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Sumário:
1 Introdução
O Direito constitucional brasileiro parece escolher a dedo os países por quem se permite influenciar.
Em um comportamento binário, nosso arcabouço jurídico-constitucional sujeita-se à influência
predominante do Direito alemão e do Direito norte-americano, de onde importa quase tudo.
Exemplos não faltam: a jurisprudência dos valores alemã (Wertungsjurisprudens), a Teoria da
Argumentação de Robert Alexy, o judicial review norte-americano etc.
juicio de amparo mexicano1. O pioneirismo na constitucionalização dos direitos sociais, a seu turno, é
atribuído à Carta Mexicana de 1917, que acabou induzindo o resto do mundo a consagrar direitos
dessa natureza nas constituições escritas.
que não costuma dar boas-vindas à jurisprudência do Tribunal Popular de Cuba ou da Corte
Constitucional do Panamá, que fecha os olhos para os avançados estudos acerca das cláusulas
pétreas na Constituição de Honduras, que desconhece a previsão de Direitos da Natureza (Pacha
Mama) na Constituição do Equador (2008)2 e que ignora a doutrina constitucional guatemalteca.
É de se reconhecer que certas construções argentinas chegaram ao Brasil, mas isso se deve a uma
via anômala de internalização. O acesso ao Direito constitucional brasileiro não é franqueado aos
cientistas latino-americanos pela via direta, mas permite rotas alternativas. Não se atinge o Direito
constitucional brasileiro pela via do Direito constitucional argentino, mas é possível alcançar esse
mesmo destino por meio do Direito penal. Assim, quando Zaffaroni teoriza sobre a tipicidade
conglobante, isso acaba por culminar em um ponto de contato com a Constituição de 1988 e, por
conseguinte, encontra solo fértil na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. No entanto, tal se
deve à constitucionalização do Direito (penal), não à humildade dos constitucionalistas em acolher
lições do constitucionalismo argentino.
De fato, a razão estava com Lenio Streck: mais do que nunca, veremos que o estado de coisas
inconstitucional aposta no ativismo judicial do órgão judicante que o reconhece. Pois bem.
Na célebre frase atribuída a Georges Ripert, “Quando o Direito ignora a realidade, a realidade se
vinga, ignorando o Direito”. Não é incomum que, a despeito da força normativa da Constituição,
situações surjam, se desenvolvam e se consolidem à revelia do texto constitucional, como se a Carta
Magna não fosse nada além de uma folha de papel.
Um exemplo elucida o que foi dito. Inspirada pelo princípio republicano, a Constituição Federal de
1988 exigiu o concurso público para a investidura em cargo público de provimento efetivo (art. 37, II),
condição exigida para alcançar a estabilidade no serviço público. No entanto, de maneira generosa,
a CF/1988 (LGL\1988\3) instituiu uma regra de transição, no Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, estabilizando todos os servidores que desempenhavam sua função pública, de maneira
ininterrupta, há cinco anos contados da promulgação da Constituição (art. 19 do ADCT
(LGL\1988\31))7. Em termos mais claros, uma norma graciosa presenteou com estabilidade os
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O inconstitucional estado de coisas: ficção e realidade
agentes públicos que, embora não tenham se sujeitado a um concurso público, trabalhavam na
Administração Pública de maneira contínua, pelo menos, desde a data de 5 de outubro de 1983. A
norma expressa uma regra de clareza meridiana: após esse marco temporal, somente por concurso
público se alcança a estabilidade no serviço público.
O Estado do Acre, ignorando a Carta Federal, alterou esse marco, admitindo como estáveis
servidores que ingressaram até 31 de dezembro de 1994. A manobra foi feita por uma emenda à
Constituição acreana. Quando cerca de 11.000 (onze mil) servidores públicos ocupavam cargos que
não poderiam ocupar, o Supremo Tribunal Federal foi instado a se pronunciar acerca dessa
realidade inconstitucional8. Seria a situação descrita um estado de coisas inconstitucional?
Outro exemplo também ilustra o surgimento de uma realidade inconstitucional. Para a criação de
municípios, a Constituição Federal (LGL\1988\3) exige um estudo de viabilidade municipal. Se
favorável, realiza-se um plebiscito. Havendo êxito na consulta popular, uma lei estadual pode criar a
municipalidade, mas desde que o faça em período apontado em lei complementar federal (art. 18, §
4º)9. Sucede que esta norma federal jamais foi elaborada pelo Congresso Nacional, exatamente para
esterilizar os Estados-membros, de modo que neles não frutifiquem municípios. Depois da EC
15/1996, portanto, nenhum Município poderia ser criado validamente. Mais uma vez, voltamos à
observação de Georges Ripert: “Quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga, ignorando
o Direito”. À revelia da Constituição, o Estado da Bahia editou uma lei estadual que criou o Município
de Luís Eduardo Magalhães. Na referida municipalidade, registros de nascimentos foram lavrados;
certidões de óbito foram assentadas; casamentos foram celebrados; linhas telefônicas foram
instaladas; vereadores e prefeitos foram sufragados em eleições realizadas pela Justiça Eleitoral;
tributos municipais foram cobrados, e até mesmo a receita do Fundo de Participação dos Municípios
foi recebida10 . Noutro dizer, Luís Eduardo Magalhães, juridicamente, apresentava-se como um
município putativo. A hipótese traduz um estado de coisas inconstitucional?
A toda evidência, os dois exemplos colacionados revelam uma realidade inconstitucional, isto é, um
conjunto de fatos que se rebelaram contra a força normativa da Constituição, a ela não se
subjugando. Porém, nenhuma delas representa o estado de coisas inconstitucional, tal como
reconhecido pela Corte Constitucional Colombiana11 . Isso porque uma realidade inconstitucional é
necessária para a consumação do estado de coisas inconstitucional, mas não é suficiente. Não basta
que as coisas estejam em desarmonia com a Constituição.
