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CAPÍTULO 2

O MICROSSISTEMA DE PRECEDENTES NO CÓDIGO


DE PROCESSO CIVIL DE 2015

Margarida Maria Lacombe Camargo


Siddharta Legale

2.1 Introdução

O Brasil teve três Códigos de Processo Civil, contando o atual: o


de 1939, 1973 e 2015. Os dois primeiros foram aprovados em períodos
autoritários: durante o Estado Novo e durante a ditadura militar,
respectivamente. O Código atualmente em vigor foi o primeiro criado
sob a vigência de uma Constituição promulgada, a de 1988, em um
contexto de funcionamento regular das instituições democráticas.
Contou com um longo processo legislativo, que permitiu uma ampla
interlocução entre o Congresso e a Sociedade. A página virtual do
Senado recebeu uma grande quantidade de sugestões, 240 foram
recolhidas das audiências públicas realizadas e outras 200 vieram de
memoriais da comunidade jurídica.
De fato, esse não é nem “Código dos Advogados”, nem
um “Código dos Juízes”, mas um “Código de Todos”. Alguns
processualistas consideram que esse é o “Código de Processo Civil
Cidadão”.1 Não se trata de mera expressão retórica, pois não apenas sua
elaboração contou com a participação efetiva de setores organizados da
sociedade, como seus dispositivos buscam ampliar na maior medida
possível a participação social.
O artigo 926, do novo CPC, por exemplo, não encontra
correspondente no CPC de 1973 e se insere em um novo contexto
de constitucionalização do direito processual, conforme claramente

1 FUX, Luiz; SANTANA, Irapuã. A construção de um Código de Processo Civil Cidadão. In: MIRZA, Flávio. Direito Processual: coleção 80 anos
da UERJ. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 2015. p. 21-23.
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anunciado no art. 1º.2 E a pacificação dos problemas que ganha


juridicidade pode ser sentida, de início, no teor do artigo 3º, que
estimula soluções consensuais. Trata­se de um dos dispositivos mais
comentados, defendidos e criticados por reivindicar uma nova lógica
jurídica para o processo civil. Esses artigos constituem dispositivos
centrais de um “microssistema de precedentes”,3 de “microssistema
de litigiosidade repetitiva”4 ou de um “núcleo do dogmático modelo de
precedentes brasileiro”.5 Originalmente, o Projeto N.º 166 de 2010 não
previa um capítulo especíico dedicado aos precedentes. No substitutivo
na Câmara dos Deputados, chegou­se a prever um capítulo especíico
dedicado ao tema dos precedentes: o Capítulo XV, com 18 dispositivos
a partir dos art. 520.
O capítulo especíico foi suprimido na redação inal do CPC
vigente. Ainda assim, há cinco dispositivos presentes ao longo do
seu corpo, empregando expressamente a palavra precedentes. Esses
dispositivos, em uma interpretação sistemática, constituem uma espécie
de savepoints do espólio do capítulo de precedentes que resistiram
à supressão pelo Senado Federal, introduzido pelo substitutivo da
Câmara dos Deputados. São eles: o art. 489 (fundamentação das
decisões), o art. 926, §2º (atenção às circunstâncias fáticas), o art. 927
(publicidade dos temas na internet); art. 988 (cabimento de reclamação
para cumprir precedente); e art.1042 (distinguishing do sobrestado ao
paradigma).
Uma leitura sistemática dos princípios da parte geral, dos
recursos repetitivos e dos dispositivos indicados revela que, a despeito
de se ter suprimido um capítulo especíico, há sim um “microssistema
de precedentes”, que introduz uma lógica jurídica própria paralela ao
tradicional sistema de recursos do Código. De um lado, abre-se um

2 A constitucionalização do processo civil é um dos traços distintivos do CPC de 2015, que contou com a inluência marcante do Min. Luiz Fux em
suas comissões e debates. O Min. Fux é um dos líderes contemporâneos da escola carioca de processo civil, que tem na UERJ um forte reduto do
neoconstitucionalismo e da constitucionalização do direito. Há mais de 15 anos estudos que aproximam o Processo (e outros ramos do direito)
com Constituição têm sido sistematicamente produzidos no âmbito da pós-graduação. Exemplificativamente, cf. FUX, Luiz; NERY JR, Nelson;
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Processo e Constituição: estudos em homenagem ao Professor José Carlos Barbosa Moreira. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2006. FUX, Luiz. Processo constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2013. FUX, Luiz; FREIRE, Alexandre; DANTAS, Bruno (Org.).
Repercussão geral da questão constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

3 Enunciado n. 460 do FPPC – Fórum Permanente de Processualistas Civis: “(arts. 927, §1º, 138) O microssistema de aplicação e formação dos precedentes
deverá respeitar as técnicas de ampliação do contraditório para amadurecimento da tese, como a realização de audiências públicas prévias e participação de
amicus curiae. (Grupo: Precedentes, IRDR, Recursos Repetitivos e Assunção de competência)”

4 NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Precedentes no Novo CPC: é possível uma decisão correta? Publicado em 08 jul. 2015. Disponível em: <htp://
justiicando.com/2015/07/08/precedentes­no­novo­cpc­e­possiveluma­decisao­correta>

5 ZANETI JR, Hermes. O valor vinculante dos precedentes. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 346.
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maior espaço para a interpretação constitucional pela ponderação


ou integridade (microssistema de precedentes) e, de outro, uma
interpretação jurídica mais tradicional, orientada pelos métodos
clássicos literal, sistemático, histórico e teleológico (sistema recursal).
Esse sistema resulta do contexto e, ao mesmo, comprova as
mudanças na cultura jurídica nacional. Tradicionalmente, os Tribunais
e juízes brasileiros possuem muito mais uma preocupação em respeitar
a lei, interpretada de acordo com o seu livre convencimento motivado
do que em manter uma coerência com seus próprios precedentes e
decisões.6 A adoção de um modelo de civil law e uma cultura jurídica
vazada por um positivismo jurídico contribuíram para a principal
preocupação na interpretação e aplicação do direito ser a interpretação
da lei seca e da vontade do legislador.7
A aproximação com modelos de common law valorizou uma
cultura de precedentes, chamando atenção para uma expansão do Poder
Judiciário. A difusão do pós-positivismo evidenciou, além disso, que a
norma é o resultado do texto com a interpretação a ele aposta. Tornou-
se uma espécie de senso comum jurídico a possibilidade de múltiplas
interpretações, de modo que a preocupação passa a ser a coerência
com os precedentes no plano vertical e horizontal. No plano vertical,
os precedentes passam a ser mais invocados pelas Cortes Superiores,
notadamente o STF e o STJ. No plano horizontal, reivindica-se cada vez
mais uma cadeia de precedentes harmônicos entre si.

2.2 Estabilidade e coerência dos precedentes: do


positivismo ao pós-positivismo

Adotar um sistema de precedentes, inspirado em alguma medida


no modelo de common law, portanto, signiica apostar que as decisões
judiciais de certas cortes não operem um mero juízo de correição,8 ou

6 Nesse sentido, posiciona-se Luiz Guilherme Marinoni comentando o art. 926 do Capítulo I, do Título I do Livro III. In: DIDIER JR, Fredie. et al.
Breves comentários ao novo código de processo civil. Revista dos Tribunais, 2015.

7 Para uma contextualização mais ampla do sistema de precedentes do Brasil sob a inluência francesa e anglo­americana, cf. MEDINA, José
Miguel Garcia; FREIRE, Alexandre; FREIRE, Alonso Reis. Para uma compreensão adequada do sistema de precedentes no projeto do novo
código de processo civil brasileiro. In: FUX, Luiz. et al (Orgs.). Novas tendências do processo civil. Salvador: Juspodivm, 2013. p. 677 et seq.

