muitas vezes reeditada, Tractado da
forma dos libellos e da forma das allegações iudiciaes e forma de proceder no iuizo secular e
ecclesiastico e da forma dos contractos com suas glosas e cotas de dereito (1549).
§ 2034. Embora pudesse ser clarificado até à pronúncia da sentença, o libelo não podia
ser alterado (por exemplo, mudando o pedido ou nomeando outro réu) depois da
litiscontestação. O libelo devia ser escrito, exceto nas causas sumárias, em que o escrivão ia
anotando os elementos relevantes, a partir da exposição oral do autor.
§ 2035. Juntamente com o libelo, o autor devia juntar os instrumentos em que a
pretensão se fundava (v.g., a escritura pública ou os livros de contas dos mercadores, Ord.
fil.,3,20 a 23), sob pena de absolvição de instância. O mesmo valia para o réu, ao contestar o
libelo ou ao aduzir um meio de defesa (exceção).

3676 Manuel Mendes de Castro, Practica […], cit., liv. 3, c. 2; Pascoal de Melo, Institutiones iuris

civilis, cit., 4,10,1 ss.; Ord. fil., 3,20.


3677 “Non ex regula ius sumatur, sed ex iure quod est regula fiat” [Paulo, D.50.17.1.]

3678 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,10, II, nota: “Diz-se que o libelo tem três

partes: a narração dos factos, a causa da conclusão e a própria conclusão. A isto chamam não sem
razão silogismo jurídico […]. Por exemplo na ação de compra: tudo quanto constitui a substância do
libelo se encontra neste silogismo. [1] Aquele que compra e a quem a coisa comprada é entregue deve
pagar o preço convencionado. Eis a premissa maior, que contém a narração dos factos. [2] Titius num
certo dia comprou tal coisa, que lhe foi entregue. Eis a premissa menor, cujo fundamento é a causa
especial do devido [do pedido]. [3] Portanto, é obrigado a pagar o preço convencionado”.

587
As ações.
§ 2036. Ao oferecimento do libelo seguia-se a oposição de exceções (Ord. fil.,3,20),
visando inutilizar a ação. Podiam consistir: (i) na oposição de uma exceção que inutilizasse o
pedido (exceção perentória, Ord. fil.,3,20,15), a que o autor devia responder num prazo de
10 dias ou (ii) na oposição de uma exceção que apenas diferisse para mais tarde a
obrigatoriedade de satisfazer o pedido ou alegasse a incompetência do foro (exceção
dilatória).
7.1.9.3 Contestação da lide.
§ 2037. Na contestação da lide, o réu respondia à substância do pedido do autor,
opondo exceções perentórias dirigidas a inutilizar a sua pretensão (como sentença anterior a
seu favor, transação, pagamento, prescrição) ou aceitava o pedido do autor3679. Avaliadas os
pontos de vista de cada uma das partes (no libelo de nas réplicas do réu), ficavam fixos – e
jurados por ambas as partes - os termos do litígio, constituindo-se – na litis contestatio -
como que o seu resumo essencial, a sua pedra de fecho ou fundamento (lapis angularis et
fundamentum judicii)3680, de acordo com o qual se desenvolveria a atividade do juiz, na
segunda fase do processo.
§ 2038. Por direito comum, a contestação da lide continuou a ser considerada como um
ato essencial, que dava conta da petição do autor e da reação do réu, sobretudo nas causas
criminais3681. Esta reação do réu era tão indispensável como o libelo do autor. Por isso, a lide
deve ser contestada, sob pena de nulidade. Se o réu nada dissesse, a lide não podia ser
dada por contestada, pois se exigia uma declaração expressa dele.
§ 2039. Mas, na verdade, esta fase perdia a dramaticidade que tinha no direito romano,
porque a causa continuava a correr diante do mesmo juiz, não transitando – como em Roma
– de um magistrado com poderes de configuração da lide para um juiz cujo programa de
atuação ficara traçado na contestatio. Daí que, no direito português, as Ordenações
permitissem ao juiz dar a lide por contestada uma vez recebido e aceite o libelo, embora o
réu continuasse a poder apresentar a sua versão, confessando ou negando (Ord. fil., 3,20,5;
5,124,pr.). Mesmo por direito comum, a contestação da lide não existia em todas as ações:
por exemplo, não existia nas causas sumárias em que se procedia de plano et sine figura
iudicii, não se oferecendo libelo escrito3682; ou quando os contornos da causa eram fixados
pelo juiz, como no processo inquisitório3683; ou quando o objeto da lide tivesse sido fixado
antes, por transação ou por confissão do réu; ou em tipos de causas em que isso estivesse

3679 V. Ord. fil. 3,20,5; 5,124,pr.. Fórmulas: Gregório Martins Caminha, Tratado […], cit., Adnot.

40-41; Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], cit., 3, cap.. 10; Manuel Antonio Monteiro {…]
da Costa Franco, Tractado practico jurídico civel, e criminal […], cit, pt. 1, cap. un., n. 20 (pg. 4);
Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 49, 12.
3680 No processo romano, a litis contestatio era um momento importantíssimo, em que culminava

a fase in iure, fixando-se o programa processual da fase apud iudicem. Discutidos os aspetos jurídicos
perante o pretor (na petição inicial e nas exceções, fixava-se aquilo que estava em causa e que teria
que ser averiguado e provado pelo juiz.
3681 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Litis”, n., n. 6 (“a litis contestatio é a

narração do negócio principal, feita por um e por outro, feita a narrativa seguida de resposta, ou
negando ou confessando” [est negocii principalis hinc inde [de um lado e de outro] apud iudicem facta
narratio, & subsecuta responsio, sive negando sive confitendo]).
3682 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Litis”, n. 11.

3683 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Litis”, n. 12.

588
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
estabelecido, em função de outras circunstâncias (certas causas sobre benefícios, ofícios e
dignidades, causas de décimas, de usuras, de extremas, certas causas matrimoniais3684
§ 2040. A litiscontestação tinha efeitos importantes: entre outros, invertia a propriedade
dos frutos da coisa pedida, interrompia a prescrição, constituía o réu em má fé3685.
§ 2041. O autor respondia à contestação do réu ou às exceções por este opostas,
mediante réplicas, admitidas apenas nas ações ordinárias (mas não nas sumárias, Ord.
fil.,3,18,3 ss.). A réplica devia ser alegada na audiência seguinte (Ord. fil.,3,20,19 a 21); este
prazo – como todos os prazos judiciais – era perentório, ou seja, o seu não cumprimento
fazia vencer a posição do réu (em geral, da outra parte).
§ 2042. Tanto a contestação como as réplicas enquadravam-se na figura geral das
exceções3686, ou seja, eram alegações de uma das partes para a sua defesa3687. Umas
tinham por objetivo resolver a causa (exceções perentórias3688). Como quando se atacava o
processo por nulidade essencial (suspeição ou corrupção do juiz3689, a falta de citação) ou se
atacava o pedido, por total insubsistência (nulidade do negócio, caso julgado, pagamento,
prescrição extintiva, Ord. fil.,3,50). Estas exceções podiam ser opostas em qualquer
momento do processo ou mesmo depois da sentença, como no caso das exceções que
arguiam a nulidade do processo. Outras apenas diferiam a causa para outro momento ou
juízo (exceções apenas dilatórias3690); podiam ser referidas à jurisdição do juiz
(incompetência3691, pendência de outra ação com o mesmo pedido, suspeição), à
capacidade processual do autor (excomunhão), do réu (inabilidade) ou do procurador de
qualquer deles (falta de mandato), à validade de atos processuais (ineptidão do libelo, não
observância das férias judiciais) ou, finalmente, a uma circunstância do negócio discutido
(moratória, pacto de não pedir) (Ord. fil.,3,49). As exceções apenas dilatórias deviam ser
opostas antes da contestação da lide.
§ 2043. Era muito frequente que estas peças processuais revestissem a forma de
articulados numerados, especificando em artigos separados os vários pontos de facto e de
direito.
§ 2044. Este processo contraditório, que podia ser muito complicado se se
confrontassem exceções de parte a parte, está regulado nas Ordenações (Ord. fil.,3,20). O
princípio geral era o de que a cada posição de uma das partes, uma vez recebida pelo juiz,
devia seguir-se a vista à outra, para resposta.

3684 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Litis”, ns. 14 a 25.
3685 V. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Litis”, n. 8.
3686 Ord. fil., 3,20, ss.; Manuel Mendes de Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], liv. 3,

c. 3; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,13.


3687 No direito romano, as exceções, tal como as ações, estavam tipificadas na lei e tinham

nomes (cf. D.44,1 De exceptionibus; C.,8,35 De exceptionibus; I.,4,13).


3688 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], cit., liv. 3, c. 4:

3689 Sobre a competência para conhecer destas exceções, Pascoal de Melo, Institutiones iuris

civilis,4,13.
3690 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], cit., liv. 3, c. 3.

3691 A declinatio fori alegava a incompetência do tribunal em que ação fora intentada e indicava

outro como competente; se aceite ou não contestada dava lugar à prorrogatio jurisdictionis, ou seja, a
atribuição da competência a um tribunal diferente do indicado no libelo.

589
As ações.
7.1.9.4 Prazos.
§ 2045. O ritmo da ação era marcado pelos prazos (dilationes)3692, uns determinados
pela lei, outros por convenção das partes, outros pelo juiz. Os prazos mais importantes eram
o prazo para comparecer em juízo (dilação citatória, Ord. fil.,3,1,5), o prazo para o réu
deliberar se queria contestar a demanda ou ceder (dilação deliberatória, Ord. fil.,3,20,2), o
prazo para apresentação de prova (dilação probatória, Ord. fil.,3,54) e o prazo para recorrer.
O prazo probatório ordinário era de 20 dias, que, nas ações ordinárias, se prorrogava a
pedido da parte por mais 10 dias, se houvesse justa causa e se a parte prestasse caução
(juramento de malícia) (Ord. fil.,3,54,1). Se a prova fosse feita fora da cidade e,
nomeadamente, no ultramar, o prazo era fixado em função das circunstâncias dos lugares
(Ord. fil.,3,20,26; 3,54, 2 a 8 e 13). O pedido de prova fora do reino presumia-se malicioso e
não suspendia o processo. A prática, porém, era muito mais permissiva. As férias eram um
prazo especial, em que se suspendiam as atividades forenses (Ord. fil.,3,18).
7.1.9.5 As provas.
§ 2046. As provas3693 eram os atos pelos quais as partes tentavam demonstrar ao juiz a
sua versão sobre um facto controverso. Podiam ser feitas: (i) por testemunhas; (ii) por
instrumento ou documento; (iii) por juramento; e (iv) por confissão.
§ 2047. Na época moderna não subsistiam já as provas por sortes nem o duelo
probatório.
§ 2048. Não se tinha que provar o que fosse notório ou o que fosse inevitavelmente
incerto. Também o direito comum (ou o direito comum do reino), que o tribunal devia
conhecer (ius novit curia), não tinha que ser provado (Ord. fil.,3,53,7 a 9), mas apenas o
direito particular e os costumes não escritos. Excecionalmente, a prova podia ser feita fora
de uma causa: era o caso da prova para memória futura (ad perpetuam rei memoriae),
requerida pelo interessado quando temesse que a possibilidade de provar desaparecesse
(Ord. fil.,3,55,7 a 8).
§ 2049. A demonstração dos factos podia fazer-se a partir dos factos conhecidos, como
no caso das coisas notórias ou das presunções, baseadas na evidência natural ou na
verosimilhança. Outras provas requeriam mais do que isso, como a produção de
testemunhos ou de documentos.
§ 2050. Certos meios de prova tinham uma força plena (prova plena), como os
documentos dotados de fé pública ou o testemunho concorde de duas testemunhas acima
de qualquer dúvida, pois produziam uma carga de convencimento bastante para fundar, por
si só, a decisão da causa. “Semiplena”, em contrapartida, era a prova que, não sendo
suficiente em si mesma, teria de ser conjugada com outros subsídios para servir de base à
convicção do juiz. Era o caso de um único testemunho3694 (ou de dois menos fiáveis), a
confissão extrajudicial, o escrito particular, a semelhança da letra, as presunções simples
(que criavam uma verosimilhança que podia ser elidida por prova mais forte em contrário).
§ 2051. Central era, neste domínio, a distribuição pelas partes da obrigação de provar
(ónus da prova). As regras gerais eram duas. A primeira era a de que tinha que provar

3692 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4, 14,1 ss..


3693 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,16,
3694 Daí a razão de ser da oposição dos juristas à regra da suficiência do testemunho único (e

secreto) que vigorava no processo da Inquisição.

590
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
aquele que alegasse um facto e a quem aproveitasse essa alegação (onus probandi incumbit
ei qui dicit, actor probat actionem, reus exceptionem)3695. A segunda era a de que quem não
conseguia provar aquilo que alegava decaía na sua pretensão (allegatio et non probatio,
quasi non allegatio).
§ 2052. Estas regras tinham algumas limitações. A primeira era a de que aquele a quem
aproveitavam factos que não tinham que ser provados não decaía se não os provasse. A
segunda era a de que aqueles a quem aproveitasse uma presunção não tinham que provar
as consequências dessa presunção, mas apenas aguardar que o adversário não provasse o
contrário (v. Ord. fil.,3,79,2). Outra limitação referia-se à prova negativa, à prova de que certo
facto não aconteceu – v.g., que não se é herege, que não se praticou um facto, etc..
Segundo a lição dos canonistas, só o diabo podia provar (daí, probatio diabolica) que uma
coisa não acontecera: uma testemunha podia assegurar que não vira o réu cometer o crime,
mas seria praticamente impossível testemunhar que o réu não o cometera. Neste caso,
quem tinha que provar era quem afirmava que o facto se produzira: “paguei”, “cometeu este
crime”, “está de má fé”, “usei a coisa de forma pública e pacífica” (Ord. fil.,3,53,10). O
processo perante a Inquisição não acolhia este princípio, obrigando o réu a provar que não
cometera o crime de que era acusado, o que correspondia a adotar uma presunção de
culpabilidade. Esta foi uma das principais razões pelas quais os juristas reagiram contra a
ordem processual da Inquisição – outra foi a admissibilidade de um testemunhas únicas e
secretas.
§ 2053. Na avaliação da prova, a evolução foi a de uma conceção mágica, em que a
prova valia segundo critérios fixos e obrigatórios, estabelecidos pelo direito, para uma
conceção psicológica, em que dominava a livre apreciação pelo juiz, embora vinculado ao
saber comum. Pascoal de Melo representa bem o termo final desta evolução, hostil ao valor
tarifado das provas: Ҥ X - Embora nos factos humanos o juiz dificilmente possa obter uma
certeza absoluta, salvo se viu com seus próprios olhos, pois as testemunhas ainda as mais
honestas podem errar e enganar, e os próprios instrumentos públicos também podem ser
falsificados, todavia, como o facto duvidoso em litígio tem que acabar por ser certo e
provado, há necessariamente que definir na vida civil um modo certo de prova que se
aproxime o mais possível da verdade no consenso geral das pessoas; para tal efeito, deve
admitir-se em juízo esta certeza e prova plena, parecendo que o juiz deve manter aquela que
se pode e costuma admitir pelo consenso das pessoas; tal é a que se faz por instrumentos
públicos ou testemunhas acima de toda a dúvida. As presunções de direito são havidas
como prova verdadeira e perfeita, se não forem elididas por outras provas, e é de harmonia
com elas que se deve pronunciar a sentença. Pelo contrário, as presunções dos homens as
chamadas provas semiplenas nem fazem prova perfeita e fé plena se não se apoiarem
noutros elementos, nem tornam o juiz tão seguro de que pode julgar por elas” .
3696

§ 2054. Esta convicção do juiz não era, porém, um facto puramente psicológico, mas
antes uma hermenêutica do senso comum. Senso comum que incorporava valores e visões
do mundo. Isto ficava claro nas regras heurísticas quanto ao valor relativo de provas de
sentido contrário. Por exemplo, a fé das testemunhas aferia-se pela sua dignidade, nobreza,
riqueza ou outra qualidade externa; a testemunha de visu devia ser preferida a outra (Ord.
fil., 1,86,1); o testemunho imediato valia mais do que o mediato (de outiva, de ouvir dizer,

3695 D.22,3 De probationibus; C.,4,19 De probationibus.


3696 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,16,10.

591
As ações.
embora este, na verdade, correspondesse ao testemunho de uma série de pessoas que
sucessivamente abonavam algo que tradicionalmente era tido como verdade ); em coisas
3697

antigas, a outiva era tida como mais natural e mais credível; a fama pública e os rumores
eram relevantes, embora constituíssem apenas um indício; o documento escrito tendia a
provar mais do que o testemunho . A esta hierarquização estão subjacentes
3698

representações culturais sobre a fiabilidade dos sentidos, bem como - na valorização da


fama – uma certa ideia acerca das relações entre parecer e ser característica das
sociedades tradicionais: aquilo que é geral e continuamente tido como verdadeiro vai criando
verdade jurídica e, mesmo, realidade substancial (a tradição gera natureza).
7.1.9.5.1 As presunções.
§ 2055. Um primeiro meio de prova era a invocação de presunções, uma espécie de
prova automática, que não exigia a atuação das partes.
§ 2056. As presunções eram, segundo a doutrina da época, conjeturas verosímeis,
induzidas a partir de sinais (“do próprio âmago da situação de facto”, escreve Pascoal de
Melo), de acordo com a natureza das coisas ou com o que acontece o mais das vezes (id
quod plerumque accidit) e assumidas com o fim de provar uma coisa .
3699

§ 2057. As presunções podiam ser estabelecidas ou pelo direito (praesumptiones iuris)


ou pelos homens (praesumptionis hominis), pelo conhecimento comum que têm da ordem do
mundo - da natureza das coisas (tem que se provar o anormal, o monstro, o inaudito),
daquilo que acontece o mais das vezes (tem que se provar o excecional), da estabilidade
das situações (tem que se provar a mudança), da bondade do mundo (presume-se o mais
favorável) . Daí que: se presuma que o filho nascido na constância do matrimónio é
3700

legítimo; que os pagamentos feitos correspondem a dívidas existentes; que o recibo do


credor corresponde ao efetivo pagamento do devedor; que é mãe aquela que se opõe ao mal
do filho (exemplo do julgamento de Salomão) , que o pai é o marido da mãe (pater est
3701

quem nuptias demonstrant), que o acusado é inocente.


§ 2058. A força probatória das presunções variava. Umas apenas indiciavam um facto,
valendo como um sinal a avaliar em conjunto com outros; era o caso das presunções
baseadas no conhecimento comum (ou naturais), cuja força dependia do seu grau de
evidência (avaliado pelo juiz): as presunções jurídicas simples ou comuns eram vencidas por
prova do adversário em contrário (“tamdiu verae sunt, donec probetur contrarium”),
significando uma inversão do ónus da prova (praesumptiones iuris tantum). A chamada
presunção forte, veemente ou violenta (praesumptio violenta), só era vencida por prova
evidente em contrário. Outras presunções eram forçosas, impostas pelo direito

3697 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,17,13.


3698 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,16,11.
3699 “Conjecturae ex signo verisimill ad probandum assumptae”, J. Voigt, Com. ad Pand, lib. 22, tit.

31, nota 14; Cf. Guido Donatuti, Le praesumptiones iuris in diritto romano, Perugia, Tipografia G.
Guerra, 1930.
3700 As presunções assentavam num saber prático, ou arte; daí que estas presunções se chamem

artísticas ou artificiais (feitas pela arte).


3701 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,16,8.

592
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

(praesumptiones iuris et de iure) e não admitindo prova em contrário (ex.: Ord. fil.,1,60 3).
3702

7.1.9.6 As testemunhas.

§ 2059. Entre os meios de prova, avultavam as testemunhas . A capacidade para


3703

testemunhar era geral (Ord. fil.,3,56,pr.), mas a lei impunha incapacidades aos furiosos e
mentecaptos (Ord. fil.,56,5); às crianças e impúberes (ibid., § 6), aos escravos (ibid., § 3),
aos judeus e mouros, testemunhando contra cristãos (ibid., § 3) , aos presos por crimes
3704

graves (ibid., § 9); aos infames (D., 22,5 De testibus, 3). Inábeis para testemunhar em certas
causas eram: o autor e o réu, os seus amigos chegados ou inimigos capitais, os pais, filhos,
irmãos e sócios. Mas eram testemunhas hábeis os membros da comunidade doméstica,
seja, os da mesma casa, linhagem, família ou corporação (Decretais, De testibus et
adtestarionibus, n. 7). As testemunhas deviam ser apresentadas depois da litiscontestação,
dentro do prazo probatório (Ord. fil.,3,54,16), sendo obrigadas a depor (Ord. fil.,3,55,11)3705.
§ 2060. Eram convocadas pelo juiz da causa ou por carta precatória dirigida ao juiz do
território onde vivessem ou do seu foro privilegiado, devendo ser ajuramentadas antes de
depor (Ord. fil.,1,86) segunda uma fórmula tirada das Decretais (cap. 5 do tit. De testibus):
“que não são levadas a tal juramento por ódio ou amizade particular, nem por qualquer
proveito que tenham tido, tenham, ou hajam de ter; que hão de dizer a verdade sobre a
matéria a que forem interrogadas”. Seguia-se o interrogatório pelo juiz, que, para isso,
gozava de grande liberdade, no sentido de melhor apurar a verdade3706.
§ 2061. A doutrina setecentista desvalorizava os antigos privilégios das pessoas ilustres
quanto a deporem em suas casas3707, mantendo estes privilégios apenas para os velhos e
enfermos (Ord. fil.,3,55,7). As testemunhas podiam ser recusadas pelo adversário (reprova,
refutação, contradita), como sendo infames, falsárias, inimigas, instruídas, rogadas ou
subornadas pelas partes (Ord. fil.,3,58), mas apenas antes da publicação do depoimento
(inquirição), ou seja, antes de o impugnante saber o teor do depoimento. As Ordenações e a
prática do foro restringiram expedientes dilatórios neste ponto, como o de se refutarem
testemunhas sobre testemunhas, de se interrogarem as testemunhas das refutações sobre
temas relativos, não à testemunha, mas à causa, de se fazerem articulados sobre a
refutação de testemunhas 3708.
§ 2062. A inquirição das testemunhas podia ser feita pelos inquiridores, salvo nas
causas crime capitais e nas cíveis mais importantes (Ord. fil., 1,86,3), em que competia
pessoalmente ao juiz.
§ 2063. A avaliação da prova testemunhal era feita pelo juiz, de acordo com a convicção
que tinha da sua credibilidade, em face do interrogatório de vita et moribus (“aos costumes”,

3702 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,16,7.


3703 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], liv. 3, c. 12, § 1; Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis,4,17.
3704 Pascoal de Melo discorda: Institutiones iuris civilis,4,17,2.

3705 Não os pais, filhos, irmãos, sogros e genros daquele contra quem depunham (D.22,5 De

testibus, 4).
3706 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,17,6.

3707 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,17,7.

3708 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,17,9.

593
As ações.
i.e., nas perguntas do costume: idade, qualidade, amizade, consanguinidade ou afinidade
com as partes) e do seu comportamento3709. Duas testemunhas faziam prova plena, a menos
que a lei exigisse mais (Ord. fil., 1,62,21). Mas as Ordenações previam alguns casos em que
uma só testemunha bastava (Ord. fil., 1,24,17; 66,27; 4,18). Pelo direito comum, dignidades
eclesiásticas ou oficiais seculares faziam prova plena sobre matéria dos seus ofícios
(embora se admitisse prova em contrário).
§ 2064. Publicadas as inquirições das testemunhas, seguiam-se as disputas ou
alegações das partes (Ord. fil., 3,20,40), findas as quais os autos eram conclusos (i.e.,
fechados e entregues) ao juiz.
7.1.9.7 Instrumentos ou documentos.
§ 2065. O direito era um dos domínios da vida em que a comunicação escrita tinha uma
maior relevância. Pertencia ao núcleo da forma então mais moderna, mas também
socialmente mais controversa, de comunicar. Isso refletia-se no valor atribuído à prova por
documento escrito3710.
§ 2066. Na linguagem jurídica, o “documento” (etimologicamente, aquilo que ensina) era
também designado como "instrumento" (com idêntico sentido etimológico)3711, constituindo
um escrito feito para provar o conteúdo de um ato. Podia ser público ou particular, original ou
traslado. Os documentos públicos possuíam, para a doutrina mais consistente, autoridade e
fé pública, ou seja, faziam prova plena, bastante, indestrutível por outra prova e apenas
inutilizável por arguição de defeito de forma ou falsidade do documento (regime, Ord.
fil.,3,60,5). Além dos autos judiciais, eram documentos públicos os escritos elaborados por
escrivães públicos ou tabeliães, feitos com as formalidades exigidas3712, os documentos
existentes (ou trasladados, por ordem do juiz3713) em arquivos públicos. Os escritos
particulares, mesmo os de natureza jurídica, existentes em arquivos particulares, tinham uma
eficácia probatória mais reduzida, provando apenas contra os autores ou constituindo meros
indícios (C., 4,19 De probationibus, 7).
§ 2067. Numa sociedade onde a capacidade de escrita e de arquivar documentos era
rara e estava muito frequentemente aliada ao poder, a questão da eficácia dos documentos
escritos, nomeadamente, dos particulares, era politicamente estratégica. Os poderosos, que
os podiam fazer, guardar e, também, falsificar, procuravam valorizar o seu valor probatório.
Nessa estratégia participavam os escrivães e os juristas, agentes privilegiados do mundo da
escrita. O meio dos comerciantes, que usavam da escrita para comunicar entre si, num
comércio que se alargava no espaço, participavam também desta galáxia da comunicação
escrita. Aí, as letras de câmbio faziam prova plena e o conteúdo dos livros de contas

3709 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,17,12.


3710 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], liv. 3, c. 12, § 2.
3711 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Instrumentum”; Bento Pereira,
Promptuarium […], v. “Instrumentum” (n. 837).
3712 Nome do tabelião data, assinatura das partes (Ord. fil., 178,4; 4,19,1; 5,117, 6), transcrição

nos protocolos ou livros de notas. As escrituras eram distribuídas entre os tabeliães das terras pelos
distribuidores, tanto para garantir a sua imparcialidade, como para distribuir equitativamente os réditos
notarias (emolumentos). Os livros de notas, onde se transcreviam e assinavam os atos notariais,
também se chamavam “protocolos” (etimologicamente, primeira página de um livro de folhas coladas).
Os tabeliães deviam arquivá-los e manter o seu arquivo, Ord. fil.., 1,78,5.
3713 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,18,8.

594
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
constituía um indício forte, se invocado contra o que escreveu3714. Em contrapartida, os
iletrados tinham interesse em desvalorizar os documentos escritos ou, no extremo, em os
destruir. Por isso, a queima dos arquivos era um rito característico das revoltas populares.
Entre os letrados, o rei, os seus oficiais e os letrados regalistas apostavam no cerceamento
do valor probatório dos documentos particulares, rodeando, em contrapartida, os
documentos públicos de muitas cautelas: a nomeação dos escrivães e tabeliães era uma
regalia só excecionalmente concedida ("tabelião por el-rei"), a falsificação de documentos
era crime 3715. Não admira, por isso, que se discutisse muito, não apenas o âmbito do
conceito de documento público, mas mesmo a sua eficácia probatória. A regra era a do
caráter pleno da prova por documento público3716, o que se justificava pela natureza pública
do cargo de tabelião e pela atestação expressa por testemunhas. Porém, era muito
enfraquecida pela opinião doutrinal de que cabia no arbítrio do juiz avaliar a força de prova
testemunhal contra o conteúdo de um documento público3717. Por muito importantes que
fossem como meio de prova, os documentos públicos não eram senão isso, um meio de
prova, podendo ser substituídos, no caso de perda ou destruição, por outra prova, uma vez
cumpridos certas formalidades processuais3718.
7.1.9.8 O juramento.
§ 2068. Uma outra forma de prova era o juramento3719, ou seja, uma declaração solene,
invocando a vingança de Deus ou dos santos, a saúde do jurante ou de entes queridos3720,
para o caso de ela não ser verdadeira (juramento assertório) ou de não vir a ser cumprida
pelo jurante (juramento promissório). O juramento das testemunhas pertence a esta
categoria, sem grandes especificidades. Havia ainda o juramento estimatório, em que o que
o autor declarava o valor objetivo ou estimativo da coisa pedida (Ord. fil., 3,86,16) ou
roubada (juramento zenoniano, Ord. fil., 3,52,5).
§ 2069. Além de meio de prova, o juramento podia ser um expediente processual
destinado a resolver uma demanda. Tal era o caso do juramento assertório, feito por uma
das partes, desafiada pela outra para que o fizesse3721. A parte que provocava a outra ao
juramento - por não ter provas ou preferir não as usar - comprometia-se a aceitar o resultado
do juramento, fosse ele qual fosse. Tornava-se obrigatório se o desafio fosse feito perante o
juiz e deferido por este, constituindo uma forma frequente de abreviar a demanda. Por meio
do juramento, também se podia decidir uma causa em que as provas das partes se
equilibrassem. Era o caso do juramento purgatório, em que o juiz ordenava ao réu, a pedido
do autor, que jurasse a exceção (ou seja, a sua tese), mas apenas no caso de só haver uma

3714 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,18,13; também, dubitativo, Álvaro
Valasco, Decisiones [...]., cit., cons. 177, ns. 7 e 8.
3715 V. Ord. fil., 3,59, 15; 5, 53; cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,18,5-7.

3716 As coisas tornavam-se notórias por constarem de instrumento público [“Notoriae dicuntur res

per publicum instrumentum”], afirma Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 27.
3717 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,18,12.

3718 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,18,11.


3719 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], liv. 3, c. 2, § 5.
3720 Diferente era o juramento "à la fé", ou pela honra, que, por ser frequentemente leviano ou

irrefletido, era proibido pelas Ordenações (Ord. fil., 4,73).


3721 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,19,2).

595
As ações.
prova semiplena da ação (ou seja, da tese do autor) (Ord. fil., 3,52, pr.; Decretais, 2,24. De
jurejurando).
§ 2070. A parte a quem se deferia o julgamento podia devolver à outra parte o dever de
jurar, comprometendo-se a aceitar o resultado. Este jogo de provocações cruzadas ao
juramento refletia dificuldades de prova. A solução era, então, a de uma das partes se
entregar à honra ou piedade do adversário, aceitando a sua palavra, num ou noutro sentido.
§ 2071. O juramento de calúnia3722 não dizia respeito ao objeto da ação, mas ao estado
de espírito dos litigantes, que nele juravam litigar por estarem convencidos de que tinham
razão (Ord. fil., 3,43; N., Nov. 49, tit. De jurejuramdo propter calumniam). A consequência da
violação deste juramento - obrigatório -, feito antes da contestação da lide, era a perda da
ação pelo autor ou a condenação do réu, conforme aquele que o violasse3723).
7.1.9.9 A confissão.
§ 2072. A rainha das provas era a confissão3724, ou admissão pelo réu daquilo que o
autor pretendia (“manifestatio proprium actum coram judicem competentem”3725). Podia ser
autêntica, consistindo numa declaração do réu, ou ficta, induzida pelo direito, a partir de
certos factos, como a contumácia, o silêncio do réu, a recusa em prestar juramento. Era
judicial ou extrajudicial, conforme fosse feita ou processo ou fora dele3726. A extrajudicial,
feita perante a outra parte, aproximava-se, no seu valor, da judicial3727.
§ 2073. A confissão fazia prova plena, conduzindo a uma sentença que punha termo à
lide. No caso de confissão de dívida, o juiz passava logo à fase executiva, através do
mandato "de solvendo" (Ord. fil., 3,66,9) ("sentença de preceito")3728. Daí que se dissesse
que, nas causas cíveis, a confissão era uma prova pleníssima, pois a sua força suplantava a
de todas as outras provas, equivalendo à condenação3729. Nas causas crime, porém, tinha
que ser confrontada com provas em contrário, não conduzindo automaticamente à execução
da pena3730
§ 2074. A confissão extrajudicial constituía uma prova apenas semiplena (Ord. fil.,
3,52,pr.), devendo, por isso, ser completada por outras provas (ibid., n. 3).
§ 2075. A confissão requeria uma vontade sã e uma expressão clara.

3722 Calúnia era agir (estar em juízo) de má fé, i.e., sabendo que se não tinha razão.
3723 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,19,8.
3724 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], liv. 3, c. 3, § 3.

3725 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Confessio. De confessione iudiciali, &

extraiudiciali”.
3726 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,20.

3727 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Confessio. De confessione iudiciali, &

extraiudiciali”.
3728 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Confessio. De confessione iudiciali, &

extraiudiciali”, n. 5.
3729 “Confessio judicialis habet tantam efficatiam, ut superet omnem probationem, factam per

testes, et etiam per instrumentum probans contrarium, quia nula est maior probatio quam oris confessio,
& dicitur plenissima probatio”, Antonio Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Confessio. De confessione
iudiciali, & extraiudiciali”, n. 15.
3730 Ibid., n. 17.

596
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 2076. Os factos confessados deviam ser possíveis. Aparte estas restrições, tudo era
confessável e, mais do que isso, o silêncio perante acusações do autor poderia equivaler à
confissão. Isto significava que a lide era fundamentalmente vista como um despique em
torno de posições livremente disponíveis.
§ 2077. A confissão tinha que ser aceite pelo adversário, momento em que se tornava
irrevogável.
§ 2078. Na suas atribuições de dirigir o processo, o juiz podia pedir esclarecimentos às
partes3731; isto era mais frequente nas causas sumárias, em que os expedientes processuais
das partes eram mais simplificados.
7.1.9.9.1 A tortura:
§ 2079. A tortura ou tormentos era um meio de obter provas reconhecido pelo direito,
embora apenas verificados certos requisitos.
§ 2080. A doutrina seiscentista era bastante cautelosa quanto ao uso da tortura. António
Cardoso do Amaral, escrevendo no início do séc. XVII, limita a legitimidade do seu uso ao
caso de haver apenas indícios ou uma única testemunha e não se dispor de outro meio para
se achar a verdade. E alerta para os perigos deste meio de prova: “É que este género de
tormentos, em Portugal e noutros lugares, é cruel e terrível, a tal ponto que não há maior
suplício, a não ser a morte, e não poucos morrendo sob tortura. Donde, apesar de também
ser admitido de direito, uma vez que serve para extrair a verdade, é uma pena grave, que se
deveria dar apenas em delito grave, se clarissimamente provado [,,,] se não for provado
clarissimamente o delito, não me parece haver razão de infligir tal pena, mas antes outra
pena, pois na dúvida é melhor deixar impune um delinquente do que condenar um
inocente”3732. Cem anos depois, António Vanguerve Cabral salienta que, para além disto, os
tormentos (ou tratos) põem em risco o apuramento da verdade, pois sob tortura o acusado
confessa o que for preciso para aliviar o seu sofrimento3733.
§ 2081. O direito regulava apertadamente a sujeição a tormentos, dispondo sobre
quando se podiam dar3734; sobre que graves indícios e provas se requeriam para tal3735;
sobre pessoas isentas de tormentos3736; sobre a superintendência e processamento do ato

3731 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,15.


3732 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Delictum”, n. 56: "hoc enim genus
tormentorum in nostra Lusitania, & alibi, est crudele, et terribile, ita ut non sit maius suplicium, praeter
mortem, et nonulli moriuntur in torturis quo propter etiam de iure sit expositum, quod sit ad eruendam
veritatem, est gravis poena, quae dari debebat pro gravi delicto, si clarissime fuit probatum […] si non
probatur delictum clarissime, non videbatur mihi esse ratio, quod talis poena infligeretur, sed alia extra
ordinaria in dubio, enim sanctius est nocentem impunitum relinqueree, quam innocentem condemnare”.
3733 António Vanguerve Cabral, Pratica judicial […], cit., p. 2, cap. 52, n. 2.

3734 Ord. fil.,5,6,29; Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], p. 2, liv. 5, § 8, ns. 89-90;
António Vanguerve Cabral, Pratica judicial […], cit., p.. 3, cap 23, n. 15
Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], p. 2, liv. 5, cap 1, § 8, ns. 91-98, António
3735

Vanguerve Cabral, Pratica judicial […], cit., p. 3, cap 23, 20; indícios claros e provados, ibid.,, p. 3, cap 23,
n. 18; dois cúmplices, uma testemunha e outros indícios, ibid., p. 3, cap 23, n. 28.
3736 O menor e mulher prenha não podiam ser postos a tormento; nem o nobre, o constituído em

dignidade, ou o doutor, António Vanguerve Cabral, Pratica judicial […], cit., p. 3, cap 23, n. 17.

597
As ações.
de tortura3737;
sobre a repetição dos tormentos3738
§ 2082. Antes de se mandar sujeitar à tortura, o juiz devia apelar da sua decisão, para
que ela fosse confirmada por um juiz superior (Ord. fil., 3,69,1), de donde alguma doutrina
inferir que, na verdade, o juiz inferior não podia ordenar os tormentos3739. A parte sujeita a
eles devia ser notificada e podia embargar a decisão3740. Uma vez aplicados e caso o réu
não confessasse, devia ser absolvido3741.
7.1.10 A sentença e o caso julgado.
§ 2083. Feitas as provas de ambas as partes e concluída (conclusa, fechada) a causa, o
juiz proferia a sentença3742: definitiva, se decidisse a lide principal e lhe pusesse fim,
condenando ou absolvendo, ou interlocutória (o “decreto” ou “mandato” do direito romano),
se consistia numa decisão do juiz sobre algum ponto do processo.
§ 2084. A sentença era dada pelo juiz, depois de estudados os elementos do processo.
O juiz podia consultar um assessor letrado3743, mas não era obrigado a isso. Não respondia
senão por erros dolosos (Ord. fil., 1,65,93744).
§ 2085. A sentença devia ser fundada no direito vigente, ser dada segundo as provas
constantes dos autos (Ord. fil., 3,66,pr.), ser conforme ao libelo (Ord. fil., 3,66,1), condenar
em quantia certa, condenar o vencido em custas, ser motivada (Ord. fil., 1,66,7), ser escrita
pelo juiz (Ord. fil., 1,1,13) e ser publicada (Ord. fil., 3,19,1; 3,66,6). O juiz podia revogar a sua
sentença, acolhendo embargos, ou esclarecê-la (cf. Ord. fil., 3,66,6).
§ 2086. Sendo a sentença da competência de um tribunal coletivo, a exposição da causa
e a redação do projeto de sentença cabia a um relator. Os outros juízes da causa votavam,
por ordem inversa da idade e da antiguidade, para evitar a ascendência dos mais velhos,

3737 Pelo corregedor do crime da corte, Ord. fil.,1,7,17 (propunha ao Regedor da Casa da Suplicação e este

nomeava dois desembargadores para presidir ao auto); das perguntas que se deviam fazer ao réu sem
tormentos, António Vanguerve Cabral, Pratica judicial […], cit., p. 2, cap. 53 n. 1 ss., e cap. 54.
3738Quando se podiam repetir, Ord. fil.,5,134, 1 Sobre os exames médicos que se deviam fazer
nas feridas e nódoas e inchaços, por médicos ajuramentados, havendo-os, ou cirurgiões e barbeiro
(refere-se também a exames post mortem), António Vanguerve Cabral, Pratica judicial […], cit., p. 2, cap. 54.
3739 Cf. António Vanguerve Cabral, Pratica judicial […], cit., p. 2, cap. 52, n. 3.

3740Cf. António Vanguerve Cabral, Pratica judicial […], cit., p. 3, cap 23, n. 31.
3741Cf. António Vanguerve Cabral, Pratica judicial […], cit., p.. 3, cap 23, n. 29; e não, como acontecia
na tortura administrada no processo perante a Inquisição, ser considerado inconfidente, impenitente ou
relapso, uma circunstância que ainda agravaria o crime.
3742 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], liv. 3, c. 17.

3743 Cf. António Cardoso do Amaral. Liber […], cit., v. “Assessor”. Embora Amaral os refira como

letrados, em Portugal estes assessores não tinham, frequentemente, graus universitários (“já que a
avaliação da sua perícia “tota in conscientia judicis relinquit” (ibid., n.2); mas eram habituais, mesmo
nos pequenos concelhos; v. Anabela Ramos, Violência e Justiça em terras do Montemuro (1708-1820).
Viseu, Palimage Editores, 1998. Frequentemente, eram advogados, embora não os da causa (ibid., n.
6). Os assessores deviam ser pagos pelos juízes; em terras pequenas e pequenas causas, a situação
era propícia a que os juízes recompensassem os advogados-assessores com um tratamento favorável
noutras causas por eles patrocinadas.
3744 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 26; Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 1, ar.

15.

598
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
mas também para os colocar numa posição de melhor avaliar os votos anteriores. A decisão
final era tomada por contagem de votos (vota numerantur, non ponderantur ; Ord. fil.,
3745

1,1,13), não havendo voto de qualidade do presidente (voto de Minerva); assim, em caso de
empate (raro, pois o número dos juízes devia ser ímpar, Ord. fil., 1,1,7), o réu devia ser
absolvido3746.
§ 2087. Caso julgado ou coisa julgada dizia-se da decisão do juiz que se tornava
irrevogável, por não terem sido usados os expedientes de recurso disponíveis ou por estes
se terem esgotado. Depois de passada em julgado, a sentença tornava-se definitiva, não
podendo ser suspensa, revogada ou anulada, nem invocando a salvação da República.
§ 2088. Excecionalmente, algumas sentenças nunca passavam em julgado. Este era
caso das sentenças nulas, como as preferidas contra direito ou contra os casos julgados, das
fundadas em testemunhos ou provas falsas, ou das sentenças proferidas juiz peitado ou
incompetente. Não passavam, ainda, em julgado as sentenças criminais condenatórias.
Assim, era sempre possível impugná-las.
§ 2089. Também não passavam julgado as decisões meramente interlocutórias,
conforme se disse, pelo que podiam ser recorridas durante toda a lide. Outras, por se terem
fundado numa verdade apenas provável, podiam ser sempre recorridas com fundamento em
prova em contrário. Era o caso das sentenças baseadas no juramentados supletório ou no
juízo técnico de médicos, cirurgiões, parteiras, agrimensores, sobre matérias da sua arte3747.
§ 2090. Os efeitos do caso julgado restringiam-se às partes no processo, não afetando
terceiros que nele não tivessem tido intervenção3748.
§ 2091. As sentenças deviam ser assinadas e seladas na chancelaria, naqueles
tribunais que a tivessem. Esta certificação da sentença devia ser recusada quando ela fosse
mal escrita ou dada contra direito (Ord. fil., 1,4,1). A regulamentação da assinatura e
selagem da sentença pelo chanceler aparecem nas Ordenações que tratam do ofício do
Chanceler-mor do Reino (Ord. fil., 1,4; v. também, 2,39 a 41, sobre as portarias régias). Este
regime aplicava-se, adaptado, a todos os tribunais régios que tivessem chancelaria (Casa da
Suplicação, Casa do Cível, corregedores e provedores das comarcas, corregedores da
cidade de Lisboa, Torre do Tombo, Juiz da Mina e da Índia, Ouvidor da Alfândega)3749.
7.1.11 A execução.
§ 2092. Uma vez julgada a causa, a decisão tinha que ser executada. A execução era
feita a pedido da parte vencedora (Ord. fil., 3,86,pr.), pedido que o juiz deferia por meio de
um mandato.
§ 2093. A execução era uma diferente fase processual, que não tinha que ser decretada
pelo mesmo juiz que lavrou a sentença declaratória, sendo competente para a fazer correr

3745 O tópico mais corrente era o inverso: vota non numerantur sed ponderantur; no caso de

tribunais coletivos, supunha-se que a qualidade dos votos era igual, pelo que decisiva era a contagem.
3746 Sobre a redução das sentenças, Ord. fil., 1,1, 8, Ass. 29.4.1659, Jorge de Cabedo,

Decisiones […], cit., p. 1., dec. 7.


3747 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 4,21,15.

3748 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,21,16.

3749 V. Ord. fil., 1,61; cf. Manuel Álvares Solano do Vale, Index generalis […], cit., v. “Cancellaria”.

599
As ações.
qualquer juiz que tivesse jurisdição ordinária3750. Era decretada contra o réu, bem como
contra todos aqueles cujos direitos dependessem do direito do réu ou que fossem com ele
solidários na causa julgada: herdeiros, pai de família em relação ao filho condenado, fiadores
e até devedores do devedor3751.
§ 2094. A execução obrigava a uma série de atos processuais: citação do executado,
fixação de prazo para pagar, designação das coisas a executar e modo de as vender,
tomada de penhores e sua venda, dedução de eventuais exceções que impedissem
execução, prisão do devedor, etc..
§ 2095. O devedor devia ser citado para esta nova fase processual (Ord. fil.,2,53,1; Ord.
fil.,3,86, pr.) Em certos casos, a citação do executado não bastava. Por exemplo, no caso de
execução de bens de raiz seria também necessária a citação da sua mulher. Uma vez citado,
o devedor tinha certo prazo para pagar. Segundo a regra geral das Ordenações, este prazo
era de dez dias para pagamento de coisa certa (Ord. fil., 3,86,15), não havendo prazo para
pagamento de coisa fungível, embora na prática fosse de estilo concederem-se 24 horas.
Uma vez esgotado este prazo, procedia-se à penhora dos bens, para ulterior venda. A
penhora devia começar pelos bens móveis, seguindo-se os imóveis e, finalmente, os direitos
(Ord. fil., 3,86,9). Esta ordem, que se destinava a proteger o devedor, começando pelos bens
considerados menos importantes, podia ser alterada a pedido deste.
§ 2096. Nem todos os bens eram penhoráveis. Não o podiam ser certas coisas, ou em
atenção à qualidade do devedor penhorado (armas, livros e vestes dos nobres e
desembargadores, destinados a uso pessoal; Ord. fil., 3,86,23), ou para lhe manter os
instrumentos de trabalho (alfaias agrícolas, sementes, cavalos; Ord. fil., 3,86, 24), ou por
respeitos religiosos (coisas sagradas, embora estivessem no comércio) O mesmo acontecia
com os soldos dos militares, os vencimentos e emolumentos dos juízes e oficiais, os salários
dos marinheiros, artífices e serventes3752. Em contrapartida, podia penhorar-se os frutos dos
morgados, capelas e benefícios eclesiásticos, apesar de o casco destes bens não o poder
ser.
§ 2097. A tomada de penhores (nomeação de bens para a venda judicial) tinha certas
formalidades3753. Uma vez tomados os penhores, devia proceder-se à sua venda, ordenada
pelo juiz, como detentor da jurisdição e como que administrador dos bens penhorados, o que
o sujeitava a deveres, tanto jurídicos (observar as formalidades do direito), como económicos
(agir com a prudência de um bom pai de família). A venda devia ser precedida de avaliação e
ser feita em público, normalmente por leilão. Os bens eram arrematados por quem fizesse a
melhor oferta e, sendo a venda feita com espera de preço, prestasse fiador capaz. Não
havendo comprador, os bens eram adjudicados ao credor, com um pequeno abatimento
(pois ele podia não estar interessado neles, mas apenas no seu valor, Ord. fil.,3,86 e seus
parágrafos). A venda dos bens tornava-se perfeita com a arrematação, embora o comprador
somente entrasse na posse deles mais tarde. Não existia, no direito português, a
possibilidade conferida ao devedor pelo direito romano de, num prazo de dois anos, resgatar
os bens executados (C., 8.33. De iure dominii impetrando, 3,3).

3750 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], cit., liv. 3, c. 21; Antonio Vanguerve Cabral,

Pratica […], cit., p. 1, cap. 27; p. 3, caps. 6 e 14.


3751 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,22,4.

3752 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,22,9.

3753 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,22,10.

600
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 2098. Só excecionalmente a execução podia ser impedida por alguma exceção. Não
se admitiam exceções que impedissem a sentença3754, pois o conteúdo desta estava fixado
pelo caso julgado. Aceitavam-se exceções relativas à execução ou ao seu processo (Ord. fil.,
3,87,12: nomeadamente, exceções relativas a causas supervenientes de extinção da
obrigação, como o pagamento, a compensação, a retenção, a divisão, a transação, o pacto
de não pedir, etc.), mas estas não interrompiam o curso da execução (Ord. fil., 36,3). Se as
exceções fossem deferidas, os bens voltavam ao condenado, para serem sujeitos a novo
processo de execução. O rigor do direito quanto às restrições à oposição de exceções à
execução e quanto ao prazo em que estas devem ser propostas justificava-se pela
necessidade de pôr fim às demandas, uma vez atingido o esclarecimento do caso na
sentença, e pela suspeita que havia quanto à seriedade desta litigância de última hora3755.
§ 2099. As Ordenações previam a prisão do devedor no caso de, condenado por
sentença passada em julgado, não haver bens suficientes para o pagamento da dívida (Ord.
fil., 3, 86, 13-18; Ord. fil., 4, 76, pr.)3756. Estava expressamente excluído o cárcere privado (se
in nexis dare)3757, tal como a prisão das mulheres (honestas) por dívidas civis3758. Nos finais
do séc. XVIII, Pascoal de Melo entende que a ordenação fora revogada para os casos em
que não tivesse havido dolo ou culpa do devedor no prejuízo dos credores3759.
§ 2100. A preferência dos credores nas execuções estava regulada pelas regras do
concurso de credores estabelecidas nas Ordenações (Ord. fil., 2,52). O princípio geral era o
de que preferiam os credores mais antigos, embora também fosse relevante o tipo de
sentença condenatória, preferindo aquelas que tinham feito um exame mais profundo do
caso sobre as mais sumárias3760.
7.1.12 As execuções fiscais.
§ 2101. As execuções fiscais tinham algumas especialidades, que as tornavam mais
rigorosas, a favor deste credor privilegiado que era o fisco3761.
§ 2102. O privilégio do fisco consistia, antes de tudo, em ter juízes espaciais para julgar
as suas causas, mesmo na fase executiva (“Juízes dos feitos da fazenda”) e funcionários
também especiais para fazer a execução dos bens (“Sacadores” e “porteiros”, Ord. fil.,

3754 Ressalvavam-se os casos de nulidade da sentença já referidos.


3755 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 4,22,13 a 16.
3756 No caso de ter havido dolo do devedor na ocultação ou venda dos bens, ou atraso, por dolo

ou culpa sua, na execução a prisão podia ocorrer mesmo antes do trânsito em julgado da sentença
condenatória (Ord. fil., 4,76,pr.). Também no caso de dívidas resultantes de delitos ou quase delitos, a
prisão era automática (Ord. fil., 4,76,5).
3757 Sobre o regime de direito romano e sua evolução, António Menezes Cordeiro, Perspectivas

[…].
3758 Ord. fil., 4,76,6.

3759 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,22,18. Funda-se na Carta de Lei de 10.6.1774 e

numa decisão da Casa da Suplicação.


3760 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], tomo 12, ad. Ord. 2,52; Antonio Vanguerve

Cabral, Pratica judicial [...], cit. p. 3, cap. 14.


3761 V. Ord. fil., 2,52-53; Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., P.3, cap. 10. “Como

se procede nas execuções da fazenda real”. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,22,18.

601
As ações.
2,52)3762. Porém, este privilégio não importava uma ordem processual distinta da das
execuções comuns, nomeadamente quanto aos princípios básicos do processo de execução
(citação ou audição do credor, princípio da excussão prévia do devedor principal, etc.)3763.
Era isto que levava a doutrina a afirmar que o fisco gozava do mesmo direito do que os
restantes credores3764.
§ 2103. Outra questão era a da graduação do fisco entre os restantes credores. A
jurisprudência corrente opinava que o fisco tinha privilégios no concurso de credores, um dos
pontos-chave do direito da insolvência. Neste ponto, a hierarquização dos credores fazia-se,
como se disse, pela ordem da nomeação dos bens à penhora. No entanto, a doutrina tinha
estabelecido, desde o séc. XIII, que o fisco gozava de uma “hipoteca tácita” sobre os bens
dos devedores e que “nos tributos e coletas, o fisco era anterior, preferindo a todos os
credores do devedor”, mesmo à mulher que reclamasse os bens dotais. Por isso, o fisco só
era preterido pelos credores que reclamassem despesas por eles feitas necessárias para a
conservação da coisa e pelos credores hipotecários mais antigos3765. Este regime de
privilégio no concurso de credores aplicava-se a todas as dívidas de impostos, contribuições
ou fintas, reclamadas pela coroa, donatários ou contratadores, pelo que tinha um vasto
alcance3766.
§ 2104. Em 1761, a Carta de Lei em que se faculta ao Conselho da Real Fazenda
privativa jurisdição […], de 22 de Dezembro, que completava outra do mesmo dia criando o
Erário Régio e reformando o Conselho da Fazenda, reuniu e sistematizou o regime do
julgamento e execução das dívidas à fazenda régia. Esta nova ordenação visava concentrar
num único tribunal – o Conselho da Real Fazenda - todas as questões relativas ao fisco,
atribuindo-lhe prerrogativas extraordinárias, nomeadamente no que respeita ao caráter
executivo dos títulos da fazenda3767. Para começar, as contas efetuadas pelo Erário Régio
eram havidas como justas, uma vez passados os prazos da sua impugnação, e constituíam
título executivo (referida Carta de lei de 22.12.1761, tit. 3, § 5 ss.). Depois, alargava-se o
universo dos executados: solidariamente, os devedores, seus herdeiros, adquirentes de seus

3762 V. Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p.3, cap. 10, n. 1.
3763 A base textual era, Ord. fil, 2,52,6 "guardar-se-ha na dita arrematação toda a solenidade, que
se deve guardar nas execuções, que se fazem pelas dívidas de quaesquer outras pessoas
particulares" (cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 12, ad 2,52,6 gl.8:
3764 V. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 12, ad 2,52,6, gl. 8, ns.16 a 19.