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O inconstitucional estado de coisas: ficção e realidade
Fincada a premissa de que uma realidade inconstitucional pode ou não encaixar-se no conceito de
estado de coisas inconstitucional, pois dependerá da verificação de determinadas condições,
pergunta-se: que condições são essas? O que é preciso para uma realidade inconstitucional assumir
a roupagem de estado de coisas inconstitucional? Somente os precedentes da Corte Colombiana
podem ser tidos como fonte legítima para apontar os contornos do instituto, razão pela qual sobre
eles nos debruçaremos. Em todos os casos estudados a seguir, a Corte Constitucional da Colômbia
reconheceu esse estado de coisas.
Na Sentencia de Unificación (SU) – 559, de 1997, o pano de fundo para o reconhecimento do estado
de coisas inconstitucional foi a recusa de direitos previdenciários. Ora, recusar um direito nada mais
é do que um non facere. Na Sentencia T-590, de 20.10.1998, o Tribunal Colombiano deparou-se
com a ineficiência da proteção estatal dos defensores de direitos humanos, causa subjacente que
também representa uma omissão. Na Sentencia SU – 250, de 26.05.1998, entendeu-se haver
omissão do Estado na organização do concurso público para notários, situação esta que, durante
muito tempo, perdurou em terras brasileiras. Nota-se, mais uma vez, o aspecto relevante da omissão
inconstitucional. Na Sentencia T-068, de 5 de março de 1998, o estado originou-se da mora da Caixa
Nacional de Previdência em responder aos pleitos administrativos dos aposentados e pensionistas,
aviltando o direito de petição. Na Sentencia T-153, de 28 de abril de 1998, o estado de coisas
nasceu da superlotação carcerária, o que, apesar de contar com uma ação estatal (custodiar
indivíduos em uma cela que não comporta acomodá-los), traduz uma inoperância do Estado em
construir presídios ou mesmo promover políticas públicas que diminuam a criminalidade (ou ainda:
não colocá-los em acomodações condignas). Na Sentencia T-025, de 22.01.2004, arguiu-se a
indiferença do Estado diante do êxodo de famílias que fugiam da violência no país, privadas do seu
mínimo existencial.
A partir de uma breve análise dos casos sobreditos, é possível reunir pontos de afinidade, de modo a
indicar as notas essenciais que identificam a configuração do estado de coisas inconstitucional.
Vejamo-las, articuladamente.
Em comum, todos os precedentes apontam para uma realidade inconstitucional, sempre advinda de
uma omissão estatal (non facere).
Assim como os crimes podem ser cometidos por uma conduta comissiva ou omissiva, a autoridade
de uma Constituição pode ser desafiada por uma lei que contrarie os seus preceitos
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(inconstitucionalidade por ação), mas também pela indiferença de quem de direito na elaboração da
norma que o constituinte exigiu (inconstitucionalidade por omissão). Em linhas gerais, é isso o que se
encontra usualmente nos manuais brasileiros de Direito constitucional.
Ocorre que a desobediência a um comando constitucional não se limita à atividade legislativa, afinal,
a existência de uma lei não é capaz de concretizar tudo o que foi proclamado como direito pela Carta
Magna. Esta, por exemplo, exigiu a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem assim
a erradicação da pobreza e da marginalização (art. 3º, I e III). Sabemos que não é suficiente a edição
de diplomas legais para a consecução desses objetivos, pois tais normas são eminentemente
programáticas. Nesses casos, mais do que uma lei e uma decisão judicial, exige-se a adoção de
programas, de políticas públicas que permitam alcançar o fim proposto. Somente uma atividade
metajurídica conduz a objetivos dessa natureza. O Direito, sozinho, não tem envergadura para
realizar a Constituição por inteiro.
Se a sociedade brasileira for considerada cativa, injusta, egoísta, com acentuada pobreza e
marginalizante, afigura-se uma inconstitucionalidade diferente das convencionais. De que natureza é
essa inconstitucionalidade? Sendo esses males provenientes da inoperância de políticas públicas,
esta é uma inconstitucionalidade por omissão, mas em sentido lato, isto é, muito além da mera
ausência de lei exigida pela Constituição. Em síntese: a inconstitucionalidade por omissão, como
condição para a proclamação do estado de coisas inconstitucional, exorbita da ordinária não
elaboração de uma norma jurídica, representando uma gravíssima indiferença no campo das
políticas públicas e dos direitos sociais confiados ao Estado14 . Não raro, trata-se de um estado de
anormalidade caracterizado pela falência múltipla de órgãos. A perenidade é uma marca essencial
dessa abstenção, que não pode ser meramente sazonal. Se a edição de uma lei é suficiente para
afastar a situação anômala, não se cogita de estado de coisas inconstitucional, mas da tradicional
inconstitucionalidade por omissão.
Na terminologia da Corte Colombiana, fala-se em uma causa estrutural. Esta não se origina de uma
única autoridade, motivo pelo qual somente a conjugação de esforços pode dar solução ao estado de
anormalidade15 :
Esta Corporación ha hecho uso de la figura del estado de cosas inconstitucional con el fin de buscar
remedio a situaciones de vulneración de los derechos fundamentales que tengan un carácter general
– en tanto que afectan a multitud de personas –, y cuyas causas sean de naturaleza estructural – es
decir que, por lo regular, no se originan de manera exclusiva en la autoridad demandada y, por lo
tanto, su solución exige la acción mancomunada de distintas entidades. En estas condiciones, la
Corte ha considerado que dado que miles de personas se encuentran en igual situación y que si
todas acudieran a la tutela podrían congestionar de manera innecesaria la administración de justicia,
lo más indicado es dictar órdenes a las instituciones oficiales competentes con el fin de que pongan
en acción sus facultades para eliminar ese estado de cosas inconstitucional.