8 Sobre a diferença entre Cortes de correição e Corte de precedentes, Cf. BRAVO-HURTADO, Pablo. Recursos ante las Cortes Supremas en el civil
law y en el common law: dos vías a la uniformidade. International Journal of Procedural Law, v. 2, p. 323-339, 2012.
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seja, as decisões das Cortes superiores não constituem meros exemplos.9


A funcionalidade do sistema de precedentes impõe uma estabilidade e
coerência. Hermes Zaneti Jr chega a airmar que “A teoria dos precedentes
é uma teoria”.10 Nessa linha, é possível realizar pelo menos duas leituras
da estabilidade e da coerência exigidas pelo art. 926: uma positivista e
outra pós-positivista. A introdução da integridade juntamente com o
dever de coerência parece apontar para a segunda, de modo a exigir uma
harmonia dos princípios da segurança jurídica, proteção da coniança,
igualdade e eiciência.11
Em uma visão positivista, Frederick Schauer deine o “precedente
judicial” como a invocação de fatos selecionados do passado, por
uma linguagem oficial e a presença no tomador de decisão de
uma autoridade que fornece às suas palavras uma força normativa
impositiva. O autor chama atenção para a importância intertemporal
dos precedentes judiciais. Destaca que não se dá apenas do passado
para presente, mas também pelas considerações sobre os efeitos que
o “hoje” pode gerar no futuro. Ainal, o “hoje” será inevitavelmente o
futuro do “ontem”, bem como o “hoje” é o “ontem” do amanhã. Essa
leitura positivista e linear dos precedentes não nega que, em alguns
casos, injustiças indesejadas serão cometidas. Acaba por apostar em
técnicas meramente normativas para sua superação.12
A compreensão pós-positivista ou institucionalista dos
precedentes é a mais consistente. Em profunda coletânea sobre o
precedente de direito comparado, organizada por Neil MacCormick
e Robert Summer, diversos autores catalogam variados elementos
que tendem a erodir a força normativa de um precedente. Entre elas,
consta a alteração abrupta da jurisprudência injustiicada ou não
suicientemente justiicada. É interessante, nesse sentido, a respeito
o conceito, introduzido por Robert Alexy de “linha de precedentes” e
“precedentes em zigue-zague”.13 Entre outras variáveis, a alteração abrupta

9 TARUFFO, Michele. Institutional factors inluencing precedents. In: MACMACORMICK, Neil; e SUMMERS, Robert S (Orgs.). Interpreting
precedents: a comparative study. London: Ashgate Publishing Company, 1997. p. 437 e ss.

10 ZANETI JR, Hermes. O valor vinculante dos precedentes. Salvador: Editora Juspodivm, 2016. p. 290.

11 Ver voto do Min. Luís Roberto Barroso na STF, Rcl 4335, Rel. Min. Gilmar Mendes, J. 20.03.2014.

12 SCHAUER, Frederick. Precedent. Stanford Law Review, v. 39, p. 571-605, 1987.

13 ALEXY, Robert. Precedent in Federal Republic of Germany. In: MACMACORMICK, Neil; SUMMERS, Robert S. (Orgs.). Interpreting precedents:
a comparative study. London: Ashgate Publishing Company, 1997. p. 17 et seq. Importante avanço nesse sentido tem sido desenvolvido ao
se incorporar a moderna teoria da argumentação para pensar os precedentes também de forma pós-positivista. Nessa linha, por ex., tem se
proposto que quando for possível citar um precedente se deve fazê-lo e para afastá-lo se tenha um ônus argumentativo maior. Cf. ALEXY,
Robert. Teoria da argumentação jurídica. São Paulo: Landy, 2001. p. 258 et seq. Entre nós Cf. BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do
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e constante da jurisprudência tende a incutir dúvidas sobre o direito


aplicável ou sobre a própria validade da interpretação efetuada. Como
bem coloca Luiz Guilherme Marinoni, a “variação frívola” contradiz a
segurança jurídica.
Em outras palavras, a coerência é relevante para que o direito
seja previsível e estável (segurança jurídica e proteção da coniança), as
pessoas que tiveram suas questões decididas não estejam sujeitas a uma
loteria judicial14 que toma decisões diferentes em razão do momento ou
do órgão prolator (igualdade) e para o cumprimento da decisão pelas
partes (eicácia). Nesse sentido, é positivo o art. 927, §4º do CPC exigir
a “fundamentação adequada e especíica” para a modiicação de súmula,
jurisprudência pacíica ou tese em casos repetitivos.15 Sobre o dever de
estabilidade e coerência do art. 926, os enunciados 453 e 454 do Fórum
Permanente de Processualistas Civis esclarece:

453. (arts. 926 e 1.022, parágrafo único, I) A estabilidade a que


se refere o caput do art. 926 consiste no dever de os tribunais
observarem os próprios precedentes. (Grupo: Precedentes, IRDR,
Recursos Repetitivos e Assunção de Competência)

454 (arts. 926 e 1.022, parágrafo único, I) Uma das dimensões


da coerência a que se refere o caput do art. 926 consiste em
os tribunais não ignorarem seus próprios precedentes (dever
de autorreferência). (Grupo: Precedentes, IRDR, Recursos
Repetitivos e Assunção de Competência)

455. (art. 926) Uma das dimensões do dever de coerência signiica


o dever de não contradição, ou seja, o dever de os tribunais
não decidirem casos análogos contrariamente às decisões
anteriores, salvo distinção ou superação. (Grupo: Precedentes,
IRDR, Recursos Repetitivos e Assunção de Competência)

precedente judicial: a justiicação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012. p. 2 et seq. Para uma revisão crítica da teoria de
Robert Alexy, sugerindo uma revisão do código de razão prática, especialmente quanto aos aspectos institucionais e não institucionais de sua
argumentação, vale conferir o cap. 3. Cf. BUSTAMANTE, Thomas. Argumentação contra legem: a teoria dos discursos e a justiicação jurídico nos
casos mais difíceis. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 139 et seq.

14 STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição, fundamentação e dever de coerência e integridade no novo CPC. Disponível em: <htp://www.conjur.com.br/2016­
abr-23/observatorio-constitucional-jurisdicao-fundamentacao-dever-coerencia-integridade-cpc >.

15 §4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos
observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção, da
confiança e da isonomia.
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Tais enunciados não são súmulas e foram editados em um


momento muito inicial do Código. Ainda assim, revelam um
entendimento de que os Tribunais não podem simplesmente ignorar
e/ou, em regra, contradizer os próprios precedentes (dimensão
horizontal). A partir do NCPC, como consigna o último enunciado,
eles possuem um dever de autorreferência, bem como, se for deixar de
aplicar, justiicar a distinção do caso em questão (distinguishing) ou a
necessidade de superação do precedente (overrulling). Devem conhecer,
citar e conduzir a linha de precedentes institucionais. A mudança
possui, portanto, um ônus argumentativo reforçado.
Como bem expõem José Garcia Medina, Alexandre Freire e
Alonso Freire, “O sistema de precedentes judiciais jamais eliminará por
completo a possibilidade de haver contradição e a divergência no interior da
ordem jurídica. Ele apenas reduz sua ocorrência, conduzindo à integridade
sistêmica”.16 Tomar decisões diferentes para casos semelhantes faz com
que a gente viva, como airmam os autores, um sistema de “stare (in)
decisis”.
A estabilidade e a coerência são importantes, mas, sozinhas,
revelam­se insuicientes para a efetividade das decisões. É preciso mais
do que a coerência e a estabilidade das decisões, porque é possível haver
coerência e estabilidade entre decisões equivocadas. Nessa linha, os
precedentes da Suprema Corte Norte-Americana Dred Scot vs Sandford
(1857) com Plessy vs Ferguson (1896) que legitimaram a segregação racial
são coerentes entre si. Não são justos, porém. Não são íntegros para
usar a expressão de Dworkin.