3765 “[…] quod pro tributibus seu collectis Fiscus est anterior, & praefertur omnibus debitoris

creditoribus, qui Fisco anteriores esse non possunt, cum tributorum praestatio omnem contractumetiam
temporis antiquitate praecedat […] tardit enim contra dotem, non vero contra creditores, qui in
necessitariam rei consevationem impenderunt”, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit, tomo 12,
ad. 2,52,4, gl. 6, p. 377/378. O princípio abrangia ainda os serviços militares e as sisas. Mas não às
dízimas eclesiásticas devidas ao rei, enquanto mestre das ordens militares, no ultramar, Antonio
Vanguerve Cabral, Pratica judicial […], cit., p. 3, caps. 10 e 14. A base textual era D.20, 2, In quibus
causis pign. vel hypoth. tacite contrahitur; D.49, 14, De jure fisci; C.,10, 1 De iure fisci, 1; C.,8.14. In
quibus causis pignus tacite contrahitur. No direito português, usava-se Ord. fil., 2,52,4, com uma
interpretação forçada (“ … façam as penhoras, e execuções primeiro nos bens …”, ibid., n.1 fin., p.
378).
3766 Muitas sentenças sobre o tema em Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], tomo 12, ad.

Ord. 2,52.
3767 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,22, 19.

602
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
bens depois de contraída a dívida fiscal, seus devedores. Estabeleciam-se, ainda, prazos
estritos para a execução e venda dos bens. Finalmente, os devedores do fisco que não
pagassem ou dessem bens para a penhora no prazo de 10 dias eram presos, uma vez que a
liquidação da dívida pelo fisco equivalia a título executivo (Ord. fil., 4,76,3). Pouco disto
representava, porém, uma verdadeira alteração do direito mais antigo, que já continha
princípios semelhantes3768.
§ 2105. No resto, o fisco seguia a ordem executiva comum. Apesar da força que a ideia
de interesse público ganhou na cultura jurídica iluminista, Pascoal de Melo resiste ainda a
agravar os privilégios do fisco: "Em tudo o mais - escreve - o fisco usa do direito comum,
Ord. fil., liv. 2, tit. 52, § ult.); com efeito, não é próprio do bom príncipe aumentar os direitos
fiscais com razão ou sem ela, nem do bom cidadão dar maus conselhos no sentido de tal
aumento, nem do bom intérprete estendê-los, contra ou à margem da lei, a outros casos, por
mais parecidos que sejam; e também não creio cometer um delito aquele que, nas questões
duvidosas, opinar contra o fisco [...]"3769.
§ 2106. Em suma. Os privilégios do fisco consistiam apenas em dois regimes especiais.
Por um lado, num privilégio de foro. Por outro, num privilégio de graduação em caso de
concurso de credores. Mas não já em formas processuais menos garantidas para os
executados ou mais expeditas.
7.1.13 As dízimas e as custas.
§ 2107. Era na fase da execução que se liquidavam e cobravam as dízimas das
sentenças, uma quantia equivalente a 10% do valor constante do libelo, a pagar pelo
condenado, correspondente a um tributo devido ao titular da justiça (o rei), por um uso
injustificado dessa justiça, já que se concluía que o condenado mostrara que não tinha tido
razão na litigância. Nem todos os juízos cobravam dízimas; em geral, elas existiam nas
justiças ordinárias cíveis3770.
§ 2108. As dízimas pertenciam ao Rei, como regalia; porém, frequentemente, estavam
doadas aos senhores das terras. Tratando-se de um tributo geral, não havia grupos isentos,
excetuando os pobres e as pessoas miseráveis que agissem de boa-fé (alv. 8.5.1755), bem
como o procurador da coroa (Regimento da Chancelaria, § 16). As dízimas eram liquidadas e
executadas na chancelaria do tribunal, onde se procedia ao ato de assinatura e selagem das
sentenças.
7.1.14 Os recursos. Apelações e agravos.
§ 2109. As sentenças eram recorríveis.
§ 2110. No direito dos recursos combinaram-se influências contraditórias. O processo
romano, muito formalista, não era pródigo nos recursos. Para além de que a ordem judiciária
romana não conhecia uma hierarquia das instâncias de justiça. Uma decisão judicial, obtida
mediante o cumprimento de ritos, fórmulas e exigências processuais estritas, devia tender a

3768 Que, já antes, era admitido por direito, Regimento da Fazenda, cap. 173, António Vanguerve

Cabral, Pratica […] cit., p.3, cap. 10, n. 1.


3769 “As causas do fisco são sempre más, mesmo sob um bom príncipe” (“fisci causa sempre

mala sub bono Principe”, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], tomo 12, ad. Ord. 2,35, cap. 30.
3770 Detalhes em Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,22,10.

603
As ações.
tornar-se definitiva3771.
Em contrapartida, o processo canónico assentava numa conceção
material, substancial, da justiça, e na permanente possibilidade de corrigir a justiça formal
pela justiça material ou mesmo pela graça e pela misericórdia. Estas ideias dos canonistas
favoreciam uma permanente reapreciação e revisibilidade das decisões. Assim, tendia-se a
multiplicar os recursos, concebidos como graças livres de uma instância superior; final,
tendia a ser apenas o Juízo do fim dos tempos.
7.1.15 A apelação.
§ 2111. O recurso ordinário de um juiz (de primeira instância) para o tribunal de apelo
superior3772 era, genericamente, chamado apelação3773.
§ 2112. A apelação não era possível senão de decisões que afetassem o resultado final
da demanda (interlocutória mista). Daí que as decisões interlocutórias meramente
processuais (interlocutórias meras) não fossem apeláveis (Ord. fil., 3, 69, pr.). Porém, a
dificuldade de encontrar decisões processuais que não afetassem de algum modo o
resultado final levava a uma certa complacência na admissão de apelações de decisões
dadas no decurso do processo (decisões interlocutórias)3774.
§ 2113. Excecionalmente, não se admitia apelação em relação a alguns juízos. Da Casa
da Suplicação não se admitia apelação, por ser tribunal supremo (embora se admitisse o
recurso extraordinário de revista, bem como qualquer recurso extraordinário – súplica - para
o rei) (Ord. fil., 3, 95). Igual privilégio tinham outros tribunais, como a Casa do Cível, os
corregedores da Corte, o Conservador da Universidade de Coimbra (Ord. fil., 3, 84) ou, em
casos singulares, os juízos a quem fosse casuisticamente concedido o privilégio de julgar
sem recurso (remota adpellatione, D.,49.2 A quibus appellari non licet, 1, 4). Esta proibição
de apelação não abrangia recursos especiais como a recusa de juiz, a querela de nulidade,
etc..
§ 2114. Para que se pudesse recorrer, era necessário que a causa, pelo seu valor,
medido pelo pedido no libelo, não coubesse no espaço de decisão definitiva (alçada > lat.
altiare, levantar3775) do tribunal (Ord. fil., 3, 70, 6 e ss.; Extravagante de 26..6.1696)3776. Nas
causas crime, não havia alçada, pois tinham uma natureza pessoal e, nas pessoas (nos
direitos pessoais), não havia avaliação (in corpore non datur aestimationem). O mesmo se
diga das causas que tivessem por objeto a jurisdição, pois esta também não tinha preço.
§ 2115. Nas terras senhoriais, o direito de conhecer das apelações dos juízes de

3771 Sobre a supplicatio romana e a sua excecionalidade, cf. Max Kaser, Das römische Zivilprozessrecht, cit.
(2 ed.), ps. 617-623.
3772 Os tribunais superiores eram as Relações dos respetivos distritos e, nas terras senhoriais, os

próprios senhores ou seus ouvidores. Mas esta jurisdição senhorial de recurso nunca constituía uma
última instância. E foi extinta pela CL de 19.7.1790, o que transformou as relações na única instância
de recurso ordinário.
3773 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], liv. 3, c. 19; Pascoal de Melo, Institutiones

iuris civilis,4,23,1.
3774 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,23,6.

3775 Dizia-se da posição das varas dos juízes, quando usavam do seu poder de jurisdição: “de

vara alçada”
3776 Sobre as alçadas dos juízos em Portugal, Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit.,

p. 3, cap. 9.

604
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
primeira instância cabia aos senhores, por si ou seus ouvidores. Mas, sendo a jurisdição
suprema inseparável do rei, estes tinham sempre que dar apelação para os tribunais da
coroa, sendo por isso chamada de "intermédia" a sua jurisdição (Ord. fil., 3, 77, 23777).
§ 2116. No foro eclesiástico, recorria-se do bispo (ou seu vigário geral) para o arcebispo
ou, omisso medio, para o Papa3778. No caso dos bispos, enquanto donatários, seguia-se a
regra de recurso das justiças senhoriais.
§ 2117. O direito de recorrer era concedido a todos os que tivessem recebido um
prejuízo com a sentença (Ord. fil., 3,81, pr.), desde que não tivessem renunciado a recorrer
(Ord. fil., 3,69,4; 3,70,pr.; 3,79,2), aproveitando todos da decisão do recurso de um. Assim,
podiam apelar as partes, os seus mandatários com mandato bastante, os fiadores, os
vendedores da coisa litigiosa3779.
§ 2118. O prazo para apelar era de 10 dias (“prazo fatal”), a contar do conhecimento da
sentença (Ord. fil., 3,69,4; 3,70; 3,79). A apelação interpunha-se perante o juiz de quem se
recorria, o qual marcava um prazo (“atempava”), não superior a um mês (“dias de aparecer”)
para propor o recurso junto do juiz superior. Proposto o recurso junto deste, devia ser
prosseguido dentro de seis meses (Ord. fil., 3,69,3 ss.). O não recebimento do recurso pelo
juiz era fundamento para recurso de agravo (Ord. fil., 3,69; 3,70; 3,74). Para efeito deste
recurso, o apelante podia pedir aos escrivães uma “carta testemunhável” de como
apresentara o pedido de recurso perante o juiz (Ord. fil., 3,69,7; 3,74,5; 3,78,pr. e 5).
§ 2119. O primeiro efeito da apelação era o de suspender os efeitos da decisão
recorrida. Esta regra de direito romano foi excluída, embora excecionalmente, no direito
pátrio, nomeadamente para causas em que era prejudicial a demora3780. Pendente o recurso,
ficava suspensa a jurisdição do juiz recorrido, que nada podia inovar na causa (Ord. fil.,
3,73,pr.) pois a sua jurisdição fora "devolvida" ao juiz superior, para quem transitara o
processo (primeiro, por traslado, depois [CL 18.8.1747], os próprios autos). Suspensa a
sentença, a causa retornava ao estado em que estava na contestação da lide, abrindo-se de
novo a admissão de exceções e a alegação e prova de razões sobre a nova matéria (Ord.
fil., 3,83).
§ 2120. O tribunal de recurso podia confirmar ou reformar, no todo ou em parte, a
sentença recorrida, mesmo para além do pedido do recorrente.
§ 2121. Decidido o recurso, a sentença voltava ao juiz inferior para ser executada. Nos
recursos por apelação, o vencido era condenado nas custas das duas instâncias; nos
agravos, apenas nas da primeira instância (Ord. fil., 3, 68, 1).
§ 2122. As sentenças nulas ipso jure eram revogadas sem necessidade de recurso (Ord.
fil., 3,75; D., 49,8 Quae sententiae sine adpellatione rescindantur), por meio de uma "querela
de nulidade" intentada perante o juiz inferior ou o superior num prazo de 30 anos.
7.1.15.1 O agravo.
§ 2123. Para a generalidade dos casos em que não fosse possível a apelação, o direito
pátrio previa outra forma de recurso – o recurso de agravo. Este instituto era uma das

3777 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 2, dec. 40.


3778 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], liv. 2, caps. I e segs..
3779 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,23,12.

3780 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,23,17.

605
As ações.
singularidades do direito pátrio em confronto com o direito comum3781.
§ 2124. Os agravos alargavam a possibilidade de recurso em dois sentidos.
§ 2125. Por um lado permitiam a interposição de recurso de decisões de certos juízes
inferiores, das quais não se podia apelar. A origem da distinção das duas formas de recurso
está no facto de o direito romano não permitir a apelação de certos juízos nem das decisões
interlocutórias, ao passo que o direito canónico concedia recursos com maior generosidade.
Daí que, no direito pátrio, se tenha usado a figura do agravo para permitir recursos em casos
em que a apelação não era possível se se seguisse a tradição mais rigorosa do direito
romano. Assim, admitiu-se o agravo das decisões da Casa do Cível, dos Corregedores da
Corte e de outros magistrados superiores, de quem não se podia apelar (Ord. fil., 1,6,pr.;
Ord. fil., 3,20,28; Ord. fil., 3,84 [prazos e regulamentação]). Estes agravos – chamados
ordinários - eram muito semelhantes, no seu processo e efeitos, às apelações. Porém,
diferiam quanto aos efeitos suspensivos, já que só suspendiam a sentença por seis meses
(Ord. fil., 3,84,ult. e 73,5,1), ou por dois anos no Brasil, Alvará de 5.12.1801.
§ 2126. Em segundo lugar, possibilitavam o recurso de decisões não decisivas para o
resultado final da causa, ao admitir os agravos das decisões interlocutórias de todos os
juízes (agravo por petição ou instrumento)3782. Usava-se o agravo por petição quando o juiz
superior estava dentro de 5 léguas; o agravo por instrumento, quando estava mais longe
(Ord. fil.. 1, 7, 16; 1,9, pr.; 1,58,25)3783. Em rigor, isto só era possível no caso de as decisões
processuais afetarem a sentença final3784, mas a dificuldade do diagnóstico quanto a isto
tornava a prática muito complacente. Já se se concluía que o despacho interlocutório era
puramente processual (interlocutória mera) podia-se reclamar no processo, mas sem figura
de recurso.
7.1.15.2 A revista.
§ 2127. A revista3785 era um recurso extraordinário, dirigido ao príncipe, não tanto como
senhor da justiça, mas como senhor da graça3786. Nele se pedia uma revisão da causa, por
nulidade ou justiça notória (Ord. fil., 3,95). Arguindo-se a injustiça da sentença recorrida, tal
injustiça havia de ser grave e notória3787, embora este conceito não estivesse concretizado
nas Ordenações. A doutrina pendia para entender que seria o caso de decisão baseada
numa opinião singular ou que fosse contra a razão natural3788.

3781 Cf. Mendes Mendes de Castro, Practica Lusitana […], cit., liv. 2, cap. 19; Antonio Vanguerve

Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 2, c. 48 (agravos ordinários); Mateus Homem Leitão, De jure Lusitano
[...], cit., qu. 6, n. 4; cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,23,23.
3782 Ord. fil., 3,20, 46; fórmulas: Gregório Martins Caminha, Tratado [...] cum adnotationes de João

Martins da Costa, cit., ed. 1746, p. 120 ss..


3783 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,23,24.

3784 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,23,25.por Mateus Homem Leitão, de jure

lusitano […], cit., qu. 5, desde o n. 41.


3785 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], liv. 2, c. 20.

3786 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], cit., v. “Sententia quoad revisionem”; Álvaro Valasco,

Decisiones [...], cit., cons. 51; Tomé Valasco, Allegationes […], all. 90.
3787 Ord. fil., 3,75, pr.; 3, 87, 1; Gregório Martins Caminha, Tratado [...], cit., ed. 1746, p. 126.

3788 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,23,28; Gregório Martins Caminha, Tratado

[…], cit. ed. 1764, Annot. LVI (com formulário e notas); Ignacio Pereira de Sousa, Tractatus de

606
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 2128. A doutrina mais antiga distinguia a revista de justiça, em que se arguia a
nulidade da sentença provinda de falsas provas ou de peita do juiz, a revista de graça
especial, a pedida com fundamento em qualquer injustiça ou na suspeição do juiz, desde que
este não pudesse ser recusado (Ord. fil., 3, 21, 5), e a de graça especialíssima, a que
ocorresse sempre que as anteriores fossem impossíveis. Neste último caso, era dispensado
mesmo o fundamento da revista (v.g., a notoriedade da injustiça) e o prazo para a deduzir
(CL. 3.11.1768)3789. Na revista de justiça, admitiam-se novas provas e alegações (como na
apelação) 3790.
§ 2129. Como remédio de graça, a revista devia ser requerida ao Príncipe, através do
Desembargo do Paço – o tribunal competente para conhecer dos assuntos de graça em
matéria de justiça -, uma vez esgotados os meios ordinários de recurso. Sendo um recurso
de graça, não tinha efeitos no âmbito da lide (no plano da justiça): não suspendia a sentença,
nem admitia a aposição de exceções ou a produção de nova prova. Em contrapartida,
implicava o pagamento de uma multa se a sentença fosse confirmada. O prazo para a pedir
era de dois meses a contar da publicação da sentença (Ord. fil., 3,95; 3,8,10,11 e 12,
Regimento do Paço, §§ 32,33,34 e 35)3791. Para garantir a sua pertinência, dois
desembargadores do Paço e dois da Casa da Suplicação eram ouvidos previamente à sua
aceitação3792.
7.1.15.3 Os recursos extraordinários.
§ 2130. A revista apenas podia ser usada em relação a juízes seculares. Assim, não era
uma revista - mas antes um recurso ordinário de justiça, que suspendia a jurisdição do juiz
recorrido e era possível a qualquer tempo - a faculdade de recorrer para o rei por um abuso
da justiça eclesiástica (ajuda do braço secular, Ord. fil., 2, 8)3793.
§ 2131. Tão pouco o recurso chamado “de terceira instância” em relação a sentenças do
Tribunal da Legacia ou da Nunciatura para a Mesa da Consciência e Ordens (cf. carta de lei
de 10.11.1561) não era uma verdadeira revista, mas um último recurso de justiça.
§ 2132. Mas havia recursos extraordinários, feitos fora da ordem de juízo, com fonte no

revisionibus, cit., caps. 65 e ss., Mendes de Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], Liv. 3,
cap. 20.); Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., I., cons. 6; Jorge de Cabedo, Decisiones […], p. 1., dec.
13.
3789 Sobre a distinção, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., dec. 51, n. 9 ss.. Na prática, os

principais casos de revista de graça especialíssima eram a extinção do prazo em quaisquer causas e,
nas causas criminais, a denegação da licença para a revista ou a proibição da faculdade de dispensar
(CL 3.11.1768; v., para o período anterior, Jorge de Cabedo. Decisiones […], p. 2, Arest. 42. e Ignatio
Pereira de Sousa, Tractatus de revisionibus, cit., cap. 17, com muitos exemplos de revista nas causas
criminais.
3790 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones […], p. 1., dec. 51; Ignacio Pereira Sousa, De revisionibus, cit.,

cap. 7.
3791 Dois anos, no caso de revistas da Relação de Goa (Tomé Valasco, Allegationes, cit., all. 90,

n. 10-12).
3792 Cf., sobre outras formalidades, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,23,28.

3793 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,23, 29; este recurso não era admitido, porém,

em relação às decisões do Conselho Geral do Santo Ofício, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […]
cit., tomo 3, ad Ord. fil.,1,9,12, n. 621; Francisco Salgado de Somoza, Tractatus de regia protectione, p.
I., cap. II, § 5, n. 5.

607
As ações.
direito canónico (Decretais, De adpellationibus, cap. 5). Era o caso dos recursos em que se
impugnavam os atos das câmaras dos concelhos ou, em geral, de qualquer corporação com
jurisdição autónoma que tivesse causado um prejuízo ao apelante (Ord. fil., 3,78,pr.) ou de
qualquer ato de jurisdição voluntária, praticado por terceiros (composição ou partilha
extrajudicial) e prejudicial ao apelante. A doutrina aproximava estes recurso dos atos de
graça, já que a instância para que se apelava não tinha jurisdição sobre a apelada. Um
exemplo era o já referido recurso ao braço secular3794.

3794 Sobre este instituto, cf. Gabriel Pereira de Castro, Tractatus de manu regia […], cit.; Francisco

Salgado de Somoza, Tractatus de regia protectione […], cit..

608
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
8 Crimes e penas.
8.1 A dogmática penal.
§ 2134. O direito penal é um ramo mais tardio e mais pobre da dogmática do direito
comum.
§ 2135. No próprio direito romano, as questões penais foram sempre tratadas fora da
ordem judiciária ordinária, ou por tribunais especiais de natureza política (quaestiones
perpetuae) ou por magistrados agindo como que administrativamente, segundo um trâmite
processual especial, a que se chamava a extra ordinem cognitio3795, que se tornou no único
para estas questões no ano 342 da nossa Era3796. O facto de esta forma de cognição
extraordinária conceder um extenso espaço ao arbítrio do juiz3797 ainda atrasou mais a
fixação de princípios dogmáticos nesta área. Isto explica que a dogmática penal fosse tão
subsidiária da dogmática do direito privado e a teoria do crimen (como delictum publicum) tão
dependente da teoria do delictum (privatum). Esta pobreza das fontes romanísticas
relativamente a um conceito autónomo de crime e de direito criminal explica também que o
direito penal fosse uma disciplina tardia na evolução do direito comum3798, sendo os seus
inícios datáveis do séc. XVI (principalmente com Tiberio Deciano; mas também com

3795 A cognitio extra ordinem constituía um rito processual muito diferente do da ordo iudiciaria do
processo per formulas, seguida pelos pretores urbanos (aquela que os juristas clássicos tinham em
vista nos seus escritos e que constituía, por isso, a referência fundamental do direito romano). Era um
processo escrito, dirigido por um magistrado, que, instado por uma acusação (libellus) ou
oficiosamente, investigava (inquiria, inquisitio) os factos denunciados e julgava os seus autores.
3796 Cf. C.,2,57,1. Na fase mais arcaica do direito romano, segundo parece, um crime era uma

violação de normas religiosas ou cívicas fundamentais da comunidade [inicialmente, a traição -


perdvellium -, sendo o elenco progressivamente alargado (peculato, violação dos muros da cidade,
homicídio, fogo posto, roubo noturno, feitiçaria), punido com pena capital pelos pontífices ou pelos
magistrados dotados do máximo poder de império. Na raiz da punição não estava um procedimento
jurisdicional (i.e., fundado na declaração do direito por um magistrado dotado de iurisdictio), mas um
puro ato de coerção (coercitio) ou de mero império. Embora o condenado tivesse a possibilidade de
apelar para os comícios (provocatio ad populum). Ao lado destes atos que lesavam bens públicos
fundamentais havia outros atos lesivos de bens particulares castigados nos quadros da vingança
privada ou, depois, de ações legais (legis actiones) requeridas pelo ofendido, visando a reparação do
dano. A partir da Lex Calpurnia (149 a.C.), várias leis foram criando tribunais especiais - separados da
jurisdição ordinária - para julgar determinados delitos de incidência pública (quaestiones perpetuae).
Com o Império, esta jurisdição criminal caíu sob a alçada do imperador, que a delegava no praefectus
urbi, no praefectus poraetori, ou nos governadores provinciais. Estudos clássicos sobre o direito penal
romano: Th. Mommsen, Römisches Strafrecht, 1899; P. Girard, Histoire de l’organisation judiciaire des
romains, 1901; J. L. Strachan-Davidson, Problems of the Roman Criminal Law, Oxford, Clarendon
Press, 1912 (https://archive.org/details/cu31924021166925; síntese em English Historical Review, April.
1902); W. Kunkel, Untersuchungen zur Entwicklung des römischen Kriminalverfahren in sullinisher Zeit,
München, 1962; síntese interessante do ponto de vista aqui adotado, W. D. Aston, “Problems of Roman
Criminal Law”, Journal of the Society of Comparative Legislation, New Series, Vol. 13, No. 2 (1913), pp.
213-231; ou o artigo “Criminbal Law” no sempre útil Adolf Berger, Encyclopedic dicitionary of Roman
Law […], cit..
3797 Quanto ao mérito da questão, quanto à avaliação da prova, quanto à pena a aplicar.

3798 Síntese muito informada, Frederico de Lacerda da Costa Pinto, A categoria da punibilidade

[…], cit., 1, 64 ss.

609
Crimes e penas.
Giovanni Menochio, Julio Claro, Antonio Matteus, Prospero Farinaccio)3799.
8.1.1 O delito.
§ 2136. Delito era, no direito romano e no direito comum, uma categoria geral que
compreendia a prática de um ato proibido pelo direito, com isso ofendendo bens privados ou
bens públicos. A proximidade entre delito e crime explicava que um comportamento pudesse
caber nas duas categorias e dar origem, ao mesmo tempo, a uma pena destinada a castigar
a ofensa pública (ad vindictam) e a outra dirigida à compensação dos danos privados3800.
§ 2137. Embora se note uma grande indeterminação no uso das expressões “delito” e
“crime”, delito era a categoria mais geral: todos os crimes eram delitos, mas nem todos os
delitos eram crimes. Na verdade, a palavra crime apontava para a violação de um bem
público fundamental. Tomé Valasco era de opinião de que seriam delitos públicos os crimes
de falso e todos aqueles em que fosse imposta uma pena pelo menos de açoites ou de
degredo por certo tempo. Do ponto de vista processual, o caráter público do bem ofendido
explicava que os crimes e delitos públicos tivessem um regime processual especial, marcado
pelo conhecimento oficioso-inquisitório da matéria3801, e pudessem ser levados a tribunal por
uma acusação feita por qualquer pessoa, enquanto que o julgamento dos delitos privados
dependia da acusação e da parte lesada3802. A dogmática de direito canónico equiparava o
delito ao pecado e, por isso, considerava todos os delitos como públicos3803.
§ 2138. Apareciam nos autores outras classificações do delito, estas relacionadas com a
natureza do ato praticado. Falava-se em delitos leves, que se cometiam sem dolo ou que
tinham pouca gravidade e que se deviam julgar de forma simples e sem grandes
formalidades (simpliciter et de plano); de delitos graves (gravia), os cometidos com intenção
(dolose), que traziam grande prejuízo a um particular ou à República e nos quais se devia
agir com severidade; e gravíssimos ou atrozes, pela gravidade e qualidade, nos quais se
aplicava a pena capital3804. Havia autores que falavam de delitos maus por natureza (como o
furto, o estupro e a blasfémia), nos quais se devia presumir que o autor tinha agido com
intenção má (dolus malus)3805.
§ 2139. Os delitos eram considerados como atos maus (ex sua natura), praticados por
homens maus3806. A utilidade pública exigia a sua punição, devendo os juízes estarem
atentos à sua vigilância e punição célere, sem o que ficaria comprometida a paz da

3799 Cf. Mario Sbriccoli, “Lex delictum facit. Tiberio Deciani e la criminalística italiana nella fase

cinqucentesca del penale egemonico”, cit..


3800 “Ex delicto oritur duplex actio, altera criminalis ad poenam corporalem, vel pecuniariam, altera

civilis in factum ad interesse & persecutionem rei”, Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 169, n.
17.
3801 Modelo: D.48,18 De quaestionibus.

3802 Tomé Valasco, Allegationes […], all. 13, 63.

3803 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum” n. 1. Sobre a teoria criminal do

direito canónico, v. Frederico de Lacerda da Costa Pinto, A catategoria da punibilidade […], cit. p. 70
ss..
3804 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum” ns. 10 e 20.

3805 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, n. 4.

3806 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, ns. 4 e 5.

610
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
república3807.A maldade dos atos e dos criminosos aparecia como ligada à natureza e não a
uma declaração da lei do príncipe, que não podia fazer do bem mal nem do mal bem3808. Nas
fontes doutrinais portuguesas usadas, a criminalização dos atos maus e a punição dos que
os praticassem obedecia ainda a um modelo tradicional do direito penal, não aparecendo
especialmente cometida ao direito régio – à lei; antes se deixando entender que a
criminalização de comportamentos competia à comunidade, que expressaria de muitas
formas a sua sensibilidade acerca da maldade desses comportamentos.
§ 2140. Os atos maus deviam ser castigados. Esse castigo era a pena criminal – de
natureza diferente da pena civil (v.. cap. 6.11) - que, por isso tinha uma natureza pessoal.
Consequência desta natureza pessoal da pena era a sua intransmissibilidade3809 - aos filhos,
ao cônjuge, aos herdeiros -, embora esta regra tivesse exceções, provenientes de uma ideia
de alastramento da maldade aos próximos, mas, sobretudo, de uma simples consequência
lógica da pena. Assim, nos crimes de heresia ou de lesa majestade, punidos também com
confisco, as consequências patrimoniais recaíam naturalmente sobre os herdeiros, que
ficavam privados da herança3810. Nos casos de coautoria ou de cumplicidade, todos os
implicados eram puníveis, porque aqui não se tratava de estender a responsabilidade penal
a outrem, mas de responsabilizar todos os criminosos. O mesmo no caso da punibilidade do
mandante3811. No entanto, as leis podiam determinar, em certos caos, que as penas (por
exemplo, a infâmia) se continuassem nos descendentes até certa geração; nesses casos,
entendia-se que as mulheres – que entravam apenas “politicamente” nas famílias daqueles
com quem casavam - escapassem a essa mancha3812.
§ 2141. Este caráter pessoal da censura e da pena criminais explicava também que a
pena não devesse prejudicar terceiros cujos patrimónios fossem administrados pelo
delinquente. Por isso, os delitos dos prelados não prejudicavam a Igreja, os dos tutores
prejudicavam os pupilos, os dos pais não prejudicavam os filhos3813.
8.1.2 A ilicitude e tipicidade.
§ 2142. Para haver delito, o comportamento do agente tinha que ser contrário ao direito.
E, acrescentavam os autores - afirmando uma regra que não era específica do direito penal
mas que aqui aparecia como um princípio muito importante -, ao direito expresso. Isto explica
que só houvesse um delito se existisse um comportamento proibido pelo direito ou, pondo as

3807 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, ns. 9 e 13.
3808 Que a vontade do príncipe não podia mudar a natureza criminal dos comportamentos
explicava que um crime cometido a mando do príncipe não deixasse de o ser (“Delinquens iussu illius,
qui habet ius imperandi, excusatur in eo, quod iure fit, & in levibus delictis, quoniam in gravibus non
excusantur […] quia in gravibus delictis nullus tenetur obedire illi, qui habet ius imperandi”, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, n. 38).
3809 Cf. “Actio qui tendit ad vindictam non transit in haeredes”, Gabriel Pereira de Castro,

Decisiones [...], cit. dec. 119, n.8.


3810 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, ns. 34 e 37.

3811 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Poena”, n. 27 (a pena estendia-se ao

mandante, a menos que isso fosse expressamente excluído pela lei).


3812 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Poena”, n. 38.

3813 A não ser nos tais casos em que a natureza da pena os prejudicasse como herdeiros, António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, n. 32.

611
Crimes e penas.
coisas de outro modo, explicava que não houvesse delito nem contrariedade (iniuria) com o
direito quando uma norma jurídica3814 expressa permitisse tal comportamento3815. No delito
penal, que atinge bens de todos, ainda é preciso que o direito proteja expressamente estes
bens, declarando também expressamente como crimes a sua violação (tipicidade). Os
corolários desta regra refletem-se nas proibições da aplicação analógica da norma penal
incriminatória3816 e da sua interpretação extensiva3817.
§ 2143. Tem sido realçado pela historiografia mais recente que esta exigência de
criminalização expressa das condutas não equivale ao princípio da legalidade estabelecido
no séc. XIX. Neste, a exigência de que o crime esteja previsto expressamente na lei
representa uma garantia para o cidadão, pois se entende a lei como a forma cidadã de
estabelecer o direito. Em contrapartida, no direito anterior a exigência de que o
comportamento delitivo estivesse expressamente previsto na lei servia para indiciar a suma
gravidade do desrespeito do criminoso pelo direito da comunidade3818.
§ 2144. No entanto, havia aberturas para a extensão da lei penal. Por um lado,
considerava-se que a analogia ou similitude das situações podia corresponder a uma
identidade dos motivos racionais para as punir, pelo que, em certos casos, se devia aplicar a
um caso o tratamento penal que o direito previa para outro em que as razões subjacentes à
decisão fossem as mesmas, pois, verdadeiramente, não se tratava de casos análogos, mas
antes racionalmente dos mesmos3819.
§ 2145. Menos subtis eram outras das exceções à regra da não extensibilidade da
incriminação. Assim, entendia-se que esta não teria lugar se o interesse da república
requeresse que se estendesse a incriminação, para que os delitos fossem mais
completamente punidos3820 ou se o favorecimento da Igreja ou da fé requeressem o
mesmo3821.
8.1.3 A imputabilidade penal: menores, furiosos, bêbados e irados.
§ 2146. Como o delito implica um castigo, não comete delito quem não deva ser

3814 Por vezes, os textos falam de “lei”. Mas a palavra tem um sentido amplo, que abarca, por

exemplo, as normas contidas do Corpus iuris (muitas das quais nem eram originariamente leis).
3815 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Damnum”, n. 8 (“Qui facit quod lex permittit

nulli facit damnum nec iniuriam”). Muito mais escuso estava da responsabilidade penal quem atua por
imperativo da lei, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 87, n. 12.
3816 Miguel de Reinoso, Obervationes [...], cit. 73, n. 28 (“Poena a lege imposita in uno casu non

potest ad alium extendi”).


3817 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 72, n. 7 (as leis penais são de direito estrito

e não podem ser interpretadas extensivamente).


3818 Cf. Mario Sbriccoli, “Lex delictum facit. Tiberio Deciani e la criminalística italiana nella fase

cinqucentesca del penale egemonico”, cit..


3819 “De similibus ad similia quando detur identitas retionis”, Melchior Febo, Decisiones [...], cit.., p.

1, dec. 72 n. 11. António Cardoso do Amaral é um pouco mais restritivo, exigindo que a razão esteja
expressa na lei; só nesses casos seria claro que “ex mente legis comprehenduntur omnes casus etiam
poenales, in quibus concurrit illa omnimoda ratio”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Poena”, ns. 25 e 26.
3820 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Poena”, n. 21.

3821 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Poena”, ns. 22-24.

612
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
castigado, por carência absoluta de inteligência dos seus atos (cum non habeant
intellectum)3822. Esse é o caso dos loucos (furiosi) (v. cap. 3.1.10) e das crianças até ao
termo da infância (v. cap. 3.1.9.3). Quanto aos outros (bêbados, pessoas perturbadas pela
ira), o direito era bastante exigente. Responsabilizava o bêbado, desde que a bebedeira não
lhe trastornasse a mente, embora o punisse mais levemente ou, até, o escusasse se
estivesse bêbado sem culpa3823. E, salvos os casos de debilidade intelectual extrema,
declarava todos imputáveis, embora autorizasse o juiz a modular as penas em função das
fraquezas que caracterizavam certas categorias das pessoas, considerando a meninice, a
imprudência, o sexo, a condição, a senilidade3824.
8.1.4 A imputação.
§ 2147. Os factos delitivos tinham que poder ser relacionados com uma pessoa, por
meio de um nexo causal que ligasse o agente ao ato, mas também por uma ligação
psicológica que permitisse que o castigo se justificasse. A doutrina enumerava vários tipos
possíveis de laços psicológicos, averiguando da sua pertinência para justificar o castigo
penal. O delito, dizia-se, comete-se ou por intenção (proposito), ou por arrebatamento
(impetu) ou por casualidade (casu)3825.
8.1.4.1 Dolo.
§ 2148. O dolo (v. cap. 6.4.2) era a intenção deliberada, aberta3826 ou traiçoeira3827, de
cometer o delito3828. A doutrina falava ainda de crimes cometidos por ímpeto (impetus),
distinguindo-o do dolo, pois aqui ao ímpeto da ação não correspondia, porém, uma firmeza
da vontade3829, o que podia tornar problemática a sua punição (pelo menos com a pena
ordinária).
§ 2149. Por influência do direito canónico, este elemento interior da intenção ganhava
uma grande relevância. Ao passo que, no direito romano, os atos criminosos tinham que ser
atos exteriores3830 e não meras disposições internas3831, os juristas do direito comum

3822 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, n. 46.
3823 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, ns. 46 e 47.
3824 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Poena”, n. 44
3825 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, n. 1.

3826 “[…] Quando erat suus inimicus, & contra te habebam rancorem, & ex proposito te percussit”,

António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, n. 2.


3827 “[…] Quando unum in actibus ostendebas, & aliud in mente gerebas te fingebas amicum, aut

ambulabas cum aliquo, tanquam amicus et domus eius eras, & illum de retro persusistis, sive sub
colore animicitiae aliquod delictum contra illum commisisti”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit.,
v. “Delictum”, n. 2.
3828 “[…] ex proposito, qui animo deliberato aliquod delictum commisit”, António Cardoso do

Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, n. 2.


3829 “[…] impetu vero dicit delinquere, quando per iracundiam, sive ebrietatem, ad manus, aut ad

ferrumn, venitur, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, n. 2. Os delinquentes irados
não deixavam de ser condenados, a menos que tivessem perdido o juízo, caso em que seriam punidos
mais levemente, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, n. 45.
3830 Um facto, um dito, um escrito, um conselho (cf. D.48,19,16,pr.); mas não um simples

propósito interior (Cf. D.48,19,18)


3831 Cf. D.48,19,18 (“Cogitationis poenam nemo patitur”).

613
Crimes e penas.
hesitavam quanto à punição de atos interiores. António Cardoso do Amaral começava por
declarar que “os delitos ocultos apenas são punidos por Deus, pois só Deus, e não o
homem, é o seu juiz [...]”; mas, de seguida, parecia transferir a questão do plano da
punibilidade dos atos interiores para o plano da possibilidade de os provar, pois
acrescentava que, se se pudessem provar, “bem se podem punir, embora de forma mais
leve do que aqueles que são cometidos à vista de todos”3832. No número seguinte (ibid., n.
55), a indecisão mantém-se. Começava por afirmar que “a intenção (affectus) é punida nos
delitos, apesar de não se seguirem os efeitos” (“tamen in delictis punitur, quamvis non
sequatur effectus [...]”, embora não com a pena ordinária, mas com uma extraordinária. O
que se requeria era um ato exterior a partir do qual essa intenção se deduzisse. Se este ato
não existia, “o delinquente não deve ser punido no foro exterior, pois a intenção, como ato
interior, não é punida a não ser no tribunal divino”. De novo, a oscilação entre a ideia da
impunibilidade, no foro temporal, dos atos interiores por uma razão de princípio e s sua
impunibilidade pela impossibilidade de provar o que se passasse apenas na consciência. A
tentativa (conatus), em que uma intenção se exteriorizava em atos próximos e imediatos,
embora não conduzindo ao resultado projetado, era um destes casos em que a disposição
interior se podia provar e, por isso, em que devia haver uma punição dirigida à disposição
interior do agente (para castigar a malícia e prevenir que ela gerasse novas tentativas de
delinquir3833), embora também ao exterior (evitar o mau exemplo3834). A tentativa era punida
ela mesma como crime, com a pena ordinária que a lei tivesse especificamente previsto para
o caso (a menos, no entanto, que o delinquente por sua espontânea vontade desistisse do
intento e se arrependesse antes de consumar o delito)3835.
§ 2150. Eram punidos os delitos cometidos por brincadeira ou por tontice3836.
8.1.4.2 Culpa.
§ 2151. No direito romano3837, havia quatro categorias de delitos (malefícios que
causavam danos), individualizados como tal nas Institutiones: o furto e a rapina, ofendendo o
direito de propriedade; a injúria [i.e., “quod non iure fit”, Inst. Gaii, 3, 223], ofendendo a
integridade física ou moral de alguém; e um complexo de danos causados por uma ofensa
não dolosa (damnum iniuria datum), cuja reparação estava prevista na Lex Aquilia de damnis
(c. 286 a.C., D. 9, 2, 1, 1), de (ou nas suas extensões pretorianas: originariamente, morte de
escravo ou de animal de outrem; dano a coisa de outrem, animada ou inanimada). Nestes
casos, a responsabilidade pela indemnização baseava-se não apenas no dolo, mas também
na culpa. Porém, a culpa não consistia na imputação subjetiva do facto ao autor, em termos
de uma censura (pelo menos, por falta de cuidado), podendo bastar uma imputação objetiva:

3832 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, n. 54.
3833 Neste caso em que a intenção se podia provar, por ter sido suficientemente exteriorizada; cf.
“Malicia hominis non est indulgendum sed potius obviandum”, António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., v. “Delictum”, n. 7.
3834 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, n. 48 (refere-se aos

envenenadores que falhassem nos seus propósitos).


3835 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, n. 55.

3836 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, ns. 6 e 9 (“qui fuit stultus in culpa erit

sapiens in poena, quoniam poena facit stultos sapientes”, n. 6).


3837 “Transeamus nunc ad obligationes, quae ex delicto nascuntur, veluti si quis furtum fecerit,

bona rapuerit, damnum dederit, iniuriam commiserit […]” (Inst. Gaii, 3, 182).

614
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
o dano verificara-se por facto do autor (“in lege aquilia et levissima culpa venit”, D. 9, 2, 44
pr.).). Nestes últimos casos, havia responsabilidade sem culpa, como no caso do guarda
(custos), do empregador pelo facto dos seus empregados, do estalajadeiro, do estabulador,
do barqueiro, sempre que se comportassem de forma não esperada; o mesmo se passava
na produção de danos causados pelo arremesso de objetos líquidos ou sólidos, ou por
coisas apoiadas ou suspensas de propriedade do autor (actio de effusis et dejectis, positis et
suspensis).
§ 2152. Assim, a teoria do delito considerava que bastava a culpa para se ser punido,
sempre que houvesse uma falta da diligência exigida, seja na realização de alguma obra (in
operando), seja na escolha ou vigilância de algum trabalhados subordinado (in elegendo, in
vigilando). A responsabilidade pelos danos causados por animais domésticos (actio de
pauperie) também supunha essa falta de cuidado na sua guarda ou condução. Noutros caos,
a teoria do delito era ainda menos exigente na imputação subjetiva, pois as circunstâncias
objetivas podiam dispensar a culpa subjetiva. Por exemplo, o proprietário da casa que estava
sobre outra respondia pelos danos (infiltrações de águas, desabamento) que a casa superior
causasse na inferior3838. A doutrina classificava estes casos de responsabilidade como
“quase delitual”.
§ 2153. Também a guerra ou outro motivo similar de força maior afastavam a
punição3839. Mais complicada era a questão de saber se a obediência devida afastava a
punição. O princípio geralmente aceite era o de que a obediência só excusava se o
mandante tivesse poder de imperium e, mesmo assim, apenas nos crimes leves. Nos mais
graves, a ordem de praticar um crime responsabilizava tanto o mandante como o executante,
pois ninguém era obrigado a obedecer a uma ordem no sentido de praticar um crime
grave3840.
§ 2154. Porém, estes princípios, que tinham sido estabelecidos para os delitos “civis”,
visando a reparação do dano, não se adequavam à punição penal que, ainda mais por causa
da influência do direito canónico, tendia a exigir um elemento subjetivo que justificasse o
castigo3841. Daí que, por regra, a responsabilidade criminal exigisse a intenção3842.
8.1.4.3 O acaso.
§ 2155. Já o facto de se produzir um dano, ao fazer uma coisa lícita e com a diligência
necessária não induzia em responsabilidade penal (civil ou criminal), pois o dano só se podia
imputar ao acaso (casus). Era o que acontecia quando um caçador matava uma pessoa ao
lançar uma lança a um animal3843. Pelo contrário, o agente respondia pelo dano, se o acaso
ocorrera quando praticava um ato ilícito, quando omitira algum dever de cuidado ou quanto

3838 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, n. 39.
3839 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 74, n. 4.
3840 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, n. 38.

3841 De qualquer modo, algumas das penas civis – quando a pena se correspondia a um múltiplo
do dano (o “dobro” ou o “tresdobro”) continham um elemento de castigo (criminal, ad vindictam), o que
ainda contribuía para complicar a distinção entre factos geradores de responsabilidade civil e factos
geradores de responsabilidade criminal.
3842 “Statutum puniens aliquam corrumpere, intellegitur de eo qui voluntarie corrumpit in effectu”,

Tomé Valasco, Allegationes […], all. 21, n, 31.


3843 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum” 2 e 3.

615
Crimes e penas.
se intrometia em algo que não lhe cabia3844.
8.1.5 Punibilidade.
§ 2156. Os delitos puniam-se tantas vezes quantas se repetissem, embora cada um
apenas uma vez (non bis in idem)3845 3846. Havia, porém casos em que os crimes não deviam
ser punidos. Por um lado, se tivessem prescrito; o que, pelo direito civil (mas não pelo direito
canónico), ocorria no caso de não ter havido denúncia (accusatio, libellum oblatio) por mais
de 20 anos3847. Por outro lado, a punição estava dependente do juízo sobre se os seus
efeitos não eram piores do que a não punição. Assim, se o escândalo da divulgação do delito
fosse mais grave do que a não punição, o delito devia ficar por punir, salvo se constituísse
pecado mortal3848. Por fim, certos crimes pelo direito comum correspondiam a ações lícitas,
em certas circunstâncias, pelo direito natural. Tal era o caso do furto em estado de
necessidade: embora fosse crime, obrigando a restituição logo que possível, não devia ser
punido, por corresponder a um direito natural (v. cap. 8.2.6.2).
§ 2157. A responsabilidade penal extinguia-se com a morte do delinquente3849; por isso,
os delitos dos pais em geral não oneravam os filhos3850. A responsabilidade criminal também
era extinta pela prescrição, por vinte anos, segundo o direito civil. Pelo direito canónico, os
crimes nunca prescreviam3851.
8.1.6 O processo e a prova.
§ 2158. Ao tratar da ordem do processo (cf. 7.1.9), já se aludiu à ordem processual
crime3852. Esta começava pela denúncia, podia requerer acusação (libelo) de parte (nos
crimes particulares)3853, continha alguma especialidade no relativo à prova3854,

3844 “Pois não se pode dizer sem culpa quem se mete em coisa alheia, embora não deva ser
punido com a pena ordinária”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum” 3.
3845 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, ns. 12 e 14; Diogo Marchão

Themudo, Decisiones […], cit., dec. 81, n. 11.


3846 Alguém punido pelo juiz eclesiástico pode ser punido pelo juiz secular, António Cardoso do

Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum” 15. Na reincidência não se tratava de condenação pelo mesmo
crime, mas por outro da mesma natureza, pelo que o resultado era antes o agravamento da pena (v.g.,
a condenação num segundo furto levava à forca, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Delictum”, n. 16).
3847 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, n. 35. A denúncia era a forma de

levar o juiz a inquirir de um crime, ibid., n. 28.


3848 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, n. 36.

3849 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, n. 34; não no caso de heresia,

que dava lugar à confiscação de bens, mesmo post mortem, ibid..


3850 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, n. 33. Porém, a lesa majestade

gerava infâmia que se transmitia aos descendentes.


3851 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, n. 35.

3852 Sobre a ordem judicial nas causas crime, António Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit.,

p. 1, cap. 32.
3853 Nos crimes particulares, a falta de acusação particular extinguia a lide; nos crimes públicos,

podia levar à atenuação da pena, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, n. 27.
3854 Para se aplicar a pena ordinária, os crimes deviam provar-se por provas meridianas, e não

por mera fama ou testemunhas crédulas. Na dúvida, seria melhor deixar de punir um culpado do que

616
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
nomeadamente quanto a presunções3855 e uso da tortura3856.
§ 2159. Detalhemos um pouco mais, seguidamente3857.
8.1.6.1 Introdução.
§ 2160. Vista desde hoje, a ordem penal, incluindo o processo penal, pode parecer uma
ordem opressiva e cruel; e assim tem sido descrita desde os meados do séc. XVIII. A
propósito da aplicação da pena de morte, já há anos que propus uma leitura diversa, menos
enfeudada a essa lenda negra do direito penal de Antigo Regime. Aqui, acrescentarei aos
argumentos de então – a importância doutrinal da graça e da misericórdia, a falta de uma
logística que permitisse a punição efetiva, a necessidade de manter a coesão social numa
sociedade de poderes débeis – mais algumas considerações sobre a natureza pouco
invasiva da ordem penal da coroa.
§ 2161. Volto ao livro de Mateus Homem Leitão sobre as particularidades do direito
português (cf. cap. 7.1.1.), que ele focaliza em três institutos – agravos, cartas de seguro e
devassas. A partir destes três pontos, que de facto parecem centrais na modelação de um
uso social do direito e da justiça, abordo de novo a questão da efetividade e crueldade da
ordem penal da coroa.
§ 2162. Os agravos alargaram enormemente as possibilidades de recurso em relação
àquilo que era o sistema romano de litigar, permitindo recorrer de praticamente todos os atos
do processo, por vezes com efeitos suspensivos, enredando a lide em discussões
intermináveis sobre matérias jurídicas obscuras. É difícil encontrar um instituto processual
que mais tenha contribuído para aumentar a litigiosidade e prolongar as demandas, um traço
que leigos e juristas, já na época, davam como característico do direito português antigo. Os
processos tornavam-se uma silva de agravos e embargos, que se somavam às apelações e,
por fim, às revistas. Tendo os embargos como fundamento vícios formais, que incluíam a
competência do tribunal e a capacidade das partes, eles incidiam sobre questões em que a
sociedade de Antigo Regime era muito complicada e incerta, baseada em tradições e regras
de uso de interpretação variada, como a pluralidade das jurisdições e a diversidade dos
estatutos pessoais e da capacidade jurídica das pessoas. Por isso, a generosidade de
recurso, somada à incerteza do direito e das jurisdições, tornava os processos numa meada
de expedientes, de que os advogados – porventura mais do que as partes – se aproveitavam
e que os escrivães – porventura mais do que os juízes - propiciavam ou impediam.
§ 2163. E, realmente, esta difusão e alongamento dos processos judiciais promoveram
muito o poder social dos juristas. Desde logo, de advogados letrados e procuradores rábulas,
que ideavam os recursos e os insinuavam às partes; mas também dos escrivães, que os

punir um inocente, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum” 25.
3855 Os crimes presumiam-se nos homens notoriamente maus. Mas presumia-se a inocência nas

pessoas constituídas em dignidade, nas pessoas de letras ou nas pessoas de idade (desde que
tivessem sido maduros e honestos quando jovens), cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Delictum”, n. 6.
3856 O direito comum permitia o uso da tortura, “mas este género dos tormentos, em Portugal e

noutros lugares, é cruel e terrível, de tal forma que não existe um suplício maior, a não ser a morte,
morrendo alguns na tortura”. Por isso, a tortura só se devia usar nos crimes graves, desde que
houvesse indícios ou uma só testemunha e não se dispusesse de outro meio para descobrir a verdade,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum” n. 56.
3857 Sobre a história do processo penal, v. Giorgia Alessi, Il processo penale […], cit..

617
Crimes e penas.
escreviam nos autos e que, frequentemente, os propiciariam, e dos juízes que os concediam
ou negavam. Num estudo sobre uma das regiões mais rústicas e arcaicas de Portugal – a
zona serrana do Montemuro, a que Aquilino Ribeiro chamou “as terras do Demo” e que
caracterizou em romances etnograficamente riquíssimos -, Anabela Ramos3858 destaca o
poder social destes letrados, muitas vezes de poucas letras, na montagem, condução ou
desmontagem de lutas judiciais que prolongavam por outros meios e com referência a outros
espaços e a outras armas as lutas comunitárias de sempre. Mostra como os escrivães
montavam as demandas ou, desinteressados, as deixavam morrer à míngua de registos nos
processos3859, como os assessores ditos letrados eram abundantes, mesmo nestas terras do
fim do mundo3860, como os juízes leigos, frequentemente analfabetos, eram expropriados
pelo poder dos que liam a escreviam direito.
§ 2164. O segundo tema do livro de Mateus Homem é o das cartas de seguro (Ord. fil.,
1,58,40)3861, outra novidade do direito processual penal português, que permitia aos réus
evitar a prisão depois da acusação, mantendo-se livres até à sentença final. Há uma lenda
acerca do seu aparecimento: as cartas de seguro teriam sido introduzidas nos tempos do
Mestre de Aviz, para evitar que os acusados, para escapar à prisão, preferissem juntar-se à
hoste de D. João de Castela. Talvez se tenha tratado apenas de uma forma de um aparelho
judicial débil se acomodar à realidade da sua debilidade, coonestando, deste modo, a
impossibilidade de assegurar mais eficazmente, a comparência em juízo, jogando na
cooperação do próprio acusado, ligado por uma promessa a vir a tribunal. Fosse como fosse,
a carta de seguro protegia os acusados e foi apresentada pela doutrina iluminista (e alguma
anterior) como uma notável, mas prejudicial, particularidade do direito do reino.
§ 2165. Finalmente, as devassas, um instituto que o autor salienta não existir no direito
comum nem nos direitos de outros reinos e que, portanto, tratará como uma novidade do
direito pátrio (Liv. III, “Praefatio”). Refere-se não à inquirição das testemunhas num processo
criminal particular, a pedido das partes, mas à devassa tirada pelos juízes oficiosamente
sobre uma lista vasta de crimes (Ord. fil.,1,65,31), a fim de combater o crime e expulsar do
seu território os homens malvados (facinorosos) (cf. Ord. fil.,1,58,5-15 e 31). As devassas
gerais eram consideradas prejudiciais e fonte de insegurança e abusos; mas os Ordenações
acabavam por cometer aos juízes uma larga competência para inquirir oficiosamente de
certos crimes3862, competência esta que não teria paralelo nem no direito comum, nem nos
direitos de outros reinos3863, embora fosse clara a sua filiação nas visitas episcopais. Esta
especialidade do direito pátrio também era uma fonte singular de poder para os juízes,

3858 Anabela Ramos, Violência e justiça em terras de Montemor. 1718-1820, cit.. Também: Irene

Vaquinhas, Violência, justiça e sociedade rural: os campos de Coimbra, Montemor-o-Velho e Penacova


de 1858 a 1918, cit., tese policop.
3859 "Neste livro acho muito assentos em aberto sem procedimento algum contra os culpados

[…]", censura um Corregedor dos finais do séc. XVIII, na correição dos pequenos concelhos de Cabril e
Parada de Ester (p. 98). A A. diz que, pelas suas contas, isto se passava em mais de 10 % dos registos
de abertura de querelas (ibid., 98, 101).
3860 Segundo a mesma obra 80 em 114 juízes têm assessor (p. 93). Notando que os assessores -

muitos deles, possivelmente, antigos estudantes de Coimbra com cursos incompletos (cf. Joana
Estorninho de Almeida [….] cit.) abundavam por aqui.
3861 Cf. § 2191.