Autores como Carlos Alexandre de Azevedo Campos mencionam grave violação de “direitos
humanos” 17 . Opta-se, neste trabalho, pela terminologia “direitos fundamentais”, por entender que o
instituto do estado de coisas inconstitucional é tipicamente de direito interno, lastreado em problemas
nacionais que conspurcam direitos fundamentais. O próprio nome revela que o estado de coisas é
inconstitucional, e não “inconvencional”. Logo, se aquilo que se viola nesse estado de coisas é uma
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Constituição, é tecnicamente mais adequado afirmar que essa realidade ofende direitos
fundamentais, pois são estes que estão previstos nas Constituições, ao contrário dos direitos
humanos, que estão sediados nos tratados internacionais. Nesse particular, filia-se à distinção
terminológica proposta por autores como Ingo Wolfgang Sarlet. Por óbvio, sabe-se que essa divisão
não é absoluta, considerando que a própria Constituição admitiu existirem direitos fundamentais em
tratados internacionais (art. 5º, § 2º).
Quanto à amplitude, assume especial relevo investigar a exata extensão do estado de coisas
inconstitucional, o que permitirá ao Judiciário aferir com precisão se a situação posta em juízo se
encaixa ou não no instituto. Uma violação em massa de direitos fundamentais dos munícipes de uma
Comarca pode ser tida como um estado de coisas inconstitucional? E se a violação recair somente
em uma (sub)seção judiciária? A situação calamitosa há de ser necessariamente nacional, ou
contenta-se com uma lesão regional ou até mesmo local? No estado de sítio, exceto na ineficácia da
decretação do estado de defesa, a extensão da calamidade é nacional (art. 137, I e II, da CF/1988
(LGL\1988\3)). No estado de defesa, a medida vigora em locais restritos e determinados, como reza
o art. 136 da Constituição. Assim como os estados de legalidade extraordinária são geograficamente
delimitados pela Constituição, o estado de coisas inconstitucional carece de uma delimitação no que
toca à sua amplitude.
A partir dos julgados aludidos, parâmetro mais seguro para responder a qualquer indagação sobre o
tema, nota-se que o estado de coisas inconstitucional assumiu sempre uma conotação nacional
(ineficiência da proteção estatal dos defensores de direitos humanos, omissão do Estado na
realização de concurso para notários, mora da Caixa Nacional de Previdência em responder aos
pleitos administrativos, superlotação carcerária e indiferença do Estado diante do êxodo de famílias
que fugiam da violência no país). A única situação que poderia despertar controvérsia, quanto à sua
extensão, é a sonegação de direitos da seguridade social a professores dos Municípios de María la
Baja e Zambrano (Bolívar). Não obstante, mesmo nesse caso, em que aparentemente o estado de
coisas inconstitucional teria se instalado no âmbito municipal, a Corte Constitucional da Colômbia
reconheceu que a anormalidade traduzia “[...] un problema general que afecta a un número
significativo de docentes en el país y cuyas causas se relacionan con la ejecución desordenada e
irracional de la política educativa” 18 . Infere-se que a amplitude do estado de coisas inconstitucional,
segundo a construção pretoriana da Corte Colombiana, é nacional.
Entretanto, apesar de nacional, isso não significa que somente tribunais com jurisdição nacional
possam reconhecer o estado de coisas inconstitucional, para, a partir de então, determinar um
conjunto de providências que remedeiem esse mal. Ora, se o estado de coisas inconstitucional
atinge toda a nação, com enorme probabilidade, também atingirá os munícipes de uma pequena
comarca no interior do país.19 O estado de coisas inconstitucional é, quase sempre, ubíquo. Desse
modo, entendemos que também o Juiz de Direito poderá reconhecê-lo, para, posteriormente, adotar
uma série de medidas visando a combatê-lo, tudo no âmbito da municipalidade. Noutras palavras: o
estado de coisas inconstitucional deve ser combatido de maneira molecular, e não de forma
atomizada; isto é, há de ser pronunciado no bojo de uma ação coletiva, mas isso não significa que
somente o Supremo Tribunal Federal esteja credenciado a enfrentar os problemas de inoperância
das políticas públicas nacionais20 .
No que concerne à identificação dos beneficiários da decisão que reconhece o estado de coisas
inconstitucional, nota-se que todos os casos analisados apontam pessoas indetermináveis e
indeterminadas. É impossível indicar todos os que se sujeitariam ao concurso de notário, na
Colômbia, bem como todos que desfrutariam dos bons serviços notariais de um agente capacitado e
rigorosamente escolhido em um certame. Trata-se de um direito difuso. Semelhantemente, o direito a
um sistema penitenciário condigno é titularizado por todos os apenados, todos os que serão
condenados algum dia e também pela sociedade, que é diretamente interessada na ressocialização
do reeducando. Mais uma vez, tem-se um interesse difuso. Lado outro, os aposentados e
pensionistas que endereçaram petições à Caixa Nacional de Previdência são um grupo identificável
de pessoas, ainda que elas sejam inicialmente indetermináveis. Cuida-se do que, no Brasil,
chamaríamos de direitos coletivos stricto sensu. Percebe-se, por conseguinte, que o reconhecimento
do estado de coisas inconstitucional é sempre vocacionado à adoção de medidas em favor de
interesses difusos ou coletivos, vale dizer, transindividuais.
É de bom alvitre esclarecer que não há consenso entre os estudiosos acerca dos requisitos para a
configuração do estado de coisas inconstitucional. Nas palavras do Eminente Min. Marco Aurélio,
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O inconstitucional estado de coisas: ficção e realidade
extraídas do voto proferido na ADPF 347 MC/DF, existem três principais pressupostos para a
configuração do estado de coisas inconstitucional: “situação de violação generalizada de direitos
fundamentais; inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar
a situação; a superação das transgressões exigir a atuação não apenas de um órgão, e sim de uma
pluralidade de autoridades”. Pedimos licença para lembrar que, se há uma inércia reiterada e
persistente por parte de autoridades (no plural), disso se conclui que somente uma dessas
autoridades não seria suficiente para afastar esse panorama21 . Ou seja, o requisito III é decorrência
lógica do requisito II, de modo que consideramos suficientes os dois primeiros.
Daniel Sarmento, por sua vez, além dos três requisitos apontados pelo Min. Marco Aurélio,
acrescenta um quarto requisito, qual seja, a “potencialidade de congestionamento da justiça” 22 . Ora,
com a devida vênia, a potencialidade de assoberbar o Judiciário é consequência natural e implícita
na violação em massa de direitos fundamentais, afinal, se a ofensa foi generalizada, o risco
demandista é iminente, porque haverá uma demanda represada.
