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Samuel Barbosa
Professor doutor da Faculdade de Direito da USP, Pesquisador Produtividade do CNPq, Presidente do Instituto
Brasileiro de História do Direito (2016-2019).
1
Dentre outros, Alfredo Flores, "Entre a Consolidação e o Código: O diálogo entre a doutrina e o
mundo forense no Segundo Reinado e no início da República". Revista do IHGB, v. 473, p. 53-76, 2017;
Thiago Reis, "Teixeira de Freitas, lector de Savigny", Revista de Historia del Derecho, v. 49, 2015, p.
181-222; Ricardo Fonseca, "Teixeira de Freitas: um jurista 'traidor' na modernização jurídica brasileira",
Revista do IHGB, v. 452, 2011, p. 341-354; Francisco Amaral, "A técnica jurídica na obra de Freitas. A
criação da dogmática civil brasileira", in Sandro Schipani (ed.), Augusto Teixeira de Freitas e Il Diritto
Latinoamericano Atti del Congresso internazionale del centenario di Augusto Teixeira de Freitas:
Roma, 12/14 dicembre 1983, Padova: CEDAM, 1988, pp. 155-170; José Carlos Moreira Alves, "O
papel de Teixeira de Freitas na formação do direito brasileiro", Revista Brasileira de Direito
Comparado, 34, 2008, pp. 141-151.Eduardo Spiller Pena, Pajens da Casa Imperial: jurisconsultos,
escravidão e a Lei de 1871, Campinas: Unicamp, 2001.
1
jogo: a retórica e dialética orientam a produção de sentido a partir de brocardos ou
topoi, analogamente, os métodos hermenêuticos de Savigny fazem isso para normas-
proposição.2
2
Thomas Vesting, Teoria do direito: uma introdução, São Paulo: Saraiva, 2015, cap.6.
3
Luiz Felipe de Alencastro (org.), História da Vida Privada no Brasil, v.2, São Paulo:
Companhia das Letras, 2004, (capítulo do organizador, "Vida Privada e Ordem Privada no Império"),
p.16-17. Para o direito da escravidão do período, vide Mariana Armond Dias Paes, Escravidão e direito:
o estatuto jurídico dos escravos no Brasil oitocentista (1860-1888), São Paulo: Alameda, 2019.
2
2. "Por imperfeita que seja a antiga legislação, que ainda nos rege, e tão dependente
como é subsidiariamente do direito romano, e do de outras nações, fôra temeridade
reforma-la, sem predispor os meios preparatórios para esse fim, e desses meios o
principal seria uma prévia codificação que nos mostrasse o que ella é hoje o que lhe
falta; sem esta cautela não convem tocar no edificio que o tempo e as nossas
vicissitudes politicas têm respeitado: não estou ainda habilitado para propor-vos as
bases desse trabalho importante que por si só valeria tudo". 4
Para Freitas, o Código é "lei nova", mas sua elaboração requer o conhecimento
da legislação existente, razão para os trabalhos preparatórios (classificação e
consolidação das leis). A codificação deveria seguir o método das codificações
modernas, adotando um "estilo conciso e claro, estreme de disposições doutrinais,
exemplos e de definições, a menos que sejam imperativas." As soluções normativas e
doutrinárias anteriores poderiam ser adotadas na codificação após "escrupuloso e
refletido exame", pesadas a partir da "prática do Foro". Lacunas seriam preenchidas e
regras injustas alteradas na codificação futura. Em outras palavras, o código tem
validade formal, revogando o direito anterior sobre a matéria. Isso não implica a
descontinuidade com a tradição jurídica que pode ser selecionada e ganhar nova
validade com a positivação do código. Já nesse primeiro documento, Freitas ressalta as
relações sistemáticas do Código Civil com outros códigos. Defende um novo Código
4
José Thomaz Nabuco de Araújo, Relatorio da Repartição dos Negocios da Justiça apresentado
à Assembléia Geral Legislativa, Rio de Janeiro: Empreza Typ. Dous de Dezembro de Paula Brito, 1854,
p.17
3
Comercial e um Código de Processo Civil. "O atual Cód. de Com. é abundante, invadiu
os domínios do Código Civil, e nós ou havemos repetir ociosamente o que já está
legislado, e mal legislado, ou havemos de omitir e fazer um Código Civil incompleto".
Os três códigos formam um "corpo", ie, um sistema, cuja edição faria cessar "a um só
tempo toda a legislação atual". O Código viria acompanhado de um comentário com
justificativas sobre as disposições e respondendo às questões suscitadas pelas
Comissões de exame do projeto e Conselho de Estado. Freitas antevê a possibilidade de
contínua atualização deste comentário com a jurisprudência do Supremo Tribunal de
Justiça.5
5
Reproduzido em Sílvio Meira, Teixeira de Freitas: o jurisconsulto do Império, vida e obra,
Brasília, 2.ed,, 1983, p.92-93.