3862 Era proibida em geral: Ord. fil.,1,65,31.

3863 Cf. Mateus Homem Leitão, De jure lusitano […], cit., “Praefatio” ao livro 3.

618
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
letrados ou leigos, pois colocava as populações perante uma ameaça permanente de
perseguição criminal. O expediente também tem sido visto como um meio de controlo do
poder oficial sobre o espaço e sobre as populações 3864. O ponto de vista parece pertinente,
mas sobretudo se se considerar que esse poder é o dos magistrados que diretamente
dispõem da competência para devassar, e não tanto das instâncias centrais de poder, como
a coroa.
§ 2166. Nota-se, porém, que esta iniciativa oficiosa de proceder parece nunca ter
suscitado a simpatia das populações. Há capítulos de cortes pedindo a sua extinção. A
ênfase da proibição das devassas gerais nas Ordenações deve responder a isso. Voltando
ao exemplo de Montemuro, Para os processos iniciados por devassa, apenas cerca de 1/3
havia querela de parte.
§ 2167. O traço comum destes institutos, tal como funcionavam na prática, é o de
diminuir muito a efetividade da coação penal do direito régio.
§ 2168. O processo penal não era, é certo, de um processo puramente acusatório. Ao
contrário do que acontece no processo civil, o juiz podia inquirir e acusar ex officio, quer nas
devassas especiais, quer ao devassar crimes graves (“casos de devassa”) de que tivesse
conhecimento (Ord. fil.,65,31-38). Porém - mesmo não considerando que, em bastantes
crimes muito comuns na vida quotidiana, a acusação particular era indispensável, levando a
sua falta à extinção da lide – o que parece que acontecia era que a colaboração particular
através da querela de parte ocorria raramente, o que daria um baixo dinamismo a estes
processos em que a comunidade não parecia interessada. A pergunta a fazer às fontes é,
então: o que acontecia aos processos de devassa (particular ou especial) em que não
sobrevinha querela de parte ? Se a resposta for que, geralmente, estes processos ou não
prosseguiam ou terminavam em absolvição, então teremos que concluir que o projeto de
intervenção oficiosa na punição penal sugerida pela possibilidade de acusação pública
(inquisitio, denúncia) estava, na prática, condicionado pela colaboração da comunidade por
meio de querela de parte. E que, por isso, a distinção entre um processo penal inquisitório e
um processo civil acusatório acaba por não ser tão nítida.
§ 2169. A instituição das cartas de “seguro” protegia o acusado contra a prisão.
Somavam-se a outros institutos com o mesmo sentido de obstar à prisão (homenagem para
nobres e equiparados, fiança). As próprias fontes doutrinais reconhecem o excesso da sua
concessão e o modo como tornavam pouco atemorizadora a justiça real.
§ 2170. Afora estes institutos singulares, o processo penal – tal como desenhado pela
doutrina e praticado nos tribunais era relativamente doce. Escusava o réu de juramento, para
não o fazer incorrer em perjúrio, desonerava-o do encargo da prova negativa ou diabólica,
obrigando à prova apenas a parte que afirmava um facto, requeria duas testemunhas fiáveis
e concordes para a prova plena, rodeava os tormentos de cautelas e, ainda mais, a
admissibilidade da confissão do réu sujeito a tortura, aconselhava a absolvição em caso de
dúvida e a condenação apenas quando fosse feita a prova plena. Condenado o réu,
multiplicava os recursos. Esgotados estes, frequentemente o livrava, por perdão ou por

3864 Paolo Napoli, "La visita pastoral: un laboratorio de la normatividad administrativa", cit.; José
Pedro Paiva, "As visitas pastorais", cit.; Id.,"Inquisição e visitas pastorais. Dois mecanismos
complementares de controle social", cit.; Literatura de época: Mateus Soares, Practica e ordem pera os
visitadores dos bispados […], cit.; Lucas de Andrade, Visita geral que deve fazer um prelado no seu
bispado, […], cit..

619
Crimes e penas.
livramento concedido nas audiências gerais do Regedor da Casa da Suplicação.3865
§ 2171. Tudo isto nos leva a encarar o processo penal como orientado para a
aquietação das populações quanto à ameaça da justiça régia. Tornando-a pelo menos mais
aceitável, menos desleal e menos traiçoeiro do que os processos de justiça informal local.
Saliente-se que esta “suavidade” do processo penal não tinha a ver como uma conceção
humanista ou garantista do processo, mas com esta política de tornar mais atrativa a justiça
régia do que a justiça penal local ou do que a vingança. A sociedade dispunha já de meios
de resolver as suas disputas: a vergonha pública, a assuada, as rixas e pancadas. Tudo isto
continuava a vigorar na resolução dos conflitos a propósito das regas, dos pastos, do
forçamento de mulheres, etc.3866. Só que, agora, algumas dessas práticas usurpavam a
justiça do rei e se tornavam crimes. Daí que, se se quisesse preservar o máximo dos
equilíbrios tradicionais, havia que desativar ou enfraquecer a punição régia para esses
casos. Era isso que se obtinha pelo funcionamento conjunto das “garantias” dos acusados no
processo penal da justiça régia. Como já antes escrevi, o direito penal ameaçava com dureza
e crueldade, mas o processo penal desativava-o através de múltiplos expedientes que
abriam espaços para que se manifestassem os processos espontâneos das comunidades.
8.1.6.2 O juiz competente.
§ 2172. O processo criminal segue, em geral, a ordem do processo civil, com as
especialidades assinaladas na sua regulamentação específica, que consta do livro 5 das
Ordenações3867.
§ 2173. O foro competente era aquele do local onde o delito fora cometido (Ord. fil.,1,7,4
e 6,3)3868.
§ 2174. Havia, porém, foros privilegiados, que preferiam ao foro criminal comum.
§ 2175. Uns destes privilégios eram pessoais, concedidos em razão das pessoas, de
acordo com a lógica das sociedades de Antigo Regime3869. Eram, inclusivamente, mais
frequentes no domínio penal do que no domínio cível. Em razão da pessoa, tinham privilégio
de foro os soldados (a partir do alv. 21.10.1761, que estabeleceu a jurisdição privativa do
Conselho de Guerra); os eclesiásticos de ordens sacras (Ord. fil.,1,1;88,16), bem como os
clérigos menores que fossem beneficiados ou que usassem hábito ou tonsura (Ord. fil.,2,1,4;
2,21 e 22; 2,27), e que tinham como foro o do seu prelado3870; os desembargadores, que

3865 No estudo que se tem citado sobre Montemuro, dos réus querelados, 49 % são absolvidos,

10 % perdoados, 10 % fogem e, tirando os que morrem de morte natural, só 1% é referido como


condenado (p. 110).
3866 Cf. Anabela Ramos, A violência e a justiça, cit, 31 ss..

3867 Fontes doutrinais: Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit.; Manuel

Lopes Ferreira, Practica criminal […], cit.


3868 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, n. 41. Apesar de regra contrária

de direito comum, se fugisse para outro território e jurisdição e aí fosse preso, a prisão valia (Ord.
fil.,1,73,7); mas se aí estabelecesse domicílio, devia ser o juiz desse território a ordenar a prisão, por
precatória, ibid., n. 43.
3869 Sobre privilégios, José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal […], cit., c.

1, n. 8.
3870 Os eclesiásticos sem superior no Reino respondiam perante o foro secular, para evitar a

expatriação do juízo (Ord. fil.,2,1,pr.)

620
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
tinham, em geral, como foro os corregedores do crime da corte (Ord. fil.,2,59,10-14); os
cavaleiros das ordens militares (Cristo, Santiago e Aviz, Malta) que recebessem tença (Ord.
fil.,2,12,1; 2,25) e que respondiam (só no crime) perante o Juízo das Ordens3871; os
professores e estudantes da Universidade de Coimbra (Estatutos da Universidade, l. 1,27),
que eram julgados pelo conservador da Universidade, dando apelação para os ouvidores do
crime da Casa da Suplicação; os oficiais e familiares (de número) do Santo Ofício, que como
autores ou réus3872 respondiam perante o Juiz do Fisco da Inquisição; os moedeiros (Ord.
fil.,2,62,8), que eram julgados pelo seu conservador; as viúvas honestas (Ord. fil.,3,5,3), que
respondiam, no cível e no crime, perante o tribunal da corte; os rendeiros de rendas reais
(Ord. fil.,2,63), que respondiam, como réus (e como autores nas causas de injúria
relacionadas com a sua qualidade de arrendadores fiscais, perante os contadores das
comarcas; os oficiais de saúde, julgados pelo seu provedor mor (alv. 17.1.1739); os oficiais
da Bula da Cruzada, que respondiam perante a respetiva Junta (Reg. da Bula de 13.6.1672,
§ 11 e 84); os súbditos das nações aliadas, que respondiam perante os seus
conservadores3873.
§ 2176. Decorrentes da natureza da causa eram os privilégios das causas de falsidade,
de erros de ofício, da almotaçaria (Ord. fil.,1,65), das falências Alv. 16.12.1771), da Fazenda
Real (com jurisdição privativa de todas as outras: Ord. fil., 3,1,17-18; 1,12,63,3; 3,5,5), da
Índia e da Mina (Ord. fil.,1,52), da Alfândega (Ord. fil.,1,32), de contrabando e descaminho; e
outros, que foram sendo criados com a especialização da administração, na segunda metade
do séc. XVIII.
§ 2177. No caso de conflito de foros privilegiados, havia regras de preferência3874. Os
privilégios de causa preferiam sempre os pessoais, exceto os dos estrangeiros,
estabelecidos por tratado (alv. 22.5.1733). Nos casos de jurisdição cumulativa (em que
vários juízos eram competentes), valia a regra da prevenção - conhecia da causa o tribunal
que primeiro prendesse o réu ou, não tendo este sido preso, que primeiro conhecesse do
caso (alv. 25.12.16983875 3876).
§ 2178. Os casos em que a pena fosse a de pena capital (morte, desterro ou prisão
perpétuos, cortamento de membro) eram julgados em primeira instância pelos corregedores
do crime da corte, para onde as causas deviam ser enviadas (Ord. fil.,1,24,35; 1,65,3, Ass.
10.10.3877), de onde se conclui um traço singular do processo penal em Portugal, a da
privação dos tribunais locais de jurisdição penal significativa. Certos crimes graves podiam
ser conhecidos por qualquer justiça do reino (L. 290.10.1763, relativa a homicídios
voluntários e assaltos de estrada).

3871 Assento 21.6.1611; Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 7, ad Ord. fil., 2,12,1.
3872 Alv. 14.12.1562; Diogo Guerreiro Camacho de Aboim, Opusculum de privilegiis familiarium
officialiumque Sancta Inquisitionis, cit., c.3, ns. 40 e 53.
3873 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 1, n. 8 notas.

3874 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 1, n. 8.
3875 Detalhes, José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 1, § 10.
3876 Detalhes, José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 1, § 10

3877 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 1, § 8, nota final.

621
Crimes e penas.
8.1.6.3 A ordem processual. Processo ordinário.
8.1.6.4 Averiguação.
§ 2179. As causas criminais podiam ser intentadas por qualquer pessoa, sendo públicas,
ou apenas pela parte ofendida, sendo particulares. As primeiras incidiam sobre os crimes
públicos, previstos nas Ordenações (Ord. fil.,5,117,pr.). As segundas, sobre crimes
particulares (adultério, feridas simples em rixa nova, injúria que não seja bofetadas, danos
que não sejam arrancamento de marcos ou cortamento de árvore ou danos em horta ou
pomar, furto não violento abaixo de 300 rs.)3878.
§ 2180. O conhecimento do crime começava ou por uma averiguação oficiosa (devassa),
ou por participação particular, sob a forma de querela ou de denúncia.
8.1.6.4.1 A devassa
§ 2181. A devassa (inquisitio) era uma iniciativa do juiz para conhecer de um ou mais
crimes, ou incertos ou sabidos. Os crimes incertos eram objeto de devassas; as gerais eram
proibidas pela Ordenação aos juízes (Ord. fil.,1,65,31); mas as que incidissem sobre certos
crimes (devassas especiais) eram autorizadas, em certos meses do ano (Ord. fil.,1,65,39-69)
3879 3880. Os crimes sabidos de que o juiz tivesse conhecimento e que fossem denunciados

por alguém (Ord. fil.,65,31-38)3881 seriam objeto de devassa “particular”, desde que
figurassem na lista dos crime de devassa das Ordenações3882. Esta lista (casos de devassa)
era longa: morte, força de mulheres, fogo posto, fuga de presos e quebra de cadeia, moeda
falsa, resistência, ofensa da justiça, cárcere privado, furto de mais de um marco de prata3883,
roubo em caminho, arrancamento de arma em igreja ou procissão, ferimento feito de noite,
ferida no rosto ou aleijão em membro, ferida com besta ou espingarda3884. Desconhecida do
direito romano (sine accusatore nemo potest condemnari), a devassa fora introduzida pelo
direito canónico e passara, com um regime bastante singular, ao direito português3885. As
devassas tinham prazo para começar e acabar e um limite de testemunhas a serem ouvidas,
já que eram consideradas como prejudiciais à paz civil.

3878 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 1, § 12 nota 2;

também c. 39, § 296 ss..


3879 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 2, § 18 e notas.

3880 Devassas dos corregedores (ou Ouvidores com poderes de correição): Ord. fil.,1,58,31.
3881 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., liv. 5, c.3; Mateus Homem Leitão, De
jure lusitano: Tractatus tertius: De Inquisitionibus, cit., III, qu. 21; José J. Pereira e Sousa, Primeiras
linhas de processo criminal, cit., c. 21, § 22
3882 O mesmo acontecia com os que o rei extraordinariamente ordenasse averiguar; cf. Jorge de

Cabedo, Decisiones […], p. 1, dec. 52.


3883 O marco era uma unidade de medida de massa, que correspondia a 1/2 arrátel (= 229.5 /

233,856 gramas); o arrátel correspondia à libra, lira, arrátel. O valor real do arrátel flutuou durante a
idade média, até que foi fixado por D. Manuel I em uma libra (libra ibérica). A libra tinha 20 soldos ou
dinheiros.
3884 Ord. fil.,1,65,31.

3885 Cf. Mateus Homem Leitão, De jure Lusitano, cit., III, “Praefatio”.

622
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
8.1.6.4.2 A querela.
§ 2182. A querela (querimonia) era e a participação ou queixa que alguém, não proibido
de querelar3886, fazia de um facto criminoso de certa gravidade.
§ 2183. A enumeração dos casos de querela cponstava das Ordenações (Ord.
fil.,1,65,31)3887. A queixa devis ser justificada, requerendo-se que o juiz conhecesse do caso
mediante devassa especial (Ord. fil.,1,65,33)3888, prestando-se juramento de calúnia e, se o
crime fosse público, dando-se fiança pelas custas3889.
§ 2184. Da querela deviam constar: (i) o juramento de calúnia, em que o queixoso jurava
que a querela era verdadeira, sob pena de condenação por calúnia (Ord. fil.,5,117,6); (ii) o
nome do queixoso e do acusado e identificação suficiente deste; (iii) a nomeação de
testemunhas; (iv) a indicação do lugar e tempo do delito; (v) a caução por custas e danos, no
caso de querela por pessoa que não fosse o ofendido (Ord. fil.,5,2,118,32); (vi) a assinatura
do queixoso e do juiz (Ord. fil., 1,79).
§ 2185. No caso de crimes particulares (v. 8.1.6.4), a dedução de querela por parte dos
ofendidos condicionava a ação.
8.1.6.4.3 Denúncia.
§ 2186. A denúncia era a participação de um crime público feita em juízo para se
averiguar e se proceder ex officio contra o delinquente. Era feita por quem não tivesse um
interesse particular no caso3890. No caso de denúncia de crimes que fossem casos de
devassa, o denunciante não tinha que provar o crime. Nos outros casos (denúncia de crimes
públicos que não fossem casos de devassa), as obrigações do denunciante eram as
mesmas da querela. Em causas sumárias, de natureza sobretudo fiscal, a participação não
equivalia à denúncia criminal formal, tendo outros requisitos e efeitos3891.
8.1.6.4.4 A pronúncia.
§ 2187. A existência do facto delituoso provava-se pelo corpo de delito, no qual
assentava todo o processo. Este extraía-se da observação, nos crimes que deixassem
sinais, por conjeturas estabelecidas na lei e por depoimentos de testemunhas.
§ 2188. Uma vez estabelecido o facto, restava relacioná-lo com um agente, indiciando
este, ou seja, reunindo indícios3892 que permitissem, com alguma verosimilhança avaliada
pelo arbítrio do juiz, imputar o crime àquele réu.

3886 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 3, § 32 a 37; em
certos casos, de crimes particulares, só podiam querelar as partes, ibid., c. 1, § 37.
3887 Enumeração em Ord. fil.,1,65,31; cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo

criminal, cit., c. 3, § 30 nota 2. Melchior Febo, Decisiones […], cit, p. 1, dec. 69, ns. 1 a 3.
3888 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 3, § 27 ss..

3889 Sobre a formula da querela, Gregorio Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], p.

82 ss.).
3890 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 4, § 43; Manuel

Mendes de Castro, Practica […], cit., liv. 5, c.2, n. 1.


3891 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 4, § 46

3892 Sobre a qualidade e probabilidade dos indícios, José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de

processo criminal, cit., c. 6, § 55 e 56.

623
Crimes e penas.
§ 2189. Tendo-se reunido indícios bastantes, segundo o prudente arbítrio do juiz, para
pronunciar o réu, seguia-se a pronúncia, um despacho do juiz que declarava o réu suspeito
de delito, "pondo-o no número dos culpados"3893. Deste despacho o réu podia interpor agravo
(de injusta pronúncia); e da despronúncia, poderia haver apelação da parte queixos, pois a
despronúncia era como uma decisão definitiva.
8.1.6.4.5 Prisão, segurança, fiança, sequestro.
§ 2190. A pronúncia podia levar à prisão do réu ou obrigá-lo apenas a que saia em
liberdade como “seguro”. A prisão tinha lugar nos casos de delitos a que correspondesse
pena corporal ou afltiva (Ord. fil.,5,117,187-19; Ord. fil.,5,119), por se recear a fuga do réu.
Era ordenada por mandato do juiz (Ord. fil.,5,75), com indicação da culpa formada (Ord.
fil.,5,117). Mas podiam ser presos sem culpa formada os réus apanhados em flagrante delito,
quando crime fosse capital3894. Se os réus se acoitassem em Igreja (adro, cemitério,
mosteiro) gozavam de imunidade (Ord. fil.,2,5) exceto nos casos em que a imunidade não
era aceite3895.
§ 2191. A prisão não tinha lugar no caso de seguro3896, ou seja, da “segurança” do réu
em liberdade, contra promessa judicial do réu de que compareceria a julgamento. Na carta
de seguro, o réu podia negar o crime (negativa, Ord. fil.,5,35; 5, 38; 5, 127,8) ou
confessando-o mas invocando a legítima defesa (confessativa). As cartas de seguro (ou
cartas tuitivas)3897, que permitiam ao réu continuar solto até à conclusão da causa, eram
normalmente concedidas pelos corregedores das comarcas (ou ouvidores com poder de
correição) ou pelos corregedores do crime das Relações, cabendo agravo da sua recusa,
exceto nos crimes considerados graves3898. Caducavam se o réu quebrasse a sua promessa
e não comparece no tribunal.
§ 2192. Os réus nobres (fidalgos, desembargadores, cavaleiros, doutores, escrivães
régios e suas mulheres ou viúvas)3899 também tinham o privilégio de homenagem, ou seja,
de evitar a prisão em cárcere público, salvo no caso de crimes capitais ou muito graves. A
quebra da homenagem importava a prisão e a perda da nobreza (Ord. fil., 5,120).
§ 2193. No caso de não ter o privilégio da homenagem nem ter obtido carta de seguro, o
réu podia manter-se em liberdade dando fiança ou sendo autorizado a prestar fiadores
idóneos que garantissem a sua apresentação em juízo ("fiéis carcereiros")3900. A fiança, por
sua vez, era a prestação de caução, autorizada como graça pelo Desembargo do Paço3901,

3893 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., liv. 5, c. 1, § 4, libellus accusationis.
3894 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 8, § 62.
3895 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., c. 1, § 2; José J. Pereira e Sousa,

Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 8, § 64 nota 2.


3896 Cf. Manuel Homem Leitão. De jure lusitano, liv. II. De securitatis, cit..

3897 Fórmulas, Gregório Martins Caminha & João Martins da Costa, Tratado da forma dos libelos

[…] e allegações judiciais (ed. 1764), p. 132 s.; António Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 2,
c. 47.
3898 Listagem, José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c.9, § 69.

3899 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 10, § 75.

3900 v. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 11, § 81 nota

3901 Regimento do Desembargo do Paço, § 24; Ord. fil.,5,131,1.

624
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
desde que a natureza do crime o não impedisse3902. Também a fiança se quebrava pela falta
de comparência.
§ 2194. Nos casos graves, podia decretar-se a medida suplementar de sequestro dos
bens do réu (Ord. fil.,5,127,11; 5,128), estando este ausente ou cabendo ao delito a pena de
confisco, para segurar os interesses do fisco. O sequestro também se aplicava aos falidos,
para segurança dos credores.
8.1.6.4.6 Acusação e fixação da ordem do processo.
§ 2195. Formada a culpa na pronúncia e tomadas as descritas medidas cautelares
relativas ao réu e aos seus bens, dava-se início à acusação.
§ 2196. Nos crimes particulares a acusação era privativa dos ofendidos ou seus
parentes até ao 4º grau (Ord. fil.,5,124,9), pelo que a instância decaía na falta de acusação
particular. Nos crimes públicos, qualquer um podia acusar.
§ 2197. Não podiam ser acusados nem impúberes (cf. Ord. fil.,5,135) nem dementes
furiosos.
§ 2198. Deduzida a acusação pelo juiz, seguia-se uma de duas formas de processo. Ou
a sumária, própria ou dos crimes leves ou dos muito graves3903, ou a ordinária.
§ 2199. O processo ordinário guardava a ordem e solenidades do direito. Estava
regulado em Ord. fil., 5,124 e, subsidiariamente, na regulação do processo cível (Ord. fil.,3).
Os atos do processo ordinário eram ou preparatórios3904, médios3905 ou últimos3906.
8.1.6.4.7 Citação
§ 2200. Pela citação, o magistrado chamava alguém a juízo, por editos (citação pública)
ou pessoal, na pessoa ou em familiar de sua casa (familiar até ao 4º grau, citação particular);
sem isso, o processo era nulo (Ord. fil.,3,1,13). Citadas as partes (réus e autores), marcava-
se ao queixoso um prazo para deduzir a acusação. Não a apresentando, a causa seguia por
parte da justiça, se o crime fosse público (Ord. fil.,5,117,16; 5,124,pr. e 15-18) ou extinguia-
se, sendo particular. No caso de o queixoso estar ausente, era citado por carta citatória,
sabendo-se onde estava, ou por editais. No caso de estar fora do Reino (este incluía as ilhas
adjacentes) prescindia-se da citação, seguindo a causa por parte da justiça, se o crime fosse
público (Ord. fil.,5,124,9).
8.1.6.4.8 Libelo de Acusação
§ 2201. Seguia-se a apresentação do libelo escrito3907, em que o autor apresentava o

3902 Crimes em que não havia lugar a fiança, José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de
processo criminal, cit., c. 11, § 86.
3903 Aqui a simplificação da forma correspondia à atrocidade do crime. Porém, esta ideia entrou

em crise com o pensamento iluminista.


3904 (i) Citação; (ii) libelo; (iii) exceção; (iv) dilação ou prazo.

3905 (v) Contestação; (vi) contrariedade; (vii) réplica; (viii) tréplica; (ix) provas; (x) publicação; (xi)

alegações; (xii) sentença.


3906 (xiii) Embargos; (xiv) apelação; (xv) execução.

3907 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., liv. 5, c. 1, § 4, libellus accusationis;

José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit.. c. 16.

625
Crimes e penas.
pedido, indicava o seu fundamento, narrava circunstanciadamente o facto e concluía3908. Na
falta de libelo, o acusador era "lançado da acusação" e a causa prosseguia por parte da
justiça, sendo pública (mas o acusador podia manter-se na causa, como "ajudador da
justiça", com as prerrogativas do promotor, Ord. fil.,1,15,26)3909. Recebido o libelo, o juiz
manda apregoá-lo e convida o réu a contraditá-lo3910. Não comparecendo o réu, procedia-se
contra ele à revelia (Ord. fil., 5, 126, pr. e 13911).
8.1.6.4.9 Exceções
§ 2202. Antes da contestação da lide (contradita, contrariedade), o réu podia deduzir
exceções, ou dilatórias3912ou perentórias3913. Do não recebimento das exceções podia-se
agravar nos autos do processo (Ord. fil., 3,20,9 e 15)3914. Se o réu não conseguisse diferir ou
extinguir a causa por meio das exceções, devia contestar o libelo.
8.1.6.4.10 Contestação da lide (contradita).
§ 2203. A contestação (da lide, litiscontestatio) fixava a demanda, excluindo novas
exceções e tornando-a pronta para o conhecimento do juiz. Nesta fase, o réu contrariava, por
artigos, o libelo, negando a acusação ou admitindo-a parcialmente3915.
8.1.6.4.11 Réplica do Autor e tréplica do réu
§ 2204. Recebida a contradita, também articulada (Ord. fil.,5,124, pr. e 1)3916, o Autor
devia replicar, impugnando a contradita (Ord. fil., 5, 124, pr. e 3), podendo réu treplicar, com
o que se encerrava o contraditório.
§ 2205. Seguia-se a notificação às partes de um prazo para indicar a prova
(ordinariamente, de vinte dias, Ord. fil.,3,54; 5,124,2), apontando os artigos sobre que incidia
e as testemunhas a ouvir3917.
§ 2206. Fornecidos a cada uma das partes os nomes das testemunhas da outra, o juiz
esperava delas eventuais embargos ou recusas3918.

3908 Cf. Gregório Martins Caminha & João Martins da Costa, Tratado da forma dos libelos […], cit.
(ed. 1764), p. 82 ss..
3909 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 16, § 122 nota.

3910 Fórmulas: Gregório Martins Caminha & João Martins da Costa, Tratado da forma dos libelos

[…] e allegações judiciais (ed. 1764), p. 89 s..


3911 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., liv. 5, c. 4; José J. Pereira e Sousa,

Primeiras linhas de processo criminal, cit.. c. 40.


3912 Incompetência, suspeição, inabilidade do acusador.

3913 Prescrição e caso julgado. Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana, cit., liv. 5, c. 1, §

5, n. 60; fórmulas: Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p. 103
ss..
3914 Fórmulas: Gregorio Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p.

108.
3915 Cf. Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p. 89 s..

3916 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., liv. 5, c. 6, ns. 62 e 63.

3917 Cf. Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p. 94.

3918 Cf. Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit. (ed. 1764), p. 95.

626
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
8.1.6.4.12 Prova
§ 2207. A prova3919 visava estabelecer a certeza metafísica, física ou moral3920 de um
facto. De acordo com a sua firmeza no estabelecimento da certeza, a prova podia ser
perfeita ou plena e semiplena (como a confissão extrajudicial e o testemunho único).
§ 2208. Só a prova plena e clara podia levar a condenação.
§ 2209. A prova devia ser feita pelo acusador, pois a prova incumbia a quem afirmasse
(D., 22.3 De probationibus et praesumptionibus; C.,4,19 De probationibus, 10) e se presumia
a boa fé de uma pessoa até prova em contrário. Na dúvida, não se devia, portanto, condenar
(D.,34,5 De rebus dubiis, 10, 1; D., 50,17 De regulis iuris, 192,1), não bastando para a
imposição da pena, a prova semiplena ou os indícios (D., 48,19 De poenis, 5). Esta regra
deveria, segundo alguns, valer ainda mais nos delitos mais graves.
§ 2210. O caráter notório de um facto não fazia prova.
§ 2211. A prova fazia-se por confissão, por documentos ou por testemunhas.
§ 2212. Nem o réu nem o autor eram obrigados a depor. O réu porque não era obrigado
a alegar nada e o autor para não ser forçado ao juramento de calúnia, que o fazia correr no
risco de pagar as custas no caso de a acusação ser insubsistente (Ord. fil.,3,53,11).
§ 2213. O juramento não tinha lugar nos depoimentos do acusado nas causas criminais,
para não fomentar os perjúrios.
8.1.6.4.13 Confissão.
§ 2214. A confissão, que podia ser judicial e extrajudicial, para conduzir à prova plena
tinha que ser clara, espontânea (i.e., não forçada ou por outrem ou pela ira), fundada em
argumentos prováveis, séria e judicial (ou seja, feita no juízo onde corria a causa)3921.
§ 2215. Embora fosse considerada como a rainha das provas, não bastava para a
condenação na pena ordinária3922, pelo que precisava de ser confirmada por fatores
complementares de prova: constar dos factos do corpo delito, ser confirmada por indícios e
ser circunstanciada (D.,42,2,8).
8.1.6.4.14 Tormentos
§ 2216. O réu podia ser posto a tormentos3923 nos crimes graves (crimes punidos com a
morte natural, ass. Rel. Porto, 16.8.1661) para que dissesse a verdade. O uso do tormento
requeria corpo delito e indícios suficientes segundo a decisão arbitrária do juiz (de que se
devia apelar por parte de justiça, Ord. fil.,5,122,3). Não podiam ser postos a tormentos os
loucos, os velhos, as grávidas, os soldados, os vereadores, os nobres e os menores de 4
anos3924.
§ 2217. A confissão só era válida feita depois de terminados os tormentos.

3919Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., liv. 5, c. 1, § 7.


3920Esta fundava-se naquilo que acontecia o mais das vezes ou em que a maioria convinha,
sendo esta bastante para condenar em pena ordinária, se ficasse estabelecida por prova perfeita.
3921 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 24.

3922 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., liv. 5, c. 1, § 8, n. 89

3923 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., liv.5., c.1, § 8.

3924 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 28, §208.

627
Crimes e penas.
8.1.6.4.15 Documentos.
§ 2218. Os documentos podiam ser públicos, fazendo prova plena se não fossem
arguidos de falsidade (Ord. fil.,3,60,3) ou particulares, só a fazendo sendo reconhecidos pelo
réu (D,22.04, C,04.21; Ord. fil.,3,25,9). Podiam ser originais ou traslados.
8.1.6.4.16 Testemunhas.
§ 2219. As testemunhas faziam prova plena quando fossem capazes (absolutamente:
Ord. fil.,3,56; Ord. fil.,4,85, pr.; Ord. fil., 3,56; ou relativamente: Ord. fil.,3,56), em número
legítimo (2 ou 3, Ord. fil.,1,78,4; D,22.5; C.,4,20), juradas, concordes, fidedignas,
circunstanciadas e concludentes. Não faziam prova plena os testemunhos defeituosos,
prestados por amor (familiares, domésticos, amigos íntimos, advogados, interessados,
sócios de crime3925), ódio (inimigos e seus parentes) 3926, os dos infames (sem fama, banidos,
meretrizes, ébrios, falidos de má fé, jogadores; mas não os dos pobres) e os dos
menores3927. Estas testemunhas podiam ser recusadas ou contraditadas (Ord. fil.,3,58,5;
5,124,4).
§ 2220. Os depoimentos das testemunhas eram avaliados pelo juiz segundo o seu
prudente arbítrio; mereciam pouco crédito as testemunhas crédulas, de ouvir dizer,
contraditórias, inseguras, circunstanciais e espontâneas3928.
§ 2221. As testemunhas podiam ser confrontadas entre si, com o réu ou com os corréus
(acareação, de "pôr cara a cara").
8.1.6.4.17 Perguntas ao réu
§ 2222. O juiz podia, em qualquer momento da causa, fazer perguntas ao réu (Ord.
fil.,3,32,1-3)3929. As perguntas deviam ser feitas de modo leal, sem insinuações de resposta,
sem dolo, violência ou falsas promessas, sem juramento. O termo de perguntas e respostas
devia ser assinado pelo réu (Ord. fil.,1,79,30; 5,117,11). A recusa a responder equivalia à
confissão.
8.1.6.4.18 Alegações
§ 2223. Uma vez terminado prazo das provas, estas eram publicadas, para
conhecimento das partes (Ord. fil.,3,62,1; 5,124,5-8)3930.
§ 2224. Reunidas as provas e juntas aos autos, era dada vista destes às partes, para
fazerem as respetivas alegações de facto e de direito (Ord. fil.,3,20,42)3931. Feitas estas, o
processo ficava concluso ao juiz, para decisão, pela sentença final ou definitiva.

3925 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 26.
3926 As testemunhas que se apresentassem espontaneamente eram de desconfiar.
3927 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c.26, n. 186 e notas.

3928 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit..,c.26, § 187 e notas.

3929 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., c. 1, § 3; Manuel Lopes Ferreira,

Pratica criminal […], cit., t. 3, c.21, n.10.


3930 Cf. Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p. 97.

3931 Fórmulas em Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p.

97

628
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
8.1.6.4.19 Defesa.
§ 2225. A defesa do réu ser interposta em qualquer momento da causa (Ord.
fil.,5,144,8), mesmo depois da conclusão do processo3932, sendo irrenunciável3933. Os artigos
da defesa deviam ser provados. Como defesa, o réu podia invocar falta de corpo delito,
falhas na acusação, irregularidade da confissão, ou causas de exclusão do delito, como a
falta de intenção ou a legítima defesa.
8.1.6.4.20 Sentença.
§ 2226. Conclusos os autos, o juiz dava a sentença.
§ 2227. A sentença3934 devia basear-se na matéria que constava dos autos (judicata
secundum allegata et probata) e não na ciência ou consciência do juiz (Ord. fil., 3,66,pr.;
D,1.18,6,1). Devia, por outro lado, ser conforme à lei, não contrariar outra sentença passada
em julgado, não ser dada por peita ou por provas falsas; aliás, seria nula (Ord.
fil.,5,138,pr.)3935.
§ 2228. Nos casos capitais3936, as sentenças deviam ser dadas em relação, por seis
juízes, incluindo o relator, carecendo de quatro votos a favor (Ord. fil.,1,1,6)3937. Neste caso,
só eram passíveis de agravo (mas não de apelação, segundo as regras gerais)3938. Nos
casos não capitais, eram dadas pelos juízes ordinários das terras, com apelação para os
ouvidores das apelações crime das Relações (Ord. fil.,1,11,pr.; 1,68,83939).
§ 2229. A condenação devia ser certa quanto à pena, ordinária ou arbitrária. No caso de
penas arbitrárias essa fixação fazia-se inteiramente por arbítrio (= avaliação concreta) do
juiz. O juiz devia apelar por parte da justiça (Ord. fil.,5,122; para os ouvidores das apelações
do crime da Relação). Se a pena estabelecida na lei fosse arbitrária, o arbítrio do juiz devia
ser justo e prudente, isto é, considerar a analogia da lei ou do direito3940.
8.1.6.4.21 Custas.
§ 2230. Decaindo na causa, o acusador calunioso ou temerário era condenado em
custas, simples, em dobro ou em tresdobro, ou ainda em pena extraordinária, conforme o

3932 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c.33, § 238. Pode

inclusivamente apresentar provas, uma singularidade fundada no direito comum e não proibida pelas
Ordenações (Ord. fil.,5,124,7, ibid., nota).
3933 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., liv.5., c. 1, § 5.

3934 Fórmula em Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p.

98.
3935 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 39, § 242.

3936 Incluem penas de açoutes ou mais graves; e de degredo por mais de 5 anos.

3937 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], p. 1, ar. 253; João Martins da Costa, Domus

Supplicationis styli, supremique Senatus consulta […], letra C, p. 191; letra S, p.216. Percebe-se,
assim, que a decisão final não discriminava a opinião de um ou de outro desembargador, funcionando
como a opinião da Casa da Suplicação e adquirindo autoridade como tal Melchior Febo, Decisiones
[…], p. 1, dec 106.
3938 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 39, § 250.

3939 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 39, § 251, nota 4.

3940 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 39, § 242, nota 3.

629
Crimes e penas.
deu dolo (Ord. fil.,3,67,pr.), bem como nas perdas e danos do réu (Ord. fil.,5,118,pr.). O réu
devia pagar as custas quando vencido (Ord. fil.,1,67,pr), bem como no caso de recurso por
parte da justiça (Ord. fil.,1,64,34; 1,67,6 por força de Ord. fil.,5,124,27).
8.1.6.4.22 Embargos ou agravos.
§ 2231. Os embargos (ou agravos, suplicatio) eram um recurso feita perante o juiz da
causa, pedindo a reforma da sentença, interlocutória ou definitiva (Ord. fil.,3,65,2; 3,66,6;
3,88). O prazo para embargar era de um dia, tendo os embargos efeito suspensivo3941.
§ 2232. Os embargos das causas crime eram conhecidos pelos corregedores da corte
do crime (Ord. fil.,1,7,15).
8.1.6.4.23 Apelação
§ 2233. A apelação era um recurso contra a sentença, dirigido ao superior do juiz que a
ditou. Geralmente, apelava-se para os ouvidores das apelações do crime3942. Tinha sempre
lugar nas causas criminais (Ord. fil.,3, 79,6; 5,122), salvo nos casos de: perdão de parte em
ferida leve, perdão do marido em adultério da mulher, perdão no caso de desfloração, no
caso de furto módico e não agravado, etc.. O prazo para a intentar era de 30 dias (Ord.
fil.,5,124)3943.
§ 2234. Na apelação podiam apresentar-se novas razões e voltar a ouvir-se as
testemunhas3944.
§ 2235. Conheciam das apelações das sentenças da primeira instância os ouvidores das
apelações crime das Relações (Ord. fil.,1,11,pr.)3945.
8.1.6.5 Circunstâncias atenuantes e perdão.
§ 2236. A medida da pena caraterizava-se por uma grande indeterminação. O juiz podia
aumentar ou diminuir a pena de direito comum, só estando obrigado a obedecer à de direito
positivo próprio (lei ou estatuto), pois alterar esta implicava a titularidade do poder de fazer
leis3946. Se o direito previsse um crime, mas não estabelecesse a pena para ele, o juiz podia
impor uma qualquer, corporal ou pecuniária (poena arbitraria)3947. Esta indeterminação – que
não correspondia à arbitrariedade irrestrita - obrigava à formulação de princípios gerais que

3941Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 36, §267.
3942Outros juízos competentes, Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., liv. 5, c. 1, §
9; José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit.. c. 37, § 281 nota. Fórmulas:
Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p. 100.
3943 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 37, § 273.

3944 Fórmulas: Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p.
102 ss..
3945 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 36,§ 281 (com

indicação de outros juízos de recurso das apelações crime).


3946 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Poena”, n. 13; “aqueles que exercem a

jurisdição régia não podem decidir arbitrariamente as penas que impõem”, Jorge de Cabedo,
Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 60, n. 6.
3947 Cf. D.48,19,13: 48.19.13: “Hodie licet ei, qui extra ordinem de crimine cognoscit, quam vult sententiam
ferre, vel graviorem vel leviorem, ita tamen ut in utroque moderationem non excedat”. No direito canónico, Decreto,
II, causa XII, qu. 2, c. 11; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, n. 30.

630
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
guiassem o juiz, como o da adequação da pena ao crime3948, ou outros baseados na
finalidade geral das penas3949 ou no tempero da justiça com a misericórdia3950.
§ 2237. Para além disto, o direito considerava uma vasta série de circunstâncias que
atenuavam ou agravavam a pena ordinária, em função do grau de certeza acerca da
responsabilidade do réu3951 ou de circunstâncias subjetivas3952 e objetivas3953. Por meio
delas, os juízes adequavam a medida punitiva abstrata ao caso concreto.
§ 2238. Estabelecida a pena e julgado o réu, o rei gozava de uma ampla faculdade de
perdão, a que já nos referimos e que constituía um dos traços estruturais do sistema punitivo
do direito comum.
§ 2239. Um dos tratamentos mais completos do regime do perdão na doutrina
portuguesa é o de Domingos Antunes Portugal 3954, onde se discutem os requisitos a que
devia obedecer a sua concessão. Em primeiro lugar, é destacado a sua natureza de regalia
(mesmo de regalia maiora ou quae ossibus principis adhaerent) 3955 3956. Em segundo lugar,
indica-se a necessidade de uma justa causa para a sua concessão, embora se adiante que
“justa, et magna causa est principis voluntas” (uma justa e grande causa é a mera vontade
do príncipe) (n. 11); em terceiro lugar, aponta-se a necessidade de precedência do perdão
de parte (Ord. fil.,1 3, 9; III, 29), embora se excetuassem os casos em que o perdão fosse

3948 Nas penas “civis”, a medida da pena era o dano (damnum, id quod interest, interesse). Mas

algumas continham um elemento de punição, que explicava que a pena pudesse ser um múltiplo do
dano (penas de simples, duplum, triplum e quadruplum, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Poena”, n. 13).
3949 Nomeadamente, o fim da prevenção geral (“a pena não deve ser muito leve, pois serve de

exemplo e de ameaça”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Poena”, n. 46.
3950 Era muito importante a invocação da misericórdia como contrapeso da justiça (cf. António

Manuel Hespanha, "Da 'iustitia' à 'disciplina' […]”, cit.; “juiz deve ser benigno nas causas leves e
rigoroso nas causas graves”, embora com aliquo temperamentum benignitatis, António Cardoso do
Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, n. 19.
3951 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, n. 25.

3952 “Magis tamen puniuntur delicta in una persona quam in alia, quoniam debant attendi sexus, &

locus delicti, & tempus, & locus delicti”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum”, n. 10.
Por exemplo, ser da família do réu podia implicar uma pena mais leniente (v.g., no crime de recetação),
pois os sentimentos familiares podiam atenuar a culpa, ibid., v. “Delictum”, n. 44. § 1. A regra de que ao
mais digno se devia aplicar uma pena mais pesada afIora frequentemente nas fontes romanas e
canónicas. Baldo (§ si quis vero usu temerario do tit. II, 53, de pace tenenda dos Libri feudorum)
distinguirá: “ou pela nobreza se aumenta a qualidade do delito, sendo o nobre mais punido; ou pela
nobreza não se aumenta a qualidade do delito e então o nobre é mais punido do que o plebeu se se
tratar de pena pecuniária; mas, tratando-se de pena corporal, o plebeu é mais punido”.
3953 Os delitos cometidos na Igreja ou na presença da Santa Eucaristia deviam ser punidos de

forma gravíssima, com pena capita ou desterro, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Delictum”, n. 11. A pena podia ser agravada pela reincidência (preserverantia), ibid., v. “Delictum”, ns.
15 e 16. (v. Ord. fil., 5,60,3).
3954 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit..

3955 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatusde donationibus [...], cit., pt. 2, c. 18, p. 264 ss..

3956 Logo, insuscetível de doação (ns. 1-5; o príncipe podia, no entanto, cometer a certos

magistrados a instrução dos processos de perdão, v. Ord. fil., 1, 3; Regimento do Desembargo do


Paço, §18).

631
Crimes e penas.
concedido pro bono pacis (para pacificar [uma “rixa velha”, por exemplo) ou em que o
príncipe exercitasse, com justa causa, a sua potestas absoluta, n. 40 ss., max., n. 47) 3957.
§ 2240. A doutrina atestava uma prática de perdão mais permissiva do que o faziam
supor a s determinações legais e, mesmo, doutrinais. Manuel Barbosa informa que era estilo
comutar as penas sem o perdão de parte, decorrido um terço do seu cumprimento (está a
referir-se, decerto, ao degredo). E que, embora Jorge de Cabedo aconselhasse em sentido
contrário, se perdoavam mesmo os crimes mais graves, recordando casos ocorridos na sua
terra, de perdão de penas capitais, sem perdão de parte: “eu próprio vi, no entanto, perdoar a
pena capital a um nobre de Guimarães, sem perdão de parte, e ouvi dizer que o mesmo
acontecera a um certo homem de Monção, mas para isto deve ocorrer grave causa, pois o
príncipe não pode facilmente perdoar contra o direito da parte lesada3958.
8.1.6.5.1 Execução.
§ 2241. Admitidos ou recusados eventuais recursos3959 e passada a sentença em
julgado, era dada execução à pena3960. A execução era ordenada pelo juiz que dava a
sentença, devendo ser pública. 3961.
8.1.6.5.2 Extinção da causa.
§ 2242. O processo criminal extinguia-se nos casos que excluíam a punibilidade -
prescrição do crime (em regra, de 20 anos, Ord. fil.,1,84,23; 1,96,2), falecimento do
delinquente ou do acusador, perdão do príncipe3962.
8.1.6.6 Processo sumário
§ 2243. O processo sumário era aquele em que as formalidades ordinárias não eram
observadas, seguindo-se a "ordem natural" dirigida ao conhecimento do delito e do seu

3957 “Princeps potest delictorum poenas delinquentibus remittere & indulgere”, Jorge de Cabedo,
Decisiones [...], cit., I., dec. 75, n. 2. O perdão régio pressupunha o perdão das partes, ibid., 3 a 5;
porém, em Portugal, era de estilo que o degredo fosse comutado em desterro sem licença das partes,
ibid., 6. Domingos Antunes Portugal referia ainda que, em Portugal, o rei não costumava perdoar os
crimes mais atrozes, mesmo com o perdão de parte (n. 48); que os criminosos reincidentes não
costumavam ser perdoados; e que o rei podia perdoar contra o pagamento de certa quantia (Reg.
Desemb. Paço, §§ 21 e 23; n. 124). O regime da concessão do perdão fora modificado por este
regimento (de 27.7.1582), num sentido mais rigorista. Sobre o regime do perdão, v., além do
comentário de Manuel Álvares Pegas a este regimento (Comentaria […], cit., tomo 7, ad Ord. fil.,1,3,8
ss. e ad Reg. Sen. Pal., caps. 19 a 21; Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., pt. 1, dec. 75. V. ainda
Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 3, cap.30.
3958 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones doctorum […], cit., ad 1, 3, 9, n.2 [pg. 8]. No mesmo

sentido, Manuel Mendes de Castro, Practica Lusitana […], cit., pt. 2,, liv.1., c. 2, n. 19 ss. [pg. 13/14];
justificando a praxe “ob delinquentis merito, & beneficio in rem publicam” [por mérito do delinquente e
em benefício do interesse da república] invocando o direito comum: D.49, 16, 5, 8.
3959 Fórmulas, Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p.

117 ss..
3960 Sobre penas honestas e vis, José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal,

cit., c. 38, §282 nota.


3961 Cf. Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 3, cap. 23. Lugares de suplício de

penas corporais.
3962 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 42.

632
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
autor3963.
§ 2244. Procedia-se sumariamente nos casos de crimes graves (homicídios e roubo de
estrada processados nas relações, resistência, desafio, contrabando de cereais, crimes
capitais agravados) processados nas relações (Ord. fil.,1,1,6). Além destes, nos casos de
réus presos há mais de três meses e nos processados no foro militar, no Juízo dos
contrabandos, no dos falidos e no juízo de residência3964.
§ 2245. Sumários eram ainda os processos aquando das visitas mensais do Regedor da
Justiça aos cárceres de Lisboa3965, os processos por injúrias não atrozes e as cauções de
termos de bem viver (cauções prestadas para prevenir crimes entre vizinhos, Ord.
fil.,1,65,26; 3,78,5; 5,128,pr.).
§ 2246. O processo começava pela audição do réu, assignando-se um breve termo para
a sua defesa. Prescindia-se de citação de parte e de testemunhas judiciais. Faziam-se os
autos conclusos, sendo a sentença dada por seis juízes, havendo quatro votos conformes. O
réu tinha 24 horas para embargar a sentença.
8.1.7 A pena.
§ 2247. A pena era o castigo do delito3966. Em sentido genérico, o conceito compreendia
tanto as penas corporais, como as pecuniárias, tanto as que visavam compensar o dano
(“civis”) como as que castigavam os malefícios (“criminais”). Mas, em sentido estrito, penas
eram somente as corporais aflitivas – ou sejam, as destinadas a fazer sofrer o corpo3967,
tanto as capitais (último suplício, desnaturalização (degredo, amissio civitatis) e perda da
liberdade), como as não capitais3968.
§ 2248. O fim da pena (“criminal”) era o de favorecer o bem estar da república, para que
esta se conservasse em paz e os bons pudessem viver tranquilamente entre os maus3969.
§ 2249. A pena ser devia ser adequada (comensurata) à gravidade do delito e à
culpa3970. Esta dupla adequação entende-se melhor se se entender a gravidade do delito,
não de um ponto de vista objetivo (a gravidade do mal causado), mas de um ponto de vista
subjetivo (a gravidade moral da maldade que esteve na sua origem).

3963 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 41.
3964 Sobre ele, v. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., liv.5,c.5; José J. Pereira e
Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 41,§ 307 nota.
3965 Cf. João Martins da Costa, Domus Supplicationis styli, supremique Senatus consulta […], cit.,

Adn. 2, n. 42; José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 41, § 315 nota.
3966 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Poena”, n. 1.

3967 As penas corporais não aflitivas eram aquelas que incidiam sobre o corpo, mas como meio de

produzir um valor (por exemplo, a escravização a favor do prejudicado, se in nexum dare), nos casos
em que o corpo do devedor funcionava como uma extensão do seu património..
3968 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Poena”, n. 2.

3969 “[…] ut in Republica sit quies, & boni inter malos tranquille et quiete vivant, et hominum
malitiam reprimatur, quoniam per legem nemo benefacere cogitur, sed male agere prohibetur", António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Poena”, n. 29; “Delicta punienda ut delinquens metu poena
arctantus et emendientur a suis criminibus, et alii metu aliorum pertimescat commitere alia facinora”,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Delictum” 8.
3970 Cf. Miguel de Reinoso, Decisiones […], dec. 59, n. 16, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit..,

I., dec. 20, n. 4: “Poena comensuranda est delicto. Est enim mensura culpae”.

633
Crimes e penas.
§ 2250. As penas em sentido estrito eram odiosas, pelo que tinham que estar previstas
no direito. Pelo contrário, as penas “civis” dependiam do arbítrio do juiz3971. Em todo o caso,
esta previsão da pena pelo direito não equivalia ao moderno princípio da legalidade, pois
existiam penas consuetudinárias (“quando in similibus delictis est consuetudo, ut certa poena
imponatur”) e penas arbitrárias, que dependiam do arbítrio do juiz quando o direito
estabelecia uma pena sem especificar a sua natureza3972. No domínio das penas “civis”, as
partes podiam convencionar, mesmo extrajudicialmente, o montante da pena de um
comportamento ilícito (iniuria); mas isto era impossível no caso de crimes3973.
§ 2251. As penas canónicas (poenae canonicae) eram a degradação e deferimento da
causa para o tribunal secular; a privação perpétua de ofício, benefício ou honra, perpétua ou
temporária; a expulsão do mosteiro; a demissão ou suspensão do benefício, a excomunhão
e a privação de comunhão3974.
§ 2252. As penas de direito civil (poenae legales) podiam ser penas capitais (morte
natural ou civil3975 e degredo) ou não capitais (penas pecuniárias, castigos corporais).
8.2 O sistema axiológico do direito penal de Antigo Regime
§ 2253. O objetivo deste capítulo é o de descrever os principais tipos penais do ius
commune tardio, agrupando-os em função daqueles que parecem ser os valores protegidos
pela proteção penal, tal como os juristas letrados os entendiam.
§ 2254. O crime é produzido por uma prática social de censura, discriminação e de
marginalização, prática mutável e obedecendo a lógicas sociais muito complexa. Sobre os
resultados desta primeira atividade de constituição dos “objetos criminais” projeta-se uma
segunda grelha de classificação, esta doutrinal, produzida pelo discurso jurídico penal. Este
redefine os “crimes vividos”, construindo novos conceitos (“tipos penais”), e organiza e inter-
relaciona estes últimos em grandes categorias, referidas a certos valores (religião, vida,
segurança, propriedade).
§ 2255. Na descrição que se segue, tomaremos como base as grandes categorias
definidas, já nos finais do século XVIII, por Pascoal de Melo, com o cuidado de estar atento à
reconfiguração dos valores a proteger e da função penal na cultura iluminista3976.
8.2.1 Crimes contra a ordem religiosa.
§ 2256. Foi apenas nas Ordenações filipinas (1604) que os “crimes religiosos”

3971 “Non habent locum, nisi in casibus a iure expressis [...] omnes casus poenales sunt stricti

iuris, in illis nulla fit extensio, & potius sunt restringnedi, quam ampliandi”, António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., v. “Poena”, n. 18; cf. também, ibid., n. 2.
3972 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Poena”, n. 6; n. 45 (o arbitrium do juiz não

deveria estender-se até à aplicação da pena de morte, segundo a melhor – mas não unânime -
doutrina).
3973 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Poena”, n. 14.

