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RESUMO
ABSTRACT
Em sua conhecida tese sobre a “era dos direitos”, que constitui o marco
epistemológico no qual encontramos situados, Norberto Bobbio defende o caráter
materialista histórico das conquistas jurídicas dos últimos séculos, as quais tiveram começo
já algum tempo atrás. O autor peninsular deixa claro que, desde as lutas revolucionárias
que culminaram com a criação do Estado Moderno, houve uma mudança irreversível na
dinâmica das relações de poder, que passaram a ser projetadas não mais sob a perspectiva
do soberano e sim do cidadão.1 Naturalmente, o Estado Moderno já não existe mais como
estrutura ideológica. Sem embargo, sua tradição libertária foi não apenas guardada como
transmitida para os séculos vindouros que, talvez por terem vivenciado convulsões de
intensidade ainda maior, souberam conservá-la e principalmente ampliá-la sob nova
dinâmica.
1
Cf. BOBBIO, Norberto. L’Età dei Diritti. 8 reimp. Turim: Einaud, 1996. p. 15-25.
No âmbito do Direito Civil, para além dos campos como o Direito de Família e
naturalmente dos Direitos da personalidade, esse complexo cenário importou também a
reformulação da própria idéia de Responsabilidade Civil, pois, como assinala Patrice
Jourdan, a valorização da pessoa humana conduziu os cidadãos a demandar cada vez mais
do Estado-providência.2
Por isso mesmo, ainda de acordo com essa autora argentina, o que poderiamos
chamar de Direito dos Danos orienta suas perspectivas atuais em função das seguintes
orientações cardiais: a) a extensão dos danos reparáveis; b) a objetivação da
responsabilidade civil; c) a prevenção dos danos; d) o aumento da relação de fatores de
atribuição; e) a ampliação da legitimidade passiva e ativa em demandas indenizatórias; f) a
diminuição para a vítima dos ônus probatórios; g) a socialização gradual dos riscos por
meio do seguro obrigatório e da seguridade social7.
No que pertine a proteção do ser humano propriamente dito, tal expansão pôde ser
sentida, por exemplo, na consolidação daqueles que poderíamos chamar genericamente
danos morais, aplicados na França desde o acórdão da Corte de Cassação datado de 25 de
junho de 1833. Seja a partir de sua manifestação inicial como danos decorrentes de um
abalo psicológico, seja na sua atual concepção objetiva de qualquer agressão a algum
5
Sobre a ampliação da lista de danos juridicamente protegidos ao longo do Século XX consultar as seguintes
obras para uma visão geral do assunto no Brasil, França e Argentina: BAPTISTA, Silvio Neves. Teoria
Geral do Dano: de acordo com o novo código civil brasileiro. São Paulo, Atlas, 2005; GUTIÉRREZ,
Graciela N. Messina de Estrella. La Responsabilidad Civil en La Era Tecnológica. tendências y prospectivas.
Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1997; TUNC, André. La Responsabilité Civile. 2. ed. Paris: Economica, 1989.
6
GUTIÉRREZ, Graciela N. Messina de Estrella. La Responsabilidad Civil en la Era Tecnológica. tendências
y prospectivas. Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1997. p. 22.
7
Cf. GUTIÉRREZ, Graciela N. Messina de Estrella. Op. Cit. p. 18.
direito da personalidade, dão inegável testemunho da mudança ideológica sofrida pela
então sisuda Responsabilidade Civil.
8
“La jurisprudence em tout cas ne s´est jamais montrée impressionné par les objections élevées contre La
réparation du préjudice moral et l´admet sans hesitación depis um arrêt des chambres réunies de la Cour de
cassation du 25 juin 1833 (S. 1833, 1, 458). Elle a ainsi alloué de façon libérale dês indemnités réparant
toutes sortes d´atteintes à dês intérêts extrapatrimoniaux, as seule préoccupation ayant été de limiter par
divers moyens Le nombre dês personnes autorisées à demander réparation.” (JOURDAN, Patrice. Op. Cit. p.
121).