A nosso sentir, esses, portanto, são os elementos constitutivos do estado de coisas inconstitucional:
realidade inconstitucional oriunda de uma omissão perene e qualificada (falha estrutural), que
acarreta uma violação em massa de direitos reconhecidos em uma Constituição como fundamentais.
Interessante perceber ainda que, em todos os julgados analisados, o Estado é onipresente no banco
dos réus. Assim, o estado de coisas inconstitucional é uma situação suscitada tradicionalmente no
contexto da eficácia vertical dos direitos fundamentais, não havendo notícias de julgados que
apontem uma eficácia horizontal23 .
Para além dos elementos constitutivos, urge destacar a natureza jurídica do estado de coisas
inconstitucional. Este tem sido compreendido majoritariamente como uma técnica decisória. Isso o
coloca ao lado de técnicas outras, a exemplo da declaração de inconstitucionalidade parcial sem
redução de texto. Na ADPF 347 MC/DF, o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional foi
arguido principaliter, isto é, no pedido. Desse modo, somente poderia ser enfrentado na parte
dispositiva do acórdão, o que o abrigaria sob o manto da res judicata.
Sem embargo das considerações supra, quer nos parecer que a natureza jurídica do estado de
coisas inconstitucional, na realidade, é mais bem explicada se compreendida como causa petendi. A
rigor, não se pede a pronúncia de um estado de coisas, o que a própria realidade já se encarregou
de assegurar, mas sim um conjunto de providências justificadas por esse estado de coisas. Não se
pede ele, mas em razão dele. Portanto, embora o estado de coisas inconstitucional não seja o que
se postula, é por ele que se postula. Logo, alojando-se na causa de pedir, há de ser enfrentado pelo
órgão judicante na fundamentação do decisório, incidentalmente, sem que seja acobertado pelo
manto da res judicata. Não haveria, a partir dessa concepção, qualquer necessidade de menção ao
estado de coisas inconstitucional no dispositivo do julgado. Em razão disso, ainda que reconhecido
em uma ação do controle concentrado de constitucionalidade, como ocorreu na ADPF 347,
tecnicamente, tal constatação seria tida como uma singela prejudicial de mérito enfrentada pela
Corte, pelo que deveria ser novamente objeto de análise em todas as ações vindouras fundadas
nessa realidade inconstitucional24 . Presente o estado de coisas, tal como narrado na exordial,
determinam-se as providências para contorná-lo. Ausente, o pedido não é acolhido. O estado de
coisas inconstitucional é um meio, e não um fim.
Nas ciências processuais, a causa de pedir remota seria a origem do direito vindicado em juízo, que,
no estudo em apreço, emana da Constituição Federal (LGL\1988\3). Por sua vez, a causa de pedir
próxima traduziria a violação a esse direito, ou seja, tudo quanto implique desrespeito generalizado
aos direitos fundamentais postulados. Seja como for, o estado de coisas inconstitucional afigura-se
como uma unidade fático-jurídica25 , não havendo muita utilidade na cisão dos fatos e dos
fundamentos jurídicos que deles emanam.
Ainda no que atine à natureza jurídica de causa de pedir, há uma peculiaridade técnica
imprescindível por ocasião da elaboração da petição inicial. Na Teoria do Direito Constitucional,
prevalece que os direitos fundamentais estão preponderantemente albergados por normas e
princípios26 . Por outro lado, como se viu linhas acima, o estado de coisas inconstitucional implica
uma violação em massa de direitos fundamentais, logo, uma violação de normas quase sempre
principiológicas. Sendo assim, não é suficiente, para a demonstração do estado de coisas
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O inconstitucional estado de coisas: ficção e realidade
Em síntese: incumbe ao autor, de maneira pormenorizada, aduzir o estado de coisas originado pelos
princípios que albergam os direitos fundamentais violados em massa.
5 Conceito
Com isso, o fenômeno jurídico em estudo já assumiu contornos mais do que suficientes para ser
conceituado. “Reputa-se estado de coisas inconstitucional uma realidade violadora da Constituição,
assim reconhecida por uma decisão judicial, originada de uma inconstitucionalidade por omissão
qualificada por um bloqueio perene (falha estrutural), que conspurca direitos fundamentais de uma
coletividade”.
Quanto à terminologia da expressão, o vocábulo “estado” nos remete a uma condição existencial, ou
seja, a uma ideia estática, perene, consolidada. No Direito, as ações de estado são aquelas afetas
ao estado das pessoas (v.g estado civil). Assim, quando se diz “estado de coisas inconstitucional”,
quer-se dizer invalidade existencial e duradoura, não apenas pontual e episódica. Ou seja, em
situações determinadas, a inconstitucionalidade das coisas deixa de ser uma circunstância, para
convolar-se em um estado. Como ensinariam os léxicos brasileiros, em obséquio à eufonia, a
expressão seria mais bem grafada em ordem diversa: estado inconstitucional de coisas ou
inconstitucional estado de coisas. Preferimos esta àquela.
Assim como a revelia não se confunde com a pena de confissão ficta, bem como a conexão não se
confunde com a reunião de processos, o estado de coisas inconstitucional não se mistura com os
efeitos que emanam do seu reconhecimento. Uma coisa é reconhecer a realidade inconstitucional,
outra são as providências para corrigir esse estado de coisas. Didaticamente, poderemos resumir a
decisão que reconhece o estado de coisas inconstitucional em uma estrutura bifásica. Uma vez
declarado o estado de coisas, incidentalmente, deverá a Corte:
Como bem sintetizou o Ministro Marco Aurélio, de maneira dialógica com os outros poderes, caberá
ao Judiciário “catalisar ações e políticas públicas, coordenar a atuação dos órgãos do Estado na
adoção dessas medidas e monitorar a eficiência das soluções” 28 . Com essa técnica decisória
bifásica, a jurisdição constitucional aproxima-se sobremodo da jurisdição internacional dos direitos
humanos, onde é comum determinar inúmeras medidas e os seus respectivos mecanismos de
monitoramento29 .
