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O Código possível: o estilo normativo da Consolidação das Leis Civis

Samuel Barbosa

Professor doutor da Faculdade de Direito da USP, Pesquisador Produtividade do CNPq, Presidente do Instituto
Brasileiro de História do Direito (2016-2019).

1. O trabalho jurídico de Augusto Teixeira de Freitas (1816-1883) se desdobrou em


diversas frentes e tem sido objeto de pesquisa sob diferentes perspectivas. Advogado no
Conselho de Estado, fundador e presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros,
Freitas se notabilizou pelo trabalho de sistematização do direito em vigor na
Consolidação das Leis Civis e pelo projeto de Código Civil (Esboço). Contribuiu para a
doutrina civilística com a atualização normativa de livros portugueses de amplo uso no
foro, como a Doutrina das Ações de Correia Telles e as Primeiras Linhas sobre o
Processo Civil de Joaquim José Caetano Pereira e Souza. Dentre as diferentes
perspectivas que têm despertado interesse da historiografia e da dogmática jurídica
estão a apropriação da cultura jurídica europeia por Freitas, a fortuna das teses
defendidas por ele, sua intervenção no debate jurídico da época.1

Esta contribuição enfoca a Consolidação a partir de um problema específico, o


tipo ou estilo normativo empregado por Freitas no trabalho de propor a formulação de
normas a partir do acervo normativo disponível. O pressuposto é que a normatividade
tem uma história, não no sentido fraco de que mudam com tempo (normas deixam de
ser válidas e outras ganham validade), mas no sentido forte de que os modos de
expressão da normatividade tem uma história. Por exemplo, é diferente a normatividade
expressa em normas-proposição (i.e., em regras lapidares) da normatividade condensada
em brocardos ("Partus sequitur ventrem", "A liberdade é inestimável") ou da
normatividade expressa em textos extensos, caso das Ordenações Filipinas. A ars
inveniendi dos argumentos práticos é diferente a depender do tipo de normatividade em

1
Dentre outros, Alfredo Flores, "Entre a Consolidação e o Código: O diálogo entre a doutrina e o
mundo forense no Segundo Reinado e no início da República". Revista do IHGB, v. 473, p. 53-76, 2017;
Thiago Reis, "Teixeira de Freitas, lector de Savigny", Revista de Historia del Derecho, v. 49, 2015, p.
181-222; Ricardo Fonseca, "Teixeira de Freitas: um jurista 'traidor' na modernização jurídica brasileira",
Revista do IHGB, v. 452, 2011, p. 341-354; Francisco Amaral, "A técnica jurídica na obra de Freitas. A
criação da dogmática civil brasileira", in Sandro Schipani (ed.), Augusto Teixeira de Freitas e Il Diritto
Latinoamericano Atti del Congresso internazionale del centenario di Augusto Teixeira de Freitas:
Roma, 12/14 dicembre 1983, Padova: CEDAM, 1988, pp. 155-170; José Carlos Moreira Alves, "O
papel de Teixeira de Freitas na formação do direito brasileiro", Revista Brasileira de Direito
Comparado, 34, 2008, pp. 141-151.Eduardo Spiller Pena, Pajens da Casa Imperial: jurisconsultos,
escravidão e a Lei de 1871, Campinas: Unicamp, 2001.
1
jogo: a retórica e dialética orientam a produção de sentido a partir de brocardos ou
topoi, analogamente, os métodos hermenêuticos de Savigny fazem isso para normas-
proposição.2

A Consolidação revela um trabalho de racionalização do direito civil no sentido


de generalizar e sistematizar proposições normativas. O Império do Brasil já havia
ingressado na época da positivação, entendida no sentido específico de mudança
rotineira do direito por meio da legislação. O Parlamento e órgãos da administração
produziam massivamente novo direito. Ao mesmo tempo, estratos normativos da
tradição continuavam em vigor (Ordenações Filipinas e legislação anteriores à
Independência), bem como o acervo normativo de direito subsidiário (notadamente o
direito romano reinterpretado), os costumes e a praxe processual. É neste quadro plural
de muitos estratos normativos que se insere a Consolidação como um expediente, dentre
outros à época, para reduzir, simplificar, unificar o direito civil.

