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Danos a um Projeto de Vida?

Denise Sá Vieira Carrá


Mestre em Direito – UFC

Bruno Leonardo Câmara Carrá


Mestre em Direito - UFC

RESUMO

ABSTRACT

01. Introdução: Dignidade Humana e Responsabilidade Civil.

Em sua conhecida tese sobre a “era dos direitos”, que constitui o marco
epistemológico no qual encontramos situados, Norberto Bobbio defende o caráter
materialista histórico das conquistas jurídicas dos últimos séculos, as quais tiveram começo
já algum tempo atrás. O autor peninsular deixa claro que, desde as lutas revolucionárias
que culminaram com a criação do Estado Moderno, houve uma mudança irreversível na
dinâmica das relações de poder, que passaram a ser projetadas não mais sob a perspectiva
do soberano e sim do cidadão.1 Naturalmente, o Estado Moderno já não existe mais como
estrutura ideológica. Sem embargo, sua tradição libertária foi não apenas guardada como
transmitida para os séculos vindouros que, talvez por terem vivenciado convulsões de
intensidade ainda maior, souberam conservá-la e principalmente ampliá-la sob nova
dinâmica.

Conseqüência desse processo histórico ainda “in fieri”, a valorização da pessoa


humana demandou, do ponto de vista intrinsecamente jurídico, a incorporação de
instrumentos apropriados a permitir sua a proteção normativa, não apenas em termos
formais, mas principalmente sob um enfoque material.

No âmbito do que tradicionalmente é designado por Direito Público, tal projeção


fez-se e faz-se sentir nas cada vez mais eloqüentes e ambiciosas declarações de direitos das
Constituições proclamadas ao longo do Século XX, principalmente em seu último quartel.

1
Cf. BOBBIO, Norberto. L’Età dei Diritti. 8 reimp. Turim: Einaud, 1996. p. 15-25.
No âmbito do Direito Civil, para além dos campos como o Direito de Família e
naturalmente dos Direitos da personalidade, esse complexo cenário importou também a
reformulação da própria idéia de Responsabilidade Civil, pois, como assinala Patrice
Jourdan, a valorização da pessoa humana conduziu os cidadãos a demandar cada vez mais
do Estado-providência.2

Com efeito, a antiga Responsabilidade Civil que, de ordinário, fundada sob os


postulados oitocentistas de limitação estatal, estabelecia, de um lado, um complexo quadro
de requisitos para a incidência de suas disposições sancionadoras e, de outro, limitava sua
própria incidência a um limitado grupo tipológico, hoje cede espaço a um franco
movimento expansionista que tem como finalidade amparar possíveis vítimas e não apenas
resguardar o agressor contra eventuais excessos de juízes e tribunais. Numa simples e feliz
arremate, Jorge Mosset Iturraspe diz que a Responsabilidade Civil, que foi construída a
partir da noção da culpa, hoje se qualifica a partir dano, que por sua vez reflete uma
intenção não encoberta de privilegiar a vítima no lugar do agressor.3

Somado a esse contexto sócio-político, ou mesmo até influenciando-o, destaca


Jorge Mario Galdós que a tríplice revolução (digital, informática e genética) acontecida ao
longo de todo o Século XX terminou por, a despeito de todos os imensos benefícios que
possibilitou, impactar negativamente sob muitos outros aspectos sob a pessoa humana,
dando origem a uma “a la convergência inescindible de nuevas causas de dañosidad,
nuevas técnicas y procedimientos cientificos para identificar otros daños, nuevos bienes
jurídicos tutelados, todo lo que amplifica el elenco de las garantías y derechos que tutelan
al ‘individuo espiritual’”.4

Um pequeno preciosismo terminológico, já presente em vários países, demonstra


essa influência, na medida em que tradicional disciplina jurídica Responsabilidade Civil foi
transformada em Direito de Danos, expressão na qual se denota a ampliação dos supostos
indenizáveis e, conseguintemente, a opção preferencial pela vítima que tem caracterizado
os postulados mais recentes da reparação civil.
2
“La valorisation de la personne humaine conduit les citoyens à exiger toujours plus de l’État-providence. Les
habitudes de protection et d’assistance, que la société entrient d’ailleurs, accroissent chez l’individu le besoin
de sécurité et l’incitent à se montrer de plus en plus exigeant: ‘la réparation des dommages devient un droit’”.
(JOURDAN, Patrice. Les Principes de la Responsabilité Civile. 6 ed. Paris, Dalloz, 2003. p. 10).
3
ITURRASPE, Jorge Mosset. Responsabilidad por Daños. parte general. Buenos Aires: Rubinzal Culzoni,
2004. t. I. p. 37.
4
GALDÓS, Jorge Mario. Nuevos Daños a la Persona em la Sociedad de Riesgo. In Kemelmajer de Carlucci,
Aída; Represas, Félix Alberto Trigo; Costa, María Josefa Méndez (coord.). Edición Homenaje Jorge Musset
Iturraspe. Santa Fé: Universidad Nacional del Litoral, 2005, p. 160 (159-
Atualmente, com efeito, eventos que um século atrás dificilmente seriam passíveis
de repercussão jurídica hoje não apenas gozam de pronta proteção, como possuem,
ademais, dimensão valorativa nitidamente superior aos chamados danos magteriais, até
algum tempo atrás os únicos indenizáveis pelos ordenamentos jurídicos de tradição
ocidental.5

Passou-se, assim, a priorizar a pessoa da vítima e a reparação dos danos sofridos,


inclusive ampliando também o leque de responsáveis por eles. Por isso, afirma Graciela
Messina de Estrella Gutiérrez que:

Se prefiere actualmente hablar de reparación de daños. Esta postura adoptada por


la más moderna doctrina y jurisprudencia no se sitúa sólo del lado del responsable
obligado a reparar, sino pone el acento en la víctima – el acreedor que reclama la
indemnización – sin que exista muchas veces un “culpable” en el sentido
tradicional del término.6

Por isso mesmo, ainda de acordo com essa autora argentina, o que poderiamos
chamar de Direito dos Danos orienta suas perspectivas atuais em função das seguintes
orientações cardiais: a) a extensão dos danos reparáveis; b) a objetivação da
responsabilidade civil; c) a prevenção dos danos; d) o aumento da relação de fatores de
atribuição; e) a ampliação da legitimidade passiva e ativa em demandas indenizatórias; f) a
diminuição para a vítima dos ônus probatórios; g) a socialização gradual dos riscos por
meio do seguro obrigatório e da seguridade social7.

Tal expansão abrange tanto aspectos materiais como puramente imateriais da


existência, de modo que tanto os chamados danos patrimoniais como não patrimoniais são
por ela alcançados.

No que pertine a proteção do ser humano propriamente dito, tal expansão pôde ser
sentida, por exemplo, na consolidação daqueles que poderíamos chamar genericamente
danos morais, aplicados na França desde o acórdão da Corte de Cassação datado de 25 de
junho de 1833. Seja a partir de sua manifestação inicial como danos decorrentes de um
abalo psicológico, seja na sua atual concepção objetiva de qualquer agressão a algum
5
Sobre a ampliação da lista de danos juridicamente protegidos ao longo do Século XX consultar as seguintes
obras para uma visão geral do assunto no Brasil, França e Argentina: BAPTISTA, Silvio Neves. Teoria
Geral do Dano: de acordo com o novo código civil brasileiro. São Paulo, Atlas, 2005; GUTIÉRREZ,
Graciela N. Messina de Estrella. La Responsabilidad Civil en La Era Tecnológica. tendências y prospectivas.
Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1997; TUNC, André. La Responsabilité Civile. 2. ed. Paris: Economica, 1989.
6
GUTIÉRREZ, Graciela N. Messina de Estrella. La Responsabilidad Civil en la Era Tecnológica. tendências
y prospectivas. Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1997. p. 22.
7
Cf. GUTIÉRREZ, Graciela N. Messina de Estrella. Op. Cit. p. 18.
direito da personalidade, dão inegável testemunho da mudança ideológica sofrida pela
então sisuda Responsabilidade Civil.

Mais recentemente, os danos decorrentes do abuso de direito, do dano por


ricochete, do dano de ordem genética (ou ao patrimônio genético), do dano estético (quer
se reconheça ser ele autônomo ou não ao dano moral), o dano por perda de uma chance e
tantos outros representam, igualmente, exemplos cotidianos da crescente expansão de bens
juridicamente protegidos tendo como base no respeito a pessoa humana8.