3974Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Poena”, n. 3.


3975Aqui se incluía a pena de galés, o degredo perpétuo (de mais de dez anos, Melchior Febo,
Decisiones […], dec. 156, n. 6 ss.; mas não o inferior ou o desterro), a condenação à condição de
carrasco, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Poena”, n., 4.
3976 Sobre as ideias penalistas de Pascoal de Melo, v. António Manuel Hespanha, "Le projet de

Code pénal portugais de 1786 […]”, cit..

634
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
apareceram agrupados. Nas Manuelinas (1521), estes tipos penais ainda surgiam dispersos.
Aparentemente, a erupção deste objeto “crime religioso” no discurso legislativo português
ocorreu na segunda metade do século XVI, ou por influência da Nueva Recopilación
castelhana (1567) ou na sequência do aparecimento de um foro especial para estes delitos,
o Tribunal do Santo Ofício, cuja competência (privativa da jurisdição ordinária, quer civil, quer
eclesiástica) abrangia todos os “negócios atinentes à fé”3977. Num regimento mais tardio do
tribunal - o de 1640, que sistematiza e explicita a prática anterior - lá aparece a série de
crimes com que abre o Livro V das Ord. fil.- apostasia (tit. VII), renegação (tit. VII), heresia
(tit. VII), cisma (tit. VIII), discussão de matérias religiosas (tit. XI), blasfémia (tit. XII),
desrespeito do Santíssimo Sacramento ou dos Santos (tit. XIII), feitiçaria (tit. XIV), bigamia
(tit. XV), falsidade em assuntos religiosos (tit. XIV), detenção de livros proibidos (tit. XX),
perjúrio (tit. XXIV) e sodomia (tit. XXV)3978. Ou seja, a partir daqui, os crimes cujo
conhecimento pertencia à Inquisição destacavam-se, em virtude desta particularidade
jurisdicional, formando uma categoria a que o legislador passou a ser sensível na arrumação
dos títulos do livro terribilis das Ordenações.
8.2.1.1 Heresia
§ 2257. A heresia3979 tinha uma longa tradição textual no direito comum, em textos de
direito romano (v. C.,1,5) ou em textos de direito canónico. No direito peninsular, ela aparece
na legislação desde o início do século XIII3980.
§ 2258. Distinguia-se a ofensa à religião católica feita por um batizado ou por um não
batizado. Tal distinção tinha sentido, na medida em que a heresia, como violação da
ortodoxia, não podia cair senão num crente. No entanto, a extensão do conceito aos não
crentes tinha uma antiga tradição no direito português (lei de 3.1.1416, baseada num
costume anterior e num texto do Corpus iur. Canon.: Sextum, 5, 13).
§ 2259. Nas suas grandes linhas, era o seguinte o regime da heresia segundo o direito
comum.
§ 2260. A heresia era, sobretudo, um delito “da vontade” (de eleição)3981 e não “do
entendimento”. Embora fosse definida como um “erro”, ela só era punida quando com o erro
concorressem a firmeza do ânimo e a pertinácia no errar3982. Por isso, não era herege o que
reconhecia o seu erro e estava disposto a emendar-se3983. Os que abjurassem (não sendo
relapsos), não eram enviados para o tribunal secular, mas postos em cárcere perpétuo, para
penitência, ou enviados para as galés por tempo arbitrário. Eram, além disso, obrigados a
usar um traje especial, sambenito (saccum benedictum), em sinal do seu crime e da sua

3977 Sobre este tribunal, José Pedro Paiva e Giuseppe Macoco, História Geral

da Inquisição Portuguesa […], cit..


3978 Cf. Col. crono. lega. (J.J.A.S.), vol. respetivo; sobre a competência do Santo Ofício, em

Portugal e em geral, João Baptista Fragoso, Regimen […], p. 2, liv. 5. disp. 13 per totam.
3979 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones […],cit., ad Ord. fil., 5,1; fontes de direito canónico,

Decreto, 23, qu.7; 24,q.3.


3980 Cf. lei de 1211, lei 3; Livro das leis e posturas, 10/11; Partidas, 7, 26, pr. e ss.

3981 A palavra vinha do grego αἵρεσις, "escolha" ou "opção".

3982 “Eligit disciplinam, quam putat esse meliorem, & intelligit scripturam aliter, quam sensus

Spiritus Sancti, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Haereticus”, n. 1.


3983 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Haereticus”, n. 4.

635
Crimes e penas.
penitência pública3984.
§ 2261. O erro herético devia incidir sobre um artigo de fé ou um sacramento da
Igreja3985. Os livros dos heréticos eram condenados, independentemente de terem erros, por
causa da heresia do seu autor3986.
§ 2262. A heresia era, em princípio, um delito de batizados, ou seja, de pessoas
pertencentes ao grémio da Igreja, pois só então estavam sob a disciplina desta, da qual a
disciplina temporal se entende como subsidiária3987. O direito distinguia a heresia da
apostasia e da infidelidade. A segunda só excecionalmente era punida. A terceira não era,
em geral, punida. O estatuto penal destes comportamentos religiosos reflete uma situação de
pluralismo religioso. Na verdade, o que se punia não era a diversidade de religião, mas a
violação da ortodoxia pelos que permaneciam no seio da Igreja. Nem a Igreja se arrogava o
direito de punir os não crentes, nem o poder temporal considerava o pluralismo religioso
incompatível com a unidade política da sociedade. Estas oposições ir-se-ão esbatendo, à
medida que se vai estabelecendo a ideia de “religião do reino” (cujus regio eius religio [Siga-
se a religião daquele de quem é a região]), segundo a qual a violação do princípio da
unidade religiosa equivalia ao crime de lesa majestade. O que voltava ao grémio católico
mas recaía na heresia era relapso e via agravada a sua condição (nomeadamente, não
podendo voltar a arrepender-se)3988.
§ 2263. Só era punida a heresia manifesta, mas não já a cometida “nullo signo oris aut
facti” (sem sinal de palavra ou de facto), pois a Igreja não julgaria coisas ocultas3989.
§ 2264. A heresia era um delito cujo conhecimento competia aos tribunais da Igreja. Mas
como estes não podiam aplicar penas de sangue, deviam entregar ao braço secular os réus
a punir corporalmente (Decretais, v. 13, 1; 15, 1), embora esconjurando os juízes a que não
aplicassem penas de sangue. Segundo uma opinião comum em Portugal no século XV, o
juiz secular a quem se recorria não devia reapreciar o processo, mas apenas limitar-se a
aplicar a pena; mas as Ordenações afonsinas e manuelinas prescreviam um papel mais
interveniente do juiz secular, na esteira de uma opinião de Bártolo3990. No séc. XVII, a
doutrina volta a limitar as atribuições do tribunal secular, que devia aplicar prontamente a
sentença condenatória sem a apreciar
§ 2265. As penas previstas na tradição jurídica eram várias e cumulativas3991: a
excomunhão; proibição de sepultura cristã; a incapacidade para contratar e para ter bens; a

3984 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Haereticus, n. 38.
3985 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Haereticus”, n. 2.
3986 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Haereticus” n. 34.
3987 No entanto, um cânone do Sextum (V, 13) prevê a punição dos judeus convertidos ao
cristianismo e novamente tomados ao judaísmo. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Haereticus”, n. 7.
3988 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Haereticus”, n. 36. Típico, o casos dos

judeus que se reconciliavam com o cristianismo, mas voltavam a judaizar (ibid., n. 33).
3989 Os pensamentos não expressos, ainda que abomináveis, não eram heresia. Bater na imagem

de Cristo ou deitar ao chão a eucaristia era apenas um forte indício de heresia, António Cardoso do
Amaral, Liber [...], cit., v. “Haereticus”, n. 18.
3990 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Haeresia”, n. 16.

3991 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Haereticus”, ns. 1 a 11.

636
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
incapacidade para ser herdeiro por testamento ou ab instestato; a privação de ofícios e
benefícios; a privação de todos os privilégios; o confisco3992; a infâmia até à segunda
geração; a morte pelo fogo (eventualmente prisão perpétua e galés, para os reconciliados); a
destruição das suas casas3993. A condenação podia sobrevir até quarenta anos depois da
morte3994
§ 2266. As Ordenações receberam o regime do direito canónico, reconhecendo a
jurisdição da Igreja neste domínio3995. O crime era puramente eclesiástico3996, embora a
sentença fosse executada por um tribunal secular3997 Mas, de facto, o tribunal competente
acabava por ser um tribunal régio, o da Inquisição, a quem os tribunais seculares
asseguravam toda a cooperação (Ord. fil.,2,6). Os inquisidores eram considerados como
juízes delegados, sendo a sua jurisdição especial e improrrogável3998. O processo continha
algumas especialidades que acumulavam mais poder nas mãos dos juízes. As causas eram
sumárias e desenrolavam-se sine strepitu et figura iudicii, e sem advogado3999 Por isso
mesmo, a doutrina recomendava cautelas na averiguação – observância do segredo da
investigação, exame cuidado das testemunhas, recurso a assessores doutos -, cominando a
pena de excomunhão para os que abusassem das suas prerrogativas4000.
§ 2267. O crime de sacrilégio, previsto no direito canónico, não constituía um tipo penal
do direito civil4001.
§ 2268. A apostasia4002 correspondia ao abandono da religião ou da obediência4003.
Assim, tanto incluía o abandono da fé católica, correspondendo à heresia4004, como a
desobediência ao Papa ou a outro superior religioso. A desobediência ao Papa tanto podia
consistir na negação da sua qualidade de vigário de Cristo e nos poderes que daí decorriam,
e então correspondia à heresia, ou na mera desobediência por qualquer outra razão. Neste
último caso, o apóstata era punido com a perda de ofício eclesiástico e com a

3992 O confisco dava-se a favor do fisco secular, precedendo sentença do juizo eclesiastico (no

caso português, da Inquisição), António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Haereticus” 12; âmbito
do confisco, v. Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit. ad Ord. fil.,5,1,pr. a 4.
3993 Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit. ad rubr., n. 3.

3994 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Haereticus”, n. 25.

3995 Plenamente, só as Ord. fil., 5,1.


3996 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Haereticus” 14
3997 Primeiro, os tribunais dos bispos; depois, os juízes delgados do papa (inquisidores); mais

tarde, os tribunais régios especializados. Os bispos mantinham com estes uma jurisdição cumulativa,
devendo haver colaboração entre as duas jurisdições, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Haereticus”, ns. 14 e 15.
3998 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Haereticus”, ns. 42 ss.

3999 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Haereticus”, n. 14.

4000 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Haereticus”, ns. 41 e 48.

4001 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Sacrilegium”.

4002 Do grego apostasis, composto de apo, que significa afastamento, e stasis, estar, estado.
4003 Fontes jurídicas: Decreto, cap. 2, qu. 7; cap. 11, qu. 7; Decretais, Cf. 9, de apostat., C.,1,7, de
apostat.; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Apostasia”; Manuel Barbosa, Remissiones [...],
cit., ad Ord. fil., 5,1, n. 6.
4004 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Apostasia”, ns. 1, 2.

637
Crimes e penas.
excomunhão4005. A desobediência a outro superior eclesiástico podia consistir em atitudes
muito diversas. Típicas eram o abandono da qualidade eclesiástica (eventualmente, para se
amancebar), ou o abandono de hábito regular4006. Nestes últimos casos, a pena era a
excomunhão, a infâmia, a perda do estado eclesiástico, a remoção de ofício eclesiástico e,
para os regulares, a sujeição a suplícios (não cruentos: v.g., jejuns) e prisão eclesiástica,
para incentivar à obediência4007. O apóstata que cometesse atos graves contra a fé estava
sujeito confisco (por direito civil, apenas se não tivesse filhos ou discedentes)4008.
§ 2269. O que mais importa destacar, na ulterior evolução histórica deste campo penal é
que, com a secularização do direito, que se nota na segunda metade do século XVIII, o
regime destes crimes passa a ser fundado na ofensa feita, não à religião verdadeira, mas à
religião estabelecida e à ordem social de que esta faz parte. Neste sentido, não interessava,
por um lado, que a religião estabelecida fosse verdadeira4009; e, por outro, qualquer crime
contra a ordem social podia ser considerado como crime religioso. Pascoal de Melo chega a
definir como antirreligiosos todos os atos que atentem contra os bons costumes, as leis
divinas, as naturais e até as civis4010.
§ 2270. Assim, a heresia tornava-se, antes de tudo, num “crime público civil, pois se
entendia que todo aquele que ofendesse ou desprezasse a religião pública destruía os mais
fortes vínculos sociais”4011, originando “infinitas desordens, tumultos e perturbações, que a
mesma sociedade deve acautelar”4012). Daí que a punição civil deste crime não considerasse
os aspetos espirituais, pois “os homens não foram postos para vingar as ofensas feitas a
Deus” (ibid.) e, por isso, a gravidade do crime não fosse avaliada pela magnitude espiritual
ou teológica das ofensas, mas pela medida das perturbações sociais provocadas (v. g.,
sedições ou criação de partidos religiosos), pelo escândalo causado4013 ou pelo mal real
provocado4014.
§ 2271. No plano da tipificação4015, a secularização levou a que se prescindisse de

4005 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Apostasia”, n. 3.


4006 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Apostasia”, n. 1.
4007 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Apostasia”, ns. 3 e 6. Se vivesse com
mulher, era suspeito de heresia. Não era considerado apóstata o clérigo menor que abandonasse o
estado eclesiástico.
4008 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Apostasia”, n. 10.

4009 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris criminalis, cit., 2, 1 “[...] a Nação, a qual dificilmente se

pode conceber sem alguma religião, verdadeira ou falsa”; critica ao ateísmo dos livres-pensadores,
ibid., 2, 8).
4010 “Todos os delitos podem ser chamados eclesiásticos, estando sujeitos, no foro da

consciência, à punição da Igreja, às penitências, censuras e penas canónicas”, Pascoal de Melo,


Institutiones iuris criminalis, cit., II, 2.
4011 Pascoal de Melo, Institutiones iuris criminalis, cit., 2, 4.

4012 Pascoal de Melo, Codigo criminal [...], cit., 15.

4013Cf. Pascoal de Melo, Codigo criminal [...], cit., 24.


4014 Cf. g., os feiticeiros não são punidos senão pela malícia e sofrimentos físicos a que as
beberagens derem causa, Pascoal de Melo, Codigo criminal [...], cit., 9495; os perjúrios, pelos prejuízos
provocados a terceiros, ibid., 7,1.
4015 Isto é, da definição das condutas que integram certo tipo penal e a que, portanto,

corresponde uma certa pena.

638
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
traços que apenas tinham significado numa conceção puramente religiosa ou teológica do
crime, como, por exemplo, a distinção entre hereges confitentes e inconfitentes. E, pelo
contrário, se introduzissem novas distinções, estas relacionadas com a perigosidade social
dos atos (v. g, a distinção entre heresia simples e heresia sediciosa, Proj. Cod crim., 5, 6).
§ 2272. No plano da natureza e medida da pena, as consequências desta laicização do
conceito de crime religioso eram também importantes. A pena devia corresponder, não à
magnitude da ofensa feita a Deus, mas à perturbação da ordem social4016. Por outro lado, o
simbolismo religioso perdia todo o sentido: a morte pelo fogo, que se ligava a uma antiga
ideia de purificação, passou a ser considerada como cruel e sem proporção com o delito. Por
isso, vão ser propostas novas penas, não apenas mais brandas, mas, sobretudo, com uma
nova simbologia, espelhando a ofensa, não a Deus, mas aos vínculos sociais. Estas novas
penas irão, então, encenar as consequências do delito, numa dramatização em que o
criminoso é o protagonista: ele, que pôs em risco os vínculos sociais, irá ser objeto de uma
des-socialização, perder a consideração pública (infâmia), a capacidade jurídica (confisco,
incapacidade sucessória, perda de ofícios) e, finalmente, irá ser expulso do convívio social
(degredo).
§ 2273. Finalmente, no que respeita à competência jurisdicional, a secularização do
conceito de crime religioso exigiu que o seu conhecimento competisse a tribunais seculares.
É por isso que o próprio Pascoal de Melo elaborou um projeto laicizante e estatizante de
regimento da Inquisição4017. O Tribunal do Santo Ofício acabou por ser extinto por uma lei de
5.4.1821.
8.2.1.2 Sacrilégio.
§ 2274. O sacrilégio era a violação ou usurpação de uma coisa sagrada4018.
§ 2275. Cometia-se em razão de uma pessoa sagrada ou religiosa, como quando se
ofendia fisicamente (mas não por palavras) ou se prendia um clérigo ou pessoa de ordens
sagradas4019. O mesmo acontecia se alguém tinha relações íntimas com uma freira ou
depunha do seu ofício um eclesiástico4020, Sacrilégio em razão do lugar era a violação da
imunidade ou a ofensa de um lugar sagrado, igreja ou cemitério, forçando a entrada desse
lugar, cometendo aí um crime, tirando daí pessoas pela força4021. Sacrilégio em razão da
coisa era apropriar-se (ocupar ou usurpar, perturbar a posse) de coisa sagrada ou existente
em lugar sagrado4022. Compreendia as coisas ou direitos da Igreja, mas não os de
clérigos4023.
§ 2276. O direito do reino não previa um tipo conjunto e autónoma para este crime. Mas
várias das suas modalidades aparecem tipificadas ao longo do livro V das Ordenações (v.g.,
Ord. fil.,5,15). O sacrilégio era punido, de direito comum, com a pena de excomunhão ou

4016 Cf. Pascoal de Melo, Codigo criminal [...], cit., 20.


4017 Cf. Regimento do Santo Officio da Inquisição dos Reinos de Portugal […] (1774), cit..
4018 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Sacrilegium”, n. 1.
4019 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Sacrilegium”, ns. 2 a 6.

4020 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Sacrilegium”, n. 18.
4021 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Sacrilegium”, n. 7.
4022 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Sacrilegium”, n. 8.

4023 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Sacrilegium”, ns. 11 e 14.

639
Crimes e penas.
com pena arbitrária, cumulativamente com a pena correspondente a outro crime
conjuntamente cometido4024.
§ 2277. Era crime de misto foro, seguindo a regra da prevenção4025.
§ 2278. Próximo do crime de sacrilégio estava o de simonia, também específico do
direito canónico (como pecado e como crime)4026, e que consistia na vontade ou desejo de
vender ou comprar uma coisa (bem, direito ou jurisdição) espiritual. Nela se incluía a venda
de ofícios eclesiásticos, o seu provimento em troca de dinheiro, e outros comportamentos
que consistissem na patrimonialização de prerrogativas eclesiásticas4027.
8.2.1.3 Blasfémia.
§ 2279. A blasfémia4028 era o insulto a Deus, à Virgem ou aos santos ou a destruição ou
desrespeito às suas imagens. A punição da blasfémia tem também uma longa tradição
jurídica4029. Na Península, as Partidas (VII, 28) estabeleciam um sistema hierarquizado, que
se comunicará às fontes ulteriores. Esta hierarquização verifica-se, em primeiro lugar, quanto
ao autor da blasfémia (“quanto mas honrado, e mejor lugar tiene, tanto peor es el yerro”),
estabelecendo-se uma gradação que ia de rico homem a “otro ome de los menores”4030. No
plano do destinatário da ofensa, distinguia-se entre ofensa a Deus, à Virgem e aos santos.
Distinguia-se ainda entre a blasfémia por palavras e a blasfémia por atos (v. g., cuspir na
cruz ou feri-la com pedra ou faca).
§ 2280. Em Portugal, uma lei de 6.7.1315 (Ord. af., 5,99,1) aplicava aos que
blasfemassem contra Deus ou contra a Virgem a pena de corte da língua e morte pelo fogo.
Nas Ordenações (Ord. af., tit. cit., Ord. man., 5,34 e Ord. fil., 5,2) retomavam-se, nos seus
traços gerais, as distinções das Partidas4031.
§ 2281. A blasfémia era punida com multa, açoites ou pena ordinária, de acordo com a
gravidade da ofensa ou com o estado da pessoa. Em princípio, eram inimputáveis deste
crime, os bêbados, os menores, as mulheres e os rústicos4032. Se não contivesse heresia, a
blasfémia mera um crime de misto foro4033.
§ 2282. Neste sistema de tipificação e de punição, que se manterá até ao iluminismo, os
traços mais interessantes são os seguintes:
§ 2283. Em primeiro lugar, a promoção de uma visão hierarquizada, quer da sociedade
terrena, quer da sociedade celeste. O grande é mais punido, não apenas porque sobre ele
recai uma maior responsabilidade, mas também porque a sua punição constitui um exemplo

4024 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Sacrilegium”, n. 9 e 18.
4025 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Sacrilegium”, n. 15.
4026 Tomé Valasco, Allegationes […], cit., all. 13, n. 141 ss..

4027 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Simonia”, n. 1 ss.. Fontes: Decretais, 5,3;

Extravag. Comuns, 5,1..


4028 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad. Ord. fil.,5,2, n. 1.

4029 Levítico, c. 24; D.12,2, de jurejurando; Decretais, v. 26, c. 2.

4030 Partidas, 7, 28.


4031 Sobre os blasfemos, Ord. fil.,5,2; e seu comentário por Manuel Barbosa, Remissiones [...],
cit., ad Ord. fil.,5,2, proem., n. 2; penas de direito comum e próprio de vários reinos, ibid., n. 3.
4032 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord. fil.,5,2, ns. 5 ss..

4033 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad 5,2,3.

640
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
para o pequeno (“punitio maior est exemplum, timor et metus minorum”). Mas, diferenciando
a pena segundo a qualidade do ofendido, destaca-se, para além disso, a natureza
hierarquizada da própria sociedade celeste, de que a da terra é o reflexo e, com isso, o
carácter sagrado da ordem.
§ 2284. Em segundo lugar, e agora no plano do sistema das penas, é interessante notar,
não apenas a gradação das penas em função do estatuto do criminoso, mas ainda a lógica
desta gradação. Com efeito, há penas que se aplicam a nobres - multa e degredo - e penas
que se aplicam a vilãos - açoites, multa e galés. Ou seja, os nobres punem-se no património
(mais fortemente do que os vilãos) ou na honra (degredo). Os vilãos punem-se no
património, ou no corpo (por castigos físicos ou trabalhos forçados). Não se trata apenas de
um sistema punitivo estatutário, mas ainda de uma manifestação da hierarquização dos bens
honra/corpo/fortuna que não é o mesmo para todos os homens. Para os nobres, o bem mais
caro é a honra, enquanto que o corpo, mero suporte da honra, não constitui um objeto
autónomo de punição. Para os vilãos, não sendo a honra relevante, o bem mais caro é o
corpo.
8.2.1.4 Feitiçaria, benzas e vigílias nas Igrejas.
§ 2285. A feitiçaria 4034 era um outro dos crimes religiosos. Compreendia práticas muito
variadas, desde a invocação do demónio, para adivinhar, a administração de filtros ou
recitações amorosos (pocula vel carmina amatoria), a explicação de sonhos, a necromancia,
a leitura da sina (com agulhas, pregos, facas, paus, ossos, penas, ou a feita pelas linhas da
mão, por ciganas)4035.
§ 2286. Em Portugal, uma lei de 19.3.1401 (em Ord. af, 5,42,pr.) punia as adivinhações
para achar ouro e prata. Mas deviam ser também punidas muitas outras práticas que se
encontram tipificadas, quer na tradição do direito comum, quer nas Partidas4036. Estas
Ordenações (5,4,4) alargam a punição (com a morte) a todo o tipo de feitiçaria. Na longa
justificação aí contida não se invocam só os argumentos clássicos das fontes romanas sobre
os prejuízos que da feitiçaria adviriam à saúde e tranquilidade dos homens, mas também o
seu carácter de pecado, pela participação demoníaca que haveria em todas essas
catividades.
§ 2287. Ao sistema das penas subjaz o mesmo princípio estatutário, embora atenuado, e
a mesma gradação dos bens já antes encontrada.

4034 Tradição textual: Dec. Grat., II, C. 26, qu. 1, C. 1 (“os feitiços são aquelas artes pelas quais,
sob a capa de uma religião fingida, se chamam os santos, se usa da ciência da adivinhação ou se
promete uma qualquer visão do futuro”; a definição é de Santo Isidoro de Sevilha, Ethim., 8, c. 9); C.,9,
18; Partidas, 7, 23), Ord. afons., 5,42; Ord. man., 5, 33; Ord. fil., 5,3 3. A feitiçaria era um crime de foro
misto, punido com penas eclesiásticas e civis. V. Ord. fil., 5,3; Decr., 24, qu. 5. Literatura; António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. "Sortilegium"; Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord. fil.,
5,3; João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 1, I. lI, p. 161 (dec. 4, § 6).
4035 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad 5,3,2, ns. 3 a 5. Mas não a astronomia (ibid., ).

4036 Adivinhar em espelho, água, cristal ou coisa luzente, cabeça de homem morto, animal, ou na

palma da mão de menino ou mulher virgem; encantamentos; feitiços de amor; beberagens. Permitidos
são a astronomia e os encantamentos benéficos (tirar demónios, desfazer nuvens de granizo, matar
gafanhotos ou pulgões). Uma lei de 22.3.1499 (v. Ord. man., 5, 33) acrescenta-lhes práticas
especificamente portuguesas (v. g., benzer com espada que tivesse passado três vezes o Douro e
Minho).

641
Crimes e penas.
§ 2288. Pascoal de Melo dá como ridículos as feitiçarias, encantamentos, filtros e
augúrios punidos pelas Ordenações e como desproporcionadas as penas aí
estabelecidas4037. O que acontecera fora que, para o racionalismo das Luzes, a magia
deixara de ser crível. No direito anterior - apesar da insistência de algumas das fontes
anteriores no tópico dos prejuízos “naturais” (doenças, burlas) causados pelos feitiços -, é
evidente que, por detrás da punição de certas práticas - nomeadamente daquelas que
apenas consistiam em rituais e palavras (mala carmina) -, estava a convicção da sua
eficácia, agravada pelo carácter insidioso e imparável dos processos. Agora, essa crença
tinha entrado em crise.
§ 2289. As benzeduras de animais eram punidas nas Ordenações (Ord. fil.,5,4), assim
como as vigílias e representações teatrais em igrejas (Ord. fil.,5,5), que já estariam em
desuso e proibidas pelas constituições dos bispados nos finais do séc. XVI4038.
8.2.2 Crimes contra a ordem moral
§ 2290. Sob a rubrica de crimes “morais”, reúnem-se os crimes que se agrupam nas
Ordenações (Ord. fil.,5,13 a 33) em torno do que se entendia ser a defesa da moralidade das
relações sexuais.
8.2.2.1 Sodomia (relações homossexuais, bestialidade e masturbação).
§ 2291. O mais grave dos crimes sexuais era a sodomia, considerado como uma ofensa
a Deus e à natureza, mais torpe do que o adultério ou do que o incesto com a própria mãe, e
do qual nem se devia falar (nefando)4039. A sodomia era o ato torpe contra a ordem natural
que consistia na ejaculação de que não podia resultar a geração4040.
§ 2292. Abrangia uma vasta gama de práticas sexuais. O coito homossexual, entre
homens ou entre mulheres4041; o coito heterossexual em que o varão tem relações ou
insemina a mulher numa posição perversa (ordine perverso4042); a excitação usando um

4037 Cf. Pascoal de Melo, Codigo […], cit., “Provas”, p. 28.


4038 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord. fil.,5,5.
4039 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Sodomia”, n. 1-2. Fontes: Partidas,7,21,2;
Ord. fil.,5,13 (v. o respetivo comentário de Manuel Barbosa, Remissiones […], cit.). A sodomia
desaparece de alguns códigos do séc. XIX, não por a prática deixar de ser crime, mas justamente com
o argumento de que dele nem falar se devia (o exemplo mais conhecido é o do Code penal francês de
1805).
4040 “Sodomia est turpitudo contra naturalem ordinem, et seminatio, ex qua generatio sequi non

potest, et dicitur peccatum nefandum, quasi de eo loqui non posset”, António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., v. “Sodomia”, n. 1; v. também, com detalhes interessantes, António Gomez, Opus […] super
legibus Tauri [.], cit., ad 1,80, ns. 33 ss..
4041 “Primo modo, si foemina agit cum foemina mediante aliquo instrumento materiali; et relatum

est mihi quod iste casus jam continguit de facto in quibusdam monialibus qui fuerunt comnbustae [...]
Secundum modo, si foemina agit cum alia foemina sine aliquo instrumento: nam secundum medicus &
naturales, foeminae inter se coire possunt delectando", António Gomez, Opus […] super legibus Tauri
[.], cit., ad 1,80, n. 40.
4042 "[...] Si foemina habet accesum viro tanquam agens: puta si ipsa ascendit supra virum"

(Antonio Gomes, Opus […] super legibus Tauri [.], cit., ad 1,80, n. 34); ou “si quis habet accessum ad
alium non per vas exterius, sed intra crura vel in alia parte corporis, vel manibus abutendo, et semen
emitendo", ibid., n. 35.

642
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
instrumento ou as mãos; a simulação do coito usando uma covinha no chão4043; o coito com
animais irracionais (bestialidade)4044.
§ 2293. A tipificação da sodomia revela a extensão da “natureza” em questões de
sexualidade: esta abrangia o género dos parceiros no coito, as posições usadas para a
cópula, a função procriativa da ejaculação, a subordinação do prazer à finalidade de gerar (v.
cap. 3.2.3).
§ 2294. Os sodomitas eram punidos com as penas mais cruéis: morte pelo fogo,
confisco dos bens, infâmia até à 2ª geração (filhos e netos) (Ord. fil.,5,13, pr.)4045. No caso de
bestialidade, o animal devia ser também morto, não por merecer pena, mas para que não
ficasse memória de tal crime4046. Em alguns dos casos anteriores, menos claramente
previstos nos textos legais ou menos graves, a sodomia deveria punir-se com pena
arbitrária4047, o mesmo acontecendo no caso de o crime não se consumar4048 ou dos
sodomitas serem menores4049
§ 2295. A punição canónica de clérigos sodomitas foi sendo aliviada. Os clérigos eram
suspensos do ofício, mandados para um convento em penitência perpétua e separados do
convívio com os monges. Nos finais do séc. XVI, o regime punitivo abrandara: excluíra-se
dos atos sodomíticos a mera pollutio extraordinaria (ou seja, a ejaculação meramente
luxuriosa, provocado por pensamentos torpes carnais, conversas ou afagos do corpo, ou
excitação com as mãos - masturbação)4050; a reclusão perpétua fora substituída por pena
arbitrária; quando o crime era oculto, a pena passou a ser dispensada4051). Por um moto
proprio de Pio V, de 3.9.1568, o clérigo sodomita passou a ser entregue à justiça secular4052.
8.2.2.2 Adultério.
§ 2296. A punição do adultério4053 tinha obedecido a duas lógicas diferentes, uma de
direito romano, outra de direito canónico.
§ 2297. No direito romano, o adultério era considerado como uma violação da “lei

4043 "[…] Fecisse foramen in terra, & ibi coire & emittere semen, ac si cum foemina coirent",

António Gomez, Opus […] super legibus Tauri [.], cit., n. 40


4044 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Sodomia”, ns. 3 a 5.

4045 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Sodomia”, ns. 5 ss..
4046 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Sodomia”, n. 5; António Gomez, Opus […]
super legibus Tauri […], cit., ad 1, 80, n. 35 ss..
4047 Cf. António Gomez, Opus […] super legibus Tauri […], cit., ad 1, 80, n. 35 ss..

4048 "[...] Aconteceu, de facto, nesta cidade de Salamanca, em que um certo marido, frígido e
impotente, tentou corromper a mulher por meio de um pau fabricado por ele para isso; a mesma gritou
e vieram os vizinhos, e ele foi preso pelo juiz [...], cit., mas como o delito apenas foi tentado, puniram-
no na pena de açoites, com aquele instrumento de madeira pendurado ao pescoço, e na de desterro
[...] o mesmo acontecendo na cidade de Córdova, em que um marido, na noite de núpcias, julgando ser
impotente, quiz corromper a mulher da mesma forma [...]”, António Gomez, Opus […] super legibus
Tauri […], cit., ad 1, 80, n. 40.
4049 Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad 5,13, princ..

4050 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Sodomia”, n. 8.


4051 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Sodomia”, n. 8.
4052 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Sodomia”, n. 10.

4053 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., ad Ord. fil.,5,38.

643
Crimes e penas.
conjugal”, ou seja, da exclusividade que a mulher deveria ao marido quanto às relações
sexuais4054. O que estava em causa era, fundamentalmente, o interesse familiar em impedir
a turbatio sanguinis, a dúvida quanto à paternidade dos filhos nascidos na constância do
matrimónio4055. Por isso, para que houvesse relações adúlteras, requeria-se a consumação
das relações sexuais ou, mesmo, a gravidez4056.
§ 2298. No direito canónico, pelo contrário, o adultério era considerado como a violação
da fidelidade conjugal (Decretum, C. 32, qu. 5, c. 15; C. 20-23), podendo, por isso, ser
cometido por ambos os cônjuges. O critério de avaliação dos atos era diferente e menos
rigoroso, aceitando-se o adultério por pensamentos4057.
§ 2299. Este diferente tratamento do adultério relacionava-se, possivelmente, com duas
economias da sexualidade e da família, em conflito na cultura europeia desde a baixa
Antiguidade. Uma, que alguns autores fazem corresponder a um ambiente de recessão
demográfica, de maior permissibilidade sexual, embora limitada pela lógica da defesa da
identidade da família, enquanto instituição política. Outra, correspondente a áreas ou épocas
de pletora demográfica, dominada por uma conceção negativa e restrita da sexualidade, que
a procurava confinar ao âmbito da família rigorosamente organizada em termos
monogâmicos4058. O direito canónico e a disciplina eclesiástica da família encarnavam a
promoção e defesa deste segundo modelo, desenvolvendo uma ação combinada para
extirpar dos costumes europeus a sexualidade extrafamiliar, profundamente enraizada.
§ 2300. As Ordenações (Ord. af., 5,25; 28; Ord. man., 5,15; 25; Ord. fil., 5,7; 12; 20)
seguiram, fundamentalmente, a via do direito romano, com todas as suas consequências.
Assim, o adultério do marido não era, por via de regra, punido4059; e o da mulher só era
considerado relevante quando tivesse havido consumação de relações sexuais. Mas, neste
caso, a lei era muito severa na proteção dos interesses político-familiares, o que era
característico de uma sociedade onde prevaleciam valores casticistas e linhagísticos: o
adultério era, em geral, punido com a morte, sendo o marido ofendido autorizado a tirar
desforço por suas próprias mãos (Ord. fil., 5,38). Legislação extravagante da segunda
metade do século XVIII (alv. de 26.9.1769) reforçará ainda o carácter “familiar” dos
interesses protegidos, ao tornar a perseguição do crime totalmente dependente de acusação
do marido.

4054 Sobre o impensado das obrigações sexuais dos cônjuges, cf. supra.
4055 “O adultério comete-se na mulher casada, sendo o seu nome assim composto a partir de
“parto concebido com outro”, D.48, 5, 34, 1. Consequentemente, o adultério apenas podia ser cometido
pela mulher casada e pelo seu amante, já não por homem casado com mulher solteira. Nem por mulher
casada de mau porte.
4056 A doutrina estabelecia uma complicada casuística das relações amorosas que configuravam

o adultério, bem como dos factos que o indiciavam. Neste último plano, os juristas eram bastante
estritos, não se contentando alguns sequer com o facto de os amantes serem encontrados na cama,
sozinhos e despidos (solus cum sola, nudus cum nuda). Com este rigor probatório que se encontra
também noutros crimes sexuais (v. g., bestialidade e sodomia, António Gomez, Opus […] super legibus
Tauri […], cit., ad 1, 80, n. 33 ss.) - procurava-se decerto limitar a perseguição penal destes atos. Mas
outros, mais rigoristas, consideravam já como adulterinos os atos preparatórios do coito (“veluti mutuis
amplexibus, & osculis”, Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., ad Ord. fil.,5,38,2).
4057 Jaime de Corelia, Pratica de confessionario, cit., p. 66, ns. 1-2.

4058 Cf. Jack Goody, “The evolution of the family”, cit..

4059 Ord. fil., v. 28, pr. (concubina “teúda e manteúda” no domicílio conjugal).

644
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 2301. A análise do regime penal do concubinato reforça ainda a impressão de que, no
seio desta tradição de enquadramento penal das práticas sexuais, o que estava em causa
não era tanto a defesa de uma ordem moral, como a defesa dos interesses da família
enquanto grupo político. De facto, o concubinato era permitido pelo direito romano (D., 25, 7
De concubinis), tendo sido proibido apenas pelo direito canónico. Embora, de acordo com o
“critério do pecado“ (formulado pela doutrina medieval acerca da hierarquia entre os dois
direitos e recolhido em Ord. fil., 3, 64), tal proibição devesse ter passado para o direito civil, o
certo é que a nossa lei só punia o concubinato de homem casado e, ainda assim, só no caso
de decorrer com escândalo público e, sobretudo, com dissipação, a favor da concubina, do
património familiar4060. Tão pouco eram punidos o “coito vago” e o meretrício.
§ 2302. Apesar deste tom um tanto laxista da legislação - pelo menos, em relação à
sexualidade masculina - desenvolvia-se, paralelamente, uma política sexual mais repressiva,
amparada, sobretudo, pelo aparelho disciplinar da Igreja. De facto, nas visitações, os bispos
deviam inquirir dos casos de concubinato e barregania, procedendo contra eles
criminalmente, nos termos do direito canónico (cf. Ord. fil., 2,1,13). Por influência destas
visitações, surge legislação que comete aos magistrados seculares o encargo de devassar
sobre os “pecados públicos“4061 e, segundo Pascoal de Melo, juízes “moralistas” chegavam a
punir o adultério “simples” (de homens casados com mulher solteira)4062. É justamente contra
este rigorismo - que perturbava, muitas vezes, a ordem familiar estabelecida, levantando
suspeitas falsas ou importunas - que reage a legislação pombalina4063 e, em geral, toda a
doutrina iluminista.
§ 2303. No projeto de Codigo criminal, de Pascoal de Melo (tit. XI) acolhia-se uma
conceção totalmente diferente da ordem sexual, recebendo-se, em geral, a conceção
canónica de adultério, como violação da fidelidade conjugal; com isto, passava a punir-se,
tanto o adultério do marido, como o da mulher, embora com penas diferentes, adequadas à
diferente natureza do sexo segundo o “pensar geral da nação” (mas, afinal, mais duras para
a mulher) (cf. 6 e “Provas”, pp. 33-34). A punição do adultério tendia a libertar-se da primazia
dos interesses político-familiares (i. e., de defesa da legitimidade dos filhos da mulher
casada). Agora que a natureza contratual do casamento começava a ser destacada, tornava-
se decisiva a fidelidade, como manifestação do respeito pela palavra dada (pacta sunt
servanda). Ao mesmo tempo, o Estado chamava a si a defesa de uma certa ordem sexual,
até aí mantida pelo direito canónico. Com isto se anunciava o puritanismo da sociedade
burguesa, que identificava a sexualidade permitida com a sexualidade entre os cônjuges,
embora admitisse, como válvula de escape, uma promiscuidade sexual policiada e “exterior”
à sociedade oficial, proporcionada pela prostituição4064.
8.2.2.3 Estupro.
§ 2304. O regime penal do estupro confirma o modelo de valorização da sexualidade a

4060 Isto acontecia quando o marido sustentasse a concubina (Ord. fil., 5,28, pr.), mas já não
quando ele “tivesse o hábito da promiscuidade carnal” (António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Concubinatus”, p. 218, col. 1).
4061 Cf. alvs. 25.12.1608, ns.21 e 22.

4062 Pascoal de Melo, Codigo […], cit., “Provas”, 32.

4063 Cf. C.L. 19.8.1769, n. 12.

4064 O “coito vago” ou o “meretrício” não eram punidos no projecto de Código de Pascoal de Melo,

embora fossem sujeitos a medidas de polícia (Proj. cod. crim., 11, 3).

645
Crimes e penas.
que nos vimos referindo.
§ 2305. O direito romano punia como estupro dois tipos de conduta: ou as relações
sexuais com virgem menor (puellae defloratio, D., 48,6,34) ou as relações sexuais impostas
a uma mulher com violência (D., 48,5,6, 2 e Nov., 141 e 150), enquadrando-as no crime de
violência. O direito moderno tendia a enfatizar mais a defesa dos valores familiares do que a
defesa da “inocência”. António Cardoso do Amaral, fundando-se numa opinião comum,
defendia que “quem estupra uma virgem na casa do pai, comete rapto de virgindade e
aleivosia, mesmo que a não leve para outro lugar, devendo ser punido com as penas dos
raptores [...]; pois com o estupro não se ofende apenas a virgem, mas também os seus pais
e consanguíneos [... Em contrapartida], quem estupra uma virgem que o quer e consente, a
nada está obrigado para com essa mulher, nem no foro da consciência, nem no foro
contencioso, desde que a rapariga não esteja sob o poder do pai, mãe, tutor, curador ou
afim; pois a mulher emancipada tem poder sobre o seu corpo quanto ao foro externo e, nas
suas coisas, cada um é o moderador e o árbitro”4065. Apenas se exigia que se não usasse
fraude (dona, presentes, blanditiae, carícias) para obter o consentimento. Os únicos limites
da sexualidade fora do casamento, para solteiros, eram, portanto, as limitações impostas
pela ordem familiar e a proibição da violência ou do engano4066.
§ 2306. Outra era a perspetival dos canonistas, subsidiária da moral sexual da Igreja.
Aqui, o princípio era o do carácter ilícito e pecaminoso do coito, sobretudo se praticado fora
do matrimónio (“todo o outro coito é ilícito e reprovado pela lei divina [...] de onde se deve
fugir da fornicação como da peste”4067).
§ 2307. As Ordenações (Ord. af., 5,5; Ord. man., 5,14; Ord. fil., 5,18 e 23)4068 recolhiam,
no fundamental, o sistema romano, punindo como estupro as relações sexuais com violência
(Ord. fil., 5,18, 3) ou com virgem ou viúva, honesta e menor de 25 anos in patris potestate
(ibid., 5,23, 3). A legislação extravagante mais importante era constituída pelas leis de
19.6.1775 e de 6.10.1784 (A.D.S.). A primeira visava proteger a família contra a utilização do
estupro como expediente para forçar casamentos que os pais, de outro modo, não
consentiriam. Para isso, à estratégia canónica de reparar o pecado pelo matrimónio
subsequente opôs-se a de devassar oficialmente de tais crimes e de aplicar aos culpados
penas civis. O pecado permaneceria, mas os interesses políticos das famílias ficariam mais
salvaguardados. A segunda estratégia era a de, além de impedir a queixa de estupro a

4065 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Stuprum”, ns. 11-12.
4066 Alguns autores introduziam ainda outras restrições à sexualidade inter volentes: as ordens
clericais, certas relações político-sociais (v. g., entre ama e escravo ou criado, entre tutor e tutelada,
etc.), a diversidade de religião, bem como aquilo que era considerado como a natureza do sexo (sobre
este último ponto, v. António Gomez, Opus […] super legibus Tauri […], cit., ad 1, 80, ns. 5 ss.).
4067 Mesmo no matrimónio, a castidade era a virtude máxima, pecando venialmente o marido “que

só por causa do prazer e voluptuosidade tenha trato com a mulher”, António Gomez, Opus […] super
legibus Tauri […], cit., ad 1, 80, n. 3.
4068 As Ord. fil. tipificavam em títulos sucessivos várias situações de relações sexuais ilícitas: infiel

com cristã e cristão com infiel (t. 14), coito com freiras (que era uma forma de sacrilégio, tit. 15), com
mulher da corte, virgem, viúva honesta ou escrava branca (tit. 16), com parenta (tit. 17), coito forçado
(tit. 18), coito de oficial com mulher da sua jurisdição (tit. 20), coito com órfã ou menor a cargo (tit. 21),
coito forçado com mulher virgem in patria potestate (tit. 22), coito consentido com virgem ou viúva
honesta (tit. 23), coito (ou casamento) com parenta, criada ou escrava da pessoa com quem vive (tit.
24), coito com mulher casada (tit. 25 e 26).

646
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
mulheres (maiores de 17 anos) que tivessem consentido nas relações sexuais, diferenciar as
penas aplicadas em função da idade das mulheres. Afinal, reforça-se a proteção dos
interesses familiares, mesmo com o sacrifício da ordem “moral”. Tal é, também, a orientação
do projeto de Pascoal de Melo (tit. XII) que, porém, descriminaliza o estupro de donzela com
quinze anos feitos (XII,10).
8.2.3 Os crimes contra a ordem política.
§ 2308. Nos crimes contra a ordem política incluem-se a lesa-majestade e a violência.
8.2.3.1 Lesa-majestade.
§ 2309. O tratamento penal da lesa-majestade remonta a dois títulos do Corpus iuris
civilis, D., 48,4 ad legem Juliam de magestatis, e C., 9, 8, id.. Nestes textos, a configuração
do crime era pronunciadamente estatalista: o crime era definido como um delito contra o
povo romano e a sua segurança. Esta tradição fora recolhida no Cód. visigótico (2,1,8), no
direito canónico4069 e, mais tarde, nas Partidas (VII, 2)4070.
§ 2310. É justamente nas Partidas que surge uma segunda tradição textual, bastante
importante para o direito português, em que o crime de lesa-majestade é integrado no delito
mais geral de traição, este despido de qualquer conotação estatalista e feito equivaler a uma
ofensa praticada com falsidade e vileza (VII,2,20). Em todo o caso, o texto distingue a lesa-
majestade ou traição (contra o rei, ou seu senhorio, ou contra o bem comum da terra) do
aleive (contra qualquer outro homem).
§ 2311. No direito português, a primeira providência legislativa sobre a lesa-majestade
aparece com D. Afonso II (cf. Ord. af., 5,2), numa lei em que a traição aparece confundida,
quer com a aleivosia, quer com a heresia: “[...] a saber, se os davanditos trabalharam em
nossa morte, ou de nosso filho, ou de nossos parentes achegados, os quais temos que são
parte do nosso corpo, ou em morte de seu senhor, ou hereges [...]” (Ord. af., 5,2,1).
§ 2312. As Partidas influenciam decisivamente as Ord. af., bem como o conceito aí
subjacente de poder e de delito político. Terminada a enumeração dos casos de lesa-
majestade, o texto afonsino passa - aplicando-lhe um regime punitivo semelhante - para um
crime que, embora se não chame “traição” ou “aleive”, corresponde ao ato aleivoso ou
traiçoeiro típico, ou seja, o ato daqueles que cometem alguma ofensa contra seu amigo ou
senhor, com traição ou aleivosia (n. 22). O traço mais característico do regime das Ord. af. é
justamente esta não autonomização da ofensa feita ao rei em relação a outras ofensas
praticadas aleivosamente contra uma pessoa comum. Dir-se-ia que, na escala de valores
que subjaz à fixação do tipo penal, o vínculo entre súbdito e rei se não distingue
fundamentalmente do vínculo entre o homem e Deus, entre o vassalo e o seu senhor, entre o
amigo e o seu amigo e, mesmo (como se comprovaria por outros textos, mesmo posteriores,
que aproximam o traidor do parricida), entre o filho e o pai. Com isto, é toda uma matriz de
compreensão dos vínculos políticos que se exprime. Pois estes aparecem justificados, ao
mesmo tempo, pelos deveres da religião, da obediência, da amizade e da piedade familiar.
Nestes termos, qualquer atentado contra este complexo resultava no mesmo crime; embora,

4069Decretais, c. 6, qu. 1, c. 22; De poenit., d. 1, c. 9.


4070 Ord. fil.,5,6; Partidas,7,2; Nueva Recopilación, 8,18. Sobre a história da lesa-majestade na
doutrina do direito comum moderno, cf. Mario Sbriccoli, Crimen Laesae Maiestatis […], cit.. Fontes,
para Portugal: Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord. fil., 5,6, proem., n. 1; Jorge de Cabedo,
Decisiones […], cit., p. 2, dec. 82.

647
Crimes e penas.
no seio do tipo penal, se estabeleçam gradações. Se contrastarmos o texto das Ordenações
com a tradição anterior, parece que assistimos a uma progressiva regressão do conceito de
“Estado”, desde os textos “publicistas” do Corpus iuris, passando pelas versões já menos
nítidas das Partidas, até desembocar num estado de obliteração da especificidade do
supremo poder e dos vínculos de dependência em relação a ele.
§ 2313. Já as Ordenações seguintes marcaram o advento, neste plano, da consciência
da especificidade do poder real. A lesa-majestade era, agora4071, um crime especificamente
dirigido contra o poder supremo, embora a sua gravidade conheça gradações consoante o
carácter mais ou menos direto, mais ou menos grave, da ofensa. Os conselheiros régios e os
magnates deixaram de aparecer entre os protegidos pela punição, o mesmo se passando
com os senhores ou os oficiais subalternos4072. Por outro lado, a lesa-majestade aparecia,
agora, claramente distinta da aleivosia, a que era dedicado um texto independente mais
adiante (tit. 37). O poder supremo era concebido como intimamente relacionado com a
pessoa do rei. Enquanto que os textos romanos falavam do populus ou da civitas, os textos
medievais e modernos falam do rei, do seu corpo, da sua família (Ord. fil.,5,6, ns. 1 e 21), do
seu palácio (ibid., n. 24), da sua imagem (ibid., n. 8), da sua presença pessoal (ibid., n. 7),
das suas ordens diretas e pessoais (ibid., ns. 2-6, 23, 25 e 26). No conjunto, o que
sobrelevava era uma conceção personalizada do poder, em que o crime político era
configurado, não como uma ofensa feita à ordem política, fosse quem fosse que a atuasse,
mas como uma ofensa pessoal ao rei.
§ 2314. Com o iluminismo4073 manifesta-se, em primeiro lugar, a ideia da especificidade
dos laços que ligam o vassalo ao imperante. Isto salienta-o Pascoal de Melo, logo no início
da justificação do articulado relativo à lesa-majestade do seu projeto de Código criminal: a
principal obrigação do súbdito era a fidelidade; e, por isso, o maior crime que ele podia
cometer era a traição, que Pascoal de Melo distinguia da traição privada: “e lhe chamo alta
em diferença dos crimes particulares; porque o amigo infiel ao seu amigo e benfeitor, o
criado ao amo, o clérigo ao seu bispo, e o súbdito ao superior, não é tão criminoso e infiel,
como aquele, que o é à sua Pátria”4074.
§ 2315. Por outro lado, o poder político despersonaliza-se. O crime de alta traição ou
lesa-majestade deixa de visar principalmente a pessoa do rei, passando a dirigir-se contra a
república, como todo politicamente organizado. Sendo assim, embora o soberano
desempenhe na organização política um papel central e, por isso, seja aqui especialmente
contemplado, todas as instituições e todos os magistrados são agora defendidos pela
punição da lesa-majestade. Daí que se passe a punir, nesta sede, a sedição, o tumulto, a
resistência aos magistrados, delitos que, nas Ordenações, eram punidos noutros títulos (tits.
44 a 51).

4071 V. Ord. fil., 5,6.


4072 Embora a questão fosse discutida (Cf. Prospero Farinnacius, Praxis […], cit., qu. 112, n. 136
ss.). As Ord. fil., reservavam outros títulos para a ofensa à justiça real (lesa majestade “de segunda
cabeça”, Ord. fil.,5,6, ns. 22 e ss.) e para as ofensas aos magistrados (v.g., Ord. fil.,5,48 ss.). Outros
atos de desrespeito ao rei: Ord. fil.,5,7 a 12 (inclui-se aqui a moeda falsa, como ofensa a uma regalia
régia e à própria imagem e título reais inscritos nas moedas). V. os respetivos comentários de Manuel
Barbosa, Remissiones […], cit..
4073 Cf. Arno dal Ri Júnior, “Entre lesa-majestade e lesa-república […]”, cit..

