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Universidade Estácio de Sá

Direito Penal - Teoria da Pena

Estados de Coisas Inconstitucional


ADPF 347 - Superlotação de presídios

Ghiovana Cardoso da Silva - 202202191396

Resumo
Este trabalho é um breve estudo sobre a Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) 347, cujo tema central é o Estado de Coisas Inconstitucional do
sistema carcerário brasileiro, passando por toda a situação degradante a qual os
apenados são sujeitos e as soluções propostas, com ênfase na falta do processo de
reintrodução dos detentos à sociedade após o cumprimento de suas penas.
1. INTRODUÇÃO
Um dos grandes pilares da democracia brasileira consta no art. 1º, inciso III da
Constituição Federal, a dignidade da pessoa humana. Infelizmente, esse é um
fundamento frequentemente negligenciado, se fazendo necessária a criação de vários
mecanismos para combater a omissão do Estado. Um deles é a Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental, uma modalidade de “ação proposta ao
Supremo Tribunal Federal com o objetivo de evitar ou reparar lesão a preceito
fundamental resultante de ato do poder público”1. A matéria deste trabalho é a ADPF
347, a qual denuncia as inúmeras violações aos direitos humanos que ocorrem no
sistema carcerário.
O requerente, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), pede que, em razão do
estado deplorável das instituições prisionais, seja reconhecido o Estado de Coisas
Inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro, instituto esse criado pela Corte
Constitucional da Colômbia em 1997 para lidar com situações de violações graves e
estruturais de direitos fundamentais. Também solicita o deferimento de uma série de
medidas cautelares. O relator do processo foi o então Ministro do Supremo Tribunal
Federal Marco Aurélio.

2. O SOFRIMENTO PELO SOFRIMENTO


Existe uma cultura muito forte no Brasil no que se tange a punição para pessoas que
cometeram delitos. A famosa frase “bandido bom é bandido morto” evidencia o
entendimento popular das penas restritivas de liberdade, que é a retribuição do mal.
Esse posicionamento está alinhado com a Teoria Absoluta, uma das teorias da função
da pena recepcionadas pelo Código Penal, a qual considera que a pena é puramente
uma punição e o seu objetivo é impor o sofrimento sobre o apenado. O estado atual
das penitenciárias brasileiras é, sem dúvidas, um reflexo desse pensamento
reminiscente do suplício medieval.
Contudo, de acordo com o jurista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni (2007), "o direito
penal de garantias é inerente ao Estado de direito [...] e constituem a essência da
cápsula que encerra o Estado de polícia, ou seja, são o próprio Estado de direito”. 2 O
cometimento de uma conduta reprovada pela sociedade não torna uma pessoa indigna
de ser tratada com respeito, nem justifica a verdadeira tortura pela qual é submetida

1 BRASIL. Senado Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF).


2 Conselho Nacional do Ministério Público. Relatório “Sistema Prisional em Números”. Brasília: CNMP, 2018.
em celas imundas e superlotadas. Dados do Conselho Nacional do Ministério Público
(CNMP) revelam que a taxa de ocupação dos presídios no Brasil é de 175% e em
cerca de 92% dos estabelecimentos prisionais há aplicação de sanções sem
instauração de prévio procedimento disciplinar,3 tamanho o descaso do Estado
brasileiro. Como, em uma situação tão precária quanto essa, uma pessoa seria capaz
de retornar à sociedade posteriormente?

3. RESSOCIALIZAÇÃO PARA QUEM?


A despeito do que se dispõe no art. 1º da Lei de Execução Penal 4, as penitenciárias
não são ambientes de reintegração. Uma vez que entra no sistema, a tendência
comprovada empiricamente é que a pessoa ficará presa no ciclo do crime, porque
existe um estigma forte que poda suas futuras oportunidades de estudo e trabalho.
Vale ressaltar que o perfil do preso, jovem, negro e com baixo grau de escolaridade 5,
já é um grande obstáculo em sua vida, somando aos seus antecedentes criminais. Em
contrapartida, 55,8% dos estabelecimentos prisionais ofertam vagas para ensino
fundamental, 40% para ensino médio e apenas 6% para ensino superior em média em
todo o país.6 O resultado é avassalador: Pessoas que já eram marginalizadas são
empurradas à miséria adentro.
A fim de remediar esse cenário, a ADPF 347 teve como um de seus pedidos
determinar ao Governo Federal a elaboração de um Plano Nacional para solucionar os
graves problemas apontados e apresentá-lo ao STF em até três anos. Esse plano
deveria conter sete pontos, sendo o quinto a “garantia de assistência material, de
segurança, de alimentação adequada, de acesso à justiça, à educação, à assistência
médica integral e ao trabalho digno e remunerado para os presos” (PSOL, 2015, p.71).
Entre outras propostas, podemos mencionar a contenção e reversão do processo de
hiperencarceramento existente no país, diminuição do número de presos provisórios e
adequação das instalações e alojamentos dos estabelecimentos prisionais.