Este problema de técnica jurídica em sentido estrito tem inegáveis implicações


sociais. Para a escravidão, por exemplo, Luiz Felipe de Alencastro destacou a função
do direito:

"Tributado, julgado, comprado, vendido, herdado, hipotecado, o escravo


precisava ser captado pela malha jurídica do Império. Por esse motivo, o Direito
assume um caráter quase constitutivo do escravismo, e o enquadramento legal ganha
uma importância decisiva na continuidade do sistema (…) o escravismo não se
apresenta como uma herança colonial, como um vínculo com o passado que o presente
oitocentista se encarregaria de dissolver. Apresenta-se, isto sim, como um compromisso
para o futuro: o Império retoma e reconstrói a escravidão no quadro do direito
moderno, dentro de um país independente, projetando-a sobre a contemporaneidade".3

Mais do que legado do passado, a escravidão foi reconstruída e reiterada nos


marcos do direito moderno do Império. Há um trabalho de juízes, advogados, rábulas,
doutrinadores e praxistas para formular regras aplicáveis ao escravismo, o que o
historiador chama de o "fardo dos bacharéis". A seu modo, a Consolidação contribuiu
para as disputas sobre o marco jurídico do escravidão.

2
Thomas Vesting, Teoria do direito: uma introdução, São Paulo: Saraiva, 2015, cap.6.
3
Luiz Felipe de Alencastro (org.), História da Vida Privada no Brasil, v.2, São Paulo:
Companhia das Letras, 2004, (capítulo do organizador, "Vida Privada e Ordem Privada no Império"),
p.16-17. Para o direito da escravidão do período, vide Mariana Armond Dias Paes, Escravidão e direito:
o estatuto jurídico dos escravos no Brasil oitocentista (1860-1888), São Paulo: Alameda, 2019.
2
2. "Por imperfeita que seja a antiga legislação, que ainda nos rege, e tão dependente
como é subsidiariamente do direito romano, e do de outras nações, fôra temeridade
reforma-la, sem predispor os meios preparatórios para esse fim, e desses meios o
principal seria uma prévia codificação que nos mostrasse o que ella é hoje o que lhe
falta; sem esta cautela não convem tocar no edificio que o tempo e as nossas
vicissitudes politicas têm respeitado: não estou ainda habilitado para propor-vos as
bases desse trabalho importante que por si só valeria tudo". 4

Em 1854, em relatório ao Parlamento, o ministro dos Negócios da Justiça, José


Thomaz Nabuco de Araújo, demonstrou a intenção do Governo Imperial de iniciar a
reforma da legislação civil com a elaboração de uma "prévia codificação". Na
passagem, "codificação" tem o sentido laxo de compilação ou consolidação com a
finalidade de apresentar o estado do direito em vigor, sem precisar a técnica e estilo
normativo a ser empregado. É um trabalho prévio à reforma propriamente dita, a
elaboração do Código Civil.

Convidado para assumir a tarefa, Freitas, em 10 de junho de 1854, apresentou a


Nabuco de Araújo seu plano de trabalho. Expõe uma apreciação do estado das leis civis
no país, sua concepção de codificação em sentido específico, indica os trabalhos
preparatórios necessários antes da elaboração do projeto de Código e propõe um
conjunto de condições sobre prazo, remuneração e impressão.

Para Freitas, o Código é "lei nova", mas sua elaboração requer o conhecimento
da legislação existente, razão para os trabalhos preparatórios (classificação e
consolidação das leis). A codificação deveria seguir o método das codificações
modernas, adotando um "estilo conciso e claro, estreme de disposições doutrinais,
exemplos e de definições, a menos que sejam imperativas." As soluções normativas e
doutrinárias anteriores poderiam ser adotadas na codificação após "escrupuloso e
refletido exame", pesadas a partir da "prática do Foro". Lacunas seriam preenchidas e
regras injustas alteradas na codificação futura. Em outras palavras, o código tem
validade formal, revogando o direito anterior sobre a matéria. Isso não implica a
descontinuidade com a tradição jurídica que pode ser selecionada e ganhar nova
validade com a positivação do código. Já nesse primeiro documento, Freitas ressalta as
relações sistemáticas do Código Civil com outros códigos. Defende um novo Código