4074 Pascoal de Melo, Codigo criminal intentado por (..), cit., “Provas”, 36/37.

648
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
8.2.3.2 Os crimes contra a ordem pública - a violência
§ 2316. A punição da violência tinha uma longa tradição textual4075. No direito romano,
as leges Plautia de vi (c. 65 a.C) e Julia de vi (17 a.C.), criaram ações criminais
(quaestiones) para o julgamento dos crimes de violência contra a comunidade política (vis
publica), tais como organização de bandos, ocultação de armas, sedição [perturbação do
exercício de funções públicas], constrangimento a magistrados e senadores; bem como para
o dos crimes de vis privata, atos que conturbassem o funcionamento dos juízos privados ou
que corporificassem violência contra particulares (autodefesa arbitrária, sequestro, estupro).
Para os delitos de vis publica, previa-se a pena de morte ou de exílio e para os de vis privata,
a expropriação dos bens (publicatio bonorum). A lex Julia de Annona, c. de 50 a.C.,
criminalizava o açambarcamento.
§ 2317. A tradição medieval portuguesa da punição da violência é constituída por leis
recolhidas nas Ordenação afonsinas (cf. Ord. af., 5,35; 45; 50; 66; 76 e 77; 95 a 97; 106). Ao
lado desta tradição legislativa, existia também uma tradição letrada4076 que adaptava a
casuística das fontes romanas ao contexto político-social medieval, dando um novo relevo
aos tipos penais que atentavam contra a política régia de instauração de uma paz do rei,
como a proscrição da violência nos juízos, repressão de violência dos clérigos, dos senhores
e dos oficiais (sobretudo “fiscais”), regulamentação das tréguas e pazes. Em suma, o rei,
como fonte da justiça (i. e., do equilíbrio da ordem social “natural”), impõe a sua paz; ou seja,
proíbe qualquer ofensa desta ordem, sobretudo por meios violentos graves.
§ 2318. No século XVI, Jacques Cujas define a violência pública como “aquela que,
contra o direito, se exerce contra as pessoas públicas, que detêm império e poder”. Ou seja,
a violência toma-se mais grave, não já quando se manifesta pelo uso das armas, mas
quando é “sediciosa”, isto é, dirigida contra um magistrado4077. Também nas Ordenações
manuelinas e filipinas, a violência tende a ser, sobretudo, a ofensa de pessoas públicas -
nomeadamente, ofensas ao corpo ou honra dos magistrados (cf. Ord. af., 5,91;104; Ord.
man., 5,36;75; Ord. fil., 5,48 a 51).
§ 2319. Porém, as Ordenações previam, genericamente, a usurpação violenta (roubo)
de uma coisa privada (Ord. fil.,5,61). No caso de a coisa valer mais de mil réis, esta ofensa
do património privado era considerada como um crime e punida com a morte. Mas, se a
coisa valesse menos, a usurpação era tratada como furto, sendo punida com as penas
privadas do furto (restituição no quádruplo ou no duplo, a favor do dono da coisa). Também
os assaltos de noite ou em estradas eram punidos como crime, merecendo pena capital ou
degredo perpétuo para o Brasil, consoante o valor da coisa. Outras violências contra
pessoas privadas eram tratadas noutros contextos - v. g., a violação e o estupro, no dos
crimes sexuais; a usurpação violenta de posse, no dos meios processuais de tutela da
posse.
§ 2320. Um grupo importante de crimes de violência pública era constituído por
perturbações graves da ordem pública ou de desafio à paz do rei. Alguma da legislação que
criminalizava estes atos vinha do início do séc. XV, referindo-se à violência de bandos
senhoriais, a disputas violentas de parcialidades urbanas ou a manifestações de banditismo,

4075 D.48, 6 ad legem Corneliam de vi publica; D.48, 7 ad legem Corneliam de vi privata.


4076 Baseada no Cod. visig., 8,1 de invasionibus et direptionibus, e nas Partidas, 7, 10.
4077 É também este o sentido da distinção no projecto de Pascoal de Melo (tits. 16-24).

649
Crimes e penas.
que já seriam raras nos finais do séc. XVI. Uma lei de D. João I referia o caso concreto do
banditismo que grassaria na Beira, Minho e Trás-os-Montes: “Item nos foi dito que em nosso
Senhorio, especialmente nas Comarcas da Beira, & dantre Douto e Minho & detrás os
Montes hoems de pé escudados se lançam nas matas, & continuamente andam valdios pela
terra, comendo o alheio pelas terras chãs, forçando muitas moças virgens, & fazendo muitos
males. E isso mesmo os fidalgos, e Abades os ajuntam a si, e fazem com eles andando
assunadas, uns contra os outros, em tal guisa que os ditos homens de pé, & escudados não
curam de ter outros officios, de que se segue desserviço”. No tempo de Manuel Barbosa, já
não se ouvia há muito falar disso. Semelhante era a organização ou chefia de bandos para
fazer mal a alguém (“assuadas”), o apelar para o auxílio de comparsas em confrontos entre
bandos rivais, a manutenção de homens armados4078.
§ 2321. Outro grupo de crimes de violência protegia a paz nos tribunais. Tal era o caso
da resistência à justiça4079, das injúrias dirigidas ao juiz ou seus oficiais no exercício das suas
funções4080, dos tumultos levantados durante um julgamento4081 ou dos que tirassem presos
à justiça ou das cadeias4082.
8.2.3.3 Crimes contra as pessoas - a honra
8.2.3.4 As injúrias.
§ 2322. No direito romano, todos os valores pessoais não patrimoniais estavam
protegidos pela punição das injúrias4083. Apesar da tendência pós-clássica para a punição
criminal de certas categorias de injúrias, o sistema romano tendia a tratar as injúrias apenas
sob o ponto de vista, “privatístico”, de ofensa de interesses meramente individuais, ofensa
compensável por uma indemnização “de direito privado”4084. Além do caso do membrum
ruptum (amputação ou inutilização de órgão), a Lei das XII Tábuas previa outros dois tipos
de delito de iniuria: os fractum ou conlisum (fratura do osso) e a iniuria pura e simples (outras
lesões menores): nesse caso a pena era de apenas 25 asses. Discute-se, entre os
romanistas, acerca da identificação dos atos que não entravam nestes dois casos concretos
mas que eram qualificados com o termo técnico de iniuria. Havia dois tipos de actio

4078 Cf. chamar por outrem que não Elrei, Ord. fil.,5,44; assuada, Ord. fil.,5,45; trazer consigo

homens “escudados” (salvo em tempo de guerra), Ord. fil.,4,47; e respetivos comentários de Manuel
Barbosa.
4079 V. Ord. fil.,5,49 e respetivo comentário de Manuel Barbosa. Podia-se, porém, resistir ao juiz

incompetente ou que não observasse o processo, ou ao juiz não exibisse os sinais do seu poder (a
“vara alçada”), Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord. fil.,5,49, n. 3.
4080 V. Ord. fil.,5,50 e respetivo comentário de Manuel Barbosa. Aplicava-se também aos oficiais

de fazenda, mas não aos advogados, Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord. fil.,5,50, n. 4.
4081 V. Ord. fil.,5,51 e respetivo comentário de Manuel Barbosa.

4082 V. Ord. fil.,5,50 e respetivo comentário de Manuel Barbosa. Não se aplicava à mulher que tira
o marido da cadeia, Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad pr., n. 1. Discutia-se se incluía o caso de
a prisão ser notoriamente injusta e não haver meio de justiça para a obviar, Manuel Barbosa,
Remissiones [...], cit., ad pr., n. 2; ad 3, n. 3. Sobre os duelos ou desafios, Ord. fil.,5,43.
4083 Cf. D.47, 10 De iniuriis et famosis libellis.

4084 Não eram indemnizáveis senão os danos morais, mesmo no caso da ofensa corporal, pois os

danos físicos não poderiam ser objeto de avaliação, já que o corpo de um homem livre não tinha preço
(in hominis liberi corpore nulla corporis aestimatio fieri potest; cf. D.9,3; max. D.9,3,7; I.,1,6,7
[liberdade]).

650
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
iniuriarum; uma legitima (ex lege XII tabularum, 8,3-4), outra honoraria, introduzida pelo
pretor. Esta última era concedida para todos os atos ilícitos, contrários aos costumes
tradicionais romanos (adversus bonos mores), que acarretavam lesões físicas ou morais a
uma pessoa (no sentido de que comprometiam a honra e a reputação desta). A lex Cornelia
de iniuriis (81 a.C.) sujeitou a pena pública (criminal, quaestiones perpetuae) os tipos mais
graves de iniuria, sobretudo as lesões pessoais. Na época clássica, foram introduzidos tipos
de injúria que atentavam contra a honra do ofendido: convicium (insulto em público); ne quid
infamandi causa fiat ("que não se faça nada com intuito de desonrar outra pessoa");
adtemptata pudicitia (atentado ao pudor e bons costumes sobretudo de mulheres casadas e
de menores).
§ 2323. Estes traços do regime do direito romano pesaram sobre o direito medieval4085 e
moderno.
§ 2324. A doutrina do direito comum tardio definia a injúria, em sentido lato, como aquilo
que era feito contra direito; mas, em sentido estrito, como uma afronta injusta, cometida por
atos, palavras ou escritos, com o intuito de difamar outrem4086. Consoante a sua gravidade, a
injúria podia ser: (i) atroz, como a feita em público ou perante pessoa investida de dignidade
(magistrado, eclesiástico), a feita por pessoa humilde a pessoa nobre, por filho aos pais, pelo
liberto ao patrono, pelo escravo ao senhor4087; (ii) a enorme ou gravíssima, como bater com a
mão ou com chicote, dar bofetadas, ou mesmo apenas levantar a mão para alguém; (iii) leve,
como qualquer outro tipo de afronta, nomeadamente chamar nomes (ladrão, bastardo,
herege)4088.
§ 2325. A injúria podia ser considerada do ponto de vista penal (quatenus maleficium) ou
do ponto de vista civil, como facto que causa danos4089. A primeira dava azo a uma ação
criminal, a segunda a uma ação civil de ressarcimento de danos. O direito comum seguia
uma construção “privatista”, ao classificar as injúrias como um delito privado, sujeito, antes
de tudo, a uma ação civil (e não penal), visando uma indemnização ao ofendido. Na prática,
o móbil de muitas acções de injúria era, decerto, o interesse económico. Mas, na imagética
dos textos, a actio iniuriarum não prosseguia recompensas pecuniárias, pois “a honra não se
paga”. As fórmulas de estimação da indemnização constituíam então prodígios de retórica
que visam avaliar [...] o inavaliável - “antes queria ter perdido ou não ter ganho tal soma do
que ter sofrido esta injúria”4090. Por outro lado, a honra deixou de ser, nesta sociedade
fortemente corporativa, um bem puramente individual, pois existiam grupos de pessoas de tal
modo ligadas que a ofensa feita a uma se refletia no património moral das outras. É o que se
passa com a comunidade doméstica4091; mas a doutrina tinha identificado outros grupos do
mesmo tipo.
§ 2326. As Ordenações portuguesas não se ocupavam expressamente das injúrias não

4085 Cf. Partidas, 7,9.


4086 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Iniuria”, n. 1.
4087 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Iniuria”, n. 2.

4088 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Iniuria”, n. 2, 3 e 14.
4089 Cf. Tomé Valasco, Allegationes […], cit., all 16, ns. 7 a 10.
4090 Cf., por todos, António Gomez, Opus […] super legibus Tauri [.], cit., ch. 4, n. 7.

4091 Cf. D.47, 10,1,3 e 4..

651
Crimes e penas.
corporais4092, recebendo implicitamente o sistema do direito comum. Recebiam,
nomeadamente, o regime “privatista” da punição. Longe de se comprometer na vingança da
honra de cada um, estabelecendo punições “públicas”, “criminais”, a coroa deixava subsistir
o sistema de indemnização “privada”, canalizando todos os seus esforços no sentido de
evitar meios violentos de reparação, como o duelo ou a vingança privada. A não ser que se
tratasse de injúria a oficiais públicos (v. antes, cap. 8.2.3.2)
§ 2327. Estava sujeito à ação de injúrias aquele que ferisse outrem, proferisse palavras
difamatórias ou escrevesse ou divulgasse escritos do mesmo género (libella famosa4093),
bem como o que persuadisse ou mandasse alguém fazer isso4094.
§ 2328. A injúria exigia a intenção de difamar (animus iniuriandi), que se presumia se as
palavras, em si mesmas, fossem injuriosas). Por isso, a actio iniuriarum não se dava contra
incapazes de dolo4095, como o furioso ou o impúbere. Se aquilo que se dizia era verdade e
fosse dito, não com intenção de injuriar, mas para se defender em juízo, não havia crime;
mas se a acusação não fosse verdade ou não houvesse necessidade de invocar esses
factos desabonatatórios em juízo, havia responsabilidade criminal4096. Proferida no calor da
ira, a difamação não deixava de ser punível, mas deveria sê-lo mais levemente. Já se fosse
provocada por palavras ou atos injuriosos do ofendido, não era crime4097.
§ 2329. A actio iniuriarum competia ao injuriado, ao seu paterfamilias, ao seu patrono ou
ao seu dono4098, ao marido4099, ao herdeiro (por injúrias ao cadáver), ao prelado (por injúria
feita a um monge, já que este carecia de capacidade processual ativa)4100.
§ 2330. As injúrias eram punidas com pena arbitrária, considerados os fatos, o que se
disse, o lugar e as pessoas do ofensor e do ofendido4101. No direito comum, existia a regra
de que, nos libelos famosos, o ofensor devia ser punido com a pena correspondente ao
crime de que se acusava injustamente4102. Como ação crime, a ação de injúrias caducava se
não fosse intentada no prazo de um ano, pois se presumia que o transcurso deste tempo
equivalia ao perdão. Mas, como ação civil, era uma ação perpétua4103.
§ 2331. Em Portugal, a ação de injúrias era primariamente uma ação civil, tendendo à
indemnização do dano4104.

4092 Exceções Ord. fil., 5,42 a 50; 5, 84.


4093 Cartas difamatórias, v. Ord. fil.,5,84.
4094 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Iniuria”, n. 7 e 9.
4095 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Iniuria”, n. 4 e 5.
4096 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Iniuria”, n. 11.

4097 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Iniuria”, n. 14 e 15.

4098 Só no caso de injúria atroz ou quando a ofensa ao escravo ofendesse também o dono.
4099 Porém, a mulher não podia tirar desforço judicial de injúrias feitas ao marido.
4100 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Iniuria”, n. 6. As injúrias verbais requeriam

acusação de parte (v. Ord. fil.,5,117), Ibid., v. “Iniuria”, n. 7.


4101 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Iniuria”, n. 16.

4102 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Iniuria”, n. 9.

4103 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Iniuria”, n. 20.

4104 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 71, n. 11.

652
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
8.2.4 Crimes contra as pessoas - o corpo.
8.2.4.1 Homicídio.
§ 2332. O homicídio era definido como a destruição do corpo de um homem vivo,
causada por outro4105.
§ 2333. Esta tipificação básica era estendida ou restringida por circunstâncias
suplementares. Algumas dessas circunstâncias afastavam a criminalização, outras
agravavam-na4106.
§ 2334. Entre as circunstâncias que permitiam que se desse a morte a outrem estava a
defesa legítima. Podia matar aquele que o fazia para defender a vida, no caso de ela estar
em perigo atual e iminente, e não apenas por causa de ameaças4107. Matar para defender
bens próprios não era considerada legítimo, a não ser no caso de roubo noturno4108. Porém,
alguma doutrina alargava mais a legitimidade da defesa, opinando que se podia matar para
defender os bens, a vida do próximo ou a honra e pudícia das mulheres4109. A invocação da
legitima defesa pelo autor justificava a morte do agressor, desde que a defesa não fosse
excessiva4110. A provocação equivalia, até certo ponto, à legítima defesa, atenuando a
pena4111.
§ 2335. Também o adúltero podia ser morto pelo marido, se fosse encontrado em
adultério em casa do marido e se fosse pessoa vil4112. O mesmo podia fazer o pai da esposa,
se encontrasse os adúlteros em sua casa ou na do genro, desde que matasse também a
filha4113. Neste caso, o homicida nem sequer incorria em excomunhão. Segundo António
Cardoso do Amaral, o direito português ainda era mais permissivo, pois se bastava com a
prova de que houvesse adultério, para que o marido pudesse matar os adúlteros4114.
§ 2336. O conceito de homicídio era estendido a outras situações que não a morte de
homem.

4105 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Homicidium”, n. 1.


4106 Sobre o tema, v. Ord. fil.,5,35, “Dos que matam ou ferem, ou tiram com arcabuz ou besta” e
Ord. fil.,5,35,6, respetivo comentário de Manuel Barbosa, Remissiones […], cit; António Cardoso do
Amaral, Liber [...], cit., v. “Homicidium”. Fontes romanas: 48.8. Ad legem Corneliam de siccariis et
veneficis; 48.9. De lege Pompeia de parricidiis.
4107 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Homicidium”, ns. 8 e 9.

4108 O clérigo, porém, nem neste caso podia matar para defender bens temporais António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Homicidium”, ns. 7 e 8.


4109 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., ad Ord. fil.,5,35,pr., ns. 15 a 17.

4110 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., ad Ord. fil.,5,35,pr., n. 19 ("salvo se nelle excedeu

a temperança", no modo, no tempo e na causa). O que fosse a defesa “temperada” dava lugar a uma
larga casuística (ibid., ns. 20 ss.).
4111 Era o caso daquele que matasse por ter sido chamado de traidor, judeu ou cornudo, v..

Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., ad Ord. fil.,5,35,pr., n. 11.


4112 Incluindo se fosse clérigo ou magistrado. Mas se fosse nobre e o marido vil, já não podia ser

morto, sendo, todavia, o assassino punido com uma pena mais branda, António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., v. “Homicidium”, n. 10.
4113 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Homicidium”, n. 10.

4114 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Homicidium”, n. 10; Manuel Barbosa,

Remissiones […], cit., ad Ord. fil., 5,38.

653
Crimes e penas.
§ 2337. Assim, era homicida aquele que causasse aborto ou desse poção abortiva a
mulher prenha, depois de o feto ter alma (animatus esse), o que acontecia nos machos
depois de 40 dias a partir da conceção e nas fêmeas após 80 dias. Antes disso, o aborto era
punido mais levemente, com pena arbitrária4115.
§ 2338. A venda de veneno também era considerada como homicídio, e a morte pela
administração de veneno como homicídio e injúria atroz4116. O mesmo aleive que a morte por
envenenamento tinha a morte por arremeço de seta ou disparo de bala, a tal ponto que já
era punido como homicida, embora com pena arbitrária, o que perseguisse alguém com
armas deste tipo, independentemente de consumar o crime4117.
§ 2339. Equivalia ainda ao homicídio a produção de feridas de que o ofendido, embora
tivesse sobrevivido, nunca tivesse convalescido, embora se levassem em consideração
causas posteriores – doença, descuido ou imperícia do médico no tratamento das feridas4118.
§ 2340. Mais grave do que o homicídio era o assassínio, tipificado à parte4119. O
assassínio era o homicídio praticado (por infiéis, diz António Cardoso do Amaral) a troco de
dinheiro ou outra recompensa. Neste caso, eram punidos os assassinos, os mandantes e os
cúmplices, quer se tivesse seguido a morte ou não4120. A qualificação dos assassinos como
infiéis fazia com que eles fossem considerados como fora de lei (sacer), podendo ser mortos
ou desapropriados dos seus bens por qualquer pessoa, nem sequer podendo recorrer à
imunidade da Igreja4121. A pena era a capital4122, mesmo que a morte não se seguisse.
Esta atrocidade do assassínio justificava ainda que bastasse uma prova apenas
provável4123.
§ 2341. O homicídio voluntário requeria dolo (ou seja, vontade deliberada). Existiam
ainda o homicídio por casualidade (não voluntário), o que ocorria para além da vontade do
agente (ou preter-intencional)4124 e o necessário, ou seja, o que se justificava por o homicida
ter tido a necessidade de matar o ofendido (legítima defesa)4125. Neste último caso, era

4115 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Homicidium”, n. 22. Ministrar poção para

causar a esterilidade era punido com degredo, ibid.,


4116 Cf. v. Ord. fil.,5,35,2; 5,92; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Homicidium”, n.

26; Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord. fil., 5,35,2.


4117 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Homicidium”, n. 27.

4118 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Homicidium”, n. 18; Manuel Barbosa,

Remissiones [...], cit., ad Ord. fil., 5,35, n. 5.


4119 V. Ord. fil.., 5,35,3.

4120 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Assassinium”, ns. 1 e 2.
4121 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Assassinium”, ns. 3 e 4. O clérigo assassino
ficava sujeito a ambos os foros, ibid., n. 9.
4122 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Assassinium”, ns. 5 e 6.

4123 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Assassinium”, n. 8.


4124 Ou seja, caso a morte não tivesse sido querida, resultando porém dos ferimentos. Em
contrapartida, se a morte tivesse sido querida, mas não tivesse sobrevindo, o autor era punido por
injúrias, devendo indemnizar o ofendido dos dias de trabalho que este perdeu por causa dos
ferimentos, bem como das despesas de tratamento, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Homicidium”, n. 20.
4125 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Assassinium”, ns. 4, 5 e 6.

654
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
discutido quando é que essa necessidade ocorria, nomeadamente, se era necessária a
defesa quando o agente podia ter evitado o crime, fugindo. A doutrina entendia que a
possibilidade de fuga só era relevante quando ela pudesse ter lugar sem quebra do decoro,
pois a quebra da honra equivalia à perda da vida4126. Assim, no caso de militares e pessoas
nobres, para quem a fuga seria indecorosa, existiria sempre legítima defesa4127.
§ 2342. A exigência de dolo fazia com que os homicídios perpetrados por menores na
infância (v. cap. 3.1.9) ou por loucos furiosos (v. cap. 3.1.10) não fossem punido4128. Em
alguns casos, podiam ser punidos homicídios não intencionais: o pai respondia pela morte do
filho devida a abandono recusa de alimentos4129; aquele que levava a cabo um ato ilícito ou
que não agisse com a diligência necessária respondia pelo homicídio casual4130; quem
montasse um cavalo buccadurus (bravo) e matasse alguém respondia pelo acidente4131; o
médico que causou a morte do doente por negligencia ou imperícia4132.
§ 2343. Se vários tivessem causados feridas, só era punido com a pena ordinária o autor
da ferida mortal, sendo os outros penas punidos com penas extraordinárias4133
§ 2344. A doutrina considerava que o homicídio podia ser cometido por ação (facto),
aconselhamento (consilio) ou ordem (mandato). O incitamento genérico ao homicídio era
punido, embora com uma pena arbitrária mais branda4134.
§ 2345. No homicídio, a tentativa (conatus), deduzida de factos externos e não apenas
de uma presumida intenção interior, era punida, embora não com a pena ordinária, de
acordo com a regra dolus pro facto accipitur (cf. D.,48,7,pr.). Há autores, no entanto, que
defendem a punição da tentativa com a pena ordinária pela natureza atroz do crime, que
autorizava a punição com a pena ordinária desde que a intenção pudesse ser deduzida de
atos exteriores4135.
§ 2346. Por direito civil, a pena do homicídio era a morte, por decapitação (para os
nobres) ou enforcamento (para plebeus), acompanhada de confisco, se o autor não tivesse

4126 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Homicidium”, n. 5 (“periculum famae

aequiparetur periculum vitae”).


4127 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord. fil., 5,35,pr., n. 14.

4128 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Homicidium”, n. 31; sobre o bêbado, Manuel

Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord. fil., 5,35,pr., ns. 1 ss. (aqui, também, referências sobre a
punição das pessoas que tivessem prestado serviços à república ou dos especialistas insignes numa
arte).
4129 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Homicidium”, n. 17.

4130 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Homicidium”, n. 11.
4131 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Homicidium”, n. 13, mas não já o que fazia
corridas a cavalo num lugar em que isso era habitual e matasse outro que se tivesse metido à frente,
ibid., n. 13 (“nulla culpa, nulla poena”).
4132 Mas não o era com a pena ordinária, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.

“Homicidium”, n. 19; Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord. fil., 5,35, n. 17.
4133 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Homicidium” 19. Se não se pudesse

determinar qual a ferida fatal ou quem a infligira, eram todos punidos com pena extraordinária, ibid.;
Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord. fil., 5,35, n. 2.
4134 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Homicidium”, n. 14.

4135 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Assassinium”, n. 7.

655
Crimes e penas.
descendentes ou ascendentes até à terceira geração4136. Por direito canónico, incapacitava
para receber a ordem ou benefícios, e sujeitava a pena de prisão em mosteiro por 5 a 7 anos
(em pena perpétua, no caso de homicídio de filho ou parente chegado). Em Portugal, os
juízes eclesiásticos condenavam a degredo para África por 5 anos4137. O homicídio
involuntário era punido com pena arbitrária mais leve4138. O assassínio era ainda punido com
a excomunhão e a privação de ofício, mesmo que a morte não se seguisse4139. Além disto, o
homicídio incapacitava o homicida para suceder ao morto4140.
8.2.4.2 Ofensas corporais.
§ 2347. Salvo no que respeita ao homicídio, a tradição textual sobre os crimes contra o
corpo das pessoas provinha dos textos romanos relativos às injúrias (cf. D., 47,10). As
ofensas corporais eram, portanto, apenas uma das espécies das injúrias, pelo que para elas
valia tudo o que antes se disse sobre injúrias, quer sobre a natureza “simbólica” das ofensas,
quer sobre o carácter “privatista” da punição.
§ 2348. Pelo que toca ao primeiro ponto, é interessante destacar que a doutrina do
direito comum punia duramente condutas que, do ponto de vista da ofensa física, eram
quase irrelevantes - como as bofetadas, ou mesmo a ameaça de as dar4141. Como punia com
extrema dureza a deformação do rosto (“dar cutilada no rosto”, Ord. fil., 5,35,7), pois no rosto
do homem se refletiria a formosura de Deus.
§ 2349. Tudo isto leva a uma conclusão mais geral. O corpo, durante todo o período do
direito comum, foi considerado como um apêndice e suporte da honra. Por isso, as ofensas
infligidas ao corpo eram apenas encaradas - salvo nos casos extremos - como atentados à
consideração social devida. Daí que as consequências físicas das feridas não fossem, em
princípio, consideradas para a fixação da indemnização4142; como, por outro lado, à mesma
ofensa pudessem corresponder punições diferentes, considerada a qualidade das pessoas
envolvidas.
§ 2350. Pelo que respeita ao carácter privatista, o regime das ofensas não se libertou
facilmente deste traço típico do regime das injúrias. Uma lei portuguesa da segunda metade
do século XIV (cf. Ord. af, 5 32) estabeleceu uma punição “criminal” para todas as feridas

4136 A mulher, em contrapartida, conservava o dote, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.

“Homicidium”, n. 24.
4137 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Homicidium”, n. 23 e 28.

4138 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Homicidium”, n. 25.
4139 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Homicidium”, n. 29.
4140 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 36, ns. 5 a 11.

4141 Para a doutrina dominante, dar bofetadas constituía uma injúria atroz, que dava lugar a uma

pena que podia ir até à de morte, “de acordo com o estado da pessoa que comete a injúria e do da que
a recebe” (António Gomez, Opus […] super legibus Tauri [.], ad cap. 4, n. 5).
4142 A base textual era uma já citada lei do Digesto D, 9,3,7 – “cicatrix autem aut deformitas nulla

fit aestimatio quia liberum corpus nullat recipit aestimationem” (a cicatriz ou deformidade não é objeto
de avaliação pois ao corpo de um homem livre não pode dado preço). A doutrina do direito comum
introduzia uma exceção a este princípio: devia avaliar-se a cicatriz ou deformidade causada a uma
rapariga solteira, aos escravos (e aos animais), pois nestes casos a integridade física tinha um valor
económico (v. António Gomez, Opus […] super legibus Tauri [.], III, ch. 4, n. 12). No entanto, a doutrina
mais moderna (Zasius, Covarrubias, Farinaccius, Antonio Gomez) tendia a valorizar, por meio de
expedientes dogmáticos rebuscados, as consequências físicas das injúrias corporais.

656
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
dolosas; mas as Ord. af. (5,32,4) voltam ao sistema romano, que se manteve nas seguintes
(que, todavia, estabelecem sanções “criminais” para as feridas “atrozes”).
§ 2351. Os critérios de classificação das feridas são, também, interessantes, sobretudo
se confrontados com os do projeto iluminista de Código Criminal de Pascoal de Melo. Com
efeito, para a determinação da atrocidade das feridas são relevantes: a intenção do agente
(v.g., ferir a soldo, Ord. fil., 5,35,3), o local da ferida (v.g., a face, Ord. fil., 5,35,7), o lugar do
delito (v.g., o palácio real, Ord. fil., 5,39,2), a arma utilizada (v.g., as armas de arremeço, Ord.
fil., 5,35,4), a qualidade do ofendido (v.g., o pai, o oficial, o companheiro de prisão, Ord. fil.,
5,41,1; 6,25; 35,6). Em contrapartida, a gravidade física ou fisiológica das feridas não
interessava para a fixação da pena civil4143. O que confirma o que já se disse sobre a
imagem implícita do corpo na antropologia cultural medieval e moderna: os critérios da
valorização das ofensas - e, portanto, dos valores corporais atingidos - não se relacionam
com uma conceção fisiológico-funcional do corpo, mas, antes, com várias hierarquias
simbólicas sobrepostas, umas provindas dos usos culturais do corpo, outras de antigas
tradições textuais (como, v.g., a da especial punição das ofensas feitas com arma de
arremesso, que provém das Decretais, 5,15, De sagitariis).
8.2.5 Crimes contra a verdade.
§ 2352. Os crimes de falso tipificavam, desde a época romana, os atentados contra a
verdade das coisas, cometidos intencionalmente para causar prejuízo a outrem. Esta ideia
base mantém-se na época moderna. António Gomez define o crime de falsidade como
“delictum publicum, quod committitur quando quis sciente et dolose mutat substantiam
veritatis in praeiudicium alterius”4144.
§ 2353. Tratava-se, na conceção da época, de um crime gravíssimo. Isto compreende-
se bem a partir de duas considerações.
§ 2354. A primeira é a de que a sociedade medieval e moderna não dispunha de meios
muito eficientes de garantir a autenticidade de certas coisas em que, em contrapartida, a
ordem social repousava fortemente. A falsificação de documentos era fácil, mas a sociedade
estava assente na fiabilidade deles. O estado das pessoas não era objeto de registos
públicos, mas a sociedade assentava na divisão das pessoas em estados. A própria
identidade das pessoas estava apenas baseada na afirmação do próprio e na sua
credibilidade social. As moedas podiam ser facilmente falsificadas, no metal que continham
ou no seu peso. Mas a economia estava cada vez mais dependente da mediação de uma

4143 Na doutrina do direito comum, encontravam-se referências à vulneris magnitudo, como


critério de agravamento da injuria, na esteira de D, 47,10,8 (“Vulneris magnitudo atrocitatem facit, &
nonunquam locus vulneris, veluti oculo percusso” [a atrocidade depende do tamanho da ferida e muitas
vezes do seu sítio, como no caso de se bater num olho]), mas recebe muito menos atenção do que os
elementos simbólicos, enumerados logo no texto seguinte do Digesto (D.47,10,9), tanto mais que o já
citado D.9,3,7 expressamente excluía a avaliação pecuniária da gravidade da ferida. Note-se, porém,
que António Cardoso do Amaral afirma que aquele que, numa tentativa de homicídio, produziu feridas
que causaram doença que manteve o ofendido de cama e o impediram de trabalhar, deve pagar os
dias que o lesado deixou de ganhar, bem como as despesas médicas, António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., v. “Homicidium”, n. 20.
4144 Cf. Antonio Gomez, Opus […] ad leges Tauri […], cit., ad lega. 83 finalem, p. 337. As

principais fontes são D.48,10,3, que contempla a falsificação de testamento, de documentos, de


moeda, o uso de nome falso, a venda da justiça, a venda dupla da mesma coisa, o parto suposto, a
redação de documentos que não correspondem à vontade das partes. Cf., ainda, Partidas, VIl,7.

657
Crimes e penas.
moeda com valor garantido.
§ 2355. A segunda consideração é acerca do valor que as aparências ganham numa
sociedade, como esta, desprovida de processos muito eficientes de averiguar e garantir a
natureza das coisas. Nomeadamente, faltavam registos públicos a que se pudesse recorrer
com facilidade. Nesta situação, tudo o que se sabia acerca das pessoas, das situações e das
coisas decorria de aparência sociais compartilhadas. Daí a importância de situações de facto
que fossem aceites pelo consenso de todos. Era por isso que o facto material da posse
pacífica e pública constituía a forma excelente de legitimar situações como a titularidade de
uma coisa (“posse”) ou de um estatuto social (“posse de estado”). Isto era consistente com
uma imagem então corrente que identificava a aparência com a essência, a forma com a
matéria, a tradição com a natureza, o significante com o significado, o nome com a coisa ou
com a pessoa. A verdade – ou seja, a correspondência entre o que as coisas pareciam ser e
aquilo que elas eram – tinha, assim, uma marca ontológica; tinha a ver com o modo como o
mundo era. Para além de ser um fator central da ordem estabelecida.
§ 2356. Atentar contra a verdade era, por isso, atentar contra a ordem do mundo e
contra a ligação, que se cria ontológica, entre o parecer e o ser. Ou seja,, tratava-se de um
crime muito gravede, equiparável à quebra da fé, à impiedade. Vomo ofensa feita a Deus –
antes de ofender a confiança dos outros homens -, devia ser punido com rigor equiparado .
4145

Tanto mais que a fiabilidade nesses sinais que representavam as coisas (os documentos, as
moedas) estava protegida por símbolos da divindade neles inscritos, como a cruz que
figurava nas moedas ou com que se subscreviam ou se dava fé pública aos documentos.
Tratava-se de um crime público, pois ofendia a qualquer um e, por isso, qualquer um podia
denunciá-lo ou acusar, independentemente de ter sofrido um prejuízo específico com ele .
4146

O dano, aqui, era essa ofensa grave à verdade que distinguia o crime de falso da simples
mentira ou fraude que apenas ofendesse interesses particulares, e cuja reparação podia ser
efetuada por uma indemnização, pedida por uma ação civil de danos. Pelo contrário, o crime
de falso era um crime público
4147

§ 2357. A principal fonte era o titulo D., 48,10, de lege Cornelia de falsis et de senato
consulto Liboniano, fonte da maior parte da doutrina e legislação medieval e moderna sobre
o tema. A Novela 73, uma constituição de Justiniano de 538, ocupava-se também da
falsidade, mas referindo-se sobretudo à falsificação de documentos . As Partidas (VII,7)
4148

4145 Morte pelo fogo, infâmia (cf. o nobre perde a nobreza pelo crime de falsidade, Tomé Valasco,
Allegationes […], all 13, n. 33). A perda da nobreza tinha uma natureza espelhada: como a honra (honor, honestas)
era o conhecimento e amor da ordem do mundo, quem atentava contra a verdade mostrava não conhecer nem
amar essa ordem.
4146 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Falsarius”, n. 1.
4147 Como era um crime, o falso exigia dolo (cf. Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., ad 5,54,
ad, pr, ns. 3 e 4). À medida que esta especificidade criminal se for esbatendo, o falso começa a ser
aproximado de outras formas de mentira ou fraude, que apenas causam prejuízo a outrem, como o
estelionato, i.e., a alteração ou supressão da verdade em fraude de outrem; cf. a criminalização
genérica em Ord. fil.,5,65, Dos bulrões e inlicitadores, e dos que se levantam com fazenda alheia”,
punidos com a reparação do dano, mais um terço de pena, degredo ou poena arbitrária, excluindo a
morte; cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris criminalis, cit., 5, § 1, aproximando o estelionato do crime
de falso.
4148 Nov. 73: “De instrumentorum cautela et fide, et primum de deposito et mutuo et aliis

documentis private quidem scriptis habentibus autem testes, et de non habentibus testes, et de

658
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
seguiam de perto a casuística e tipificação que dominava o titulo do Digesto, apesar de
bastante mais libertas da temática da falsificação do testamento que dominava esse título.
As Ord. fil. dedicavam aos crimes de falso os tits. 52 a 58..
8.2.5.1 Falsificação de cartas do papa, do imperador ou do rei.
§ 2358. O subtipo mais grave destes crimes de falso era o da falsificação de cartas do
papa e do imperador, a que se equiparava o rei. Por direito comum, quem falsificasse estes
documentos – ou quebrasse os selos, ou os rasurasse de modo a que afetasse a sua parte
substancial – ficava excomungado e era punido de pena arbitrária, que em regra era, sendo
homem livre, o degredo (deportatio) e o confisco, desde que não houvesse ascendentes ou
descendentes até ao terceiro grau; tratando-se de escravo, a morte . Se fosse clérigo,
4149

perdia o ofício ou benefício, bem como o estatuto eclesiástico, sendo entregue aos tribunais
seculares para ser punido como leigo . Estas penas estavam também contidas na Bula da
4150

Ceia . As Ord. fil. adotavam basicamente o regime de direito comum (cf. Ord. fil.,5,52;
4151

5,58).
§ 2359. A falsificação das cartas de juízes dos tribunais superiores ou mesmo de juízes
inferiores era equiparada à anterior, mas podia punir-se com pena arbitrária . A falsificação
4152

por clérigo de cartas de juiz apostólico delegado ou do bispo era punida pelo direito comum
com a perda das ordens, ofícios e benefícios e prisão em mosteiro . Quando falsificasse
4153

carta ou selo do imperador ou rei, perdia as ordens, era marcado com ferrete e desterrado
para fora do episcopado .
4154

§ 2360. O uso ou apresentação de documentos públicos falsos eram punidos com a


perda do ofício ou benefício, embora quem os tivesse apresentado não os tivesse falsificado.
O que os invocasse apenas se livraria se denunciasse o falsário ou o citasse para que
confessasse a falsificação. A simples posse de documentos públicos falsos não era crime .
4155

Saber se era necessária a consciência, por parte do apresentante, de que os documentos


eram falsos era questão discutida. A generalidade exigia a consciência disso e mesmo que a
ciência da falsidade fosse provada com claridade meridiana, não bastando indícios nem uma
“presunção violenta”, que apenas seria aceitável nas causas civis . Alguma doutrina,
4156

porém, defendia que a alegação de que o apresentador não sabia que os documentos eram

instrumentis publice confectis, et de collationibus manus propriae scripturae, et de expositis


instrumentis ab illitteratis aut paucas litteras scientibus, et de ex non scripto contractibus, et de
contractibus usque ad unam auri libram, et de contractibus qui in auris fiunt, et ut in documentis et
contractibus futuris locum habeat lex”.
4149 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Falsarius”, n., 2 e 6.

4150 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Falsarius”, n. 3 e 4.


4151 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Falsarius”, n. 13.
4152 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Falsarius”, n. 4 e 6. V. Ord. fil.,5,52.

4153 Esta pena de prisão em mosteiro estaria a cair em desuso, v. António Cardoso do Amaral,

Liber [...], cit., v. “Falsarius”, n. 9 e 10. O que falsificasse cartas de cabido era suspenso do ofício ou
benefício até que merecesse perdão, ibid., n. 11.
4154 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Falsarius”, n. 7

4155 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Falsarius”, n. 12.

4156 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Falsarius”, n. 14. Cf. Manuel Barbosa,

Remissiones […], cit., ad 5,53; Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri. ad lega. 83, n. 6.

659
Crimes e penas.
falsos não lhe aproveitava, pois teria o dever de as examinar . O documento não valia, mas
4157

fazia fé contra quem o tinha apresentado .


4158

§ 2361. Os documentos podiam também ser falsificados por quem legalmente os


confecionava, dando-lhe conteúdos falsos. Isto não se presumia; antes, perante um
conteúdo que não correspondia à verdade, se presumia que se tratara de erro do escrivão ou
notário4159. Mas, se se provasse a intenção de falsificar, o ato era punido, com a morte e
confisco (Ord. fil.,5,53,1)4160. O mesmo valia para o mandante e para as testemunhas. Além
disso, o apresentante do documento perdia a causa4161. As Ord. fil. não previam, em
especial, a falsificação (ou descaminho) de testamento, pelo que este crime era punido com
pena arbitrária.
8.2.5.2 O perjúrio ou falso testemunho.
§ 2362. O perjúrio era a violação de juramento (“aquele que voluntariamente viola
juramento; mentira produzida contra juramento)4162. Pelo direito civil, produzia infâmia (C.,
2,4,41; D., 3,2,21) e era castigado com a flagelação (D., 12,2,13,6). No direito português, a
punição apareceu com uma lei de 11.1.1302 (cf. Ord. af. 5,57,1 e 2), em que se punia o falso
testemunho com a decepação de pés e mãos. D. Afonso V, considerando estas penas
excessivas, estabeleceu os açoites e o corte da língua (“porque pecam com ela”, ib., n. 4).
Nas Ordenações seguintes (Ord. man, 5,8; Ord. fil., 5,54), a aproximação do perjúrio dos
crimes religiosos mantém-se. Mas começam a notar-se sinais de laicização, quando se
multiplicam as ligações do perjúrio a outros crimes de falso. Assim, a doutrina começou a
entender que ele podia ser cometido mesmo por pessoas não ajuramentadas4163.
§ 2363. Nas Ordenações filipinas, o falso testemunho que tivesse levado à condenação
à morte de um inocente era punido com a pena capital; isto era a aplicação de uma ideia
mais geral de que a pena devia ser a mesma em que incorria o réu . Em outras
4164

circunstâncias, a pena era arbitrária, mas as Ord. fil. fixavam-na em degredo por toda a vida
e confisco, se não houvesse ascendentes ou descendentes (Ord. fil.,5,54,1; v. também Ord.

4157 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Falsarius”, n., ibid..
4158 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., ad 5,54, tit., n. 6.
4159 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., ad 5,5,3, ad tit., n. 2 a 5.

4160 Se o objeto da escritura valesse mais de um marco de prata; se valesse menos, a pena seria

arbitrária (Ord. fil.,5,53,1). Por direito comum, a pena era, segundo alguns, corte da mão direita, perda
de ofício e infâmia, Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri, ad lega. 83, n. 6. O marco era uma
unidade de medida de massa, que correspondia a 1/2 arrátel (= 229.5 / 233,856 gramas); o arrátel
correspondia à libra, lira, arrátel. O valor real do arrátel flutuou durante a idade média, até que foi fixado
por D. Manuel em uma libra (libra ibérica). A libra tinha 20 soldos ou dinheiros.
4161 Ord. fil.,5,54; Manuel Mendes de Castro, Practica […], liv. 3, cap. 19, § 3, n. 37.

4162 Por sua vez, o juramento era definido como “pedido, dirigido formalmente ou virtualmente a
Deus para que servisse como testemunha para confirmar a verdade daquilo que se afirmava ou se
prometia, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Juramentum”, n. 36 ss.; João Baptista Fragoso,
Regimen […], p. 630, n. 115.
4163 Manuel Barbosa, Remissiones […] ad. Ord. fil., 5,54, n. 7.

4164 Cf. Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri ad lega. 83, n. 7. Em geral, Pascoal de Melo,

Institutiones iuris criminalis […], cit., 2, 18-19

660
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
fil., 3,60,5 ). No caso de testemunho falso em causa de adultério, discutia-se se a pena
4165

devia ser a de morte, por ser essa a punição que o marido normalmente aplicava à mulher.
Porém, alguma doutrina considerava que a pena devia ser antes arbitrária, pois também o
marido punia a mulher segundo o seu arbítrio . Nas causas civis, a pena do falso
4166

testemunho era a indemnização do prejuízo, acrescida de pena arbitrária . Para além


4167

disso, o testemunho declarado falso não valia em juízo .


4168

§ 2364. Por direito estrito, o falso testemunho não abrangia o das mulheres, dos rústico
e dos idiotas , por supor um discernimento para distinguir a verdade do erro que faltaria a
4169

estas pessoas. O falso testemunho não podia ser perdoado nem pela parte nem pelo rei (v.
Ord. fil.,5,54,2)
8.2.5.3 Falsificação de moeda.
§ 2365. A falsificação de moeda podia ser de três tipos: cunhagem ilegal, falsificação da
liga metálica ou cerceamento das moedas .
4170

§ 2366. A cunhagem ilegal era a feita por qualquer pessoa que não tivesse esse direito
que, por direito comum, era um direito real dos maiores (regalia major), inalienável da pessoa
do rei ou que apenas se podia adquirir por concessão por ou prescrição imemorial. Daí que a
falsificação de moeda constituísse uma espécie da lesa-majestade . De mais a mais, em
4171

qualquer das suas formas, implicava a profanação de símbolos divinos ou régios cunhados
nas moedas (cruz, efígie ou escudo de armas do rei). A pena para qualquer dos crimes era,
por direito comum, a mesma: pena capital , confisco, perda da casa em que se tivesse feito
4172

a falsificação. Punia-se igualmente a falsificação de moeda de entidade inferior ao rei, que


tivesse direito de cunhagem .
4173

4165 E respetivos comentários de Manuel Barbosa, Remissiones […], cit..


4166 Cf. Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri, ad lega. 83, n. 9.
4167 Cf. Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri. ad lega. 83, n. 10; hoje, pena arbitraria, ibid., ad
lega. 83, n. 13.
4168 A este propósito António Gomez narra um litígio que teve em Salamanca com um colega

(Gabriel de Velasco), a propósito do concurso para uma cátedra, decidido por votação de um grupo de
1000 colegas e alunos dos concorrentes. Um deles terá declarado falsamente que fora aluno de
António Gomez, sendo contado na eleição o seu voto contra este. Mais tarde, tendo sido condenado à
morte por outra razão, confessa o falso testemunho, ao passar pela casa de Gomez, no seu caminho
para a forca.
4169 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., ad 5,54, in pr., n. 1; nem o do homem probo, pois

se presumia ser antes um erro do depoente.


4170 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Falsarius”, 5; Antonio Gomez, Opus [...] ad

leges Tauri, ad lega. 83, n. 12.


4171 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Falsarius”, ns. 16 e 17.

4172 No tempo dos romanos, sendo o falsário um homem livre, era condenado às feras (ad

bestias); sendo escravo, à morte. Com o desaparecimento dos espetáculos circenses, a condenação
às feras fora substituída pela condenação às galés, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Falsarius”, n. 19; Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri, ad l. 83, ns. 3 e 4. Em França, o que
falsificasse moeda régia era morto em água a ferver ou pelo fogo, António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., v. “Falsarius”, n. 18.
4173 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Falsarius”, n. 17; a casa onde se fizesse

661
Crimes e penas.
§ 2367. O cerceamento de moeda tinha as mesmas penas, por direito comum. Mas, as
Ord. fil. estabeleciam a pena de morte para quem cerceasse moeda num valor superior a
1000 reis/maravedis punido com a morte; em quantia menor, seria deportado ,
4174

§ 2368. Passar moeda falsa ou adulterada cientemente punia-se com a pena da Lex
cornelia de falsis, que era o degredo (deportatio) e o confisco de todos os bens ; a mesma
4175

pena se usava em Espanha . O clérigo perdia as ordens, ofícios ou benefícios e era


4176

condenado a cárcere perpétuo em mosteiro (pois a pena de morte para civis equivalia à
prisão perpétua nos eclesiásticos). Na prática portuguesa, o delito era punido com a morte,
sendo o réu um leigo ou, sendo eclesiástico, com degredo para Africa . O reu livrava-se,
4177

denunciando o falsificador .
4178

8.2.5.4 Falsificação de pesos e medidas.


§ 2369. A falsificação de medidas ou de pesos, além de constituir um pecado mortal e
obrigar à indemnização dos danos causados pela fraude , era punida com pena arbitrária
4179

pelo direito comum. As Ord. fil. estabeleciam a condenação no duplo do dano e o degredo
para as ilhas. O uso de medidas falsificadas (ou não contrastadas) estava previsto nas Ord.
fil.,5,58, sendo punido com a morte, se o prejuízo fosse superior a 1000 rs. e, sendo menor,
com degredo perpétuo para o Brasil), a mesma pena do furto.
8.2.5.5 Simulação ou ocultação de partos.
§ 2370. A simulação de partos ou a ocultação da gravidez e do parto, bem como a
afirmação pela mãe de que o marido não era o pai do seu filho constituíam os
comportamentos que integravam a noção de “parto suposto”, prevista em C.,9,22 Lex
Cornelia de falsis, 1, e em Ord. fil., 5,55. Por direito comum, a pena era a de deportação, no
caso de mulher livre, ou a morte, caso de escrava . Pelo direito português, o parto suposto
4180

era punido com o degredo perpétuo para o Brasil .


4181

8.2.5.6 Uso de nomes falsos, estatutos jurídicos, brasões, trajos estatutários,


falsos.
§ 2371. Todos estes comportamentos, m que se usava um nome ou identificativo falso
para enganar ou prejudicar pessoas , configuravam a mesma alteração da ordem do
4182

moeda falsa era confiscada, ainda que fosse de terceiro, a menos que este o ignorasse ou fosse viúva
ou menor, ibid.,
4174 V. Ord. fil.,5,12,3 e 4. Os que desfizessem (fundissem) moeda perdiam metade da soma e

eram degredados por 10 anos para Africa, Ord. fil.,5,12,5). Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., v. “Falsarius”, n. 19.
4175 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Falsarius”, n. 20.

4176 Cf. Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri […], ad lega. 83, n. 5.
4177 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Falsarius”, n. 21.
4178 Cf. Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri […], ad lega. 83, n. 5,

4179 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Falsarius”, n. 22.
4180 Cf. Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri […], ad lega. 83, n. 13.
4181 V. Ord. fil.,5,55.

4182 Cf. Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri […]. ad lega. 83, n. 11.

662
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
mundo, no que respeita à identidade e estatuto das pessoas. A simulação do nome e do
4183

estado – incluindo o uso de brasões ou de títulos falsos, o envergar de trajos que


4184

indicassem um estado (como o clerical, o de cavaleiro de ordens militares, o de mulher )


4185

criavam expetativas sociais falsas, mas, sobretudo, baralhavam as hierarquias naturais entre
as pessoas. O nome também podia ser alterado apenas para iludir a responsabilidade
contratual, como quando se usavam nomes falsos nos contratos . Mas este era o tipo de
4186

comportamento menos caraterístico do crime de falso.


§ 2372. A pena era arbitrária, para poder cobrir um conjunto de situações muito variadas
8.2.5.7 Adulteração de coisas.
§ 2373. As mesmas penas da falsificação de medidas eram aplicadas aos que
corrompessem alimentos – deitando água no vinho, vinho novo no vinho velho, água ou terra
nos cereais – ou que enganassem na sua qualidade – v.g., pondo as maçãs maiores no cimo
do cesto - -, falsificassem remédios . Algo estruturalmente semelhante era engastar
4187 4188

pedras falsas numa joia (v. Ord. fil.,5,56) ou ainda mudar as extremas dos prédios .
4189

§ 2374. A descrição falsa de uma coisa não configurava, em si mesma, um crime de


falso, pois não modificava a natureza dessa coisa .
4190

8.2.5.8 A extensão do conceito de falso. O estelionato.


§ 2375. No séc. XVIII, o conceito de crime de falso tende a alargar-se a todos os casos
de alteração ou supressão da verdade levada a cabo com intenção de prejudicar outrem. A
intenção de prejudicar outro sobreleva sobre a intenção de alterar aspetos fundamentais da
ordem do mundo. Isto permitir aproximar do antigo crime de falso outras situações em que
alterando ou suprimindo a verdade se causavam prejuízos a terceiros.
§ 2376. Deste tipo eram os comportamentos que caíam no âmbito do estelionato, uma
designação genérica para todo o tipo de fraude nos negócios , prevista em Ord. fil.,5,65
4191 4192

e punido com pena arbitrária. Num ambiente propício à liberdade negocial, como era já o

4183 V. Ord. fil.,5,92. A mudança de nome poda ser legal, C.,9.25 De mutatione nominis; Ord.
fil.,5,92.
4184O registo dos brasões estava a cargo do Rei de Armas Portugal, criado por D. João II.
4185V. Ord. fil.,5,35 (uso de trajos de outro sexo), Ord. fil.,5,93 (uso de trajos estatutários a que
não se tivesse direito), Ord. fil.,5,94 (não usar os sinais de mouro ou de judeu).
4186 Cf. Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri […], ad l. 83, n. 11.

4187 V. Ord. fil.,5,57 a 59.


4188 V. Ord. fil.,5,57.
4189 Cf. D., 47.21 De termino moto. A Ord. fil.,5,67 fixava a pena em dois anos de degredo para a

África.
4190 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Falsarius”, n. 23.

4191 No direito romano, o estelionato andava ligado à ideia de causar prejuízo mediante fraude.

Não era um crime público, nem dava automaticamente lugar a uma ação penal (D.47,20,2: “Poena
autem stellionatus nulla legitima est, cum nec legitimum crimen sit”); v. A. Berger, Encyclopedic Dictionary …,
cit., v. “Stellionatus”.
4192 O título é significativamente seguido pelo relativo à falência fraudulenta; v. v. Tomé Valasco,

Allegationes […], cit., all. 13, ns. 129 ss..