9
Destaco, especificamente, o caso da jurisprudência que se formou na respeitadíssima Corte de Cassação
francesa a partir do chamado “Arrêt Perruche” (Court de Cassation, Assemblée Plénière, 17/11/2000),
quando se aceitou a possibilidade de responsabilização civil por erro médico consubstanciado na ausência de
informação aos pais de um nascituro que era portador de rubéola. Sendo a interrupção da gravidez admitida
na França e havendo o casal Perruche expressamente afirmado que desejaria interromper a gravidez nessas
circunstâncias, a Corte de Cassação entendeu que deveriam ser indenizados pelos “prejuízos resultantes dessa
deficiência”, em função de não terem podido evitar o nascimento da criança. A questão, pela sua intrínseca
dimensão moral, ensejou ainda uma série de repercussões legislativas que foram parar na Corte Européia dos
Direitos do Homem. Para uma leitura do caso Perruche sob o enfoque multidisciplinar, consultar o “dossier
Perruche” disponível no sítio eletrônico do Senado francês, na página “web”:
http://www.senat.fr/evenement/dossier_perruche.html (disponível em 25.01.2010).
10
TUNC, André. Op. Cit, p. 76.
progresso tecnológico e humanitário vivenciado dentro do Século XX produziu uma
modificação irreversível no âmbito da reparação civil de modo que se bem nem todo dano
possa ser indenizável, pelo menos e cada vez mais os danos e dentre eles os danos sofridos
diretamente pelos seres humanos tornam-se bens juridicamente tutelados.11 Para a solução
racional e razoável do assunto, portanto, deve medrar uma necessária harmonização entre
as normas de responsabilização civil e esses novos bem jurídicos que continuam a surgir,
cada vez mais e mais, em uma sociedade cada vez mais dinâmica.
Daí porque assistir razão a Carlos Alberto Ghersi quando afirma que a noção de
dano juridicamente reparável vai sofrendo uma ampliação diária, sobretudo por força da
realidade sócio-econômica e que, em tempos atuais, seria necessária uma revisão das
regras da responsabilidade civil para melhor adaptá-la ao momento histórico que
vivenciamos, onde tais normas jurídicas precisariam estar fundamentadas em sérias
projeções de análise econômica sobre a produção, circulação e comercialização de bens e
serviço para não deixar frustradas vítimas em um mundo globalizado.12
11
“La erosione della scala dei valori delle società borghesi del secolo scorso, i mutamenti sociali provocati
dall´affermarsi di società a capitalismo avanzato, lo sviluppo del progresso tecnologico hanno profondamente
modificato i pressuposti dai quali muovere per una delimitazione dell´area del danno risarcibile. Appare
tuttora importante l´esigenza di identificare criteri di selezione delgi interessi meritevoli di tutela, e quindi di
circoscrivere l´area del danno risarcibile, per evitare che uma propagazione irrrazionale dei meccanismi di
tutela renda necessario il risarcimento di ogni danno provocato dall´attività umana, senza considerazione
alcuna per la consistenza e la qualità dell´interesse leso.” (ALPA, Guido; BESSONE, Mario, 2001, p. 5).
12
GHERSI, Carlos Alberto. El Ser Humano y la Dañosidad como Inevitable Contingencia Social. In
GHERSI, Carlos Alberto et allí. Responsabilidad: Problematica Moderna. Mendonza: Ediciones Jurídicas
Cuyo, 1996. pp. 29-37
Não se pode dissociar liberdade e valorização da pessoa humana, pois traduzem
conceitos siameses, onde o menosprezo de um invariavelmente refletirá no do outro.
Embora costume-se dizer que a vida é o principal dos direitos, pois todos os demais
(direitos) começam por ela, não se deve correr o risco de considerar a liberdade como algo
a ela inferior. É a liberdade, ou simplesmente a aptidão para ser livre, o traço fundamental
que define o ser humano de toda e qualquer espécie animada. Vida, sem liberdade, já não é
vida humana.
Essa lição tanto parece ser verdadeira que aparece, como trabalho de Sísifo
subrepeticiamente na obra de filósofos antigos e modernos como Platão, Agostino,
Espinoza, Kant Rousseau e Sartre, em cujas obras...