4
regra de Direito." Adotaria as divisões (direito público e privado), seguiria a ordem
cronológica e traria um índice alfabético por matérias.
Em 1857, Freitas concluiu a Consolidação que ganhou neste ano sua primeira
edição.7 O trabalho de classificação jamais foi entregue.8 A publicação trazia uma
extensa Introdução apresentando pormenorizadamente a concepção de codificação para
o jurista, sua função para as relações econômicas e sociais mais amplas, um estudo
comparado das propostas filosóficas, doutrinárias e legislativas de sistematização do
direito, a concepção sistemática adotada na consolidação, um balanço da história e
estado presente do direito civil no Brasil. É difícil exagerar a importância da
Introdução, um dos mais ambiciosos esforços letrados de reflexão sobre o direito
privado até então no país. Na impossibilidade de analisar este documento, atende nossos
objetivos destacar uma lacuna calculadamente deixada por Freitas: a escravidão. A
Consolidação não trazia nesta primeira edição as proposições normativas relativas ao
regime escravista. Freitas propunha preparar um capítulo avulso com as disposições a
respeito, que faria às vezes de um "Código Negro", uma referência à compilação
francesa de Luís XIV de 1685 para o império colonial francês.9 Freitas considerava a
escravidão uma "exceção", não no sentido mais usual de instituição rara ou incomum, o
que seria descabido afirmar em uma sociedade escravista, mas no sentido jurídico de
instituto especializado, com regras particulares, que afastam (excepcionam) regras
gerais. Além disso, era um instituto "odioso", condenado a "extinguir-se em época mais
6
Sílvio Meira, Teixeira de Freitas: o jurisconsulto do Império, vida e obra, Brasília, 2.ed, 1983,
p.94
Freitas publicou ainda a 2ª edição em 1865 e 3ª em 1876. Após sua morte, Martinho Garcez
7
3. A Consolidação divide-se em uma Parte Geral com dois títulos (Das Pessoas e Das
Coisas) e Parte Especial com dois Livros (Dos direitos pessoais e Dos direitos reais) e
os respectivos títulos. A Introdução justifica em pormenor a sistemática proposta por
Freitas. Gostaria de me deter no nível do artigo, exemplificando o jogo entre proposição
e notas, para indicar a técnica de "simplificação" ou redução do direito em vigor (citado
no rodapé) às "proposições claras e sucintas" citadas no corpo do texto. A proposição é
um texto proposto por Freitas, trabalho de racionalização (generalização) a partir do
acervo normativo em vigor, de diferentes fontes e épocas.
10
"Cumpre advertir, que não ha um só lugar do nosso texto, onde trate de escravos. Temos, é
verdade, a escravidão entre nós; mas, se esse mal é uma excepção, que lamentamos; condemnado á
extinguir-se em época mais, ou menos remota; façamos também uma excepção, um capitulo avulso, na
reforma das nossas Leis Civis; não as maculemos com disposições vergonhosas, que não podem servir
para a posteridade: fique o estado de liberdade sem o correlativo odioso. As Leis concernentes à
escravidão (que não são muitas) serão pois classificadas á parte, e formaráo nosso Codigo Negro"
(Consolidação das Leis Civis, Rio de Janeiro: Laemmert, 1857, p.xi).
11
Eduardo Spiller Pena, Pajens da Casa Imperial: jurisconsultos, escravidão e a Lei de 1871,
Campinas: Unicamp, 2001, p.75.
12
Consolidação das Leis Civis, Rio de Janeiro: Laemmert, 1865, p.viii.
6
a) O artigo 1º traz a proposição: "As pessoas considerão-se como nascidas,
apenas formadas no ventre materno; a Lei lhes conserva seus direitos de successão
para o tempo do nascimento."
Uma leitura da OF 4.82.5 que dispõe sobre testamento de filho não nascido
permite exemplificar o trabalho de generalização para formular a proposição mais
ampla sobre direito dos nascituros.13
13
Ordenações Filipinas, 4.82.5, "Outrosi, se o pai, ou mãi ao tempo do testamento não tinha
filho legitimo, e depois lhe sobreveio, ou o tinha e não era disso sabedor, e he vivo ao tempo da morte do
pai, ou mai, assi o testamento, como os legados nelle conteudos são nenhuns e de nenhum vigor."