É, assim, possível afirmar com segurança que toda construção legislativa,


doutrinária e jurisprudencial acontecida no Século passado em relação aos danos orientou-
se no sentido de contextualizar as definições clássicas com as novéis experiências de uma
sociedade de massas, o que, por outro lado, também ocasionou em certos casos algum
exagero, até mesmo ao limite do rompimento de certos padrões morais 9. Tal circunstância
levou a alguns autores, com indisfarçável pessimismo, proclamar que a Responsabilidade
Civil estaria vivenciando não propriamente um momento renascedor, senão que um estado
de crise10.

O exagero, inegável em muitos casos, não pode servir, entretanto, de argumento


para sustentar qualquer postura ideológica que defenda uma estagnação, ou mesmo o
retrocesso da reconfiguração da Responsabilidade Civil em vista a uma mais eficaz e plena
defesa das vítimas.

Se existe o problema da “propagação irracional” dos danos, como atestaram


também Guildo Alpa e Mario Bessone, ele deverá ser resolvido reconhecendo-se que o

8
“La jurisprudence em tout cas ne s´est jamais montrée impressionné par les objections élevées contre La
réparation du préjudice moral et l´admet sans hesitación depis um arrêt des chambres réunies de la Cour de
cassation du 25 juin 1833 (S. 1833, 1, 458). Elle a ainsi alloué de façon libérale dês indemnités réparant
toutes sortes d´atteintes à dês intérêts extrapatrimoniaux, as seule préoccupation ayant été de limiter par
divers moyens Le nombre dês personnes autorisées à demander réparation.” (JOURDAN, Patrice. Op. Cit. p.
121).
9
Destaco, especificamente, o caso da jurisprudência que se formou na respeitadíssima Corte de Cassação
francesa a partir do chamado “Arrêt Perruche” (Court de Cassation, Assemblée Plénière, 17/11/2000),
quando se aceitou a possibilidade de responsabilização civil por erro médico consubstanciado na ausência de
informação aos pais de um nascituro que era portador de rubéola. Sendo a interrupção da gravidez admitida
na França e havendo o casal Perruche expressamente afirmado que desejaria interromper a gravidez nessas
circunstâncias, a Corte de Cassação entendeu que deveriam ser indenizados pelos “prejuízos resultantes dessa
deficiência”, em função de não terem podido evitar o nascimento da criança. A questão, pela sua intrínseca
dimensão moral, ensejou ainda uma série de repercussões legislativas que foram parar na Corte Européia dos
Direitos do Homem. Para uma leitura do caso Perruche sob o enfoque multidisciplinar, consultar o “dossier
Perruche” disponível no sítio eletrônico do Senado francês, na página “web”:
http://www.senat.fr/evenement/dossier_perruche.html (disponível em 25.01.2010).
10
TUNC, André. Op. Cit, p. 76.
progresso tecnológico e humanitário vivenciado dentro do Século XX produziu uma
modificação irreversível no âmbito da reparação civil de modo que se bem nem todo dano
possa ser indenizável, pelo menos e cada vez mais os danos e dentre eles os danos sofridos
diretamente pelos seres humanos tornam-se bens juridicamente tutelados.11 Para a solução
racional e razoável do assunto, portanto, deve medrar uma necessária harmonização entre
as normas de responsabilização civil e esses novos bem jurídicos que continuam a surgir,
cada vez mais e mais, em uma sociedade cada vez mais dinâmica.

Daí porque assistir razão a Carlos Alberto Ghersi quando afirma que a noção de
dano juridicamente reparável vai sofrendo uma ampliação diária, sobretudo por força da
realidade sócio-econômica e que, em tempos atuais, seria necessária uma revisão das
regras da responsabilidade civil para melhor adaptá-la ao momento histórico que
vivenciamos, onde tais normas jurídicas precisariam estar fundamentadas em sérias
projeções de análise econômica sobre a produção, circulação e comercialização de bens e
serviço para não deixar frustradas vítimas em um mundo globalizado.12

Dentro dessa complexa contextura é que se mostra interessante analisar o predicado


dano a um projeto de vida. Em sua estrutura conceitual encontra-se a defesa da liberdade
do ser humano, conceito esse que sempre mereceu a atenção dos ordenamentos jurídicos
desde o Código Napoleão e que, particularmente no Direito brasileiro, sempre teve sua
privação direta indenizável tanto pelo Código Civil de 1916 (art. 1550), embora se
discutisse em um primeiro momento a natureza jurídica da reparação, como pelo vigente
Código Civil de 2002 (art. 954), agora já sob o manto também do dano moral.

Nada obstante, a idéia de “projeto de vida” e as conseqüências psicossomáticas que


nele são predicadas superam em muito ao estático conceito de privação de liberdade tal
como definido tradicionalmente nos Códigos ocidentais.

02. A Liberdade como Bem Indenizável: O Projeto de Vida.

11
“La erosione della scala dei valori delle società borghesi del secolo scorso, i mutamenti sociali provocati
dall´affermarsi di società a capitalismo avanzato, lo sviluppo del progresso tecnologico hanno profondamente
modificato i pressuposti dai quali muovere per una delimitazione dell´area del danno risarcibile. Appare
tuttora importante l´esigenza di identificare criteri di selezione delgi interessi meritevoli di tutela, e quindi di
circoscrivere l´area del danno risarcibile, per evitare che uma propagazione irrrazionale dei meccanismi di
tutela renda necessario il risarcimento di ogni danno provocato dall´attività umana, senza considerazione
alcuna per la consistenza e la qualità dell´interesse leso.” (ALPA, Guido; BESSONE, Mario, 2001, p. 5).
12
GHERSI, Carlos Alberto. El Ser Humano y la Dañosidad como Inevitable Contingencia Social. In
GHERSI, Carlos Alberto et allí. Responsabilidad: Problematica Moderna. Mendonza: Ediciones Jurídicas
Cuyo, 1996. pp. 29-37
Não se pode dissociar liberdade e valorização da pessoa humana, pois traduzem
conceitos siameses, onde o menosprezo de um invariavelmente refletirá no do outro.
Embora costume-se dizer que a vida é o principal dos direitos, pois todos os demais
(direitos) começam por ela, não se deve correr o risco de considerar a liberdade como algo
a ela inferior. É a liberdade, ou simplesmente a aptidão para ser livre, o traço fundamental
que define o ser humano de toda e qualquer espécie animada. Vida, sem liberdade, já não é
vida humana.

É pela valorização da liberdade que se chega, finalmente, ao conceito de dignidade


da pessoa humana, ou, simplesmente, dignidade do homem. De todos os animais, apenas o
homem possui liberdade e, ainda mais importante, a consciência dela, que o faz sofrer pela
sua privação, quando ela vem a ser atacada, ou de algum modo diminuída.

Essa lição tanto parece ser verdadeira que aparece, como trabalho de Sísifo
subrepeticiamente na obra de filósofos antigos e modernos como Platão, Agostino,
Espinoza, Kant Rousseau e Sartre, em cujas obras...

Um expressivo e pioneiro exemplo da defesa política do homem e de sua liberdade


pode ser encontrado na “Oratio de Hominis Dignitate” de 1486. Aí, Givanni Pico della
Mirandola já postulava o irrestrito respeito à liberdade, na medida em que a plenitude do
ser humano somente poderia ser atingida com seu irrestrito respeito. Por outro lado, o
ultraje à plenitude do ser humano consistiria verdadeira estultice na medida em que nos
privaria de admirar todas as facetas desse “nosso camaleão”, que em tudo poderia
transformar-se se lhe fosse garantida condições suficientes para seu florescimento e
desenvolvimento.13

As implicações entre Direito e Liberdade são tão intensas que poderiam ser
divisadas dentro daquelas mesmas duas esferas propostas por Hans Kelsen, para conceituar
constituição, ou seja, uma lógico-conceitual e a outra jurídico-positiva. Desse modo, A
liberdade tanto é um direito fundamental indiscutivelmente garantido, em maior ou menor
medida, aos seres humanos que compõem determinado ordenamento jurídico referencial,

13
“O summam Dei Patris liberalitatem, summam et admirandam hominis felicitatem! Cui datum id habere
quod optat, id esse quod velit. Bruta simul atque nascuntur id secum afferunt, ut ail Lucilius, e bulga matris
quod possessura sunt. Supremi spiritus aut ab initioaut paulo mox id fuerent, quod sunt futuri in perpetuas
aeternitates. Nascenti homini omnifaria semina et omnigenae vitae germina indidit Pater; quae quisque
excoluerit illa adolescent, et fructus suos ferent in illo. [...] Quis hunc nostrum chamaeleonta non admiretur?
Aut omnio quis aliud quicquam admeritur magis?” (PICO DELLA MIRANDOLA. Discurso sobre a
Dignidade do Homem. Trad. Maria de Lurdes Sirgado Ganho. Lisboa: Edições 70, 1989. p. 52)
hipótese na qual pode ser compreendida sob uma configuração jurídico-positiva; como
pode, igualmente e segundo muitas das escolas jusfilosóficas que floresceram no Século
passado, ser entendida como conceito fundamental para a própria definição da palavra
Direito.