4
José Thomaz Nabuco de Araújo, Relatorio da Repartição dos Negocios da Justiça apresentado
à Assembléia Geral Legislativa, Rio de Janeiro: Empreza Typ. Dous de Dezembro de Paula Brito, 1854,
p.17
3
Comercial e um Código de Processo Civil. "O atual Cód. de Com. é abundante, invadiu
os domínios do Código Civil, e nós ou havemos repetir ociosamente o que já está
legislado, e mal legislado, ou havemos de omitir e fazer um Código Civil incompleto".
Os três códigos formam um "corpo", ie, um sistema, cuja edição faria cessar "a um só
tempo toda a legislação atual". O Código viria acompanhado de um comentário com
justificativas sobre as disposições e respondendo às questões suscitadas pelas
Comissões de exame do projeto e Conselho de Estado. Freitas antevê a possibilidade de
contínua atualização deste comentário com a jurisprudência do Supremo Tribunal de
Justiça.5

A concepção de codificação é o ponto de fuga da proposta de Freitas. Com


maior detalhe, o jurista expõe a necessidade de trabalhos preparatórios, que será o
objeto propriamente do contrato com o Governo Imperial. O diagnóstico é que a
legislação civil estava "dispersa em um imenso caos de Leis compiladas e
extravagantes, que se remontam a épocas desviadas". Impõe-se um trabalho
preparatório em duas partes. A primeira é a classificação sistemática das leis. Vale
ressaltar a ambição da proposta, classificar cronologicamente todas as leis, não só as leis
civis, segundo as divisões do direito público e do direito privado, tanto as leis em vigor
quanto as revogadas.

A segunda parte do trabalho preparatório é a consolidação propriamente dita,


isto é, a apresentação do direito civil em vigor. Freitas indica o estilo: "Far-se-á essa
consolidação por títulos e em artigos, onde as disposições em vigor serão reduzidas a
proposições tão simplices e concisas, quanto for possível". Veremos abaixo o trabalho
de racionalização ou generalização de proposições a partir do acervo normativo
existente.

Em 15 de fevereiro de 1855, foi assinado o contrato entre Teixeira de Freitas e o


Governo Imperial para a fase preparatória, abrangendo o trabalho de classificação e
consolidação. A classificação abrangeria "toda a Legislação Pátria, inclusive a de
Portugal, anterior à Independência do Império, compreendendo-se na coleção e
classificação as Leis abrogadas ou obsoletas, com exceção das portuguesas que forem
peculiares àquele Reino e não contiverem alguma disposição geral que estabeleça

5
Reproduzido em Sílvio Meira, Teixeira de Freitas: o jurisconsulto do Império, vida e obra,
Brasília, 2.ed,, 1983, p.92-93.
4
regra de Direito." Adotaria as divisões (direito público e privado), seguiria a ordem
cronológica e traria um índice alfabético por matérias.

Com relação à consolidação da legislação civil pátria, o contrato concordava


com o estilo proposto no plano de Freitas, acrescendo um papel especial às notas de
rodapé que trariam os fundamentos da generalização das proposições: "A consolidação
será feita por títulos e artigos, em os quais serão reduzidas a proposições claras e
sucintas as disposições em vigor. Em notas correspondentes deverá citar a Lei que
autoriza a disposição e declarar o costume que estiver estabelecido contra ou além do
texto".6