As implicações entre Direito e Liberdade são tão intensas que poderiam ser
divisadas dentro daquelas mesmas duas esferas propostas por Hans Kelsen, para conceituar
constituição, ou seja, uma lógico-conceitual e a outra jurídico-positiva. Desse modo, A
liberdade tanto é um direito fundamental indiscutivelmente garantido, em maior ou menor
medida, aos seres humanos que compõem determinado ordenamento jurídico referencial,
13
“O summam Dei Patris liberalitatem, summam et admirandam hominis felicitatem! Cui datum id habere
quod optat, id esse quod velit. Bruta simul atque nascuntur id secum afferunt, ut ail Lucilius, e bulga matris
quod possessura sunt. Supremi spiritus aut ab initioaut paulo mox id fuerent, quod sunt futuri in perpetuas
aeternitates. Nascenti homini omnifaria semina et omnigenae vitae germina indidit Pater; quae quisque
excoluerit illa adolescent, et fructus suos ferent in illo. [...] Quis hunc nostrum chamaeleonta non admiretur?
Aut omnio quis aliud quicquam admeritur magis?” (PICO DELLA MIRANDOLA. Discurso sobre a
Dignidade do Homem. Trad. Maria de Lurdes Sirgado Ganho. Lisboa: Edições 70, 1989. p. 52)
hipótese na qual pode ser compreendida sob uma configuração jurídico-positiva; como
pode, igualmente e segundo muitas das escolas jusfilosóficas que floresceram no Século
passado, ser entendida como conceito fundamental para a própria definição da palavra
Direito.
É o caso, por exemplo, das obras de Miguel Reale, Luis Recasén Siches e,
particularmente, da Teoria Egológica do Direito formulada por Carlos Cossio. A expressão
egológica decorre obviamente de “ego” e tem a intenção de demonstrar que o direito, em
última análise, é uma forma qualificada da conduta dos seres humanos (ou seja, um objeto
egológico), que somente pode existir pressupondo-se a presença da liberdade como fonte
geradora de qualquer ato volitivo ou racional. Diz o conhecido professor tucumano: “Pero
hay otros objetos culturales cuyo substrato es la propia acción o conducta humana; ahora se
trata de la corporización de un sentido que es el sentido del comportamiento humano […]
Llamamos a éstos objetos egológicos, porque siendo conducta el substrato de ellos, la
conducta es inseparable del ego actuante: en el substrato de estos objetos hay un ego como
ego”.14
Deste modo proposto, ou seja, como objeto egológico é possível dar-se conta da
importância do valor liberdade tanto para a definição do conceito de Direito como para sua
prática diária, onde ele passa a ocupar lugar de mais elevado destaque, ostentando a
condição de bem jurídico cujo resguardado reclama a primazia das atenções do
ordenamento. Essa especial forma de enfocar a liberdade termina por dar, por conseguinte,
nova dimensão ao chamado dano aos direitos da personalidade, na medida em que, como
dito, propõe uma reconfiguração dinâmica de suas elementares.
14
COSSIO, Carlos. Teoría de la Verdad Jurídica. Buenos Aires: El Foro, 2007. p. 64. A partir da colocação
do jurídico como “objeto egológico” é que Cossio propõe sua conhecida definição de Direito, segundo a qual
este é a “conduta em interferência intersubjetiva”, expressão que deixa mais do que explicitada seu caráter
existencial-fenomênico
Na correta explicação de Jorge Mosset Iturraspe a atual configuração do dano à
pessoa aparece como resposta a toda uma corrente personalista ou existencialista do
Direito que, como “um novo renascimento volta a colocar a pessoa humana como eixo ou
centro das preocupações jurídicas”.15
Nenhuma outra escola filosófica, com efeito, parece ter sido tão radicalmente
convicta do valor liberdade para a construção da plenitude humana como a que se
denomina existencialista. Nem mesmo os ideais revolucionários que inspiraram as
revoluções liberais do Século XVIII, podem ser a ela comparados, na medida em que a
noção de liberdade dos racionalistas daquele momento histórico era muito mais, como
deixa claro seu hipocorístico, cerebral que intimista.