Não seria o caso, principalmente em função da natureza deste trabalho, aprofundar


qualquer análise epistemológica e, sobretudo, lógica sobre o conceito de Direito,
principalmente dentro das concepções “unidimensionalista” (vale dizer, normativista) e
“pluridimensionalista” que há bom tempo travam ferrenha disputa sobre o tema. De toda
forma, deixa-se claro que toda e qualquer formulação teórica que identifique Direito
fundamentalmente como um objeto cultural tem como pressuposto lógico a liberdade
humana como seu elemento definidor.

É o caso, por exemplo, das obras de Miguel Reale, Luis Recasén Siches e,
particularmente, da Teoria Egológica do Direito formulada por Carlos Cossio. A expressão
egológica decorre obviamente de “ego” e tem a intenção de demonstrar que o direito, em
última análise, é uma forma qualificada da conduta dos seres humanos (ou seja, um objeto
egológico), que somente pode existir pressupondo-se a presença da liberdade como fonte
geradora de qualquer ato volitivo ou racional. Diz o conhecido professor tucumano: “Pero
hay otros objetos culturales cuyo substrato es la propia acción o conducta humana; ahora se
trata de la corporización de un sentido que es el sentido del comportamiento humano […]
Llamamos a éstos objetos egológicos, porque siendo conducta el substrato de ellos, la
conducta es inseparable del ego actuante: en el substrato de estos objetos hay un ego como
ego”.14

Deste modo proposto, ou seja, como objeto egológico é possível dar-se conta da
importância do valor liberdade tanto para a definição do conceito de Direito como para sua
prática diária, onde ele passa a ocupar lugar de mais elevado destaque, ostentando a
condição de bem jurídico cujo resguardado reclama a primazia das atenções do
ordenamento. Essa especial forma de enfocar a liberdade termina por dar, por conseguinte,
nova dimensão ao chamado dano aos direitos da personalidade, na medida em que, como
dito, propõe uma reconfiguração dinâmica de suas elementares.

14
COSSIO, Carlos. Teoría de la Verdad Jurídica. Buenos Aires: El Foro, 2007. p. 64. A partir da colocação
do jurídico como “objeto egológico” é que Cossio propõe sua conhecida definição de Direito, segundo a qual
este é a “conduta em interferência intersubjetiva”, expressão que deixa mais do que explicitada seu caráter
existencial-fenomênico
Na correta explicação de Jorge Mosset Iturraspe a atual configuração do dano à
pessoa aparece como resposta a toda uma corrente personalista ou existencialista do
Direito que, como “um novo renascimento volta a colocar a pessoa humana como eixo ou
centro das preocupações jurídicas”.15

Nenhuma outra escola filosófica, com efeito, parece ter sido tão radicalmente
convicta do valor liberdade para a construção da plenitude humana como a que se
denomina existencialista. Nem mesmo os ideais revolucionários que inspiraram as
revoluções liberais do Século XVIII, podem ser a ela comparados, na medida em que a
noção de liberdade dos racionalistas daquele momento histórico era muito mais, como
deixa claro seu hipocorístico, cerebral que intimista.

Com esse cenário por pano de fundo é que Carlos Fernánez Sessarego vem a
desenvolver sua tese sobre os danos ao projeto de vida. Diz esse respeitado professor
peruano que as pessoas não podem simplesmente ser tratadas sob um aspecto puramente
estático no que se relaciona ao exercício de sua liberdade. O caráter intrinsecamente
humano do ser humano impõe, em última análise, que seja levado em consideração pelo
ordenamento jurídico esse grande mosaico em que se cinzela a realidade existencial de
cada pessoa:

Los seres humanos hemos creado y tratamos constantemente de mantener y


perfeccionar dentro de la dinámica propia de la realidad, desde tiempos remotos
y como una ineludible exigencia existencial, un conjunto de normas jurídicas
mediante cuyo cumplimiento obligatorio se pretende establecer que las
relaciones humanas en sociedad sean valiosas - justas, seguras, solidarias - a fin
de crear los espacios, escenarios o situaciones colectivas para que cada ser
humano pueda cumplir con el propio destino personal, con su “proyecto de
vida”, sin dañar ni ser dañado por los ‘otros’. Es, así, el creador, protagonista y
destinatario del derecho. De ahí que el derecho sea una exigencia existencial.

Ao proteger a liberdade dos seres humanos, o ordenamento jurídico estaria


protegendo e resguardando o direito que cada ser humano tem de realizar seu pessoal
“projeto de vida”, aí excluídas, claro, as condutas ou projetos tendentes a ofender a moral,
os bons costumes, a ordem pública, ou, simplesmente, venha prejudicar aos demais.

A explicação faz-se necessária para que não se venha a autorizar qualquer


conclusão no sentido de que qualquer projeto de vida seja permitido pelo ordenamento
jurídico e, assim, possa ser constituído como um prejuízo indenizável, porque há, como

15
ITURRASPE, Jorge Mosset. Op Cit. p. 281
sabido, uma confluência entre os conceitos de liberdade e responsabilidade, de modo que a
garantia que se outorga para seu uso pressupõe, como não poderia ser diferente, um agir
responsável. Como outros conceitos dialéticos (e talvez mais que todos) na definição
mesma de liberdade estão incorporados elementares de responsabilidade e respeito à
liberdade alheia, quer seja individual ou coletiva.

Com efeito, trata-se de conhecida lição proferida por Sartre: “Porém, se realmente a
existência precede a essência, o homem é responsável pelo que é. Desse modo, o primeiro
passo do existencialismo é o de por o homem na posse do que ele é e de submetê-lo à
responsabilidade total de sua existência. Assim, quando dizemos que o homem é
responsável por si mesmo não queremos dizer que o homem é apenas responsável pela sua
estrita individualidade, mas que é responsável por todos os homens”.16

Logo, a liberdade que é juridicamente protegida é a liberdade individual em


harmonia ou sintonia com o outro. Em possíveis termos heideggardianos, poder-se-ia dizer
que a liberdade protegida pelo ordenamento jurídico é a liberdade-com, que reflete a
legítima formação do caráter humano em companhia com seus semelhantes (“das dasein”)
e não a liberdade-contra que se dirige, justamente, em reprimir ou privar a liberdade
existencial dos demais indivíduos.

Não há dúvidas, como já referido, que os ordenamentos jurídicos de cunho


ocidental vêm outorgando ao valor liberdade um zelo especial. Não se trata de defender a
liberdade atrelada questões puramente econômicas, como a liberdade contratual, que,
paradoxalmente, até experimenta uma diminuição em virtude de toda uma legislação
imbuída de profundo viés público, como, por exemplo, a que regulamenta a proteção e a
defesa dos consumidores e que pode chegar, em certas situações, ao extremo de determinar
situações de contratação obrigatória.

A incidência da dimensão existencial do Direito sobre as regras da responsabilidade


civil dão um enfoque destino, portanto, a toda uma projeção inercial que se tinha da
liberdade humana. Não é a simples privação da liberdade que se almeja indenizar ou
reparar; não é tão-somente a dor psicológica sentida pelo sentimento de impotência
resultante de tal privação, mas sim a justa reprimenda que deve ser imposta a quem frustra
ou impede de se permitir a realização de um projeto humano.
16
SARTRE, Jean Paul. O Existencialismo é um Humanismo (Col. Os Pensadores). Trad. de Rita Correia
Guedes. 3 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 6 [1-32].
Repousam aí as premissas fundamentais da obra de Carlos Fernández Sessarego,
para quem os danos à pessoa são divididos em apenas duas categorias: a) danos
psicossomáticos; b) danos a um projeto de vida.