663
Crimes e penas.
final do séc. XVIII, a tendência foi a de restringir o âmbito deste crime, pois ele
comprometeria a liberdade negocial e o direito de propriedade .
4193

8.2.5.9 Os crimes dos oficiais.


§ 2377. Os crimes dos oficiais aproximam-se dos crimes de falso, enquanto consistiam
numa violação da função (officium) do magistrado. O conceito genérico que pode englobar
todos os crimes dos oficiais é, porventura, o de apropriação ou desvio de jurisdição (litem
sua facere). Esta expressão aparece no Corpus iuris para descrever a atuação do iudex
privado que viola intencionalmente os seus deveres de julgador (nomeadamente
desrespeitando a fórmula de julgamento dada pelo pretor ou sendo parcial) e que, com isso,
comete um delito contra as partes envolvidas no julgamento . Litem suam facere (apropriar-
4194

se da lide, do litígio) exprime essa ideia de que o magistrado que julga mal – por carecer de
jurisdição, por não seguir o processo devido, por favorecer interesses particulares ou por não
respeitar a lei – substitui à decisão justa uma decisão sua. Por isso a apropriação da lide era
uma forma de usurpação da jurisdição e, por isso, um crime.
§ 2378. Progressivamente, porém, a expressão passa a compreender também o juiz
público que, no julgamento, se afasta intencionalmente das normas processuais ou
substanciais de decidir. E, com isto, a apropriação da lide vai transitando da esfera dos
delitos meramente privados, que davam apenas origem ao dever de indemnizar, para a dos
delitos públicos, criminalizando o comportamento de um juiz que violasse a sua função de
magistrado, por dolo ou mesmo por algum grau mais forte de negligência ou imprudência.
§ 2379. Na doutrina do direito comum, esta evolução está completa, correspondendo a
expressão litem suam facere à violação por um juiz, privado ou público, do seu ofício de
julgador . Se esta violação não era intencional, mas apenas culposa (devida a negligência
4195

4193 Tal como do de açambarcamento ou outras restrições à liberdade de comerciar. Cf. Pascoal

de Melo, Institutiones iuris criminalis […], cit., 5, 6 (açambarcamento): “Com tantos impedimentos das
Ordenações citadas quase se proíbe inteiramente, ou pelo menos restringe-se para além do justo, o
negócio de géneros; por isso, essas leis mais coarctam o abastecimento e promovem a carestia que a
abundância; além disso, opõem-se à propriedade dos cidadãos e à liberdade de comércio. Se estas
duas coisas fossem pudente e devidamente harmonizadas e adequadas ao interesse público,
facilmente podíamos dispensar as leis mencionadas”.
4194 Cf. D. 5,1,15,1: “Iudex tunc litem suam facere intellegitur cum dolo malo in fraudem legis

sententiam dixerit (dolo malo autem videtur hoc facere si evidens arguatur eius gratia vel inimicitia vel
etiam sordes ut veram aestimationem litis praestare cogatur”. Cf. também Inst. Gaii, 4.52. Sobre o
tema, v. Álvaro d’Ors, “Litem suam facere”, em Studia et documenta storiae iuris, 48(1982), pp. 368-
394); Francesca Lamberti, “Riflessini in tema di ‘Litem suam Facere’”, em Labeo, 36 (1990), pp. 218-
266; Jaime Meira do Nascimento Junior, “Considerações acerca do ‘Iudex qui litem suam fecit’”, em
Revista da Faculdade de Direito USP, 96(Jan.-Dez. 2001), pp. 103-118; Matteo Giusto,” Per una storia
del litem suam facere”, Roma, Pontificia Universitas Lateranensis, 2005 (v. síntese em Matteo Giusto,
“Per una storia del litem suam facere”, em Studia et documenta storiae iuris, 71(2005) 457-476;
Riccardo Fercia, “Litem suam facere da Adriano ai Severi”, em http://dirittoestoria.it/10/Tradizione-
Romana/Fercia-Litem-suam-facere-Adriano-Severi.htm; (outra bibliografia:
http://www1.tjrs.jus.br/export/poder_judiciario/historia/memorial_do_poder_judiciario/memorial_judiciario
_gaucho/revista_justica_e_historia/issn_1677-
065x/v8n15n16/A_responsabilidade_civil_do_Juiz_no_direito_romano.pdf).
4195 Cf. Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus […], rub. 9, an. 8, n. 6; sobre o tema, Gabriele

Fornasari e Nicola Demetrio Luisi, "La corruzione: profili storici, attuali, europei e sovranazionali",
Milano, CEDAM, 2003; sobretudo, Carlo Venturini, “La corruzione: complessità dell’esperienza

664
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
ou imprudência atendível), e trazia prejuízo às partes, o juiz estava obrigado a indemnizá-las.
Se era intencional configurava um pecado e um crime e, para além desta responsabilidade
civil, dava origem a uma pena criminal.
§ 2380. Dado que o ius commune era uma ordem jurídica aberta – tanto no plano das
fontes como no da interpretação –, os juízes dispunham de uma amplitude de decisão. Uma
(relativa) certeza do direito – que, mais tarde, se obtém pela submissão dos juízes à lei –
repousava, neste período, na garantia de imparcialidade dos juízes, na observância de
critérios formais e materiais de julgamento e também na sujeição dos juízes a critérios
rigorosos quanto ao desenvolvimento do processo, quando ao respeito do direito
estabelecido e à integridade ética dos magistrados .
4196

§ 2381. Isto explica a dureza da punição do juiz – e, por extensão, do magistrado e do


oficial público – que violasse os seus deveres deontológicos, apropriando-se, em seu favor,
da autoridade e das prerrogativas de mando inerentes às suas funções.
§ 2382. A averiguação do cumprimento pelos juízes das normas de bem julgar era uma
das atribuições estabelecidas para os corregedores, nas Ordenações (Ord. fil.,1,58,5-6 e 8);
assim como era um dos aspetos de que os juízes ordinários e das terras deviam averiguar
acerca dos seus antecessores (Ord. fil.,1,65,39 a 53), ao fazer as devassas gerais no início
das suas funções.
§ 2383. A apropriação da jurisdição podia consistir em diversos tipos de
comportamentos.
8.2.5.9.1 O julgamento contra direito.
§ 2384. O julgamento contra direito era previsto nas Ordenações, nomeadamente no
que respeita à nulidade da sentença (v. Ord. fil.,3,754197; v. caps. 7.1.10 e 7.1.14). Algumas
das modalidades de incumprimento do estatuto deontológico dos juízes estavam
contempladas na lei, como a condenação numa pena diferente da prevista nas Ordenações
(v. Ord. fil., 5,136), o suborno, a concussão, a apropriação de coisas do rei pelos oficiais.
§ 2385. O julgar mal representava a corrupção do ofício do juiz público, pois o desviava
do serviço da república para o serviço dos seus interesses particulares. A função de dizer o
direito era usurpada, ao ser posta ao serviço destes interesses. E, como o juiz julgava em
nome do rei, o senhor supremo da justiça, julgar mal tornava-se numa forma de usurpação
de uma prerrogativa real, equiparável a outras formas de ofensa dos direitos do rei. Esta
aproximação da apropriação da justiça (litem suam facere) em relação aos crimes de

romanística”, pp. 5-36; e Diego Quaglione, “’Delinquens in officio’. Spunti dal diritto comune”, 27-56.
4196 Sobre a centralidade da observância das normas deontológicas dos juízes numa época de

standards jurídicos aberto e flexíveis, como no ius commune, Carlos Garriga, “La recusación judicial:
del derecho indiano al derecho mexicano, em http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/1/133/12.pdf; id, “Orden
jurídico y poder político en el antiguo régimen”, em http://www.istor.cide.edu/archivos/num_16/dossier1.pdf;
Carlos Garriga y Marta Lorente, "El juiz y la ley: la motivación de las sentencias (Castlilla, 1489 -
Espanha, 1855)”, em Anuario de la Facultad de Derecho de la Universidad Autónoma de Madrid, 1
(1997), p. 97-142 ( http://www.uam.es/otros/afduam/pdf/1/garriga_lorente.pdf). Sobre o regime disciplinar dos
magistrados no período constitucional, Maria Julia Solla Sastre, La discreta práctica de la disciplina […],
cit..
4197 “[…] E he por direito a sentença nenhuma […]quando foi dada contra direito expresso […] ou

outra coisa semelhante, que seja contra nossas Ordenações, ou contra direito expresso” (Ord. fil., 3,75,
pr. in fine).

665
Crimes e penas.
ocupação de direitos reais é feita por alguns juristas. É o caso de António Garcia Mastrillo,
que considera que, sendo a jurisdição um direito real, o seu desvio pelo oficial era
semelhante à ocupação de um direito real (regalia) incorpóreo ; do mesmo tipo, por isso,
4198

da apropriação de outros direitos régios e partilhando o regime geral da ocupação da


jurisdição real, embora com especialidades . Por isso, o oficial que contrariasse as leis e
4199

regimentos podia era objeto de sindicância. Tanto mais que, ao tomar posse dos seus
ofícios, tinham jurado guardar as leis do rei . Para além do julgamento contra direito, a
4200

usurpação do ofício de julgar podia ter lugar de várias formas; denegação da justiça, exceder
os prazos de proceder, não perseguição de crimes, etc..
§ 2386. Julgar de forma imprudente, omitindo ou seguindo de forma descuidada as
regras do saber jurídico (jurisprudência), era também uma forma de exercício ilegítimo da
jurisdição. A imprudência era considerada como próxima da intenção de julgar mal, como um
quase delito, que criava para o juiz a obrigação de indemnizar as partes : “Judicis
4201

negligentia dolus est, seu proxima dolo [...] Sed qui per dolum male judicat, litem suam
4202

facit, & ad totale partis interesse tenetur” .


4203

§ 2387. Sendo grave, a negligência equiparava-se à intenção de julgar injustamente ,


4204

ao dolo, e dava origem a pecado mortal e a crime, devendo ser incluída nos
4205

comportamentos que os magistrados encarregues de supervisionar os juízes deviam


averiguar . A sua pena, por direito comum, era a mesma pena dos que falseassem
4206

documentos .
4207

§ 2388. Já o julgamento errado por imperícia, ou falta de conhecimentos técnicos para


julgar tinha consequências menos drástica. É certo que a ignorância daqueles que deviam
saber era um pecado e que, em direito, a imperícia equivalia à culpa. Por isso, a sentença
4208

dada por um juiz ignorante obrigava à reparação civil do dano. Mas não era geralmente

4198 Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, n. 88 ss., maxime, n. 104.
4199 Uma dessas especialidades era a de que a ocupação de jurisdição devia consubstanciar-se
em mais de um ato jurisdicional e em inequívoco sinal de que o usurpador reclamava para si a
jurisdição régia (exercendo-a em nome próprio, usando sinais externos desse exercício [v.g., erigindo
forcas]), Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, ns. 94 e 95.
4200 Cf. Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, n. 111.

4201 Cf.Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus [...], cit., rub. 15, adn. 1, ns. 18, 19 e 26: refere a

constituição do código que equiparava a negligência dos juízes a usurpação da justiça (C. de pactis,
29: “Omnes itaque iudices [...] pedaneos [...] compromissarios [...] arbitros electos [...] scituros quod si
nglexerint, etiam litem suam facere intelligantur”). A negligencia seria pior do que a imperícia, porque o
negligente omitia o que devia fazer, enquanto que o ignorante apenas fazia o que ignorava; embora
houvesse culpa nos dois, a do imprudente seria maior, ibid., n. 23.
4202 Cf. Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus [...], cit., rub. 15, adn. 1, n. 20.

4203 Cf. Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus [...], cit., rub. 15, adn. 1, n..21.

4204 Cf. Siete Partidas, 3,22,24: “juzgar tuerto a sabendas”.

4205 Cf. Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus [...], cit., rub. 15, adn. 1, n. 24.
4206 Cf. Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus [...], cit., rub. 15, adn. 1, ns.26 e 33.
4207 Cf. Antonio Gomez, Opus […] ad leges Tauri […], cit., l. 83, n.10.

4208 Cf. S. Tomás, Summa […], cit., 1a.2ae, qu 76, a.2.

666
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
aceite que a mera ignorância bastasse para configurar o crime de usurpação da justiça .
4209

§ 2389. Ainda menos grave do que a imperícia era o erro involuntário de direito, por
deficiência de raciocínio ou interpretação; na opinião mais provável, nem sequer obrigava a
indemnização . A menos que o erro fosse motivado por uma atitude intelectual imprudente,
4210

como perfilhar uma opinião contrária à geralmente seguida. Na verdade, a opinião comum e
a lei constituíam os padrões comuns de julgamento, dos quais não seria sensato apartar-se.
Alguns chegavam a opinar que a sentença dada contra a opinião comum devia ser
considerada absolutamente nula, tal como o era a dada contra a lei , fazendo incorrer no
4211

crime de usurpação da justiça e no dever de indemnização da parte prejudicada . Outros,


4212

porém, eram mais comedidos, argumentando que o juiz, ao julgar, era livre e que, por isso,
podia desviar-se da opinião comum, embora apenas quando a isso obrigasse uma evidente
razoabilidade .
4213

§ 2390. Mais graves eram os casos em que o juiz (por extensão, o oficial ) violava os
4214

seus deveres funcionais para obter uma vantagem, nomeadamente de ordem económica.
Era o que se passava na prevaricação.
8.2.5.9.2 A prevaricação.
§ 2391. Em sentido genérico, a prevaricação abrangia todos os comportamentos de
todos os que se afastavam dos deveres do ofício (estalajadeiros, médicos, soldados). Em
sentido estrito, “era uma espécie de crime de falsidade, que cometem não só os acusadores,
que traindo a causa, ajudam à absolvição do réu, mas também os que de qualquer modo não
cumprem o seu dever e agem com dolo mau para favorecerem alguém, o que se pode dar
com os advogados, procuradores, juízes, etc.”, escreve Melo Freire, citando o Digesto
(D.,47,15 De praevaricatione, 1). Originalmente, a prevaricação contemplava, sobretudo, o
acusador que se conluiava com o acusado para que este fosse absolvido ou o advogado que
se conluiava com a outra parte, prejudicando o seu constituinte. O direito comum
compreendia, porém, sob esta epígrafe toda a falta aos deveres de ofício por parte de oficiais
públicos, violando os seus deveres de imparcialidade, julgando ou decidindo com a intenção
de favorecer ilegitimamente uma das partes. Nas leis, as modalidades de prevaricação
aparecem frequentemente dispersas, como violação dos deveres particulares de cada ofício.
§ 2392. Apesar das estritas normas deontológicas dos oficiais, este crime era, segundo
as fontes literárias e mesmo jurídicas, frequentíssimo. Para isso contribuía a complacência
doutrinal perante as faltas dos oficiais, categoria profissional de que estavam próximos os
autores de tratados sobre o direito que se lhes aplicava. Para nos darmos conta das

4209 Cf. Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus [...], cit., rub. 15, adn. 1, ns. 35 e 37. Em todo o
caso, o que tivesse condenado à morte por imperícia devia ser condenado, embora em pena arbitrária.
4210 Cf. Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus [...], cit., rub. 15, adn. 1, ns. 42 a 44.

4211 “Communis opinionis sequendae convenientia seu etiam obligatio urget; ut dixerint multi,

sententiam contra communem latam, pariter atque si contra legem lata foret, mullius esse momenti”,
Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus [...], cit., rub. 15, adn. 1, n. 49.
4212 Cf. Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus [...], cit., rub. 15, adn. 1, n.49.

4213 Cf. Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus [...], cit., rub. 15, adn. 1, ns. 51 a 53.

4214 Esta extensão baseia-se no facto de que o exercício do poder era considerado como

exercício da jurisdição.

667
Crimes e penas.
multiplicidade de situações em que a conduta inadequada dos oficiais era juridicamente
justificada pela doutrina basta ler o capítulo em que Antonio Garcia Mastrillo enumera as
situações em que a culpa de oficiais por erros de ofício deveria ser afastada pelos juízes
sindicantes .
4215

8.2.5.9.3 A peita ou suborno e a extorsão.


§ 2393. Mais grave do que o simples favorecimento ilegítimo era a aceitação ou extorsão
de dinheiro para julgar de certo modo (barataria) .
4216

§ 2394. O suborno (repetundarum, de repetendi, De lege Julia repetundarum ) ou


4217

extorsão de dinheiro pelos magistrados, (Ord. fil., 5,71, “Dos oficiais delRei, que recebem
serviços, ou peitas, e das partes, que lhas dão, ou prometem”) era o recebimento de
quantias dadas espontaneamente pelas partes ou exigidas, direta ou indiretamente, pelo
oficial, para ser favorável ou mais rápido no despacho . Independentemente de qualquer
4218

pacto entre o oficial e o postulante, a prestação de favores a um oficial fazia sempre correr o
risco de distorcer, pelas paixões da gratidão ou da ganância, os sentimentos de verdade e de
justiça . Os próprios advogados que pediam às partes dinheiro alegadamente para
4219

subornar os julgadores deviam ser punidos como infames . As Ordenações (Ord. fil., 5,83)
4220

também puniam os “vendedores de fumo”, ou seja, aqueles que presumiam conhecimentos


importantes junto dos quais, a troco de dádivas, poderiam intervir para obter despachos
favoráveis às partes.
§ 2395. A extorsão (ou concussão) não diferia do suborno e cabia no conceito. Na
extorsão, porém, a dádiva era exigida pelo oficial, com pedidos ou ameaças .
4221

§ 2396. A discussão doutrinal deste crime abria uma detalhada casuística sobre o que
se podia ou não receber. Uns estabeleciam como limite a dádiva de alimentos (osculenta et
poculenta) que a família do oficial pudesse consumir num dia, outros exigiam moderação na

4215 Cf. Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, ns. 2 a 7; e, sobretudo,

cap. 10. A razão desta proteção dos oficiais era a presunção da sua honestidade, a sua defesa contra
calúnias e a preservação da sua autoridade social. § 1. A sindicância era um processo de inspeção dos
juízes, a cargo de um magistrado régio. O sindicante devia inquirir de todos os comportamentos
criminosos do juiz, por obrigação de ofício ou a instância de partes (ibid., cap. 8, n. 1). No entanto, a
doutrina aconselhava o juiz sindicante a “fazer o mínimo, em relação aos oficiais inquiridos”,
nomeadamente quanto a comportamentos apenas negligentes ou de culpa leve (ibid., n. 3; mais
detalhadamente, todo o cap. 10).
4216 Cf. Gabriel Alvarez de Velasco, Judex perfectus […], rubr. 9, adn. 1 a 13 (per totam); Antonio

Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, maxime ns. 11 a 17; 35 e 36; 38 a 50.
4217 Cf. D.48,11 (D.48.11.3: “Lege Iulia repetundarum tenetur, qui, cum aliquam potestatem haberet,

pecuniam ob iudicandum vel non iudicandum decernendumve acceperit:”; 48.11.4 “Vel quo magis aut minus quid ex
officio suo faceret”), C.,9,27 e C.,7,49).
4218 Cf. Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8 53 e 54 (prometer

resultado, diligência ou rapidez).


4219 Cf. Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, n. 22 (as paixões da

gratidão fazem parecer justo o que é injusto e falso o que é verdadeiro).


4220 Cf. Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, n. 24.

4221 Cf. Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, ns. 24 a 29 (v. ainda

ns. 33 e 52).

668
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
aceitação dos presentes, de modo que não parecesse que o oficial usava o seu ofício como
um lugar de mercado, outros aconselhavam a ponderação ("nem tudo, nem sempre, nem de
todos”) . As Ordenações estabeleciam também um critério flexível, baseado no que era
4222

uso ou não oferecer em razão da familiaridade ou da amizade (Ord. fil., 5,71, pr.).
§ 2397. Por direito comum, a pena dos oficiais que se vendessem era a mesma pena
dos que falseassem documentos . As Ordenações (Ord. fil.,5,71 ) estabeleciam as penas
4223 4224

que deviam sofrer os que recebessem ou pagassem peitas. As situações eram diversas,
variando a gravidade das penas com a qualidade dos oficiais e com a situação do corruptor.
Tratando-se de juízes, peitados por pessoas que tivessem processos ou despachos
pendentes deles, a pena era a de perda do ofício, confisco e degredo ou morte, consoante o
valor da peita. Pena em que incorriam também os corruptores (n. 1). Tratando-se de outros
oficiais que não tivessem funções de julgar, a pena era a perda de ofício e a multa de trinta
por um (n. 2). Se o que ofereceu a peita não tivesse pendente nenhum despacho perante o
oficial, ainda assim era punido com confisco, perda de ofícios ou mercês e degredo, sofrendo
o oficial uma pena de perda de ofício e multa de vinte por um (pr.) .
4225

§ 2398. Próximo da prevaricação estava o crime de âmbito, que consistia na corrupção


para obter lugares ou honras (C., 9.26. Ad legem Iuliam de ambitu) que, incidindo sobre
ofícios eclesiásticos, configurava também o crime de simonia (C.,1.3. De episcopis et clericis
et orphanotrophis et brephotrophis et xenodochis et asceteriis, Decretais liv. 5, tit. 10). O
âmbito incluía a compra de votos em eleições, como, por exemplo, nas municipais .
4226

8.2.5.9.4 O locupletamento com bens públicos.


§ 2399. Outra forma de improbidade dos oficiais era o crime de peculato, ou seja, a
apropriação de coisas (coisas ou direitos) do rei. À apropriação de coisas públicas era
assimilada a não cobrança de penas aplicadas ao fisco, a falta de registo de verbas públicas
recebidas .
4227

§ 2400. No direito romano, esta apropriação de coisas públicas, equiparadas às coisas


sagradas, era punida com a mais grave das penas, a expulsão da comunidade ou morte civil
(poena aquae et ignis interdictionem, interdição de uso da água e do fogo) . Por direito
4228

4222 Cf. Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, ns. 14 a 20.
Cf. Antonio Gomez, Opus […] ad leges Tauri, cit., l. 83, n.10.
4223

Cf. Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., ad Ord. fil., 5,71.


4224

4225 Eram ainda contempladas outras situações de possível favorecimento de oficiais;

empréstimos, compras e vendas, etc..


4226 Parecendo admitir a compra de votos, l. un de C.,4.3. De suffragio (porém, Nov. 8,124,161).

4227 Cf. Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, ns. 62 a 70.

4228 Crime de peculato: D. 48,13 Ad legem Iuliam peculatus et de sacrilegis et de residuis (“1. Lege
Iulia peculatus cavetur, ne quis ex pecunia sacra religiosa publicave auferat neve intercipiat neve in rem suam vertat
neve faciat, quo quis auferat intercipiat vel in rem suam vertat, nisi cui utique lege licebit: […] 3. Peculatus poena
aquae et ignis interdictionem, in quam hodie successit deportatio, continet”); C. 9.28. De crimine peculatos
(“Imperatores Theodosius, Arcadius, Honorius. Iudices, qui tempore administrationis publicas pecunias
subtraxerunt, lege Iulia peculatus obnoxii sunt et capitali animadversioni eos subdi iubemus: his nihilo
minus, qui ministerium eis ad hoc adhibuerunt vel qui subtracta ab his scientes susceperunt, eadem
poena percellendis”).

669
Crimes e penas.
comum, este crime era punido com degredo e confisco . À apropriação de coisas públicas
4229

estava equiparado o desleixo na sua gestão


4230

8.2.6 Crimes contra o património.


§ 2401. Também o sistema moderno dos crimes contra o património é fortemente
estruturado pela tradição textual romana.
§ 2402. No direito romano, as ofensas patrimoniais davam origem a acções civis
dirigidas à indemnização do ofendido (actio legis Aquiliae, actio furti, actio iniuriarum, que
correspondiam aos três tipos de comportamentos danosos do património de outrem), todas
elas de carácter fundamentalmente “privatista”, ou seja, dirigidas à indemnização do
ofendido.
§ 2403. As sanções “criminais” que se encontram no sistema moderno de punição
destes delitos documentam uma progressiva “publicização” do campo4231. Já desde o direito
medieval (entre nós, os forais) que se previam sanções criminais para quem causasse
intencionalmente danos patrimoniais a outrem. No caso do simples dano, a sanção penal era
excecional e reservada para comportamentos que, para além de causarem danos a
particulares, ofendiam interesses da comunidade, como pôr fogo - o que causava um risco
para todos -, cortar árvores de fruto (mas não outras árvores), destruir hortas ou prejudicar
culturas com a passagem de gados – que afetava o abastecimento em mantimentos. Ou
seja, a criminalização do dano é excecional4232.
§ 2404. O furto libertou-se mais cedo deste registo privatista. Daí que o direito comum
medieval, em vez de considerar o furto sobretudo como um delito privado, ressarcível por
meio de uma poena (compensação do dano sofrido, por vezes agravada ao duplum ou ao
quadruplum4233), o encarasse, predominantemente, como uma ofensa à paz, cumulando a
pena civil com uma sanção criminal (pena de morte, cortamento de membro, degredo,
flagelação pública).
8.2.6.1 O dano.
§ 2405. No direito romano, o dano era a diminuição do património ou a despesa
(damnum emergens), avaliável em dinheiro. No dano cabia também a perda de um lucro que
se pudesse prever com razoabilidade (lucrum cessans); mas estas duas expressões não
existiam no vocabulário jurídico de então. Ao dano patrimonial era assimilado o prejuízo da
honra.

4229 Cf. Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, ns. 67, 71-73, 75 e 76..
4230 Cf. Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, n. 86.
4231 Esta publicização já se notava em textos romanos pós-clássicos, sobretudo para ofensas

patrimoniais violentas (roubo).


4232 Discutiu-se na Casa da Suplicação se a destruição de uma seara de trigo era punível com as

penas que a Ordenação (Ord. fil.,5,75; v. Ord. fil.,1,65,32) estabelecia para a destruição de pomares e
hortas. Julgou-se que “nam se podia estender a dano de semeada, & que só tinha lugar na perda ou
dano de pomar, ou horta, por ser ley penal, que se não estende” (Melchior Febo, Decisiones […], cit.,
Aresto 80).
4233 Como dizem as Partidas (7, 14,17): “tomar [...] la cosa furtada [...] pechar quatro tanto como

aquello que valia [...] Otrosi deven os judgadores [...] escarmentar os furtadores publicamente com
feridas de açotes”.

670
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 2406. O dano intencional4234, ilícito4235 e não consentido pelo lesado era um delito
privado, conferindo ao ofendido – mas apenas a ele4236 - uma das ações ex lege Aquilia4237.
Uma destas era a actio iniuriarum, que visava reparar as ofensas à honra. O dano devia ser
atual, mas um dano apenas virtual (damnum infectum) podia justificar a concessão ao lesado
de certas medidas cautelares para o evitar ou assegurar a indemnização (cautio damni
infecti, missio in possessionem).
§ 2407. O montante da indemnização era fixado pelo juiz, nos limites daquilo que fora
pedido pela parte injuriada. No caso de ofensas à honra, o juiz podia, no entanto, fixar
equitativamente (ex aequo et bono) penas mais graves, segundo a gravidade da injúria ou a
importância social da pessoa. Mas, ainda aqui, tratava-se da reparação do ofendido,
satisfazendo o seu desejo de vingança.
§ 2408. Tratava-se, por isso, de um delito privado, perseguível por uma ação apenas na
disponibilidade do lesado e visando satisfazer unicamente os seus interesses privados.
§ 2409. Os juristas modernos mantiveram, no fundamental, este regime. Para eles, o
dano (damnum) era também definido como uma diminuição do património ou perda de
alguma vantagem ou comodidade, a que se equiparava a privação de um lucro já garantido
(ou radicatum) 4238. O prejuízo podia relacionar-se com escravos, animais domésticos ou
mesmo bravios que costumassem voltar (abelhas, pombas, pavões) ou coisas inanimadas
que se fossem destruídas ou adulteradas4239.
§ 2410. O que procedesse licitamente não causava iniuria4240, a menos que a sua ação
visasse intencionalmente causar danos a terceiro4241 ou omitisse as cautelas adequadas a os
evitar4242. Mas era injúria não respeitar servidões negativas4243 adquiridas por terceiro ou
prejudicar uma fonte pública4244. Já o comportamento danoso ilícito originava
responsabilidade4245.
§ 2411. O patrão ou dono respondiam por danos causados por criados, escravos ou
animais seus4246. Um caso especial era o do capitão ou mestre de nave, que respondia pelos

4234 A intenção de causar danos - ou a omissão das cautelas normalmente exigidas para os evitar

- era necessária, o que excluía a indemnização por danos inevitáveis (damnum fatale).
4235 Ou seja, contra direito, causado por uma ação que o ofensor não podia juridicamente praticar.

4236 O pater tinha uma ação relativamente aos danos causados ao filho sob o seu poder paternal.

4237 Cf. I.,4,4,pr.; D.47,10; C.,9,35.

4238 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Damnum”, cit., ns. 1 e 2.
4239 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Damnum”, n. 6.
4240 “Nemo iniuria facit qui iure suo utitur” (ninguém que usa do seu direito comete um ilícito): cf.,

D.47.10, De iniuriis et famosis libellis, 13,1). Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Damnum”, n. 8; por exemplo, abrindo um poço no seu terreno (a mais de 5 pés da extrema).
4241 Por exemplo, abrir um poço em terreno seu, mas com a intenção de secar ou prejudicar um

poço do vizinho.
4242 Devia satisfazer o dano aquele que por Acão com culpa ou imperícia deu origem, direta ou

indiretamente, ao dano, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Damnum”, n. 4.


4243 Cf. v.g., altius non tollendi, de estilicídio, de vistas.

4244 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 35, ns. 4 a 9.
4245 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Damnum”, n. 3.
4246 Cf. A menos que o criado causador do dano tivesse sido avisado pelo lesado, António

671
Crimes e penas.
danos que esta causasse, ao ser levada pelas correntes ou pelos ventos4247.
§ 2412. O dano e seu montante provavam-se por juramento do prejudicado4248.
§ 2413. No direito pátrio português, os únicos casos em que os danos eram
considerados como crime eram a destruição de horta ou pomar (Ord. fil.,5,75,1), o fogo posto
(Ord. fil..,5, 86) e os danos causados por gados (Ord. fil.,5,87). Destes casos excecionais e
insuscetíveis de extensão analógica4249 emergia uma ação pública e uma pena pública
(açoites, degredo).
8.2.6.2 Furto.
§ 2414. O direito romano considerava furto a subtração de uma coisa de outrem, com a
intenção de realizar um lucro ilícito pela sua posse (furtum ipsius rei) ou pelo seu uso (furtum
usus)4250. O furto dava origem a ações civis de restituição da coisa ou de indemnização pelo
dano (condictio furtiva, reivindicatio4251) e a uma ações penal (actio furti), visando a
condenação numa pena privada, a favor do dono da coisa. Esta pena estava fixada pelo
direito pretório, inspirado em leis da fase final da República. Para o furto manifesto (ou seja,
aquele em que o ladrão era apanhado em flagrante) a pena era do quádruplo; para o não
manifesto, do duplo (Gaius, Institutiones, 3,190). Estas ações cabiam ao proprietário ou
também a quem possuísse a coisa por um título contratual (como depositário, como credor
hipotecário, como arrendatário, como usufrutuário); e dirigiam-se contra o ladrão ou contra os
seus herdeiros. Já a ação penal, que era infamante, dirigia-se apenas contra o ladrão. Ou
seja, tratava-se de delitos privados, pois mesmo a sanção penal destinava-se ao proprietário
da coisa furtada. Para além de que as ações apenas competiam ao lesado.
§ 2415. O direito romano distinguia ainda o furto violento (rapina, vi bona rapta)4252, que
considerava como uma forma agravada de furto de coisas móveis4253. Dava origem a uma
ação de vi bonorum raptorum ou a uma ação crime ex lege Julia de vi privata. Mas as penas,
que eram as do furto manifestum, também se destinavam ao ofendido4254.
§ 2416. Os juristas modernos receberam a tradição romanística do instituto4255.

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “damnum”, ns. 8 e 9.


4247 Cf. António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 296.

4248 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Damnum”, n. 7. Mas mantinha-se a

discrição do juiz no estabelecimento do montante da pena.


4249 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], cit., Aresto 80.

4250 D.47.2 De furtis, 1,3; C.,6.2 De furtis et de servo corrupto; I., 4,4.

4251 A reivindicatio era porventura mais conveniente pois não exigia a prova da coisa furtada, mas

apenas da propriedade dela.


4252 Cf. I., 4,2 de vi bonorum raptorum; D.47,8, de vi bonorum raptorum et de turba; C.9,33 de vi

bonorum raptorum.
4253 A ocupação violenta de imóveis configurava outro delito: a vis ou violência (D.47.8.2.1). No

nosso direito, a usurpação violenta era punida com a morte, açoites ou degredo, consoante o valor da
coisa e a qualidade das pessoas (Ord. fil.,5,61).
4254 Cf. Alessandro Doveri, Istituzioni di diritto romano, Firenze, 1866 (rist.), vol. 2, §§ 466-470

(furto), §§ 471-2 (rapina); Cesare Sanfilippo, Istituzioni di diritto romano, 10ª ed. 2002, Saveria Mannelli,
Rubbettino, p. 316.
4255 Tradição intermédia: Decretum, p. 2, caus. 14, qu. 5 e 6; p. 2, caus. 33, qu. 3; Decretais, tit.

De furtiis; Siete Partidas, 7,14,1. Fundamentos jurídicos e teológicos, Luís de Molina, De iustitia et de

672
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
Definiram o furto como a subtração de uma coisa alheia contra a vontade do seu dono,
deslocando-a (subtrahere) do lugar onde estava, com a intenção de usurpar o seu uso ou
posse4256.
§ 2417. Por direito comum, requeria-se a efetiva subtração da coisa, não bastando atos
preparatórios, como arrombar as portas ou cavar em terreno alheio, sem levar nada daí. Mas
o direito pátrio português criminalizava autonomamente alguns destes atos4257.
§ 2418. A subtração da coisa era o seu transporte para outro lugar. Porque os imóveis
não se podem deslocar (subtrair), não havia furto de coisas imóveis. Mas o furto podia
cometer-se nos seus frutos (árvores, lápidas, cal4258). Era a subtração que distinguia o furto
do dano: o último só implicava a corrupção da coisa; o primeiro, a sua deslocação4259.
Porém, havia comportamentos equiparados à subtração. Assim, furtava aquele que, sem
mandato ou licença do dono, vendesse coisa alheia4260; o depositário ou comodatário, tutor
ou curador, que escondesse a coisa ou que a usasse contra a vontade do dono4261; o que
subtraísse do credor coisa sua empenhada ou a vendesse a outrem4262; o que recebesse de
um depositário mais do que o que era devido4263; o que usasse para si dinheiro que lhe tinha
sido entregue para outra finalidade4264; o que encontrasse coisa de outrem e não a
entregasse (ou apregoasse)4265. O escravo que fugisse fazia furto de si mesmo4266.
§ 2419. Em contrapartida, não cometia furto aquele que recuperasse às escondidas
coisa furtada ou emprestada, desde que o comodatário já não tivesse direito a retê-la; bem
como o credor que subtraísse a coisa ao devedor desde que não houvesse outro modo de a
reaver4267. Também não furtava aquele que julgava sua a coisa4268. Também não se dava a
actio furti (não era furto) a subtração de coisa comum por um dos sócios (comproprietários)

iure […], cit., tract. 2, disp. 681 a 693.


4256 “Contrectatio fraudulenta rei alienae invito domino, animo retinendi rem furatam, usum seu

possessionem”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n. 1; “motio de loco ad locum
est substantia”, ibid., n. 2
4257 Entrar em casa fechada para roubar, Ord. fil.,5,60; arrombar portas, ainda que não se roubasse nada,
Ord. fil.,5,60,2.
4258 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n. 36.
4259 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n. 54.
4260 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n. 9.
4261 Mas não já o que se negasse a entregá-la ao dono António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit.,

v. “Furtum”, n. 14. V. Ord. fil.,5,60,8.


4262 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n. 15.

4263 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n. 17.

4264 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n. 18.

4265 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n. 38; v. Ord. fil.,5,62 (sobre a não

entrega de escravos, aves e outras coisas achadas). Não cometia furto o que que guardasse em caso
animal alheio, não sabendo quem era o dono António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n.
52; mas sim, se retivesse preso animal selvagem daqueles que voltam ao redil, ibid., n. 53.
4266 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n. 43 (v. Ord. fil., 5,62-63).

4267 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n. 10.

4268 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n. 11.

673
Crimes e penas.
ou de coisa do casal por um dos cônjuges4269. Finalmente, não cometia furto o que
subtraísse coisas a mouros, turcos ou outros inimigos da fé católica, pois estes tinham
roubado aos cristãos tudo quanto tinham; os seus bens eram, afinal, património comum dos
cristãos4270.
§ 2420. Também se requeria a intenção de furtar (animus furandi). No caso de furto
manifesto, ou em flagrante delito4271, presumia-se em absoluto essa intenção4272.
§ 2421. O furto era punido civilmente, sempre. Criminalmente, só nos casos de furto
agravado, pela violência, pela natureza da coisa roubada, pelo lugar, como se verá.
§ 2422. Do ponto de vista civil, o ladrão era obrigado a restituir a coisa furtada ou o seu
preço, se a coisa já não existisse4273. A quantidade furtada provava-se por instrumentum
damnum (documento comprovativo do dano)4274. Para além disso, o ladrão – que era
considerado como um devedor em mora – estava obrigado à restituição dos frutos da coisa e
respondia pela perda ou deterioração, ainda que por caso fortuito4275.
§ 2423. A ação de furto competia ao dono da coisa contra o ladrão. Realmente, a ação
de furto podia ser usada por aquele que tivesse o maior interesse em reavaer a coisa.
Normalmente, esse era o dono dela; mas podia ser outrem (o herdeiro, o usufrutuário)4276.
§ 2424. Quanto ao sujeito passivo das ações de furto, ele era, em princípio, o ladrão4277.
No caso da ação penal, era-o mesmo exclusivamente ele. Mas, na ação cível, também se
podia pedir a restituição ou indemnização aos patrões de navios, estalageiros ou
estabuladores, à guarda dos quais estivessem as coisas roubadas; porém, não podiam ser
perseguidos criminalmente. Em contrapartida, o ladrão não tinha ação (de reivindicação)
para recuperar de terceiro as coisas por ele furtadas4278.
§ 2425. Os encobridores de furto eram punidos com a pena de furto4279. Os recetadores
ou os que comprassem coisas verosimilmente furtadas era equiparados ao ladrão4280; mas

4269 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n. 33.
4270 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n. 48.
4271 Sobre o conceito, que era o do direito romano, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.

“Furtum”, n. 28.
4272 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n. 9.

4273 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n. 20.

4274 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n. 21.

4275 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n. 22.
4276 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n. 47.
4277 Se eram vários os ladrões, ficavam, no cível, obrigados solidariamente, sendo cada um

responsável pela indemnização de todo o furto. Mas, criminalmente, cada um era punido com a sua
pena de furto, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n. 25.
4278 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n. 23; excetua o caso do alfaiate

que emprestou as coisas que lhe tinham sido dadas para arranjar.
4279 Mas não encobria quem apenas não denunciasse. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...],

cit., v. “Furtum”, n. 44; recompensa do que prendesse ladrão, Ord. fil.,5,60, 7.


4280 Ord. fil.,5,60,5 e Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., a este texto. O que detivesse a coisa

furtada era considerado ladrão, se tivesse má fama, Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord.
fil.,5,60,5, n. 7.

674
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
não cometia furto o que comprasse coisa furtada sem saber que o era4281. O auxílio ao furto
– com atos ou conselho - era punido4282.
§ 2426. O ladrão não se livrava pelo arrependimento (poenitentia) e a restituição da
coisa, uma vez consumado o crime, pois, tal como num contrato, a perfeição impedia o
arrependimento4283.
§ 2427. O furto era criminalmente punido, apenas quando o valor da coisa excedesse
um marco de prata ou o furto fosse qualificado em função da natureza da coisa furtada (coisa
pública4284, coisa sagrada, documento de cartório eclesiástico, Ord. fil.,5,60,4; marcas de
extremas de terrenos, Ord. fil.,5,67) ou do lugar do furto (igreja, Ord. fil.,5,60,4).
§ 2428. Em Portugal, existia uma tradição antiga de punição criminal do furto4285. Nas
Ord. man. (5, 37), estabelecia-se o regime que se vai manter durante os séculos seguintes
(Ord. fil., 5, 60): o furto é sempre objeto de uma punição criminal, agravada no caso em que
se verifiquem circunstâncias especiais, já previstas pelo direito comum clássico (reincidência,
natureza da coisa furtada, lugar do furto, valor da coisa). Importa realçar o significado da
consideração do valor da coisa como circunstância agravante do crime. Com isto, o furto
ganha a dimensão de um crime patrimonial, em que os principais valores ofendidos são não
a paz (como nos crimes de violência, dos quais eram aproximados as espécies mais graves
de furto), mas valores económicos. O património emerge, agora claramente, como um objeto
autónomo de proteção também criminal4286.
§ 2429. Por direito comum, o ladrão de mais de 5 soldos (que corresponde ao marco de
prata das Ordenações, Ord. fil.,5,60,pr.) era condenado à morte na forca4287. Equiparado a
este era o furto com violência e o furto qualificado em razão da coisa furtada ou do lugar em
que fosse cometido. Por direito canónico, era ainda punido com a excomunhão 4288. Pelas
Ordenações, aplicava-se a pena capital aos furtos de maior quantia (superior a um marco de
prata); a pena de açoites aos de quantia menor (de 400 rs. a um marco de prata4289); e, daqui

4281 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n. 46.
4282 Mesmo se o furto não fosse um delito, como o de filho ao pai, o conselho era punido como tal.
Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n. 6 e 8.
4283 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n. 24.

4284 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n. 40 (punição capital). A mesma

pena para o que assinou instrumento alheio [furto do nome]; ibid., n. 41. Também o furto da liberdade
(rapto de escrava não meretriz) era punido com a morte, António Cardoso do Amaral, ibid., n. 42; o
mesmo para o que comprasse ou furtasse homem livre, ibid., n. 49.
4285 V. Ord. af., 5, 65.

4286 Embora apareçam elementos de tipificação que remetem, ou para a proteção de outros bens -
nomeadamente, valores religiosos (Ord. fil., 5,60,4) ou a paz (Ord. fil., 5,60,1; 61) - ou para antigas tradições
textuais - v. g., a especial punição da treincidência.
4287 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n. 31.
4288 O furto na Igreja com violação das portas ou muros dava lugar a excomunhão. Sem isto, era
sacrilégio, mas a excomunhão não tinha lugar ipso facto, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v.
“Furtum”, n. 30 e 31. Por serem excomungados, estes ladrões não podiam ser sepultados na Igreja,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n. 51.
4289 O marco era uma unidade de medida de massa, que correspondia a 1/2 arrátel (= 229.5 /

233,856 gramas); o arrátel correspondia à libra, lira, arrátel. O valor real do arrátel flutuou durante a
idade média, até que foi fixado por D. Manuel em uma libra (libra ibérica). A libra tinha 20 soldos ou

675
Crimes e penas.
para baixo, aplicava-se uma pena arbitrária (Ord. fil.,5,60)4290. Não se puniam os furtos leves
domésticos, de escravos, libertos ou criados; mas já era possível punir os furtos grandes,
sendo comum a condenação de domésticos por roubos aos patrões4291.
§ 2430. A subtração de coisas de pequena monta também era, portanto, punida como
furto4292. No entanto, o furto em situação de extrema necessidade não era punível, pois seria
de direito natural que todos pudessem apropriar-se das coisas absolutamente necessárias,
de tal modo que, no estado de necessidade, tudo era de todos. O furto continuava a ser
crime, mas não era punível; a extrema necessidade não excluía a ilicitude do furto, mas
excluía a sua punibilidade. Daí que, superadas as dificuldades, reconstituía-se o dever de
restituir a coisa furtada ou o seu valor4293.
§ 2431. Podia matar-se o ladrão de estradas ou o ladrão noturno4294, mas não o diurno,
a não ser que se defendesse com armas ou quando se matasse para recuperar as suas
próprias coisas (mas não as de outrem)4295.
8.3 O direito penal das monarquias corporativas.
§ 2432. O direito penal da monarquia portuguesa tinha como fonte principal o livro V das
Ordenações. Embora com algumas variações, esta codificação do direito penal pátrio já
vinha das Ordenações afonsinas, dos meados do séc. XV4296. Apesar da ênfase que se nota
na doutrina dos finais do séc. XVI quanto ao caráter real da definição dos crimes4297, havia
outras fontes de definição dos delitos, desde o direito canónico e os costumes locais até aos
próprios juristas que, com base em argumentos doutrinais, estabeleciam crimes e penas
(crimina et poenae arbitraria).
8.3.1 Punição e disciplina.«««
§ 2433. De acordo com a mais moderna historiografia do direito penal moderno,

dinheiros.
4290Sobre as penas do furto noutros direitos próximos, v. Tomé Valasco, Allegationes […], cit., all.
13, ns. 77 a 79.
4291 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n. 35.

4292 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n. 50.

4293 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n. 50.

4294 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n. 15.

4295 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Furtum”, n. 27.
4296 As Ord. af. constituem a primeira grande codificação do direito penal europeu, na época
moderna, antecedendo as codificações penais europeias do século seguinte: Constitutio criminalis
Bambergensis, 1507; Constitutio criminalis Carolina, 1532; Constitutio criminalis Brandeburgensis,
1582; Ordonnance sur le fait de la justice, 1539; Constitutiones dominii Mediolanensis, 1541, Crimineele
Ordonnantien, 1570.
4297 Foi Mario Sbricolli quem destacou esta novidade da dogmática penal dos finais do séc. XVI,
salientando embora que esta ligação essencial entre crime e lei régia tinha um significado diverso do
princípio da legalidade, tal como foi inventado do séc. XIX (nullum crimen sine lege, expressão criada
por A. Feuerbach também nesse século). O principio não valia, no direito comum tardio, como uma
garantia dos cidadãos, mas como a expressão da afirmação do poder real e da ideia de que o crime
era, antes de tudo, um ato de desobediência à lei do príncipe. Cf. Mario Sbricolli, “Lex delictum facit.
Tiberio Deciani e la criminalística italiana nella fase cinqucentesca del penale egemonico”, em Mario
Sbricolli, Per la storia del pensiero giuridico moderno, Milano, Giuffrè, 2009, p. 233 ss..

676
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
inspirada decisivamente por Mario Sbricolli, esta pluralidade de instâncias de definição do
crime e da pena seria justamente o traço caraterístico da dogmática penal das monarquias
corporativas. Ao passo que a marca da nova criminalística inaugurada por Tibério Deciano
teria sido a reivindicação de que a criação de crimes era um atributo do príncipe que, livre e
exclusivamente, definia os delitos que, por porem em causa a disciplina pública e a
obediência ao príncipe, deviam ser considerados como crimes.
§ 2434. Nos mundos políticos tradicionais, o direito penal oficial não era, portanto, o
único meio com que a sociedade procurava disciplinar as condutas desviantes. Pelo
contrário, ela fazia-o por múltiplos mecanismos, desde a ameaça de punições extraterrenas
ao escárnio e à troça, passando pelos mecanismos da disciplina doméstica. Na sociedade de
Antigo Regime, a função da repressão penal era ainda mais nitidamente subsidiária de
mecanismos quotidianos e periféricos de controlo. Isto explicará o carácter pouco efetivo da
punição penal, a que nos referiremos adiante. Bem como a resistência doutrinal em aceitar a
exclusiva dependência do crime em relação à lei.
§ 2435. Deve ainda ser sublinhado que, justamente em função desta sua falta de
efetividade, o direito penal de Antigo Regime desempenhava não tanto uma função de
disciplina efetiva da sociedade, mas sobretudo de afirmação enfática - consagrada em
normas explícitas, apoiada por aparelhos organizados e públicos de constrangimento,
embebida em liturgias e espetáculos públicos - de um conjunto de valores sociais essenciais
à ordem política. Daí que tenha sentido encarar as normas penais como manifestações de
um sistema axiológico subjacente, que o poder implicitamente promete/ameaça impor, como
condição mínima da convivência social. Através do direito penal, podemos, então,
surpreender aquilo que se entende serem os valores indispensáveis da convivência, em
termos tais que a sua defesa devesse ser assumida pelo poder público. Na prática, porém, o
grau de realização desta garantia mínima acabava por ser muito baixo. Pelo que o direito
penal desempenhava, afinal, uma função muito mais simbólica do que disciplinar.
8.3.2 Pluralismo disciplinar.
§ 2436. Também no domínio da repressão dos comportamentos, se sobrepunham
diversos sistemas punitivos – desde o doméstico, o comunitário, o eclesiástico, a uma
multiplicidade de ordens corporativas, entre as quais, a das universidades. Assim, direito
penal oficial não era o único meio com que a sociedade procurava disciplinar as condutas
desviantes. Pelo contrário, ela fazia-o por meio de múltiplos mecanismos, desde a ameaça
de punições extraterrenas ao escárnio e à troça da comunidade, passando pelos
mecanismos muito efetivos da disciplina doméstica. Na sociedade de Antigo Regime, a
função da repressão penal era, por isso, ainda mais nitidamente do que hoje, subsidiária de
mecanismos quotidianos e periféricos de controlo. Isto explicará o caráter pouco efetivo da
punição penal, a que nos referiremos adiante.
§ 2437. Por outro lado, o pluralismo penal reforçava-se na medida em que sobre o
imperativo da justiça pairavam os imperativos da misericórdia e da graça, que pertenciam
também à deontologia de reinar.
§ 2438. Por fim, deve ser sublinhado que, justamente em função desta sua falta de
efetividade, o direito penal das monarquias corporativas desempenhava não tanto uma
função de disciplina efetiva da sociedade, mas sobretudo de afirmação enfática de valores
sociais essenciais.

677
Crimes e penas.
8.3.3 A prática da punição.
§ 2439. O sistema penal da monarquia corporativa caracterizava-se por uma estratégia
correspondente à própria natureza política desta. Ou seja, se, no plano político, o poder real
se confronta com uma pluralidade de poderes periféricos, frente aos quais se assume
sobretudo como um árbitro, em nome de uma hegemonia apenas simbólica, também no
domínio da punição, a estratégia da coroa não está voltada para uma intervenção punitiva
exclusiva, quotidiana e efetiva.
§ 2440. De facto, a função político-social determinante do direito penal real não parece
ser, na sociedade “sem Estado” dos séculos XVI e XVII, a de realizar, por si mesmo, uma
disciplina social. Para isso lhe falta tudo - os meios institucionais, os meios humanos, o
domínio efetivo do espaço e, por fim, o domínio do próprio aparelho de justiça, expropriado
ou pelo “comunitarismo” das justiças populares ou pelo “corporativismo” dos juristas letrados.
A função da punição parece ser, em contrapartida, a de afirmar, também aqui, o sumo poder
do rei como dispensador, tanto da justiça como da graça.
§ 2441. É nesta perspetiva que deve ser lido o direito penal da coroa. Feita esta leitura,
não deixaremos de convir que, em termos de normação e punição efetiva, o direito penal se
caracteriza, mais do que por uma presença, por uma ausência. Vejamos como e porquê.
§ 2442. Comecemos por aspetos ligados à efetivação positiva, por assim dizer, da
ordem real.
§ 2443. Com esta se relaciona, desde logo, a questão da capacidade que os juristas
têm, no sistema do ius commune, de estabelecer autonomamente o direito. No entanto,
como esta questão nos irá sobretudo interessar num ulterior momento, deixemo-la por agora.
Fixemo-nos, para já, no grau de aplicação prática da ordem penal legal.
§ 2444. Os dispositivos de efetivação da ordem penal, tal como vinha na lei, careciam de
eficiência. Primeiro, pela multiplicidade de jurisdições (v. cap. 7.1.7.3)4298, origem de conflitos
de competência - descritos por muitas fontes como intermináveis -, que dilatavam os
processos e favoreciam fugas de castigo. Depois, pelas delongas processuais - de que todas
as fontes nos dão conta4299-, combinadas com o regime generoso de “livramento” dos
arguidos (v. cap. 8.1.6.48.1.6). Finalmente, pelos condicionalismos de aplicação das penas.
§ 2445. Condicionalismos de dois tipos. De natureza política, isto é, relacionados com o
modo como a política penal da coroa se integrava numa política mais global de disciplina
régia; ou de natureza prática, relacionada com as limitações dos meios institucionais,
logísticos e humanos na disponibilidade da coroa. Comecemos por estes últimos e, no final,

4298 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit..

4299 O tema das “delongas processuais necessita de estudos empíricos. Um estudo empírico
realizado sobre uma fonte do final do séc. XVII onde está registada a duração da prisão antes de
julgamento nos cárceres da Casa da Suplicação (cf. António Manuel Hespanha, “Da ‘iustitia’ à
‘disciplina’ […], cit.) fornece testemunhos contraditórios: ao lado de presos com vários anos de cárcere,
há outros que tinham os seus processos conclusos para julgamento ao fim de dois ou três meses. O
preâmbulo do alvará de 31.3.1612 (Col. Legisl. Extravagante […], 1, 442 ss.) refere as deficiências da
aplicação da justiça, mesmo na capital: falta de estruturas de vigilância e controlo da ordem pública, as
“inumeráveis industrias e subterfúgios” com que se podia iludir o castigo ou adiar a sua execução e a
demora dos processos (nomeadamente, no caso de réus pobres, os escrivães não tinham interesse em
realizar atos de que sabiam não ir ser pagos; o mesmo acontecia naqueles processos onde não havia
acusação de parte).