Com esse cenário por pano de fundo é que Carlos Fernánez Sessarego vem a
desenvolver sua tese sobre os danos ao projeto de vida. Diz esse respeitado professor
peruano que as pessoas não podem simplesmente ser tratadas sob um aspecto puramente
estático no que se relaciona ao exercício de sua liberdade. O caráter intrinsecamente
humano do ser humano impõe, em última análise, que seja levado em consideração pelo
ordenamento jurídico esse grande mosaico em que se cinzela a realidade existencial de
cada pessoa:
15
ITURRASPE, Jorge Mosset. Op Cit. p. 281
sabido, uma confluência entre os conceitos de liberdade e responsabilidade, de modo que a
garantia que se outorga para seu uso pressupõe, como não poderia ser diferente, um agir
responsável. Como outros conceitos dialéticos (e talvez mais que todos) na definição
mesma de liberdade estão incorporados elementares de responsabilidade e respeito à
liberdade alheia, quer seja individual ou coletiva.
Com efeito, trata-se de conhecida lição proferida por Sartre: “Porém, se realmente a
existência precede a essência, o homem é responsável pelo que é. Desse modo, o primeiro
passo do existencialismo é o de por o homem na posse do que ele é e de submetê-lo à
responsabilidade total de sua existência. Assim, quando dizemos que o homem é
responsável por si mesmo não queremos dizer que o homem é apenas responsável pela sua
estrita individualidade, mas que é responsável por todos os homens”.16
Por outro lado, a liberdade ontológica, em virtude de seu especial papel para o
desenvolvimento dos seres humanos, desafia reparação autônoma, acaso violada. É esse
dano à liberdade fenomênica, ou em uma palavra, à vontade que se procura reconhecer e
sancionar sob a noção de dano a um projeto de vida. A vontade deve ser livre, plenamente
livre, para satisfazer um projeto de vida, ou, sendo o caso, mesmo não o querer realizado,
mas sempre deverá ser uma decisão livre, o que já é algo bem limitado em razão das
atávicas correlações biogenéticas do ser humano, como já ensinava, dentre outros filósofos
modernos, Luis Recasén Siches.18
17
SESSAREGO, Carlos Fernández. Op cit. p. 18
18
“El yo no es una cosa; es quien tiene que vivir con las cosas, entre las cosas; y la vida no es algo que nos
sea dado hecho, que tenga que ser predeterminado, sino que es algo que tiene que hacerse, que tiene que
hacérsela el yo que cada uno de nosotros es; y su estructura es futurición, es decidir en cada momento lo que
va a ser en el momento siguiente y, por tanto, es libertad. Pero una libertad no abstracta (como absoluta e
ilimitada indeterminación), sino libertad encajada en una circunstancia, entre cuyas posibilidades concretas
tiene que optar. […] Vida significa la forzosidad de realiar el proyecto de existencia que cada cual es. Este
proyecto en que consiste el yo, no es una idea o plan ideado por el hombre y libremente elegido. Es anterior a
todas las ideas que su inteligencia forma, a todas las decisiones de su voluntad. Más aún, de ordinario no
tenemos de él sino un vago conocimiento, y, sin embargo, es nuestro auténtico ser, nuestro destino. Nuestra
voluntad es libre para realizar o no ese proyecto vital que últimamente somos, pero no puede corregirlo,
cambiarlo, prescindir de él o sustituirlo”. (SICHES, Luis Recaséns. Filosofía del Derecho. 19 ed. Cidade do
México: Porrúa, 2008. pp. 252-253).
A diferença entre o dano psicossomático e o dano ao projeto de vida surgem
quando é colocado em relevo o elemento vontade. Constituir-se o dano psicossomático
como um dano que deixa marcas, quer no corpo, quer na alma (moral), mas não atrapalha
necessariamente que a vítima possa, mercê de suas forças volitivas, prosseguir sua jornada
existencial e vir a realizar-se enquanto ser humano. O dano ao projeto de vida, ao
contrário, pressupõe essa privação de ordem substancialmente volitiva, no qual é
constituído. Uma vez mais, as palavras de Carlos Sessarego:
es oportuno señalar que si bien el ser humano es una ‘unidad psicosomática constituida y
sustentada en su libertad’, se suele confundir, frecuentemente, la libertad, que es el ser
mismo del hombre, con la unidad psicosomática en la que ella está implantada o con un
particular aspecto o función de la misma. Esta confusión es más notoria tratándose de la
voluntad, que es una de las vertientes psíquicas, sin percatarse que ésta se halla, como la
unidad psicosomática en su conjunto, al servicio del ‘yo’, del ser mismo, de su decisión
libre. La envoltura psicosomática es un medio o instrumento del cual se vale la libertad para
su realización como proyecto.19
19
SESSAREGO, Carlos Fernández. Op. Cit. p. 44.