Na primeira categoria de danos incluem-se toda e qualquer lesão sofridas pelo


soma, isto é o corpo em seu sentido estrito, nela incluída a “psiquê”. A junção dos danos
estritamente físicos com os danos à “psique” é justificada porque, o homem constitui uma
unidade incindível, de forma que “os danos somáticos repercutem, necessariamente e em
alguma medida na psique e os danos psíquicos, por sua vez, geram repercussão
somática”.17

Naturalmente, o que estamos acostumados a chamar de dano moral também é visto


como uma forma de dano psicossomático, na obra desse autor peruano. Por conseguinte,
todas as novas espécies de danos, cujos conceitos estão intrinsecamente atrelados a uma
repercussão lesiva sobre o corpo do indivíduo, igualmente passam a ser classificados como
danos psicossomáticos, tais como o dano biológico, o dano estético, o dano à saúde, o dano
genético etc.

Por outro lado, a liberdade ontológica, em virtude de seu especial papel para o
desenvolvimento dos seres humanos, desafia reparação autônoma, acaso violada. É esse
dano à liberdade fenomênica, ou em uma palavra, à vontade que se procura reconhecer e
sancionar sob a noção de dano a um projeto de vida. A vontade deve ser livre, plenamente
livre, para satisfazer um projeto de vida, ou, sendo o caso, mesmo não o querer realizado,
mas sempre deverá ser uma decisão livre, o que já é algo bem limitado em razão das
atávicas correlações biogenéticas do ser humano, como já ensinava, dentre outros filósofos
modernos, Luis Recasén Siches.18

17
SESSAREGO, Carlos Fernández. Op cit. p. 18
18
“El yo no es una cosa; es quien tiene que vivir con las cosas, entre las cosas; y la vida no es algo que nos
sea dado hecho, que tenga que ser predeterminado, sino que es algo que tiene que hacerse, que tiene que
hacérsela el yo que cada uno de nosotros es; y su estructura es futurición, es decidir en cada momento lo que
va a ser en el momento siguiente y, por tanto, es libertad. Pero una libertad no abstracta (como absoluta e
ilimitada indeterminación), sino libertad encajada en una circunstancia, entre cuyas posibilidades concretas
tiene que optar. […] Vida significa la forzosidad de realiar el proyecto de existencia que cada cual es. Este
proyecto en que consiste el yo, no es una idea o plan ideado por el hombre y libremente elegido. Es anterior a
todas las ideas que su inteligencia forma, a todas las decisiones de su voluntad. Más aún, de ordinario no
tenemos de él sino un vago conocimiento, y, sin embargo, es nuestro auténtico ser, nuestro destino. Nuestra
voluntad es libre para realizar o no ese proyecto vital que últimamente somos, pero no puede corregirlo,
cambiarlo, prescindir de él o sustituirlo”. (SICHES, Luis Recaséns. Filosofía del Derecho. 19 ed. Cidade do
México: Porrúa, 2008. pp. 252-253).
A diferença entre o dano psicossomático e o dano ao projeto de vida surgem
quando é colocado em relevo o elemento vontade. Constituir-se o dano psicossomático
como um dano que deixa marcas, quer no corpo, quer na alma (moral), mas não atrapalha
necessariamente que a vítima possa, mercê de suas forças volitivas, prosseguir sua jornada
existencial e vir a realizar-se enquanto ser humano. O dano ao projeto de vida, ao
contrário, pressupõe essa privação de ordem substancialmente volitiva, no qual é
constituído. Uma vez mais, as palavras de Carlos Sessarego:

es oportuno señalar que si bien el ser humano es una ‘unidad psicosomática constituida y
sustentada en su libertad’, se suele confundir, frecuentemente, la libertad, que es el ser
mismo del hombre, con la unidad psicosomática en la que ella está implantada o con un
particular aspecto o función de la misma. Esta confusión es más notoria tratándose de la
voluntad, que es una de las vertientes psíquicas, sin percatarse que ésta se halla, como la
unidad psicosomática en su conjunto, al servicio del ‘yo’, del ser mismo, de su decisión
libre. La envoltura psicosomática es un medio o instrumento del cual se vale la libertad para
su realización como proyecto.19

Em suporte às idéias de Carlos Sessarego, não seria equivocado tomar emprestado,


dentre outros filósofos, o respeitado pensamento de Hannah Arendt que afirmava: “pensar
y recordar, hemos dicho, es la manera humana de echar raíces, de ocupar el propio lugar en
el mundo, al que todos llegamos como extraños. Lo que solemos llamar persona o
personalidad, como algo distinto de un simple ser humano o de un nadie, brota
efectivamente del enraizamiento que se da en este proceso de pensamiento.” 20

Deste modo, pretende-se esclarecer que para a construção do eu de cada indivíduo,


é necessário que haja toda uma zona formada tanto por projeções (futuro) como por
recordações (passado), que dialeticamente se miscigenam até formar o presente, ou seja, o
eu que efetivamente existe e que, então, torna-se objeto de ação.

Os elementos de índole puramente somático são, na opinião de Hannah Arendt,


inclusive dispensáveis para a definição da personalidade do ser humano, na medida em que
“la cualidad de ser persona, como distinta del simple ser humano, no figura entre las
cualidades, dones, talentos o defectos individuales con que nacen los hombres, y de los que
pueden usar o abusar. La cualidad personal de un individuo es precisamente su cualidad
‘moral’, si no tomamos la palabra en su sentido etimológico ni en su sentido convencional,

19
SESSAREGO, Carlos Fernández. Op. Cit. p. 44.
20
ARENDT, Hannah. Responsabilidad y Juicio. Trad. de Miguel Canel e Fina Birulés. Barcelona: Paidós. p.
115.
sino en el de la filosofía moral” 21, ou seja, como uma decisão livre e consiente sobre a ação
concreta que deve realizar.

Por decorrência não se trata de indenizar, a título de dano a um projeto de vida


qualquer frustração ocasional, como a decorrente de um atraso, ou um dissabor qualquer.
Estas continuam a ser indenizadas pelas formas próprias, as quais, no nosso Direito
positivo, têm previsão explícita nas regras dos artigos 186, 953 e 954 do Código Civil.

Por outro lado, apenas situações de extrema gravidade é que teriam guarida sob
título de dano a um projeto de vida, que possui sempre configuração de dano futuro, por
significar a perda ou a diminuição da vontade enquanto elemento anímico que nos orienta à
realização de um propósito egológico. A perda da vontade, ou sua obliteração em
condições juridicamente indenizáveis, como demonstram as regras ordinárias da
experiência, não se faz por atos de menor dimensão. Um contratempo, é certo, sempre terá
impacto sobre a vontade humana, mas a existência é formada também por tais dissabores e
angústias. O ser humano, em princípio naturalmente não se rende a eles e por não se
render, como no mito grego de Prometeu, é que inventou a aventura humana.

Assim, como anota Sessarego, “el daño al proyecto de vida es la consecuencia de


un colapso psicosomático de tal magnitud para el sujeto, para cierto sujeto, que anula su
proyecto futuro. El impacto psicosomático es de tal proporción que sume al sujeto a un
vacío existencial y ‘el desconsuelo invade a un hombre que pierde la fuente de
gratificación y el campo de despliegue de su apuesta vital’. Como expresa Milmaiene con
precisión, el impacto psicosomático es tan vigoroso que ataca el ‘núcleo existencial del
sujeto, sin el cual nada tiene sentido’”. 22 Claro que a afirmação impõe temperamentos,
como adiante será visto. Contudo, sob essa idéia central é que se edifica o conceito de
danos a um projeto de vida.

Fica evidente que a violação a esse eu deve ser plenamente indenizável em caráter
autônomo. A liberdade enquanto fonte da ação humana não se confunde, com efeito, com
a reparação civil que é atualmente catalogada pelo Direito Positivo brasileiro que, como

21
ARENDT, Hannah. Responsabilidad y Juicio. Trad. de Miguel Canel e Fina Birulés. Barcelona: Paidós. p.
98.
22
SESSAREGO, Carlos Fernández. Apuntes para la Distinción entre el Daño al Proyecto de Vida y el Daño
Psíquico. In Los Derechos del Hombre. daños y protección a la persona. Mendonza: Ediciones Jurídicas
Cuyo, 1996. pp. 19-20.
visto acima, ocupa-se em deflagrar sanção explícita contra a liberdade violada, mas não
propriamente contra a frustração.