678
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
concluiremos com os primeiros.
§ 2446. Tomemos para exemplo a pena de degredo. Quando aplicada para o ultramar,
ela obrigava a espera, por vezes durante meses ou anos, de barcos para o local do
exílio 4300; o réu ficava preso à ordem da justiça, nas cadeias dos tribunais de apelação,
tentando um eventual livramento, aquando das visitas do Regedor da Justiça. De qualquer
modo, uma vez executada a deportação, faltavam os meios de controlo que impedissem a
fuga do degredado do lugar para onde tinha sido mandado.
§ 2447. As mesmas dificuldades existiam nas medidas, preventivas ou penais, que
exigissem meios logísticos de que a administração da justiça carecia. Era o que se passava
com a prisão - de resto, raramente aplicada como pena -, que obrigava à existência de
cárceres seguros, à organização de operações onerosas de transporte de presos (as
odiadas levas de presos), à disponibilidade de meios de sustento dos detidos, embora parte
deste sustento corresse à conta destes ou de instituições de caridade. As únicas penas
facilmente executáveis eram as de aplicação momentânea, como os açoites, o cortamento
de membro ou a morte natural. Mas, como veremos de seguida, mesmo estas parece terem
sido, por razões diferentes, raramente aplicadas.
§ 2448. Vejamos agora o que acontecia com a mais visível das penas - a pena de morte
natural, prevista pelas Ordenações para um elevado número de casos, em todos os grandes
tipos penais. Prevista tantas vezes que, nos fins do século XVIII, se conta que Frederico o
Grande, da Prússia, ao ler o livro V das Ordenações, teria perguntado se, em Portugal, ainda
havia gente viva (a prática da masturbação era punida com a morte …4301). Na prática,
todavia, os dados disponíveis parecem aconselhar uma opinião bem diferente da mais usual
quanto ao rigorismo do sistema penal. Na verdade, a pena de morte natural era, em termos
estatísticos, muito pouco aplicada em Portugal. Na base de estudos feitos para as
condenações ao nível dos tribunais da corte – por onde todos os crimes com penas
superiores às de açoites tinham que passar, em apelação “por parte da justiça” 4302 - chega-
se à conclusão de que a pena de morte, durante os sécs. XVI a XVIII era muito raramente
aplicada4303. Outros testemunhos apontam no mesmo sentido de uma escassíssima
aplicação efetiva rara da pena de morte. Entre 1601 e 1800, uns anos pelos outros, foram
levadas a cabo em Portugal (no Sul da metrópole, mais exatamente) cerca de duas
execuções capitais por ano 4304. E, de facto, um autor que escrevia já nos inícios do séc. XIX

4300 Isto levou a que se determinasse que o lugar do degredo fosse fixado genericamente (“para

Angola”, “para o Brasil”), embora conheça decisões de degredo “para Bissau”, “para Cacheu”, “para a
ilha do Príncipe”, “para o Maranhão”.
4301 Embora, no séc. XVIII, a Inquisição, para onde estes criminosos eram remetidos pelos juízos

seculares, se contentassem, sensatamente, com umas brandas penas espirituais.


4302 A lei previa a apelação oficiosa nos casos de “querela” (Ord. fil., 5, 122, pr.; cf. ainda ibid., 5,

117, pr.), ou seja, naqueles em que a pena prevista era superior à de açoites).
4303 Cf. António Manuel Hespanha, “Da ‘iustitia’ à ‘disciplina’ […]”, cit..

4304 Por exemplo. As Ord. punem a bigamia coma morte (Ord. fil., 5,19); no entanto, uma fonte

dos finais do séc. XVIII informa que “hoje, entre nós esta pena raramente se pode praticar, pois os
Inquisidores da depravação herética, que conhecem deste crime pelo direito de prevenção [pois se
tratava de um delito de misto foro], punem os réus com penas de açoites, de desterro temporário e, por
vezes, com penas de galés [Repertorio das ordenações e leis do reino de Portugal, Coimbra, Na Real
Imprensa da Universidade, 1795, v. “Pena de morte”, IV, 27(a)]. A mesma fonte, [(I, 443(d)] refere que
um réu condenado à morte natural na primeira instância por tomar pela força os bens do devedor viu,

679
Crimes e penas.
referia que em Portugal se passava “ano e mais” sem se executar a pena capital 4305.
§ 2449. Esta não correspondência entre o que estava estabelecido na lei e os estilos dos
tribunais não deixou de ser notado pelos juristas. Conhecem-se tentativas de, por via da
interpretação doutrinal, pôr o direito de acordo com os factos. Uma delas foi através da
interpretação da expressão “morra por ello”, utilizada nas Ordenações, jogando com o facto
de que, para a teoria do direito comum, a morte podia ser “natural” e “civil” e que esta última
correspondia ao degredo por mais de 10 anos 4306. O desembargador Manuel Lopes de
Oliveira apelidava os juízes que aplicavam indistintamente a pena de morte física a todos os
casos em que as Ordenações estabelecessem a pena de morte natural como “práticos
ignorantes” (imperiti pragmatici) e “carniceiros monstruosos” (innanissimi carnifices). Os
argumentos do desembargador eram débeis e a sua opinião, apesar de ter reunido alguns
sufrágios (nomeadamente de Paulo Rebelo, num Tractatus iure naturali manuscrito), e de ser
cotada de “a mais pia”, não chegou a triunfar 4307. Mas não deixa de ser curioso que, na
polémica gerada por esta opinião, ninguém tenha acusado o desembargador de laxismo ou a
sua opinião de perigosa para a ordem social. Na verdade, o que ele tentava fazer era
justificar com argumentos legais uma prática geral, por outros menos provocatoriamente
fundada no poder arbitrário do juiz de adequar a pena às circunstâncias do delito e do
delinquente. Esta diversidade de justificação não era, em si mesma, de pouca monta. Pois o
segredo da eficácia do sistema penal do Antigo Regime estava justamente nesta
“inconsequência” de ameaçar sem cumprir. De se fazer temer, ameaçando; de se fazer
amar, não cumprindo. Ora, para que este duplo efeito se produzisse, era preciso que a
ameaça se mantivesse e que a sua não concretização resultasse da apreciação concreta e
particular de cada caso, da benevolência e compaixão suscitadas ao aplicar a norma geral a
uma pessoa em particular. Por isso, qualquer solução que abolisse em geral a pena de morte
- v. g., por meio de uma interpretação genérica dos termos da lei - comprometia esta
estratégia dual de intervenção do direito penal da coroa. Juízes havia, no entanto, que se
gabavam de, em toda a vida, nunca terem ordenado ninguém à morte, antes terem dela
livrado muitos réus 4308. Pelo seu pitoresco, merece a pena transcrever a seguinte decisão:
"Padre Francisco da Costa, prior de Trancoso, de idade de sessenta e dois anos, será
degredado de suas ordens e arrastado pelas ruas públicas nos rabos dos cavalos,
esquartejado o seu corpo e postos os quartos, cabeça e mãos em diferentes distritos, pelo
crime que foi arguido e que ele mesmo não contrariou, sendo acusado de ter dormido com
vinte e nove afilhadas e tendo delas noventa e sete filhas e trinta e sete filhos; de cinco irmãs
teve dezoito filhas; de nove comadres trinta e oito filhos e dezoito filhas; de sete amas teve

em embargos, essa pena comutada em morte civil (degredo).


4305 Francisco Freire de Melo, Discurso sobre os delictos e as penas e qual foi a sua proporção

nas differentes epocas da nossa jurisprudência, cit, p. 50. Outra fonte (D. Luís da Cunha, Testamento
político […], Lisboa, 1820, p. 27) refere que era ponto de honra dos mordomos da Misericórdia que “no
seu ano fosse inútil a forca”, “piedade” que o autor censura, exprimindo uma sensibilidade típica das
ideias de disciplina do despotismo esclarecido.
4306 Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 156, ns. 5-10; Manuel Barbosa, Remissiones doctorum

[…], cit., ad Ord. fil., 5,18,3, n, 10 [p. 298]; Domingos Antunes Portugal, De donationibus […], liv. 2, c 25, n. 53/5.
4307 Sobre esta discussão, com exposição e crítica dos diferentes argumentos, v. Repertório às

Ordenações, maxime, IV, 40(a) e 1, 434(b).


4308 António Luís Henriques Seco, Memórias do tempo passado e presente para lição dos

vindouros, Coimbra, Imprensa da Universidade,1880, 672.

680
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
vinte e nove filhos e cinco filhas; de duas escravas teve vinte e um filhos e sete filhas; dormiu
com uma tia, chamada Ana da Cunha, de quem teve três filhas, da própria mãe teve dois
filhos. Total: duzentos e noventa e nove filhos, sendo duzentos e catorze do sexo feminino e
oitenta e cinco do sexo masculino, tendo concebido em cinquenta e três mulheres. El-Rei D.
João II lhe perdoou a morte e o mandou pôr em liberdade aos dezassete dias do mês de
Março de 1487, com o fundamento de ajudar a povoar aquela região da Beira Alta, tão
despovoada ao tempo, e mandou arquivar os papéis da condenação"4309.
§ 2450. O que se passava com a pena de morte, parece ter-se passado - em grau
porventura diferente - com algumas outras penas corporais, de que as fontes também
oferecem poucos testemunhos de aplicação. Tais são os casos dos açoites que, num rol dos
detidos da cadeia de Lisboa nos finais do séc. XVII4310, não são mais aplicados do que a
pena capital. Na mesma fonte, a marca é usada em dois casos, um de roubo e outro de furto,
cumprindo a conhecida funções de registo criminal no próprio corpo do delinquente,
nomeadamente nos crimes em que era relevante, para a medida da pena, saber se o
criminoso era reincidente ou não 4311. Os açoites, por sua vez, aparecem em três casos – um
de entrada violenta em casa de mulher branca e dois de furto. O cortamento de membro
nunca aparece 4312.
§ 2451. Em vista disto, o leque das penas praticadas no plano do sistema punitivo régio
ficava afinal muito reduzido e, sobretudo, carecido de medidas penais intermédias. Como a
mais grave, embora quase apenas virtual, a pena de morte; mas, sobretudo, o degredo, com
todas as dificuldades de aplicação - e consequente falta de credibilidade - a que nos
referimos. Na base, as penas de açoites - inaplicáveis a nobres e, em geral, aparentemente
pouco usadas, pelo menos a partir dos fins do século XVII - e as penas pecuniárias.
8.3.4 A economia da Graça: perdão, comutação e livramento.
§ 2452. Assim, e ao contrário do que muitas vezes se pensa, a punição no sistema penal
efetivamente praticado pela justiça real do Antigo Regime - pelo menos até ao advento do
despotismo iluminado - não era nem muito efetiva, nem sequer muito aparente ou teatral. Os
malefícios ou se pagavam com dinheiro, ou com um degredo de duvidosa efetividade e,
muitas vezes, não excessivamente prejudicial para o condenado. Ou, eventualmente, com
um longo e duro encarceramento “preventivo”.
§ 2453. Ou seja, mais do que em fonte de uma justiça efetiva ou quotidiana, o rei
constitui-se em dispensador de uma justiça apenas - e, acrescente-se, cada vez mais -
virtual. Independentemente dos mecanismos de graça e da atenuação casuística das penas,
que estudaremos a seguir, o rigor das leis - visível na legislação quatrocentista e quinhentista

4309 Sentença proferida em 1487 no processo contra o Prior de Trancoso (Arquivo Nacional da
Torre do Tombo, Armário 5, Maço 7; agradeço a Elena Burgoa o ter-me enviado esta referência).
4310 Cf. António Manuel Hespanha, “Da ‘iustitia’ à ‘disciplina’ […]”, cit..

4311 No furto, a treincidência era duramente punida, pois o furto triplum equivalente ao furtum

magnum; daí que se estabelecesse a marcação dos ladrões no primeiro furto com um L ou um P,
consoante a condenação fosse feita em Lisboa ou no Porto. Mas o segundo já com uma forca, pré-
anunciando o que poderia acontecer num eventual terceiro (Lei da Reformação da Justiça, de
6.12.1612, § 20. No entanto, a marca já não se usava nos finais do séc. XVIII (v. Joaquim José Pereira
e Sousa, Classes dos […], cit., 1, § 22, nota 35).
4312 “Há muito que estão entre nós em desuso”, Joaquim J. C. Pereira e Sousa, Classes dos

crimes […], cit., 1, § 22, nota 35.

681
Crimes e penas.
(a legislação manuelina tende a agravar o rigor e crueldade" da punição) - fora sendo
temperado com estilos de punir cada vez mais brandos.
§ 2454. Passemos, agora, ao polo oposto da punição: o perdão ou, mais em geral, as
medidas que, na prática, traduziam a outra face da intervenção régia em matéria penal - o
exercício da Graça.
§ 2455. Tem sido posto em evidência o caráter massivo do perdão na prática penal da
monarquia corporativa 4313. E tem sido mesmo destacado que o exercício continuado do
perdão destruía o seu caráter imprevisto e gracioso e o transformara, pelo menos para certos
crimes, num estilo e, com isto, num expediente de rotina.
§ 2456. No plano doutrinal, este regime complacente do perdão radica, por um lado, no
papel que a doutrina do governo atribuía à clemência e, por outro, no que a doutrina da
justiça atribuía à equidade. Quanto à clemência como qualidade essencial do rei, ela estava
relacionada com um dos tópicos mais comuns da legitimação do poder real - aquele que
representava o príncipe como pastor e pai dos súbditos, que mais se devia fazer amar do
que temer 4314. Embora constituísse, também, um tópico corrente que a clemência nunca
poderia atingir a licença, deixando impunidos os crimes (justamente porque um dos deveres
do pastor era, também, “perseguir os lobos” que ameaçam ou atacam o seu rebanho 4315),
estabelecia-se como regra de ouro que, ainda mais frequentemente do que punir, devia o rei
ignorar e perdoar (“Principem non decere punire semper, nec semper ignoscere, punire
tamen saepe, ac saepius ignorare officium regium esse; miscere clementiam, & severitatem
pulchrius esse” [o príncipe não deve punir sempre, nem sempre ignorar, mas punir
frequentemente e, ainda mais frequentemente, ignorar: é esse o dever dos reis; combinar a
clemência com a severidade é o mais bonito) 4316, não seguindo pontualmente o rigor do
direito (“Ex praedicitis infertur non esse sequendum regulariter, quod praecipuit jus strictum
[…] summum ius, summam crucem [vel] injuriam”4317 [infere-se do que se disse que aquilo
que prescreve o direito entendido rigidamente não deve ser seguido regularmente […] pois
um direito absoluto seria o mesmo que uma cruz ou uma justiça absolutas]). Este último texto
aponta já para um outro fundamento teórico da moderação da punição - ou seja, o contraste
entre o rigor do direito e a equidade de cada caso. Fundamento que, valendo para todos os
juízes, valia ainda mais para o juiz supremo que era o rei.
§ 2457. O perdão e a comutação da pena combinavam-se, de resto, com uma outra
medida de alcance prático semelhante – a concessão de alvarás de fiança (liberatio sub

4313 Cf. Luís Miguel Duarte, Justiça e criminalidade […], cit..


4314 Cf. sobre o tema, largamente, João Baptista Fragoso, Regímen [...], cit., p. 1, 1.1, disp. 1, § 3:
“principem pastoris nomen, imperioque adornat, et sic nomen imperi superbum pastoris nomine
dulcescit: quasi dicat imperare populo, ac pascere populo idem esse […] ex quo manifestum est
clementiam, mansuetudinem, & misericordiam maxime competere in principibus, atque illorum vices
tenetibus”, n. 37 [pg. 22], com fonte na Sagrada Escritura e em Santo Ambrósio; “magis decere
principem amari, quam metui” (ibid., n. 44).
4315 João Baptista Fragoso, Regímen [...], cit., p. 1, 1.1, disp. 1, § 3, n. 42-42, 52, in fine, p. 53 e

60-62. Na literatura clássica, estabelecera-se uma larga polémica com os estoicos, para quem a
clementia em relação aos criminosos equivalia à licença. Mais tarde, penalistas iluministas reagirão, de
novo, contra o perdão, com idêntico fundamento.
4316 João Baptista Fragoso, Regímen [...], cit., p. 1, 1.1, disp. 1, § 3, n. 53.

4317 João Baptista Fragoso, Regímen [...], cit., p. 1, 1.1, disp. 1, § 3, n. 57.

682
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
fidejussoribus), que permitiam aos réus aguardar em liberdade o julgamento ou o
“livramento” por perdão ou comutação 4318. Também aqui o Regimento do Desembargo do
Paço procura estabelecer um maior rigor para evitar que tais alvarás “deem ocasião aos
delinquentes cometerem os delitos tão facilmente com esperança de haverem os ditos
Alvarás para se livrarem soltos”. Mas, na prática, o regime parece ter continuado a ser
bastante permissivo. No rol dos presos à ordem da Casa da Suplicação, a que já nos temos
referido, quase metade (mais exatamente, 48%) daqueles de que se sabe o destino saem
soltos por perdão, fiança ou, eventualmente, por falta de culpas; e, em relação a muitos
outros, “corria livramento” pelos meios ordinários.
§ 2458. Além das cartas de fiança e dos alvarás de fiança, existiam ainda as cartas de
seguro (securitatis ou assecurationis litterae), passadas pelos corregedores e outros juízes,
que garantiam o acusado contra a prisão até à conclusão da causa4319. Do relevo prático
deste instituto na criação de um clima de permissividade criminal diz-nos o testemunho de
Manuel Mendes de Castro: “Digo-te que em nenhuma outra parte estão em uso senão neste
reino, embora este costume português pareça um pouco alucinado […] se o meu juízo vale
algo, penso que seria melhor aboli-las completamente […]” 4320.
§ 2459. Esta situação de permissividade era incentivada pelo poder. Um influente valido
de D. João V recomendava rispidamente ao Desembargador Inácio da Costa Quintela: “Sua
Majestade manda advertir V. M., que as leis são feitas com muito vagar e sossego, e nunca
devem ser executadas com aceleração: e que nos casos crime sempre ameaçam mais do
que na realidade mandam […], porque o legislador é mais empenhado na conservação dos
súbditos do que no castigo da Justiça, e não quer que os ministros procurem achar nas leis
mais rigor que elas impõem”4321.
§ 2460. Concluindo. Pelos expedientes de graça realizava-se o outro aspeto da
inculcação ideológica da ordem real. Se ao ameaçar punir (mas punindo, efetivamente, muito
pouco), o rei se afirmava como justiceiro, dando realização a um tópico ideológico essencial
no sistema medieval e moderno de legitimação do poder; ao perdoar, ele cumpria um outro
traço da sua imagem - desta vez como pastor e como pai -, essencial também à legitimação.
A mesma mão que ameaçava com castigos impiedosos prodigalizava, chegando ao
momento, as medidas de graça. Por esta dialética do terror e da clemência, o rei constituía-
se, ao mesmo tempo, em senhor da Justiça e mediador da Graça. Se investia no temor, não
investia menos no amor. Tal como Deus ele desdobrava-se na figura do Pai justiceiro e do
Filho doce e amável.

4318 Sobre os alvarás de fiança, v., por todos, Manuel Mendes de Castro, Practica Lusitana […], p.
I (e também p. II), liv. 5, cap. 1, app. 3 [pg. 173], para além dos comentários de Manuel Barbosa e de
Manuel Álvares Pegas ao parágrafo do regimento do Desembargo do Paço (com ulteriores indicações
de literatura sobre o tema).
4319 Ord. fil., 5,124 a 129; Alv. 21.1.1564 (em Duarte Nunes de Leão, Leis extravagantes […]); Alv.

6-12-1612, §§ 3-4; Ord. fil., 5, 128; um outro tipo de garantia, ainda mais genérica – a segurança real.
Sobre as cartas de segurança, seu regime e espécies, além das fontes legais, v. por todos, Manuel
Mendes de Castro, Pratica lusitana […], cit., pt. 1, liv. 5, c. 1, app. II, n. 19 [pg. 172] e pt. 2, liv. 5, c. 1,
app. II ([pg. 255]; Mateus Homem Leitão, De jure Lusitano in tres tractatus. […], cit..
4320 Manuel Mendes de Castro, Pratica lusitana […], cit., pt. 1, liv.5., cap. 1., app. III.

4321 Francisco Freire de Melo, Discurso sobre os delitos […], p. 9. A censura reportava-se à

condenação à morte de um moço que roubara coisas numa Igreja (cf. Alexandre de Gusmão, Collecção
de vários escritos inéditos […], Porto 1841, 31).

683
Crimes e penas.
§ 2461. Assim, o perdão e outras medidas de graça, longe de contrariarem os esforços
de construção positiva (pela ameaça) da ordem régia, corroboram esses esforços, num plano
complementar, pois esta ordem combinada da Disciplina e da Graça constitui o instrumento e
a ocasião pelos quais se afirma ideológica e simbolicamente, em dois dos seus traços
decisivos - summum ius, summa clementia - o poder real. Da parte dos súbditos, este
modelo de legitimação do poder cria um eficaz habitus de obediência, tecido, ao mesmo
tempo, com os laços do temor e do amor. Teme-se a ira regis; mas, até à consumação do
castigo, não se desespera da sua misericórdia. Antes e depois da prática do crime, nunca se
quebram os laços (de um tipo ou de outro) com o poder. Até ao fim, o rei nunca deixa de
estar no horizonte de quem prevarica; que, se antes não se deixou impressionar pelas suas
ameaças, se lhe submete, agora, na esperança do perdão. Trata-se afinal de um modelo de
exercício do poder coercitivo que evita, até à consumação final da punição, a “desesperança”
dos súbditos em relação ao poder; e que, por isso mesmo, tem uma capacidade quase
ilimitada de prolongar (ou reiterar) a obediência e o consenso, fazendo economia dos meios
violentos de realizar uma disciplina não consentida.
§ 2462. Em comunidades em que os meios duros de exercício do poder eram escassos,
modelos que garantissem ao máximo as condições de um exercício consentido do poder
eram fortemente funcionais.
§ 2463. Tudo combinado - no plano da estratégia punitiva, do funcionamento do perdão
ou do livramento e da escala de penas efetivamente aplicável e aplicada -, o resultado era o
de um sistema real/oficial de punição pouco orientado para a aplicação de castigos e,
finalmente, pouco crível neste plano. O controlo dos comportamentos e a correspondente
manutenção da ordem social só se verificava porque, na verdade, ela repousava sobre
mecanismos de constrangimento situados num plano diferente do da ordem penal real.
§ 2464. A disciplina social baseava-se, de facto, mais em mecanismos quotidianos e
periféricos de controlo, ao nível das ordens políticas infra estaduais - a família, a Igreja, a
pequena comunidade 4322. Neste conjunto, a disciplina penal real visava, sobretudo, uma
função política - a da defesa da supremacia simbólica do rei, enquanto titular supremo do
poder punitivo e do correspondente poder de agraciar.
§ 2465. Para isto, nem era preciso punir todos os dias, nem sequer punir
estrategicamente do ponto de vista dos interesses de disciplina da vida social (i. e., punir os
atentados mais graves ao convívio social). Disto se encarregavam usando tecnologias
disciplinares diversas, os níveis infrarreais de ordenação. À justiça real bastava intervir o
suficiente para lembrar a todos que, lá no alto, meio adormecida mas sempre latente, estava
a suprema punitiva protestas do rei. Tal como o Supremo Juiz, o rei devolvia aos equilíbrios
naturais da sociedade o encargo de instauração da ordem social.
§ 2466. Por outro lado, para se fazer lembrar e reconhecer, para manter a carga
simbólica necessária à legitimação do seu poder, o rei dispõe de uma paleta multímoda de
mecanismos de intervenção. Pode decerto punir; mas pode também agraciar, assegurar ou
livrar em fiança; como pode, finalmente, mandar prender. Pode optar, isto é, tanto pelo meio
desgastante da crueza, como pelo meio económico do perdão. Ao fazer uma coisa ou outra,
afirma-se na plenitude do seu poder e no cabal exercício das suas funções. Pois - segundo

4322 Sobre os poderes punitivos destas ordens infrarreais: sobre o poder punitivo do pater, João
Baptista Fragoso, Regimen […], cit., pt. 1, disp. 1, 4 n.º 89 e III, dispo 3, §. 2; sobre o poder punitivo da
Igreja, cf. o vol. 2 da mesma obra, per totum.

684
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
uma conhecida máxima do início do Digesto - a realização da justiça (leia-se, da disciplina
social) exige uma estratégia plural, em que, ao lado do medo das penas, figuram os prémios
e as exortações (non solum metu poenarumn, verum etiam premiorum quoque exhortatione,
D., 1,1,1,1.) [não só pelo medo das penas, mas também pela exortação por meio de
prémios].

685
Crimes e penas.

686
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

9 Epílogo.
§ 2467. Sugeri na introdução que a visão jurídica do mundo que acaba de ser descrita
seria típica da Europa “latina”, com isto querendo significar o corpus literário dos juristas
italianos, ibéricos e, em parte, franceses, da primeira época moderna. Tenho consciência do
arriscado da afirmação e, por isso, vou tentar esclarecê-la um pouco mais.
§ 2468. Não creio, desde logo, que se possa dizer que haja (ou alguma vez houvesse)
algo como um “espírito latino” (ou “do Sul”), relacionado com condições étnicas ou
mesológicas. Nem mesmo uma “cultura latina”, dotada de uma identidade independente de
contextos vários. Nem o contexto religioso – a Europa “católica” – parece poder explicar os
traços comuns desta visão do mundo partilhada pelos juristas modernos. Como disse no
respetivo capítulo (v. caps. 2.5.1 ss.), a cultura jurídica desta época não é uma cultura
integrista, em que o direito religioso se projete implacavelmente sobre os direitos temporais.
A Natureza tem o seu espaço independente da Graça, o que aponta para um proto-laicismo
que autonomizava o direito e as instituições (a propriedade, a validade dos pactos, o
senhorio político) dos dados da fé.
§ 2469. Parece, por isso, mais prudente limitarmo-nos a constatar que a identidade “do
Sul” é antes uma identidade induzida por um círculo de comunicação – ou um corpus literário
- partilhada por estes juristas, incorporado num arquivo textual comum, que
progressivamente se diferencia de outros universos de referências dogmáticas, como os dos
juristas ingleses e, depois, dos juristas holandeses e alemães. Como já dissemos (v. cap.
1.1.5), o arquivo de referências dos juristas modernos de que tratámos era
esmagadoramente constituído por textos italianos e ibéricos, estando dele ausentes os
textos dos juristas do Norte. A cisão religiosa da Europa vem ainda sublinhar esta fronteira,
pois o “Norte” passa a ser anglicano, luterano ou calvinista. Porém, não parece que a origem
da divisão seja esta. Mesmo antes, os juristas do “Sul” citavam e discutiam os seus pares do
“Sul”, até porque o corpo literário do Centro e do Norte tinha uma expressão muito mais
reduzida. Foi este habitus literário que se cristalizou nos livros impressos a partir da segunda
metade do séc. XVI, saídos de prelos italianos, ibéricos, do sul de França e da borda
ocidental do Império, onde se imprimiam indistintamente os autores que formaram as
gerações seguintes de juristas desta Europa do Sul. Estava, assim, instalado um sistema
industrial de reprodução dogmática, que propõe a visão do mundo e do direito que foi comum
a estes autores, estabelecendo um paradigma conceitual e um estilo de discutir.
§ 2470. Neste paradigma, o legado do direito comum clássico era muito importante. Nele
pesava fortemente uma conceção naturalista da sociedade e uma representação corporativa
do poder. A primeira desvalorizando muito os elementos voluntaristas ou arbitrários do
direito; a segunda, subordinando indivíduos a “estados” (corpora).
§ 2471. É claro que o séc. XVI, com a emergência de monarquias e principados mais
auto-suficientes e mais afirmativos das suas prerrogativas políticas e com alguma
emergência de sentimentos de autonomia pessoal, fazem com que apareçam novos
elementos de sensibilidade jurídica.
§ 2472. Esta necessidade de descrever um novo contexto em que começam a avultar
entes políticos unificadores dotados pelo direito próprio de novas e exclusivas prerrogativas
institucionais, leva os juristas a valorizar o estatuto dos príncipes como representantes da res
publica. Os juristas portugueses – que encontravam nas Ordenações muitas manifestações
da superioridade do príncipe como cabeça da república e muitos poderes reais próprios e
indelegáveis que daí derivavam - tendiam a valorizar categorias que encontravam na
687
Epílogo.
tradição e que podiam servir para dar cobertura dogmática aos direitos específicos dos reis.
Era o caso da categoria de “público”, aplicada ao património do rei, aos contratos por ele
celebrados, aos oficiais por ele criados, aos escritos que reclamassem a sua autoridade (ou
confiança, “fé”). Mas, como vimos, a distinção “público”-“privado” continuava a ser
atormentada e as suas consequências institucionais eram pouco relevantes (v. cap. 2.3.1). O
caráter público das questões podia dar origem a um foro especial (v.g., “Juízes dos feitos da
Coroa e da Fazenda”), mas os trâmites processuais do julgamento eram os do processo
comum, sem que a preeminência do titular “público” originasse privilégios na organização e
marcha do processo (v. cap. 7.1.12). Por outro lado, como repúblicas havia muitas e de
vários níveis, o “público” escalonava-se em sucessivos âmbitos, não podendo os âmbitos
mais vastos anularem a especificidade dos interesses comuns dos âmbitos inferiores (v. cap.
2.4.1). Em suma, a construção jurídica da super-eminência política (“maioria”, majestas) não
se libertou das vinculações políticas particularistas que vinham de trás.
§ 2473. O direito penal é, porventura, um dos bons pontos de observação deste sistema
de regular sem creditar ao centro a plenitude do poder. Apesar do caráter enfático com que
se afirma da lei e o natureza real do poder de punir, continua a ser comum a ideia de que a
fonte dos delitos é a natureza e não a vontade do rei (v. cap. 8.1.1) e de que, no coração do
rei (e do juiz), a vontade de disciplinar competia com a misericórdia. Por isso, o processo
penal era muito permissivo em relação aos acusados (v. caps. 8.1.6.1, 8.1.6.4.5) e a punição
tendia a ser muito leniente (v. cap. 8.3).
§ 2474. Noutros espaços de comunicação jurídico-doutrinal, este modelo corporativo de
descrever o mundo político também existia. Mas terá sido possível adaptá-lo a corpos sociais
de natureza diferente, como sociedades, companhias e repúblicas instituídas por pacto
(respublica per contractum), com projetos sociais e políticos mais dinâmicos e, sobretudo,
com origem na vontade dos sócios e não na natureza objetiva do mundo social. Neste
contexto foi-se tornando mais fácil relacionar este direito e prerrogativas dos corpos com a
vontade dos sócios e preparar, assim, um modelo individualista e voluntarista de sociedade.
Nos nossos juristas, em contrapartida, estas entidades jurisdicionais inferiores são corpos
naturais, constituídos pela força das coisas e não pela vontade das partes.
§ 2475. Alguns autores (Michel Villey, Wim Decock) têm notado como a Escola
peninsular de direito natural introduziu na discussão jurídica alguns temas proto-
individualistas, antecipando construções dogmáticas do jusracionalismo e da pandectística.
Isto teria acontecido com a valorização do papel constitutivo da vontade, tanto no direito
privado, como no direito público. Em todo o caso, o peso de uma visão objetiva do direito (v.
cap. 2.5.3), assente na estrutura objetiva do mundo ou na capacidade geradora das fórmulas
ou dos rituais (v. caps. 6.2 e 6.3), continua a ser enorme. A família assentava sobre
sentimentos e relações naturais (v. caps. 3.2, 3.3.1.1). Os contratos tinham núcleos
indisponíveis que a vontade não podia alterar (v. cap. 6.9.1). A propriedade tinha conteúdos
e usos objetivos (v. cap. 4.3.2.2), que limitavam os poderes de disposição e, frequentemente,
faziam do “proprietário” um mero administrador (como sucedia no caso dos morgados e
capelas, mas também no do donatário de bens da coroa, no do administrador de bens
eclesiásticos, no da enfiteuse ou dos bens dotais). A mesma limitação existia, por outro lado,
nos poderes do senhorio direto: o senhor era obrigado a renovar os prazos (v. cap. 4.3.3.10);
a mulher dotada quase não podia dispor dos bens dotais; a Igreja não podia vender os bens
eclesiásticos (v. cap. 4.2.1), o rei devia confirmar as doações de bens da coroa (v. cap.
6.9.2.1.2). Era neste sentido que um jurista dos finais do séc. XVI afirma que todo o reino é
um grande prazo (ou enfiteuse), sendo do interesse da república que se mantivessem esses
limites de disposição das coisas, pois eles correspondiam a direitos e expetativas que era
688
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
crucial respeitar (v. cap. 4.3.3.10).
§ 2476. Esta imagem “solidarista” da sociedade também constituíu um obstáculo de
peso ao estabelecimento de uma versão individualista da sociedade. Mesmo no séc. XIX,
várias versões comunitaristas e solidaristas da cultura jurídica (como o krausismo, o
comtismo e outras correntes sociologistas) continuaram a emperrar a disseminação dos
novos modelos individualistas4323.
§ 2477. Ainda hoje há quem caraterize as sociedades do Sul da Europa como
corporativas, solidaristas (amiguistas), casuístas e falhas de rigor. É uma tentação relacionar
isto com um modelo de direito que as educou durante séculos e à sombra do qual se terão
estabelecido padrões de cálculo social e arranjos políticos muito duradouros. Se assim for,
analisar este direito comum “de sabor latino” é estudar camadas arqueológicas da nossa vida
comum ainda hoje

4323 Cf. António Manuel Hespanha, Cultura jurídica europeia […], cit..

689
Epílogo.

690
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

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714
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

11 Índices
Índice sistemático.

1 Introdução. 3
1.1 Apresentação. 3
1.1.1 “Uma sociedade construída sobre o direito”. 3
1.1.2 Como reconstruir o direito antigo ? 5
1.1.3 Uma tradição jurídica, na Europa ? 6
1.1.4 Pluralidade de direitos, pluralidade de tradições. 7
1.1.5 A tradição livresca do direito comum tardio da Europa do Sul. 8
1.1.6 Um direito doutrinal. 11
1.1.7 O impacto social do direito letrado. 11
1.1.8 Que ordem expositiva ? 13
1.1.9 Os vários níveis da “descrição”. 15
1.1.10 A “contextualização”. 17
1.1.11 O aparato crítico e os instrumentos de leitura. 18
1.1.12 O modelo corporativo do direito e do poder. 19
1.1.13 Conclusão. 23
1.2 Abreviaturas. 24
1.3 Indicações sobre fontes. 26
1.3.1 Sistematização e forma de citação do Corpus Iuris Civilis. 26
1.3.2 Sistematização e sistemas de citação do Corpus Iuris Canonicis. 26
1.3.3 Fontes de história jurídica on-line. 27
2 As jurisdições e o direito. 33
2.1 A ideia de jurisdição. 34
2.2 Espécies e graus. 35
2.2.1 O legado da ideia de imperium. 38
2.3 Jurisdição ordinária e delegada. 41
2.3.1 O público e o privado. 42
2.4 A jurisdição dos concelhos, da coroa e da Igreja. 48
2.4.1 Os concelhos. 48
2.4.1.1 Os fundamentos doutrinais da autonomia de governo das comunidades territoriais 48
2.4.1.2 Posturas, costumes locais e lei 50
2.4.1.3 Jurisdição concelhia e jurisdição senhorial. 51
2.4.1.4 Magistrados e oficiais dos concelhos. 51
2.4.1.5 Dimensões do autogoverno 57
2.4.1.6 O controlo do centro. 58
2.4.1.7 O poder municipal nos fins do Antigo Regime 59
2.4.2 A administração da Coroa. 61
2.4.2.1 O modelo jurisdicionalista do poder. 62
2.4.2.1.1 A Justiça. 62
2.4.2.1.2 A Graça. 64
2.4.2.1.3 O governo económico. 64
2.4.2.1.4 O governo político. 66
2.4.2.2 Administração periférica da coroa 69
2.4.2.2.1 Os oficiais de justiça. 69
2.4.2.2.1.1Os juízes de fora. 69
2.4.2.2.1.2Os corregedores. 71
2.4.2.2.1.3Os provedores. 73
2.4.2.2.2 Os oficiais da fazenda. 75
2.4.2.2.3 Os oficiais da milícia. 77
2.4.2.2.4 Administração dos próprios da coros da coroa 78
2.4.2.3 A administração central 79
2.4.2.3.1 Casa Real. 79
2.4.2.3.2 Secretários. 80
2.4.2.3.3 Conselho de Estado. 81
2.4.2.3.4 Conselho de Portugal. 82
2.4.2.3.5 Desembargo do Paço. 82
715
Índices
2.4.2.3.6 Casas da Suplicação e do Cível. 83
2.4.2.3.7 Conselho da Fazenda. 84
2.4.2.3.8 Mesa da Consciência e Ordens. 86
2.4.2.3.9 Conselho da Índia e Conselho Ultramarino. 87
2.4.2.4 Conselho de Guerra. 88
2.4.2.5 Tribunais eclesiásticos. 88
2.4.3 Jurisdição senhorial. 89
2.4.3.1 Introdução 89
2.4.3.2 O regime político-jurídico dos senhorios. 91
2.4.3.3 O que era um senhorio e qual o seu conteúdo institucional. 93
2.4.3.3.1 Jurisdição 93
2.4.3.3.2 Direitos reais 94
2.4.3.3.3 As categorias dos bens e direitos do rei. Bens privados, fiscais e da coroa. 95
2.4.3.3.4 A doutrina iluminista sobre o património régio. 98
2.4.3.4 Donatários e senhores 100
2.4.3.5 A constituição dos senhorios. 101
2.4.3.6 Conteúdo das doações 103
2.4.3.6.1 Correição 103
2.4.3.6.2 Apelações 104
2.4.3.6.3 Jurisdição 104
2.4.3.6.4 Dada das justiças. 104
2.4.3.6.5 Dada dos ofícios. 105
2.4.3.6.6 Foros, tributos e direitos reais. 105
2.4.3.7 Transmissão dos direitos senhoriais. 105
2.4.3.8 A política da coroa quanto aos senhorios 109
2.4.3.9 O regime senhorial nos últimos anos do Antigo Regime 111
2.4.4 A Igreja. 114
2.4.4.1 A Igreja como sociedade eclesial 114
2.4.4.2 Os clérigos 118
2.4.4.3 O direito eclesiástico. 120
2.4.4.4 A jurisdição. 125
2.4.4.4.1 As pequenas vitórias do outro gládio 128
2.4.4.5 Uma malha político-administrativa. Benefícios, padroados e comendas. 130
2.4.4.5.1 Bispos 132
2.4.4.5.2 Cónegos 134
2.4.4.5.3 Párocos 135
2.4.4.5.4 Abades 141
2.4.5 Outras jurisdições corporativas (conservatórias). 142
2.5 O direito. 143
2.5.1 Entre teologia e direito. 143
2.5.2 O direito divino. 145
2.5.3 O direito natural e o direito positivo. 146
2.5.4 O direito positivo. 148
2.5.4.1 O direito das gentes. 148
2.5.4.2 O direito civil. 150
2.5.4.3 Direito comum e direitos próprios. 151
2.5.4.3.1 A lei. 152
2.5.4.3.2 Os estatutos. 154
2.5.4.3.3 Costume. 156
2.5.4.3.4 Os estilos. 158
2.5.5 A dispensa de uma norma. 158
2.5.6 Os direitos particulares. 159
2.5.7 O pluralismo jurídico moderno na Europa e Ultramar. O direito e a fé. 160
2.5.7.1 O direito e a fé. 160
2.5.7.2 O direito e a natureza. 162
2.5.8 A interpretação. 166
2.6 Magistrados e oficiais 169
2.6.1 Definição 169
2.6.2 Consequências normativas da natureza dos ofícios. 175
2.6.3 A capacidade para exercer ofícios públicos. 177
2.6.4 O exercício dos ofícios. Deveres deontológicos e retribuição. 178
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2.6.5 Regime dos ofícios. 181
2.6.5.1 Criação e dada dos ofícios. 181
2.6.5.2 Extinção e privação de ofícios. 184
2.6.5.3 Transmissibilidade dos ofícios por morte do titular. 186
2.6.5.4 Venalidade dos ofícios. 188
2.6.5.5 Arrendamento dos ofícios (serventias). 191
2.6.5.6 Vacatura de ofícios. 192
2.6.6 Hierarquia dos ofícios. 192
2.6.6.1 O príncipe e os magistrados “colaterais”. 193
2.6.6.2 Magistraturas ordinárias com jurisdição territorial ou corporativa. 194
2.6.6.3 Magistraturas ordinárias de competência especializada. 195
2.6.6.4 Magistraturas delegadas (ou comissariais). 195
2.6.7 Os ofícios no reino de Portugal. 197
2.6.7.1 Súmula 197
3 Direito das pessoas. 201
3.1 Estados e pessoas. 201
3.1.1 Escravos. 207
3.1.1.1 Títulos de escravização. 207
3.1.1.2 O direito dos escravos. 213
3.1.1.3 Servos adscritícios e criados. 218
3.1.1.4 Outras fidelidades domésticas. 218
3.1.2 Naturais. 219
3.1.2.1 Extensões da naturalidade. 223
3.1.2.2 Restrições da naturalidade. 223
3.1.2.3 O relevo jurídico da naturalidade. 225
3.1.3 Vizinhos. 226
3.1.4 Estrangeiros. 227
3.1.5 Nobres. 229
3.1.5.1 O imaginário jurídico nobiliárquico. 231
3.1.5.2 Títulos de aquisição ou de prova. 231
3.1.5.3 Categorias. 237
3.1.5.4 Efeitos da nobreza. 240
3.1.6 Plebeus e outros estados. 241
3.1.7 Pessoas miseráveis. 241
3.1.8 Mulheres. 245
3.1.9 Menores. 251
3.1.9.1 A natureza dos menores. 251
3.1.9.2 As idades: infantes, impúberes e púberes. 252
3.1.9.3 O direito dos menores. 253
3.1.9.4 Os quase menores, os maiores e os quase maiores. 255
3.1.9.5 O trabalho dos menores. 256
3.1.10 Os doidos. 256
3.1.10.1 Os estados próximos da demência: velhos, doentes, pródigos e falidos. 258
3.2 Família. Relações pessoais 261
3.2.1 O casamento. 262
3.2.2 Os esponsais. 267
3.2.3 Marido e mulher. 268
3.2.4 Filhos. 272
3.2.5 Restante parentela. 278
3.2.6 Criados. 280
3.2.7 A expansão do modelo familiar. 280
3.3 Relações patrimoniais. 281
3.3.1 Os regimes de bens do casamento. 285
3.3.1.1 A comunhão geral de bens. 286
3.3.1.2 O regime dotal 291
3.3.1.3 As arras. 298
3.3.1.4 As doações entre os cônjuges. 299
3.3.2 Tutelas e curatelas. 301
3.3.2.1 Das tutelas. 301
3.3.2.2 Das curatelas. 303
4 Direito das coisas 305
Índices
4.1 O conceito de “coisa” 305
4.1.1 As coisas na sistematização tradicional das matérias jurídicas. 305
4.1.2 A “coisifcação” das relações sociais e políticas. 306
4.1.3 As coisas como entidades conceptuais, antes que empíricas. 308
4.1.4 Pessoas e coisas. 309
4.1.5 Da multiplicidade de utilidades à universalização da propriedade. 312
4.1.6 O modelo proprietário das relações dos homens com as coisas. 314
4.2 As espécies de coisas. 317
4.2.1 Coisas sagradas, religiosas e santas. 318
4.2.1.1 Os bens eclesiásticos. 319
4.2.1.1.1 Benefícios. 320
4.2.1.1.2 Padroados. 325
4.2.1.1.3 Comendas. 328
4.2.1.2 A enfiteuse eclesiástica. 329
4.2.2 Coisas comuns, públicas, de ninguém e privadas. 330
4.2.2.1 Coisas comuns de todos. 330
4.2.2.2 Coisas públicas ou do rei (regalia). 333
4.2.2.3 Bens da coroa. 337
4.2.2.4 Reguengos. 341
4.2.2.5 A concessão de coisas públicas. 343
4.2.2.6 Sesmarias. 343
4.2.3 Comuns de todos. 346
4.2.4 De uma universidade. 346
4.2.5 Coisas de ninguém. 348
4.2.6 Coisas particulares. 349
4.2.7 Outras divisões da coisas. Coisas corpóreas e incorpóreas, móveis ou imóveis. 349
4.3 Os direitos sobre as coisas. 350
4.3.1 A posse. 350
4.3.2 O domínio. 358
4.3.2.1 Os modos de adquirir o domínio. 358
4.3.2.1.1 Ocupação (occupatio). 359
4.3.2.1.2 Conquista. 360
4.3.2.1.3 Achamento. 360
4.3.2.1.4 Aquisição dos frutos. 361
4.3.2.1.5 Acessão natural (accessio naturalis). 362
4.3.2.1.6 Acessão por facto humano ou industrial (accessio artificialis vel industrialis). 362
4.3.2.1.7 Especificação (specificatio). 363
4.3.2.1.8 Confusão (confusio) e mistura (mixtura). 364
4.3.2.1.9 Tradição. 365
4.3.2.1.10 Usucapião (usucapio) ou prescrição (praescriptio) aquisitiva. 366
4.3.2.1.10.1Boa fé. 367
4.3.2.1.10.2Justo título. 368
4.3.2.1.10.3Posse contínua. 368
4.3.2.1.10.4Posse legítima (não viciosa). 370
4.3.2.1.10.5Coisas imprescritíveis. 371
4.3.2.1.10.6Contra quem não corria a prescrição. 373
4.3.2.1.10.7Termos, suspensão e interrupção. 374
4.3.2.2 Os poderes do proprietário. 374
4.3.3 A enfiteuse. 377
4.3.3.1 Natureza da enfiteuse 378
4.3.3.2 Contra distinção entre enfiteuse e outras situações fundiárias. 379
4.3.3.2.1 Enfiteuse e locação (colonia simples). 380
4.3.3.2.2 Enfiteuse e censo. 380
4.3.3.2.3 Enfiteuse e feudo. 381
4.3.3.2.4 Enfiteuse e concessões precárias de coisas eclesiásticas. 382
4.3.3.3 Espécies de enfiteuse. 382
4.3.3.4 Quem podia emprazar e quem podia ser chamado a suceder no prazo. 384
4.3.3.5 Que coisas se podiam aforar. 385
4.3.3.6 Como se constituía e como se provava. 385
4.3.3.7 Como se extinguia. 386
4.3.3.8 Direitos do enfiteuta. 386
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
4.3.3.9 Direitos do senhorio. 388
4.3.3.10 Renovação e consolidação. 389
4.3.4 Os censos. 395
4.3.5 A colonia. 398
4.3.6 As situações agrárias. Quadro sinótico. 402
4.3.7 As servidões. 402
4.3.8 O usufruto 406
4.3.9 Uso e habitação. 407
4.3.10 Direito de superfície. 407
4.3.11 Direito ao pasto. 408
5 As sucessões. 411
5.1 Fontes do regime sucessório no direito comum. 411
5.2 O testamento e a sucessão testamentária. 412
5.2.1 O testamento. Noção. 412
5.2.2 Espécies de testamento e suas formalidades. 413
5.2.3 Requisitos substanciais do testamento. 417
5.2.4 A instituição de herdeiro. 420
5.2.5 A preterição de herdeiro. 421
5.2.6 A deserdação. 422
5.2.7 As substituições. 422
5.2.8 A interpretação dos testamentos. 423
5.2.9 Testamentos nulos, rotos, inoficiosos e vazios. 423
5.2.10 A execução dos testamentos. 425
5.2.11 A herança. 425
5.2.12 A aceitação da herança. 425
5.2.13 A situação jurídica do herdeiro. 426
5.2.14 Os legados. 427
5.2.15 Os fideicomissos. 429
5.3 A sucessão legítima ab intestato ou legítima. 430
5.3.1 A ordem sucessória. 430
5.3.1.1 Os descendentes. 431
5.3.1.2 Os ascendentes. 434
5.3.1.3 Os colaterais. 435
5.3.1.4 Os cônjuges. 435
5.3.1.5 O fisco. 435
5.4 Os morgados. 436
5.4.1 Noção 436
5.4.2 Instituidor e instituição. 438
5.4.3 Bens de morgado. 441
5.4.4 Chamados à posse ou administração. 442
5.4.5 Ordem sucessória. 444
5.4.6 O direito de representação. 449
5.4.7 Poderes do possuidor 453
5.5 As capelas. 455
5.6 Partilhas e colações. 456
6 As obrigações. 461
6.1 Introdução. 461
6.2 A fonte do vínculo obrigacional. 462
6.3 A ascensão do consensualismo. 466
6.4 Os vícios da vontade. 467
6.4.1 A ignorância ou erro. 468
6.4.2 O dolo. 472
6.4.3 A fraude ou simulação. 473
6.4.4 A coação. 474
6.4.5 A renúncia à invocação dos “vícios da vontade”. 476
6.5 Outras consequências do consensualismo. 477
6.6 Limites do consensualismo: possibilidade e licitude. 478
6.7 As cláusulas acessórias dos contratos. 479
6.7.1 A condição. 479
6.7.2 O modo. 481
6.7.3 O termo. 481
Índices
6.8 A extinção das obrigações. 481
6.9 As obrigações contratuais (ex contractu). 483
6.9.1 Os pactos e os contratos. 483
6.9.2 As espécies de pactos e contratos. 489
6.9.2.1 Os contratos gratuitos. 489
6.9.2.1.1 A doação. 489
6.9.2.1.2 As doações de bens da coroa ou doações régias. 496
6.9.2.1.3 O comodato ou empréstimo. 499
6.9.2.1.4 O mútuo. 501
6.9.2.1.5 A usura. 501
6.9.2.1.6 O lucro legítimo dos comerciantes. O contrato de câmbio. 503
6.9.2.1.7 O precário. 505
6.9.2.1.8 O depósito. 506
6.9.2.1.9 O mandato. 507
6.9.2.2 Os contratos onerosos 508
6.9.2.2.1 A troca (permutatio). 509
6.9.2.2.2 A compra e venda (emptio venditio). 510
6.9.2.2.3 A locação (locatio conductio). 518
6.9.2.2.4 A sociedade ou companhia. 526
6.9.2.2.5 Contrato de seguro. 529
6.9.2.2.6 O empréstimo náutico. 530
6.9.2.2.7 O contrato de jogo. 530
6.9.2.2.8 Compra de esperança ou de coisa futura. 532
6.9.2.3 Convenções assessórias. 532
6.9.2.3.1 A fiança. 532
6.9.2.3.2 O penhor e a hipoteca. 537
6.10 Os quase contratos. Introdução. 544
6.10.1 Gestão de negócios. 546
6.10.2 A administração da tutela e curatela. 546
6.10.3 As obrigações estabelecidas pela Lex Rhodia de jactu. 547
6.10.4 As obrigações derivadas da aceitação da herança (adhitio haereditatis). 547
6.10.5 A divisão de coisa comum. 547
6.10.6 A restituição de coisas recebidas. 547
6.10.7 O pagamento indevido. 547
6.10.8 A repetição de entregas sem causa legítima. 548
6.10.9 A evicção. 548
6.11 Obrigações delituais (ex delictu). 549
7 As ações. 557
7.1 O sentido social e político do direito processual do reino. 557
7.1.1 Uma compreensão mais profunda dos expedientes processuais. 559
7.1.2 O novo entendimento da ação na dogmática jusracionalista. 563
7.1.3 A classificação das acções. 564
7.1.3.1 As ações prejudiciais. 567
7.1.3.2 As ações reais. 568
7.1.3.3 As ações pessoais. 570
7.1.3.4 Interditos. 572
7.1.4 Conclusão. 573
7.1.5 Os elementos do processo. 574
7.1.6 A ordem do processo. 574
7.1.6.1 O processo ordinário. 575
7.1.6.2 O processo sumário. 575
7.1.7 Os elementos necessários do juízo. 576
7.1.7.1 Autor. 576
7.1.7.2 O réu. 577
7.1.7.3 O juiz (competente). 577
7.1.8 Elementos acessórios do juízo. 583
7.1.9 As fases do juízo. 584
7.1.9.1 A citação. 584
7.1.9.2 Libelo. Contradita e exceções. 586
7.1.9.3 Contestação da lide. 588
7.1.9.4 Prazos. 590
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
7.1.9.5 As provas. 590
7.1.9.5.1 As presunções. 592
7.1.9.6 As testemunhas. 593
7.1.9.7 Instrumentos ou documentos. 594
7.1.9.8 O juramento. 595
7.1.9.9 A confissão. 596
7.1.9.9.1 A tortura: 597
7.1.10 A sentença e o caso julgado. 598
7.1.11 A execução. 599
7.1.12 As execuções fiscais. 601
7.1.13 As dízimas e as custas. 603
7.1.14 Os recursos. Apelações e agravos. 603
7.1.15 A apelação. 604
7.1.15.1 O agravo. 605
7.1.15.2 A revista. 606
7.1.15.3 Os recursos extraordinários. 607
8 Crimes e penas. 609
8.1 A dogmática penal. 609
8.1.1 O delito. 610
8.1.2 A ilicitude e tipicidade. 611
8.1.3 A imputabilidade penal: menores, furiosos, bêbados e irados. 612
8.1.4 A imputação. 613
8.1.4.1 Dolo. 613
8.1.4.2 Culpa. 614
8.1.4.3 O acaso. 615
8.1.5 Punibilidade. 616
8.1.6 O processo e a prova. 616
8.1.6.1 Introdução. 617
8.1.6.2 O juiz competente. 620
8.1.6.3 A ordem processual. Processo ordinário. 622
8.1.6.4 Averiguação. 622
8.1.6.4.1 A devassa 622
8.1.6.4.2 A querela. 623
8.1.6.4.3 Denúncia. 623
8.1.6.4.4 A pronúncia. 623
8.1.6.4.5 Prisão, segurança, fiança, sequestro. 624
8.1.6.4.6 Acusação e fixação da ordem do processo. 625
8.1.6.4.7 Citação 625
8.1.6.4.8 Libelo de Acusação 625
8.1.6.4.9 Exceções 626
8.1.6.4.10 Contestação da lide (contradita). 626
8.1.6.4.11 Réplica do Autor e tréplica do réu 626
8.1.6.4.12 Prova 627
8.1.6.4.13 Confissão. 627
8.1.6.4.14 Tormentos 627
8.1.6.4.15 Documentos. 628
8.1.6.4.16 Testemunhas. 628
8.1.6.4.17 Perguntas ao réu 628
8.1.6.4.18 Alegações 628
8.1.6.4.19 Defesa. 629
8.1.6.4.20 Sentença. 629
8.1.6.4.21 Custas. 629
8.1.6.4.22 Embargos ou agravos. 630
8.1.6.4.23 Apelação 630
8.1.6.5 Circunstâncias atenuantes e perdão. 630
8.1.6.5.1 Execução. 632
8.1.6.5.2 Extinção da causa. 632
8.1.6.6 Processo sumário 632
8.1.7 A pena. 633
8.2 O sistema axiológico do direito penal de Antigo Regime 634
8.2.1 Crimes contra a ordem religiosa. 634
Índices
8.2.1.1 Heresia 635
8.2.1.2 Sacrilégio. 639
8.2.1.3 Blasfémia. 640
8.2.1.4 Feitiçaria, benzas e vigílias nas Igrejas. 641
8.2.2 Crimes contra a ordem moral 642
8.2.2.1 Sodomia (relações homossexuais, bestialidade e masturbação). 642
8.2.2.2 Adultério. 643
8.2.2.3 Estupro. 645
8.2.3 Os crimes contra a ordem política. 647
8.2.3.1 Lesa-majestade. 647
8.2.3.2 Os crimes contra a ordem pública - a violência 649
8.2.3.3 Crimes contra as pessoas - a honra 650
8.2.3.4 As injúrias. 650
8.2.4 Crimes contra as pessoas - o corpo. 653
8.2.4.1 Homicídio. 653
8.2.4.2 Ofensas corporais. 656
8.2.5 Crimes contra a verdade. 657
8.2.5.1 Falsificação de cartas do papa, do imperador ou do rei. 659
8.2.5.2 O perjúrio ou falso testemunho. 660
8.2.5.3 Falsificação de moeda. 661
8.2.5.4 Falsificação de pesos e medidas. 662
8.2.5.5 Simulação ou ocultação de partos. 662
8.2.5.6 Uso de nomes falsos, estatutos jurídicos, brasões, trajos estatutários, falsos. 662
8.2.5.7 Adulteração de coisas. 663
8.2.5.8 A extensão do conceito de falso. O estelionato. 663
8.2.5.9 Os crimes dos oficiais. 664
8.2.5.9.1 O julgamento contra direito. 665
8.2.5.9.2 A prevaricação. 667
8.2.5.9.3 A peita ou suborno e a extorsão. 668
8.2.5.9.4 O locupletamento com bens públicos. 669
8.2.6 Crimes contra o património. 670
8.2.6.1 O dano. 670
8.2.6.2 Furto. 672
8.3 O direito penal das monarquias corporativas. 676
8.3.1 Punição e disciplina.««« 676
8.3.2 Pluralismo disciplinar. 677
8.3.3 A prática da punição. 678
8.3.4 A economia da Graça: perdão, comutação e livramento. 681
9 Epílogo. 687
10 Bibliografia citada. 691
11 Índices 715
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