20
ARENDT, Hannah. Responsabilidad y Juicio. Trad. de Miguel Canel e Fina Birulés. Barcelona: Paidós. p.
115.
sino en el de la filosofía moral” 21, ou seja, como uma decisão livre e consiente sobre a ação
concreta que deve realizar.
Por outro lado, apenas situações de extrema gravidade é que teriam guarida sob
título de dano a um projeto de vida, que possui sempre configuração de dano futuro, por
significar a perda ou a diminuição da vontade enquanto elemento anímico que nos orienta à
realização de um propósito egológico. A perda da vontade, ou sua obliteração em
condições juridicamente indenizáveis, como demonstram as regras ordinárias da
experiência, não se faz por atos de menor dimensão. Um contratempo, é certo, sempre terá
impacto sobre a vontade humana, mas a existência é formada também por tais dissabores e
angústias. O ser humano, em princípio naturalmente não se rende a eles e por não se
render, como no mito grego de Prometeu, é que inventou a aventura humana.
Fica evidente que a violação a esse eu deve ser plenamente indenizável em caráter
autônomo. A liberdade enquanto fonte da ação humana não se confunde, com efeito, com
a reparação civil que é atualmente catalogada pelo Direito Positivo brasileiro que, como
21
ARENDT, Hannah. Responsabilidad y Juicio. Trad. de Miguel Canel e Fina Birulés. Barcelona: Paidós. p.
98.
22
SESSAREGO, Carlos Fernández. Apuntes para la Distinción entre el Daño al Proyecto de Vida y el Daño
Psíquico. In Los Derechos del Hombre. daños y protección a la persona. Mendonza: Ediciones Jurídicas
Cuyo, 1996. pp. 19-20.
visto acima, ocupa-se em deflagrar sanção explícita contra a liberdade violada, mas não
propriamente contra a frustração.
A eventual falta de nomeação explícita por parte da quase totalidade dos ordenamentos
jurídicos, outrossim, não pode ser entendida como impedimento oponível ao seu
reconhecimento, já que, embora seja certo que não houve ainda a ruptura do marco teórico
que propugna que os direitos somente são indenizáveis quando juridicamente protegidos
(danos juridicamente apreciáveis), não é menos certo que a descrição “numerus clausus”
das sanções reparatórias, da qual a mais autorizada representante foi a hermética escola da
Exegese, deu lugar definitivamente, ainda no Século passado, a um sistema topográfico e
maleável de atribuição de responsabilidades civis tendo por base o elemento
principiológico que anima a criação do Direito.
Sem embargo, por tratar-se justamente de recente construção jurídica muito ainda há
que podar e aparar-se quando se fala de danos a um projeto de vida. A sistematização é
medida que se impõe para dar adequada fundamentação epistemológica a esses danos, em
cujo teste, efetivamente, poder-se-á descobrir suas verdadeiras raízes ontológicas.
Dessa forma, o maior dano que se poderia causar a uma pessoa seria a frustração, o
impedimento ou o retardamento de que projetou para si. Mas nem toda mudança das
condições de existência deve ser indenizada, mas sim aquelas que mudam e marcam de
forma profunda o marco afetivo e espiritual em que se desenvolve a vida daquela pessoa
ou de sua família, bem como afetem a evolução profissional que estava sendo percorrida
com grandes esforços e empenhos.
Dessa forma, a Corte conhece dos casos em que se alegue violação de um Estado a
qualquer direito e liberdade protegidos pela Convenção Americana de Direitos Humanos,
sendo necessário que se tenham esgotados os procedimentos previstos na mesma.