A eventual falta de nomeação explícita por parte da quase totalidade dos ordenamentos
jurídicos, outrossim, não pode ser entendida como impedimento oponível ao seu
reconhecimento, já que, embora seja certo que não houve ainda a ruptura do marco teórico
que propugna que os direitos somente são indenizáveis quando juridicamente protegidos
(danos juridicamente apreciáveis), não é menos certo que a descrição “numerus clausus”
das sanções reparatórias, da qual a mais autorizada representante foi a hermética escola da
Exegese, deu lugar definitivamente, ainda no Século passado, a um sistema topográfico e
maleável de atribuição de responsabilidades civis tendo por base o elemento
principiológico que anima a criação do Direito.

Sem embargo, por tratar-se justamente de recente construção jurídica muito ainda há
que podar e aparar-se quando se fala de danos a um projeto de vida. A sistematização é
medida que se impõe para dar adequada fundamentação epistemológica a esses danos, em
cujo teste, efetivamente, poder-se-á descobrir suas verdadeiras raízes ontológicas.

03. Projeto de Vida ou Projetos de Vida?

Partindo-se, assim, da premissa de que o dano ao projeto de vida tem como


fundamento uma agressão séria à liberdade fenomênica dos indivíduos, pode-se, portanto,
sistematizá-lo em três subespécies distintas: a) danos que frustram parcialmente um projeto
de vida; b) danos que se manifestam em um retardamento na realização de um projeto de
vida; c) danos que determinam a frustração completa de um projeto de vida.

No primeiro caso... Como exemplo de dano radical, cita o caso de um afamado


pianista ou um renomado cirurgião, extremadamente dedicados, que perdem a mão em um
acidente. Nesse caso, afirma, cria-se para eles um vazio existencial, pois que tais vocações
davam pleno sentido a suas vidas (SESSAREGO, p. 73-74).

A pessoa, enquanto ser livre, decide e escolhe, dentre uma multiplicidade de


opções, aquela, segundo sua valoração, que vai lhe permitir conduzir sua vida e atingir
seus objetivos.
Ao ter essa liberdade, a pessoa elabora o seu projeto de vida, e faz disso sua razão
de ser. O que está em jogo, no caso, é o futuro do ser humano, o seu destino, o que ele
escolhe ser e fazer de sua vida (SESSAREGO, p. 70).

Dessa forma, o maior dano que se poderia causar a uma pessoa seria a frustração, o
impedimento ou o retardamento de que projetou para si. Mas nem toda mudança das
condições de existência deve ser indenizada, mas sim aquelas que mudam e marcam de
forma profunda o marco afetivo e espiritual em que se desenvolve a vida daquela pessoa
ou de sua família, bem como afetem a evolução profissional que estava sendo percorrida
com grandes esforços e empenhos.

04. A Prática da Corte Interamericana de Justiça

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão judicial autônomo, tem


competência consultiva e contenciosa para conhecer de qualquer caso relativo à
interpretação e aplicação das disposições da Convenção Americana de Direitos Humanos
(Pacto de São José da Costa Rica) e outros tratados do gênero, a que lhe seja submetida à
apreciação, sempre que os Estados signatários reconheçam essa competência.

Dessa forma, a Corte conhece dos casos em que se alegue violação de um Estado a
qualquer direito e liberdade protegidos pela Convenção Americana de Direitos Humanos,
sendo necessário que se tenham esgotados os procedimentos previstos na mesma.

E dentro de sua atuação, a Corte vem analisando, reconhecendo e determinando a


reparação do “dano ao projeto de vida”.

Desde 1998, vem a Corte Interamericana analisando casos de sentenças de


reparação de danos dessa espécie, colocando, assim, no mesmo plano, a reparação do
“dano ao projeto de vida” e o ressarcimento dos “danos materiais”, como o lucro cessante e
o dano emergente, e a indenização do dano moral.23

23
Nesse sentido, consulte-se as seguintes decisões: caso “Maria Elena Loayza Tamayo Vs. Peru”, de 27 de
novembro de 1998; caso de “Los Niños de La Calle Vs. Guatemala”; de 26 de maio de 2001; caso de
“Cantoral Benavides Vs. Peru”, de 3 de dezembro de 2001; Caso “del Caracazo Vs. Venezuela”, de
29.08.2002; Caso “Maritza Urrutia Vs. Guatemala”, de 27.11.2003; Caso “Molina Theissen Vs. Guatemala”,
de 03.07.2004; Caso de “los Hermanos Gómez Paquiyauri Vs. Perú”, de 08.07.2004; Caso “Carpio Nicolle y
otros Vs. Guatemala”, de 22.11.2004; Caso de “las Hermanas Serrano Cruz Vs. El Salvador”, 1º. 03.2005;
Caso “Gutiérrez Soler vs. Colombia”, de 12.09.2005; Caso “del Penal Miguel Castro Castro Vs. Perú”, de
25.11.2006; Caso de “la Masacre de La Rochela Vs. Colombia”, de 11.03.2007; Caso “Cantoral Huamaní y
García Santa Cruz vs. Perú”, de 10.07.2007; Caso “Valle Jaramillo y otros Vs. Colombia”, 27.11.2008.
Nesses casos, a Corte aplica o artigo 63.1 da Convenção Americana, na qual se
encontra um dos princípios fundamentais do direito internacional geral, que é aquele pelo
qual, ao ser produzido um fato ilícito imputado a um Estado, surge responsabilidade
internacional deste pela violação de uma norma internacional, com o conseqüente dever de
reparação:
Artigo 63º
1. Quando decidir que houve violação de um direito ou liberdade protegidos nesta
Convenção, a Corte determinará que se assegure ao prejudicado o gozo do seu direito ou
liberdade violados. Determinará também, se isso for procedente, que sejam reparadas as
conseqüências da medida ou situação que haja configurado a violação desses direitos, bem
como o pagamento de indenização justa à parte lesada.

A reparação de um dano causado pela infração de uma obrigação requer, sempre


que possível, a plena restituição (restitutio in integrum), que consiste no restabelecimento
da situação anterior à violação.

Em não sendo possível, cabe ao tribunal internacional determinar uma série de


medidas que, para além de garantir o respeito dos direitos violados, reparar as
conseqüências produzidas pelas infrações e estabelecer o quantum dos danos e outros
modos de satisfação (“caso del Penal Miguel Castro Castro Vs. Perú”, parágrafo 415).

E como reparação, entende a Corte que o alcance do instituto engloba as diferentes


formas através das quais um Estado pode fazer face à responsabilidade internacional,
dentre as quais cita, além da restitutio in integrum, indenização, satisfação, garantias de
não repetição. Ademais, não se torna despiciendo atentar para o fato de que a reparação
estabelecida pelos tribunais internacionais é regida pelos tribunais internacionais em todos
os seus aspectos (alcance, natureza, modalidades), não podendo ser modificada pelo
obrigado invocando normas de seu direito interno (cf. art. 68.1. “Os Estados Partes na
Convenção comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem
partes”).

O dano a um projeto de vida vem sendo reconhecido pela Corte como sendo o dano
que atenta contra a realização pessoal do indivíduo afetado, considerando sua vocação,
atitudes, circunstâncias, potencialidades e aspirações, que lhe permitam fixar, de forma
razoável, determinadas expectativas e alcançá-las (caso “Maria Elena Loayza Tamayo Vs.
Perú”, parágrafo 147).