Em 1857, Freitas concluiu a Consolidação que ganhou neste ano sua primeira
edição.7 O trabalho de classificação jamais foi entregue.8 A publicação trazia uma
extensa Introdução apresentando pormenorizadamente a concepção de codificação para
o jurista, sua função para as relações econômicas e sociais mais amplas, um estudo
comparado das propostas filosóficas, doutrinárias e legislativas de sistematização do
direito, a concepção sistemática adotada na consolidação, um balanço da história e
estado presente do direito civil no Brasil. É difícil exagerar a importância da
Introdução, um dos mais ambiciosos esforços letrados de reflexão sobre o direito
privado até então no país. Na impossibilidade de analisar este documento, atende nossos
objetivos destacar uma lacuna calculadamente deixada por Freitas: a escravidão. A
Consolidação não trazia nesta primeira edição as proposições normativas relativas ao
regime escravista. Freitas propunha preparar um capítulo avulso com as disposições a
respeito, que faria às vezes de um "Código Negro", uma referência à compilação
francesa de Luís XIV de 1685 para o império colonial francês.9 Freitas considerava a
escravidão uma "exceção", não no sentido mais usual de instituição rara ou incomum, o
que seria descabido afirmar em uma sociedade escravista, mas no sentido jurídico de
instituto especializado, com regras particulares, que afastam (excepcionam) regras
gerais. Além disso, era um instituto "odioso", condenado a "extinguir-se em época mais

6
Sílvio Meira, Teixeira de Freitas: o jurisconsulto do Império, vida e obra, Brasília, 2.ed, 1983,
p.94
Freitas publicou ainda a 2ª edição em 1865 e 3ª em 1876. Após sua morte, Martinho Garcez
7

preparou mais duas edições, a 4ª de 1914 e a 5ª em 1915.


8
Na 3.ed. (1876), Freitas anotou que os "trabalhos da Classificação das Leis forão
interrompidos, e preferidos [sic, preteridos?], pelos do Projecto do Codigo Civil", p.xxxi
9
Code Noir, ou Recueil d'édits, déclarations et arrêts, concernant la Discipline & le Commerce
des Esclaves Négres des Îsles Françaises de l'Amerique, 1685. Vernon V. Palmer, "The Origins and
Authors of the Code Noir", Louisiana Law Review, 56, 1996, p.363-407 (O autor sustenta que o Code
Noir, mais do que uma derivação do direito romano, foi elaborado por oficiais locais das Antilhas a partir
de instruções reais).
5
ou menos remota". O projetado, pois, era uma consolidação com regras para o estado de
liberdade e uma lei especial para a escravidão.10

Em fevereiro de 1858 é criada uma Comissão para examinar o trabalho. Em 4 de


dezembro, sai o Relatório aprovando a Consolidação, assinado por Visconde do
Uruguai, José Thomas Nabuco de Araújo e Caetano Alberto Soares. O Governo
Imperial, contudo, fez o reparo o digno de nota:

"É sensível a omissão, que houve na Consolidação, a respeito das disposições


concernentes à escravidão; porquanto, posto deva ela constituir, por motivos políticos e
de ordem pública, uma lei especial, contudo convinha saber-se o estado defectivo da
legislação a este respeito".

Na segunda edição (1865), Freitas abandonou a proposta de um capítulo avulso


e introduziu as disposições sobre escravidão no rodapé, o que foi chamado de "código
negro de rodapé".11 Freitas justifica a concessão feita: "supprimos a censurada lacuna,
não nas disposições do texto, que ficão intactas, mas em cada uma das suas notas
explicativas. Vai indicado o pouco, que temos da legislação civil relativa á escravos; e
além disto um copioso subsídio, que extrahimos do Direito Romano, unica norma na
solução dos casos occurrentes.. Assim procedemos, no intuito de prestar um serviço ao
Fôro. São mui frequentes, e delicadas, as questões que este assumpto offerece".12

3. A Consolidação divide-se em uma Parte Geral com dois títulos (Das Pessoas e Das
Coisas) e Parte Especial com dois Livros (Dos direitos pessoais e Dos direitos reais) e
os respectivos títulos. A Introdução justifica em pormenor a sistemática proposta por
Freitas. Gostaria de me deter no nível do artigo, exemplificando o jogo entre proposição
e notas, para indicar a técnica de "simplificação" ou redução do direito em vigor (citado
no rodapé) às "proposições claras e sucintas" citadas no corpo do texto. A proposição é
um texto proposto por Freitas, trabalho de racionalização (generalização) a partir do
acervo normativo em vigor, de diferentes fontes e épocas.