23
Nesse sentido, consulte-se as seguintes decisões: caso “Maria Elena Loayza Tamayo Vs. Peru”, de 27 de
novembro de 1998; caso de “Los Niños de La Calle Vs. Guatemala”; de 26 de maio de 2001; caso de
“Cantoral Benavides Vs. Peru”, de 3 de dezembro de 2001; Caso “del Caracazo Vs. Venezuela”, de
29.08.2002; Caso “Maritza Urrutia Vs. Guatemala”, de 27.11.2003; Caso “Molina Theissen Vs. Guatemala”,
de 03.07.2004; Caso de “los Hermanos Gómez Paquiyauri Vs. Perú”, de 08.07.2004; Caso “Carpio Nicolle y
otros Vs. Guatemala”, de 22.11.2004; Caso de “las Hermanas Serrano Cruz Vs. El Salvador”, 1º. 03.2005;
Caso “Gutiérrez Soler vs. Colombia”, de 12.09.2005; Caso “del Penal Miguel Castro Castro Vs. Perú”, de
25.11.2006; Caso de “la Masacre de La Rochela Vs. Colombia”, de 11.03.2007; Caso “Cantoral Huamaní y
García Santa Cruz vs. Perú”, de 10.07.2007; Caso “Valle Jaramillo y otros Vs. Colombia”, 27.11.2008.
Nesses casos, a Corte aplica o artigo 63.1 da Convenção Americana, na qual se
encontra um dos princípios fundamentais do direito internacional geral, que é aquele pelo
qual, ao ser produzido um fato ilícito imputado a um Estado, surge responsabilidade
internacional deste pela violação de uma norma internacional, com o conseqüente dever de
reparação:
Artigo 63º
1. Quando decidir que houve violação de um direito ou liberdade protegidos nesta
Convenção, a Corte determinará que se assegure ao prejudicado o gozo do seu direito ou
liberdade violados. Determinará também, se isso for procedente, que sejam reparadas as
conseqüências da medida ou situação que haja configurado a violação desses direitos, bem
como o pagamento de indenização justa à parte lesada.
O dano a um projeto de vida vem sendo reconhecido pela Corte como sendo o dano
que atenta contra a realização pessoal do indivíduo afetado, considerando sua vocação,
atitudes, circunstâncias, potencialidades e aspirações, que lhe permitam fixar, de forma
razoável, determinadas expectativas e alcançá-las (caso “Maria Elena Loayza Tamayo Vs.
Perú”, parágrafo 147).
Dessa forma, seria razoável afirmar que esses fatos impedem ou obstruem a
obtenção do resultado previsto e esperado. Tudo isso altera o desenvolvimento normal da
pessoa. Assim,
Por outro lado, para ilustrar a segunda hipótese, cita o primeiro caso em que a Corte
Interamericana de Direitos Humanos vislumbrou a existência de “dano a um projeto de
vida”.
Entretanto, na opinião do mesmo autor, a Corte errou ao não fixar uma reparação
satisfatória ao dano, alegando tão somente que não havia precedentes sobre a matéria:
No caso “Cantoral Benavides Vs. Peru”, a Corte reconheceu que a vítima foi
submetida a condições de reclusão hostis e restritivas, além de tortura de forma cruel e
degradante, o que lhe causou dores corporais e emocionais. Por essa razão, reconheceu a
existência de “dano ao projeto de vida”.
Contudo, diferentemente do que ocorreu no caso “Maria Elena Loayza Tamayo Vs.
Perú”, a Corte, ainda sem quantificar em termos econômicos, estabeleceu um conjunto de
compensações para reparar o prejuízo ao projeto de vida de Luis Alberto Cantoral:
Logo depois, o Tribunal, ao deparar-se com o “Caso del Caracazo Vs. Venezuela”,
afirmou que reconheceu o conceito de dano ao projeto de vida no caso Loayza Tamayo, e
que, desde então, algumas legislações internas passaram a acolher o conceito (parágrafo 97
da sentença do “caso del Caracazo Vs. Venezuela”).
Assinala ainda que durante audiência pública, os agentes estatais, de pé, pediram
perdão à vítima pela perda de seu projeto de vida (parágrafo 104).
Em relação ao “dano ao projeto de vida”, não se pode impedir que a vítima venha a
dar uma nova e diferente direção a sua vida. Entretanto, em razão dos danos infligidos,
muito provavelmente isso não ocorrerá.
Deve-se, por isso, indenizar o dano das pessoas que sofreram agravo ao seu direito
à integridade pessoal, na medida em que as lesões sofridas se tenham tornado obstáculos
que impossibilitaram o alcance de suas vocações.
Se bem se possa concordar com alguma facilidade que o dano ao projeto de vida, na
medida representa uma agressão concreta à liberdade de um ser humana, deva ser
indenizado pelo ordenamento jurídico vigente em função do vigente artigo 186 do Código
Civil de 2002 e ainda do próprio texto constitucional de 1988.