2.3 Integridade em Ronald Dworkin e no CPC

Não existe uma teoria do precedente que, sozinha, dê conta de


todos os aspectos da realidade, como chama atenção Neil Maccormick.
Para cada teoria, haverá sempre alguma prova empírica do contrário
ou, no mínimo, algum caso a exigir uma revisão ou reavaliação da
teoria. O essencial das teorias contemporâneas sobre o precedente,
porém, é a exigência de uma reconstrução racional dos argumentos a
eles subjacentes.17

16 MEDINA, José Garcia; FREIRE, Alexandre; FREIRE, Alonso. Vivemos um sistema de stare (in)decisis na análise de ações repetitivas. Disponível em:
<htp://www.conjur.com.br/2012­out­17/vivemos­sistema­stare­indecisis­analise­acoes­repetitivas?imprimir=1>.

17 MACCORMICK, Neil. Retórica e estado de direito. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 204 e ss.
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Mesmo com concepções absolutamente distintas, é possível


airmar a existência, nesse ponto, de um acordo raso, dado que nenhum
dos autores nega que o precedente e/ou insere-se no contexto histórico-
cultural em razão do qual é mantido ou superado argumentativa
e institucionalmente. De qualquer forma, para ins exclusivamente
didáticos, é possível enumerar, pelo menos, quatro teorias explicativas
inluentes sobre os precedentes.
A versão positivista da teoria dos precedentes, como a de
Frederick Schauer, que concebe os precedentes como forma de
generalização de enraizamento das regras, preocupa-se essencialmente
com a segurança jurídica ao enfatizar relação entre os precedentes do
passado e do futuro.
A versão institucionalista da teoria dos precedentes, como a
de Cass Sunstein, que compreende os precedentes como uma cadeia,
regras e analogias a partir da ainidade de pensamento entre um caso e
outro à luz de noções gerais de acordos incompletamente teorizados.18
Sunstein, em especial, sublinha o processo de interpretação e criação de
normas dentro do processo de tomada de decisão judicial que considere
as semelhanças e diferenças entre casos, sem ignorar a diversidade de
capacidades institucionais,19 que rejeita o perfeccionismo dos juízes e
leva em consideração a falibilidade dos juízes, ou seja, pontos cegos,
consequências e efeitos sistêmicos de suas decisões.20
A visão pós-positivista da teoria dos precedentes de Robert
Alexy, segundo a qual o precedente constitui um método de trabalho
dentro da teoria da argumentação para o uso de uma decisão anterior
vinculada e aplicada à atual, tornando-a mais racional, isonômica,
estável e universalizável. Trata-se de uma forma de argumentar que
exige a decorrência da opinião lógica de suas premissas (justiicação
interna) e da demonstração da correção das premissas adotadas
(justiicação externa),21 por ex., casos idênticos serão tratados de forma
semelhante; e os diferentes, de forma distinta. Há duas regras gerais
para sua utilização: (i) “se um precedente pode ser citado a favor ou contra
uma decisão, ele deve ser citado”; e (ii) “Quem desejar partir de um precedente

18 SUNSTEIN, Cass. Legal reasoning and political conlict. New York: Oxford University Press, 1996. p. 71 et seq.

19 Conira­se um excelente artigo sistematizando as três visões e reletindo a partir de decisões do direito brasileiro: MAUÉS, Antônio Moreira.
Jogando com os precedentes: regras, analogias, princípios. Revista Direito GV, n. 16, p. 597 et seq , 2012.

20 SUNSTEIN, Cass. Second-order perfectionism Disponível em: <htp://ssrn.com/abstract_id=948788 >.

21 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. São Paulo: Landy, 2001. p. 219 et seq.
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fica com o encargo do argumento”.22 Segundo o autor, com exceção


dos precedentes da Corte Constitucional Federal, inexistem regras
formais na Alemanha classiicando espécies de precedentes conforme a
vinculação. A adesão, no último caso, decorrerá do poder de convicção
encontrado nos argumentos proferidos e a autoridade das decisões
deve ser substantiva da correção de conteúdo. Na prática, as decisões
dos Tribunais superiores possuem elevada importância, tendendo a ser
seguidas pelos inferiores, que podem demonstrar a incompatibilidade
do precedente no caso, afastando sua aplicação. Nessa linha, o autor
aponta fatores que contribuem para fortalecer ou enfraquecer a força
normativa do precedente, como sua singularidade, o grau hierárquico
do Tribunal, a consistência dos argumentos, a existência de uma linha
de precedentes ou de precedentes em zigue-zague
A versão pós-positivista, a partir do pensamento de Ronald
Dworkin,23 cujo pensamento insere os precedentes em decisões tomadas
a partir de uma “unidade princípios e valores” por uma “comunidade
de princípios”. Rejeita o convencionalismo que se apega apenas às
decisões passadas e o pragmatismo que se preocupa apenas com as
consequências futuras dessas. Propõe a igura de um juiz­hércules que
deve buscar reconstruir de forma coerente essa relação entre passado
e futuro, almejando não só a manutenção da decisão do passado ou
certas consequências futuras com base nas ideias de “integridade” e
“unidade de valor”. Dworkin explicitamente atenua o dever de respeitar
decisões equivocadas anteriores.24 Isso porque integridade é uma
virtude política que se impõe o “igual respeito e consideração”. Dworkin
rejeita, ainda, a discricionariedade judicial, da existência de múltiplas
escolhas possíveis e defende que seria possível encontrar uma única
resposta correta para os casos difíceis.25
A palavra integridade presente no art. 926 inspira-se claramente
no pensamento de Ronald Dworkin. Segundo Lênio Streck, a integridade
com base no pensamento do autor norte-americano foi introduzida no
CPC de 2015 por sugestão de uma “emenda” dele próprio, com apoio
dos profs. Fredie Didier e Luiz Henrique Volpe, em razão da atenção

22 ALEXY, Robert. Op. cit., p. 261.

23 DWORKIN, Ronald. Law’s Empire. Cambrigde: Havard University Press, 1986, p. 225 e ss

24 Explicando as duas correntes sobre os precedentes, destacadas no pensamento de Dworkin, a corrente estrita e a corrente atenuada. Cf.
DANTAS, Bruno. Concretizar o princípio da segurança jurídica: uniformização e estabilidade da jurisprudência como alicerces do CPC
projetado. In: FUX, Luiz. et al (Orgs). Novas tendências do processo civil. Salvador: Juspodivm, 2013. p. 123 et seq.