Indice temático

Abade, 141, 281 Actio de in rem verso, 565 quod interest, 517
Abandono, 348 Actio de mandato, 537 Actio quasi serviana, 565
Aborto, 654 Actio de negotiis gestis, 546 Actio quod iussum, 533, 537,
Absolutismo, 208 Actio de partu agnoscendo, 546, 553, 565, 571
Açambarcamento, 649, 664 567 Actio quod metus causa, 566
Ação (nome da), 587 Actio de pascu, 555 Actio redhibitoria, 517, 566
Ação confessória (de Actio de pauperie, 555, 567, Actio Serviana hypothecaria
servidão), 569 615 (e pignoratitia), 565
Ação de alimentos, 292 Actio de peculio, 565 Actio spolii, 356
Ação de dote, 292 Actio depositi, 506, 566 Actio utilis, 563
Ação de esbulho, 572 Actio directa, 563 Actio vectigalis, 387
Ação de petição da herança, Actio empti, 517 Actiones (praetoriae)
569 Actio empti e actio venditi, praeiudiciales, 566
Ação de rescisão por lesão, 511 Actiones bonae fidei, 566
566 Actio ex contractu, 571 Actiones de in rem verso,
Ação hipotecária, 538, 570 Actio ex dolo, 566 546
Ação negatória (de Actio ex empto, 566 Actiones ex lege Aquilia, 671
servidão), 569 Actio ex lege Aquilia, 555 Actiones in factum
Ação pauliana, 568 Actio ex pacto, 570 conceptae, 561, 572
Ação rescisória, 568 Actio ex vendito, 566 Actiones in factum conceptae
Acareação, 628 Actio exercitoria, 565 ou actiones praescriptis
Acaso (casus), 615 Actio exercitoria ou actio verbis, 572
Acessão industrial, 362 instituria, 546 Actiones legis. Consulte
Acessão natural, 362 Actio familiae erciscundae, Legis actiones
Achado, 348 281, 565 Actiones poenales, 549
Ações, 306 Actio finium regundorum, 565 Actiones praescriptis verbis,
Ações (classificação), 564 Actio furt, 360 561, 571
Ações (classificações), 562 Actio furti, 506, 536, 672 Actiones praetoriae, 560
Ações (nomes das), 561 Actio furti (furtiva), 565 Actiones tutellae, 566
Ações civis (actiones legis) Actio hypothecaria, 541 Actus legitimi, 480
pessoais, reais e mistas, 564 Actio iniuriarum, 549, 567, Acusação, 625
Ações de liberdade, 567 651, 671 Acusatório, 577
Ações e obrigações, 561 Actio institutoria, exercitoria, Addictio in diem, 515, 543
Ações mistas, 572 565 Adipiscendae hereditatis,
Ações pessoais, 570 Actio legis Aquiliae, 549 567
Ações pessoais e ações Actio Legis Aquiliae, 567 Administração ativa, 67
reais, 307 Actio locati, conducti, 566 Administração central ou
Ações prejudicais, 567 Actio mandati, 566 palatina, 79
Ações reais, 568 Actio mutui, 501, 566 Administração dos bens
Ações sumárias, 575 Actio negotiorum gestorum, próprios da coroa, 78
Actio. Consulte Ação, ações 566 Administração militar, 77
Actio ad exhibendum, 566, Actio noxalis, 555, 567 Administradores (de
570 Actio Pauliana, 565 morgado), 437, 453
Actio adjectitiae qualitatis, Actio petitionis hereditatis, Adoção, 273
565 566 Adrogação, 433
Actio chirografica, 562 Actio pigneraticia ou Adulteração de coisas, 663
Actio Clavisiana e Fabiana, hypothecaria, 538 Adultério, 265, 643
565 Actio praescriptis verbis, 509, Adultério (como cuasa de
Actio comissi, 389 518 separação), 266
Actio commodati, 566 Actio pro dote, 566 Advogados, 239, 507, 583
Actio communi dividundi, 565 Actio pro socio, 566 Advogados letrados, 176
Actio confessoria ou Actio publiciana, 376, 510, Aerarium e fiscum, 96
negatoria, 565 569 Aes alienum, 425
Actio confessoria servitutis, Actio quanti minori, 512, 514 Afinidade, 265
405 Actio quanti minoris, 566 Agnados, 442
Actio damni iniuria dati, 549 Actio quanti minoris ou id Agnados e cognados, 430
Índices
Agravo ordinário, 159 Arresto, 585 Cabeça de casal, 457
Agravo por petição ou Articulados, 587, 589 Cabido, 135
instrumento, 606 Ascendentes, 434 Caça, 359
Agravos, 557, 605, 630 Assassínio, 654 Caducidade (da enfiteuse),
Agravos ordinários, 606 Assessor, 598 389
Ajuda do braço secular, 134 Assignação de 10 dias, 429, Câmara ou curia episcopal,
Alçada, 604 575 133
Alcaides mores dos castelos, Assistentes, 583 Câmbio, 504
56, 247 Assuadas, 650 Canonica portio, 320
Aldeias índias, 223 Autor, 576 Capacidade processual
Alegações, 628 Azenhas e moinhos, 331 ativa, 576
Aleivosia, 647 Bacharelismo, 559 Capacidade processual
Alfândegas, 76 Banditismo, 649, 676 passiva, 577
Alfândegas e portos secos, Banhos ou Proclamas, 266 Capela-mor real, 127, 582
334 Batismo, 115, 223 Capelas, 345, 437, 455
Alfinetes, 300 Bebedeira, 552, 613, 655 Capelas de D. Afonso V,,
Alma, 420 Bêbedos, 257 456
Alma (personificação da), Beneficiados (seleção), 324 Capitães, 344
205 Benefício da excussão, 534 Capitão dos Índios, 223
Almotacés, 403 Benefício de inventário, 427 Caráter pessoal das
Almoxarifes, 76, 342, 345 Benefícios, 130, 320 obrigações, 478
Alódio, 342 Benefícios (venda de), 324 Carrasco, 634
Alternativa, 131 Beneplácito régio, 128 Carta testemunhável, 605
Aluvião, 362 Benesses, 139 Carta tuitiva, 356
Âmbito, 669 Benfeitorias (enfiteuse), 387 Cartas de expectativas, 322
Anatas, 334 Bens alodiais, 333 Cartas de fiança, 683
Animais (personificação), Bens da coroa, 97, 337 Cartas de seguro (ou cartas
206 Bens da coroa (do reino), tuitivas), 557
Animais domesticáveis, 359 333, 338 Cartas de seguro (ou cartas
Animais domésticos, 360 Bens da coroa (iluminismo), tuitivas), 624
Animais selvagens, 348 98 Cartas de seguro (securitatis
Animus iniuriandi, 652 Bens de avoenga, 511 ou assecurationis litterae),
Animus possidendi, 350 Bens do rei, 333 683
Aniversários, 137 Bens do rei (patrimoniais), Cartas tuitivas, 356
Annonnae, 320 341 Casa da Índia e da Mina, 334
Ano do morto, 133 Bens dos concelhos, 347 Casa da Índia e da Mina, 143
Ano e dia, 573 Bens eclesiásticos, 319 Casa da Suplicação, 83
Anticrese, 543 Bens esponsalícios, 300 Casa do Cível, 83, 606
Apanágio, 300 Bens parafernais, 291, 297 Casa dos Catecúmenos, 223
Aparelho administrativo Bens vagos ou desertos, 335 Casa e Igreja, 281
(Portugal, séc. XVII), 197 Bibliotecas de juristas, 9 Casa e república, 281
Apelações, 604, 630 Bimester, 268 Casa Real, 79
Apelações (para os Bispos, 132, 425, 580 Casamento, 262
senhores), 104 Blasfémia, 640 Casamento (finalidades), 268
Apostas, 531 Boa fé (bona fides) na Casamento (liberdade), 274
Aquisição derivada, 365 prescrição, 367 Casamento (uso honesto
Arbítrio judicial (na criação Bombardeiros, 241 do), 269
de ações), 564 Bonorum possessio contra Casamento por "palavras de
Arbitrium, 374 tabulas, 423 futuro", 267
Árbitros, 584 Brasil, 22, 213, 216, 220, Casamento por “palavras de
Arbor iurisdictionum, 35 228, 250, 345, 346, 400, 504, presente”, 267
Arcas das [obras] pias, 242 559, 606 Caso (casus). Consulte
Arcedíagos, 133, 134 Brasões, 663 Acaso
Arciprestes, 133 Brocardos, 11 Caso fortuito, 551
Áreas de governo (da coroa), Bula da Ceia, 128, 146, 659 Caso fortuito (renúncia a),
61 Bula da Cruzada, 127, 583, 477
Aristocratização, 440 621 Caso julgado ou coisa
Armas, 649 Bula in coena Domini. julgada, 599
Arras, 298 Consulte Bula da Ceia Castelos, 439
Arrependimento Bulas papais de divisão do Catecumenato, 223
(poenitentia), 675 mundo, 161 Categorias obsoletas, 573
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
Categorias obsoletas, 567 Coisas imóveis, 349 Condictio indebiti, 492, 501
Cativos, 436 Coisas incorpóreas, 349 Condictio indebitii, 571
Causa de pedir, 586 Coisas indivisíveis, 458 Condictio mutui, 501
Cautio Muciana, 479 Coisas litigiosas, 349 Conditio ex lege, 571
Cavaleiros das ordens Coisas públicas, 330 Cónegos, 134
militares, 238 Coisas religiosas, 318, 319 Cónegos regulares, 134
Cavaleiros das ordens Coisas sagradas, 318 Conezia, 130, 322
militares, 240 Coisas santas, 318, 319 Conezias (ou canonicatos),
Cavaleiros das ordens Colação, 322, 434 134
militares, 621 Colação (de ofício), 130 Confisco, 402
Cavaleiros de ordens Colecta (ou procuração), 133 Confissão, 121, 596, 627
(sucessão nos morgados), Colegiadas, 135 Confusão, 364, 482
443 Colégios, 436 Côngrua, 137
Cemitérios, 318 Colheita futura (venda de), Cônjuges (como herdeiros),
Censo, 395 532 435
Chanceler-Mor do Reino, Collector. Consulte Tribunal Conquista, 360
153 da Legacia Conquistas, 39, 221
Chanceler-Mor do Reino, Colonia, 370, 380 Conselho da Fazenda, 84
159 Colonia (Madeira), 398 Conselho da Índia, 87
Chicana, 559 Colonia simples, 380 Conselho de Estado, 81
Cidadania, 222 Colono, 380 Conselho de Guerra, 88
Cidadãos, 221 Comarca, 49 Conselho de Portugal, 82
Cidades, 48 Comenda, 132, 328 Conselho Geral do Santo
Citação, 584, 625 Comerciantes, 503, 535 Ofício, 88
Citação da alma, 585 Comerciantes (contratos de), Conselho Ultramarino, 88
Clausula depositaria, 507 503 Consensualismo, 463, 466,
Cláusulas, 11 Comissão, 171 467, 511, 516
Cláusulas acessórias, 479 Comisso, 378, 386, 389, 398 Conservador da
Clemência, 682 Comissões (comissiones, Universidade, 621
Clérigos, 123 curationes), 171 Conservadores das Nações
Clérigos (capacidade Comodato, 499 Estrangeiras, 621
testamentária), 418 Compensação, 482 Constituto possessorio, 351,
Clérigos (e leigos), 118 Competência (do foro), 578 518
Clérigos (fianças), 536 Compra e venda (emptio Constitutum, 487
Clérigos (sucessão dos venditio), 510 Constitutum. Actio pecunia
morgados), 443 Compra e venda de coisa constituta, 565
Clérigos regulares (na futura, 532 Consulado, 77
sucessão dos morgados), Compromissum, 321, 584 Consulado marítimo, 334
443 Compropriedade (e Contadores, 54, 76
Coadjutores, 136 sociedade), 526 Contestação da lide, 626
Code civil (propriedade), 315 Comunhão de bens, 282 Contestação da lide, 588
Codicilo, 415 Comunidades (perfeitas e Contexto textual ou
Coercitio e iurisdictio, 609 imperfeitas), 154 intertexto, 17
Cognados, 279, 446 Comunidades (perfeitas e Contextualização, 17
Coisas, 305 imperfeitas), 49 Continuidade, 6
Coisas (espécies de), 317 Concelhos, 154 Contradita, 626
Coisas abandonadas, 348 Concelhos (autogoverno), 57 Contradita (de testemunhas),
Coisas comuns, 344 Concelhos (jurisdição), 51 593
Coisas comuns de todos, Concílio de Constância Contrato, 262
330 (1414 e 1418), 160 Contrato de trabalho.
Coisas corpóreas, 349 Concubina, 494 Consulte Locação de
Coisas de ninguém (res Concubinato, 645 serviços
nullius), 348 Concurso (provimento de Contratos, 485
Coisas de uso comum, 346 benefícios), 324 Contratos (natureza e
Coisas dos infiéis, 348 Concurso de credores, 542, substância), 487
Coisas e utilidades, 312 601 Contratos aleatórios, 529
Coisas eclesiásticas, 318 Condenação, 629 Contratos beneficiais, 489
Coisas em espécie, 350 Condes, 238 Contratos de boa fé, 486
Coisas em mão comum, 349 Condição (conditio), 479 Contratos de direito estrito,
Coisas genéricas, 350 Condictio, 565, 571 471, 486
Coisas hereditárias, 349 Condictio furtiva, 672 Contratos gratuitos, 499
Índices
Contratos nominados e Décima, 130 433, 440, 448
inominados, 485 Décimas eclesiásticas. Direito de representação
Contratos promessas, 487 Consulte Dízimos (nos morgados), 449
Contubernium, 431 Décimas velhas do pescado, Direito divino, 146
Convicção do juiz, 591 335 Direito divino (noção e
Corpo, 656 Declinatio fori, 589 espécies), 145
Corpo de delito, 623 Defesa do réu, 629 Direito do reino mais
Corporativismo, 687 Definição, 15 próximo, 153
Corpus literário (do ius Defunto, 205 Direito dos rústicos, 12,
commune), 8 Degredo, 679 Consulte Rústicos, Iura
Corpus possessionis, 350 Degredo e desterro, 634 rusticorum
Corregedor, 71 Delictum, 549 Direito e fé, 160, 687
Corregedores, 58 Delito (delictum), 610 Direito eclesiástico. Consulte
Correição (concessão da), Dementes, 444, 625 Direito canónico
103 Denegação da justiça, 666 Direito estrangeiro, 449
Corrupção, 494 Denegatio iustitiae, 126 Direito natural, 146
Costume, 156 Denúncia, 623 Direito natural (dispensa do),
Costume e lei, 157 Depósito, 506 147
Costume imemorial, 346 Desaforo, 171 Direito natural (e direito
Costumes gerais, 153 Desamortização, 383 comum), 167
Costumes locais (e lei), 226 Desamortização (leis de), Direito positivo, 147, 148
Cota, 329 137 Direito processual (princípios
Crescimento. Consulte Descendentes (sucessão gerais), 561
Juros, Usuras dos), 431 Direito processual como
Criados, 218, 280 Desconhecimento direito adjetivo, 306
Crimes contra o património, (nescientia), 469 Direito processual pátrio
670 Descrição densa, 16 (especificidades), 557
Crimes de falso, 657 Desembargadores, 240, 241, Direito próprio, 151
Crimes dos oficiais, 664 620 Direito público
critério do pecado, 125 Desembargo do Paço, 82 (modernidade), 47
Critério do pecado, 368, 645 Deserdação, 275, 422 Direito público e direito
Cruzada, 161 Desnaturalização (degredo, privado, 42
Culpa, 550 amissio civitatis), 633 Direito subsidiário, 153
Culpa (direito penal), 614 Despedimento !§ 1801!, 525 Direitos (tutela dos), 159
Culpa (homicídio), 655 Despejo, 521 Direitos “de foral”, 372
Curado, 136 Detenção (mera), 351, 354 Direitos reais (do rei), 94
Curatela, 303 Devassa, 585 Direitos reais (do rei), 333
Custas, 629 Devassa (inquisitio), 622 Disciplina, 67
Damnum infectum, 671 Devassas, 558 Discurso jurídico moderno,
Damnum iniuria datum, 549 Diffamatio, 445 15
Dano, 549, 670 Dignidade, 130 Dispensa (da lei), 158
Dano (ações), 554 Dignidade (dignitas), 322 Distribuidores, 54, 594
Dano (avaliação), 554 Direito (localismo), 559 Divórcio. Consulte
Dano (civil, definição), 551 Direito à esmola, 242 Separação
Dano (damnum), 671 Direito canónico, 120, 125, Dízima nova do pescado,
danos (criados)|§ 1799|, 525 145 334
Danos (enfiteuta), 388 Direito catedrático (ou Dízimos, 137
Danos (herdeiro), 427 ceras), 133 Doação, 16, 489
Danos (locatário), 520 Direito civil, 145, 150 Doação (causa), 492
Danos (mandatário), 508 Direito comum, 151 Doação para casamento,
Danos (penhor), 544 Direito comum e direito 299
Danos (por vícios ocultos), próprio, 143, 151 Doação pura ou simples, 491
520 Direito comum tardio, 8 Doações de bens da coroa,
Danos (possuidor), 355 Direito das gentes, 148 496
Danos (tutor), 255, 303 Direito de acrescer, 424, 428 Doações entre cônjuges, 299
Danos emergentes, 550, 554 Direito de asilo, 128 Doações inoficiosas, 495
Datio e donatio, 490 Direito de pasto (pascua), Documentos, 594, 628
De ciência certa e poder 408 Doentes, 259
absoluto, 498 Direito de prelação, 388 Doidos, 256
Deão, 134 Direito de regresso, 534 Dolo, 472, 545, 550
Débito conjugal, 215, 268 Direito de representação, Dolo (direito penal), 613
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
Dolus malus, 610 Escravos, 309, 361 Falsificação de moeda, 661
Domínio, 376 Escravos (preço justo), 212 Familiares do Santo Ofício,
Domínio (aquisição), 358 Escrita (e oralidade), 587 583, 621
Domínio (caducidade), 358 Escritura, 386 Fateusim, 383
Domínio (limitações), 375, Escritura pública, 542 Fazenda, 84
376 Escrivães, 54 Feitiçaria, 641
Domínio (multiplicidade), 311 Escrivão da puridade, 81 Feitor, 76
Domínio e Graça, 313 Escudeiros, 239 Feridas, 654
Domínio eminente, 312 Espaço e poder, 48 Feudalismo, 89, 108
Dominium directum, 376 Espólio, 353, 374, 436, 438 Feudos, 91, 379
Dominium eminens, 376 Esponsais, 267 Feudos (direito dos), 91
Dominium utile, 376 Estado (acções de), 567 Fiadores judiciais, 537
Domnium iurisdictionis, 376 Estado (status), 201 Fiança, 532
Donatários da coroa, 100, Estado de direitos Fiança (processo criminal),
Consulte Senhorios (Rechtsbewährungsstaat), 625
Dote, 291 308 Ficções discursivas, 18
Doutrina e lei, 11 Estado do meio, 237 Fidalgos (de solar, de cota
Ecclesia triumphans e Estatuto e lei, 154 de armas), 239
militans, 115 Estatutos, 151 Fidalgos da casa real, 240
Eclesiásticos, 620 Estatutos (das cidades), 50 Fideicomissos, 428, 429, 437
Emancipação, 276 Estelionato, 663 Fideiussio, 533
Embargos, 159, 630 Estilos, 153, 158 Filhos, 272
Emolumentos, 594 Estirpes, 433 Filhos (capacidade
Empréstimo náutico (foenus Estrangeiros, 221, 227, 621 patrimonial), 284
nauticus), 530 Estrangeiros (foro Filhos (dever de obediência),
Encomienda, 328 privilegiado), 143 274
Enfatiota, 383 Estrangeiros foederati, 227 Filhos (deveres dos pais),
Enfiteuse, 377 Estupro, 645 273
Enfiteuse (e locação de Europa “católica”, 687 Filhos (igualdade), 278
longo tempo), 519 Europa “latina”, 687 Filhos adotivos, 433
Enfiteuse (renovação), 389 Europa do Sul, 8 Filhos de “de coito danado”,
Enfiteuse de nomeação, 384 Evicção, 512, 517, 548 433
Enfiteuse eclesiástica, 329, Evictio, 566 Filhos espúrios, 385, 432
382, 385 Ex certa scientia, 498 Filhos ilegítimos ou naturais,
Enfiteuse familiar, 384 Ex officio, motu proprio, 172 431
Enfiteuse hereditária, 383 Exceção dilatória, 588, 589 Filhos incestuosos, 385
Enriquecimento à custa Exceção perentória, 588, 589 Filhos legitimados, 431
alheia, 551 Exceções, 588 Filhos legítimos, 384
Enriquecimento sem causa, Exceptio plurium, 273 Filhos legítimos (sucessão
548 Excomunhão, 502 dos), 431
Entradas e saídas, 40, 375 Execução, 599 Filhos naturais (sucessão
Envenenamento, 654 Execução da pena, 632 nos morgados), 443
Equidade, 392, 682 Execuções fiscais, 601 Filhos póstumos, 431
Equidade bartolina, 391, 395 Exempti nullius diocesis, 133 Fisco, 601
Erário régio, 87 Expansão (recurso à Fisco (como herdeiro), 436
Erro, 263, 468 violência), 165 Fontes de direito, 143
Erro (doações), 492 Expropriação, 375, 511 Força maior, 551
Erro na sentença (julgar Extinção (do processo Força maior (damnum
mal), 665 penal), 632 fatale), 671
Esbulho ou espólio, 356 Extorsão (ou concussão), Força nova. Consulte
Escrava, 287 668 Esbulho, ação de esbulho
Escravas (partos das), 502 Extra ordinem (ou Formalidades das
Escravatura, 148, 149 extraordinaria) cognitio, 609 obrigações, 477
Escravidão. Consulte Extremas dos prédios, 663 Fornos, 335
Escravos, Escravatura, Fábrica da Igreja, 320 Foro competente, 578
Escravização Falência, 621, 663 Foro eclesiástico, 125, 580
Escravidão como pena, 209 Falidos, 260 Foro misto, 126, 502, 580
Escravização no Brasil, 212 Falsificação de documentos Foros do Algarve, 399
Escravização, legitimidade públicos, 659 Fraterna (charitativa)
da, 164 Falsificação de medidas ou compositio, correctio, 128
Escravo da pena, 209 de pesos, 662 Fraude, 473
Índices
Fraude dos credores, 217, Idolatria, 162 possessionis, 572
494, 495, 516 Ignorância, 468, 482 Interdicta retinendae
Freguesia, 136 Ignorância (de facto e de possessionis, 572
Frutos, 361 direito), 548 Interdictum. Consulte
Frutos extantes e pendentes, Ignorância da lei, 153 Interdito, interditos
513 Igreja, 114 Interdictum adipisciendae
Fuga, 655 Igreja (conceito de), 115 possessionis, 573
Funcionários (dos Igreja (direitos da), 146 Interdito unde vi, 572
concelhos), 53 Igualdade (dos côjuges), 270 Interdito uti possidetis, 572
Fundata intentio, 322 Ilicitude, 611 Interditos, 572
Fundus instructus, 513 Iluminismo, 6, 166, 563, 579, Interditos possessórios, 160,
Funerais, 318 625, 634, 642, 645, 648, 657, 356, 406, 572
Furto, 670, 672 681 Interlocutária. Consulte
Furto de uso, 499, 506 Impedimentos, 263 Sentença interlocutória
Furto violento (roubo, Imperícia (do juiz), 666 Interlocutória, 604, Consulte
rapina), 672 Império (graus), 36 Sentença interlocutória
Garantia correal, 536 Império (moderno), 38 Interlocutória mera, 606
Garantia das obrigações, Império português, 39 Interpretação (testamento),
532 Imperium, 36, 38 423
Generosidade, 491 Imperium e Império, 38 Interpretação textual, 168
Gestão de negócios, 546 Ímpeto (impetus), 613 Interpretação usual, 167, 169
Governo dos não europeus, Impúberes, 625 Inventário, 427, 457
162 Imputabilidade (penal), 613 Ira, 613, 652
Governo económico, 60, 64 In diem addictio, 481 Irregularidades canónicas,
Governo político, 66 In nexum dare, 549 119
Graça, 64, 115, 392, 502, Incitamento, 655 Isentos, 133
682 Incorporação (nos bens da Iudicium, 40, 63
Grandes, 240 coroa), 96 Iura ad rem, 350
Gratidão, 464 Indissolubilidade, 262 Iura rusticorum, 224,
Gratidão (dever de), 274 Individualismo, 440 Consulte Rústicos
Graus (de parentesco), 445 Indivídualismo, 687 Iurisdictio, 20
Graus (de parentesco), 435 Indivisibilidade, 339 iurisdictio ecclesiastica
Guerra (como título de Infanções, 238 adventicia, 126
escravização), 208 Infantes, 252 iurisdictio ecclesiastica
Guerra justa, 162, 163, 208 Ingratidão, 571 essentialis, 126
Guerras nativas, 211 Ingratidão (dos filhos), 422 Ius ad rem, 307
Haeredes extranei, 426 Inimigos (hostes), 227 Ius in re, 307
Haeredes sui, 425 Injúria (e fiança), 537 Ius publicum (alcance), 45
Haeredes sui et necessarii, Injúrias, 650 Jogo, 304
430 Inoficioso (legado, doação), Jogo (contrato de), 530
Herança, 402, 425, 573 460 Judeus, 209
Herança jacente, 304, 359 Inquirição "aos costumes", Jugadas, 77, 335, 341
Herdades (do rei), 335 594 Jugadas (isenções), 341
Herdeiro (instituição de), Inquirição "de costumes", Jugadas (livros de), 341
413, 420 593 Juiz (Officium mercenarium),
Herdeiro (obrigações do), Inquiridores, 54, 593 577
547 Insinuação das doações, 491 Juiz (officium nobile), 577
Herdeiros forçosos, 430 Insinuação das doações, 300 Juiz (poder discricionário),
Herdeiros forçosos, 427 Instituições indígenas, 559
Herdeiros forçosos, 434 legitimidade das, 163 Juiz competente, 577
Herdeiros forçosos, 459 Institutiones, 6, 14 Juiz das Três Ordens
Heresia, 502, 635 Institutiones Iustiniani Militares, 582
Hereus (hereo), 420 (sistematização), 461 Juiz dos feitos da coroa da
Hesitação (titubatio), 469 Intentio fundata, 131 Casa da Suplicaçâo, 133
Homenagem, 624 Intercessio, 535 Juiz dos órfãos, 427
Homicídio, 653 Interdição de água e fogo, Juízes (corrupção), 179
Honras (indivisibilidade), 439 654 Juízes (dos concelhos), 53
Hospital de Todos os Santos, Interdição de uso da água e Juízes de fora, 59, 60, 69
143 do fogo, 669 Juízes delegados, 578
Id quod interest, 509 Interdicta, 307 Juízes ordinários, 57, 577
Idade núbil, 263 Interdicta recuperandae Juízo, 574
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
Juízo (ordem de), 584 Libelo (processo criminal), separação), 266
Julgamento contra direito, 625 Meação ou dimidia, 399
666 Libelo ou petição inicial, 586 Mecânicos, 241
Juntas, 66 Liberal, 490 Médico (responsabilidade),
Juramento, 391, 464, 501, Liberalidade, 464 654, 655
595, 660 Liberdade, 148 Médicos, 239
Juramento de calúnia, 623 Liberto, 217 Meia anata, 325
Jurisdição (avocação), 578 Libertos, 213 Meninos (pueri impuberes),
Jurisdição (conceito), 34 Linha, 445 252
Jurisdição (graus), 37 Linha transversal, 440 Menores, 284, 613
Jurisdição (senhorial), 93, Linhagem, 107, 234 Menores (capacidade
104 Linhas familiares, 279 jurídica), 254
Jurisdição (teoria da), 33 Linhas paterna e materna, Menores (crianças), 251
Jurisdição compromissória, 434 Menores (responsabilidade
584 Litem suam facere, 664 penal), 255
Jurisdição delegada, 41, 171, Livros de contas, 594 Menoridade, 263
195 Livros jurídicos, 9, 12 Mesa da Consciência e
Jurisdição dos concelhos, 51 Locação, 380, 518 Ordens, 86, 127
Jurisdição intermédia, 605 Locação (e parceira, Mesas de justiça, 133
Jurisdição ordinária, 41 sociedade), 519 Ministerium, 172, 323
Jurisdição ordinária e Locação de obras ou Miseráveis, 241
delegada, 41 serviços, 522 Misericórdia de Lisboa, 143
Jurisdição prorrogada, 578 Locação de serviços, locatio Missionação, 164
Jurisdição voluntária, 128 conductio operarum, 519 Mistura (commixtio), 364
Jurisdictio quasi delegata, Locupletamento à custa Mitra, 133
584 alheia, 548 Modelo corporativo, 19
Juristas (poder social), 557 longuíssimo tempo, 369 Modica coertio, 35
Juros, 397, 501, 502 Lotarias, 532 Moedeiros, 241, 621
Jusracionalismo, 462, 471, Louvados ou avaliadores, Moendas e azenhas, 335
563 457 Monges, 141
Jusracionalistas, 511 Lucro, 503 Montados, 78, 409
Justiça, 61 Lucros cessantes, 550, 554 Mora, 483, 674
Justiça (centralidade da), 33 Lutuosa, 140, 436 Morgado (poderes do
Justiça e poder político, 33 Lutuosas, 137 possuidor), 453
Justo preço, 514 Magistrados (deontologia), Morgados, 129, 345, 436
Laudémio, 378, 387, 388 665 Morgados (autorização
Legados, 427 Magistrados e oficiais (dos réegia), 440
Legados pios, 411, 416 concelhos), 51 Morgados (bens de), 441
Legis actiones, 560 Magistraturas ordinárias e Morgados (ordem
Legítima, 434 delegadas, 195 sucessória), 444
Legítima defesa, 653 Maiores, 256 Morgados de eleição, 448
Lei, 152 Malefício, 545 Morgados e bens da coroa,
Lei (Santo Isidoro de Mamposteiros dos cativos, 452
Sevilha), 150 209 Morgados jurisdicionais, 443
Lei declaratória, 452 Mancipatio, 510 Morte com arma de
Lei Mental, 92, 247, 338, Mandato, 507 arremeço, 654
Consulte Senhorios Manumissão (e Morte natural (e morte civil),
Lesa-majestade, 386, 647 naturalidade), 223 276
Lesão, 514 Manumissão tácita, 207 Mortulhas, 137
Lesão enorme, 399, 474, 478 Marca de ferro quente, 681 Motu proprio, 498
Lesão enorme (sociedade), Margens, 330 Mouros de pazes, 208
527 Masculinidade, 106, 107, 442 Mulher, 245, 302
Letra de câmbio. Consulte Masculinidade (morgados), Mulher (incapacidade), 491
Câmbio 447 Mulheres, 16, 535
Letras de câmbio, 594 Massa falida, 304 Muros das cidades, 318, 319
Lex Aquilia de damnis, 614 Matos maninhos, 335 Mútuo (e locação de coisa
Lex commissoria, 481 Matrimónio. Consulte consumível), 518
Lex Rhodia de jactu, 547 Casamento Mútuo oneroso. Consulte
Lezírias e pauis, 78 Matrimonium ratum et Usura
Libella famosa (escritos consumatum, 266 Nascituro, 205, 304
difamatórios), 652 Maus tratos (como causa de Natura contractus, 487
Índices
Naturais, 220 Oficiais de saúde, 621 Pacto de retrovendendo, 515
Naturalidade, 220 Oficiais militares, 56 Pacto e contrato, 484, 485
Naturalismo, 687 Oficio, 130 Pacto nu, 485
Naufrágios, 360 Ofício (conceito), 169 Pacto vestido, 485
Negligência (do juiz), 666 Ofício (traços dogmáticos Pacto vestido e pacto nu,
Negócio fiduciário, 506 essenciais), 175 484
Nobreza (categorias), 237 Ofícios (criação de), 181 Pactos sucessórios, 419
Nobreza dativa e generativa, Ofícios (deveres e paga), Pactum commisorium, 543
233 178 Pactum de non petendo, 482
Nobreza materna, 235 Ofícios (dignidade dos), 175 Padroado, 129, 131, 325
Nomes falsos, 662 Ofícios (dignidade e mérito), Padroado (sucessão), 327
Nomina debitorum, 543 175 Padroado real, 324
Non bis in idem, 616 Ofícios (extinção e privação), Padroado régio, 132
Notários, 239, Consulte 185 Pagamento, 481
Tabeliães Ofícios (hereditariedade), Pagamento indevido, 483
Novação, 482 187 Pagus ou villa, 48
Nulidade, 159 Ofícios (hierarquia), 192 Pai dos Cristãos, 223
Nulidade (da sentença), 605 Ofícios (pertinência para os), Papa (poderes temporais),
Objeto da obrigação 177 161
(possibilidade e licitude), 478 Ofícios (provimento), 182 Papado, 117
Oblatas, 137, 139 Ofícios (regime jurídico), 181 Parentesco (como
Obligatio naturalis, 284 Ofícios (renúncia), 192 impedimento matrimonial),
Obradas, 139 Ofícios (transmissão), 186 265
Obras pias, 141 Ofícios (venalidade), 188 Parentesco (graus
Obrepção, 159 Ofícios da fazenda, 75 canónicos), 265
Obreptio, 472 Ofícios honorários, 52 Pároco, 135
Obrigações (conceito Ofícios manuais ou Partilha, 456
objetivista), 463 obedenciais, 321 Partos simulados (ou
Obrigações (conceito), 461 Ofícios municipais supostos), 662
Obrigações (espécies), 466 (provimento), 57 Partus sequitur ventrem, 207
Obrigações (extinção), 481 Ofícios naturais ou Pastos comuns, 408
Obrigações (fontes das), 545 honorários, 171 Paterna paternis, materna
Obrigações (fontes), 462 Ónus da prova. Consulte maternis, 434
Obrigações (fundamentos Prova Patria communis, 578
"objetivos"), 466 Operis novi nuntiatio, 573 Pátria comum, 220
Obrigações (teoria geral Opinião comum, 667 Patrono, 217
das), 466 Opinio iuris, 157 Patrono (como herdeiro), 436
Obrigações antidorais ou Ordem, 203 Pecados públicos, 645
remuneratórias, 465 Ordem (sacramento), 118 Peculato, 669
Obrigações e ações, 461 Ordem expositiva, 13 Pecúlio (ações de), 546
Obrigações meramente civis, Ordem Militar de S. João de Pecúlio (dos filhos), 284
465 Jerusalém, 583 Peculio adventício, 284
Obrigações naturais, 463, Ordem sistemática, 461 Pecunia numerata, 506
533 Ordenação (como Pedido, 587
Obrigações naturais e civis, impedimento matrimonial), Peitas e jantares, 335
466 264 Pena (criminal), 633
Obséquio, 283 Ordenanças, 56 Pena capital, 621
Obséquios, 274 Ordens mendicantes Pena civil, 549
Ocupação, 359 (propriedade), 313 Pena criminal e pena civil,
Oeconomia, 281 Ordens Militares, 582 611
Ofensas corporais, 656 Ordens militares (foro), 127 Pena de morte, 679
Ofertas de mão beijada, 140 Órfãos, 219, 301 Penhor, 537
Officium mercenarium, 172, Órfãos (ofícios dos), 55 Penhor judicial, 539
577 Pacta sunt servanda, 487 Penhor legal, 539
Officium mercenarium(do Pacto, 465, 484 Pensão, 130, 322, 325, 329,
juiz), 35 Pacto acerca de herança de 396
Officium nobile, 172, 577 pessoa viva, 419 Perdão, 482, 630, 682
Officium nobile(do juiz), 35 Pacto constitutum, 515 Perdão (penal), 631
Oficiais (crimes de ofício), Pacto de protimense (de Perdão de rendas, 482
179 prelação), 515 Perguntas ao réu, 628
Oficiais (crimes), 664 Pacto de quota litis, 478 Periferias, 12
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
Perjúrio, 660 Precário, 505 403
Personalidade coletiva, 527 Preço justo, 397 Propriedade (modelo
Personatus, 130, 322 Pré-compreensões, 16 “proprietário” ou
Personificação, 205 Pregação, 121 individualismo possessivo),
Pesca, 331, 359 Presas (de guerra), 360 316
Pescarias, 335 Prescrição, 355, 366, 482 Propriedade e fé, 358
Pessoa, 202 Prescrição (do costume), 157 Propriedade particular, 148
Pessoa jurídica (sociedade), Prescrição (senhorios), 102 Propriedade perfeita, 314
527 Prescrição centenária, 369 Propriedade privada, 149
Pessoas coletivas, 206 Prescrição das servidões, Propriedade, conceção
Pinhais, 79 369 individualista, 314
Pintores, 240 Prescrição de breve tempo, Próprios da coroa, 342
Plebeu, 241 370 Prorrogatio jurisdictionis, 589
Plenitudo potestatis, 151, Prescrição de direitos ou Prostituição, 645
193 bens do rei, 371 Prostituta, 548
Pluralidade, 7 Prescrição de longuíssimo Proteção régia (Regia
Pluralismo, 34 tempo, 369 protectio), 582
Pobres, 219, 242 Prescrição do costume, 157 Protocolos, 594
Pobres (viúvas), 407 Prescrição extintiva do direito Prova, 627
Poder doméstico, 282 a intentar ações, 369 Prova (avaliação da), 593
Poder espiritual, 123 Prescrição imemorial, 369 Prova (avaliação da), 591
Polícia, 71 Prescrição ordinária, 369 Prova (ónus da). Consulte
Políticos, 67 Presunções, 591 Prova
Pombalismo, 59, 61, 67, 166, Preterição (de herdeiros), Prova do direito (ius novit
188, 275, 383, 438, 440, 445, 421 curia), 590
456 Preter-intencionalidade, 654 Prova negativa ou diabólica,
Porção, 135, 322, Consulte Prevaricação, 667 591
Pensão Prevenção, 580, 581, 621 Prova para memória, 590
Porção canónica, 140 Prevenção e alternativa, 127 Prova plena, 590
Porção funerária. Consulte Prevenção, jurisdição Prova pleníssima, 596
Porção canónica preventa, 577 Provas, 590
Portagens, 335 Primazias capitulares (ou Provas (publicação), 628
Portio canonica, 436 canónicas, canonicatos), 135 Provas semiplenas, 591
Portos, 330 Primogenitura, 106, 277, Provedor (episcopal), 581
Posse, 307, 350, 572, 658 339, 384, 440 Provedor mor de Saúde, 621
Posse (aquisição da), 351 Princípio do indigenato, 225 Provedores, 58, 73, 425
Posse (perda), 351 Prisão, 624, 679 Províncias, 49, 221
Posse (proteção provisória Prisão do devedor, 601 Provocação, 653
da), 353 Prisão perpétua, 662 Público, 303, 688
Posse (prova da), 354 Prisão sem culpa formada, interesse, 392
Posse (responsabilidade do 624 Público (interesse), 392
possuidor), 355 Privilégio geral, 203 Público (ordem pública), 478
Posse (transmissão da), 352 Pro expressis, 498 Público e privado, 312
Posse (valor económico da), Processo (e poder social e Pueritia, 252
355 político), 559 Punibilidade, 616
Posse civil, 350, 351 Processo (especificidades no Quaestiones perpetuae, 609
Posse de estado, 354, 658 direito português), 557 Quarta falcidia, 429
Posse legítima, 370 Processo criminal ordinário, Quarta Falcidia, 427
Posse natural, 350 625 Quarta ou terça episcopal,
Posse pacífica, 354 Processo ordinário, 574, 575 138
Posse útil, 351 Processo penal sumário, 632 Quarta trebellianica, 429
Possuidor (de morgado). Processo sumário, 575 Quase contrato, 544
Consulte Administrador Procuradores do número, Quase delitos, 549, 550, 553
Postlimínio, 209, 418 583 Quase propriedade, 569
Posturas, 50, 155 Produto líquido, 399 Quase usufruto, 406
Praebendae, 320 Professores e estudantes da Quasi contractus, 571
Prazo ou emprazamento. Universidade, 621 Quasi dominium, 376
Consulte Enfiteuse Propriedade, 374, 568 Quasi possessio, 350, 404
Prazo perentório, 589 Propriedade (e liberdade), Querela, 585
Prazos (dilationes), 590 314 Querela (querimonia), 623
Prebenda, 135, 322 Propriedade (limitações à), Querela de doação
Índices
inoficiosa, 495, 569 Residências, 180 Senhorios (confirmação),
Querela de nulidade, 159, Resíduos, 140 110
605 Resistência à justiça, 650 Senhorios (constituição), 101
Querela de testamento Responsabilidade (civil ou Senhorios (dada de ofícios),
inoficioso, 424, 569 penal), 552 105
Quota disponível, 440, 441 Responsabilidade (de Senhorios (direitos
Quota litis, 508 vários), 553 senhoriais), 93
Rábulas, 12 Responsabilidade aquiliana, Senhorios (iluminismo), 111
Racionalismo, 166 614 Senhorios (inalienabilidade),
Rapazes (adolescentes, Responsabilidade civil (de 108
puberes), 253 oficiais), 553 Senhorios (indivisibilidade),
Rapto, 265 Responsabilidade civil 106
Ratio scripta, 168 objetiva, 550 Senhorios (masculinidade),
Razão de Estado, 66 Responsabilidade conjunta 106
Real de água, 334 (sociedade), 527 Senhorios (poder senhorial),
Reconventio, 578 Responsabilidade objetiva, 89
Recuperandae possessionis, 551 Senhorios (primogenitura),
356 Respublica, 347 106
Recurso “de terceira Restitutio in integrum [ob Senhorios (reforma
instância”, 607 aetatem], 254 iluminista), 112
Recursos, 603 Retinendae possessionis, Senhorios (regime jurídico e
Recursos eclesiásticos, 581 356 político), 91
Regalia, 332, 333, Consulte Revelia (contumacia), 585 Senhorios (transmissão), 105
Direitos reais (do rei) Revista, 150, 606 Senhorios (venda de), 110
Regalia maiora et minora, Revista de graça especial, Senso comum (como prova),
334 607 591
Regalismo, 124, 580, 582 Revista de graça Sentença, 598, 629
Regedor da Justiça, 633 especialíssima, 607 Sentença interlocutória, 598
Regia protectio, 129, 133 Revista de justiça, 607 Separação, 290, 435
Regime dotal. Consulte Dote Revocatoria, 565 Sequestro, 353, 358, 506,
Registo paroquial, 136 Ribeiras, 330 625
Registos públicos, 658 Ricos-homens, 238 Serventias, 519
Regra, 15 Rios, 331 Servidões, 206, 402
Reguengos, 129, 335, 341 Riqueza (e nobreza), 236 Servidões (locação de), 519
Regulamentação edilícia, Ritualismo (processo), 559 Servidões pessoais, 403
375 Roubo, 649 Servidões reais, 403
Rei (papel do), 682 Rústicos, 221, 224, 255 Servos adscritícios, 218
Rei (Título real), 40 Rústicos (testamento), 414 Servos por natureza, 164
Reino, 49, 154, 625 Rutura, 6 Sesmarias, 343
Reino e província, 194 Sacer, 654 Sesmarias do Brasil, 346
Reivindicação, 568 Sacramentos, 115, 262 Sexo contra natura, 268
Reivindicatio, 307, 565 Sacrilégio, 639 Silogismo judiciário, 587
Relação jurídica, 14 Salaio, 335 Simonia, 139, 324, 509, 640
Relações eclesiásticas, 133, Salários, 219, 524 Simulação, 473
581 Sanatusconsultumi Sindicância, 668
Relapso, 636 Macedonianum, 534 Sisas, 55
Relator, 598 Secretarias de Estado, 80 Soberania, 66
Religião (como fator de Secretários (do rei), 80 Sociedade, 526
diferenciação do direito), 687 Sedição, 649 Sociedade universal (dos
Remédios possessórios, 356 Seguro (contrato de, familiares), 279
Rendas régias (não assecuratio), 529 Sodomia, 269, 318, 642
consignadas), 335 Seguro ou segurança, 624 Soldados, 620
Rendeiros da Fazenda, 621 Senatusconsulto Status civitatis, 202
Renúncia, 476 Macedoniano, 501 Status familiae, 202
Renúncia a toda a proteção Senatusconsulto Status legales, 168
do direito, 477 Macedonianum, 464 Status libertatis, 202
Reprova (de testemunhas), Senatusconsulto Velleianum, Stylus curiae, 167
593 464, 535 Súbditos territoriais, 227
Repúblicas índias, 223 Senhores de terras, 238 Subenfiteuse, 387
Res suo domino perit, 500 Senhorios, 109, Consulte Lei Suborno ou peita, 668
Resgate de cativos, 209 Mental Subrepção, 159
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
Subreptio, 472 Testamento tabeliónico, 413 Usu receptio, 167
Substantia ou substantialia Testemunhas, 593, 626, 628 Usuais, 141
contractus, 487 Testemunhas (testamento), Usucapião, 148
Substituições, 422 412 Usucapião (locação), 520
Sucessão, 411 Tipicidade, 612 Usucapião (usucapio), 366
Sucessão legítima ou ab Título justo, 368 Usucapião de direitos, 366
intestato, 430 Titulus coloratus vel Usufruto, 402, 406
Superficies solo cedit, 362 putativus, 354 Usufruto (e locação), 519
Surdos-mudos, 258, 263, Tombo ou livros “dos Usura, 396, 501, 515
444 próprios”, 341 Usuras, 501
Tabeliães, 54, 180, 594 Tormentos, 627 Uti possidetis, 356, 567
Tavolagens, 531 Tornas, 458 Vacatio legis, 153
Temor reverencial, 474 Torpeza (objeto das Validos, 66
Tentativa (conatus), 614, 655 obrigações), 464 Varonia ou linha masculina,
Teoria estatutária, 228 Torus, 266 384
Terça, 434, Consulte Quota Tradição (traditio), 365 Vassalos, 238
disponível Tradição jurídica, 6 Vedores da Fazenda, 85
Terças dos concelhos, 334 Traditio, 516 Velhice, 258
Terças dos mortos, 137 Traição, 647 Venda a contento, 515
Terças dos testamentos, 141 Treincidência, 681 Venda a retro, 515
Termo, 302 Tribunal da Bula da Cruzada, Venda da liberdade de si
Termo (nas doações), 496 88, 128 mesmo, 210, 211
Terras jugadeiras, 342 Tribunal da Inquisição, 583 Venda forçada, 511
Terras reguengas, 342 Tribunal da Legacia, 581, Ventre livre, lei de 16.1.1773,
Terras tributárias ou fiscais, Consulte Tribunal da 207
343, 345 Nunciatura Verdade (valor social da),
Tesouros, 361 Tribunal da Legacia ou da 657
Testamentaria, 425 Nunciatura, 607 Vereadores, 51
Testamento (capacidade Tribunal da mitra, 580, 581 Vi armata, 356
ativa), 418 Tribunal da Nunciatura, 133, Vícios da vontade, 467
Testamento (capacidade Consulte Tribunal da Legacia Vícios ocultos (locação), 520
passiva), 420 Tribunal do Santo Ofício da Vícios ocultos (ou
Testamento (condição), 480 Inquisição, 127 redibitórios), 517
Testamento (instituição de Tribunal ou Junta da Bula da Vigararias, 321
herdeiro), 420 Cruzada, 583 Vigário geral, 580
Testamento (nulidada), 423 Troca (permutatio), 509 Vigários forenses, ou da
Testamento aberto, 415 Turbatio sanguinis, 644 vara, 581
Testamento cerrado, 415 Tutela, 301 Vim, clam, precario, 405
Testamento de estrangeiros, Tutela (como quase Vínculos. Consulte Morgados
416 mandato), 546 Vindicatio servitutis, 405
Testamento de mão comum, Tutores, 345 Violência (crime de), 649
417 Ultramar, 20 Violência e coação sociais,
Testamento inoficioso, 424 Unde vi, 356, 566 476
Testamento militar, 414, 416 Universidade, 346 Visitas, 121
Testamento místico, 415 Universidade de Coimbra, Viúvas, 260, 301, 621
Testamento nuncupativo, 143 Vizinhança, 403
415 Universitas, 527 Vizinho, 226
Testamento piedoso, 416 Uso honesto, 375 Voluntarismo, 687
Testamento público, 413 Uso honesto (do Voluntarisno, 467
Testamento roto, 424 casamento), 268 Votos, 142, 598

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