7
limitavam este poder senhorial, a lei de 24 de dezembro de 1734 (escravos que
descobrissem diamantes de vinte quilates para cima, ficavam forros) e um aviso de de
1856 (escravos que saem do Império acompanhados do seu senhor, quando voltarem
ficam livres). Nas notas da 3.ed., Freitas atualizou os dispositivos referentes à
escravidão, com menção à lei do Ventre Livre (28 de setembro de 1871) que
contemplava as alforrias forçadas: O escravo que por meio de seu peculio obtiver meios
para indenisação de seu valor, tem direito à alforria. Se a indenização não for fixada por
acordo, o será por arbitramento (art. 4, §2).
4. A Consolidação das Leis Civis se qualificou como o primeiro Código Civil do Brasil.
Esta tese pode parecer um exagero ou simplesmente um erro por confundir uma
compilação do direito em vigor com uma codificação propriamente dita. Para os
contemporâneos do Código Civil de 1916, no entanto, a função pragmática da
Consolidação não passou desapercebida. Em 1898, Joaquim Nabuco mencionava a
iniciativa de seu pai, Nabuco de Araújo, para a reforma do direito civil "foi ele quem
contratou a codificação de nossas leis sob a forma de Consolidação (1855), que até
hoje nos serve de código civil".16
14
Sidney Chalhoub, Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na
corte, São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
15
Lenine Nequete, O escravo na jurisprudência brasileira, Porto Alegre, 1988.
16
Joaquim Nabuco, Um Estadista do Império: Nabuco de Araujo, sua vida, suas opiniões, sua
época, tomo 3º, Rio de Janeiro, Garnier, 1899-1900, p.507. No 1º tomo, escreveu que a Consolidação "até
hoje [1899] tem feito as vezes de Codigo Civil", p.341.
8
consultada e citada como verdadeiro Codigo, e pela Consolidação, mais recente, de
Carlos de Carvalho".17
17
Paulo Merêa, Codigo Civil Brasileiro, Lisboa: Livraria Classica, 1917, p.vi.
18
Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, Fontes e Evolução do direito civil brasileiro, 2.ed,
Rio de Janeiro: Forense, 1981 (1.ed, 1928), p.76.
19
Vide o CC 1916, art. 1.807. "Ficam revogadas as Ordenações, Alvarás, Leis, Decretos,
Resoluções, Usos e Costumes concernentes às matérias de direito civil reguladas neste Código."
9
aspecto ideal de muitas codificações. Em tese, a Consolidação não articula um direito
novo, apenas expõe o direito em vigor, se bem que o trabalho de generalização de
proposições dava margem para a construção e inovação por parte de Freitas e gerou
controvérsias com juristas à época como Antonio Pereira Rebouças21. Seja como for,
mesmo quando não havia novo direito ou inovação, as proposições (artigos) são um
texto novo, não a mera compilação de textos normativos da tradição. Por fim, as
proposições estão articuladas formando um sistema de regras, à maneira ideal das
codificações, não são coletâneas de topoi ou compilação de leis e regras avulsas.
20
Samuel Barbosa, "Complexidade e meios textuais de difusão e seleção do direito civil
brasileiro pré-codificação". in Marcelo Fonseca/Airton Seelaender (eds.). História do direito em
perspectiva, Curitiba: Juruá, 2012, p.361-373.
21
Consolidação das Leis Civis, segunda edição augmentada pelo Dr. Augusto Teixeira de
Freitas. Observações do advogado Conselheiro Antonio Pereira Rebouças, Rio de Janeiro: Laemmert,
1867.
10
A Consolidação a partir da 2ª edição (1865) referencia no rodapé as regras em vigor
relacionadas à escravidão e status do liberto. A lista exemplificativa abaixo traz as
regras que identificamos.
Parte Geral
art. 42. Bens, alforria, pecúlio. Liberdade do ventre. Várias disposições, vide art. 1131.
art. 60. Terras para colonização que não poderão ser roteadas por braços escravos.
Parte Especial
11
art. 80, §5º. Escritura de esponsais.
art. 111. Regime de bens. Casamento com escravo não gera comunhão de bens.
art. 129. Doação de bens móveis ou dinheiro sem consentimento da mulher. Alforria
gratuita
art. 184. Liberto não pode citar o patrono sem licença do Juiz da Causa
art. 242. Quem pode ser tutor/curador testamentário. Exclusão dos escravos
art. 451. Prestação de trabalho de escravos. Como coagir à trabalhar pessoas, cuja
escravidão está em dúvida.
art. 596. Não se paga meia siza para alforria e compra de escravos pela Fazenda
Nacional.
13
art. 696. Locação de serviços. Africanos livres
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