25 Conira­se o capítulo 13 de DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 429 et seq.
MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO
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dispensada a ele pelo relator do projeto na Câmara, o Deputado


Paulo Teixeira.26 A coerência e integridade, segundo o autor gaúcho,
consistem na concretização da igualdade, apoiada na dignidade da
pessoa humana. Nas palavrações do próprio Lênio, integridade seria:

Já a integridade é duplamente composta, conforme


Dworkin: um princípio legislativo, que pede aos legisla-
dores que tentem tornar o conjunto de leis moralmente
coerente, e um princípio jurisdicional, que demanda que
a lei, tanto quanto o possível, seja vista como coerente
nesse sentido. A integridade exige que os juízes cons-
truam seus argumentos de forma integrada ao conjunto
do direito. Trata-se de uma garantia contra arbitrarie-
dades interpretativas. A integridade limita a ação dos
juízes; mais do que isso, coloca efetivos freios, através
dessas comunidades de princípios, às atitudes solipsis-
tas-voluntaristas. A integridade é uma forma de virtude
política. A integridade signiica rechaçar a tentação da
arbitrariedade.27

Na acepção forte e original, porém, essa concepção de uma “única


resposta correta” não é compatível com a visão jurídica dominante no
Brasil que consigna uma pluralidade de interpretação, bem como não é
compatível com sincretismo adotado pelo CPC vigente. Explico. A teoria
da unidade de valor rejeita o conlito entre princípios. Compreende que,
se bem interpretados, os princípios e valores não colidiriam. É uma
questão de conciliar, por exemplo, liberdade e igualdade para concluir
que tais valores se reforçam mutuamente, ao invés de colidirem. Em
outras palavras, assume uma teoria interna dos direitos fundamentais.
Observando sistematicamente o Código, percebe-se que ele
positivou a opção pela ponderação nos arts. 8º (proporcionalidade e
razoabilidade) e 489, §2º (ponderação na colisão). Em outras palavras, o
modelo de uma teoria externa sobre a colisão de direitos fundamentais,
típico de Robert Alexy, também está no Código. São modelos que, em

26 STRECK, Lênio Luiz. Novo CPC terá mecanismos para combater decisionismos e arbitrariedades? Disponível em: <htp://www.conjur.com.
br/2014-dez-18/senso-incomum-cpc-mecanismos-combater-decisionismos-arbitrariedades>.

27 STRECK, Lênio Luiz. Por que agora dá para apostar no projeto do novo CPC! Disponível em: <htp://www.conjur.com.br/2013­out­21/lenio­streck­
agora-apostar-projeto-cpc>.
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sentido forte, são diversos e incompatíveis entre si, já que a unidade


de valor de Dworkin mais se aproxima de uma teoria interna que
pretende equacionar sem colisões os direitos fundamentais, enquanto
a ponderação de Alexy opera com uma teoria externa dos direitos
fundamentais a partir das quais as soluções encontradas para as colisões
entre direitos são fundamentadas argumentativamente, em especial por
meio da proporcionalidade.
Apenas se compreendermos a “ponderação” e a “integridade” em
sentido lato seria possível realizar uma convergência entre os modelos
de Alexy e Dworkin para lidar com o nosso sistema de precedentes.
Enxerga-se a integridade como coerência, que exige uma unidade do
direito, e a ponderação conjuntamente com a sua pretensão de correção.
Essa convergência é admitida na doutrina brasileira na prática. 28
Concordamos com essa convergência, com as devidas ressalvas, por
entender ser possível realizar nesse ponto um acordo incompletamente
teorizado para ins de construir uma teoria e metodologia própria para
o CPC, sob a conluência das matrizes teóricas apontadas.
Nesse sentido, o Fórum Permanente de Processualistas editou
os seguintes enunciados 456 e 457, interpretando a integridade exigida
pelo CPC, como “a conformidade com a unidade do ordenamento jurídico”,29
ressaltando a possibilidade de realizar o distinguishing ou overruling do
precedente para adequar seu “entendimento à interpretação contemporânea
do ordenamento”.30 A integridade processual, portanto, parece envolver a
vedação à incongruência sistêmica com a juridicidade e a vedação de que
a interpretação seja anacrônica. A coerência, estabilidade e integridade
não são vedações à mudança, mesmo porque a jurisprudência é tão
dinâmica como a própria vida. Os três conceitos signiicam o dever de
que o Poder Público (Executivo, Legislativo e Judiciário) ajam de acordo
com a probidade e a boa-fé objetiva, oferendo uma fundamentação
adequada e especíica sobre as razões da alteração.31

28 ZANETI JR, Hermes. O valor vinculante dos precedentes. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 366.

29 456. (art. 926) Uma das dimensões do dever de integridade consiste em os tribunais decidirem em conformidade com a unidade do ordenamento
jurídico. (Grupo: Precedentes, IRDR, Recursos Repetitivos e Assunção de Competência).

30 457. (art. 926) Uma das dimensões do dever de integridade previsto no caput do art. 926 consiste na observância das técnicas de distinção e
superação dos precedentes, sempre que necessário para adequar esse entendimento à interpretação contemporânea do ordenamento jurídico.
(Grupo: Precedentes, IRDR, Recursos Repetitivos e Assunção de competência)

31 NERY JR, Nelson; ANDRADE NERY, Rosa Maria. Comentários ao código de processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 1156 et seq.
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25

2.4 Precedentes, súmulas e circunstâncias fáticas

O art. 926, §2º determina que para editar súmulas, o que inclui
tanto a de jurisprudência dominante, quanto a vinculante, os tribunais
devem atentar para as circunstâncias fáticas dos precedentes que
motivaram sua criação.
Em primeiro lugar, súmulas não são precedentes. No máximo,
as súmulas podem ser enxergadas como uma tentativa de extrair a ratio
decidendi, na mesma linha Luiz Guilherme Marinoni. Não existe um
conceito homogêneo de ratio decidendi. No clássico estudo de Arthur
Goodhart, há mais de dez deinições. Simpliicando e resumindo o tema,
é possível estabelecer três eixos: (i) a norma extraída do caso concreto
e que vincula os tribunais inferiores, seja como condição necessária,
seja como condição suiciente para resolver o caso; (ii) norma jurídica
contextualizada para os fatos aos quais a norma será aplicada;32 e (iii)
elemento essencial que consubstancia a argumentação da decisão
judicial para concretizar a ponderação entre regras e princípios.33
Há diversos conceitos e inúmeras teorias explicativas, como vimos
anteriormente. Em nenhuma delas, a súmula pode ser compreendida
diretamente como precedente, ignorando a sua relação com os casos
de origem, os fatos ou as ponderações efetuadas.
Na clássica e sempre atual lição do Min. Victor Nunes Leal,
súmulas são métodos de trabalho. Aliás foram criadas pelo Ministro,
sob inspiração nos assentos da Casa de Suplicação, a partir de suas
anotações em seu caderninho preto, como uma forma de evitar decisões
contraditórias no STF. Essa inovação institucional constituiu uma
importante estratégia para ampliar o respeito da Corte às suas próprias
decisões. O Min. Victor Nunes Leal, consciente ou inconscientemente,
talvez tenha sido um dos primeiros a se preocupar com a dimensão
horizontal dos precedentes no Brasil. Não é exagero dizer que na
ditadura o STF poderia ser descrito como a “Corte” Victor Nunes Leal

32 Uma importante referência no tema é o artigo de Arthur L. Goohart que considera a ratio decidendi não como o princípio em si ou as razões ali
presente, mas sim como os princípios extraídos do caso baseado em fatos e as decisões extraídas dele. Cf. GOODHART, Arthur L. Determining
the ratio decidendi of a case. The Yale Law Journal, v. 40, n. 2, p. 161-183, 1930.