Deve-se, dessa maneira, proteger-se juridicamente o “projeto de vida”. O


retardamento ou impedimento de seu alcance implica na redução objetiva da liberdade:
El “proyecto de vida” se asocia al concepto de realización personal, que a su vez
se sustenta en las opciones que el sujeto puede tener para conducir su vida y
alcanzar el destino que se propone. En rigor, las opciones son la expresión y
garantía de la libertad. Difícilmente se podría decir que una persona es
verdaderamente libre si carece de opciones para encaminar su existencia y llevarla
a su natural culminación. Esas opciones poseen, en sí mismas, un alto valor
existencial. Por lo tanto, su cancelación o menoscabo implican la reducción
objetiva de la libertad y la pérdida de un valor que no puede ser ajeno a la
observación de esta Corte. (caso “Maria Elena Loayza Tamayo com o Estado do
Peru, parágrafo 148)

Em relação ao “dano” a esse “projeto de vida”, ao analisar os casos, a Corte vem


interpretando que, de fato, seria crível que o projeto de vida de cada vítima nunca tivesse
podido se concretizar, ainda que ela estivesse em liberdade. Tratar-se-ia de uma situação
provável, não meramente possível, mas em sendo considerada dentro do natural e
previsível desenvolvimento da pessoa, que resta interrompido por fatos violatórios aos seus
direitos humanos. Tais fatos violatórios mudam de forma drástica o curso da vida de uma
pessoa, modificando planos e projetos que, em condições normais, poderiam ter se
desenvolvido e obtido êxito (sentença do caso “Maria Elena Loayza Tamayo Vs. Perú”,
parágrafo 149).

Dessa forma, seria razoável afirmar que esses fatos impedem ou obstruem a
obtenção do resultado previsto e esperado. Tudo isso altera o desenvolvimento normal da
pessoa. Assim,

En otros términos, el “daño al proyecto de vida”, entendido como una


expectativa razonable y accesible en el caso concreto, implica la pérdida o
el grave menoscabo de oportunidades de desarrollo personal, en forma
irreparable o muy difícilmente reparable. Así, la existencia de una persona
se ve alterada por factores ajenos a ella, que le son impuestos en forma
injusta y arbitraria, con violación de las normas vigentes y de la confianza
que pudo depositar en órganos del poder público obligados a protegerla y a
brindarle seguridad para el ejercicio de sus derechos y la satisfacción de sus
legítimos intereses. (do caso “Maria Elena Loayza Tamayo Vs. Perú”,
parágrafo 150).

Por outro lado, para ilustrar a segunda hipótese, cita o primeiro caso em que a Corte
Interamericana de Direitos Humanos vislumbrou a existência de “dano a um projeto de
vida”.

O caso “Maria Elena Loayza Tamayo Vs. Perú”, de 27 de novembro de 1998, é


considerado, por Sessarego (p. 68), um fato histórico em matéria de reparação de danos
causados ao ser humano, por ter sido a primeira vez que a Corte analisou, de forma
profunda e extensa, o “dano ao projeto de vida”.

Entretanto, na opinião do mesmo autor, a Corte errou ao não fixar uma reparação
satisfatória ao dano, alegando tão somente que não havia precedentes sobre a matéria:

La Corte reconoce la existencia de un grave daño al “proyecto de vida” de


María Elena Loayza Tamayo, derivado de la violación de sus derechos
humanos. Sin embargo, la evolución de la jurisprudencia y la doctrina hasta
la fecha no permite traducir este reconocimiento en términos económicos, y
por ello el Tribunal se abstiene de cuantificarlo. Advierte, no obstante, que
el acceso mismo de la víctima a la jurisdicción internacional y la emisión de
la sentencia correspondiente implican un principio de satisfacción en este
orden de consideraciones. (parágrafo 153).

Em sentença datada de 17 de setembro de 1997, a Corte Interamericana decidiu


condenar o Peru pela violação de garantias judiciais ao processar Loayza Tamayo através
da justiça comum acerca dos mesmos fatos pelos quais havia sido anteriormente absolvida
pela justiça militar daquele país, qual seja, a acusação de crime de traição à pátria, ou grave
terrorismo.

Entendeu a Corte ter havido inobservância ao disposto no art. 8º da Convenção, que


consagra o princípio non bis in idem. De fato, assim dispõe o item 4 do referido artigo: “4.
O acusado absolvido por sentença transitada em julgado não poderá ser submetido a novo
processo pelos mesmos fatos”.

No corpo da decisão, a Corte determinou a soltura da vitima, assim como a que o


Peru pagasse justa indenização à vítima e aos seus familiares, bem como ressarcir-lhes dos
gastos que tenham desembolsado em virtude do referido processo.

Na sentença de reparação, verifica-se ainda a determinação de reincorporar a vítima


aos seus empregos públicos que exercia antes da prisão (era professora); bem como o
pagamento da remuneração equivalente ao período em que ficou reclusa, em relação aos
seus empregos públicos e privados; tratamentos psicológicos; anulação de antecedentes
penais, judiciais e prisionais; assim como a anulação do processo e todas as decisões
exaradas no foro comum, e que fosse publicada a anulação do processo e a correspondente
liberdade da vítima no Diário Oficial do Poder Judiciário Peruano.

Mas não atrela expressamente nenhuma dessas compensações ao “dano ao projeto


de vida”.
Para Sessarego, “esta sentencia significa, en efecto, un gigantesco paso adelante en
lo atinente a la protección integral del ser humano en cuanto estructura psicosomática en su
libertad”. (SESSAREGO, p. 69)

A vítima, é de se ressaltar, não sofreu uma completa frustração ao seu projeto de


vida. Mas ocorreram vários fatos que o impediram, limitaram e atrasaram de forma
significativa. “En esta situación es muy probable que, sobre la base de las consecuencias
del daño padecido, no podrá nunca más realizar plenamente su proyecto de vida tal como
libremente lo decidió en su momento” (SESSAREGO, p. 74)

E o mesmo autor assinala que, no corpo da decisão do caso Loayza Tamayo, a


Corte não chega a precisar de fato o que seria o dano moral, enquanto perturbação
psicológica ou patológoca, incorporado ao “dano a pessoa” de caráter psicossomático. Ou
seja, que o dano moral não constitui uma categoria a parte do mencionado “dano a pessoa”
(SESSAREGO, p. 73).

No caso “Cantoral Benavides Vs. Peru”, a Corte reconheceu que a vítima foi
submetida a condições de reclusão hostis e restritivas, além de tortura de forma cruel e
degradante, o que lhe causou dores corporais e emocionais. Por essa razão, reconheceu a
existência de “dano ao projeto de vida”.

Contudo, diferentemente do que ocorreu no caso “Maria Elena Loayza Tamayo Vs.
Perú”, a Corte, ainda sem quantificar em termos econômicos, estabeleceu um conjunto de
compensações para reparar o prejuízo ao projeto de vida de Luis Alberto Cantoral:

Estima la Corte que la vía más idónea para restablecer el proyecto de


vida de Luis Alberto Cantoral Benavides consiste en que el Estado
le proporcione una beca de estudios superiores o universitarios, con
el fin de cubrir los costos de la carrera profesional que la víctima
elija −así como los gastos de manutención de esta última durante el
período de tales estudios− en un centro de reconocida calidad
académica escogido de común acuerdo entre la víctima y el Estado”.
Por último, la Corte ordena que el Estado peruano realice un
desagravio público en reconocimiento de su responsabilidad en este
caso y a fin de evitar que hechos como los de este caso se repitan.
(parágrafos 80 e 81 da sentença).

Além do mais, considerou a Corte constituir a sentença uma reparação em si


mesma, e determinou a publicação de sua parte resolutiva no Diário Oficial e em um jornal
de circulação nacional, como forma de coibir outras práticas semelhantes (parágrafo 79 da
referida sentença). Essa forma de reparação foi repetida pela Corte em várias outras
ocasiões, como nos casos de “la masacre de La Rochela” (parágrafo 264) e do “Cantoral
Huamaní y García Santa Cruz” (parágrafo 180).

Logo depois, o Tribunal, ao deparar-se com o “Caso del Caracazo Vs. Venezuela”,
afirmou que reconheceu o conceito de dano ao projeto de vida no caso Loayza Tamayo, e
que, desde então, algumas legislações internas passaram a acolher o conceito (parágrafo 97
da sentença do “caso del Caracazo Vs. Venezuela”).

Em situação semelhante ao “caso Cantoral Benavides”, a Corte julgou o “caso


Gutiérrez Soler”.

Ao passo em que reconheceu a ocorrência de “dano ao projeto de vida” da vítima,


por violação de seus direitos humanos, o Tribunal decidiu não quantificá-lo em termos
econômicos, uma vez que já haveria condenação em danos materiais e morais. Veja-se que,
dessa forma, a Corte definitivamente separa essas espécies de dano.

