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15/04/2020 Calibragem jurídica em tempos de epidemia - JOTA Info

ANÁLISE

Calibragem jurídica em tempos de epidemia


Vale repetir a lição de Hesse, a força normativa da Constituição deve se a rmar na normalidade e nos tempos
de crise

SAMUEL BARBOSA

15/04/2020 15:15

Supremo Tribunal Federal. Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF (07/11/2019)

A pandemia da Covid-19 colocou em circulação antigas máximas jurídicas como


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“Not kennt kein Gebot” (a necessidade não conhece mandamento) e “necessitas
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habet non legem” (a necessidade não tem lei).

O ministro Gilmar Mendes chamou atenção para o uso que Konrad Hesse fez da
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primeira máxima. Ao nal do texto “A força normativa da Constituição” (1959) ,
Hesse tira as consequências de uma lacuna da Lei Fundamental de Bonn. A

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Constituição não estava preparada para o embate às “situações de emergência no


âmbito político, econômico ou social” porque não regulava o estado de necessidade.

Quando a ameaça à ordem constitucional se concretizasse, a lacuna se faria sentir, a


solução do problema seria entregue ao poder dos fatos e justi cada por um “estado
de necessidade suprapositivo”. A necessidade, não a Constituição, ditaria as regras.
O ministro Gilmar Mendes, na tradução que preparou para este importante livro,
comentou que o texto é anterior à emenda constitucional de ns dos anos 1960 que
preencheu a lacuna, criando um regime jurídico detalhado dos tipos de estado de
necessidade.

Em seu Manual, Hesse volta ao tema defendendo a tese de que “A Constituição deve
a rmar-se não só em tempos normais, mas também em situações de emergência e
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crise”. O autor esboça critérios para a Constituição opor-se à exceção “no caminho
do direito” e interpreta o alcance do regime constitucional que preencheu a lacuna
aludida.

A máxima “Not kennt kein Gebot” é uma tradução da máxima latina “Necessitas non
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habet legem” que tem uma longa e multifacetada tradição. Josef Kohler registra a
vernacularização da máxima no francês “Nécessité n’a point de loi”, com
consequências para o direito público: “Besoin ou nécessité et volonté de roi n’ont loi”
(p. 412).

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É preciso frisar que máximas com longa tradição não guardam univocidade. Seu uso
varia muito a depender dos contextos, estão sujeitas a reapropriações nas diferentes
épocas. “Necessitas non habet legem” já exprimiu a concepção de um futuro cego
inexorável, a correção de regras estritas baseadas na equidade, a justi cação da
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Razão de Estado, a caracterização das situações de guerra etc.

Máximas jurídicas podem ter uma apelo retórico,


mas seu signi cado não é claro. Não podem ser
tomadas pelo seu valor literal por mais sugestivo
que possa parecer.

Foi perspicaz a tradução do ministro Fux: “Diante da necessidade, deve cessar a letra
fria da lei”. Trata-se de uma ressigni cação importante para a tomada de decisão. A
tradução não a rma que não há lei na necessidade, mas que a “letra fria” da lei cessa
na necessidade.

A extensa literatura sobre exceção, emergência, necessidade, regime de poderes


extraordinários não raro busca paralelos com contextos históricos distantes. Por
mais instrutivo que seja este exercício, a valia estaria mais nos contrastes do que
nas continuidades. Nossa conjuntura, que se difere de anteriores mais recuadas no
tempo e espaço, é a de um Estado Democrático de Direito cuja força normativa está
colocada a prova. As premissas para dar respostas aos desa os urgentes devem ser
buscadas no direito (nacional e internacional) em vigor e não nos cenários de
exceção de períodos de guerra ou de paz, por que passaram ordenamentos com
pouca ou nenhuma densidade normativa. Nossa conjuntura não é a de ausência de
direito ou Constituição. Não estamos sob o ditado das duas máximas citadas,
portanto.

Para carmos com um exemplo, nosso direito constitucional e social tem uma
repertório de regras, princípios e conceitos para justi car as decisões do STF e
Judiciário neste tempo de crise. O princípio da solidariedade, da promoção da
negociação coletiva dentre outros são premissas fecundas para a construção de
decisões adequadas à crise atual. Há normas constitucionais para momentos de
contingência da vida dos direitos sociais, como a procedimentalização da redução
salarial ou redução de jornadas de trabalho (CF, art. 7º, VI e XIII), dentre outras regras
de calibragem. Não falta direito para imaginar soluções justas e responsáveis.

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O certo é que, para tomar o exemplo dos economistas, várias medidas de proteção
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social estão sendo desenhadas. A Corte Suprema também deve se empenhar com
diligência para construir soluções possíveis para proteger os mais vulneráveis.

Não custa lembrar de dois exemplos históricos próximos. O regime de estado de


exceção da Constituição de Weimar (art. 48) permitia a suspensão de vários direitos
fundamentais, mas nenhum direito social. Para carmos com um exemplo de
urgência econômica, a severa crise econômica mundial dos anos 1920 e 1930 teve
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como resposta o New Deal nos EUA. Respectivamente, preservação e ampliação da
proteção social.

Não há tempo para indiferença e indecisão. Vale repetir a lição de Hesse, a força
normativa da Constituição deve se a rmar na normalidade e nos tempos de crise.

—————————————-

1 Gilmar Mendes, “Jurisprudência de Crise e Pensamento Possível: caminhos

constitucionais”, Conjur, 11.04.2020.

2 Luiz Fux, “A lição de Santo Agostinho”, Folha de S.Paulo, 10.04.2020.

3 Konrad Hesse, A força normativa da constituição. Trad. de Gilmar Mendes. Porto

Alegre: Fabris, 1991, p.30-33.

4 Konrad Hesse, Elementos de direito constitucional da República Federal da

Alemanha. 20ª ed. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Fabris, 1998, p.528.

5 Josef Kohler. “Das Notrecht”, Archiv für Rechts- und Wirtschaftsphilosophie, vol. 8,

nº 4, 1915, pp.411-449. Mario Ascheri, “Nota per la storia dello stato di necessità. La
sistemazione canonistica”, Studi Senesi, LXXXVII (III Serie, XXIV), 1975, pp.7-94.

6 Hans Boldt. “Ausnahmezustand, necessitas publica, Belagerungszustand,

Kriegszustand, Staatsnotstand, Staatsnotrecht”, Geschichtliche Grundbegriffe, I, pp.


343-376.

7 “Armínio [Fraga] sugere renda mínima para 100 milhões”, Valor Econômico,

24.03.2020.

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8 Gilberto Bercovici, Soberania e Constituição: para uma crítica do constitucionalismo.

São Paulo: Quartier Latin, 2008, p.310.

SAMUEL BARBOSA – Professor da Faculdade de Direito da USP.

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