33 Essa dimensão argumentativa da ratio decidendi nem sempre é evidenciada pelos autores brasileiros que a reduzem à uma concepção
normativista. Sobre o ponto, vale a pena conferir a teoria do precedente proposta que leva em conta a complexidade de incorporar fatores
empíricos, racionalidade prática e razões de autoridade para compreensão dos graus de vinculação ao precedente e a sua ratio decidendi. Cf.
BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do Precedente judicial: a justiicação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012.
p. 262 et seq.
JOSÉ RIBAS VIEIRA, MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO, SIDDHARTA LEGALE (COORDS.)
26 JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E DIREITO CONSTITUCIONAL INTERNACIONAL

tamanha a sua importância e dimensão representativa que o Ministro


adquiriu.34 Recentemente, Hermes Zaneti Jr, ao discorrer sobre o
tema, chama de forma bastante pertinente as súmulas de “técnicas
de externalização de conteúdo” do precedente, que leva em conta uma
unicidade dos fatos com o direito.35

2.5 Precedentes vinculantes e persuasivos: das “cortes de


varejo” para as “cortes de atacado”

O art. 927 pretende construir as Cortes superiores, notadamente o


STF e o STJ, como “Cortes de Precedentes”. É particularmente indicativo
desse fenômeno o art. 927, IV que determinar a todos os “juízes” e
“tribunais” o respeito às suas súmulas. Há pelo menos duas correntes
em relação ao art. 927, especialmente dos incisos III, IV e V.
A primeira corrente, composta por Nelson Nery Jr e Rosa Maria
de Andrade Nery,36 defende a inconstitucionalidade do dispositivo.
Argumenta que apenas a Constituição poderia dispor sobre o efeito
vinculante. Quando o CPC prevê tal efeito, o legislador violaria o
princípio da legalidade, separação dos poderes e do devido processo
legal. Como argumento de reforço, destacam tanto é assim que para
que a súmula possuísse efeito vinculante foi necessário se aprovar a
Emenda Constitucional n. 45 de 2004, bem como que existem projetos
de emendas à Constituição em tramitação no Congresso Nacional para,
por exemplo, atribuir efeitos vinculantes a certas decisões do STJ e à
súmula impeditiva de recursos (PEC 358/05).37

34 LEGALE, Siddharta; BARACHO, Eric. As cortes Victor Nunes Leal, Moreira Alves e Gilmar Mendes. Revista Direito GV, v. 9, 2013.

35 ZANETI JR, Hermes. O valor vinculante dos precedentes. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 351.

36 NERY JR, Nelson; ANDRADE NERY, Rosa Maria. Comentários ao código de processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 1156 et seq.

37 NERY JR, Nelson; ANDRADE NERY, Rosa Maria. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p:
“Somente no caso da súmula vinculante, o STF tem competência constitucional para estabelecer preceitos de caráter geral. Como se trata de
situação excepcional – Poder Judiciário a exercer função típica do Poder Legislativo – a autorização deve estar expressa no texto constitucional
e, ademais, se interpreta restritivamente, como todo preceito de exceção. Observar decisão: a) em RE e REsp repetitivos, b) em incidente de
assunção de competência, c) em incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR), d) entendimento constante da súmula simples do
STF em matéria constitucional, e) entendimento constante da súmula do STJ em matéria infraconstitucional (rectius: federal) e f) do órgão
especial ou do plenário do tribunal a que estejam vinculados os juízes signiica que esses preceitos vinculam juízes e tribunais, vinculação essa
de inconstitucionalidade lagrante. O objetivo almejado pelo CPC 927 necessita ser autorizado pela CF. Como não houve modiicação na CF
para propiciar ao Judiciário legislar, como não se obedeceu ao devido processo, não se pode airmar a legitimidade desse instituto previsto
no texto comentado. Existem alguns projetos de emenda constitucional em tramitação no Congresso Nacional com o objetivo de instituírem
súmula vinculante no âmbito do STJ, bem como para adotar-se a súmula impeditiva de recurso (PEC 358/05), ainda sem votação no parlamento.
Portanto, saber que é necessário alterar-se a Constituição para criar-se decisão vinculante todos sabem. Optou-se, aqui, pelo caminho mais fácil,
MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO
O MICROSSISTEMA DE PRECEDENTES NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
27

A segunda corrente, perilhada por Hermes Zaneti Jr,38 argumenta


em sentido contrário pela constitucionalidade dos dispositivos. Em
primeiro lugar, destaca os incisos I (concreto concentrado) e II (súmulas
vinculantes) reproduzem os efeitos vinculantes e erga omnes que foram
atribuídos pela Constituição de 1998, no art. 102, §2º. Em segundo
lugar, destaca que o CPC estabelece um sistema de “obrigatoriedade
mitigada”, no qual os incisos III, IV e V signiicam uma “progressiva
recepção do stare decisis no ordenamento jurídico brasileiro”. Nada obsta,
portanto, a introdução do stare decisis em países de civil law.39 O sistema
do CPC é diferente, mas compatível com o da Constituição. De um lado,
explica a vinculação das súmulas e das soluções de demanda repetitivas
se dá em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário. Apenas a
súmula vinculante e as decisões do controle abstrato vinculante os
demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração. Em terceiro
lugar, registra que precedentes são normas gerais e concretas, enquanto
as leis são gerais e abstratas. No precedente, é necessário a identiicação
dos fundamentos determinantes para decisão da relação entre as
circunstâncias fáticas e a solução jurídica a ser adotada.
Ao adotar o apontado sistema de precedentes, inspirado no
modelo de common law, provoca-se uma mudança de um modelo de
Corte Superior para Corte Suprema. Entenda-se aqui por Corte Suprema
não aquela que possui a última palavra a não ser naquela rodada
deliberativa. Por Corte Suprema enxergamos Cortes de sobreposição
ou conluência, aptas a realizar um profundo diálogo institucional
com as demais instâncias. Em razão dessa capacidade institucional,
tal Corte deixa de realizar um mero juízo de correição das instâncias
inferiores,40 como uma Corte de varejo e de miudezas. Essa Corte passa
a ser uma Corte de atacado, na qual as suas decisões deixam de ser
meros exemplos para serem via de regra metadecisões.
Signiica que, de um lado, ao não decidir a Corte de Precedentes
deixa o espaço aberto para a experimentação institucional e interpretativa

mas inconstitucional. Não se resolve problema de falta de integração da jurisprudência, de gigantismo da litigiosidade com atropelo do due
process of law. Mudanças são necessárias, mas devem constar de reforma constitucional que conira ao Poder Judiciário poder para legislar nessa
magnitude que o CPC, sem cerimônia, quer lhe conceder.”

38 ZANETI JR, Hermes. O valor vinculante dos precedentes. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 367 et seq.

39 Realizando um balanço crítico da importação dos institutos da common law, como o leading case ao stare decisis, Cf. MEDINA, José Miguel Garcia.
Novo código de processo civil comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, livro eletrônico, comentários ao art. 926.

40 Sobre a diferença entre Cortes de correição e Corte de precedentes, Cf. BRAVO-HURTADO, Pablo. Recursos ante las Cortes Supremas en el civil
law y en el common law: dos vías a la uniformidade. International Journal of Procedural Law, v. 2, p. 323-339, 2012.
JOSÉ RIBAS VIEIRA, MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO, SIDDHARTA LEGALE (COORDS.)
28 JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E DIREITO CONSTITUCIONAL INTERNACIONAL

dos tribunais de origem e, por outro, se houver decisão, ela tenderá a


possuir efeito vinculante ou fortemente persuasivo. Há uma tendência,
nesse cenário, tanto dos tribunais superiores, em especial o STF e STJ,
deixarem de atuar como “Cortes de varejo”,41 quanto dos tribunais de
origem deixarem de ser meros “entrepostos judiciais”.42
A decisão do Recurso extraordinário com repercussão geral, por
exemplo, ixa a interpretação das regras, a ponderação de princípios
e os standards para orientar as Cortes inferiores, que devem aplicar a
tese nos sobrestados. Adota-se uma lógica que envolve metadecisão
e decisões.43 Note-se que aqui há algo mais do que a mera disputa do
RE como direito subjetivo da parte, ou como a decisão objetiva de um
tema. A metadecisão parece conjugar harmonicamente as duas facetas
objetiva e subjetiva.
A adoção de um modelo de “Corte Superior de atacado”
e a produção de metadecisões são duas estratégias institucionais
contemporâneas para lidar com uma litigância de massa. Tanto é assim
que o art. 928 airma que o julgamento dos casos repetitivos “tem por
objeto a questão de direito material ou processual”, inserindo o IRDR,
o RE e o RESP repetitivos nesse lugar entre a dimensão objetiva e
subjetiva.
Espera­se que a Corte Suprema paciique o tema, estabelecendo a
tese a ser aplicável pelos Tribunais de origem (plano vertical). Espera-se,
ainda, que as alterações na jurisprudência do Tribunal por ele mesmo
tenham por base uma mudança na legislação, uma incoerência com
o sistema ou uma incoerência com os princípios e valores sociais que
reputam a decisão injusta (horizontal). Os dois planos, porém, devem
respeitar os princípios mencionados.