Sob esse único aspecto, as idéias de Sessarego tornam-se prenhas de maior rigor
científico. Ao afirmar inicialmente que todo dano a um projeto de vida tem como
antecedente um dano psicossomático, parece ser invencível a contradição que vai se seguir
quando, logo após, é sustentada uma alteridade categórica entre ambos. ...
É preciso ter-se em conta que não apenas a frustração de um projeto de vida mas
igualmente (talvez até mesmo em maior medida) a própria realização dele em função do
exercício mais pleno da liberdade acarreta ao indivíduo profunda carga de “stress”
emocional que repercute invariavelmente sobre seu corpo, ou sua saúde. Encarreguemos,
assim, a ninguém menos que Eric Fromm o arremate de nosso argumento: “¿Puede haber
idea más simple? Únicamente la forma de vida más superficial, más enajenada, puede no
exigir decisiones conscientes, pero sí provoca multitud de síntomas neuróticos y
psicosomáticos, como las úlceras y la hipertensión, que son manifestación de conflictos
inconscientes. Quien no haya perdido por completo la capacidad de sentir, quien no se
haya convertido en un robot, no podrá evitar el afrontar decisiones dolorosas”.24
Perceba-se que não se está, de forma alguma, pugnando pela falta de sentido ou que
se advoga o caráter prescindível da noção de dano a um projeto de vida. O dano à
liberdade deve sim ser considerado como uma forma da dano a ser especialmente
considerado quando presentes as elementares que autorizam sua concreta configuração.
24
FROMM, Eric. Del Tener al Ser. caminos y extravíos de la conciencia. Trad. de Eloy Fuente Herrero.
Barcelona: Paidós, 2007. p. 93.
Nada obstante, e diferentemente da linha metodológica desenvolvida por Carlos
Fernández Sessarego, não consideramos que as categorias dano a um projeto de vida e
dano psicossomático suplantem a já clássica categoria dano moral, porquanto nela ainda
existem peculiaridades que não apenas tornam reais os prejuízos imateriais decorrentes da
frustração a um projeto de vida, como, inclusive, ajudam a divisar-lhe um sentido e um
limite razoável.
Em sendo assim, o dano corporal trata das ofensas físicas à pessoa, traduzindo-se,
principalmente, pela incapacidade temporária total e pela incapacidade permanente
parcial (e algumas vezes pela incapacidade parcial temporal). Dentro dessa perspectiva
são indenizáveis tanto os danos puramente físicos, como os incidentes pecuniários
decorrentes dos ferimentos sofridos, ainda que ela não tenha profissão, ou tenha sofrido
perda de seus rendimentos.25
Por isso, advogam esses renomados autores que as espécies de danos deveriam ter
uma divisão tripartite e, assim, deveriam ser tratados por: a) danos materiais; b) danos
corporais; c) danos morais. A propósito, para o Direito Francês, essa separação não é
apenas doutrinária, uma vez que o Código da Seguridade Social alude, pelo menos
indiretamente, a prejuízos corporais (físicos) e morais, como pode ser visto da leitura de
seu art.454-I.27
Por sinal, não apenas no Direito Francês, tal classificação mostra-se válida, no
Código Civil peruano, que teve marcada influência das idéias de Carlos Sessarego, não foi
suprimida a referência ao dano moral, como indica o famoso art. 1985 daquele diploma
legal.28 Ressalve-se, entretanto, que tal sistemática sempre mereceu crítica por parte de
25
“Auparavant, Il importe cependant de signaler l’existence d’un dommage à mi-chemin entre le préjudice
moral et Le préjudice matériel: Le dommage corporel. Il s’agit de l’atteinte à l’integrité physique de la
personne; elle se traduit principalment par l’incapacité temporaire totalte (lorsque la persone, encore blessée
est complètement immobilisée) et l’incapacité permanente partielle, lorsque la victime ayant vu ses blessures
consolidées de l’état de blessé à celui d’infirme. La réparation du préjudice corporel compense normalement
aussi bien le préjudice purement physiologique que les incidentes pécuniares blessures, puis de l’infirmité.