Aliás, a sustentação de uma posição dialógica por parte do Judiciário, perante outros poderes,
quando em jogo uma inconstitucionalidade por omissão que avilte direitos sociais, como condição
para que se interfira nas políticas públicas, não tem absolutamente nada de novo. No Brasil, isso já
foi defendido por Virgílio Afonso da Silva, de uma maneira muito próxima à técnica decisória do
estado de coisas inconstitucional30 :
Não é possível, por razões óbvias, que um modelo teórico tenha condições de alterar um problema
complexo como o da realização de direitos sociais em um país com os problemas do Brasil. Mas é
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O inconstitucional estado de coisas: ficção e realidade
possível que esse modelo crie novas exigências que possam alterar a forma como a atividade
jurisdicional encara o problema. [...] Somente nos casos de omissão infundada é que se poderia
imaginar alguma margem de ação para os juízes nesse âmbito. Isso passaria a exigir – essa é a
hipótese que aqui se defende – um diálogo constitucional entre os três poderes. É claro que isso
também exigiria que a separação rígida de poderes, na forma como muitas vezes é defendida no
Brasil, fosse repensada
Seja como for, a pretensão de alterar um estado de coisas inconstitucional é sempre ambiciosa,
mormente quando se sabe que a decisão será endereçada a inúmeros órgãos e autoridades,
algumas delas alheias ao litígio estrutural. Com a clareza que lhe é peculiar, George Marmelstein31
traça um roteiro dos caminhos percorridos pelo julgador:
A linha de ação segue o seguinte esquema: (a) identificação e prova do quadro de violações
sistemática de direitos, por meio de inspeções, relatórios, perícias, testemunhas etc.# (b) declaração
do Estado de Coisas Inconstitucional# (c) comunicação do ECI aos órgãos relevantes, sobretudo os
de cúpula e aos responsáveis pela adoção de medidas administrativas e legislativas para a solução
do problema# (d) estabelecimento de prazo para apresentação de um plano de solução a ser
elaborado pelas instituições diretamente responsáveis# (e) apresentação do plano de solução com
prazos e metas a serem cumpridas# (f) execução do plano de solução pelas entidades envolvidas#
(g) monitoramento do cumprimento do plano por meio de entidades indicadas pelo Judiciário# (h)
após o término do prazo concedido, análise do cumprimento das medidas e da superação do ECI# (i)
em caso de não superação do ECI, novo diagnóstico, com imputação de responsabilidades em
relação ao que não foi feito# (j) nova declaração de ECI e repetição do esquema, desta vez com
atuação judicial mais intensa.
A partir dos passos descritos anteriormente, seria possível indagar: a declaração do estado de coisas
inconstitucional é conditio sine qua non para ordenar a implementação de um conjunto de medidas
cujo desiderato é corrigi-lo? Se a resposta for não, o instituto é inútil. Um juiz ou tribunal não se
entregaria à difícil tarefa de identificar uma realidade de contornos tão porosos32 , se fosse
desnecessário pronunciá-la como condição para a adoção de medidas futuras.
É exatamente nisso que consiste a postura de ativismo judicial. Ante a gravíssima realidade
inconstitucional, caracterizada pela letargia dos órgãos a quem foi confiada a tarefa constitucional
não realizada, o Judiciário atuará subsidiariamente na concretização dos direitos fundamentais. O
recado do Judiciário é simples: se ninguém fez antes, tomo a iniciativa de elaborar um programa
para que seja posto em prática, tudo em nome dos direitos fundamentais34 .
É preciso um substancial esforço argumentativo para legitimar uma postura tão indiscreta por parte
do Judiciário. Isso porque, após o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional, uma série de
medidas atípicas passam a ser adotadas, o que implica uma máxima relativização do princípio
constitucional da separação das funções.
- Ausência de expertise;
As duas primeiras fundem-se em uma única razão de objetar: não sendo sufragados nas urnas, os
juízes não poderiam substituir o legislador e o administrador no protagonismo das políticas públicas,
o que implicaria um desrespeito à separação das funções. A ideia é uma só, qual seja, o receio de
uma juristocracia, travestindo o Judiciário de coordenador de políticas públicas.
A situação se torna mais difícil quando consideramos que, à luz da teoria das escolhas trágicas
(tragic choices), em tese, é possível que um gestor seja forçado a escolher qual estado de coisas
inconstitucional permitirá que subsista. Exemplifica-se: na escassez de recursos, um prefeito
municipal não terá disponibilidade orçamentária para, simultaneamente, assegurar o transporte
escolar dos alunos e cobrir os medicamentos de atenção básica. As duas omissões podem originar
um estado de coisas inconstitucional. Nesse caso, a escolha trágica sobre qual estado de coisas
eliminar há de ser feita pelo gestor, não pelo Judiciário35 .
No que diz respeito à ausência de expertise, de fato, não é exigível de um órgão judicante que
domine todos os conhecimentos científicos produzidos pela humanidade36 . Nesse caso, a única
saída apontada seria a ductibilidade das decisões, vale dizer, decisões flexíveis que deixassem a
quem de direito uma margem de atuação técnica. Ademais, à luz de um constitucionalismo
cooperativo, poderia o magistrado dialogar com entidades técnicas. Por exemplo, em uma demanda
ambiental, o IBAMA, o ICMBio ou a Secretaria Ambiental forneceriam subsídios técnicos para a
elaboração de um cronograma destinado a superar o estado de coisas inconstitucional. É o que se
vislumbra quando uma sentença judicial determina a recuperação da área ambiental degradada, mas
sem apontar a maneira como se dará essa reparação, o que só pode ser indicado após a elaboração
de um PRAD (Plano de Recuperação de Áreas Degradadas), devidamente aprovado pelos técnicos
da Secretaria Ambiental. A partir de então, dá-se início ao cumprimento de um calendário, sempre
com a maleabilidade mínima que assegure a eficácia e a autoridade da decisão.