41 A expressão pertence a CORTES, Osmar Mendes Paixão. A repercussão geral como instrumento de racionalização da prestação jurisdicional
no contexto da crise da recorribilidade extraordinária. In: FUX, Luiz; FREIRE, Alexandre; DANTAS, Bruno (Coord). Repercussão geral da questão
constitucional.Rio de Janeiro Forense, 2014. p. 456 et seq.

42 VIEIRA, Oscar Vilhena. Que reforma? Estudos avançados, v. 18, n. 51, p. 202, 2004.

43 LEGALE, Siddharta. Recurso Extraordinário com repercussão geral como metadecisão. Disponível em: <htp://jota.uol.com.br/o­recurso­
extraordinario­com­repercussao­geral­como­metadecisao#_edn18 >.
MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO
O MICROSSISTEMA DE PRECEDENTES NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
29

2.6 Espécies de precedentes vinculantes e persuasivos

Há uma contraposição clássica entre precedentes vinculantes e


persuasivos.44 É preciso avançar na tipologia.45 É possível incluir, pelo
menos, três novas espécies: os precedentes de eicácia intermediária,
os superprecedentes e os microprecedentes.46
Os primeiros representam a aproximação com o modelo do
common law: são os precedentes vinculantes. Eles exercem efetividade
máxima, obediência direta em casos análogos. Extrapolam os efeitos
interpartes, ixando uma orientação a ser seguida, ou seja, com efeitos
erga omnes. A não obediência a esses precedentes geram sanções, tal
como ocorre no caso de descumprimento legal. São fontes formais do
direito.47 São a regra nos modelos de judge made law (common law), mas
também são encontrados nos ordenamentos da civil law, como no caso
brasileiro. São exemplos os precedentes com efeitos vinculantes, como
os tomados nas decisões das ações diretas de inconstitucionalidade ou
nas súmulas vinculantes.
Há quem entenda, como o prof. Lênio Streck, que as súmulas
vinculantes não são precedentes, porque, entre outros argumentos são
reduções linguísticas que se desvinculam dos casos que a originaram.48
Em melhor sentido, porém, encontra-se Luiz Guilherme Marinoni,

44 A classiicação parece ter sido adaptada e aclimatada à realidade brasileira a partir do pensamento de determinados autores estrangeiros
que consideram as experiências de seus países com os precedentes. Em geral, os autores que perilham essa classiicação inspiram­se em:
SUMMERS, Robert. Precedent in the United States (New York State). In: MACMACORMICK, Neil; SUMMERS, Robert S. (Orgs.) Interpreting
precedents: a comparative study. London: Ashgate Publishing Company, 1997. p. 368 e PECZENIK, Aleksander. The binding for of precedent.
In: MACMACORMICK, Neil; SUMMERS, Robert S. (Orgs.) Interpreting precedents: a comparative study. London: Ashgate Publishing Company,
1997. p. 463. Um dos primeiros e mais competentes trabalhos a fazê-lo foi CAMPOS MELLO, Patrícia Perrone. Precedentes: o desenvolvimento
judicial do direito no constitucionalismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

45 Os autores começam a trabalhar com ambas as dimensões: fatores institucionais (instituições, contexto, normas constitucionais) e
extrainstitucionais (discurso jurídico, dogmática, normas, jurisprudência, cadeias de sustentação, fundamentação, número de casos,
correção substancial da decisão). Cf. BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do precedente judicial: a justiicação e a aplicação de regras
jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012. p. 250-368. Para um maior aprofundamento dos fatores extrajudiciais interferem na decisão judicial,
vale a pena conferir a profunda tese de doutorado do Prof. Marcelo Novelino, que, além de trabalhar com um modelo multifatorial, expõe os
modelos legalista e atitudinal, sugere uma série de enunciados probabilísticos da inluência de fatores cognitivos individuais e de grupo no
raciocínio judicial, como o colegiado, a mídia e a opinião pública. CAMARGO, Marcelo Novelino. Como os juízes decidem: a inluência de fatores
extrajurídicos sobre o comportamento judicial. Tese (Doutorado) – UERJ, Rio de Janeiro, 2014

46 DUXUBURY, Neil. The nature and authority of precedent. Cambridge: Cambridge University Press, 2008

47 Ibidem, p. 63.

48 Conhecido crítico do instituto, o autor posiciona­se nesse sentido STRECK, Lênio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isso: o precedente judicial e
as súmulas vinculantes. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014. p. 69. No mesmo sentido, o autor chega a airmar que “No Brasil não existem
precedentes no sentido de que fala a common law. (...) Logo, por que ainda tem gente que pensa que as SV têm parecência com os precedentes
da common law?” Cf. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 679.
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30 JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E DIREITO CONSTITUCIONAL INTERNACIONAL

segundo o qual a redação das súmulas vinculantes seriam a tentativa de


extrair a ratio decidendi das reiteradas decisões que lhes deram origem,
como se depreende da seguinte passagem:

A súmula vinculante só pode ser editada quando hou-


ver controvérsia atual. Entretanto, por controvérsia atual
não basta entender questão constitucional que está em
discussão, ou que acaba de ser discutida, no Supremo
Tribunal Federal. A controvérsia é atual quando há dis-
cussão, contemporânea, acerca da precisa ratio decidendi
dos precedentes que dizem respeito a uma mesma ques-
tão constitucional. Controvérsia, portanto, não é sinôni-
mo de objeto sobre o qual se discute judicialmente, mas
pertine à dúvida sobre a ratio decidendi dos precedentes
respeitantes a tal objeto.49

Ao concordar com essa leitura, não são ignoradas as diiculdades


e desvios nos procedimentos e requisitos nesse processo de formulação
do enunciado sumular.50 Acreditamos, porém, que isso não parece
comprometer o reconhecimento das transformações na cultura de
precedentes em curso no Brasil. Trata-se mais de uma questão de
aperfeiçoamento institucional do que de negação das transformações. É
verdade que o efeito vinculante aqui resulta de opções da Constituição
de 1988 e da legislação, não sendo sequer exclusividade do common law,
já que na Alemanha há tais efeitos. Parece-nos, porém, que a origem
legislativa dessa vinculação em alguns países de civil law e a origem da
vinculação dos precedentes residir na tradição nos sistemas do common
law não é suiciente para desconsiderar as aproximações recíprocas e
as modiicações na cultura de precedentes também no Brasil do ponto
de vista prático e teórico.
Por outro lado, existem também os precedentes meramente
persuasivos com função típica na civil law: de mera persuasão em casos
semelhantes, argumento de autoridade para o juiz do caso futuro.
Entretanto, diferentemente dos precedentes de eicácia intermediária,
estes não provocam um ônus argumentativo às decisões contrárias,

49 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 491.