Mais la victime a droit à la réparation des ces préjudices même si elle n’exerce pas de profession et ne subit
donc pas de perte de revenus.” (MAZEAUD, HENRI; MAZEAUD; Léon; Mazeaud, Jean; CHABAS,
François. Leçons de Droit Civil. obligations theorie générale. 9 ed. Paris: Montchrestien, 1998. t II. v. 1. p.
413).
26
27
“Si la responsabilité du tiers auteur de l'accident est entière ou si elle est partagée avec la victime, la caisse
est admise à poursuivre le remboursement des prestations mises à sa charge à due concurrence de la part
d'indemnité mise à la charge du tiers qui répare l'atteinte à l'intégrité physique de la victime, à l'exclusion de
la part d'indemnité, de caractère personnel, correspondant aux souffrances physiques ou morales par elle
endurées et au préjudice esthétique et d'agrément. De même, en cas d'accident suivi de mort, la part
d'indemnité correspondant au préjudice moral des ayants droit leur demeure acquise.”
28
“Contenido de la indemnización: La indemnizacion comprende las consecuencias que deriven de la acción
u omisión generadora del daño, incluyendo el lucro cesante, el daño a la persona y el daño moral, debiendo
existir una relación de causalidad adecuada entre el hecho y el daño producido. El monto de la indemnización
devenga intereses legales desde la fecha en que se produjo el daño.”
Sessarego, para quem a permanência do dano moral devia-se a fatores de ordem cultural e
sociológica, mas não científica.
Com efeito, em sua redação original, embora não fosse textualmente expresso, o
Código Civil dos franceses deixava claro que a reparação em dinheiro era a única
modalidade que se cogitava para fins de reparação pela violação de um delito ou quase-
delito, assim entendidos os atos
Apenas com o advento da Lei n°70-643, de 17 de julho de 1970, cujo objetivo era
reforçar as garantias aos direitos individuais dos cidadãos franceses (“tendant à renforcer la
garantie des droits individuels des citoyens”) é que se começa a cogitar, em França, da
aplicação de medidas preventivas, ou mesmo represssivas para fazer cessar a agressão
contra os direitos à personalidade de alguém, ou, simplesmente, a sua vida privada, no
dizer da atual redação do Código Napoleão:
Les juges peuvent, sans préjudice de la réparation du dommage subi, prescrire toutes
mesures, telles que séquestre, saisie et autres, propres à empêcher ou faire cesser une
atteinte à l'intimité de la vie privée: ces mesures peuvent, s'il y a urgence, être
ordonnées en référé.29
29
Em tradução livre: Cada pessoa tem direito a sua vida privada. Os juízes podem, sem prejuízo da reparação
pelo prejuízo sofrido, ordenar todas as medidas, tais como o seqüestro, penhora e outras próprias a obstar ou
fazer cessar uma agressão á intimidade ou à vida privada: essas medidas podem, se há urgência serem
ordenadas em consulta (isto é, em caráter cautelar).
A indenização exclusivamente através de meios financeiros, ou pelo menos
intrinsecamente patrimoniais, já havia sido revogada alguns anos antes no Direito
argentino, por nítida influência de Alfredo Orgaz, que em conhecido artigo naquele país,
defendia a possibilidade de indenização “in natura”, sempre que viável a medida. Com a
redação dada pela reformuladora Lei n° 17.711 de 26/4/1968, a até então lição doutrinária
convertia-se em direito positivo:
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A expressão, ao que parece e ao contrario da crença generalizada, não foi cunhada originariamente por
Isaac Newton em sua famosa carta a Robert Hookie, senão que uma adaptação da frase concebida séculos
antes pelo filósofo neoplatônico Bernado de Chartres. Os ensinamentos de Bernardo de Chartres foram
recolhidos por um discípulo chamado John de Salisbury, que escreveu: “Dicebat Bernardus Carnotensis nos
esse quasi nanos, gigantium humeris insidentes, ut possimus plura eis et remoti ora videre, non utique proprii
visus acumine, aut eminentia corporis, sed quia in altum subvenimur et extollimur magnitudine gigantea”
(Metalogicon III, 4) Em tradução livre: Dizia Bernardo de Chartres somos como anões em ombros de
gigantes. Podemos ver mais e mais longe que eles, não por qualquer capacidade física nossa, senão porque
somos levantados por sua grande altura.