A propósito, a ductibilidade das decisões também é a maneira mais segura de assegurar a própria
autoridade do julgado. Apenas para ilustrar, se o Supremo Tribunal Federal reconhece o estado de
coisas inconstitucional, em sede de ADPF, qualquer desrespeito à decisão desafia o ajuizamento de
reclamação. Como apresentar uma reclamação de uma decisão cujo teor, embora juridicamente
vinculante, não há como ser observado na prática? O impasse pode gerar uma crise de autoridade
nas decisões do Supremo.
A respeito da efetividade das decisões que reconhecem o estado de coisas inconstitucional, um dado
curioso foi levantado por Thiago Luís Santos Sombra. Em trabalho publicado em um dos maiores
jornais internacionais especializados em Direito Constitucional, o Professor da UnB lembrou que,
apesar da decisão da Corte Constitucional da Colômbia que reconheceu o estado de coisas
inconstitucional em 1998, apurou-se que, alguns anos depois (2001), a situação no sistema
carcerário estava ainda pior do que antes37 .
Vencida esta etapa, pergunta-se: que ações veiculam a pretensão de reconhecimento e combate do
estado de coisas inconstitucional?
Já foi visto que o estado de coisas inconstitucional traduz uma causa de pedir. Que tipos de ações
admitem seja articulada essa causa petendi tão específica? Primeiramente, deve-se lembrar de que
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O inconstitucional estado de coisas: ficção e realidade
No campo das ações coletivas, não há que se falar em usurpação de competência do STF para
declarar a inconstitucionalidade das leis em caráter geral. A uma, porque a realidade inconstitucional
está na causa de pedir, e não no pedido. A duas, porque, provavelmente, sequer haverá uma lei a
ser invalidada. Na realidade, o órgão judicante, por meio de um provimento mandamental,
determinará um conjunto de providências para restaurar a ordem e passará a monitorar o
cumprimento dessas medidas.
Não se deve olvidar que o estado de coisas inconstitucional nasce de um caso concreto, o que o
inabilita a ser arguido na maioria das ações do controle concentrado. Outro complicador é que a ADI
e a ADC não admitem a expedição de uma ordem para a adoção de um conjunto de providências,
mas apenas a invalidação ou confirmação de constitucionalidade de uma norma40 .
Exatamente por todos esses empecilhos, Daniel Sarmento asseverou que “a solução, o
equacionamento, pressupõe medidas, políticas complexas de diversos órgãos, de modo que uma
decisão simples, daquelas que são do arsenal tradicional da jurisdição constitucional, não são
suficientes”.41
Ao que tudo indica, as palavras do constitucionalista da UERJ tinham como desiderato convidar o
Supremo Tribunal Federal a proferir uma decisão mais ousada que as precedentes. No entanto, ao
ponderar a inaptidão das demais ações para solucionar esse estado de anormalidade, no bojo de
uma ADPF, acaba-se sugerindo o princípio da subsidiariedade (art. 4º, § 1º, Lei 9.882/1999)42 . Afinal,
se Daniel Sarmento estivesse convencido da inaptidão absoluta de todas as ações do “arsenal
tradicional da jurisdição constitucional”, certamente não estaria no STF a sustentar o que lhe
parecesse impossível. O fato é que a ADPF pode veicular, como de fato veiculou, o estado de coisas
inconstitucional. Nesse caso, o conjunto de medidas destinadas ao combate da realidade
inconstitucional pode ser estipulado liminarmente (art. 5º, § 3º, Lei 9.882/1999)43 ou na decisão
definitiva de mérito.
8 Suma conclusiva
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O inconstitucional estado de coisas: ficção e realidade
O Supremo Tribunal Federal do Ministro Moreira Alves não é o mesmo Supremo Tribunal Federal de
Luís Roberto Barroso. Aquele não admitia efeitos concretistas ao mandado de injunção, alicerçado
na premissa da Tripartição das Funções44 ; este reconhece o estado de coisas inconstitucional como
um ônus argumentativo que lhe permite atuar como coordenador institucional de políticas públicas
para efetivar direitos fundamentais. Trata-se de um giro copérnico, em aproximadamente uma
década45 .
Apesar da dificuldade em transplantar uma técnica decisória colombiana para a realidade brasileira,
o que dificulta um encaixe perfeito, concebemos o estado de coisas inconstitucional como um
instituto possível de ser adotado no Brasil, como de fato o foi, na ADPF 347 MC/DF. Entretanto,
parece-nos que o estado de coisas inconstitucional se acomoda melhor nas ações coletivas, em
primeiro grau de jurisdição, que no Supremo Tribunal Federal, pois só é dado ao Excelso Pretório
aquilatar essa realidade inconstitucional na arguição de descumprimento de preceito fundamental.
Também não haveria dificuldades substanciais em implantar o estado de coisas inconstitucional e as
consequências advindas do seu reconhecimento no âmbito das Cortes Internacionais, bastando que
se raciocinasse a partir de um estado de coisas inconvencional.
Um dos maiores desafios que se afigura é o de fazer com que as decisões judiciais, que chamam
para si a corajosa tarefa de mudar a realidade das coisas, possuam eficácia.
A literatura nos conta a história do Rei Canuto, monarca que se dirigiu à praia e ordenou ao oceano
que interrompesse o fluxo da maré, para que as águas do mar não lhe tocassem. Entretanto, as
ondas não respeitaram sua ordem46 . O monarca, do alto da sua Majestade, exerceu sua autoridade
contra quem não poderia respeitá-la. Esse o pior dos vaticínios: o estado de coisas inconstitucional
poderá gerar a canutização do Supremo Tribunal Federal.
9 Referências bibliográficas
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O inconstitucional estado de coisas: ficção e realidade
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Enchantment of Legal Transplantation, Int’l J. Const. L. Blog, Sept. 30, 2015. Disponível em:
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Acesso em: 04.10.2015.
STRECK, Lenio Luiz. As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis. Revista de Direitos
Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, p. 2-37, jul.-dez. 2011.
3 SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito Constitucional - Teoria, História e
Métodos de Trabalho. 2. ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2014, p. 457.