La naturaleza compleja e íntegra del daño al “proyecto de vida”


exige medidas de satisfacción y garantías de no repetición (infra
párrs. 103, 104, 105, 107 y 110) que van más allá de la esfera
económica. Sin perjuicio de ello, el Tribunal estima que ninguna
forma de reparación podría devolverle o proporcionarle las opciones
de realización personal de las que se vio injustamente privado el
señor Wilson Gutiérrez Soler. (caso Caso Gutiérrez Soler vs.
Colombia, parágrafo 89)

Assim, além da indenização para cobrir os danos materiais e morais, determinou a


corte ao estado o custeio de tratamento médico e psicológico à vítima e a seu filho
(parágrafo 103), a publicação das partes da sentença no diário oficial e em jornal de grande
circulação para que outros fatos da mesma natureza não se repitam (parágrafo 105),
inclusão do caso nos cursos de formação atualização de agentes da polícia, com ênfase no
estudo dos direitos humanos (parágrafo 107), inclusão dos procedimentos previstos no
Protocolo de Istambul para os médicos que trabalham junto aos centros de detenção, sobre
como se deve dar o atendimento a vítimas de tortura, incluindo nesse estudo o caso
presente (parágrafo 110).

Assinala ainda que durante audiência pública, os agentes estatais, de pé, pediram
perdão à vítima pela perda de seu projeto de vida (parágrafo 104).

No caso do Massacre de La Rochela – uma província da Colombia em que várias


pessoas foram executadas, como reparação ao dano ao projeto de vida, as partes
acordaram, como obrigação de meio, que o Estado continuaria a proporcionar auxílios para
a educação dos familiares das vítimas, em instituições de educação secundárias, técnicas e
superior de caráter público ou privado, assim como oferecer a oportunidade de emprego
para as vítimas e seus familiares, na medida em que venham a preencher os requisitos de
mérito necessários para ocupar as vagas, em respeito a todas as normas do país (parágrafo
277 da sentença).

Em relação ao “dano ao projeto de vida”, não se pode impedir que a vítima venha a
dar uma nova e diferente direção a sua vida. Entretanto, em razão dos danos infligidos,
muito provavelmente isso não ocorrerá.

Deve-se, por isso, indenizar o dano das pessoas que sofreram agravo ao seu direito
à integridade pessoal, na medida em que as lesões sofridas se tenham tornado obstáculos
que impossibilitaram o alcance de suas vocações.

Caberá, assim, ao magistrado, verificando as circunstâncias dos acontecimentos, a


extensão dos prejuízos, bem como as características pessoais da vítima, determinar a
existência do dano, assim como ficar a reparação adequada ao mesmo.

05. Projeto de Vida e Dano Moral.

Se bem se possa concordar com alguma facilidade que o dano ao projeto de vida, na
medida representa uma agressão concreta à liberdade de um ser humana, deva ser
indenizado pelo ordenamento jurídico vigente em função do vigente artigo 186 do Código
Civil de 2002 e ainda do próprio texto constitucional de 1988.

Além disso, em termos

Nesse sentido, o defendido “projeto de vida” é compreendido não como um


elemento autônomo para fins de fixação da indenização civil deve ser entendido dentro de
uma idéia mais ampla do dano moral, mas não um terceiro gênero. Não há espaço, aqui,
para uma divisão tripartite dos danos, que continuam sendo pecuniariamente reparáveis
dentro da bipolar classificação dos danos em materiais e morais. O que é necessário,
todavia, é contextualizar o conceito de dano moral (e em algumas situações do próprio
dano material) para as novas dimensões de dano que são trazidas a reboque dos muitos
avanços com que nos brindou a modernidade, reflexos não desejados de um admirável
mundo novo.
A crítica que pode ser aqui ensaiada às propostas lançadas por Carlos Fernández
Sessarego é que, a despeito de toda sua originalidade, não há como aceitar-se com
facilidade o corte epistemológico que é por ele proposto para justificar a existência do dano
ao projeto de vida como algo autônomo à própria realidade psicossomática das pessoas.

A liberdade que é violada e que dá ensejo à frustração ao projeto de vida é


obviamente um elemento somático. Não há que se dizer que o soma seja um instrumento
da liberdade; senão que a liberdade ela própria também está indiscutivelmente associada ao
soma. Por outro lado, ainda que projetada para o futuro, a frustração aos sonhos e anseios
de uma pessoa dificilmente poderá ser concebida sem qualquer repercussão
psicossomática.

Sob esse único aspecto, as idéias de Sessarego tornam-se prenhas de maior rigor
científico. Ao afirmar inicialmente que todo dano a um projeto de vida tem como
antecedente um dano psicossomático, parece ser invencível a contradição que vai se seguir
quando, logo após, é sustentada uma alteridade categórica entre ambos. ...

É preciso ter-se em conta que não apenas a frustração de um projeto de vida mas
igualmente (talvez até mesmo em maior medida) a própria realização dele em função do
exercício mais pleno da liberdade acarreta ao indivíduo profunda carga de “stress”
emocional que repercute invariavelmente sobre seu corpo, ou sua saúde. Encarreguemos,
assim, a ninguém menos que Eric Fromm o arremate de nosso argumento: “¿Puede haber
idea más simple? Únicamente la forma de vida más superficial, más enajenada, puede no
exigir decisiones conscientes, pero sí provoca multitud de síntomas neuróticos y
psicosomáticos, como las úlceras y la hipertensión, que son manifestación de conflictos
inconscientes. Quien no haya perdido por completo la capacidad de sentir, quien no se
haya convertido en un robot, no podrá evitar el afrontar decisiones dolorosas”.24

Perceba-se que não se está, de forma alguma, pugnando pela falta de sentido ou que
se advoga o caráter prescindível da noção de dano a um projeto de vida. O dano à
liberdade deve sim ser considerado como uma forma da dano a ser especialmente
considerado quando presentes as elementares que autorizam sua concreta configuração.

24
FROMM, Eric. Del Tener al Ser. caminos y extravíos de la conciencia. Trad. de Eloy Fuente Herrero.
Barcelona: Paidós, 2007. p. 93.
Nada obstante, e diferentemente da linha metodológica desenvolvida por Carlos
Fernández Sessarego, não consideramos que as categorias dano a um projeto de vida e
dano psicossomático suplantem a já clássica categoria dano moral, porquanto nela ainda
existem peculiaridades que não apenas tornam reais os prejuízos imateriais decorrentes da
frustração a um projeto de vida, como, inclusive, ajudam a divisar-lhe um sentido e um
limite razoável.

Com efeito, a frustração à liberdade, pelo mesmo humanismo existencialista que


inspira sua defesa jurídica, somente pode estar relacionada ao mesmo elemento histórico-
subjetivo que a inspira. Fora disso, não faz sentido em falar em defesa da liberdade, pena
de se perder a própria racionalidade e coerência desse discurso. Assim, ao invés de se ter a
defesa a liberdade como uma esfera a parte dos danos psicossomáticos, parece mais
conforme a realidade alterar os pólos dessa equação, de modo a que ela continue associada
à idéia de dano moral, em cujo conceito, atualmente, está alcançada a proteção dos
elementos constitutivos da própria identidade humana.

Consideradas as deficiências epistemológicas da classificação proposta por Carlos


Fernández Sessarego, ...dos danos propostos por Mazeaud, Mazeaud e Chabas pode
representar uma solução cientificamente mais adequada para a compreensão e
sistematização do dano ao projeto de vida, o qual não deixaria de estar vinculado ao
chamado prejuízo moral, dele não se apartando, porém, redimensionando-o.

Os consagrados autores franceses partem do pressuposto que a classificação


dialógica entre dano material e dano moral, realmente não pode mais ser empregada em
virtude do caráter absolutamente distinto (“tercius genus”) do chamado dano corporal
(“dommage corporel”), que por isso mesmo, passa a ter uma dimensão própria.

Na definição dos tratadistas francofônicos, o dano corporal é um meio-caminho


entre o dano material e o dano moral, pois cuida de perdas que vão além da objetividade
estrita que caracteriza o dano material por englobar justamente as ofensas à integridade
física da pessoa, esse fino material que, por influxo dos valores que dão forma ao que
chamamos de Direito ocidental, merece superior atenção. Por outro lado, não se pode
considerar como agressão puramente imaterial, vez que deixa seqüelas no mundo sensível.