10
"Cumpre advertir, que não ha um só lugar do nosso texto, onde trate de escravos. Temos, é
verdade, a escravidão entre nós; mas, se esse mal é uma excepção, que lamentamos; condemnado á
extinguir-se em época mais, ou menos remota; façamos também uma excepção, um capitulo avulso, na
reforma das nossas Leis Civis; não as maculemos com disposições vergonhosas, que não podem servir
para a posteridade: fique o estado de liberdade sem o correlativo odioso. As Leis concernentes à
escravidão (que não são muitas) serão pois classificadas á parte, e formaráo nosso Codigo Negro"
(Consolidação das Leis Civis, Rio de Janeiro: Laemmert, 1857, p.xi).
11
Eduardo Spiller Pena, Pajens da Casa Imperial: jurisconsultos, escravidão e a Lei de 1871,
Campinas: Unicamp, 2001, p.75.
12
Consolidação das Leis Civis, Rio de Janeiro: Laemmert, 1865, p.viii.
6
a) O artigo 1º traz a proposição: "As pessoas considerão-se como nascidas,
apenas formadas no ventre materno; a Lei lhes conserva seus direitos de successão
para o tempo do nascimento."

As notas para justificar essa proposição referenciam as Ordenações Filipinas,


Digesto e Codex, Código Criminal, Regulamentos, Decretos, livros de doutrina
(Perdigão Malheiro, Demolombe). Faz remissão intrasistemática a outras proposições
da Consolidação. Por exemplo, a primeira referência na nota é "Ord. L.3º T.18 §7º, e
L.4º T.82 §5º. Generalisei as disposições dos Arts 199 e 1015".

Uma leitura da OF 4.82.5 que dispõe sobre testamento de filho não nascido
permite exemplificar o trabalho de generalização para formular a proposição mais
ampla sobre direito dos nascituros.13

Este artigo 1º também serve para exemplificar o modo de apresentação do


direito da escravidão. A proposição no corpo do texto não menciona o instituto,
referenciado apenas no rodapé. Generaliza uma regra do Codex sobre o direito à
liberdade de quem fora nascituro à época da alforria da mãe: "A alforria pode ser
concedida á escravo, que ainda exista no ventre materno. Se a mãi der á luz dois ou
mais filhos, a liberdade reputa-se dada á todos, embora o testador só tenha feito
menção de um - L. 16 Cod. de fideicomiss. libertat."

b) A extensão das notas variam. Algumas exigem uma discussão doutrinária


mais minuciosa para justificar a generalização da proposição. É o caso do art. 63 que
dispõe "A unica excepção á plenitude do direito de propriedade, conforme o Art. 179
§22 da Constituição do Imperio, terá logar, quando o bem publico exigir o uso, e
emprego da propriedade do cidadão por necessidade ou utilidade."

O acervo normativo a ser simplificado elencado nas notas abrangem as


Ordenações Filipinas, leis, decretos, avisos, decisões judiciais, direito romano, costume.
Há também uma detalhada argumentação doutrinária acerca das alforrias forçadas,
questão da ordem do dia. A questão é saber se o senhor de escravizados pode ser
obrigado a alforriá-los ante o pagamento do preço ou se a hipótese viola o direito de
propriedade. Deixar ao arbítrio do senhor a decisão da alforria foi considerado um
dispositivo central do regime.14 Freitas coligiu dispositivos da tradição jurídica que

13
Ordenações Filipinas, 4.82.5, "Outrosi, se o pai, ou mãi ao tempo do testamento não tinha
filho legitimo, e depois lhe sobreveio, ou o tinha e não era disso sabedor, e he vivo ao tempo da morte do
pai, ou mai, assi o testamento, como os legados nelle conteudos são nenhuns e de nenhum vigor."
7
limitavam este poder senhorial, a lei de 24 de dezembro de 1734 (escravos que
descobrissem diamantes de vinte quilates para cima, ficavam forros) e um aviso de de
1856 (escravos que saem do Império acompanhados do seu senhor, quando voltarem
ficam livres). Nas notas da 3.ed., Freitas atualizou os dispositivos referentes à
escravidão, com menção à lei do Ventre Livre (28 de setembro de 1871) que
contemplava as alforrias forçadas: O escravo que por meio de seu peculio obtiver meios
para indenisação de seu valor, tem direito à alforria. Se a indenização não for fixada por
acordo, o será por arbitramento (art. 4, §2).