50 Um excelente trabalho crítico, com dados estatísticos, atenção a datas de edição das súmulas e precedentes que lhes deram origem,
demonstrando cada um dos desvios procedimentais, como a inexistência de decisões reiteradas, foi elaborado quando da conclusão de curso,
sob a orientação do prof. Fernando Gama de Miranda Neto. Infelizmente o trabalho ainda não foi publicado. Cf. CIRAUDO, Mário Henrique
de Araújo. Autoritarismo sumular no pós-emenda 45. Monograia (Conclusão de curso) – Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2011.
MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO
O MICROSSISTEMA DE PRECEDENTES NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
31

pois tratam somente de mais um dos fatos trazidos pelas partes para o
convencimento do juiz. Embora sejam a característica marcante da civil
law, também estão presentes no common law, como no caso das decisões
de primeira instância em relação aos tribunais superiores. Há quem
airme que a inexistência de efeitos vinculantes tornaria o caso um
mero exemplo e não um “precedente” no sentido próprio do termo. No
entanto, parece que admitir esse degrau vinculativo na escalada como
fontes reais do direito, porque a força persuasiva de tais decisões não se
confunde, na prática, com o mero exemplo.51 Trata-se, por exemplo, das
decisões tomadas no âmbito do controle difuso de constitucionalidade
com efeitos interpartes apenas. Mesmo sem efeitos vinculantes, as cortes
de primeira e segunda instância costumam segui-las normalmente e não
raro não conhecem/julgam improcedente recursos das partes, porque
tais casos constituem importantes repositórios argumentativos.

2.7 Novas espécies de precedentes: eicácia intermediária,


superprecedentes e miniprecedentes

É imprescindível compreender a insuiciência da vinculação


jurídico-normativa a partir do processo complexo de vinculação e
resistência do precedente ao precedente. Não raro a complexidade
do sistema de vinculação aos precedentes é tamanha que, em alguma
medida, a ascensão ou o caso de um precedente dependerá de sua
aderência ocasional às instituições e ao imaginário dos cidadãos. Não é
possível negar a relação entre o precedente e o contexto, entre precedentes
e circunstâncias fáticas, conforme já apontado anteriormente. O art.
927, §5º é particularmente relevante dessa mudança de paradigma,
quando determina a publicidade dos precedentes e a organização dos
precedentes por “questão jurídica decidida”, preferencialmente pela
rede de computadores. Trata-se de uma preocupação de inserir os
precedentes como importantes para construção de signiicados sociais
e institucionais compartilhados.
Patrícia Perrone52 propôs, de forma pertinente, uma terceira
espécie para além da clássica dicotomia vinculantes e persuasivos:
os precedentes de eicácia intermediária que não possuem caráter

51 Ibidem, p. 66.

52 CAMPOS MELLO, Patrícia Perrone. Precedentes: o desenvolvimento judicial do direito no constitucionalismo contemporâneo. Rio de Janeiro:
Renovar, 2008.
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32 JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E DIREITO CONSTITUCIONAL INTERNACIONAL

obrigatório formalmente, mas não deixam de possuir eicácia ainda


que restrita. Sua não aplicação é criticada e, não raro, torna-se alvo
de revisão. Há também a possibilidade de se encontrar efeitos
impositivos mais brandos, para além do processo, como um peso
argumentativo maior em casos semelhantes e facilidades recursais. A
eicácia intermediária é residual, ocorre quando não se pode garantir a
obrigatoriedade do precedente. No common law, são os casos de decisões
de tribunais inferiores em relação às decisões seguintes deles próprios.
Não signiica dizer que não possam ser superados, mas só o poderão
mediante fundamentação adequada.53 Essa eicácia intermediária é
exempliicada em algumas ações da tutela coletiva, que, a despeito
da inexistência de efeitos vinculantes, acabam adquirindo uma maior
projeção por conta dos seus efeitos erga omnes.
No CPC/73, o RE se enquadraria como de eicácia intermediária.
Sob a vigência do CPC/15, a autora e o prof. Luiz Guilherme Marinoni
defendem o recurso extraordinário como se efeito vinculante. Trata-se,
porém, de um efeito vinculante de fato, atribuído pelo Legislador. O
entendimento, porém, parece contraditório com a decisão ixada pelo
STF na Rcl 4335 que não acatou a tese da abstrativização do controle
difuso, em que pese parte da Corte considerar o “efeito expansivo” dos
precedentes. Resta saber se tal entendimento da Corte permanecerá
à luz do novo CPC. O RE encontra-se em um cenário repleto de
peculiaridades. Após a introdução da repercussão geral, o RE possui
com força cogente maior do que a maior parte das decisões persuasivas.
O Tribunal de Origem deve aplicar a tese do sobrestado, sob pena de
reclamação.
A Constituição e a legislação, contudo, não previram
explicitamente um efeito vinculante para eles. Indaga-se nessa linha,
por exemplo, se os REs não sobrestados porque foram interpostos após
a resolução do mérito do paradigma estariam vinculados à decisão do
STF? Na prática, o magistrado julgará o caso aplicando a tese da Corte
Suprema, especialmente, diante da possibilidade aberta pelo art. 932,
segundo o qual o relator pode negar provimento ao recurso contrário
à Súmula do STF ou STJ, de acórdão proferido nos recursos repetitivos
e de decisões firmadas em incidentes de resolução de demandas
repetitivas e no incidente de assunção de competência. Patrícia Perrone,

53 Ibidem, p. 65.
MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO
O MICROSSISTEMA DE PRECEDENTES NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
33

portanto, é técnica – sem deixar de ser crítica – quando descreve essa


construção dos efeitos vinculantes do RE. Conira­se as palavras da
própria autora:

A meio caminho entre a eicácia normativa (forte) e a


eicácia meramente persuasiva, diversas decisões dos
tribunais produzem, hoje, em graus distintos, precedentes
de eicácia intermediária: o entendimento neles consagrado
deve ser seguido pelas instâncias inferiores, possibilita
a inadmissão ou o provimento monocrático de recursos,
enseja a dispensa da reserva de plenário em matéria
constitucional etc.. Entretanto, em caso de inobservância
de tais julgados, não cabe um instrumento com a força e a
celeridade da reclamação para cassar a decisão divergente.
No caso da eicácia intermediária, é necessário percorrer
o caminho mais longo e acessar as demais instâncias
na tentativa de reformar o julgado que não respeita
a jurisprudência. Em razão disso, a efetividade do
precedente icava eventualmente comprometida. Este
é o caso, atualmente, da jurisprudência dominante nos
tribunais e das decisões proferidas pelo STF e pelo STJ,
em casos de recursos repetitivos[6].Tal panorama se
altera substancialmente com o novo código.

Destaca, a seguir, que o art. 988 permitiu o ajuizamento de


reclamação não apenas do julgamento do controle abstrato, o que
acaba por conferir ao RE efeitos vinculantes. Destaque-se, no mesmo
sentido, que, na comparação com o CPC/73 (art. 557), percebe-se uma
ampliação dos poderes do relator no CPC/15 (art. 932) tanto nos atos
de direção de sua competência originária, quanto no julgamento do
mérito dos recursos para provimento ou improvimento.54 Na prática,
as decisões dos recursos extraordinários repetitivos tomados pelo STF
e dos recursos especiais pelo STJ são obrigatórios.
Houve o que Patrícia Perrone denominou de “avanço
revolucionário”55 no tratamento dos precedentes no CPC atual, cabendo
inclusive reclamação pela inobservância. A autora chama atenção,

54 CAMARGO, Luiz Carlos Volpe. Art. 932. In: STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo Carneiro da; FREIRE, Alexandre (Orgs.).
Comentários ao Código de Civil Processo. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 1206.