Em sendo assim, o dano corporal trata das ofensas físicas à pessoa, traduzindo-se,
principalmente, pela incapacidade temporária total e pela incapacidade permanente
parcial (e algumas vezes pela incapacidade parcial temporal). Dentro dessa perspectiva
são indenizáveis tanto os danos puramente físicos, como os incidentes pecuniários
decorrentes dos ferimentos sofridos, ainda que ela não tenha profissão, ou tenha sofrido
perda de seus rendimentos.25

Nisso o dano corporal se diferencia do dano material, que continua tendo


configuração autônoma, mesmo diante de eventos danosos contra uma pessoa. Em sua
forma padrão, os danos materiais continuariam a ser vislumbrados naquelas circunstâncias
onde as lesões impostas à pessoa tivesse reflexos estritamente pecuniários, como
exemplificam o pagamento dos honorários médicos e demais custas hospitalares, bem
como a perda de renda propriamente dita em função de uma agressão corporal.26

Por isso, advogam esses renomados autores que as espécies de danos deveriam ter
uma divisão tripartite e, assim, deveriam ser tratados por: a) danos materiais; b) danos
corporais; c) danos morais. A propósito, para o Direito Francês, essa separação não é
apenas doutrinária, uma vez que o Código da Seguridade Social alude, pelo menos
indiretamente, a prejuízos corporais (físicos) e morais, como pode ser visto da leitura de
seu art.454-I.27

Por sinal, não apenas no Direito Francês, tal classificação mostra-se válida, no
Código Civil peruano, que teve marcada influência das idéias de Carlos Sessarego, não foi
suprimida a referência ao dano moral, como indica o famoso art. 1985 daquele diploma
legal.28 Ressalve-se, entretanto, que tal sistemática sempre mereceu crítica por parte de
25
“Auparavant, Il importe cependant de signaler l’existence d’un dommage à mi-chemin entre le préjudice
moral et Le préjudice matériel: Le dommage corporel. Il s’agit de l’atteinte à l’integrité physique de la
personne; elle se traduit principalment par l’incapacité temporaire totalte (lorsque la persone, encore blessée
est complètement immobilisée) et l’incapacité permanente partielle, lorsque la victime ayant vu ses blessures
consolidées de l’état de blessé à celui d’infirme. La réparation du préjudice corporel compense normalement
aussi bien le préjudice purement physiologique que les incidentes pécuniares blessures, puis de l’infirmité.
Mais la victime a droit à la réparation des ces préjudices même si elle n’exerce pas de profession et ne subit
donc pas de perte de revenus.” (MAZEAUD, HENRI; MAZEAUD; Léon; Mazeaud, Jean; CHABAS,
François. Leçons de Droit Civil. obligations theorie générale. 9 ed. Paris: Montchrestien, 1998. t II. v. 1. p.
413).
26

27
“Si la responsabilité du tiers auteur de l'accident est entière ou si elle est partagée avec la victime, la caisse
est admise à poursuivre le remboursement des prestations mises à sa charge à due concurrence de la part
d'indemnité mise à la charge du tiers qui répare l'atteinte à l'intégrité physique de la victime, à l'exclusion de
la part d'indemnité, de caractère personnel, correspondant aux souffrances physiques ou morales par elle
endurées et au préjudice esthétique et d'agrément. De même, en cas d'accident suivi de mort, la part
d'indemnité correspondant au préjudice moral des ayants droit leur demeure acquise.”
28
“Contenido de la indemnización: La indemnizacion comprende las consecuencias que deriven de la acción
u omisión generadora del daño, incluyendo el lucro cesante, el daño a la persona y el daño moral, debiendo
existir una relación de causalidad adecuada entre el hecho y el daño producido. El monto de la indemnización
devenga intereses legales desde la fecha en que se produjo el daño.”
Sessarego, para quem a permanência do dano moral devia-se a fatores de ordem cultural e
sociológica, mas não científica.

Entretanto, ao tratar-se do dano moral, nele é franqueado o ingresso de inúmeras


outras subespécies como...

06. Projeto de Vida e Sanções Não Pecuniárias.

O debate em torno do conceito dos “danos a um projeto de vida” tem, portanto,


uma variante talvez ainda não percebida em cheio pela doutrina. Para além da questão
conceitual de admiti-lo ou não como modalidade autônoma de dano, sua admissão
implicou, por parte da jurisprudência da Corte Interamericana de Justiça, na adoção de
medidas reparatórias em caráter não pecuniário, derrubando, assim, um paradigma que
remonta ao próprio contemporâneo ao fenômeno da Codificação, qual seja, a exclusividade
da punição pecuniária como forma única de recomposição a um direito violado.

Com efeito, em sua redação original, embora não fosse textualmente expresso, o
Código Civil dos franceses deixava claro que a reparação em dinheiro era a única
modalidade que se cogitava para fins de reparação pela violação de um delito ou quase-
delito, assim entendidos os atos

Apenas com o advento da Lei n°70-643, de 17 de julho de 1970, cujo objetivo era
reforçar as garantias aos direitos individuais dos cidadãos franceses (“tendant à renforcer la
garantie des droits individuels des citoyens”) é que se começa a cogitar, em França, da
aplicação de medidas preventivas, ou mesmo represssivas para fazer cessar a agressão
contra os direitos à personalidade de alguém, ou, simplesmente, a sua vida privada, no
dizer da atual redação do Código Napoleão:

Chacun a droit au respect de sa vie privée.

Les juges peuvent, sans préjudice de la réparation du dommage subi, prescrire toutes
mesures, telles que séquestre, saisie et autres, propres à empêcher ou faire cesser une
atteinte à l'intimité de la vie privée: ces mesures peuvent, s'il y a urgence, être
ordonnées en référé.29

29
Em tradução livre: Cada pessoa tem direito a sua vida privada. Os juízes podem, sem prejuízo da reparação
pelo prejuízo sofrido, ordenar todas as medidas, tais como o seqüestro, penhora e outras próprias a obstar ou
fazer cessar uma agressão á intimidade ou à vida privada: essas medidas podem, se há urgência serem
ordenadas em consulta (isto é, em caráter cautelar).
A indenização exclusivamente através de meios financeiros, ou pelo menos
intrinsecamente patrimoniais, já havia sido revogada alguns anos antes no Direito
argentino, por nítida influência de Alfredo Orgaz, que em conhecido artigo naquele país,
defendia a possibilidade de indenização “in natura”, sempre que viável a medida. Com a
redação dada pela reformuladora Lei n° 17.711 de 26/4/1968, a até então lição doutrinária
convertia-se em direito positivo:

Art. 1.083. El resarcimiento de daños consistirá en la reposición de las cosas a su estado


anterior, excepto si fuera imposible, en cuyo caso la indemnización se fijará en dinero.
También podrá el damnificado optar por la indemnización en dinero.

A inovação proposta pelo resignatário ministro da Suprema Corte Argentina fica


bem mais ... se comparada com a redação originária formulada por Velez Sarsfield: “Toda
reparación del daño, sea material o moral, causado por un delito, debe resolverse en una
indemnización pecuniaria que fijará el Juez, salvo el caso en que hubiere lugar a la
restitución del objeto que hubiese hecho materia del delito”

A conhecida expressão erguido em ombros de gigantes30 pode ser aplicada


ao Século XX com acerto. Fonte catalisadora das conquistas, revoltas, engenhos e
pensamentos das mais importantes centúrias passadas, nele foi compactado um tão espesso
amálgama capaz de ..

No âmbito do Direito, não se deixariam sentir tais confrontos...

30
A expressão, ao que parece e ao contrario da crença generalizada, não foi cunhada originariamente por
Isaac Newton em sua famosa carta a Robert Hookie, senão que uma adaptação da frase concebida séculos
antes pelo filósofo neoplatônico Bernado de Chartres. Os ensinamentos de Bernardo de Chartres foram
recolhidos por um discípulo chamado John de Salisbury, que escreveu: “Dicebat Bernardus Carnotensis nos
esse quasi nanos, gigantium humeris insidentes, ut possimus plura eis et remoti ora videre, non utique proprii
visus acumine, aut eminentia corporis, sed quia in altum subvenimur et extollimur magnitudine gigantea”
(Metalogicon III, 4) Em tradução livre: Dizia Bernardo de Chartres somos como anões em ombros de
gigantes. Podemos ver mais e mais longe que eles, não por qualquer capacidade física nossa, senão porque
somos levantados por sua grande altura.

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