Em mais de 80 artigos (vide anexo), Freitas apresentou o direito civil e


processual da escravidão em vigor no Império do Brasil. As notas vão de breves
indicações à discussão com maior minúcia de dúvidas e teses jurídicas. Questões
rotineiras do foro, envolvendo escravidão, foram tratadas na Consolidação: peculio,
casamento, alforria forçada, possibilidade de revogação da alforria por ingratidão,
alforria condicional, hipoteca de escravos, compra e venda.15

4. A Consolidação das Leis Civis se qualificou como o primeiro Código Civil do Brasil.
Esta tese pode parecer um exagero ou simplesmente um erro por confundir uma
compilação do direito em vigor com uma codificação propriamente dita. Para os
contemporâneos do Código Civil de 1916, no entanto, a função pragmática da
Consolidação não passou desapercebida. Em 1898, Joaquim Nabuco mencionava a
iniciativa de seu pai, Nabuco de Araújo, para a reforma do direito civil "foi ele quem
contratou a codificação de nossas leis sob a forma de Consolidação (1855), que até
hoje nos serve de código civil".16

A função da Consolidação como um código, também foi ressaltada pelo jurista e


historiador português Paulo Merêa. Em 1917, ele publicou em Portugal o Código Civil
Brasileiro com breves notas. Na introdução, após fazer menção às fontes do direito civil
no Brasil, observou que "A sua insuficiência, diversidade e incerteza deixavam um
vasto campo de acção à doutrina e jurisprudência. A tarefa do legista achava-se, de
resto, facilitada pela celebre Consolidação das leis civis, de Teixeira de Freitas,

14
Sidney Chalhoub, Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na
corte, São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
15
Lenine Nequete, O escravo na jurisprudência brasileira, Porto Alegre, 1988.
16
Joaquim Nabuco, Um Estadista do Império: Nabuco de Araujo, sua vida, suas opiniões, sua
época, tomo 3º, Rio de Janeiro, Garnier, 1899-1900, p.507. No 1º tomo, escreveu que a Consolidação "até
hoje [1899] tem feito as vezes de Codigo Civil", p.341.
8
consultada e citada como verdadeiro Codigo, e pela Consolidação, mais recente, de
Carlos de Carvalho".17

A relevância pragmática da Consolidação, o fato de gozar de validade empírica,


ie, era usada em processos judiciais pelos profissionais do direito, é um primeiro indício
para interpretar qualificação de código dada pelos juristas à época. Gostaria de pontuar a
relação entre essa função pragmática e os aspectos formais da Consolidação, seu estilo
normativo.

As Ordenações Filipinas tiveram uma longa vigência no Brasil, mais do que em


Portugal, cujo primeiro código civil é de 1867. É certo que ao longo do século XIX
largas seções das Ordenações foram substituídas pelo direito codificado, como o código
criminal e código comercial, e pela legislação extravagante. Além das Ordenações, o
direito civil se valia de uma pluralidade de fontes legisladas, doutrinais,
jurisprudenciais, da tradição erudita (direito romano reinterpretado) e costumes.

Em 1928, Pontes de Miranda enumerava a complexidade das fontes do direito


privado anteriores ao Código Civil: "Se miudearmos as fontes do direito, teremos que
eram as seguintes: Ordenações, direito romano, leis, decretos, alvarás e cartas régias,
resoluções de consultas, assentos da Casa de Suplicação, avisos, portarias,
regulamentos, regimentos, estatutos, instruções, estilos e praxe, forais, concordatas,
tratados, leis de outros povos, analogia. Foi em tal condição de pluralismo das fontes
de direito que interveio o Código Civil, mas seria injusto não assinalar que a
mentalidade dos juristas havia harmonizado, cerzido, sistematizado, aquela
enormidade de fontes."18