3 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O Inimigo no Direito Penal, p. 173.


4 De acordo com dados do DEPEN, 54% dos detentos tem 18 a 29 anos, 63,6% são negros ou pardos e 60,6%
tem nível de escolaridade ensino fundamental incompleto ou inferior. Departamento Penitenciário Nacional -
DEPEN. Sistema Integrado de Informações Penitenciárias - InfoPen. Referência: 06/2017.
5 Conselho Nacional do Ministério Público. Relatório “A visão do Ministério Público Sobre o Sistema
Prisional Brasileiro”. Brasília: CNMP, 2018.
6 “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar
condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.” BRASIL. Lei nº 7210, de 11 de
julho de 1984. Lei de Execução Penal. Título I - Do Objeto e da Aplicação da Lei de Execução Penal. Brasília,
DF.
Um projeto como este, visando melhorias no curto, médio e longo prazo
paulatinamente, seria altamente benéfico por razões simples. É de conhecimento geral
que no Brasil a cada troca de representantes políticos, o governo atual tenta desfazer
as conquistas do anterior para engrandecer a sua própria gestão e desvalorizar a outra,
culminando no atraso dos avanços políticos, sociais e econômicos, assim como o
investimento exclusivo em propostas de curto prazo com pretensão eleitoreira.
Portanto, precisamos de planejamentos bem estruturados e mecanismos que obriguem
o Estado a cumprí-lo, caso contrário os apenados nunca terão uma chance justa para
mudar suas vidas.

4. CONCLUSÃO
No dia 9 de setembro de 2015, o STF chegou a uma decisão por maioria e nos termos
do voto do relator Ministro Marco Aurélio. O Estado de Coisas Inconstitucional do
sistema penitenciário brasileiro foi reconhecido e dois pedidos foram deferidos: A
medida cautelar alínea “b”, determinando que os juízes e tribunais realizem as
audiências de custódia em até 24 horas a partir do momento da prisão conforme
previsão da Convenção Americana de Direitos Humanos, e a alínea “h”, a qual pedia
o descontingenciamento das verbas existentes no Fundo Penitenciário Nacional. Os
demais pedidos foram indeferidos.
O reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional pode ser vista como uma
forma de ativismo judicial, definida por Barroso como “uma participação mais ampla
e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior
interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes”. 7 A tentativa foi feita,
porém apenas uma declaração não tem efeito na prática. Várias comarcas ainda não
realizam audiências de custódia, argumentando que existem dificuldades logísticas ou
que não há juízes o suficiente, por exemplo. Para que as reformas realmente
aconteçam, o problema deve ser tratado conjuntamente por todos os três Poderes de
forma harmônica. Soluções isoladas não são suficientes; precisamos de uma
abordagem multidisciplinar e responsabilizar o Estado pelo tratamento desumano de
seus cidadãos.

7 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da


doutrina e análise crítica da jurisprudência, p. 389.
REFERÊNCIAS

ANDRADE, Bruno; TEIXEIRA, Maria. O Estado de Coisas Inconstitucional - Uma


análise da ADPF 347. Revista do Curso de Direito da Universidade Metodista de São Paulo,
São Paulo, v. 13, n. 13, 2016. Disponível em:
<https://core.ac.uk/download/pdf/229056917.pdf>. Acesso em: <01 out 2022>.
BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro:
exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 7ª ed. rev. São
Paulo: Saraiva, 2016;
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,
DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
BRASIL. Lei nº 7210, de 11 de julho de 1984. Lei de Execução Penal. Brasília, DF.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: <02 out
2022>..
BRASIL. Senado Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF). Brasília. Disponível em:
<https://www12.senado.leg.br/manualdecomunicacao/guia-juridico/arguicao-de-
descumprimento-de-preceito-fundamental-adpf>. Acesso em: <02 out 2022>.
Conselho Nacional do Ministério Público. A visão do Ministério Público sobre o Sistema
Prisional Brasileiro. Brasília: CNMP, 2018. Disponível em:
<https://www.cnmp.mp.br/portal/publicacoes/11797-avisaodosistemaprisionalbrasileiro>.
Acesso em: <03 out 2022>.
Conselho Nacional do Ministério Público. Sistema Prisional em Números. Brasília: CNMP,
2018. Disponível em: <https://www.cnmp.mp.br/portal/relatoriosbi/sistema-prisional-em-
numeros>. Acesso em: <02 out 2022>.
PSOL. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Brasília, 2015.
Disponível em: <https://www.jota.info/wp-content/uploads/2015/05/ADPF-347.pdf>. Acesso
em: <01 out 2022>.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O Inimigo no Direito Penal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Revan,
2007.

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