7 “Art. 19. Os servidores públicos civis da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios,
da administração direta, autárquica e das fundações públicas, em exercício na data da promulgação
da Constituição, há pelo menos cinco anos continuados, e que não tenham sido admitidos na forma
regulada no art. 37 da Constituição, são considerados estáveis no serviço público.”
9 Art. 18, § 4º: “A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, far-se-ão por
lei estadual, dentro do período determinado por Lei Complementar federal, e dependerão de consulta
prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos, após divulgação dos Estudos
de Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na forma da lei” (Redação dada pela Emenda
Constitucional 15, de 1996).
10 ADI 2.240/BA, ação em que o STF declarou inconstitucional a lei estadual, sem pronúncia de
nulidade, pelo prazo de 24 meses, para que o Congresso Nacional regularizasse essa situação de
fato, convolando-a em uma situação de direito. Isso acabou sendo feito por meio da emenda à
Constituição de 57/2008, que convalidou todas as municipalidades que surgiram até dezembro de
2006. Aliás, cumpre ressaltar que, com isso, o Supremo Tribunal Federal chancelou algo que sua
jurisprudência sempre repeliu, qual seja, o instituto da constitucionalidade superveniente.
11 Referindo-se ao rótulo estado de coisas inconstitucional, Daniel Saremento, por ocasião da sua
sustentação oral, ponderou: “[...] pode-se dar esse nome ou qualquer outro, isso não é relevante [...]”
(MS na ADPF 347), cujo julgamento se deu em 27.08.2015. De fato, como diria Shakespeare, se as
rosas não se chamassem rosas, nem por isso deixariam de exalar o mesmo perfume. Importa a
essência das coisas, e não o rótulo. No entanto, por uma questão de rigor científico e metodológico,
convém utilizar a expressão estado de coisas inconstitucional apenas para designar as hipóteses
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O inconstitucional estado de coisas: ficção e realidade
que correspondam ao fenômeno descrito pela Corte Colombiana. Este tribunal batizou um fenômeno
específico com essa rubrica, e isso merece ser considerado neste trabalho.
12 A rigor, o segundo exemplo, que versou sobre a criação de municípios putativos, conjuga uma
inconstitucionalidade por omissão (ausência de lei complementar federal que autorize a criação da
municipalidade em um determinado período) e outra por ação (lei estadual que cria o Município).
14 Nos dizeres de Luís Roberto Barroso: “Existem omissões sistêmicas na não proteção de uma
minoria, no não oferecimento de condições mínimas de dignidade no sistema penitenciário. Portanto,
as omissões não são apenas no tocante à lei. Existem também as omissões estruturais, falhas
estruturais. [...] uma decisão da Corte Colombiana identificou o que eles chamam de estado de
coisas inconstitucional. Não é só a falta da lei. O conjunto de um determinado segmento, seja a
proteção do homossexual, seja o direito dos presos, está apresentando uma falha estrutural. E aí eu
também acho que se justifica a intervenção do Judiciário” (Palestra proferida no Centro Universitário
de Brasília, em 10.03.2015 – UNICEUB, intitulada Judicialismo e ativismo judicial).
20 Convém lembrar ao leitor que o Supremo Tribunal Federal possui competência para processar e
julgar, originariamente, ações coletivas.
21 A própria Corte Colombiana parece compreender com certa tranquilidade o nexo de causalidade
entre uma coisa e outra, quando assevera que as causas de natureza estrutural “no se originan de
manera exclusiva en la autoridad demandada y, por lo tanto, su solución exige la acción
mancomunada de distintas entidades” (Sentencia de Tutela (T) – 153, de 1998). Parece claro, pois,
que não há propriamente dois requisitos distintos, mas apenas um e os efeitos lógicos que dele
emanam: se vários são os omitentes, vários serão os que deverão quebrar essa inércia.
obrigações para garantia e promoção dos direitos; (iii) a superação das violações de direitos
pressupõe a adoção de medidas complexas por uma pluralidade de órgãos, envolvendo mudanças
estruturais, que podem depender da alocação de recursos públicos, correção das políticas públicas
existentes ou formulação de novas políticas, dentre outras medidas; e (iv) potencialidade de
congestionamento da justiça, se todos os que tiverem os seus direitos violados acorrerem
individualmente ao Poder Judiciário”.
24 Até mesmo porque o estado de coisas inconstitucional, como realidade que é, pode alterar-se.
Sobrevindo mudanças que alterem o arcabouço fático, não mais deverá ser reconhecido.
Aplica-se-lhe a cláusula rebus sic stantibus, vale dizer, o rótulo etiquetado pela Corte agarra-se à
fotografia estampada na peça exordial, ou seja, aos fatos tais como nela retratados. Se há evolução
ou involução, o reconhecimento do instituto depende de outra ação judicial, para que novas
providências sejam adotadas.
25 A terminologia é empregada por Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero.
Novo curso de processo civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. São Paulo: Ed. RT,
2015. p. 151.
26 A propósito, como aponta Marinoni, ao descrever o estudo dos escritos de Robert Alexy, a própria
Teoria dos direitos fundamentais é uma teoria de princípios. Teoria geral do processo. São Paulo:
Ed. Ed. RT, 2012. p. 70.
27 A propósito, como aponta Marinoni, ao descrever o estudo dos escritos de Robert Alexy, a própria
Teoria dos direitos fundamentais é uma teoria de princípios. Teoria geral do processo. São Paulo:
Ed. RT, 2012. p. 70.
28 Voto na ADPF 347 MC/DF. Segundo o Ministro, “como destaca a doutrina colombiana, o tribunal
não chega a ser um ‘elaborador’ de políticas públicas, e sim um ‘coordenador institucional’,
produzindo um ‘efeito desbloqueador’” (GRAVITO, César Rodríguez; FRANCO, Diana Rodríguez.
Cortes y Cambio Social. Cómo la Corte Constitucional transformó el desplazamiento forzado en
Colombia. Bogotá: Dejusticia, 2010. p. 39).
30 Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2011. p.
250-251.
31 O Estado de Coisas Inconstitucional – ECI: apenas uma nova onda do verão constitucional?
Publicado no blog Direitos Fundamentais, em 02.10.2015.