A Consolidação foi um desses expedientes anteriores ao Código Civil para


sistematizar, reduzir e organizar a pluralidade de fontes. Indicamos o trabalho de
racionalização empreendido por Freitas de redução do acervo normativo às proposições.
Sem dúvida, a Consolidação não teve a validade formal de um Código Civil, não traz
uma regra de revogação do direito anterior.19 No entanto, tem características formais que
merecem atenção.20 Emprega o estilo normativo de proposições claras e sucintas, um

17
Paulo Merêa, Codigo Civil Brasileiro, Lisboa: Livraria Classica, 1917, p.vi.
18
Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, Fontes e Evolução do direito civil brasileiro, 2.ed,
Rio de Janeiro: Forense, 1981 (1.ed, 1928), p.76.
19
Vide o CC 1916, art. 1.807. "Ficam revogadas as Ordenações, Alvarás, Leis, Decretos,
Resoluções, Usos e Costumes concernentes às matérias de direito civil reguladas neste Código."
9
aspecto ideal de muitas codificações. Em tese, a Consolidação não articula um direito
novo, apenas expõe o direito em vigor, se bem que o trabalho de generalização de
proposições dava margem para a construção e inovação por parte de Freitas e gerou
controvérsias com juristas à época como Antonio Pereira Rebouças21. Seja como for,
mesmo quando não havia novo direito ou inovação, as proposições (artigos) são um
texto novo, não a mera compilação de textos normativos da tradição. Por fim, as
proposições estão articuladas formando um sistema de regras, à maneira ideal das
codificações, não são coletâneas de topoi ou compilação de leis e regras avulsas.

É importante salientar que na conjuntura da segunda metade do século XIX e


início do século XX, o significado de "código" não tem a univocidade que vai ganhar
com a dogmática e história do direito posterior que distingue os códigos das demais
formas de compilação. No período, o termo é usado de modo abrangente para se referir
a um ou outro modo de apresentação do direito. Ao mesmo tempo, exemplos de códigos
no sentido próprio já existem no Brasil (Código Criminal, Código de Processo Criminal,
Código Comercial) e alhures, com características formais e implicações para o modo de
argumentar que foram refletidas pelos juristas. O certo é que, antes do Código Civil, já
se formava uma cultura do código no país, com o correlato modo de argumentar que se
diferenciava mais e mais da tradição anterior. Diversos impressos contribuíram para o
trabalho indicado por Pontes de Miranda. Dentre os livros de direito civil que emularam
a forma código em sentido próprio, a Consolidação merece destaque pelos aspectos
pragmáticos e formais. Nesse sentido, se justifica ser qualificado como o Código Civil
do Império.

Anexo - Código Negro de Rodapé

20
Samuel Barbosa, "Complexidade e meios textuais de difusão e seleção do direito civil
brasileiro pré-codificação". in Marcelo Fonseca/Airton Seelaender (eds.). História do direito em
perspectiva, Curitiba: Juruá, 2012, p.361-373.
21
Consolidação das Leis Civis, segunda edição augmentada pelo Dr. Augusto Teixeira de
Freitas. Observações do advogado Conselheiro Antonio Pereira Rebouças, Rio de Janeiro: Laemmert,
1867.
10
A Consolidação a partir da 2ª edição (1865) referencia no rodapé as regras em vigor
relacionadas à escravidão e status do liberto. A lista exemplificativa abaixo traz as
regras que identificamos.

Parte Geral

Título I - Das Pessoas

art. 1. Alforria nascituro

art. 2. Registro de nascimento, batismo e óbito

art. 28. Curador em processo com menores

Título II - Das Cousas

art. 42. Bens, alforria, pecúlio. Liberdade do ventre. Várias disposições, vide art. 1131.

art. 46. Imposto de venda de escravos.

art. 48. Escravos como bens acessórios às Fábricas

art. 52, §7º. Bens da Coroa. Escravos da Nação

art. 58. Escravos como bens do evento.

art. 59. Bens nacionais. Escravos da Nação.

art. 60. Terras para colonização que não poderão ser roteadas por braços escravos.

art. 63. Exceção à plenitude do direito de propriedade. Alforria forçada.