55 Disponível em: <htp://jota.uol.com.br/serie­os­precedentes­no­novo­cpc>.


JOSÉ RIBAS VIEIRA, MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO, SIDDHARTA LEGALE (COORDS.)
34 JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E DIREITO CONSTITUCIONAL INTERNACIONAL

ainda, para o fato de que o que vincula do precedente é a sua razão de


decidir, ou seja, o que foi efetivamente debatido e não os argumentos
laterais.56 Resta a controvérsia quanto a constitucionalidade desse efeito
vinculante do RE ser atribuído por lei, ou seja, pelo CPC. Em outras
palavras, é necessária uma emenda para introduzir tais efeitos ou o
legislador seria competente.
Ao lado dessa espécie de precedentes de eicácia intermediária,
proponho uma inclusão de mais uma classiicação para os precedentes:
os superprecedentes e os miniprecedentes.57 A partir de uma correlação
de ideias presentes nos diversos autores existentes, destaca-se que a
classiicação clássica que subdivide os precedentes em vinculantes e
persuasivos tem em conta apenas os graus de adesão legal, formal
ou normativa aos precedentes. É preciso avançar para compreender
um grau de vinculação institucional, social, fático ou cultural a certas
decisões, que são capazes de gerar significados compartilhados
coletivamente.
É possível conceituar os superprecedentes como decisões sobre
temas amplos e gerais, aptos a paciicar razoavelmente certas disputas
políticas e sociais, adquirindo uma vinculação forte do ponto de vista
jurídico, institucional e político-sociológico com uma realidade viva e
dinâmica. Em outras palavras, possuem as seguintes características: (i)
são amplos e não precisos; (ii) paciicam em alguma medida disputas
políticas, morais ou sociais; (iii) possuem uma vinculação jurídica e
social que se relaciona com a constituição viva, o que diiculta a sua
superação; e (iv) mais do que fama, possuem redes sociais que sustentam
a sua normatividade ética, econômica, política e juridicamente, já que
podem existir precedentes extremamente conhecidos que não desfrutam
mais de normatividade hoje por ter perdido o suporte institucional e
dos grupos sociais para mantê-los.
Os miniprecedentes são o reverso dos superprecedentes.
Possuem descrições intuitivas, frágeis, estreitas e fáceis de evitar.
Revelam-se incapazes de persuadir até mesmo os tribunais de origem,
vendo degradada a sua eicácia persuasiva. Nem só de grandes temas
e casos históricos vive uma Corte de Precedentes. Parte substancial
do trabalho judicial são decisões cotidianas, de reduzido impacto e
desprovido de relexões mais profundas, salvo em relação à solução
daquele caso de forma pontual e compatível com o ordenamento
jurídico de sua época. A superprecedente e um miniprecedente seja a
diferença entre uma política judicial cotidiana e a política extraordinária.

56 Disponível em: <htp://jota.uol.com.br/como­se­opera­com­precedentes­segundo­o­novo­cpc>.

57 Fizemos um ensaio sobre o tema. Estamos aguardando a publicação do artigo sobre o tema, já submetido à avaliação da Revista Cientíica.
Disponível em: <htps://www.academia.edu/10984323/O_que_%C3%A9_um_superprecedente_Um_ensaio>.
MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO
O MICROSSISTEMA DE PRECEDENTES NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
35

2.8 Conclusão

Em desfecho, vale reiterar a tese central abordada no artigo:


os diversos dispositivos presentes ao longo do CPC integram um
microssistema de precedentes. Em uma interpretação sistemática dos
dispositivos do Código, especialmente os que carregam expressamente
a palavra precedentes, percebe-se uma unidade de sentido para uma
lógica processual que opere na qual o caso da Corte constitucional deixa
de ser apenas um exemplo, tornando-se a solução de um tema que se
espraia para os demais.
Vale destacar os seguintes dispositivos, abordados ao longo do
texto que demonstram esse a opção por uma lógica de precedentes no
novo Código: art. 489 (fundamentação das decisões); art. 926 (coerência
e integridade); art. 926, §2º (atenção às circunstâncias fáticas); art. 927
(publicidade dos temas na internet); art. 988 (cabimento de reclamação
para cumprir precedente); e art.1042 (distinguishing do sobrestado ao
paradigma).
O novo Código espera que os tribunais sejam capazes de
manter a sua jurisprudência estável e coerente, o que impõe um dever
de autorreferência aos seus próprios precedentes. A modiicação da
linha de precedentes impõe um ônus argumentativo mais elevado,
de modo a assegurar uma maior segurança jurídica com as viradas
jurisprudenciais. A integridade, positivada no CPC, pressupõe mais
do que uma teoria positivista do precedente poderia oferecer, mas
suas preocupações também estão positivadas: certeza, previsibilidade
e respeito a decisões passadas.
A integridade positivada no CPC, além dessas preocupações,
pugna para que as decisões sejam justas e fundamentadas, de modo que
sejam as mais corretas possíveis. Como o Código positiva a ponderação
e a proporcionalidade, não aderiu à integridade em termos idedignos
ao pensamento de Ronald Dworkin. Adotou uma teoria sincrética
dos precedentes, que combina as versões positivistas (Schauer),
pós-positivistas (Dworkin e Alexy) e institucionalistas (Sunstein e
MacCormick). Não existe uma única teoria de base no Código. Mais
do que isso, não existe uma única teoria capaz de explicar toda a
realidade que envolve os precedentes. Nenhuma teoria é invulnerável
às sutilezas da vida prática dos tribunais. Cada teoria sozinha pode
ser capaz de desvelar um aspecto da realidade, mas não fornecerá um
painel completo.
JOSÉ RIBAS VIEIRA, MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO, SIDDHARTA LEGALE (COORDS.)
36 JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E DIREITO CONSTITUCIONAL INTERNACIONAL

Nesse microssistema, a força dos precedentes se ampliou, no


mínimo, assemelhando-se aos precedentes vinculantes, porque os
Tribunais superiores tendem a deixar de ser “Cortes de varejo” para
atuarem como verdadeiras “Cortes de atacado”, que resolvem temas
e constroem metadecisões para um caso concreto e, em seguida,
determinam a sua aplicação pelos Tribunais de Origem. Nessa dimensão
vertical, a discordância também demandará um ônus argumentativo
mais elevado, invocando em especial o distinguishing ou o overruling,
ou seja, a diferença do caso concreto em relação ao paradigma ou o
equívoco no acórdão paradigma.
Novas espécies, como superprecedentes e miniprecedentes,
acentuam a insuiciência de uma classiicação que leve em consideração
exclusivamente normativa (vinculante, persuasivo e intermediário). É
preciso ver que a “pegada” contida nos precedentes, a maior adesão, a
diiculdade em alterá­los, a existência de redes sociais de sustentação
ou resistência a eles, enim, diversos fatores revelam a necessidade
de levar em conta também uma vinculação social aos precedentes. A
maior vinculação social e institucional, nesse sentido, pode construir um
superprecedente, enquanto um menor tende a ensejar miniprecedentes.
Novas espécies de precedentes são apontadas, pela doutrina,
como eficácia intermediária em decisões com efeitos erga omnes.
Desprovidas tradicionalmente de efeitos vinculantes, no novo
CPC faz com que alguns autores afirmem a existência de efeitos
vinculantes ao recurso extraordinário. O mais interessante, contudo,
desse microssistema de precedentes no novo CPC é perceber que a
participação em seu processo de formulação, o comportamento das
instituições, dispositivos positivados e o impacto cada vez maior das
decisões revela uma mudança cultural em andamento na forma de
conceber os precedentes.

Informação bibliográica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de


Normas Técnicas (ABNT):

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe; LEGALE, Siddharta. O microssistema de


precedentes no Código de Processo Civil de 2015. In: VIEIRA, José Ribas; LACOMBE,
Margarida; LEGALE, Siddharta. Jurisdição constitucional e direito constitucional
internacional. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 15-36. ISBN 978-85-450-0196-6.
Disponível em: <htp://www.bidforum.com.br>.

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