32 Na segura observação do Min. Marco Aurélio, no voto proferido na ADPF 347 MC/DF, “Ante os
pressupostos formulados pela Corte Constitucional da Colômbia para apontar a configuração do
‘estado de coisas inconstitucional’, não seria possível indicar, com segurança, entre os muitos
problemas de direitos enfrentados no Brasil, como saneamento básico, saúde pública, violência
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O inconstitucional estado de coisas: ficção e realidade
33 Petição inicial da ADPF 347 MC/DF. Em razão desse aumento no espectro de poderes do
tribunal, o instrumento não poderia ser banalizado. Segundo o constitucionalista da UERJ, “tem-se
entendido que a técnica só deve ser manejada em hipóteses excepcionais, em que, além da séria e
generalizada afronta aos direitos humanos, haja também a constatação de que a intervenção da
Corte é essencial para a solução do gravíssimo quadro enfrentado. São casos em que se identifica
um ‘bloqueio institucional’ para a garantia dos direitos, o que leva a Corte a assumir um papel atípico,
sob a perspectiva do princípio da separação de poderes, que envolve uma intervenção mais ampla
sobre o campo das políticas públicas”.
35 Em sentido contrário, registre-se o voto do Ministro Marco Aurélio na ADPF 347 MC/DF, para
quem “a intervenção judicial é reclamada ante a incapacidade demonstrada pelas instituições
legislativas e administrativas, o que torna o argumento comparativo sem sentido empírico. Daí por
que a intervenção judicial equilibrada, inclusive quando há envolvimento de escolhas orçamentárias,
não pode ser indicada como fator de afronta às capacidades institucionais dos outros Poderes, se o
exercício vem se revelando desastroso. [...] Ao Supremo cumpre interferir nas escolhas
orçamentárias e nos ciclos de formulação, implementação e avaliação de políticas públicas, mas sem
detalhá-las”.
36 Essa frustração foi experimentada por Fausto, na dramaturgia escrita por Goethe, cuja ambição o
levava a querer conhecer todas as coisas passíveis de aprendizado.
37 “In 2001, a humanitarian mission of the United Nations High Commissioner for Refugees (UNHCR)
was in Colombia and reported that the prisoners’ situation was worse than before the declaration in
1998”. Thiago Sombra é Procurador do Estado de São Paulo e, nesta qualidade, realizou a
sustentação oral no julgamento da ADPF 347 MC/DF, refutando os argumentos trazidos por Daniel
Sarmento. O trabalho foi publicado em inglês e intitulou-se The “Unconstitutional State of Affairs” in
Brazil’s Prison System: The Enchantment of Legal Transplantation, Int’l J. Const. L. Blog, Sept. 30,
2015, disponível em:
[http://www.iconnectblog.com/2015/09/the-unconstitutional-state-of-affairs-in-brazils-prison-system-theenchantment-of-
Agradecemos ao autor pela gentileza em nos fornecer esse artigo, em primeira mão, bem assim
pelas reflexões acerca do tema, levantadas nos corredores do Conselho da Justiça Federal, por
ocasião da VII Jornada de Direito Civil.
38 A competência para processar e julgar ações coletivas, a exemplo das ações populares e civis
públicas, por excelência, é do primeiro grau de jurisdição. Em casos excepcionais, o Supremo
Tribunal Federal considerou-se Juiz Natural das referidas ações, quando delas advier um risco ao
pacto federativo (art. 102, I, f), quando houver interesse de todos os membros da magistratura ou
nas hipóteses de impedimento ou suspeição de mais da metade dos membros do tribunal de origem
(art. 102, I, n). Respectivamente, Rcl 3.331/RR e AO 506 QO/AC.
39 “Art. 12-H. Declarada a inconstitucionalidade por omissão, com observância do disposto no art.
22, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias. (Incluído
pela Lei 12.063, de 2009). § 1º Em caso de omissão imputável a órgão administrativo, as
providências deverão ser adotadas no prazo de 30 (trinta) dias, ou em prazo razoável a ser
estipulado excepcionalmente pelo tribunal, tendo em vista as circunstâncias específicas do caso e o
interesse público envolvido” (Incluído pela Lei 12.063, de 2009).
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O inconstitucional estado de coisas: ficção e realidade
40 É defensável que, em tese, a ADI interventiva possa veicular uma pretensão fundada no estado
de coisas inconstitucional. Figure-se, por exemplo, um dado Estado da federação que se recuse a
aplicar a receita mínima de impostos em saúde e educação (art. 34, VII, CF/1988). Nota-se que a
conduta é omissiva, avilta direitos fundamentais, atinge uma coletividade e, a depender das
circunstâncias, pode assumir a feição típica do estado de coisas inconstitucional. Nesse caso,
porém, quer-nos parecer que o conjunto de providências seria adotado pelo interventor, não pelo
STF, salvo em sede de liminar, quando o Excelso Pretório terá o poder geral de cautela para
determinar qualquer medida que apresente relação com a matéria objeto da representação
interventiva (art. 5º, § 2º, Lei 12.562/2011). À luz do princípio da simetria, mutatis mutandis, poderá o
Procurador Geral de Justiça agir de maneira semelhante perante os Tribunais de Justiça, que
também estarão habilitados a reconhecer o estado de coisas inconstitucional. Mais uma vez, avulta a
importância do Ministério Público no combate ao estado de coisas inconstitucional.
42 Art. 4º, §1º: “Não será admitida arguição de descumprimento de preceito fundamental quando
houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade”.
43 Art. 5º, § 3º: “A liminar poderá consistir na determinação de que juízes e tribunais suspendam o
andamento de processo ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que
apresente relação com a matéria objeto da arguição de descumprimento de preceito fundamental,
salvo se decorrentes da coisa julgada”. Perceba-se o amplo poder geral de cautela de que dispõe o
STF nas medidas cautelares concedidas em ADPF, o que só se encontra na ADI interventiva e na
ADI por omissão.
44 MI 107.
46 BENNETT, William J. O livro das virtudes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
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