art. 67. Indenização na desapropriação

art. 69. Propriedade de Igrejas, Ordens, Irmandades. Escrevos das ordens

Parte Especial

Livro I - Dos Direitos Pessoais

11
art. 80, §5º. Escritura de esponsais.

art. 96. Casamento. Escravidão não é impedimento

art. 97. Não podem casar sem consentimento

art. 111. Regime de bens. Casamento com escravo não gera comunhão de bens.

art. 116. Meação.

art. 129. Doação de bens móveis ou dinheiro sem consentimento da mulher. Alforria
gratuita

art. 174. Filhos de escravas como frutos.

art. 184. Liberto não pode citar o patrono sem licença do Juiz da Causa

art. 186. Mandato. Relação patrono e liberto.

art. 187. Relação patrono e liberto.

art. 208. Filho natural. Filho com escrava.

art. 212. Prova de filiação natural.

art. 242. Quem pode ser tutor/curador testamentário. Exclusão dos escravos

art. 262. Não pode ser tutor e curador. exclui os escravos

art. 289. Aluguel de escravos.

art. 294. Pecúlio de escravos. Equiparação com dinheiro de órfãos.

art. 367, §5º. Escritura pública de substância.

art. 384. Escrituras públicas. Compra e venda de escravos.

art. 386. Escrituras públicas. Compra e venda de escravos.

art. 411. Doações. Alforria. Escravos de condomínios.

art. 416. Alforrias isentas de imposto.

art. 417, §2º e 3º. As doações para liberdade.

art. 419. Doação pura e simples. Revogação por ingratidão.


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art. 420. Revogação de doação condicional. Fraude de alforrias.

art. 421, §4º. Causas de ingratidão para revogação de doação.

art. 451. Prestação de trabalho de escravos. Como coagir à trabalhar pessoas, cuja
escravidão está em dúvida.

art. 456. Mandatos.

art. 466. Não podem ser procuradores em Juízo

art. 470. Poderes especiais de procuração para venda de escravas

art. 550. Cláusulas lícitas na compra e venda de escravos

art. 556. Vício da coisa. Compra e venda de escravos ladinos

art. 558. Restituição do preço. Escravos ladinos

art. 586, caput e §6º. Bens que não se podem vender.

art. 590. Compra e venda. Meia siza.

art. 591. Meia siza.

art. 592. Meia siza.

art. 593. Meia siza.

art. 595, §6º. Siza.

art. 596. Não se paga meia siza para alforria e compra de escravos pela Fazenda
Nacional.

art. 597. Tributação.

art. 599. Tributação.

art. 601. Tributação.

art. 604. Ação redibitória pela compra de escravos ladinos.

art. 614, §6º. Obrigações do foreiro.

art 679. Locação de serviços.

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art. 696. Locação de serviços. Africanos livres

art. 767. Escravos hipotecados.

art. 834. Concurso de credores. Pecúlio.

Livro II - Dos Direitos Reais

art. 807. Responsabilidade por dano.

art. 834. Preferência entre credores quirografários.

art. 885. Aquisição de domínio. Partus sequitur ventrem.

art. 954. Servidões.

art. 959. Sucessão à intestado. A quem cabe o pecúlio do escravo. Incapacidade


testamentária ativa.

art. 962. Reconhecimento de filhos para fins de herança.

art. 982. Não podem suceder à intestado.

art. 993, §5º. Não podem fazer testamento.

art. 1025. Herança.

art. 1054, §2º. Formalidade de testamento público.

art. 1063, §1º. Escravos não podem ser testemunhas.

art. 1084. Registro de testamentos.

art. 1131. Alforria. A mais longa nota sobre escravidão.

art. 1142. Testamento irrito.

art. 1145. Partilhas.

art. 1166. Partilha de escravos.

art. 1206. Colações. Filhos de escravas como frutos.

art. 1215. Colações.


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art. 1216. Colações.

art. 1259. Escravos das heranças vagas.

art. 1275. Hipotecas.

art. 1284. Escravas hipotecas. Filhos como benfeitorias.

art. 1288. Hipotecas

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